Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Florianópolis
2019
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor através do
Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
________________________
Profa. Dra. Patricia Peterle Figueiredo Santurbano
Coordenadora do Curso
Banca Examinadora:
________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Lucia de Barros Camargo
Orientadora
Universidade UFSC
________________________
Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes
Universidade USP
________________________
Prof. Dr. Raúl Antelo
Universidade UFSC
________________________
Profa. Dra. Patricia Peterle Figueiredo Santurbano
Universidade UFSC
Para minha mãe, Dona Teresa, por
todo o apoio e amor, em todos os
momentos.
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa tem por objetivo refletir sobre a relação entre ética e
estética na criação artística, tendo como ponto de partida a
correspondência entre Mário de Andrade (1893-1945) e Henriqueta
Lisboa (1901-1985), realizada entre 1939 e 1945, período marcado pela
Segunda Guerra Mundial e pela ditadura de Getúlio Vargas. Nessa
época em que as questões político-sociais se tornaram prementes, de que
modo a postura ética se relacionava com a estética? Nas cartas de Mário
a Henriqueta, escritas no auge de sua maturidade, predominam reflexões
sobre o papel do intelectual na sociedade, a responsabilidade moral do
artista, o processo de criação. A correspondência revela, ainda, aspectos
do processo de criação poética de Henriqueta Lisboa e de sua busca por
conciliar uma poética voltada para questões espirituais e do ser com as
inovações da poesia modernista e as exigências da crítica literária da
época.
This research aims to reflect upon the relationship between ethics and
aesthetics in artistic creation, starting with the correspondence between
Mário de Andrade (1893-1945) and Henriqueta Lisboa (1901-1985),
held between 1939 and 1945, a period marked by the Second World
War and the dictatorship of Getúlio Vargas. In this period when socio-
political issues became pressing, how does ethical posture related to
aesthetics? In the letters of Mario to Henriqueta, written at the height of
his maturity, predominate reflections about the role of the intellectual in
society, the moral responsibility of the artist, the process of creation.
The correspondence also reveals aspects of the poetic creation process
of Henriqueta Lisboa and her quest to reconcile a poetics focused on
spiritual issues and being with the innovations of modernist poetry and
the demands of literary criticism of the time.
Introdução.............................................................................................19
CAPÍTULO 1
1.1 Ponderações sobre as cartas..........................................................31
1.2 Amor de amigo................................................................................41
1.3 Silêncios e constrangimentos.........................................................50
1.4 Excessos x virtudes.........................................................................59
1.5 Religião e emancipação..................................................................71
1.6 O poeta e a Adivinha......................................................................83
1.7 A crítica do eterno..........................................................................98
1.8 A poesia etérea de Henriqueta Lisboa........................................113
1.9 A amizade literária.......................................................................126
1.10 A cristalização poética................................................................152
1.11 O silêncio da crítica....................................................................160
1.12 O poeta diante do espelho..........................................................178
1.13 Retratos de Mário de Andrade..................................................186
1.13.1 Trezentos e cincoenta..............................................................194
1.13.2 A prisioneira da noite..............................................................197
1.14 A rotina dos escritores................................................................199
1.15 Cartografia de uma crise...........................................................220
1.15.1 Balanço da Semana de Arte Moderna...................................220
1.15.2 A polêmica da língua brasileira..............................................227
1.15.3 A recepção de Macunaíma......................................................231
CAPÍTULO 2
2.1 Moral artística é o que interessa.................................................236
2.2 A verdade do intelectual..............................................................250
2.3 A sombra da Segunda Guerra e da ditadura.............................256
2.4 Entre a lira e a foice......................................................................263
2.5 A poesia como sacrifício...............................................................286
2.6 A Meditação sobre o Tietê...........................................................307
2.7 O poeta na Modernidade.............................................................321
2.7.1 Carta a um amigo distante........................................................331
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................332
BIBLIOGRAFIA................................................................................338
INTRODUÇÃO
1
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 15.
poema muito mais calmo, (em relação a outros
que denominava bárbaros), um reconhecimento
dolorido da minha incapacidade pra me
ultrapassar e fazer alguma cousa de proveitoso à
humanidade.”
Debruçado sobre as águas do seu rio simbólico à
força de realidade, legou-nos nesses versos a
súmula de seu próprio ser, de seus ideais e
renúncias, numa exteriorização de solidez
ponderada e de reverberante sonoridade:
2
LISBOA, Henriqueta. Vigília poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1968,
p. 31.
3
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
profecias!”.4 E leva também uma esperança: “Uma lágrima apenas, uma
lágrima,/ Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.” 5
Nessa época, como podemos notar na correspondência com
Henriqueta, Mário vinha refletindo muito sobre questões como a
responsabilidade social do artista, o papel do artista na sociedade, o
processo de criação, interesses que compartilhava com a poeta mineira,
que buscava amadurecer e atualizar a sua poesia com o auxílio do
amigo.
Ao longo de sua trajetória, Mário estabeleceu um diálogo
constante com os demais escritores e intelectuais de seu tempo,
empenhado em construir um projeto para a cultura brasileira, ao mesmo
tempo que buscava atualizar as artes e a literatura do País, fazendo uma
releitura crítica da influência da arte de vanguarda europeia. Num
ambiente cultural ainda em formação, ele desempenhou uma tarefa
importante como catalisador e agenciador cultural, debatendo os mais
diversos assuntos, seja sobre literatura, música, folclore, artes plásticas.
Empenhado em situar-se ativamente em seu momento histórico, o
escritor modernista manteve um diálogo epistolar constante com os
demais escritores e intelectuais de sua época, em busca de emancipação
cultural e de construir uma identidade nacional. E, em busca de
autonomia e emancipação, desenvolveu também uma concepção estética
própria, construída a partir de um olhar crítico sobre a arte europeia e
considerando as particularidades do contexto sócio-cultural de seu país.
Mário desenvolveu, ao longo dos anos, uma compulsão por
escrever cartas que ele chamava de “epistolomania”, em diálogo
permanente com os mais diversos interlocutores culturais da época.
Disposto a contribuir para a formação dos novos escritores e
intelectuais, ele sempre respondia a todas as cartas que recebia,
assumindo, assim, um compromisso com a experiência coletiva. Formou
uma rede de conexões epistolares que se tornaria a mais vasta já
realizada em nosso país – calcula-se que tenha escrito mais de sete mil
cartas para cerca de 1100 interlocutores diferentes.6 Segundo Eneida
Maria de Souza, organizadora do volume das cartas entre Mário e
Henriqueta, a sua correspondência “é de capital importância não apenas
para a literatura, mas para o conhecimento da própria cultura
4
ANDRADE, Mário. “A Meditação sobre o Tietê”. In: Poesias Completas. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2005, p. 317.
5
Ibidem, 2005, p. 317.
6
MORAES, Marcos Antonio de. Entrevista ao jornal O Povo, feita por
Raphaelle Batista. Fortaleza, 28 de abril de 2015.
brasileira”.7 No ano seguinte à morte do escritor, ocorrida em 25 de
fevereiro de 1945, Antonio Candido assim estipulou o valor da sua
produção epistolar: “A sua correspondência encherá volumes e será
porventura o maior monumento do gênero, em língua portuguesa: terá
devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da sua
obra e do seu espírito”. 8
As cartas para Henriqueta só se tornaram acessíveis ao público
em 2010, com a publicação da Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa, pela Edusp. A edição reúne as cartas, cartões e
telegramas, que consolidaram a amizade entre os dois escritores, além
de anotações e documentos iconográficos. Parte desse acervo riquíssimo
estava inacessível ao público até julho de 1997, pois o seu conteúdo foi
disponibilizado somente 50 anos após a morte de Mário, com o
propósito de preservar a intimidade de seus interlocutores, a pedido do
próprio escritor. Findo esse período, o conteúdo das cartas se tornou
acessível ao público somente após a sua catalogação pelo Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB). Parte das cartas aqui pesquisadas – aquelas
de autoria de Mário – já tinha sido publicada em 1991, na coletânea
Querida Henriqueta – Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa,
pela Ed. José Olímpio, com organização de Abigail de Oliveira
Carvalho. Na edição de 2010, foram incluídas também as cartas da poeta
mineira para o escritor modernista.
No Arquivo Mário de Andrade, na série “Correspondência
passiva lacrada”, foram conservadas 40 cartas, 13 bilhetes, oito
telegramas e dois cartões-postais enviados por Henriqueta ao escritor
modernista. No Arquivo Henriqueta Lisboa, na série “Correspondência
pessoal”, foram conservadas 42 cartas, quatro bilhetes e dois telegramas
de Mário endereçados à poeta mineira, além de cópias datilografadas de
34 poemas de Henriqueta enviados a Mário, com comentários sobre eles
escritos a lápis – documentos que já tinham sido publicados em Querida
Henriqueta. 9
A Coleção Correspondência Mário de Andrade, uma iniciativa do
IEB, que se ocupa da conservação das cartas e de todo o espólio do
7
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 15.
8
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de
Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
9
PALÚ, Pe. Lauro (Org.). Querida Henriqueta: Cartas de Mário de Andrade a
Henriqueta Lisboa. Rio de Janeiro, José Olympio, 1990.
escritor – composto de biblioteca, arquivos e coleção de artes visuais –,
já teve publicadas também as cartas de Mário com Alceu Amoroso Lima
(2018); Luiz Camillo de Oliveira Netto (2018); Newton Freitas (2017);
Escritores/Artistas Argentinos (2013); Manuel Bandeira (2000); e
Tarsila do Amaral (2001).
O diálogo epistolar entre Mário e Henriqueta se desenvolveu
entre 1939 e 1945, durante os seis últimos anos da vida do escritor. Um
período posterior às duas fases de maior agitação do modernismo –
1917-1924, caracterizado pela atualização das linguagens artísticas, e
1924-1929, de construção de uma identidade nacional e consolidação de
conquistas. Mário estava então mais concentrado em refletir sobre
questões como o papel do intelectual na sociedade, a relação da arte com
a moral e a política, as tensões entre o individual e o coletivo, arte
desinteressada e poesia de circunstância, entre outros temas.
Politicamente, esse foi um período turbulento, assolado pela Segunda
Guerra Mundial e pela ditadura de Getúlio Vargas.
Podemos, seguindo uma linha de análise sugerida por Marco
Antonio de Moraes, dividir a correspondência de Mário de Andrade em
duas fases. Na década de 20, marcada pelo projeto nacionalista, o
escritor propõe uma mobilização coletiva em torno da consolidação de
um pensamento crítico, vinculado ao projeto de emancipação da cultura
nacional, de amadurecimento de uma estética e de um pensamento
político. Já na fase dos anos 30 e 40, ele se distancia um pouco dessa
dimensão nacionalista e seu foco de interesse se volta para a dimensão
ética do trabalho do escritor, em busca de uma compreensão de sua
própria atividade. Segundo o pesquisador, “Mário se vê então em face
da guerra, do autoritarismo do Estado Novo, e se questiona: o que
significa ser escritor, ser intelectual, nesse momento?” 10
Pode-se fazer um paralelo entre os temas abordados de modo
mais preponderante em suas cartas e os temas que caracterizam a sua
poesia. Antonio Candido e José Aderaldo Castello dividem a obra
literária do escritor do seguinte modo: a primeira fase, entre 1920 e
1926, foi de atualização da poesia brasileira a partir da influência das
vanguardas europeias, com predominância de características como
simultaneísmo, elipse, valorização do cotidiano, subversão dos temas
tradicionais.11 A seguir, com Clã do Jabuti e Macunaíma, ele entra numa
10
MORAES, Marcos Antonio de. Ciclo Mário de Andrade sempre vivo. IEB-
USP. São Paulo, dezembro de 2015.
11
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
fase de nacionalismo estético e pitoresco, com utilização do folclore e da
etnografia. A partir de 1930, começa uma fase mais intimista, com uma
manifestação mais sutil dos temas nacionais e descritivos, cada vez
mais interiorizados pela meditação, que vai culminar em seu último
poema, “A Meditação sobre o Tietê”.12
A correspondência com Henriqueta se desenvolveu num período
de maturidade de Mário e se estendeu até a sua morte, o que contribui
para que se possa alcançar uma compreensão de como a sua arte e sua
concepção estética se desenvolveram ao longo do tempo. Alguns
posicionamentos adotados no início da carreira foram depois revistos
pelo escritor. Em carta a Henriqueta, Mário revelou que, ao reler seus
trabalhos antigos, sobretudo escritos de jornal, percebeu que sua
maturidade intelectual tinha sido alcançada somente em 1932, quando
contava já 40 anos de idade:
12
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
13
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 265.
obras e para se pensar as questões éticas e estéticas que elas evocam.
Pelo que foi apurado, trata-se de uma pesquisa de doutorado ainda
inédita, até em função de o volume completo das cartas ter sido
publicado apenas em 2010. Pode-se supor, pela frequência com que os
dois escritores se correspondiam e pela riqueza do conteúdo de suas
cartas, que a poeta mineira tenha sido um dos principais interlocutores
de Mário no seu momento de maior maturidade intelectual, alcançado
no final de sua vida – basta comparar o número de cartas enviadas a ela
com aquelas escritas para outros de seus pares no mesmo período, entre
1939 e 1945, já publicadas, para se perceber que Henriqueta talvez tenha
sido a sua correspondente mais assídua nessa época. Enquanto a
correspondência entre Mário e Henriqueta soma um total de 82 cartas, a
correspondência com Manuel Bandeira, nesse mesmo período, reúne um
total de 17 cartas14, e com Carlos Drummond de Andrade, 27 cartas.
Muitas das questões evocadas pela correspondência entre Mário e
Henriqueta foram analisadas no texto “A Dona Ausente”, de Eneida
Maria de Souza, organizadora da edição das cartas. O texto está presente
na introdução da correspondência e também no livro A pedra mágica do
discurso15, da mesma autora. A edição caprichada da correspondência
traz muitas observações úteis nas notas de rodapé, como as
modificações realizadas por Henriqueta sob sugestão de Mário, a
transcrição de notas dos dois interlocutores deixadas na margem das
cartas, além de menções a outros textos e documentos que podem
auxiliar a leitura.
Para desenvolver esta tese, foi feita pesquisa de campo para
consulta de fontes documentais que integram o Acervo Henriqueta
Lisboa, situado no Acervo de Escritores Mineiros, na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), e o acervo de Mário de Andrade no
Instituto.de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo
(USP).
A pesquisa dialoga ainda com textos de Mário publicados em
seus livros e na imprensa. Para a realização deste trabalho, serão
considerados principalmente textos escritos na fase madura do escritor,
após 1932, como “O artista e o artesão” (1938) e “Elegia de Abril”
(1941), mas também com textos anteriores importantes para a
compreensão de suas concepções teóricas, como o “Prefácio
Interessantíssimo”(1922) e A Escrava que não É Isaura (1922-24).
14
Manuel Bandeira não publica todas as cartas de Mário, datadas após 1934.
15
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999.
As cartas, dado o seu caráter privado e circunstancial, não são
aqui consideradas fontes de informação definitivas. Elas devem ser lidas
considerando-se o seu caráter híbrido de ficção e realidade, fruto da
autoria de um narrador-personagem que faz uso tanto da memória
quanto da criação. As cartas podem ser vistas, assim, como vestígios de
uma grande trama de textos, formada também por textos de outras
fontes, que se relacionam e se complementam entre si, deixando
vestígios que podem auxiliar a leitura, mas não constituem uma
“verdade”. Até porque as cartas, dada a sua natureza circunstancial e
transitória, podem ser escritas no calor do momento, ensejando assim
mudanças de posicionamento futuras, conforme reconhece o próprio
Mário: “Olhe, Henriqueta, não vou reler esta carta. Se reler é certo que
não a mandarei. Talvez em dois minutos de releitura... eu mude de
verdade!”16
A correspondência serve justamente de espaço para o teste e
amadurecimento de ideias entre os interlocutores. De qualquer modo,
podemos pensar que ela pode ajudar a esclarecer questões sobre
concepções estéticas e éticas ainda não tenham sido elucidadas
suficientemente pelos escritores em seus textos ensaísticos e teóricos.
Porém, esse cuidado com relação à confiabilidade das cartas como fonte
de pesquisa não impede que se procure nelas a informação nova e o
detalhe significativo, que possam eventualmente apontar outros
caminhos para a análise e compreensão dos processos de criação e das
concepções estéticas dos autores estudados.
Mesmo reconhecendo a autonomia do texto literário, na
perspectiva dos estudos de perfis biográficos, a vida literária é vista
como componente imprescindível para a compreensão das obras dos
autores. Embora essas falem por si, criando um mundo novo e
transfigurando experiências pessoais, muitas vezes os textos remetem a
aspectos biográficos e históricos, mesmo que distorcidos e
transformados. Segundo Eneida Maria de Souza:
16
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 110.
a nação, a identidade e a memória persistem ainda
como os grandes temas que movem e compõem a
escrita de todos os tempos.17
17
SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas – Ensaios de crítica
biográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 13.
18
T. W. Adorno, "Crítica cultural e sociedade", in Prismas. São Paulo, Ática,
1998, p. 26. Apud GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São
Paulo: Ed. 34, 2006, p. 71.
Auschwitz representa não somente um episódio dramático da história
judaica ou alemã, mas um marco essencial da história ocidental:
19
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34,
2006, p. 71.
20
Ibidem, 2006, p. 72.
21
Ibidem, 2006, p. 72.
22
Ibidem, 2006, p. 83.
Mas qual é o vínculo entre poesia e sociedade? Qual é o papel do
artista na sociedade e qual a sua responsabilidade social? De que modo
os elementos éticos se relacionam com os estéticos? Como a estética e o
lirismo poético podem subsistir, mediante condições históricas que
tornam premente uma atitude ética? Essas são algumas questões que
procuraremos aqui analisar.
A primeira hipótese desta pesquisa é que a correspondência entre
Mário e Henriqueta revela uma tensão entre ética e estética, ou entre arte
empenhada, voltada para o contingente e transitório e atenta às questões
político-sociais de seu tempo, e arte de permanência ou desinteressada,
pretensamente autônoma e voltada para as finalidades da própria arte.
Chamou-me particularmente a atenção o modo como Mário
reagiu a uma carta de Henriqueta, na qual ela procura lhe fazer um
elogio, afirmando que nenhuma coação se infiltra no seu mundo
poético.23 Em seguida, porém, ela pondera: “Em matéria de arte
nenhuma coação representa o ideal, magnífico mas já temerário do
ponto de vista moral.” 24 Mário respondeu à amiga com uma carta longa
e contundente, esclarecendo que, para ele, do ponto de vista moral ou
mesmo em matéria de arte, "nenhuma coação” não representa um ideal
magnífico, pois o momento da criação é depois superposto por um longo
momento de discernimento moral, em que a subjetividade individual é
submetida a uma avaliação crítica da consciência social:
23
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 189.
24
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 211-212.
Porque o artista é antes de mais nada um homem,
e como homem ele só pode fazer da sua obra-de-
arte uma coisa humana, funcionalmente humana
no sentido moral-individual e moral-social do
humano. Esta não é apenas a minha opinião, é a
minha fé.25
25
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 211-212.
elementos temáticos que Mário chama de as “Adivinhas”. Em seguida,
faz uma introdução à poesia de Henriqueta; aborda a amizade literária
entre os dois escritores – em que Mário desempenha o papel de crítico e
tutor –; analisa a evolução técnica da poesia de Henriqueta; relata a
angústia que ela sentia com relação à recepção crítica de sua poesia;
contextualiza aquela fase da criação poética de Mário. O capítulo ainda
apresenta os retratos de Mário pintados por vários artistas e apresenta
uma breve biografia de ambos os escritores e descreve a rotina diária
deles, que envolvia a realização de trabalhos subsidiários e
institucionalizados, privando-os do tempo necessário para que pudessem
se dedicar à criação literária. Por fim, traz menções breves a alguns
eventos que podem ajudar a compreender alguns posicionamentos
assumidos por Mário no fim da vida, como o balanço que fez sobre o
Movimento Modernista, a polêmica em torno de seu projeto de catalogar
e sistematizar a “língua brasileira” e a sua insatisfação com a recepção
de Macunaíma.
O segundo capítulo aborda a questão da moral na arte, apontando
as tensões entre ética e estética; apresenta a concepção de Mário sobre a
verdade do intelectual – distinguindo-a da verdade do homem comum e
da religião –; situa a atuação dos dois escritores no contexto da Segunda
Guerra e da ditadura militar; reflete sobre o sacrifício de Mário para
atender às contingências de seu contexto político-social (mostrando o
seu impasse entre aderir ao comunismo e combater a partir de sua
"torre-de-marfim"); investiga a sua participação no Congresso Brasileiro
de Escritores; analisa as transformações que ocorreram em sua
concepção estética para que fosse capaz de escrever “A Meditação sobre
o Tietê”; e discorre sobre a condição do poeta em face da Modernidade.
CAPÍTULO 1
26
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa:
Passagens, 1992, p. 129-160.
amadurecimento de princípios estéticos, à discussão de questões
políticas. Segundo Ângela de Castro Gomes, “esses registros formam
um conjunto de fontes produzidas no âmbito do privado, mas que não
deixam de revelar vestígios de trajetórias de vida, de redes de
sociabilidades intelectual e política de importantes figuras ou de
anônimos (...)”.27
As cartas fortalecem laços de amizade e possibilitam a criação de
vínculos entre pessoas ligadas por interesses comuns e afinidades
eletivas, propiciando uma grande rede de sociabilidade, mesmo entre
pessoas que morem em locais distantes e ainda não se conheçam
pessoalmente.
A missiva, texto por definição destinado a outrem, dá também
lugar a uma espécie de exercício pessoal. Ela faz o escritor “presente”
àquele a quem se dirige. A carta enviada para auxiliar o destinatário –
aconselhá-lo, exortá-lo, admoestá-lo, consolá-lo – constitui, para o
escritor, uma maneira de se treinar, e ao mesmo tempo que esse auxílio
prestado a outrem pode ser restituído sob a forma de “conselho
equitativo”. Possibilita, desse modo, que ambos os interlocutores se
beneficiem mutuamente.28
Para Foucault, a carta propicia também que o remetente se
manifeste a si próprio e aos outros. A reciprocidade que a
correspondência estabelece não se restringe ao simples conselho; ela
possibilita um olhar e um exame, laborando no sentido da subjetivação
do discurso, da sua assimilação e da sua elaboração como “bem
próprio”, constituindo também e ao mesmo tempo uma objetivação da
alma.29
Segundo o filósofo, a correspondência é uma maneira de
revelarmos aquilo que devemos dizer a nós próprios, de modo tal que
penetra até ao fundo do nosso coração no momento em que pensamos.
Implica, portanto, uma “introspecção”, que deve ser entendida menos
como uma decifração de si por si mesmo do que como uma abertura de
si mesmo que se dá ao outro. Trata-se de fazer coincidir o olhar do outro
e daquele que se volta para si próprio quando se aferem as ações
cotidianas às regras de uma técnica de vida. Falar com o outro e sobre o
27
GOMES, Ângela de Castro. “Escrita de si, escrita da história: a título de
prólogo”. In: _____. (Org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2004. p.13-14.
28
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa:
Passagens, 1992, p. 129-160.
29
Ibidem, 1992. p. 129-160.
outro é, ao mesmo tempo, falar consigo e sobre si mesmo, um exercício
de reflexão. Desse modo, de acordo com Foucault, a escrita de si
exercitada nas cartas atenua os momentos de solidão, bem como
propicia um adestramento de si mesmo, a partir da meditação, da
reflexão, da elaboração dos discursos recebidos e conhecidos como
verdadeiros em princípios racionais de ação.30
Mário acreditava que o modernismo tenha inaugurado uma nova
fase na escrita das cartas no Brasil, menos formalista e mais
espontâneas, conferindo-lhe o mesmo tom coloquial que revolucionou a
literatura da época:
30
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa:
Passagens, 1992, p. 129-160.
31
ANDRADE, Mário de. “Do trágico”. In: O Empalhador de Passarinho. São
Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 153.
32
BUENO, Alexei. Cartas a Mário de Andrade. Org. Fábio Lucas. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: 1993, introdução.
modernistas renovadoras: “Foi através dela que a catequese modernista
se concretizou. Suas cartas, além de transmitirem situações afetivas,
concorreram para elucidar e converter os hesitantes, naquela hora de
mudança dos valores estéticos”33.
Para o escritor modernista, não bastava o cuidado e o cultivo de
si e a busca de sua própria identidade individual: ele sentia necessidade
de atuar como catalisador da transformação do grupo, para construir um
ambiente cultural fértil e contribuir para a formação de uma identidade
nacional. Ele se obstinava em cobrar de seus interlocutores uma
“responsabilidade humana coletiva”, de modo a formar uma
“consciência de grupo”, a partir do diálogo entre os diversos atores
culturais.
Mário procurava tratar os seus interlocutores de igual pra igual,
sem se colocar numa posição de superioridade, o que possibilitava um
intercâmbio enriquecedor, baseado em sua crença na solidariedade
humana. Ele valorizava o “falar simples”, como se estivesse na presença
do amigo, evitando assim incorrer no formalismo da linguagem erudita.
Em carta a Manuel Bandeira, datada de março de 1931, diante da
dificuldade para comentar a doença do amigo, que sofria de tuberculose,
ele expressa o seu anseio por encontrá-lo pessoalmente, para que
pudessem conversar de modo simples e informal: “Raciocinar as
bestices da morte em carta parece sempre literatura e é uma pena. Se eu
estivesse aí então falando a gente podia dizer tudo que não parece
literatura, falando simples.”34
Porém, podemos pensar que, para um escritor, pode ser mais
fácil alcançar a espontaneidade por meio da escrita que pelo contato
pessoal. Esse parecia ser o caso de Mário, que, segundo sugere
depoimento de Manuel Bandeira, era mais aberto e espontâneo
escrevendo cartas que pessoalmente, dada a sua personalidade
introvertida, de uma “frieza paulista”:
33
LUCAS, Fábio. Cartas a Mário de Andrade. Org. Fábio Lucas. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: 1993, p. 1.
34
Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, março de 1931. Apud
MORAES, Marcos Antonio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 72.
explicação, esculhamba, diz merda e vá se foder;
quando está com a gente é... paulista. Frieza
bruma latinidade em maior proporção pudores de
exceção.35
35
Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 16 dez. 1925. Apud
MORAES, Marcos Antonio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 72.
36
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 set. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 120.
37
CANDIDO, Antonio. “Mário de Andrade”. Revista do Arquivo Municipal, nº
106, Ed. Fac-similar nº 198, São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico,
1990, p. 69.
ou de fazer literatura ao escrever suas cartas, conforme confessa a
Carlos Drummond de Andrade:
38
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 215.
39
MORAES, Marcos Antonio de. “Mário de Andrade: Epistolografia e
processos de criação”. Revista Manuscrítica, nº 14. Vitória, ES – Dezembro de
2006.
quando estivermos, os que hoje contamos mais de
trinta anos, mergulhados no além. Meu
depoimento não é senão promessa, auspício. Mas
sinto-me na obrigação de prestá-lo, ainda que
apenas como auspício e promessa – para as
gerações mais novas, para o futuro.40
40
LISBOA, Henriqueta. “Lembrança de Mário”. SOUZA, Eneida Maria de.
(Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo:
Peirópolis / Edusp, 2010, p. 346.
41
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abri. 1940. Ibidem, 2010,
p. 91.
42
AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo.
Homo Sacer III. Valência: Pré-textos, 2002, p. 117.
43
Ibidem, 2002, p. 123.
rumos, usa a máscara de uma identidade atormentada; na fase de luta
política e de classes, a máscara do poeta político.44
Podemos identificar o uso de estratégias semelhantes na
correspondência do escritor modernista para a poeta mineira, em que se
fazem presentes máscaras como a do “poeta aplicado”, do “poeta
dilacerado”, do “crítico prestativo”, do “poeta político”. Tudo isso em
conjunto com a máscara da intimidade, sempre presente nas cartas, em
que a linguagem informal e descontraída é usada como estratégia de
aproximação.
Colocar a máscara parece significar, para o poeta, dar vazão ao
seu eu lírico e liberar as forças criativas do inconsciente, de modo a
assumir uma identidade distinta daquela imposta pela razão instrumental
e prosaica: “– Mário, põe a máscara!/ –Tens razão, minha Loucura, tens
razão.”, diz o poeta, em “Paisagem Nº 3, de Pauliceia Desvairada.45
Para Marilda Aparecida Ionta, a encenação e o uso de máscaras
na correspondência aparecem como “artimanhas de controle de si”:
44
LAFETÁ, João Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens na Poesia de Mário
de Andrade. São Paulo, Martins Fontes, 1986, p. 10-16.
45
ANDRADE, Mário. Poesias Completas – De Pauliceia Desvairada a Café.
In: Losango cáqui. Círculo do Livro, s/d, p. 59.
46
IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na escrita epistolar de
Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade.
Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de Campinas, 2003, p. 96.
esconder a alma para mim não significa insinceridade. Fiz o mesmo na
Pauliceia”.47
Na última carta que escreveu a Drummond, em fevereiro de
1945, Mário comenta que recorreu ao uso de máscaras para sobreviver
ao longo da carreira e conclui: “Aliás, se não fosse a máscara da minha
vida – as máscaras destinam tanto a gente...”48
Contraditoriamente, na correspondência com Henriqueta, Mário
encoraja a poeta mineira a buscar “a expressão real de si mesma”, que,
segundo ele, estaria por trás das máscaras: “Pode-se dizer até que você
foge, em poesia, você se recalca em poesia, quando justamente a poesia,
em vez de máscara, é a expansão sublimada de todos os recalques”49 Ele
queria então que a amiga encontrasse a sua própria originalidade e
personalidade poéticas, pois, a seu ver, ela estava se aproximando
demasiadamente de poetas como Jorge de Lima.
Não se deve, porém, confundir o uso de máscaras com o
estigma da falsidade. A máscara corresponde, antes, a um movimento de
interação e empatia com o outro, em que o processo de subjetivação se
realiza de acordo com a interação com o destinatário. Para Lafetá, o
conceito de máscara está ligado à concepção da pluralidade da pessoa,
que necessita se fixar numa persona para não se dissolver em caos.
Segundo o autor, é na luta corpo a corpo com as aparências que Mário
procura desvendar a verdade das máscaras; embora utilize
dissimulações, disfarces e despistes, o poeta estaria sempre no caminho
da sinceridade. Por trás do disfarce, estaria a imagem da intimidade, a
face íntima.50
As cartas têm essa característica de dissimular os disfarces,
sugerindo justamente o compartilhamento da intimidade. Mas, por trás
de cada máscara, haverá sempre outras, e não necessariamente uma
persona sem máscara, uma espécie de essência do ser que se realiza em
si mesma. Segundo Suely Rolnik, em Cartografia sentimental, na
relação com o outro, os corpos são tomados por uma mistura e uma
47
ANDRADE, Mário de. Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Editora do
Autor, 1968, p. 20. Apud KNOL, Vitor. Paciente arlequinada: uma leitura da
obra poética de Mário de Andrade. São Paulo: Hucitec, 1983, p. 20.
48
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 11 fev. 1945.
Apud LAFETÁ, João Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens na Poesia de
Mário de Andrade. São Paulo, Martins Fontes, 1986, p. 538.
49
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 93-94.
50
Ibidem, 1986, p. 35.
movimentação de afetos, de energias e intensidades, resultante do
movimento de simulação.51 Esse jogo de afetos pode proporcionar a
criação de máscaras, na medida em que ele é o artifício para as
realidades que vamos viver. As máscaras funcionam, assim, como
condutoras de afeto que simulam nossa exteriorização e tomam corpo
em matérias de expressão. Nessa perspectiva, a persona não existe como
algo natural, pré-estabelecido, mas se constrói a cada momento, em
conjunto com o interlocutor, a partir de afetos, desejos e fluxos
conscientes e inconscientes.
Essa construção se dá na relação com o outro – inclusive com a
participação do próprio pesquisador que se debruça sobre os textos. Em
“Autoetnografia: uma alternativa conceitual”, Daniela Beccaccia
Versiani destaca o processo intertextual e intersubjetivo das escritas de
construção de selves, como ocorre na correspondência, com o propósito
de evitar estratégias de leitura essencializadoras e cristalizadoras de
subjetividades e identidades.52 A autora recorre à mudança de paradigma
proposta por Julia Watson, sugerindo o abalo do sujeito metafísico e
unívoco, de identidade estável, e do propósito de se reproduzir a
“verdade dos fatos” e da “vida” de uma grande personalidade. Assim,
trabalha com uma noção de sujeito histórico construído de modo
dialógico, a partir das relações que estabelece com outras subjetividades
e enfatizando a presença do outro na escrita do eu. 53
Portanto, ao analisar as cartas, procuraremos aqui desvendar as
diversas personas assumidas pelos missivistas, buscando compreender
como dá a relação intersubjetiva entre as suas personalidades
heterogêneas, e também atentar para a interferência causada pelo próprio
olhar de pesquisador sobre o objeto pesquisado, nesse processo de
negociação construtiva dialógica e polifônica que a pesquisa envolve.
51
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas
do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, s/n.
52
VERSIANI, Daniela Beccaccia. Autoetnografias: Conceitos alternativos em
construção. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: PUC, 2002, s/n.
53
WATSON, Julia. Toward and anti-metaphysics of autobiography. In:
FOLKENFLIK, Robert (ed.). The culture of autobiography. Constructions of
self-representation. Stanford, California: Stanford University Press, 1993. Apud
Ibidem, 2002.
1.2 Amor de amigo
54
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 24 ago. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 215.
55
O termo “sequestro”, do francês “refoulement”, remete às teorias de Freud,
segundo esclarece Lopez: “Freud considera a sublimação uma das fontes da
criação artística e responsabiliza-a pela transferência de elementos do plano
material e sexual para o plano espiritual e ideal. Esse sentido de sublimação é
ligado ao de ‘Refoulement’ e o escritor explica em 1928, através do termo
‘Sequestro’, a sexualidade que nossos românticos deixaram expressa no plano
artístico erudito.
56
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. São Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 146.
Segundo esta teoria (...), os objetos sensíveis
imprimem nos sentidos a sua forma, e esta
impressão sensível, ou imagem, ou fantasma
(como preferem chamá-la os filósofos medievais,
seguindo os passos de Aristóteles), é
posteriormente recebida pela fantasia, ou virtude
imaginativa, que a conserva, mesmo na ausência
do objeto que a produziu. A imagem “pintada
como em parede” no coração, de que fala
Giacomo, talvez seja precisamente este
“fantasma”, que, conforme verificaremos, cumpre
uma função muito importante na psicologia
medieval (...).57
57
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias - a palavra e o fantasma na cultura
ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 130.
58
Ibidem, 2007, p. 182.
59
Ibidem, 2007, p. 136.
60
Ibidem, 2007, p. 187.
Mário considerava a amizade “uma gratuidade de eleição,
iluminada, sem sequer pedir correspondência”.61 O escritor tinha “o
culto da solidariedade humana”, como define Antonio Candido62. Mas,
embora destacasse a gratuidade e desinteresse de sua amizade, ele
reconhecia que esse tipo de relacionamento envolve também interesses:
“na amizade se juntam muitos interesses práticos e principalmente
muitas afinidades eletivas interessadas”63.
