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Rodrigo José Brasil Silva

CORRESPONDÊNCIA ENTRE MÁRIO DE ANDRADE &


HENRIQUETA LISBOA:
POESIA EM TEMPOS DE GUERRA

Tese submetida ao Programa de


Literatura da Universidade Federal de
Santa Catarina para a obtenção do
Grau de Doutor em Literatura
Orientadora: Profª Drª Maria Lucia de
Barros Camargo

Florianópolis
2019
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor através do
Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Brasil Silva, Rodrigo José


Correspondência entre Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa : Poesia em tempos de guerra /
Rodrigo José Brasil Silva ; orientadora, Maria
Lucia de Barros Camargo, 2019.
345 p.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Comunicação e Expressão,
Programa de Pós-Graduação em Literatura,
Florianópolis, 2019.
Inclui referências.
1. Literatura. 2. Mário de Andrade. 3.
Henriqueta Lisboa. 4. Epistolografia. 5. Crítica
literária. I. de Barros Camargo, Maria Lucia . II.
Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de
Pós-Graduação em Literatura. III. Título.
Rodrigo José Brasil Silva

CORRESPONDÊNCIA ENTRE MÁRIO DE ANDRADE &


HENRIQUETA LISBOA:
POESIA EM TEMPOS DE GUERRA

Esta Dissertação/Tese foi julgada adequada para obtenção do Título de


“Doutor” e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-
Graduação em Literatura

Florianópolis, 26 de março de 2019.

________________________
Profa. Dra. Patricia Peterle Figueiredo Santurbano
Coordenadora do Curso

Banca Examinadora:

________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Lucia de Barros Camargo
Orientadora
Universidade UFSC

________________________
Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes
Universidade USP

________________________
Prof. Dr. Raúl Antelo
Universidade UFSC

________________________
Profa. Dra. Patricia Peterle Figueiredo Santurbano
Universidade UFSC
Para minha mãe, Dona Teresa, por
todo o apoio e amor, em todos os
momentos.
AGRADECIMENTOS

A minha orientadora, Profª Maria Lucia de Barros Camargo, por


ter acreditado no meu potencial e me ajudado a alcançar o melhor
resultado possível.
O presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001.
RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo refletir sobre a relação entre ética e
estética na criação artística, tendo como ponto de partida a
correspondência entre Mário de Andrade (1893-1945) e Henriqueta
Lisboa (1901-1985), realizada entre 1939 e 1945, período marcado pela
Segunda Guerra Mundial e pela ditadura de Getúlio Vargas. Nessa
época em que as questões político-sociais se tornaram prementes, de que
modo a postura ética se relacionava com a estética? Nas cartas de Mário
a Henriqueta, escritas no auge de sua maturidade, predominam reflexões
sobre o papel do intelectual na sociedade, a responsabilidade moral do
artista, o processo de criação. A correspondência revela, ainda, aspectos
do processo de criação poética de Henriqueta Lisboa e de sua busca por
conciliar uma poética voltada para questões espirituais e do ser com as
inovações da poesia modernista e as exigências da crítica literária da
época.

Palavras-chave: 1. Mário de Andrade. 2. Henriqueta Lisboa. 3.


Epistolografia. 4. Crítica literária. 5. Responsabilidade social.
ABSTRACT

This research aims to reflect upon the relationship between ethics and
aesthetics in artistic creation, starting with the correspondence between
Mário de Andrade (1893-1945) and Henriqueta Lisboa (1901-1985),
held between 1939 and 1945, a period marked by the Second World
War and the dictatorship of Getúlio Vargas. In this period when socio-
political issues became pressing, how does ethical posture related to
aesthetics? In the letters of Mario to Henriqueta, written at the height of
his maturity, predominate reflections about the role of the intellectual in
society, the moral responsibility of the artist, the process of creation.
The correspondence also reveals aspects of the poetic creation process
of Henriqueta Lisboa and her quest to reconcile a poetics focused on
spiritual issues and being with the innovations of modernist poetry and
the demands of literary criticism of the time.

Keywords: 1. Mário de Andrade. 2. Henriqueta Lisboa. 3.


Epistolography. 4. Literary criticism. 5. Social responsibility.
Mário
Henriqueta Lisboa

Digo: Mário. Não responde.


Grito: Mário! Não responde.
Mário! Mas que angústia, Mário!
Não responde, não responde.

Mário não responde mais.


Nem a suspiro nem gritos.
Talvez nunca mais responda.
Nunca, nunca mais.

Mário respondia sempre.


Sempre. E como respondia!
Mas agora não responde.
Não responde, não responde.

Mário! Todos se erguem. Mário!


Gritam do sul e do norte.
De Minas e de São Paulo.
Com mais força gritam: Mário!

Soluça o Brasil. Impreca.


Mário! No abraço dos ventos.
Mário! no bater dos bronzes.
No pranto das ondas: Mário!

Mário! da montanha. E acesos


Fachos ardem na montanha.
Pode ser que a noite espessa
guarde o destino de Mário.

Que mistério nas florestas!


E em poucos instantes entram
verdes brenhas – Mário! Mário! –
moços, anciãos e donzelas.

Mário! em notas várias clamam


Vozes límpidas e roucas.
Pássaros e feras pasmam
consultando os astros: Mário?

Passam luas, nascem flores,


Secam-se rios e séculos.
As gerações por seu turno
Repetindo: Mário. Mário.

Nos escampados, em coro,


Levantam bandeiras: Mário!
Na densidão dos nevoeiros
– Mário... gemem como crianças.
SUMÁRIO

Introdução.............................................................................................19
CAPÍTULO 1
1.1 Ponderações sobre as cartas..........................................................31
1.2 Amor de amigo................................................................................41
1.3 Silêncios e constrangimentos.........................................................50
1.4 Excessos x virtudes.........................................................................59
1.5 Religião e emancipação..................................................................71
1.6 O poeta e a Adivinha......................................................................83
1.7 A crítica do eterno..........................................................................98
1.8 A poesia etérea de Henriqueta Lisboa........................................113
1.9 A amizade literária.......................................................................126
1.10 A cristalização poética................................................................152
1.11 O silêncio da crítica....................................................................160
1.12 O poeta diante do espelho..........................................................178
1.13 Retratos de Mário de Andrade..................................................186
1.13.1 Trezentos e cincoenta..............................................................194
1.13.2 A prisioneira da noite..............................................................197
1.14 A rotina dos escritores................................................................199
1.15 Cartografia de uma crise...........................................................220
1.15.1 Balanço da Semana de Arte Moderna...................................220
1.15.2 A polêmica da língua brasileira..............................................227
1.15.3 A recepção de Macunaíma......................................................231
CAPÍTULO 2
2.1 Moral artística é o que interessa.................................................236
2.2 A verdade do intelectual..............................................................250
2.3 A sombra da Segunda Guerra e da ditadura.............................256
2.4 Entre a lira e a foice......................................................................263
2.5 A poesia como sacrifício...............................................................286
2.6 A Meditação sobre o Tietê...........................................................307
2.7 O poeta na Modernidade.............................................................321
2.7.1 Carta a um amigo distante........................................................331
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................332
BIBLIOGRAFIA................................................................................338
INTRODUÇÃO

Em 1945, a poucos meses de sua morte, sob o cenário devastador


da Segunda Guerra Mundial e da ditadura de Getúlio Vargas, Mário de
Andrade (1893-1945) escreve “A meditação sobre o Tietê”, poema que
considerou fundamental para a sua obra. Após anos sem lançar um livro
de poesia, o escritor modernista entoaria o seu canto do cisne, antes de ir
viver o brilho inútil das estrelas. Em carta à poeta Henriqueta Lisboa
(1901-1985), que se tornou um de seus principais interlocutores no
período em que se corresponderam, entre 1939 e 1945, ele faz uma
menção ao poema:

Também logo, em fevereiro, lhe mostrarei aqui


um poema longo que andei fazendo e ainda falta
alimpar, uma “Meditação sobre o Tietê”. Sinto
que é fundamental na minha poesia. Poema
doloroso, amargo, em que se desenha toda a
condição amarga da luta que existe e sempre
existiu em mim entre o poeta-ariel e o caliban-
burguês.1

Escrito entre 30 de novembro de 1944 e 12 de fevereiro de 1945,


duas semanas antes da morte do poeta, o poema “A Meditação sobre o
Tietê” faz um balanço da vida e da trajetória literária de Mário,
coroando a sua obra com o sacrifício messiânico máximo – a doação da
própria vida – e figurando como um testamento poético do escritor,
conforme observa Henriqueta:

Muitos navios comandou o poeta, que partia e


regressava. Porém um dia ancorou na enseada,
definitiva e magistralmente: encontrou a sua hora
máxima, a sua coroa de plenitude, tecida de
metáforas, pensamentos e emoções divagantes
aqui e ali, em páginas anteriores, ao escrever
"Meditação sobre o Tietê". Este magnífico poema
que constitui o seu testamento poético, terminado
a 12 de fevereiro de 1945, poucos dias antes de
sua morte repentina, me havia sido anunciado em
carta de 20 de janeiro do mesmo ano: “É um

1
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 15.
poema muito mais calmo, (em relação a outros
que denominava bárbaros), um reconhecimento
dolorido da minha incapacidade pra me
ultrapassar e fazer alguma cousa de proveitoso à
humanidade.”
Debruçado sobre as águas do seu rio simbólico à
força de realidade, legou-nos nesses versos a
súmula de seu próprio ser, de seus ideais e
renúncias, numa exteriorização de solidez
ponderada e de reverberante sonoridade:

"Já nada me amarga mais a recusa da vitória


do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.
Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante
e fui por tuas águas levado
a me reconciliar com a dor humana pertinaz
e a me purificar no barro dos sofrimentos dos
homens."2

Parece haver um consenso entre os críticos sobre ser esse o


poema mais importante do escritor. Segundo Antonio Candido e José
Aderaldo Castello, nele Mário “alcança a fusão perfeita do coletivo e do
individual, função poética e função referencial, numa articulação mágica
de temas e imagens tirados de toda a sua obra anterior, cuja coerência
profunda é assim revelada”.3
Mas de que modo a poesia de Mário evoluiu até chegar a esse
poema que é, ao mesmo tempo, uma catarse e uma apoteose dramática?
O que ele traz de diferente com relação à sua obra anterior, nem sempre
compreendida pelos críticos? De que modo Mário amadureceu o seu
fazer artístico nesse período final de sua trajetória? Essas são questões
que essa pesquisa pretende ajudar a responder.
No poema, Mário aceita o seu sofrimento e o seu sacrifício,
levado pelas águas da vida e da morte, no fluxo imemorial dos rios, da
história e do mito, em direção não ao oceano, mas ao interior do país, ao
qual Mário sempre esteve tão inexoravelmente ligado. O poema, porém,
não representa uma desistência da vida, ao contrário: o poeta segue o
fluxo do rio, “vencedor da morte/ (...) transfigurado além das

2
LISBOA, Henriqueta. Vigília poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1968,
p. 31.
3
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
profecias!”.4 E leva também uma esperança: “Uma lágrima apenas, uma
lágrima,/ Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.” 5
Nessa época, como podemos notar na correspondência com
Henriqueta, Mário vinha refletindo muito sobre questões como a
responsabilidade social do artista, o papel do artista na sociedade, o
processo de criação, interesses que compartilhava com a poeta mineira,
que buscava amadurecer e atualizar a sua poesia com o auxílio do
amigo.
Ao longo de sua trajetória, Mário estabeleceu um diálogo
constante com os demais escritores e intelectuais de seu tempo,
empenhado em construir um projeto para a cultura brasileira, ao mesmo
tempo que buscava atualizar as artes e a literatura do País, fazendo uma
releitura crítica da influência da arte de vanguarda europeia. Num
ambiente cultural ainda em formação, ele desempenhou uma tarefa
importante como catalisador e agenciador cultural, debatendo os mais
diversos assuntos, seja sobre literatura, música, folclore, artes plásticas.
Empenhado em situar-se ativamente em seu momento histórico, o
escritor modernista manteve um diálogo epistolar constante com os
demais escritores e intelectuais de sua época, em busca de emancipação
cultural e de construir uma identidade nacional. E, em busca de
autonomia e emancipação, desenvolveu também uma concepção estética
própria, construída a partir de um olhar crítico sobre a arte europeia e
considerando as particularidades do contexto sócio-cultural de seu país.
Mário desenvolveu, ao longo dos anos, uma compulsão por
escrever cartas que ele chamava de “epistolomania”, em diálogo
permanente com os mais diversos interlocutores culturais da época.
Disposto a contribuir para a formação dos novos escritores e
intelectuais, ele sempre respondia a todas as cartas que recebia,
assumindo, assim, um compromisso com a experiência coletiva. Formou
uma rede de conexões epistolares que se tornaria a mais vasta já
realizada em nosso país – calcula-se que tenha escrito mais de sete mil
cartas para cerca de 1100 interlocutores diferentes.6 Segundo Eneida
Maria de Souza, organizadora do volume das cartas entre Mário e
Henriqueta, a sua correspondência “é de capital importância não apenas
para a literatura, mas para o conhecimento da própria cultura

4
ANDRADE, Mário. “A Meditação sobre o Tietê”. In: Poesias Completas. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2005, p. 317.
5
Ibidem, 2005, p. 317.
6
MORAES, Marcos Antonio de. Entrevista ao jornal O Povo, feita por
Raphaelle Batista. Fortaleza, 28 de abril de 2015.
brasileira”.7 No ano seguinte à morte do escritor, ocorrida em 25 de
fevereiro de 1945, Antonio Candido assim estipulou o valor da sua
produção epistolar: “A sua correspondência encherá volumes e será
porventura o maior monumento do gênero, em língua portuguesa: terá
devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da sua
obra e do seu espírito”. 8
As cartas para Henriqueta só se tornaram acessíveis ao público
em 2010, com a publicação da Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa, pela Edusp. A edição reúne as cartas, cartões e
telegramas, que consolidaram a amizade entre os dois escritores, além
de anotações e documentos iconográficos. Parte desse acervo riquíssimo
estava inacessível ao público até julho de 1997, pois o seu conteúdo foi
disponibilizado somente 50 anos após a morte de Mário, com o
propósito de preservar a intimidade de seus interlocutores, a pedido do
próprio escritor. Findo esse período, o conteúdo das cartas se tornou
acessível ao público somente após a sua catalogação pelo Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB). Parte das cartas aqui pesquisadas – aquelas
de autoria de Mário – já tinha sido publicada em 1991, na coletânea
Querida Henriqueta – Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa,
pela Ed. José Olímpio, com organização de Abigail de Oliveira
Carvalho. Na edição de 2010, foram incluídas também as cartas da poeta
mineira para o escritor modernista.
No Arquivo Mário de Andrade, na série “Correspondência
passiva lacrada”, foram conservadas 40 cartas, 13 bilhetes, oito
telegramas e dois cartões-postais enviados por Henriqueta ao escritor
modernista. No Arquivo Henriqueta Lisboa, na série “Correspondência
pessoal”, foram conservadas 42 cartas, quatro bilhetes e dois telegramas
de Mário endereçados à poeta mineira, além de cópias datilografadas de
34 poemas de Henriqueta enviados a Mário, com comentários sobre eles
escritos a lápis – documentos que já tinham sido publicados em Querida
Henriqueta. 9
A Coleção Correspondência Mário de Andrade, uma iniciativa do
IEB, que se ocupa da conservação das cartas e de todo o espólio do

7
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 15.
8
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de
Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
9
PALÚ, Pe. Lauro (Org.). Querida Henriqueta: Cartas de Mário de Andrade a
Henriqueta Lisboa. Rio de Janeiro, José Olympio, 1990.
escritor – composto de biblioteca, arquivos e coleção de artes visuais –,
já teve publicadas também as cartas de Mário com Alceu Amoroso Lima
(2018); Luiz Camillo de Oliveira Netto (2018); Newton Freitas (2017);
Escritores/Artistas Argentinos (2013); Manuel Bandeira (2000); e
Tarsila do Amaral (2001).
O diálogo epistolar entre Mário e Henriqueta se desenvolveu
entre 1939 e 1945, durante os seis últimos anos da vida do escritor. Um
período posterior às duas fases de maior agitação do modernismo –
1917-1924, caracterizado pela atualização das linguagens artísticas, e
1924-1929, de construção de uma identidade nacional e consolidação de
conquistas. Mário estava então mais concentrado em refletir sobre
questões como o papel do intelectual na sociedade, a relação da arte com
a moral e a política, as tensões entre o individual e o coletivo, arte
desinteressada e poesia de circunstância, entre outros temas.
Politicamente, esse foi um período turbulento, assolado pela Segunda
Guerra Mundial e pela ditadura de Getúlio Vargas.
Podemos, seguindo uma linha de análise sugerida por Marco
Antonio de Moraes, dividir a correspondência de Mário de Andrade em
duas fases. Na década de 20, marcada pelo projeto nacionalista, o
escritor propõe uma mobilização coletiva em torno da consolidação de
um pensamento crítico, vinculado ao projeto de emancipação da cultura
nacional, de amadurecimento de uma estética e de um pensamento
político. Já na fase dos anos 30 e 40, ele se distancia um pouco dessa
dimensão nacionalista e seu foco de interesse se volta para a dimensão
ética do trabalho do escritor, em busca de uma compreensão de sua
própria atividade. Segundo o pesquisador, “Mário se vê então em face
da guerra, do autoritarismo do Estado Novo, e se questiona: o que
significa ser escritor, ser intelectual, nesse momento?” 10
Pode-se fazer um paralelo entre os temas abordados de modo
mais preponderante em suas cartas e os temas que caracterizam a sua
poesia. Antonio Candido e José Aderaldo Castello dividem a obra
literária do escritor do seguinte modo: a primeira fase, entre 1920 e
1926, foi de atualização da poesia brasileira a partir da influência das
vanguardas europeias, com predominância de características como
simultaneísmo, elipse, valorização do cotidiano, subversão dos temas
tradicionais.11 A seguir, com Clã do Jabuti e Macunaíma, ele entra numa

10
MORAES, Marcos Antonio de. Ciclo Mário de Andrade sempre vivo. IEB-
USP. São Paulo, dezembro de 2015.
11
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
fase de nacionalismo estético e pitoresco, com utilização do folclore e da
etnografia. A partir de 1930, começa uma fase mais intimista, com uma
manifestação mais sutil dos temas nacionais e descritivos, cada vez
mais interiorizados pela meditação, que vai culminar em seu último
poema, “A Meditação sobre o Tietê”.12
A correspondência com Henriqueta se desenvolveu num período
de maturidade de Mário e se estendeu até a sua morte, o que contribui
para que se possa alcançar uma compreensão de como a sua arte e sua
concepção estética se desenvolveram ao longo do tempo. Alguns
posicionamentos adotados no início da carreira foram depois revistos
pelo escritor. Em carta a Henriqueta, Mário revelou que, ao reler seus
trabalhos antigos, sobretudo escritos de jornal, percebeu que sua
maturidade intelectual tinha sido alcançada somente em 1932, quando
contava já 40 anos de idade:

Andei por necessidades provocadas por outros,


relendo trabalhos meus antigos, sobretudo escritos
de jornal. Meu Deus! Como meu espírito foi lento
a se desenvolver! Chega a ser absurdo! (...) Na
verdade o meu espírito só principia demonstrando
algum (apenas “algum”) equilíbrio depois de
1932. E eu tinha então 39 anos! Não é
assombroso? E eu desautorizo tudo quanto seja
página de pensamento escrita em jornal por mim,
antes dos quarenta anos!13

Portanto essa correspondência, escrita na maturidade de Mário,


mostra-se importante para esclarecer aspectos de suas concepções
artísticas, seus princípios éticos e estéticos, seu posicionamento diante
do contexto cultural, histórico, político e social da época. Também é
importante para compreender a trajetória de Henriqueta e o modo como
ela atualizou e amadureceu a sua escrita, sob a influência e orientação
do amigo modernista, mas manteve-se voltada para as questões do ser,
em consonância com a sua religiosidade.
A escolha da correspondência entre Mário e Henriqueta como
objeto empírico de pesquisa se justifica pela riqueza do conteúdo de
suas cartas, que trazem muitas informações úteis para a análise de suas

12
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
13
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 265.
obras e para se pensar as questões éticas e estéticas que elas evocam.
Pelo que foi apurado, trata-se de uma pesquisa de doutorado ainda
inédita, até em função de o volume completo das cartas ter sido
publicado apenas em 2010. Pode-se supor, pela frequência com que os
dois escritores se correspondiam e pela riqueza do conteúdo de suas
cartas, que a poeta mineira tenha sido um dos principais interlocutores
de Mário no seu momento de maior maturidade intelectual, alcançado
no final de sua vida – basta comparar o número de cartas enviadas a ela
com aquelas escritas para outros de seus pares no mesmo período, entre
1939 e 1945, já publicadas, para se perceber que Henriqueta talvez tenha
sido a sua correspondente mais assídua nessa época. Enquanto a
correspondência entre Mário e Henriqueta soma um total de 82 cartas, a
correspondência com Manuel Bandeira, nesse mesmo período, reúne um
total de 17 cartas14, e com Carlos Drummond de Andrade, 27 cartas.
Muitas das questões evocadas pela correspondência entre Mário e
Henriqueta foram analisadas no texto “A Dona Ausente”, de Eneida
Maria de Souza, organizadora da edição das cartas. O texto está presente
na introdução da correspondência e também no livro A pedra mágica do
discurso15, da mesma autora. A edição caprichada da correspondência
traz muitas observações úteis nas notas de rodapé, como as
modificações realizadas por Henriqueta sob sugestão de Mário, a
transcrição de notas dos dois interlocutores deixadas na margem das
cartas, além de menções a outros textos e documentos que podem
auxiliar a leitura.
Para desenvolver esta tese, foi feita pesquisa de campo para
consulta de fontes documentais que integram o Acervo Henriqueta
Lisboa, situado no Acervo de Escritores Mineiros, na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), e o acervo de Mário de Andrade no
Instituto.de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo
(USP).
A pesquisa dialoga ainda com textos de Mário publicados em
seus livros e na imprensa. Para a realização deste trabalho, serão
considerados principalmente textos escritos na fase madura do escritor,
após 1932, como “O artista e o artesão” (1938) e “Elegia de Abril”
(1941), mas também com textos anteriores importantes para a
compreensão de suas concepções teóricas, como o “Prefácio
Interessantíssimo”(1922) e A Escrava que não É Isaura (1922-24).

14
Manuel Bandeira não publica todas as cartas de Mário, datadas após 1934.
15
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999.
As cartas, dado o seu caráter privado e circunstancial, não são
aqui consideradas fontes de informação definitivas. Elas devem ser lidas
considerando-se o seu caráter híbrido de ficção e realidade, fruto da
autoria de um narrador-personagem que faz uso tanto da memória
quanto da criação. As cartas podem ser vistas, assim, como vestígios de
uma grande trama de textos, formada também por textos de outras
fontes, que se relacionam e se complementam entre si, deixando
vestígios que podem auxiliar a leitura, mas não constituem uma
“verdade”. Até porque as cartas, dada a sua natureza circunstancial e
transitória, podem ser escritas no calor do momento, ensejando assim
mudanças de posicionamento futuras, conforme reconhece o próprio
Mário: “Olhe, Henriqueta, não vou reler esta carta. Se reler é certo que
não a mandarei. Talvez em dois minutos de releitura... eu mude de
verdade!”16
A correspondência serve justamente de espaço para o teste e
amadurecimento de ideias entre os interlocutores. De qualquer modo,
podemos pensar que ela pode ajudar a esclarecer questões sobre
concepções estéticas e éticas ainda não tenham sido elucidadas
suficientemente pelos escritores em seus textos ensaísticos e teóricos.
Porém, esse cuidado com relação à confiabilidade das cartas como fonte
de pesquisa não impede que se procure nelas a informação nova e o
detalhe significativo, que possam eventualmente apontar outros
caminhos para a análise e compreensão dos processos de criação e das
concepções estéticas dos autores estudados.
Mesmo reconhecendo a autonomia do texto literário, na
perspectiva dos estudos de perfis biográficos, a vida literária é vista
como componente imprescindível para a compreensão das obras dos
autores. Embora essas falem por si, criando um mundo novo e
transfigurando experiências pessoais, muitas vezes os textos remetem a
aspectos biográficos e históricos, mesmo que distorcidos e
transformados. Segundo Eneida Maria de Souza:

É de extrema relevância para a compreensão do


estudo do período e para a obra do autor ampliar o
registro biográfico, dotado tanto de valor
documental quanto de gênese literária". (...) O
nascimento, a morte, o destino literário, a família,

16
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 110.
a nação, a identidade e a memória persistem ainda
como os grandes temas que movem e compõem a
escrita de todos os tempos.17

Busca-se, nesta pesquisa, observar criticamente aspectos da


correspondência entre Mário e Henriqueta, de modo a identificar os
principais núcleos temáticos e fragmentos significativos que possam
auxiliar na análise de sua trajetória e na compreensão de sua relação
com seu contexto histórico, político, cultural e social. Muitas das
conversas entre os dois escritores gravitam em torno de reflexões sobre
o papel do escritor na sociedade, a finalidade da arte, a responsabilidade
moral do artista, o compromisso do escritor com a sociedade e seu
tempo, a tensão entre liberdade individual e compromisso coletivo.
Esta tese pretende refletir acerca da possibilidade da poesia
existir em tempos de guerra, ditadura ou qualquer outro tipo de
violência e opressão. O título desta tese se refere à guerra, mas poderia
ser também "Poesia em tempos de ditadura", pois o regime ditatorial e
fascista foi imposto no Brasil e em outros países do mundo no mesmo
período da Segunda Guerra, contribuindo para adensar ainda mais o
cenário de opressão e violência. Muitos poetas escreveram poesia
relacionada com a guerra e os seus efeitos. Rosa do Povo, de Carlos
Drummond de Andrade, é um dos exemplos mais significativos na
poesia brasileira, mas também Lira Paulistana, de Mário de Andrade, e
A Face Lívida, de Henriqueta Lisboa, foram escritos em período de
guerra e ditadura. Mas de que modo a poesia dos autores aqui estudados
se relaciona com o seu momento histórico e as questões políticas e
sociais que se apresentam?
Conforme aponta Adorno, não apenas a razão, mas a própria
cultura e mesmo a poesia estavam em questionamento depois dos
horrores testemunhados nos campos de concentração nazistas. Para o
filósofo, "escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso
corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível
escrever poemas".18 A frase de Adorno se tornou famosa e causou
polêmica, conforme observa Jeanne Marie Gagnebin, para quem

17
SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas – Ensaios de crítica
biográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 13.
18
T. W. Adorno, "Crítica cultural e sociedade", in Prismas. São Paulo, Ática,
1998, p. 26. Apud GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São
Paulo: Ed. 34, 2006, p. 71.
Auschwitz representa não somente um episódio dramático da história
judaica ou alemã, mas um marco essencial da história ocidental:

Não é somente a beleza lírica que se transforma


em injúria à memória dos mortos da Shoah, mas a
própria cultura, na sua pretensão de formar uma
esfera superior que exprima a nobreza humana,
revela-se um engodo, um compromisso covarde,
um "documento da barbárie", como disse Walter
Benjamin.
Como nos livros de Primo Levi ou de Robert
Antelme, uma afirmação radical nasce nessas
páginas de Adorno: a mais nobre característica do
homem, sua razão e sua linguagem, o logos, não
pode, após Auschwitz, permanecer o mesmo,
intacto em sua esplêndida autonomia.19

A autora chama a atenção para o destaque que Adorno dá para a


importância da dimensão ética, que não pode se subordinar “nem a uma
postura estética nem a uma sistemática especulativa, mas que deve se
afirmar como exigência incontornável, inscrevendo uma ruptura no
fluxo argumentativo”20. Ela cita Schweppenhäuser para afirmar que
“devemos, antes de mais nada, construir éticas históricas e concretas
orientadas pelo dever de resistência, a fim de que “Auschwitz não se
repita”.21
Segundo Gagnebin, a afirmação de Adorno sobre a
impossibilidade de escrever poesia após Auschwitz levou-nos a um
emaranhado de questões éticas e estéticas, em cujo centro ela situa o
conceito-chave de mímesis. Para a autora, toda filosofia posterior a
Adorno tentaria, fundamentalmente, responder à questão: “como pode o
pensamento filosófico evitar que Auschwitz se repita?”22
Aparentemente, Adorno queria chamar a atenção para a necessidade de
conciliar questões éticas e estéticas, em vez de conceber o poema como
uma atividade puramente estética, centrada em si mesma e afastada da
realidade social e política.

19
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34,
2006, p. 71.
20
Ibidem, 2006, p. 72.
21
Ibidem, 2006, p. 72.
22
Ibidem, 2006, p. 83.
Mas qual é o vínculo entre poesia e sociedade? Qual é o papel do
artista na sociedade e qual a sua responsabilidade social? De que modo
os elementos éticos se relacionam com os estéticos? Como a estética e o
lirismo poético podem subsistir, mediante condições históricas que
tornam premente uma atitude ética? Essas são algumas questões que
procuraremos aqui analisar.
A primeira hipótese desta pesquisa é que a correspondência entre
Mário e Henriqueta revela uma tensão entre ética e estética, ou entre arte
empenhada, voltada para o contingente e transitório e atenta às questões
político-sociais de seu tempo, e arte de permanência ou desinteressada,
pretensamente autônoma e voltada para as finalidades da própria arte.
Chamou-me particularmente a atenção o modo como Mário
reagiu a uma carta de Henriqueta, na qual ela procura lhe fazer um
elogio, afirmando que nenhuma coação se infiltra no seu mundo
poético.23 Em seguida, porém, ela pondera: “Em matéria de arte
nenhuma coação representa o ideal, magnífico mas já temerário do
ponto de vista moral.” 24 Mário respondeu à amiga com uma carta longa
e contundente, esclarecendo que, para ele, do ponto de vista moral ou
mesmo em matéria de arte, "nenhuma coação” não representa um ideal
magnífico, pois o momento da criação é depois superposto por um longo
momento de discernimento moral, em que a subjetividade individual é
submetida a uma avaliação crítica da consciência social:

Não, Henriqueta minha, mesmo em matéria de


“arte”, repudio, sempre repudiei esse princípio da
“nenhuma coação”, que além de imoral sob o
ponto-de-vista do ser humano, é ainda indecente
sob o ponto-de-vista da arte, porta aberta pra todas
as ignorâncias, todas as facilidades, todas as
preguiças, todas as cabotinagens e falsificações
artísticas. Não. Não é a arte que exige a nenhuma
coação, mas a criação, o momento da criação. (...)
Mas em seguida vem todo o trabalho penosíssimo,
longo e moral da arte, que significa até rasgar a
coisa criada e fazer ela não existir para o mundo.

23
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 189.
24
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 211-212.
Porque o artista é antes de mais nada um homem,
e como homem ele só pode fazer da sua obra-de-
arte uma coisa humana, funcionalmente humana
no sentido moral-individual e moral-social do
humano. Esta não é apenas a minha opinião, é a
minha fé.25

Um desdobramento dessa hipótese é que Mário de Andrade teria


amadurecido as suas concepções sobre a criação artística ao longo de
sua vida, até encontrar uma espécie de fusão entre arte de circunstância
e arte desinteressada, culminando na criação do poema “A Meditação
sobre o Tietê”, considerado por ele fundamental para a sua poesia.
Verifica-se que o escritor desenvolveu ao longo do tempo uma
concepção estética própria, e que a fase mais madura de seu pensamento
coincide com a escrita de Lira Paulistana. Busca-se nesta pesquisa
compreender, a partir da leitura e análise das cartas entre os dois autores,
dos textos teóricos e da fortuna crítica de Mário, de que modo o seu
pensamento e a sua obra literária foram se transformando e se lapidando,
até alcançarem um ápice no final da vida do escritor, com a criação de
“A Meditação sobre o Tietê”.
Com relação a Henriqueta, a hipótese é de que, embora ela tenha
atualizado a sua poesia e aperfeiçoado a sua técnica, com a ajuda de
Mário, a poeta mineira teria mantido uma certa proximidade também
com o Simbolismo. A abordagem de temas relacionados a questões do
ser – e que remetem à religiosidade, ao eterno e imutável – cria uma
tensão com o transitório, o efêmero e o contingente que caracterizam a
modernidade. Além disso, o uso de imagens enigmáticas, ao modo dos
escritores simbolistas, leva a poeta mineira a incorrer, às vezes, em certo
hermetismo de linguagem.
O primeiro capítulo faz uma breve revisão teórica sobre a
epistolografia; conta como foi o início da convivência entre Mário e
Henriqueta; descreve relação de amizade entre eles; aborda a sua vida
pessoal e amorosa; discorre sobre o comportamento social dos dois
escritores – polarizado entre excessos e virtudes –; examina a relação
deles com a religião; e reflete sobre a tensão entre o permanente e o
circunstancial na obra de arte, a partir de uma exposição sobre

25
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 211-212.
elementos temáticos que Mário chama de as “Adivinhas”. Em seguida,
faz uma introdução à poesia de Henriqueta; aborda a amizade literária
entre os dois escritores – em que Mário desempenha o papel de crítico e
tutor –; analisa a evolução técnica da poesia de Henriqueta; relata a
angústia que ela sentia com relação à recepção crítica de sua poesia;
contextualiza aquela fase da criação poética de Mário. O capítulo ainda
apresenta os retratos de Mário pintados por vários artistas e apresenta
uma breve biografia de ambos os escritores e descreve a rotina diária
deles, que envolvia a realização de trabalhos subsidiários e
institucionalizados, privando-os do tempo necessário para que pudessem
se dedicar à criação literária. Por fim, traz menções breves a alguns
eventos que podem ajudar a compreender alguns posicionamentos
assumidos por Mário no fim da vida, como o balanço que fez sobre o
Movimento Modernista, a polêmica em torno de seu projeto de catalogar
e sistematizar a “língua brasileira” e a sua insatisfação com a recepção
de Macunaíma.
O segundo capítulo aborda a questão da moral na arte, apontando
as tensões entre ética e estética; apresenta a concepção de Mário sobre a
verdade do intelectual – distinguindo-a da verdade do homem comum e
da religião –; situa a atuação dos dois escritores no contexto da Segunda
Guerra e da ditadura militar; reflete sobre o sacrifício de Mário para
atender às contingências de seu contexto político-social (mostrando o
seu impasse entre aderir ao comunismo e combater a partir de sua
"torre-de-marfim"); investiga a sua participação no Congresso Brasileiro
de Escritores; analisa as transformações que ocorreram em sua
concepção estética para que fosse capaz de escrever “A Meditação sobre
o Tietê”; e discorre sobre a condição do poeta em face da Modernidade.

CAPÍTULO 1

1.1 Ponderações sobre as cartas

Segundo Michel Foucault, a escrita de si remonta à Antiguidade


greco-romana e constitui uma prática importante para estabelecer laços
de amizade, disciplinar o pensamento, constituir prova de verdade.26
O diálogo epistolar situa-se entre o público e o privado, entre o
espaço para confidências pessoais e a discussão de questões de interesse
coletivo, como aquelas relacionadas ao fazer artístico, ao

26
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa:
Passagens, 1992, p. 129-160.
amadurecimento de princípios estéticos, à discussão de questões
políticas. Segundo Ângela de Castro Gomes, “esses registros formam
um conjunto de fontes produzidas no âmbito do privado, mas que não
deixam de revelar vestígios de trajetórias de vida, de redes de
sociabilidades intelectual e política de importantes figuras ou de
anônimos (...)”.27
As cartas fortalecem laços de amizade e possibilitam a criação de
vínculos entre pessoas ligadas por interesses comuns e afinidades
eletivas, propiciando uma grande rede de sociabilidade, mesmo entre
pessoas que morem em locais distantes e ainda não se conheçam
pessoalmente.
A missiva, texto por definição destinado a outrem, dá também
lugar a uma espécie de exercício pessoal. Ela faz o escritor “presente”
àquele a quem se dirige. A carta enviada para auxiliar o destinatário –
aconselhá-lo, exortá-lo, admoestá-lo, consolá-lo – constitui, para o
escritor, uma maneira de se treinar, e ao mesmo tempo que esse auxílio
prestado a outrem pode ser restituído sob a forma de “conselho
equitativo”. Possibilita, desse modo, que ambos os interlocutores se
beneficiem mutuamente.28
Para Foucault, a carta propicia também que o remetente se
manifeste a si próprio e aos outros. A reciprocidade que a
correspondência estabelece não se restringe ao simples conselho; ela
possibilita um olhar e um exame, laborando no sentido da subjetivação
do discurso, da sua assimilação e da sua elaboração como “bem
próprio”, constituindo também e ao mesmo tempo uma objetivação da
alma.29
Segundo o filósofo, a correspondência é uma maneira de
revelarmos aquilo que devemos dizer a nós próprios, de modo tal que
penetra até ao fundo do nosso coração no momento em que pensamos.
Implica, portanto, uma “introspecção”, que deve ser entendida menos
como uma decifração de si por si mesmo do que como uma abertura de
si mesmo que se dá ao outro. Trata-se de fazer coincidir o olhar do outro
e daquele que se volta para si próprio quando se aferem as ações
cotidianas às regras de uma técnica de vida. Falar com o outro e sobre o

27
GOMES, Ângela de Castro. “Escrita de si, escrita da história: a título de
prólogo”. In: _____. (Org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2004. p.13-14.
28
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa:
Passagens, 1992, p. 129-160.
29
Ibidem, 1992. p. 129-160.
outro é, ao mesmo tempo, falar consigo e sobre si mesmo, um exercício
de reflexão. Desse modo, de acordo com Foucault, a escrita de si
exercitada nas cartas atenua os momentos de solidão, bem como
propicia um adestramento de si mesmo, a partir da meditação, da
reflexão, da elaboração dos discursos recebidos e conhecidos como
verdadeiros em princípios racionais de ação.30
Mário acreditava que o modernismo tenha inaugurado uma nova
fase na escrita das cartas no Brasil, menos formalista e mais
espontâneas, conferindo-lhe o mesmo tom coloquial que revolucionou a
literatura da época:

Eu sempre afirmo que a literatura brasileira só


principiou escrevendo realmente cartas, com o
movimento modernista. Antes, com alguma rara
exceção, os escritores brasileiros só faziam "estilo
epistolar", oh primores de estilo! Mas cartas com
assunto, falando mal dos outros, xingando,
contando coisas, dizendo palavrões, discutindo
problemas estéticos e sociais, cartas de pijama,
onde as vidas se vivem, sem mandar respeitos à
exma. esposa do próximo nem descrever
crepúsculos, sem dançar minuetos sobre eleições
acadêmicas e doenças do fígado: só mesmo com o
modernismo se tornaram uma forma espiritual de
vida em nossa literatura.31

Mário via nas cartas um meio de aplicar os seus conhecimentos


para aconselhar os seus pares e ao mesmo tempo amadurecer a sua
própria produção artística e teórica. Segundo Alexei Bueno, o escritor
talvez seja o maior dos epistológrafos brasileiros, “uma vez que foram
as cartas seu grande instrumento de contato, pregação e divulgação de
ideias estéticas, além de veículo óbvio de seu convívio humano, por
todo o território nacional”32. Fábio Lucas, por sua vez, enfatiza a
importância de sua correspondência como veículo das ideias

30
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa:
Passagens, 1992, p. 129-160.
31
ANDRADE, Mário de. “Do trágico”. In: O Empalhador de Passarinho. São
Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 153.
32
BUENO, Alexei. Cartas a Mário de Andrade. Org. Fábio Lucas. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: 1993, introdução.
modernistas renovadoras: “Foi através dela que a catequese modernista
se concretizou. Suas cartas, além de transmitirem situações afetivas,
concorreram para elucidar e converter os hesitantes, naquela hora de
mudança dos valores estéticos”33.
Para o escritor modernista, não bastava o cuidado e o cultivo de
si e a busca de sua própria identidade individual: ele sentia necessidade
de atuar como catalisador da transformação do grupo, para construir um
ambiente cultural fértil e contribuir para a formação de uma identidade
nacional. Ele se obstinava em cobrar de seus interlocutores uma
“responsabilidade humana coletiva”, de modo a formar uma
“consciência de grupo”, a partir do diálogo entre os diversos atores
culturais.
Mário procurava tratar os seus interlocutores de igual pra igual,
sem se colocar numa posição de superioridade, o que possibilitava um
intercâmbio enriquecedor, baseado em sua crença na solidariedade
humana. Ele valorizava o “falar simples”, como se estivesse na presença
do amigo, evitando assim incorrer no formalismo da linguagem erudita.
Em carta a Manuel Bandeira, datada de março de 1931, diante da
dificuldade para comentar a doença do amigo, que sofria de tuberculose,
ele expressa o seu anseio por encontrá-lo pessoalmente, para que
pudessem conversar de modo simples e informal: “Raciocinar as
bestices da morte em carta parece sempre literatura e é uma pena. Se eu
estivesse aí então falando a gente podia dizer tudo que não parece
literatura, falando simples.”34
Porém, podemos pensar que, para um escritor, pode ser mais
fácil alcançar a espontaneidade por meio da escrita que pelo contato
pessoal. Esse parecia ser o caso de Mário, que, segundo sugere
depoimento de Manuel Bandeira, era mais aberto e espontâneo
escrevendo cartas que pessoalmente, dada a sua personalidade
introvertida, de uma “frieza paulista”:

Há uma diferença grande entre o você da vida e o


você das cartas. Parece que os dois vocês estão
trocados: o das cartas é que é o da vida e o da vida
é que é o das cartas. Nas cartas você se abre, pede

33
LUCAS, Fábio. Cartas a Mário de Andrade. Org. Fábio Lucas. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: 1993, p. 1.
34
Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, março de 1931. Apud
MORAES, Marcos Antonio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 72.
explicação, esculhamba, diz merda e vá se foder;
quando está com a gente é... paulista. Frieza
bruma latinidade em maior proporção pudores de
exceção.35

A linguagem que predomina na correspondência com


Henriqueta é a informal – os missivistas procuram manter uma postura
descontraída e um tom de intimidade entre amigos, o que se nota
principalmente nas cartas de Mário, que muitas vezes faz uso de gírias,
neologismos e expressões do vocabulário popular – prática constante do
escritor modernista, empenhado em aproximar a linguagem popular da
erudita. O tom de informalidade é usado como estratégia para
descontrair e criar uma atmosfera de proximidade entre os dois amigos.
Ao mesmo tempo, se nota certo cuidado com a forma culta,
principalmente por parte de Henriqueta, como se percebe neste trecho:
“Ainda uma cousa a dizer: parece futilidade, Mário, mas até hoje me
contrario e me envergonho de haver escrito, na última carta, uma
palavra com erro de palmatória. Não sei onde estava a cabeça de
normalista! Queira-me bem assim mesmo”.36
A natureza intimista das cartas favorece uma comunicação
franca e aberta entre os dois interlocutores. Antonio Candido sublinha
que a correspondência envolve o desejo de formação intelectual, de
amparo psicológico e a intenção de fundir-se espiritualmente com o
outro.37
Porém, embora o diálogo epistolar envolva um exercício de
empatia entre os missivistas, ele esbarra na alteridade e no desafio de se
comunicar com o outro. Muitas vezes, ele envolve uma mis-en-scène em
que o remetente adapta o seu discurso ao perfil do destinatário, em
busca de criar uma conexão com ele. O próprio Mário demonstrava
consciência desse tipo de encenação presente no gênero epistolar, e se
incomodava com a possibilidade de incorrer em perda de naturalidade

35
Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 16 dez. 1925. Apud
MORAES, Marcos Antonio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 72.
36
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 set. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 120.
37
CANDIDO, Antonio. “Mário de Andrade”. Revista do Arquivo Municipal, nº
106, Ed. Fac-similar nº 198, São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico,
1990, p. 69.
ou de fazer literatura ao escrever suas cartas, conforme confessa a
Carlos Drummond de Andrade:

Aquela pergunta desgraçada “não estarei fazendo


literatura?”, “não estarei posando?”, me martiriza
também a cada imagem que brota, a cada frase
que ficou bem-feitinha, e o que é pior, a cada
sentimento ou ideia mais nobre e mais intenso. É
detestável, e muita coisa que prejudicará a
naturalidade das minhas cartas, sobretudo
sentimentos sequestrados, discrições estúpidas e
processos, exageros, tudo vem de uma
naturalidade falsa, criada sem pensar ao léu da
escrita pra amainar o ímpeto da sinceridade, da
paixão, do amor.38

As cartas, além de revelarem confidências pessoais e traçarem


um perfil biográfico dos interlocutores, trazem informações sobre os
bastidores da vida literária, as discussões entre os grupos de escritores, o
embate de forças entre eles. Segundo Marcos Antonio de Moraes, as
missivas podem ser vistas como um “laboratório de criação” que deixa
vestígios do processo criativo e das diversas etapas de elaboração de um
texto literário.39
Embora essas cartas possuíssem, originalmente, um caráter
privado, ambos os escritores estavam conscientes de que poderiam
despertar o interesse de um público amplo e de que talvez escrevessem
também para leitores das gerações futuras. Estavam, portanto,
construindo um arquivo para o futuro, cientes da tensão entre intimidade
e exposição pública que a sua correspondência envolvia. Conforme
sugere a poeta mineira, em artigo publicado após a morte de Mário:

(...) Algum dia virão a lume essas cartas,


publicadas e estudadas – quem sabe? – pelo
menino poeta das montanhas ou dos planaltos,

38
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 215.
39
MORAES, Marcos Antonio de. “Mário de Andrade: Epistolografia e
processos de criação”. Revista Manuscrítica, nº 14. Vitória, ES – Dezembro de
2006.
quando estivermos, os que hoje contamos mais de
trinta anos, mergulhados no além. Meu
depoimento não é senão promessa, auspício. Mas
sinto-me na obrigação de prestá-lo, ainda que
apenas como auspício e promessa – para as
gerações mais novas, para o futuro.40

Podemos pensar que, nas cartas, os escritores buscam uma


sinceridade pós-espontânea, assim como o fazem na arte: “A sinceridade
em arte é criar a expressão mais esteticamente possível e não a
expressão espontânea”.41 Nesse sentido, o autor cria uma ficção
assumindo-se como personagem da própria trama, como recurso para
revelar uma das múltiplas facetas de si mesmo.
Segundo Agamben, no “eu lírico” não há propriamente um eu,
ao menos não um eu idêntico a si. A escrita poética envolve sempre um
processo de dessubjetivação e subjetivação, de tal modo que o poeta não
tem caráter, uma vez que é “sempre algo distinto de si” e está “sempre
no lugar de outro corpo”.42 Citando Benveniste, o filósofo observa que o
homem só consegue assumir a sua identidade e viver o momento
presente a partir do ato de enunciação do discurso (“eu, agora”). Porém,
“precisamente porque a consciência não tem outra consistência que não
seja a da linguagem, tudo o que a filosofia e a psicologia acreditavam
descobrir nela não é mais que uma sombra da língua, uma “substância
sonhada”.43
No livro Figuração da Intimidade: Imagens na poesia de Mário
de Andrade, João Luiz Lafetá observa que Mário de Andrade fez uso de
máscaras nas diversas fases de sua poesia, numa busca “sincera” da auto
identidade: na fase vanguardista, usa a máscara do trovador arlequinal,
que encarna o espírito da modernidade e suas contradições, que também
corresponde à máscara do estudioso que compila os usos e costumes
brasileiros, à máscara do poeta aplicado; após a revolução de 1930, que
representa para o escritor uma fase de dilaceração e busca de novos

40
LISBOA, Henriqueta. “Lembrança de Mário”. SOUZA, Eneida Maria de.
(Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo:
Peirópolis / Edusp, 2010, p. 346.
41
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abri. 1940. Ibidem, 2010,
p. 91.
42
AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo.
Homo Sacer III. Valência: Pré-textos, 2002, p. 117.
43
Ibidem, 2002, p. 123.
rumos, usa a máscara de uma identidade atormentada; na fase de luta
política e de classes, a máscara do poeta político.44
Podemos identificar o uso de estratégias semelhantes na
correspondência do escritor modernista para a poeta mineira, em que se
fazem presentes máscaras como a do “poeta aplicado”, do “poeta
dilacerado”, do “crítico prestativo”, do “poeta político”. Tudo isso em
conjunto com a máscara da intimidade, sempre presente nas cartas, em
que a linguagem informal e descontraída é usada como estratégia de
aproximação.
Colocar a máscara parece significar, para o poeta, dar vazão ao
seu eu lírico e liberar as forças criativas do inconsciente, de modo a
assumir uma identidade distinta daquela imposta pela razão instrumental
e prosaica: “– Mário, põe a máscara!/ –Tens razão, minha Loucura, tens
razão.”, diz o poeta, em “Paisagem Nº 3, de Pauliceia Desvairada.45
Para Marilda Aparecida Ionta, a encenação e o uso de máscaras
na correspondência aparecem como “artimanhas de controle de si”:

Esse dispositivo suscita, simultaneamente, um


sistema de constrangimento e também um sistema
que permite proteger o espaço de liberdade ao
indivíduo, isto é, garante a possibilidade de
revelar-se, mas também de recolher-se em si
mesmo. Além disso, permite construir na escrita
epistolar retratos singulares de si com seus
interlocutores.46

Em carta a Manuel Bandeira, Mário confessa ter recorrido ao


uso das máscaras como um recurso para a criação poética, mas esclarece
que essa estratégia de acessar seus múltiplos eus não implica
falseamento ou falta de honestidade intelectual: “Tu também estavas a
esconder tua alma, Manuel. E sabes pelo início desta versalhada, que

44
LAFETÁ, João Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens na Poesia de Mário
de Andrade. São Paulo, Martins Fontes, 1986, p. 10-16.
45
ANDRADE, Mário. Poesias Completas – De Pauliceia Desvairada a Café.
In: Losango cáqui. Círculo do Livro, s/d, p. 59.
46
IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na escrita epistolar de
Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade.
Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de Campinas, 2003, p. 96.
esconder a alma para mim não significa insinceridade. Fiz o mesmo na
Pauliceia”.47
Na última carta que escreveu a Drummond, em fevereiro de
1945, Mário comenta que recorreu ao uso de máscaras para sobreviver
ao longo da carreira e conclui: “Aliás, se não fosse a máscara da minha
vida – as máscaras destinam tanto a gente...”48
Contraditoriamente, na correspondência com Henriqueta, Mário
encoraja a poeta mineira a buscar “a expressão real de si mesma”, que,
segundo ele, estaria por trás das máscaras: “Pode-se dizer até que você
foge, em poesia, você se recalca em poesia, quando justamente a poesia,
em vez de máscara, é a expansão sublimada de todos os recalques”49 Ele
queria então que a amiga encontrasse a sua própria originalidade e
personalidade poéticas, pois, a seu ver, ela estava se aproximando
demasiadamente de poetas como Jorge de Lima.
Não se deve, porém, confundir o uso de máscaras com o
estigma da falsidade. A máscara corresponde, antes, a um movimento de
interação e empatia com o outro, em que o processo de subjetivação se
realiza de acordo com a interação com o destinatário. Para Lafetá, o
conceito de máscara está ligado à concepção da pluralidade da pessoa,
que necessita se fixar numa persona para não se dissolver em caos.
Segundo o autor, é na luta corpo a corpo com as aparências que Mário
procura desvendar a verdade das máscaras; embora utilize
dissimulações, disfarces e despistes, o poeta estaria sempre no caminho
da sinceridade. Por trás do disfarce, estaria a imagem da intimidade, a
face íntima.50
As cartas têm essa característica de dissimular os disfarces,
sugerindo justamente o compartilhamento da intimidade. Mas, por trás
de cada máscara, haverá sempre outras, e não necessariamente uma
persona sem máscara, uma espécie de essência do ser que se realiza em
si mesma. Segundo Suely Rolnik, em Cartografia sentimental, na
relação com o outro, os corpos são tomados por uma mistura e uma
47
ANDRADE, Mário de. Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Editora do
Autor, 1968, p. 20. Apud KNOL, Vitor. Paciente arlequinada: uma leitura da
obra poética de Mário de Andrade. São Paulo: Hucitec, 1983, p. 20.
48
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 11 fev. 1945.
Apud LAFETÁ, João Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens na Poesia de
Mário de Andrade. São Paulo, Martins Fontes, 1986, p. 538.
49
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 93-94.
50
Ibidem, 1986, p. 35.
movimentação de afetos, de energias e intensidades, resultante do
movimento de simulação.51 Esse jogo de afetos pode proporcionar a
criação de máscaras, na medida em que ele é o artifício para as
realidades que vamos viver. As máscaras funcionam, assim, como
condutoras de afeto que simulam nossa exteriorização e tomam corpo
em matérias de expressão. Nessa perspectiva, a persona não existe como
algo natural, pré-estabelecido, mas se constrói a cada momento, em
conjunto com o interlocutor, a partir de afetos, desejos e fluxos
conscientes e inconscientes.
Essa construção se dá na relação com o outro – inclusive com a
participação do próprio pesquisador que se debruça sobre os textos. Em
“Autoetnografia: uma alternativa conceitual”, Daniela Beccaccia
Versiani destaca o processo intertextual e intersubjetivo das escritas de
construção de selves, como ocorre na correspondência, com o propósito
de evitar estratégias de leitura essencializadoras e cristalizadoras de
subjetividades e identidades.52 A autora recorre à mudança de paradigma
proposta por Julia Watson, sugerindo o abalo do sujeito metafísico e
unívoco, de identidade estável, e do propósito de se reproduzir a
“verdade dos fatos” e da “vida” de uma grande personalidade. Assim,
trabalha com uma noção de sujeito histórico construído de modo
dialógico, a partir das relações que estabelece com outras subjetividades
e enfatizando a presença do outro na escrita do eu. 53
Portanto, ao analisar as cartas, procuraremos aqui desvendar as
diversas personas assumidas pelos missivistas, buscando compreender
como dá a relação intersubjetiva entre as suas personalidades
heterogêneas, e também atentar para a interferência causada pelo próprio
olhar de pesquisador sobre o objeto pesquisado, nesse processo de
negociação construtiva dialógica e polifônica que a pesquisa envolve.

51
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas
do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, s/n.
52
VERSIANI, Daniela Beccaccia. Autoetnografias: Conceitos alternativos em
construção. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: PUC, 2002, s/n.
53
WATSON, Julia. Toward and anti-metaphysics of autobiography. In:
FOLKENFLIK, Robert (ed.). The culture of autobiography. Constructions of
self-representation. Stanford, California: Stanford University Press, 1993. Apud
Ibidem, 2002.
1.2 Amor de amigo

A amizade entre Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa foi


marcada pelo encantamento mútuo e o companheirismo, desde o início
da correspondência entre eles até o final da vida do escritor. A relação se
desenvolveu a partir de interesses comuns e afinidades eletivas, tendo
como base a paixão pela literatura, e ramificou-se também no convívio
pessoal e afetivo.
Mário e Henriqueta tinham ainda em comum as inquietações em
torno de questões éticas e estéticas, que permeiam uma parte
significativa da correspondência entre os dois escritores. Conforme
Mário revelou em carta a Drummond, teria sido mesmo uma carta da
amiga que havia lhe despertado a paixão pela teorização sobre o
fenômeno da criação artística.54
Podemos pensar que a correspondência entre Mário e Henriqueta
sugere uma relação afetiva sublimada, que se realiza à distância, numa
espécie de dramatização para compensar o amor inacessível e ausente, o
que remete ao “Sequestro da Dona Ausente”55, tema da palestra que o
escritor modernista proferiu em Belo Horizonte, quando os dois se
conheceram, em 1939. Segundo Telê Ancona Porto Lopez56, Mário
considera a Dona Ausente o sofrimento causado pela falta de mulher em
um povo de navegantes, que se ausentavam de casa por um longo
tempo. Estabelecidos no Brasil, os portugueses, apesar da facilidade de
se relacionar com as índias, continuavam ansiando por mulheres de sua
condição, as brancas e ausentes, e legaram esse complexo aos
brasileiros, que o transformaram numa forma de sublimação.
A idealização da amada inacessível, ausente e fetichizada remete,
como observa Agamben, ao Filebo platônico e à descoberta medieval do
amor e de seu caráter fantasmático:

54
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 24 ago. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 215.
55
O termo “sequestro”, do francês “refoulement”, remete às teorias de Freud,
segundo esclarece Lopez: “Freud considera a sublimação uma das fontes da
criação artística e responsabiliza-a pela transferência de elementos do plano
material e sexual para o plano espiritual e ideal. Esse sentido de sublimação é
ligado ao de ‘Refoulement’ e o escritor explica em 1928, através do termo
‘Sequestro’, a sexualidade que nossos românticos deixaram expressa no plano
artístico erudito.
56
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. São Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 146.
Segundo esta teoria (...), os objetos sensíveis
imprimem nos sentidos a sua forma, e esta
impressão sensível, ou imagem, ou fantasma
(como preferem chamá-la os filósofos medievais,
seguindo os passos de Aristóteles), é
posteriormente recebida pela fantasia, ou virtude
imaginativa, que a conserva, mesmo na ausência
do objeto que a produziu. A imagem “pintada
como em parede” no coração, de que fala
Giacomo, talvez seja precisamente este
“fantasma”, que, conforme verificaremos, cumpre
uma função muito importante na psicologia
medieval (...).57

De acordo com Agamben, esse fantasma pode ser definido


também como uma imagem ou um “espírito (...) inserido em um círculo
pneumático no qual ficam abolidas e confundidas as fronteiras entre o
exterior e o interior, o corpóreo e o incorpóreo, o desejo e o seu
objeto”.58 A função do fantasma no processo cognoscitivo é, segundo
ele, tão fundamental que se pode afirmar que ele é inclusive, em certo
sentido, a condição necessária da inteligência: Aristóteles chega até a
dizer que o intelecto é uma espécie de fantasia: ”o homem não pode
entender nada sem fantasmas”.59
Essa teoria do pneuma depois se funde com a do amor, nos
estilonovistas, e anos mais tarde com a revalorização humanista da
melancolia, em que ocorre uma ênfase obsessiva em uma experiência
patológica e sob cujo signo as polaridades doença mortal e salvação,
ofuscamento e iluminação, privação e plenitude aparecem problemática
e inextricavelmente conjugados. Essa sobrevalorização exaltada do
objeto de amor, que está entre as mais características intuições dos
poetas de amor, encontraria a sua explicação no vício da virtude
estimativa – “pensa que seja a mulher mais bonita, a mais venerável,
mais extraordinária e mais dotada no corpo e na alma”.60

57
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias - a palavra e o fantasma na cultura
ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 130.
58
Ibidem, 2007, p. 182.
59
Ibidem, 2007, p. 136.
60
Ibidem, 2007, p. 187.
Mário considerava a amizade “uma gratuidade de eleição,
iluminada, sem sequer pedir correspondência”.61 O escritor tinha “o
culto da solidariedade humana”, como define Antonio Candido62. Mas,
embora destacasse a gratuidade e desinteresse de sua amizade, ele
reconhecia que esse tipo de relacionamento envolve também interesses:
“na amizade se juntam muitos interesses práticos e principalmente
muitas afinidades eletivas interessadas”63.
Podemos pensar que, assim como não existe poesia
desinteressada, mas sim poesia voltada às especificidades do próprio
poema, também não existe amizade desinteressada, e sim a amizade que
se coloca acima dos interesses e exercita a generosidade e a doação: “A
verdade é que em tudo que fazemos há interesse e arte ou qualquer outra
atividade desinteressada é coisa que não existe”.64
De acordo com Agamben, a amizade é tão estreitamente ligada à
própria definição da filosofia que se pode dizer que sem ela a filosofia
não seria propriamente possível. Podemos pensar que o mesmo poderia
ser dito sobre a literatura, pois ela pressupõe uma comunhão,
comunidade, com-vivência com o outro.65
Para o filósofo, a amizade é uma questão ontológica e política,
pois pressupõe a instância de um com-sentimento da existência do
amigo no sentimento da existência. Na amizade, a sensação do ser é
sempre dividida e com-dividida: “Não há aqui nenhuma
intersubjetividade – essa quimera dos modernos –, nenhuma relação
entre sujeitos: em vez disso o ser mesmo é dividido, é não-idêntico a si,
e o eu e o amigo são as duas faces – ou os dois polos – dessa com-
divisão”.66 Nesse sentido, o amigo não é um outro eu, mas uma
alteridade imanente na "mesmidade", um tornar-se outro do mesmo.

61
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 154.
62
CANDIDO, Antonio. “Mário de Andrade”, Revista do Arquivo Municipal, nº
106, Ed. Fac-similar nº 198, São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico,
1990.
63
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 183.
64
MORAES, Marcos Antonio de. (org.). Correspondência Mário de Andrade &
Manuel Bandeira. São Paulo, 2000, p. 668.
65
AGAMBEN, Giorgio. “O amigo”. In: O que é o contemporâneo? E outros
ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 79.
66
Ibidem, 2009, p. 89.
Para o filósofo, a amizade é uma des-subjetivação que ocorre no coração
mesmo da sensação mais íntima de si.67
Ao iniciar essa correspondência, Mário tinha 47 anos e já era um
escritor consagrado, que desempenhava o papel de protagonista e
difusor do projeto modernista, tornando-se uma referência para muitos
escritores mais jovens que buscavam atualizar a sua escrita. Henriqueta
tinha 29 anos, já havia lançado três livros de poesia – Fogo Fátuo
(1925), Enternecimento (1929) e Velário (1936) – e começava a ganhar
alguma projeção. Ela buscava, nessa época, encontrar um leitor atento e
capaz de auxiliá-la em sua escrita: “Sinto-me, às vezes, no meio de
intensa inspiração, indecisa quanto ao caminho melhor para a poesia.”68
O escritor modernista também encontrou em Henriqueta uma
confidente com quem podia compartilhar sua intimidade e as suas
inquietações artísticas e intelectuais. Henriqueta era vista por ele como
um “rincão de paz, ilha de sombra”69, uma “clareira”, diante da fase
pessoal e profissional difícil que vivia, após ter sido afastado da direção
do Departamento de Cultura de São Paulo e ter se mudado para o Rio de
Janeiro, bem como das divergências enfrentadas no meio artístico e do
momento histórico sombrio, marcado pela ditadura de Getúlio Vargas e
pela Segunda Guerra Mundial.
Henriqueta então passou a fazer parte do grupo numeroso de
escritores que tiveram Mário como amigo e conselheiro. O apoio de um
escritor consagrado era também um meio para que escritores mais
jovens conseguissem inserção, legitimação e reconhecimento no meio
literário. E, devido ao prestígio que Mário tinha na época, sua tutela
funcionava como uma espécie de salvo conduto.
Nota-se, porém, que havia certa disparidade nos papéis
desempenhados pelos dois nessa relação epistolar, em que Mário
assumiu a posição de protagonista e Henriqueta podia ser vista como
uma coadjuvante mais jovem e menos experiente, mas promissora o
suficiente para, gradualmente, se posicionar com mais firmeza sobre as
mais diversas questões.

67
AGAMBEN, Giorgio. “O amigo”. In: O que é o contemporâneo? E outros
ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 90.
68
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 dez. de 1939. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis/ Edusp, 2010, p. 78.
69
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 26 abr. 1941. Ibidem, 2010,
p. 206.
Embora Henriqueta trilhasse um caminho próprio, dialogando ao
mesmo tempo com o simbolismo e o modernismo, ela considerava
Mário uma espécie de mentor, capaz de ajudá-la a atualizar e lapidar a
sua poesia: “Em verdade, não distingo se é maior, no meu sentimento, a
veneração pelo Mestre ou o carinho pelo amigo”.70
Henriqueta não se limitava a receber passivamente os conselhos e
reflexões do amigo, demonstrando personalidade para sustentar as suas
próprias escolhas e opinar sobre os mais diversos assuntos. Mas, em
algumas ocasiões, ela adotava uma atitude de reverência e modéstia:
“Mas a quem digo essas cousas?! Mário releve as minhas expansões.”71
A escritora mineira vai, aos poucos, ganhando confiança e
passando a conviver com o amigo de modo mais igualitário e menos
idealizado. Até porque Mário não queria que os reparos feitos à escrita
da amiga fossem acolhidos passivamente: “Está claro: não tem nada
como um amigo certo, que vê as coisas da gente com carinho mas
severidade, pra abrir os olhos da gente e repor nossas coisas na mesa. Se
concordar, muito que bem: jogue fora, conserte. Mas se não concordar,
sustente.” 72
Nessa narrativa escrita a quatro mãos, em que se misturam vida e
literatura, biografia e ficção, os dois atuavam como autores de sua
própria história e procuravam corresponder aos papéis e personagens
que cada qual havia criado para si. E à medida que os dois se
compreendiam e se ajudavam mutuamente, a amizade se fortalecia.
Embora as cartas fossem destinadas inicialmente ao âmbito
privado, os dois escritores estavam conscientes de sua importância
social e de que havia a possibilidade de que um dia se tornassem
públicas. O cuidado de ambos com o seu arquivo pessoal e com o
conteúdo de suas cartas demonstra que eles também consideravam a
possibilidade de que um dia elas poderiam ser lidas por um público
amplo. A correspondência entre os dois aborda temas e assuntos de
interesse geral, como as reflexões sobre ética e estética, que foram
elaborados de modo tão cuidadoso que poderiam ser reproduzidos em
um livro de ensaios.