Podemos pensar que, assim como não existe poesia
desinteressada, mas sim poesia voltada às especificidades do próprio
poema, também não existe amizade desinteressada, e sim a amizade que
se coloca acima dos interesses e exercita a generosidade e a doação: “A
verdade é que em tudo que fazemos há interesse e arte ou qualquer outra
atividade desinteressada é coisa que não existe”.64
De acordo com Agamben, a amizade é tão estreitamente ligada à
própria definição da filosofia que se pode dizer que sem ela a filosofia
não seria propriamente possível. Podemos pensar que o mesmo poderia
ser dito sobre a literatura, pois ela pressupõe uma comunhão,
comunidade, com-vivência com o outro.65
Para o filósofo, a amizade é uma questão ontológica e política,
pois pressupõe a instância de um com-sentimento da existência do
amigo no sentimento da existência. Na amizade, a sensação do ser é
sempre dividida e com-dividida: “Não há aqui nenhuma
intersubjetividade – essa quimera dos modernos –, nenhuma relação
entre sujeitos: em vez disso o ser mesmo é dividido, é não-idêntico a si,
e o eu e o amigo são as duas faces – ou os dois polos – dessa com-
divisão”.66 Nesse sentido, o amigo não é um outro eu, mas uma
alteridade imanente na "mesmidade", um tornar-se outro do mesmo.
61
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 154.
62
CANDIDO, Antonio. “Mário de Andrade”, Revista do Arquivo Municipal, nº
106, Ed. Fac-similar nº 198, São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico,
1990.
63
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 183.
64
MORAES, Marcos Antonio de. (org.). Correspondência Mário de Andrade &
Manuel Bandeira. São Paulo, 2000, p. 668.
65
AGAMBEN, Giorgio. “O amigo”. In: O que é o contemporâneo? E outros
ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 79.
66
Ibidem, 2009, p. 89.
Para o filósofo, a amizade é uma des-subjetivação que ocorre no coração
mesmo da sensação mais íntima de si.67
Ao iniciar essa correspondência, Mário tinha 47 anos e já era um
escritor consagrado, que desempenhava o papel de protagonista e
difusor do projeto modernista, tornando-se uma referência para muitos
escritores mais jovens que buscavam atualizar a sua escrita. Henriqueta
tinha 29 anos, já havia lançado três livros de poesia – Fogo Fátuo
(1925), Enternecimento (1929) e Velário (1936) – e começava a ganhar
alguma projeção. Ela buscava, nessa época, encontrar um leitor atento e
capaz de auxiliá-la em sua escrita: “Sinto-me, às vezes, no meio de
intensa inspiração, indecisa quanto ao caminho melhor para a poesia.”68
O escritor modernista também encontrou em Henriqueta uma
confidente com quem podia compartilhar sua intimidade e as suas
inquietações artísticas e intelectuais. Henriqueta era vista por ele como
um “rincão de paz, ilha de sombra”69, uma “clareira”, diante da fase
pessoal e profissional difícil que vivia, após ter sido afastado da direção
do Departamento de Cultura de São Paulo e ter se mudado para o Rio de
Janeiro, bem como das divergências enfrentadas no meio artístico e do
momento histórico sombrio, marcado pela ditadura de Getúlio Vargas e
pela Segunda Guerra Mundial.
Henriqueta então passou a fazer parte do grupo numeroso de
escritores que tiveram Mário como amigo e conselheiro. O apoio de um
escritor consagrado era também um meio para que escritores mais
jovens conseguissem inserção, legitimação e reconhecimento no meio
literário. E, devido ao prestígio que Mário tinha na época, sua tutela
funcionava como uma espécie de salvo conduto.
Nota-se, porém, que havia certa disparidade nos papéis
desempenhados pelos dois nessa relação epistolar, em que Mário
assumiu a posição de protagonista e Henriqueta podia ser vista como
uma coadjuvante mais jovem e menos experiente, mas promissora o
suficiente para, gradualmente, se posicionar com mais firmeza sobre as
mais diversas questões.
67
AGAMBEN, Giorgio. “O amigo”. In: O que é o contemporâneo? E outros
ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 90.
68
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 dez. de 1939. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis/ Edusp, 2010, p. 78.
69
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 26 abr. 1941. Ibidem, 2010,
p. 206.
Embora Henriqueta trilhasse um caminho próprio, dialogando ao
mesmo tempo com o simbolismo e o modernismo, ela considerava
Mário uma espécie de mentor, capaz de ajudá-la a atualizar e lapidar a
sua poesia: “Em verdade, não distingo se é maior, no meu sentimento, a
veneração pelo Mestre ou o carinho pelo amigo”.70
Henriqueta não se limitava a receber passivamente os conselhos e
reflexões do amigo, demonstrando personalidade para sustentar as suas
próprias escolhas e opinar sobre os mais diversos assuntos. Mas, em
algumas ocasiões, ela adotava uma atitude de reverência e modéstia:
“Mas a quem digo essas cousas?! Mário releve as minhas expansões.”71
A escritora mineira vai, aos poucos, ganhando confiança e
passando a conviver com o amigo de modo mais igualitário e menos
idealizado. Até porque Mário não queria que os reparos feitos à escrita
da amiga fossem acolhidos passivamente: “Está claro: não tem nada
como um amigo certo, que vê as coisas da gente com carinho mas
severidade, pra abrir os olhos da gente e repor nossas coisas na mesa. Se
concordar, muito que bem: jogue fora, conserte. Mas se não concordar,
sustente.” 72
Nessa narrativa escrita a quatro mãos, em que se misturam vida e
literatura, biografia e ficção, os dois atuavam como autores de sua
própria história e procuravam corresponder aos papéis e personagens
que cada qual havia criado para si. E à medida que os dois se
compreendiam e se ajudavam mutuamente, a amizade se fortalecia.
Embora as cartas fossem destinadas inicialmente ao âmbito
privado, os dois escritores estavam conscientes de sua importância
social e de que havia a possibilidade de que um dia se tornassem
públicas. O cuidado de ambos com o seu arquivo pessoal e com o
conteúdo de suas cartas demonstra que eles também consideravam a
possibilidade de que um dia elas poderiam ser lidas por um público
amplo. A correspondência entre os dois aborda temas e assuntos de
interesse geral, como as reflexões sobre ética e estética, que foram
elaborados de modo tão cuidadoso que poderiam ser reproduzidos em
um livro de ensaios.
70
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 11 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis/ Edusp, 2010, p. 104.
71
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 100.
72
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 08 ago. 1942. Ibidem, 2010,
p. 220.
Mário e Henriqueta se encontraram pela primeira vez em Belo
Horizonte, em 1939, quando o escritor realizou a conferência “O
Sequestro da Dona Ausente”. O tema se referia às “amadas ausentes”,
impossíveis, uma temática originada no cancioneiro popular ibérico e
explorada pela cultura popular luso-brasileira da época. Em função de
um compromisso assumido previamente, Henriqueta não pôde ir ao
evento, mas tomou a iniciativa – ousada, para uma mulher da época – de
escrever a Mário um bilhete, valendo-se de uma referência ao título da
conferência para justificar a sua ausência e manifestar o desejo de
conhecê-lo pessoalmente:
73
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 26.
74
Carta de Mário de Andrade a José Carlos Lisboa, 19 nov. 1939. Ibidem, 2010,
p. 336.
dizer uma cousa a você: um dos principais acontecimentos deste ano,
para mim, foi conhecê-lo pessoalmente”.75
Mário e Henriqueta se viram pessoalmente apenas umas poucas
vezes ao longo dos anos em que se corresponderam. Residente em Belo
Horizonte, Henriqueta esteve no Rio de Janeiro, onde Mário morava ao
se conhecerem, em 1940, e também uma vez em São Paulo, em 1945;
Mário, por sua vez, esteve em Belo Horizonte duas vezes no período da
correspondência com a amiga: em 1939, para a conferência que os
aproximou, e em 1944, durante uma estada de 13 dias.
A distância, porém, não afastou os dois, pelo contrário: parece
mesmo ter contribuído para que a amizade se fortalecesse. A mediação
das cartas possibilitava que eles pudessem mostrar a melhor imagem de
si mesmos. Mesmo não havendo uma proximidade física, os dois sabiam
que poderiam recorrer um ao outro nos momentos de solidão e de
precisão de uma palavra amiga.
Mário demonstrava encontrar em Henriqueta uma interlocutora
atenciosa e capaz de possibilitar-lhe uma compreensão mais exata de si
mesmo: “Que carta grande, Henriqueta! Vamos ficar bem quentinhos
em nós mesmos, sem dizer nada a ninguém – ‘o encanto que nasce das
compreensões perfeitas’. Meu Deus! Como eu me sinto em sua carta!”76
E Henriqueta lhe devolvia na mesma moeda: “Nunca outra carta foi tão
minha, nunca outra carta me fez tão feliz.”77
Henriqueta, mais discreta, sempre iniciava a carta tratando o
amigo apenas por “Mário”; ele, menos contido, às vezes se permitia usar
expressões como “minha querida amiga”; outras vezes, lhe chamava de
“minha irmãzinha de caridade”. Mas a escritora mineira também sabia
manifestar o seu apreço pelo amigo: “Mário, mas há coincidências
adoráveis! Ninguém, ninguém saberia dizer-me tão lindas palavras
como as de sua última carta! Sim, sou feliz, no momento em que as
leio.”
Verifica-se que algumas passagens das cartas repercute na poesia
dos dois escritores, servindo de inspiração e fonte de ideias para a
criação artística. Por exemplo, a expressão de Mário “Rincão de paz,
75
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 dez. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 77.
76
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. Ibidem, 2010,
p. 183.
77
Bilhete de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 11. fev. 1942. Ibidem,
2010, p. 192.
ilha de sombra”78, usada para se referir a Henriqueta, é usada como o
título de um poema da escritora mineira incluído no livro A Face Lívida
(escrito entre 1941 e 1945): “Rincão de paz antes inóspito,/ Ilha de
sombra depois da morte!”79
Além disso, uma carta de Mário, escrita no Dia de Reis, começa
com a saudação: “Ouro, incenso e mirra para você!80” Henriqueta se
inspirou na frase para criar um poema homônimo, também de A Face
Lívida.81
Para expressar a sua amizade por Henriqueta, Mário afirma que
os seus “Poemas da Amiga”, escritos antes de ele conhecer Henriqueta e
“para amizades de menor consistência”, tinham se tornado
exclusivamente de Henriqueta: “Nós íamos calados pela rua/ E o calor
dos rosais nos salientava tanto/ Que um desejo de exemplo me
inspirava,/ E você me aceitou por entre os santos.”82
A correspondência de Mário envolve interlocutores como Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda,
Murilo Rubião, Sergio Milliet, entre muitos outros. Como já
mencionado, além de Henriqueta, Mário teve poucas interlocutoras
femininas mais constantes, como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e
Oneyda Alvarenga. O escritor se orgulhava de jamais deixar uma carta
sem resposta:
78
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 26 abr. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 206.
79
LISBOA, Henriqueta. “Rincão de paz, ilha de sombra”. In: A Face Lívida.
Obras Completas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 138.
80
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, s/d, 1942. Ibidem, 2010, p.
179.
81
LISBOA, Henriqueta. “Ouro, incenso e mirra”. In: A Face Lívida. Obras
Completas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 114.
82
Ibidem, 2010, p. 248.
constante de superação, de aperfeiçoamento
pessoal e de desimpedida fraternidade humana.83
83
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 out. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 305.
84
Irmão de Henriqueta Lisboa, também escritor e professor de Literatura.
Mário de Andrade foi um amigo da terra e da
gente de Minas.85
85
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Mário de Andrade, Minas e os
mineiros”. In: Suplemento Literário de Minas Gerais. Belo Horizonte, 8 de
junho de 1968, n. 53.
86
Carta de Gabriela Mistral a Henriqueta Lisboa, 22/09/1940. Série
Correspondência Pessoal. Apud PAIVA, Kelen Benfenatti. Nos bastidores do
arquivo literário: Henriqueta Lisboa entre versos e cartas. Tese (doutorado).
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, p. 140.
87
MARQUES, Reinaldo. Henriqueta Lisboa: tradução e mediação cultural.
Revista Scripta. Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 205-212, 2o sem. 2014.
certo outras afinidades entre os seres. Mas creio que estas são as mais
puras.”88
Segundo observa Marcos Antonio de Moraes, Mário interpretava
a amizade sob o ponto de vista estético, uma doação sem nenhuma
espécie de interesse imediato, diferenciando assim “amor de amigo” e
“amor sexual”:
88
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 06 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 111.
89
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 183.
outra série de poemas. Dona Carolina, filha de
dona Olívia Penteado, inspirou-lhe outra série de
poemas. Quase todos versos publicados com o
título "Tempo de Maria", no volume Poesias,
provêm desse amor platônico. Uma noite em casa
de Tarsila, dona Olívia pediu-lhe que dissesse um
de seus últimos poemas. Mário recitou:
90
MORAES, Rubens Borba, RB/LE, p. 22. Apud ANDRADE, Carlos
Drummond de., p. 68.
91
CANDIDO, Antonio. “O Mário que eu conheci”. In: Eu sou trezentos, eu sou
trezentos e cincoenta. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008.
Fundação Casa de Rui Barbosa disponibilizou para a imprensa um
trecho inédito de uma carta escrita por Mário a Manuel Bandeira, em 7
de abril de 1928, onde ele fala a respeito de sua fama de homossexual:
“(...) si agora toca nesse assunto em que me porto com absoluta e
elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um
companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua”.92
De acordo com Sérgio Miceli, Mário evitava tocar no assunto em
busca de preservar a sua imagem pessoal e profissional:
92
BORTOLOTI, Marcelo. A carta em que Mário de Andrade fala de sua
homossexualidade. Rio de Janeiro: Revista Época, 18 jun. 2015.
93
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: Retratos da elite brasileira (1920-40).
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 87.
que.... desilusão do sexo. Pra salvarmos a
amizade, nos afastamos cautelosamente mais, um
do outro.94
94
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 145.
95
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 jul. 1941. Ibidem, 2010,
p. 161.
96
Entrevista concedida a Walter Álavares, publicada na Folha de Minas, em
Belo Horizonte, em 09 de
outubro de 1949. Apud PAIVA, Kellen Benfenatti. Nos bastidores do arquivo
literário: Henriqueta Lisboa entre versos e cartas. Tese de doutorado –
Universidade Federal de Minas Gerais / Programa de Pós-Graduação em Letras,
Belo Horizonte, 2012, p. 64.
de ter que morar lá! E depois a morte de minha
irmã....97
97
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 249.
98
DUARTE, José Afrânio Moreira. Henriqueta Lisboa: poesia plena. Ensaio.
São Paulo: Editora do Escritor, 1996, p. 58. Apud MACHADO, Adriana
Rodrigues. Rosa plena: a sagração da poesia em Henriqueta Lisboa. Tese
(doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2013, p. 61.
99
Ibidem, 2013, p. 61.
100
Ibidem, 2013, p. 61.
101
LISBOA, Henriqueta. “À tua espera”. In: Enternecimento. Obras Completas.
São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 21.
carta porque a outra ficara sem resposta. Então, as notícias vindas do
Paraíso foram celestiais, por afinidade. Não foram?102
Lomanto escrevia a Henriqueta cartas expressando o seu desejo
de se mudar para o Brasil e de iniciar uma vida junto com ela:
102
Carta de Henriqueta Lisboa a Alaíde Lisboa, 10 abr. 1933. Acervo de
Escritores Mineiros, Pasta Correspondência Pessoal, AEM/UFMG. Apud
MACHADO, Adriana Rodrigues. Rosa plena: a sagração da poesia em
Henriqueta Lisboa. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2013, p. 62.
103
Carta de Tripudio Lomanto a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1929. Acervo de
Escritores Mineiros, Pasta Correspondência Pessoal do Titular (LOMANTO,
Tripudio). Apud Ibidem, 2013, p. 62.
104
Carta de Henriqueta Lisboa a Marie Wallis, de 19 de fevereiro de 1942.
Acervo de Escritores Mineiros. Apud Ibidem, 2013, p. 62.
sentidos, e Corydon, que falava abertamente em favor dos direitos dos
homossexuais.
As cartas entre Mário e Henriqueta quase não abordam – ao
menos diretamente – a questão da sexualidade, talvez porque tivessem
consciência de que essas cartas um dia se tornariam públicas. Além
disso, a postura casta e puritana de Henriqueta não devia estimular
muito o assunto. Embora a poeta mineira se mostre sempre discreta e
cordial, em alguns trechos da correspondência podemos notar esse
aspecto de sua personalidade. Em outubro de 1944, após Mário pedir
que um rapaz amigo seu entregasse um exemplar de Lira Paulistana na
casa de Henriqueta, ela parece reagir a essa amizade com certo ar de
desaprovação. A censura que faz ao “excesso” e “desordenado” das
leituras do rapaz, o espanto ao fato de ele já ter devorado “todo ou quase
todo o Gide!”, sugerem certo julgamento moral, talvez em função da
sensualidade associada ao escritor francês:
105
Embora não fique claro sobre qual Faculdade Henriqueta se referia, talvez
fosse a Faculdade Católica de Filosofia, para a qual ela havia sido convidada a
lecionar, segundo conta a Mário, em carta de 1º de novembro de 1942 (p. 231).
106
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, Belo Horizonte, 22 de
outubro de 1944. SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de
Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 301.
muita cousa, sacrificar muita cousa). Nem sou
bastante simples para viver a vida burguesamente
como as outras mulheres. Não sou bastante
generosa para renunciar à minha própria
personalidade. Nem egoísta bastante para pensar
unicamente em mim. Poderei ser feliz.107
107
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 6 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 111.
108
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 39.
desfalecimentos nem seus entusiasmos nem nada consegue trazer a
noção desgraciosa de um desequilíbrio”.109 Ele, porém, evitava
estigmatizar a amiga em função de seu comportamento recatado e
buscava reconhecer nela a intensidade da vida anterior:
109
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 27 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 116.
110
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1940. Ibidem, 2010,
p. 79.
111
ANDRADE, Mário de. Apud SOUZA, Eneida Maria de. “A dona ausente”.
Ibidem, 2010, p. 27-28.
112
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 03 ago. 1941. Ibidem,
2010, p. 291.
se assustar, mas depois procurava superar a impressão inicial lembrando
o lado bom do amigo: “Você começa escandalizando a gente, tranquiliza
a gente logo depois, ri, fala sério, lembra terríveis realidades, divaga...
E, através de tudo, percebo o sonhador que existe em você.”113
Para evitar ofender a amiga, o escritor modernista evitava usar
palavrões. Ele se mostra meticuloso em seus cuidados para omitir, por
exemplo, o uso da palavra orgasmo, quando compara o momento da
criação com o orgasmo:114
113
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 04 jun. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 96.
114
Na verdade, considerando que Mário divide o momento da criação em
“possessão voluntária” e “superposição intelectual”, podemos pensar que a
criação envolve primeiro um orgasmo e depois um parto.
115
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 211.
116
LISBOA, Henriqueta. “Lembrança de Mário”. In: SOUZA, Eneida Maria de.
(Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo:
Peirópolis / Edusp, 2010, p. 345.
Enquanto Henriqueta buscava encontrar o equilíbrio a partir da
virtude e contenção, Mário o procurava nos excessos de sua vida pessoal
e na dramaticidade da poesia. Ele, ousadamente, incorporou o
repugnante Caliban – e não o louvável e prestigiado Ariel – para
escrever o livro “O Carro da Miséria”, entre 1930 e 1943, período
marcado pela desilusão com os fatos históricos, problemas pessoais e
bebedeiras. Em carta para Henriqueta, o escritor modernista assim
descreve o processo de criação do poema:
117
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. Ibidem, 2010,
p. 321.
118
A Semana de Arte Moderna teve repercussão também no âmbito político,
com a Revolução de 1930. Em 1929, lideranças da oligarquia paulista
romperam a aliança com os mineiros na política do café com leite e indicaram o
paulista Júlio Prestes como candidato à presidência da República. A República
Velha (1889-1930) era então controlada pelas oligarquias cafeeiras e pela
política do café com leite (1898-1930). O capitalismo crescia no Brasil,
consolidando a república e o poder da elite paulista, ao qual o Movimento
Modernista estava intimamente ligado. Em reação, Antônio Carlos Ribeiro de
Andrada, presidente de Minas Gerais, apoiou a candidatura oposicionista do
gaúcho Getúlio Vargas. Além disso, o movimento tenentista iniciado com o
levante do Forte de Copacabana, em 1922, teve como desdobramento a Coluna
Getúlio Vargas ao poder, e também à falha da Revolução de 1932, que
pretendia derrubar o governo provisório: “Da rabolução de julho/ Tava
danado/ Com a sonhança desses pestes/ Que juguei no Júlio Prestes/
Mas quem deu foi o Getúlio”.119
A personalidade de Mário parece se debater entre Caliban e Ariel,
personagens da peça A Tempestade, de William Shakespeare (1564-
1616). Em uma interpretação mais literal, Ariel é visto como um espírito
do ar, alegre e vago, que gosta de se apresentar sob a aparência feminina
e de entoar canções suaves; enquanto Caliban é uma antítese de Ariel,
monstro deformado e cruel, metade demônio, metade besta e cheio de
baixos instintos.
Esses personagens, porém, tiveram interpretações contraditórias
na América Latina, assumindo feições diferentes em cada contexto. No
final do século XVIII, com a emergência das teorias raciais, a peça de
Shakespeare foi relacionada com a colonização da América, concepção
presente na literatura inglesa e americana no século XIX. Caliban era
então visto como anagrama para canibal e associado aos povos
colonizados.120
No início do século 20, o personagem Ariel inspirou um livro
homônimo do escritor uruguaio José Henrique Rodó e se tornou uma
das principais metáforas políticas e culturais da América Latina, sendo
associado aos valores nobres e elevados e à resistência à colonização
norte-americana, com seus valores materialistas e utilitaristas. Nas
palavras de Rodó:
121
RODÓ, José Enrique. Ariel. Campinas: Editora da Unicamp, 1991, p. 14.
122
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 160.
123
LISBOA, Henriqueta. “Ariel”. In: Azul Profundo. Obras Completas. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 247.
aprendido com Rodó a amar a tolerância e cita um trecho do autor:
“término y coronamiento te toda honda labor de reflexión; cumbre
donde se aclara y se engrandece el sentido de la vida.”124
Ariel era também o nome de uma revista de cultura musical
publicada em São Paulo, lançada alguns meses depois do último número
de Klaxon, entre 1923 e 1924, sob a direção de Antonio de Sá Pereira. A
publicação contou com a participação de Mário.
Havia ainda o Boletim de Ariel, publicação de letras, artes e
ciências que circulou a partir de 1932, foi suspensa em 1942, reiniciada
em 1973 e parou de circular em 1976. O boletim da Editora Ariel tinha
como diretor Agrippino Grieco e como redator-chefe Afrânio Coutinho
e teve como colaboradores nomes como Jorge Amado, Raul Bopp,
Otávio de Faria, Murilo Mendes, Lúcia Miguel Pereira, Cornélio Pena,
Graciliano Ramos, Marques Rebelo e José Lins do Rego.
Mário se mostrava dividido entre os dois personagens, atestando
que eles podem estar presentes numa mesma persona. Em Lira dos vinte
anos, Álvares de Azevedo também já havia assumido a face de Caliban
para escrever a segunda parte do poema, chamada “Face de Caliban”, e
a de Ariel para escrever a primeira e a terceira. Mário assume o Caliban
burguês e grotesco para escrever “O Carro da Miséria”, mas incorpora
Ariel para criar “A Meditação sobre o Tietê“, poema que, segundo ele,
“se esforça pra ser belo”.125
A atitude corajosa do escritor modernista de incorporar Caliban
se mostra precursora da interpretação feita depois pelos estudos pós-
colonialistas. Durante os anos 1960, o poeta e dramaturgo Aimé Cesaire
reescreveu a peça de Shakespeare em uma adaptação para o teatro
negro, na qual discute as discriminações de raça, e Caliban figura como
um protagonista que não se conforma com a dominação imposta pelo
colonizador Próspero. Em 1971, o poeta e filósofo cubano Roberto
Fernández Retamar lançou um ensaio sobre Caliban, definindo o
personagem como um “poderoso conceito-metáfora que alude não só à
América Latina, mas a todos os condenados da Terra”.126
124
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 set. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 119.
125
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. Ibidem, 2010,
p. 322.
126
RAMOS FLORES, Maria Bernardete. Caliban na interpretação do Brasil
acerca do americanismo na República Velha Brasileira. Diálogos
Latinoamericanos, núm. 11, 2006, p. 50- 71.
Na correspondência com Henriqueta, Mário demonstra que tinha
uma preocupação com a repercussão pública de determinadas obras suas
acusadas de imoralidade, como o próprio Macunaíma ou os versos do
“Grã Cão de Outubro”, mas se recusava a aceitar passivamente as
convenções e imposições morais burguesas: “Mas não é possível ao
artista verdadeiro se preocupar com problemas pedagógicos de ‘boa
formação’ (Burguesa?).”
Henriqueta se mostra compreensiva com relação às posições
assumidas pelo amigo e afirma que sempre lhe pareceu existir, no fundo
da vocação do artista, uma tendência à santidade. Ela pondera que
mesmo no fundo da vocação do santo é provável que exista uma
qualquer fascinação demoníaca: “Não será feita a natureza humana de
camadas sobrepostas: forças do bem, forças do mal?”127
Ao longo da correspondência com Mário, Henriqueta procurava
manter uma postura de equilíbrio, imagem que ela consegue quase
sempre preservar. Mário, por sua vez, traz para as suas cartas toda a
dramaticidade que confere à sua poesia – nada que é humano lhe parecia
estranho. No período em que viveu no Rio de Janeiro, onde se sentia
numa espécie de exílio, longe de sua família e da sua casa em São Paulo,
onde encontrava apoio e tranquilidade para escrever, ele busca fuga nos
prazeres mundanos, mas sem conseguir escapar do desespero:
127
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 dez. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 237.
128
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, p.
282.
128
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 abr. de 1940. Ibidem,
2010, p. 96.
A presença sombria da guerra parece aumentar o seu amargor e a
sua necessidade de buscar uma compensação nos prazeres mundanos,
nem sempre com os resultados desejados:
129
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 abr. de 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 206.
130
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, out. 1943. Ibidem, 2010, p.
268.
131
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 abr. de 1940. Ibidem,
2010, p. 96.
nem pegar frango.)”132 E mesmo quando resolvia ocultar alguma
passagem que lhe parecia mais escabrosa, ele parecia não conseguir
deixar de mencioná-la, como se houvesse a necessidade do desabafo:
“Aliás tive um vasto abalo moral ultimamente, que não lhe conto apenas
pra não magoar demais seu coração amigo.”133
Em determinado momento, ele se antecipa aos conselhos de
Henriqueta e pede que ela os evite, demonstrando sentir certo
desconforto com os cuidados bem intencionados, mas talvez um pouco
incômodos, com que vinha sendo tratado pela poeta mineira e outros
amigos: “Eu não sei ficar doente destas doenças longas requerendo
paciência e dietas. Não sei como vai ser e pelo amor de Deus,
Henriqueta, não venha argumentando contra mim, me aconselhando,
fico desesperado. Basta dizer que ando até com ódio de vários amigos,
não saio, não vejo ninguém. É inútil argumentar.”134
A relação de amizade entre Mário e Henriqueta, cuidadosamente
zelada por eles, revela portanto uma tensão / oposição entre dois modos
diferentes de ser e estar no mundo: o caminho do excesso adotado pelo
poeta modernista em contraste com a atitude virtuosa, contida e em
busca de equilíbrio da poeta mineira.
Talvez por sua espontaneidade, Mário se sentia inclinado a contar
os seus excessos a Henriqueta e depois pedia que ela lhe perdoasse,
como se estivesse diante de um confessionário. Mesmo mostrando-se
compreensiva e sempre “perdoando” o amigo, a postura moral de
Henriqueta denota um caráter de adequação às normas sociais vigentes e
aos valores religiosos e familiares.
Tanto Mário quanto Henriqueta, em grau maior ou menor,
procuravam preservar a sua imagem social, evitando se colocar em
situações que pudessem prejudicar a sua relação familiar ou
comprometer a sua vida pessoal ou profissional. Ainda assim, eles
assumiram a identidade de artistas e não se conformaram em viver
dentro de padrões convencionais de comportamento social – não se
casaram, não tiveram filhos, não adotaram uma vida burguesa
acomodada. O próprio escritor reconhecia que tinha “otimíssima,
132
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 de outubro de 1942.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 227.
133
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 nov. 1941. Ibidem,
2010, p. 176.
134
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 19 de maio de 1943.
Ibidem, 2010, p. 252.
respeitabilíssima e etc. formação burguesa”.135 Ele procurava se vestir
bem e manter certo status social. Mas, ao mesmo tempo, demonstrava
uma postura crítica em relação à sua própria classe social: “(...) essa
burguesia nojenta do espírito, pior aspecto da burguesia, o
prudencial”.136
Em uma sociedade patriarcal e conservadora, Mário teve mais
facilidade que Henriqueta para romper com determinados padrões
sociais e exercer a sua liberdade – ele frequentava a vida boêmia e vivia
a sua “pansexualidade”, ainda que com discrição. Ambos, porém, se
mantiveram inseridos dentro das normas de respeitabilidade da
sociedade da época e evitaram romper com o “establishment”.
Numa época em que as mulheres começavam a lutar pelos seus
direitos, Henriqueta conquistava espaço na área literária de modo
pioneiro; porém, demonstrava comodismo no que se refere à vida social
da mulher:
135
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 213.
136
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 1942. Ibidem, 2010, p. 180.
137
LISBOA, Henriqueta; WALLIS, Marie. Acervo de Escritores Mineiros, carta
de 19 fev. 1942.
O que interessa é que Cecília, e Henriqueta atrás,
acabaram definindo a “poesia de mulher no
Brasil”. As duas são figuras consagradas e que
nunca inquietaram ninguém. Mas não é a
consagração que critico, nem a marca nobre.
Apenas acho importante pensar a marca feminina
que elas deixaram, sem, no entanto jamais se
colocarem como mulheres. Marcaram não a
presença de mulher, mas a dicção que se deve ter,
a nobreza e o lirismo e o pudor que devem
caracterizar a escrita de mulher. 138
138
CÉSAR, Ana Cristina. Literatura e mulher: essa palavra de luxo. In: Escritos
no Rio. São Paulo: Brasiliense; Rio de Janeiro: UFRJ, 1993, s/p.
139
CAMARGO, Maria Lucia de Barros. “Caminhos e des-caminhos da
subjetividade: a poesia contemporânea escrita por mulheres”. Revista Travessia,
1.5 Religião e emancipação
143
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 69-70.
144
Ibidem, 1972, p. 45.
sentidos pus nessa palavra. Sei que a escrevi com
angústia, com desespero, ansiando pelo que virá,
com todas as minhas forças de amor.145
145
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 set. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 124.
seus paradoxos pela verdade, eu no sonho de
harmonizá-los...146
146
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 out. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 126.
147
PAIVA, Kellen Benfenatti. Nos bastidores do arquivo literário: Henriqueta
Lisboa entre versos e cartas. Tese de doutorado – Universidade Federal de
Minas Gerais / Programa de Pós-Graduação em Letras, Belo Horizonte, 2012, p.
86.
148
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 11 de jul. 1940. Ibidem,
2010, p. 111.
149
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 ago. 1944. Ibidem,
2010, p. 293.
Madalena Tagliaferro me levam não só a esquecer
a imitação, os defeitos de métrica, as poucas notas
erradas e o Chopin que não será exatamente o
meu, não só me leva a esquecer tudo isso, mas a
viver tudo isso, numa integração, numa empatia
em que eu sou Camões ou Madalena Tagliaferro,
sem ao menos perder todos os meus atributos
pessoais de ser histórico e do meu tempo, e de ser
indivíduo inconvertível. É, Oneida, um verdadeiro
ato de amor, de Charitas, da elevação mais
sublime. Falam do amor “clarividente”, em que o
amante vê, percebe, reconhece todos os defeitos e
erros do objeto amado, e o ama assim mesmo, e o
aceita e o procura corrigir.
Ou falam na paixão que enceguece e então o
amante não vê nada, não reconhece nada. É
possível que na vida prática, esta paixão seja
prejudicial e aquela clarividência muito útil. Mas
não se trata da vida prática em primeiro lugar, e
nem muito menos a compreensão estética é um
ato de inteligência, exclusivo de inteligência. Sem
nenhuma espécie de mística ou de superstição, é
verdadeiramente um ato de amor, um ato de
Charitas no sentido católico da palavra, uma
efusão do ser todo. De forma que este verso
frouxo de Camões ou aquelas cinco notas erradas
de Madalena Tagliaferro, eu vejo e não vejo. Não
me são indiferentes, eu não os preciso perdoar
nem penso muito menos em os corrigir, eu posso
saber deles (em verdade é preferível não saber)
mas embora sabendo deles, o ato, a efusão
transcende a eles. Todo conhecimento, toda
explicação, todo perdão ou correção não adianta
nada para o estado de compreensão efusiva em
que estou.150
150
Carta de Mário de Andrade a Oneyda Alvarenga, 14 de set. 1940.
ALVARENGA, Oneyda; ANDRADE, Märio de;: Cartas. São Paulo, Duas
Cidades, 1983, p. 285.
Na análise de Joan Dassin, a concepção de Charitas não possuiria,
nessa passagem, uma dimensão mística ou espiritual, mostrando-se,
antes, “sensualíssima” e “próxima da vida amorosa”:
151
DASSIN, Joan. Política e Poesia em Mário de Andrade. São Paulo: Duas
Cidades, 1978, p. 131.
do “Céu”, da comunhão das almas, e da “Poesia”,
comunicação dos espíritos.152
152
IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na escrita epistolar de
Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade.
Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de Campinas, 2003, p. 147.
153
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 abr. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 284.
154
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 de julho de 1942.
Ibidem, 2010, p. 216.
155
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 238.
harmonia que teima dentro de mim e com o qual me desforro das
contingências como se estas não me atingissem.”156
A religiosidade transparece em toda a sua escrita, seja na
abordagem de temas ligados à espiritualidade e conduta moral, seja
como resultado de um trabalho ascético de lapidação do verso. “O
aspecto religioso perpassa toda a poesia da autora”, comenta Fábio
Lucas.157 Um tom de austeridade e sobriedade permeia quase toda a sua
obra, mais propensa à contenção e às sutilezas que aos excessos e
arroubos dramáticos, preferindo, antes, o tom velado, a cor esbatida, a
discrição.
A poesia se mostra para ela um meio de expressão do espírito,
capaz de libertar o homem das contingências materiais: “Duros tempos
os nossos. Mas enquanto houver homens capazes de encolerizar-se e de
acreditar no predomínio do espírito sobre a matéria, haverá
esperança”.158
Embora Mário implicasse com o modo como Henriqueta às vezes
abordava os valores eternos em seus poemas, ele jamais questionou a
opção religiosa da amiga: “Se conserve pura, generosa, confiante como
você está, Henriqueta. Aceite a verdade da vida apaixonadamente. Com
todo o meu aparente cinismo, é o que eu faço também, este sofrido
desencontrado que é este seu amigo”.159
Mário, porém, demonstrava uma atitude crítica em relação aos
dogmas religiosos – por exemplo, quando ele procura esclarecer à amiga
que buscar o consolo em Cristo e num futuro celestial é, na verdade,
pouco cristão: “Se você observar melhor a lição de Cristo, eu creio que
você vai perceber que esse processo de consolo é muito mais político, é
muito mais “classe dominante” que exatamente bíblico e especialmente
cristão”.160
156
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 de abril de 1944.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 283.
157
LUCAS, Fábio. Crítica sem dogma. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do
Estado de Minas Gerais, 1983, p. 60.
158
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 abr. 1942. Ibidem, 2010,
p. 96
159
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 111.
160
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 05 mar. 1944. Ibidem,
2010, p. 281.
Ao fazer uma poesia voltada à espiritualidade, Henriqueta corria
o risco de incorrer no hermetismo e na consequente perda de densidade
poética, como, a seu ver, acontecia com os poetas de temática filosófica:
161
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 de fev. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, 242.
162
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 jan. 1944. Ibidem, 2010,
p. 276-277.
163
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 jul. 1942. Ibidem, 2010,
p. 216.
164
Bilhete de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 18 jul. 1942. Ibidem,
2010, p. 218.
um sentido de perpetuidade’ parece que você quer dizer com isso buscar
livrá-la de toda a contingência, dos elementos transitórios, tudo
transferindo para os ‘valores eternos’”.165
Podemos pensar que o intuito de Henriqueta de fazer uma arte
que estivesse em consonância com o seu tempo e com os preceitos
modernistas implicava numa tensão constante entre os seus princípios
religiosos e a criação artística, que possui as suas exigências e regras
próprias. Ela queria atualizar a sua arte, porém se voltava mais para o
eterno que o contingente, enquanto os modernistas defendiam que a arte
deveria se voltar para o cotidiano e circunstancial, e demonstravam
desconfiança com relação aos grandes temas humanos e às questões
espirituais.
Na tentativa de explicar o seu posicionamento, Henriqueta afirma
pertencer antes à categoria dos anacoretas (monge cristão que vive em
retiro, eremita) que à dos apóstolos (discípulos de Cristo encarregados
de difundir a palavra de Deus). Ela queria, aparentemente, se referir à
natureza solitária de uma escritora que não transitava pelos círculos
literários e ao fato de não pertencer a grupos ou escolas.
Além disso, segundo Marilda Aparecida Ionta, o anacoreta é
aquele que se retira para o deserto, onde consegue enfrentar as tentações
da carne, seguindo o caminho do celibato e da renúncia como meio de
acesso à divindade:
165
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 221.
e das virgens, os anacoretas ocupavam também
um lugar de poder na sociedade, pois eram
considerados intercessores entre os homens e
Deus.166
166
IONTA, Marilda Aparecida. 2003. As cores da amizade na escrita epistolar
de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade.
Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de Campinas, p. 241.
167
LOBO FILHO, Blanca. Interpretação da lírica de Henriqueta Lisboa. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial,
1965, p. 31-32. Apud MACHADO, Adriana Rodrigues. Rosa Plena: A Sagração
da Poesia em Henriqueta Lisboa. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul / Programa de Pós-Graduação em Letras, Porto
Alegre, 2013, p. 37.
descanse. Seria desvirtuar a minha razão de ser.
Mas as suas palavras são preciosas.168
168
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. 09 dez. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 177.
169
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. Ibidem,
2010, p. 250-251.
170
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. Ibidem,
2010, p. 251.
amamos com a maior densidade e a maior
gratuidade do favor de amigos.171
171
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 248.
172
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 11.
173
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. Ibidem,
2010, p. 250-251.
mistério, mas tem a pretensão de buscar desvelar o eterno e essencial
por trás do mundo material e contingente.
Mas o que a Adivinha significa para eles nesse contexto? Gênero
textual? Charada dos valores eternos? Jogo de origem popular e
folclórica? Segundo o poema “A Adivinha”, de Mário, incluído em
Remate de Males, a resposta está no “bojo do violão”, “bem no bordão”,
“mas ninguém sabe!”:
Que é que é?
Ele possui uma alma e um corpo feito o nosso
E vai percorrendo o caminho de todos.
Foi piá, quis bem a mãi, quis bem a casa dele,
E afinal uma feita quis bem a cidade e foi homem.
Então gostou da intrepidez das ruas normativas
E cantou o orgulho do homem no indivíduo.
Pôs a boca no mundo, imaginou que era um,
E era apenas mais um o cantor gastador.
Pôs a boca no mundo e cantou todo o dia,
Porém a voz se fatigou talqualmente os vulcões
E não ficou mais que o instrumento.
174
ANDRADE, Mário. “A Adivinha”. In: Remate de Males. Poesias completas
– De Pauliceia Desvairada a Café. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 206.
mensagem. Arte, amor: segredo de esquecer,
segredo de lembrar.175
175
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 fev. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 244.
176
JOLLES, André. Forma Simples. Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado,
Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Editora Cultrix, 1976, p. 111.
177
Ibidem, 1976, p. 112.
o diálogo platônico, que envolviam perguntas capazes de conduzir à
sabedoria – o que não ocorre na Adivinha.
A adivinha seria, segundo o autor, mais semelhante ao catecismo,
em que o interrogado responde a um interrogador; porém, não é a
própria sabedoria que lhe resulta das respostas, mas o saber da pessoa
interrogada. Para Jolles, “a verdadeira finalidade da adivinha não é a
solução, mas a resolução”.178 A pergunta é feita para apurar se o
interrogado possui certa dignidade e merece ser iniciado e ter acesso a
um domínio fechado. Para ele, a Adivinha é uma pergunta cifrada
justamente porque encerra o segredo de uma sociedade clandestina, que
o segredo protege e dissimula. A cifra encontrada na Adivinha
pressupõe, portanto, um sentido fechado, redigido na linguagem de um
grupo de iniciados. Essa significação cifrada conduz à criação de uma
língua especial, que indica filiação a um círculo fechado e significa, na
clandestinidade desse círculo, o sentido do universo. A língua especial
faz parte da língua comum, porém a sua ambiguidade torna a língua
especial incompreensível a partir da língua comum. Isso porque,
enquanto a língua comum apresenta as coisas imediatamente, tal e qual
elas são e em termos absolutos, sendo portanto estritamente unívoca, a
língua especial restitui o sentido às coisas, com as suas implicações
internas e o seu significado profundo, sendo, portanto, plurívoca.179
De acordo com Jolles, a Adivinha reconduz da língua especial à
língua comum, tornando a língua especial incompreensível a partir da
língua comum. Desse modo, a forma da Adivinha abre tudo ao fechar-
se: é cifrada de tal modo que esconde o que comporta, retém o que
contém.180
Como podemos notar nas críticas que Mário faz da poesia de
Henriqueta, vários dos elementos aqui atribuídos à Adivinha também
podem ser encontrados na obra da poeta mineira: a linguagem cifrada e
o sentido oculto (o preciosismo), a filiação a um círculo fechado (a “aula
de catecismo flor-de laranja”), a língua especial escondida atrás da
língua comum (as imagens enigmáticas da escola simbolista), a
aproximação com o catecismo (a retórica oratória, os pedagogismos, o
tom eloquente).
Podemos pensar que um poema assume a forma da Adivinha
quando o leitor não consegue tirar dele uma resposta, ou seja, não
178
JOLLES, André. Forma Simples. Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado,
Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Editora Cultrix, 1976, p. 116.
179
Ibidem, 1976, p. 120.
180
Ibidem, 1976, p. 126.
encontra meios para interpretá-lo a partir de seus próprios elementos.
Embora esse poema-Adivnha utilize uma linguagem comum, ele
esconde por trás dela uma linguagem especial, pois não apresenta as
coisas imediatamente, mas busca explorar sentidos ocultos perdidos no
uso comum. Portanto, somente as pessoas que têm afinidade com a
temática dessa poesia – os iniciados nos mistérios – poderão desvendar
o seu significado. Assim, a poesia se assemelha à Adivinha quando não
traz em si mesma, na própria materialidade da linguagem, os elementos
capazes de levar a uma compreensão do sentido.
A própria concepção de poesia de Henriqueta defende que o
poema se realiza na subjetividade humana, e não no próprio poema,
apontando para a necessidade de uma espécie de transcendência em
relação à linguagem para alcançar o sentido, em vez de se buscar nela
um sentido imanente. De fato, como propõe São Tomás de Aquino, na
leitura feita por Maritain, a arte se realiza na subjetividade humana: “A
arte, em primeiro lugar, é da ordem intelectual, sua ação consiste em
imprimir uma ideia em alguma matéria: é, portanto, na inteligência do
artefato que ela reside.181 Porém, a aporia que se apresenta na concepção
da poeta mineira é pensar que, por ser fruto da inteligência, a arte não
traga em si os elementos necessários para que o sentido seja acessado,
necessitando para isso recorrer a uma realidade exterior ao poema, o que
remete à transcendência (e não à imanência) e à experiência mística e
religiosa. A linguagem é assim vista como o veículo de uma mensagem,
não como portadora de sua própria fala, como sugere Henriqueta: “A
palavra tem maravilhoso poder mágico através do poeta e não em si
mesma. Vale como presságio, augúrio, fio que conduz aos mais espessos
dédalos, na medida de sua decantação. Quanto mais depurada, mais
profunda é a mensagem de que se faz de veículo”.182
Não se trata de simplesmente questionar a religiosidade da
escritora mineira – o que é, afinal, uma questão de foro íntimo –, mas de
atentar para o modo como as imagens são usadas na sua poesia e para o
risco de se incorrer no hermetismo. O problema aqui, conforme aponta
Mário, não é Henriqueta abordar ou não os “valores eternos”, mas sim
181
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 8.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
182
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 19.
que ela adote, por vezes, uma linguagem cifrada semelhante à das
“Adivinhas” – como quando repete as fórmulas de imagens enigmáticas
utilizadas pelos simbolistas, “em que o moderno se acotovela com o
bíblico (...)”.183 O poema, mesmo que traga uma epifania, deve ser capaz
de revelar a si próprio e o sentido a partir de seus próprios elementos, de
modo imanente.
Em seus ensaios posteriores à correspondência com Mário,
Henriqueta argumenta que o hermetismo da nova poesia se deve não a
uma harmonia com o universal, como pretendiam os poetas do passado,
mas devido à busca da memória desse equilíbrio rompido:
183
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 91.
184
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 109.
palavras estrangeiras abrasileiradas,
principalmente italianas, indianismos;
africanismos; nomenclatura de fauna e flora
meio desconhecidas.
Essa terminologia variada e estranha dificulta
a leitura do poema. De que maneira havia de
abordar assuntos tipicamente nacionais? O
poeta empenhou-se em ser brasileiro, aceitou
e escolheu temas em que a alma brasileira se
compraz, mergulhou no gosto indígena. Mas,
em virtude de uma fundamental aristocracia
de espírito, essa poesia de sentido coletivo
assume caráter peculiar.185
185
LISBOA, Henriqueta. Vigília poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1968, p. 20-21.
186
JOLLES, André. Forma Simples. Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado,
Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Editora Cultrix, 1976, p. 111.
187
CANDIDO, Antonio. “O estudo analítico do poema”. São Paulo: Humanitas
Publicações / FFLCH/USP, 1996, s/p.
A literatura moderna, porém, abusa das possibilidades da
analogia, o que leva a problemas como hermetismo, perda de
comunicabilidade, preciosismo, intelectualização exagerada e
artificialismo. Ao atentar para esses perigos na poesia moderna, já em A
Escrava que não É Isaura, Mário se manifesta contra certos aspectos do
legado de Stéphane Mallarmé:
190
BAUDELAIIRE, Charles. “Perda de auréola”. In Pequenos poemas em
prosa. Edição bilíngue. Tradução de Dorothée de Bruchard. Florianópolis:
Editora da UFSC; Aliança Francesa de Florianópolis, 1988, p. 217.
191
BAUDELAIRE, Charles. "O pintor da vida moderna”. In: Poesia e prosa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 859.
192
AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato. Trad. Andrea Santurbano, Patricia
Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 28.
193
Ibidem, 2018, p. 34.
o estilo, o domínio perfeito dos seus próprios meios, em que a ausência
do fogo é assumida peremptoriamente, porque tudo está na obra e nada
lhe pode faltar. Não há, nunca houve mistério, porque ele é inteiramente
exposto aqui e agora e para sempre.”194
Segundo Agamben, “não se trata de pensar que nos enigmas
arcaicos o significado não deveria preexistir à formulação (como
acreditava Hegel), mas que o seu conhecimento era até inessencial”.195
Para o autor, a atribuição de uma “solução” escondida ao enigma é fruto
de uma época posterior, que havia perdido o sentido daquilo que, no
enigma, verdadeiramente, vinha à linguagem e não se tinha um prévio
conhecimento, como ocorre na forma degradada do divertimento e da
adivinhação.
De acordo com o filósofo, o enigma dos antigos pertencia à esfera
do “apotropaico”, ou seja, de uma potência protetora que rejeita o
inquietante, atraindo-o e assumindo-o dentro de si: “A Esfinge não
propunha simplesmente algo cujo significado está escondido e velado
sob o significante “enigmático”, mas sim um dizer no qual a fratura
original da presença era aludida com o paradoxo de uma palavra que se
aproxima do seu objeto mantendo-o indefinidamente à distância”.196
Ainda segundo Agamben, na cultura ocidental, religião, arte e
ciência parecem constituir três âmbitos distintos e inseparáveis que se
alternam, se alinham e se combatem sem cessar, sem que nenhum deles
consiga nunca, de fato, eliminar completamente os outros dois:
194
AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato. Trad. Andrea Santurbano, Patricia
Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 35.
195
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias - a palavra e o fantasma na cultura
ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 222.
196
Ibidem, 2007, p. 222.
sacrificado a sua arte a uma verdade superior, se
revela como aquele que é: apenas um corpo
vivente, uma vida desenganada, que se apresenta
como tal para exigir seus direitos inumanos.197
197
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato. Trad.
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 87.
198
Ibidem, 2018, p. 157.
199
Ibidem, 2018, p. 157.
200
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias - a palavra e o fantasma na cultura
ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 239.
escritura e nem na voz, mas na dobra da presença
sobre a qual eles se fundam: o logos, que
caracteriza o homem enquanto zoon logon echon,
é esta dobra que recolhe e divide cada coisa na
“conjunção” da presença. E o humano é,
exatamente, esta fratura da presença, que abre um
mundo e sobre o qual se sustenta a linguagem. 201
201
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias - a palavra e o fantasma na cultura
ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 248.
caminho. Este caminho onde encontro meus
irmãos.202
202
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 6 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 111.
203
CANDIDO, Antonio. “O estudo analítico do poema”. São Paulo: Humanitas
Publicações / FFLCH/USP, 1996, s/p.
Mário demonstrava estar sempre atento com relação ao aspecto
sensorial de sua poesia, principalmente no que tange à musicalidade. Em
carta a Henriqueta, ele chama a atenção para o fato de que a sua poesia
tem corpo e alma, em um sentido de desequilibro que pesa mais para o
corpo:
204
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, out. 1943. SOUZA, Eneida
Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 270.
205
DERRIIDA, Jacques. “Che Cos’ È La Poesia?” Trad. Tatiana Rios e Marcos
Siscar. In: Inimigo Rumor. n. 10. Rio de Janeiro: 7 Letras, maio 2001, s/p.
O autor propõe chamar de poema “uma certa paixão da marca
singular, da assinatura que repete sua dispersão, além do logos,
ahumana, dificilmente doméstica: um animal convertido, enrolado em
bola, voltado para o outro e para si, uma coisa, em suma, modesta,
discreta, próxima da terra, o nome para além do nome”.206 Utilizando a
imagem palpável de um animal tão terrestre, Derrida enfatiza o caráter
eminentemente material e humano do poema.
Assim, podemos pensar numa dicotomia entre a poesia próxima
da terra e do corpo – e, portanto, mais próxima do homem e do
angelical – e a poesia voltada para o sublime e incorpóreo, para o
divino. A partir da filosofia de Hegel, podemos notar como a tendência
espiritualista da poesia de Henriqueta pode contrastar com a tendência
panteísta na poesia de Mário:
206
DERRIIDA, Jacques. “Che Cos’ È La Poesia?” Trad. Tatiana Rios e Marcos
Siscar. In: Inimigo Rumor. n. 10. Rio de Janeiro: 7 Letras, maio 2001, s/p.
mesmos e fundamenta por sua vez uma relação
peculiar do sentimento subjetivo e da alma do
poeta com os objetos que ele canta.207
207
HEGEL, Georg Wilhein Fridrich. Cursos de Estética. Volume II. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 93.
208
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 15.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
mistério da natureza, perante a harmonia complexa e insondável do
mundo se submete”.209 Milliet nota que na poesia da poeta mineira,
assim como na vida, a paixão é recalcada, em função de sua “ânsia de
serenidade” e de um “misticismo vago”, mas ainda assim capaz de
inspirar imagens surpreendentes.
O crítico percebe na poesia de Henriqueta certa dose de amargura
e revolta: “Noite amarga/ sem estrela / sem estrela / mas com lágrimas.”
Mas também uma brasa acesa de esperança, que é seguida pela
resignação e termina em amargura. E é justamente nesse momento em
que a poeta vive “a necessidade da vida” – e sofre como todos os
homens – que o poema ganha força e conquista simpatia humana: “(...)
dia a dia./ o desgosto / e a necessidade / da vida.”210
Podemos pensar que, na perspectiva dessa análise, a poesia de
Henriqueta ganha força à medida que a poeta se sujeita a viver “o
desgosto e a necessidade da vida”, talvez porque assim a sua poesia
adquira mais densidade poética, realidade humana e também se torne
menos cifrada e mais capaz de se comunicar com o leitor.
Embora considerasse Henriqueta uma das grandes poetas de sua
geração, Sérgio Buarque de Holanda observa que, em sua busca
espiritual, a poeta mineira se separa não apenas dos autores modernistas
e “confessadamente profanos”, mas acaba por distanciá-la mesmo dos
autores simbolistas, bem como das tradições religiosas mais amigáveis à
existência temporal, como o franciscanismo, o jesuitismo e alguns
misticismos. Como resultado, a sua obra acaba por se afastar não apenas
da sensorialidade da experiência física, mas também do contraste entre
luzes e sombras, tintas e sons, da estética simbolista:
209
MILLIET, Sérgio. “Sobre a Face Lívida”. In: Suplemento Literário - Minas
Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev.,
1970, n. 182, p. 9.
210
Ibidem, 1970, n. 182, p. 9.
ora repulsivo, ora tedioso ou simplesmente
absurdo das luzes e das sombras, das tintas e dos
sons, como para algum remoto apelo que lhe vem
de certos aspectos da realidade cotidiana: aquela
inocência que se traduz nos olhos do velho bêbedo
(azul do céu, limpidez
de lírios amanhecentes).
A lua distante, que pode ver, sem corar, o
turbilhão terreno, o segredo insondável da
infância, a singela pureza de um cântaro:
"Como podes ser puro e suave,
cântaro,
- corpo de barro?"
E se a constante demanda do eterno através do
anedótico e do temporal, separa-a dos autores
confessadamente profanos, não a separa menos
daquela religião “regional", que tanto inquietava
Mário de Andrade diante de algumas produções
de um Murilo Mendes, onde Nossa Senhora acaba
falando inglês e Deus Todo Poderoso vai jogar
nas corridas de cavalos. A sua é uma catolicidade
que se quer manter fiel ao sentido originário da
palavra “católico", isto é, universal – direi quase
cosmogônica. Falta-lhe, talvez, a essa
catolicidade, para ser plena e perfeita, aquele
sentimento, que não faltou ao franciscanismo,
nem sequer ao jesuitismo ou mesmo a alguns
misticismos, sentimento de que a existência
temporal é amigável e digna de viver-se enquanto
parábola da eternidade, criação celeste ou
caminho para a glória divina. Em seu
universalismo, a vida terrena e mortal não
encontra guarida possível, salvo como uma
contingência melancólica: "O desgosto e a
necessidade da vida".211
211
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Diário Carioca. Rio de Janeiro: 10
de setembro de 1950. In: Suplemento Literário - Minas Gerais. No convívio
poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev., 1970, n. 182.
Para Maria José de Queiroz, a poesia de Henriqueta intenta
chegar – lucidamente – à essência e ao sentido das coisas e sentimentos,
com uma “inocente perplexidade de quem contempla o mundo povoado
de enigmas”. Para ilustrar, ela cita o emblemático poema “Além da
imagem”, que também intitula o livro que analisa:
212
QUEIROZ, Maria José de. “Além da imagem”. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21
de fev., 1970, n. 182, p. 9.
situações, coisas, seres, experiências e
sentimentos? Como surpreender o instante falaz e
nele descobrir a marca do eterno? Essa a pergunta
que parece presidir a criação de cada poema de
Além da Imagem. Para realizar seu intento,
Henriqueta Lisboa recorre às vezes aos indícios
que lhe apresentam a fórmula secreta para a
equação do visível. Podem tanto encontrar-se no
"matiz da flor / entre cor e cor" como no "rapto
das ondas... carreadas pelos ventos vários/ para
além dos âmbitos". Para ela, o efêmero esconde,
em falsas cores, a verdade absoluta.
(...) Oferecem-lhes a vida inúmeras experiências
em que o absoluto e o eterno se transfundem. Para
captá-los será preciso solucionar o enigma:
aprender a ver além da imagem, reformular o
mundo, sem "halos de sóis e de mitos" que
"cobrem o trigo dos séculos". Então, "talvez
porventura o lince/ rasgue a túnica dos séculos.../
E de súbito amanheça a voz do oráculo".213
213
QUEIROZ, Maria José de. “Além da imagem”. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21
de fev., 1970, n. 182, p. 9.
214
MARQUES, Oswaldino. A dança ritual do véu. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984,
n. 929, p. 3.
a dar à luz um segredo.
215
MARQUES, Oswaldino. “A dança ritual do véu”. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984,
n. 929, p. 3.
atravessa se transmorfoseia ou se decompõe. Nada
passa por esse "meio" sem que fique sujeito a
outro nome. De natureza devir, inexiste o que lhe
possa aplacar a avidez sagitária.
Quando Henriqueta Lisboa nos diz "véu", como
que nos adverte de que nos cumpre idear coisa
diversa apenas sugerida pelo sortilégio da
ambiência significativa pouco a pouco edificada.
É por uma galeria de espelhos que nos deslocamos
a orientarmo-nos por um alfabeto de reflexos.
Aqui, ler é desliteralizar. Entendamo-nos – nosso
compromisso é com transignificações.216
216
MARQUES, Oswaldino. “A dança ritual do véu”. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984,
n. 929, p. 3.
217
REZENDE, Márcia Eliza. Tendências metafísicas na lírica de Henriqueta
Lisboa. In: Suplemento Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa
Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984, n. 929, p. 4.
Segundo Fábio Lucas, a poesia de Henriqueta traz uma decifração
dos mistérios da poesia e do mito criador, a partir dos desvãos das coisas
mínimas e das frestas de mistérios:
218
LUCAS, Fábio. O ser da poesia. In: Suplemento Literário - Minas Gerais.
Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984, n. 929, p. 23.
contemplá-la isoladamente e esvaziada da
consciência criadora, em que a manipulação
conceitual não elide a percepção mágica de uma
estética aberta a todos os horizontes da realidade.
O empenho do poeta, ao contrário do jogo de
"sombras e luzes" de que o fizeram paradigma,
não é a fuga subjetiva para o irracional - o
encobrimento do ser - mas, antes, a postura de
uma verdade que rompe de suas próprias
antinomias. Verdade não dogmática, não
postulada, não definitiva, mas que, no momento
em que se expressa, torna-se ela mesma universal
e única e insubstituível.219
219
ARAÚJO, Laís Corrêa de. “Lúcida e límpida Vigília”. In: Suplemento
Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de
jul., 1984, n. 929, s/p.
220
BAKAJ, Branca Borges Góes. Quatro estudos literários (Mário de Andrade,
Machado de Assis, Henriqueta Lisboa, Florbela Espanca). Brasília: 1989, p. 49.
Ainda segundo Bakaj, a lírica de Henriqueta é fruto de um
processo de subjetivação, de uma interiorização da realidade, e não de
uma interioridade: “É essa interiorização de sua infância, de sua religião,
de sua vivencia mineira, de seus medos, de suas ansiedades, etc. que
encontramos em sua obra.”221
De acordo com a autora, a poeta mineira desenvolveria um
trabalho artístico consciente a partir dessa interiorização das
experiências, concentrada no fundo da realidade humana:
221
BAKAJ, Branca Borges Góes. Quatro estudos literários (Mário de Andrade,
Machado de Assis, Henriqueta Lisboa, Florbela Espanca). Brasília: 1989, p. 49.
222
Ibidem, 1989, p. 49.
É a matéria, esta fera de mil ouvidos que se
sustém cega, surda e muda, mas percebe por todos
os lados de si, porque a sensitiva poética é todo o
organismo de que dispõe para absorção do
universo, e a sugestão pode vir mesmo dentro da
noite, no momento de mais absoluta
inconsciência.
(...) Quando muito há "o silêncio da manhã, um
longo muro, ainda, entre este mundo e o céu".
Neste ponto Cecília se toca com os simbolistas, de
onde vem. Porque há um muro entre o mundo e o
céu, embora não haja referência à tentativa do
pássaro de tocar esse céu que ele sabe existir.
Veio para cantar. Está completo, embora ciente de
um mistério que o escuta. E nem resposta
houve.223
223
AYALA, Walmir. “Dois poemas”. In Diário Carioca, 22/23 de fevereiro de
1959. Suplemento Literário - Minas Gerais, No convívio poético de Henriqueta
Lisboa, n. 182. Belo Horizonte: 21 de fev. 1970, p. 8.
natureza, mas que comunga diretamente com a
emoção angustiada da alma do poeta. E é a um
tempo próximo de "Lua, suspiro de Lua" e de um
"bater de pálpebras. O pássaro é a sugestão de um
sem número de elementos que partem dele, para
ser o universo de cego mergulho de quem se parte
"sobre as ondas pelos vidros", "pelos abismos
abaixo". Henriqueta Lisboa se lança mais a um
tempo de perenidade, para fora do tempo de que
dispõe. Cecília Meireles constrói sua perenidade
com as colheitas do seu dia. O poema de HL é
todo o histórico do amor, da condição de ser busca
de identificação com outra realidade adivinhada e
difícil.224
224
AYALA, Walmir. “Dois poemas”. In Diário Carioca, 22/23 de fevereiro de
1959. Suplemento Literário - Minas Gerais, No convívio poético de Henriqueta
Lisboa, n. 182. Belo Horizonte: 21 de fev. 1970, p. 8.
225
Ibidem, 1970, p. 8.
Embora esses livros tenham sido publicados num período posterior à
correspondência com Mário, eles parecem ser fruto de leituras e estudos
realizados pela poeta mineira ao longo de toda a sua trajetória, e são
portanto importantes para compreender a sua concepção literária e a sua
obra poética, mesmo dos anos anteriores.
Os seus ensaios revelam uma escritora altamente consciente da
técnica literária, dada a sua capacidade de análise crítica, que também se
beneficia de sua sensibilidade de artista. Henriqueta aborda questões
sobre aspectos formais envolvendo métrica, ritmo, rima, assonância,
imagem, estrutura, a questão da representação, etc. Segundo a escritora
mineira, o ritmo governa o poema, mas a partir de uma ordenação
interior, podendo prescindir da métrica; a rima é considerada elemento
perigoso, que pode ser usado como dádiva ou coincidência em
circunstâncias singulares; a imagem insinua tanto o visível quanto o
invisível.
Os seus ensaios, compilações de suas preferências e ressonâncias
de suas leituras e estudos, analisam a obra de autores de escolas
diversas, como Cruz e Sousa, Alphonsus, Severiano de Rezende, Emílio
Moura, Drummond, Murilo Mendes, Guimarães Rosa, Mário de
Andrade, Dante, Ungaretti, Camilo Pessanha, Mário de Sá Carneiro,
Jorge Guillén, Gabriela Mistral, Huidobro, etc. As considerações que
Henriqueta tece sobre os escritores que critica – e com os quais ela tem
afinidades – muitas vezes podem servir para ajudar a esclarecer questões
que dizem respeito também à sua própria poesia. Observando a obra dos
poetas que admira, a poeta mineira descobre lições que incorpora em sua
própria poesia, revelando assim as suas preferências estéticas e os
recursos de seu processo criativo. Com alguns deles, demonstra possuir
maior afinidade, mas de cada qual destaca pelo menos uma qualidade
que admira e parece querer reproduzir.
Henriqueta demonstra intimidade com a poesia moderna,
assumindo a sua liberdade criativa, mas não se contenta com facilidades
espontaneístas, ao contrário, procura conhecer a técnica de seu ofício
com um máximo de rigor. O modernismo se manifesta em sua poesia
principalmente no uso dessa liberdade, até mesmo para assimilação de
influências passadistas, principalmente do Simbolismo.
Assim como outros autores do segundo período do modernismo,
Henriqueta envolveu-se com o desenvolvimento de uma corrente
chamada de neo-simbolismo, que abordava temas caros ao simbolismo,
sobretudo de natureza espiritual e metafísica. “Com efeito, destituída de
realismo exterior, desinteressada de uma pontuação histórica, H. L.
vem-se mostrando cada vez mais encapsulada numa charada metafísica
cujo resultado tem sido a ordenação de sintagmas conceituais que
buscam definir a posição e a resposta do ser diante do mundo”, observa
Fábio Lucas.226
Para Fábio Lucas, embora sua obra tenha sido escrita “sob o
triunfo do Modernismo”, pode-se notar nela tanto a influência tanto do
simbolismo (“no preparo da imagem acústica do poema, no misticismo
que impregna a visão do mundo, no esbatimento impressionista da
paisagem descrita e no paralelismo entre transcendência e poesia”)
quanto do parnasianismo (revelado na sacralização da palavra).227
Embora guarde certa proximidade com tendências passadistas,
Henriqueta buscava a atualização de sua poesia, a partir da convivência
com os modernistas, especialmente de Mário de Andrade. Segundo
Fábio Lucas, a partir de 1949, quando lançou Flor da Morte, “a autora
se despedia da cadência e da musicalidade simbolistas (...), para o
estabelecimento de um repertório mais apurado de signos poéticos”.228
Como aponta Angel Crespo, há uma certa interseção entre o
simbolismo e o modernismo. Segundo o crítico, muitos dos poetas
modernistas mais ativos – Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida,
Manuel Bandeira e Mário de Andrade – começaram escrevendo poesia
simbolista. Além disso, muitos “autênticos simbolistas”, como Ribeiro
Couto, Cecília Meireles, Tasso da Silveira e Murilo Araújo, têm sido
considerados representantes do modernismo. Ele conclui que o
simbolismo é, portanto, “uma estética que mantém a sua capacidade de
atuar ao longo das correntes que ocorreram no Brasil”.229 Henriqueta
também possuía raízes simbolistas, mas seria, para o crítico, mais afeita
ao símbolo que ao simbolismo:
226
LUCAS, Fábio. Crítica sem dogma. Belo Horizonte, Impr. Oficial do Estado
de Minas Gerais, 1983, p. 189.
227
Ibidem, 1983, p. 192-193.
228
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 188.
229
CRESPO, Angel. Antologia de la poesia brasileña. Desde el romantismo a
la Generación del cuarenta y cinco. Barcelona: Seix Barral, 1973, s/p.
lógico ou cognoscitivo que, como muitos de seus
colegas brasileiros, crê ser fundamental em sua
poesia. De modo que, ainda que suas raízes sejam
simbolistas, se sinta mais afeita, conforme avança
sua evolução, ao símbolo que ao simbolismo; e
assim também que em sua última época de
produção seus melhores poemas sejam como
grandes e unitárias imagens, como símbolos
autosuficientes em que teria sido realizada a
síntese buscada desde sempre pela poetisa.
230
CRESPO, Angel. Poemas de Henriqueta Lisboa. In "Revista de Cultura
Brasileira", tomo IX, Março 1969, Madrid. Suplemento Literário - Minas
Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev.,
1970, n. 182, p. 4.
as do modernismo, as do purismo ou as de
qualquer outra das poéticas que pretende
sintetizar. É algo sobre o que vale a pena fixar a
atenção.
231
JUNQUEIRA, Ivan. Entre a música e o silêncio. O Globo - 19-12-79. In:
Suplemento Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Cinquenta Anos de
Poesia. Belo Horizonte: 22 e 29 de dez., 1979, n. 690 e 691, p. 3.
A musicalidade e o inegável da dicção poética de
Henriqueta Lisboa devem quase tudo a este
diáfano demiurgo: o silêncio. E muitas de suas
outras virtudes - em particular as da limpidez
formal e da austeridade expressiva - parecem
advir de sua ladina e invisível ação (...) . Por isso
mesmo, sua poesia confunde-se com o afã de
tangenciar o indizível, de ultrapassar os limites
léxico-semânticos da palavra e, afinal, como
queria Rilke, de penetrar a essência da poesia,
cujo limbo escatológico estaria assim para além
das palavras.
232
DAMASCENO, Darcy. Além da imagem das coisas. In: Fenomenologia da
Obra Literária, Forense, Rio, 1968, p. 135-138. Suplemento Literário - Minas
Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev.,
1970, n. 182, s/p.
Para ilustrar o modo como Henriqueta atualizou a sua poesia,
basta comparar “Primavera”, um dos poemas de Velário (1930-1935),
livro anterior a Prisioneira da Noite, escrito ainda antes da
correspondência com Mário, com “Natureza”, poema de A Face Lívida
(1941-1945) que traz um tema semelhante. No primeiro poema,
percebe-se nos versos livres e longos um tom retórico e didático
(“jardim orvalhado de lágrimas”), certa dose de pieguice (“desfolhou
contra o meu coração”), as ideias sentimentais, o abuso da eloquência
(“grandes gotas de sangue”), problemas sobre os quais Mário depois
passaria a alertar:
PRIMAVERA
Depois do inverno que fora rude
e fechara os caminhos com seus passos de neve,
certa manhã em que havia bailado de borboletas,
desabrochou à altura de minha janela
a primeira rosa vermelha
do meu jardim orvalhado de lágrimas.
233
LISBOA, Henriqueta. “Primavera”. In: Velário. Obras Completas. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 34-35.
Já “Natureza”, mais conciso e contido, traz uma dicção mais
contemporânea, com imagens de forte apelo sensorial, mais sugeridas
que explicitadas, em proveito da densidade poética. A poeta evita agora
a retórica, a eloquência e o sentimentalismo, e o poema ganha força. O
ritmo urbano pulsante contrasta com o cenário natural. A temática
religiosa está presente – a alma lúcida e amarga –, mas agora podemos
visualizá-la como um cristal de rocha, a lutar contra as forças bárbaras
do secularismo:
NATUREZA
Flores em guirlanda
ao longo dos troncos.
Música de bárbaros
à sombra dos bosques.
Sentidos cercados
De todos os lados.
234
LISBOA, Henriqueta. “Natureza”. In: A Face Lívida. Obras Completas. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 139.
se irradia do ser, que preside as melhores atitudes,
e que se concretiza no poema, na criação plástica,
na composição musical. Considero-a, desta forma,
elemento fundamental e substancial da existência
humana. Quanto ao poema, acredito que
estabeleça um vínculo entre o número e o
fenômeno, entre o não-ser, anterior ao verbo –
sonho, emoção, abstração – e o ser, oriundo do
ritual artístico. Será talvez por isso que o poema,
imponderável a certos ângulos, desafia a
dissecação científica da crítica.235
235
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 11.
236
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 12.
237
Ibidem, 1955, p. 86.
Ao falar sobre a poesia de Mário de Andrade, em Convívio
Poético, Henriqueta reforça essa concepção – um tanto instrumental –
de que a palavra é um veículo para expressar uma mensagem do poeta,
que por sua vez é um veículo de algo que lhe é superior:
238
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 113.
Longe de impessoal e abstrata como de início a
julgaríamos, essa poesia revela um ser humano
que recolhe a emoção em profundidade para
devolvê-la à superfície expressiva sem a mácula
da desordem e até mesmo sem a névoa do pranto;
um ser cuja sensibilidade inclui nobreza,
dignidade, rigor para consigo mesmo e sua dicção.
239
239
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 113.
240
LISBOA, Henriqueta. Vigília poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1968, p. 30.
agnosticismo sobre a poesia, mas acreditava ser possível confrontar
essas “forças contrárias” a partir de uma postura de equilíbrio, que era
buscado tanto no plano da vida pessoal quanto da criação artística:
241
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 11.
criatura é o conjunto de alma e corpo, uma
criatura perfeita é aquela em que se harmonizam
totalmente esses dois elementos constitutivos do
ser. Assim, no equilíbrio entre a graça física e a
plenitude espiritual se baseia a obra de arte.242
242
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 77.