70
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 11 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis/ Edusp, 2010, p. 104.
71
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 100.
72
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 08 ago. 1942. Ibidem, 2010,
p. 220.
Mário e Henriqueta se encontraram pela primeira vez em Belo
Horizonte, em 1939, quando o escritor realizou a conferência “O
Sequestro da Dona Ausente”. O tema se referia às “amadas ausentes”,
impossíveis, uma temática originada no cancioneiro popular ibérico e
explorada pela cultura popular luso-brasileira da época. Em função de
um compromisso assumido previamente, Henriqueta não pôde ir ao
evento, mas tomou a iniciativa – ousada, para uma mulher da época – de
escrever a Mário um bilhete, valendo-se de uma referência ao título da
conferência para justificar a sua ausência e manifestar o desejo de
conhecê-lo pessoalmente:

Um compromisso anterior com a União


Universitária Feminina me impediu de admirar de
perto, ontem, seu fascinante espírito. Enquanto o
Sr. falava em Dona Ausente, eu estava sendo
sequestrada na Faculdade de Direito (de Direito,
imagine!). Aguardo, porém, o ensejo de assistir à
sua segunda conferência e, mesmo, de vê-lo antes,
caso me dê a honra de uma visita, o que me
causaria extraordinária satisfação. Permita-me
dizer, desde já, que o seu devotamento às causas
da inteligência e da sensibilidade é um dos mais
impressionantes e mais belos exemplos que me
têm sido dado apreciar.73

De volta ao Rio de Janeiro, Mário escreve a José Carlos Lisboa,


irmão de Henriqueta, que o havia recebido em nome do governo
mineiro, e lhe agradece a acolhida: “Me recomende muito a todos os
seus, a seu pai simpaticíssimo, irmã, cunhado e mais a nossa
adorabilíssima Henriqueta Lisboa, que fiquei adorando na sua graça
delicada. Aliás escreverei a ela qualquer dia deste”.74
Henriqueta se antecipa a Mário e toma a iniciativa de escrever-
lhe, em 31 de dezembro daquele ano: “antes que 1939 termine, quero

73
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 26.
74
Carta de Mário de Andrade a José Carlos Lisboa, 19 nov. 1939. Ibidem, 2010,
p. 336.
dizer uma cousa a você: um dos principais acontecimentos deste ano,
para mim, foi conhecê-lo pessoalmente”.75
Mário e Henriqueta se viram pessoalmente apenas umas poucas
vezes ao longo dos anos em que se corresponderam. Residente em Belo
Horizonte, Henriqueta esteve no Rio de Janeiro, onde Mário morava ao
se conhecerem, em 1940, e também uma vez em São Paulo, em 1945;
Mário, por sua vez, esteve em Belo Horizonte duas vezes no período da
correspondência com a amiga: em 1939, para a conferência que os
aproximou, e em 1944, durante uma estada de 13 dias.
A distância, porém, não afastou os dois, pelo contrário: parece
mesmo ter contribuído para que a amizade se fortalecesse. A mediação
das cartas possibilitava que eles pudessem mostrar a melhor imagem de
si mesmos. Mesmo não havendo uma proximidade física, os dois sabiam
que poderiam recorrer um ao outro nos momentos de solidão e de
precisão de uma palavra amiga.
Mário demonstrava encontrar em Henriqueta uma interlocutora
atenciosa e capaz de possibilitar-lhe uma compreensão mais exata de si
mesmo: “Que carta grande, Henriqueta! Vamos ficar bem quentinhos
em nós mesmos, sem dizer nada a ninguém – ‘o encanto que nasce das
compreensões perfeitas’. Meu Deus! Como eu me sinto em sua carta!”76
E Henriqueta lhe devolvia na mesma moeda: “Nunca outra carta foi tão
minha, nunca outra carta me fez tão feliz.”77
Henriqueta, mais discreta, sempre iniciava a carta tratando o
amigo apenas por “Mário”; ele, menos contido, às vezes se permitia usar
expressões como “minha querida amiga”; outras vezes, lhe chamava de
“minha irmãzinha de caridade”. Mas a escritora mineira também sabia
manifestar o seu apreço pelo amigo: “Mário, mas há coincidências
adoráveis! Ninguém, ninguém saberia dizer-me tão lindas palavras
como as de sua última carta! Sim, sou feliz, no momento em que as
leio.”
Verifica-se que algumas passagens das cartas repercute na poesia
dos dois escritores, servindo de inspiração e fonte de ideias para a
criação artística. Por exemplo, a expressão de Mário “Rincão de paz,

75
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 dez. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 77.
76
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. Ibidem, 2010,
p. 183.
77
Bilhete de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 11. fev. 1942. Ibidem,
2010, p. 192.
ilha de sombra”78, usada para se referir a Henriqueta, é usada como o
título de um poema da escritora mineira incluído no livro A Face Lívida
(escrito entre 1941 e 1945): “Rincão de paz antes inóspito,/ Ilha de
sombra depois da morte!”79
Além disso, uma carta de Mário, escrita no Dia de Reis, começa
com a saudação: “Ouro, incenso e mirra para você!80” Henriqueta se
inspirou na frase para criar um poema homônimo, também de A Face
Lívida.81
Para expressar a sua amizade por Henriqueta, Mário afirma que
os seus “Poemas da Amiga”, escritos antes de ele conhecer Henriqueta e
“para amizades de menor consistência”, tinham se tornado
exclusivamente de Henriqueta: “Nós íamos calados pela rua/ E o calor
dos rosais nos salientava tanto/ Que um desejo de exemplo me
inspirava,/ E você me aceitou por entre os santos.”82
A correspondência de Mário envolve interlocutores como Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda,
Murilo Rubião, Sergio Milliet, entre muitos outros. Como já
mencionado, além de Henriqueta, Mário teve poucas interlocutoras
femininas mais constantes, como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e
Oneyda Alvarenga. O escritor se orgulhava de jamais deixar uma carta
sem resposta:

Uma carta não respondida me queima, me deixa


impossível de viver, me persegue. Algumas não
respondo, me exercito, ou condeno por inúteis.
(...) Não há dúvida eu sei, que é um desejo de
perfeição humana, uma aspiração à amizade mais
pura e mais desinteressada que me leva a tudo
isso. É uma fatalidade. Idiota como todas as
fatalidades. Mas que se converteu num exercício

78
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 26 abr. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 206.
79
LISBOA, Henriqueta. “Rincão de paz, ilha de sombra”. In: A Face Lívida.
Obras Completas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 138.
80
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, s/d, 1942. Ibidem, 2010, p.
179.
81
LISBOA, Henriqueta. “Ouro, incenso e mirra”. In: A Face Lívida. Obras
Completas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 114.
82
Ibidem, 2010, p. 248.
constante de superação, de aperfeiçoamento
pessoal e de desimpedida fraternidade humana.83

Mário era cultuado pela intelectualidade mineira, com a qual


entrou em contato já em 1919, quando visitou Minas Gerais pela
primeira vez. Ele conheceu então as cidades coloniais, se encantou com
a obra de Aleijadinho e visitou o poeta Alphonsus de Guimaraens, em
Mariana. O poeta modernista também esteve em Minas Gerais em 1924,
na famosa Viagem de descoberta do Brasil, em companhia de Oswald de
Andrade, Goffredo Telles, Tarsila do Amaral e do poeta francês Blaise
Cendrars. Na ocasião, conheceu Drummond, Emílio Moura, João
Alphonsus, Pedro Nava, Martins de Almeida, Abgar Renault, entre
outros. Muitos jovens escritores mineiros passaram então a contar com a
amizade e o apoio do já consagrado escritor modernista, como José
Carlos Lisboa84, Murilo Rubião, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e
Fernando Sabino. Um testemunho dessa relação profícua de amizade e
intercâmbio cultural e artístico entre Mário e os escritores mineiros foi
dado por Drummond, no artigo “Mário de Andrade, Minas e os
mineiros”, publicado originalmente em 1968:

Desde suas viagens pelo interior do Estado, antes


de 1920, para conhecer, estudar, redescobrir com
lúcido olhar a riqueza barroca, desde o incentivo
dado ao modernismo nascente em Belo Horizonte
e Cataguases, desde o intercâmbio ininterrupto
pelas cartas, com os compatriotas de geração a
que se ligara profundamente, até o contato com os
escritores que depois foram surgindo e
redescobriram uma fonte de sabedoria, de
entusiasmo, de criatividade, de identificação com
os mais vivos valores da cultura brasileira – em
todos esses momentos e sob todos esses ângulos,

83
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 out. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 305.
84
Irmão de Henriqueta Lisboa, também escritor e professor de Literatura.
Mário de Andrade foi um amigo da terra e da
gente de Minas.85

Henriqueta se correspondeu também com outros escritores e


críticos, como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles,
Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Manuel Bandeira e Fábio Lucas, mas
de modo muito mais esporádico e circunstancial, geralmente para
agradecer o recebimento de um livro, sem apresentar a mesma
regularidade que a correspondência com Mário. Com mais frequência,
ela se correspondeu também com Gabriela Mistral, entre 1940 e 1946,
período em que a poeta chilena escreveu 15 cartas para a poeta mineira:
“Su poesía me ha creado el interés de su alma y para mí una visita no es
nunca cosa de cortesía sino de lenta y dulce aproximación a los que me
interesan de modo profundo.”86
Gabriela Mistral e Henriqueta se conheceram no Rio de Janeiro,
em 1940, durante uma sessão da Academia Brasileira de Letras. Em
1943, a poeta chilena foi a Belo Horizonte para fazer duas conferências,
uma sobre o Chile e outra sobre O Menino Poeta.87 Entre 1939 e 1943,
ela foi nomeada cônsul geral e passou a morar em Petrópolis (RJ). Nessa
época, Gabriela Mistral, Henriqueta e Cecília Meireles se tornaram
amigas e passaram a se corresponder. Henriqueta depois traduziu 61
poemas e sete textos em forma de prosa poética da escritora chilena, que
em 1945 se tornou a primeira escritora a receber o Prêmio Nobel.

1.3 Silêncios e constrangimentos

A correspondência entre Mário e Henriqueta sugere que o


sentimento que predominou entre os dois foi o amor de amigo – um
amor “puro”, espiritualizado e livre de interesse sexual: “Um dos mais
belos espetáculos do mundo – não é verdade, Mário? – é essa comunhão
espiritual que nos une, através do tempo e da distância. Existem por

85
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Mário de Andrade, Minas e os
mineiros”. In: Suplemento Literário de Minas Gerais. Belo Horizonte, 8 de
junho de 1968, n. 53.
86
Carta de Gabriela Mistral a Henriqueta Lisboa, 22/09/1940. Série
Correspondência Pessoal. Apud PAIVA, Kelen Benfenatti. Nos bastidores do
arquivo literário: Henriqueta Lisboa entre versos e cartas. Tese (doutorado).
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, p. 140.
87
MARQUES, Reinaldo. Henriqueta Lisboa: tradução e mediação cultural.
Revista Scripta. Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 205-212, 2o sem. 2014.
certo outras afinidades entre os seres. Mas creio que estas são as mais
puras.”88
Segundo observa Marcos Antonio de Moraes, Mário interpretava
a amizade sob o ponto de vista estético, uma doação sem nenhuma
espécie de interesse imediato, diferenciando assim “amor de amigo” e
“amor sexual”:

O que me maravilha na amizade é a extrema


gratuidade do amor de amigo, o seu mecanismo
de conhecimento puro, de compreensão estética,
contemplativa e desinteressada. É aquele eterno
dar-se e receber sem nenhuma espécie de interesse
imediato. É aquela dedicação, aquele amor que
vive de si mesmo e não exige retribuição
imediata, embora em seu afeto ele tenha todos os
reflexos biológicos do amor sexual, menos o
sexo.89

Nada na correspondência entre Mário e Henriqueta demonstra


que tenha havido algum vínculo entre os dois que fosse além do amor de
amigo. O tratamento entre eles é sempre carinhoso, mas explicita
sobretudo uma relação de amizade.
Mário de Andrade se apaixonou por algumas mulheres ao longo
de sua vida, embora, aparentemente, de modo apenas platônico. Além de
Tarsila do Amaral, ele dedicou uma série de poemas, chamada “Tempo
de Maria”, para Carolina, filha de D. Olívia Guedes Penteado, dama da
aristocracia cafeeira e mecenas dos modernistas. Segundo relato de
Rubens Borba de Moraes:

Apaixonava-se platonicamente com a maior


facilidade. Muitos de seus versos de amor são
frutos dessas paixões sem maiores consequências.
Eram amores de poeta, paixões líricas e puras
como a de Petrarca. Tarsila do Amaral, antes de
casar-se com Oswald de Andrade, inspirou-lhe

88
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 06 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 111.
89
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 183.
outra série de poemas. Dona Carolina, filha de
dona Olívia Penteado, inspirou-lhe outra série de
poemas. Quase todos versos publicados com o
título "Tempo de Maria", no volume Poesias,
provêm desse amor platônico. Uma noite em casa
de Tarsila, dona Olívia pediu-lhe que dissesse um
de seus últimos poemas. Mário recitou:

Passa pura neste mundo,


Sendo chique e sendo rica.
Tem marido, quatro filhos,
Sabe rir, sabe gozar,
O nome dela é Maria.

À medida que recitava, íamos ficando frios. Foi


um alívio quando acabou. Não era para menos,
pois o nome dela era Maria mesmo, e estava
presente com o marido! Tanta simplicidade
deixou-nos perplexos. Porém Maria e o marido -
este fora poeta - tinham superioridade e
inteligência bastante para compreender e fingir
que nada tinham percebido.90

A sexualidade de Mário tem sido alvo de alguma polêmica. Ele se


declarava “pansexual”, mas as cartas de sua autoria publicadas pouco ou
nada revelam sobre a sua vida amorosa. Em sua correspondência com
Henriqueta, Mário também evitava fazer referências à sua vida sexual. O
escritor tinha tendências homoeróticas e enfrentava muitos tabus e
preconceitos na época. Ele se definia como um pansexual, mas
procurava preservar os amigos e familiares dos constrangimentos que
sua opção sexual poderia trazer.
Antonio Candido, que frequentava a casa do escritor, pois
namorava a sua prima Gilda de Moraes Rocha, se referiu diretamente ao
assunto, em 1990: “O Mário de Andrade era um caso muito complicado,
era um bissexual, provavelmente”.91 No dia 19 de junho de 2015, a

90
MORAES, Rubens Borba, RB/LE, p. 22. Apud ANDRADE, Carlos
Drummond de., p. 68.
91
CANDIDO, Antonio. “O Mário que eu conheci”. In: Eu sou trezentos, eu sou
trezentos e cincoenta. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008.
Fundação Casa de Rui Barbosa disponibilizou para a imprensa um
trecho inédito de uma carta escrita por Mário a Manuel Bandeira, em 7
de abril de 1928, onde ele fala a respeito de sua fama de homossexual:
“(...) si agora toca nesse assunto em que me porto com absoluta e
elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um
companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua”.92
De acordo com Sérgio Miceli, Mário evitava tocar no assunto em
busca de preservar a sua imagem pessoal e profissional:

As restrições impostas pelo seu limitado cacife


material e financeiro foram de certa forma
amplamente compensadas pelas pulsões
desencadeadas por sua ambivalência sexual, ou
melhor, pelo fato de não poder assumir
publicamente suas inclinações sob pena de
comprometer a imagem no círculo familiar,
espaços de operação, recursos políticos e, talvez,
até mesmo o status privilegiado na hierarquia do
campo intelectual brasileiro da época.93

Nas cartas a Henriqueta, Mário se mostra discreto sobre sua vida


amorosa; eventualmente menciona ter participado de noitadas e
excessos, mas sem entrar em detalhes. Ao falar sobre a sua amizade com
Anita Malfatti, nos tempos do Modernismo, o escritor conta que
mantinha um contato diário com a pintora – ela chegou a pintar uns 20
retratos seus – e revela a desconfiança de que ela tenha sentido por ele
um amor não correspondido:

A discrição, em mim: paulista, nela: puritana,


jamais nos permitira chegar a muito íntimas
confissões, ela sabia sem por mim oficialmente
saber, das cavalarias que ele andava fazendo por
fora, e eu vagamente suspeitava nela a existência
de um amor não correspondido. Naquele contacto
diário prolongado viera se entremeter uma como

92
BORTOLOTI, Marcelo. A carta em que Mário de Andrade fala de sua
homossexualidade. Rio de Janeiro: Revista Época, 18 jun. 2015.
93
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: Retratos da elite brasileira (1920-40).
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 87.
que.... desilusão do sexo. Pra salvarmos a
amizade, nos afastamos cautelosamente mais, um
do outro.94

Henriqueta responde que considera um exagero os 20 retratos


pintados por Anita, sugerindo ter sentido mesmo uma ponta de ciúmes:
“Ocorreu-me falar-lhe disso à leitura de sua última carta, com aquelas
confidências e recordações do rapaz espigado – talvez um tanto
assustado de sua própria desenvoltura – que ia posar para Anita Malfatti
(vinte retratos, Mário, isso também foi demais...)”95
Henriqueta jamais se casou nem teve filhos. A poeta mineira
parece ter canalizado os seus desejos para o campo da criação artística e
a busca por reconhecimento e projeção, deixando a vida pessoal e
afetiva em suspensão. Conforme demonstra a pesquisadora Kellen
Benfennati, Henriqueta, em vários momentos, demonstra irritação com
as perguntas sobre a sua opção de permanecer solteira, que insiste em
aparecer nas entrevistas nos jornais, afirmando com convicção: “Sou
solteira. Muito em paz”.96
Muito discreta, ela quase nunca falava sobre questões amorosas
ao amigo, tendo abordado o assunto mais diretamente apenas quando fez
um resumo de sua trajetória e mencionou ter vivido um “desengano de
coração”:

1929-1939 foi tempo de provação para mim, para


toda minha família. Desengano de coração,
doenças, a queda política de meu pai, dificuldades
financeiras, mudança de casa no Rio, procura de
trabalho remunerado para mim, um ano de
magistério em cidadezinha de interior, perspectiva

94
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 145.
95
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 jul. 1941. Ibidem, 2010,
p. 161.
96
Entrevista concedida a Walter Álavares, publicada na Folha de Minas, em
Belo Horizonte, em 09 de
outubro de 1949. Apud PAIVA, Kellen Benfenatti. Nos bastidores do arquivo
literário: Henriqueta Lisboa entre versos e cartas. Tese de doutorado –
Universidade Federal de Minas Gerais / Programa de Pós-Graduação em Letras,
Belo Horizonte, 2012, p. 64.
de ter que morar lá! E depois a morte de minha
irmã....97

Um amigo de Henriqueta, José Afrânio Moreira Duarte (1931-


2008), num estudo dedicado à poeta, chegou a cogitar a existência de
um possível amor platônico entre Henriqueta e Mário: “Acredita-se ter
sido o grande escritor paulista o grande amor platônico de Henriqueta
Lisboa, que, extremamente discreta, nunca revelou o fato a quem quer
que fosse”.98
O grande amor da vida da poeta mineira teria sido Tripudio
Lomanto, um professor de Educação Física argentino, filho de pais
italianos, residente em Buenos Aires, que Henriqueta conheceu no Rio
de Janeiro, em agosto de 1928.99 Ela contava então 27 anos. Seu livro
Enternecimento, lançado em 1929, teve poemas dedicados a Tripudio
Lomanto: “Hora eterna”, “Vida interior”, “Guisos (sic) de ouro”,
“Serenidade”,“O momento oportuno” e “Canção para entristecer”100. No
poema “À tua espera”, a poeta parece revelar o desejo de reencontrar o
argentino: “Vou tornar a ver-te em breve!/ Sinto a saudade tão leve/
Como um contacto de flor./ A distância está vencida,/ Tanto se prende
este amor/ Aos braços da minha vida!”101
Esse relacionamento da poeta mineira teria sido mantido em
segredo e revelado somente a familiares. Em carta para a sua irmã
Alaíde Lisboa, datada de 1933, a escritora aborda o assunto, mostrando-
se desapontada com a falta de comprometimento do argentino: “Queres
saber o que me disse Lomanto? Aquelas coisas de sempre: ‘que no
podrá jamás olvidarme’... E nem por isto se mata! Surpreendeu-me a sua

97
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 249.
98
DUARTE, José Afrânio Moreira. Henriqueta Lisboa: poesia plena. Ensaio.
São Paulo: Editora do Escritor, 1996, p. 58. Apud MACHADO, Adriana
Rodrigues. Rosa plena: a sagração da poesia em Henriqueta Lisboa. Tese
(doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2013, p. 61.
99
Ibidem, 2013, p. 61.
100
Ibidem, 2013, p. 61.
101
LISBOA, Henriqueta. “À tua espera”. In: Enternecimento. Obras Completas.
São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 21.
carta porque a outra ficara sem resposta. Então, as notícias vindas do
Paraíso foram celestiais, por afinidade. Não foram?102
Lomanto escrevia a Henriqueta cartas expressando o seu desejo
de se mudar para o Brasil e de iniciar uma vida junto com ela:

Me preguntas cuando cruzaré el océano para estar


a tu lado. Imagina mi querida Henriqueta los
deseos que tengo de reunirme pronto a ti y sabrás
que ese día no há de tardar. Antes trataré de
solucionar mis cosas, dejar libre el camino, iniciar
así en tu compañia una vida que ansío, que sé que
será azul como el cielo, verde como la esperanza y
blanca como la bondad infinita que irradias sobre
mi.103

O primeiro e, provavelmente, único amor de Henriqueta acabaria


em desencanto. Em carta para Marie Wallis, ela viria a confessar que
depois percebeu que havia idealizado o amor: “Sinto, hoje que idealizei
demasiadamente a união entre os seres. Tinha que ser assim; sou, no
fundo, uma romântica a que a educação e a vontade trouxeram
equilíbrio, porém não conformismo”.104
Naquela época, o preconceito social com relação à
homossexualidade começava a ser enfrentado, ainda que discretamente,
por alguns artistas e intelectuais. Além de se declarar um “pansexual”,
Mário também se dizia um epicurista, ainda que com a ressalva de que
era um “epicurista católico”. A doutrina do filósofo grego Epicuro (341
a.C. — 271 ou 270 a.C) estava em voga na época, principalmente após o
escritor francês André Gide (1869-1951), associado ao seu pensamento,
ter vencido o Prêmio Nobel. Assumidamente homossexual, Gide é autor
de Os Frutos da Terra, poema em prosa sobre o desejo e o acordar dos

102
Carta de Henriqueta Lisboa a Alaíde Lisboa, 10 abr. 1933. Acervo de
Escritores Mineiros, Pasta Correspondência Pessoal, AEM/UFMG. Apud
MACHADO, Adriana Rodrigues. Rosa plena: a sagração da poesia em
Henriqueta Lisboa. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2013, p. 62.
103
Carta de Tripudio Lomanto a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1929. Acervo de
Escritores Mineiros, Pasta Correspondência Pessoal do Titular (LOMANTO,
Tripudio). Apud Ibidem, 2013, p. 62.
104
Carta de Henriqueta Lisboa a Marie Wallis, de 19 de fevereiro de 1942.
Acervo de Escritores Mineiros. Apud Ibidem, 2013, p. 62.
sentidos, e Corydon, que falava abertamente em favor dos direitos dos
homossexuais.
As cartas entre Mário e Henriqueta quase não abordam – ao
menos diretamente – a questão da sexualidade, talvez porque tivessem
consciência de que essas cartas um dia se tornariam públicas. Além
disso, a postura casta e puritana de Henriqueta não devia estimular
muito o assunto. Embora a poeta mineira se mostre sempre discreta e
cordial, em alguns trechos da correspondência podemos notar esse
aspecto de sua personalidade. Em outubro de 1944, após Mário pedir
que um rapaz amigo seu entregasse um exemplar de Lira Paulistana na
casa de Henriqueta, ela parece reagir a essa amizade com certo ar de
desaprovação. A censura que faz ao “excesso” e “desordenado” das
leituras do rapaz, o espanto ao fato de ele já ter devorado “todo ou quase
todo o Gide!”, sugerem certo julgamento moral, talvez em função da
sensualidade associada ao escritor francês:

Fiquei impressionadíssima de ver a que ponto


você se preocupa com esses rapazes. Santo Deus!
Se eu pudesse ajudá-lo em alguma cousa! A
dificuldade maior é que eles não terão confiança
em mim, nem sequer me conhecem. Imaginam
que realizo arte com egoísmo, despreocupada dos
mil problemas da vida de hoje – econômicos,
sociais, espirituais, quando, em verdade, o
problema que me preocupa é o mais lancinante de
todos – o da consciência, não apenas o de uma
consciência. Mas eles são ainda muito moços. O
que me espanta é o excesso, o desordenado da
leitura a que se entregam. Esse que veio à minha
casa e tem dezessete anos já devorou todo ou
quase todo o Gide! Lembrei-lhe a conveniência do
convívio com os clássicos para contrabalançar os
perigos da aventura. Se eles pudessem ter um
desenvolvimento mais harmonioso, campo mais
vasto, mais variado, para os exercícios da cultura,
a beleza sob aspectos múltiplos! As nossas
Faculdades de Filosofia105 são ainda muito vagas,
aliás, a que oferece condições de normalidade é só
de moças.106

No final dessa citação, Henriqueta deixa claro que considerava


desejável para um desenvolvimento cultural intelectual “harmonioso” o
modelo encontrado nas Faculdades de Filosofia voltadas para as moças,
por oferecer “condições de normalidade”. Percebe-se, nessa carta, o
modo como Henriqueta, ainda que polidamente, podia assumir um
discurso moralista e normatizador, em favor de uma sociedade
conservadora e repressora. A poeta mineira havia estudado no Colégio
Sion, fundado no Rio de Janeiro, com filiais em São Paulo e Minas
Gerais, destinado às moças da famílias de elite conhecidas pelo francês
perfeito, as maneiras refinadas, a formação em literatura clássica e a
submissão à autoridade. Sob a influência dessa educação e de sua
formação religiosa, Henriqueta mantinha uma imagem de recato e pudor
que atuava como reguladora das normas comportamentais e das tensões
e pulsões das práticas sociais. Em sua correspondência, ela demonstra
certo conformismo com o papel social então ocupado pela mulher em
uma sociedade patriarcalista e conservadora, portando-se com um recato
e pudor verbal que davam margem a interditos e constrangimentos.
Outras vezes, nomeadamente assumia uma posição conservadora, por
não querer romper com a sua condição social e devido à “necessidade de
harmonia” que atribuía à condição da mulher:

Esta capacidade de sofrimento – ainda bem! – é o


maior fator da capacidade artística. Pelo menos
para a mulher. Entretanto, paradoxalmente, é esta
mesma capacidade de sofrimento que mata a
intelectualidade feminina. A mulher não serve
tanto a desesperação da verdade como à
necessidade da harmonia. Deverei confessar-me:
não sou bastante rebelde para sentir-me uma
verdadeira intelectual (para isso teria que superar

105
Embora não fique claro sobre qual Faculdade Henriqueta se referia, talvez
fosse a Faculdade Católica de Filosofia, para a qual ela havia sido convidada a
lecionar, segundo conta a Mário, em carta de 1º de novembro de 1942 (p. 231).
106
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, Belo Horizonte, 22 de
outubro de 1944. SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de
Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 301.
muita cousa, sacrificar muita cousa). Nem sou
bastante simples para viver a vida burguesamente
como as outras mulheres. Não sou bastante
generosa para renunciar à minha própria
personalidade. Nem egoísta bastante para pensar
unicamente em mim. Poderei ser feliz.107

Embora essa postura fosse compreensível, se considerarmos as


condições das mulheres na sociedade da época, a poeta mineira acaba se
abstendo de participar das lutas pelas conquistas na área do
comportamento e da liberdade sexual, o que também tem implicações
políticas. Como sabemos, a partir da perspectiva das lutas feministas e
queer do mundo atual, uma postura conservadora e heteronormativa traz
uma violência que é também política, uma vez que ela contribui para
que as pessoas que não se adéquam a determinados enquadramentos e
normas vigentes tenham os seus direitos básicos negados na sociedade,
conforme observa Judith Butler: “Não podemos reconhecer facilmente a
vida fora dos enquadramentos nos quais ela é apresentada, e esses
enquadramentos não apenas estruturam a maneira pela qual passamos a
conhecer e a identificar a vida, mas constituem condições que dão
suporte para essa mesma vida”.108

1.4 Excessos x virtudes

Provenientes de famílias de classe média e com uma boa inserção


social, Mário e Henriqueta apresentavam, porém, comportamentos
sociais distintos. Mário bebia, fumava, frequentava os bares com os
amigos – comportamento que era aceito para o homens, mas não para as
mulheres, naquela época. Henriqueta, por sua vez, buscava levar uma
vida regrada e equilibrada, de acordo com os princípios da religião
católica e as normas de comportamento social da época, bastante
rigorosas e restritivas para as mulheres. Ela era vista pelas pessoas como
um exemplo de recato, discrição e comedimento, sugerindo a Mário uma
imagem idealizada de pureza e virtude: “O que mais me encantou em
você (...) foi a realidade do seu ser de passarinho, em que nem seus

107
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 6 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 111.
108
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 39.
desfalecimentos nem seus entusiasmos nem nada consegue trazer a
noção desgraciosa de um desequilíbrio”.109 Ele, porém, evitava
estigmatizar a amiga em função de seu comportamento recatado e
buscava reconhecer nela a intensidade da vida anterior:

Só agora recebi sua carta de dezembro, 31. O


efeito é o mesmo. Ela me rodeou desse encanto
suavíssimo em que sempre me enleava a sua
figurinha quando estive em Belo Horizonte.
Aquele mesmo dizer meigo, aquela mesma
inteligência tão sensível e tão capaz de ser feliz
pela admiração e aquela mesma discrição delicada
que não consegue disfarçar a intensidade da sua
vida interior, Henriqueta. Adorei a carta.110

Mário mantinha em relação a Henriqueta uma atitude respeitosa,


oferecendo-lhe um tratamento distinto do que dispensava aos seus
amigos homens, de acordo com as normas sociais da época. Em carta a
Carlos Drummond de Andrade, ele comenta que, durante sua visita a
São Paulo, pretendia levá-lo para a conversa de homem para homem nos
bares e para a farra nas “boites francesas” e nos “mosqueteiros
italianos”; mas que, ao receber Henriqueta, optaria por convidá-la para
um almoço em sua casa e para desfrutar a intimidade familiar na sala de
jantar111. Esse tratamento mais formal e respeitoso, porém, não
implicava que Mário visse em Henriqueta uma “feminilidade antiga de
recato estigmatizado e feitura de bolos e crochês”.112
Mário manifestava receio de assustar Henriqueta com as suas
confissões íntimas, talvez em função de certos excessos aos quais ele se
permitia em sua vida pessoal. Apesar do cuidado, ele não conseguia
conter as confissões, talvez em busca de expiar certo sentimento de
culpa com relação ao seu comportamento. Henriqueta parecia, de fato,

109
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 27 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 116.
110
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1940. Ibidem, 2010,
p. 79.
111
ANDRADE, Mário de. Apud SOUZA, Eneida Maria de. “A dona ausente”.
Ibidem, 2010, p. 27-28.
112
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 03 ago. 1941. Ibidem,
2010, p. 291.
se assustar, mas depois procurava superar a impressão inicial lembrando
o lado bom do amigo: “Você começa escandalizando a gente, tranquiliza
a gente logo depois, ri, fala sério, lembra terríveis realidades, divaga...
E, através de tudo, percebo o sonhador que existe em você.”113
Para evitar ofender a amiga, o escritor modernista evitava usar
palavrões. Ele se mostra meticuloso em seus cuidados para omitir, por
exemplo, o uso da palavra orgasmo, quando compara o momento da
criação com o orgasmo:114

Me surgem exatamente agora comparações e


equiparações que eu não quero lhe repetir por
demasiado brutais em sua sexualidade. Mas esse
instante (único sublime, único extasiante no
fenômeno artístico) da criação, é como um delírio,
uma explosão, um esvaimento, um beijo, uma
loucura, uma irresponsabilidade e não permite
nenhuma coação.115

Henriqueta confessa ter se escandalizado algumas vezes com


algumas expressões bastante fortes e com o realismo denso da obra
poética de Mário, como nos poemas de A Costela do Grã Cão. Mas ela
sempre procurava relevar alguma impressão negativa eventual e
enxergar aquilo que considerava o lado bom dele. No texto que fez
sobre o amigo após a sua morte, ela afirma que a escrita de Mário põe
em relevo “o gosto de viver até a amargura – ‘a própria dor é uma
felicidade’, verso repetido – a desconcertante ironia à hora da lágrima,
sarcasmo disfarçando enternecimento, blandícia valorizando rudeza,
pranto de amor.”116

113
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 04 jun. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 96.
114
Na verdade, considerando que Mário divide o momento da criação em
“possessão voluntária” e “superposição intelectual”, podemos pensar que a
criação envolve primeiro um orgasmo e depois um parto.
115
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 211.
116
LISBOA, Henriqueta. “Lembrança de Mário”. In: SOUZA, Eneida Maria de.
(Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo:
Peirópolis / Edusp, 2010, p. 345.
Enquanto Henriqueta buscava encontrar o equilíbrio a partir da
virtude e contenção, Mário o procurava nos excessos de sua vida pessoal
e na dramaticidade da poesia. Ele, ousadamente, incorporou o
repugnante Caliban – e não o louvável e prestigiado Ariel – para
escrever o livro “O Carro da Miséria”, entre 1930 e 1943, período
marcado pela desilusão com os fatos históricos, problemas pessoais e
bebedeiras. Em carta para Henriqueta, o escritor modernista assim
descreve o processo de criação do poema:

Um é horrível, grosseiro, grotesco, “O Carro da


Miséria”, escrito em duas noites de total desespero
de mim e desespero vital, era fatal, duas noites de
bebedeira desenfreada, uma em 1930 e outra em
1932, ambas depois que as duas revoluções já não
deixavam nenhuma possibilidade de ilusão. Mas
os fatos históricos só servem de fato pra despertar
minha desilusão interior. Aí eu me zurzo em
minha burguesice com a maior impiedade e
sarcasmo, me induzindo a me ultrapassar a mim
mesmo. É poema feio, voluntária, não:
necessariamente anti-estético, grosseiro, bárbaro,
com palavrões até, em que de longe em longe
brota um verso bonito, você só o lerá quando sair
nas Poesias Completas.117

A desilusão à qual se refere nesse trecho se deve à Revolução de


1930118, que impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e levou

117
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. Ibidem, 2010,
p. 321.
118
A Semana de Arte Moderna teve repercussão também no âmbito político,
com a Revolução de 1930. Em 1929, lideranças da oligarquia paulista
romperam a aliança com os mineiros na política do café com leite e indicaram o
paulista Júlio Prestes como candidato à presidência da República. A República
Velha (1889-1930) era então controlada pelas oligarquias cafeeiras e pela
política do café com leite (1898-1930). O capitalismo crescia no Brasil,
consolidando a república e o poder da elite paulista, ao qual o Movimento
Modernista estava intimamente ligado. Em reação, Antônio Carlos Ribeiro de
Andrada, presidente de Minas Gerais, apoiou a candidatura oposicionista do
gaúcho Getúlio Vargas. Além disso, o movimento tenentista iniciado com o
levante do Forte de Copacabana, em 1922, teve como desdobramento a Coluna
Getúlio Vargas ao poder, e também à falha da Revolução de 1932, que
pretendia derrubar o governo provisório: “Da rabolução de julho/ Tava
danado/ Com a sonhança desses pestes/ Que juguei no Júlio Prestes/
Mas quem deu foi o Getúlio”.119
A personalidade de Mário parece se debater entre Caliban e Ariel,
personagens da peça A Tempestade, de William Shakespeare (1564-
1616). Em uma interpretação mais literal, Ariel é visto como um espírito
do ar, alegre e vago, que gosta de se apresentar sob a aparência feminina
e de entoar canções suaves; enquanto Caliban é uma antítese de Ariel,
monstro deformado e cruel, metade demônio, metade besta e cheio de
baixos instintos.
Esses personagens, porém, tiveram interpretações contraditórias
na América Latina, assumindo feições diferentes em cada contexto. No
final do século XVIII, com a emergência das teorias raciais, a peça de
Shakespeare foi relacionada com a colonização da América, concepção
presente na literatura inglesa e americana no século XIX. Caliban era
então visto como anagrama para canibal e associado aos povos
colonizados.120
No início do século 20, o personagem Ariel inspirou um livro
homônimo do escritor uruguaio José Henrique Rodó e se tornou uma
das principais metáforas políticas e culturais da América Latina, sendo
associado aos valores nobres e elevados e à resistência à colonização
norte-americana, com seus valores materialistas e utilitaristas. Nas
palavras de Rodó:

Ariel, gênio do ar, representa no simbolismo da


obra de Shakespeare a parte nobre e alada do
espírito. Ariel é o império da razão e do
sentimento sobre os baixos estímulos da
irracionalidade; é o entusiasmo generoso, o móvel
elevado e desinteressado na ação, a espiritualidade
da cultura; a vivacidade e a graça da inteligência
— o término ideal a que ascende a seleção

Prestes e a Revolução Constitucionalista, liderada pelo general paulista Isidoro


Dias Lopes.
119
ANDRADE, M. de. O carro da miséria. In: Poesias completas. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2005, p. 225.
120
RAMOS FLORES, Maria Bernardete. Caliban na interpretação do Brasil
acerca do americanismo na República Velha Brasileira. Diálogos Latino-
americanos, núm. 11, 2006, p. 50- 71.
humana, corrigindo no homem superior os
vestígios tenazes de Caliban, símbolo de
sensualidade e torpeza, com o cinzel perseverante
da vida.121

Henriqueta demonstrava se identificar mais com a figura de Ariel,


fazendo dele uma imagem idealizada, capaz de redimir o mundo
infestado de Calibans, conforme ela expressa em carta a Mário:

Veja que coincidência: neste momento


passarinhos invisíveis cantam aqui perto da janela
do meu escritório, cantam e saltitam em gaiolas
penduradas do outro lado do muro vizinho,
lembrando-me aquele que costuma esvoaçar nos
meus pensamentos... Passarinho esvoaçante é
coração contente, Mário. Quem foi que falou em
coração magoado?... Afinal de contas, porque
magoado?... Porque o mundo está infestado de
Calibans? Mas há também Ariel, Ariel!
Varinha mágica de condão, sopro leve que vence
tudo quanto é cimento e peso pesado! A vida pode
ser triste, mas será bela enquanto Ariel existir.122

A preferência da poeta mineira pela imagem de pureza trazida por


Ariel fica bem nítida no seu poema “Ariel”:

Dança Ariel para o tempo, à margem


Da eternidade, e que precária
Cousa, a eternidade,
Para a alegria pura de Ariel!123

O livro de Rodó ganhou popularidade e se tornou referência para


várias gerações de intelectuais. Henriqueta comenta com Mário ter

121
RODÓ, José Enrique. Ariel. Campinas: Editora da Unicamp, 1991, p. 14.
122
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 160.
123
LISBOA, Henriqueta. “Ariel”. In: Azul Profundo. Obras Completas. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 247.
aprendido com Rodó a amar a tolerância e cita um trecho do autor:
“término y coronamiento te toda honda labor de reflexión; cumbre
donde se aclara y se engrandece el sentido de la vida.”124
Ariel era também o nome de uma revista de cultura musical
publicada em São Paulo, lançada alguns meses depois do último número
de Klaxon, entre 1923 e 1924, sob a direção de Antonio de Sá Pereira. A
publicação contou com a participação de Mário.
Havia ainda o Boletim de Ariel, publicação de letras, artes e
ciências que circulou a partir de 1932, foi suspensa em 1942, reiniciada
em 1973 e parou de circular em 1976. O boletim da Editora Ariel tinha
como diretor Agrippino Grieco e como redator-chefe Afrânio Coutinho
e teve como colaboradores nomes como Jorge Amado, Raul Bopp,
Otávio de Faria, Murilo Mendes, Lúcia Miguel Pereira, Cornélio Pena,
Graciliano Ramos, Marques Rebelo e José Lins do Rego.
Mário se mostrava dividido entre os dois personagens, atestando
que eles podem estar presentes numa mesma persona. Em Lira dos vinte
anos, Álvares de Azevedo também já havia assumido a face de Caliban
para escrever a segunda parte do poema, chamada “Face de Caliban”, e
a de Ariel para escrever a primeira e a terceira. Mário assume o Caliban
burguês e grotesco para escrever “O Carro da Miséria”, mas incorpora
Ariel para criar “A Meditação sobre o Tietê“, poema que, segundo ele,
“se esforça pra ser belo”.125
A atitude corajosa do escritor modernista de incorporar Caliban
se mostra precursora da interpretação feita depois pelos estudos pós-
colonialistas. Durante os anos 1960, o poeta e dramaturgo Aimé Cesaire
reescreveu a peça de Shakespeare em uma adaptação para o teatro
negro, na qual discute as discriminações de raça, e Caliban figura como
um protagonista que não se conforma com a dominação imposta pelo
colonizador Próspero. Em 1971, o poeta e filósofo cubano Roberto
Fernández Retamar lançou um ensaio sobre Caliban, definindo o
personagem como um “poderoso conceito-metáfora que alude não só à
América Latina, mas a todos os condenados da Terra”.126

124
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 set. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 119.
125
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. Ibidem, 2010,
p. 322.
126
RAMOS FLORES, Maria Bernardete. Caliban na interpretação do Brasil
acerca do americanismo na República Velha Brasileira. Diálogos
Latinoamericanos, núm. 11, 2006, p. 50- 71.
Na correspondência com Henriqueta, Mário demonstra que tinha
uma preocupação com a repercussão pública de determinadas obras suas
acusadas de imoralidade, como o próprio Macunaíma ou os versos do
“Grã Cão de Outubro”, mas se recusava a aceitar passivamente as
convenções e imposições morais burguesas: “Mas não é possível ao
artista verdadeiro se preocupar com problemas pedagógicos de ‘boa
formação’ (Burguesa?).”
Henriqueta se mostra compreensiva com relação às posições
assumidas pelo amigo e afirma que sempre lhe pareceu existir, no fundo
da vocação do artista, uma tendência à santidade. Ela pondera que
mesmo no fundo da vocação do santo é provável que exista uma
qualquer fascinação demoníaca: “Não será feita a natureza humana de
camadas sobrepostas: forças do bem, forças do mal?”127
Ao longo da correspondência com Mário, Henriqueta procurava
manter uma postura de equilíbrio, imagem que ela consegue quase
sempre preservar. Mário, por sua vez, traz para as suas cartas toda a
dramaticidade que confere à sua poesia – nada que é humano lhe parecia
estranho. No período em que viveu no Rio de Janeiro, onde se sentia
numa espécie de exílio, longe de sua família e da sua casa em São Paulo,
onde encontrava apoio e tranquilidade para escrever, ele busca fuga nos
prazeres mundanos, mas sem conseguir escapar do desespero:

Não tenho o menor gozo de viver e o resultado é,


entre abatimentos prolongados (deito de dia, passo
muitas horas piscando, piscando, vendo o teto
impiedosamente branco), entre isso, alegrias
terríveis, violentas explosões de gosto de viver,
bebo champanha sozinho, gasto o que não tenho,
me rio com amigos em chopadas do mais cruel
desespero.128

127
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 dez. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 237.
128
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, p.
282.
128
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 abr. de 1940. Ibidem,
2010, p. 96.
A presença sombria da guerra parece aumentar o seu amargor e a
sua necessidade de buscar uma compensação nos prazeres mundanos,
nem sempre com os resultados desejados:

(...) é a guerra, a guerra em si, a chegada mortífera


da primavera que me arrombou todas as últimas
comportas do equilíbrio. Estou incrível os
próprios prazeres que tenho – me é impossível
recusar o exercício do prazer, até os procuro
imoderadamente! – os próprios prazeres são de tal
forma amargurados, é uma mistura danada (...).129

O tom confessional com que Mário se dirige a Henriqueta sugere


a necessidade de se autoanalisar, a partir do diálogo com a amiga, ou de
confessar os seus pecados, em busca de redenção: “Tudo de você me
cristaliza no Bem, a sua humanidade, o seu esquecimento, os seus
poemas, as suas cartas (...)”.130
Henriqueta sempre recomendava a Mário que tivesse uma vida
mais equilibrada e cuidasse melhor de sua saúde: “E a saúde, vai bem
agora? Peço-lhe muito que tenha cuidado, que não faça imprudências,
que não fique doente outra vez!” A poeta mineira procurava convencer o
amigo a levar uma vida menos desregrada, que ela interpretava como
uma fuga de suas responsabilidades de escritor: “Perdoe-me que lhe
diga: ainda bem que a consciência o tortura porque, de fato, você não
tem o direito de malbaratar tantos dons!”131
Mário até tentava corresponder a essas recomendações e às vezes
ostentava comportamento de bom moço: “Ando bem ‘direitinho’ até,
não faço exageros mais, nem dou escândalo.” Mas ele oscilava e tinha
recaídas frequentes, as quais não fazia questão de esconder: “Fiz tudo o
que devia ser proibido pra qualquer das doenças possíveis e, está claro,
muito álcool, excesso de álcool por vários dias seguidos, friamente,
gostadamente. (Não se assuste, nada de bebedeira de perder sentidos

129
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 abr. de 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 206.
130
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, out. 1943. Ibidem, 2010, p.
268.
131
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 abr. de 1940. Ibidem,
2010, p. 96.
nem pegar frango.)”132 E mesmo quando resolvia ocultar alguma
passagem que lhe parecia mais escabrosa, ele parecia não conseguir
deixar de mencioná-la, como se houvesse a necessidade do desabafo:
“Aliás tive um vasto abalo moral ultimamente, que não lhe conto apenas
pra não magoar demais seu coração amigo.”133
Em determinado momento, ele se antecipa aos conselhos de
Henriqueta e pede que ela os evite, demonstrando sentir certo
desconforto com os cuidados bem intencionados, mas talvez um pouco
incômodos, com que vinha sendo tratado pela poeta mineira e outros
amigos: “Eu não sei ficar doente destas doenças longas requerendo
paciência e dietas. Não sei como vai ser e pelo amor de Deus,
Henriqueta, não venha argumentando contra mim, me aconselhando,
fico desesperado. Basta dizer que ando até com ódio de vários amigos,
não saio, não vejo ninguém. É inútil argumentar.”134
A relação de amizade entre Mário e Henriqueta, cuidadosamente
zelada por eles, revela portanto uma tensão / oposição entre dois modos
diferentes de ser e estar no mundo: o caminho do excesso adotado pelo
poeta modernista em contraste com a atitude virtuosa, contida e em
busca de equilíbrio da poeta mineira.
Talvez por sua espontaneidade, Mário se sentia inclinado a contar
os seus excessos a Henriqueta e depois pedia que ela lhe perdoasse,
como se estivesse diante de um confessionário. Mesmo mostrando-se
compreensiva e sempre “perdoando” o amigo, a postura moral de
Henriqueta denota um caráter de adequação às normas sociais vigentes e
aos valores religiosos e familiares.
Tanto Mário quanto Henriqueta, em grau maior ou menor,
procuravam preservar a sua imagem social, evitando se colocar em
situações que pudessem prejudicar a sua relação familiar ou
comprometer a sua vida pessoal ou profissional. Ainda assim, eles
assumiram a identidade de artistas e não se conformaram em viver
dentro de padrões convencionais de comportamento social – não se
casaram, não tiveram filhos, não adotaram uma vida burguesa
acomodada. O próprio escritor reconhecia que tinha “otimíssima,

132
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 de outubro de 1942.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 227.
133
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 nov. 1941. Ibidem,
2010, p. 176.
134
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 19 de maio de 1943.
Ibidem, 2010, p. 252.
respeitabilíssima e etc. formação burguesa”.135 Ele procurava se vestir
bem e manter certo status social. Mas, ao mesmo tempo, demonstrava
uma postura crítica em relação à sua própria classe social: “(...) essa
burguesia nojenta do espírito, pior aspecto da burguesia, o
prudencial”.136
Em uma sociedade patriarcal e conservadora, Mário teve mais
facilidade que Henriqueta para romper com determinados padrões
sociais e exercer a sua liberdade – ele frequentava a vida boêmia e vivia
a sua “pansexualidade”, ainda que com discrição. Ambos, porém, se
mantiveram inseridos dentro das normas de respeitabilidade da
sociedade da época e evitaram romper com o “establishment”.
Numa época em que as mulheres começavam a lutar pelos seus
direitos, Henriqueta conquistava espaço na área literária de modo
pioneiro; porém, demonstrava comodismo no que se refere à vida social
da mulher:

Parece que a mulher tem sido relegada a segundo


plano, um pouco por causa do egoísmo dos
homens, e pouco por causa do conformismo da
própria mulher. Contudo, ela não deve desviar-se
de seu caminho natural, sob pena de sacrificar a
felicidade. Há vocações excepcionais. Não se
pode impor missões a ninguém. Mas a da mulher
está principalmente no lar. Uma lenta evolução da
humanidade talvez lhe traga maiores ensejos.137

Poetas como Henriqueta Lisboa e Cecília Meireles tiveram uma


participação importante na conquista de espaço e reconhecimento para a
mulher na literatura brasileira. Porém, também receberam críticas por
não terem adotado uma postura mais ousada e combativa em defesa do
lugar e do papel da mulher na sociedade, como esta feita pela poeta Ana
Cristina Cesar:

135
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 213.
136
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 1942. Ibidem, 2010, p. 180.
137
LISBOA, Henriqueta; WALLIS, Marie. Acervo de Escritores Mineiros, carta
de 19 fev. 1942.
O que interessa é que Cecília, e Henriqueta atrás,
acabaram definindo a “poesia de mulher no
Brasil”. As duas são figuras consagradas e que
nunca inquietaram ninguém. Mas não é a
consagração que critico, nem a marca nobre.
Apenas acho importante pensar a marca feminina
que elas deixaram, sem, no entanto jamais se
colocarem como mulheres. Marcaram não a
presença de mulher, mas a dicção que se deve ter,
a nobreza e o lirismo e o pudor que devem
caracterizar a escrita de mulher. 138

A busca das mulheres por conquistar espaço na literatura envolve


também a reivindicação de igualdade e liberdade na vida social. Com o
passar do tempo, a militância feminista criou condições para que os
preconceitos e limites impostos às mulheres e a literatura que produzem
pudessem ser mais facilmente questionados e desconstruídos, como
aponta Maria Lucia de Barros Camargo:

Não é nova a afirmativa de que a literatura escrita


por mulheres, ao conquistar seus espaços em
simetria às conquistas sociais empreendidas nas
últimas décadas, tratou fundamentalmente de
questões que dizem respeito à desrepressão do
corpo, à reivindicação do prazer, além, é claro, da
luta feminina pela igualdade de direitos, inclusive
no campo da palavra. Quanto a este, também já é
lugar comum a afirmativa de que o espaço textual
predominantemente feminino é o da escrita
confessional, do uso de gêneros autobiográficos.
Marcas do espaço privado, da reclusão, da
interiorização, a que se contrapõe, muitas vezes,
uma poesia "marcada pela ideologia do
desrecalque e pela aflição hiteana de dizer tudo,
sem deixar escapar os detalhes mais chocantes".139

138
CÉSAR, Ana Cristina. Literatura e mulher: essa palavra de luxo. In: Escritos
no Rio. São Paulo: Brasiliense; Rio de Janeiro: UFRJ, 1993, s/p.
139
CAMARGO, Maria Lucia de Barros. “Caminhos e des-caminhos da
subjetividade: a poesia contemporânea escrita por mulheres”. Revista Travessia,
1.5 Religião e emancipação

Henriqueta afirma que, embora a sua poesia não tivesse, a


princípio, um caráter religioso, ela procurava pautar pelas normas da sua
religião todas as coisas que fazia.140 A poeta mineira buscava levar uma
vida equilibrada, praticando as virtudes da religião católica e levando
uma vida social discreta e bem comportada, de acordo com o que era
esperado de uma mulher na sociedade de sua época. Mas, segundo ela
explica a Mário, esse equilíbrio que procurava demonstrar era mais
procurado que espontâneo: “Procurado não como artifício, ao contrário,
como expressão de justa medida, como compensação à intensidade –
algo dramática – da minha vida subjetiva”.141
Além da arte, Mário também tinha em comum com Henriqueta a
fé e formação religiosa. Quando jovem, ele chegou a ser noviço da
Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo e a integrar a
Congregação Mariana. Porém, na maturidade, passou a demonstrar uma
visão crítica em relação à Igreja, não se contentando em aceitar seus
dogmas sem questionamentos, em busca da emancipação intelectual.
Porém, ao mesmo tempo que afirma a sua preferência pela verdade do
intelectual, Mário manteve-se ligado aos valores cristãos ao longo de
sua vida.
Segundo Telê Porto Ancona Lopez, a partir de 1922, Mário
começa a procurar ligar o cristianismo a uma síntese de humanitarismo
liberal agnóstico, o que o leva a incorrer em contradições inconscientes,
ao mesmo tempo que busca alcançar a emancipação intelectual. Em
1943, ele conhece o pensamento de Jacques Maritain142, “que, como ele,
não denota preocupação com as contradições entre materialismo e

n. 24. Florianópolis: UFSC, Programa de Pós-Graduação em Literatura, 1992, p.


34.
140
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 abr. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 283.
141
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 set. 1940. Ibidem, 2010,
p. 119.
142
Jacques Maritain (1882-1973), filósofo francês de orientação cristã,
especializado na filosofia escolástica de São Tomás de Aquino, que exerceu
grande influência sobre os intelectuais e artistas de sua época, principalmente
sobre os cristãos, como Mário e Henriqueta.
espiritualismo, mas com os desvios da real doutrina cristã”.143 De
acordo com a pesquisadora, o escritor assim “procura revisar seu
radicalismo anterior em termos de fraternidade sem cunho religioso,
mas, na realidade, mascarando o cristianismo da ideia de amor total e
compreensão”.144
Na época em que se correspondeu com Henriqueta, Mário se
mostrava disposto a questionar as verdades estabelecidas da religião e a
aceitar apenas o conhecimento adquirido a partir de sua própria
experiência pessoal e seu discernimento intelectual. Mesmo buscando a
emancipação da razão e a liberdade na criação artística, o escritor
persistia em sua busca utópica e obstinada por um sentido totalizante
para a existência:

Deus malvado, Deus destruidor e obstruente, Deus


que eu sinto em mim em tudo, Deus que me
atrapalha, me incapacita, não me satisfaz e deixa
tudo insatisfatório pra mim, Deus que não sei
quem é, não sei o que é... (...)
Não é a Beleza nem a definição da Beleza que me
atrai, e nem o Bem, e nem a Verdade e nem a vida
e nem mesmo eu. Só mesmo o Grande
Desconhecido me atrai, me prende, me irrita, só a
definição desse Grande Desconhecido me
apaixona, porque jamais tentei sequer defini-lo e é
incompreensível. E quase O odeio em minha
prodigiosa vaidade de Homo viciosamente
Sapiens, porque sei que se Ele aparecer, quando
aparecer nós nos esqueceremos de procurar saber
o que Ele é e nos despreocuparemos de O definir.
Esse incontentado de Si... Esse inflexível de sua
irrefutável e incompreensível totalidade... Deus...
Se ao menos Ele me permitisse ir plantar batatas...
Mas agora é tarde e tenho que dançarolar esta
minha tarantela do incompatível. Só peço é que
você não me peça o que entendo por
“incompatível”, nem eu mesmo sei quantos

143
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 69-70.
144
Ibidem, 1972, p. 45.
sentidos pus nessa palavra. Sei que a escrevi com
angústia, com desespero, ansiando pelo que virá,
com todas as minhas forças de amor.145

Henriqueta se mostra desapontada com essa carta e pede ao


amigo que seja mais humilde e procure superar o seu orgulho, em uma
passagem que demonstra bem a diferença da atitude dos dois diante do
mistério:

Esse Deus que todos nós procuramos e do qual


você fala tumultuosamente, com certa ferocidade
de intelectual indômito. Buscá-lo assim,
sobrepondo-se a ele não será de algum modo
afastá-lo? Eu não quisera nem de longe traçar
paralelo entre você e esses bárbaros que
desencadeiam a guerra em nome da paz, mas
você, quando sai à procura de Deus, parece que se
faz acompanhar por todos os demônios do
orgulho, Mário! Sei que a humildade-sentimento
não foi feita para você mas há, na vida
sobrenatural da graça – de acordo com a
linguagem cristã – uma virtude com esse mesmo
nome e que adquirimos com esforço tanto mais
meritório quando em contraste com o nosso
temperamento.
E note que essa virtude mantém a sua própria
dignidade acima de toda humilhação. Diante dos
mistérios do absoluto e do eterno, de que
proveem, certamente, a nossa intransigência, a
nossa incompatibilidade com a vida, a melhor
atitude não será a oração? Bem sei que é difícil,
muitas vezes. Compreendo que nas suas palavras
de cólera haja amor, que haja na sua clamorosa
arrogância um desejo convulsivo de orar, de
adorar. E a história se repete, Mário: você nos

145
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 set. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 124.
seus paradoxos pela verdade, eu no sonho de
harmonizá-los...146

Como podemos notar, ao se tratar de religião, a convivência entre


Mário e Henriqueta podia ganhar tons moralizantes, e a poeta mineira
assumia uma postura pedagógica e moralizante de “professora de
catecismo”: “Embora Henriqueta mantivesse quase sempre a postura de
discípula diante do mestre, quando o assunto é Deus, troca de lugar e,
como autoridade, é ela quem dá lições ao amigo”, observa Kelen
Benfenatti Paiva.147
Enquanto Mário buscava conhecer a verdade e encontrar um
sentido para a existência a partir de seus próprios meios e de sua própria
experiência – atitude que considerava a mais adequada para o intelectual
–, Henriqueta tinha uma postura de humildade e aceitação diante do
mistério. A poeta mineira reconhecia não ser rebelde o bastante para ser
uma verdadeira intelectual, pois “a mulher não sente tanto a
desesperação da verdade como a necessidade da harmonia”.148 Essa
busca pelo equilíbrio e pela harmonia está presente também em sua
conduta como artista e em sua postura ética: “Quero superar-me
sobretudo no terreno essencial, no sentido de Charitas”.149
Henriqueta e Mário tinham em comum o cultivo do amor
Charitas católico, baseado na doação, no afeto desinteressado, no
cuidado com o outro, na virtude e busca de elevação. Em carta a Oneyda
Alvarenga, Mário explica a sua concepção de Charitas, argumentando
que esse sentimento está presente na sua apreciação estética, de modo
que eventuais defeitos técnicos das obras de artistas que ele preza são
relevados em função dele:

Ao passo que a minha compreensão total e


profunda da tempestade de Camões ou de

146
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 out. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 126.
147
PAIVA, Kellen Benfenatti. Nos bastidores do arquivo literário: Henriqueta
Lisboa entre versos e cartas. Tese de doutorado – Universidade Federal de
Minas Gerais / Programa de Pós-Graduação em Letras, Belo Horizonte, 2012, p.
86.
148
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 11 de jul. 1940. Ibidem,
2010, p. 111.
149
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 ago. 1944. Ibidem,
2010, p. 293.
Madalena Tagliaferro me levam não só a esquecer
a imitação, os defeitos de métrica, as poucas notas
erradas e o Chopin que não será exatamente o
meu, não só me leva a esquecer tudo isso, mas a
viver tudo isso, numa integração, numa empatia
em que eu sou Camões ou Madalena Tagliaferro,
sem ao menos perder todos os meus atributos
pessoais de ser histórico e do meu tempo, e de ser
indivíduo inconvertível. É, Oneida, um verdadeiro
ato de amor, de Charitas, da elevação mais
sublime. Falam do amor “clarividente”, em que o
amante vê, percebe, reconhece todos os defeitos e
erros do objeto amado, e o ama assim mesmo, e o
aceita e o procura corrigir.
Ou falam na paixão que enceguece e então o
amante não vê nada, não reconhece nada. É
possível que na vida prática, esta paixão seja
prejudicial e aquela clarividência muito útil. Mas
não se trata da vida prática em primeiro lugar, e
nem muito menos a compreensão estética é um
ato de inteligência, exclusivo de inteligência. Sem
nenhuma espécie de mística ou de superstição, é
verdadeiramente um ato de amor, um ato de
Charitas no sentido católico da palavra, uma
efusão do ser todo. De forma que este verso
frouxo de Camões ou aquelas cinco notas erradas
de Madalena Tagliaferro, eu vejo e não vejo. Não
me são indiferentes, eu não os preciso perdoar
nem penso muito menos em os corrigir, eu posso
saber deles (em verdade é preferível não saber)
mas embora sabendo deles, o ato, a efusão
transcende a eles. Todo conhecimento, toda
explicação, todo perdão ou correção não adianta
nada para o estado de compreensão efusiva em
que estou.150

150
Carta de Mário de Andrade a Oneyda Alvarenga, 14 de set. 1940.
ALVARENGA, Oneyda; ANDRADE, Märio de;: Cartas. São Paulo, Duas
Cidades, 1983, p. 285.
Na análise de Joan Dassin, a concepção de Charitas não possuiria,
nessa passagem, uma dimensão mística ou espiritual, mostrando-se,
antes, “sensualíssima” e “próxima da vida amorosa”:

A charitas católica é vista, nessas passagens,


como o modelo da experiência estética. MA não
procura nela alguma dimensão mística, como a
que está presente na relação da criatura com seu
criador, o que é “possessão absoluta e totalitária”.
Diferentemente da elevação religiosa, também, da
tradição da filosofia, a dimensão estilística não
possui um caráter estritamente espiritual, mas é
experiência sensualíssima. Ela aproxima-se da
vida amorosa, porque nas duas há manifestação de
uma atitude de desprendimento de si.151

Para Marilda Aparecida Ionta, o amor Charitas constituiu a base


da relação de amizade entre Mário e Henriqueta, distinguindo-se do
amor “cupidita”, baseado em Eros, e do amor romântico:

A meu ver, em grande parte a singularidade da


relação amistosa criada entre Mário de Andrade e
Henriqueta Lisboa deriva da concorrência entre
uma amizade espiritual cristã, regida pelo amor
“charitas”, que renega o amor sensível “cupidita”,
e uma amizade mundana, em que Eros se
transforma em “philia”, e cuja cobiça não reside
no desejo de posse do corpo e da alma do outro,
na transformação do outro em um ser igual a mim
mesmo, como no amor romântico. A cobiça que
se sobressai nessa relação, é conjunta, ou seja,
pela poesia e pela literatura, deseja-se algo que os
transcende enquanto indivíduos. Forja-se, então,
uma erótica amistosa que passa por duas portas: a

151
DASSIN, Joan. Política e Poesia em Mário de Andrade. São Paulo: Duas
Cidades, 1978, p. 131.
do “Céu”, da comunhão das almas, e da “Poesia”,
comunicação dos espíritos.152

Henriqueta percebia na obra de Mário “elementos de interesse


moral absorvente lutando contra as barreiras do determinismo – não
apenas nos seus poemas mais sólidos mas nas suas cartas, nos seus
estudos, nas suas obras de ficção, até na volubilidade das suas crônicas”.
E era talvez por identificar no amigo esse interesse moral ligado à
religiosidade que a poeta mineira tivesse com ele um vínculo tão forte:
“Creio que se acham nesse interesse comum as nossas afinidades
melhores”.153
A disponibilidade de Henriqueta para aceitar o comportamento
rebelde de Mário revela, de fato, uma mentalidade capaz de não se
deixar levar pelo simples maniqueísmo do bem e do mal, do certo e
errado, do pecado e do castigo: “É estranho tenho a impressão de que
você está sempre acima de si próprio ao passo que, por exemplo,
Mauriac (romancista católico, céus!) me parece que tem pacto com o
demônio naquela sedução com que procura desligar-se do pecado.”154
Henriqueta fazia uma relação entre esse equilíbrio buscado na
vida e o equilíbrio poético, determinada em transferir para a sua arte as
virtudes religiosas aprendidas com seus pais: “Minha mãe é a
encarnação exaltada das três virtudes teologais: fé, esperança e caridade.
Meu pai é o culto silencioso das quatro cardeais: prudência, justiça,
temperança e fortaleza. (...) Não virá daí a minha determinação de
equilíbrio poético?”155
A busca da poeta mineira por encontrar uma harmonia entre o
mundo material e espiritual pode parecer utópica, diante das vicissitudes
da vida, mas não significa simplesmente uma tentativa de sublimação da
vida mundana, e sim um modo de lidar com as suas contingências: “O
desejo que demonstrei de continuar a ser como sou é um desejo de

152
IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na escrita epistolar de
Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade.
Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de Campinas, 2003, p. 147.
153
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 abr. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 284.
154
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 de julho de 1942.
Ibidem, 2010, p. 216.
155
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 238.
harmonia que teima dentro de mim e com o qual me desforro das
contingências como se estas não me atingissem.”156
A religiosidade transparece em toda a sua escrita, seja na
abordagem de temas ligados à espiritualidade e conduta moral, seja
como resultado de um trabalho ascético de lapidação do verso. “O
aspecto religioso perpassa toda a poesia da autora”, comenta Fábio
Lucas.157 Um tom de austeridade e sobriedade permeia quase toda a sua
obra, mais propensa à contenção e às sutilezas que aos excessos e
arroubos dramáticos, preferindo, antes, o tom velado, a cor esbatida, a
discrição.
A poesia se mostra para ela um meio de expressão do espírito,
capaz de libertar o homem das contingências materiais: “Duros tempos
os nossos. Mas enquanto houver homens capazes de encolerizar-se e de
acreditar no predomínio do espírito sobre a matéria, haverá
esperança”.158
Embora Mário implicasse com o modo como Henriqueta às vezes
abordava os valores eternos em seus poemas, ele jamais questionou a
opção religiosa da amiga: “Se conserve pura, generosa, confiante como
você está, Henriqueta. Aceite a verdade da vida apaixonadamente. Com
todo o meu aparente cinismo, é o que eu faço também, este sofrido
desencontrado que é este seu amigo”.159
Mário, porém, demonstrava uma atitude crítica em relação aos
dogmas religiosos – por exemplo, quando ele procura esclarecer à amiga
que buscar o consolo em Cristo e num futuro celestial é, na verdade,
pouco cristão: “Se você observar melhor a lição de Cristo, eu creio que
você vai perceber que esse processo de consolo é muito mais político, é
muito mais “classe dominante” que exatamente bíblico e especialmente
cristão”.160

156
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 de abril de 1944.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 283.
157
LUCAS, Fábio. Crítica sem dogma. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do
Estado de Minas Gerais, 1983, p. 60.
158
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 abr. 1942. Ibidem, 2010,
p. 96
159
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 111.
160
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 05 mar. 1944. Ibidem,
2010, p. 281.
Ao fazer uma poesia voltada à espiritualidade, Henriqueta corria
o risco de incorrer no hermetismo e na consequente perda de densidade
poética, como, a seu ver, acontecia com os poetas de temática filosófica:

Por outro lado, aqueles que querem transcender a


si próprios nos reinos filosóficos perdem contato
com a substância artística: Tasso da Silveira, tipo
clássico, só permitindo certa beleza ideal, Murilo
Mendes ultramoderno, querendo emprestar aos
sentidos uma função sobrenatural, Alphonsus
Filho arrastado pela força de uma inspiração que
ele não sabe deter, tantos outros!161

Porém, se para Henriqueta os poetas de tendência filosófica


perdiam contato com a substância artística, Mário nota um risco
semelhante na poesia da amiga, que às vezes incorria no que ele chamou
de “estilo conceituoso”: “São certas poesias em que no fim, como se
fosse fábula com moralidade, você termina com um conceito ou coisa de
alguma forma assimilável a um conceito.”162
A poeta mineira até parecia se esforçar para evitar o uso de
expressões que remetessem aos valores eternos e universais, mas
acabava sendo traída pelas próprias palavras. A certa altura, ela pergunta
ao amigo: “Querer dar à poesia um sentido de perpetuidade será
orgulho, Mário, ou apenas instinto de conservação quando nos sentimos
fugir – para sempre?”163 Dois dias depois, Henriqueta escreve a Mário
um bilhete, incomodada por ter usado a palavra “perpetuidade”, que
remete aos valores eternos: “Na minha última carta, em lugar de
‘perpetuidade’ eu queria dizer ‘estabilidade, continuidade, constância’.
Percebi isso na volta do correio.”164
Apesar da ressalva, Mário observa que Henriqueta, sem querer,
acaba remetendo aos valores eternos: “Porque ‘pretender dar à poesia

161
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 de fev. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, 242.
162
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 jan. 1944. Ibidem, 2010,
p. 276-277.
163
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 jul. 1942. Ibidem, 2010,
p. 216.
164
Bilhete de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 18 jul. 1942. Ibidem,
2010, p. 218.
um sentido de perpetuidade’ parece que você quer dizer com isso buscar
livrá-la de toda a contingência, dos elementos transitórios, tudo
transferindo para os ‘valores eternos’”.165
Podemos pensar que o intuito de Henriqueta de fazer uma arte
que estivesse em consonância com o seu tempo e com os preceitos
modernistas implicava numa tensão constante entre os seus princípios
religiosos e a criação artística, que possui as suas exigências e regras
próprias. Ela queria atualizar a sua arte, porém se voltava mais para o
eterno que o contingente, enquanto os modernistas defendiam que a arte
deveria se voltar para o cotidiano e circunstancial, e demonstravam
desconfiança com relação aos grandes temas humanos e às questões
espirituais.
Na tentativa de explicar o seu posicionamento, Henriqueta afirma
pertencer antes à categoria dos anacoretas (monge cristão que vive em
retiro, eremita) que à dos apóstolos (discípulos de Cristo encarregados
de difundir a palavra de Deus). Ela queria, aparentemente, se referir à
natureza solitária de uma escritora que não transitava pelos círculos
literários e ao fato de não pertencer a grupos ou escolas.
Além disso, segundo Marilda Aparecida Ionta, o anacoreta é
aquele que se retira para o deserto, onde consegue enfrentar as tentações
da carne, seguindo o caminho do celibato e da renúncia como meio de
acesso à divindade:

Nessa perspectiva, a noção de anacoreta é


recortada por uma série de desdobramentos, pois
trata-se em sua origem de uma figura associada à
solidão, ao celibato, à virgindade, ao indivíduo
que renunciou ao casamento e aos prazeres da
carne, enfim, que abandonou a vida social e
mundana da antiguidade pagã. Logo, refere-se a
um ser que rejeitou as identidades impostas
socialmente, escolheu um caminho próprio de
singularização, que engendra uma relação consigo
pautada na renúncia de si e de sua sexualidade,
bem como em uma nova relação com o outro.
Associados pela comunidade ao mundo dos anjos

165
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 221.
e das virgens, os anacoretas ocupavam também
um lugar de poder na sociedade, pois eram
considerados intercessores entre os homens e
Deus.166

A poeta mineira flertava com diferentes escolas, do simbolismo


ao modernismo, se apropriando daquilo que convinha à sua poesia, mas
buscando seguir o seu próprio caminho, conforme aponta Blanca Lobo
Filho:

Tomou ela [Henriqueta Lisboa] o melhor de cada


escola literária que, numa época ou noutra, a
influenciou, combinando num estilo único os
elementos do Simbolismo e Classicismo com os
dos românticos e parnasianos. Nesta síntese,
transcendeu qualquer escola e tornou-se um poeta
moderno que cabe ao mesmo tempo em todas as
categorias e em nenhuma delas.167

Ao receber um elogio por sua ascensão técnica em A Face Lívida,


Henriqueta parece aliviada ao perceber que seria possível agradar ao
amigo sem precisar abrir mão do “elemento humano” – eufemismo para
a temática metafísica e religiosa, também referida como “questões do
ser” –, o que parece ser uma condição fundamental para a poeta mineira:

Se você gosta e me diz que “é uma ascensão”, a


que mais aspirar? Eu me agradaria do êxito, sim,
mas sem sacrifício do que me pertence. E isso é
prezar o ofício, Senhor Mário de Andrade
exemplar. (...) Quanto ao elemento humano, não o
sacrificarei jamais às exterioridades perfeitas,

166
IONTA, Marilda Aparecida. 2003. As cores da amizade na escrita epistolar
de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade.
Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de Campinas, p. 241.
167
LOBO FILHO, Blanca. Interpretação da lírica de Henriqueta Lisboa. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial,
1965, p. 31-32. Apud MACHADO, Adriana Rodrigues. Rosa Plena: A Sagração
da Poesia em Henriqueta Lisboa. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul / Programa de Pós-Graduação em Letras, Porto
Alegre, 2013, p. 37.
descanse. Seria desvirtuar a minha razão de ser.
Mas as suas palavras são preciosas.168

Quando a amizade se fortalece e Henriqueta se sente mais


confiante para assumir a temática religiosa em sua poesia, ela conta a
Mário o desejo de escrever um poema grande e unido, em que pudesse
manusear os valores eternos: “São João da Cruz elevou a poesia humana
a uma esfera de divina quietação. Dante Gabriel Rosseti humanizou,
pela ausência, o que teria sido divino. Eu – imagine! – quisera fundir,
por um sentimento de presença com simplicidade e pureza, o perene e o
transitório”.169
Ainda que buscasse seguir o seu próprio caminho, de mãos dadas
com a sua religião, a escritora mineira afirma a Mário que não sentia
necessidade alguma de mudar os rumos de sua escrita ou de se distanciar
dele para ficar coerente com a sua poesia: “ao contrário: Aí é que está a
maquinação. Daí é que virá o milagre – se vier. O sentimento abrindo
caminho para a inteligência criadora.”170
Apesar das reservas de Mário em relação ao tratamento dos
valores eternos, à medida que a amizade entre os dois se fortalece, ele
afirma que nem mesmo se a amiga resolvesse se dedicar exclusivamente
aos valores eternos e à poesia mística haveria motivo de afastamento
entre os dois:

Eu sei que nesta comunhão feliz em que nós dois


vivemos, nós nos preferiríamos um pouco mais de
mãos, não dadas, mas atadas, você se deixando
brutalizar pela vida como eu, ou eu me elevando
com mais frequência para as “Adivinhas”. Nada
impede Henriqueta, nada impedirá mais aquela
atração divinatória, aquela escolha muito pouco
livre com que nós nos encontramos. E você me
perdoou e eu adorei você – e hoje nós nos

168
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. 09 dez. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 177.
169
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. Ibidem,
2010, p. 250-251.
170
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. Ibidem,
2010, p. 251.
amamos com a maior densidade e a maior
gratuidade do favor de amigos.171

Mas o que são as “Adivinhas”a que Mário se refere e de que


modo elas se manifestam na poesia de Henriqueta e do escritor
modernista, nessa “comunhão feliz” entre a vida mais terrestre e uma
dimensão mais elevada, entre Ariel e Caliban, o sublime e o grotesco?