243
LISBOA, Henriqueta; WALLIS, Marie. Carta. Acervo de Escritores
Mineiros, carta de 19 fev. 1942.
gente cônscia da perfeição da beleza e da alegria
por meio da contemplação "do espírito, dos
sentidos e do coração." De modo que, a
capacidade de perceber jaz no íntimo de cada
homem. Se alguém se abre ao sentimento, pode
encontrar a perfeição que é alegria.244
244
FILHO, Blanca Lobo. A poesia de Emily Dickinson e de Henriqueta Lisboa.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1973, p. 17.
245
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 20 fev. de 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 279.
246
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. Ibidem, 2010, p. 95.
senão de modo mais límpido e mais alto. Sempre
pensei que a missão do crítico fosse, acima de
tudo, orientar, desbravar caminhos, adivinhar
possibilidades. Não apenas explicar para o
público, testemunhar compreensão, dar notas ao
cabo de exames. Com você a crítica tem tomado
aspectos novos, que enchem a mocidade de
esperança. A preferência que denunciou entre
aqueles três poemas que submeti à sua apreciação
– lembra-se? – tem sido longamente meditada.247
247
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. 31 dez. 1939. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 78.
248
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 84-87.
passadistas e atualizar a sua poesia: “o passado é lição para se meditar,
não para reproduzir”249.
Agindo assim, Mário corria o risco de se comportar como uma
espécie de arauto do Movimento Modernista, que protestava contra o
esteticismo, a teorização da arte pela arte, e buscava a libertação das
potências criadoras do homem. Prezando principalmente a liberdade
criativa, o movimento havia aberto o caminho para os poetas criarem
não apenas o próprio ritmo, mas também escolher os próprios
paradigmas estéticos, sem precisar seguir as diretrizes de uma escola ou
um grupo. Apesar disso, os grupos continuaram a existir, e havia o risco
de que os próprios escritores modernistas fossem canonizados.
Porém, nessa fase de sua vida, Mário já não aconselhava com a
mesma convicção e certeza dos primeiros tempos de modernismo,
quando era movido pela confiança desmedida e pelos arroubos da
juventude, optando por lançar um olhar mais crítico sobre as suas
próprias intervenções. Em determinado momento, ele percebeu que
deveria evitar mesmo a facilidade de seguir fórmulas e regras prontas,
dispondo-se a meditar sobre as especificidades técnicas trazidas por
cada poema que analisava: “Engraçado, ontem estive pensando: não é
que não possa haver reflexivos, e explicativos em poesia, até que pode.
Estou cada vez mais livre de regras e de normas. Parece que tudo tem de
ser resolvido caso por caso... Não acha?”250
A relação entre Mário e Henriqueta pode ser comparada com
aquela que se estabeleceu entre o escritor tcheco Rainer Maria Rilke
(1875-1926) e o jovem poeta Franz Kappus em Cartas a um jovem
poeta. De acordo com Marcos Antonio de Moraes, “a epistolografia
mariodeandradiana incorpora essa função pedagógica que é, ao mesmo
tempo, o desejo de doação e uma reflexão exaustiva sobre o próprio
saber”.251 Segundo o autor, a atitude de Mário teria mudado numa fase
mais madura de sua vida, distinguindo-se daquela assumida por Rilke,
pois enquanto o escritor tcheco assumia o papel de mestre, impondo-se
como modelo, o escritor modernista havia passado a adotar uma atitude
mais ponderada, mostrando-se mais crítico em relação aos próprios
249
ANDRADE, Mário. Losango cáqui. In: Poesias Completas – De Pauliceia
Desvairada a Café. Círculo do Livro, s/d, p. 33.
250
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 maio 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 255.
251
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 208.
pontos de vista. A militância combativa e doutrinária do início
movimento modernista cedia então lugar a uma postura mais comedida
e autocrítica: “Somente na casa dos trinta, Mário, seguro de si,
assemelha-se ao autor das Elegias de Duínio. Depois, a firmeza cede
lugar à angústia e ao escrúpulo de anular o interlocutor: “Já foi o tempo
em que eu teorizava com desenvoltura e uma estúpida segurança. Hoje
não sei mais”, escreve o escritor, em 1939.” 252
As cartas de Mário a Anita Malfatti escritas nos anos 1920, por
exemplo, trazem um Mário muito mais empenhado em difundir a
estética modernista. Embora ele tenha dito à pintora que, por mais que
os seus ideais estéticos se diferenciassem, a amizade permaneceria a
mesma253, Anita evitava discutir seu trabalho com o amigo, por receio
de que as divergências pudessem afastá-los. Após ter sido uma das
precursoras do modernismo brasileiro, já em 1924 Anita queria seguir o
seu próprio caminho, sem se submeter a escolas: “Estou clássica! Como
futurista morri e já fui enterrada. Não falo a rir não. Pura verdade, podes
rezar o ite in paix na minha fase futurista ou antes moderna pois nunca
pertenci a escola alguma”.254
Mesmo no final dos anos 1930, quando a militância do
movimento já havia amainado um pouco, Mário tenta convencê-la a
retomar a estética modernista:
252
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 215-217.
253
Carta de Mário de Andrade a Anita Malfatti, 23 abr. 1926. Cartas a Anita
Malfatti, p. 99. Apud IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na
escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e
Mário de Andrade. Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de
Campinas, 2003, p. 102.
254
Carta de Anita Malfatti a Mário de Andrade, 23 fev. 1924. Apud Ibidem,
2003, p. 114.
“transmissor” de Beleza, é criador... Você é das
pessoas que mais conhecem pintura no Brasil.
Mas me parece que você se dispersa um pouco
muito no meio desses conhecimentos. Quero
dizer: em vez de fazer por si, você se propõe a
fazer o que conhece. Faz e faz com muita
habilidade, mas não é você e não é ninguém. É
puro exercício artístico, bem feito, mas de
qualquer forma, acadêmico: um saber aprendido
de cor. [...] E com essas escolhas ao léu das
simpatias de momento, você não estará caindo um
pouco na “arte pela arte”? Não se trata, Anita, me
entenda bem, de fazer “moderno”, cubismo,
surrealisme [sic] e coisas assim. Mas arte, que não
é só beleza, por mais pensada, é feita com carne,
sangue, espírito e tumulto de amor. [...]...Você foi
a maior vítima do ambiente infecto em que
vivemos. Todas as forças da cidade se viraram
contra você, ou inimigas, ou indiferentes. Até sua
família, me desculpe. E com isso você mudou de
rumo, consentida. Mas me diga uma coisa: a
mudança milhorou (sic) sua vida? Me parece que
não. E si você tivesse continuado... naquele
destino espontâneo que era o seu, porque nascia
da carne, você estaria rica? Por certo que não.
Mas, através dos obstáculos um consolo lhe ficava
....você teria sido você (...).255
255
Carta de Mário de Andrade a Anita Malfatti, 1 abr. 1939. Cartas a Anita
Malfatti, p. 145-146. Apud IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na
escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e
Mário de Andrade. Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de
Campinas, 2003, p. 103.
vezes tenho ficado “louca da vida” com suas
bobagens. V. ainda não aprendeu que isto não
“reféce o amô? (...) Nunca fui acadêmica, ouviu,
seu malcreado? Essa conversa mole de “saber
aprendido de cor”, de “puro exercício artístico,
bem-feitinho” é literatice sua e nunca trabalho
meu!” (...) Foi uma página de bobagem e nada
mais[...] A força criadora, estrepitosa, Mário, não
é cousa nossa! Está em todas as sementinhas do
mundo, no universo todo, em todas as cousas
como em todos os indivíduos. (...) Não é cousa
que se encontre em estado latente só nos artistas!
Acho uma prepotência pensarmos que possamos
ser os únicos míseros privilegiados! Concordo,
com você, não somos apenas transmissores, esta
força é um dos fatores componentes de nosso
ser.256
256
Carta de Anita Malfatti a Mário de Andrade, 09 abr. 1939. Arquivo Mário de
Andrade, IEB, USP. Apud IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na
escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e
Mário de Andrade. Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de
Campinas, 2003, p. 114.
257
Ibidem, 2003, p. 125.
recusou o quadro de Anita intitulado Época da Colonização, para grande
desapontamento da amiga.
A postura pedagógica de Mário se manifestava, principalmente,
quando ele se correspondia com escritores mais novos ou menos
experientes, diferentemente do tom de igualdade que se estabelecia, por
exemplo, na correspondência com Manuel Bandeira, que se situava no
mesmo patamar intelectual e artístico que ele. Com Drummond, pelo
menos no início da carreira do poeta mineiro, a comunicação também
propiciava o “exercício de uma pedagogia consciente de sedução
intelectual”, com Mário procurando converter o escritor mais jovem às
suas crenças modernistas e propondo-lhe um “abrasileiramento” de sua
poesia.258
Drummond via nas cartas de Mário um sentido “menos estético
do que moral e pedagógico”, e observa que, a partir delas, “o professor
Mário de Andrade tanto corrige a apreciação errada de um episódio
vivido como aponta fraqueza de linguagem, de ritmo ou de concepção
na poesia do principiante”.259 Em “Suas Cartas”, o escritor mineiro
relata o desconforto que as intervenções do amigo podiam causar:
258
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 134.
259
Ibidem, 2007, p. 56.
sobre eles, Mário, porque ainda está em tempo de salvação. Enquanto
não tenho uma palavra sua fico desconfiada”260.
A atividade crítica e pedagógica de Mário teria sido, portanto,
mais contundente durante o Movimento Modernista, período em que ela
era exercida com sinceridade extrema e mesmo certo grau de crueldade.
O próprio escritor reconhecia que não tinha muitos pudores ao fazer as
suas críticas: “Dou opinião a torto e a direito, sem me amolar em ferir
almas delicadas, mudar talvez destinos e criar ressentimentos ou delírios
de grandeza errados”.261
Segundo Gilberto Mendonça Teles, a autoridade crítica de Mário
teria sido até mesmo um dos primeiros focos de desavença entre os
integrantes do movimento modernista. Como se nota em sua
correspondência do período, ele tentava submeter os textos dos
companheiros a um padrão de qualidade, talvez na tentativa de superar
os elogios fáceis, que se mostravam recorrentes no primeiro momento
modernista.262
A partir de 1938, Mário começa a colaborar como crítico no
jornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro. Segundo Marcos Antonio
de Moraes, “nesse momento, o julgamento literário do crítico tornava-se
exigente de forma, de ‘métier’, de perfeição expressional”263.
Assumindo a crítica como uma atividade profissional, o escritor
modernista então valorizava a técnica e se opunha a certo espontaneísmo
que identificava na literatura brasileira daquele período. Após as
liberdades formais conquistadas pelo Movimento Modernista, ele notava
que na chamada poesia social ou poesia de combate havia certo
descuido com a técnica artística, de modo que a ênfase no discurso
ocorria em detrimento da forma:
260
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 out. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 125.
261
Carta de Mário de Andrade a Cassiano Nunes, 8 jan. 1944, recorte s. ind.
Bibliográfica (Coleção CAP. Série MEP. IEB-USP). Apud MORAES, Marcos
Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade.
São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 215.
262
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro.
Petrópolis, Vozes; Brasília, 1976, p. 48-50.
263
MORAES, Marcos Antonio (org.). Mário, Otávio. Cartas de Mário de
Andrade a Otávio Dias Leite. São Paulo, Imprensa Oficial, 2006, p. 32.
uma geração de escritores, tinha também dado
ensejo ao cabotinismo de “artistas de improviso”,
ou seja, ao aparecimento de escritores
despreocupados do artefazer, muitos deles
levantando bandeiras em nome da “arte de
combate”. Mário, respondendo a entrevista de
Carlos Castelo Branco, colaborador de
Mensagem, condiciona a vitalidade da arte à
consciência técnica do artista. Recupera Dante,
Cervantes e Tolstói, exemplos de criadores de
“instrumentos de lutas”, pois “é justamente pela
beleza da exposição formal do seu pensamento
que eles adquiriram o valor de combate que
têm”.264
264
Ibidem, 2006, p. 32.
265
Carta de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite, s/d. MORAES, Marcos
Antonio (org.). Mário, Otávio. Cartas de Mário de Andrade a Otávio Dias
Leite. São Paulo, Imprensa Oficial, 2006, p. 89-90.
feito e recomendou a sua inclusão no livro, estimulando a amiga a
pensar por conta própria:
266266
Henriqueta acatou novamente a sugestão.
267
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 220.
268
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, p.
220, p. 87.
amaldiçoada por Deus,/ alguma nova Sodoma?” Mas manteve os dois
versos “quatrocentos caixõezinhos brancos, azuis, róseos,/ a caminho do
cemitério” e o verso seguinte, que o amigo considerara “vulgares depois
da magnífica revoada das quatrocentas alminhas subindo pro céu”.269
Ao criticar “Prisioneira da Noite”, embora tenha achado o poema
“ótimo”, Mário pede que Henriqueta tire o trecho ““ó vós que sabeis”:
“tire isso, tire isso! Fica feio e desnecessário”.270 Ele implica também
com os versos que diziam: “Sou a princesa esperando o menestrel”: (...)
“você é a mulher, MULHER, prisioneira da noite, Henriqueta! Você
inventou uma imagem lírica admirável e depois vai enfraquecê-la com
essa princesa boba e esse menestrel insuficiente? Tire isso, tire isso!”271
Mas o que Mário considerou “pior” foi o último verso, em que a poeta
dizia ter um encontro marcado com o destino: “Modifique isso,
Henriqueta, modifique senão brigo com você até a quarta geração. Diga,
sim, que tem um encontro marcado há longo tempo, tudo isso é lindo,
MAS NÃO DIGA COM QUEM!”272
Mário implica com rimas toantes no meio de versos brancos,
embates silábicos, repetição de possessivos, galicismos, falta de artigos.
Mas o problema principal, a seu ver, é a retórica oratória, o abuso da
eloquência, os pedagogismos: “O que eu percebo em principal, e isto me
parece um perigo muito grave é que, mais que pra oratória impulsiva e
natural você está caindo em sistematizações de processos oratórios,
exclamações, objurgatórias, o uso frequente do vocativo ohs!, ‘oh meus
irmãos!’ etc.”273
Mário percebia na poesia de Henriqueta uma proximidade com
poetas como Jorge de Lima, Murilo Mendes, Augusto Frederico
Schmidt e Adalgisa Néri, principalmente com a escrita do primeiro,
caracterizada pela “técnica de ajuntamento enumerativo de imagens –
269
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 87.
270
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 87.
271
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 87.
272
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 88.
273
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 89.
símbolos inesperados, em que o moderno se acotovela com o bíblico
(...)”274.
O escritor modernista não aprovava o retorno à poesia condoreira
em que teriam incorrido esses escritores da época. No artigo “A Volta
do Condor”, ele dirige a sua crítica contra a imagística eloquente e
“esfomeada de profundeza e dos grandes assuntos humanos”,
características que contrastavam com a poética do cotidiano e do
pitoresco próprios do projeto modernista. A sua implicância não era
propriamente com a presença de valores eternos nos poemas desses
poetas católicos, mas com o modo com que esses assuntos eram
abordados, criando uma falsa eloquência baseada na sistematização dos
processos dos autores principais dessa nova corrente condoreira:
274
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 91.
275
ANDRADE, MÁRIO DE. Vida Literária. Pesquisa e int. Sônia Sachs. São
Paulo: Hucitec; Edusp, 1993, p. 220- 225.
276
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. Ibidem, 2010,
p. 221.
eternos”.277 Atitude em que incorreriam autores como Murilo Mendes,
Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima, com os quais Henriqueta
demonstrava certa proximidade.
Mário procurava estimular a amiga a encontrar a sua
originalidade, a expressão real de si mesma, pois acreditava que ela
estava seguindo Jorge de Lima muito de perto:
277
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 222.
278
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abr. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 93.
279
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, s/d. Ibidem, 2010, p. 168.
Hegel, a estética modernista parece valorizar a experiência particular,
mais próxima da vida cotidiana e contingente. Cabe, porém, observar
que aproximar a poesia do cotidiano, em vez de buscá-la nos grandes
temas, nos valores eternos e nas questões espirituais, não implica,
simplesmente, esvaziar a poesia de todo conteúdo universal, mas sim
questionar a validade de uma abordagem que parte do geral para o
particular e faz uso de uma simbologia hermética, recorrendo-se a
abstrações impalpáveis e erráticas, em busca de exprimir uma
mensagem exterior ao poema e que não se realiza no poema.
A partir de sua experiência poética, um escritor pode,
eventualmente, alcançar um sentido mais universal; o problema seria
partir do universal, dos valores eternos, para o particular, e não o oposto.
Além disso, a obra de arte deve falar por si mesma, e não servir de
veículo para expressar um discurso exterior a ela, seja ele religioso ou
político: “E não quero que estas minhas considerações de forma alguma
prejudiquem a sua crença, a sua religião que acho linda e legítima.
Apenas, tenho para mim que o único lado em que a crença, a política, a
humanidade, a pátria, a nação, interferem no domínio da poesia pura, é o
lado da exaltação, do desvario, o misticismo”. 280
O próprio Edgar Allan Poe destaca a necessidade de atentar para
a sugestividade do sentido do poema, em vez de explicitá-lo, como na
abordagem didático-religiosa, pois isso poderia prejudicar o seu lirismo:
“É o excesso do sentido sugerido, é torná-lo a corrente superior, em vez
da subcorrente do tema, que transforma em prosa e prosa da mais chata
espécie a assim chamada poesia dos assim chamados
transcendentalistas.”281
Nesse sentido, podemos pensar que, para Mário, é a partir da
realização do poema em sua manifestação mais pessoal e particular,
mais singular e original, que se tem a possibilidade de torná-lo
universal. A implicância de Mário com Henriqueta e os poetas
neocondoreiros parece se referir à maneira como eles partem de uma
abordagem universal (os valores eternos), quando seria mais plausível
alcançar o Belo ou o universal a partir da própria experiência particular,
que, de todo modo, mantém relação com o universal.
280
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p.92.
281
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado.
São Paulo: Globo, 1999, s/n, 3. ed.
Segundo Adorno, o teor (Gehalt) de um poema não é mera
expressão de emoções e experiências individuais – pelo contrário, essas
só se tornam artísticas quando adquirem forma estética e conquistam sua
participação no universal: “a composição lírica tem esperança de extrair,
da mais irrestrita individuação, o universal”.282
Embora produzida pela individualidade do artista, essa
universalidade do teor lírico, contudo, é essencialmente social, inclusive
devido à mediação da linguagem: “em cada poema lírico devem ser
encontrados, no medium do espírito subjetivo que se volta sobre si
mesmo, os sedimentos da relação histórica do sujeito com a
objetividade, do indivíduo com a sociedade”.283 O autor defende que a
grandeza da obra de arte consiste em falar aquilo que a ideologia
esconde, ou seja, passar além da falsa consciência e da alienação.284
Adorno cita Hegel para lembrar que “o individual é mediado pelo
universal e vice-versa”. Para o filósofo, o sujeito deve esquecer a si
mesmo e se entregar à linguagem como algo objetivo, até que a própria
linguagem ganhe voz. Mas a linguagem, por outro lado, não deve ser
absolutizada enquanto voz do Ser, oposta ao sujeito lírico. Segundo o
autor, o instante do auto-esquecimento, no qual o sujeito submerge na
linguagem, não consiste no sacrifício do sujeito ao Ser nem se trata de
uma violência contra o sujeito, mas de um instante de reconciliação: “a
linguagem fala por si mesma apenas quando deixa de falar como algo
alheio e se torna a própria voz do sujeito. (...) senão, a linguagem,
convertida em abracadabra sacralizado, sucumbiria à reificação, como
ocorre no discurso comunicativo”. 285 Não apenas o indivíduo é mediado
socialmente, mas também “a sociedade configura-se e vive apenas em
virtude dos indivíduos, dos quais ela é a quintessência”. 286
Adorno observa que o Classicismo aspirava a uma objetivação do
subjetivo, assim como Hegel na filosofia, e tentava superar as
contradições da vida real dos homens através de sua reconciliação no
espírito, na ideia. Segundo ele, a persistência dessas contradições na
realidade, entretanto, acabou comprometendo a solução espiritual:
282
ADORNO, Theodor W.. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de
literatura I. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2012, p. 66.
283
Ibidem, 2012, p. 72.
284
Ibidem, 2012, p. 68.
285
Ibidem, 2012, p. 75.
286
Ibidem, 2012, p. 75.
Diante de uma vida desprovida de sentido, uma
vida que se esgota na azáfama dos interesses
concorrentes, uma vida que a experiência artística
percebe como prosaica; diante de um mundo em
que o destino dos homens individuais se cumpre
na obediência a leis cegas, a arte cuja forma dá a
impressão de falar em nome de uma humanidade
realizada converte-se em mero palavrório. O
conceito de homem que o Classicismo havia
alcançado se retrai, por isso, na existência privada
do homem singular, e também em suas imagens;
somente nelas o humano parecia ainda estar a
salvo.287
287
ADORNO, Theodor W.. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de
literatura I. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2012, p. 82.
288
O artigo seria incluído no livro O empalhador de passarinho.
289
ANDRADE, Mário de. O Empalhador de Passarinho. São Paulo, Martins
Editora; Brasília, INL, 1972, p. 216.
que tinha obrigação de enunciar porque é toda a verdade da minha
poesia.”290
Mesmo nos poemas mais intensos de sua poesia, como aqueles
que abordam a morte, Henriqueta não se permite verbalizar algum
inconformismo, provavelmente por receio de contrariar a sua religião.
Percebe-se, antes, a presença de uma dor “churriando baixinho”:
Borboleta da morte
em sorvo
pendurada à flor dos lábios
calados
calados”.291
290
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. 09 dez. 1941. Ibidem, 2010,
p 161.
291
LISBOA, Henriqueta. “A Face Lívida”. In: A Face Lívida. Obras Completas.
São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 120.
Nessa nova fase de sua crítica, Mário não se limitava a observar
aspectos técnicos e estéticos dos poemas, mas fazia também uma análise
de caráter psicológico. Álvaro Lins, em carta a Mário, observa que o
escritor modernista considerava também em suas críticas a
personalidade do artista e o conteúdo humano, ao lado da realização
artística e estética:
292
Carta de Álvaro Lins a Mário de Andrade, jun. 1944. ANDRADE, Mário de.
Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins. Apres. Ivan Cavalcanti Proença;
coment. José César Borba e Marco Morel. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983,
p. 27.
espontânea é que participa da técnica primorosa da arte, é a verdadeira
finalidade do artista.”293
Como exemplo dessa espontaneidade pós-espontânea, Mário
compara a fluidez de uma fábula de La Fontaine, planejada e reescrita
inúmeras vezes, com a música dos repentistas populares, que
supostamente improvisam seus versos, mas na verdade repetem
fórmulas prontas:
293
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p 91.
294
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 91.
295
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado.
São Paulo: Globo, 1999, s/n, 3. ed. revista.
primeiro a estrutura do texto e a narrativa do enredo ou o
desenvolvimento do tema, antes mesmo de começar a escrevê-lo.
Pensando na unidade da composição, ele sugere que se comece a escrita
pelo epílogo:
296
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado.
São Paulo: Globo, 1999, s/n, 3. ed. revista.
297
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. São Paulo, 30 jan. 1942.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 188.
a face com a criação. No artigo “Do cabotinismo” (1939), ele chama a
atenção para o modo como alguns escritores vinham desvirtuando a
técnica ao transformá-la em fórmulas e se apropriando das criações
alheias, buscando facilidades que falseiam o processo criativo:
299
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 188.
300
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. Ibidem, 2010,
p. 188
301
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 4.
Em A escrava que não É Isaura, Mário, no rastro
de Paul Dermée, sustenta que o moto originário da
arte consiste em uma espécie de pulsão criadora
que brota da inconsciência: a pulsão automotriz e
indômita, transcendente ao sujeito. Mário a
denomina “moto lírico”, ou “lirismo”.
(...) nessa perspectiva radical retomada pelos
modernistas, a tarefa do poeta é pensada não
propriamente como um fazer poesia, mas como
um deixar a poesia fazer-se no espaço da criação.
Sem enfeites e sem vergonha (...).302
302
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 29.
esse poema foi dos raros que ficaram quase
integralmente na primeira versão. Terei corrigido
umas vinte palavras ao máximo pra clarear
imagens, formar ritmos. Não acrescentei uma só
imagem, uma só ideia, que me lembre. Só o
último dos números me lembro que modifiquei
bastante, tirando coisas inúteis. (...)303
303
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 de janeiro de 1942.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 186.
mata sempre o estado de poesia. Deixo sempre,
em casos assim, pra corrigir depois.304
304
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 23 jul. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, s/p.
305
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 184.
depois. Neste depois, sim, insisto em buscar a
correção, mas espero que ela "surja" e eu decidir
pelo melhor. Na "Louvação da tarde" tem um
alexandrino no meio dos decassílabos. Deixei
como saiu. No "Quarenta anos" me tinha sucedido
a mesma coisa. Mas surgiu versão melhor e exata
que preferi.306
306
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 24 ago. 1944.
A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de
Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 217.
307
Carta de Sérgio Buarque de Holanda a Mário de Andrade, Rio de Janeiro, 10
mai. 1931. MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade/ Sérgio
Buarque de Holanda: Correspondência. São Paulo: Companhia das Letras /
Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) / Edusp, 2012, p. 100.
Henriqueta também valorizava a importância do conhecimento
técnico e da atitude consciente na criação artística: “Ando pensando em
Ravel que, antes de iniciar a composição, calculava o esforço do salto,
media a altura do trampolim, deduzia a temperatura da água, controlava
a elasticidade muscular. Isto sim me parece essencial, a atitude
consciente”308.
Henriqueta era muito elogiada justamente pelo domínio técnico e
pela perfeição formal de seus poemas. Ao analisar o poema “Repouso”,
que achou “uma delícia”, Mário chama a atenção para o modo como a
poeta mineira tinha conseguido manter a espontaneidade, com uma
“frescura de inspiração pós-inspiração”, mesmo com toda a
complexidade técnica envolvida: “Repare que o problema de técnica que
você se deu, apesar de preciosístico, você o venceu com enorme
habilidade e só ficou uma frescura de inspiração pós-inspiração. Ficou
tão... espontâneo! Apesar do preciosismo das rimas em consoantes
finais! Eis um caso em que você deve matutar muito, porque útil.”309
Por outro lado, como veremos a seguir, havia o risco de que o
domínio formal de Henriqueta se tornasse uma facilidade prejudicial à
criatividade, caso ela se deixasse levar pela repetição de modelos e pelo
mero virtuosismo.
308
Carta de Henriqueta a Mário de Andrade, 04 fev. 1942. SOUZA, Eneida
Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 191.
309
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 90.
310
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 nov. 1941. Ibidem,
2010, p. 174.
Henriqueta havia ficado em dúvida se os poemas de O Menino
Poeta eram mesmo infantis. Essa questão nunca ficou muito clara para
ela e nem para Mário, e depois veio a gerar dúvidas mesmo entre os
críticos. A poeta mineira afirma não acreditar em uma poesia
especificamente infantil, definindo os versos de O Menino Poeta como a
tentativa de uma poeta adulta de se reencontrar com a sua própria
infância: “Não sei se serão, de fato, versos para crianças. Escrevo-os
com todas as minhas reservas de puerilidade e embevecimento diante da
vida”.311
Para Mário, talvez não fosse tão importante definir se os versos
eram para crianças ou adultos ou se poderiam interessar a ambos: “Sou
incapaz de decidir se é livro infantil, embora, se eu fosse imperador,
decretasse imediatamente que ficavam abolidos todos os livros
nacionais de poesia infantil, só sendo permitido o de você”312. Porém, ao
comentar o livro, ele elogia o virtuosismo formal, como os ritmos com
“pés quebrados”, recurso rítmico de certa sofisticação, que talvez seja
mais acessível aos leitores adultos e letrados:
311
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 9 de outubro de 1941.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 169.
312
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 22 jan. 1943. Ibidem, 2010,
p. 241.
313
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 209.
Márcia Hávilla Mocci observa que foi Henriqueta Lisboa quem
começou a questionar a tendência pedagogizante da poesia infantil
brasileira, que perdurou por quase 50 anos, por intermédio do livro O
menino poeta, que apresenta características distintas da corrente
pedagógica e valoriza mais o literário em detrimento da educação
moral.314
Segundo a pesquisadora, fazendo amplo uso das comparações e
metáforas, Henriqueta procura fugir ao modelo de poemas narrativos e
descritivos utilizados até então. Entretanto, para Mocci, “a obra de
Henriqueta ainda apresenta uma visão adulta da infância, o que é
natural, pois reflete a concepção de infância da época e que só vem a ser
totalmente rompida algumas décadas adiante”.315
A autora informa ainda que o chamado paradigma estético da
poesia infantil brasileira, em que o eu poético adota o ponto de vista das
crianças, surge apenas a partir de 1960, quando ocorre a ruptura efetiva
da poesia infantil com a tradição didática, a partir das obras de Cecília
Meireles e Vinicius de Moraes:
314
MOCCI, Márcia Hávilla. A poesia infantil brasileira: Recorrência de temas
e formas. Tese de doutorado. Maringá: Universidade Estadual de Maringá,
2015, p. 36.
315
Ibidem, 2015, p. 36.
316
Ibidem, 2015, p. 36.
317
Ibidem, 2015, p. 36.
(1961), Literatura oral para a infância e a juventude (1969), Antologia
escolar de poemas para a juventude (s/d), Antologia de poemas
portugueses para a juventude (2005).
Mário faz poucas objeções ao livro O Menino Poeta, a maioria
por questões bem pontuais. Nos poemas “Aquário” e “Arco-Íris”, ele
reclama da “horrível construção afrancesada ‘enquanto que’, que lhe
“suja o ouvido”, e sugere que a amiga mineira evite a elisão nas sílabas
“brincam-gaivotas”, de “Estrelinha do Mar”. Também corrige a grafia
de “almerão” por “almeirão”, no poema “Hortelão”, e sugere a
substituição da palavra “saliva” pela frase “Dão água na boca”. A poeta
mineira acatou a todas as recomendações. 318
Auxiliada por Mário, Henriqueta ia adquirindo domínio técnico
cada vez maior e escrevendo com muita lucidez, densidade e concisão.
A poeta dividia-se, então, entre a criação dos poemas infantis de O
Menino Poeta e os poemas adultos de A Face Lívida. “Quanto a mim –
aqui nesta solidão – já retomei o fio da meada e vou dando conta de uns
poemas bem sérios. Escrevo às vezes com uma facilidade torturante.
Receio que seja preguiça, trabalho sobre a forma espontânea e volto
depois a ela.”319
Mário afirma que os poemas inéditos de Henriqueta, que seriam
incluídos em A Face Lívida, pertencem à plenitude de sua obra,
destacando o domínio técnico e a densidade lírica:
318
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 209-210.
319
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 10 abr. 1942. Ibidem, 2010,
p. 204.
poucas sílabas, medidas ou não. Você tem até um
jeito de ir medindo, medindo, e de repente
concluir com um verso fora do ritmo e menor que
os outros, que acho uma verdadeira delícia
rítmica.320
320
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 jan. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 276.
321
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 out. 1944. Ibidem, 2010,
p. 307.
322
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 jan. 1944. Ibidem, 2010,
p. 275.
Após ler dois dos novos poemas de Henriqueta, publicados no
jornal carioca A Manhã, Mário elogia o poema “Imagem”, que seria o
melhor dos dois publicados, mas pede que ela mude a explicação feita
no estilo conceituoso que identificou nos últimos dois versos:
323
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 mai. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 255.
entenderam bem?” Arre! Fica detestável. O 1º
verso aí está ótimo, é fundamental mesmo no
poema, corresponde ao
“Então a morte
Pertencia à vida
De então a vida
Pertencia à morte”.
324
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. de 1945. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 318.
Pertence à morte.325
325
LISBOA, Henriqueta. “Elegia”. In: A Face Lívida. Obras Completas. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 154.
326
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. São Paulo, 20 nov. 1941.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, p. 174.
327
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 20 nov. 1941. Ibidem,
2010, p. 172.
Em outra carta, Mário volta a usar o termo “cristalização” para
definir a poesia da amiga e elogiar a perfeição formal alcançada: “Você
está azul, numa tal cristalinidade de arte, conseguindo de tal forma
revelar estados em poesia, a palavra estala de leve, como certos estalos
das borboletas, uma coisa linda”328.
Henriqueta dessa vez problematiza, embora timidamente, os
comentários feitos pelo amigo, vendo no “estado de cristalização total”
obtido pela técnica e pelo discernimento lógico, ou seja, pela
“espontaneidade não espontânea”, um obstáculo à fluidez e
espontaneidade do poema: “Será mesmo fatal, isso? O termo
cristalização exclui qualquer ideia de fluidez. Mas a poesia não é
ilógica? A arte não é às vezes o resultado de uma tentativa absurda? E
eu – não estarei dizendo tolices presunçosas?”329
328
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, Reis, 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 180.
329
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. 9 dez. 1941. Ibidem, 2010,
p. 177.
330
A referência a Tristão de Ataíde provavelmente se deve ao fato de o crítico,
muito prestigiado na época, ter se convertido ao catolicismo, fazendo com que
Henriqueta passasse a esperar dele alguma atenção à sua poesia, em função da
afinidade religiosa.
cumprimento de um dever dele, creio. Mas isso
para mim nada tem de essencial.331
331
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 4 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 191.
332
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 20 fev. 1944. Ibidem, 2010,
p. 279.
pelo contrário, é ela que dá clarividência. Às vezes fico
meio irritado por “respeitarem” você e não lhe darem o
lugar que você merece, mas logo fico maliciento, com
vontade de rir dos outros. Na verdade você não pertence
às linhas gerais da crítica de poesia nossa, nem dos seus
problemas e intenções, você é um atalho, uma clareira,
coisa assim, no caminho. Pra uns fica como uma pedra no
sapato, mas a maioria passa sem pôr reparo. Você, clareira
minha, terá decerto que se contentar toda a vida, com os
que sabem aproveitar a graça divina das clareiras pra
descansar e sabem que é nos atalhos que os passarinhos
cantam mais.333
Henriqueta parece não ter entendido muito bem o que Mário quis
dizer com “linhas gerais da crítica de poesia brasileira”, pois atribuiu o
silêncio da crítica ao tratamento de temas humanos e universais em sua
poesia, em detrimento dos assuntos nacionais então em voga:
335
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 5.
universalidade temática de sua poesia não seria, a seu ver, um problema,
nem a tornaria menos brasileira que os demais poetas:
336
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 05 mar. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 281.
sentido. Deriva mais do conceito surrealista que
do de “poesia pura” exatamente. Assim, moral,
sua poesia é interessada. Mas a corrente
interessada da crítica nacional, no que ela aliás
também se justifica inteiramente, é interessada
num sentido revolucionário social. Que
absolutamente não é o de você e que você
contraria. E ela teria que, devia mesmo, atacar
você o fato desses críticos mais úteis silenciarem
sobre a sua poesia, o Antonio Candido até agora,
creio que o Guilherme Figueiredo, soa mais como
um elogio, eu imagino. Porque preferem não
atacar o que reconhecerão esteticamente bom.
Talvez, não sei, nunca falei sobre isso com
ninguém. Foi neste sentido que eu disse você estar
muito fora das correntes principais que interessam
agora à crítica nacional.337
337
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 05 mar. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 282.
338
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 116-117.
católica, marcam neste campo, tendências
dependentes do Modernismo.
No terreno propriamente das ideias, sociais e
políticas, o catolicismo de Tristão de Ataíde
(Alceu Amoroso Lima) se afirma como oposição
a certas posições ideológicas do Modernismo, no
sentido amplo, porque nelas via perigo de
dissolver a tradição religiosa e moral do país.