1.6 O poeta e a Adivinha

Henriqueta define a poesia como “a contingência do eterno no


efêmero”172 e declara a sua ambição de, com ela, “fundir o perene e o
transitório”.173 Mário, por sua vez, procura aproximar a poesia da vida
cotidiana, prosaica e contingente, em seu empenho por atualizar a poesia
com os tempos modernos e participar das circunstâncias de seu contexto
histórico, político e social. Podemos notar, na convivência e no diálogo
entre esses dois poetas, como duas posturas e visões de mundo de certo
modo antagônicas conviveram no mesmo momento histórico marcado
pelo secularismo, pela substituição do mundo espiritual pela ideia e a
busca de emancipação da razão, prerrogativa que resulta no acirramento
da diferenciação entre o eu e o mundo e em uma poesia cada vez mais
reflexiva, crítica e desconfiada de seus próprios elementos. Nesse
contexto, Mário voltava a sua poesia para o contingente e circunstancial
e demonstrava desconfiança com relação aos grandes temas humanos e
aos valores eternos; Henriqueta, por sua vez, tinha a atenção voltada
para o eterno e permanente, embora quisesse também atualizar a sua
poesia.
Mário e Henriqueta têm atitudes distintas e paradoxais diante do
mistério da Adivinha: o poeta modernista assume uma postura
impetuosa e nietzscheana de querer desvendar os mistérios metafísicos,
a sua poesia se volta para o terreno e transitório, buscando a essência
não por detrás ou acima das coisas, mas nas próprias coisas; a poeta
mineira, por sua vez, assume uma atitude de humildade perante o

171
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 248.
172
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 11.
173
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. Ibidem,
2010, p. 250-251.
mistério, mas tem a pretensão de buscar desvelar o eterno e essencial
por trás do mundo material e contingente.
Mas o que a Adivinha significa para eles nesse contexto? Gênero
textual? Charada dos valores eternos? Jogo de origem popular e
folclórica? Segundo o poema “A Adivinha”, de Mário, incluído em
Remate de Males, a resposta está no “bojo do violão”, “bem no bordão”,
“mas ninguém sabe!”:

Que é que é?
Ele possui uma alma e um corpo feito o nosso
E vai percorrendo o caminho de todos.
Foi piá, quis bem a mãi, quis bem a casa dele,
E afinal uma feita quis bem a cidade e foi homem.
Então gostou da intrepidez das ruas normativas
E cantou o orgulho do homem no indivíduo.
Pôs a boca no mundo, imaginou que era um,
E era apenas mais um o cantor gastador.
Pôs a boca no mundo e cantou todo o dia,
Porém a voz se fatigou talqualmente os vulcões
E não ficou mais que o instrumento.

Ser o bojo vazio do violão...


A noite igualada separa a vida do universo,
É o momento em que as coisas todas são resumos
E pelas esquinas dos bairros se engrandecem os
violões.
Que é que é?...
É um instrumento de música oscilando num soco
de pedra.
De pedra sangrenta do Itacolumi.
Careceu que pela entrada da cidade lerdamente,
Ao aboio alto dos homens e dos animais,
Viessem os séculos montando bois castrados,
Pra que o violão fosse afinal violão.
O vento afina e desafina as cordas,
A chuva tantana na táboa do pinho,
Remexe a dança com lambança,
Cada sujeito que passa tira um ponteio só dele...
Tudo ponteios, tudo sons sem resultado,
Reboam ressoam na caixa de todos,
Sem cantos, sem palavras... A voz do homem se
acabou.

Sobre o mar cinzento relumeia céu de estrela,


Sobre a Terra girada ao impulso dos passos
populares,
Que nem chagas as cidades, que nem chagas...
São berevas. Não! são pensamentos! maravilhas
orgulhosas!
São berevas... Taperas e palácios...
E a febre... As águas mornas do Paraíba...
As águas novas do Missuri-Mississipi...
O Reno com vilegiaturas e castelos medievais...
Vamos pra Caxambu! pra Karlsbad!
Vamos ver Mussolini! Vamos ver os escravos!
Vamos ver si Leningrado não mudou de nome,
gente!

Que é que é! É o violão. Um ponteio sem voz


Trepadeirando até agarrar lá em riba
Nos espeques firmes das estreias do céu.
Nos ares as luzes torcendo cruzando,
Sempre dança, tudo maxixe impossível,
As luzes fazem traçados em emboladas de luz.
São anúncios. Todas as luzes são anúncios.
Todas as ideias e paixões é tudo anúncio!
Tudo só anúncio, só anúncio no mundo!
E o pinho reboa ressoa se estrala em só anúncio!

Uma bruta duma dança rag remexe a Terra?


Um pensamento fundo rasga um lapo na caixa do
pinho?
Porém que é que é! Será choro? Será seresta de
festa?
Será que é pensamento mesmo? será piá?
Serapião? Será violão!
Que é que é balanceado no soco de pedra
O instrumento saracoteando anúncios de
harmonias?...
Os críticos analisarão todas as harmonias,
Os pensamentos conceberão sistemas e
tonalidades,
Será possível tirar uma regra e a regra viverá
setenta-e-um anos...
Mas que é que é o violão que existe e existirá
Além da regra e a regra não diz nada e o violão vê
na regra só anúncio!...

Eh, cordas, cordas, cordas metálicas feitas de


século,
Se quebrem logo! Cordas, o violão não pode mais
saber o que são cordas,
Não sabe porque soa tanto e a caixa de
ressonância
Vibra com tudo, mesmo com o frescor sentimental
da Luna sertaneja...
Eh, cordas do violão, porque não viram homem
outra vez?
Deixem que ele cante a geometria praceana,
E o Carnaval, e a Flor de Amor, e Mamãi com
Papai!
Deixem que ele possa achar de novo as palavras
arcaicas!
Mas o violão é mais imenso que as palavras
E não as compreende mais.

Que significa até a palavra “Deus”?


...alguma coisa mais desejada...
Mais bem puxada, mais bem dançada,
Além do mundo e do pensamento...
Catira leve e jongo lento,
Pra que não basta noite de dança...
Êxtase de interminável festança,
Que a insuficiência do amor não abre
Na flor humana duma palavra...
Ele ressoa no bojo do violão! no bordão! gentes,
bem no bordão!
Mas o violão não sabe não! ninguém não sabe!
E tudo um sem sins!... Platariviux! gentes,
platariviux!...
Que é que é! Que é que é!...

E a tristeza iluminada, vasta, instrumental,


Ácida inquietação, maravilhando, turtuveando,
Recai sobre a adivinha.174

Curiosamente, Mário se utiliza da brincadeira de adivinha de


cunho popular, “Que é que é?”, tão prosaica e circunstancial, para
abordar uma questão metafísica: “Que significa até a palavra ‘Deus’?”
Henriqueta demonstra ter gostado bastante desse poema, talvez porque
ele traga como tema a sondagem dos mistérios sutis e inefáveis (mas
que são também mistérios do homem e da razão). Além disso, o poema
serve para demonstrar como o que Mário chama de “poesia de
circunstância” ou “poesia de combate” pode se referir também aos
“valores eternos”, ou seja, como as duas classificações podem estar
relacionadas entre si:

O poema “A adivinha” já pertence à fase de


rebeldia, tem um cunho de inquietude mística
profundamente impressionante e revelador do que
há de sutil, de inefável, no humano. Direi melhor:
de religioso. Só esse desespero sagrado – quando
não a plenitude dos místicos – nos revela
integralmente. Mas que cousa estranha! Esses
poemas de aceitação se ajustam aos que você
chama “de circunstância”; os de rebeldia, aos que
você chama “valores eternos”. E agora?
Discordará você das minhas conclusões? Mas
poesia rebelde ou de valores eternos eu a quero
com caráter, como o exemplo que citei de “A
Adivinha”. É mensagem e é única, porque o poeta
é único e não teve determinação de fazer

174
ANDRADE, Mário. “A Adivinha”. In: Remate de Males. Poesias completas
– De Pauliceia Desvairada a Café. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 206.
mensagem. Arte, amor: segredo de esquecer,
segredo de lembrar.175

Como Henriqueta expressa claramente nessa passagem, ela


considera que somente um “desespero sagrado” ou a “plenitude dos
místicos” pode revelar integralmente o poeta. Ele é visto, nessa
perspectiva, como um Prometeu moderno, que rouba o fogo dos deuses
para dá-lo aos homens, assim como proclamou Rimbaud – ao mesmo
tempo místico e rebelde –, em sua Carta ao Vidente: “o poeta é o
verdadeiro ladrão do fogo”.
Em seu ensaio sobre a Adivinha, André Jolles estabelece uma
comparação entre esse jogo que está presente em nosso cotidiano, nos
jogos infantis, na seção de passatempo dos jornais e revistas, nas
palavras cruzadas e no Mito: “se o mito é a forma que reproduz a
resposta, a adivinha é a forma que mostra a pergunta. O mito é a
resposta que contém uma questão prévia; a adivinha é uma pergunta que
pede uma resposta”.176
Porém, diferentemente do Mito, em que o homem pode interrogar
o universo e seus fenômenos em busca de uma resposta, na Adivinha
isso não é possível e não há como tirar da pergunta uma resposta:

No Mito, o homem interroga o universo e seus


fenômenos acerca da natureza profunda deles, e o
universo dá-se a conhecer numa resposta, numa
“profecia”. Na Adivinha, o homem já não está em
relação com o universo: há um homem que
interroga outro homem e de modo tal que a
pergunta obriga o outro a um saber.177

Segundo Jolles, no Mito, somos os indagadores, enquanto na


Adivinha nos tornamos os indagados. A Adivinha não traz, portanto,
uma confluência entre a pergunta e a resposta, e sim a decifração de um
enigma. O autor compara a adivinha também com a questão socrática ou

175
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 fev. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 244.
176
JOLLES, André. Forma Simples. Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado,
Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Editora Cultrix, 1976, p. 111.
177
Ibidem, 1976, p. 112.
o diálogo platônico, que envolviam perguntas capazes de conduzir à
sabedoria – o que não ocorre na Adivinha.
A adivinha seria, segundo o autor, mais semelhante ao catecismo,
em que o interrogado responde a um interrogador; porém, não é a
própria sabedoria que lhe resulta das respostas, mas o saber da pessoa
interrogada. Para Jolles, “a verdadeira finalidade da adivinha não é a
solução, mas a resolução”.178 A pergunta é feita para apurar se o
interrogado possui certa dignidade e merece ser iniciado e ter acesso a
um domínio fechado. Para ele, a Adivinha é uma pergunta cifrada
justamente porque encerra o segredo de uma sociedade clandestina, que
o segredo protege e dissimula. A cifra encontrada na Adivinha
pressupõe, portanto, um sentido fechado, redigido na linguagem de um
grupo de iniciados. Essa significação cifrada conduz à criação de uma
língua especial, que indica filiação a um círculo fechado e significa, na
clandestinidade desse círculo, o sentido do universo. A língua especial
faz parte da língua comum, porém a sua ambiguidade torna a língua
especial incompreensível a partir da língua comum. Isso porque,
enquanto a língua comum apresenta as coisas imediatamente, tal e qual
elas são e em termos absolutos, sendo portanto estritamente unívoca, a
língua especial restitui o sentido às coisas, com as suas implicações
internas e o seu significado profundo, sendo, portanto, plurívoca.179
De acordo com Jolles, a Adivinha reconduz da língua especial à
língua comum, tornando a língua especial incompreensível a partir da
língua comum. Desse modo, a forma da Adivinha abre tudo ao fechar-
se: é cifrada de tal modo que esconde o que comporta, retém o que
contém.180
Como podemos notar nas críticas que Mário faz da poesia de
Henriqueta, vários dos elementos aqui atribuídos à Adivinha também
podem ser encontrados na obra da poeta mineira: a linguagem cifrada e
o sentido oculto (o preciosismo), a filiação a um círculo fechado (a “aula
de catecismo flor-de laranja”), a língua especial escondida atrás da
língua comum (as imagens enigmáticas da escola simbolista), a
aproximação com o catecismo (a retórica oratória, os pedagogismos, o
tom eloquente).
Podemos pensar que um poema assume a forma da Adivinha
quando o leitor não consegue tirar dele uma resposta, ou seja, não

178
JOLLES, André. Forma Simples. Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado,
Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Editora Cultrix, 1976, p. 116.
179
Ibidem, 1976, p. 120.
180
Ibidem, 1976, p. 126.
encontra meios para interpretá-lo a partir de seus próprios elementos.
Embora esse poema-Adivnha utilize uma linguagem comum, ele
esconde por trás dela uma linguagem especial, pois não apresenta as
coisas imediatamente, mas busca explorar sentidos ocultos perdidos no
uso comum. Portanto, somente as pessoas que têm afinidade com a
temática dessa poesia – os iniciados nos mistérios – poderão desvendar
o seu significado. Assim, a poesia se assemelha à Adivinha quando não
traz em si mesma, na própria materialidade da linguagem, os elementos
capazes de levar a uma compreensão do sentido.
A própria concepção de poesia de Henriqueta defende que o
poema se realiza na subjetividade humana, e não no próprio poema,
apontando para a necessidade de uma espécie de transcendência em
relação à linguagem para alcançar o sentido, em vez de se buscar nela
um sentido imanente. De fato, como propõe São Tomás de Aquino, na
leitura feita por Maritain, a arte se realiza na subjetividade humana: “A
arte, em primeiro lugar, é da ordem intelectual, sua ação consiste em
imprimir uma ideia em alguma matéria: é, portanto, na inteligência do
artefato que ela reside.181 Porém, a aporia que se apresenta na concepção
da poeta mineira é pensar que, por ser fruto da inteligência, a arte não
traga em si os elementos necessários para que o sentido seja acessado,
necessitando para isso recorrer a uma realidade exterior ao poema, o que
remete à transcendência (e não à imanência) e à experiência mística e
religiosa. A linguagem é assim vista como o veículo de uma mensagem,
não como portadora de sua própria fala, como sugere Henriqueta: “A
palavra tem maravilhoso poder mágico através do poeta e não em si
mesma. Vale como presságio, augúrio, fio que conduz aos mais espessos
dédalos, na medida de sua decantação. Quanto mais depurada, mais
profunda é a mensagem de que se faz de veículo”.182
Não se trata de simplesmente questionar a religiosidade da
escritora mineira – o que é, afinal, uma questão de foro íntimo –, mas de
atentar para o modo como as imagens são usadas na sua poesia e para o
risco de se incorrer no hermetismo. O problema aqui, conforme aponta
Mário, não é Henriqueta abordar ou não os “valores eternos”, mas sim

181
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 8.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
182
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 19.
que ela adote, por vezes, uma linguagem cifrada semelhante à das
“Adivinhas” – como quando repete as fórmulas de imagens enigmáticas
utilizadas pelos simbolistas, “em que o moderno se acotovela com o
bíblico (...)”.183 O poema, mesmo que traga uma epifania, deve ser capaz
de revelar a si próprio e o sentido a partir de seus próprios elementos, de
modo imanente.
Em seus ensaios posteriores à correspondência com Mário,
Henriqueta argumenta que o hermetismo da nova poesia se deve não a
uma harmonia com o universal, como pretendiam os poetas do passado,
mas devido à busca da memória desse equilíbrio rompido:

O hermetismo da nova poesia, da arte nova em


geral, não procede de um simples desejo de
singularidade, mas da pressão de uma
sensibilidade mais laboriosa, de um desígnio
possivelmente heroico de auscultação da vertigem
que causa toda visão de profundidade. Não mais a
antiga harmonia, através da qual o homem
participava do todo, extasiando-se diante da
natureza. Nem mais a linha melódica, doce e
fluente (Lembras-te, Inã, destas noites...?) com
que lhe acompanhava o ritmo. Agora prevalece o
timbre, múltiplo e qualitativo, de árida memória,
na composição dessa música que retrata, com
fidelidade estranha, a natureza do homem em face
do universo.184

A poesia de Mário também pode soar hermética às vezes, em


parte por trazer palavras brasileiras pouco conhecidas do repertório
culto, segundo observa a própria Henriqueta:

O que surpreende e às vezes confunde ao


primeiro contato de sua obra poética é o
vocabulário: termos de gíria, neologismos,

183
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 91.
184
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 109.
palavras estrangeiras abrasileiradas,
principalmente italianas, indianismos;
africanismos; nomenclatura de fauna e flora
meio desconhecidas.
Essa terminologia variada e estranha dificulta
a leitura do poema. De que maneira havia de
abordar assuntos tipicamente nacionais? O
poeta empenhou-se em ser brasileiro, aceitou
e escolheu temas em que a alma brasileira se
compraz, mergulhou no gosto indígena. Mas,
em virtude de uma fundamental aristocracia
de espírito, essa poesia de sentido coletivo
assume caráter peculiar.185

Essa dificuldade de compreender a poesia do escritor modernista,


que se deve tanto ao vocabulário pouco usual quanto ao caráter inovador
e ao seu experimentalismo estético, se distingue, porém, do hermetismo
verificado na poesia de Henriqueta. Embora a poesia de Mário também
se mostre hermética, às vezes, ela é beneficiada por sua coloquialidade e
materialidade poética, ou seja: ainda que tenha dificuldade, o leitor
poderá encontrar no próprio poema as respostas para as suas perguntas.
Assim, enquanto a poesia de Henriqueta por vezes apresenta
características da Adivinha, podemos pensar que a poesia de Mário, ao
se deparar com o hermetismo, se aproxima mais do Mito – que pode ser
definido como “a forma que reproduz a resposta”.186
Uma vez que a poesia em geral se utiliza de símbolos e metáforas
para estabelecer analogias entre coisas diferentes, o seu significado pode
apresentar certo grau de hermetismo, conforme esclarece Antonio
Candido: “A base de toda imagem, metáfora, alegoria ou símbolo é a
analogia, isto é, a semelhança entre coisas diferentes. Com base na
possibilidade de estabelecer analogias o poeta cria a sua linguagem,
oscilando entre a afirmação direta e o símbolo hermético.”187

185
LISBOA, Henriqueta. Vigília poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1968, p. 20-21.
186
JOLLES, André. Forma Simples. Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado,
Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Editora Cultrix, 1976, p. 111.
187
CANDIDO, Antonio. “O estudo analítico do poema”. São Paulo: Humanitas
Publicações / FFLCH/USP, 1996, s/p.
A literatura moderna, porém, abusa das possibilidades da
analogia, o que leva a problemas como hermetismo, perda de
comunicabilidade, preciosismo, intelectualização exagerada e
artificialismo. Ao atentar para esses perigos na poesia moderna, já em A
Escrava que não É Isaura, Mário se manifesta contra certos aspectos do
legado de Stéphane Mallarmé:

Mallarmé tinha o que chamaremos sensações por


analogia. Nada de novo. Poetas de todas as épocas
as tiveram. Mas Mallarmé, percebida a analogia
inicial, abandonava a sensação, o lirismo,
preocupando-se unicamente com a analogia
criada. Contava-a e o que é pior desenvolvia-a
intelectualmente obtendo assim enigmas que são
joias de factura mas desprovidos muitas vezes de
lirismo e sentimento.188

Para o autor de “Um lance de dados”, a linguagem aparece como


multiplicidade fragmentada e enigmática em que a unidade e a
linearidade da linguagem clássica seriam impossíveis. Nesse contexto, a
linguagem se volta para si mesma e as palavras são justapostas no
poema seguindo critérios não de complementaridade ou linearidade, mas
de contraposição e independência, explorando as possibilidades sonoras
e subvertendo a sintaxe. Mário utilizava muitos dessas possibilidades
em sua poesia – sejam combinações de sons simultâneos ou harmônicos,
superposição de frases melódicas ou polifonia poética. Porém, ele
também alertava para as possíveis consequências dos excessos no uso
desses recursos e para o risco de perda de comunicação e de excesso de
intelectualização na criação poética.
Na modernidade, com o projeto de emancipação racional e a
consequente perda do ideal, a poesia, conforme era concebida nos
termos clássicos, em sintonia com o absoluto e a concepção do Belo,
poderia não ser mais possível neste mundo. Ao menos se consideramos
poesia como uma “expressão sensível do absoluto” – definição de Hegel
que se aproxima bastante daquela apresentada por Henriqueta: “a
contingência do eterno no efêmero” 189. Para Hegel, essa perda do ideal
188
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 57.
189
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 11.
é necessária, para que se possa prosseguir em outra direção. Para ele, a
poesia não é mais entendida como vinculada a um ideal, mas antes como
“o ideal diluído em ideia”.
Segundo Baudelaire, a concepção de Belo absoluto é a ignorância
do presente naquilo que ele teria de mais característico: o efêmero e
contingente. A poesia manifesta, assim, a ambiguidade da experiência
moderna, que implica uma dialética entre o eterno e o transitório.
Porém, Henriqueta, principalmente, mas também Mário, jamais
abandonam a auréola caída no chão, como o fez Baudelaire:

– O quê! Você por aqui, meu caro? Você, num


lugar suspeito! Você, o bebedor de
quintessências! Você, o comedor de ambrosia?
Em verdade, tenho de surpreender-me!
– Meu caro, você conhece meu pavor pelos
cavalos e pelos carros. Ainda há pouco, enquanto
eu atravessava a avenida, com grande pressa, e
saltitava na lama por entre este caos movediço em
que a morte chega a galope por todos os lados ao
mesmo tempo, minha auréola, num movimento
brusco, escorregou da minha cabeça para a lama
da calçada. Não tive coragem de juntá-la. Julguei
menos desagradável perder minhas insígnias do
que deixar que me rompessem os ossos. E depois,
pensei, há males que vêm para bem. Posso agora
passear incógnito, praticar ações vis e me entregar
à devassidão, como os simples mortais. E eis-me
aqui, igualzinho a você, como vê!
– Você deveria ao menos mandar anunciar esta
auréola, ou mandar reavê-la pelo comissário.
– Ora essa, não! Me sinto bem aqui. Só você me
reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia. E
também, penso com alegria que algum poeta ruim
há de juntá-la e vesti-la impudentemente. Fazer
alguém feliz, que prazer! E sobretudo um feliz
que vai me fazer rir! Pense em X ou em Z, puxa!
Que divertido vai ser!190

Segundo Baudelaire, a concepção de Belo absoluto é a ignorância


do presente naquilo que ele teria de mais característico: o efêmero e
contingente. Na definição de Baudelaire: “A modernidade é o
transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra
metade o eterno e o imutável”.191 Para o poeta francês, o Belo absoluto é
a ignorância do presente naquilo que ele teria de característico ou
essencial. A poesia manifesta, assim, a ambiguidade da experiência
moderna, que implica uma dialética entre o eterno e o transitório.
Cabe notar que ser moderno não implica aderir ao momento
presente e contingente de modo acrítico e submisso; ao contrário, o que
caracteriza a escrita moderna é justamente a consciência da crise, o
poder reflexionante da subjetividade, a problematização em torno da
linguagem poética, que se torna cada vez mais reflexiva. Além disso, a
atitude moderna aspira à autodeterminação dos sujeitos, de modo que
ele seja capaz de construir o seu próprio mundo, em vez de se conformar
com algo dado preliminarmente.
A relação entre a palavra e o sagrado remonta às origens da
própria humanidade. Porém, segundo Agamben, “a humanidade, ao
longo da história, afasta-se cada vez mais das fontes do mistério e perde,
pouco a pouco, a lembrança daquilo que a tradição lhe ensinara sobre o
fogo, o lugar e a fórmula” – ou seja, de suas fontes míticas. 192 Para o
autor, “o fogo e o relato, o mistério e a história, são os dois elementos
indispensáveis da literatura”, mas vivem permanentemente em conflito:
“onde há relato, o fogo se apagou; onde há mistério, não pode haver
história”.193
De acordo com Agamben, o que resta da memória do fogo está na
literatura, onde podemos contar a sua história, mas essa corre o risco de
se perder com a secularização, o progresso e a constituição de uma
literatura autônoma e fechada em uma esfera própria: “O hábito da arte é

190
BAUDELAIIRE, Charles. “Perda de auréola”. In Pequenos poemas em
prosa. Edição bilíngue. Tradução de Dorothée de Bruchard. Florianópolis:
Editora da UFSC; Aliança Francesa de Florianópolis, 1988, p. 217.
191
BAUDELAIRE, Charles. "O pintor da vida moderna”. In: Poesia e prosa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 859.
192
AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato. Trad. Andrea Santurbano, Patricia
Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 28.
193
Ibidem, 2018, p. 34.
o estilo, o domínio perfeito dos seus próprios meios, em que a ausência
do fogo é assumida peremptoriamente, porque tudo está na obra e nada
lhe pode faltar. Não há, nunca houve mistério, porque ele é inteiramente
exposto aqui e agora e para sempre.”194
Segundo Agamben, “não se trata de pensar que nos enigmas
arcaicos o significado não deveria preexistir à formulação (como
acreditava Hegel), mas que o seu conhecimento era até inessencial”.195
Para o autor, a atribuição de uma “solução” escondida ao enigma é fruto
de uma época posterior, que havia perdido o sentido daquilo que, no
enigma, verdadeiramente, vinha à linguagem e não se tinha um prévio
conhecimento, como ocorre na forma degradada do divertimento e da
adivinhação.
De acordo com o filósofo, o enigma dos antigos pertencia à esfera
do “apotropaico”, ou seja, de uma potência protetora que rejeita o
inquietante, atraindo-o e assumindo-o dentro de si: “A Esfinge não
propunha simplesmente algo cujo significado está escondido e velado
sob o significante “enigmático”, mas sim um dizer no qual a fratura
original da presença era aludida com o paradoxo de uma palavra que se
aproxima do seu objeto mantendo-o indefinidamente à distância”.196
Ainda segundo Agamben, na cultura ocidental, religião, arte e
ciência parecem constituir três âmbitos distintos e inseparáveis que se
alternam, se alinham e se combatem sem cessar, sem que nenhum deles
consiga nunca, de fato, eliminar completamente os outros dois:

Há alguns anos, Hegel havia redigido o seu


diagnóstico sobre a “morte” da arte, que havia
cedido à ciência a posição central para a
humanidade. O homem da ciência, que tinha
expulsado a religião e a arte de sua gloriosa
morada, assiste no Romantismo o seu regresso em
uma coalizão precária e improvável. O artista tem
agora o rosto rigoroso do místico e do asceta, e
sua obra assume uma aura litúrgica, requer
oração. Porém, uma vez que a máscara religiosa
havia perdido credibilidade, o artista, que tinha

194
AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato. Trad. Andrea Santurbano, Patricia
Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 35.
195
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias - a palavra e o fantasma na cultura
ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 222.
196
Ibidem, 2007, p. 222.
sacrificado a sua arte a uma verdade superior, se
revela como aquele que é: apenas um corpo
vivente, uma vida desenganada, que se apresenta
como tal para exigir seus direitos inumanos.197

No texto “Opus Alchymichum”, Agamben observa que o


esoterismo traz em sua base a ideia de que em cada realidade ou em
cada texto há de se distinguir uma aparência e um significado ocultos
que o iniciado tem de conhecer. Esse modo de conhecimento pressupõe
uma realidade interna, oculta – esotérica –, e também uma forma
exterior e aparente – exotérica. Para o autor, se definirmos como
mistério aquilo para o qual é essencial um invólucro, o esoterismo peca
precisamente contra o mistério que desejaria guardar. Desse modo, o
esoterista “peca contra o oculto, que, revelado, já não é oculto, e peca
contra o véu, que, levantado, perde a razão de ser”. E peca também
contra a beleza, “porque o véu levantado já não é tão belo, e o
significado revelado perde a forma”.198 A partir desse princípio,
Agamben conclui que “nenhum artista pode ser esoterista, e que,
inversamente, nenhum esoterista pode ser artista”.199
Para Agamben, a barreira que separa o significante do significado
nos mostra a impossibilidade do signo de produzir-se na plenitude da
presença. De acordo com o filósofo, a metafísica da escritura e do
significante não é mais do que a outra face da metafísica do significado
e da voz, o vir à luz do seu fundamento negativo, e não a sua superação.
Segundo ele, metáfora, caricatura, emblema e fetiche sinalizam para a
“barreira resistente à significação, na qual está guardado o enigma
original de todo significar. E é essa barreira que agora devemos decidir-
nos a interrogar”. 200 Portanto, o mistério a ser investigado não está no
significante nem no significado, mas na dobra da presença inerente ao
humano, sobre o qual se sustenta a linguagem:

O núcleo originário do significar não reside nem


no significante e nem no significado, nem na

197
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato. Trad.
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 87.
198
Ibidem, 2018, p. 157.
199
Ibidem, 2018, p. 157.
200
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias - a palavra e o fantasma na cultura
ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 239.
escritura e nem na voz, mas na dobra da presença
sobre a qual eles se fundam: o logos, que
caracteriza o homem enquanto zoon logon echon,
é esta dobra que recolhe e divide cada coisa na
“conjunção” da presença. E o humano é,
exatamente, esta fratura da presença, que abre um
mundo e sobre o qual se sustenta a linguagem. 201

Assim, podemos pensar que caberia ao poeta decifrar não o


mistério do mundo imaterial, a partir do mistério das palavras, mas
deixar que as próprias palavras nos forneçam as respostas às perguntas
que fazemos, uma vez que possuem materialidade, sensorialidade e
imanência – ainda que diante delas nos deparemos com os limites e as
possibilidades do fazer poético e da própria condição humana.

1.7 A crítica do eterno

Henriqueta vivia o permanente conflito entre o caminho da arte e


o da religião. Ela queria atualizar a sua poesia, mas encarava o mundo
material e contingente com desconfiança e distanciamento crítico e se
voltava para o mundo espiritual. Como podemos perceber, a partir das
críticas aos diversos livros da autora, a busca por desvelar o eterno e
permanente no mundo material e efêmero percorre toda a sua obra.
Diferentemente de Mário, que buscava fazer uma poesia voltada para o
cotidiano e as contingências de seu tempo, a poeta mineira parecia se
interessar pela arte como um meio de conexão com o sublime:

Eu devia ter feito da religião a minha poesia.


Enganei-me quando quis fazer da poesia a minha
religião. Não a única porém receio que a mais
absorvente. Contudo não devo queixar-me: se a
arte tem sido a minha paixão, com a sua coroa de
espinhos, também tem sido o meu bálsamo, com
as suas vozes celestiais... E se eu tivesse de
recomeçar, escolheria certamente este mesmo

201
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias - a palavra e o fantasma na cultura
ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 248.
caminho. Este caminho onde encontro meus
irmãos.202

Mas de que modo essa busca do transcendente, que tem como


consequência certo “pudor” com relação ao contingente e material e
implica o sequestro do corpo e do desejo, repercute em sua obra? É uma
questão difícil, pois não se trata aqui de fazer uma relação direta entre
vida e obra, mas de valorizar as imagens capazes de se comunicar com o
leitor de modo palpável e sensorial. Ao escolher o caminho da busca
pelo equilíbrio entre o mundo material e espiritual, Henriqueta se
abstém de uma gama de experiências que poderiam ser incorporadas à
sua poesia. As experiências de vida mais radicais da poeta mineira
parecem se relacionar com a ausência e a falta, muitas vezes em
decorrência de uma atitude de abstinência e sublimação ligadas à prática
da virtude e do ascetismo. Essa postura, porém, nem sempre favorece a
criação poética, que se beneficia do compartilhamento das experiências
vividas e transfiguradas na arte e das imagens capazes de trazer apelo
aos sentidos.
Segundo Antonio Candido, para que a analogia entre as palavras
e as coisas ocorra de modo eficiente na formação de imagens, os
elementos abstratos devem ser traduzidos para o mundo das formas e
amparados em imagens e sequências que denotam a força sensorial:

Ao refazer o mundo pela imagem, o poema deve


ser capaz de formar imagens adequadas, capazes
de traduzir o significado e a unidade rítmica do
verso conspire em função do significado. Além
disso, valores sensoriais e emocionais ligados a
fonemas repetidos no verso constituem um
substrato sonoro do poema, que contribui para sua
estrutura e para o efeito que ele exerce sobre
nós.203

202
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 6 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 111.
203
CANDIDO, Antonio. “O estudo analítico do poema”. São Paulo: Humanitas
Publicações / FFLCH/USP, 1996, s/p.
Mário demonstrava estar sempre atento com relação ao aspecto
sensorial de sua poesia, principalmente no que tange à musicalidade. Em
carta a Henriqueta, ele chama a atenção para o fato de que a sua poesia
tem corpo e alma, em um sentido de desequilibro que pesa mais para o
corpo:

Acho que minha poesia tem corpo e alma. Aliás


não num sentido vaidoso de equilíbrio, de
integridade, que, nisto, eu juro que acho muito
mais alma e corpo na poesia de você, na do
Manuel, na da Cecília. Me definindo “corpo e
alma” me soa justo no sentido de desequilíbrio, de
luta, é uma definição-ameaça, ou pelo menos
aviso. E sinto o meu corpo entrando esbarrondante
pela minha poesia adentro, num excesso de peso
da terra, que é terrível, mas que é bom.204

No artigo “Che Cos’ È La Poesia?”, Jacques Derrida compara a


poesia a um ouriço: “Não a fênix, não a águia, o ouriço, muito baixo,
bem próximo da terra. Nem sublime, nem incorpóreo, angélico talvez,
temporariamente”.205 Segundo ele, o poema deve ser breve e elíptico por
vocação – qualquer que seja a sua extensão objetiva ou aparente. Além
disso, o poema deve falar a partir do coração, de modo que o poeta
possa “aprender de cor”. De acordo com o filósofo, o segundo axioma
enrola-se no primeiro: “o poético seria o que você deseja aprender de
cor. Alguém lhe escreve (ou lhe dita), a você, de você, sobre você. Em
seguida, você deve destruir a carta, ou melhor, tornar-se a carta.”
Para Derrida, a poesia não se limita às palavras decoradas, mas
constitui ”uma forma inteiramente única, um acontecimento cuja
intangível singularidade já não separe o ideal do corpo da letra”. O
poema é capaz de atravessar o coração e ensinar, inventar o coração.
Aprender de cor não se refere apenas a uma interioridade, mas também a
certa exterioridade do autômato: “O poema (o aprender de cor) sela
juntos o sentido e a letra como um ritmo espaçando o tempo”.

204
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, out. 1943. SOUZA, Eneida
Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 270.
205
DERRIIDA, Jacques. “Che Cos’ È La Poesia?” Trad. Tatiana Rios e Marcos
Siscar. In: Inimigo Rumor. n. 10. Rio de Janeiro: 7 Letras, maio 2001, s/p.
O autor propõe chamar de poema “uma certa paixão da marca
singular, da assinatura que repete sua dispersão, além do logos,
ahumana, dificilmente doméstica: um animal convertido, enrolado em
bola, voltado para o outro e para si, uma coisa, em suma, modesta,
discreta, próxima da terra, o nome para além do nome”.206 Utilizando a
imagem palpável de um animal tão terrestre, Derrida enfatiza o caráter
eminentemente material e humano do poema.
Assim, podemos pensar numa dicotomia entre a poesia próxima
da terra e do corpo – e, portanto, mais próxima do homem e do
angelical – e a poesia voltada para o sublime e incorpóreo, para o
divino. A partir da filosofia de Hegel, podemos notar como a tendência
espiritualista da poesia de Henriqueta pode contrastar com a tendência
panteísta na poesia de Mário:

Quando o poeta, a saber, anseia por ver e


efetivamente vê o divino em tudo, então ele em
contrapartida também renuncia ao seu próprio si-
mesmo (Selbst), mas apreende igualmente a
imanência do divino em seu interior ampliado e
liberado desse modo e com isso cresce para ele
aquela serena interioridade (Innigkeit), aquela
sorte livre, aquela beatitude voluptuosa que é
própria ao oriental, o qual durante o
desligamento da própria particularidade
mergulha no eterno e no absoluto e em tudo
reconhece e sente a imagem e a presença do
divino. Um tal penetrar-a-si-mesmo
(Sichdurchdringen) pelo divino e pela vida
embebida em bençãos beira a mística.
(...) ao contrário, no panteísmo a imanência do
divino nos objetos eleva a existência mundana,
natural e humana mesmo para a glória própria,
mais autônoma. A vida própria (Selbstleben) do
espiritual nos fenômenos naturais e nas relações
humanas vivifica e espiritualiza estes neles

206
DERRIIDA, Jacques. “Che Cos’ È La Poesia?” Trad. Tatiana Rios e Marcos
Siscar. In: Inimigo Rumor. n. 10. Rio de Janeiro: 7 Letras, maio 2001, s/p.
mesmos e fundamenta por sua vez uma relação
peculiar do sentimento subjetivo e da alma do
poeta com os objetos que ele canta.207

Ao elaborar uma concepção de poesia que não se baseia


propriamente no poder da linguagem e das imagens, mas requer o
auxílio da subjetividade e da empatia espiritual, Henriqueta corre o risco
de perder a capacidade de se comunicar com o leitor. Por outro lado,
podemos pensar que a decifração do mundo e do mistério da criação
realizada pela poeta mineira não necessariamente limita a sua poesia ao
hermetismo, pois muitas vezes aquilo que é objeto de sua intuição se
converte em belas imagens capazes de repercutir na compreensão da
inteligência e na sensibilidade dos sentidos.
São Tomás de Aquino definiu o belo como aquilo que, sendo
visto, agrada: id quod visum placet. Segundo esclarece Maritain, a
beleza é essencialmente um objeto de inteligência, pois aquilo que
sabemos, no sentido pleno da palavra, é inteligência, que sozinha está
aberta ao infinito do ser. O lugar natural da beleza é, portanto, o mundo
inteligível. Porém, de certo modo, a beleza recai sob o domínio dos
sentidos, na medida em que, no homem, eles servem ao intelecto e
podem se deliciar em saber.208 Uma prova disso seria que, entre todos os
sentidos, o belo se relaciona somente com a visão e a audição, pois esses
sentidos são maxime cognoscitivi. Por isso, costumamos dizer que uma
paisagem é bela ou uma música é bela, mas não dizemos o mesmo sobre
o sabor ou o cheiro de uma comida, por exemplo. Assim, o homem pode
desfrutar de uma beleza puramente inteligível, mas a beleza que é
conatural para ele é aquela que encanta o intelecto a partir dos sentidos e
da sua intuição.
Sérgio Milliet, um de nossos críticos mais argutos, identifica na
poesia de Henriqueta a recusa do sentimentalismo e da retórica e uma
desconfiança da facilidade, que dão à sua poesia uma grande limpidez,
mas também certas arestas. Ele observa que Henriqueta demonstra
humildade, mas uma humildade orgulhosa, “porque somente perante o

207
HEGEL, Georg Wilhein Fridrich. Cursos de Estética. Volume II. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 93.
208
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 15.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
mistério da natureza, perante a harmonia complexa e insondável do
mundo se submete”.209 Milliet nota que na poesia da poeta mineira,
assim como na vida, a paixão é recalcada, em função de sua “ânsia de
serenidade” e de um “misticismo vago”, mas ainda assim capaz de
inspirar imagens surpreendentes.
O crítico percebe na poesia de Henriqueta certa dose de amargura
e revolta: “Noite amarga/ sem estrela / sem estrela / mas com lágrimas.”
Mas também uma brasa acesa de esperança, que é seguida pela
resignação e termina em amargura. E é justamente nesse momento em
que a poeta vive “a necessidade da vida” – e sofre como todos os
homens – que o poema ganha força e conquista simpatia humana: “(...)
dia a dia./ o desgosto / e a necessidade / da vida.”210
Podemos pensar que, na perspectiva dessa análise, a poesia de
Henriqueta ganha força à medida que a poeta se sujeita a viver “o
desgosto e a necessidade da vida”, talvez porque assim a sua poesia
adquira mais densidade poética, realidade humana e também se torne
menos cifrada e mais capaz de se comunicar com o leitor.
Embora considerasse Henriqueta uma das grandes poetas de sua
geração, Sérgio Buarque de Holanda observa que, em sua busca
espiritual, a poeta mineira se separa não apenas dos autores modernistas
e “confessadamente profanos”, mas acaba por distanciá-la mesmo dos
autores simbolistas, bem como das tradições religiosas mais amigáveis à
existência temporal, como o franciscanismo, o jesuitismo e alguns
misticismos. Como resultado, a sua obra acaba por se afastar não apenas
da sensorialidade da experiência física, mas também do contraste entre
luzes e sombras, tintas e sons, da estética simbolista:

Há mais um aspecto que ajuda, talvez a bem situar


a obra de HL em nossa paisagem literária. Vinda
de uma geração de poetas que queriam, em sua
generalidade, mais excitante o espetáculo da vida
presente, colorindo-a ou deformando-a a poder de
artifícios, essa obra, embora se dirija ao mesmo
auditório, responde nitidamente a uma solicitação
espiritual diferente. No mundo visível ela não
atenta especialmente para o contraste ora mágico

209
MILLIET, Sérgio. “Sobre a Face Lívida”. In: Suplemento Literário - Minas
Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev.,
1970, n. 182, p. 9.
210
Ibidem, 1970, n. 182, p. 9.
ora repulsivo, ora tedioso ou simplesmente
absurdo das luzes e das sombras, das tintas e dos
sons, como para algum remoto apelo que lhe vem
de certos aspectos da realidade cotidiana: aquela
inocência que se traduz nos olhos do velho bêbedo
(azul do céu, limpidez
de lírios amanhecentes).
A lua distante, que pode ver, sem corar, o
turbilhão terreno, o segredo insondável da
infância, a singela pureza de um cântaro:
"Como podes ser puro e suave,
cântaro,
- corpo de barro?"
E se a constante demanda do eterno através do
anedótico e do temporal, separa-a dos autores
confessadamente profanos, não a separa menos
daquela religião “regional", que tanto inquietava
Mário de Andrade diante de algumas produções
de um Murilo Mendes, onde Nossa Senhora acaba
falando inglês e Deus Todo Poderoso vai jogar
nas corridas de cavalos. A sua é uma catolicidade
que se quer manter fiel ao sentido originário da
palavra “católico", isto é, universal – direi quase
cosmogônica. Falta-lhe, talvez, a essa
catolicidade, para ser plena e perfeita, aquele
sentimento, que não faltou ao franciscanismo,
nem sequer ao jesuitismo ou mesmo a alguns
misticismos, sentimento de que a existência
temporal é amigável e digna de viver-se enquanto
parábola da eternidade, criação celeste ou
caminho para a glória divina. Em seu
universalismo, a vida terrena e mortal não
encontra guarida possível, salvo como uma
contingência melancólica: "O desgosto e a
necessidade da vida".211

211
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Diário Carioca. Rio de Janeiro: 10
de setembro de 1950. In: Suplemento Literário - Minas Gerais. No convívio
poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev., 1970, n. 182.
Para Maria José de Queiroz, a poesia de Henriqueta intenta
chegar – lucidamente – à essência e ao sentido das coisas e sentimentos,
com uma “inocente perplexidade de quem contempla o mundo povoado
de enigmas”. Para ilustrar, ela cita o emblemático poema “Além da
imagem”, que também intitula o livro que analisa:

Além da Imagem: trama do inefável


para mudar contorno definido.
Ou não bem definido. Além da Imagem
treme de ser lembrança o que era olvido.212

A busca por desvelar o eterno e permanente no mundo material e


efêmero percorre toda a obra da poeta mineira, para quem tudo no
mundo se reveste de falsa aparência. De acordo com Queiroz, a poeta
realiza uma espécie de jogo de Adivinha com as palavras e o mundo,
que apresentaria aos homens apenas uma superfície enganadora,
cabendo ao poeta buscar a “perspectiva mais profunda” e empreender o
salto “além da esfera”:

Parte, pois, em busca da verdade que o inefável


tenta ocultar ao simples mortal. Édipo
reencarnado, defronta-se a cada passo com o
enigma que assumiu a aparência plural de todo
envolvente. Nem as impressões escapam ao difícil
jogo do "Que é, que é?" Quando luzes e sombras
conspiram, expondo a superfície enganadora à
vista do incauto contemplador, não se ilude
contudo o poeta que procura a “perspectiva mais
profunda”. E empreende o salto “além da esfera”.
Compete com o acrobata do espaço o moderno
astronauta. Também ele deseja ver o que há
debaixo da óbvia aparência das coisas.
Como atingir a oculta face e desenredar a teia que
o inefável tece sobre formas, cores, sons,

212
QUEIROZ, Maria José de. “Além da imagem”. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21
de fev., 1970, n. 182, p. 9.
situações, coisas, seres, experiências e
sentimentos? Como surpreender o instante falaz e
nele descobrir a marca do eterno? Essa a pergunta
que parece presidir a criação de cada poema de
Além da Imagem. Para realizar seu intento,
Henriqueta Lisboa recorre às vezes aos indícios
que lhe apresentam a fórmula secreta para a
equação do visível. Podem tanto encontrar-se no
"matiz da flor / entre cor e cor" como no "rapto
das ondas... carreadas pelos ventos vários/ para
além dos âmbitos". Para ela, o efêmero esconde,
em falsas cores, a verdade absoluta.
(...) Oferecem-lhes a vida inúmeras experiências
em que o absoluto e o eterno se transfundem. Para
captá-los será preciso solucionar o enigma:
aprender a ver além da imagem, reformular o
mundo, sem "halos de sóis e de mitos" que
"cobrem o trigo dos séculos". Então, "talvez
porventura o lince/ rasgue a túnica dos séculos.../
E de súbito amanheça a voz do oráculo".213

O crítico Oswaldino Marques insere Henriqueta entre os cultores


da “estética do silêncio”, observando ser a sua poesia não do grito e nem
de um afásico silêncio, mas da voz, numa postura mais “apostólica”.
Segundo ele, o poema “O Véu”, presente em Miradouro e Outros
Poemas, traz uma chave para a compreensão da poesia de Henriqueta,
para quem “cada vocábulo em si é um cofre na expectativa de abertura,
corpo inanimado à espera do sopro vital, capaz de ressurgir tantas vezes
quantas for convocado para o milagre de romper as pedras do
silêncio”.214 Ele cita um trecho do poema:

E através do véu a aragem


de um sorriso treme, prestes

213
QUEIROZ, Maria José de. “Além da imagem”. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21
de fev., 1970, n. 182, p. 9.
214
MARQUES, Oswaldino. A dança ritual do véu. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984,
n. 929, p. 3.
a dar à luz um segredo.

Um véu como os outros, tênue,


guarda o segredo dos mortos.
Nada mais do que um véu.

Reminiscência de outros véus,


de outras verônicas, de outras
máscaras. Símbolo, estigma.
(...)
Entre a vida e a morte, um véu.
Nada mais do que um véu.
(...)

Para o crítico, na poesia de Henriqueta, as palavras – e o mundo


material – figuram como uma espécie de metáfora de uma realidade
superior, que cabe ao leitor desvelar e encontrar o sentido, não bastando,
portanto, como fontes de significação “imanente” e capazes de trazer o
sentido em si mesmas. A própria linguagem figura como uma metáfora
ou um símbolo do mistério da criação, do transcendente e imaterial.215
Ainda segundo Oswaldino, a poesia de Henriqueta atua como um
prisma de configuração das palavras, capaz de explorar as suas diversas
nuances e descodificar a cifra do mundo: “É um 'véu' que,
paradoxalmente, em vez de ocultar, sinaliza, revela, além de se
equacionar com "força" protetora e traço de união entre duas ordens do
existente”. O símbolo se mostra, portanto, um arremesso a um outro
sentido, uma contestação da imanência, uma rendição a um outro
sentido, que o atravessa e transforma:

Como é do saber corrente, o termo 'símbolo'


significa, em seu étimo, 'arremessado junto',
'proposto no mesmo lance'. Símbolo é
ultrapassagem, contestação da imanência. Mentar
um símbolo é acionar um veículo, render-se ao
que é trânsito. Outra característica sua é a
qualidade óptica - a condição de prisma. O que o

215
MARQUES, Oswaldino. “A dança ritual do véu”. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984,
n. 929, p. 3.
atravessa se transmorfoseia ou se decompõe. Nada
passa por esse "meio" sem que fique sujeito a
outro nome. De natureza devir, inexiste o que lhe
possa aplacar a avidez sagitária.
Quando Henriqueta Lisboa nos diz "véu", como
que nos adverte de que nos cumpre idear coisa
diversa apenas sugerida pelo sortilégio da
ambiência significativa pouco a pouco edificada.
É por uma galeria de espelhos que nos deslocamos
a orientarmo-nos por um alfabeto de reflexos.
Aqui, ler é desliteralizar. Entendamo-nos – nosso
compromisso é com transignificações.216

Para Márcia Eliza Rezende, Henriqueta vê o mundo com olhos de


filósofo, em busca de decifrar o segredo das imagens concretas, através
das quais se entrevê o abstrato e o mistério da criação:

A inquietude da poetisa frente à realidade


enigmática é uma constante em toda a sua Lírica.
Sente-se "Prisioneira da noite" e indaga: "onde
fica a distância da qual me chegam misteriosos
apelos?" ou "Quem me ensina os caminhos da
madrugada?" Nessa ânsia de penetração do real,
inúmeras interrogações acompanham seus versos.
(...) Eis aí a poesia revelando a insistente tentativa
de descortino do real, a ânsia de romper o
simbólico velário que envolve as imagens
sensivelmente perceptíveis. (...) À maneira de
Cecília Meireles, permanece alerta à grande
charada universal, tentando penetrar-lhe a
essência.217

216
MARQUES, Oswaldino. “A dança ritual do véu”. In: Suplemento Literário -
Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984,
n. 929, p. 3.
217
REZENDE, Márcia Eliza. Tendências metafísicas na lírica de Henriqueta
Lisboa. In: Suplemento Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa
Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984, n. 929, p. 4.
Segundo Fábio Lucas, a poesia de Henriqueta traz uma decifração
dos mistérios da poesia e do mito criador, a partir dos desvãos das coisas
mínimas e das frestas de mistérios:

Mais filosófica, menos enfática, concentra-se nos


mistérios da poesia, sem jamais perder a dimensão
do mito e do jogo, atividades básicas do espírito
criador, mais música de câmera, mais arte de
bibelô, mais capricho de miniaturista; menos
orquestração, menos impacto, menores pompas da
linguagem. O mistério se introduz nos desvãos das
coisas mínimas.
(...)
Ambiciona o poema alcançar o divisor da ideia e
da coisa, do significado e do significante, do signo
e de seu referente. A fresta de mistério que é o
desafio de todos os poetas. Ali, sim, se encontra o
repertório dos prodígios de Henriqueta Lisboa,
sua alquimia de sortilégios.218

Porém, essa decifração do mundo e do mistério da criação não


necessariamente limita a poesia de Henriqueta a um estreitismo de
visão, em oposição à busca de emancipação da razão da modernidade.
Ao enfrentar os mistérios da existência de modo lúcido e consciente,
fazendo uso também da inspiração e intuição poéticas, a poeta mineira
contribui para trazer para a esfera consciente nuances e aspectos mais
sutis da existência. A poesia se mostra, desse modo, produção de
conhecimento a partir da intuição e do desvelamento do mundo sutil.
De acordo com Laís Corrêa de Araújo, a imagem poética traz
uma simultaneidade de lucidez e sonho e a linguagem é capaz de
revelar, no contato lúcido com a vida e com clareza completa, a
figuração das coisas antes invisíveis:

É neste inconcebível alumbramento do oco do


verbo que não se esgota nunca a poesia - tal a obra
de HL o exemplifica. Em cada objeto-poema seu,
a imagem é texto e contexto, não se podendo

218
LUCAS, Fábio. O ser da poesia. In: Suplemento Literário - Minas Gerais.
Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de jul., 1984, n. 929, p. 23.
contemplá-la isoladamente e esvaziada da
consciência criadora, em que a manipulação
conceitual não elide a percepção mágica de uma
estética aberta a todos os horizontes da realidade.
O empenho do poeta, ao contrário do jogo de
"sombras e luzes" de que o fizeram paradigma,
não é a fuga subjetiva para o irracional - o
encobrimento do ser - mas, antes, a postura de
uma verdade que rompe de suas próprias
antinomias. Verdade não dogmática, não
postulada, não definitiva, mas que, no momento
em que se expressa, torna-se ela mesma universal
e única e insubstituível.219

Para Branca Borges Góes Bakaj, Henriqueta trabalha como


poucos a palavra essencial dentro de um texto enxuto e condensado, que
opta pelo substantivo e não pelo verbo, de modo a se depurar e se
despojar de tudo que é acessório. Daí sua poesia ser tão substantiva.
Ela relaciona a poesia de Henriqueta com a de Mallarmé, cuja
escritura alcança, segundo ela, a condensação e a dispersão. Além disso,
utiliza os espaços para criar silêncios eloquentes, que dizem algo que os
signos linguísticos não dizem, tornando o espaço uma forma de
escritura. Ainda falando sobre Mallarmé, a autora cita então Octavio
Paz:

O poema cessa de ser uma sucessão linear e


escapa assim à tirania tipográfica que nos impõe
uma visão longitudinal do mundo, como se as
imagens e as coisas se apresentassem umas atrás
das outras e não, como realmente ocorre, em
momentos simultâneos e em diferentes zonas de
um mesmo espaço ou em diferentes espaços. 220

219
ARAÚJO, Laís Corrêa de. “Lúcida e límpida Vigília”. In: Suplemento
Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de
jul., 1984, n. 929, s/p.
220
BAKAJ, Branca Borges Góes. Quatro estudos literários (Mário de Andrade,
Machado de Assis, Henriqueta Lisboa, Florbela Espanca). Brasília: 1989, p. 49.
Ainda segundo Bakaj, a lírica de Henriqueta é fruto de um
processo de subjetivação, de uma interiorização da realidade, e não de
uma interioridade: “É essa interiorização de sua infância, de sua religião,
de sua vivencia mineira, de seus medos, de suas ansiedades, etc. que
encontramos em sua obra.”221
De acordo com a autora, a poeta mineira desenvolveria um
trabalho artístico consciente a partir dessa interiorização das
experiências, concentrada no fundo da realidade humana:

Em Henriqueta não podemos perder uma palavra


(ou silêncio) que seja, pois em tudo encontramos
uma disposição anímica que nos faz sentir que não
estamos diante das coisas, mas sim que estamos
nelas e elas em nós. "A poesia não diz: eu sou tu;
diz meu eu, és tu. A imagem poética é a
outridade.222

Para o crítico Walmir Ayala, “a poesia feminina no Brasil tem em


Cecilia Meireles e Henriqueta Lisboa seus nomes máximos”. Ele
escolhe a imagem do pássaro para estabelecer um paralelo entre a obra
dessas duas poetas.
Sobre o pássaro de Cecília Meireles, o crítico destaca a
materialidade poética, construída a partir da descrição do pássaro que
“chega e canta”, em sua presença material:

Do pássaro de C.M. não se sabe o voo. Sabe-se


que ele chegou e cantou. Isto, que em Cecília
Meireles tornou-se o cimento de uma obra
consciente, o objetivismo, o temor da vaguedade,
a certeza da incerteza, o tudo que existe no tempo
do poeta, e nada fora desta esfera de canto, está
nitidamente gravado em Primeiro Pássaro:
Chega e canta,
Canta e para.
Para e estua:
com os ouvidos, com os olhos, com as penas.

221
BAKAJ, Branca Borges Góes. Quatro estudos literários (Mário de Andrade,
Machado de Assis, Henriqueta Lisboa, Florbela Espanca). Brasília: 1989, p. 49.
222
Ibidem, 1989, p. 49.
É a matéria, esta fera de mil ouvidos que se
sustém cega, surda e muda, mas percebe por todos
os lados de si, porque a sensitiva poética é todo o
organismo de que dispõe para absorção do
universo, e a sugestão pode vir mesmo dentro da
noite, no momento de mais absoluta
inconsciência.
(...) Quando muito há "o silêncio da manhã, um
longo muro, ainda, entre este mundo e o céu".
Neste ponto Cecília se toca com os simbolistas, de
onde vem. Porque há um muro entre o mundo e o
céu, embora não haja referência à tentativa do
pássaro de tocar esse céu que ele sabe existir.
Veio para cantar. Está completo, embora ciente de
um mistério que o escuta. E nem resposta
houve.223

A poesia de Henriqueta traz um pássaro diferente, adivinhada e


difícil, na análise do crítico. O pássaro é a alma, o amor, uma metáfora
para a alma do poeta, em seu voo para fora do tempo perene e sua busca
pelo eterno:

Henriqueta Lisboa apela. Começa sua canção com


um grito, um lamento um agudo espinho lhe
cravou no exato lugar de onde o pássaro partiu o
coração. E o pássaro é a alma, o amor. E tanto se
consome nas fímbrias, como se despedaça nas
pedras. Ousa, este pássaro, um cego exercício,
sem cautela, apenas guiado por sua necessidade de
encontrar. É dinâmico o pássaro de HL e nisto
difere do de CM. É dinâmico porque não é o
pássaro que chega e canta; é o que procura,
encontra e perde. Não é o ser alado cuja condição
única é cantar. É um ser imaterial que lhe leva o
nome, e que tem pontos de relação com a sua

223
AYALA, Walmir. “Dois poemas”. In Diário Carioca, 22/23 de fevereiro de
1959. Suplemento Literário - Minas Gerais, No convívio poético de Henriqueta
Lisboa, n. 182. Belo Horizonte: 21 de fev. 1970, p. 8.
natureza, mas que comunga diretamente com a
emoção angustiada da alma do poeta. E é a um
tempo próximo de "Lua, suspiro de Lua" e de um
"bater de pálpebras. O pássaro é a sugestão de um
sem número de elementos que partem dele, para
ser o universo de cego mergulho de quem se parte
"sobre as ondas pelos vidros", "pelos abismos
abaixo". Henriqueta Lisboa se lança mais a um
tempo de perenidade, para fora do tempo de que
dispõe. Cecília Meireles constrói sua perenidade
com as colheitas do seu dia. O poema de HL é
todo o histórico do amor, da condição de ser busca
de identificação com outra realidade adivinhada e
difícil.224

Ayala conclui que Henriqueta é mais mística, pois se funda no


imponderável, o que raramente acontece com Cecília Meireles: “O
pássaro de HL se nutre de uma beleza impegável; a mutação, nela, deixa
de ser atributo do ser, da coisa em si, para qualificar a ambiência, a
atmosfera do encontro e da perda. É mais mística, esta mineira
deslumbrada, esta calorosa visionária do âmago.”225

1.8 A poesia etérea de Henriqueta Lisboa

Nos livros de ensaio Convívio Poético (1955), Vigília Poética


(1968) e Vivência Poética (1979), Henriqueta Lisboa enumera os
elementos técnicos utilizados na composição de seus poemas, expondo
suas premissas e reflexões estéticas, seus conceitos de arte, suas
diretrizes criadoras. Também analisa criticamente escritores que
considera importantes, esboçando um diálogo com uma tradição literária
bastante pessoal e deixando pistas dos critérios de valor que norteiam o
seu processo criativo. As críticas de poesia presentes nesses livros
mostra como Henriqueta teve um papel importante como precursora da
crítica literária feita pelas mulheres, principalmente a partir da década de
1950, quando se tornou mais madura e segura para exercer a atividade.

224
AYALA, Walmir. “Dois poemas”. In Diário Carioca, 22/23 de fevereiro de
1959. Suplemento Literário - Minas Gerais, No convívio poético de Henriqueta
Lisboa, n. 182. Belo Horizonte: 21 de fev. 1970, p. 8.
225
Ibidem, 1970, p. 8.
Embora esses livros tenham sido publicados num período posterior à
correspondência com Mário, eles parecem ser fruto de leituras e estudos
realizados pela poeta mineira ao longo de toda a sua trajetória, e são
portanto importantes para compreender a sua concepção literária e a sua
obra poética, mesmo dos anos anteriores.
Os seus ensaios revelam uma escritora altamente consciente da
técnica literária, dada a sua capacidade de análise crítica, que também se
beneficia de sua sensibilidade de artista. Henriqueta aborda questões
sobre aspectos formais envolvendo métrica, ritmo, rima, assonância,
imagem, estrutura, a questão da representação, etc. Segundo a escritora
mineira, o ritmo governa o poema, mas a partir de uma ordenação
interior, podendo prescindir da métrica; a rima é considerada elemento
perigoso, que pode ser usado como dádiva ou coincidência em
circunstâncias singulares; a imagem insinua tanto o visível quanto o
invisível.
Os seus ensaios, compilações de suas preferências e ressonâncias
de suas leituras e estudos, analisam a obra de autores de escolas
diversas, como Cruz e Sousa, Alphonsus, Severiano de Rezende, Emílio
Moura, Drummond, Murilo Mendes, Guimarães Rosa, Mário de
Andrade, Dante, Ungaretti, Camilo Pessanha, Mário de Sá Carneiro,
Jorge Guillén, Gabriela Mistral, Huidobro, etc. As considerações que
Henriqueta tece sobre os escritores que critica – e com os quais ela tem
afinidades – muitas vezes podem servir para ajudar a esclarecer questões
que dizem respeito também à sua própria poesia. Observando a obra dos
poetas que admira, a poeta mineira descobre lições que incorpora em sua
própria poesia, revelando assim as suas preferências estéticas e os
recursos de seu processo criativo. Com alguns deles, demonstra possuir
maior afinidade, mas de cada qual destaca pelo menos uma qualidade
que admira e parece querer reproduzir.
Henriqueta demonstra intimidade com a poesia moderna,
assumindo a sua liberdade criativa, mas não se contenta com facilidades
espontaneístas, ao contrário, procura conhecer a técnica de seu ofício
com um máximo de rigor. O modernismo se manifesta em sua poesia
principalmente no uso dessa liberdade, até mesmo para assimilação de
influências passadistas, principalmente do Simbolismo.
Assim como outros autores do segundo período do modernismo,
Henriqueta envolveu-se com o desenvolvimento de uma corrente
chamada de neo-simbolismo, que abordava temas caros ao simbolismo,
sobretudo de natureza espiritual e metafísica. “Com efeito, destituída de
realismo exterior, desinteressada de uma pontuação histórica, H. L.
vem-se mostrando cada vez mais encapsulada numa charada metafísica
cujo resultado tem sido a ordenação de sintagmas conceituais que
buscam definir a posição e a resposta do ser diante do mundo”, observa
Fábio Lucas.226
Para Fábio Lucas, embora sua obra tenha sido escrita “sob o
triunfo do Modernismo”, pode-se notar nela tanto a influência tanto do
simbolismo (“no preparo da imagem acústica do poema, no misticismo
que impregna a visão do mundo, no esbatimento impressionista da
paisagem descrita e no paralelismo entre transcendência e poesia”)
quanto do parnasianismo (revelado na sacralização da palavra).227
Embora guarde certa proximidade com tendências passadistas,
Henriqueta buscava a atualização de sua poesia, a partir da convivência
com os modernistas, especialmente de Mário de Andrade. Segundo
Fábio Lucas, a partir de 1949, quando lançou Flor da Morte, “a autora
se despedia da cadência e da musicalidade simbolistas (...), para o
estabelecimento de um repertório mais apurado de signos poéticos”.228
Como aponta Angel Crespo, há uma certa interseção entre o
simbolismo e o modernismo. Segundo o crítico, muitos dos poetas
modernistas mais ativos – Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida,
Manuel Bandeira e Mário de Andrade – começaram escrevendo poesia
simbolista. Além disso, muitos “autênticos simbolistas”, como Ribeiro
Couto, Cecília Meireles, Tasso da Silveira e Murilo Araújo, têm sido
considerados representantes do modernismo. Ele conclui que o
simbolismo é, portanto, “uma estética que mantém a sua capacidade de
atuar ao longo das correntes que ocorreram no Brasil”.229 Henriqueta
também possuía raízes simbolistas, mas seria, para o crítico, mais afeita
ao símbolo que ao simbolismo:

Também é mineira Henriqueta Lisboa, a poetisa


mais significativa desse período. Pode-se dizer
que a evolução de sua lírica está movida por uma
busca da síntese entre a arte pela arte, o
sentimento subjetivo, a captação do
acontecimento exterior ao poeta e o elemento

226
LUCAS, Fábio. Crítica sem dogma. Belo Horizonte, Impr. Oficial do Estado
de Minas Gerais, 1983, p. 189.
227
Ibidem, 1983, p. 192-193.
228
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 188.
229
CRESPO, Angel. Antologia de la poesia brasileña. Desde el romantismo a
la Generación del cuarenta y cinco. Barcelona: Seix Barral, 1973, s/p.
lógico ou cognoscitivo que, como muitos de seus
colegas brasileiros, crê ser fundamental em sua
poesia. De modo que, ainda que suas raízes sejam
simbolistas, se sinta mais afeita, conforme avança
sua evolução, ao símbolo que ao simbolismo; e
assim também que em sua última época de
produção seus melhores poemas sejam como
grandes e unitárias imagens, como símbolos
autosuficientes em que teria sido realizada a
síntese buscada desde sempre pela poetisa.

Angel Crespo acredita haver, na poesia de Henriqueta, “acima de


tudo, uma busca de equilíbrio: equilíbrio entre pensamento e expressão,
entre matéria e forma, entre substância e acidente”. Ele destaca a
capacidade intelectual da autora, o seu pudor estético e de contensão, a
sua síntese formal-emocional, o domínio das técnicas de expressão.
“Poder-se-ia dizer que todas as inquietudes espirituais e técnicas que
recorrem e caracterizam o panorama poético brasileiro desde o
simbolismo até a segunda geração modernista, quer dizer, meio século
de lírica brasileira, estão presentes nos livros da poetisa mineira”,
observa.230
De acordo com Crespo, a problemática fundamental da poesia de
Henriqueta é “a linguagem – enquanto meio de comunicação – e suas
possibilidades de apreensão do ‘eterno dentro do efêmero’”. Segundo
ele, o simbolismo não figura, nessa poesia, como “mera evanescência,
um caminho para o alheamento, senão a única possibilidade de síntese
para uma poesia idealista em princípio”. O crítico faz uma observação
sobre o uso do símbolo na poesia de Henriqueta dentro de uma
perspectiva moderna, diferenciando-se do símbolo usado no movimento
simbolista:

(...) Nossa poetisa é mais afeita, conforme adianta


sua evolução, ao símbolo que ao simbolismo, e
nos parece que as possibilidades expressivas do
simbolismo histórico não exercem primazia sobre

230
CRESPO, Angel. Poemas de Henriqueta Lisboa. In "Revista de Cultura
Brasileira", tomo IX, Março 1969, Madrid. Suplemento Literário - Minas
Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev.,
1970, n. 182, p. 4.
as do modernismo, as do purismo ou as de
qualquer outra das poéticas que pretende
sintetizar. É algo sobre o que vale a pena fixar a
atenção.

Para Crespo, a técnica da poeta mineira teria como virtude


principal criar poemas que seriam, eles próprios, “grandes e unitárias
imagens, símbolos eficazes e auto-suficientes”.
Ivan Junqueira chama a atenção para a importância de reconhecer
o vínculo de Henriqueta com o simbolismo, desde o início até o final de
sua carreira, tendo, segundo ele, pouco sofrido do influxo das novas
ideias e doutrinas estético-formais do modernismo. De acordo com o
poeta e crítico, esse vínculo poderia ser catastrófico para um poeta
mediano e de pouco talento, mas no caso de Henriqueta só vem a nos
dar um perfil de sua grandeza:

É que a autora de "Além da imagem" extraiu do


Simbolismo (e mesmo do Parnasianismo) apenas
aquilo que, a despeito do triunfo modernista, iria
persistir dentro da categoria dos valores eternos da
poesia, como agudamente observa Fábio Lucas: a
musicalidade das "imagens acústicas", o debuxo e
evanescente das paisagens descritas, o cultivo
(pertinente, no caso) de uma linguagem afim do
léxico litúrgico e um certo "paralelismo entre a
transcendência e a poesia". E tais procedimentos -
é bom que se advirta - alardeiam a parte poética
de Henriqueta Lisboa.231

Ainda segundo Ivan Junqueira, outro aspecto crucial para se


compreender a poesia de Henriqueta caberia ao papel desempenhado
pelo silêncio, que seria “o agente responsável pelo passo do real ao
inefável’”. O autor destaca a “limpidez formal” e a “austeridade
expressiva” da poeta mineira e a compara com Rilke, em seu empenho
por ultrapassar os limites da palavra para penetrar a essência da poesia,
que estaria para além das palavras:

231
JUNQUEIRA, Ivan. Entre a música e o silêncio. O Globo - 19-12-79. In:
Suplemento Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Cinquenta Anos de
Poesia. Belo Horizonte: 22 e 29 de dez., 1979, n. 690 e 691, p. 3.
A musicalidade e o inegável da dicção poética de
Henriqueta Lisboa devem quase tudo a este
diáfano demiurgo: o silêncio. E muitas de suas
outras virtudes - em particular as da limpidez
formal e da austeridade expressiva - parecem
advir de sua ladina e invisível ação (...) . Por isso
mesmo, sua poesia confunde-se com o afã de
tangenciar o indizível, de ultrapassar os limites
léxico-semânticos da palavra e, afinal, como
queria Rilke, de penetrar a essência da poesia,
cujo limbo escatológico estaria assim para além
das palavras.

De acordo com Darcy Damasceno, Henriqueta Lisboa foi aos


poucos se despojando de traços comuns com a estética simbolista, “mas
guardando em sua individualidade, o essencial daquela feição primeira”:

A exteriorização da monotonia, a religiosidade, o


tom brumoso a que servia um vocabulário típico;
o verso livre, ora arrítmico, ora resultante de
justaposições métricas; a carga sintática posta na
construção da estrofe - eis alguns dos aspectos da
proveniência neo-simbolista de Henriqueta
Lisboa, evidentes em Velário ou em Prisioneira
da Noite, por exemplo.
Posteriormente, esse lastro se projetará em A Face
Lívida ou em Flor da Morte, marcado sobretudo
pelo verso arrítmico e pela reiteração de certos
motivos, como a religião ou a morte. A evolução
formal – utilização do ritmo breve em
combinações assimétricas – e o alargamento da
visão poética são os pontos mais altos a que
forçosamente deveria ascender poesia de tão
nobre estirpe (...).232

232
DAMASCENO, Darcy. Além da imagem das coisas. In: Fenomenologia da
Obra Literária, Forense, Rio, 1968, p. 135-138. Suplemento Literário - Minas
Gerais. No convívio poético de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev.,
1970, n. 182, s/p.
Para ilustrar o modo como Henriqueta atualizou a sua poesia,
basta comparar “Primavera”, um dos poemas de Velário (1930-1935),
livro anterior a Prisioneira da Noite, escrito ainda antes da
correspondência com Mário, com “Natureza”, poema de A Face Lívida
(1941-1945) que traz um tema semelhante. No primeiro poema,
percebe-se nos versos livres e longos um tom retórico e didático
(“jardim orvalhado de lágrimas”), certa dose de pieguice (“desfolhou
contra o meu coração”), as ideias sentimentais, o abuso da eloquência
(“grandes gotas de sangue”), problemas sobre os quais Mário depois
passaria a alertar:

PRIMAVERA
Depois do inverno que fora rude
e fechara os caminhos com seus passos de neve,
certa manhã em que havia bailado de borboletas,
desabrochou à altura de minha janela
a primeira rosa vermelha
do meu jardim orvalhado de lágrimas.

Essa rosa era tua, Senhor, era tua,


viera ao mundo para dar-te um momento de
glória,
ascender a ti nas asas do aroma
e desfolhar-se, após, delicadamente a teus pés,
em grandes gotas de sangue.

Mas o inverno fora rude,


os caminhos tinham estado fechados pela neve
e as borboletas bailavam tão levemente aquela
manhã,
que tomei para mim tua rosa vermelha
e escondi minha face entre suas pétalas
e aspirei seu perfume
e me feri por gosto nos seus espinhos
e tão sofregamente a acariciei,
que ela se desfolhou contra o meu coração.233

233
LISBOA, Henriqueta. “Primavera”. In: Velário. Obras Completas. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 34-35.
Já “Natureza”, mais conciso e contido, traz uma dicção mais
contemporânea, com imagens de forte apelo sensorial, mais sugeridas
que explicitadas, em proveito da densidade poética. A poeta evita agora
a retórica, a eloquência e o sentimentalismo, e o poema ganha força. O
ritmo urbano pulsante contrasta com o cenário natural. A temática
religiosa está presente – a alma lúcida e amarga –, mas agora podemos
visualizá-la como um cristal de rocha, a lutar contra as forças bárbaras
do secularismo:

NATUREZA
Flores em guirlanda
ao longo dos troncos.

Cheiro intenso de uva


no bojo das frondes.

Música de bárbaros
à sombra dos bosques.

Sentidos cercados
De todos os lados.

Porém, a alma, lúcida,


lúcida e amarga
como se fosse
cristal de rocha.234

Sem se arriscar a elaborar uma definição de poesia que pudesse


dar conta de um conceito demasiado abrangente e indefinível pela sua
própria natureza antidogmática, a poeta mineira explica o significado de
poesia para si própria:

Não ouso definir especificadamente a poesia,


embora tenha aventado que ela seria a coação do
eterno dentro do efêmero. Sinto-a como aura que

234
LISBOA, Henriqueta. “Natureza”. In: A Face Lívida. Obras Completas. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 139.
se irradia do ser, que preside as melhores atitudes,
e que se concretiza no poema, na criação plástica,
na composição musical. Considero-a, desta forma,
elemento fundamental e substancial da existência
humana. Quanto ao poema, acredito que
estabeleça um vínculo entre o número e o
fenômeno, entre o não-ser, anterior ao verbo –
sonho, emoção, abstração – e o ser, oriundo do
ritual artístico. Será talvez por isso que o poema,
imponderável a certos ângulos, desafia a
dissecação científica da crítica.235

Para Henriqueta, a obra de arte não deve ser apreciada em si


mesma, em seus aspectos estilísticos ou em seus níveis fonológico,
fonético, sintático, prosódico, semântico, etc., mas também se deve
considerar, intuitivamente, aquilo que ela não revela, guardando em seu
silêncio a essência das coisas:

Porém a obra só será captada, na sua unidade e


porventura na sua totalidade, se a análise objetiva
for presidida pela intuição eidética, ou seja, a
intuição relativa à essência das cousas, não à sua
existência ou função. É que a poesia reside entre o
obscuro e o revelado, a palavra e o silêncio.
Fecundo silêncio expressivo como a palavra
mesma, a limitá-la e prolongá-la em fluidez
psicológica, aureolando-a, esfumando-lha a
densidade, protegendo-a da claridade crua.236

A poesia se mostra, para ela, um meio de expressão do espírito,


capaz de libertar o homem das contingências materiais da natureza: “De
fato, que impele o artista ao sacrifício da obra, senão a necessidade de
projetar o seu próprio ser para além das contingências?”237

235
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 11.
236
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 12.
237
Ibidem, 1955, p. 86.
Ao falar sobre a poesia de Mário de Andrade, em Convívio
Poético, Henriqueta reforça essa concepção – um tanto instrumental –
de que a palavra é um veículo para expressar uma mensagem do poeta,
que por sua vez é um veículo de algo que lhe é superior:

A palavra tem maravilhoso poder mágico através


do poeta e não em si mesma. Vale como
presságio, augúrio, fio que conduz aos mais
espessos dédalos, na medida de sua decantação.
Quanto mais depurada, mais profunda é a
mensagem de que se faz de veículo.238

Em sua concepção, o poema, embora possa constituir uma


estrutura com certa autonomia em si mesma, se realiza na subjetividade
humana – e como presságio e augúrio de uma realidade mais sublime. O
poema, nessa perspectiva, não pode ser analisado criticamente em seus
aspectos meramente formais, de modo objetivo, mas deve ser lido
também em sua fluidez psicológica e na intuição que persegue a
essência das coisas, numa tensão entre o obscuro e o revelado.
Uma vez que Henriqueta vê a subjetividade do poeta como parte
do processo de criação e interpretação da obra, bem como instância de
mediação entre a fonte inefável da poesia e o mundo material, ela parece
incluir como juízo de valor a integridade moral do escritor. Para ela,
importava também fazer uma análise “psicológica” do poema – que
pode ser entendida, nesse caso, mais como análise moral –, em que a
biografia transparecia na obra, de modo a se poder observar como a
conduta moral dos escritores repercutia em sua poesia, como elemento
ordenador e distintivo, conforme sugere sua análise da poesia de Abgar
Renault:

Ele conhece bem o valor da palavra, de acordo


com seu próprio conceito de mestre: "...é mágico
o poderio criador dessa trivialidade prodigiosa que
é a palavra: só existe verdadeiramente para o
espírito humano o que já foi por ela consagrado:
as cousas que não têm nome não têm existência.

238
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 113.
Longe de impessoal e abstrata como de início a
julgaríamos, essa poesia revela um ser humano
que recolhe a emoção em profundidade para
devolvê-la à superfície expressiva sem a mácula
da desordem e até mesmo sem a névoa do pranto;
um ser cuja sensibilidade inclui nobreza,
dignidade, rigor para consigo mesmo e sua dicção.
239

A poeta mineira também demonstra admirar na poesia de Mário


de Andrade, além do valor intelectual e inovador, a integridade moral,
que decorreria, segundo ela, tanto de sua formação religiosa quanto de
sua consciência social e política:

Não há dúvida: o elemento intelectual que era nele


de uma extraordinária clarividência, ao deslocar
com deformações e inovações os dados do jogo
lírico, promovia descobrimentos poéticos de
valor.
Também o elemento moral, decorrência de sua
formação católica, se associava, com as noções de
culta e responsabilidade do homem nos destinos
do mundo, às experiências do artista. Como no
poema "Pela noite de barulhos espaçados" (p.
289) se torna explícito:

Há um arrependimento vasto em mim.


Eu digo que os séculos todos
se atrasaram propositalmente no caminho,
me esperaram e puxo-os agora como boi fatal.240

Henriqueta se dedicou à resistência do espírito no secularismo e


na poesia moderna, exercendo com seu próprio ser a luta contra as
tendências de dissolução entre o humano e sagrado que ela identificava
em sua época. Ela via com preocupação o impacto do secularismo e do

239
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 113.
240
LISBOA, Henriqueta. Vigília poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1968, p. 30.
agnosticismo sobre a poesia, mas acreditava ser possível confrontar
essas “forças contrárias” a partir de uma postura de equilíbrio, que era
buscado tanto no plano da vida pessoal quanto da criação artística:

Aquela brincadeira de menina que compunha


verso na lousa ao tempo em que frequentava o
Grupo Escolar de Lambari, recitava Fagundes
Varela e Raimundo Corrêa, foi o ponto inicial de
uma linha impressentida que se estendeu por
muitas décadas e persiste. Não sei precisar o
instante em que cessou o divertimento e
principiou a gravidade do ofício. É que me
surpreendo, ainda hoje, com a graça do jogo, em
meio a cogitações sobre os mistérios da vida e da
morte, diante dos conflitos entre a pessoa e o
mundo, principalmente diante das provações da
poesia aos impactos do século.
Nesse campo de forças contrárias, tenho buscado
uma postura de equilíbrio para aproximar-me da
poesia, uma vez que ele pode estar no fundo do
poço ou no voo do pássaro. Não um feixe de
nervos, mas o fluxo mesmo da vida há de palpitar-
lhe nos tecidos, à feição do pulso que a rege. Ela
não se esbanja, a poesia sonhada, não treme nos
bordos da taça, não se esbate em espuma. Sugere
plenitude, vigor e originalidade. Então é
prosseguir, entre aclives e declives, ora tombando
ora avançando em meio a miragens, a caminho do
que foi concebido para tormento e júbilo.241

Segundo a poeta mineira, o conteúdo e a forma da obra de arte


não se separam, assim como no ser humano corpo e alma devem estar
totalmente harmonizados para alcançar a plenitude do ser:

Mais audacioso, porém não menos esclarecedor,


seria o confronto da obra de arte com o próprio ser
humano, criado por Deus à sua imagem. Se a

241
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 11.
criatura é o conjunto de alma e corpo, uma
criatura perfeita é aquela em que se harmonizam
totalmente esses dois elementos constitutivos do
ser. Assim, no equilíbrio entre a graça física e a
plenitude espiritual se baseia a obra de arte.242

Porém, essa harmonia entre corpo e alma, conteúdo e forma,


ansiada pela poeta, parece alcançável somente num mundo ideal, porém
inacessível diante das contingências mundanas e materiais. Mas, para
Henriqueta, se essa harmonia se esconde a esse mundo, ela pode talvez
ser encontrada no íntimo da poeta e na contemplação e criação estéticas,
segundo sugere em carta a Marie Wallis, em fevereiro de 1942:

O que escrevo é sentido, arrancado a meu íntimo


ser. Depois de cada livro, sonho escrever outro
melhor, mais pessoal, mais profundo. A arte deve
ser um sacrifício, mesmo porque a beleza é um
mistério. Ultimamente não é tanto a beleza que
me proponho alcançar, como a expressão de
minha vontade interior. Estarei menos mística,
embora fale menos em Deus e nos motivos
eternos? Talvez.243

De acordo com a pesquisadora Blanca Lobo, o ideal de felicidade


de Henriqueta não remete necessariamente a um mundo perfeito nem
depende de exigências materiais, mas pode ser encontrada na
contemplação estética dos elementos mais simples da natureza e do ser:

Henriqueta Lisboa fala duma vida em que a


felicidade é atingível. A felicidade encontra-se na
percepção da beleza, da suavidade e da força.
Podem estas qualidades ser encontradas nos mais
simples elementos - "a rosa, a coroa, a palavra
amor." Não há exigências materiais para o
conhecimento da felicidade. Contudo, torna-se a

242
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 77.
243
LISBOA, Henriqueta; WALLIS, Marie. Carta. Acervo de Escritores
Mineiros, carta de 19 fev. 1942.
gente cônscia da perfeição da beleza e da alegria
por meio da contemplação "do espírito, dos
sentidos e do coração." De modo que, a
capacidade de perceber jaz no íntimo de cada
homem. Se alguém se abre ao sentimento, pode
encontrar a perfeição que é alegria.244

Ao voltar-se para o seu interior, em busca de sua própria


originalidade, e atentar para as coisas simples do mundo material,
Henriqueta aparentemente encontrou um caminho para realizar a sua
poesia de modo mais pleno, sem que fosse necessário, para isso, trair as
suas convicções mais íntimas.

1.9 A amizade literária

Henriqueta procurava seguir atentamente as recomendações de


Mário, acatando quase sempre as sugestões que ele fazia sobre os seus
poemas e guardando apenas “umas poucas teimosias”.245 Segundo a
poeta mineira, até o início da amizade literária entre os dois, ela sempre
estivera “muito só com seus espectros”, pois não via ninguém com
autoridade e sinceridade suficientes para esclarecer as suas dúvidas.246
Ao longo dessa convivência epistolar, Henriqueta amadureceu
seu trabalho e preparou alguns de seus principais livros: Prisioneira da
Noite (1941), O menino poeta (1943) e A face lívida (1945), esse último
dedicado à memória de Mário. As notas de rodapé da edição da
correspondência indicam as alterações feitas pela poeta mineira em seus
poemas, atendendo às sugestões do amigo mais experiente. Após a
conclusão de cada novo conjunto de poemas, Henriqueta logo enviava
os originais a ele e aguardava ansiosamente os seus comentários. Ela
demonstrava muita confiança na capacidade crítica e analítica de Mário,
que logo se tornaria a principal referência para a sua poesia:

Uma palavra sua poderia fazer-me tanto bem!


Porque não me contentarei de realizar poesia

244
FILHO, Blanca Lobo. A poesia de Emily Dickinson e de Henriqueta Lisboa.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1973, p. 17.
245
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 20 fev. de 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 279.
246
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. Ibidem, 2010, p. 95.
senão de modo mais límpido e mais alto. Sempre
pensei que a missão do crítico fosse, acima de
tudo, orientar, desbravar caminhos, adivinhar
possibilidades. Não apenas explicar para o
público, testemunhar compreensão, dar notas ao
cabo de exames. Com você a crítica tem tomado
aspectos novos, que enchem a mocidade de
esperança. A preferência que denunciou entre
aqueles três poemas que submeti à sua apreciação
– lembra-se? – tem sido longamente meditada.247

Quando se conheceram, Henriqueta escrevia Prisioneira da Noite


e submeteu o livro inteiro à apreciação de Mário. Já na primeira carta à
poeta mineira, o escritor não se fez de rogado e elaborou uma longa lista
de problemas que havia identificado em sua poesia: a demagogia, a
retórica oratória, o tom didático e professoral, a “aula-de-catecismo flor
de laranja”, as conceituações morais, as ideias sentimentais, o
proselitismo, o preciosismo, o sentimentalismo, os juízos de valor, a
linguagem eloquente, a redundância, as exclamações, objurgatórias,
preces, enumerações. 248
Por outro lado, o carteador modernista elogiou o lirismo (as
imagens líricas, o tom lírico, a vagueza lírica), o ritmo, a força intuitiva
e antilógica da imagem, a pureza, a integralidade, a “necessariedade”
poética, a inspiração pós-inspiração, a espontaneidade pós-lapidação
técnica. Desse modo, são valorizados os elementos característicos e
singulares do lirismo, a busca pela especificidade e particularidade
poéticas, o domínio técnico conciliado com a fluidez e espontaneidade
da escrita.
Porém, Mário não queria impor a Henriqueta uma determinada
doutrina ou escola literária, e sim estimulá-la a exercitar a liberdade de
criação em busca de uma dicção própria. Por outro lado, havia sempre a
ressalva de que era preciso abandonar princípios cristalizados e técnicas

247
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. 31 dez. 1939. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 78.
248
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 84-87.
passadistas e atualizar a sua poesia: “o passado é lição para se meditar,
não para reproduzir”249.
Agindo assim, Mário corria o risco de se comportar como uma
espécie de arauto do Movimento Modernista, que protestava contra o
esteticismo, a teorização da arte pela arte, e buscava a libertação das
potências criadoras do homem. Prezando principalmente a liberdade
criativa, o movimento havia aberto o caminho para os poetas criarem
não apenas o próprio ritmo, mas também escolher os próprios
paradigmas estéticos, sem precisar seguir as diretrizes de uma escola ou
um grupo. Apesar disso, os grupos continuaram a existir, e havia o risco
de que os próprios escritores modernistas fossem canonizados.
Porém, nessa fase de sua vida, Mário já não aconselhava com a
mesma convicção e certeza dos primeiros tempos de modernismo,
quando era movido pela confiança desmedida e pelos arroubos da
juventude, optando por lançar um olhar mais crítico sobre as suas
próprias intervenções. Em determinado momento, ele percebeu que
deveria evitar mesmo a facilidade de seguir fórmulas e regras prontas,
dispondo-se a meditar sobre as especificidades técnicas trazidas por
cada poema que analisava: “Engraçado, ontem estive pensando: não é
que não possa haver reflexivos, e explicativos em poesia, até que pode.
Estou cada vez mais livre de regras e de normas. Parece que tudo tem de
ser resolvido caso por caso... Não acha?”250
A relação entre Mário e Henriqueta pode ser comparada com
aquela que se estabeleceu entre o escritor tcheco Rainer Maria Rilke
(1875-1926) e o jovem poeta Franz Kappus em Cartas a um jovem
poeta. De acordo com Marcos Antonio de Moraes, “a epistolografia
mariodeandradiana incorpora essa função pedagógica que é, ao mesmo
tempo, o desejo de doação e uma reflexão exaustiva sobre o próprio
saber”.251 Segundo o autor, a atitude de Mário teria mudado numa fase
mais madura de sua vida, distinguindo-se daquela assumida por Rilke,
pois enquanto o escritor tcheco assumia o papel de mestre, impondo-se
como modelo, o escritor modernista havia passado a adotar uma atitude
mais ponderada, mostrando-se mais crítico em relação aos próprios

249
ANDRADE, Mário. Losango cáqui. In: Poesias Completas – De Pauliceia
Desvairada a Café. Círculo do Livro, s/d, p. 33.
250
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 maio 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 255.
251
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 208.
pontos de vista. A militância combativa e doutrinária do início
movimento modernista cedia então lugar a uma postura mais comedida
e autocrítica: “Somente na casa dos trinta, Mário, seguro de si,
assemelha-se ao autor das Elegias de Duínio. Depois, a firmeza cede
lugar à angústia e ao escrúpulo de anular o interlocutor: “Já foi o tempo
em que eu teorizava com desenvoltura e uma estúpida segurança. Hoje
não sei mais”, escreve o escritor, em 1939.” 252
As cartas de Mário a Anita Malfatti escritas nos anos 1920, por
exemplo, trazem um Mário muito mais empenhado em difundir a
estética modernista. Embora ele tenha dito à pintora que, por mais que
os seus ideais estéticos se diferenciassem, a amizade permaneceria a
mesma253, Anita evitava discutir seu trabalho com o amigo, por receio
de que as divergências pudessem afastá-los. Após ter sido uma das
precursoras do modernismo brasileiro, já em 1924 Anita queria seguir o
seu próprio caminho, sem se submeter a escolas: “Estou clássica! Como
futurista morri e já fui enterrada. Não falo a rir não. Pura verdade, podes
rezar o ite in paix na minha fase futurista ou antes moderna pois nunca
pertenci a escola alguma”.254
Mesmo no final dos anos 1930, quando a militância do
movimento já havia amainado um pouco, Mário tenta convencê-la a
retomar a estética modernista:

Mas é tão difícil discutir arte com você,


principalmente sua arte! Você se encrespa logo,
pensa que gente tá querendo dar lição, quando se
trata apenas de discutir ideias. Você fala que o
artista é apenas um transmissor de beleza e que,
desejava ter um Debret e um Rugendas em casa
pois está “querendo fazer um quadro com o sabor
daquela gente”. Como você mesma diz. Ora eu
não concordo com isso, Anita. O artista não é

252
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 215-217.
253
Carta de Mário de Andrade a Anita Malfatti, 23 abr. 1926. Cartas a Anita
Malfatti, p. 99. Apud IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na
escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e
Mário de Andrade. Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de
Campinas, 2003, p. 102.
254
Carta de Anita Malfatti a Mário de Andrade, 23 fev. 1924. Apud Ibidem,
2003, p. 114.
“transmissor” de Beleza, é criador... Você é das
pessoas que mais conhecem pintura no Brasil.
Mas me parece que você se dispersa um pouco
muito no meio desses conhecimentos. Quero
dizer: em vez de fazer por si, você se propõe a
fazer o que conhece. Faz e faz com muita
habilidade, mas não é você e não é ninguém. É
puro exercício artístico, bem feito, mas de
qualquer forma, acadêmico: um saber aprendido
de cor. [...] E com essas escolhas ao léu das
simpatias de momento, você não estará caindo um
pouco na “arte pela arte”? Não se trata, Anita, me
entenda bem, de fazer “moderno”, cubismo,
surrealisme [sic] e coisas assim. Mas arte, que não
é só beleza, por mais pensada, é feita com carne,
sangue, espírito e tumulto de amor. [...]...Você foi
a maior vítima do ambiente infecto em que
vivemos. Todas as forças da cidade se viraram
contra você, ou inimigas, ou indiferentes. Até sua
família, me desculpe. E com isso você mudou de
rumo, consentida. Mas me diga uma coisa: a
mudança milhorou (sic) sua vida? Me parece que
não. E si você tivesse continuado... naquele
destino espontâneo que era o seu, porque nascia
da carne, você estaria rica? Por certo que não.
Mas, através dos obstáculos um consolo lhe ficava
....você teria sido você (...).255

Anita reage a essa carta com veemência, rechaçando o rótulo de


acadêmica e reivindicando a liberdade de fazer as suas próprias
escolhas:

Eu me encrespo com você, pra me defender, e


quando assim o faço, você não acha bom. Muitas

255
Carta de Mário de Andrade a Anita Malfatti, 1 abr. 1939. Cartas a Anita
Malfatti, p. 145-146. Apud IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na
escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e
Mário de Andrade. Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de
Campinas, 2003, p. 103.
vezes tenho ficado “louca da vida” com suas
bobagens. V. ainda não aprendeu que isto não
“reféce o amô? (...) Nunca fui acadêmica, ouviu,
seu malcreado? Essa conversa mole de “saber
aprendido de cor”, de “puro exercício artístico,
bem-feitinho” é literatice sua e nunca trabalho
meu!” (...) Foi uma página de bobagem e nada
mais[...] A força criadora, estrepitosa, Mário, não
é cousa nossa! Está em todas as sementinhas do
mundo, no universo todo, em todas as cousas
como em todos os indivíduos. (...) Não é cousa
que se encontre em estado latente só nos artistas!
Acho uma prepotência pensarmos que possamos
ser os únicos míseros privilegiados! Concordo,
com você, não somos apenas transmissores, esta
força é um dos fatores componentes de nosso
ser.256

Como observa Marilda Aparecida Ionta, comparando a atitude de


Anita principalmente com a de Henriqueta e Oneyda Alvarenga, a
pintora se posiciona diante das considerações de Mário com mais
firmeza que qualquer outra mulher:

Como se pode notar, Anita o contra-argumenta


com veemência, afirmando-se como mulher dona
de si mesma. Nenhuma outra mulher, e refiro-me
mais especificamente às que tenho pesquisado
(Henriqueta Lisboa e Oneyda Alvarenga), ousou
dizer ao “papa do futurismo” que ele “escreveu
uma página de pura bobagem e literatice”.257

Em 1940, mesmo já na maturidade, Mário participou como


membro do júri do Salão Oficial de Belas Artes do Rio de Janeiro e

256
Carta de Anita Malfatti a Mário de Andrade, 09 abr. 1939. Arquivo Mário de
Andrade, IEB, USP. Apud IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na
escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e
Mário de Andrade. Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de
Campinas, 2003, p. 114.
257
Ibidem, 2003, p. 125.
recusou o quadro de Anita intitulado Época da Colonização, para grande
desapontamento da amiga.
A postura pedagógica de Mário se manifestava, principalmente,
quando ele se correspondia com escritores mais novos ou menos
experientes, diferentemente do tom de igualdade que se estabelecia, por
exemplo, na correspondência com Manuel Bandeira, que se situava no
mesmo patamar intelectual e artístico que ele. Com Drummond, pelo
menos no início da carreira do poeta mineiro, a comunicação também
propiciava o “exercício de uma pedagogia consciente de sedução
intelectual”, com Mário procurando converter o escritor mais jovem às
suas crenças modernistas e propondo-lhe um “abrasileiramento” de sua
poesia.258
Drummond via nas cartas de Mário um sentido “menos estético
do que moral e pedagógico”, e observa que, a partir delas, “o professor
Mário de Andrade tanto corrige a apreciação errada de um episódio
vivido como aponta fraqueza de linguagem, de ritmo ou de concepção
na poesia do principiante”.259 Em “Suas Cartas”, o escritor mineiro
relata o desconforto que as intervenções do amigo podiam causar:

Quase sempre ele nos matava ilusões, e a morte


era tão completa que só podia deixar-nos
ofendidos e infelizes. Então, reagíamos com
injustiças, tolices, o que viesse de momento no
coração envinagrado. Mário recebia sorrindo essas
tolices, mostrava que eram simplesmente tolices, e
ficávamos mais amigos...

Henriqueta demonstrava uma reação bem diferente às críticas de


Mário: ela acatava quase todas as suas sugestões, mesmo quando
precisava suprimir poemas inteiros, e fazia questão de ler os
comentários do amigo antes de publicar os seus livros: “Retirei do livro
os dois poemas de que você não gostou, alguns de que eu não gostava, e
inseri novos; estes que lhe envio para censura. Diga-me alguma cousa

258
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 134.
259
Ibidem, 2007, p. 56.
sobre eles, Mário, porque ainda está em tempo de salvação. Enquanto
não tenho uma palavra sua fico desconfiada”260.
A atividade crítica e pedagógica de Mário teria sido, portanto,
mais contundente durante o Movimento Modernista, período em que ela
era exercida com sinceridade extrema e mesmo certo grau de crueldade.
O próprio escritor reconhecia que não tinha muitos pudores ao fazer as
suas críticas: “Dou opinião a torto e a direito, sem me amolar em ferir
almas delicadas, mudar talvez destinos e criar ressentimentos ou delírios
de grandeza errados”.261
Segundo Gilberto Mendonça Teles, a autoridade crítica de Mário
teria sido até mesmo um dos primeiros focos de desavença entre os
integrantes do movimento modernista. Como se nota em sua
correspondência do período, ele tentava submeter os textos dos
companheiros a um padrão de qualidade, talvez na tentativa de superar
os elogios fáceis, que se mostravam recorrentes no primeiro momento
modernista.262
A partir de 1938, Mário começa a colaborar como crítico no
jornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro. Segundo Marcos Antonio
de Moraes, “nesse momento, o julgamento literário do crítico tornava-se
exigente de forma, de ‘métier’, de perfeição expressional”263.
Assumindo a crítica como uma atividade profissional, o escritor
modernista então valorizava a técnica e se opunha a certo espontaneísmo
que identificava na literatura brasileira daquele período. Após as
liberdades formais conquistadas pelo Movimento Modernista, ele notava
que na chamada poesia social ou poesia de combate havia certo
descuido com a técnica artística, de modo que a ênfase no discurso
ocorria em detrimento da forma:

Para o autor de Pauliceia desvairada, o


experimentalismo modernista, decisivo para toda

260
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 out. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 125.
261
Carta de Mário de Andrade a Cassiano Nunes, 8 jan. 1944, recorte s. ind.
Bibliográfica (Coleção CAP. Série MEP. IEB-USP). Apud MORAES, Marcos
Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade.
São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, p. 215.
262
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro.
Petrópolis, Vozes; Brasília, 1976, p. 48-50.
263
MORAES, Marcos Antonio (org.). Mário, Otávio. Cartas de Mário de
Andrade a Otávio Dias Leite. São Paulo, Imprensa Oficial, 2006, p. 32.
uma geração de escritores, tinha também dado
ensejo ao cabotinismo de “artistas de improviso”,
ou seja, ao aparecimento de escritores
despreocupados do artefazer, muitos deles
levantando bandeiras em nome da “arte de
combate”. Mário, respondendo a entrevista de
Carlos Castelo Branco, colaborador de
Mensagem, condiciona a vitalidade da arte à
consciência técnica do artista. Recupera Dante,
Cervantes e Tolstói, exemplos de criadores de
“instrumentos de lutas”, pois “é justamente pela
beleza da exposição formal do seu pensamento
que eles adquiriram o valor de combate que
têm”.264

Merecer a atenção de Mário, ainda que fosse para receber


objeções críticas, podia ser considerado um elogio, uma vez que o
escritor modernista se mostrava muitas vezes bastante parcimonioso em
seus comentários sobre as obras dos jovens autores. Ao analisar o livro
de poemas de Octávio Dias Leite, por exemplo, ele não disfarça o
desapontamento com a falta de cuidado técnico e formal demonstrada
pelo jovem escritor e não se dá ao trabalho de analisar o livro
minuciosamente, como costumava fazer com a poesia de Henriqueta:
“Gostei do livro assim assim. É incontestável que você tem
sensibilidade poética, uma doçura lírica muito boa que ainda se
acentuou mais nestes Filhos de Deus. Mas antes de mais nada: você é
um desleixado da vida, que não faz o menor esforço pra se cultivar e se
realizar exatamente.”265
O escritor modernista fazia principalmente reparos de ordem
técnica à poesia de Henriqueta, sugerindo mudanças de palavras e
mesmo de trechos inteiros, às vezes sem dar explicação: “Só não gostei
de “Mamãezinha”, bem feito sempre, mas de um banal só banal mesmo,
fiquei desagradável”. Henriqueta excluiu o poema do livro, mas Mário,
numa carta seguinte, demonstrou nem se lembrar da objeção que havia

264
Ibidem, 2006, p. 32.
265
Carta de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite, s/d. MORAES, Marcos
Antonio (org.). Mário, Otávio. Cartas de Mário de Andrade a Otávio Dias
Leite. São Paulo, Imprensa Oficial, 2006, p. 89-90.
feito e recomendou a sua inclusão no livro, estimulando a amiga a
pensar por conta própria:

Fiquei desesperado (meu Deus! quanto exagero)


por você me contar que retirara a “Mamãezinha”
porque eu achara banal. Não faça coisa dessa,
Henriqueta! (...) Mas lhe peço por favor quando
retirar ou consertar alguma coisa, fazer sempre
isso por sua exclusiva vontade e responsabilidade.
Está claro: não tem nada como um amigo certo,
que vê as coisas da gente com carinho mas
severidade, pra abrir os olhos da gente e repor
nossas coisas na mesa. Se concordar, muito que
bem: jogue fora, conserte. Mas se não concordar,
sustente. 266

Mário costumava ler os poemas de Henriqueta com bastante


cuidado, repetidas vezes, antes de emitir uma opinião; ainda assim, ele
demonstrava preocupação com a possibilidade de cometer algum erro de
julgamento, levado pela suscetibilidade do momento: “Muitas vezes um
estado de ideias em que a gente está com paixão, um exemplo mau, um
estado de sensibilidade, uma fadiga momentânea, até um calo doendo,
pode me levar a um erro, a uma leviandade”267.
Mesmo trazendo um tom de leveza, as críticas de Mário à poeta
mineira eram feitas sem grandes pudores, dando nomes aos bois. Por
exemplo, ele considerou o poema “A Cidade mais Triste”, de
Prisioneira da Noite, “bastante pau e perfeitamente tirável”, por incorrer
no sentimentalismo e fazer um juízo moral: “Se você conservar isso,
brigo com você até a quarta geração. Não se esqueça que, em poesia, as
morais, as ideias sentimentais, as conceituações e os juízos devem ficar
pro leitor tirar... se quiser”.268
Henriqueta aceitou a sugestão para que mudasse o verso “deve
ser a cidade amaldiçoada de Deus”, de “A Cidade mais Triste”,
transformando a afirmação numa interrogação: “será alguma cidade

266266
Henriqueta acatou novamente a sugestão.
267
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 220.
268
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, p.
220, p. 87.
amaldiçoada por Deus,/ alguma nova Sodoma?” Mas manteve os dois
versos “quatrocentos caixõezinhos brancos, azuis, róseos,/ a caminho do
cemitério” e o verso seguinte, que o amigo considerara “vulgares depois
da magnífica revoada das quatrocentas alminhas subindo pro céu”.269
Ao criticar “Prisioneira da Noite”, embora tenha achado o poema
“ótimo”, Mário pede que Henriqueta tire o trecho ““ó vós que sabeis”:
“tire isso, tire isso! Fica feio e desnecessário”.270 Ele implica também
com os versos que diziam: “Sou a princesa esperando o menestrel”: (...)
“você é a mulher, MULHER, prisioneira da noite, Henriqueta! Você
inventou uma imagem lírica admirável e depois vai enfraquecê-la com
essa princesa boba e esse menestrel insuficiente? Tire isso, tire isso!”271
Mas o que Mário considerou “pior” foi o último verso, em que a poeta
dizia ter um encontro marcado com o destino: “Modifique isso,
Henriqueta, modifique senão brigo com você até a quarta geração. Diga,
sim, que tem um encontro marcado há longo tempo, tudo isso é lindo,
MAS NÃO DIGA COM QUEM!”272
Mário implica com rimas toantes no meio de versos brancos,
embates silábicos, repetição de possessivos, galicismos, falta de artigos.
Mas o problema principal, a seu ver, é a retórica oratória, o abuso da
eloquência, os pedagogismos: “O que eu percebo em principal, e isto me
parece um perigo muito grave é que, mais que pra oratória impulsiva e
natural você está caindo em sistematizações de processos oratórios,
exclamações, objurgatórias, o uso frequente do vocativo ohs!, ‘oh meus
irmãos!’ etc.”273
Mário percebia na poesia de Henriqueta uma proximidade com
poetas como Jorge de Lima, Murilo Mendes, Augusto Frederico
Schmidt e Adalgisa Néri, principalmente com a escrita do primeiro,
caracterizada pela “técnica de ajuntamento enumerativo de imagens –

269
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 87.
270
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 87.
271
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 87.
272
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 88.
273
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 89.
símbolos inesperados, em que o moderno se acotovela com o bíblico
(...)”274.
O escritor modernista não aprovava o retorno à poesia condoreira
em que teriam incorrido esses escritores da época. No artigo “A Volta
do Condor”, ele dirige a sua crítica contra a imagística eloquente e
“esfomeada de profundeza e dos grandes assuntos humanos”,
características que contrastavam com a poética do cotidiano e do
pitoresco próprios do projeto modernista. A sua implicância não era
propriamente com a presença de valores eternos nos poemas desses
poetas católicos, mas com o modo com que esses assuntos eram
abordados, criando uma falsa eloquência baseada na sistematização dos
processos dos autores principais dessa nova corrente condoreira:

O engano foi a sistematização dos processos


novos, a estratificação das receitas novas, e a
criação de uma falsa eloquência nova. Eloquência
bastante sutil, porque nem sempre clama e
discursa, mas consiste especialmente no abuso das
altitudes. (...) Mas o que há de mais perigoso, a
meu ver, é a sistematização dos assuntos enormes,
que teve como consequência desatenta a fixação
de um pequeno número de palavras enormes que
se fixaram com o valor de imagens-símbolos
enormes e são usados a torto e a direito.275

Mário chama a atenção de Henriqueta para o exagero de se elevar


as experiências pessoais a “valores eternos”, essencializando aquilo que
é contingente e transitório.276 E afirma ter certeza de que gênios como
Dante, Goya e Dostoiévski, ao escreverem as suas obras-primas, não
tiveram uma atitude preliminar de se sentar na escrivaninha e dizer:
“Bom, tenho que fazer um poema sobre qualquer dos valores

274
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 91.
275
ANDRADE, MÁRIO DE. Vida Literária. Pesquisa e int. Sônia Sachs. São
Paulo: Hucitec; Edusp, 1993, p. 220- 225.
276
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. Ibidem, 2010,
p. 221.
eternos”.277 Atitude em que incorreriam autores como Murilo Mendes,
Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima, com os quais Henriqueta
demonstrava certa proximidade.
Mário procurava estimular a amiga a encontrar a sua
originalidade, a expressão real de si mesma, pois acreditava que ela
estava seguindo Jorge de Lima muito de perto:

Olhe, Henriqueta: o maior conselho que dou a


você, no momento, é a meditação mais pensada de
um Manuel Bandeira (meditação da atitude
poética dele e não imitação dos seus processos),
de Carlos Drummond, de Oneyda Alvarenga, e
outros poetas assim, mais rigorosamente líricos
(no sentido de: expressão do seu peculiar, do seu
Eu indivíduo e inaceitável ao humano geral).
Talvez isso levasse você a um maior
descobrimento e utilização de si mesma.278

Henriqueta então pergunta a Mário se ela teria deixado de ser


sincera quando ampliou uma experiência pessoal, transfigurando-a em
uma visão de universo. Mário esclarece que não: “Isso é a própria
função da poesia, aquilo em que ela é Conhecimento, intuição
divinatória e definidora.” Mas chama a atenção para o risco de
transfigurar as experiências pessoais nos grandes assuntos essenciais
humanos (Deus, Amor, Morte, Vida). Para o escritor modernista, a arte
deveria ser um exercício cotidiano: “Mas sei que a arte é como fumar,
comer, corrigir suas provas de colégio, saudar o vizinho agradável e não
saudar o vizinho desagradável: um exercício cotidiano de vida.”279
O problema, nessa perspectiva, seria deslocar o foco da
experiência particular e cotidiana do artista para um ponto de vista
universal, colocando o geral em primeiro plano e tornando a poesia mais
conceitual, vaga e impessoal, em prejuízo de seu lirismo. Embora o
singular, o particular e o universal estejam em relação, como observa

277
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 222.
278
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abr. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 93.
279
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, s/d. Ibidem, 2010, p. 168.
Hegel, a estética modernista parece valorizar a experiência particular,
mais próxima da vida cotidiana e contingente. Cabe, porém, observar
que aproximar a poesia do cotidiano, em vez de buscá-la nos grandes
temas, nos valores eternos e nas questões espirituais, não implica,
simplesmente, esvaziar a poesia de todo conteúdo universal, mas sim
questionar a validade de uma abordagem que parte do geral para o
particular e faz uso de uma simbologia hermética, recorrendo-se a
abstrações impalpáveis e erráticas, em busca de exprimir uma
mensagem exterior ao poema e que não se realiza no poema.
A partir de sua experiência poética, um escritor pode,
eventualmente, alcançar um sentido mais universal; o problema seria
partir do universal, dos valores eternos, para o particular, e não o oposto.
Além disso, a obra de arte deve falar por si mesma, e não servir de
veículo para expressar um discurso exterior a ela, seja ele religioso ou
político: “E não quero que estas minhas considerações de forma alguma
prejudiquem a sua crença, a sua religião que acho linda e legítima.
Apenas, tenho para mim que o único lado em que a crença, a política, a
humanidade, a pátria, a nação, interferem no domínio da poesia pura, é o
lado da exaltação, do desvario, o misticismo”. 280
O próprio Edgar Allan Poe destaca a necessidade de atentar para
a sugestividade do sentido do poema, em vez de explicitá-lo, como na
abordagem didático-religiosa, pois isso poderia prejudicar o seu lirismo:
“É o excesso do sentido sugerido, é torná-lo a corrente superior, em vez
da subcorrente do tema, que transforma em prosa e prosa da mais chata
espécie a assim chamada poesia dos assim chamados
transcendentalistas.”281
Nesse sentido, podemos pensar que, para Mário, é a partir da
realização do poema em sua manifestação mais pessoal e particular,
mais singular e original, que se tem a possibilidade de torná-lo
universal. A implicância de Mário com Henriqueta e os poetas
neocondoreiros parece se referir à maneira como eles partem de uma
abordagem universal (os valores eternos), quando seria mais plausível
alcançar o Belo ou o universal a partir da própria experiência particular,
que, de todo modo, mantém relação com o universal.

280
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p.92.
281
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado.
São Paulo: Globo, 1999, s/n, 3. ed.
Segundo Adorno, o teor (Gehalt) de um poema não é mera
expressão de emoções e experiências individuais – pelo contrário, essas
só se tornam artísticas quando adquirem forma estética e conquistam sua
participação no universal: “a composição lírica tem esperança de extrair,
da mais irrestrita individuação, o universal”.282
Embora produzida pela individualidade do artista, essa
universalidade do teor lírico, contudo, é essencialmente social, inclusive
devido à mediação da linguagem: “em cada poema lírico devem ser
encontrados, no medium do espírito subjetivo que se volta sobre si
mesmo, os sedimentos da relação histórica do sujeito com a
objetividade, do indivíduo com a sociedade”.283 O autor defende que a
grandeza da obra de arte consiste em falar aquilo que a ideologia
esconde, ou seja, passar além da falsa consciência e da alienação.284
Adorno cita Hegel para lembrar que “o individual é mediado pelo
universal e vice-versa”. Para o filósofo, o sujeito deve esquecer a si
mesmo e se entregar à linguagem como algo objetivo, até que a própria
linguagem ganhe voz. Mas a linguagem, por outro lado, não deve ser
absolutizada enquanto voz do Ser, oposta ao sujeito lírico. Segundo o
autor, o instante do auto-esquecimento, no qual o sujeito submerge na
linguagem, não consiste no sacrifício do sujeito ao Ser nem se trata de
uma violência contra o sujeito, mas de um instante de reconciliação: “a
linguagem fala por si mesma apenas quando deixa de falar como algo
alheio e se torna a própria voz do sujeito. (...) senão, a linguagem,
convertida em abracadabra sacralizado, sucumbiria à reificação, como
ocorre no discurso comunicativo”. 285 Não apenas o indivíduo é mediado
socialmente, mas também “a sociedade configura-se e vive apenas em
virtude dos indivíduos, dos quais ela é a quintessência”. 286
Adorno observa que o Classicismo aspirava a uma objetivação do
subjetivo, assim como Hegel na filosofia, e tentava superar as
contradições da vida real dos homens através de sua reconciliação no
espírito, na ideia. Segundo ele, a persistência dessas contradições na
realidade, entretanto, acabou comprometendo a solução espiritual:

282
ADORNO, Theodor W.. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de
literatura I. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2012, p. 66.
283
Ibidem, 2012, p. 72.
284
Ibidem, 2012, p. 68.
285
Ibidem, 2012, p. 75.
286
Ibidem, 2012, p. 75.
Diante de uma vida desprovida de sentido, uma
vida que se esgota na azáfama dos interesses
concorrentes, uma vida que a experiência artística
percebe como prosaica; diante de um mundo em
que o destino dos homens individuais se cumpre
na obediência a leis cegas, a arte cuja forma dá a
impressão de falar em nome de uma humanidade
realizada converte-se em mero palavrório. O
conceito de homem que o Classicismo havia
alcançado se retrai, por isso, na existência privada
do homem singular, e também em suas imagens;
somente nelas o humano parecia ainda estar a
salvo.287

Após o lançamento de Prisioneira da Noite, Mário publica no


Diário de Notícias o artigo “Coração Magoado”288, em julho de 1941,
inaugurando assim uma fase nova de sua crítica, em que ele procura
discernir principalmente a psicologia lírica do autor e a qualidade
poética da obra. De acordo com o artigo, Henriqueta evita fazer, por
repúdio ”de instinto” e “grandeza de espírito”, qualquer confissão mais
aberta sobre os seus sentimentos e a sua intimidade em sua poesia.
Também não se permite “qualquer confissão mais diurna” ou “gritos e
antíteses violentas”, muito comuns na poesia feminina da época. O que
leva o autor a apontar na poesia da escritora mineira a presença de
sentimentos de renúncia e aceitação de sua prisão noturna, que ele
interpreta como comodismo e resignação, mas de modo um tanto
idealizado: “Há todo um esplendor, todo um arrebatamento, toda uma
felicidade sufocada com altivez, conscientemente”.289
Antes de publicar o artigo no livro de crítica, Mário pergunta a
Henriqueta se ela havia se sentido ofendida com o seu conteúdo, mas ela
se mostra contente com ele, reconhecendo a sua exatidão: “Você me faz
uma pergunta a respeito de ‘coração magoado’. É natural que haja em
mim certo constrangimento, não diante dessas palavras aplicadas ao
caso, evidentemente, mas sim diante dessa verdade que você enunciou e

287
ADORNO, Theodor W.. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de
literatura I. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2012, p. 82.
288
O artigo seria incluído no livro O empalhador de passarinho.
289
ANDRADE, Mário de. O Empalhador de Passarinho. São Paulo, Martins
Editora; Brasília, INL, 1972, p. 216.
que tinha obrigação de enunciar porque é toda a verdade da minha
poesia.”290
Mesmo nos poemas mais intensos de sua poesia, como aqueles
que abordam a morte, Henriqueta não se permite verbalizar algum
inconformismo, provavelmente por receio de contrariar a sua religião.
Percebe-se, antes, a presença de uma dor “churriando baixinho”:

Lábios que não se abrem, lábios


com seu segredo
calado.

Segredo no ermo da noite


resiste à rosa dos ventos
calado.

Flauta sem a vibração


do sopro.
Luar e espelho, frente a frente,
em calada
vigília.

Fria espada unida


ao corpo.

Resto de lágrimas sobre


lábios
calados.

Borboleta da morte
em sorvo
pendurada à flor dos lábios
calados
calados”.291

290
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. 09 dez. 1941. Ibidem, 2010,
p 161.
291
LISBOA, Henriqueta. “A Face Lívida”. In: A Face Lívida. Obras Completas.
São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 120.
Nessa nova fase de sua crítica, Mário não se limitava a observar
aspectos técnicos e estéticos dos poemas, mas fazia também uma análise
de caráter psicológico. Álvaro Lins, em carta a Mário, observa que o
escritor modernista considerava também em suas críticas a
personalidade do artista e o conteúdo humano, ao lado da realização
artística e estética:

Nos melhores capítulos de O empalhador de


passarinho, naqueles que foram escritos sobre
livros ou autores realmente significativos, vemos
que Mário de Andrade procura estudar
simultaneamente a personalidade do artista, o
conteúdo humano ou social da obra e a técnica
formal da construção. Não se detinha apenas no
exame do processo técnico, mas também não lhe
parecia que uma obra pudesse existir somente
pelo seu assunto (...). O que Mário de Andrade
procurava em primeiro lugar num poema ou num
romance não era o seu conteúdo, a sua ideologia
ou a tendência espiritual do autor, mas o caráter
artístico, a sua beleza, a sua realização estética.292

Nas críticas aos livros seguintes, os problemas nos poemas de


Henriqueta apontados inicialmente por Mário persistem, mas se
apresentam de modo muito mais esporádico. A poeta mineira parece ter
assimilado as lições de seu preceptor e adotado os critérios sugeridos
por ele, já que em O Menino Poeta e A Face Lívida ela recebe
principalmente elogios.
Para Mário, Henriqueta avançava no domínio técnico da sua
poesia, mas corria o risco de perder em fluidez e espontaneidade, como
um mágico que revela o segredo de seu truque. Ele defende que o poeta
deve buscar a espontaneidade pós-espontânea no processo de criação, ou
seja, a espontaneidade obtida após um longo trabalho de maturação e
lapidação do poema: “Atingir a verdadeira espontaneidade pós-

292
Carta de Álvaro Lins a Mário de Andrade, jun. 1944. ANDRADE, Mário de.
Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins. Apres. Ivan Cavalcanti Proença;
coment. José César Borba e Marco Morel. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983,
p. 27.
espontânea é que participa da técnica primorosa da arte, é a verdadeira
finalidade do artista.”293
Como exemplo dessa espontaneidade pós-espontânea, Mário
compara a fluidez de uma fábula de La Fontaine, planejada e reescrita
inúmeras vezes, com a música dos repentistas populares, que
supostamente improvisam seus versos, mas na verdade repetem
fórmulas prontas:

Uma fábula de La Fontaine, retrabalhada cem


vezes como sabemos, e onde não há uma palavra
impensada e fora do lugar, é, no entanto, flor de
espontaneidade, de leveza, de frescura
incomparável. Ao passo que os repentistas
populares ou não (os populares têm uma
necessidade social que os justifica) são às mais
das vezes de um amaneirado larvar. O amaneirado
é próprio da espontaneidade... espontânea, que é
feita duma porção fácil de hábitos e cacoetes
adquiridos.294

Para reforçar a importância do domínio técnico, Mário cita a


Filosofia da Composição, de Edgar Allan Poe, em que o autor defende a
necessidade de planejar todas as etapas do poema antes mesmo de
começar a escrevê-lo, como teria feito com seu poema “O Corvo”: “Há
muito cabotinismo ali, mas tem uma grande base de verdade. Obra de
arte não é suspiro nem espirro nem espinha, nem berruga. A sinceridade
em arte é criar a expressão mais esteticamente possível e não a
expressão espontânea”.295
Em seu ensaio, Poe procura pormenorizar os processos pelo qual
a sua composição – o poema “O Corvo” – atingiu seu ponto de
acabamento. O seu objetivo parece ser desconstruir a ideia de que a
criação se realiza por meio de inspiração onisciente, de uma espécie de
”sutil frenesi, de intuição estética”. O escritor propõe que se pense

293
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p 91.
294
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 91.
295
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado.
São Paulo: Globo, 1999, s/n, 3. ed. revista.
primeiro a estrutura do texto e a narrativa do enredo ou o
desenvolvimento do tema, antes mesmo de começar a escrevê-lo.
Pensando na unidade da composição, ele sugere que se comece a escrita
pelo epílogo:

Nada é mais claro do que deverem todas as


intrigas, dignas desse nome, ser elaboradas em
relação ao epílogo, antes que se tente qualquer
coisa com a pena. Só tendo o epílogo
constantemente em vista, poderemos dar a um
enredo seu aspecto indispensável de
consequência, ou causalidade, fazendo com que os
incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam
para o desenvolvimento de sua intenção.296

A criação literária, nesse sentido, é vista como expressão de uma


ideia previamente concebida, e não como um processo que se constrói
no próprio artefazer. Esse pretenso domínio da razão sobre o processo
de criação artística parece valorizar demais a intenção do autor, como se
houvesse um controle sobre toda a obra antes mesmo de se começar a
criá-la. Porém, na verdade, um texto muitas vezes se revela no próprio
processo de criação e traz soluções e caminhos não definidos com
antecedência pelo autor.
Para Mário, a poesia não se limita à expressão da sensibilidade ou
da razão instrumental, mas requer também o domínio da técnica
artesanal, que envolve um processo de lapidação e aprimoramento da
obra, a partir de uma ação consciente, que dignifica o artista: “o que me
enobrece não é ser vate, coisa que se é ou não se é. O que me enobrece,
o que dignifica é ser artista, é realizar, não a poesia, mas a obra de
arte”297. Nessa perspectiva, embora o primeiro momento da criação
possa ser visto como um orgasmo, em função de sua espontaneidade, o
processo integral da arte teria que ser completado com a meticulosa
gestação que se segue, até o parto e nascimento do poema.
Porém, Mário identificava na obra de alguns autores da época o
risco de buscar no domínio técnico um modo de driblar o confronto face

296
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado.
São Paulo: Globo, 1999, s/n, 3. ed. revista.
297
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. São Paulo, 30 jan. 1942.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 188.
a face com a criação. No artigo “Do cabotinismo” (1939), ele chama a
atenção para o modo como alguns escritores vinham desvirtuando a
técnica ao transformá-la em fórmulas e se apropriando das criações
alheias, buscando facilidades que falseiam o processo criativo:

Hoje o artista é um pobre de um incapacitado


vital, devorado por fobias insones. Quem não sabe
ganhar dinheiro com valentia, queixa-se da vida
em versos livres. Quem não tem coragem pra uma
declaração de amor, pinta Vênus e esculpe várias
amazonas complacentes.
Os artistas estão se tornando conscientes dos mil e
um cabotinismos que adornam a arte verdadeira.
Até isso do artista sacrificar grande parte da
própria espontaneidade e da própria comoção e
das próprias ideias em favor das ideias e
comoções alheias: cabotinismo.
Arnold Bennet, já tivera, aliás, um precursor de
semelhante impertinência em Edgard Poe (sem
falar dos psicólogos da arte...) quando este, num
ensaio célebre e irritante, estudou a confecção de
“O corvo”...
O artista perfeito nunca perderá de vista o seu
público, e isto é cabotinismo. O artista completo
jamais perderá de vista a ambição de se tornar ou
se conservar célebre, e tudo isto é cabotinismo.
Inda tem outras ideias que desnaturam a beleza
ideal do artista e provocam a criação das obras de
arte. Por exemplo: a rivalidade, a luta pela própria
subsistência, a inveja, a vaidade sexual.298

Para Mário, o processo de criação artística envolve um momento


de “possessão voluntária” ou “estado de poesia”, que corresponde ao
momento livre da criação poética, e uma fase posterior de “superposição
intelectual”, o trabalho de revisar e lapidar a escrita. Segundo o escritor,
o fenômeno integral da arte nasceria do inconsciente e seria
complementado pelo raciocínio e discernimento moral do homem

ANDRADE, Mário de. “Do cabotinismo”. In: O Empalhador de Passarinho.