Mais extremado na resistência à transformação
dos valores surge, à imitação do fascismo, o
integralismo de Plínio Salgado, logo avolumado
em poderosa organização partidária.339
339
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 115.
eixo, eu a considero, sem sombra na minha
admiração pelo Carlos Drummond, acima do
conceito de que se faz porta-voz. Em você, Mário,
o que predomina é também a preocupação moral
da vida do ser.340
340
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 abr. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 283-284.
341
ADORNO, Theodor W. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de
literatura I. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2012, p. 74.
exprimir-se, encontrando repercussão no grupo.
342
342
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 23-24.
como qualquer outro provocar coisas eterníssimas
e geniais.343
343
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 03 ago. de 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 290-191.
344
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 03 ago. Ibidem, 2010, p.
291.
345
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 ago. 1944. Ibidem,
2010, p. 293.
“Desterro” representam um simples jogo de
palavras. Para que não se tenha esperança
excessiva quanto a esta poeta, devo acrescentar
que Prisioneira da Noite não é um livro de
estreia”.346
346
LINS, Álvaro. “Problemas e Figuras da Poesia Moderna”. In: Jornal de
Crítica: segunda série. Rio de Janeiro, José Olympio, 1943, p. 59-60. Apud
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 271.
347
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 nov. 1943. Ibidem,
2010, p. 270.
348
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 27 mai. 1944. Ibidem,
2010, p. 280.
feio não mandar o livro novo só porque ele não
gostou do anterior, parece despeito. Eu mandava
mais esta vez. Se de novo ele vier com muita
incompreensão demais, então não mandava
mais.349
349
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 5 dez. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 271.
350
Ibidem, 2010, p. 280.
351
Ibidem, 2010, p. 289.
352
NUNES, Cassiano. “A poesia de Henriqueta Lisboa”. In: Suplemento
Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de
jul., 1984, n. 929, p. 10.
propriedade exclusiva de Augusto Frederico Schmidt. Segundo ele, “as
maneiras de aproveitá-los é que diferem segundo as sensibilidades e,
consequentemente, estilos”.353 Ao comparar os estilos dos dois poetas
no tratamento desses mesmos temas, Cassiano Nunes destaca o
virtuosismo e a preocupação estilística de Henriqueta, em contraste com
a poesia de Schmidt, que é mais verbalístico e menos virtuosístico:
353
NUNES, Cassiano. “A poesia de Henriqueta Lisboa”. In: Suplemento
Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de
jul., 1984, p. 10.
Álvaro Lins principalmente as "flautas esflorando
veludos de pêssego), não os encontraremos em
Augusto Frederico Schmidt, que é mais
verbalístico, sim, mas menos virtuosístico. O
poeta de "Ciclo de Josefina" sempre se exprime
direta, possantemente, sem rodeios nenhuns.
Nos versos de Henriqueta Lisboa a preocupação
estilística, a volúpia vocabular, estão presentes
sempre. Mesmo num livro de versos para
crianças, "O menino poeta", as intenções de
artífice não a abandonam.354
354
NUNES, Cassiano. “A poesia de Henriqueta Lisboa”. In: Suplemento
Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de
jul., 1984, n. 929, p. 10.
(...)
Entre as motivações mais persistentes ao meu
espírito, figura o tema da loucura, esse país
estranho cujos habitantes se entregam de corpo e
alma à liberdade e ao sonho. (...)355
Pela várzea
verde moita
sob a cortina
da noite,
pulam sapos
de contentes
grilos mostram
finos dentes.
A não ser em alguns versos do sr. Manuel
Bandeira e da sra. Cecília Meireles, não sei de
outra poesia brasileira moderna que seja mais
fluida e mais etérea do que a da sra. Henriqueta
Lisboa. É uma delícia a perfeição com que sugere
e descreve: (...)
Dos poetas que revistamos neste rápido passeio
pela poesia menor, a sra. Henriqueta Lisboa é o
mais perfeito, o mais senhor dos seus meios
técnicos e das possibilidades de expressão. As
conquistas do simbolismo no seu ramo
verlaineano, - de despojamento verbal, de
musicalidade, de pureza, de essencialidade, -
nutrem este verso não obstante moderno, que é
uma solução ideal para os tons intimistas e leves
do lirismo menor. Como estudo, não saberia
indicar melhor leitura a quem se esforça por tonar
significativa e simples a sua expressão.
No entanto, é preciso não limitar o contato com a
poetisa mineira à leitura deste último livro, que
revela apenas um dos seus aspectos. Em
"Prisioneira da Noite" teremos uma revelação
diferente do seu temperamento poético - um vigor
358
CANDIDO, Antonio. O menino poeta. in "Folha da Manhã", São Paulo,
21/5/1944. Suplemento Literário - Minas Gerais. No convívio poético de
Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev., 1970, n. 182, p. 8.
e uma densidade inexistentes na "medula de
sabugueiro" do Menino Poeta.359
359
LISBOA, Henriqueta. “Os Patos”. In: O Menino Poeta. Ibidem, 1970, n. 182,
p. 8.
360
BANDEIRA, Manuel. “Dante e Henriqueta”. Apud: CARMELO, Virgílio.
Henriqueta Lisboa: bibliografia analítico-descritiva (1925-1990). Rio de
Janeiro: José Olympio, 1992, p. 119.
361
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 221.
Um exemplo dessa certa invisibilidade é que Henriqueta é citada
por Antonio Candido, em Literatura e Sociedade, como uma das
melhores vozes do período, mas não é incluída na antologia Presença da
Literatura Brasileira, assim como o são todos os demais poetas citados
pelo crítico: “Em poesia, as melhores vozes ainda vêm de antes, com a
de Henriqueta Lisboa (Flor da Morte, 1949) ou Vinícius de Morais
(Poemas, sonetos e baladas, 1946), para não citar Murilo Mendes e
Carlos Drummond de Andrade, cujos primeiros livros são de 1930, ou
Manuel Bandeira, pré-modernista e modernista de primeira hora.”362
Outro episódio significativo é o fato de que Manuel Bandeira,
embora afirmasse considerar Henriqueta uma das poetas brasileiras mais
perfeitas, ao organizar o livro Apresentação da Poesia Brasileira,
publicado em 1946, não se lembrou de incluir o trabalho da poeta
mineira. Anos mais tarde, em um cartão enviado para Henriqueta, ele
pede desculpas pelo esquecimento:
362
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 117.
363
Cartão de Manuel Bandeira a Henriqueta Lisboa. 28 set. 1961. Acervo dos
Escritores Mineiros. Belo Horizonte, 28 set. 1961.
poema. Entretanto, ia dedicando uma vida à
realização de uma obra poética que talvez não
tenha sentido para além de um fechado círculo de
afinidades pessoais.
Louvações não me satisfazem. Compreensão
afetiva representa conforto, apenas. Respeito, sei
que mereço. Mas crítica com profundidade e
abrangência, de interpretação de valores, e
aspectos mínimos, exegese em comunhão, isto –
cousa rara – é o que me interessa. E é o que você
nobremente me oferece na sua maravilhosa carta
de outubro, confirmação de seus belos conceitos
apresentados no auditório de Brasília.364
364
Carta de Henriqueta a Oswaldino Marques, 05 nov. 1978. Acervo dos
Escritores Mineiros. Belo Horizonte, 5 nov. 1978.
poderei ver os novos poemas? Terei que esperar
Poesias Completas de cuja edição ouço falar?365
365
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 9 dez. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 177.
366
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 206.
soneto. Se você tivesse me dado outros conselhos,
o meu livro sairia mais magro porém certamente
mais belo.367
367
MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade &
Manuel Bandeira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Instituto
de Estudos Brasileiros, USP, 2000, p. 111.
368
ANDRADE, Mário de. O banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 111.
Digo-o convicta e iluminada, embora não saiba
explicar-me suficientemente.
Ainda não tivemos nas nossas letras uma
expressão mais genuína de brasilidade, uma
espontaneidade tão vasta, uma abundância tão
numerosa de tudo o que marca a feição de nossa
gente, os acidentes de nossa terra.
E não é apenas no conteúdo que se revela esse
estigma de nacionalidade. Na própria forma de
mão aberta, ao Deus dará, no ritmo desigual,
geralmente preguiçoso, como que inseguro, no
baralhado do assunto (planos superpostos, visão
ofuscando visão, vozes a um tempo) nessa técnica
magistralmente desgovernada, apagada pela
realidade artística, encontro o brasileiro do Brasil
por acaso e, sem antítese, o brasileiro exato a
quem a cultura não conseguiu domesticar e que
guarda, por isso, toda a sua pujança original.
Nenhuma coação se infiltra no seu mundo poético.
Mário, você o criou como se nenhum poeta
houvesse existido antes!369
369
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 8 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 181.
cercam, essa afirmativa tem o efeito de uma
verdadeira denúncia do que tenho sido em poesia.
E isso foi tão mais grato pra mim, que não só
ninguém nunca percebeu isso, como só frases em
contrário tenho ouvido.370
370
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 183-184.
371
Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 26 mai. 1926. MORAES,
Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira.
São Paulo, 2000, p. 165.
um potrinho selvagem que ele ainda não
conseguiu domar.372
372
ATAÍDE, Tristão de. In: O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out. 1925, e Estudos
literários, 1, p. 959. Apud ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de
Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record,
1988, p. 64.
373
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, out. 1925.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, s/p.
374
Mário acabou não recebendo a crítica esperada de nenhum dos dois amigos.
eu sou. Mas ponha reparo nos que escrevem sobre
mim: sou fácil como água pra eles, questão fácil
de resolver, dois mais dois. Tenho esperança em
você que soube falar sobre Hard e inda melhor de
vez em quando inventa coisas.375
375
Carta de Mário de Andrade a Sérgio Buarque de Holanda,22 abr. 1928.
MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade/ Sérgio Buarque de
Holanda: Correspondência. São Paulo: Companhia das Letras / Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB) / Edusp, 2012, p. 96.
novas, combinações de sons simultâneos ou
harmônicos – acorde harpejado – superposição de
frases melódicas ou polifonia poética, seguindo
sua própria discriminação. (...) O ritmo, em sua
poesia, é fator preponderante. Raramente se
encontra exemplo de maior fidelidade rítmica ao
assunto, de maior justeza e adequação do
movimento ondulatório do verso no seu
significado.
A linguagem coloquial que adota e constitui a
principal característica de poesia do século
decorre de seu desejo de autenticidade,
testemunho a uma quase tangível presença
humana. Repudia-se de vez as faltas atitudes
românticas, os voos do condor, a sedução das
sonoridades. (....)
Dentro de uma saudável normalidade e um gosto
extraordinário pela vida, teve altas preocupações
de espírito, sem perder-se em devaneios inócuos.
Não por qualquer deficiência, mas por humildade
de esteta reconhecer a penúria da palavra diante
do sobrenatural, e muito por fidelidade aos
postulados de homem pertencente ao seu tempo,
proferiu os motivos da existência diária, mas no
que ela tem de dramático, dramatizando o
acessório e circunstancial. Essas, as suas melhores
intenções. Além do que, a um exame detido de
sua obra, nota-se aqui e ali uma busca sui-generis
das essências do bem e da verdade. “A Meditação
sobre o Tietê”, a exigir um estudo em
profundidade, assim o confirma.376
377
ANDRADE, Mário. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 147.
378
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 01 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 144.
como Portinari, Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Flávio
de Carvalho, Di Cavalcanti, Hugo Adami, entre muitos outros, fizeram
dele.379
Mário expressa a sua preferência pelas telas de Portinari, Segall e
Carvalho, que “tinham sido vates e poetas” ao pintar o seu retrato. O
escritor explica que Flávio de Carvalho o respeitava e admirava,
enquanto ele, por sua vez, não apreciava muito a sua pintura, por achar
que o artista sujava as cores nas misturas que fazia. Mário chegou
inclusive a fazer uma crítica bastante severa à sua pintura na imprensa.
Ele conta a Henriqueta que, enquanto posava para ter o seu retrato
pintado pelo artista, teria tido a nítida impressão de ter sido capaz de
influenciar silenciosamente o trabalho dele: (...) “Quando fui olhar o já
feito, fiquei completamente surpreendido. (...) A técnica era outra, era
outro Flávio, pinceladas curtas, matéria não mais gorda como é
geralmente a dele, mas rica, muito menos voluptuosa, porém mais bem
achada, e que cores lindas, claras, limpas!”380
Mário conta ainda que algo semelhante havia ocorrido quando
teve o seu retrato pintado por Portinari, que se mostrava agradecido por
uma crítica positiva que ele havia feito a um quadro seu num artigo.
Portinari teria então pintado o retrato de Mário buscando expressar o
melhor do amigo, chegando mesmo a compará-lo a um santo espanhol
de madeira do século 13. “Mas sei o que ele queria dizer, vendo atrás da
minha feiura dura e minha cor que são bem de madeira, uma bondade, o
sujeito bom que ele exigia de mim pra me querer bem”.381
A tela de Segall, por outro lado, revela um lado mais negativo de
Mário: “É subterraneamente certo, mas, sem vanglória, o do Portinari é
mais certo, porque é o eu de que eu gosto, que sou permanentemente e
que chora, ainda e sempre vivo, mesmo quando a parte do Diabo
domina e age detestada por mim. Esse quadro do Segall não fui eu que
fiz, juro.”382
379
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. de 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 167.
380
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. Ibidem, 2010,
p. 155.
381
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 146.
382
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. Ibidem, 2010,
p. 159.
Nesse jogo de espelhos, Mário buscava desvelar a si próprio, por
intermédio da obra dos pintores, assim como esperava conhecer melhor
a sua poesia com o auxílio dos críticos. Ele, porém, não se colocava
passivamente nessa descoberta de si, ao contrário, ajudava a construir a
sua própria imagem. Conforme observa Eneida Maria de Souza, “ao
expor a subjetividade por intermédio da imagem que o outro compõe de
si, o sujeito percebe ser também coautor no ato de elaboração do seu
retrato. Comporta-se como o eu que se afasta e se aproxima de sua
própria imagem”.383 O retrato, afinal, não estava acabado nem era mero
reflexo da realidade, mas se mostrava em constante processo de
transformação, descoberta e invenção. A arte, nessa perspectiva, é vetor
de autoconhecimento e de construção de si mesmo e do mundo. Nas
palavras de Mário: “Existo dentro da minha primeira realidade que é a
arte.”384
A relação de amizade que se estabeleceu entre Mário e Portinari
se baseava em afinidades artísticas e eletivas, mas também envolvia
interesses mútuos em termos de promoção pessoal e institucional. Ter o
retrato pintado por um artista reconhecido trazia prestígio e status para o
retratado, principalmente para um crítico e colecionador de arte, como
Mário. E o retrato de Mário pintado por Portinari era considerado pelo
artista o seu melhor retrato – e pelo escritor modernista também. “O seu
fascínio pelos artistas plásticos e suas obras tinha tanto a ver com seus
interesses de ordem propriamente intelectual como com suas veleidades
de grandeza social e refinamento mundano”, observa Sérgio Miceli.385
De acordo com Miceli, Portinari beneficiava-se dessa amizade
com solicitações de textos para catálogos, artigos para divulgação na
imprensa e mesmo monografias de maior fôlego. Para o autor, Mário
desempenhou um papel decisivo no trabalho de legitimação e
consagração de seu nome no campo cultural interno e para a divulgação
internacional da obra do artista. Além disso, Miceli observa que a
progressiva conversão de Portinari num artista oficial modelar, a partir
do convite para criar os murais internos e externos do novo prédio do
383
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999, p. 204.
384
HÜHNE, Leda Miranda. A estética aberta de Mário de Andrade. Rio de
Janeiro: UAPE, 2002, p. 33.
385
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: Retratos da elite brasileira (1920-
40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 84.
Ministério da Educação, em 1936, ocorreu justamente ao tempo da
gestão de Mário à frente da Secretaria de Cultura de São Paulo.386
Portinari foi apresentado a Mário por iniciativa de Manuel
Bandeira, por ocasião do Salão de 1931, ou Salão Revolucionário, como
ficou conhecida a 38ª Exposição Geral de Belas Artes, em razão de ter
abrigado, pela primeira vez, artistas de perfil moderno e modernista –
entre eles, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Victor
Brecheret. Em carta a Henriqueta, Mário conta que, ao ver um trabalho
de Portinari no Salão, logo o teria eleito como o melhor da exposição:
386
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: Retratos da elite brasileira (1920-
40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 84.
387
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 154.
Flávio de Carvalho.
Retrato de Mário de
Andrade. 1939.
Óleo sobre tela. 111
x 80,0 cm. Coleção
MA n- Artes
Plásticas, IEB-USP.
388
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: Retratos da elite brasileira (1920-
40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 84.
diz na Lapa. E quando escrevi a minha crítica,
embora concordasse no íntimo com duas ou três
das reservas feitas pelo Segall, fiz outras e não
essas e principalmente muitos elogios. O que
causou um primeiro “resfriado” nas minhas
sempre até então ótimas relações com o russo-
israelita. Depois... 389
389
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 146.
390
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 233.
391
Ibidem, 2010, p. 234.
392
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. Ibidem 2010,
p. 235.
perceber que a sua obra destila um veneno sub-reptício, de gotinhas
imperceptíveis, que desgraça os outros. Mas, a seguir, questiona: “Será
que esse veneno existe? Não chego a saber com consciência.”393 E
observa haver em seus contos uma incongruência pueril, pois neles o
escritor se mostra como uma pessoa moralmente condenável, mas no
final acaba deixando transparecer as suas virtudes:
393
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 235.
394
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 235.
395
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 236.
396
ANDRADE, M. de. Eu sou trezentos. In: De Pauliceia Desvairada a Café -
Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.
Essa multiplicidade remete não apenas às nuances de sua
personalidade, mas também à sua aspiração de se projetar no outro e
comungar com o povo de seu país, incorporando em sua subjetividade a
unidade paradoxal da multiplicidade. Mário rompe com a barreira entre
o intelectual e o povo e se coloca como parte integrante dele, utilizando
a sua individualidade para dar voz à multiplicidade desse povo e
transfigurá-la em seu eu lírico, numa tensão permanente entre o
individual e o coletivo. Nas palavras de Wilson Martins: “Ele foi
trezentos, trezentos e cinquenta, sem se fragmentar, e, ao contrário
completando-se incessantemente a si mesmo. Na sua multiplicidade, ele
tinha a “vocação da unidade” – a vocação que lhe inspiraria certa
ocasião o admirável poema inicial do Remate de males”.397
No texto “O Mário que eu conheci” , Antonio Candido descreve a
personalidade do amigo, que pertencia a uma geração anterior à sua,
mas que teve oportunidade de conhecer em 1940, a partir de uma visita
que ele lhe fez, ao lado de Paulo Prado e Paulo Emilio Salles Gomes. O
crítico passou então a manter com Mário “relações cordiais mas meio
cerimoniosas, embora se vissem com certa frequência”, já que a partir
de 1942 ele namorou a sua prima, Gilda de Moraes Rocha, que morava
com o escritor:
397
MARTINS, Wilson. A ideia modernista. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p.
266.
fundo envidraçado sobre o Vale do Anhangabaú.
Sentava numa mesa redonda de canto, perto do
balcão, e ia consumindo sucessivas "pedras", que
são canecas grandes de louça clara. Os amigos
sabiam que podiam encontrá-lo no Franciscano e
ele costumava marcar encontros lá, por vezes à
tarde.398
398
CANDIDO, Antonio. O Mário que eu conheci. In: Eu sou trezentos, eu sou
trezentos e cincoenta. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008.
Certas dores voltaram, muito parecidas com as
antigas, possivelmente derivadas da úlcera. Isso é
recentíssimo, questão de doze dias pra cá. Mas
agora não é nem mais da úlcera, nem do fígado,
dizem que deve ser algum foco de infecção.
Descobriram que as amídalas estão infectadas e
vou fazer operação delas que, na minha idade, é
coisa muito penosa e exige cuidados. Estou uma
pilha, que as indecisões e dúvidas e delicadezas
ainda ajudam a estourar mais. Mas se vê pelas
minhas cartas de todos os tempos que se eu quero
me gastar e não conservar a vida, não se trata de
nenhuma desistência, de nenhuma covardia atual,
de nenhum suicídio. É questão de temperamento,
de realidade instintiva do meu ser. Tudo
organizado em norma de vida, reconheço, mas
isto é porque eu sou mesmo organizado, o
"professor". Mas fundamentalmente
temperamental. "Oh sono, vem!... que eu quero
amar a morte, com o mesmo engano com que
amei a vida." Amém.399
399
ANDRADE, Mário. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 203.
carreira como professora do ensino superior na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras Santa Maria, da Universidade Católica de Minas
Gerais (posterior PUC/MG), em 1943, onde passou a lecionar literatura
brasileira e hispano-americana. Henriqueta contou a novidade a Mário
em fevereiro de 1943: “E já sou catedrática da Faculdade, sabe? Meio
contente, meio preocupada, estudando como posso, com interrupções
mortificantes – ah! Se eu tivesse um refúgio de silêncio”! – Preparando-
me para transmitir um conceito sadio de literatura, o que é difícil...”400
Henriqueta atuou também como Inspetora Federal de Ensino
Secundário, conforme relata em carta a Mário: “Esta segunda quinzena
de novembro vai ser penosa para a Inspetora de Ensino. Com os exames
escritos e orais há um grande acúmulo de deveres. E o pior é que acho a
cousa de uma insipidez ímpar!”401
A poeta mineira foi ainda membro do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais e professora de Literatura Geral da Escola
de Biblioteconomia da UFMG. Em 1963, tornou-se a primeira mulher
eleita para a Academia Mineira de Letras. Em março daquele ano, ela
resume para Mário a sua trajetória até então:
400
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 fev. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 216.
401
Carta de Henriqueta Lisboa para Mário de Andrade, 15 nov. de 1940.
Ibidem, 2010, p. 129.
a morte de minha irmã... Em 1935 estávamos
afinal em Belo Horizonte: tudo melhorara, eu
tinha uma colocação relativamente boa. Aqui me
sentia capaz de viver, principalmente diante de
uma janela bem aberta, entre os meus livros e
rabiscos. Mas as cousas passadas redundaram para
mim em consciência da própria dignidade,
resistência, capacidade de compreensão e de
escolha, dom de amizade, de amor. Para que nós
pudéssemos reconhecer um ao outro. Vivendo
neste mesmo Brasil, neste mesmo século vinte,
nesta mesma tribulação pelas cousas ideais. Poder
misterioso de Deus! Por nós dois.402
402
Carta de Henriqueta Lisboa para Mário de Andrade, 30 mar. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 249-250.
atravessava, mostrando-se desgostoso com o emprego no Ministério da
Saúde, no Rio de Janeiro:
403
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 27 dez. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 132.
404
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1941. Ibidem,
2010, p. 134.
Paulo; empenhar-se para conseguir fundos pra comprar uma obra de
Portinari; ensaios de concerto de Mignone; ajudar na exposição de
Enrico Bianco, um pintor amigo; escrever crítica sobre a Exposição De
Fiori; atender à encomenda de quatro artigos para jornais; escrever
conferência pra Cultura Artística sobre Romantismo na Música.405
Para dar conta de tantos afazeres, Mário provavelmente precisou
sacrificar a sua vida pessoal, como observa Sérgio Miceli:
405
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 138-139.
406
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, p. 230.
407
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, set. 1941. Ibidem, 2010,
p. 165.
escrevendo um romance, preparando o meu curso do ano que vem. Isso
que eu devia fazer. “408
O escritor reclama da rotina do intelectual, de seus compromissos
constantes com conferências e artigos, da falta de tempo para se dedicar
à produção literária, da saúde frágil. Não bastasse tudo isso, havia ainda
a sombra da Segunda Guerra: “É a guerra, a guerra em si, a chegada
mortífera da primavera que me arrombou todas as últimas comportas do
equilíbrio”.409
O contexto histórico se mostrava bastante inóspito aos escritores,
seja por causa da ditadura no país ou da guerra, como expressa
Henriqueta: “Ó este cemitério florido que é Belo Horizonte, este pão
nosso de cada dia, tanta inutilidade, tanta incompreensão, e esses
horrores de guerra, guerra e mais guerra, a gente chega a ouvir os gritos
da distância!”410
Em meio a um excesso de afazeres diários, a busca por alcançar
uma disciplina para aproveitar bem o tempo era uma preocupação
constante de Mário. Ele confidencia à amiga que até utilizava um
caderno de anotações em que atribuía a si mesmo notas pelo seu
rendimento diário: “Eu sou muito infantil... Não há dúvida nenhuma que
o caso de tomar nota diariamente do que faço e do que preciso fazer e
ainda por cima me atribuir ao dia uma nota de aprovação vital,
contribuiu decisoriamente pra eu me enriquecer assim de... de
vivência(!).”411
Henriqueta acha graça na iniciativa do amigo e lembra que ela
própria tinha um caderninho desses na época em que estudava no
Colégio, onde toda aluna devia dar a si mesma a nota da véspera e ela
sempre merecia a nota máxima: “(...) às vezes me escandalizava com as
outras que se atribuíam notas imerecidas, às vezes com o som da minha
própria voz. Hoje percebo o quanto era exagerada de escrúpulos.
408
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 20-22 mar. 1942.
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 202.
409
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 26 abr. 1942. Ibidem,
2010, p. 206.
410
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 27 dez. 1040. Ibidem, 2010,
p. 133.
411
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 232.
Naquele tempo eu merecia sempre a nota máxima. Agora estou cansada,
medíocre.” 412
A poeta mineira também precisava se desdobrar em sua rotina
para dar conta dos trabalhos como inspetora e conciliá-los com a
carreira literária: “Agora estou com a inspeção de dois ginásios
(provisoriamente), menos tempo de estudar e rabiscar o que é meu e os
mesmos 900$ mensais.”413
Apesar de seu esforço para se dedicar à sua arte, Mário deixou
alguns trabalhos inconclusos ao final de sua vida. Segundo Marcos
Antonio de Moraes. no ano de sua morte, em 1944, quando tinha 51
anos, ela ainda tinha vários projetos por realizar: “Mário tinha planos de
concluir seu livro O sequestro da Dona Ausente, retomar os estudos de
folclore musical, pôr em marcha O Pico dos Três Irmãos, aprofundando
o estuda da poesia de Bandeira, Drummond e Murilo Mendes. E
reservar ‘um bom espaço pras cartas”’.414
Henriqueta, por sua vez, tinha planos de se dedicar também à
formação artística das professoras mineiras. Após ler o livro Educação
Estética do Homem, de Schiller, ela começou a pensar numa renovação
do mundo pela beleza e em criar um curso de educação estética voltado
para as professoras primárias, uma classe que a poeta mineira
considerava sacrificada economicamente e sem acesso à cultura: “Que
cousa maravilhosa, passar o mundo da vida dos sentidos para a vida
moral através da educação estética!”415
Para a poeta mineira, a criação artística implicava não apenas o
desenvolvimento de uma obra de arte, mas deveria servir também para
se buscar o aprimoramento de si mesma:
412
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 dez. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 237.
413
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 jul. 1942. Ibidem, 2010,
p. 215.
414
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, s/n.
415
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 mai. 1943. Ibidem,
2010, p. 254.
completam a si mesmos. Eu não queria desgostar
você dizendo – e tomo o exemplo mais alto – que
Manuel Bandeira é o poeta que não se completou
a si mesmo. A ninguém mais o diria, porque me
parece uma injustiça ferir exatamente aquele que
tanto nos tem dado. – Por outro lado, aqueles que
querem transcender a si próprios nos reinos
filosóficos perdem contato com a substância
artística: Tasso da Silveira, tipo clássico, só
permitindo certa beleza ideal, Murilo Mendes
ultramoderno, querendo emprestar aos sentidos
uma função sobrenatural, Alphonsus Filho
arrastado pela força de uma inspiração que ele não
sabe deter, tantos outros! Foge a essas
observações a poesia do Schmidt que é
geralmente pura mas que se prejudica pela
abundância; a origem é pura – vinho doce – mas
vem muitas vezes misturado com água esse
vinho.416
416
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade,10 mar. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 246.
417
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 25.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
realizarmos para algo de superior a nós. Essa
divergência de objetivos entre as duas cousas que
são para nós, às vezes, uma só cousa – arte e vida
– torna mais intrincados os problemas morais do
artista. 418
418
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 10 abr. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 202.
419
DASSIN, Joan. Política e Poesia em Mário de Andrade. São Paulo: Duas
Cidades, 1978, p. 130.
compromisso de não fazer uma Mãe sofrer...
Bolas!420
420
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 mar. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 128-129.
421
ANDRADE, Mário de. O banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 64.
422
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 mar. 1944. Ibidem,
2010, p. 304.
423
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo
literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 65.
função do sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura
desses bens, transformações correlatas à constituição progressiva de um
campo intelectual e artístico, ou seja, à autonomização progressiva do
sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens
simbólicos. Tal processo foi acelerado pela Revolução Industrial e o
desenvolvimento de uma indústria cultural – em particular, devido à
relação que se instaura entre a literatura e a imprensa, que favorece a
produção em série de obras elaboradas segundo métodos semi-
industriais (como o folhetim) e facilita o acesso ao consumo cultural
(com a leitura de romances, por exemplo). A partir de 1830, a sociedade
literária isola-se na indiferença ou hostilidade em relação ao público que
compra e lê, ou seja, isola-se do “burguês”. A produção cultural
tenderia, a partir daí, a obedecer à sua lógica própria, qual seja, a da
superação permanente determinada pela dialética da distinção
propriamente cultural. 424
A vida intelectual e artística, até então dependente da Igreja e da
aristocracia, havia se libertado gradualmente, tanto econômica quanto
socialmente, de instâncias de legitimidade externas, bem como de suas
demandas éticas e estéticas. Tal processo sucedeu em meio a uma série
de outras transformações: a) a constituição de um público de
consumidores virtuais cada vez mais extenso e diversificado, capaz de
propiciar aos produtores de bens simbólicos não somente as condições
mínimas de independência econômica, mas concedendo-lhes também
um princípio de legitimação paralelo; b) a constituição de um corpo
cada vez mais numeroso e diferenciado de produtores e empresários de
bens simbólicos, cuja profissionalização faz com que passem a
reconhecer somente um certo tipo de determinações, como por exemplo
os imperativos técnicos e as normas que definem as condições de acesso
à profissão e de participação no meio; c) a multiplicação e a
diversificação das instâncias de consagração competindo pela
legitimidade cultural, como por exemplo as academias, os salões (onde a
aristocracia mistura-se com a intelligentsia burguesa e passa a adotar
seus modelos de pensamento e suas concepções artísticas e morais), e
das instâncias de difusão, cujas operações de seleção são investidas por
uma legitimidade propriamente cultural, ainda que (...) continuem
subordinadas a obrigações econômicas e sociais capazes de influir, por
seu próprio intermédio, sobre a própria vida intelectual.425
424
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução,
organização e seleção Sergio Miceli. São Paulo: Perspectriva, 2007, p. 106.
425
Ibidem, 2007, p. 99.
Assim, o processo de autonomização da produção intelectual e
artística é correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta
de artistas ou de intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a
levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição
propriamente intelectual ou artística herdada de seus predecessores.
Porém, a ruptura dos vínculos de dependência em relação a um patrão
ou a um mecenas e em relação a encomendas diretas propicia ao artista
uma liberdade que logo se lhe revela formal, sendo apenas a condição de
sua submissão às leis do mercado de bens simbólicos, que (...) surge
através dos índices de venda e das pressões dos detentores dos
instrumentos de difusão, editores, diretores de teatro, marchands de
quadros.426
Segundo Bourdieu, o grau de autonomia de um campo de
produção erudita pode ser medido com base no poder de que dispõe para
definir as normas de sua produção, os critérios de avaliação de seus
produtos e, portanto, para retraduzir e reinterpretar todas as
determinações externas de acordo com seus princípios próprios de
funcionamento.427 Segundo o autor, o campo literário e artístico
constitui-se como tal na e pela oposição a um mundo “burguês”:
426
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução,
organização e seleção Sergio Miceli. São Paulo: Perspectriva, 2007, p. 104.
427
Ibidem, 2007, p. 106.
428
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte, Gênese e estrutura do campo
literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 65.
Porém, de acordo com o pesquisador Luciano Martins, o campo
cultural brasileiro nas primeiras décadas do XX não configurava um
campo cultural no sentido formulado por Bourdieu, pois se encontrava
ainda “em aberto, por estruturar-se; uma estruturação que pode obedecer
a uma outra lógica”.429 Para ele, a intelligentsia que se constituiu no
Brasil, no início dos anos 1920, fracassou no momento de estruturar um
campo cultural, pois prescindia de instituições próprias e sentia a
constante intervenção do Estado, principalmente sobre as universidades,
já nos anos 1930.430 Além disso, cerca de 56% da população brasileira
era analfabeta.
Guardadas as proporções, podemos fazer uma aproximação entre
as transformações ocorridas na vida cultural brasileira no início do
século XX com aquelas que se passaram na França no fim do século
XVIII, em que se verifica o surgimento de um estilo de vida boêmio e
associado às artes em oposição à burguesia. Segundo Bourdieu, com a
reunião de uma população muito numerosa de jovens que aspiram a
viver da arte, e separados de todas as outras categorias sociais pela arte
de viver que estão começando a inventar, verifica-se na Europa, desde o
fim do século XVIII, o surgimento de uma verdadeira sociedade na
sociedade.431 O estilo de vida boêmio, que se elaborou tanto quanto
contra as rotinas da vida burguesa quanto contra a existência bem-
comportada dos pintores e dos escritores oficiais, trouxe uma
contribuição importante à invenção do estilo de vida de artista, com a
fantasia, o trocadilho, a blague, as canções, a bebida e o amor sob todas
as suas formas.432
Realidade ambígua, a boemia desafia classificações: próxima do
"povo", com o qual frequentemente partilha a miséria, ela está separada
dele pela arte de viver que a define socialmente e que, mesmo que a
oponha ostensivamente às convenções e às conveniências burguesas, a
situa mais perto da aristocracia ou da grande burguesia que da pequena
burguesia bem-comportada (...).433 Sintoma disso é a proximidade entre
os modernistas brasileiros e a aristocracia cafeeira, no início do século
429
MARTINS, Luciano. A gênese de uma intelligentsia: os intelectuais e a
política no Brasil – 1920 a 1940. Revista brasileira de ciências sociais, São
Paulo, v. 2, n. 4, p. 65-87, jun. 1987.
430
Ibidem, p. 65-87, jun. 1987.
431
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte, Gênese e estrutura do campo
literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 72.
432
Ibidem, 1996, p. 72.
433
Ibidem, 1996, p. 73.
XX. Porém, durante a era Vargas, a burguesia industrial se fortaleceu e
passou a ocupar posições de mando, enquanto o poder das oligarquias
agrárias declinava. A classe média e o operariado cresceram e se
tornaram cada vez mais participantes da vida política, principalmente a
partir de 1930.
De acordo com Antonio Candido, no Brasil do final do século
XIX, a literatura ampliou o seu público após haver-se incorporado ao
civismo da Independência; além disso, ganhou aceitação pelas
instituições governamentais, com a decorrente dependência em relação
às ideologias dominantes.434 Os escritores tinham então o seu
comportamento controlado, na medida em que eram geralmente
funcionários do governo ou recebiam algum tipo de apoio oficial.
Segundo o crítico, verifica-se uma mudança ao longo do século, devido
em parte às próprias faculdades jurídicas: a reação ante essa ordem
excessiva teria se dado por iniciativa do boêmio e do estudante, que
muitas vezes eram o escritor antes da idade burocrática”.435 Oswald de
Andrade, no prefácio que escreveu para Serafim Ponte Grande, em
1933, chama a atenção para o fato de que a crítica à burguesia teria
surgido no Brasil a partir do boêmio, e não do proletário: “A situação
‘revolucionária’ desta bosta mental sul-americana apresentava-se assim:
o contrário do burguês não era o proletário - era o boêmio!"436
Antonio Candido assinala ter havido alterações importantes no
panorama cultural brasileiro na primeira metade do século XX,
“principalmente com a ampliação relativa do público, o
desenvolvimento da indústria editorial, o aumento das possibilidades da
remuneração específica. Em consequência, houve certa desoficialização
da literatura, que havia se tornado refém dos padrões acadêmicos, em
que o escritor era visto como “ornamento da sociedade”.437
De acordo com Sérgio Miceli, a possibilidade de a elite
intelectual ter acesso às profissões ligadas ao poder no Brasil daquela
época dependia, em grande parte, da relação de proximidade dessas
classes sociais à elite econômica da classe dominante e de seu capital
434
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz,
2000; Publifolha, 2000, p. 75.
435
Ibidem, 2000, p. 77.
436
ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. Maria Augusta Fonseca
(org.). São Paulo: Globo, 2000, p. 55.
437
Ibidem, 2000, p. 79.
cultural e social.438 Segundo o autor, os intelectuais brasileiros
descendentes das classes abastadas, geralmente vinculados à oligarquia
e ao mecenato burguês, utilizaram estratégias e jogos de influência para
ocupar postos de trabalho criados nos setores públicos e privado entre
1920 e 1945, sobretudo após a derrota política da oligarquia, em 1930:
438
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, s/p..
439
Ibidem, 1979, p. XX.
440
ANDRADE, Mário de. O banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 66.
contribuído para a negação da ordem estabelecida, “sem a qual não se
desenvolve a rebeldia social e o consequente radicalismo político”.441
Segundo Mário, o modernismo prefigurava, além da revolução
estética, uma arte dirigida em sentido social, propagadora de ideias,
como defende no artigo sobre o movimento publicado em O
Empalhador de Passarinho:
441
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz,
2000; Publifolha, 2000, p. 123.
442
ANDRADE, Mário. “Modernismo”. In: O Empalhador de Passarinho. São
Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 157.
aquelas do homem, mas da obra de arte a ser produzida. Por isso, requer
um habitus – adquirido a partir do exercício e uso – voltado para a obra
de arte, e não para o homem.443 Esse conceito de habitus da arte se
distingue da noção de hábito mecanizado e subordinado a uma rotina
que conhecemos no senso comum, e significa exatamente o oposto a ele.
Segundo o autor, o habitus operativo da arte, que possui
qualidades estáveis e atesta a atividade do espírito, reside principalmente
em uma atividade imaterial, baseada na inteligência ou na vontade.
Enquanto saúde e beleza são habitus do corpo, a alma exige um habitus
voltado para a ação, capaz de aperfeiçoá-la em seu próprio dinamismo:
os habitus operativos, que constituem as virtudes intelectuais e
morais.444 Esse habitus é uma virtude, isto é, uma qualidade que,
triunfando sobre a indeterminação original da faculdade intelectual, e ao
mesmo tempo afiando e temperando a sua atividade, projeta, com
referência a um objeto definido, uma meta máxima de perfeição e,
portanto, de eficiência operativa e dos meios de expressão.445 Mas se a
arte é uma virtude do intelecto prático, e se toda virtude tende
exclusivamente ao bem (isto é, ao verdadeiro, no caso de uma virtude do
intelecto), devemos concluir a partir disso que a arte como tal nunca se
engana, e que implica uma inviolável retidão. Caso contrário, ela não
seria um habitus propriamente dito, estável em sua própria natureza.446
São Tomás de Aquino já havia apontado, na “Summa contra os
Gentis”, que o exercício de uma prática artística não pode constituir a
felicidade do homem:
443
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 8.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
444
Ibidem, 2005, p. 25.
445
Ibidem, 2005, p. 9.
446
Ibidem, 2005, p. 10.
sendo eles feitos para uso dos homens, o homem é
a finalidade da obra e não o inverso.447
447
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 145.
448
Ibidem, 2018, p. 146.
449
Ibidem, 2005, p. 6.
450
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 11.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
451
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 15.
Segundo Foucault, a noção de epiméleia heautoû (cuidado de si
mesmo) envolve uma atitude geral, um certo modo de encarar as coisas,
de estar no mundo, de praticar ações e ter relações com o outro. Trata-se
de uma atitude – para consigo, para com os outros, para com o mundo.
Ela implica uma conversão do olhar, que se o conduza do exterior para o
“interior”, para “si mesmo”, que se esteja atento ao que se pensa e ao
que se passa no pensamento. Além disso, a noção de epiméleia envolve
sempre algumas ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas
quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos
transformamos e nos transfiguramos. Daí, uma série de práticas, como
as técnicas de meditação, memorização, exame de consciência,
verificação das representações na medida em que elas se apresentam ao
espírito, etc.452
De acordo com o filósofo, o gnôthi seautón (conhece-te a ti
mesmo), princípio adotado pela cultura ocidental a partir do “penso,
logo existo” de Descartes, está atrelado – e mesmo subordinado – ao
princípio do epiméleia heautoû (cuida de ti mesmo).453 Para o autor, esse
princípio se mostra fundamental para caracterizar a cultura filosófica ao
longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana e também é
encontrado também no limiar do cristianismo, seja na espiritualidade
alexandrina ou no ascetismo cristão. 454
Foucault questiona então por que, a despeito de tudo, a noção de
epiméleia heautoû (cuidado de si), que perdurou cerca de mil anos,
desde as primeiras formas de atitude filosófica até o ascetismo cristão,
foi desconsiderada no modo como o pensamento ocidental refez a sua
própria história: “O que aconteceu para que se tenha privilegiado tão
fortemente o "conhece-te a ti mesmo" e se tenha deixado de lado essa
noção de cuidado de si?”455
Em busca de uma resposta, ele observa haver alguma coisa um
tanto perturbadora no cuidado de si, pois essa injunção soa como a
expressão um pouco melancólica e triste de uma volta do indivíduo
sobre si, incapaz de sustentar uma moral coletiva e que nada mais teria
senão ocupar-se consigo mesmo.456
452
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 15.
453
Ibidem, 2006, p. 7.
454
Ibidem, 2006, p. 12.
455
Ibidem, 2006, p. 16.
456
Ibidem, 2006, p. 16.
Além disso, ele aponta que é a partir da injunção de “ocupar-se
consigo mesmo” que se constituíram as mais austeras, rigorosas e
restritivas morais que o Ocidente conheceu (moral estoica, moral cínica
e, até certo ponto, também moral epicurista). “Temos, pois, o paradoxo
de um preceito do cuidado de si que, para nós, mais significa egoísmo
ou volta sobre si, mas que, durante tantos séculos, foi, ao contrário, um
princípio positivo”.457
Foucault destaca ainda que as regras austeras do "ocupa-te
consigo mesmo" foram por nós retomados e reaparecerão, quer na moral
cristã, quer na moral moderna não-cristã, porém, em um clima
inteiramente diferente. Essas regras austeras foram por nós
reaclimatadas e transpostas para o interior de um contexto que é o de
uma ética geral do não-egoísmo, seja sob a forma cristã de uma
obrigação de renunciar a si, seja sob a forma "moderna" de uma
obrigação para com os outros.458
Ele acredita, porém, haver um motivo bem mais essencial para
esse princípio ter sido deixado de lado, e que concerne ao problema da
verdade e da história da verdade: o "momento cartesiano", que atuou de
dois modos, seja requalificando filosoficamente o gnôthi seautón
(conhece-te a ti mesmo), seja desqualificando, em contrapartida, o
epiméleia heautoû (cuidado de si).459 Assim, o procedimento cartesiano
requalificou o gnôthi seautón e contribuiu para desqualificar o princípio
do cuidado de si e excluí-lo do campo do pensamento filosófico
moderno.460
Porém, segundo Foucault, se chamarmos "filosofia" a forma de
pensamento que se interroga, não certamente sobre o que é verdadeiro e
falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e
falso, sobre o que nos torna possível ou não separar o verdadeiro do
falso e que permite ao sujeito ter acesso à verdade, poderíamos chamar
de "espiritualidade" o conjunto de buscas, práticas e experiências tais
como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar,
as modificações da existência, etc., que constituem, não para o
conhecimento, mas para o sujeito, o preço a pagar para ter acesso à
verdade.461
457
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 17.
458
Ibidem, 2006, p. 17.
459
Ibidem, 2006, p. 18.
460
Ibidem, 2006, p. 19.
461
Ibidem, 2006, p. 19.
Nesse sentido, escrever mostra-se parte de uma prática ascética
em que a criação da obra seria relegada a segundo plano, para
empreender a transformação do sujeito que escreve e ao seu progresso
espiritual. Mas por que o trabalho sobre si, que há de conduzir à
libertação espiritual, precisa do trabalho na produção de uma obra? Essa
é a pergunta que faz Agamben no ensaio Opus Alchymicum, de O fogo
e o relato.462
Segundo Agamben, um exame dos fragmentos em que Foucault
evoca o tema do “cuidado de si” mostra que ele não se situa nunca em
um contexto estético, mas sempre na de uma investigação ética.463 Para
o filósofo, “o resultado de uma aproximação imprudente entre a prática
artística e o trabalho sobre si é o apagamento da obra”, o que fica
evidente nas vanguardas: “A primazia atribuída ao artista e ao processo
criativo ocorre nesse caso, curiosamente, à custa daquilo que se supunha
que eles produzissem. A intenção mais profunda do dadaísmo não se
voltava tanto contra a arte (...) e contra a obra, que era destituída e
ridicularizada”.464 Porém, com a abolição da obra também desaparece
inesperadamente o trabalho sobre si:
462
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 140.
463
Ibidem, 2018, p. 159.
464
Ibidem, 2018, p. 146.
465
Ibidem, 2018, p. 147.
poiesis para o da práxis. Desse modo, se mostram condenadas a abolir a
si mesmas para se transformarem em movimento político.466
Algo semelhante teria ocorrido na alquimia, em que a
transformação dos metais deveria ocorrer concomitantemente com a
transformação do sujeito, e que a busca e a produção da pedra filosofal
coincidam com a criação ou recriação espiritual do sujeito que as
realiza.467
Por outro lado, podemos pensar que trabalhar em uma obra de
arte tem sentido apenas se coincide com a edificação de si mesmo, o que
tornaria a vida a pedra de toque da obra. Nessa perspectiva, “a
verdadeira obra é a vida, e não a obra escrita”, e a criação literária se
mostra um processo de autotransformação em que a escrita transmuta o
poeta em vidente.468
Esse teria sido, segundo Agamben, o caminho escolhido por
Arthur Rimbaud, o poeta de Uma estação no inferno, para quem o
trabalho sobre si é o único meio para ter acesso à obra: “é a obra literária
como protocolo de uma operação realizada sobre si mesmo”.469
Segundo Agamben, a decisão de Rimbaud de abandonar a poesia para
vender armas e camelos na Abissínia e em Áden nos trouxe a
consciência da tentativa romântica de unir a prática mística e a poesia, o
trabalho sobre si na produção de uma obra: “Não admira, então que
perante esse círculo vicioso, o autor tenha muito cedo se sentido
nauseado tanto com sua obra quanto com os ‘delírios’ que ela
testemunhava e tenha abandonado, sem remorsos, a literatura e a
Europa”, observa.470
Para Agamben, a relação com uma prática externa (a obra) se faz
possível ao trabalho sobre si apenas na medida em que se constitui como
relação com uma potência. Um sujeito que buscasse se definir e se dar
forma somente a partir de sua própria obra estaria condenado a
transformar incessantemente a sua própria vida e sua própria realidade
de acordo com a sua própria obra.
Na investigação de Foucault, nessa questão estava também
envolvido um tema mais antigo, o da construção do sujeito – e a moral
de suas ações. O “cuidado de si” se mostra, nesse sentido, uma questão
466
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 148.
467
Ibidem, 2018, p. 150.
468
Ibidem, 2018, p. 141-142.
469
Ibidem, 2018, p. 142.
470
Ibidem, 2018, p. 143.
ontológica, em que o “si com o qual se tem relação não é outra coisa
senão a própria relação. É, em suma, a imanência, ou melhor, a
adequação ontológica do si à relação”. De acordo com Agamben, “não
há um sujeito antes de relação consigo”, e portanto o trabalho de si
sobre si apresenta-se como uma tarefa aporética. Uma vez que o sujeito
não é dado antecipadamente, seria preciso construí-lo tal como um
artista constrói a sua arte. Mas também podemos entendê-la no sentido
de que a relação consigo e com o trabalho sobre si só se tornarão
possíveis se forem conectados com uma atividade criativa.
Segundo Agamben, é na criação, no “ponto da gênese”, e não na
obra, que coincidem perfeitamente criação e recriação. Para o autor, a
partir da relação com o trabalho sobre si, a prática criativa também deve
passar por uma transformação.471 Segundo ele, a criação da obra implica
a relação do artista com uma potência, ou seja, a essência ou a natureza
de cada ser (Espinosa).472 Não se trata, portanto, de que a prática criativa
proporcione uma mediação e um plano de consistência de si para
consigo, remetendo assim a uma prática externa, mas de contemplar a
potência que produziu a obra de arte, o que daria acesso ao ethos, à
“seidade”. “A forma-de-vida é o ponto em que o trabalho numa obra e o
trabalho sobre si coincidem perfeitamente”, conclui Agamben.473
Em um momento crítico da história, em que a razão entrava em
xeque (a razão de modo geral e não só apenas a razão instrumental ou
positivista, como se convencionou dizer), o homem olhava com cada
vez mais desconfiança para a sua própria capacidade de discernimento e
se deparava com os limites do próprio conhecimento – principalmente
em função dos horrores testemunhados na guerra e em Auschwitz –, a
reflexão de Foucault sobre o motivo de a humanidade ter escolhido o
“conhece-te a si mesmo” em detrimento do “cuidado de si mesmo”
adquire importância fundamental.
Podemos pensar que, ao buscar na poesia uma manifestação do
eterno no efêmero, Henriqueta corria o risco de ser devorada pela busca
obsessiva pela perfeição – formal e espiritual –, assim como ocorreu
com a poeta italiana Cristina Campo (1923-1977).474 A aproximação da
criação poética com as suas crenças religiosas faz com que a obra da
poeta mineira corra o risco de se tornar demasiadamente abstrata e
471
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 164.
472
Ibidem, 2018, p. 165.
473
Ibidem, 2018, p. 165.
474
Ibidem, 2018, p. 148.
acessível apenas a um grupo de iniciados: “rondam-na os perigos do
hermetismo, da desumanização, do silêncio total”. 475
Com relação a Mário, o risco era outro – o de transferir a sua
poesia do terreno da poiesis para o da práxis e da política. O problema,
nesse caso, é o sacrifício da própria obra, em nome de uma arte
utilitária, empenhada em causas políticas e sociais. Conforme aponta
Agamben, a tendência de abolição não da arte, mas da própria obra, que
era destituída e ridicularizada – seja em nome de um trabalho sobre si,
da arte-ação utilitária ou de uma atitude metafísica –, fica evidente nas
vanguardas, como no surrealismo, dadaísmo e situacionismo.476
Podemos pensar que, ao fazer uma poesia empenhada, em detrimento
das exigências da própria obra de arte, Mário corria o risco de abolir a
sua poesia para se transformar em movimento político, antes de chegar a
realizá-la plenamente.
475
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 81.
476
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 147-148.
1.15.1 Balanço da Semana de Arte Moderna
477
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 161.
478
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. Ibidem, 2010, p.
164.
O que não existe é o espírito “social”, a
consciência de grupo, a forma de coletividade. A
Dádiva. Cada qual se buscou, fazendo de si o
Brasil, o Mundo. Daí uma ausência de “cultura”,
no seu mais elevado sentido, uma realidade
coletiva.479
479
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. SOUZA, Eneida
Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São
Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 164.
480
ANDRADE, Mário. “Prefácio Interessantíssimo”. Losango cáqui. In:
Poesias Completas – De Pauliceia Desvairada a Café. Círculo do Livro, s/d, p.
33.
481
ANDRADE, Mário. “O movimento modernista”. In: Aspectos da Literatura
Brasileira. São Paulo, Martins, 1974, p. 243.
482
Ibidem, 1974, p. 251.
balanço, ter havido nela um “hiperindividualismo implacável”. Mesmo
alegando não ser, por natureza, um “político de ação”, ele expõe o seu
incômodo com a falta de posição política do Movimento, que tinha
vínculos com a elite burguesa e a aristocracia cafeeira e incluía artistas
com posições políticas abertamente conservadoras:
Ainda que afirme que toda a sua obra represente uma “dedicação
feliz” a problemas do seu tempo e sua terra, Mário termina por
reconhecer que a mediação do intelectual e o pragmatismo das pesquisas
dos modernistas corresponderam mais a um trabalho (hiper)
individualista que à expressão almejada de uma coletividade nacional:
483
ANDRADE, Mário. “O movimento modernista”. In: Aspectos da literatura
brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 255.
484
ANTELO, Raúl. Correspondência Mário de Andrade e Newton Freitas. Org.
int. e notas Raúl Antelo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/
Instituto de Estudos Brasileiros; Florianópolis: Editora da UFSC, 2017, p. 121.
sua desilusão do modernismo, de cujas conquistas
se beneficiam todos aqueles que escrevem hoje –
vivos. Há naturalmente, como em todos os
tempos, os que escrevem mortos – a maioria.485
485
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 224.
486
MONTEIRO, Adolfo Casais. O Estado de S. Paulo, 27.11.1960. Apud
ANDRADE, Mário. ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário
de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p.
190.
487
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro.
Petrópolis, Vozes; Brasília, 1976, p. 217.
elementos culturais, incentivando a pesquisa formal, vale dizer, a
linguagem; ampliação do ângulo óptico para os macro e microtemas da
realidade nacional, embora essa ampliação se tenha dado mais
exatamente na linguagem, elevando-se o nível coloquial da fala
brasileira à categoria de valor literário, fato que não havia sido possível
na poética parnasiano-simbolista, quer pela sua concepção formal, quer
pela concepção linguística da época, impregnada de exagerado
vernaculismo.
Os modernistas de 1922 nunca se consideraram componentes de
uma escola, nem afirmaram ter postulados rigorosos em comum. O que
os unificava era um grande desejo de expressão livre e a tendência para
transmitir, sem os embelezamentos tradicionais do academismo, a
emoção pessoal e a realidade do País.488
Segundo Antonio Candido, o modernismo correspondeu a uma
teoria estética, nem sempre claramente delineada, e muito menos
unificada, mas que visava sobretudo a orientar e definir uma renovação,
formulando em novos termos o conceito de literatura e de escritor. Esses
fatos tiveram o seu momento mais combativo e agressivo até meados de
1930, abrindo-se a partir daí uma nova etapa de maturação, cujo término
se tem localizado cada vez mais no ano de 1945.489
Para o crítico, o movimento modernista pode ser dividido
basicamente em duas correntes: uma mais conservadora, sob influência
da “linha cósmica” de Graça Aranha, “afeita aos ritmos dinâmicos, à
exaltação da natureza, e procurando embriagar-se pela ação e o
nativismo”. Ele situa essa corrente ao lado mais conservador do
movimento, ligado às tendências dos grupos paulistas do Verde-
amarelismo e do Anta.
A segunda linha “aborda temas análogos com espírito diferente”,
mais ousada, mais autêntica ao apropriar-se do folclore e dos dados
etnográficos, produtora de uma crítica mais profunda, adesão franca aos
elementos recalcados da civilização – o negro, o mulato, o imigrante, “o
gosto vistoso do povo”, ou seja: “toda vocação dionisíaca de Oswald de
Andrade, Raul Bopp, Mário de Andrade” (...). É a corrente que assimila
melhor as influências da vanguarda.490
488
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro.
Petrópolis, Vozes; Brasília, 1976, p. 10.
489
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 7.
490
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1965, p. 112.
Não havia, portanto, um projeto muito definido e nem um
consenso em torno das propostas do movimento, o que gerou muitas
discussões e desavenças entre os seus integrantes. Mário assumiu uma
posição de protagonismo, embora se recusasse a aceitar uma posição de
liderança. Em seu balanço, o escritor aponta a falta de união entre os
participantes, censurando o hiperindividualismo e falta de espírito
coletivo. Ele conclama então as pessoas a marcharem com as multidões
e participarem ativamente da vida coletiva, o que, a seu ver, não teria
ocorrido no Movimento Modernista.
491
ANDRADE, Mário de. “O Movimento Modernista”. Aspectos da literatura
brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 244.
492
PINTO, Edith Pimentel. A Gramatiquinha de Mário de Andrade. São Paulo,
Duas Cidades, 1990, p. 44.
que pudessem ser estabelecidas como normas de
sintaxe nossa.493
Mário se sentia magoado por ter sido muito contestado por seus
pares em seu esforço para sistematizar a “língua brasileira”. Em carta a
Henriqueta, ele argumenta que queria que a realização daquele projeto
se desse a partir de um empenho coletivo, e não apenas seu. O escritor
tinha sido acusado pelo filólogo e linguista Aires da Mata Machado
Filho de que seus jeitos de experimentar a língua nacional, seus
abrasileiramentos de expressão, tomaram um aspecto de individualismo:
493
PINTO, Edith Pimentel. A Gramatiquinha de Mário de Andrade. São Paulo,
Duas Cidades, 1990, p. 44.
494
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Mário de Andrade. In:
Presença da literatura brasileira III. Modernismo. 3ª ed. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1968, p. 12.
tradicionalizar, pelo em que se modificar, será a
língua... brasileira? Nem isto sei! Mas a língua
nacional.495
495
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. SOUZA, Eneida
Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São
Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 165.
496
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. Ibidem, 2010, p.
166.
497
ANDRADE, Mário de. O banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 71.
socialmente dentro de uma nacionalidade”, se
deixava levar, por espírito de sistema, a escrever
numa linguagem artificialíssima, que repugnava à
quase totalidade de seus patrícios. Mário, que se
prezava de psicólogo, escrevia-me, para justificar-
se de seus exageros, que era preciso forçar a nota:
“exigir muito dos homens pra que eles cedam um
poucadinho”. O reformador não se limitava a
aproveitar-se do tesouro das dicções populares,
algumas tão saborosas como esse “poucadinho”,
nascido por contaminação de “pouco” e “bocado”.
Ia abusivamente além, procedendo por “dedução
lógica, filosófica e psicológica”.498
498
MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade &
Manuel Bandeira. São Paulo, 2000, p. 673.
499
FILHO, João Etienne. Prefácio. In: ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 18ª
ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1981.
pesadíssimos versos do “Grã Cão do Outubro”.
Meu Deus! Pois será que eu serei mesmo culpado,
nessas obras, de imoralidade ou desumanidade!...
Eu não consigo chegar a nenhuma certeza como
conclusão final dos meus raciocínios! Eu sei que
Macunaíma não é imoral. Eu usei também da
imoralidade, não minha, mas do meu herói pra
caracterizar a insuficiência moral do homem
brasileiro. Eu sei que existe na comicidade gozada
do livro um tal ou qual compromisso meu, de
autor, com a imoralidade do meu herói, melhor:
com a desmoralidade dele.500
500
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 212.
sociedade” como a literatura de seu Afrânio
Peixoto.501
Mário afirma que o seu herói sem nenhum caráter teria sido
advertido por ele no final do livro, ao ser condenado ao brilho inútil das
estrelas. Não haveria no livro, portanto, uma apologia à imoralidade, ao
contrário, o autor procurou expor as características negativas dos
brasileiros, para assim fazer uma crítica social:
501
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 212.
502
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 212-213.
terminava entrando em contradição. A explicação que ele deu a
Henriqueta sobre o final do livro, por exemplo, difere da que ele havia
dado a Fernando Sabino. Conforme observa Eneida Maria de Souza, em
nota de rodapé na edição das cartas, Mário teria dito a Fernando Sabino
que Macunaíma teria fraquejado no fim do livro e preferido ir viver com
o brilho “inútil” das estrelas, fazendo os olhos do autor se encherem de
lágrimas. Essa versão não corresponde à que o escritor contou a
Henriqueta, argumentando que castiga e adverte Macunaíma: “Na carta
a Fernando Sabino, MA não ‘castiga e adverte’ o seu herói sem nenhum
caráter. Mostra é como sofreu a falta de organização moral dele e
reprova o que estava fazendo ‘contra a minha vontade’”. Macunaíma
teria, nessa perspectiva, agido por “vontade própria”, ou seja, o
personagem teria levado o autor por aquele caminho, mesmo contra a
sua vontade.
Além da questão moral, o livro também foi criticado por uma
suposta falta de cuidado formal com a linguagem, como vemos na
crítica de Adonias Filho:
503
FILHO, Adonias. Mário de Andrade (Nova edição de Macunaíma). In:
Vamos Ler!, Panorama Literário, a. 9, 437. Rio de Janeiro, 14 dez., p. 19.
sobre o que é, o que sinto e vejo que é o brasileiro,
o aspecto ‘gozado’ prevaleceu. É certo que eu
fracassei. Porque não me satisfaz botar a culpa
nos brasileiros, a culpa tem de ser minha, porque
quem escreveu o livro fui eu.504
504
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 214. Apud MOREL,
Marco; BORBA, José César. Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins, ed.
cit., p. 65-66.
505
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 43
506
Ibidem, 1960, p. 43.
CAPÍTULO 2
507
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 24 ago. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 215.
As questões sobre a tensão entre ética e estética estão sempre
presentes nas conversas entre Mário e Henriqueta. O contexto histórico
em que viviam, marcado pela Guerra Mundial, o nazismo e o fascismo,
a ditadura de Getúlio Vargas no Brasil, reforçava a necessidade de os
artistas questionarem a finalidade moral da arte e os levava a olhar com
desconfiança os preceitos da arte “pura” ou desinteressada, centrada em
atributos estéticos e nas especificidades da própria arte.
No início da década de 1940, Mário enfrentava problemas
pessoais, profissionais e financeiros, que eram agravados pelo contexto
político sombrio. Em carta a Henriqueta, ele conta sobre um dia difícil
que passou, atormentado pela lembrança do suicídio de um amigo, e
desabafa: “Eu devia botar uma bomba no palácio Guanabara pra ver se
crio vergonha de ser brasileiro, mas não é meu jeito.”508
Em resposta à carta, Henriqueta demonstra preocupação com o
estado de espírito do amigo:
508
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 21-22 mar. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 202.
superfície. Há os que conseguem levantar a arte
acima da vida: os místicos. Nós, Mário, somos os
prisioneiros da noite: você o prisioneiro rebelado,
desesperado, fujão; eu a prisioneira desalentada,
sonâmbula, que não sabe senão dizer cousas vãs...
Mas veja: se mesmo na arte temos que vencer a
nossa sinceridade por outra, igualmente nossa, que
vamos descobrir mais fundo, na vida temos que
vencê-la por um misterioso sentimento que talvez
seja a própria sinceridade em transcendência. O
certo é que nos queremos melhores do que
somos.509
509
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 10 abr. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 202.
510
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 11.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
511
Ibidem, 2005, p. 7.
submetida à sabedoria, prudência ou qualquer outra virtude.512 O artista
se distinguiria, assim, do homem prudente, que faz todas as coisas sob o
ângulo da moralidade e visando ao bem do homem, mas é
absolutamente ignorante sobre tudo o que pertence à arte.513
O comentário de Henriqueta sobre “nenhuma coação”, feito em
tom de elogio, provoca uma longa resposta de Mário à poeta mineira. O
escritor esclarece que, para ele, seja do ponto de vista moral ou mesmo
em matéria de arte, "nenhuma coação” não representa um ideal
magnífico, pois o momento inicial de criação, mais livre e espontâneo, é
depois superposto por um longo trabalho de discernimento moral, em
que a subjetividade individual é submetida a uma avaliação crítica da
consciência social:
512
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 42.
513
Ibidem, 2005, p. 47.
ele for de fato moral e humano, a sua obra-de-arte
(não o momento de criação) será sempre moral e
humana.514
514
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 211-212.
515
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 214.
516
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. Ibidem, 2010,
p.183-184.
517
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. Ibidem, 2010,
p. 188.
criador, para em seguida se acalmar, retomar o trabalho e revisar o que
foi escrito de forma intempestiva”.518
Para Mário, a segunda fase da criação, que ele chama de
superposição intelectual, não se restringe a uma revisão do poema,
atendendo a critérios técnicos e estéticos, mas também envolve uma
instância de discernimento moral. Nessa perspectiva, embora a arte seja
uma atividade desinteressada, que tem como finalidade precípua realizar
a obra de arte, ela é também uma atividade eminentemente humana e
social, e portanto exige um discernimento moral e uma atitude ética. Em
carta a Henriqueta, ele argumenta que uma moralização alta do
indivíduo pode ser alcançada a partir das exigências artísticas durante o
processo de criação, que é fenômeno de relação entre os homens:
518
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 187.
o momento mais dramaticamente feliz de toda a
minha vida, que eu percebi como eu atingira uma
elevada moralidade de mim! Como eu estava
(como homem) grande! Como eu me purificara
em Homo!519
519
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 15 jun 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 256-257.
520
MORAES, Eduardo Jardim de. Limites do Moderno: o pensamento estético
de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 71.
individualismo e a inflação da estética experimental e do psicologismo,
que teriam desnorteado o verdadeiro objeto da arte, levando o artista a
ofuscar a própria arte. O escritor atentava, assim, para a necessidade de
retomar o caráter social do fazer artístico, de modo independente de
interesses individualistas e ideológicos, das demagogias e proselitismos:
“se o espírito não tem limites na criação, a matéria o limita na
criatura”.521
O conteúdo de “O artista e o artesão” parece também dialogar
com Jacques Maritain, em seu ensaio sobre Arte e Escolasticismo e o
pensamento de São Tomás de Aquino. Segundo o autor, todo elemento
formal da arte consiste no regulamento que imprime na matéria.522 O
criador em arte é aquele que descobre uma nova analogia do belo, um
novo caminho no qual a radiância da forma pode brilhar sobre o
assunto.523
Para Maritain, embora a arte tenha regras fixas, essas devem ser
submetidas a um habitus ou uma virtude do intelecto, que o autor
considera precisamente a virtude da arte e deve ser adquirido a partir do
exercício e do uso.524 Porém, ele adverte que não devemos, por essa
razão, confundir o habitus da arte com o hábito do mundo moderno,
relacionado à rotina e repetição mecânica – o habitus da arte é
exatamente o contrário do hábito nesse sentido. Os antigos
denominaram de habitus (hexis) as qualidades de uma classe à parte,
qualidades essas que são basicamente disposições estáveis que se
aperfeiçoam seguindo a linha de sua própria natureza.525 Pela imensa
quantidade de trabalho racional e discursivo que a arte envolve, ela
exige a tradição de uma disciplina, uma educação pelos mestres e a
continuidade da colaboração humana ao longo do tempo.526 Por isso, é
absolutamente necessário que o artista tenha, além de toda a bagagem
521
ANDRADE, M. O Artista e o Artesão, in: O baile das quatro artes. São
Paulo: Martins
Editora, 1975, p. 75.
522
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 23.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
523
Ibidem, 2005, p, 27.
524
Ibidem, 2005, p, 28.
525
Ibidem, 2005, p. 26.
525
Ibidem, 2005, p. 8.
526
Ibidem, 2005, p. 26.
conceitual e racional, o domínio da técnica propriamente dita e o
cuidado com a matéria-prima, como ocorria, sobretudo, nos tempos
clássicos. Assim, o habitus operativo da arte, que atesta a atividade do
espírito, reside principalmente em uma faculdade imaterial, na virtude
intelectual ou moral, e todos esses recursos são reunidos para realizar a
obra de arte.527
Mas justamente porque na arte erudita o trabalho a ser realizado é
um fim em si mesmo – em direção ao Belo –, e porque esse fim é algo
absolutamente singular e inteiramente único, cada ocasião apresenta ao
artista um caminho novo e único de buscar alcançar esse fim e de
abordar determinada questão.528 A arte sempre vai reter a cor e o sabor
do espírito, os seus elementos formais, o que a constitui em si mesma.
Assim, se a arte não é humana na finalidade que ela persegue – o Belo –,
ela é humana, essencialmente humana, em seu modo de operar, e
portanto deve ter a marca do homem: animal rationale.529 A sua ação
consiste em imprimir uma ideia em alguma matéria: é portanto na
inteligência do artefato que ela reside.530
De acordo com Juan Plazaola, a natureza factual da arte,
vinculada a uma técnica, vale tanto para o artista quanto para o artesão:
um artista não é um inventor senão quando é um realizador e fazer é tão
fundamental quanto imaginar:
527
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 8.
528
Ibidem, 2005, p. 28.
529
Ibidem, 2005, p. 23.
530
Ibidem, 2005, p. 8.
de Tchaikowsky: "Ser um artesão à maneira de
um sapateiro".531
531
PLAZAOLA, Juan. Introducción a la Estética. Historia, Teoría, Textos.
Bilbao: Universidad de Deusto, 2007, p. 345.
532
MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mario de Andrade &
Manuel Bandeira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Instituto
de Estudos Brasileiros, 2000, s/n.
533
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 7.
Nessa época de maior politização, Mário conseguiu amadurecer a
sua teorização sobre a dimensão ética da criação e a relação entre o
individual e o coletivo, como vemos em textos como “O artista e o
artesão” (1939) e “Elegia de Abril” (1941). Na conferência “Atualidade
de Chopin” (1942), pronunciada aos alunos do Conservatório Musical
de São Paulo, ao falar sobre a personalidade artística do músico polonês,
o escritor reafirma a importância da dimensão social do artesanato e de
conciliar lirismo e técnica: “Chopin conheceu a sua arte e o seu
instrumento, não só genialmente, o que independe da vontade dos
homens, mas como estudioso consciente”.534 Segundo Luciano Costa
Santos, a partir de 1930, “intensifica-se no pensamento marioandradino
uma viragem decisiva pela qual não mais a dimensão individual-si-
mesmo, mas a dimensão humano-comunitária do ser se põe como
horizonte de um novo método de considerar os fenômenos da vida e da
arte”.535
Mário estava então incomodado com certo espontaneísmo na
criação artística que identificava em alguns de seus pares, que se
voltavam para a poesia de combate político, chamada então “poesia
social”, mas negligenciavam os cuidados com a técnica e a forma no
fazer artístico; enquanto outros incorriam num formalismo alienado das
questões político-sociais de seu tempo. De acordo com Eduardo Jardim
de Moraes, “sublinhando ‘a função da arte na vida das coletividades’,
Mário tinha como objetivo a oposição ao individualismo e ao
formalismo, focando no papel social da arte em si e do próprio fazer
artístico”.536 Para o pesquisador, “o fato de o artista compreender e
dominar a técnica de sua arte o colocava numa relação de respeito com
sua obra, e não mais de possessão. O foco seria a própria arte e não mais
o artista”.537
O cuidado com a matéria-prima e a técnica contribui para
deslocar o fazer artístico para a finalidade da própria arte, tornando
assim o processo mais impessoal e conferindo-lhe uma ética intrínseca
534
ANDRADE, M. “Atualidade de Chopin”, in: O baile das quatro artes. São
Paulo: Martins Martins Editora, 1975, p. 93.
535
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 157.
536
MORAES, Eduardo Jardim de. Limites do Moderno: o pensamento estético
de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 88.
537
MEDEIROS, Raquel. Mário de Andrade e a busca pela arte brasileira: a
pesquisa estética, a inteligência artística brasileira e a consciência criadora
nacional. Rio de Janeiro, v. IV, n. 1, jan./mar. 2011.
ao próprio fazer artístico. O poeta pode ser visto como o vetor da criação
e da consciência da linguagem, de sua expansão e transformação, de
uma consciência mais ampliada da vida, do mundo, do humano.