298

São Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 69.


consciente. Ao mesmo tempo que valoriza a criação consciente, ele
parece buscar no “estado de possessão” poética um estado de
consciência que rompa com a lógica instrumental e a linguagem
convencional e dê vazão às forças do lirismo e do inconsciente:

Como “preparo” o estado de possessão? Pelos


meios aqui sabidos, não inventei nada. Escolha
muito pensada do assunto, notas tomadas por
escrito, projetos formais, um verso que surge
sozinho e fixa um ritmo, pensamento constante,
andar a pé sozinho e principalmente de noite nos
bairros longínquos, ler poesia muita, álcool sem
excesso. E se sair que saia. Centenas de vezes não
saiu.299

O fluxo do inconsciente possibilitar-lhe-ia lidar com a linguagem


de modo distinto do convencional, rompendo com o uso instrumental
das palavras e acessando formas mais ricas de significação. Esse “estado
de possessão” parece estar relacionado com a busca de romper com a
razão instrumental e alcançar um estado alterado de consciência: “O
‘estado’ do ‘Grã Cão de Outubro’ durou talvez uns vinte dias. É verdade
que, neste caso, ainda se poderá explicar a possessão pelos excitantes
externos em que me chafurdei, sexo, álcool, comidas violentas, desgaste
físico”.300
A concepção de poesia de Mário pode ser resumida na fórmula:
“Lirismo puro + Crítica + Palavra = Poesia”.301 Segundo o pesquisador
Luciano Costa Santos, “A Escrava” teria sido formulada em
consonância com as ideias do escritor belga Paul Dermée (1886-1951),
tendo como proposta a livre pulsão do lirismo inconsciente e a criação
feita a partir da própria poesia, e não de deliberações preconcebidas pelo
poeta:

299
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 188.
300
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. Ibidem, 2010,
p. 188
301
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 4.
Em A escrava que não É Isaura, Mário, no rastro
de Paul Dermée, sustenta que o moto originário da
arte consiste em uma espécie de pulsão criadora
que brota da inconsciência: a pulsão automotriz e
indômita, transcendente ao sujeito. Mário a
denomina “moto lírico”, ou “lirismo”.
(...) nessa perspectiva radical retomada pelos
modernistas, a tarefa do poeta é pensada não
propriamente como um fazer poesia, mas como
um deixar a poesia fazer-se no espaço da criação.
Sem enfeites e sem vergonha (...).302

Em carta a Henriqueta, Mário conta que o poema “Danças” foi


escrito em “estado-de-poesia” e saiu já quase pronto, de modo que ele
quase não precisou lapidá-lo depois, evitando assim o risco de quebra de
espontaneidade:

Uma noitinha, depois da janta, eu estava


perfeitamente em mim, sem nenhum desespero da
vida, nenhuma amargura, nenhum cinismo. Pelo
contrário, estava tão bom e gostoso que fui até a
sala (andava preocupado com Schumann), não
com a vida, só com a música dele aqueles dias),
abri o piano e principiei tocando as Danças da
Liga de Davi que gosto mas não muito. Não foi
possível, depois da terceira ou quarta dança fiquei
tão inquieto, tão impulsionado, tinha que escrever
umas danças, me passaram “eruditamente” pela
cabeça Amy Lowell que quisera traduzir os ritmos
coreográficos com poesia modernista, e também
Casemiro de Abreu na “Valsa”. Mas já não
lembrava mais nada, vim pra esta secretária e
escrevi de uma vez só as minhas “Danças”.
Agora o mais delicioso pra mim é que este poema,
evidentemente dos mais “trabalhados”, dos mais
virtuosísticos de toda a minha obra (não nego que
eu use e abuse mesmo da virtuosidade às vezes),

302
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 29.
esse poema foi dos raros que ficaram quase
integralmente na primeira versão. Terei corrigido
umas vinte palavras ao máximo pra clarear
imagens, formar ritmos. Não acrescentei uma só
imagem, uma só ideia, que me lembre. Só o
último dos números me lembro que modifiquei
bastante, tirando coisas inúteis. (...)303

Processo semelhante teria ocorrido durante a escrita de “Rei dos


reis”, de Lira Paulistana, em que Mário mudou, num segundo
momento, algumas palavras do verso final, mas manteve
provisoriamente os versos escritos inicialmente em “estado de poesia”
como referência, para evitar que, ao lapidá-los, o pensamento crítico
prejudicasse o estado de poesia e a fluidez do poema:

No final da segunda estrofe entreparei. A primeira


noção foi terminar o poema só com uma terceira
estrofe sobre a criança, o futuro infantil, "rei dos
reis". Mas repudiei imediato o lugar-comum, "a
criança é que governa" que não sei quem falou e
não falou por essas palavras. Mas entreparei
apenas. O plutocrata, rei dos reis atual, se impôs, e
me deu uma grande raiva interior. Raiva que
resultou na quarta estrofe, única que senti
dificuldade em construir. Dificuldade ainda não
solucionada. E você compreenderá por que
substituí o "caralho" por demais violento da
primeira versão. Sabia que era insustentável desde
que o escrevi. Mas escrevi pra evitar, no fazer,
qualquer quebra de espontaneidade. Nem tanto
por causa da espontaneidade, que não tenho o
menor gosto ou respeito pela espontaneidade
"espontânea", mas porque o pensamento crítico

303
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 de janeiro de 1942.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 186.
mata sempre o estado de poesia. Deixo sempre,
em casos assim, pra corrigir depois.304

Uma crítica que pode ser feita ao esquema de Mário para o


processo criativo é que ele compartimenta as diferentes fases, separando
o instante da criação daquele de crítica e discernimento técnico e
racional, cabotinamente atribuindo à manifestação do inconsciente e do
estado lírico de poesia uma independência com relação à vontade do
escritor: “Em verdade não há uma só poesia minha publicada em livro (e
mesmo em revista, sendo feita depois de 1922) que não tenha sido
escrita fatalizadamente, em pleno ‘estado de poesia’. A infinita maioria,
em verdadeiro estado de transe, de possessão”.305 Mas, como o próprio
Mário indica, esse estado de poesia muitas vezes é induzido pelo próprio
escritor, e os poemas são depois corrigidos e lapidados por ele. Outras
vezes, o poema surge a partir de alguma ideia que ocorre ao poeta e de
um planejamento cuidadoso da estrutura do poema, como propõe Edgar
Allan Poe, em Filosofia da Composição. Além disso, a lapidação do
poema ocorreria, segundo a sua formulação, em um momento em que o
poeta não está mais em seu “estado de possessão”, de modo que ele
precisaria resolver as questões formais a partir de sua capacidade técnica
e analítica, o que poderia levar à quebra de ritmo e fluidez do poema.
Numa concepção menos esquemática, podemos pensar que essas
diversas fases da criação se complementam e podem ocorrer em
momentos alternados ou simultâneos – ao lapidar conscientemente o
poema, o poeta ainda pode ter uma interferência do lirismo, dos
impulsos do inconsciente e das exigências da matéria-prima, por
exemplo. Como observa o próprio Mário, em carta a Drummond, é
preciso buscar um equilíbrio entre as escolhas conscientes e as
manifestações do lirismo inconsciente:

Tudo está em conservar o equilíbrio da liberdade.


Eu quando escrevo quase nunca "surge" a
correção imediata, pra não prejudicar a corrente
do que está vindo, em geral deixo a correção pra

304
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 23 jul. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, s/p.
305
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 184.
depois. Neste depois, sim, insisto em buscar a
correção, mas espero que ela "surja" e eu decidir
pelo melhor. Na "Louvação da tarde" tem um
alexandrino no meio dos decassílabos. Deixei
como saiu. No "Quarenta anos" me tinha sucedido
a mesma coisa. Mas surgiu versão melhor e exata
que preferi.306

Um poeta pode passar anos em busca da melhor solução para


determinado poema e modificá-lo várias vezes, mas corre sempre o risco
de que o resultado final venha a parecer uma colcha de retalhos, em
função da perda da espontaneidade. A reação de Sérgio Buarque de
Holanda ao poema “Danças”, de Mário, ilustra a dificuldade que
envolve a “superposição intelectual”. Em carta ao amigo, ele confessa
não ter gostado das alterações que tinham sido feitas no poema,
publicado inicialmente na revista Estética e depois, em uma nova
versão, em Remate de Males:

Não sei se está certo quando imagino que você


consegue espontaneamente realizar aquelas coisas
deliciosas. Não que exalte em tese a
espontaneidade – essa exaltação parece-me até,
ser o grande defeito dos escritores brasileiros –
mas porque não vejo vantagem nem felicidade em
nenhuma das alterações que você faz em seus
poemas. É possível que se trate de uma ilusão de
ótica de minha parte, mas vejo-me essa impressão
comparando imparcialmente a versão atual das
Danças com a que saiu em Estética. Sinto que
você violou um direito. As Danças já não
pertenciam mais a você para tratá-la com essa
sem-cerimônia.307

306
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 24 ago. 1944.
A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de
Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 217.
307
Carta de Sérgio Buarque de Holanda a Mário de Andrade, Rio de Janeiro, 10
mai. 1931. MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade/ Sérgio
Buarque de Holanda: Correspondência. São Paulo: Companhia das Letras /
Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) / Edusp, 2012, p. 100.
Henriqueta também valorizava a importância do conhecimento
técnico e da atitude consciente na criação artística: “Ando pensando em
Ravel que, antes de iniciar a composição, calculava o esforço do salto,
media a altura do trampolim, deduzia a temperatura da água, controlava
a elasticidade muscular. Isto sim me parece essencial, a atitude
consciente”308.
Henriqueta era muito elogiada justamente pelo domínio técnico e
pela perfeição formal de seus poemas. Ao analisar o poema “Repouso”,
que achou “uma delícia”, Mário chama a atenção para o modo como a
poeta mineira tinha conseguido manter a espontaneidade, com uma
“frescura de inspiração pós-inspiração”, mesmo com toda a
complexidade técnica envolvida: “Repare que o problema de técnica que
você se deu, apesar de preciosístico, você o venceu com enorme
habilidade e só ficou uma frescura de inspiração pós-inspiração. Ficou
tão... espontâneo! Apesar do preciosismo das rimas em consoantes
finais! Eis um caso em que você deve matutar muito, porque útil.”309
Por outro lado, como veremos a seguir, havia o risco de que o
domínio formal de Henriqueta se tornasse uma facilidade prejudicial à
criatividade, caso ela se deixasse levar pela repetição de modelos e pelo
mero virtuosismo.

1.10 A cristalização poética

Ao escrever O Menino Poeta, livro inicialmente chamado de


Caixinha de Música, Henriqueta envia novamente os poemas a Mário, à
medida que vai produzindo. Mas, dessa vez, a escritora mineira recebe
muitos elogios e poucas ressalvas do amigo, que já percebia uma
ascensão em sua escrita: “Você está fazendo uma poesia notavelmente
lúcida. A sensibilidade já não fica mais, nestes versos, em estado puro
de sensibilidade. Se converte sempre a um estado menos profundo na
aparência, mas superior em completamento humano, de inteligência
lógica, ou melhor: de inteligência consciente.”310

308
Carta de Henriqueta a Mário de Andrade, 04 fev. 1942. SOUZA, Eneida
Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 191.
309
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 17 abr. 1940. Ibidem, 2010,
p. 90.
310
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 nov. 1941. Ibidem,
2010, p. 174.
Henriqueta havia ficado em dúvida se os poemas de O Menino
Poeta eram mesmo infantis. Essa questão nunca ficou muito clara para
ela e nem para Mário, e depois veio a gerar dúvidas mesmo entre os
críticos. A poeta mineira afirma não acreditar em uma poesia
especificamente infantil, definindo os versos de O Menino Poeta como a
tentativa de uma poeta adulta de se reencontrar com a sua própria
infância: “Não sei se serão, de fato, versos para crianças. Escrevo-os
com todas as minhas reservas de puerilidade e embevecimento diante da
vida”.311
Para Mário, talvez não fosse tão importante definir se os versos
eram para crianças ou adultos ou se poderiam interessar a ambos: “Sou
incapaz de decidir se é livro infantil, embora, se eu fosse imperador,
decretasse imediatamente que ficavam abolidos todos os livros
nacionais de poesia infantil, só sendo permitido o de você”312. Porém, ao
comentar o livro, ele elogia o virtuosismo formal, como os ritmos com
“pés quebrados”, recurso rítmico de certa sofisticação, que talvez seja
mais acessível aos leitores adultos e letrados:

Seus versos me deixam num estado de


encantamento por tudo isto mesmo e que não sei
explicar logicamente. Me dão a sensação da
criança e é dizer tudo. Mesmo porque saberei
dizer pouco mais. Sei que o livro todo tem uma
graça leve de ideias e de imagens, que é uma
delícia. A rítmica é também de uma segurança
graciosíssima, em especial nas surpresas de “pés
quebrados”. Nisso você alcança muitas vezes
invenções admiráveis de liberdade e certeza. E a
dicção é suavíssima, tem cor de criança, cheiro de
esperança, gosto de ilusão.313

311
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 9 de outubro de 1941.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 169.
312
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 22 jan. 1943. Ibidem, 2010,
p. 241.
313
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 209.
Márcia Hávilla Mocci observa que foi Henriqueta Lisboa quem
começou a questionar a tendência pedagogizante da poesia infantil
brasileira, que perdurou por quase 50 anos, por intermédio do livro O
menino poeta, que apresenta características distintas da corrente
pedagógica e valoriza mais o literário em detrimento da educação
moral.314
Segundo a pesquisadora, fazendo amplo uso das comparações e
metáforas, Henriqueta procura fugir ao modelo de poemas narrativos e
descritivos utilizados até então. Entretanto, para Mocci, “a obra de
Henriqueta ainda apresenta uma visão adulta da infância, o que é
natural, pois reflete a concepção de infância da época e que só vem a ser
totalmente rompida algumas décadas adiante”.315
A autora informa ainda que o chamado paradigma estético da
poesia infantil brasileira, em que o eu poético adota o ponto de vista das
crianças, surge apenas a partir de 1960, quando ocorre a ruptura efetiva
da poesia infantil com a tradição didática, a partir das obras de Cecília
Meireles e Vinicius de Moraes:

Esses autores exploram com maestria os temas e


os recursos formais imprescindíveis à poesia
infantil: as onomatopeias, as repetições, os
paralelismos, a musicalidade, a combinação de
diferentes métricas, os versos livres, as rimas, as
aliterações e as assonâncias entre outros.316

Ainda segundo a pesquisadora, a partir da década de 1980, os


autores que se dedicam a escrever poesia para crianças, como José Paulo
Paes, Elias José, Roseana Murray e Sérgio Capparelli, privilegiam o
ludismo em suas obras e podem ser considerados representantes do
paradigma lúdico na poesia para crianças.317
Demonstrando intimidade com a literatura infantil, Henriqueta
viria a organizar, nos anos seguintes, quatro coletâneas de poemas para
infância e juventude: Antologia poética para a infância e a juventude

314
MOCCI, Márcia Hávilla. A poesia infantil brasileira: Recorrência de temas
e formas. Tese de doutorado. Maringá: Universidade Estadual de Maringá,
2015, p. 36.
315
Ibidem, 2015, p. 36.
316
Ibidem, 2015, p. 36.
317
Ibidem, 2015, p. 36.
(1961), Literatura oral para a infância e a juventude (1969), Antologia
escolar de poemas para a juventude (s/d), Antologia de poemas
portugueses para a juventude (2005).
Mário faz poucas objeções ao livro O Menino Poeta, a maioria
por questões bem pontuais. Nos poemas “Aquário” e “Arco-Íris”, ele
reclama da “horrível construção afrancesada ‘enquanto que’, que lhe
“suja o ouvido”, e sugere que a amiga mineira evite a elisão nas sílabas
“brincam-gaivotas”, de “Estrelinha do Mar”. Também corrige a grafia
de “almerão” por “almeirão”, no poema “Hortelão”, e sugere a
substituição da palavra “saliva” pela frase “Dão água na boca”. A poeta
mineira acatou a todas as recomendações. 318
Auxiliada por Mário, Henriqueta ia adquirindo domínio técnico
cada vez maior e escrevendo com muita lucidez, densidade e concisão.
A poeta dividia-se, então, entre a criação dos poemas infantis de O
Menino Poeta e os poemas adultos de A Face Lívida. “Quanto a mim –
aqui nesta solidão – já retomei o fio da meada e vou dando conta de uns
poemas bem sérios. Escrevo às vezes com uma facilidade torturante.
Receio que seja preguiça, trabalho sobre a forma espontânea e volto
depois a ela.”319
Mário afirma que os poemas inéditos de Henriqueta, que seriam
incluídos em A Face Lívida, pertencem à plenitude de sua obra,
destacando o domínio técnico e a densidade lírica:

Coisas admiráveis de concisão, densidade, e ótimo


legítimo estado-de-poesia. E, o que é mais
importante, estado de poesia que interessa muito,
que prende a gente e me encanta. (...) Mas não é
só como estado de poesia, concisão, densidade
lírica, interioridade, riqueza de simbologia,
vocabulário pessoal, que você atinge a plenitude
agora. Já lhe falei em carta, a técnica também me
parece que atingiu essa plenitude.
O valor da palavra, o valor dos ritmos está tudo
utilizado também com uma precisão admirável, já
falei, é cristal. Sobretudo nos versos curtos, de

318
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 209-210.
319
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 10 abr. 1942. Ibidem, 2010,
p. 204.
poucas sílabas, medidas ou não. Você tem até um
jeito de ir medindo, medindo, e de repente
concluir com um verso fora do ritmo e menor que
os outros, que acho uma verdadeira delícia
rítmica.320

Para o escritor modernista, A Face Lívida é o melhor livro de


Henriqueta: “Você já sabe o que penso destes versos, e a leitura do
conjunto assim, aumentou a minha admiração. A Face Lívida é da
poesia mais pura, enquanto poesia, que já se fez no Brasil.”321
Ele observa, porém, que apesar de Henriqueta ter conseguido se
libertar de certa impessoalidade a-volta-do-condor que ainda havia em
grande parte de Prisioneira da Noite, ainda persistiria em A Face Lívida
certa conceituosidade de professora católica, embora já sem misticismo:

São certas poesias em que no fim, como se fosse


fábula com moralidade, você termina com um
conceito ou coisa de alguma forma assimilável a
um conceito. Ora o perigo poético de você, é que
como quem interfere na sua conceituosidade é
uma professora e uma professora de espírito
religioso (e sem misticismo, entenda-se!) sucede
com muita frequência que o conceito fica conceito
lógico, conclusivo, conselho, moralidade
fabulística, e, embora quintessenciado, muito
elevado e quase sem traço, um pouco festinha-de-
colegio-conspícuo. É um mal? Não chega a ser
um mal, tem coisas desse gênero que, você verá,
achei ótimas, mas é um perigo. Quase sempre
prejudica a validade lírica e livre da poesia.322

320
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 jan. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 276.
321
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 out. 1944. Ibidem, 2010,
p. 307.
322
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 jan. 1944. Ibidem, 2010,
p. 275.
Após ler dois dos novos poemas de Henriqueta, publicados no
jornal carioca A Manhã, Mário elogia o poema “Imagem”, que seria o
melhor dos dois publicados, mas pede que ela mude a explicação feita
no estilo conceituoso que identificou nos últimos dois versos:

(...) ficou me doendo no coração, na música, no


pensamento, no ritmo, não sei onde. Questão dos
dois últimos versos “Flor azul /De que sou apenas
a imagem”. Essa “explicação me doeu muito.
Ficou reflexivo, didático, explicativo, “aponta-
m’a no mapa”, me prejudicou muito o encanto em
que estava. E cada vez que o releio a sensação é a
mesma. Por favor, arranje isso.323

Mário criticava os poemas com propriedade, e às vezes até


sugeria soluções para os problemas que encontrava. Por exemplo, ele
sugere que o verso “Parte integrante do cotidiano”, de “Elegia”, seja
substituído por algo menos conceitual, pra não prejudicar o lirismo:

O seu poema é lindo, dos mais belos desta fase em


que você está, uma perfeição. É denso, muito
denso. Só tem um verso que eu, se fosse você,
modificava pra evitar o excesso de pensamento
lógico, de reflexão exclusivamente prosaica que
existe nele, e que não tem razão nem motivo
dentro de lirismo livre que todo o poema respira e
transpira. Nem pra contraste serve, de tal maneira
ele é mesquinhamente bem-pensante. É aquele
“parte integrante do cotidiano”. Você tem de
arranjar um jeito de dizer isso mas... Mas qualquer
coisa que não seja tão pensadamente prosaico.

“A morte pertence à vida,


Parte integrante do cotidiano”!

Você sente o homenzinho querendo explicar o que


está dizendo: “A morte pertencia à vida, isto é,
quero dizer, prestem bem atenção, era por assim
dizer uma parte integrante do cotidiano,

323
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 mai. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 255.
entenderam bem?” Arre! Fica detestável. O 1º
verso aí está ótimo, é fundamental mesmo no
poema, corresponde ao

“De então a vida


Pertence à morte”.

Que termina a 2ª parte e abre o final em allegro


grazioso pra três flautas e dois violões.
Não sei como fazer, se arranje, mas não deixe esse
verso não. Talvez tirar duma vez e deixar só o 1º
verso mas convertido em dístico pra fazer
pendante com o que vem depois:

“Então a morte
Pertencia à vida
De então a vida
Pertencia à morte”.

Assim já ficava bem melhor. Mas carecia, nesse


caso substituir o “então” que vem na estrofe que
segue logo, no 1º verso: “Foi então que o raio”.
Enfim se arranje e mande me contar como que
fica. Pra eu incluir no meu seu livro de poesias
inéditas.324

Henriqueta, em uma de suas poucas “teimosias”, optou pela


seguinte solução, mantendo a palavra “cotidiano”:

Nesse tempo a morte


pertencia ao cotidiano.

Foi então que o raio


Caiu sobre o cedro.
(...)
De então a vida

324
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. de 1945. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 318.
Pertence à morte.325

Apesar de considerar que Henriqueta estava alcançando um


domínio técnico de sua arte, ele chama a atenção para o risco de que, ao
atingir uma “cristalinidade” e “perfeição clássica”, sua poesia viesse a
incorrer em perda da “fluidez de valor compreensivo das palavras”:
“Enfim, dona Henriqueta, gostei muito da sua poesia nova. Mas tome
cuidado em não perder o equilíbrio e não intelectualizar demais os
estados de sensibilidade, que entre o clássico e o frio, entre a perfeição e
o impassível, a distância é mínima”.326
Mário percebe também que Henriqueta estava pecando por
excesso de formalismo e protesta contra a sistematização e perda de
naturalidade do verso livre que observara na sua poesia. Segundo ele, o
verso livre da poeta mineira deixava transparecer a disciplina rude e
inflexível do verso medido, que seria incompatível com a sensibilidade
de sua época:

Na verdade o verso-livre é uma resultante natural


e necessária de uma tendência “expressionista” do
ser. É tecnicamente muito difícil a gente chegar a
esse verso não mais livre exatamente, mas
libertado que você está fazendo. E que me parece,
na fase moderna em que vivemos, o que mais
possibilidades apresenta de atingir uma
serenidade, um equilíbrio, uma perfeição clássica.
(...) Por minhas experimentações, me parece que o
melhor é mesmo esse verso libertado, como
Carlos Drummond de Andrade fez em numerosos
dos seus poemas, porém com outras intenções e
ideais que não os de equilíbrio que me parece o
seu caso e foi o meu.327

325
LISBOA, Henriqueta. “Elegia”. In: A Face Lívida. Obras Completas. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 154.
326
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. São Paulo, 20 nov. 1941.
SOUZA, Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, p. 174.
327
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 20 nov. 1941. Ibidem,
2010, p. 172.
Em outra carta, Mário volta a usar o termo “cristalização” para
definir a poesia da amiga e elogiar a perfeição formal alcançada: “Você
está azul, numa tal cristalinidade de arte, conseguindo de tal forma
revelar estados em poesia, a palavra estala de leve, como certos estalos
das borboletas, uma coisa linda”328.
Henriqueta dessa vez problematiza, embora timidamente, os
comentários feitos pelo amigo, vendo no “estado de cristalização total”
obtido pela técnica e pelo discernimento lógico, ou seja, pela
“espontaneidade não espontânea”, um obstáculo à fluidez e
espontaneidade do poema: “Será mesmo fatal, isso? O termo
cristalização exclui qualquer ideia de fluidez. Mas a poesia não é
ilógica? A arte não é às vezes o resultado de uma tentativa absurda? E
eu – não estarei dizendo tolices presunçosas?”329

1.11 O silêncio da crítica

Henriqueta se mostrava desapontada com a pouca atenção que


seu livro O Menino Poeta havia alcançado junto aos críticos, ao menos
no período após o seu lançamento. Embora pudesse contar sempre com
a referência crítica de Mário, que afirmava considerar a mais importante
de todas, a poeta mineira confessou ao amigo que sofria com o modo
como sua poesia vinha sendo ignorada pela crítica da época:

Farei uma obra digna da sua assistência, que é a


minha recompensa mesmo. Os outros... às vezes
me ocorre pensar neles, naturalmente penalizada
com o silêncio – digamos – de Tristão de
Ataíde330. (...) Não que eu esperasse dele (costumo
ver claro) qualquer sugestão para a minha poesia.
Esperava apenas alguma consideração – o

328
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, Reis, 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 180.
329
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade. 9 dez. 1941. Ibidem, 2010,
p. 177.
330
A referência a Tristão de Ataíde provavelmente se deve ao fato de o crítico,
muito prestigiado na época, ter se convertido ao catolicismo, fazendo com que
Henriqueta passasse a esperar dele alguma atenção à sua poesia, em função da
afinidade religiosa.
cumprimento de um dever dele, creio. Mas isso
para mim nada tem de essencial.331

Ainda que não quisesse se deixar afetar pelo silêncio da crítica


com relação à sua poesia, Henriqueta acaba por confessar que o fato de
ser ignorada por seus pares a incomodava bastante: “Sei que uma cousa
é êxito e outra, valor. Só uma graça peço a Deus: que esse silêncio, que
eu sinto como aguda ironia, não me atinja o ser moral; que eu possa
compreender e admirar sempre mais a obra alheia; que não acuse a
ninguém. Deve haver uma explicação natural para isso”.332
Para Mário, o silêncio da crítica com relação ao livro O Menino
Poeta se devia ao fato de Henriqueta não pertencer às linhas gerais da
crítica de poesia brasileira e pela dificuldade de categorizar a sua obra:

E os críticos! O que fazem os senhores críticos que não


escrevem sobre você! Está havendo, sem querer, uma
verdadeira “conspiração de silêncio” em torno do Menino
Poeta, pelo menos dos críticos que eu sigo, o Sérgio
Milliet, o Antonio Candido, o Álvaro Lins e o Guilherme
de Figueiredo. Mas Henriqueta, eu tenho a certeza que
esse silêncio indica muito, estão perplexos, e com mal-
estar. Na verdade carece ter uma alma muito, não digo
pura, mas doida, solta, indefesa pra gostar, não só de você
que é doida, solta e indefesa, mas especialmente do
Menino Poeta. Eu mesmo que adoro o livro, fico
“criticamente” atrapalhado pra falar, não consigo
exatamente saber, nessa revoada tão tênue e sutil de
lirismo, qual foi sua intenção. E a crítica precisa, olé,
explicar as intenções... Eu creio que já falei uma vez pra
você, você não é poeta pra ser muito apreciada pela crítica
não. A crítica faz questão de ser por demais inteligente, e
você não é muito lá fácil de perceber sem uma adesão
apaixonada. Apaixonada aqui, não exclui clarividência,

331
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 4 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 191.
332
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 20 fev. 1944. Ibidem, 2010,
p. 279.
pelo contrário, é ela que dá clarividência. Às vezes fico
meio irritado por “respeitarem” você e não lhe darem o
lugar que você merece, mas logo fico maliciento, com
vontade de rir dos outros. Na verdade você não pertence
às linhas gerais da crítica de poesia nossa, nem dos seus
problemas e intenções, você é um atalho, uma clareira,
coisa assim, no caminho. Pra uns fica como uma pedra no
sapato, mas a maioria passa sem pôr reparo. Você, clareira
minha, terá decerto que se contentar toda a vida, com os
que sabem aproveitar a graça divina das clareiras pra
descansar e sabem que é nos atalhos que os passarinhos
cantam mais.333

Henriqueta parece não ter entendido muito bem o que Mário quis
dizer com “linhas gerais da crítica de poesia brasileira”, pois atribuiu o
silêncio da crítica ao tratamento de temas humanos e universais em sua
poesia, em detrimento dos assuntos nacionais então em voga:

Você diz que não pertenço às linhas gerais da


crítica da poesia nossa, nem dos seus problemas e
intenções. Pois é isso. Os meus problemas são até
muito humanos, são meus como de todos aqueles
que apelam para as forças morais em face da
esfinge, quando não logram decifrá-la. Sinto-me
criatura de Deus antes de tudo, muito antes de ser
brasileira. E com isso não sei se haverá metal
brasileiro na minha poesia – Estarei no meio da
raça como estrangeira?334

Henriqueta associou o comentário de Mário a um critério de


julgamento, em voga principalmente na segunda fase do Modernismo,
que avaliava o valor da obra de acordo com o seu índice de
nacionalidade. A partir dos anos 1930, porém, a tendência nacionalista
já havia enfraquecido e a atenção dos críticos se voltava para a chamada
333
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 jan. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 278.
334
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 21 jan. 1944. Ibidem, 2010,
p. 279.
“poesia social” ou de combate. Por outro lado, conforme observa Mário,
a poesia de Henriqueta também não se adequava à outra corrente da
crítica que se interessava por uma poesia “pura”, ou seja, mais voltada
para aspectos formais e estéticos e com certa autonomia em relação ao
mundo exterior. De qualquer modo, ambos os critérios parecem ser
insuficientes para analisar a integridade da obra, pois não consideram a
relação que se estabelece entre texto e contexto, como observa Antonio
Candido:

De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e


o significado de uma obra dependiam de ela
exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que
este aspecto constituía o que ela tinha de
essencial. Depois, chegou-se à posição oposta,
procurando-se mostrar que a matéria de uma obra
é secundária, e que a sua importância deriva das
operações formais postas em jogo, conferindo-lhe
uma peculiaridade que a torna de fato
independente de quaisquer condicionamentos,
sobretudo social, considerado inoperante como
elemento de compreensão.
Hoje sabemos que a integridade da obra não
permite adotar nenhuma dessas visões
dissociadas, e que só a podemos entender
fundindo texto e contexto numa interpretação
dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto
de vista que significava pelos fatores externos,
quanto o outro, norteado pela convicção de que a
estrutura é virtualmente independente, se
combinam como elementos necessários do
processo interpretativo.335

Além disso, podemos pensar que a poesia de Henriqueta trazia


um índice de nacionalidade implícito, a partir de um “sentimento
íntimo”, como propõe Machado de Assis, mesmo que não expressasse
claramente os temas nacionais. Mário esclarece a Henriqueta que a

335
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 5.
universalidade temática de sua poesia não seria, a seu ver, um problema,
nem a tornaria menos brasileira que os demais poetas:

(...) você é tão nacional como todos somos


nacionais, e basta. Suas condições naturais de
educação, de mulher, de profissionalismo público,
de concepção muito amadurecida de poesia (e
muito legítima) levam você necessariamente (e de
católica, me esqueci) a uma universalidade de
temática e mesmo de concepção e expressão dessa
temática, em que o Brasil objectivamente se
reflete pouco. Aliás, bastou a sua temática se
voltar pro menino-poeta pra que o Brasil se
refletisse objetivamente com insistência na sua
poesia. Questão de mais-Brasil menos-Brasil não
tem a menor importância num caso como o de
você e não se preocupe com isso.336

A percepção de Mário era de que as reservas da crítica em relação


à obra da amiga não se deviam à qualidade de sua produção, mas seriam
decorrentes de critérios de valor que favoreciam determinadas
tendências da poesia brasileira na época. Segundo observa o escritor
modernista, as correntes principais que interessavam à crítica nacional
naquele momento se dividiam entre poesia pura e poesia interessada (em
sentido revolucionário-social). E, segundo ele, a poesia de Henriqueta
não correspondia a nenhuma dessas tendências, pois refletia uma
preocupação moral interessada, da vida do ser, que não é nem poesia
pura (amoral e desinteressada), nem social (politicamente engajada):

Das duas bandas, poesia pura e poesia interessada,


você está com nenhuma. Você está refletindo em
sua poesia mais exclusivamente sua, atual, do
Menino Poeta pra cá, uma preocupação moral
interessada, da vida do ser. Ora a poesia pura, pelo
menos como a compreendem e a fazem por aqui, é
fundamentalmente amoral e desinteressada nesse

336
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 05 mar. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 281.
sentido. Deriva mais do conceito surrealista que
do de “poesia pura” exatamente. Assim, moral,
sua poesia é interessada. Mas a corrente
interessada da crítica nacional, no que ela aliás
também se justifica inteiramente, é interessada
num sentido revolucionário social. Que
absolutamente não é o de você e que você
contraria. E ela teria que, devia mesmo, atacar
você o fato desses críticos mais úteis silenciarem
sobre a sua poesia, o Antonio Candido até agora,
creio que o Guilherme Figueiredo, soa mais como
um elogio, eu imagino. Porque preferem não
atacar o que reconhecerão esteticamente bom.
Talvez, não sei, nunca falei sobre isso com
ninguém. Foi neste sentido que eu disse você estar
muito fora das correntes principais que interessam
agora à crítica nacional.337

Segundo Antonio Candido, enquanto nos decênios de 1920 e


1930 havia uma coexistência harmoniosa entre a preocupação estética e
a preocupação social, a partir de 1940 houve uma manifestação de
interesse pela poesia militante, com uma definição cada vez mais clara
das posições políticas, em que os escritores engajados “desleixaram não
raro a literatura” e “tornaram-se especialistas na direção propagandística
e panfletária”.338
Em sua atenção “às questões do ser”, que se mostra, na verdade,
um eufemismo para a sua tendência espiritualista, Henriqueta não estava
propriamente isolada no contexto de sua época. Como observa Antonio
Candido, o decênio de 30 foi, no Brasil, de “intensa fermentação
espiritualista’ – e nem por isso os escritores dessa tendência se
mostravam alheios às questões político-sociais:

A poesia de Augusto Frederico Schmidt, neo-


romântica, a de Jorge de Lima e Murilo Mendes,

337
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 05 mar. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 282.
338
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 116-117.
católica, marcam neste campo, tendências
dependentes do Modernismo.
No terreno propriamente das ideias, sociais e
políticas, o catolicismo de Tristão de Ataíde
(Alceu Amoroso Lima) se afirma como oposição
a certas posições ideológicas do Modernismo, no
sentido amplo, porque nelas via perigo de
dissolver a tradição religiosa e moral do país.
Mais extremado na resistência à transformação
dos valores surge, à imitação do fascismo, o
integralismo de Plínio Salgado, logo avolumado
em poderosa organização partidária.339

De qualquer modo, podemos pensar que Henriqueta não se


mostrava alheia às questões políticas e sociais, mas parecia antes
acreditar que a transformação da sociedade estava subordinada à
transformação interior do homem. Embora reconhecesse o valor da
poesia social “em caso de intuição extraordinária”, a poeta mineira
observa que a poesia é feita de dentro pra fora, tendo como base social a
consciência humana individual:

Mas os que querem a poesia interessada no social


não podem recriminar o interesse de um poeta
pelo individual, que é o ponto de partida para o
social. Os que emprestam à arte um sentido
revolucionário de classe devem saber que uma
revolução não se faz de fora para dentro mas,
sim, de dentro para fora, pela base partindo de um
ponto de apoio, que é, no caso, a consciência
humana. (...)
Enquanto não nos definirmos ou não nos
determinarmos a nós mesmos, não estaremos
aptos para avançar no terreno do social. E não nos
adianta restaurar a poesia em Cristo, enquanto não
houvermos restaurado a vida em Cristo. Quanto à
poesia social contrária – a do desespero – símbolo
da terra redonda girando em torno de seu próprio

339
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 115.
eixo, eu a considero, sem sombra na minha
admiração pelo Carlos Drummond, acima do
conceito de que se faz porta-voz. Em você, Mário,
o que predomina é também a preocupação moral
da vida do ser.340

Essa concepção da relação do individual com o coletivo se mostra


problemática, uma vez que, assim como a sociedade não se forma e vive
senão pelos indivíduos, o indivíduo é socialmente mediado em si
mesmo, como observa Adorno.341 Portanto, não seria possível pensar em
uma vida interior do homem dissociada da vida social.
Segundo Antonio Candido, o que hoje chamamos arte coletiva é a
arte criada pelo indivíduo, a tal ponto identificado às aspirações e
valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele, sobretudo levando-
se em conta que, nesses casos, perde-se quase sempre a identidade do
criador-protótipo. Além disso, o crítico observa ser inútil a discussão em
torno de uma obra ser individual ou de condições sociais, pois na
verdade ela surge na confluência de ambas:

Devido a um e outro motivo, à medida que


remontamos na história temos a impressão duma
presença cada vez maior do coletivo nas obras; e
é certo, como já sabemos, que forças sociais
condicionantes guiam o artista em grau maior ou
menor. Em primeiro lugar, determinando a
ocasião da obra ser produzida; em segundo,
julgando da necessidade dela ser produzida; em
terceiro, se vai ou não se tornar um bem coletivo.
Os elementos individuais adquirem significado
social na medida em que as pessoas correspondem
a necessidades coletivas; e estas, agindo,
permitem por sua vez que os indivíduos possam

340
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 abr. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 283-284.
341
ADORNO, Theodor W. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de
literatura I. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2012, p. 74.
exprimir-se, encontrando repercussão no grupo.
342

Portanto, o próprio conceito de “poesia social” se mostra


problemático. Muito antes que Adorno realizasse a famosa “Palestra
sobre lírica e sociedade”, em 1957, Mário observa que não lhe parece
apropriado chamar de “poesia social” poemas que são absolutamente
individualistas e subjetivos, embora tenham preocupações com a
coletividade. Para o escritor modernista, toda poesia, por mais pessoal
que seja, é social, em função de seu vínculo com a coletividade. Ele
esclarece que a chamada “poesia social” seria, na verdade, poema de
circunstância ou arte de combate:

Agora veja, Henriqueta: Alguns desses poemas


são de “reações pessoais”, como você diz; outros
são do que você chama e toda a gente “poesia
social’. Mas todos são absolutamente
individualistas, isso não há dúvida. São “meus”.
Pra esclarecer, eu acho que não se deve chamar de
poesia “social” a que tem preocupações com a
coletividade. Porque toda poesia, toda obra-de-
arte é “social”, porque, mesmo se preocupando
exclusivamente com as reações pessoais do
artista, interessa à coletividade. Muito embora não
cante, não se preocupe com a coletividade. O que
em geral andamos por aí chamando de poesia
social, é poema de circunstância, é arte de
combate. Veja bem como esta simples mudança
de nome esclarece as coisas e determina as
posições. Há uma arte, há um gênero de arte,
ponhamos gênero Casa Sucena, gênero marchinha
de carnaval, que tem como caráter essencial o
funcionamento imediato e transitório. Tão nobre,
como gênero, como qualquer outro gênero. Este
gênero de “circunstância” pode da mesma forma

342
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 23-24.
como qualquer outro provocar coisas eterníssimas
e geniais.343

Mário pede então a Henriqueta que não se preocupe com esse


problema da poesia social e continue a fazer a sua poesia, que, segundo
ele, seria tão “social” como qualquer poema de Neruda ou de Carlos
Drummond de Andrade: “Não imagino, não sinto, nem quero, você
fazendo poesia de combate. Não é do seu temperamento, nem da sua
personalidade. Não que eu queira reduzir você a uma feminilidade
antiga de recato estigmatizado e feitura de bolos e crochês.”344
Henriqueta afirma que realmente não se sentia chamada à poesia
social: “Você tem razão: não me sinto chamada à poesia social. Penso
mesmo que à mulher só é acessível o tom menor. Mas é possível que
exista uma terceira modalidade poética, em que o tom menor aprisione
motivos que interessem mais diretamente à coletividade.”345
Nessa época, Henriqueta provavelmente estava mais sensível com
relação aos críticos, em função de uma avaliação bastante severa que o
seu livro Prisioneira da Noite havia recebido de Álvaro Lins. No artigo
“Problemas e Figuras na Poesia Moderna”, publicado no Correio da
Manhã, em 1941, ele afirmou que a escritora mineira estava se
aproximando demasiadamente dos temas – a noite, o mar, a morte – e do
estilo de Augusto Frederico Schmidt, poeta católico também associado à
poesia neocondoreira:

Alguns poemas desse Prisioneira da Noite –


como, por exemplo, “O Pastor”, com seus ritmos
largos e sonoros – deixam uma agradável e
simpática impressão. Mas há certos versos
verdadeiramente detestáveis como este “Por
desespero de salvação” ou como estes que são
inacreditáveis: “E ao peso das estalactites negras/
o coração/ derreou”. Da mesma espécie é o poema
“Noturno”, enquanto “Doce Momento” e

343
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 03 ago. de 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 290-191.
344
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 03 ago. Ibidem, 2010, p.
291.
345
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 ago. 1944. Ibidem,
2010, p. 293.
“Desterro” representam um simples jogo de
palavras. Para que não se tenha esperança
excessiva quanto a esta poeta, devo acrescentar
que Prisioneira da Noite não é um livro de
estreia”.346

Henriqueta ficou visivelmente chateada com os comentários, de


tal modo que decidiu não enviar o livro O Menino Poeta a Álvaro Lins.
Sem conseguir disfarçar a contrariedade, ela consulta Mário sobre a
questão e questiona o julgamento do crítico: “Tenho dúvidas sobre o seu
discernimento poético, embora não o recrimine muito: acertar no
pássaro voando não é tão fácil como acertar no que já se agasalhou nas
árvores...”347
Mário pondera que Álvaro Lins escrevia “melhor” sobre autores
estrangeiros, como Tolstói e Stendhal, do que sobre autores nacionais.
Por outro lado, nota que a outra tendência da crítica nacional,
interessada num sentido revolucionário social, em vez de “atacar” a
poesia de Henriqueta, por contrariar essa tendência, silenciava sobre a
sua poesia, o que deveria ser tomado até como um elogio.348 Ele
aconselha Henriqueta a enviar O Menino Poeta para Álvaro Lins, ainda
que ele achasse que não haveria a menor chance de que o crítico pudesse
gostar do livro:

Eu mandava, se fosse meu, embora não veja


possibilidade nenhuma do Álvaro Lins gostar
desse livro. O Álvaro é um ótimo crítico, ainda
ontem li dele a crítica sobre a Terra do Sem-fim a
que não sei o que falta pra não ser magistral. Mas
segue a tradição brasileira de crítica:
insensibilidade poética. As críticas dele sobre
poesia 90% das vezes são inferiores às sobre
prosa. Mas por outro lado parece que fica meio

346
LINS, Álvaro. “Problemas e Figuras da Poesia Moderna”. In: Jornal de
Crítica: segunda série. Rio de Janeiro, José Olympio, 1943, p. 59-60. Apud
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 271.
347
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 15 nov. 1943. Ibidem,
2010, p. 270.
348
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 27 mai. 1944. Ibidem,
2010, p. 280.
feio não mandar o livro novo só porque ele não
gostou do anterior, parece despeito. Eu mandava
mais esta vez. Se de novo ele vier com muita
incompreensão demais, então não mandava
mais.349

Henriqueta, porém, decide não enviar o livro ao crítico, mesmo


com receio de que sua atitude pudesse contrariar Mário: “Em princípio,
um crítico sem sensibilidade poética pode ser prejudicial aos
inexperientes. Então os poetas, em defesa da causa comum, devem ter o
direito de dispensar essa crítica, mesmo quando reconhecerem o valor
desse crítico em outros setores. – O mal foi eu ter pensado nisto só
depois.”350
O crítico Cassiano Nunes, amigo de Mário – que certamente teve
alguma influência na publicação do texto, embora ele tenha insistido que
não (“eu fico alegre muito desses amigos meus que admiram
espontaneamente você”)351 –, sai em defesa da poeta mineira, com um
artigo contestando a análise de Álvaro Lins:

Quando leu "Prisioneira da noite", de Henriqueta


Lisboa, estava Álvaro Lins, sem dúvida, pensando
em outra cousa. Não posso acreditar que, em
perfeito estado de atenção, esse crítico
agudíssimo, escritor de páginas na verdade
reveladoras sobre Raul Pompéia e de análise
profundamente compreensiva da obra de
Rosamond Lehmann, não entendesse livro tão
fácil, tão claro, (apesar da noturnidade de alguns
poemas) como o da suave poetisa mineira.352

De acordo com o crítico, temas como a noite, o mar e a morte


foram, em todos os tempos, três temas queridos dos poetas tristes, e não

349
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 5 dez. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 271.
350
Ibidem, 2010, p. 280.
351
Ibidem, 2010, p. 289.
352
NUNES, Cassiano. “A poesia de Henriqueta Lisboa”. In: Suplemento
Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de
jul., 1984, n. 929, p. 10.
propriedade exclusiva de Augusto Frederico Schmidt. Segundo ele, “as
maneiras de aproveitá-los é que diferem segundo as sensibilidades e,
consequentemente, estilos”.353 Ao comparar os estilos dos dois poetas
no tratamento desses mesmos temas, Cassiano Nunes destaca o
virtuosismo e a preocupação estilística de Henriqueta, em contraste com
a poesia de Schmidt, que é mais verbalístico e menos virtuosístico:

Ora, pense que não há, em toda a obra


veementemente romântica do poeta de "Mar
desconhecido", versos assim tão sinuosos,
ondulantes. Esse virtuosismo versístico, essa
languidez de poetisa degustando palavras (repare
Álvaro Lins principalmente as "flautas esflorando
veludos de pêssego), não os encontraremos em
Augusto Frederico Schmidt, que é mais
verbalístico, sim, mas menos virtuosístico. O
poeta de "Ciclo de Josefina" sempre se exprime
direta, possantemente, sem rodeios nenhuns.
Nos versos de Henriqueta Lisboa a preocupação
estilística, a volúpia vocabular, estão presentes
sempre. Mesmo num livro de versos para
crianças, "O menino poeta", as intenções de
artífice não a abandonam.
Sinto dizer a Álvaro Lins que a noite, o mar e a
morte foram, em todos os tempos, três temas
queridos dos poetas tristes.
(...) A noite, o mar e a morte são temas eternos e
não propriedade exclusiva do sr. Augusto
Frederico Schmidt. As maneiras de aproveitá-los é
que diferem segundo as sensibilidades e,
consequentemente, estilos.
Ora, pense que não há, em toda a obra
veementemente romântica do poeta de "Mar
desconhecido", versos assim tão sinuosos,
ondulantes. Esse virtuosismo versístico, essa
languidez de poetisa degustando palavras (repare

353
NUNES, Cassiano. “A poesia de Henriqueta Lisboa”. In: Suplemento
Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de
jul., 1984, p. 10.
Álvaro Lins principalmente as "flautas esflorando
veludos de pêssego), não os encontraremos em
Augusto Frederico Schmidt, que é mais
verbalístico, sim, mas menos virtuosístico. O
poeta de "Ciclo de Josefina" sempre se exprime
direta, possantemente, sem rodeios nenhuns.
Nos versos de Henriqueta Lisboa a preocupação
estilística, a volúpia vocabular, estão presentes
sempre. Mesmo num livro de versos para
crianças, "O menino poeta", as intenções de
artífice não a abandonam.354

Henriqueta utiliza em sua poesia imagens simbólicas e


sinestésicas recorrentes, tendo como temas frequentes a morte, a solidão,
o amado ausente, a infância, a loucura, a espiritualidade. Embora a sua
temática fosse muitas vezes associada à morte, sua obra se volta
principalmente para questões relacionadas ao ser e o espírito. Nas
palavras da poeta:

Reconheço que o tema da morte me tem sido


constante, como obra de inúmeros poetas de todo
o mundo, pois infinitamente sugestivo, aberto a
hipóteses e voos incalculáveis. É exato que em
determinada fase de minha vida, esse assunto se
tornou explosivo, em virtude de dolorosas
circunstâncias. Celebrei-o no volume Flor da
Morte, e já o abordara em composições de A Face
Lívida, livro de angústia, temor e repulsa, ao
tempo em que se alastrava a 2ª Guerra universal.
Contudo, tanto antes como depois, tenho visado,
de modo pertinaz e intensivo, a essência de ser, a
substância de que é vital, a ansiedade da criatura
em busca de perfeição e de infinito, os mistérios
da natureza, o próprio mistério do processo
poético, o relacionamento entre a alma e Deus, a
caminhada da alma à procura de Deus.

354
NUNES, Cassiano. “A poesia de Henriqueta Lisboa”. In: Suplemento
Literário - Minas Gerais. Henriqueta Lisboa: Rosa Plena. Belo Horizonte: 21 de
jul., 1984, n. 929, p. 10.
(...)
Entre as motivações mais persistentes ao meu
espírito, figura o tema da loucura, esse país
estranho cujos habitantes se entregam de corpo e
alma à liberdade e ao sonho. (...)355

A resposta de Henriqueta a Álvaro Lins viria depois em forma de


poema, com "Cantarei a noite e o mar", de A Face Lívida. Sobre o
poema, Henriqueta observa que ele contém "uma observação a certo
crítico", que a "impugnou o tratar de temas de determinado poeta":356

Ó Noite de cada ser


que a todos tens pertencido
com tua vastidão de trevas
teu hálito de flor!

Mar que todo navegante


encontra nos seus mergulhos,
que surge das espumas
amargas de cada boca.

Ó Noite, ó Mar, revelação


de Deus Único e Numeroso!357

Aos poucos, e provavelmente também graças ao auxílio de


Mário, que sempre falava da poesia de Henriqueta com entusiasmo com
seus amigos, O Menino Poeta começou a ganhar a atenção dos críticos.
Antonio Candido publicou um artigo com uma nota sobre Henriqueta
Lisboa, em 1944, que depois foi enviada a ela por Mário. O crítico
compara Henriqueta a Paul Verlaine, poeta simbolista francês, “o poeta
do balbucio e da leveza, que faz o encanto dos delicados”, com quem a
poeta mineira teria em comum o despojamento verbal, a musicalidade, a
pureza, a essencialidade. Segundo ele, em O Menino Poeta “está
355
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 18.
356
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 251.
357
LISBOA, Henriqueta. "Cantarei a noite e o mar". In: A face lívida. Obras
Completas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 127.
presente a mesma inconsistência material, a mesma graça imponderável
que desmaterializa a palavra e, limitando-a aos tons menores, quase a
faz entrar no domínio da música”358, como se pode notar no poema “Os
Patos”:

Pela várzea
verde moita
sob a cortina
da noite,
pulam sapos
de contentes
grilos mostram
finos dentes.
A não ser em alguns versos do sr. Manuel
Bandeira e da sra. Cecília Meireles, não sei de
outra poesia brasileira moderna que seja mais
fluida e mais etérea do que a da sra. Henriqueta
Lisboa. É uma delícia a perfeição com que sugere
e descreve: (...)
Dos poetas que revistamos neste rápido passeio
pela poesia menor, a sra. Henriqueta Lisboa é o
mais perfeito, o mais senhor dos seus meios
técnicos e das possibilidades de expressão. As
conquistas do simbolismo no seu ramo
verlaineano, - de despojamento verbal, de
musicalidade, de pureza, de essencialidade, -
nutrem este verso não obstante moderno, que é
uma solução ideal para os tons intimistas e leves
do lirismo menor. Como estudo, não saberia
indicar melhor leitura a quem se esforça por tonar
significativa e simples a sua expressão.
No entanto, é preciso não limitar o contato com a
poetisa mineira à leitura deste último livro, que
revela apenas um dos seus aspectos. Em
"Prisioneira da Noite" teremos uma revelação
diferente do seu temperamento poético - um vigor

358
CANDIDO, Antonio. O menino poeta. in "Folha da Manhã", São Paulo,
21/5/1944. Suplemento Literário - Minas Gerais. No convívio poético de
Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: 21 de fev., 1970, n. 182, p. 8.
e uma densidade inexistentes na "medula de
sabugueiro" do Menino Poeta.359

Devido à musicalidade e ao cuidado formal de seus versos,


Henriqueta tem sido comparada com escritoras como Cecília Meireles e
Gabriela Mistral. Segundo observa Manuel Bandeira, “a poesia de
Henriqueta se caracteriza por uma constante perfeição (como a de
Cecília Meireles). Mas essa perfeição não é fruto de fácil virtuosidade: é
perfeição de natureza ascética, adquirida à força de difíceis exercícios
espirituais, de rigorosa economia vocabular.”360
A amizade de Henriqueta com a poeta chilena Gabriela Mistral,
primeira escritora latino-americana a ganhar o Prêmio Nobel de
Literatura, contribuiu para fortalecer o prestígio da poeta mineira. Em
1942, Gabriela Mistral proferiu duas conferências em Belo Horizonte,
uma sobre O Menino Poeta e outra sobre a poesia chilena. Mário recebe
de Henriqueta a boa notícia e comemora o apoio que traria para o
reconhecimento da obra da amiga: “Assim é um dos mais altos espíritos
da América que escolhe e dedica uma conferência inteira a você. Estou
feliz mas feliz completamente. E também com uma vaidade gorda,
rechonchuda da companhia boa. Já somos pois ‘em’ dois a gostar da sua
poesia e colocá-la no plano que merece estar”.361
Apesar de, inicialmente, O Menino Poeta não ter obtido a atenção
desejada, o livro acabou recebendo análises de alguns dos maiores
críticos brasileiros da época. Porém, embora seja muito elogiada por
eles, Henriqueta raramente é citada nos livros de história da literatura e
nos compêndios de poesia brasileira – possivelmente por “não pertencer
às linhas gerais de nossa poesia” e não pertencer a escolas e movimentos
literários, o que dificulta classificar a sua poesia. Além disso,
provavelmente contribui para essa pouca visibilidade o fato de se tratar
de uma mulher em busca de espaço no meio literário, numa época em
que ele era predominantemente masculino.

359
LISBOA, Henriqueta. “Os Patos”. In: O Menino Poeta. Ibidem, 1970, n. 182,
p. 8.
360
BANDEIRA, Manuel. “Dante e Henriqueta”. Apud: CARMELO, Virgílio.
Henriqueta Lisboa: bibliografia analítico-descritiva (1925-1990). Rio de
Janeiro: José Olympio, 1992, p. 119.
361
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 221.
Um exemplo dessa certa invisibilidade é que Henriqueta é citada
por Antonio Candido, em Literatura e Sociedade, como uma das
melhores vozes do período, mas não é incluída na antologia Presença da
Literatura Brasileira, assim como o são todos os demais poetas citados
pelo crítico: “Em poesia, as melhores vozes ainda vêm de antes, com a
de Henriqueta Lisboa (Flor da Morte, 1949) ou Vinícius de Morais
(Poemas, sonetos e baladas, 1946), para não citar Murilo Mendes e
Carlos Drummond de Andrade, cujos primeiros livros são de 1930, ou
Manuel Bandeira, pré-modernista e modernista de primeira hora.”362
Outro episódio significativo é o fato de que Manuel Bandeira,
embora afirmasse considerar Henriqueta uma das poetas brasileiras mais
perfeitas, ao organizar o livro Apresentação da Poesia Brasileira,
publicado em 1946, não se lembrou de incluir o trabalho da poeta
mineira. Anos mais tarde, em um cartão enviado para Henriqueta, ele
pede desculpas pelo esquecimento:

Eu que a ponho entre a meia dúzia de maiores


poetas do Brasil – esqueci-me de você! É
imperdoável e estou inconsolável (porque não me
consolo ter dito na última edição das Noções de
História da Literatura: ‘Henriqueta Lisboa é hoje
tida como um dos nossos mais fortes e perfeitos
poetas.’ (...) Agora fico eu aflito por uma nova ed.
para reparar essa incrível lacuna (pensar que citei
de má vontade tanto nome celebrado, mas cuja
poesia não me diz nada!) De joelhos lhe peço
perdão.”363

Em 1978, quando já estava em condições de fazer um balanço


mais panorâmico de sua carreira, Henriqueta confessou ao crítico
Oswaldino Marques a sua frustração ao verificar que a sua poesia
acabou sendo relegada a um “círculo fechado” de leitores, como se
fizesse parte de uma sociedade secreta:

Algumas vezes me perguntei se valia a pena


trabalhar ao máximo para chegar à síntese de um

362
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1965, p. 117.
363
Cartão de Manuel Bandeira a Henriqueta Lisboa. 28 set. 1961. Acervo dos
Escritores Mineiros. Belo Horizonte, 28 set. 1961.
poema. Entretanto, ia dedicando uma vida à
realização de uma obra poética que talvez não
tenha sentido para além de um fechado círculo de
afinidades pessoais.
Louvações não me satisfazem. Compreensão
afetiva representa conforto, apenas. Respeito, sei
que mereço. Mas crítica com profundidade e
abrangência, de interpretação de valores, e
aspectos mínimos, exegese em comunhão, isto –
cousa rara – é o que me interessa. E é o que você
nobremente me oferece na sua maravilhosa carta
de outubro, confirmação de seus belos conceitos
apresentados no auditório de Brasília.364

1.12 O poeta diante do espelho

Na correspondência com Henriqueta, cabia quase sempre a Mário


atuar como crítico das poesias da amiga, e não o contrário, até porque no
período em que se corresponderam (1939-1945) ele estava mais
dedicado ao funcionalismo público que à escrita. Depois de Remate de
Males, publicado em 1930, Mário passou onze anos sem publicar um
volume novo de poesias. Em 1941, ele lança Poesias, uma antologia
com poemas dos livros anteriores e de dois livros inéditos: A Costela do
Grão Cão e Livro Azul. Em função da profunda crise pessoal que vivia
na época, Mário pensou que esse seria o seu último livro de poemas. Em
dezembro de 1941, a poeta mineira pergunta ao amigo sobre os poemas
novos que ele vinha produzindo:

Esses dias tenho estado a pensar nos caminhos


que andará percorrendo a sua poesia. Desde
Remate de Males, que até hoje me impressiona
pela sua complexidade, (há nesse livro toda uma
escala de valores essenciais e estéticos, desde a
nota mais bárbara à mais aristocrática) não o
tenho lido senão em prosa. O que há de individual
nesse livro! Mas ele é você mesmo! quando

364
Carta de Henriqueta a Oswaldino Marques, 05 nov. 1978. Acervo dos
Escritores Mineiros. Belo Horizonte, 5 nov. 1978.
poderei ver os novos poemas? Terei que esperar
Poesias Completas de cuja edição ouço falar?365

Em meados de 1940, Mário já tinha começado a escrever os


poemas que depois seriam incluídos no livro Lira Paulistana, publicado
postumamente em 1945. Justamente nessa época, ele e Henriqueta
começaram a trocar cartas. Porém, para mostrar os seus poemas, quando
estavam ainda em processo de criação, Mário se reportava
principalmente a Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade,
amigos de mais longa data, que há anos vinham auxiliando-o com a sua
escrita, conforme indica carta a Drummond de julho de 1944:

Estou esperando com ansiedade carta sua, pelo


menos cartão, falando se gostou, se não gostou da
Lira Paulistana. (...) Me arranje um tempinho pra
me escrever. O Manuel passou por aqui e me deu
alma nova por ter gostado. Ando assim... Aliás,
fui sempre mais ou menos assim, porém
raramente dependi tanto da opinião dos outros.
Certos "outros", está claro. Não mostrei esses
novos ao Manuel, besta de eu! Não tive coragem
na última hora.366

A confiança de Mário em Manuel Bandeira era tão grande, que


ele não publicava nada sem antes ter um parecer do amigo:

Antes de entregar os meus versos à tipografia,


mandei-os a você, pedindo-lhe que os criticasse: o
meu desejo era que você fizesse com eles o que eu
a seu pedido, faço com os seus: uma espinafração
isenta de qualquer medo de magoar ou melindrar
– crítica de sala de jantar de família carioca, de
pijama e chinelo sem meia. Você tirou o corpo
fora e limitou-se a aconselhar a supressão de um

365
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 9 dez. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 177.
366
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 206.
soneto. Se você tivesse me dado outros conselhos,
o meu livro sairia mais magro porém certamente
mais belo.367

Embora pudesse contar com a ajuda de alguns amigos e


desfrutasse de bastante visibilidade e prestígio entre os críticos, Mário
sentia falta de uma análise mais aprofundada de sua poesia. Em O
Banquete, o compositor Janjão, personagem que guarda certas
afinidades com o autor, expressa a dificuldade de produzir uma obra
inovadora, sem poder contar com um referencial crítico e uma tradição
literária que pudessem lhe servir de base e referência:

É dolorido, vocês não queiram saber: compor no


vago, tentar no vago, se defender no vago, estudar
no vago como eu faço e fiz, e depois se ver na
frente duma obra-de-arte que a gente mesmo
criou, que se adora, se ama porque é toda a nossa
vida, e que no entanto a gente não sabe o que é,
porque os elementos dela são incontroláveis, sem
o exemplo comparativo de quaisquer passados.368

Quando Mário lança, em 1941, o livro Poesias, Henriqueta


escreve para congratular o amigo e comenta sobre a dificuldade que a
crítica tinha para analisar a sua poesia:

Não sei se conseguirei sintetizar as minhas


impressões diante da imensidade lírica da sua
poesia, quando ainda me sinto emocionada pela
surpresa de seus novos poemas, pela surpresa
dessa visão de conjunto que imprime à sua obra
poética uma cintilação singular.
Mas de uma cousa estou certa: os críticos ainda
não conseguirão defini-lo nem interpretá-lo
devidamente por essa razão: você é poeta genial.