De acordo com João Luiz Lafetá, Mário buscava uma atitude
coerente entre o artista e o mundo, entre a realização da obra de arte e a
vida social, de modo a traduzir o espírito de sua época e ultrapassar o
artesanato e o simples virtuosismo. Assim, essa postura significará, ao
mesmo tempo, lançar-se para as experimentações da matéria e guardar
um fundo ético incorruptível.538
Como podemos notar, o trabalho de superposição intelectual na
criação artística de Mário envolve não apenas a busca pela beleza e a
perfeição estética, a partir das próprias imposições do fazer artístico,
mas uma responsabilidade moral, tendo em vista o aspecto social da arte
e a consciência crítica do artista. Essa consciência da responsabilidade
social do artista foi se acentuando ao longo dos anos, em função de uma
autocrítica sobre a sua trajetória e diante das contingências de seu
momento histórico. Segundo observa Raúl Antelo, “o desafio com que
Mário de Andrade defronta-se, a partir de 1924-1926, o leva à tentativa
de combinar o direito permanente à pesquisa estética, direito que
continuará a reivindicar até o fim da vida, com um sentido crescente de
responsabilidade social na construção do realismo”.539
A arte, para Mário, é um objeto de servir a vida. A finalidade da
arte, para ele, seria alcançar o belo – e não o Belo, embora não exclua a
possibilidade de alcançá-lo também: “O belo que é uma consequência
natural da técnica do objeto (vaso, retrato, canto ou dança religiosa,
sexual etc.) se torna de consequência em elemento necessário da arte –
pra não dizer a sua finalidade.”540
Para o escritor, a arte deve servir à vida, assim como a
astronomia, o automóvel ou um restaurante servem à vida. Daí estar na
origem mesma e na base da arte, que não é imediata, se servir da Verdade e
do Bem, do Erro e do Mal, na sua pesquisa e ofício de dar definição, de ser
uma força de conhecimento. Segundo ele, a compreensão das artes do
538
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1974, p. 160.
539
ANTELO, Raúl. Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-
americanos. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-
Memória, 1986, p. 156.
540
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 223.
tempo é mediata (remota, indireta), pois lida com palavras, que são
interpretadas a partir de nossa inteligência e memória. Portanto, a
harmonia poética se realiza em nossa subjetividade, e não
objetivamente, como explica o escritor no “Prefácio Interessantíssimo”:
Outro dia, numa das aulas do meu curso, depois de passar uma hora
destrinçando a conceituação de Beleza, veio um rapaz moço louro
perguntar se eu não aceitava a definição que ele sabia: “a Beleza é a
Ordem e a Perfeição”. Meu Deus! Aceito sim, moço! Fique com ela e
seja feliz! Mas você não estará substituindo uma palavra por outra? O
quê que você chama de Ordem e de Perfeição?... Sabe, Henriqueta? Às
vezes sou inclinado a aceitar aquela boutade de Croce quando fala que a
beleza é uma coisa que toda a gente sabe o que é. Mas outras vezes,
basta o espírito se arruinar um bocadinho no mundo das ideias e das
experiências, e logo tenho a certeza de que jamais ninguém jamais não
soube o que é a Beleza. Beleza, beleza... mas valerá a pena a gente saber
o que ela é? Talvez nós só a encontremos quando imersos no seio de
Deus. Mas então ela não terá mais a menor importância e desaparecerá,
543
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 223.
porque Deus é tudo, e nós nos extasiaremos deste Tudo, unânimes em
nós e completados.544
Porém, no dia seguinte, Mário afirma ter guardado essa carta por
não ter ficado satisfeito com a sua análise sobre o “ideal” de
perpetuidade do artista e o lado “poema-de-circunstância” da criação.
Novamente o poeta tenta entrar no Jardim do Éden, mas o sentido do
todo parece lhe escapar.
544
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 set.. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 123-124.
545
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 11 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 105.
546
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 107.
não aceita, é imediata e sem transformação, não
admite imediatamente nenhuma evolução,
nenhum progresso. Mesmo a verdade científica (a
não ser que experimentada pelo intelectual,
concêntrica, coincidente com a verdade dele)
quando aceita pelo intelectual, não será jamais
“incontestável” pra ele, muito embora possa ter
pra ele todas as outras aparências de eternidade.
Ao passo que a verdade do intelectual por ter uma
espécie de objetividade psíquica e ser o resultado
de todas as possibilidades de raciocínio e
sentimento e de todas as aquisições enfim, do
indivíduo, se apresenta ao próprio intelectual com
todas as certezas da incontestabilidade. Muito
embora não tenha, às vezes, nenhuma das outras
aparências de eternidade. Realmente: o intelectual
legítimo não se preocupa com a possível
eternidade das suas verdades...547
547
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 107.
548
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 106-107.
compromisso com qualquer grupo e defender a sua própria verdade
individual”.549
A dificuldade é que Mário vê o intelectual como alguém
“obrigado a ver na sua verdade um fenômeno meramente
individualista”.550 Mesmo que ele duvide da capacidade de permanência
de sua verdade, ele a apresenta como algo incontestável, o que contribui
para torná-lo mais cético, cínico, indiferente e desligado da verdade do
Bem e do Mal. E principalmente (é o que mais importa socialmente)
mais revoltado e mais revolucionário. E também mais maleável,
suscetível a servir a todas as guerrilhas, feito um mercenário.551
No princípio de A Escrava que não É Isaura552, texto escrito
entre 1922-24, na fase mais combativa do Modernismo, Mário se opõe
aos cultores da poesia pura; porém, no posfácio do texto, escrito em
1924, ele reconhece ter incorrido em exageros e afirma que “não
pretende ser revoltado a vida toda”, arrogando-se a dono da verdade, e
que queria então escrever em nome de sua própria verdade:
549
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 69.
550
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 109.
551
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 106.
552
Embora seja datado de 1924, o texto é citado nessa pesquisa em função da
importância que tem para a concepção sobre a criação artística do escritor e por
trazer conceitos que ele mantém ao longo de toda a sua trajetória, como a
fórmula “Lirismo puro + Crítica + Palavra = Poesia”. (Ibidem, 2010, p. 4)
numa realidade subjetiva individual!... É certo
porém que há dois anos não sei que anjo da
guarda prudencial me guiou a mão e me fez
escrever já em nome da minha verdade. Em nome
dela é que sempre escrevo e escreverei. 553
553
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 69.
rapazes, já é de novo a inteligência que pronuncia
o tenho-dito.554
560
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 70.
561
Ibidem, 1960, p. 70.
562
Ibidem, 1960, p. 67.
563
Ibidem, 1960, p. 55.
2.3 A sombra da Segunda Guerra e da ditadura
564
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 81.
565
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, Rio de Janeiro, 24 de
fevereiro de 1940, p. 79.
Sentiremos mais agudamente a tragédia humana
através da poesia de hoje porque ela representa a
nossa mesma vertiginosa atitude em face do
abismo ou, de fato, nossos irmãos no tempo são os
que primeiro mergulham as mãos na fonte da água
viva?... Mário, que problemas difíceis para mim!
Quanto à consciência: esta grita sem dúvida mais
alto, quanto mais tripudiada.
566
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 7 set. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 224.
individualismo feroz, não só egoístico mas
douramente egotístico, numa prodigiosa
independência, numa liberdade desligada de tudo,
enfim numa espécie de superioridade pessoal que
estou longíssimo de justificar e aceitar em mim e
me desgostou cruelmente. Nunca me supus tão...
tão ruim! E senti que era chegada a hora de me
calar. Porque assumir uma atitude, pregar coisas
contra as minhas convicções ou dúvidas, era
sempre perseverar no teatro, e num teatro em que
a minha idade e experiência já não me permitem
mais ser galã. (...) Mas, não sei se pelo peso da
minha honestidade ou pela seriedade que ponho
em tudo quanto faço, o que sei é que da minha
geração intelectual tive esse mau destino de ser o
galã profissional, o eterno Romeu namorado por
todas as tendências, todos os grupos, todas as
escolas...567
567
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 27 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 113-114.
568
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. Ibidem, 2010,
p. 194.
cabeça será me deixar levar pela imagem de uma
assombração... apaziguadora. E a vida me
interessa mais do que essa possível paz da morte.
Você sabe o que mais me assombra nos
materialistas? É não se suicidarem todos eles!
Porque não se suicidam! Sem uma significação
superior, e esta só pode ser Deus, a vida é uma
coisa completamente sem significação para a
inteligência e esta só pode concluir pela bala na
cabeça. Ou o cianureto de potássio.569
Ele lembra ainda que com a imagem do suicídio lhe veio logo a
imagem gêmea do assassinato, com a qual pôde consentir e transformar
em ideia, tendo como alvos os ditadores e fascistas, inclusive o amigo
Gustavo Capanema, para quem trabalhou como assessor:
569
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 194. Ibidem, 2010, p. 194.
570
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. Ibidem, 2010,
p. 195.
571
Embora Mário tenha participado da Fundação do Partido Democrático, ele
afirma que nunca foi do partido, pois “positivamente não são esses avatares
democráticos do capitalismo que podem me satisfazer”.
ameaçada pelo partido no poder. Ele confessa que não estava ali por
coragem, mas por “oposição tempestiva”, que o faria incapaz de ceder
mesmo sob o uso da força. O escritor, porém, não queria assumir uma
posição radical e politicamente engajada, como fizeram alguns
intelectuais da época, até porque reconhece que essa abordagem não era
compatível com seu temperamento. “(...) Positivamente sou incapaz de
conspirar nem andar com bomba debaixo do braço. Mas não haverá
outro meio do intelectual participar?”572
No artigo “Noção de responsabilidade”, ele descreve a sua
participação na fundação do Partido Democrático, demonstrando o seu
ceticismo com relação à atuação política pela via partidária:
572
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. Ibidem, 2010,
p. 197.
573
ANDRADE, Mário de. Noção de responsabilidade. In: O Empalhador de
Passarinho. São Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 25.
todas as tendências, todos os grupos, todas as escolas”, para se engajar
de modo mais efetivo nas questões políticas que o momento demandava.
Porém, ele não queria que essa participação política resultasse em perda
de liberdade ou no compromisso de se filiar a determinados grupos ou
facções políticas:
Pensei que não tinha jeito pra fazer isto. Mas não
se trata de ter ou não ter jeito, se trata de um
dever. E aos poucos estou fazendo o que não
imaginava fazer. Publicamente, hoje eu só
pretendo empestar, só desejo envenenar. Estou aos
poucos, pouco a pouco, retirando dos meus
escritos qualquer espécie de solidariedade com a
inteligência livre. E você não se assuste se
pegando num artigo meu me vir precário, longe de
qualquer verticalidade, deformar pessoas,
deformar mensagens, abrindo um ângulo de visão
imprevisto mas que me permita botar nos que me
leem a gota corrosiva de um veneno, o amargo de
uma insatisfação. É um cansaço. Minha
consciência só tem algum sossego e prêmio
574
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 197.
quando eu me sentir deveras um Criminoso da
inteligência.575
575
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. Ibidem, 2010,
p. 197.
576
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 4 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 190.
577
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 out. 1944. Ibidem, 2010,
p. 308.
2.4 Entre a lira e a foice
578
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 18 nov. 1928.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988.
desenvolve a rebeldia social e o consequente
radicalismo político.579
579
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz,
2000; Publifolha, 2000, p. 123.
580
SILVA, Anderson Pires da. Mário e Oswald: uma história privada do
Modernismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 142.
fato a que assisti em plena avenida Rio Branco.
Uns negros dançando o samba. Mas havia uma
negra moça que dançava melhor que os outros. Os
jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma
sensualidade mas ela era melhor. Só porque os
outros faziam aquilo um pouco decorado,
maquinizado, olhando o povo em volta deles, um
automóvel que passava. Ela não. Dançava com
religião. Não olhava pra lado nenhum. Vivia a
dança. E era sublime.581
581
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 10 nov. 1924.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988.
582
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 49.
583
Ibidem, 1972, p. 50.
584
Ibidem, 1972, p. 58.
Em 1934 inverte sua ética de 1929. Tem o
Marxismo e o Comunismo como doutrinas
válidas, guardadas evidentemente as reservas
quanto ao materialismo, e tem “individualismo-
individualidade” (que continua a confundir) como
elementos superados e negativos. O período 1934-
1938 é tempo de intensa produção artística e
sistematização de suas pesquisas sobre o Folclore
nacional.585
585
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 58.
586
Ibidem, 1972, p. 211.
587
BANDEIRA, Manuel, org. Carta datada de São Paulo, 6 abr., 1927. Apud
Ibidem, 1972, p. 58.
587
Ibidem, 1972, p. 205.
com a família etc., ninguém que seja
verdadeiramente, deixará de ser nacional.588
588
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988.
589
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 85.
590
SANTIAGO, Silviano. “Fechado para balanço”. In: O cosmopolitismo do
pobre. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 78.
que se destacaria o romance. Tristão de Ataíde e Octávio de Faria
decretam, nas páginas da revista: “O modernismo morreu”.
Para Silviano Santiago, o Modernismo teve fim em 1936, ano da
prisão de Graciliano Ramos, da radicalização dos intelectuais na
participação política e das críticas ao Modernismo feitas na Lanterna
Verde:
591
SANTIAGO, Silviano. “Fechado para balanço”. In: O cosmopolitismo do
pobre. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 78.
592
ANDRADE, Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins. Apres.
Ivan Cavalcanti Proença; comentários José César Borba e Marco Morel. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1983, p. 23.
593
SILVA, Anderson Pires da. Mário e Oswald: uma história privada do
Modernismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 141.
Porém, podemos pensar que Mário teve uma participação política
muito ativa e significativa, principalmente na direção do Departamento
de Cultura de São Paulo, como observa Joan Dassin:
594
DASSIN, Joan. Política e Poesia em Mário de Andrade. São Paulo: Duas
Cidades, 1978, p. 123.
595
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 108.
serão a maniva e o milho salvador. Nesses
homens, por mais ridículos que sejamos,
Henriqueta, há sempre que respeitar a humana
generosidade. Embora também esta generosidade,
meu Deus! Esteja muito mesclada de vaidade e
intoxicada pela paixão da Verdade transcendente
ou da verdade socializadora, nem por isso ela
deixa de ter sua nobreza, seu amor dos homens. A
vaidade, afinal das contas, não é apenas
provocada pelo namoro de si mesmo, implica
sempre pelo menos a noção ativa do
companheiro...
Já outros não agem assim, esses Gides. São os
mais egotistas e desprezíveis, o que se conservam
na legitimidade do seu intelectualismo
concêntrico. Também convictos da transitoriedade
precária das suas verdades incontestáveis, se
fecham em copas. Em vez de acreditarem com
pressa apaixonada nas suas verdades, como
fizeram os proselitistas, em vez de quebrarem
armas para impor a amante de um dia ao amor do
mundo, antes a escondem, tímidos, indiferentes.
(Não é exatamente o caso de Gide, agora.) Amam
a sua verdade, desprezando-a. Em vez de
demagogos, em vez de revolucionários, se
conservam apenas revoltados. Caçoam de tudo,
desprezam tudo, se ocultam, emudecem, fazem
pouco mais que nada. Não têm a mais mínima
generosidade. Não se suicidaram. Não possuem
nenhuma beleza. Se os outros são danados
comoventes e humaníssimos, estes são danados
só. Uma calamidade. 596
597
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 197.
conformismo dos partidos políticos, como defende o escritor, em
“Elegia de Abril”:
598
ANDRADE, Mário. “A elegia de abril”. In: Aspectos da literatura
brasileira.. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 193.
só crer e ver pela sua própria experiência, o
intelectual é da sociedade.599
599
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 109-110.
600
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 130.
Mário nasceu numa família de classe média burguesa, mas,
graças à sua projeção como artista e intelectual, frequentava os salões
organizados pela aristocracia paulista, no início do século XX, e foi
arregimentado para trabalhar como funcionário público. Essa ascensão
social pode ter contribuído para dar a impressão de que ele compactuaria
com a aristocracia e a burguesia e de que haveria um distanciamento
entre ele e as classes populares. Além disso, a sua atuação como
funcionário público ajudaria a limitar a sua liberdade de expressão e
inibiria uma participação política mais expressiva.
Segundo Sérgio Miceli, nessa época, os intelectuais filhos dos
grupos dominantes correspondiam a expectativas ditadas pelos
interesses do poder e das classes dirigentes. Beneficiando-se da adesão
desses intelectuais aos quadros de funcionários, o Estado Novo
conseguiu criar uma salvaguarda ideológica ao regime e fortalecer a
cultura oficial propagada pelo governo. Intelectuais de todos os matizes
foram captados pelo aparelhamento estatal: militantes em organizações
de esquerda, quadros da cúpula integralista, porta-vozes da reação
católica, figuras pertencentes à intelectualidade tradicional e os
praticantes das novas especialidades.
Porém, segundo Miceli, o grupo de intelectuais do Partido
Democrático, sob a liderança de Mário, se empenhava em preservar a
sua liberdade, se não no âmbito político mais imediato, ao menos no
plano intelectual, no que se distinguiam dos intelectuais do Partido
Republicano Paulista (PRP):
601
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, p. 23.
Para o autor, graças ao seu capital cultural e à expansão das
instituições culturais da oligarquia, o escritor modernista, de família
classe média e "primo pobre” da elite, conseguiu chegar a exercer uma
liderança no campo intelectual. Porém, segundo ele, “Mário jamais
deixou de ser uma espécie de assessor intelectual de prestígio sem
conseguir, a exemplo de seu irmão mais velho, encetar uma carreira
política”.602
Porém, essa concepção de participação política somente pela via
partidária e de carreira é limitada, uma vez que é possível atuar
politicamente como artista e intelectual e mesmo nas pequenas ações
cotidianas.
Por outro lado, o fato de pertencer ao funcionalismo do governo
Vargas comprometia, de fato, a liberdade de ação política desses
intelectuais. Mário confessava não poder assumir posições políticas
mais radicais, como aderir ao comunismo, sob o risco de perder o seu
cargo público. De acordo com Silviano Santiago, Mário já estava, no
final da década de 1930, “engajado tanto no projeto governamental
paulista, quanto no nacional”, como atestariam as cartas de trabalho que
dirige a Rodrigo de Mello Franco de Andrade:
602
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, p. 26.
603
SANTIAGO, Silviano. “Fechado para balanço”. In: O cosmopolitismo do
pobre. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 80.
Mesmo tendo a sua liberdade de ação limitada, isso não significa
que Mário tenha aderido incondicionalmente ao governo – pelo
contrário, o escritor manifestava uma posição crítica e contrária à
ditadura de Vargas. Podemos pensar que mesmo sendo um funcionário
público era possível resguardar alguma liberdade e exercer, até certo
ponto, uma oposição ao governo. Para uma avaliação mais precisa e
menos generalista, seria necessário verificar cada caso individualmente,
analisando as posturas assumidas por cada um dos intelectuais e as
ações cometidas por eles. Como observa Antonio Candido, no prefácio
para o livro de Sérgio Miceli, os intelectuais da época viviam uma
posição ambígua, acreditando pertencer a um estatuto peculiar, em que
era preciso “servir sem servir, fugir mas ficando, obedecer negando, ser
fiel traindo”. Porém, como observa o crítico, uma avaliação
generalizante da conduta desses intelectuais corre o risco de “atropelar
demais a verdade singular”:
604
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, prefácio.
605
SILVA, Anderson Pires da. Mário e Oswald: uma história privada do
Modernismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 101.
606
Ibidem, 2009, p. 101.
Em carta a Manuel Bandeira, Mário comenta a sua determinação
em manter a sua independência intelectual e de não se unir a grupos
formados por pessoas que pudessem, de algum modo, constrangê-lo:
607
Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, 20 jan. 1944. MORAES,
Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Instituto de Estudos
Brasileiros, USP, 2000, p. 668.
emancipação, mas, acima de tudo, como filosofia, isto é, como ideia.
Esta ideia corresponde à vontade do indivíduo de superar o próprio
individualismo e fixar uma verdade entre a sua própria existência vital e
o mundo em que sua existência se manifesta.608
Ao eleger a verdade do intelectual como premissa para a sua
postura social e política, Mário defende que a inteligência deve ser
exercida com total liberdade e independência, livre de qualquer
imposição de grupo ou ideológica:
608
BADIOU, Alain. A hipótese comunista. Trad. Mariana Echalar. São Paulo:
Boitempo, 2012.
609
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 107.
Ao que se pode inferir, só a partir de 1930, o
Marxismo poderia, eventualmente, parecer válido
para a sociedade, se aplicado em alguns pontos da
organização social e econômica. Mas reservaria
ao Cristianismo a tarefa de cuidar da
espiritualidade do homem e de fazer respeitar a
individualidade610.
611
ANTELO, Raúl. Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-
americanos. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-
Memória, 1986, p. 49.
612
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 18.
O "ser" do corpo ao qual essa ontologia se refere é
um ser que está sempre entregue a outros, a
normas, a organizações sociais e políticas que se
desenvolveram historicamente a fim de maximizar
a precariedade para alguns e minimizar a
precariedade para outros. Não é possível definir
primeiro a ontologia do corpo e depois as
significações sociais que o corpo assume. Antes,
ser um corpo é estar exposto a uma modelagem e
a uma forma social, e isso é o que faz do ontologia
do corpo uma ontologia social. Em outras
palavras, o corpo está exposto a forças articuladas
social e politicamente, bem como a exigências de
sociabilidade - incluindo a linguagem, o trabalho e
o desejo -, que tornam a subsistência e a
prosperidade do corpo possíveis.613
613
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
Comunista Brasileiro (PCB).614 A mesa diretora era composta por
Aníbal Machado (presidente), Sérgio Milliet, Dionélio Machado, Murilo
Rubião e Jorge Amado.
A proposta do Congresso era contribuir para que os escritores se
organizassem em classe e, desse modo, viessem a desempenhar uma
vigilância mais constante e efetiva sobre as grandes questões nacionais.
Porém, embora houvesse um esforço por legalizar o Partido Comunista,
o evento não chegou a tomar resoluções mais efetivas. Como resultado
das discussões, foi redigido um manifesto exigindo a legalidade
democrática como garantia da completa liberdade de pensamento e a
instalação de um governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal
direto e secreto. Segundo José Antônio Orlando Netto, o evento
simboliza a passagem a uma nova época, mas não toma posições
definidas:
614
CANDIDO, Antonio. O Mário que eu conheci. In: Eu sou trezentos, eu sou
trezentos e cincoenta. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008.
615
NETTO, José Antônio Orlando. Mário e o nacionalismo da Lopes Chaves.
In: SOUZA, Eneida Maria de. (org.). Cartas a Mário. Cadernos de Poesia, n.
11, 2ª parte. Belo Horizonte: Núcleo de Assessoramento à Pesquisa / Faculdade
de Letras da UFMG, novembro 1993.
Mário não participou diretamente da organização do Congresso,
mas sugeriu que fosse convidado para integrar a Comissão de Recepção
do evento: “Era incrível não haver na comissão afinal das contas alguém
que fosse um ‘nome’, uma grosseria”, comentou. Ele ficou incomodado
também pelo fato de que Henriqueta não foi convidada para integrar a
comissão de escritores mineiros, e comentou com a amiga que daria um
jeito de dizer isso aos organizadores.616
Durante o evento, Mário manteve-se calado, evitando participar
dos debates e das comissões. Antonio Candido, no texto “O Mário que
eu conheci”, relata duas passagens envolvendo Mário que mostram o
desapontamento do escritor com o envolvimento político:
616
Henriqueta foi visitar Mário em São Paulo alguns dias depois do Congresso
Brasileiro de Escritores, entre 5 e 22 de fevereiro, tendo tido oportunidade de
encontrar o amigo várias vezes poucos dias antes de sua morte, no dia 25 de
fevereiro de 1945.
Partido Comunista não queria precipitação, mas
nós socialistas independentes e também muitos
liberais aplaudimos, porque era uma boa pancada
na ditadura em declínio. Além disso, Oswald fez
troças divertidas com a alta sociedade de São
Paulo, provocando protestos violentos. Todo o
mundo acabou berrando e lembro de um senhor
agranfinado perto de mim que enfrentou as vaias
(inclusive minhas) com muita coragem, parecendo
pronto para dar bengaladas. Na saída, em frente
do teatro, Paulo Emílio e eu fomos falar com
Mário e gabamos o discurso de Oswald.
Ingenuidade nossa. Ele perdeu a calma e falou
exasperado que não reconhecia a Oswald
autoridade moral para falar mal da sociedade
paulistana. Nós ficamos passados e fomos
tratando de dar o fora.617
617
CANDIDO, Antonio. O Mário que eu conheci. In: Eu sou trezentos, eu sou
trezentos e cincoenta. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008.
618
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 11 fev. 1945.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 224-225.
Na verdade, Rodrigo, você não pode imaginar
como vivi com uma prodigiosa intensidade, com
uma monstruosa seriedade, o Congresso dos
Escritores. É certo que jamais me senti mais
dentro da minha gente! Teve um instante (...) em
que explodiu dentro de minha consciência a noção
de que aquele Congresso era um coroamento da
'minha' carreira, da minha vida (...)619
622
JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: A morte do poeta. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 114-115.
623
ANDRADE, Mário. “O movimento modernista”. In: Aspectos da literatura
brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 255.
624
Ibidem, 1974, p. 255.
ainda que é o Brasil. Os gênios nacionais não são
de geração espontânea. Eles nascem porque um
amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes
preparou a altitude necessária de onde podem
descortinar e revelar uma nação. Que me importa
que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota
pensar em ficar, principalmente quando não se
sente dentro do corpo aquela fatalidade inelutável
que move a mão dos gênios. O importante não é
ficar, é viver. Eu vivo.625
625
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. SOUZA, Eneida
Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São
Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 164.
626
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 86.
detrimento “de um avanço em maior profundidade”. Para o crítico, o
excesso de intencionalidade na criação do poema poderia levar a um
rebuscamento que mataria a espontaneidade – os poemas de Mário de
fato brasileiros são, segundo ele, justamente aqueles em que não houve
intenção deliberada de um objetivo nacionalista:
627
Apud LAFETÁ, João Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens
na Poesia de Mário de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 48.
depõe na sua obra é que tanto pode se dirigir ao
espectador como indivíduo ou como um ser
pertencente a uma coletividade, isto é, como ser
social. De resto creio que é mesmo quase
exclusivamente dentro da civilização cristã que,
depois da Renascença, a inflação do
individualismo permitiu essa perniciosa e
sensualíssima modificação na qualidade do
interesse que de social que sempre foi, passou
muitas vezes a individual.
E, de fato, quando eu avanço que a imensa
maioria da intelectualidade brasileira // quando eu
afirmo que 95% da intelectualidade brasileira (no
rascunho) // vendeu-se aos donos da vida, estou
longe de afirmar que ela se rebaixou ao ponto de
assinar uma transação com contratos legalizados
em cartórios. Mas por não possuir a legítima
técnica de pensar, essa intelectualidade se entrega
facilmente a sofismas e confucionismos de mil e
uma espécies, de que é malignamente a maior essa
tal de ‘arte pura’. Estou dizendo que o intelectual
se utiliza dela para se salvaguardar e se livrar de
seus deveres morais, não só de homem, mas de
artista.628
Portanto, para o autor, nessa fase madura de sua vida, toda obra
de arte é interessada e obra de circunstância e a arte desinteressada seria,
portanto, uma aporia. Em carta a Mário, Manuel Bandeira também
afirma que o conceito de arte desinteressada não se sustenta, e observa
que alguns dos poemas mais desinteressados do amigo apresentam valor
social:
628
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 215.
voltado para a sua doença. Depois, com o tempo,
vi que as minhas queixas exprimiam queixas de
outros, davam consolo a outros. Recebi
confidências nesse sentido. Fiquei muito
confortado porque não me senti mais inútil. Um
poeta que se exprime ingenuamente, mesmo que
tenha a ilusão de fazer arte pura, age socialmente.
Os seus "Poemas da negra" e da "amiga' são os
menos interessados nos outros, da sua obra.
Valem mais socialmente que os de Há uma gota
de sangue, porque são boa poesia.629
629
Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 12 de jan. 1944. 629
MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel
Bandeira. São Paulo, 2000, p. 665.
630
MORAES, Marcos Antonio de. “Artes de querer bem”. In: ANDRADE,
Carlos Drummond de. Versos de circunstância. São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2011, p. 22.
circunstâncias, poderíamos rotular a poesia. A
circunstância é sempre poetizável, e isso nos foi
mostrado até o cansaço pelos grandes poetas de
todos os tempos, sempre que um preconceito
discriminatório não lhes travou o surto lírico.631
631
ANDRADE, Carlos Drummond de. "O poeta se diverte". In: Jornal Correio
da Manhã, 3 jul. 1948. Apud Ibidem, 2011, p. 22.
632
MORAES, Marcos Antonio de. “Artes de querer bem”. In: ANDRADE,
Carlos Drummond de. Versos de circunstância. São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2011, p. 20.
Para celebrar festas e aniversários, para enviar um
presente – flores ou frutas, ovos de Páscoa, um
livro, um leque, um retrato. Mallarmé fazia-o
sempre acompanhar de alguns versos onde punha
a dupla delicadeza do seu afeto e da sua arte. (...)
"Nessas bagatelas", estimuladas pelo "desejo de
brincar”, há sempre aquela intenção que Mallarmé
pôs em seus poemas mais ambiciosos, isto é, de
traduzir o fugaz e o súbito em ideia, de isolar para
os olhos um sinal da esparsa beleza geral. 633
633
MORAES, Marcos Antonio de. “Artes de querer bem”. In: ANDRADE,
Carlos Drummond de. Versos de circunstância. São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2011, p. 17.
634
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. In: A música e a
canção populares no Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1972, p. 7.
635
BAUDELAIRE, Charles. "O pintor da vida moderna”. In: Poesia e prosa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 859.
Ora, minha amiga, eu creio que como elemento
inicial da criação toda obra-de-arte é “poema de
circunstância”. Tanto é poema de circunstância
uma quadrinha mandando flores num aniversário,
como já nem digo a Divina Comédia de fato
lidando com tantos elementos transitórios,
homens, políticos que desapareceram, como... já
nem digo também Os Lusíadas, qualquer
arquitetura, como... (o difícil está em achar o que
não seja poema de circunstância) como, enfim,
aceitemos, a Ifigênia de Goethe ou o Quarteto de
Debussy.636
636
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 222.
637
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 3 ago. 1944. Ibidem, 2010,
p. 291.
oposição entre o circunstancial e transitório, o permanente e universal se
mostra uma aporia. Não existe obra de arte “permanente” que possa
abrir mão do transitório; assim como não existe obra de arte transitória
que possa prescindir do Belo como ideal estético universal e
permanente. O artista é capaz de extrair o eterno do transitório, como
observa Baudelaire:
638
BAUDELAIRE, Charles. "O pintor da vida moderna. In: Poesia e prosa. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. p. 859-860.
referiu como sendo característica de uma reflexão não dialética sobre o
tema: “por um lado, devemos exigir que o autor siga a tendência política
correta, e por outro lado temos o direito de exigir que sua produção seja
de boa qualidade”.639
Não que o “sacrifício” de Mário ao produzir a sua “arte de
circunstância” – empenhada, principalmente, na construção de uma
tradição cultural brasileira – tenha sido em vão. Para João Luiz Lafetá, a
variedade técnica e temática, “que perturbou de fato a qualidade” dos
textos de Mário de Andrade, não deveria ser vista apenas no que tem de
negativo: “o direito permanente à pesquisa estética apregoado pelos
modernistas trouxe pelo menos uma consequência importante: a
linguagem dos poemas de Mário de Andrade reflete a mesma
inquietação básica e a mesma desconfiança radical que caracterizaram
grande parte da melhor literatura produzida neste século”.640 Porém, de
acordo com o crítico, “as melhores composições do escritor são os
poemas líricos, nos quais o ‘eu’ se expande e sujeita o tumulto verbal a
uma disciplina interiormente conseguida”.641 Segundo ele, é justamente
o movimento de exploração da subjetividade que acaba por revelar o
mundo de forma mais clara do que os poemas intencionais,
possibilitando a Mário alcançar a sua melhor forma, ou seja, aquela que
explora “o seu sentimento íntimo de homem” (Álvaro Lins), aquele “que
se retira em si mesmo” (Antonio Candido).642
Conforme observa Lafetá, “é no movimento simultâneo de buscar
encontrar a si mesmo e explorar o seu “eu” e de encontrar a identidade
nacional e explorar a multiplicidade da cultura brasileira que o poeta vai
conseguir produzir poemas de fato brasileiros”.643 Essa perspectiva é
corroborada por Álvaro Lins, para quem os poemas de Mário de
Andrade de fato brasileiros são justamente aqueles em que não houve
intenção deliberada de um objetivo nacionalista.644
639
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: _____. Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história. Obras escolhidas 1. São Paulo:
Brasiliense, 2008. p. 121. Apud FRAGELLI, Pedro. Engajamento e sacrifício:
O pensamento estético de Mário de Andrade. Revista IEB, n. 57. São Paulo:
USP, 2013. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/76224
640
LAFETÁ, João Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens na poesia de Mário
de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 3-4.
641
Ibidem, 1986, p. 46.
642
Ibidem, 1986, p. 6.
643
Ibidem, 1986, p. 41-42.
644
Ibidem, 1986, p. 41-42.
O mesmo se dá com relação à poesia social ou engajada
politicamente. Para Lafetá, em 1930, quando escreveu O Carro da
Miséria, Mário já fazia uma poesia social e “eficaz” em seu lirismo:
645
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, p. 188.
646
ADORNO, Theodor W.. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de
literatura I. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2012, p. 69.
Portanto, podemos pensar que embora a poesia constitua um
campo voltado para si mesmo, de modo a chamar a atenção para o
próprio texto, conforme a função poética proposta por Roman Jakobson,
ela guarda relação com a sociedade e os objetos, sem jamais perder o
seu vínculo com a referencialidade. Para Jakobson, ao colocar em
destaque o “lado palpável” do signo linguístico, a função poética
“aprofunda, por isso mesmo, a dicotomia fundamental entre os signos e
os objetos”. Entretanto, essa afirmação não implica considerar a palavra
poética exclusivamente como uma realidade totalmente autônoma e
independente, pois, como observa Jakobson, a função poética mantém
ainda certo vínculo com a referencialidade: “A supremacia da função
poética sobre a função referencial não oblitera a referência (a
denotação), mas torna-a ambígua. A uma mensagem de duplo sentido
corresponde um destinador desdobrado, um destinatário desdobrado e,
além disso, uma referência desdobrada.”647
Segundo Marjorie Perloff, a distinção entre signo e realidade feita
por Jakobson não implica numa abstração completa do referencial. A
poesia, segundo o pensador russo, não se resume à sua função poética,
ainda que esta seja dominante, pois existe sempre uma relação analógica
entre a estrutura material da linguagem (o som e as categorias
gramaticais) e o seu sentido.648 A relação do signo com o referencial
aproxima a poesia também do social.
Nota-se, porém, que a linguagem é usada na poesia de modo
distinto da prosa. De acordo com a pesquisadora Iumna Maria Simon,
Sartre estabelece uma distinção entre o universo da prosa e o universo
da poesia, afirmando que a poesia está mais ao lado da música e da
pintura do que da literatura. Na poesia, a palavra funciona como “coisa”
e não como “signo”, e a linguagem deixa de ser instrumento para
nomear o mundo: a poesia não se serve das palavras, pelo contrário,
serve-as. Para o filósofo, a prosa seria mais adequada à “ação” e a
poesia à “contemplação”, uma vez que a prosa é utilitária por excelência
e utiliza a palavra como “signo” e instrumento de nomeação do mundo.
Por isso, Sartre nega a possibilidade de “engajamento” à poesia.649
647
SIMON, Iumna Maria. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Ática,
1978, p. 37.
648
PERLOFF, Marjorie. Do que não falamos quando falamos de poesia:
algumas aporias do jornalismo literário. In: Inimigo Rumor. Rio de Janeiro,
Sette Letras, 2001, nº 12, p. 25-45.
649
Ibidem, 1978, p. 37.
Conforme observa Simon, Adorno, diferentemente de Sartre,
reconhece a presença do social nas próprias formações linguísticas:
“Embora recusando o engajamento – o dirigismo ideológico – tanto para
a arte como para a atividade crítica, Adorno não chega a negar, como o
faz Sartre, a função de “signo” da palavra poética, uma vez que mostra a
necessidade de se investigar a manifestação do social nas próprias
formações linguísticas.”650
Numa fase de maior maturidade, Mário passou a olhar com
desconfiança a arte empenhada ou de combate, consciente de que a
retórica verbal poderia prejudicar o lirismo e a fluidez psicológica de
seus poemas. Tanto que decidiu suprimir de sua coletânea de poesia os
“cacoetes de combate”: “Vou talvez polir algumas arestas e alimpar de
cacoetes de combate alguns dos meus livros publicados que mais estimo
e preparar uma edição de poesias escolhidas".651
O escritor tomava connsciência de que o importante não é tanto o
assunto abordado, mas o modo de realizar o assunto, que sempre traz a
marca pessoal do artista, mas também dialoga com o coletivo e o social.
Em “Elegia de Abril” (1941), Mário já havia proposto o
desenvolvimento de uma técnica pessoal e de seu modo particular de
realizar o assunto:
650
SIMON, Iumna Maria. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Ática,
1978, p. 37.
651
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 27 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 113.
E junto desta técnica intelectual, talvez
devêssemos obedecer mais à sensibilidade... Uma
circunstância incontestável da vida é que,
premidos por ela, nós exercitamos
quotidianamente a nossa inteligência, não pra
elevarmos a vida às suas alturas filosóficas, a uma
qualquer interpretação dela, mas pra justificarmos
os nossos próprios atos.652
652
ANDRADE, Mário. “A elegia de abril”. In: Aspectos da literatura
brasileira.. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 194.
653
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1974, p. 116.
654
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 215.
expressa no artigo “O crítico”, sobre a imparcialidade de Álvaro Lins,
em sua análise de Eça de Queirós:
655
ANDRADE, Mário. “O crítico”. In: O empalhador de passarinho. São
Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 202.
656
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 33.
Ainda segundo o pesquisador, ao se abandonar ao impulso lírico
e à linguagem, o poeta exerce uma ética associada ao próprio lirismo e
ao artefazer:
657
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Editora
Vozes/Bragança Paulista; São Francisco: Editora Universitária, 2003, p. 131-
133.
658
SCHWARZ, Roberto. “O psicologismo na poética de Mário de Andrade”. In:
A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
universaliza; ao mergulhar em sua própria
subjetividade o artista encontrará, ao fundo, o
social. A técnica deixa de ser negação do lirismo,
pelo contrário, torna-se a condição de sua
realização. Nesta dialética estará a moralidade do
artista, assim como a possibilidade de pensar
filosoficamente a obra de arte.659
659
SCHWARZ, Roberto. “O psicologismo na poética de Mário de Andrade”. In:
A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
660
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 222.
Conforme observa Agamben, na relação entre o artista e a obra de
arte, realiza-se uma “adequação ontológica” do sujeito com relação à
obra criada e vice-versa, a partir da contemplação da potência – ou seja,
da essência ou da natureza –, de modo que tanto o artista quanto a obra
passam por uma transformação. Nessa perspectiva, o artista / sujeito não
é dado antecipadamente, mas construído em sua relação com a obra de
arte e passa a coincidir com ela: “A forma-de-vida é o ponto em que o
trabalho numa obra e o trabalho sobre si coincidem perfeitamente”.661
Ainda segundo Agamben, o ato da criação poética – e, talvez,
todo ato de palavra – supõem de algum modo uma subjetivação e,
consequentemente, uma dessubjetivação – para ele, “musa” é o nome
que os poetas sempre deram a essa dessubjetivação: “Poetas, segundo
Bachmann, são justamente aqueles que “têm feito do Eu o terreno de
seus experimentos, ou que têm feito de si mesmos o terreno
experimental do Eu. Por isso, correm constantemente o risco de perder a
clareza de saber o que dizem”.662
De acordo com o filósofo, na língua, o discurso é um ato
paradoxal, que implica, ao mesmo tempo, uma subjetivação e uma
dessubjetivação, na qual o indivíduo se apropria da língua somente
como uma expropriação integral de si mesmo, e se torna falante somente
sob a condição de fundir-se ao silêncio:
661
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato. Trad.
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 165.
662
AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo.
Homo Sacer III. Valência: Pré-textos, 2002, p. 120.
663
Ibidem, 2002, p. 123.
O universo imaginário de uma obra é um conjunto
de significações constituídas em virtude das
relações intra e inter imagens. Não é constituído
por uma consciência empírica ou natural, mas
graças a um pôr-se-em-obra que ultrapassa a
imediatidade do mundo. O poeta-em-obra não é
um sujeito empírico. É, antes, um lugar. A
significação do mundo na imagem brota do
próprio mundo, como apreensão do poeta-em-obra
– um campo imaginário transcendental. Quando
nos referimos ao poeta, desaparece o sujeito
empírico.664
664
KNOLL, Victor. Paciente arlequinada: Uma leitura da obra poética de
Mário de Andrade. São Paulo: Hucitec: Secretaria de Estado de Cultura, 1983,
p. 28.
665
Ibidem, 1983, p. 36-37.
666
HEGEL, Georg Wilhein Fridrich. Cursos de Estética. Apud LAFETÁ, João
Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens na Poesia de Mário de Andrade. São
Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 68.
Hoje eu olho pras minhas obras de agora com um
respeito adorante, elas não nascem de mim, elas
vêm lá de fora. Não sou eu que cedo elas aos
outros, como que elas é que vêm me contar como
é o mundo dos outros, não sei bem, não consigo
me analisar. Sei que faço elas como se elas não
me pertencessem, não fossem minhas, há um
temor novo em mim. E assim terrivelmente
inquieto quando eles se destacam de mim pela
publicidade e tenho um medo feroz do que elas
virão me contar, assim livres e publicadas.667
667
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 15 jun. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 257.
668
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 63.
caráter transitório de sua obra, o poema é fruto do esforço do poeta para
criar uma arte capaz de permanecer, levando ao paroxismo a
dramatização da vida em sua poesia:
669
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 322.
primeira”, o próprio sentido da poesia. No
pensamento de Heidegger e de Mário, o sentido
mais profundo da poesia não se deixa apreender,
portanto, apenas como discurso, mas também e
muito como música, como logos musical.670
670
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 37.
671
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Editora
Vozes/Bragança Paulista; São Francisco: Editora Universitária, 2003, p. 22.
672
Ibidem, 2003, p. 12.
673
Ibidem, 2003, p. 14.
674
Ibidem, 2003, p. 25.
675
Ibidem, 2003, p. 15.
676
Ibidem, 2003, p. 19-20.
O popular sobreposto ao culto, eis aí! O que mais
chama a atenção nesta sua poesia, em que a terra
brasileira, não apenas a paulistana, está presente
até na respiração dos versos, é o equilíbrio que
nem sempre dominou na anterior. Não estou
preferindo este equilíbrio ao deslumbrante
desequilíbrio de outros poemas; verifico somente
que a força de convicção é maior, em exata
correspondência com as suas preocupações de
ordem social. A sátira veio forte e rija – poderei
dizer ruminada? – das profundezas do ser. Só
convence aquele que tem a verdade em si mesmo.
Só a arte realizada é verdadeiramente arte de
combate. Como você é grande!677
677
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 22 out. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 302.
678
ANDRADE, Mário. “O Artista e o Artesão”. In: O baile das quatro artes.
São Paulo: Martins Editora, 1975, p. 75.
Segundo observa Leandro Pasini, "A Meditação sobre o Tietê"
faz uma revisão praticamente completa da obra poética de Mário, que
pode ser acompanhada explicitamente a partir de citações literais ou
quase literais de seus poemas. De acordo com o pesquisador, “os três
primeiros livros de poemas modernistas de Mário, que visavam
construir positivamente uma modernidade brasileira, são retomados por
um viés negativo, invertendo e rechaçando a adesão construtiva e
nacionalista de então”. Conforme demonstra Pasini, embora os temas
abordados na “Meditação” sejam os mesmos dos livros anteriores, eles
são tratados de modo mais pessoal, mais denso e mais crítico,
geralmente em tom de negação ou questionamento. No poema
encontramos a fusão do mítico e do histórico, do arcaico e do moderno,
o que reforça a ideia de eterno retorno do mesmo, que seria, segundo o
pesquisador, um dos elementos-chave para a sua compreensão.
O poema desconstrói vários aspectos sociais brasileiros, o
convívio do progresso com o subdesenvolvimento, a violência mesmo
em tempos de paz, as famílias desestruturadas, o voto de cabresto, a
exploração do trabalho, a desigualdade social, o racismo, a herança
colonial da miséria. A ausência do ideal, a perda da noção de totalidade,
a impossibilidade de harmonia e a diluição da comunidade de sentido
representam dificuldades intrínsecas e imponderáveis ao poeta. Ele
empreende então uma destruição do passado, em busca de criar as
condições para resolver os problemas da formação e construir uma nova
civilização brasileira.
Desde 1925, quando escreveu “Louvação da tarde”, Mário havia
iniciado uma nova fase em sua produção, passando da poesia mais
exterior dos primeiros tempos de luta modernista para uma poesia mais
interior, conforme observa Antonio Candido:
679
CANDIDO, Antonio. “O Poeta Itinerante”. In: O Discurso e a
Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998, pp. 277-278.
680
Ibidem, 1998, pp. 277-278.
marfim”, sem precisar fazer concessões formais em função de uma arte
empenhada ou de proselitismos, que prejudicavam a sutileza da sua
poesia. Em carta a Drummond, em junho de 1944, ele expressa o seu
contentamento com a sua nova fase “lírico-combativa”, durante a escrita
de Lira Paulistana e “A Meditação sobre o Tietê”:
681
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 30 jun. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 204.
foi importante para a concepção do poema a percepção de que “nunca
estará sozinho”:
682
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 15 out. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 220.
683
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 10 nov. 1924.
Ibidem, 1988, s/p.
Mário desejava escrever uma poesia conectada com a vida e com
as pessoas. Paradoxalmente, foi mergulhando em seu próprio eu lírico,
ao escrever a “A Meditação sobre o Tietê”, que ele conseguiu alcançar o
outro de modo mais eficaz e vencer o individualismo e o isolamento.
Curioso notar que Mário receava que “A Meditação sobre o Tietê” não
fosse compreendido ou apreciado pelos leitores por ser “seu por
demais”, demasiadamente pessoal, e trazer uma radicalização do
mergulho no eu lírico, em vez de se dirigir conscienciosamente para o
leitor.
Podemos pensar que, ao escrever o poema, Mário abandonou as
teorias literárias para se abandonar às atitudes vitais, o que possibilitaria
um maior contato com a vida e com as pessoas, conforme ele defende,
em carta a Drummond:
684
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 210.
andaram meio que me desvirtuando os processos e
convicções, não pegava o jeito. Pois de supetão
deslanchado por um acontecimento inesperado e
que não vale a pena contar, a coisa jorrou, me
saíram de jorro uns dezesseis poemas. São
coisinhas curtas, muito sintéticas, em geral
metrificadas e rimadas. Se pudesse lhe mandar...
Gostei desses poemas porque sei que sou eu.685
685
Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, 5 ago. 1944. MORAES,
Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira.
São Paulo, 2000, p. 210.
686
NETO, José Emílio Major. A Lira Paulistana de Mário de Andrade: a
insuficiência fatal do Outro. Tese. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, USP, 2006, p. 28.
verdade do ser, nascida sempre da sua moralidade
profissional. Não tanto o seu assunto, mas a
maneira de realizar o seu assunto. Que os assuntos
são gerais e eternos, e entre eles está o deus como
o herói e os feitos. Mas a superação que pertence
à técnica pessoal do artista como do intelectual, é
o seu pensamento inconformável aos imperativos
exteriores. Esta a sua verdade absoluta.687
687
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1974, p. 193-194.
que representa o impacto da expressão estética. A
tensão nunca totalmente resolvida entre essas duas
forças constitui a base sobre a qual se ergue uma
nova solução poética. (...)
“Meditação sobre o Tietê” apresenta-se como o
momento de maior tensão na imaginação do poeta
devido à afirmação simultânea da atração da
fruição estética e da exigência da vida ética e
política. Do confronto dessas duas forças muito
vigorosas resulta a realização do impressionante
poema, que abriga em seus versos intensa carga
dramática. Teria o poeta, nessa altura, alcançado a
serenidade referida nas imagens derradeiras da
lágrima diluída e a alga escura? O poema está
datado de 30 de novembro de 1944 a 12 de
fevereiro de 1945. MA morreu duas semanas
depois, em 25 de fevereiro.688
688
JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: A morte do poeta. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 143.
delas. Mas não penso nelas. Só os olhos vivem. Só
os olhos vivem por enquanto.689
692
LISBOA, Henriqueta. Vigília poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1968, p. 21.
693
ANDRADE, Mário. Losango cáqui. In: Poesias Completas – De Pauliceia
Desvairada a Café. Círculo do Livro, s/d, p. 26.
694
Ibidem, s/d, p. 26.
constituir uma subjetividade singular, que possa distingui-lo dos
demais?695
De acordo com o estudioso, poderíamos esperar, numa
perspectiva mais romântica, que o poeta se distinguisse dos demais ou
da multidão, por estar acima ou fora dela. No caso de Baudelaire,
porém, essa distinção se dá exatamente na medida em que o poeta sente
mais intensamente a multidão, os seus efeitos, do que aqueles que nela
vivem submersos, de modo indistinto. A singularidade do poeta não se
faz, portanto, de um modo alheio à multidão, mas inserida no meio dela.
Segundo Baudelaire, “o poeta é o solitário na multidão”. Há, portanto,
uma sensibilidade peculiar a esse traço da vida moderna, que traz em si
um paradoxo: o poeta se encontra quando ele se perde na multidão.
Conforme observa Luciano Costa Santos696, mais que uma busca
por encontrar a identidade cultural do homem brasileiro, a questão da
nacionalidade adquire, para Mário, uma dimensão ontológica, pois é a
partir da consciência com relação ao lugar que o seu país ocupa no
concerto das nações civilizadas que será possível ao homem brasileiro se
situar no mundo e ter condições de autodeterminação.
Assim como Baudelaire, Mário de Andrade provavelmente se
sentiu só em meio à multidão vociferante, estando ao mesmo tempo
inserido, mas também distanciado com relação a ela. Para conhecer a
identidade de seu país, foi preciso, num primeiro momento, que ele
abdicasse um pouco de si mesmo, de suas possibilidades e inquietações
individuais e artísticas, para procurar se integrar a essa multidão e
buscar encontrar nela uma identidade coletiva. “Nós temos que dar ao
Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos
que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é
sublime. E nos dá felicidade”, conclama o escritor a Drummond.697
Desejoso de construir uma identidade nacional e contribuir para
formar uma tradição cultural brasileira, Mário encarava com
desconfiança produções culturais “contaminadas” pelo mundo moderno
e urbano e pela cultura de massa. Segundo ele, a arte nacional já estava
presente no povo, no folclore, na arte popular no inconsciente coletivo, e
695
SILVA Franklin Leopoldo. Curso de Filosofia e Intuição Poética na
Modernidade. USP / Univesp, 2013. Disponível em:
http://www.veduca.com.br/play/5678
696
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005.
697
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 70.
o artista, poderia, portanto, transpor seus elementos particulares para a
arte erudita, e desse modo encontrar um caráter particular e
diferenciador, característico de nossa identidade. A partir do dado
cultural recolhido em suas pesquisas, em que eram utilizados métodos
de etnografia, antropologia e sociologia, ele procurou penetrar nos
universos simbólicos do povo, a fim de identificar tradições capazes de
transitar entre a arte folclórica e popular e a arte erudita.
Essa “construção” de uma identidade brasileira não se limita a
descrever índices de nacionalidade em aspectos exteriores – a natureza,
o índio, a cor local –, mas remete ao “instinto de nacionalidade”
proposto por Machado de Assis, ao se referir a “um certo sentimento
íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando
trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. Em “O poeta come
amendoim”, Mário de Andrade expressa essa busca de uma identidade a
partir de um sentimento e um jeito de ser próprios do brasileiro:
698
ANDRADE, Mário. Poesias Completas – De Pauliceia Desvairada a Café.
In: Losango cáqui. Círculo do Livro, s/d, p. 120.
povo e criar uma empatia com ele. Segundo Mário, no “Ensaio sobre a
música brasileira”, “uma arte nacional não se faz com escolha
discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na
inconsciência do povo. O artista tem apenas que dar aos elementos já
existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música
artística, isto é, imediatamente desinteressada.”699
A questão, porém, se mostrava mais problemática, pois os
elementos que caracterizariam a arte nacional seriam fruto de uma
comunhão inconsciente e silenciosa entre os homens não acessível à
consciência, mas revelada apenas pela catarse coletiva do artista
popular, numa experiência quase mística. Nas palavras de Pedro Meira
Monteiro:
701
MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade/ Sérgio Buarque de
Holanda: Correspondência. São Paulo: Companhia das Letras / Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB) / Edusp, 2012, p. 209.
702
ANTELO, Raúl. Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-
americanos. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-
Memória, 1986, p. 16.
703
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 204.
povo brasileiro começava então a adquirir consciência política, mas
ainda não o bastante para fazer uma revolução capaz de mudar as
arraigadas estruturas de poder do país e romper com a desigualdade
social. Durante as suas viagens pelo Brasil, em suas peripécias de
Turista Aprendiz, Mário escreve para uma amiga francesa e conta sobre
o sofrimento que observava no povo brasileiro:
704
ANDRADE, Mário. O Turista Aprendiz. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1983, p. 166.
705
Ibidem, 1983, p. 280.
apreender os fatos radicalmente distinto da consciência ingênua, que é
puro objeto de determinações exteriores. Ela implica não apenas uma
conduta humana desperta e vigilante, mas também uma atitude de
domínio de si mesmo e do exterior, a partir de uma compreensão de seus
condicionamentos. Para o autor, a consciência crítica instaura a aptidão
autodeterminativa que define a pessoa como ente portador de
consciência autônoma, isto é, nem determinada de modo arbitrário, nem
pela pura contingência da natureza.706
Guerreiro Ramos menciona alguns fatos que autorizariam afirmar
que o povo brasileiro vivia uma nova etapa do seu processo histórico-
social: a industrialização e suas consequências, a urbanização e as
alterações do consumo popular.707 A autodeterminação está, segundo
ele, associada com o refinamento dos motivos da vida ordinária, com a
libertação progressiva dos afazeres elementares. Nessa perspectiva, a
assimilação crítica desses produtos teria de se opor à assimilação literal
e passiva dos produtos científicos importados.708
Um risco que se corre ao se pensar a nação, procurando
identificar os seus traços distintivos, é considerá-la uma unidade, apesar
de sua multiplicidade, e não atentar para as diferenças de classe e de
acesso aos direitos que nela subsistem. Outro risco é projetar no
intelectual, em seu papel de mediador entre a cultura erudita e popular,
um protagonismo como agente mediador num processo de
transformação social e afirmação das camadas populares que conta
também com a participação ativa desse próprio povo.
Ao se pensar a coletividade, devemos fazer uma distinção entre
povo e multidão. Essa conceituação tem uma prerrogativa histórica, que
remete à Roma Antiga. No texto “Para uma definição ontológica da
multidão”709, Antônio T. Negri procura redefinir o conceito de multidão,
tomando-o como uma imanência e um conjunto de singularidades não
representáveis. Ele opõe o conceito de multidão ao de povo e de massa,
libertando-o da transcendência da unificação e da tirania do soberano. A
multidão designa, assim, uma multiplicidade imensurável que constitui
um ator social ativo, um “monstro revolucionário” que nos conduz a um
706
GUERREIRO RAMOS, Alberto. A redução sociológica. 3a.edição, Rio de
Janeiro, Editora da UFRJ, 1996, p. 53.
707
Ibidem, 1996, p. 53.
708
Ibidem, 1996, p. 68.
709
NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da Multidão. Revista Lugar
Comum, nº 19-20, 2009, 15-26.
mundo inteiramente novo, fazendo-nos mergulhar em um turbilhão de
mudanças que se encontram em curso.710
Segundo o autor, a massa e a plebe foram colocadas,
historicamente, como força social irracional e passiva, violenta e
perigosa, facilmente manipulável. Porém, a multidão é, ao mesmo
tempo, sujeito e produto da prática coletiva, resultado da multiplicidade
de corpos, que expressa a potência enquanto conjunto e enquanto
singularidade. Para ele, as metamorfoses que colocam a multidão como
conjunto e a singularidade como multidão nada mais são que produtos
de lutas, movimentos e desejos de transformação.
Paolo Virno, no texto “Multidão e princípio de individuação”,
também assinala que as formas de vida contemporâneas testemunham a
dissolução do conceito de "povo" e uma renovada pertinência do
conceito de "multidão".711 Segundo o pesquisador, o "povo" é de
natureza centrípeta, pois converge numa vontade geral, é a interface ou
o reflexo do Estado; enquanto a "multidão" é plural, pois foge da
unidade política e não firma pactos com o soberano, não porque não lhe
relegue direitos, mas porque é reativa à obediência e tem inclinação para
certas formas de democracia não-representativa.
Porém, o autor aponta que, desde o Século XVII, é o "povo" que
obtinha e destinava a existência política da multidão, que havia sido
afastada do horizonte da modernidade: não somente pelos teóricos do
Estado absolutista, mas também por Rousseau, pela tradição liberal e
pelo próprio movimento socialista. No entanto, hoje a multidão
desforra-se, ao caracterizar todos os aspectos da vida social: os hábitos e
a mentalidade do trabalho pós-fordista, os jogos de linguagem, as
paixões e os afetos, as formas de conceber a ação coletiva.712
Virno conclui que a multidão é uma rede de indivíduos que indica
um conjunto de singularidades contingentes. Estas singularidades são o
resultado complexo de um processo de individuação. Portanto, o ponto
de partida de toda verdadeira individuação é algo ainda não individual.
O que é único, não reprodutível, passageiro, provém, de fato, do que é
mais indiferenciado e genérico. As características particulares da
individualidade enraízam-se em um conjunto de paradigmas
710
NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da Multidão. Revista Lugar
Comum, nº 19-20, 2009, p. 15-26.
711
VIRNO, Paolo. Multidão e princípio de individuação. Revista Lugar Comum,
nº 19, 2009, p. 27-40.
712
Ibidem, 2009, s/n.
universais.713 A multidão mostra a mescla inextricável de singularidade
não reprodutível e anônima da espécie, individuação e realidade pré-
individual. Cada uma das multidões tem atrás de si o universal, a modo
de premissa ou de antecedente, mas não tem a necessidade dessa
universalidade postiça que constitui o Estado.
Cabe também atentar para a distinção entre plebe e povo, estando
a primeira à margem da segunda, embora também se veja dentro da
totalidade do povo e reivindique a sua inclusão nos direitos desfrutados
pelas camadas mais favorecidas. O conceito de povo implica saciedade,
completude, homogeneização, universalidade. Enquanto que a plebe
remete a parcialidade, heterogeneidade, incompletude, pulsões e
demandas sócio-políticas.
Conforme observa Raúl Antelo714, havia em Roma uma
assimetria entre o conceito totalizador de comunidade (o populus) e o
conjunto altamente heterogêneo dos marginalizados (a plebs). Cada um
dos termos inclui e, ao mesmo tempo, exclui o outro – a margem é
sempre uma parcialidade que, no entanto, identifica-se a si mesma com
a comunidade enquanto todo. Em Roma, porém, a plebisque (plebe)
estava excluída da populus (povo).
Mário de Andrade viveu uma crise existencial profunda no final
de sua vida, desencantado com o individualismo de seus pares, os
desentendimentos entre eles, a falta de união em torno de um projeto
coletivo para a cultura brasileira, a falta de consciência política e social,
a perda do cargo na Secretaria Municipal de Cultura e a falta de
continuidade para o trabalho que havia iniciado à frente da instituição.
Após ter empenhado toda a sua vida e sua obra na luta pela cultura
brasileira, ele se mostrava desapontado com os resultados alcançados.
Mário volta então para a sua casa, situada à rua Lopes Chaves,
em São Paulo, decidido a combater somente a partir de sua torre-de-
marfim e jamais se sujeitar novamente a cargos institucionais ou
conchavos políticos. Mesmo que, naquele momento, tudo pudesse
parecer sem sentido para o poeta, ele jamais deixou de buscar um
sentido ou de acreditar em utopias, como na possibilidade de comunhão
entre os homens e de transformação da realidade brasileira. E foi talvez
a atitude de substituir a arte empenhada por uma arte que pudesse falar
713
VIRNO, Paolo. Multidão e princípio de individuação. Revista Lugar Comum,
nº 19, 2009, s/n.
714
ANTELO, Raúl. Os confins como reconfiguração das fronteiras. Revista
Brasileira de Literatura Comparada. Rio de Janeiro: julho de 2006, nº8, p. 59-
82.
por si mesma que tenha lhe possibilitado escrever a sua obra-prima, “A
Meditação sobre o Tietê”.
Ao fazer a crítica de um livro de Cecília Meireles, no artigo
“Cecília e a poesia”, em 1939, Mário se deteve num poema sobre um
cão perseguindo o eco de seu próprio latido. Trata-se de uma imagem
poderosa, que pode servir para ilustrar a própria busca pelo sentido por
parte do poeta diante de mistérios que o ultrapassam, da impossibilidade
de acessar o sentido que tanto o angustiava, mas lhe servia de força para
seguir adiante:
716
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano – uma resposta à carta
de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo, Estação Liberdade, 2000.
717
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano – uma resposta à carta
de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo, Estação Liberdade, 2000, s/n.
Que não pode mais ser definido como animal racional, zoológica ou
biológica. Mesmo com adições espirituais.718
A partir do momento em que os homens não poderiam mais
escrever cartas, no tão sombrio ano de 1945, morria Mário de Andrade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
718
Ibidem, 2000, s/n.
719
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 322.
Até então, o poeta estava empenhado em realizar uma “poesia de
circunstância” que direcionava as manifestações do impulso lírico
inconsciente para determinadas finalidades éticas, morais e sociais da
vontade consciente, em detrimento da finalidade precípua da obra de
arte. Porém, depois o escritor modernista se deu conta de que a criação
artística é também humana em seu modo de fazer, e portanto moral e
social, e buscou criar uma ética a partir da própria criação artística.
Complementando o que ele havia dito em “O artista e o artesão”, em que
valoriza o artesanato e a técnica e critica o individualismo, Mário
destaca em “Elegia de Abril” a importância da técnica pessoal do artista
e a sua maneira particular de realizar o assunto, usando a sua
sensibilidade.
Em “A Meditação sobre o Tietê”, o escritor parece querer
valorizar, sobretudo, a própria especificidade poética, de modo que o
poema possa falar por si próprio, a partir da experiência da linguagem.
Segundo Heidegger, o poema, embora não se furte de ser uma expressão
humana, deve ser capaz de falar por si próprio, de modo inaugural, e não
servir de instrumento para o poeta expressar seus ideais ou os seus
sentimentos: “a linguagem fala”. 720
Mário destaca o valor da consciência moral do fazer artístico, que
exige o instrumento (obra de arte) e também se utiliza da beleza, mas
não deve jamais “perder de vista os outros homens”, ou seja, não deve
se furtar de seus compromissos com a sociedade e com o seu tempo e
nem perder de vista a “influência moralizadora do artesanato, da técnica
no grande sentido”. 721 Ele chama a atenção para a necessidade de o
artista se preocupar não apenas com a Beleza – e a busca da perfeição
estética –, mas sobretudo com a moral do fazer artístico, que está
vinculada com o caráter humano da criação artística e se utiliza da
beleza (em minúsculo) – que é uma consequência natural da técnica do
objeto.
Ao escrever Lira Paulistana, Mário finalmente pôde mergulhar
livremente em seu eu lírico, sem precisar fazer concessões formais que
prejudicavam a fluidez de sua poesia. Diante das contingências de seu
momento histórico, o poeta modernista passou a considerar que, ao
menos naquele momento, o artista não poderia se abster de participar
720
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Editora
Vozes/Bragança Paulista; São Francisco: Editora Universitária, 2003, p. 22.
721
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 15 jun 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 256-257.
ativamente da vida política. Mas, para isso, não seria necessário fazer
“arte empenhada ou “poesia de combate” – bastaria deixar a poesia falar
por si mesma.
Ele percebe que toda poesia é, em última instância, “poesia de
circunstância’, uma vez que a arte está sempre associada ao contingente
e transitório – embora também mantenha relação com o Belo
permanente e universal. A arte não deveria, portanto, ser vista como
instrumento para o artista expressar um pensamento preconcebido ou
fazer proselitismos (expressar a cultura brasileira, fazer militância
política); se ela tem algo a dizer, deve falar por si mesma, a partir da
técnica pessoal do artista, que traz ao fundo o social.
A questão, portanto, não é fazer ou não poesia de circunstância,
social ou de combate; o que importa mesmo não é o assunto, mas o
modo como o artista realiza o assunto. No momento em que Mário
deixou de fazer arte empenhada, a poesia pôde então falar por si mesma.
Não a arte desinteressada, essa outra utopia, nem a arte empenhada,
refém da prosa, mas uma fusão da função poética e função referencial,
do coletivo e individual, como observaram Antonio Candido e José
Aderaldo Castello. 722
Como procuramos argumentar, a distinção entre “poesia de
circunstância” e “poesia desinteressada” se mostra, antes, uma aporia,
pois, como aponta Mário, realizar a arte atendendo a critérios estéticos
não exclui os aspectos morais e sociais, uma vez que a arte é
fundamentalmente humana e social em seu modo de fazer. Não se trata
propriamente de fazer ou não poesia de circunstância, social ou de
combate; o que importa mesmo é o artefazer, o modo como o artista
realiza a sua criação. Um poema pode ser arte de combate político, mas
não como instrumento para propagar ideias preconcebidas pelo seu
autor, e sim a partir dos elementos que se apresentam na criação do
poema e que a palavra evoca no momento da criação. A ênfase aqui está
no processo criativo como o surgimento de algo novo, até então ausente,
que foge ao condicionamento da linguagem cotidiana e instrumental,
bem como ao discurso preconcebido, retórico e proselitista.
A obra de arte se realiza, portanto, em uma esfera própria, mas
ainda assim vinculada ao artista, a seu modo de fazer e à sociedade – o
que assegura o caráter humano, moral e social da arte. O mais
importante, nessa perspectiva, é que a poesia se realize plenamente, seja
qual for o seu motivo e a sua circunstância. Nas palavras de Henriqueta:
722
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
“Só a arte realizada é verdadeiramente arte de combate. Como você é
grande!723
Ao fazer uma reflexão sobre os rumos da poesia contemporânea,
Mário faz um contraponto ao abuso do individualismo e das veleidades
da inflação do ego na criação artística, valorizando aspectos da poesia
clássica e romântica, como o domínio técnico, a atenção às exigências
da matéria-prima artesanal – o que não implica numa volta ao passado,
mas numa busca de atualização da tradição literária no presente. Tanto
Mário quanto Henriqueta pareciam buscar no escolasticismo e no
pensamento de São Tomás de Aquino – reinterpretado por Jacques
Maritain – as soluções para corrigir as distorções que percebiam na arte
de seus contemporâneos, como o individualismo, a intelectualização
exagerada, as perífrases, as analogias herméticas, o preciosismo e o
artificialismo ao modo parnasiano.
O conteúdo dessa análise corrobora, portanto, as hipóteses
iniciais – a de que a correspondência entre Mário de Andrade e
Henriqueta Lisboa revela uma tensão entre “poesia de circunstância” ou
“arte de combate” e “poesia de permanência” ou “arte desinteressada”.
Também buscou-se mostrar como Mário amadureceu a sua
concepção de poesia, de modo a conseguir unir os elementos éticos com
os estéticos na criação artística. Considerando-se os aspectos éticos e
políticos, verificou-se como Mário buscava subsídios para elaborar uma
concepção de poesia que fosse capaz de unir o belo ao útil humano, o
estético ao ético.
Com relação a Henriqueta, confirmou-se a premissa de que a
poeta mineira atualizou a sua poesia e desenvolveu a sua técnica,
ganhando o reconhecimento da crítica e de seus pares. Porém, talvez
porque tenha escolhido seguir um caminho próprio, sem participar de
grupos e escolas, e também devido a certo hermetismo de linguagem, a
poeta mineira se manteve ainda pouco conhecida do grande público.
Como pudemos perceber nas diversas críticas à sua poesia,
Henriqueta era muito elogiada pelo domínio técnico e pela perfeição
formal de sua poesia, mas enfrentava certa resistência dos críticos
principalmente com relação ao tratamento dado a temas ligados à
espiritualidade, por incorrer em certo hermetismo.
Ela define a poesia como “a contingência do eterno no efêmero”
e declara a sua ambição de, com ela, “fundir o perene e o transitório”.724
723
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 22 out. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 301.
A poeta mineira vivia o permanente conflito entre o caminho da arte e o
da religião. Ela queria atualizar a sua poesia, mas encarava o mundo
material e contingente com desconfiança e distanciamento crítico.
Para a poeta mineira, a obra de arte não deve ser apreciada em si
mesma, na materialidade de sua linguagem, mas também se deve
considerar, intuitivamente, aquilo que a palavra não revela, guardando
em seu silêncio a essência das coisas. Em sua concepção, o poema,
embora possa constituir uma estrutura com certa autonomia em si
mesma, se realiza na subjetividade humana – como presságio e augúrio
de uma realidade mais sublime.
Porém, ao elaborar uma concepção de poesia que não se baseia
propriamente no poder da linguagem, mas requer o auxílio da
subjetividade e da empatia espiritual, Henriqueta corre o risco de perder
a capacidade de se comunicar com o leitor. Ela muitas vezes deslocava o
foco da experiência particular e cotidiana do artista para um ponto de
vista universal, colocando o geral em primeiro plano e tornando a poesia
mais conceitual e abstrata, em prejuízo do lirismo e da materialidade da
linguagem.
Podemos pensar que, a partir de sua experiência poética, um
poeta pode, eventualmente, alcançar um sentido mais abstrato e
universal; o problema seria partir do universal, dos valores eternos, para
o particular, e não o oposto. A questão que se coloca não é abordar ou
não “valores eternos” ou fazer “poesia de combate”. Assim como
acontecia com Mário, o problema não seria propriamente o assunto
tratado, mas o modo de abordar o assunto.
Na poesia de Henriqueta, as palavras – e o mundo material –
figuram como uma espécie de metáfora de uma realidade superior, que
cabe ao leitor desvelar e encontrar o sentido, não bastando, portanto,
como fontes de significação “imanente” e capazes de trazer o sentido em
si mesmas. A própria linguagem figura como uma metáfora ou um
símbolo do mistério da criação, do transcendente e imaterial.
Por outro lado, podemos pensar que a decifração do mundo e do
mistério realizada pela poeta mineira não necessariamente limita a sua
poesia ao hermetismo, pois muitas vezes aquilo que é objeto de sua
intuição se converte em belas imagens, capazes de repercutir na
compreensão da inteligência e na sensibilidade dos sentidos. Como
procuramos demonstrar, a poesia de Henriqueta ganha força à medida
724
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 250-251.
que a poeta se sujeita a viver “o desgosto e a necessidade da vida”,
talvez porque assim ela adquira mais realidade humana e se torne menos
cifrada e mais capaz de se comunicar com o leitor.
BIBLIOGRAFIA