367
MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade &
Manuel Bandeira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Instituto
de Estudos Brasileiros, USP, 2000, p. 111.
368
ANDRADE, Mário de. O banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 111.
Digo-o convicta e iluminada, embora não saiba
explicar-me suficientemente.
Ainda não tivemos nas nossas letras uma
expressão mais genuína de brasilidade, uma
espontaneidade tão vasta, uma abundância tão
numerosa de tudo o que marca a feição de nossa
gente, os acidentes de nossa terra.
E não é apenas no conteúdo que se revela esse
estigma de nacionalidade. Na própria forma de
mão aberta, ao Deus dará, no ritmo desigual,
geralmente preguiçoso, como que inseguro, no
baralhado do assunto (planos superpostos, visão
ofuscando visão, vozes a um tempo) nessa técnica
magistralmente desgovernada, apagada pela
realidade artística, encontro o brasileiro do Brasil
por acaso e, sem antítese, o brasileiro exato a
quem a cultura não conseguiu domesticar e que
guarda, por isso, toda a sua pujança original.
Nenhuma coação se infiltra no seu mundo poético.
Mário, você o criou como se nenhum poeta
houvesse existido antes!369

Na resposta à carta de Henriqueta, Mário afirma que ela teria


encontrado uma compreensão exata de seu ser de poeta – embora os
elogios, segundo ele, trouxessem o risco da valorização:

Mas a sua carta, com ela você tirou de um livro de


poesias, uma compreensão tão mais total e íntima
de mim... Não posso comentá-la inteira em todos
os seus dados de compreensão, todos certos, todos
tão aprofundados e completos – um prodígio de
síntese.
Mas tem uma frase na carta que preciso lhe
agradecer mais que tudo. É quando você diz que
“nenhuma coação se infiltra no meu mundo
poético”. Principalmente pelas frases que a

369
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 8 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 181.
cercam, essa afirmativa tem o efeito de uma
verdadeira denúncia do que tenho sido em poesia.
E isso foi tão mais grato pra mim, que não só
ninguém nunca percebeu isso, como só frases em
contrário tenho ouvido.370

A poesia de Mário era considerada de leitura difícil, e seu


prestígio como intelectual e renovador das artes sobrepunha-se ao seu
reconhecimento como poeta. O próprio Manuel Bandeira já havia
comentado sobre a distinção que então era feita entre o Mário poeta e o
Mário intelectual: “Aliás, Mário, você é atacado como poeta e pouca
gente sente a tua poesia, mas como homem e como inteligência crítica
todo mundo tira o chapéu”.371
Os críticos mais argutos percebiam a complexidade da poesia de
Mário, mas não tinham muitos critérios para avaliá-la. Em outubro de
1925, Tristão de Ataíde publicou, em O Jornal, uma crítica (profética)
sobre Losango Cáqui, apontando o potencial do escritor, mas sobretudo
os desafios que ele teria que enfrentar até amadurecer a sua produção:

A poesia do sr. MA, a meu ver, ainda está longe


do que virá a ser, dentro de alguns anos, quando
se cansar de seu desvairismo, de sua demagogia
regionalista, do prosaísmo forçado, desse
tormento pirandelliano da multiplicidade que o
persegue, e conseguir incorporar tudo isso, filtrar,
purificar, e dar-nos então apenas a essência que
em alguns versos já hoje transluz, como no trecho
do rio, por exemplo, que é uma maravilha de
frescura e de movimento, para ser ouvida, aliás,
mais do que para ser lida. A poesia do sr. MA é

370
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 183-184.
371
Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 26 mai. 1926. MORAES,
Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira.
São Paulo, 2000, p. 165.
um potrinho selvagem que ele ainda não
conseguiu domar.372

Mário achou a crítica justa em muitos aspectos, mas não pareceu


nada satisfeito. Ele considerava Tristão de Ataíde um dos maiores
críticos brasileiros, detentor de uma intuição crítico-psicológica
formidável, mas notava no crítico uma quase que total insensibilidade
lírica. Em carta a Drummond, o escritor modernista comenta a crítica de
Tristão: “Sob o ponto de vista construtivo ele tem perfeitamente razão.
Embora eu dê atualmente largas o mais que posso à minha sensibilidade
possivelmente romântica é certo que construo o que faço e que não tem
nada de desvairismo mais nas minhas obras posteriores a Pauliceia”.373
Mário sentia falta de uma crítica que pudesse dar conta de sua
complexidade técnica e psicológica e lhe revelasse algo novo,
despercebido até por si mesmo. Em carta a Sérgio Buarque de Holanda,
ele cobra do amigo uma carta com comentários sobre os seus poemas, o
que inclusive já havia solicitado a Prudente de Morais Neto:374

A promessa do artigo é ouro pra mim. Você tá


cada vez mais subtil (não se zangue) e me delicio
com você. Tenho esperança de alguma coisa que
me interesse de verdade porque, repare, com
exceção dumas poucas coisas, ditas pelo Tristão,
ninguém até agora não percebeu direito em mim
coisa que me interessasse. Isso é horrível.
Aliás nem é artigo publiquento e publicável que
espero. Basta carta, ali, uma carta que me falasse
coisas mais subtis (ergo: mais profundas) sobre
este vulcão de complicações que eu sou!
Prudentinho, nem bem saído o Clã, prometeu
carta. Já não espero mais ela apesar da esperança
que tinha nele. Jamais não consegui saber o que

372
ATAÍDE, Tristão de. In: O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out. 1925, e Estudos
literários, 1, p. 959. Apud ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de
Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record,
1988, p. 64.
373
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, out. 1925.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, s/p.
374
Mário acabou não recebendo a crítica esperada de nenhum dos dois amigos.
eu sou. Mas ponha reparo nos que escrevem sobre
mim: sou fácil como água pra eles, questão fácil
de resolver, dois mais dois. Tenho esperança em
você que soube falar sobre Hard e inda melhor de
vez em quando inventa coisas.375

Sérgio Buarque de Holanda, porém, não envia a sua crítica ao


amigo, causando-lhe certo desapontamento.
Henriqueta era uma leitora atenta da poesia de Mário, como
demonstra nas cartas que ela enviava ao amigo e nos artigos publicados
após a morte dele. Com comentários consistentes e argutos, ela descreve
com muita propriedade as linhas gerais da poesia do escritor modernista,
destacando seu vocabulário peculiar, com o uso da linguagem coloquial,
as experimentações formais, de métricas, ritmos, superposições
melódicas, a dramatização dos temas:

O que surpreende e às vezes confunde ao primeiro


contato de sua obra poética é o vocabulário:
termos de gíria, neologismos, palavras
estrangeiras abrasileiradas, principalmente
italianas, indianismos; africanismos; nomenclatura
de fauna e flora meio desconhecidas. (...)
Essa terminologia variada e estranha dificulta a
leitura do poema. De que maneira havia de
abordar assuntos tipicamente nacionais? O poeta
empenhou-se em ser brasileiro, aceitou e escolheu
temas em que a alma brasileira se compraz,
mergulhou no gosto indígena. Mas, em virtude de
uma fundamental aristocracia de espírito, essa
poesia de sentido coletivo assume caráter peculiar.
Alheio a preconceitos, utilizou-se dos mais
variados metros, de esquemas dependentes da
associação de duas ou três medidas comuns, e
também de longos versículos arbitrários.
Experimentou melodias simples e cadências

375
Carta de Mário de Andrade a Sérgio Buarque de Holanda,22 abr. 1928.
MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade/ Sérgio Buarque de
Holanda: Correspondência. São Paulo: Companhia das Letras / Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB) / Edusp, 2012, p. 96.
novas, combinações de sons simultâneos ou
harmônicos – acorde harpejado – superposição de
frases melódicas ou polifonia poética, seguindo
sua própria discriminação. (...) O ritmo, em sua
poesia, é fator preponderante. Raramente se
encontra exemplo de maior fidelidade rítmica ao
assunto, de maior justeza e adequação do
movimento ondulatório do verso no seu
significado.
A linguagem coloquial que adota e constitui a
principal característica de poesia do século
decorre de seu desejo de autenticidade,
testemunho a uma quase tangível presença
humana. Repudia-se de vez as faltas atitudes
românticas, os voos do condor, a sedução das
sonoridades. (....)
Dentro de uma saudável normalidade e um gosto
extraordinário pela vida, teve altas preocupações
de espírito, sem perder-se em devaneios inócuos.
Não por qualquer deficiência, mas por humildade
de esteta reconhecer a penúria da palavra diante
do sobrenatural, e muito por fidelidade aos
postulados de homem pertencente ao seu tempo,
proferiu os motivos da existência diária, mas no
que ela tem de dramático, dramatizando o
acessório e circunstancial. Essas, as suas melhores
intenções. Além do que, a um exame detido de
sua obra, nota-se aqui e ali uma busca sui-generis
das essências do bem e da verdade. “A Meditação
sobre o Tietê”, a exigir um estudo em
profundidade, assim o confirma.376

Um trabalho inovador como o de Mário acaba tendo como única


referência a sua própria obra. Em correspondência a Drummond, ele faz
um panorama crítico de sua poesia, para mostrar como ela, naquela fase,
enveredava por um caminho diferente daquele seguido pelo escritor
mineiro, embora nutrisse uma grande admiração pela poesia dele:
376
LISBOA, Henriqueta. Vigília poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1968, p. 23.
Mas eu, minha poesia atual, meus atuais instintos
e minhas atuais ideias de poeta são as mais
distantes de tudo o que representa como poesia o
livro de você. Poesia minha de agora: ou caio num
lirismo absoluto, quase automático e
sobrerrealista, intelectualmente incompreensível,
ou melhor, paralógico, ao lado da lógica
intelectual, os tais "versos de louco", ou traio de
cabo a rabo esse conceito de poesia que é o meu
atual e apenas evolução drástica e incisiva de
ideias expostas na Escrava e processos tentados de
quando em longe, traio e faço poesia socialística,
de intenção social, como fiz no Clã do jabuti. Só
que no caso deste a traição era em proveito duma
fixação prática nacional e agora já o meu
brasileirismo transcende aos meus poemas ou
estes àquele, e canto ou sofro apelos vagos porque
sempre líricos, sociais, porventura comunistas
(sem Rússia). Por tudo isso você compreende (e
compreenderá melhor quando aí bater meu novo e
talvez último livro de poesias, até o fim do ano),
você compreende que estava afastadíssimo da
poesia de você.377

1.13 Retratos de Mário de Andrade

Em carta de julho de 1941, Henriqueta conta a Mário ter ido com


Carlos Drummond à casa de Cândido Portinari, no Rio de Janeiro, e ter
ficado muito impressionada com a força de sua pintura e o modo
entusiasmado com que ele fala sobre arte.378 Em resposta, o escritor
modernista diz ter ficado contente por Henriqueta ter gostado de
conhecer Portinari, de quem ele havia se tornado um grande amigo. Em
seguida, ele comenta longamente sobre os diversos retratos que pintores

377
ANDRADE, Mário. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 147.
378
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 01 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 144.
como Portinari, Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Flávio
de Carvalho, Di Cavalcanti, Hugo Adami, entre muitos outros, fizeram
dele.379
Mário expressa a sua preferência pelas telas de Portinari, Segall e
Carvalho, que “tinham sido vates e poetas” ao pintar o seu retrato. O
escritor explica que Flávio de Carvalho o respeitava e admirava,
enquanto ele, por sua vez, não apreciava muito a sua pintura, por achar
que o artista sujava as cores nas misturas que fazia. Mário chegou
inclusive a fazer uma crítica bastante severa à sua pintura na imprensa.
Ele conta a Henriqueta que, enquanto posava para ter o seu retrato
pintado pelo artista, teria tido a nítida impressão de ter sido capaz de
influenciar silenciosamente o trabalho dele: (...) “Quando fui olhar o já
feito, fiquei completamente surpreendido. (...) A técnica era outra, era
outro Flávio, pinceladas curtas, matéria não mais gorda como é
geralmente a dele, mas rica, muito menos voluptuosa, porém mais bem
achada, e que cores lindas, claras, limpas!”380
Mário conta ainda que algo semelhante havia ocorrido quando
teve o seu retrato pintado por Portinari, que se mostrava agradecido por
uma crítica positiva que ele havia feito a um quadro seu num artigo.
Portinari teria então pintado o retrato de Mário buscando expressar o
melhor do amigo, chegando mesmo a compará-lo a um santo espanhol
de madeira do século 13. “Mas sei o que ele queria dizer, vendo atrás da
minha feiura dura e minha cor que são bem de madeira, uma bondade, o
sujeito bom que ele exigia de mim pra me querer bem”.381
A tela de Segall, por outro lado, revela um lado mais negativo de
Mário: “É subterraneamente certo, mas, sem vanglória, o do Portinari é
mais certo, porque é o eu de que eu gosto, que sou permanentemente e
que chora, ainda e sempre vivo, mesmo quando a parte do Diabo
domina e age detestada por mim. Esse quadro do Segall não fui eu que
fiz, juro.”382

379
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. de 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 167.
380
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. Ibidem, 2010,
p. 155.
381
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 146.
382
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. Ibidem, 2010,
p. 159.
Nesse jogo de espelhos, Mário buscava desvelar a si próprio, por
intermédio da obra dos pintores, assim como esperava conhecer melhor
a sua poesia com o auxílio dos críticos. Ele, porém, não se colocava
passivamente nessa descoberta de si, ao contrário, ajudava a construir a
sua própria imagem. Conforme observa Eneida Maria de Souza, “ao
expor a subjetividade por intermédio da imagem que o outro compõe de
si, o sujeito percebe ser também coautor no ato de elaboração do seu
retrato. Comporta-se como o eu que se afasta e se aproxima de sua
própria imagem”.383 O retrato, afinal, não estava acabado nem era mero
reflexo da realidade, mas se mostrava em constante processo de
transformação, descoberta e invenção. A arte, nessa perspectiva, é vetor
de autoconhecimento e de construção de si mesmo e do mundo. Nas
palavras de Mário: “Existo dentro da minha primeira realidade que é a
arte.”384
A relação de amizade que se estabeleceu entre Mário e Portinari
se baseava em afinidades artísticas e eletivas, mas também envolvia
interesses mútuos em termos de promoção pessoal e institucional. Ter o
retrato pintado por um artista reconhecido trazia prestígio e status para o
retratado, principalmente para um crítico e colecionador de arte, como
Mário. E o retrato de Mário pintado por Portinari era considerado pelo
artista o seu melhor retrato – e pelo escritor modernista também. “O seu
fascínio pelos artistas plásticos e suas obras tinha tanto a ver com seus
interesses de ordem propriamente intelectual como com suas veleidades
de grandeza social e refinamento mundano”, observa Sérgio Miceli.385
De acordo com Miceli, Portinari beneficiava-se dessa amizade
com solicitações de textos para catálogos, artigos para divulgação na
imprensa e mesmo monografias de maior fôlego. Para o autor, Mário
desempenhou um papel decisivo no trabalho de legitimação e
consagração de seu nome no campo cultural interno e para a divulgação
internacional da obra do artista. Além disso, Miceli observa que a
progressiva conversão de Portinari num artista oficial modelar, a partir
do convite para criar os murais internos e externos do novo prédio do

383
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999, p. 204.
384
HÜHNE, Leda Miranda. A estética aberta de Mário de Andrade. Rio de
Janeiro: UAPE, 2002, p. 33.
385
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: Retratos da elite brasileira (1920-
40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 84.
Ministério da Educação, em 1936, ocorreu justamente ao tempo da
gestão de Mário à frente da Secretaria de Cultura de São Paulo.386
Portinari foi apresentado a Mário por iniciativa de Manuel
Bandeira, por ocasião do Salão de 1931, ou Salão Revolucionário, como
ficou conhecida a 38ª Exposição Geral de Belas Artes, em razão de ter
abrigado, pela primeira vez, artistas de perfil moderno e modernista –
entre eles, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Victor
Brecheret. Em carta a Henriqueta, Mário conta que, ao ver um trabalho
de Portinari no Salão, logo o teria eleito como o melhor da exposição:

Ainda não conhecia o Portinari mas logo, no meio


dos sucessos obtidos pelo Cícero Dias e outros,
fui afirmando sem discrepância que o bom, que o
forte mesmo era o Portinari e o retrato do
Borghert o melhor quadro da exposição. É uma
coisa aliás de que ele nunca se esquece e conta
sempre. (...)
Portinari estava muito comovido de gratidão,
estava “filhizado” à minha maior e paternal
experiência do ambiente, me respeitava também
pelo nome e a posição que eu tinha, e além disso,
gratuitamente, por afinidade eletiva me queria
bem. E foi nesse estado iluminado de amor que
ele fez o meu retrato que... eu fiz ele fazer de
mim: só bom. 387

386
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: Retratos da elite brasileira (1920-
40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 84.
387
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 154.
Flávio de Carvalho.
Retrato de Mário de
Andrade. 1939.
Óleo sobre tela. 111
x 80,0 cm. Coleção
MA n- Artes
Plásticas, IEB-USP.

Lasar Segall. Retrato


de Mário de Andrade.
1927. Óleo sobre tela.
73,0 x 60,0 cm.
Coleção MA n- Artes
Plásticas, IEB-USP.
Candido Portinari.
Retrato de Mário de
Andrade. 1935. Óleo
sobre tela. 73,5 x 61,0
cm. Coleção MA n-
Artes Plásticas, IEB-
USP.

Anita Malfatti. Mário


de Andrade II. 1922.
Carvão e pastel sobre
papel. 36.5 x 28,5
cm. Coleção MA n-
Artes Plásticas, IEB-
USP.
Durante o período em que morava no Rio de Janeiro e assumiu
diversos projetos encomendados pelo ministro Capanema, Mário passou
a frequentar o apartamento do pintor com certa regularidade. Em 1935,
ele e Portinari também vieram a integrar o quadro docente do recém-
criado Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal.
Segundo Miceli, Mário era um narcisista assumido, “que não
dava tréguas em sua compulsão de desejar mais e mais novas
representações de sua pessoa, qualquer que fosse o artista, o suporte, o
gênero ou o veículo dessas imagens. (...) Ao tomar conhecimento de que
Portinari havia realizado um novo retrato a óleo de seu amigo Manuel
Bandeira, ele não hesita em lhe escrever revelando-lhe o quanto o
invejava por essa nova insígnia de glória”.388
Conforme observa Miceli, “o projeto do retrato foi impulsionado
pelo importante trabalho de promoção empreendido por Mário por
ocasião da primeira exposição individual de Portinari no último
trimestre de 1935 na capital paulista”. Com uma ampla cobertura na
imprensa, Mário teria sido bastante favorável à obra de Portinari, a
despeito das manobras de Segall, que vinha subterraneamente tentando
desqualificar o trabalho do pintor brasileiro:

Portinari estava sofrendo muito nesse tempo.


Tinha feito a exposição dele aqui em S. Paulo e
sensível e ingênuo, inteiramente sem defesa como
era e ainda é, estava inteiramente desarvorado
com as pedras no sapato que o Segall sub-
repticiamente lhe pusera. Segall assim que viu a
pintura de Portinari, inteligente e conhecedor
como é, logo percebeu que tinha um rival pela
frente e começou a agir. Até comigo que ele sabia
já amigo do Portinari, ele se esforçou pra diminuir
o ímpeto da minha admiração, me incutindo
vários defeitos que eu devia apontar na futura
crítica que eu tinha de escrever sobre Portinari.
Passeava comigo pela exposição, fazia vários
elogios, aliás sempre comedidos e como que
concedidos, e de vez em quando vinha com um
“mas” sorrateiro. Eu “manjando o cara”, como se

388
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: Retratos da elite brasileira (1920-
40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 84.
diz na Lapa. E quando escrevi a minha crítica,
embora concordasse no íntimo com duas ou três
das reservas feitas pelo Segall, fiz outras e não
essas e principalmente muitos elogios. O que
causou um primeiro “resfriado” nas minhas
sempre até então ótimas relações com o russo-
israelita. Depois... 389

Podemos pensar que Henriqueta traçava um retrato de Mário


mais semelhante ao de Portinari que de Segall. Ela buscava valorizar no
amigo as virtudes e os altos ideais, mesmo quando ele revelava a ela o
seu lado sombrio. Mário, por sua vez, queria levar Henriqueta a
reconhecer e aceitar a dignidade das fraquezas humanas. Nesse jogo de
espelhos, cada um parecia ceder um pouco ao olhar do outro e encontrar
novas nuances da própria personalidade.
Mário tinha uma imagem de si mesmo um tanto ambígua;
dividido em conflitos interiores, via em seu interior um lado mau que,
no entanto, não chegava a se manifestar em sua personalidade,
prevalecendo assim o lado bom. Ele confessa a Henriqueta que por
vezes era assaltado por pensamentos torpes de egoísmo: “Que coisa
dolorosamente grave, em mim, esse indivíduo infame, diabólico, que eu
carrego toda a vida comigo. E que eu, nem só ‘não quero’, mas me seria
impossível ser.”390 Embora ele afirmasse ser naturalmente bom e não
saber odiar nem desejar mal a ninguém, sentia-se assombrado por esse
conflito interior: “Porém, com isso, a ideia, o sentimento do mal me
persegue, pior: vive em mim, obscuramente, numa briguinha vil, escusa,
de todo instante. (...) E então eu tenho a certeza: eu só não sou péssimo,
porque sou falso.”391
Em seguida, o escritor comenta ter observado que a noção de
culpa atravessa a sua obra inteira. Ele cita o verso “Há um
arrependimento vasto em mim”, do poema “Pela Noite de Barulhos
espaçados...”, presente em Remate de Males (1930).392 Ele afirma

389
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 11 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 146.
390
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 233.
391
Ibidem, 2010, p. 234.
392
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. Ibidem 2010,
p. 235.
perceber que a sua obra destila um veneno sub-reptício, de gotinhas
imperceptíveis, que desgraça os outros. Mas, a seguir, questiona: “Será
que esse veneno existe? Não chego a saber com consciência.”393 E
observa haver em seus contos uma incongruência pueril, pois neles o
escritor se mostra como uma pessoa moralmente condenável, mas no
final acaba deixando transparecer as suas virtudes:

É que em todos os contos eu insisto muito em me


garantir ruim, perverso, cheio de vícios, baixo, vil,
e no entanto, os casos que sucedem não provam
isso, mas sim que sou um sujeito bom,
moralmente sadio, cheio do caráter, digno e
enérgico! Achei isso esplêndido como retrato de
mim, e saído assim, inconsciente como saiu, vale
mais que uma confissão.394

Henriqueta parecia querer desvelar em Mário uma faceta virtuosa


por trás do lado mau, o menino e o sonhador por trás do homem
maduro, com suas dúvidas, mas ainda esperançoso: “Onde se acha o
valor senão no esforço? Entretanto, por mais complexo que seja o seu
mundo interior, fico teimando em que o mal não participa do seu ser em
essência. Família, educação podem ser freios, mas o amor ao bem é
impulso, Mário.”395

1.13.1 Trezentos e cincoenta

Mário de Andrade é um artista multifacetado e arlequinal , uma


personalidade complexa, repleta de ramificações e nuances: “Eu sou
trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,/ Mas um dia afinal eu toparei
comigo…/ Tenhamos paciência, andorinhas curtas,/ Só o esquecimento
é que condensa,/ E então minha alma servirá de abrigo.”396

393
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 235.
394
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 235.
395
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 236.
396
ANDRADE, M. de. Eu sou trezentos. In: De Pauliceia Desvairada a Café -
Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.
Essa multiplicidade remete não apenas às nuances de sua
personalidade, mas também à sua aspiração de se projetar no outro e
comungar com o povo de seu país, incorporando em sua subjetividade a
unidade paradoxal da multiplicidade. Mário rompe com a barreira entre
o intelectual e o povo e se coloca como parte integrante dele, utilizando
a sua individualidade para dar voz à multiplicidade desse povo e
transfigurá-la em seu eu lírico, numa tensão permanente entre o
individual e o coletivo. Nas palavras de Wilson Martins: “Ele foi
trezentos, trezentos e cinquenta, sem se fragmentar, e, ao contrário
completando-se incessantemente a si mesmo. Na sua multiplicidade, ele
tinha a “vocação da unidade” – a vocação que lhe inspiraria certa
ocasião o admirável poema inicial do Remate de males”.397
No texto “O Mário que eu conheci” , Antonio Candido descreve a
personalidade do amigo, que pertencia a uma geração anterior à sua,
mas que teve oportunidade de conhecer em 1940, a partir de uma visita
que ele lhe fez, ao lado de Paulo Prado e Paulo Emilio Salles Gomes. O
crítico passou então a manter com Mário “relações cordiais mas meio
cerimoniosas, embora se vissem com certa frequência”, já que a partir
de 1942 ele namorou a sua prima, Gilda de Moraes Rocha, que morava
com o escritor:

Mário de Andrade era um homenzarrão feio e


simpático, muito cordial, com um riso bom que
quando virava gargalhada sacudia o seu corpo
inteiro. Era certamente um feio charmoso que
despertou várias paixões. Vestia-se bem, usava
uns chapéus de aba meio larga enterrados na
cabeça e calçava sapatos sob medida da Sapataria
Guarani, a mais cara de São Paulo, sempre no
modelo escocês furadinho de bico afinado. Os pés
e as mãos eram enormes e ele me parecia ter
pouca naturalidade, mas com os íntimos devia ser
diferente.
Um dos seus hábitos mais constantes era ir,
geralmente à noite, tomar chope no Bar
Franciscano, que ficava na Rua Líbero Badaró
perto de uma esquina da Avenida São João, com

397
MARTINS, Wilson. A ideia modernista. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p.
266.
fundo envidraçado sobre o Vale do Anhangabaú.
Sentava numa mesa redonda de canto, perto do
balcão, e ia consumindo sucessivas "pedras", que
são canecas grandes de louça clara. Os amigos
sabiam que podiam encontrá-lo no Franciscano e
ele costumava marcar encontros lá, por vezes à
tarde.398

Mário se tornou um intelectual prestigiado quando era ainda


muito jovem. Entre 1935 e 1938, foi diretor do Departamento de Cultura
de São Paulo, onde desenvolveu um projeto pioneiro de educação e
divulgação artística e musical, planejou a Biblioteca Municipal,
implantou a Discoteca Pública e os parques infantis e enviou ao
Nordeste a missão de pesquisas folclóricas. Também criou, ao lado de
Rodrigo Melo Franco de Andrade, o Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, em 1936.
Com o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937 e a mudança
da situação política dominante em São Paulo, Mário deixou a direção do
Departamento de Cultura e assumiu a chefia da Divisão de Expansão
Cultural daquele órgão. Em 1938, pouco depois de instaurado o Estado
Novo de Getúlio Vargas, o escritor demitiu-se do departamento,
frustrado por não ter conseguido fazer com que o seu projeto cultural e
educativo no Departamento de Cultura se consolidasse e ganhasse
continuidade.
Decidido a trocar São Paulo pelo Rio de Janeiro, ele é contratado
pelo Ministério da Educação para chefe da Seção do Dicionário e
Enciclopédia Brasileira, do Instituto Nacional do Livro, sob a gestão do
Ministro Gustavo Capanema – por indicação de Drummond, que era
amigo e Chefe de Gabinete do ministro. Mário também foi crítico
literário e professor de estética na Universidade do Distrito Federal,
onde exerceu o cargo de diretor do Instituto de Artes.
Em seus últimos anos de vida, o escritor modernista passava por
uma crise profunda, em função de desilusões vividas e do surgimento de
várias doenças, conforme relata em carta a Drummond, em novembro de
1944:

398
CANDIDO, Antonio. O Mário que eu conheci. In: Eu sou trezentos, eu sou
trezentos e cincoenta. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008.
Certas dores voltaram, muito parecidas com as
antigas, possivelmente derivadas da úlcera. Isso é
recentíssimo, questão de doze dias pra cá. Mas
agora não é nem mais da úlcera, nem do fígado,
dizem que deve ser algum foco de infecção.
Descobriram que as amídalas estão infectadas e
vou fazer operação delas que, na minha idade, é
coisa muito penosa e exige cuidados. Estou uma
pilha, que as indecisões e dúvidas e delicadezas
ainda ajudam a estourar mais. Mas se vê pelas
minhas cartas de todos os tempos que se eu quero
me gastar e não conservar a vida, não se trata de
nenhuma desistência, de nenhuma covardia atual,
de nenhum suicídio. É questão de temperamento,
de realidade instintiva do meu ser. Tudo
organizado em norma de vida, reconheço, mas
isto é porque eu sou mesmo organizado, o
"professor". Mas fundamentalmente
temperamental. "Oh sono, vem!... que eu quero
amar a morte, com o mesmo engano com que
amei a vida." Amém.399

1.13.2 A prisioneira da noite

Nascida em Lambari, em 15 de julho de 1901, Henriqueta


realizou os estudos iniciais e diplomou-se normalista no Colégio Sion de
Campanha, na sua cidade natal, onde viveu até 1924, ano em que se
mudou com a família para o Rio de Janeiro. Na então Capital Federal,
seu pai, João Lisboa, exerceu o cargo de deputado federal. No ano
seguinte, Henriqueta iniciou sua carreira literária com a publicação de
Fogo Fátuo (1925). Em 1931, com o livro Enternecimento, recebeu o
Prêmio de Poesia Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras.
Dedicou-se também à tradução de Gabriela Mistral e de Dante: O Alvo
Humano.
Em 1935, ela fixou residência em Belo Horizonte, onde passou a
atuar como poeta, tradutora e ensaísta. Seu livro de poemas Velário foi
publicado um ano depois, em 1936. A poeta mineira iniciou a sua

399
ANDRADE, Mário. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 203.
carreira como professora do ensino superior na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras Santa Maria, da Universidade Católica de Minas
Gerais (posterior PUC/MG), em 1943, onde passou a lecionar literatura
brasileira e hispano-americana. Henriqueta contou a novidade a Mário
em fevereiro de 1943: “E já sou catedrática da Faculdade, sabe? Meio
contente, meio preocupada, estudando como posso, com interrupções
mortificantes – ah! Se eu tivesse um refúgio de silêncio”! – Preparando-
me para transmitir um conceito sadio de literatura, o que é difícil...”400
Henriqueta atuou também como Inspetora Federal de Ensino
Secundário, conforme relata em carta a Mário: “Esta segunda quinzena
de novembro vai ser penosa para a Inspetora de Ensino. Com os exames
escritos e orais há um grande acúmulo de deveres. E o pior é que acho a
cousa de uma insipidez ímpar!”401
A poeta mineira foi ainda membro do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais e professora de Literatura Geral da Escola
de Biblioteconomia da UFMG. Em 1963, tornou-se a primeira mulher
eleita para a Academia Mineira de Letras. Em março daquele ano, ela
resume para Mário a sua trajetória até então:

Trabalhando, dando aula, vivendo simples o


cotidiano, tenho estado num grande silêncio, num
grande recolhimento depois de sua última carta.
Quanta cousa me disse você! Que cuidado me
inspira a sua saúde! Que enlevo me causa a
oferenda, e a releitura dos “Poemas da Amiga” – e
eu sem saber explicar a minha confusão diante
desse delicado espelho no qual já havia buscado e
pressentido, entre ciumenta e vaidosa, reflexos da
minha própria imagem! 1929-1939 foi tempo de
provação para mim, para toda minha família.
Desengano de coração, doenças, a queda política
de meu pai, dificuldades financeiras, mudança de
casa no Rio, procura de trabalho remunerado para
mim, um ano de magistério em cidadezinha de
interior, perspectiva de ter que morar lá! E depois

400
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 12 fev. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 216.
401
Carta de Henriqueta Lisboa para Mário de Andrade, 15 nov. de 1940.
Ibidem, 2010, p. 129.
a morte de minha irmã... Em 1935 estávamos
afinal em Belo Horizonte: tudo melhorara, eu
tinha uma colocação relativamente boa. Aqui me
sentia capaz de viver, principalmente diante de
uma janela bem aberta, entre os meus livros e
rabiscos. Mas as cousas passadas redundaram para
mim em consciência da própria dignidade,
resistência, capacidade de compreensão e de
escolha, dom de amizade, de amor. Para que nós
pudéssemos reconhecer um ao outro. Vivendo
neste mesmo Brasil, neste mesmo século vinte,
nesta mesma tribulação pelas cousas ideais. Poder
misterioso de Deus! Por nós dois.402

1.14 A rotina dos escritores

Ars longa, vita brevis.


Hipócrates

Mário e Henriqueta buscavam conciliar a dedicação à criação


artística com as demandas de seus empregos subsidiários. Nessa época,
era muito difícil, quase impossível, para um escritor brasileiro,
principalmente um poeta, dedicar-se exclusivamente à sua arte (como
ainda o é hoje). O escritor tinha que se desdobrar para realizar trabalhos
subsidiários, seja como jornalista, professor, funcionário público ou
alguma outra profissão, para garantir a sua subsistência e ter tempo para
criar a sua obra.
Mário vivia uma profunda crise pessoal, após ter sido afastado da
direção da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, com a posse
do prefeito Prestes Maia, em substituição a Fábio Prado. Atuar como
diretor do Departamento de Cultura tinha sido para ele uma
oportunidade de colocar em prática as suas ideias para a área cultural,
contribuir para desenvolver um projeto cultural para o país, participar
mais efetivamente da vida política e social e facilitar o acesso das
camadas populares à cultura da elite. Ao fazer um balanço de sua vida,
no final de 1940, ele comenta com Henriqueta sobre a crise que

402
Carta de Henriqueta Lisboa para Mário de Andrade, 30 mar. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 249-250.
atravessava, mostrando-se desgostoso com o emprego no Ministério da
Saúde, no Rio de Janeiro:

Já vai passando, é verdade, mas atravesso uma das


crises mais agudas da minha incompatibilidade ou
incompetência de viver. O tema é o mesmo, é
sempre esta coisa pavorosa de ser não sendo, ter
um emprego e não trabalhar, ter uma casa,
família, livros, obras-de-arte e longe de tudo isso.
Fim de ano: e as recordações, as verdades, os
exames-de-consciência se açaimam, se exasperam
e arrombam toda a máscara com uma coragem
brutal. Juízo nítido de que estou me
desmoralizando. E a certeza cruel de que desde
que vim pro Rio em 1938, faz três anos sou um
homem que não vive, e está à espera de que as
coisas mudem pra que ele retome a vida deixada
em suspenso desde então.403

Em 1941, Mário resolve largar o emprego no Rio e voltar pra São


Paulo, em busca de refúgio em sua casa, junto à família, à Rua Lopes
Chaves 546, na esperança de encontrar tempo e forças pra se dedicar à
escrita: “A minha casa me defende, que sou, por mim muito desprovido
de defesas. E sobretudo a minha casa me moraliza, no mais vasto
sentido desta palavra, até quanto a me tornar mais normalmente
produtivo naquilo que eu sou.”404 Nessa época, ele trabalhava como
comissionado do SPHAN e colaborava com a revista Clima, o Diário de
S. Paulo e a Folha de S. Paulo.
Porém, mesmo com a volta do escritor para São Paulo, as
obrigações em seu emprego no Patrimônio Histórico e os compromissos
do intelectual consagrado continuaram a ocupar quase todo o seu tempo.
Mário descreve um dia em sua rotina: trabalhar seis horas por dia na
leitura atenta e minuciosa de pesquisa em documentos antigos; atender
aos chamados constantes de Portinari, durante visita do artista a São

403
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 27 dez. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 132.
404
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1941. Ibidem,
2010, p. 134.
Paulo; empenhar-se para conseguir fundos pra comprar uma obra de
Portinari; ensaios de concerto de Mignone; ajudar na exposição de
Enrico Bianco, um pintor amigo; escrever crítica sobre a Exposição De
Fiori; atender à encomenda de quatro artigos para jornais; escrever
conferência pra Cultura Artística sobre Romantismo na Música.405
Para dar conta de tantos afazeres, Mário provavelmente precisou
sacrificar a sua vida pessoal, como observa Sérgio Miceli:

Sendo autodidata, Mário teve que fazer


investimentos intelectuais de tal monta que
acabou cobrindo quase todos os domínios
literários, artísticos e científicos da época (da
literatura às belas-artes e à música, do folclore à
etnografia e à história), ao preço de permanecer
solteiro e misógino toda sua vida, em companhia
da mãe, da madrinha, da irmã mais moça e da
preta Sebastiana que trabalhava para a família.406

O poeta modernista costumava dizer que lhe faltavam


determinação e vontade pra se dedicar à grande obra, preferindo dedicar
o seu tempo a escrever cartas e auxiliar os amigos escritores: “O que eu
valho, talvez fique mais nas cartas e nas formas subterrâneas da vida, as
conversas, a presença do amigo, a força de uma inteligência auxiliar,
coisas assim. Nunca me supus o Artista. Jamais pretendi ficar. Sou
excessivamente sensual, por demais gostador do minuto que passa, pra
economizar minhas forças (que reconheço, sem vaidade, muito grandes)
e realizar a obra-de-arte com valor permanente”.407
Em março de 1942, Mário conta a Henriqueta que até andava
trabalhando e lendo muito, evitando cometer exageros e fazer
escândalos, mas não conseguia se livrar dos trabalhos burocráticos e
subsidiários para se dedicar à literatura: “Eu devia era mandar o meu
ganha-pão plantar batatas, me arranjar de qualquer jeito, não ter
duzentos réis pra bonde, andar de roupa gasta no corpo, mas estar

405
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 138-139.
406
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, p. 230.
407
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, set. 1941. Ibidem, 2010,
p. 165.
escrevendo um romance, preparando o meu curso do ano que vem. Isso
que eu devia fazer. “408
O escritor reclama da rotina do intelectual, de seus compromissos
constantes com conferências e artigos, da falta de tempo para se dedicar
à produção literária, da saúde frágil. Não bastasse tudo isso, havia ainda
a sombra da Segunda Guerra: “É a guerra, a guerra em si, a chegada
mortífera da primavera que me arrombou todas as últimas comportas do
equilíbrio”.409
O contexto histórico se mostrava bastante inóspito aos escritores,
seja por causa da ditadura no país ou da guerra, como expressa
Henriqueta: “Ó este cemitério florido que é Belo Horizonte, este pão
nosso de cada dia, tanta inutilidade, tanta incompreensão, e esses
horrores de guerra, guerra e mais guerra, a gente chega a ouvir os gritos
da distância!”410
Em meio a um excesso de afazeres diários, a busca por alcançar
uma disciplina para aproveitar bem o tempo era uma preocupação
constante de Mário. Ele confidencia à amiga que até utilizava um
caderno de anotações em que atribuía a si mesmo notas pelo seu
rendimento diário: “Eu sou muito infantil... Não há dúvida nenhuma que
o caso de tomar nota diariamente do que faço e do que preciso fazer e
ainda por cima me atribuir ao dia uma nota de aprovação vital,
contribuiu decisoriamente pra eu me enriquecer assim de... de
vivência(!).”411
Henriqueta acha graça na iniciativa do amigo e lembra que ela
própria tinha um caderninho desses na época em que estudava no
Colégio, onde toda aluna devia dar a si mesma a nota da véspera e ela
sempre merecia a nota máxima: “(...) às vezes me escandalizava com as
outras que se atribuíam notas imerecidas, às vezes com o som da minha
própria voz. Hoje percebo o quanto era exagerada de escrúpulos.

408
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 20-22 mar. 1942.
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 202.
409
Carta de Mário de Andrade para Henriqueta Lisboa, 26 abr. 1942. Ibidem,
2010, p. 206.
410
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 27 dez. 1040. Ibidem, 2010,
p. 133.
411
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 7 dez. 1942. Ibidem, 2010,
p. 232.
Naquele tempo eu merecia sempre a nota máxima. Agora estou cansada,
medíocre.” 412
A poeta mineira também precisava se desdobrar em sua rotina
para dar conta dos trabalhos como inspetora e conciliá-los com a
carreira literária: “Agora estou com a inspeção de dois ginásios
(provisoriamente), menos tempo de estudar e rabiscar o que é meu e os
mesmos 900$ mensais.”413
Apesar de seu esforço para se dedicar à sua arte, Mário deixou
alguns trabalhos inconclusos ao final de sua vida. Segundo Marcos
Antonio de Moraes. no ano de sua morte, em 1944, quando tinha 51
anos, ela ainda tinha vários projetos por realizar: “Mário tinha planos de
concluir seu livro O sequestro da Dona Ausente, retomar os estudos de
folclore musical, pôr em marcha O Pico dos Três Irmãos, aprofundando
o estuda da poesia de Bandeira, Drummond e Murilo Mendes. E
reservar ‘um bom espaço pras cartas”’.414
Henriqueta, por sua vez, tinha planos de se dedicar também à
formação artística das professoras mineiras. Após ler o livro Educação
Estética do Homem, de Schiller, ela começou a pensar numa renovação
do mundo pela beleza e em criar um curso de educação estética voltado
para as professoras primárias, uma classe que a poeta mineira
considerava sacrificada economicamente e sem acesso à cultura: “Que
cousa maravilhosa, passar o mundo da vida dos sentidos para a vida
moral através da educação estética!”415
Para a poeta mineira, a criação artística implicava não apenas o
desenvolvimento de uma obra de arte, mas deveria servir também para
se buscar o aprimoramento de si mesma:

Você me fez ver isso, que a maioria dos nossos


poetas não vê. E que alguns veem
demasiadamente: os que apenas acabam,
purificam e transfiguram o real, mas não se

412
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 dez. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 237.
413
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 16 jul. 1942. Ibidem, 2010,
p. 215.
414
MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia
de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007, s/n.
415
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 28 mai. 1943. Ibidem,
2010, p. 254.
completam a si mesmos. Eu não queria desgostar
você dizendo – e tomo o exemplo mais alto – que
Manuel Bandeira é o poeta que não se completou
a si mesmo. A ninguém mais o diria, porque me
parece uma injustiça ferir exatamente aquele que
tanto nos tem dado. – Por outro lado, aqueles que
querem transcender a si próprios nos reinos
filosóficos perdem contato com a substância
artística: Tasso da Silveira, tipo clássico, só
permitindo certa beleza ideal, Murilo Mendes
ultramoderno, querendo emprestar aos sentidos
uma função sobrenatural, Alphonsus Filho
arrastado pela força de uma inspiração que ele não
sabe deter, tantos outros! Foge a essas
observações a poesia do Schmidt que é
geralmente pura mas que se prejudica pela
abundância; a origem é pura – vinho doce – mas
vem muitas vezes misturado com água esse
vinho.416

Em outra passagem, Henriqueta resume o paradoxo que envolve a


criação artística, cuja atividade se volta principalmente para a realização
da própria obra de arte, a despeito da busca do artista para se realizar
como ser humano e cidadão. Essas concepção vai ao encontro do
pensamento de São Tomás de Aquino e Maritain, segundo os quais a
criação artística tem finalidades, regras, valores, que não são aquelas do
homem, mas da obra de arte a ser produzida.417 Henriqueta parece
corroborar esse pensamento:

Veja se tenho razão: a finalidade da arte é nos


realizarmos para nós mesmos, ou para a
humanidade; a finalidade da vida é nos

416
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade,10 mar. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 246.
417
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 25.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
realizarmos para algo de superior a nós. Essa
divergência de objetivos entre as duas cousas que
são para nós, às vezes, uma só cousa – arte e vida
– torna mais intrincados os problemas morais do
artista. 418

A vida disciplinada dos dois escritores parece estar relacionada


com o ascetismo cristão, que envolve certas práticas que buscam a
austeridade e o desenvolvimento espiritual. Segundo Joan Dassin, esse
vínculo com a religião pode ser percebido tanto na conduta disciplinada
de Mário quanto no idealismo de sua poesia:

O idealismo e a autodisciplina combinam-se,


portanto, na visão que Mário tem do verdadeiro
artista e de sua obra. A exigência de
autodisciplina reflete claramente a educação
religiosa do crítico; a exigência de idealismo,
expressa com grande lirismo em muitos de seus
escritos, reflete o sentido mais universal que seu
catolicismo lhe legou.419

Os dois missivistas precisavam levar uma vida dupla, como


escritores e funcionários públicos, para conseguirem se dedicar à sua
arte – e também manter o padrão de vida social ligado às elites. Em
carta a Henriqueta, Mário menciona a sua vontade de não se submeter às
exigências do funcionalismo público, mas se mostra premido pelas
constrições sociais:

E ainda o funcionalismo entra com exigências


novas que eu não estou disposto a aceitar.... Enfim
uma vida de bravura, cheia de malabarismos e
falsificações. E o pior é que tenho a consciência
de que tudo se arranjava fácil, se não fosse o
“pudor do mundo”, as obrigações sociais, o

418
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 10 abr. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 202.
419
DASSIN, Joan. Política e Poesia em Mário de Andrade. São Paulo: Duas
Cidades, 1978, p. 130.
compromisso de não fazer uma Mãe sofrer...
Bolas!420

Apesar de querer preservar a sua colocação social, Mário foi


percebendo com cada vez mais clareza que o artista deve buscar manter
uma independência com relação aos fatores de ordem econômica que
possam atrapalhar a sua liberdade de ação: “Porque sendo ‘out law’,
extra-econômico por natureza, sem classe por natureza, sem povo por
natureza, sem nação, o artista não deixa por menos: o que ele exige é a
humanidade”.421
Em outubro de 1944, Mário conta a Henriqueta que havia
aconselhado a um jovem romancista que ganhasse a vida nas horas
vagas e trabalhasse os seus romances nas horas úteis: “Puxa, como isso
sou eu! Sou eu por inteiro nas épocas legítimas, nas fases honestas da
minha existência, que, por sinal, não são raras.”422
As dificuldades enfrentadas por Mário e Henriqueta para garantir
a subsistência e se dedicar à sua arte se relacionam com as relações de
poder estabelecidas na sociedade a partir do século XVIII, com a
Revolução Industrial e o posterior desenvolvimento de uma indústria
cultural, no século XX. Conforme observa Pierre Bourdieu, os escritores
precisam se submeter a uma estrutura de poder que se institui a partir de
duas mediações principais: de um lado o mercado, cujas sanções ou
sujeições se exercem sobre as empresas literárias, seja diretamente, a
partir das cifras de vendas, do número de recebimentos, etc., seja
indiretamente, a partir dos novos postos de trabalho oferecidos pelo
jornalismo; de outro lado, as ligações duradouras, baseadas em
afinidades de estilo de vida e de sistema de valores que, especialmente
por intermédio dos salões, unem pelo menos uma parte dos escritores a
certas frações da alta sociedade, e contribuem para orientar as
generosidades do mecenato de Estado.423
Segundo o autor, a história da vida intelectual e artística das
sociedades europeias revela-se a partir da história das transformações da

420
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 mar. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 128-129.
421
ANDRADE, Mário de. O banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 64.
422
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 mar. 1944. Ibidem,
2010, p. 304.
423
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo
literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 65.
função do sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura
desses bens, transformações correlatas à constituição progressiva de um
campo intelectual e artístico, ou seja, à autonomização progressiva do
sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens
simbólicos. Tal processo foi acelerado pela Revolução Industrial e o
desenvolvimento de uma indústria cultural – em particular, devido à
relação que se instaura entre a literatura e a imprensa, que favorece a
produção em série de obras elaboradas segundo métodos semi-
industriais (como o folhetim) e facilita o acesso ao consumo cultural
(com a leitura de romances, por exemplo). A partir de 1830, a sociedade
literária isola-se na indiferença ou hostilidade em relação ao público que
compra e lê, ou seja, isola-se do “burguês”. A produção cultural
tenderia, a partir daí, a obedecer à sua lógica própria, qual seja, a da
superação permanente determinada pela dialética da distinção
propriamente cultural. 424
A vida intelectual e artística, até então dependente da Igreja e da
aristocracia, havia se libertado gradualmente, tanto econômica quanto
socialmente, de instâncias de legitimidade externas, bem como de suas
demandas éticas e estéticas. Tal processo sucedeu em meio a uma série
de outras transformações: a) a constituição de um público de
consumidores virtuais cada vez mais extenso e diversificado, capaz de
propiciar aos produtores de bens simbólicos não somente as condições
mínimas de independência econômica, mas concedendo-lhes também
um princípio de legitimação paralelo; b) a constituição de um corpo
cada vez mais numeroso e diferenciado de produtores e empresários de
bens simbólicos, cuja profissionalização faz com que passem a
reconhecer somente um certo tipo de determinações, como por exemplo
os imperativos técnicos e as normas que definem as condições de acesso
à profissão e de participação no meio; c) a multiplicação e a
diversificação das instâncias de consagração competindo pela
legitimidade cultural, como por exemplo as academias, os salões (onde a
aristocracia mistura-se com a intelligentsia burguesa e passa a adotar
seus modelos de pensamento e suas concepções artísticas e morais), e
das instâncias de difusão, cujas operações de seleção são investidas por
uma legitimidade propriamente cultural, ainda que (...) continuem
subordinadas a obrigações econômicas e sociais capazes de influir, por
seu próprio intermédio, sobre a própria vida intelectual.425

424
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução,
organização e seleção Sergio Miceli. São Paulo: Perspectriva, 2007, p. 106.
425
Ibidem, 2007, p. 99.
Assim, o processo de autonomização da produção intelectual e
artística é correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta
de artistas ou de intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a
levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição
propriamente intelectual ou artística herdada de seus predecessores.
Porém, a ruptura dos vínculos de dependência em relação a um patrão
ou a um mecenas e em relação a encomendas diretas propicia ao artista
uma liberdade que logo se lhe revela formal, sendo apenas a condição de
sua submissão às leis do mercado de bens simbólicos, que (...) surge
através dos índices de venda e das pressões dos detentores dos
instrumentos de difusão, editores, diretores de teatro, marchands de
quadros.426
Segundo Bourdieu, o grau de autonomia de um campo de
produção erudita pode ser medido com base no poder de que dispõe para
definir as normas de sua produção, os critérios de avaliação de seus
produtos e, portanto, para retraduzir e reinterpretar todas as
determinações externas de acordo com seus princípios próprios de
funcionamento.427 Segundo o autor, o campo literário e artístico
constitui-se como tal na e pela oposição a um mundo “burguês”:

Não se pode compreender a experiência que os


escritores e os artistas puderam ter das novas
formas de dominação às quais se viram sujeitos na
segunda metade do século XIX, e o horror que a
figura do "burguês" por vezes lhes inspirou, se
não se tem uma ideia do que representou a
emergência, favorecida pela expansão industrial
do Segundo Império, de industriais e de
negociantes com fortunas colossais (...), novos-
ricos sem cultura dispostos a fazer triunfar em
toda a sociedade os poderes do dinheiro e sua
visão do mundo profundamente hostil às coisas
intelectuais.428

426
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução,
organização e seleção Sergio Miceli. São Paulo: Perspectriva, 2007, p. 104.
427
Ibidem, 2007, p. 106.
428
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte, Gênese e estrutura do campo
literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 65.
Porém, de acordo com o pesquisador Luciano Martins, o campo
cultural brasileiro nas primeiras décadas do XX não configurava um
campo cultural no sentido formulado por Bourdieu, pois se encontrava
ainda “em aberto, por estruturar-se; uma estruturação que pode obedecer
a uma outra lógica”.429 Para ele, a intelligentsia que se constituiu no
Brasil, no início dos anos 1920, fracassou no momento de estruturar um
campo cultural, pois prescindia de instituições próprias e sentia a
constante intervenção do Estado, principalmente sobre as universidades,
já nos anos 1930.430 Além disso, cerca de 56% da população brasileira
era analfabeta.
Guardadas as proporções, podemos fazer uma aproximação entre
as transformações ocorridas na vida cultural brasileira no início do
século XX com aquelas que se passaram na França no fim do século
XVIII, em que se verifica o surgimento de um estilo de vida boêmio e
associado às artes em oposição à burguesia. Segundo Bourdieu, com a
reunião de uma população muito numerosa de jovens que aspiram a
viver da arte, e separados de todas as outras categorias sociais pela arte
de viver que estão começando a inventar, verifica-se na Europa, desde o
fim do século XVIII, o surgimento de uma verdadeira sociedade na
sociedade.431 O estilo de vida boêmio, que se elaborou tanto quanto
contra as rotinas da vida burguesa quanto contra a existência bem-
comportada dos pintores e dos escritores oficiais, trouxe uma
contribuição importante à invenção do estilo de vida de artista, com a
fantasia, o trocadilho, a blague, as canções, a bebida e o amor sob todas
as suas formas.432
Realidade ambígua, a boemia desafia classificações: próxima do
"povo", com o qual frequentemente partilha a miséria, ela está separada
dele pela arte de viver que a define socialmente e que, mesmo que a
oponha ostensivamente às convenções e às conveniências burguesas, a
situa mais perto da aristocracia ou da grande burguesia que da pequena
burguesia bem-comportada (...).433 Sintoma disso é a proximidade entre
os modernistas brasileiros e a aristocracia cafeeira, no início do século

429
MARTINS, Luciano. A gênese de uma intelligentsia: os intelectuais e a
política no Brasil – 1920 a 1940. Revista brasileira de ciências sociais, São
Paulo, v. 2, n. 4, p. 65-87, jun. 1987.
430
Ibidem, p. 65-87, jun. 1987.
431
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte, Gênese e estrutura do campo
literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 72.
432
Ibidem, 1996, p. 72.
433
Ibidem, 1996, p. 73.
XX. Porém, durante a era Vargas, a burguesia industrial se fortaleceu e
passou a ocupar posições de mando, enquanto o poder das oligarquias
agrárias declinava. A classe média e o operariado cresceram e se
tornaram cada vez mais participantes da vida política, principalmente a
partir de 1930.
De acordo com Antonio Candido, no Brasil do final do século
XIX, a literatura ampliou o seu público após haver-se incorporado ao
civismo da Independência; além disso, ganhou aceitação pelas
instituições governamentais, com a decorrente dependência em relação
às ideologias dominantes.434 Os escritores tinham então o seu
comportamento controlado, na medida em que eram geralmente
funcionários do governo ou recebiam algum tipo de apoio oficial.
Segundo o crítico, verifica-se uma mudança ao longo do século, devido
em parte às próprias faculdades jurídicas: a reação ante essa ordem
excessiva teria se dado por iniciativa do boêmio e do estudante, que
muitas vezes eram o escritor antes da idade burocrática”.435 Oswald de
Andrade, no prefácio que escreveu para Serafim Ponte Grande, em
1933, chama a atenção para o fato de que a crítica à burguesia teria
surgido no Brasil a partir do boêmio, e não do proletário: “A situação
‘revolucionária’ desta bosta mental sul-americana apresentava-se assim:
o contrário do burguês não era o proletário - era o boêmio!"436
Antonio Candido assinala ter havido alterações importantes no
panorama cultural brasileiro na primeira metade do século XX,
“principalmente com a ampliação relativa do público, o
desenvolvimento da indústria editorial, o aumento das possibilidades da
remuneração específica. Em consequência, houve certa desoficialização
da literatura, que havia se tornado refém dos padrões acadêmicos, em
que o escritor era visto como “ornamento da sociedade”.437
De acordo com Sérgio Miceli, a possibilidade de a elite
intelectual ter acesso às profissões ligadas ao poder no Brasil daquela
época dependia, em grande parte, da relação de proximidade dessas
classes sociais à elite econômica da classe dominante e de seu capital

434
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz,
2000; Publifolha, 2000, p. 75.
435
Ibidem, 2000, p. 77.
436
ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. Maria Augusta Fonseca
(org.). São Paulo: Globo, 2000, p. 55.
437
Ibidem, 2000, p. 79.
cultural e social.438 Segundo o autor, os intelectuais brasileiros
descendentes das classes abastadas, geralmente vinculados à oligarquia
e ao mecenato burguês, utilizaram estratégias e jogos de influência para
ocupar postos de trabalho criados nos setores públicos e privado entre
1920 e 1945, sobretudo após a derrota política da oligarquia, em 1930:

Os escritores participantes do movimento


modernista em São Paulo foram beneficiados pelo
mecenato burguês exercido diretamente por
famílias abastadas e cultas, ao passo que os
intelectuais cooptados para o serviço público
acabavam se filiando às "panelas" comandadas
pelos dirigentes da elite burocrática.439

Porém, como vemos no balanço feito sobre o Movimento


Modernista, embora buscasse a todo custo a sua independência como
artista, Mário havia se dado conta de que ele e os modernistas tinham
atuado em favor de uma construção cultural a serviço da burguesia que
pensavam combater:

O engraçado é que os que chamaram aos


modernistas de "destruidores" assim como os
modernistas que se imaginaram tais, todos se
enganaram. Na verdade, embora destruindo
cânones e escolas de arte, embora destruindo certa
burrice da rigidez moral e intelectual, já inúteis,
da burguesia, o que se fez foi sempre construção a
serviço dessa mesma burguesia.440

Essa avaliação, no entanto, se mostra um tanto severa, pois os


modernistas, embora mantivessem ligações com a burguesia, ao mesmo
tempo tinham uma postura crítica em relação a ela. Segundo aponta
Antonio Candido, a “libertinagem espiritual do Modernismo” teria

438
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, s/p..
439
Ibidem, 1979, p. XX.
440
ANDRADE, Mário de. O banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 66.
contribuído para a negação da ordem estabelecida, “sem a qual não se
desenvolve a rebeldia social e o consequente radicalismo político”.441
Segundo Mário, o modernismo prefigurava, além da revolução
estética, uma arte dirigida em sentido social, propagadora de ideias,
como defende no artigo sobre o movimento publicado em O
Empalhador de Passarinho:

Graça Aranha concluía, num dos seus ensaios, que


o Modernismo não devia se confinar à
preocupação estética, mas tinha que se completar,
intervindo na política também. Antes disso, já
vários teóricos e poetas da Klaxon abandonavam
as artes e eram pioneiros na formação do Partido
Democrático em São Paulo; e, ainda mais
sintomático que isso, na maioria dos modernistas,
quem quer lhes estude as páginas teóricas e os
manifestos de então, perceberá o espírito
insatisfeito contra a própria pasmaceira
democrática e a tendência (quando não, adesão
franca) para as extremas. Veio a revolução de 30.
Provocada pelo Modernismo? Deus me livre dizer
semelhante bobagem! Mas na sua força formava
aquele mesmo Partido Democrático, que fora o
principal preparador dela. E na sua aceitação
burguesa havia sempre uma vontade do novo que
fazia dez anos os modernistas pregavam e
ensaiavam. Foi um bem? foi um mal? Foi uma
necessidade, ordem natural de evolução pra
milhores futuros.442

Mas como podemos pensar a relação que se estabelece entre as


práticas diárias adotadas pelos escritores e a sua atividade artística? De
que modo a dedicação à criação artística se relaciona com a
autodisciplina e com o autodesenvolvimento do artista? Como observa
Maritain, a criação artística tem finalidades, regras, valores, que não são

441
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz,
2000; Publifolha, 2000, p. 123.
442
ANDRADE, Mário. “Modernismo”. In: O Empalhador de Passarinho. São
Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 157.
aquelas do homem, mas da obra de arte a ser produzida. Por isso, requer
um habitus – adquirido a partir do exercício e uso – voltado para a obra
de arte, e não para o homem.443 Esse conceito de habitus da arte se
distingue da noção de hábito mecanizado e subordinado a uma rotina
que conhecemos no senso comum, e significa exatamente o oposto a ele.
Segundo o autor, o habitus operativo da arte, que possui
qualidades estáveis e atesta a atividade do espírito, reside principalmente
em uma atividade imaterial, baseada na inteligência ou na vontade.
Enquanto saúde e beleza são habitus do corpo, a alma exige um habitus
voltado para a ação, capaz de aperfeiçoá-la em seu próprio dinamismo:
os habitus operativos, que constituem as virtudes intelectuais e
morais.444 Esse habitus é uma virtude, isto é, uma qualidade que,
triunfando sobre a indeterminação original da faculdade intelectual, e ao
mesmo tempo afiando e temperando a sua atividade, projeta, com
referência a um objeto definido, uma meta máxima de perfeição e,
portanto, de eficiência operativa e dos meios de expressão.445 Mas se a
arte é uma virtude do intelecto prático, e se toda virtude tende
exclusivamente ao bem (isto é, ao verdadeiro, no caso de uma virtude do
intelecto), devemos concluir a partir disso que a arte como tal nunca se
engana, e que implica uma inviolável retidão. Caso contrário, ela não
seria um habitus propriamente dito, estável em sua própria natureza.446
São Tomás de Aquino já havia apontado, na “Summa contra os
Gentis”, que o exercício de uma prática artística não pode constituir a
felicidade do homem:

A última felicidade (ultima felicitas) do homem


não pode consistir na operação de uma arte (in
operatione artis)”. A finalidade da arte é, pois, a
produção de artefatos (artificiata), e estes não
podem constituir o fim da vida humana, porque,

443
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 8.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
444
Ibidem, 2005, p. 25.
445
Ibidem, 2005, p. 9.
446
Ibidem, 2005, p. 10.
sendo eles feitos para uso dos homens, o homem é
a finalidade da obra e não o inverso.447

Segundo Agamben, para São Tomás, a última felicidade do


homem consiste, porém, na contemplação de Deus. Portanto, na medida
em que as operações humanas compreendidas pela arte se subordinam à
contemplação de Deus como a sua própria finalidade, é que passa a
existir um nexo necessário entre as operações da arte e a felicidade:
“Para a perfeição da contemplação é, de fato, necessária a incolumidade
do corpo, e, para esta, estão voltados todos os artefatos necessários à
vida”.448
Maritain faz uma distinção entre a esfera da arte, que está no
campo do fazer (a obra de arte), e a esfera da prudência, que está na
esfera do obrar, e portanto discerne e aplica os meios utilizados para se
chegar aos nossos fins morais, os quais, segundo o autor, são eles
próprios subordinados ao fim último de toda a vida humana, isto é, a
Deus.449 Nessa perspectiva, a arte não estaria, portanto, preocupada com
a nossa vida, mas apenas com os seus próprios fins particulares e extra-
humanos. Ela de modo algum tende a fazer com que o artista seja bom
em sua própria ação como homem; a arte tenderia, antes, a buscar o bem
do trabalho produzido – se é que isso era possível –, fazendo em seu
próprio curso de ação um uso perfeito de sua atividade.450
Como vimos anteriormente, o exercício de “escrita de si”, a partir
da correspondência e da relação com o outro, leva a um conhecimento
de si mesmo, uma vez que possibilita ao sujeito exercitar, disciplinar e
amadurecer o próprio pensamento. Já no texto “A hermenêutica do
sujeito”, Foucault discorre sobre o conceito de epiméleia heautoû – o
cuidado de si mesmo – e estabelece uma reflexão histórica sobre o tema
das relações entre a subjetividade e a verdade.451

447
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 145.
448
Ibidem, 2018, p. 146.
449
Ibidem, 2005, p. 6.
450
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 11.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
451
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 15.
Segundo Foucault, a noção de epiméleia heautoû (cuidado de si
mesmo) envolve uma atitude geral, um certo modo de encarar as coisas,
de estar no mundo, de praticar ações e ter relações com o outro. Trata-se
de uma atitude – para consigo, para com os outros, para com o mundo.
Ela implica uma conversão do olhar, que se o conduza do exterior para o
“interior”, para “si mesmo”, que se esteja atento ao que se pensa e ao
que se passa no pensamento. Além disso, a noção de epiméleia envolve
sempre algumas ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas
quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos
transformamos e nos transfiguramos. Daí, uma série de práticas, como
as técnicas de meditação, memorização, exame de consciência,
verificação das representações na medida em que elas se apresentam ao
espírito, etc.452
De acordo com o filósofo, o gnôthi seautón (conhece-te a ti
mesmo), princípio adotado pela cultura ocidental a partir do “penso,
logo existo” de Descartes, está atrelado – e mesmo subordinado – ao
princípio do epiméleia heautoû (cuida de ti mesmo).453 Para o autor, esse
princípio se mostra fundamental para caracterizar a cultura filosófica ao
longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana e também é
encontrado também no limiar do cristianismo, seja na espiritualidade
alexandrina ou no ascetismo cristão. 454
Foucault questiona então por que, a despeito de tudo, a noção de
epiméleia heautoû (cuidado de si), que perdurou cerca de mil anos,
desde as primeiras formas de atitude filosófica até o ascetismo cristão,
foi desconsiderada no modo como o pensamento ocidental refez a sua
própria história: “O que aconteceu para que se tenha privilegiado tão
fortemente o "conhece-te a ti mesmo" e se tenha deixado de lado essa
noção de cuidado de si?”455
Em busca de uma resposta, ele observa haver alguma coisa um
tanto perturbadora no cuidado de si, pois essa injunção soa como a
expressão um pouco melancólica e triste de uma volta do indivíduo
sobre si, incapaz de sustentar uma moral coletiva e que nada mais teria
senão ocupar-se consigo mesmo.456

452
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 15.
453
Ibidem, 2006, p. 7.
454
Ibidem, 2006, p. 12.
455
Ibidem, 2006, p. 16.
456
Ibidem, 2006, p. 16.
Além disso, ele aponta que é a partir da injunção de “ocupar-se
consigo mesmo” que se constituíram as mais austeras, rigorosas e
restritivas morais que o Ocidente conheceu (moral estoica, moral cínica
e, até certo ponto, também moral epicurista). “Temos, pois, o paradoxo
de um preceito do cuidado de si que, para nós, mais significa egoísmo
ou volta sobre si, mas que, durante tantos séculos, foi, ao contrário, um
princípio positivo”.457
Foucault destaca ainda que as regras austeras do "ocupa-te
consigo mesmo" foram por nós retomados e reaparecerão, quer na moral
cristã, quer na moral moderna não-cristã, porém, em um clima
inteiramente diferente. Essas regras austeras foram por nós
reaclimatadas e transpostas para o interior de um contexto que é o de
uma ética geral do não-egoísmo, seja sob a forma cristã de uma
obrigação de renunciar a si, seja sob a forma "moderna" de uma
obrigação para com os outros.458
Ele acredita, porém, haver um motivo bem mais essencial para
esse princípio ter sido deixado de lado, e que concerne ao problema da
verdade e da história da verdade: o "momento cartesiano", que atuou de
dois modos, seja requalificando filosoficamente o gnôthi seautón
(conhece-te a ti mesmo), seja desqualificando, em contrapartida, o
epiméleia heautoû (cuidado de si).459 Assim, o procedimento cartesiano
requalificou o gnôthi seautón e contribuiu para desqualificar o princípio
do cuidado de si e excluí-lo do campo do pensamento filosófico
moderno.460
Porém, segundo Foucault, se chamarmos "filosofia" a forma de
pensamento que se interroga, não certamente sobre o que é verdadeiro e
falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e
falso, sobre o que nos torna possível ou não separar o verdadeiro do
falso e que permite ao sujeito ter acesso à verdade, poderíamos chamar
de "espiritualidade" o conjunto de buscas, práticas e experiências tais
como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar,
as modificações da existência, etc., que constituem, não para o
conhecimento, mas para o sujeito, o preço a pagar para ter acesso à
verdade.461

457
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 17.
458
Ibidem, 2006, p. 17.
459
Ibidem, 2006, p. 18.
460
Ibidem, 2006, p. 19.
461
Ibidem, 2006, p. 19.
Nesse sentido, escrever mostra-se parte de uma prática ascética
em que a criação da obra seria relegada a segundo plano, para
empreender a transformação do sujeito que escreve e ao seu progresso
espiritual. Mas por que o trabalho sobre si, que há de conduzir à
libertação espiritual, precisa do trabalho na produção de uma obra? Essa
é a pergunta que faz Agamben no ensaio Opus Alchymicum, de O fogo
e o relato.462
Segundo Agamben, um exame dos fragmentos em que Foucault
evoca o tema do “cuidado de si” mostra que ele não se situa nunca em
um contexto estético, mas sempre na de uma investigação ética.463 Para
o filósofo, “o resultado de uma aproximação imprudente entre a prática
artística e o trabalho sobre si é o apagamento da obra”, o que fica
evidente nas vanguardas: “A primazia atribuída ao artista e ao processo
criativo ocorre nesse caso, curiosamente, à custa daquilo que se supunha
que eles produzissem. A intenção mais profunda do dadaísmo não se
voltava tanto contra a arte (...) e contra a obra, que era destituída e
ridicularizada”.464 Porém, com a abolição da obra também desaparece
inesperadamente o trabalho sobre si:

O artista, que dispensa a obra para poder se


concentrar na autotransformação, é agora
absolutamente incapaz de produzir em si outra
coisa que não seja uma máscara irônica ou de
exibir, sem nenhum recato, simplesmente seu
corpo vivo. Ele é um homem sem mais conteúdo,
que observa, não se sabe se satisfeito ou
apavorado, o vazio que o desaparecimento da obra
deixou dentro dele.465

O autor observa ainda o progressivo resvalar da atividade artística


para a política: “Aristóteles opusera a poiesis, o fazer do artesão e do
artista, que produz um objeto fora de si, à práxis, a ação política, que
contém em si mesma sua finalidade”. Segundo Agamben, as
vanguardas, que quiseram abolir a obra ao custo da atividade artística,
estão destinadas, queiram ou não, a transferir sua oficina do plano da

462
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 140.
463
Ibidem, 2018, p. 159.
464
Ibidem, 2018, p. 146.
465
Ibidem, 2018, p. 147.
poiesis para o da práxis. Desse modo, se mostram condenadas a abolir a
si mesmas para se transformarem em movimento político.466
Algo semelhante teria ocorrido na alquimia, em que a
transformação dos metais deveria ocorrer concomitantemente com a
transformação do sujeito, e que a busca e a produção da pedra filosofal
coincidam com a criação ou recriação espiritual do sujeito que as
realiza.467
Por outro lado, podemos pensar que trabalhar em uma obra de
arte tem sentido apenas se coincide com a edificação de si mesmo, o que
tornaria a vida a pedra de toque da obra. Nessa perspectiva, “a
verdadeira obra é a vida, e não a obra escrita”, e a criação literária se
mostra um processo de autotransformação em que a escrita transmuta o
poeta em vidente.468
Esse teria sido, segundo Agamben, o caminho escolhido por
Arthur Rimbaud, o poeta de Uma estação no inferno, para quem o
trabalho sobre si é o único meio para ter acesso à obra: “é a obra literária
como protocolo de uma operação realizada sobre si mesmo”.469
Segundo Agamben, a decisão de Rimbaud de abandonar a poesia para
vender armas e camelos na Abissínia e em Áden nos trouxe a
consciência da tentativa romântica de unir a prática mística e a poesia, o
trabalho sobre si na produção de uma obra: “Não admira, então que
perante esse círculo vicioso, o autor tenha muito cedo se sentido
nauseado tanto com sua obra quanto com os ‘delírios’ que ela
testemunhava e tenha abandonado, sem remorsos, a literatura e a
Europa”, observa.470
Para Agamben, a relação com uma prática externa (a obra) se faz
possível ao trabalho sobre si apenas na medida em que se constitui como
relação com uma potência. Um sujeito que buscasse se definir e se dar
forma somente a partir de sua própria obra estaria condenado a
transformar incessantemente a sua própria vida e sua própria realidade
de acordo com a sua própria obra.
Na investigação de Foucault, nessa questão estava também
envolvido um tema mais antigo, o da construção do sujeito – e a moral
de suas ações. O “cuidado de si” se mostra, nesse sentido, uma questão

466
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 148.
467
Ibidem, 2018, p. 150.
468
Ibidem, 2018, p. 141-142.
469
Ibidem, 2018, p. 142.
470
Ibidem, 2018, p. 143.
ontológica, em que o “si com o qual se tem relação não é outra coisa
senão a própria relação. É, em suma, a imanência, ou melhor, a
adequação ontológica do si à relação”. De acordo com Agamben, “não
há um sujeito antes de relação consigo”, e portanto o trabalho de si
sobre si apresenta-se como uma tarefa aporética. Uma vez que o sujeito
não é dado antecipadamente, seria preciso construí-lo tal como um
artista constrói a sua arte. Mas também podemos entendê-la no sentido
de que a relação consigo e com o trabalho sobre si só se tornarão
possíveis se forem conectados com uma atividade criativa.
Segundo Agamben, é na criação, no “ponto da gênese”, e não na
obra, que coincidem perfeitamente criação e recriação. Para o autor, a
partir da relação com o trabalho sobre si, a prática criativa também deve
passar por uma transformação.471 Segundo ele, a criação da obra implica
a relação do artista com uma potência, ou seja, a essência ou a natureza
de cada ser (Espinosa).472 Não se trata, portanto, de que a prática criativa
proporcione uma mediação e um plano de consistência de si para
consigo, remetendo assim a uma prática externa, mas de contemplar a
potência que produziu a obra de arte, o que daria acesso ao ethos, à
“seidade”. “A forma-de-vida é o ponto em que o trabalho numa obra e o
trabalho sobre si coincidem perfeitamente”, conclui Agamben.473
Em um momento crítico da história, em que a razão entrava em
xeque (a razão de modo geral e não só apenas a razão instrumental ou
positivista, como se convencionou dizer), o homem olhava com cada
vez mais desconfiança para a sua própria capacidade de discernimento e
se deparava com os limites do próprio conhecimento – principalmente
em função dos horrores testemunhados na guerra e em Auschwitz –, a
reflexão de Foucault sobre o motivo de a humanidade ter escolhido o
“conhece-te a si mesmo” em detrimento do “cuidado de si mesmo”
adquire importância fundamental.
Podemos pensar que, ao buscar na poesia uma manifestação do
eterno no efêmero, Henriqueta corria o risco de ser devorada pela busca
obsessiva pela perfeição – formal e espiritual –, assim como ocorreu
com a poeta italiana Cristina Campo (1923-1977).474 A aproximação da
criação poética com as suas crenças religiosas faz com que a obra da
poeta mineira corra o risco de se tornar demasiadamente abstrata e

471
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 164.
472
Ibidem, 2018, p. 165.
473
Ibidem, 2018, p. 165.
474
Ibidem, 2018, p. 148.
acessível apenas a um grupo de iniciados: “rondam-na os perigos do
hermetismo, da desumanização, do silêncio total”. 475
Com relação a Mário, o risco era outro – o de transferir a sua
poesia do terreno da poiesis para o da práxis e da política. O problema,
nesse caso, é o sacrifício da própria obra, em nome de uma arte
utilitária, empenhada em causas políticas e sociais. Conforme aponta
Agamben, a tendência de abolição não da arte, mas da própria obra, que
era destituída e ridicularizada – seja em nome de um trabalho sobre si,
da arte-ação utilitária ou de uma atitude metafísica –, fica evidente nas
vanguardas, como no surrealismo, dadaísmo e situacionismo.476
Podemos pensar que, ao fazer uma poesia empenhada, em detrimento
das exigências da própria obra de arte, Mário corria o risco de abolir a
sua poesia para se transformar em movimento político, antes de chegar a
realizá-la plenamente.

1.15 Cartografia de uma crise

Ao analisar o pensamento de Mário, é muito importante observar


o contexto da época, pois uma grande parte do que ele escrevia se
relacionava com questões circunstanciais, que podiam demandar um
posicionamento mais contundente em determinados momentos.
Para compreender alguns posicionamentos que o escritor
modernista adotou no final da vida, como por exemplo a sua decisão de
não aderir completamente ao comunismo e combater a partir de sua
torre-de-marfim, é preciso levar em conta alguns precedentes que o
levaram a tomar essas decisões e a mergulhar numa crise existencial
profunda no final de sua vida.
A seguir, contextualizarei brevemente algumas dessas questões
que se mostram importantes para entender os posicionamentos adotados
pelo escritor no final da vida: a falta de espírito de grupo e de empenho
coletivo por parte dos integrantes do movimento modernista, apontada
no balanço dos 20 anos da Semana de Arte Moderna; a polêmica
envolvendo a sistematização da fala brasileira; e a recepção equivocada
do público e da crítica a Macunaíma.

475
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 81.
476
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato, tradução
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 147-148.
1.15.1 Balanço da Semana de Arte Moderna

Em julho de 1941, Henriqueta sugere que Mário faça um estudo


sobre os 20 anos da Semana da Arte Moderna: “O surto de maior
importância da nossa literatura, e do qual foi você o esteio, não pode e
não deve ser estudado senão por você, particularmente nas suas
consequências.”477
Em resposta, Mário diz que não podia abordar o assunto, para não
se submeter a embates com críticos que não julgava estarem à sua altura,
como o filólogo e folclorista Aires da Mata Machado Filho, com quem
tivera desavenças. “Seria uma ou várias inferioridades que a altivez do
meu espírito me impede absolutamente praticar”.478
Mesmo assim, Mário fez um balanço da Semana de Arte
Moderna em 1942, quando o evento completou duas décadas. A
autocrítica do escritor começou numa série de quatro artigos escritos
para o jornal O Estado de S. Paulo, em fevereiro daquele ano, e
continuou dois meses depois, na conferência “O Movimento
Modernista”, lida por ele em 30 de abril daquele ano, para uma plateia
de estudantes que lotava a Biblioteca do Itamaraty, no Rio de Janeiro.
Mário mostrava-se desapontado com os resultados obtidos pelo
Movimento, por identificar nele a falta de um empenho coletivo que
poderia ter colocado o espírito social e a consciência de grupo acima dos
interesses e das vaidades pessoais. O balanço foi feito numa época em
que se exigia dos artistas e intelectuais uma participação política mais
efetiva, o que, para ele, não teria ocorrido nos primeiros anos do
modernismo brasileiro:

Você compreende: como eu poderia contar


minhas experiências na Semana, sem demonstrar
que o que eu queria era... mais alguma coisa!
Você diz que foi um movimento fundamental na
evolução da inteligência brasileira... Seria, se
todos se sacrificassem. Não foi porque a maioria
desses.... Aqueles quiseram ser maiores, em vez
de apenas superiores. Aqui entram os bastidores.

477
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 31 jul. 1941. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 161.
478
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. Ibidem, 2010, p.
164.
O que não existe é o espírito “social”, a
consciência de grupo, a forma de coletividade. A
Dádiva. Cada qual se buscou, fazendo de si o
Brasil, o Mundo. Daí uma ausência de “cultura”,
no seu mais elevado sentido, uma realidade
coletiva.479

A falta de uma consciência coletiva no país envolvia também


problemas estruturais, como a falta de universidades e o analfabetismo.
No início do século XX, não apenas a literatura brasileira vivia um
descompasso histórico e precisava ser atualizada com relação a seu
momento histórico e as inovações das vanguardas europeias, mas
também a sociedade como um todo, que ainda estava atrelada às suas
heranças coloniais.
Mário descreve o movimento modernista como uma ruptura, um
abandono de princípios e técnicas cristalizadas no passado : “o passado
é lição para se meditar, não para reproduzir”.480 Porém, ele observa que
a liberdade para a experiência criadora acabou por se tornar um entrave
individualista ao desenvolvimento de uma tradição artística: “Ora o
nosso individualismo entorpecente se esperdiçava no mais desprezível
dos lemas modernistas, “Não há escolas!”, e isso terá por certo
prejudicado muito a eficiência criadora do movimento.481
Apesar dos problemas que apresenta em seu balanço, Mário não
deixa de reconhecer os avanços trazidos pelo Movimento Modernista:
“E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade social, uma
liberdade (infelizmente só estética), uma independência, um direito às
suas inquietações e pesquisas que não tendo passado pelo que passaram
os modernistas da Semana, ele nem pode imaginar que conquista
enorme representa.”482
Embora tenha deformado a sua obra por um anti-individualismo
“dirigido e voluntarioso”, naquele momento Mário apontou, em seu

479
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. SOUZA, Eneida
Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São
Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 164.
480
ANDRADE, Mário. “Prefácio Interessantíssimo”. Losango cáqui. In:
Poesias Completas – De Pauliceia Desvairada a Café. Círculo do Livro, s/d, p.
33.
481
ANDRADE, Mário. “O movimento modernista”. In: Aspectos da Literatura
Brasileira. São Paulo, Martins, 1974, p. 243.
482
Ibidem, 1974, p. 251.
balanço, ter havido nela um “hiperindividualismo implacável”. Mesmo
alegando não ser, por natureza, um “político de ação”, ele expõe o seu
incômodo com a falta de posição política do Movimento, que tinha
vínculos com a elite burguesa e a aristocracia cafeeira e incluía artistas
com posições políticas abertamente conservadoras:

O homem atravessa uma fase integralmente


política da humanidade. Nunca jamais ele foi tão
"momentâneo" como agora. Os abstencionismos e
os valores eternos podem ficar pra depois. E
apesar da nossa atualidade, da nossa
nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa
não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não
participamos: o amilhoramento político-social do
homem. E esta é a essência mesma da nossa
idade.

Ainda que afirme que toda a sua obra represente uma “dedicação
feliz” a problemas do seu tempo e sua terra, Mário termina por
reconhecer que a mediação do intelectual e o pragmatismo das pesquisas
dos modernistas corresponderam mais a um trabalho (hiper)
individualista que à expressão almejada de uma coletividade nacional:

Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor


de um homem-de-estudo que fundamentalmente
não sou. (...) Mas eis que chego a este paradoxo
irrespirável? Tendo deformado a minha obra por
um antiindividualismo dirigido e voluntarioso,
toda a minha obra não é mais que um
hiperindividualismo implacável! E é melancólico
chegar assim no crepúsculo, sem contar com a
solidariedade de si mesmo. Eu não posso estar
satisfeito de mim. O meu passado não é mais meu
companheiro. Eu desconfio do meu passado. (...)
Eu creio que os modernistas da S.A.M. não
devemos servir de exemplo a ninguém. Mas
podemos servir de lição. (...) Façam ou se recusem
a fazer arte, ciência, ofícios. Mas não fiquem
apenas nisso, espiões da vida, camuflados em
técnicos de vida, espiando a multidão passar.
Marchem com as multidões!”483

Num contexto histórico assolado pela guerra e pela ditadura, em


que a arte social se fazia cada vez mais necessária e presente, Mário
ficava indignado com a apatia de alguns escritores de sua geração, como
demonstra em carta a Newton Freitas, de 21 de março de 1942:

Neste momento, agora justamente é que bateu um


individualismo total nesses literatos, músicos,
pintores, estudantes: cada qual só pensa em si, na
sua Dor e todas as frases principiam por “Eu
etc...”. É fantástico. Nem culhão pra sair na rua,
nem decência pra conversar quaisquer das forças
morais eternas, amor, amizade, nada. “Eu estou
sofrendo”. Sofrendo o quê? Nem sabem, porque
saber implica atitude, implica ação, implica dever.
Melecas e melecas!484

Após ter lido o balanço sobre o Modernismo feito por Mário,


Henriqueta avalia que o amigo foi rigoroso demais em sua análise e
procura lembrar-lhe as conquistas do Movimento:

Como o Brasil está em você, Mário! Senti isso


uma vez mais lendo O Movimento Modernista,
que recebi com orgulho. É um documento de
excepcional valor. Você pensa e escreve com
todas as faculdades humanas, como queria
Unamuno, e não só com o cérebro. Você
transforma, com uma simplicidade única, as mais
áridas abstrações em coisa sensível, suas ideias
são seres, existem! O que mais me admira é
verificar a raridade desse fenômeno. Mas acho-o
muito pessimista nessa obra, não posso aceitar a

483
ANDRADE, Mário. “O movimento modernista”. In: Aspectos da literatura
brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 255.
484
ANTELO, Raúl. Correspondência Mário de Andrade e Newton Freitas. Org.
int. e notas Raúl Antelo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/
Instituto de Estudos Brasileiros; Florianópolis: Editora da UFSC, 2017, p. 121.
sua desilusão do modernismo, de cujas conquistas
se beneficiam todos aqueles que escrevem hoje –
vivos. Há naturalmente, como em todos os
tempos, os que escrevem mortos – a maioria.485

Embora houvesse muita verdade no balanço de Mário sobre o


Modernismo e na “Elegia de Abril”, o pessimismo que marcou a
conferência também lhe impediu de reconhecer as conquistas
importantes do movimento, inclusive no campo social e político. Em
artigo intitulado "O doente de escrúpulo", Adolfo Casais Monteiro
argumenta que Mário não foi tão individualista assim, pois a consciência
social e política já estava presente desde os seus primeiros livros:

Achar que fora pouco não é achar errado. Em


1927, nem MA poderia ter dito "Marchem com as
multidões". Mas disse: "Eu sou trezentos”, e
escreveu o
“Acalanto do seringueiro”. Como muitas outras
coisas, que não podia destruir, que não destruiu
com o seu mea culpa final (O Movimento
Modernista), que sempre me pareceu ter, a sua
memória me perdoe, qualquer coisa de histeria
autodestrutiva...486

Conforme Gilberto Mendonça Teles, a Semana de Arte moderna


foi um duplo vértice histórico: convergência de ideias estéticas do
passado, apuradas e substituídas pelas novas teorias europeias
(futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo e espiritonovismo); e
também ponto de partida para as conquistas expressionais da literatura
brasileira neste século.487
Para o autor, a grande contribuição da revolução literária de 1922
pode ser resumida nestes dois aspectos: abertura e dinamização dos

485
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 224.
486
MONTEIRO, Adolfo Casais. O Estado de S. Paulo, 27.11.1960. Apud
ANDRADE, Mário. ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário
de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p.
190.
487
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro.
Petrópolis, Vozes; Brasília, 1976, p. 217.
elementos culturais, incentivando a pesquisa formal, vale dizer, a
linguagem; ampliação do ângulo óptico para os macro e microtemas da
realidade nacional, embora essa ampliação se tenha dado mais
exatamente na linguagem, elevando-se o nível coloquial da fala
brasileira à categoria de valor literário, fato que não havia sido possível
na poética parnasiano-simbolista, quer pela sua concepção formal, quer
pela concepção linguística da época, impregnada de exagerado
vernaculismo.
Os modernistas de 1922 nunca se consideraram componentes de
uma escola, nem afirmaram ter postulados rigorosos em comum. O que
os unificava era um grande desejo de expressão livre e a tendência para
transmitir, sem os embelezamentos tradicionais do academismo, a
emoção pessoal e a realidade do País.488
Segundo Antonio Candido, o modernismo correspondeu a uma
teoria estética, nem sempre claramente delineada, e muito menos
unificada, mas que visava sobretudo a orientar e definir uma renovação,
formulando em novos termos o conceito de literatura e de escritor. Esses
fatos tiveram o seu momento mais combativo e agressivo até meados de
1930, abrindo-se a partir daí uma nova etapa de maturação, cujo término
se tem localizado cada vez mais no ano de 1945.489
Para o crítico, o movimento modernista pode ser dividido
basicamente em duas correntes: uma mais conservadora, sob influência
da “linha cósmica” de Graça Aranha, “afeita aos ritmos dinâmicos, à
exaltação da natureza, e procurando embriagar-se pela ação e o
nativismo”. Ele situa essa corrente ao lado mais conservador do
movimento, ligado às tendências dos grupos paulistas do Verde-
amarelismo e do Anta.
A segunda linha “aborda temas análogos com espírito diferente”,
mais ousada, mais autêntica ao apropriar-se do folclore e dos dados
etnográficos, produtora de uma crítica mais profunda, adesão franca aos
elementos recalcados da civilização – o negro, o mulato, o imigrante, “o
gosto vistoso do povo”, ou seja: “toda vocação dionisíaca de Oswald de
Andrade, Raul Bopp, Mário de Andrade” (...). É a corrente que assimila
melhor as influências da vanguarda.490

488
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro.
Petrópolis, Vozes; Brasília, 1976, p. 10.
489
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 7.
490
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1965, p. 112.
Não havia, portanto, um projeto muito definido e nem um
consenso em torno das propostas do movimento, o que gerou muitas
discussões e desavenças entre os seus integrantes. Mário assumiu uma
posição de protagonismo, embora se recusasse a aceitar uma posição de
liderança. Em seu balanço, o escritor aponta a falta de união entre os
participantes, censurando o hiperindividualismo e falta de espírito
coletivo. Ele conclama então as pessoas a marcharem com as multidões
e participarem ativamente da vida coletiva, o que, a seu ver, não teria
ocorrido no Movimento Modernista.

1.15.2 A polêmica da língua brasileira

No balanço que fez sobre a da Semana de Arte Moderna, em


1942, Mário afirmou que a principal bandeira de emancipação nacional
do movimento teria sido a pesquisa da "língua brasileira". Porém, ele
pondera que esse talvez tenha sido, na verdade, um boato falso, pois os
brasileiros ainda estariam tão escravos da gramática lusa como qualquer
português. Embora costumasse afirmar que não tinha dúvidas de que
seus compatriotas já pensavam e sentiam de um modo particularmente
brasileiro, o escritor depois reconheceu que os modernistas não foram
capazes de sistematizar a fala coloquial brasileira, trabalho que, para ele,
caberia aos filólogos e não aos artistas:

Inventou-se do dia pra noite a fabulosíssima


"língua brasileira". Mas ainda era cedo; e a força
dos elementos contrários, principalmente a
ausência de órgãos científicos adequados, reduziu
tudo a manifestações individuais. E hoje, como
normalidade de língua culta e escrita, estamos em
situação inferior à de cem anos atrás. (...)
E tem ainda as garças brancas do individualismo
que, embora reconhecendo a legitimidade da
língua nacional, se recusam a colocar
brasileiramente um pronome, pra não ficarem
parecendo com Fulano! Estes ensimesmados
esquecem que o problema é coletivo e que, se
adotado por muitos, muitos ficavam se parecendo
com o Brasil!491

A escrita da Gramatiquinha, iniciada entre 1922 e 1926,


entretanto, ultrapassou a fase de grande entusiasmo do início da década
e a obra jamais foi concluída – o período de coleta de dados e redação
de textos se prolongou aos anos de 1927 a 1929, mas a obra só foi
transformada em livro em 1990, com o título A Gramatiquinha de
Mário de Andrade, organizado a partir da tese de Edith Pimentel Pinto.
De acordo com a pesquisadora:

Contatos pessoais com os entendidos, sobretudo


durante sua gestão como diretor do Departamento
de Cultura, liquidaram de vez a pretensão, quer
nos moldes da idealização inicial, quer no
contorno que acabou por assumir: o espírito
combativo dos anos 20, que pretendera descobrir
rumos para o País, cedera ante a necessidade de
acomodação aos rumos que se tinham imposto, na
virada do decênio.492

Segundo nota de Eneida Maria de Souza presente na edição da


correspondência, a intenção de Mário era elaborar uma gramática de
nossa fala que se afastava dos discursos regionalistas e visava a alcançar
uma escrita mais próxima do falar brasileiro, em oposição aos puristas e
aos localistas. Para o escritor, esse trabalho de sistematização da língua
deveria envolver um esforço conjunto dos linguistas:

O melhor meio seria o governo entregar a


normatização sintática contemporânea a um grupo
de homens de valor, tais como naturalmente se
indicariam os nomes dos Srs. Mário Barreto, João
Ribeiro, Amadeu Amaral – falo valor linguístico –
e que pesquisassem no falar brasileiro certas
determinações fraseológicas mais ou menos gerais

491
ANDRADE, Mário de. “O Movimento Modernista”. Aspectos da literatura
brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 244.
492
PINTO, Edith Pimentel. A Gramatiquinha de Mário de Andrade. São Paulo,
Duas Cidades, 1990, p. 44.
que pudessem ser estabelecidas como normas de
sintaxe nossa.493

Conforme observa Antonio Candido, os modernistas, do ponto


estilístico, pregaram a rejeição dos padrões portugueses, buscando uma
expressão mais coloquial, próxima do modo de falar brasileiro:

Um renovador como Mário de Andrade começava


os períodos pelo pronome oblíquo, adotava a
função subjetiva do pronome se, abandonava
inteiramente a segunda pessoa do singular, acolhia
expressões e palavras da linguagem corrente,
procurava incorporar à escrita o ritmo da fala e
consagrar literariamente o vocabulário visual. Em
certos casos, chegou a imitar a sintaxe das línguas
indígenas, com um sentido experimental que
depois abandonou.494

Mário se sentia magoado por ter sido muito contestado por seus
pares em seu esforço para sistematizar a “língua brasileira”. Em carta a
Henriqueta, ele argumenta que queria que a realização daquele projeto
se desse a partir de um empenho coletivo, e não apenas seu. O escritor
tinha sido acusado pelo filólogo e linguista Aires da Mata Machado
Filho de que seus jeitos de experimentar a língua nacional, seus
abrasileiramentos de expressão, tomaram um aspecto de individualismo:

Quem compulsar jornais e revistas do tempo... do


meu tempo verá certos indivíduos falando que
eles é que são os brasileiros. Nunca falei isso, por
Deus! Nunca imaginei que a “minha” é que era a
língua brasileira. Nunca tive a menor pretensão
que não fosse a de dar minha contribuição pessoal
e minhas experiências pra uma coisa que
futuramente, pelo que ficar, pelo que se

493
PINTO, Edith Pimentel. A Gramatiquinha de Mário de Andrade. São Paulo,
Duas Cidades, 1990, p. 44.
494
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Mário de Andrade. In:
Presença da literatura brasileira III. Modernismo. 3ª ed. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1968, p. 12.
tradicionalizar, pelo em que se modificar, será a
língua... brasileira? Nem isto sei! Mas a língua
nacional.495

Mesmo amigos de Mário, como Manuel Bandeira e Carlos


Drummond de Andrade, demonstravam resistência a seu projeto de
sistematizar a língua brasileira. Na mesma carta, Mário conta a
Henriqueta que Manuel Bandeira havia argumentado que se nós
brasileiros dizíamos “me parece”, ele não tinha o direito de generalizar
essa sintaxe para todos os outros pronomes. Prudente de Moraes Neto,
por sua vez, argumentara que, embora concordasse com os
abrasileiramentos de expressão de Mário, não os seguia, porque ficavam
parecendo com ele e não com o Brasil. “O que eu me pergunto é se ele e
os trinta outros que concordavam comigo, mas não faziam (mas se nem
sequer fui o primeiro!), fizessem, com o que ficavam idênticos: comigo!
Ou com o Brasil?..”496, desabafa o escritor.
Em O Banquete, o escritor alfineta os seus pares: “Aqui em
Mentira ainda os exemplos são pouco convincentes porque seria um país
inventado por Mário de Andrade.”497
Manuel Bandeira, em texto sobre a correspondência com Mário,
publicado após a sua morte, justifica que até concordava com Mário
sobre a necessidade de abrasileirar a língua portuguesa, porém
discordava do modo como o amigo fazia essa sistematização, de um
modo que lhe parecia demasiadamente pessoal:

Outra coisa que vemos largamente esclarecida


nesta correspondência é o caso da língua. Sempre
fui partidário do abrasileiramento do nosso
português literário, de sorte que aceitava em
princípio a iniciativa de Mário. Mas discordava
dele profundamente na sua sistematização, que me
parecia indiscretamente pessoal, resultando numa
construção cerebrina, que não era língua de
ninguém. Eu não podia compreender como
alguém, cujo fito principal era “funcionar

495
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. SOUZA, Eneida
Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São
Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 165.
496
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. Ibidem, 2010, p.
166.
497
ANDRADE, Mário de. O banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 71.
socialmente dentro de uma nacionalidade”, se
deixava levar, por espírito de sistema, a escrever
numa linguagem artificialíssima, que repugnava à
quase totalidade de seus patrícios. Mário, que se
prezava de psicólogo, escrevia-me, para justificar-
se de seus exageros, que era preciso forçar a nota:
“exigir muito dos homens pra que eles cedam um
poucadinho”. O reformador não se limitava a
aproveitar-se do tesouro das dicções populares,
algumas tão saborosas como esse “poucadinho”,
nascido por contaminação de “pouco” e “bocado”.
Ia abusivamente além, procedendo por “dedução
lógica, filosófica e psicológica”.498

1.15.3 A recepção de Macunaíma

Além da polêmica envolvendo a Gramatiquinha, Mário também


se mostrava insatisfeito com a recepção que Macunaíma, publicado em
julho de 1928, havia recebido na época. Um sintoma dessa insatisfação é
que o escritor publicou o livro sem prefácio algum, e depois, para a
edição seguinte, escreveu um prefácio curto, “que não explicava nada”,
e mais tarde acabou recorrendo a outro “que explicava demais”.499
Macunaíma teria sido escrito “por puro prazer”, “por
brincadeira”, “de um jato”, durante umas férias do autor em Araraquara,
no interior de São Paulo, e não caberia em nenhuma classificação de
gênero literário – Mário terminou por chamá-lo de rapsódia, isto é, uma
soma de temas tirados do povo, mas transpostos por um autor culto. As
polêmicas em torno do livro se devem principalmente a interpretações
equivocadas envolvendo o personagem principal, Macunaíma. Em carta
a Henriqueta, Mário comenta que foi criticado duramente devido à
suposta imoralidade de seu herói “sem nenhum caráter”. Porém,
segundo ele, a sua intenção foi caracterizar a insuficiência moral do
homem brasileiro, não fazer apologia dela:

Eu sei que então podem me perguntar como é que


eu escrevi e publiquei o Macunaíma e certos
poemas como o levíssimo “Tabatinguera” e os

498
MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade &
Manuel Bandeira. São Paulo, 2000, p. 673.
499
FILHO, João Etienne. Prefácio. In: ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 18ª
ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1981.
pesadíssimos versos do “Grã Cão do Outubro”.
Meu Deus! Pois será que eu serei mesmo culpado,
nessas obras, de imoralidade ou desumanidade!...
Eu não consigo chegar a nenhuma certeza como
conclusão final dos meus raciocínios! Eu sei que
Macunaíma não é imoral. Eu usei também da
imoralidade, não minha, mas do meu herói pra
caracterizar a insuficiência moral do homem
brasileiro. Eu sei que existe na comicidade gozada
do livro um tal ou qual compromisso meu, de
autor, com a imoralidade do meu herói, melhor:
com a desmoralidade dele.500

Na sequência desta carta, Mário chama a atenção para o modo


como alguns leitores se atêm ao sentido literal das palavras, sem
considerar a existência de outros significados subliminares e sem atentar
para uma moral que envolva a obra como um todo e vá além da
superficialidade dos palavrões:

(...) Mas é engraçado: você já reparou que se


considera mais muito a imoralidade das palavras
do que a das ações e dos casos! A palavra é que
deduz da imoralidade dum livro ou dum verso, de
forma que uma virgem católica pode ler livros
“católicos” em que todos os heróis pecam durante
o livro todo, mas sem as palavras do pecado. Nem
sequer, mais, é preciso que eles se convertam e
purifiquem no fim, como em certa literatura mais
“estética”, a de um Mauriac por exemplo. Ora, a
palavra é que justamente não é imoral! E quando
eu digo um palavrão, desbocado como
impetuosamente sou, ele de forma alguma
significa a minha imperfeição, mas pelo contrário
a minha perfeição. A “minha” perfeição, aquilo
em que eu me perfaço em meu viver apaixonado,
brutal, incandescente. O resto é “sorriso da

500
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 212.
sociedade” como a literatura de seu Afrânio
Peixoto.501

Mário afirma que o seu herói sem nenhum caráter teria sido
advertido por ele no final do livro, ao ser condenado ao brilho inútil das
estrelas. Não haveria no livro, portanto, uma apologia à imoralidade, ao
contrário, o autor procurou expor as características negativas dos
brasileiros, para assim fazer uma crítica social:

(...) Mas ainda há mais, amiga paciente. A


imoralidade dos atos e casos que já expus, refleti
muito sobre eles, os trabalhei artisticamente e se
os dei a público foi porque senti a necessidade
essencial deles. Necessidade minha, pessoal e
necessidade humana, dos outros. Aqui você ainda
poderá concordar comigo no caso do Macunaíma,
que é uma sátira, uma crítica, e cujo herói eu
castigo e advirto no final, fazendo ele ir viver, por
incapaz de uma vida fecunda, o brilho inútil das
estrelas.
(...) É certo que muitos livros meus podem cair em
mãos que não tenham o que exatamente se
chamaria de “boa formação” tanto moral quanto
intelectual. Não é questão de virgindade nem de
pouca idade. Tenho visto velhos que se
esparramam gozadíssimos e indecentes na leitura,
até decorada!, do Macunaíma que eles não
compreendem nem querem sofrer. Mas eu sofri e
sofro com o meu livro. Mas esses velhos, como
pessoas de qualquer idade, me repugnam.502

Mário sabia que um texto, após finalizado, ganha autonomia e


independência com relação às intenções de seu autor. Porém, nas cartas
para os amigos, ele tentava esclarecer alguns pontos sobre o livro, e

501
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 212.
502
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 212-213.
terminava entrando em contradição. A explicação que ele deu a
Henriqueta sobre o final do livro, por exemplo, difere da que ele havia
dado a Fernando Sabino. Conforme observa Eneida Maria de Souza, em
nota de rodapé na edição das cartas, Mário teria dito a Fernando Sabino
que Macunaíma teria fraquejado no fim do livro e preferido ir viver com
o brilho “inútil” das estrelas, fazendo os olhos do autor se encherem de
lágrimas. Essa versão não corresponde à que o escritor contou a
Henriqueta, argumentando que castiga e adverte Macunaíma: “Na carta
a Fernando Sabino, MA não ‘castiga e adverte’ o seu herói sem nenhum
caráter. Mostra é como sofreu a falta de organização moral dele e
reprova o que estava fazendo ‘contra a minha vontade’”. Macunaíma
teria, nessa perspectiva, agido por “vontade própria”, ou seja, o
personagem teria levado o autor por aquele caminho, mesmo contra a
sua vontade.
Além da questão moral, o livro também foi criticado por uma
suposta falta de cuidado formal com a linguagem, como vemos na
crítica de Adonias Filho:

O silêncio com que se recebeu essa nova edição


de Macunaíma, de Mário de Andrade, o
desinteresse como todos olham, denunciam, e de
um modo verdadeiramente alarmante, a presença
de um espírito mais rígido na inteligência
brasileira. Já não se compreende o delírio verbal,
embora justificado pelo folclore, a ausência de
qualquer expressão formal – não se compreende,
afinal, a coragem de matar na palavra o seu valor
lógico, sua realidade historicamente
503
fundamental.

Ao avaliar que Macunaíma não tinha alcançado uma


comunicação eficiente com o público e a crítica, Mário se sentiu
frustrado e assumiu a responsabilidade pelos equívocos que via na
recepção do livro, como expressa em carta a Álvaro Lins:

Mas a verdade é que eu fracassei. Se o livro é todo


de uma sátira, um não conformismo revoltado

503
FILHO, Adonias. Mário de Andrade (Nova edição de Macunaíma). In:
Vamos Ler!, Panorama Literário, a. 9, 437. Rio de Janeiro, 14 dez., p. 19.
sobre o que é, o que sinto e vejo que é o brasileiro,
o aspecto ‘gozado’ prevaleceu. É certo que eu
fracassei. Porque não me satisfaz botar a culpa
nos brasileiros, a culpa tem de ser minha, porque
quem escreveu o livro fui eu.504

Talvez haja algum exagero nessa mea culpa de Mário. Afinal,


embora a interpretação de um texto envolva também um trabalho de
criação conjunta do leitor, esse deve manter um mínimo de coerência
com relação aos dados fornecidos pela obra: “cada leitor cria pela
imaginativa uma paisagem sua, apenas servindo-se dos dados capitais
que o escritor não esqueceu”.505 Cabe ao autor prover a obra com
elementos suficientes para que o texto fale “por si mesmo” e possibilite
uma interpretação adequada por parte do leitor. Mas nem sempre o
público está preparado para fazer uma leitura adequada da obra,
principalmente quando essa é inovadora, complexa e envolve o uso de
ironia, como é o caso de Macunaíma.
Mesmo correndo o risco de ser incompreendido, Mário defendia
que o escritor não deve limitar a sua criação com base em suas
expectativas em relação à recepção do público ou da crítica. Conforme
preconiza em A escrava que não é Isaura, “é o leitor que se deve elevar
à sensibilidade do poeta, não é o poeta que se deve baixar à
sensibilidade do leitor”.506
De qualquer modo, como resultado da confluência entre
condições sociais e elementos individuais presentes na própria obra,
Macunaíma, cuja interpretação pelo público amplo veio a se beneficiar
da contribuição trazida pela fortuna crítica e pelos diversos estudos
sobre a obra publicados ao longo do tempo, acabou por se tornar um
clássico da literatura brasileira.

504
SOUZA, Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 214. Apud MOREL,
Marco; BORBA, José César. Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins, ed.
cit., p. 65-66.
505
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 43
506
Ibidem, 1960, p. 43.
CAPÍTULO 2

2.1 Moral artística é o que interessa

As cartas entre Mário e Henriqueta trazem muitas reflexões sobre


a relação entre estética e ética na criação artística, em que se verifica
uma tensão entre “poesia desinteressada”, mais voltada para aspectos
formais e a realização da própria obra, e “poesia social” ou “poesia de
combate”, compromissada com as questões político-sociais de seu
tempo.
Nos últimos anos de sua vida, Mário vinha amadurecendo os seus
conceitos sobre o processo de criação artística, em parte motivado pela
correspondência com Henriqueta, que se mostrou uma interlocutora
interessada e estimulante, conforme ele relata em carta a Drummond:

Duns tempos pra cá, ando meio cético a respeito


dela, e justamente porque faz uns dois anos ou
pouco mais me apaixonei pelo fenômeno da
criação estética. Em parte, aliás, isso derivou
duma carta da Henriqueta Lisboa, em que, sem
nenhuma premissa que eu tivesse lhe dado,
observando as minhas Poesias, ela descobria que
por mais "dirigido" que fosse um poema dos
meus, ela percebia a espontaneidade, a fatalidade
com que era criado. Fiquei, é lógico, muito
satisfeitamente comovido com a compreensão que
ela tinha de mim, não só porque outros críticos, no
caso, sei que levianos, dizem da falta de
espontaneidade, até falta de sinceridade do que
publico, como porque eu mesmo sou obrigado a
reconhecer que uma conceituação mais geral (e
errada) de espontaneidade, de sinceridade,
observando o voluntarioso que há em toda a
minha obra, tem muita possibilidade de concluir
assim.507

507
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 24 ago. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 215.
As questões sobre a tensão entre ética e estética estão sempre
presentes nas conversas entre Mário e Henriqueta. O contexto histórico
em que viviam, marcado pela Guerra Mundial, o nazismo e o fascismo,
a ditadura de Getúlio Vargas no Brasil, reforçava a necessidade de os
artistas questionarem a finalidade moral da arte e os levava a olhar com
desconfiança os preceitos da arte “pura” ou desinteressada, centrada em
atributos estéticos e nas especificidades da própria arte.
No início da década de 1940, Mário enfrentava problemas
pessoais, profissionais e financeiros, que eram agravados pelo contexto
político sombrio. Em carta a Henriqueta, ele conta sobre um dia difícil
que passou, atormentado pela lembrança do suicídio de um amigo, e
desabafa: “Eu devia botar uma bomba no palácio Guanabara pra ver se
crio vergonha de ser brasileiro, mas não é meu jeito.”508
Em resposta à carta, Henriqueta demonstra preocupação com o
estado de espírito do amigo:

Considero grave, não o que se passou, mas a


probabilidade de repetir-se o estado de espírito
que o atormentou. Evitar essas oscilações, essas
suscetibilidades, deve ser bem difícil para você,
com esses hábitos libertários de “nenhuma
coação”. Em matéria de arte “nenhuma coação
representa o ideal, magnífico mas já temerário do
ponto de vista moral. Em matéria de vida não
representa, – ainda quando tomamos o indivíduo
isoladamente – porque não somos perfeitos. Veja
se tenho razão: a finalidade da arte é nos
realizarmos para nós mesmos, ou para a
humanidade; a finalidade da vida é nos
realizarmos para algo de superior a nós. Essa
divergência de objetivos entre as duas cousas que
são para nós, às vezes, uma só cousa – arte e vida
– torna mais intrincados os problemas morais do
artista. Alguns costumam abolir ou simplesmente
desconhecem essa face da esfinge: seres humanos
de superfície, consequentemente artistas de

508
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 21-22 mar. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 202.
superfície. Há os que conseguem levantar a arte
acima da vida: os místicos. Nós, Mário, somos os
prisioneiros da noite: você o prisioneiro rebelado,
desesperado, fujão; eu a prisioneira desalentada,
sonâmbula, que não sabe senão dizer cousas vãs...
Mas veja: se mesmo na arte temos que vencer a
nossa sinceridade por outra, igualmente nossa, que
vamos descobrir mais fundo, na vida temos que
vencê-la por um misterioso sentimento que talvez
seja a própria sinceridade em transcendência. O
certo é que nos queremos melhores do que
somos.509

Henriqueta utiliza os termos “nenhuma coação” provavelmente


no sentido de que a poesia de Mário é realizada com liberdade criativa e
não sofre nenhuma interferência externa. O comentário da poeta
mineira parece dialogar com Jacques Maritain, que em Arte e
Escolasticismo – sobre o pensamento de São Tomás de Aquino –
argumenta que a arte tem como finalidade produzir a obra de arte, com
seus fins particulares e extra-humanos, de tal modo que não está
preocupada com a vida do artista e nem com que ele seja bom em suas
próprias ações humanas.510 Segundo Maritain, a criação artística se situa
fora da esfera do bem humano; ela tem finalidades, regras e valores que
não são aquelas do homem, mas da obra de arte a ser produzida. O
trabalho de criação é todo voltado para a arte, de modo que existe para
ela apenas uma lei – as exigências para a realização da obra de arte.511
Para o autor, do ponto de vista dos valores humanos e da regulação
moral do ato livre, ao qual está subordinado o sujeito humano, só a
prudência é competente e não há limitação aos seus direitos de governar.
A arte, porém, pertenceria a um domínio próprio, e portanto não estaria

509
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 10 abr. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 202.
510
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 11.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
511
Ibidem, 2005, p. 7.
submetida à sabedoria, prudência ou qualquer outra virtude.512 O artista
se distinguiria, assim, do homem prudente, que faz todas as coisas sob o
ângulo da moralidade e visando ao bem do homem, mas é
absolutamente ignorante sobre tudo o que pertence à arte.513
O comentário de Henriqueta sobre “nenhuma coação”, feito em
tom de elogio, provoca uma longa resposta de Mário à poeta mineira. O
escritor esclarece que, para ele, seja do ponto de vista moral ou mesmo
em matéria de arte, "nenhuma coação” não representa um ideal
magnífico, pois o momento inicial de criação, mais livre e espontâneo, é
depois superposto por um longo trabalho de discernimento moral, em
que a subjetividade individual é submetida a uma avaliação crítica da
consciência social:

Não, Henriqueta minha, mesmo em matéria de


“arte”, repudio, sempre repudiei esse princípio da
“nenhuma coação”, que além de imoral sob o
ponto-de-vista do ser humano, é ainda indecente
sob o ponto-de-vista da arte, porta aberta pra todas
as ignorâncias, todas as facilidades, todas as
preguiças, todas as cabotinagens e falsificações
artísticas. Não. Não é a arte que exige a nenhuma
coação, mas a criação, o momento da criação.
Mas em seguida vem todo o trabalho penosíssimo,
longo e moral da arte que significa até rasgar a
coisa criada e fazer ela não existir para o mundo.
Porque o artista é antes de mais nada um homem,
e como homem ele só pode fazer da sua obra-de-
arte uma coisa humana, funcionalmente humana
no sentido moral-individual e moral-social do
humano. Esta não é apenas a minha opinião, é a
minha fé. E neste sentido eu coincido diretamente
com a estética escolástica, ou pelo menos neo-
escolástica do Catolicismo, pois que se a criação,
o momento de criação artística exige nenhuma
coação e pode ser imoral, antissocial e desumano,
o artista é que é moral e humano, e como tal, se

512
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 42.
513
Ibidem, 2005, p. 47.
ele for de fato moral e humano, a sua obra-de-arte
(não o momento de criação) será sempre moral e
humana.514

A explicação de Mário sobre a questão da “nenhuma coação”


atesta a permanência de seu vínculo com o cristianismo e o
escolasticismo, ao mesmo tempo que sublinha o caráter ético e a
importância que ele atribui à consciência político-social do artista:

Assim: eu desejo que você esclareça bem em você


porque eu insisti na minha carta sobre o problema
da nenhuma coação. Ele nada tem que ver com o
fenômeno integral da arte. Ele só incide e é
exigência desse momento, superior a nós,
independente de nós, que é a criação artística, a
invenção artística primeira. O resto é raciocínio, é
grandeza integral do homem consciente. E se eu
for considerado imoral ou desmoral pelos homens,
eu quero ser culpado disso.515

De acordo com Mário, Macunaíma e a infinita maioria dos seus


poemas “dirigidos” foram escritos em estado de possessão preparada –
ou seja, no qual ele mesmo provoca o estado de poesia.516 Ele afirma se
orgulhar de ser, além de poeta, também artista, por posteriormente
lapidar o diamante bruto do verso: “o que me enobrece não é ser vate,
coisa que se é ou não se é. O que me enobrece, o que dignifica é ser
artista, é realizar, não a poesia, mas a obra de arte”.517 Conforme
observado em nota da edição da correspondência: “Mário entende ser a
criação artística semelhante ao orgasmo e não ao parto, (...) por
simbolizar o estado de prazer que num primeiro momento arrebata o

514
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 211-212.
515
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 jun. 1942. Ibidem, 2010,
p. 214.
516
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. Ibidem, 2010,
p.183-184.
517
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. Ibidem, 2010,
p. 188.
criador, para em seguida se acalmar, retomar o trabalho e revisar o que
foi escrito de forma intempestiva”.518
Para Mário, a segunda fase da criação, que ele chama de
superposição intelectual, não se restringe a uma revisão do poema,
atendendo a critérios técnicos e estéticos, mas também envolve uma
instância de discernimento moral. Nessa perspectiva, embora a arte seja
uma atividade desinteressada, que tem como finalidade precípua realizar
a obra de arte, ela é também uma atividade eminentemente humana e
social, e portanto exige um discernimento moral e uma atitude ética. Em
carta a Henriqueta, ele argumenta que uma moralização alta do
indivíduo pode ser alcançada a partir das exigências artísticas durante o
processo de criação, que é fenômeno de relação entre os homens:

Moral artística é o que interessa, o que fecunda e


eleva generosamente porque se na moral
“estética” você não perde nunca de vista a Beleza
mas quase que fatalmente perde de vista os outros
homens, na moral artística, moral do Fazer, moral
que exige o instrumento (obra-de-arte), você
jamais pode perder de vista os outros homens e
também necessariamente se utiliza da beleza.
Foi o que veio se dando em mim, se processando
sem que eu me apercebesse, nestes anos de luta
desesperada comigo, de sofrimentos horríveis.
Mas tudo foi tão sublime, está sendo tão sublime
repare, mais por experiência na carne que por
análise profunda do fenômeno, já na Aula
Inaugural da Universidade eu afirmava a
influência moralizadora do artesanato, da técnica
no grande sentido e foi a declaração de guerra que
produziu, pra encurtar e ocultar as sujidades
íntimas, produziu o “Movimento Modernista”, a
“Elegia de Abril, a “atualidade de Chopin” e
enfim explodiu no Café como criação, e na
doença como carne. E foi neste último momento
de criação, de outubro a dezembro passado, talvez

518
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 30 jan. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 187.
o momento mais dramaticamente feliz de toda a
minha vida, que eu percebi como eu atingira uma
elevada moralidade de mim! Como eu estava
(como homem) grande! Como eu me purificara
em Homo!519

No trecho citado, Mário destaca o valor da consciência moral do


fazer artístico, que se manifesta na obra de arte e também se utiliza da
beleza, mas não deve “perder de vista os outros homens”, ou seja, não
deve se furtar de seus compromissos com a sociedade e o seu tempo. O
escritor modernista chama a atenção para a necessidade do artista se
preocupar não apenas com a Beleza (em maiúsculo), mas sobretudo com
a moral do fazer artístico, que está vinculada com o caráter humano da
criação e se utiliza da beleza (em minúsculo) – que é uma consequência
natural da técnica do objeto.
Ao mencionar a “influência moralizadora do artesanato, da
técnica no grande sentido”, Mário remete ao ensaio “O artista e o
artesão”, escrito para a aula inaugural que ministrou no curso de
Filosofia e História da Arte da Universidade do Distrito Federal, em
1938, e aqui retomado por ser de importância fundamental para entender
a sua concepção estética / ética. Nele, o escritor argumenta que a arte,
vista como cultura desinteressada e que culmina na busca de atributos
exclusivamente estéticos, se confunde quase sempre com o artesanato,
arte utilitarista que não exclui as exigências e os caracteres humanos,
individuais e sociais do fazer artístico.
Segundo ele, arte e artesanato se aproximam pelo fato de
constituírem fazeres submetidos ao material e suas determinações. O
fazer artístico se mostra, desse modo, uma ação produtiva, que tem
como objetivo “a fabricação de um produto”, sem atender a nenhum
desejo do artista. O que se deveria perseguir era a melhoria da técnica ou
habilidade do artista e não mais o próprio artista ou suas habilidades
pessoais.520
Para Mário, o artista deveria ser também artesão, ou seja,
conhecer perfeitamente os processos, as exigências e os segredos do
material que vai mover. Desse modo, ele poderia superar o

519
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 15 jun 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 256-257.
520
MORAES, Eduardo Jardim de. Limites do Moderno: o pensamento estético
de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 71.
individualismo e a inflação da estética experimental e do psicologismo,
que teriam desnorteado o verdadeiro objeto da arte, levando o artista a
ofuscar a própria arte. O escritor atentava, assim, para a necessidade de
retomar o caráter social do fazer artístico, de modo independente de
interesses individualistas e ideológicos, das demagogias e proselitismos:
“se o espírito não tem limites na criação, a matéria o limita na
criatura”.521
O conteúdo de “O artista e o artesão” parece também dialogar
com Jacques Maritain, em seu ensaio sobre Arte e Escolasticismo e o
pensamento de São Tomás de Aquino. Segundo o autor, todo elemento
formal da arte consiste no regulamento que imprime na matéria.522 O
criador em arte é aquele que descobre uma nova analogia do belo, um
novo caminho no qual a radiância da forma pode brilhar sobre o
assunto.523
Para Maritain, embora a arte tenha regras fixas, essas devem ser
submetidas a um habitus ou uma virtude do intelecto, que o autor
considera precisamente a virtude da arte e deve ser adquirido a partir do
exercício e do uso.524 Porém, ele adverte que não devemos, por essa
razão, confundir o habitus da arte com o hábito do mundo moderno,
relacionado à rotina e repetição mecânica – o habitus da arte é
exatamente o contrário do hábito nesse sentido. Os antigos
denominaram de habitus (hexis) as qualidades de uma classe à parte,
qualidades essas que são basicamente disposições estáveis que se
aperfeiçoam seguindo a linha de sua própria natureza.525 Pela imensa
quantidade de trabalho racional e discursivo que a arte envolve, ela
exige a tradição de uma disciplina, uma educação pelos mestres e a
continuidade da colaboração humana ao longo do tempo.526 Por isso, é
absolutamente necessário que o artista tenha, além de toda a bagagem

521
ANDRADE, M. O Artista e o Artesão, in: O baile das quatro artes. São
Paulo: Martins
Editora, 1975, p. 75.
522
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 23.
Disponível em:
https://keybase.pub/saintaquinas/thomism/Jacques%20Maritain%20Art%20and
%20Scholasticism.pdf
523
Ibidem, 2005, p, 27.
524
Ibidem, 2005, p, 28.
525
Ibidem, 2005, p. 26.
525
Ibidem, 2005, p. 8.
526
Ibidem, 2005, p. 26.
conceitual e racional, o domínio da técnica propriamente dita e o
cuidado com a matéria-prima, como ocorria, sobretudo, nos tempos
clássicos. Assim, o habitus operativo da arte, que atesta a atividade do
espírito, reside principalmente em uma faculdade imaterial, na virtude
intelectual ou moral, e todos esses recursos são reunidos para realizar a
obra de arte.527
Mas justamente porque na arte erudita o trabalho a ser realizado é
um fim em si mesmo – em direção ao Belo –, e porque esse fim é algo
absolutamente singular e inteiramente único, cada ocasião apresenta ao
artista um caminho novo e único de buscar alcançar esse fim e de
abordar determinada questão.528 A arte sempre vai reter a cor e o sabor
do espírito, os seus elementos formais, o que a constitui em si mesma.
Assim, se a arte não é humana na finalidade que ela persegue – o Belo –,
ela é humana, essencialmente humana, em seu modo de operar, e
portanto deve ter a marca do homem: animal rationale.529 A sua ação
consiste em imprimir uma ideia em alguma matéria: é portanto na
inteligência do artefato que ela reside.530
De acordo com Juan Plazaola, a natureza factual da arte,
vinculada a uma técnica, vale tanto para o artista quanto para o artesão:
um artista não é um inventor senão quando é um realizador e fazer é tão
fundamental quanto imaginar:

Por isso, não podemos aceitar a teoria de B.


Croce, que identifica a intuição pré-conceitual
com a criação artística. (...) Os testemunhos mais
diretos e explícitos dos artistas expondo
sinceramente e sem ideias preconcebidas a sua
"maneira de fazer" contradizem essa teoria que vê
na criação artística uma espécie de cópia de uma
imagem formada no interior do artista. (...)
Há, pois, na arte um aspecto técnico, operatório,
que é essencial. Strawinsky chamava Ravel de "o
relojoeiro suíço", e ele mesmo aspirava ao ideal

527
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 8.
528
Ibidem, 2005, p. 28.
529
Ibidem, 2005, p. 23.
530
Ibidem, 2005, p. 8.
de Tchaikowsky: "Ser um artesão à maneira de
um sapateiro".531

Ainda segundo o autor, enquanto o artesão possui uma virtude


operativa, como propunha o Escolasticismo, o artista é, de certo modo,
possuído por ela. A atividade do artesão atende a uma forma mental,
mas carece do caráter dinâmico de interiorização que tem a arte criativa,
movida também pela intuição e pelo inconsciente. Mas, para Plazaola,
seria um erro fechar os olhos para o que há de mais profundo e
misterioso na criação artística: a existência de forças instintivas e pré-
racionais que impulsionam e condicionam o fazer artístico e lhe dão
originalidade. Embora, em “O artista e o artesão” Mário valorize
principalmente a técnica e o cuidado com a matéria-prima, vencendo
assim o individualismo e a vaidade, depois ele percebe a importância da
técnica pessoal do artista, como veremos adiante. Mas, antes, é preciso
atentar para a distinção entre individualismo e individualidade.
Em carta a Manuel Bandeira, Mário explica que o cuidado com a
matéria-prima tem o poder de transformar o individualismo presente no
ato de criação num desprendimento de si mesmo em favor dos
elementos estéticos, que ultrapassam as veleidades do próprio criador:
“Mas se você analisar mais profundamente o problema estético-social da
obra de arte estou certo que verá que a parte de individualismo existente
em minha obra não a individualiza por isso, porque não é nem o ponto
de partida nem a finalidade dela, é o enfeite, o trabalho na matéria-
prima”.532
O que o escritor chama de “individualismo” nesse trecho – e que
poderia trazer um viés negativo para a criação artística, por denotar
egoísmo, falta de consciência coletiva, inflação da experiência estética
individual – parece ser, na verdade, “individualidade”, termo que
denota, antes, originalidade e particularidade. Assim como argumenta
Maritain, embora a arte tenha como finalidade realizar a obra de arte e
buscar o Belo, ela é uma atividade eminentemente humana em seu modo
de operar, e portanto deve ter a marca do homem.533

531
PLAZAOLA, Juan. Introducción a la Estética. Historia, Teoría, Textos.
Bilbao: Universidad de Deusto, 2007, p. 345.
532
MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mario de Andrade &
Manuel Bandeira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Instituto
de Estudos Brasileiros, 2000, s/n.
533
MARITAIN, Jacques. Art and Scholasticism. Translated by Joseph W.
Evans. Jacques Maritain Center / University of Notre Dame, 2005, p. 7.
Nessa época de maior politização, Mário conseguiu amadurecer a
sua teorização sobre a dimensão ética da criação e a relação entre o
individual e o coletivo, como vemos em textos como “O artista e o
artesão” (1939) e “Elegia de Abril” (1941). Na conferência “Atualidade
de Chopin” (1942), pronunciada aos alunos do Conservatório Musical
de São Paulo, ao falar sobre a personalidade artística do músico polonês,
o escritor reafirma a importância da dimensão social do artesanato e de
conciliar lirismo e técnica: “Chopin conheceu a sua arte e o seu
instrumento, não só genialmente, o que independe da vontade dos
homens, mas como estudioso consciente”.534 Segundo Luciano Costa
Santos, a partir de 1930, “intensifica-se no pensamento marioandradino
uma viragem decisiva pela qual não mais a dimensão individual-si-
mesmo, mas a dimensão humano-comunitária do ser se põe como
horizonte de um novo método de considerar os fenômenos da vida e da
arte”.535
Mário estava então incomodado com certo espontaneísmo na
criação artística que identificava em alguns de seus pares, que se
voltavam para a poesia de combate político, chamada então “poesia
social”, mas negligenciavam os cuidados com a técnica e a forma no
fazer artístico; enquanto outros incorriam num formalismo alienado das
questões político-sociais de seu tempo. De acordo com Eduardo Jardim
de Moraes, “sublinhando ‘a função da arte na vida das coletividades’,
Mário tinha como objetivo a oposição ao individualismo e ao
formalismo, focando no papel social da arte em si e do próprio fazer
artístico”.536 Para o pesquisador, “o fato de o artista compreender e
dominar a técnica de sua arte o colocava numa relação de respeito com
sua obra, e não mais de possessão. O foco seria a própria arte e não mais
o artista”.537
O cuidado com a matéria-prima e a técnica contribui para
deslocar o fazer artístico para a finalidade da própria arte, tornando
assim o processo mais impessoal e conferindo-lhe uma ética intrínseca

534
ANDRADE, M. “Atualidade de Chopin”, in: O baile das quatro artes. São
Paulo: Martins Martins Editora, 1975, p. 93.
535
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 157.
536
MORAES, Eduardo Jardim de. Limites do Moderno: o pensamento estético
de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 88.
537
MEDEIROS, Raquel. Mário de Andrade e a busca pela arte brasileira: a
pesquisa estética, a inteligência artística brasileira e a consciência criadora
nacional. Rio de Janeiro, v. IV, n. 1, jan./mar. 2011.
ao próprio fazer artístico. O poeta pode ser visto como o vetor da criação
e da consciência da linguagem, de sua expansão e transformação, de
uma consciência mais ampliada da vida, do mundo, do humano.
De acordo com João Luiz Lafetá, Mário buscava uma atitude
coerente entre o artista e o mundo, entre a realização da obra de arte e a
vida social, de modo a traduzir o espírito de sua época e ultrapassar o
artesanato e o simples virtuosismo. Assim, essa postura significará, ao
mesmo tempo, lançar-se para as experimentações da matéria e guardar
um fundo ético incorruptível.538
Como podemos notar, o trabalho de superposição intelectual na
criação artística de Mário envolve não apenas a busca pela beleza e a
perfeição estética, a partir das próprias imposições do fazer artístico,
mas uma responsabilidade moral, tendo em vista o aspecto social da arte
e a consciência crítica do artista. Essa consciência da responsabilidade
social do artista foi se acentuando ao longo dos anos, em função de uma
autocrítica sobre a sua trajetória e diante das contingências de seu
momento histórico. Segundo observa Raúl Antelo, “o desafio com que
Mário de Andrade defronta-se, a partir de 1924-1926, o leva à tentativa
de combinar o direito permanente à pesquisa estética, direito que
continuará a reivindicar até o fim da vida, com um sentido crescente de
responsabilidade social na construção do realismo”.539
A arte, para Mário, é um objeto de servir a vida. A finalidade da
arte, para ele, seria alcançar o belo – e não o Belo, embora não exclua a
possibilidade de alcançá-lo também: “O belo que é uma consequência
natural da técnica do objeto (vaso, retrato, canto ou dança religiosa,
sexual etc.) se torna de consequência em elemento necessário da arte –
pra não dizer a sua finalidade.”540
Para o escritor, a arte deve servir à vida, assim como a
astronomia, o automóvel ou um restaurante servem à vida. Daí estar na
origem mesma e na base da arte, que não é imediata, se servir da Verdade e
do Bem, do Erro e do Mal, na sua pesquisa e ofício de dar definição, de ser
uma força de conhecimento. Segundo ele, a compreensão das artes do

538
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1974, p. 160.
539
ANTELO, Raúl. Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-
americanos. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-
Memória, 1986, p. 156.
540
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 223.
tempo é mediata (remota, indireta), pois lida com palavras, que são
interpretadas a partir de nossa inteligência e memória. Portanto, a
harmonia poética se realiza em nossa subjetividade, e não
objetivamente, como explica o escritor no “Prefácio Interessantíssimo”:

Comentário à frase de Hugo. Harmonia oral não


se realiza, como a musical, nos sentidos, porque
palavras não se fundem como sons, antes
baralham-se tornam-se incompreensíveis. A
realização da harmonia poética efetua-se na
inteligência. A compreensão das artes do tempo
nunca é imediata, mas mediata. Na arte do tempo
coordenamos atos de memória consecutivos, que
assimilamos num todo final. Este todo, resultante
de estados de consciência sucessivos, dá a
compreensão final, completa da música, poesia,
dança terminada. Victor Hugo errou querendo
realizar objetivamente o que se realiza
subjetivamente, dentro de nós.541

Segundo Mário, a arte talvez seja mais ambiciosa que a ciência e


a moral, pois tem o belo como elemento necessário – pra não dizer sua
finalidade: “A arte é, talvez seja mais ambiciosa que a ciência e a moral.
Não será mais nobre que as outras mas é por certo a mais ‘divina’, no
sentido de mais completa, mais total, reunindo a Beleza ao Bem e à
Verdade.”542
Para o escritor, querer dar à poesia um sentido de perpetuidade
sugere querer livrá-la de toda a contingência, dos elementos transitórios,
tudo transferindo para os “valores eternos”. Para ele, como elemento
inicial, todo poema, seja a Divina Comédia ou Os Lusíadas, é “poema
de circunstância”, com elementos transitórios, ainda que o Bem e a
Verdade, que são valores eternos, também estejam presentes na arte.
Porém, segundo Mário, deriva da própria técnica da arte não se
restringir ao Bem e à Verdade, como o fazem a ciência e a moral, mas se
541
ANDRADE, Mário de. “Prefácio interessantíssimo”. Paulicéia desvairada.
Caixa Modernista. Edusp/Editora UFMG/Imprensa Oficial, São Paulo, 2003.
Arquivo Mário de Andrade, IEB-USP, p. 8.
542
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 223.
voltar para o Belo, também um elemento de perpetuidade – o único
gratuito. O sofrimento do artista derivaria, segundo ele, de querer atingir
a Beleza, em vez de atingir o útil humano:

Repare como parecem muito mais nobres, muito


mais generosos, humanos, justos o sofrimento do
cientista, do santo, do herói, só porque querem
exclusivamente atingir o útil humano. Por isso a
Divindade não os castiga. Mas o artista se quer
mais completo, e quer atingir a totalidade divina.
Diariamente, sem descanso, sem se aproveitar de
sua própria experiência e seu castigo, diariamente
ele morde a maçã que o vai fazer igual a Deus. E
diariamente ele é expulso do seu paraíso.543

Sobre o conceito de Beleza, Mário parece preferir não tentar


chegar a uma conclusão sobre o assunto, ao mesmo tempo tão simples e
complicado, associando a consciência da beleza a um Deus
transcendente ou imanente:

Outro dia, numa das aulas do meu curso, depois de passar uma hora
destrinçando a conceituação de Beleza, veio um rapaz moço louro
perguntar se eu não aceitava a definição que ele sabia: “a Beleza é a
Ordem e a Perfeição”. Meu Deus! Aceito sim, moço! Fique com ela e
seja feliz! Mas você não estará substituindo uma palavra por outra? O
quê que você chama de Ordem e de Perfeição?... Sabe, Henriqueta? Às
vezes sou inclinado a aceitar aquela boutade de Croce quando fala que a
beleza é uma coisa que toda a gente sabe o que é. Mas outras vezes,
basta o espírito se arruinar um bocadinho no mundo das ideias e das
experiências, e logo tenho a certeza de que jamais ninguém jamais não
soube o que é a Beleza. Beleza, beleza... mas valerá a pena a gente saber
o que ela é? Talvez nós só a encontremos quando imersos no seio de
Deus. Mas então ela não terá mais a menor importância e desaparecerá,

543
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 08 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 223.
porque Deus é tudo, e nós nos extasiaremos deste Tudo, unânimes em
nós e completados.544

Porém, no dia seguinte, Mário afirma ter guardado essa carta por
não ter ficado satisfeito com a sua análise sobre o “ideal” de
perpetuidade do artista e o lado “poema-de-circunstância” da criação.
Novamente o poeta tenta entrar no Jardim do Éden, mas o sentido do
todo parece lhe escapar.

2.2 A verdade do intelectual

Em julho de 1940, Henriqueta propõe a Mário uma reflexão sobre


a relação entre a beleza a verdade: “Penso que só traz cunho de
eternidade a beleza associada à verdade. Agora fico sem saber: que
espécie de verdade? A verdade moral, acima das contingências? A
verdade humana, intimamente nossa, individual? Haverá uma verdade
para todos os seres e todos os tempos?”545
Em resposta, Mário afirma não ter pretensão de saber qual é a
“verdade da verdade” ou a verdade universal, transcendente e eterna. Ele
então expressa à amiga aquilo que considera ser “a verdade do
intelectual”, distinguindo três espécies de verdades: a “Verdade de
Deus”, ou da Transcendência; a “verdade preconcebida, socializadora,
defensora, útil e transitória de todos os pragmatismos do homem
coletivo (o homem comum)”; e a “verdade incontestável, achada,
experimentada e individual do intelectual”.546
Para o escritor, embora essas três verdades possam, por vezes,
coincidir entre elas, a única verdade legítima é a do intelectual, que
oferece maior independência ao indivíduo e não tem a pretensão de se
manifestar como uma verdade universal, eterna e incontestável:

Ora das três espécies de verdade, a do intelectual é


a única legitimamente incontestável, nesse sentido
em que ela é intradicional, é adquirida, é vivida e

544
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 28 set.. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 123-124.
545
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 11 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 105.
546
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 107.
não aceita, é imediata e sem transformação, não
admite imediatamente nenhuma evolução,
nenhum progresso. Mesmo a verdade científica (a
não ser que experimentada pelo intelectual,
concêntrica, coincidente com a verdade dele)
quando aceita pelo intelectual, não será jamais
“incontestável” pra ele, muito embora possa ter
pra ele todas as outras aparências de eternidade.
Ao passo que a verdade do intelectual por ter uma
espécie de objetividade psíquica e ser o resultado
de todas as possibilidades de raciocínio e
sentimento e de todas as aquisições enfim, do
indivíduo, se apresenta ao próprio intelectual com
todas as certezas da incontestabilidade. Muito
embora não tenha, às vezes, nenhuma das outras
aparências de eternidade. Realmente: o intelectual
legítimo não se preocupa com a possível
eternidade das suas verdades...547

Embora eleja a verdade do intelectual como a única legítima,


Mário considera essa a mais precária de todas as três espécies de
verdades, pois se trata de um fenômeno meramente individualista e
sujeito a mudanças, de acordo com as variações de posicionamento do
indivíduo, que “pode considerar puerilidade ou erro o que já reconheceu
incontestável um tempo”.548
Como Mário já havia formulado em A Escrava que não É Isaura,
a verdade do intelectual é, para ele, que não existem verdades, ou, pelo
menos, nenhuma verdade que possa ser vista como permanente ou
imposta como dogma. Ele compartilhava assim o esforço pela
emancipação do pensamento na modernidade, que asseguraria ao
intelectual a liberdade de escolher livremente sua própria verdade –
“individual, subjetiva, que brota da própria experiência da vida, sem
pretensão de ser universal e sem precisar se submeter a um

547
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 107.
548
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 106-107.
compromisso com qualquer grupo e defender a sua própria verdade
individual”.549
A dificuldade é que Mário vê o intelectual como alguém
“obrigado a ver na sua verdade um fenômeno meramente
individualista”.550 Mesmo que ele duvide da capacidade de permanência
de sua verdade, ele a apresenta como algo incontestável, o que contribui
para torná-lo mais cético, cínico, indiferente e desligado da verdade do
Bem e do Mal. E principalmente (é o que mais importa socialmente)
mais revoltado e mais revolucionário. E também mais maleável,
suscetível a servir a todas as guerrilhas, feito um mercenário.551
No princípio de A Escrava que não É Isaura552, texto escrito
entre 1922-24, na fase mais combativa do Modernismo, Mário se opõe
aos cultores da poesia pura; porém, no posfácio do texto, escrito em
1924, ele reconhece ter incorrido em exageros e afirma que “não
pretende ser revoltado a vida toda”, arrogando-se a dono da verdade, e
que queria então escrever em nome de sua própria verdade:

Não me incomoda mais a existência dos tolos e cá


muito em segredo, rapazes, acho que um poeta
modernista e um parnasiano todos nos
equivalemos e equiparamos. Ao menos porque
estas lutas e mil e uma estesias por uma arte
humana só provam uma coisa. É que nós também
os poetas nos distinguimos pela mesma
característica dominante da espécie humana, a
imbecilidade. Pois não é que temos a convicção
de que existem Verdades sobre a Terra quando
cada qual vê as coisas de seu jeito e as recria

549
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 69.
550
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 109.
551
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. Ibidem, 2010,
p. 106.
552
Embora seja datado de 1924, o texto é citado nessa pesquisa em função da
importância que tem para a concepção sobre a criação artística do escritor e por
trazer conceitos que ele mantém ao longo de toda a sua trajetória, como a
fórmula “Lirismo puro + Crítica + Palavra = Poesia”. (Ibidem, 2010, p. 4)
numa realidade subjetiva individual!... É certo
porém que há dois anos não sei que anjo da
guarda prudencial me guiou a mão e me fez
escrever já em nome da minha verdade. Em nome
dela é que sempre escrevo e escreverei. 553

No texto – que embora remeta ao início de sua carreira, é


importante para entender a sua concepção estética, o flerte com o
desvairismo e o inconsciente e a sua reconciliação com a inteligência –,
Mário propõe que impulsão lírica pura e reflexão crítica estariam em
equilíbrio no processo criativo; porém, no apêndice, ele revê esse
conceito e decide dar mais ênfase para a inteligência como instância
principal do processo criativo (onde moram a razão e a consciência).
Embora o processo de criação tenha um momento de espontaneidade e
lirismo, de expressão livre do inconsciente, ele valoriza sobretudo o
momento de reflexão, ressaltando a importância da inteligência e do
discernimento moral do artista no momento final de realização da obra,
que deveria partir do inconsciente para se aliar a um “máximo de
crítica”:

Eu mesmo poderia objetar o que dentro deste livro


já disse mais ou menos: que afinal todo este
lirismo subconsciente é ainda filho da inteligência
ao menos como teoria. Nestes dias de 1924 eu já
respondo que mesmo sendo isso verdade a
inteligência procedeu negativamente apagando-se
ante os outros domínios do ser.

Foi serva disposta apenas a ministrar os pequenos


e paliativos remédios da farmacopeia didático-
técnica-poética ohoh! quando a ela cabe senão
superioridade e prioridade, cabe o domínio, a
orientação e a palavra final. Nos discursos atuais,

553
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 69.
rapazes, já é de novo a inteligência que pronuncia
o tenho-dito.554

Após realizar a criação artística com base na inspiração e no


inconsciente, Mário defende que o artista deve recorrer ao “máximo de
trabalho intelectual, pois que atinge a abstração para notar os
universais”.555 Ele assim restringe a participação do inconsciente a um
primeiro momento do processo de criação, instância em que afloram o
inconsciente e o fluxo livre de ideias, de um momento de esforço de
vontade e atenção posterior que uniformiza as impulsões líricas:

A inspiração é que é subconsciente, não a criação.


Em toda criação dá-se um esforço de vontade.
Não pode haver esforço de vontade sem atenção.
Embora a atenção para o poeta modernista se
sujeite curiosa ao borboletear do subconsciente —
asa trépida que se deixa levar pelas brisas das
associações — a atenção continua a existir e mais
ou menos uniformiza as impulsões líricas para que
a obra de arte se realize. 556

Mário termina por concluir que escreverá em nome de sua própria


verdade.557 Ele argumenta que a crítica à razão feita pelo romantismo,
baseada no sentimentalismo, fora insuficiente, “porque na inteligência é
que moram razão e consciência. Ela é que justifica e da lógica, da
experiência, da ciência se utiliza”.558 Ele afirma que “a poesia
intuitivamente qualitativa já não basta para o Homem Novo”559 e
pondera que “mesmo o lirismo inconsciente é filho da inteligência, ao
554
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960.
555
Ibidem, 1960, p. 33.
556
Ibidem, 1960, p. 31.
557
Ibidem, 1960, p. 69.
558
Ibidem, 1960, p. 70.
559
Ibidem, 1960, p. 70.
menos como teoria”560. E termina por concluir que “não cabe à
inteligência senão a superioridade e a prioridade, o domínio, a
orientação e a palavra final”561.

Segundo o escritor, mesmo como primitivos somos realistas e


estilizadores: “a realização sincera da matéria afetiva e do subconsciente
é nosso realismo. Pela imaginação deformadora e sintética somos
estilizadores”562. Para ele, o renascimento do espiritualismo nas artes e
as teorias literárias construtivistas não seriam capazes de destruir o papel
do individualismo na criação:

O atual renascimento do espiritualismo e mesmo


do catolicismo (pois neoescolástica não traz no
“neo” que a enfeita o coeficiente do eu central,
irradiante dos reformadores?) assim como a clara
direção construtiva das artes não destruirão o
individualismo. Consequência fatal de nossa
liberdade. É inútil pois atacar individualismo,
personalidade, originalidade. Embora o homem
seja eminentemente social, um coletivo de almas a
bem dizer não existe. O número dois em se
tratando de seres pensantes é criação conciliatória
mas falsa.563

Como vimos, Mário a princípio confundia individualismo com


individualidade. Porém, em textos posteriores, como “O artista e o
artesão”, de 1938, ele conseguiria avançar em sua concepção estética de
modo a conseguir conciliar a “individualidade” e originalidade artísticas
com a consciência coletiva.

560
ANDRADE, Mário de. A Escrava que não É Isaura. In: Obra imatura. São
Paulo, Livraria Editora Martins, 1960, p. 70.
561
Ibidem, 1960, p. 70.
562
Ibidem, 1960, p. 67.
563
Ibidem, 1960, p. 55.
2.3 A sombra da Segunda Guerra e da ditadura

A correspondência entre Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa


desenvolveu-se num período assombrado pela Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Embora não fosse um assunto discutido diretamente com
muita frequência, a guerra aparecia constantemente nas entrelinhas,
como uma sombra a pairar sobre os interlocutores. “O mundo vai
horrível, Henriqueta, jamais os crimes contra a consciência do homem
foram tão cientificamente forjados”564, escreve Mário.
Em uma de suas primeiras cartas, o escritor modernista faz um
comentário sobre a beleza da guerra, numa apreciação estética do
“exatismo” do conhecimento científico que lembra os moldes futuristas:

No exatismo atual há qualquer coisa de


vertiginoso, de convulsivo que se desfolha, se
esfarela, se esfaz em poesia. Não canto o perigo,
não, Henriqueta, nem a guerra, nem o heroísmo.
Eu sinto é que no gênero de sofrimento novo a
que o exatismo nos conduziu, há uma substância
de poesia muito maior que a de um vale do Tirol,
a de Jesus e as criancinhas ou a de Beatriz – o
incongruente desta verdadeira inconsciência com
que somos excessivamente conscientes de nós
mesmos e dos manejos da vida.565

Henriqueta chama a atenção para a insanidade do mundo e da


guerra, e pondera que talvez a poesia não precise da guerra para ser
percebida e sentida, pois “ela representa a nossa mesma vertiginosa
atitude em face do abismo”. Ou seja, para a poeta mineira dedicada às
questões do ser, a poesia deveria estar presente no cotidiano sem
necessitar da violência da guerra:

Pensaremos assim porque só agora descobrimos o


mundo ou, de fato, o mundo atinge o paroxismo
da loucura com o aprimoramento da mecânica?

564
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 81.
565
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, Rio de Janeiro, 24 de
fevereiro de 1940, p. 79.
Sentiremos mais agudamente a tragédia humana
através da poesia de hoje porque ela representa a
nossa mesma vertiginosa atitude em face do
abismo ou, de fato, nossos irmãos no tempo são os
que primeiro mergulham as mãos na fonte da água
viva?... Mário, que problemas difíceis para mim!
Quanto à consciência: esta grita sem dúvida mais
alto, quanto mais tripudiada.

A poeta mineira demonstrava-se atônita com a guerra, sentindo-


se incapaz de reagir a ela: “Tantas cousas horríveis estão sucedendo que
nem sei como abordar você. Tudo é tão espesso em torno, a dois passos
a escuridão é tanta, que chega a ser difícil caminhar”.566
Em agosto de 1940, Mário confessa a Henriqueta ter sofrido uma
espécie de morte, resultante de um acúmulo de desgostos pessoais que
acabaram por emudecê-lo e também por causa da guerra. Ele manifesta
então a intenção de se retirar dos embates intelectuais, para se dedicar
mais à criação literária e talvez continuar alguns de seus estudos em
andamento:

Será difícil, Henriqueta, expor a você tudo o que


me decidiu a esta espécie de morte. Não: estou
exagerando por excesso de melancolia. Não será
nenhuma espécie de morte. Será apenas uma
como que reconciliação com o silêncio, de quem
viveu demasiado à tona e reconheceu afinal que
não tem nenhuma vocação para o teatro... No
fundo é uma desistência de atitude. Não creia que
seja uma deserção.
É certo que a guerra me convulsionou
horrivelmente. Certos problemas do homem, da
inteligência, da felicidade individual, do equilíbrio
social se impuseram ao meu espírito com uma
violência muito rude, com uma espécie de verdade
drástica, em que senti muito cinismo e enorme
desumanização de mim mesmo. Me senti num

566
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 7 set. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 224.
individualismo feroz, não só egoístico mas
douramente egotístico, numa prodigiosa
independência, numa liberdade desligada de tudo,
enfim numa espécie de superioridade pessoal que
estou longíssimo de justificar e aceitar em mim e
me desgostou cruelmente. Nunca me supus tão...
tão ruim! E senti que era chegada a hora de me
calar. Porque assumir uma atitude, pregar coisas
contra as minhas convicções ou dúvidas, era
sempre perseverar no teatro, e num teatro em que
a minha idade e experiência já não me permitem
mais ser galã. (...) Mas, não sei se pelo peso da
minha honestidade ou pela seriedade que ponho
em tudo quanto faço, o que sei é que da minha
geração intelectual tive esse mau destino de ser o
galã profissional, o eterno Romeu namorado por
todas as tendências, todos os grupos, todas as
escolas...567

Ao saber do suicídio do escritor austríaco Stefan Zweig, em 1942,


durante o seu exílio no Brasil, por estar deprimido com a expansão da
barbárie nazista pela Europa, Mário escreve a Henriqueta e afirma ter
ficado irritadíssimo com sua desistência, sua “covardia absurda e
abjeta”,(...) “não por ele ter se recusado a viver naquele mundo absurdo,
mas pelo convite ao conformismo que sua atitude representava”.568 E
conta a amiga que chegou a cogitar a hipótese de cometer suicídio:

Eu também na minha crise que acabou me


fazendo fugir pra fazenda em dezembro, também
a mim a imagem do suicídio me perseguiu
bastante. Mais a imagem que a ideia, porque
acreditando em Deus me impedem, senão de
estudar o problema, pelo menos de o encarar
como problema meu. E se eu meter uma bala na

567
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 27 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 113-114.
568
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. Ibidem, 2010,
p. 194.
cabeça será me deixar levar pela imagem de uma
assombração... apaziguadora. E a vida me
interessa mais do que essa possível paz da morte.
Você sabe o que mais me assombra nos
materialistas? É não se suicidarem todos eles!
Porque não se suicidam! Sem uma significação
superior, e esta só pode ser Deus, a vida é uma
coisa completamente sem significação para a
inteligência e esta só pode concluir pela bala na
cabeça. Ou o cianureto de potássio.569

Ele lembra ainda que com a imagem do suicídio lhe veio logo a
imagem gêmea do assassinato, com a qual pôde consentir e transformar
em ideia, tendo como alvos os ditadores e fascistas, inclusive o amigo
Gustavo Capanema, para quem trabalhou como assessor:

Afinal das contas não me seria desagradável botar


uma bomba num conclave que reunisse Getúlio,
Osvaldo Aranha, Góes Monteiro, Chico Campos,
Plínio Salgado e até o meu prezado amigo
Capanema. Afinal das contas essa gente que é
ditadura, que é nazistizante como ideologia
política, que é não se sabe o quê como forma de
governo mansinho e amansado, e que acaba
aderindo à força e de boa vontade ao imperialismo
ianque, essa gente nos enche de ignomínia.570

A seguir, Mário conta a Henriqueta sobre uma ocasião em que ele


era colaborador do jornal do Partido Democrático571, o Diário Nacional,
quando, por duas vezes, teve que passar a noite inteira na redação (que
não frequentava, escrevia seus artigos em casa) porque esta estava

569
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 194. Ibidem, 2010, p. 194.
570
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. Ibidem, 2010,
p. 195.
571
Embora Mário tenha participado da Fundação do Partido Democrático, ele
afirma que nunca foi do partido, pois “positivamente não são esses avatares
democráticos do capitalismo que podem me satisfazer”.
ameaçada pelo partido no poder. Ele confessa que não estava ali por
coragem, mas por “oposição tempestiva”, que o faria incapaz de ceder
mesmo sob o uso da força. O escritor, porém, não queria assumir uma
posição radical e politicamente engajada, como fizeram alguns
intelectuais da época, até porque reconhece que essa abordagem não era
compatível com seu temperamento. “(...) Positivamente sou incapaz de
conspirar nem andar com bomba debaixo do braço. Mas não haverá
outro meio do intelectual participar?”572
No artigo “Noção de responsabilidade”, ele descreve a sua
participação na fundação do Partido Democrático, demonstrando o seu
ceticismo com relação à atuação política pela via partidária:

E si tivesse lembrado o Partido Democrático, os


teria englobado a todos, pois que esse partido, a
primeira reação política perfeitamente sistemática,
organizada contra o regime da primeira
República, nasceu da mão desses rapazes, e mais
alguns amigos. Me lembro mesmo de uma das
reuniões preliminares da formação do Partido
Democrático quando ainda o velho conselheiro
Prado hesitava comprometer-se nele. Na casa de
Paulo Nogueira Filho formávamos quase
exclusivamente uma repetição da Semana de Arte
Moderna. Eu seria o decano entre os presentes e
por certo o único que descria daquilo tudo. Mas
ninguém falou literatura, nem poesia, escarrou-se
ódio ao regime, descreveu-se lutas políticas,
sonhou-se um caminho melhor para o país, voto
secreto. Eu mudo, imensamente insulado no
ambiente. Que era confortável e com ótimo
whisky.573

Traumatizado com a Segunda Guerra e com a ditadura de Getúlio


Vargas, Mário queria deixar de lado as veleidades do cenário cultural,
em que se via como “o galã profissional, o eterno Romeu namorado por

572
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. Ibidem, 2010,
p. 197.
573
ANDRADE, Mário de. Noção de responsabilidade. In: O Empalhador de
Passarinho. São Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 25.
todas as tendências, todos os grupos, todas as escolas”, para se engajar
de modo mais efetivo nas questões políticas que o momento demandava.
Porém, ele não queria que essa participação política resultasse em perda
de liberdade ou no compromisso de se filiar a determinados grupos ou
facções políticas:

Porém lá, me censurando, eu mesmo apontava


meios do intelectual “participar” da vida política
que é a essência mesma da idade que o homem
atravessa, sem ser “suicidado” pelas gestapos de
Oropa, França e Getúlios. Há o veneno da
inteligência, há o ângulo de visão e se tudo isto
for proibido, há o pranto! Há mil meios de
solapar, de empestar, de envenenar, de tornar
irrespirável o ar.574

O escritor afirma então que pretendia se tornar uma espécie de


guerrilheiro da inteligência, disposto a combater não de um modo
abertamente belicoso, mas espalhando veneno nas consciências:

Pensei que não tinha jeito pra fazer isto. Mas não
se trata de ter ou não ter jeito, se trata de um
dever. E aos poucos estou fazendo o que não
imaginava fazer. Publicamente, hoje eu só
pretendo empestar, só desejo envenenar. Estou aos
poucos, pouco a pouco, retirando dos meus
escritos qualquer espécie de solidariedade com a
inteligência livre. E você não se assuste se
pegando num artigo meu me vir precário, longe de
qualquer verticalidade, deformar pessoas,
deformar mensagens, abrindo um ângulo de visão
imprevisto mas que me permita botar nos que me
leem a gota corrosiva de um veneno, o amargo de
uma insatisfação. É um cansaço. Minha
consciência só tem algum sossego e prêmio

574
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 197.
quando eu me sentir deveras um Criminoso da
inteligência.575

Preocupada com a amargura do amigo, Henriqueta procura


abrandar o seu ímpeto e lhe pede que tome cuidado ao publicar esses
textos combativos, aconselhando-o a só publicar essas páginas depois de
cuidadosa releitura e após elas serem confiadas à leitura e ao conselho
dos seus amigos. Para a poeta mineira, o combate ao fascismo e à guerra
poderia ser feito em outra frente, a partir da própria literatura, que é
vista por ela como um modo de resistência:

Apesar de todo o trágico rumor que avassala o


mundo e nos constrange cada vez mais,
continuemos a falar de poesia, Mário! Sinto-me
absurda no meio de tanta confusão, como que
enlouqueceram as próprias palavras! Sempre
achei excessiva a frase feita de que “a poesia
salvará o mundo”. Entretanto, se cada homem
examinasse a sua consciência como tem que fazer
o poeta para encontrar sua verdadeira expressão, o
mundo seria menos incoerente.576

Nessa época, Mário vivia constantes momentos de abatimento


moral, agravados por problemas de saúde. Mas procurava resistir. Em
carta à amiga, ele conta sobre a sua decisão de escrever o prefácio para o
livro de um jovem poeta que estava lutando contra os nazistas na guerra,
ainda que os versos não lhe agradassem muito: “E estou sadio, de
cabeça levantada, capaz até de defender os versos fracos se for
necessário. Há um poeta. E esse poeta está sujado por uma guerra. É o
que eu sei e só preciso saber”.577

575
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. Ibidem, 2010,
p. 197.
576
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 4 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 190.
577
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 out. 1944. Ibidem, 2010,
p. 308.
2.4 Entre a lira e a foice

O empenho modernista pela emancipação da cultura nacional e


pela formação de uma identidade cultural encontrou ressonância na
primeira fase da política nacionalista e populista de Getúlio Vargas.
Porém, não se tratava, para Mário, de um projeto nacionalista, no
sentido político-ideológico, mas de um projeto coletivo de busca de
emancipação cultural e construção de uma identidade nacional.
Em 1930, Getúlio Vargas assumiu o poder, iniciando um período
que ficaria conhecido como a "era Vargas" e que compreende a ditadura
do Estado Novo, de 1937 a 1945. Nessa época, Mário se uniu a outros
intelectuais na luta contra o espírito antidemocrático.
Em carta a Drummond, de novembro de 1928, ano em que
publica Macunaíma, o escritor modernista já confessava ao amigo o
cansaço que sentia em fazer proselitismo em defesa de uma arte
empenhada em construir uma identidade brasileira: “(...) publico o
Macunaíma que já está feito e não quero mais saber de brasileirismo de
estandarte. Isso tudo conto só para você porque afinal de contas
reconheço a utilidade dele. Meu espírito é que é por demais livre pra
acreditar no estandarte.”578
O empenho por construir uma identidade cultural brasileira foi
então substituído pela premência da luta contra a ditadura, resultando
numa politização crescente da arte. Segundo Antonio Candido, a
inteligência da época vinha finalmente tomando consciência da presença
das massas como elemento construtivo da sociedade, em convergência
com o amadurecimento da consciência política:

E este alargamento da inteligência em direção aos


temas e problemas populares contribui
poderosamente para criar condições de
desenvolvimento das aspirações radicais, que
tentariam orientar, dar forma, ou quando menos
sentir a inquietação popular. O que se poderia, no
melhor sentido, chamar de libertinagem espiritual
do Modernismo, contribuiu para o fermento de
negação da ordem estabelecida, sem o qual não se

578
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 18 nov. 1928.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988.
desenvolve a rebeldia social e o consequente
radicalismo político.579

De acordo com Anderson Pires da Silva, acompanhando o


fortalecimento dos movimentos progressistas e a propagação do
marxismo, a produção literária da época começava a se distanciar da
aristocracia burguesa e a ganhar um caráter de maior participação
política. Na década de 1930, o romance modernista vai tratar de temas
regionalistas, com cunho regional e social, voltados para a condição
humana, os costumes do trabalhador rural, a seca e a miséria. Para o
autor, a partir desse momento, a tensão entre o estético e o político passa
a reger os compromissos que o intelectual assumia perante a
sociedade.580
Porém, devemos considerar que mesmo na primeira fase do
modernismo Mário já era político, se considerarmos política num
sentido mais amplo, e não restrito ao âmbito partidário. A sua
aproximação com as classes populares contribuiu para reduzir as
barreiras entre a arte erudita e popular e ampliou a sua consciência sobre
a necessidade de reduzir as desigualdades sociais e mudar as estruturas
de poder.
Ao sair de seu gabinete para se lançar às ruas para realizar sua
pesquisa do folclore e da cultura popular, em suas viagens de Turista
Aprendiz, Mário se compraz no convívio com as pessoas simples do
povo, no qual encontra um manancial de vitalidade, espontaneidade e
sensibilidade e um sentimento de comunidade e fraternidade que ele
associava ao sentimento religioso. Segundo descreve, em carta a
Drummond, em 1924:

E então parar e puxar conversa com gente


chamada baixa e ignorante! Como é gostoso!
Fique sabendo duma coisa, se não sabe ainda: é
com essa gente que se aprende a sentir e não com
a inteligência e a erudição livresca. Eles é que
conservam o espírito religioso da vida e fazem
tudo sublimemente num ritual esclarecido de
religião. Eu conto no meu "Carnaval carioca" um

579
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz,
2000; Publifolha, 2000, p. 123.
580
SILVA, Anderson Pires da. Mário e Oswald: uma história privada do
Modernismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 142.
fato a que assisti em plena avenida Rio Branco.
Uns negros dançando o samba. Mas havia uma
negra moça que dançava melhor que os outros. Os
jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma
sensualidade mas ela era melhor. Só porque os
outros faziam aquilo um pouco decorado,
maquinizado, olhando o povo em volta deles, um
automóvel que passava. Ela não. Dançava com
religião. Não olhava pra lado nenhum. Vivia a
dança. E era sublime.581

De acordo com Telê Porto Ancona Lopez, em Paulicéia


desvairada (1922) o poeta “já expressava o seu compromisso com o
povo, visto como parcela dinâmica em constante aspiração a melhorias,
mas não ainda como classe consciente de suas contradições”.582 Ainda
segundo a pesquisadora, também já nas crônicas de novembro de 1928 a
março de 1929, que constituem a segunda série de O turista aprendiz,
“predominam uma tentativa constante de fazer análise sócio-econômica
e o entusiasmo para com elementos do marxismo”.583 Ao identificar na
pátria elementos sócio-econômicos vinculados ao poder das classes
sociais, o escritor consegue ultrapassar o que teria sido para ele mera
contingência necessária: “Já tive compreensão política de pátria, mas a
ultrapassei, graças a Deus. Pátria pra mim é que nem as classes sociais:
uma camisa de força que muitos vestem por... digamos que por
prazer.”584
Segundo Lopez, o escritor teria então percebido que seria preciso
libertar da imagem de pátria a idealização auriverde e a coação de lei, de
militarismo, para fazer com que o povo assumisse realmente a
propriedade de seu país. Entretanto, ainda de acordo com a autora, o
entusiasmo com o marxismo que manifestou em 1930 foi caindo pouco
a pouco, à medida que cresciam as contradições de São Paulo com a
Revolução:

581
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 10 nov. 1924.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988.
582
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 49.
583
Ibidem, 1972, p. 50.
584
Ibidem, 1972, p. 58.
Em 1934 inverte sua ética de 1929. Tem o
Marxismo e o Comunismo como doutrinas
válidas, guardadas evidentemente as reservas
quanto ao materialismo, e tem “individualismo-
individualidade” (que continua a confundir) como
elementos superados e negativos. O período 1934-
1938 é tempo de intensa produção artística e
sistematização de suas pesquisas sobre o Folclore
nacional.585

A autora observa, porém, que “o conceito político de pátria, que


repudia enquanto ligação com a particularidade de uma nação, é
entretanto dialeticamente defendido, uma vez que, como postulado
vigente, pode ser utilizado para a construção da nacionalidade enquanto
cultura e independência econômica”.586
Em carta a Manuel Bandeira, em 1927, Mário explica a sua
negação do termo “nacionalismo”, afirmando-se então “brasileiro”, não
nacionalista, pois o nacionalismo se tornara uma onda, moda, não
prática cotidiana; reduzira-se ao conceito estreito de pátria que ele
negava.587
Nacionalismo, para o poeta modernista, passou a significar
apenas ser brasileiro, se relacionar com a sua cultura e a sua tradição,
com o próprio meio ambiente, sem que para isso fosse necessário
incorrer num nacionalismo de estandarte, conforme ele define, em carta
a Drummond:

Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser


nacional. O que mais simplesmente ainda
significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente,
isto é, viva, se relacione com o seu passado, com
as suas necessidades imediatas práticas e
espirituais, se relacione com o meio e com a terra,

585
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 58.
586
Ibidem, 1972, p. 211.
587
BANDEIRA, Manuel, org. Carta datada de São Paulo, 6 abr., 1927. Apud
Ibidem, 1972, p. 58.
587
Ibidem, 1972, p. 205.
com a família etc., ninguém que seja
verdadeiramente, deixará de ser nacional.588

Em carta a Henriqueta, ele se declara mesmo um antipatriota,


atribuindo o amor que sente pelo Brasil ao mero acaso de morar no País:
“Desculpe este monstro, mas sou um antipatriota convicto. Adoro o
Brasil e você sabe o quanto tenho viajado por ele, à minha custa, no
prazer ardente de o conhecer. Mas sinto que passaria a adorar o Japão ou
a Zuzulândia, com a mesma gostosura, o dia que passasse a morar lá”.589
Mário adotou uma postura mais política a partir da década de
1930, período em que passaria a participar mais ativamente das questões
sociais de seu tempo, em busca de um “amilhoramento político-social
do homem”, culminando na escrita da ópera Café, iniciada em 1933 e
concluída entre 1939-1942. Após a fase nacionalista do final dos anos
1920, desde os anos 1930 a literatura se voltava para questões éticas e
sociais e se tornava um instrumento de combate político.
Esse período de maior conscientização dos artistas teve, porém, a
sua face reversa, a radicalização do discurso político, que propiciou a
prática de patrulhas ideológicas. Nessa época, fazer arte social ou
engajada se tornou quase que uma obrigação, e quem se recusasse a
aderir corria o risco de ser enxovalhado pelos mais radicais: “Hoje a
situação é de tal forma trágica que aquele que não está de um lado está
necessariamente do outro. (...) O que não se admite são os que querem
agradar a todo mundo, a Deus e ao Diabo, colocando-se na cômica
situação de romancistas puros e sem cor política”, decretou Jorge
Amado, um dos integrantes da revista carioca Lanterna Verde, que
reunia tanto intelectuais de direita quanto de esquerda, tendo em comum
o repúdio à atitude liberal clássica, vista então como oportunista e
conservadora.590
Em 1936, o número 4 da revista Lanterna Verde decreta o fim do
Modernismo, que deveria ceder espaço para um período com
características próprias, atento às inquietações políticas e sociais, em

588
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988.
589
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 16 abr. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 85.
590
SANTIAGO, Silviano. “Fechado para balanço”. In: O cosmopolitismo do
pobre. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 78.
que se destacaria o romance. Tristão de Ataíde e Octávio de Faria
decretam, nas páginas da revista: “O modernismo morreu”.
Para Silviano Santiago, o Modernismo teve fim em 1936, ano da
prisão de Graciliano Ramos, da radicalização dos intelectuais na
participação política e das críticas ao Modernismo feitas na Lanterna
Verde:

(...) O modernismo de 22 é enterrado em 1936 ao


repicar dos sinos maniqueus (nitidez na oposição
de luz e sombra, de Deus e Diabo, de catolicismo
e comunismo). As vozes dos sinos guerreiros
traçam o perfil do intelectual intolerante, de feição
totalitária e bem pouco democrático nas suas
intenções revolucionárias, pois deseja modernizar
o Brasil e atualizar a sua arte pela destruição do
seu oposto."591

Porém, nesse momento em que muitos escritores de sua geração


radicalizavam a sua posição política, Mário optou por não se assumir
comunista, preferindo resguardar a sua liberdade e combater a partir de
sua “torre-de-marfim”, em vez de se associar a grupos ou partidos. Em
carta a Álvaro Lins, ele demonstra a sua irritação com a profusão de
romances e poemas de fins utilitariamente políticos, mas em geral de
péssima qualidade literária, para justificar o que havia escrito num artigo
de crítica: “Neste sentido é que muita literatura social de hoje me
irrita”.592
Essa postura de desconfiança com relação ao engajamento
político dos escritores da época rendeu muitas críticas ao escritor.
Segundo observa o pesquisador Anderson da Silva Pires:
“Politicamente, seu medo em se assumir comunista, sua abstenção na
torre de marfim, sua crítica à qualidade do romance de 30, também o
afastam do comprometimento dos artistas engajados. Enfim, nesse
panorama, Mário era, ironicamente, um outsider."593

591
SANTIAGO, Silviano. “Fechado para balanço”. In: O cosmopolitismo do
pobre. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 78.
592
ANDRADE, Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins. Apres.
Ivan Cavalcanti Proença; comentários José César Borba e Marco Morel. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1983, p. 23.
593
SILVA, Anderson Pires da. Mário e Oswald: uma história privada do
Modernismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 141.
Porém, podemos pensar que Mário teve uma participação política
muito ativa e significativa, principalmente na direção do Departamento
de Cultura de São Paulo, como observa Joan Dassin:

Assim como defendia vigorosamente sua “torre-


de-marfim”, Mário sempre fazia expedições
secretas no terreno da política. “homem-de-
gabinete” sem igual no Brasil (Antonio Candido,
numa conversa informal, disse-me que, em
comparação com Mário, os outros modernistas
eram “analfabetos”), o autor paulista foi um
“homem-de-ação” sem precedentes, sobretudo
durante seus anos como Diretor do Departamento
de Cultura.594

O problema era que, para Mário, o intelectual tinha se tornado


então uma espécie de revolucionário disponível para quaisquer lutas,
porém sem muito senso crítico para escolher seu próprio caminho. Em
carta para Henriqueta Lisboa, ele cita como exemplo o modo como os
futuristas italianos se transformaram em fascistas, e os futuristas russos
e sobrerrealistas franceses em comunistas.595 Segundo ele, ideologias e
pelejas se tornam para o intelectual disfarces humaníssimos do seu
desespero diante da liberdade brutal, experimentada, incontestável da
“sua verdade”. Mas o escritor modernista ainda considerava o
proselitismo egoísta ou baseado em verdades transcendentes ou
socializadoras melhor do que a indiferença dos intelectuais que se
fecham em si mesmos, tímidos e indiferentes:

São os muitos demagogismos de toda espécie, os


muitos intelectuais proselitistas, revolucionários,
legítimos missionários, legítimos sumés do
egocentrismo que comoventemente movem
linotipos, jornais, salas de conferência na
pregação das suas próprias ou das adotadas
verdades (pouco importa) convencidos de que elas

594
DASSIN, Joan. Política e Poesia em Mário de Andrade. São Paulo: Duas
Cidades, 1978, p. 123.
595
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 108.
serão a maniva e o milho salvador. Nesses
homens, por mais ridículos que sejamos,
Henriqueta, há sempre que respeitar a humana
generosidade. Embora também esta generosidade,
meu Deus! Esteja muito mesclada de vaidade e
intoxicada pela paixão da Verdade transcendente
ou da verdade socializadora, nem por isso ela
deixa de ter sua nobreza, seu amor dos homens. A
vaidade, afinal das contas, não é apenas
provocada pelo namoro de si mesmo, implica
sempre pelo menos a noção ativa do
companheiro...
Já outros não agem assim, esses Gides. São os
mais egotistas e desprezíveis, o que se conservam
na legitimidade do seu intelectualismo
concêntrico. Também convictos da transitoriedade
precária das suas verdades incontestáveis, se
fecham em copas. Em vez de acreditarem com
pressa apaixonada nas suas verdades, como
fizeram os proselitistas, em vez de quebrarem
armas para impor a amante de um dia ao amor do
mundo, antes a escondem, tímidos, indiferentes.
(Não é exatamente o caso de Gide, agora.) Amam
a sua verdade, desprezando-a. Em vez de
demagogos, em vez de revolucionários, se
conservam apenas revoltados. Caçoam de tudo,
desprezam tudo, se ocultam, emudecem, fazem
pouco mais que nada. Não têm a mais mínima
generosidade. Não se suicidaram. Não possuem
nenhuma beleza. Se os outros são danados
comoventes e humaníssimos, estes são danados
só. Uma calamidade. 596

Mário contou para Henriqueta sobre uma ocasião em que passou


duas noites entrincheirado na redação do Diário Nacional, o jornal do
Partido Democrático, com o qual colaborava, por solidariedade aos
596
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 109.
colegas, pois o jornal estava ameaçado pelo partido no poder. Embora
ele não fosse filiado ao partido, estava convicto de que era necessária
uma atitude de “oposição tempestiva”, de circunstância, devido ao seu
dever moral para com o diário com o qual colaborava e “aceitava de
alguma forma a orientação política”. Ele afirma que estava disposto a ir
até as últimas consequências para não ceder, pois queria dar um bom
exemplo de comprometimento moral e ético aos companheiros:

Havia em mim, sem nenhum heroísmo, a mais


irrecorrível das convicções, não a do Partido,
Deus me livre! mas a da oposição tempestiva. E a
isso ainda se juntava o meu dever moral pra com o
diário com que colaborava e de que, por isso,
aceitava de alguma forma a orientação política. E
eu sabia que só tinha um destino: morrer.
Bombas! Eu estava ali pra morrer. Por a
convicção? Não, pela outra! Era uma coisa de
uma estupidez sorridente.597

Provavelmente, situações assim o levaram a se tornar mais


criterioso com relação às causas que viria a abraçar no futuro e a
repensar o modo como queria combater. Talvez por ter presenciado o
discurso populista se converter no horror do fascismo e da Segunda
Guerra, Mário passou a desconfiar da militância política associada a
grupos e partidos, sujeita a todas as espécies de contradições e
idiossincrasias, e procurou abrigo em sua própria individualidade,
proclamando a sua crença na verdade do intelectual e na liberdade
individual. Porém, longe de qualquer abstencionismo, ele observa que
essa liberdade é apenas parcial, pois haveria a necessidade de o artista
participar ativamente do seu momento histórico, atentando para as
questões políticas e sociais e exercendo sempre uma consciência crítica.
A liberdade estaria apenas no direito de escolher seu posicionamento de
modo livre e independente, mas não no direito de se abster, sob o risco
de comprometer a sua própria integridade artística. Para assegurar a sua
liberdade de escolha, o artista não deveria aceitar nem mesmo o

597
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 24 fev. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 197.
conformismo dos partidos políticos, como defende o escritor, em
“Elegia de Abril”:

Mas se o intelectual for um verdadeiro técnico da


sua inteligência, ele não será jamais um
conformista. Simplesmente porque então a sua
verdade pessoal será irreprimível; ele não terá
nem mesmo esse conformismo "de partido", tão
propagado em nossos dias. E se o aceita, deixa
imediatamente de ser um intelectual, para se
transformar num político de ação. Ora, como
atividade, o intelectual, por definição, não é um
ser político. Ele é mesmo, por excelência, o out-
law, e tira talvez a sua maior força fecundante
justo dessa imposição irremediável da "sua"
verdade.598

Refugiando-se em sua “torre-de-marfim”, no final dos anos 30,


Mário não estava disposto a abrir mão de sua independência e liberdade
intelectual para pactuar com grupos que possuíam muitas incoerências
internas e ideias muitas vezes divergentes das dele. A liberdade
intelectual, para o escritor, não implicava numa liberdade alienada das
questões sociais e de seu tempo, e sim que deveria combater a partir de
sua condição de artista e intelectual. Ele procurava, desse modo, manter
certa independência individual, demonstrando uma postura sempre
crítica com relação aos grupos:

Para preservar a liberdade intelectual e poder


defender sua própria verdade, o intelectual jamais
será um comunista, faschista ou até mesmo um
católico. O seu desespero diante da liberdade
brutal, experimentada, incontestável da “sua”
verdade o torna ainda mais anarquístico (no
sentido vulgar e não ideológico da palavra),
porque inicialmente, pelo seu concentrismo, por

598
ANDRADE, Mário. “A elegia de abril”. In: Aspectos da literatura
brasileira.. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 193.
só crer e ver pela sua própria experiência, o
intelectual é da sociedade.599

Essa decisão de não participar diretamente da vida política, não


se filiar mais a partidos e nem se assumir comunista não significa
propriamente absenteísmo, mas uma opção de combater como
intelectual, e não como político. Essa postura de Mário, porém, pode ser
vista como insuficiente e absenteísta, por não envolver uma participação
política mais direta, como observa o pesquisador Luciano Costa Santos:

Isso não significa, todavia, que Mário não tenha


reagido impetuosa e simpaticamente aos grandes
acontecimentos de seus dias. Veja-se, por
exemplo, sua atitude perante a campanha lançada
por Bilac em São Paulo, em 1915, e que fez de
Mário um reservista. Nem se pode ignorar
também sua posição diante da Revolta do Forte de
Copacabana em 1922, da Revolução de Isidoro
em 1924, da fundação do Partido Democrático e
do Diário Nacional, crise do café em 1929, da
Revolução de 30, da Revolta Constitucionalista de
São Paulo em 1932 e dos acontecimentos finais
que abalaram sua carreira e suas atitudes políticas:
a implantação do Estado Novo em 1937, a Guerra
Civil Espanhola e, claro, a Segunda Grande
Guerra.
No entanto, suas tentativas teóricas de lidar com
conceitos políticos são sempre ambíguas e
hesitantes. Mesmo resguardado dentro de sua
“torre-de-marfim”, Mário escolhe o retórico e o
lírico em lugar de definições e soluções
específicas.600

599
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 109-110.
600
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 130.
Mário nasceu numa família de classe média burguesa, mas,
graças à sua projeção como artista e intelectual, frequentava os salões
organizados pela aristocracia paulista, no início do século XX, e foi
arregimentado para trabalhar como funcionário público. Essa ascensão
social pode ter contribuído para dar a impressão de que ele compactuaria
com a aristocracia e a burguesia e de que haveria um distanciamento
entre ele e as classes populares. Além disso, a sua atuação como
funcionário público ajudaria a limitar a sua liberdade de expressão e
inibiria uma participação política mais expressiva.
Segundo Sérgio Miceli, nessa época, os intelectuais filhos dos
grupos dominantes correspondiam a expectativas ditadas pelos
interesses do poder e das classes dirigentes. Beneficiando-se da adesão
desses intelectuais aos quadros de funcionários, o Estado Novo
conseguiu criar uma salvaguarda ideológica ao regime e fortalecer a
cultura oficial propagada pelo governo. Intelectuais de todos os matizes
foram captados pelo aparelhamento estatal: militantes em organizações
de esquerda, quadros da cúpula integralista, porta-vozes da reação
católica, figuras pertencentes à intelectualidade tradicional e os
praticantes das novas especialidades.
Porém, segundo Miceli, o grupo de intelectuais do Partido
Democrático, sob a liderança de Mário, se empenhava em preservar a
sua liberdade, se não no âmbito político mais imediato, ao menos no
plano intelectual, no que se distinguiam dos intelectuais do Partido
Republicano Paulista (PRP):

Enquanto os escritores vinculados ao perrepismo


buscaram colocar suas obras a serviço de uma
ideologia "nacionalista" de que poderiam se
utilizar os grupos dirigentes, ou então, dos
intentos reformistas que tencionavam impor à
direção partidária, o grupo de intelectuais
"democráticos" sob a liderança de Mário de
Andrade se empenha em não deixar com que suas
tomadas de posição no terreno político-partidário
possam comprometer o conteúdo de sua produção
literária e estética.601

601
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, p. 23.
Para o autor, graças ao seu capital cultural e à expansão das
instituições culturais da oligarquia, o escritor modernista, de família
classe média e "primo pobre” da elite, conseguiu chegar a exercer uma
liderança no campo intelectual. Porém, segundo ele, “Mário jamais
deixou de ser uma espécie de assessor intelectual de prestígio sem
conseguir, a exemplo de seu irmão mais velho, encetar uma carreira
política”.602
Porém, essa concepção de participação política somente pela via
partidária e de carreira é limitada, uma vez que é possível atuar
politicamente como artista e intelectual e mesmo nas pequenas ações
cotidianas.
Por outro lado, o fato de pertencer ao funcionalismo do governo
Vargas comprometia, de fato, a liberdade de ação política desses
intelectuais. Mário confessava não poder assumir posições políticas
mais radicais, como aderir ao comunismo, sob o risco de perder o seu
cargo público. De acordo com Silviano Santiago, Mário já estava, no
final da década de 1930, “engajado tanto no projeto governamental
paulista, quanto no nacional”, como atestariam as cartas de trabalho que
dirige a Rodrigo de Mello Franco de Andrade:

Discorrendo sobre o documento de Mário, que foi


o principal responsável pela estruturação, em
1937, do Serviço de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, e lembrando a “prática
administrativa” de Mário no Departamento de
Cultura da Municipalidade de São Paulo, Lélia
Coelho Frota lucidamente afirma: “É importante
assinalar que a concepção abrangente que norteou
a criação dos dois novos órgãos evidencia um
nítido consenso em torno de um conceito de
cultura e de sociedade, que emanava em linha
direta da reavaliação modernista”.
Convivência no autoritarismo, consenso no
projeto cultural. Mãos dadas: política e arte,
modernismo e Estado Novo.603

602
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, p. 26.
603
SANTIAGO, Silviano. “Fechado para balanço”. In: O cosmopolitismo do
pobre. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 80.
Mesmo tendo a sua liberdade de ação limitada, isso não significa
que Mário tenha aderido incondicionalmente ao governo – pelo
contrário, o escritor manifestava uma posição crítica e contrária à
ditadura de Vargas. Podemos pensar que mesmo sendo um funcionário
público era possível resguardar alguma liberdade e exercer, até certo
ponto, uma oposição ao governo. Para uma avaliação mais precisa e
menos generalista, seria necessário verificar cada caso individualmente,
analisando as posturas assumidas por cada um dos intelectuais e as
ações cometidas por eles. Como observa Antonio Candido, no prefácio
para o livro de Sérgio Miceli, os intelectuais da época viviam uma
posição ambígua, acreditando pertencer a um estatuto peculiar, em que
era preciso “servir sem servir, fugir mas ficando, obedecer negando, ser
fiel traindo”. Porém, como observa o crítico, uma avaliação
generalizante da conduta desses intelectuais corre o risco de “atropelar
demais a verdade singular”:

O papel social, a situação de classe, a dependência


burocrática, a tonalidade política - tudo entra de
modo decisivo na constituição do ato e do texto de
um intelectual. Mas nem por isso vale como
critério absoluto para os avaliar. A avaliação é
uma segunda etapa e não pode decorrer
mecanicamente da primeira.604

Por ter se recusado a se assumir comunista, Mário foi duramente


criticado por alguns intelectuais da época. Jorge Amado afirmou que “os
moços andam cabisbaixos, desiludidos com o antigo ‘mestre’
transformado no ‘último esteta’, voltando a galope ‘para o modernismo
sem violência’”.605 Mário respondeu à crítica no artigo “A raposa e o
tostão”, argumentando que a nova geração sacrificava a técnica literária
em prol de uma vaga intenção social e pela demagogia partidária.
Porém, para o escritor modernista, sem o conhecimento técnico, as mais
nobres intenções não podem encontrar os meios para se realizar como
literatura ou como consciência social606.

604
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo / Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, prefácio.
605
SILVA, Anderson Pires da. Mário e Oswald: uma história privada do
Modernismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 101.
606
Ibidem, 2009, p. 101.
Em carta a Manuel Bandeira, Mário comenta a sua determinação
em manter a sua independência intelectual e de não se unir a grupos
formados por pessoas que pudessem, de algum modo, constrangê-lo:

Mas é de fato doloroso e você já deve ter sentido


isso na vida: às vezes a gente, do lado em que está
da ideia, está do lado de sujeitos que nos sujam
mais que muitos adversários... Se eu fosse crítico
literário, agora, eu seria obrigado a aprovar
calorosamente uma obra como Marco Zero pelo
que representa, mas cujo autor é um crápula
completo. É triste... Assim, não esqueça que estar
do mesmo lado da ideia não significa pra mim,
arre, os Jorge-amados e outros! Estar com todos
esses indivíduos nem com todos esses
argumentos.607

Podemos pensar que Mário, embora não se manifestasse


comunista, no sentido partidário, participava do comunismo como ideia
e atuava politicamente de modo progressista, sensível às lutas pelos
direitos civis e individuais. Apesar de seus vínculos com a aristocracia
cafeeira e de ter frequentado os salões da burguesia, o escritor se
mostrava contra a ordem política e econômica da classe dominante em
sua época e tinha um posicionamento crítico em relação ao seu contexto
social e político.
Cabe ainda notar que não é preciso que alguém se vincule a
partidos para demonstrar uma postura política de esquerda. No livro A
hipótese comunista, Alain Badiou defende que ser ou não comunista não
é só uma questão ideológica ou política. A palavra “comunismo” tem
um estatuto de uma Ideia, de modo que, a partir de uma incorporação e
portanto desde o interior de uma subjetivação política, essa palavra
denota uma síntese da política, da história e da ideologia. O cerne do
comunismo, para Badiou, é a negatividade. É negando a
irreversibilidade da ordem econômica e social vigentes que o filósofo
mostra que o comunismo sobrevive, não apenas como política de

607
Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, 20 jan. 1944. MORAES,
Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Instituto de Estudos
Brasileiros, USP, 2000, p. 668.
emancipação, mas, acima de tudo, como filosofia, isto é, como ideia.
Esta ideia corresponde à vontade do indivíduo de superar o próprio
individualismo e fixar uma verdade entre a sua própria existência vital e
o mundo em que sua existência se manifesta.608
Ao eleger a verdade do intelectual como premissa para a sua
postura social e política, Mário defende que a inteligência deve ser
exercida com total liberdade e independência, livre de qualquer
imposição de grupo ou ideológica:

Pro perfeito intelectual, ou melhor, pro intelectual


irredutível, isto é, o ser que tende a pensar
exclusivamente por si mesmo e reduzido à vida
individualista da sua própria inteligência, as
verdades nunca podem ser impostas. Nem sequer
impostas por qualquer ideologia. A verdade só lhe
brota das realidades primeiras, isto é, da sua
própria experiência vivida. Exclusivamente das
manifestações vitais do seu próprio ser.”609

Segundo o escritor modernista, a expressão poética deve ser


essencialmente individual, livre de influências e normas coercitivas
impostas de fora e de vinculações político-ideológicas. Não se trata,
portanto, de compensar a abstenção política com uma exaltação da
subjetividade em defesa de uma arte separada da vida e da política, mas
sim de optar por combater a partir de seu posto de artista e intelectual,
respeitando a sua individualidade e com liberdade e independência em
relação a grupos, instituições político-partidárias e vínculos de classe
social.
Raúl Antelo chama a atenção para a contradição, em Mário, entre
a defesa do individualismo na criação artística e o interesse coletivo.
Segundo ele, Mário abre A Escrava postulando que “cada um de nós é o
deus de sua própria religião” e defendendo “individualismo,
personalidade, originalidade”. Porém, conforme o autor, o conflito entre
interesse coletivo e realização individual no pensamento do escritor
continuaria irresoluto durante vários anos:

608
BADIOU, Alain. A hipótese comunista. Trad. Mariana Echalar. São Paulo:
Boitempo, 2012.
609
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 25 jul. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 107.
Ao que se pode inferir, só a partir de 1930, o
Marxismo poderia, eventualmente, parecer válido
para a sociedade, se aplicado em alguns pontos da
organização social e econômica. Mas reservaria
ao Cristianismo a tarefa de cuidar da
espiritualidade do homem e de fazer respeitar a
individualidade610.

Segundo Antelo, faltaria a Mário um vínculo orgânico com a


sociedade civil, que lhe permitisse se colocar no ponto de vista dos
dominados, em oposição ao sistema social de forma individualista e
aristocrático. Para o autor, em vez de adotar um discurso nacionalista,
tomando a sociedade como um conjunto não diferenciado, como faz na
primeira fase do Modernismo, ufanista e aproblemática, teria sido mais
razoável que o escritor tivesse mostrado a realidade do
subdesenvolvimento, a distorção da marginalidade e a alienação da
dependência, como fez no Turista Aprendiz, de modo a se vincular à
sociedade de classes, como instrumento para a luta por uma nova
hegemonia:

Trata-se de um nacionalismo representativo do


ponto a que chegava o processo de contradições
de uma sociedade em transformação. Penso que é
impróprio aproximar um nacionalismo, onde o
real é redutível a zero, de outro que se propõe a
exagerar, ciente de que na dessemelhança está o
princípio da semelhança e do conhecimento.
Apesar do inevitável autoritarismo intelectual,
este tipo de nacionalismo deriva do pressuposto
de que o verdadeiro conhecimento é aquele que
parte do ponto de vista dos dominados,
processado segundo as exigências do
distanciamento crítico. É neste ponto que o
intelectual orgânico pode vir a colaborar com um

LOPEZ, Telê Ancona – Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,


610

Duas Cidades, 1972, p. 58.


processo do qual faz parte, embora não seja
protagonista.611

Para Telê Porto Ancona Lopez, não haveria risco de Mário se


afastar do povo, pois, sendo parte do povo, não lhe seria possível
realmente isolar-se dele, a não ser como atitude de distanciamento
crítico: “Mário sente-se visceralmente ligado ao povo, tanto que só pode
desligar-se “idealmente” dele, para poder analisá-lo com
distanciamento”.
Henriqueta, por sua vez, mostrava-se avessa à participação
política direta, o que se refletia em sua poesia, atenta principalmente às
questões do ser e do espírito, mas afastada das questões sociais. Ela
buscava a transformação coletiva a partir da ética individual e almejando
preservar a sua integridade interior em meio às contingências de um
momento histórico que contrariava os seus anseios mais íntimos:

Indivíduo com raízes no grupo social,


representativo de uma parcela social, fala
sobretudo em nome da criatura humana que é,
impossibilitado, por certo, de captar todas as
veemências do mundo. Fala à sua maneira
particular, atendendo ao foro íntimo e de acordo
com suas convicções estéticas, sem demais
compromissos nem modismos.612

Henriqueta defendia a posição de que uma revolução política e


social deveria começar a partir de uma transformação do próprio ser, o
que tornaria desnecessária uma intervenção política mais direta.
Enquanto Mário buscava o “amilhoramento político-social do homem”,
a poeta mineira parecia considerar mais urgente que ocorresse, em
primeiro lugar, o “amilhoramento” do próprio homem. Porém, essa
postura se mostra insuficiente e problemática, pois, como observa Judith
Butler, não é possível referir-se à “ontologia” como uma estrutura
fundamental do ser distinta de toda e qualquer organização social e
política:

611
ANTELO, Raúl. Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-
americanos. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-
Memória, 1986, p. 49.
612
LISBOA, Henriqueta. Vivência Poética. Edição particular. Belo Horizonte:
1979, p. 18.
O "ser" do corpo ao qual essa ontologia se refere é
um ser que está sempre entregue a outros, a
normas, a organizações sociais e políticas que se
desenvolveram historicamente a fim de maximizar
a precariedade para alguns e minimizar a
precariedade para outros. Não é possível definir
primeiro a ontologia do corpo e depois as
significações sociais que o corpo assume. Antes,
ser um corpo é estar exposto a uma modelagem e
a uma forma social, e isso é o que faz do ontologia
do corpo uma ontologia social. Em outras
palavras, o corpo está exposto a forças articuladas
social e politicamente, bem como a exigências de
sociabilidade - incluindo a linguagem, o trabalho e
o desejo -, que tornam a subsistência e a
prosperidade do corpo possíveis.613

2.4.1 O Congresso Brasileiro de Escritores

Um episódio que demonstra a insatisfação de Mário com a


tendência politizante do meio artístico e intelectual da época é a sua
participação discreta no Congresso Brasileiro de Escritores, realizado no
Teatro Municipal de São Paulo, entre 22 e 27 de janeiro de 1945, por
iniciativa da Associação Brasileira de Escritores. Embora ele tenha sido
um dos fundadores da associação, três anos antes, Mário teve
participação discreta e quase não se pronunciou durante o congresso.
Essa conjuntura, aparentemente, precede a decisão do escritor de passar
a combater a partir de sua torre-de-marfim, conforme manifestou em
carta ao amigo Carlos Drummond de Andrade, ao comentar o evento.
O Congresso reuniu mais de 200 escritores de diversas regiões do
país e foi considerado uma “verdadeira arregimentação dos intelectuais
contra a ditadura de Getúlio Vargas”, contra a falta de liberdade de
expressão imposta pelo Estado Novo e a favor da legalização do Partido

613
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
Comunista Brasileiro (PCB).614 A mesa diretora era composta por
Aníbal Machado (presidente), Sérgio Milliet, Dionélio Machado, Murilo
Rubião e Jorge Amado.
A proposta do Congresso era contribuir para que os escritores se
organizassem em classe e, desse modo, viessem a desempenhar uma
vigilância mais constante e efetiva sobre as grandes questões nacionais.
Porém, embora houvesse um esforço por legalizar o Partido Comunista,
o evento não chegou a tomar resoluções mais efetivas. Como resultado
das discussões, foi redigido um manifesto exigindo a legalidade
democrática como garantia da completa liberdade de pensamento e a
instalação de um governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal
direto e secreto. Segundo José Antônio Orlando Netto, o evento
simboliza a passagem a uma nova época, mas não toma posições
definidas:

Ao contrário: o congresso delibera uma


"Declaração de Princípios" que atende no geral a
princípios liberais e apenas convida a
manifestações "em defesa dos direitos e da
dignidade da pessoa humana e dos valores da vida
interior (!) contra as tendências de domínio e
absorção do indivíduo, capazes de reduzi-lo a um
simples instrumento político".
O congresso atende ainda a setores de esquerda
que incluem as tendências não alinhadas à
proposta "queremista" de comunistas em apoio a
Vargas. Mas só atende em linhas gerais, quando
incita os intelectuais a reconhecer que somente a
literatura e a arte que desempenham um papel
social servem à coletividade de seu tempo, se
renovam e, em contato com as camadas sociais,
"podem realizar uma comunhão fecunda entre o
povo e os criadores de cultura".615

614
CANDIDO, Antonio. O Mário que eu conheci. In: Eu sou trezentos, eu sou
trezentos e cincoenta. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008.
615
NETTO, José Antônio Orlando. Mário e o nacionalismo da Lopes Chaves.
In: SOUZA, Eneida Maria de. (org.). Cartas a Mário. Cadernos de Poesia, n.
11, 2ª parte. Belo Horizonte: Núcleo de Assessoramento à Pesquisa / Faculdade
de Letras da UFMG, novembro 1993.
Mário não participou diretamente da organização do Congresso,
mas sugeriu que fosse convidado para integrar a Comissão de Recepção
do evento: “Era incrível não haver na comissão afinal das contas alguém
que fosse um ‘nome’, uma grosseria”, comentou. Ele ficou incomodado
também pelo fato de que Henriqueta não foi convidada para integrar a
comissão de escritores mineiros, e comentou com a amiga que daria um
jeito de dizer isso aos organizadores.616
Durante o evento, Mário manteve-se calado, evitando participar
dos debates e das comissões. Antonio Candido, no texto “O Mário que
eu conheci”, relata duas passagens envolvendo Mário que mostram o
desapontamento do escritor com o envolvimento político:

Nesse Congresso Paulo Emilio e eu provocamos


involuntariamente duas explosões de Mário. A
primeira foi devida ao seguinte: Paulo alertou a
mim e a outros que determinado intelectual, não
sendo eleito por São Paulo, fora incluído meio de
contrabando na delegação de outro estado, o que
era irregular e nos contrariava politicamente.
Redigiu-se então um protesto e fomos pedir a
adesão de Mário, que ficou danado e recusou. Nós
procuramos argumentar que era algo
politicamente importante, aí ele estourou, dizendo
que por isso é que não queria saber de política,
que era uma indignidade e não assinava mesmo.
Tremendo de raiva, foi se juntar a um grupo
próximo formado por Caio Prado Júnior, Sérgio
Buarque de Holanda e, se não me engano, José
Lins do Rego. (...)
A segunda explosão foi no encerramento do
Congresso, no Teatro Municipal, onde Oswald fez
um discurso notável, no qual lançou a candidatura
do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da
República. As oposições achavam que era cedo, o

616
Henriqueta foi visitar Mário em São Paulo alguns dias depois do Congresso
Brasileiro de Escritores, entre 5 e 22 de fevereiro, tendo tido oportunidade de
encontrar o amigo várias vezes poucos dias antes de sua morte, no dia 25 de
fevereiro de 1945.
Partido Comunista não queria precipitação, mas
nós socialistas independentes e também muitos
liberais aplaudimos, porque era uma boa pancada
na ditadura em declínio. Além disso, Oswald fez
troças divertidas com a alta sociedade de São
Paulo, provocando protestos violentos. Todo o
mundo acabou berrando e lembro de um senhor
agranfinado perto de mim que enfrentou as vaias
(inclusive minhas) com muita coragem, parecendo
pronto para dar bengaladas. Na saída, em frente
do teatro, Paulo Emílio e eu fomos falar com
Mário e gabamos o discurso de Oswald.
Ingenuidade nossa. Ele perdeu a calma e falou
exasperado que não reconhecia a Oswald
autoridade moral para falar mal da sociedade
paulistana. Nós ficamos passados e fomos
tratando de dar o fora.617

Em carta a Drummond, Mário se mostrou desapontado com


relação aos posicionamentos dos escritores no Congresso e justificou a
sua opção por combater a partir de sua “torre de marfim”, em vez de
atuar diretamente na política:

O intelectual, o artista, pela sua natureza, pela sua


definição mesma não conformista, não pode
perder a sua profissão, se duplicando na profissão
de político. (...). É da sua torre de marfim que ele
deve combater, jogar desde o cuspe até o raio de
Júpiter, incendiando cidades. Mas da sua torre. 618

Mário, porém, estava pisando em ovos, e em carta para Rodrigo


Melo Franco de Andrade ele manifestou posição diferente sobre o
Congresso, provavelmente preocupado em se resguardar junto a seus
pares:

617
CANDIDO, Antonio. O Mário que eu conheci. In: Eu sou trezentos, eu sou
trezentos e cincoenta. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2008.
618
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 11 fev. 1945.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 224-225.
Na verdade, Rodrigo, você não pode imaginar
como vivi com uma prodigiosa intensidade, com
uma monstruosa seriedade, o Congresso dos
Escritores. É certo que jamais me senti mais
dentro da minha gente! Teve um instante (...) em
que explodiu dentro de minha consciência a noção
de que aquele Congresso era um coroamento da
'minha' carreira, da minha vida (...)619

O conteúdo contraditório dessas cartas revela o caráter


ambivalente da personalidade do escritor modernista – que talvez
estivesse sendo sincero com ambos os interlocutores. Segundo Eneida
Maria de Souza, o Congresso pode realmente ter cumprido a função de
ter significado para Mário o coroamento de sua carreira e sua vida:

Por ter conseguido levar a discussão da literatura


para o espaço público, o Congresso propicia a
exteriorização de posições literárias e políticas e a
saída do intelectual de seu gabinete de trabalho.
Não teriam sido essas as inquietações que
perseguiram Mário durante toda a vida? Indagado
sobre o congresso, o escritor iria responder:
"Politicamente, magnífico; literariamente... acho
que se abusou um pouco da arte de prolongar as
ideias".620

Souza também cogita a possibilidade de Mário não ter ficado


satisfeito com o evento, como sugere a carta enviada a Drummond: “A
atitude assumida no momento é de recolher-se em torno dos valores
individuais, desgostoso que está com os resultados do Congresso”.621
Mário já não se sentia parte daquele grupo de intelectuais e nem
se identificava com o projeto coletivo que se esboçava para o país: “O
619
Carta de Mário de Andrade a Rodrigo Melo Franco de Andrade, 10 fev.
1945. ANDRADE, Mário. Cartas de trabalho: Correspondência com Rodrigo
Melo Franco de Andrade. (Int. e notas Lélio Coelho Frota). Brasília: Sphan,
1981, p. 186-187.
620
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999, p. 213.
621
Ibidem, 1999, p. 213.
poeta se dava conta de que as amarras que o prendiam a um ideal
coletivo já não existia; agora teria que viver a sua marginalidade e fazer
a crítica da sociedade por meio de uma arte malsã”, observa Eduardo
Jardim.622

2.5 A poesia como sacrifício

Mário se propunha a realizar uma obra “transitória”, em benefício


da construção de uma cultura brasileira e atenta às questões sociais.
Neste intuito, sacrificava com frequência a forma culta para fazer uma
estilização da linguagem popular, mesmo que assim pudesse incorrer em
prejuízo estético ou “incorreções” gramaticais. Porém, ao fazer um
balanço de sua trajetória, em “O movimento modernista” (1942), ele
constata que se enganou ao deformar conscientemente a sua obra: “Mas
é que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um
valor prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção,
prazer estético, a beleza divina.”623
Dividido entre ambições estéticas e compromissos sociais e
morais, o escritor então se questionava sobre como se daria a recepção
de sua obra, se ele deveria escrever para si mesmo ou para os outros,
para o presente ou para o futuro: “Qual a obrigação do artista? Preparar
obras imortais que irão colaborar na alegria das gerações futuras ou
construir obras passageiras mas pessoais em que as suas impulsões
líricas se destaquem para os contemporâneos como um intenso,
veemente grito de sinceridade?”624
Na perspectiva de Mário, a criação artística não pode ser uma
atividade apenas estética e desinteressada, mas envolve também
questões éticas e morais. Comprometido com as contingências de seu
momento histórico, ele aceitou sacrificar a possibilidade de escrever
uma grande obra, que também não sentia forças para realizar:

A minha vaidade hoje é de ser transitório.


Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil,
penso ingênuo, só pra chamar a atenção dos mais
fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso

622
JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: A morte do poeta. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 114-115.
623
ANDRADE, Mário. “O movimento modernista”. In: Aspectos da literatura
brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 255.
624
Ibidem, 1974, p. 255.
ainda que é o Brasil. Os gênios nacionais não são
de geração espontânea. Eles nascem porque um
amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes
preparou a altitude necessária de onde podem
descortinar e revelar uma nação. Que me importa
que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota
pensar em ficar, principalmente quando não se
sente dentro do corpo aquela fatalidade inelutável
que move a mão dos gênios. O importante não é
ficar, é viver. Eu vivo.625

Antonio Candido parece concordar com Mário na avaliação de


que o caráter circunstancial e compromissado de sua poesia teria
prejudicado a permanência da obra do escritor modernista:

Ele próprio reconheceu desde o início, que essa


vocação participante daria a muito do que fizesse
um cunho circunstancial, polêmico,
comprometendo a sua duração. Mas achava que o
escritor tem deveres para com o momento e a
sociedade em que vive, e aceitou o perigo, que de
fato perturba muito do que fez. Em compensação,
garantiu um alto valor de mensagem e de pesquisa
humana à maioria válida de sua vasta obra.626

Talvez haja certo exagero nessa justificativa. De fato, existe um


certo consenso em torno da ideia de que Mário sacrificou em certa
medida a duração de sua obra por conta de concessões que fez às
demandas de seu tempo. Mas não precisaria necessariamente ter sido
assim, uma vez que existe na tradição literária poesia circunstancial e
compromissada capaz de se universalizar e permanecer.
Álvaro Lins observa que a poesia de Mário apresenta uma
contradição, “a de um pensamento que procura a sua forma”, por atentar
para questões transitórias e acidentais (poesia de circunstância), em

625
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, set. 1941. SOUZA, Eneida
Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São
Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 164.
626
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 86.
detrimento “de um avanço em maior profundidade”. Para o crítico, o
excesso de intencionalidade na criação do poema poderia levar a um
rebuscamento que mataria a espontaneidade – os poemas de Mário de
fato brasileiros são, segundo ele, justamente aqueles em que não houve
intenção deliberada de um objetivo nacionalista:

Poemas da espécie de Rondó pra você e Maria (...)


são daqueles em que se integra o poeta na
comunicação com a sua terra: pela linguagem,
pelo sentimento, pela realização. E muitos destes
poemas desinteressados, que se me afiguram mais
brasileiros do que outros que se procuram sê-lo
intencionalmente, pertencem à fonte do que
chamei o seu sentimento íntimo de homem. 627

Conforme podemos notar, a obra de Mário de Andrade se mostra


quase sempre empenhada e revestida de algum interesse prático, em
detrimento de sua liberdade criativa e do cumprimento das exigências
estéticas, razão pela qual ele afirma ter sacrificado boa parte de sua
produção. A poesia do escritor modernista traz uma tensão entre “arte de
circunstância”, atenta às questões de seu tempo, e “arte desinteressada”,
voltada para questões estéticas e as exigências do próprio artefazer. Mas
o que significa para Mário “arte de circunstância” e “arte
desinteressada”? Em entrevista a Tristão de Ataíde, nas notas marginais
de “Mitos de nosso tempo”, de 1943, Mário procura esclarecer esses
conceitos:

O que posso esclarecer mais um bocado aqui é


que toda e qualquer arte é interessada e toda obra-
de-arte é, em última análise, obra de circunstância.
Neste sentido, não é a arte que se modifica, mas a
qualidade do interesse que leva o artista a
artefazer. A arte é sempre um fenômeno de
relação, pois implica no mínimo a parelha do
artista e do espectador. Neste sentido primário e
básico a arte é fatalmente sempre um fenômeno
social. Mas a qualidade do interesse que o artista

627
Apud LAFETÁ, João Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens
na Poesia de Mário de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 48.
depõe na sua obra é que tanto pode se dirigir ao
espectador como indivíduo ou como um ser
pertencente a uma coletividade, isto é, como ser
social. De resto creio que é mesmo quase
exclusivamente dentro da civilização cristã que,
depois da Renascença, a inflação do
individualismo permitiu essa perniciosa e
sensualíssima modificação na qualidade do
interesse que de social que sempre foi, passou
muitas vezes a individual.
E, de fato, quando eu avanço que a imensa
maioria da intelectualidade brasileira // quando eu
afirmo que 95% da intelectualidade brasileira (no
rascunho) // vendeu-se aos donos da vida, estou
longe de afirmar que ela se rebaixou ao ponto de
assinar uma transação com contratos legalizados
em cartórios. Mas por não possuir a legítima
técnica de pensar, essa intelectualidade se entrega
facilmente a sofismas e confucionismos de mil e
uma espécies, de que é malignamente a maior essa
tal de ‘arte pura’. Estou dizendo que o intelectual
se utiliza dela para se salvaguardar e se livrar de
seus deveres morais, não só de homem, mas de
artista.628

Portanto, para o autor, nessa fase madura de sua vida, toda obra
de arte é interessada e obra de circunstância e a arte desinteressada seria,
portanto, uma aporia. Em carta a Mário, Manuel Bandeira também
afirma que o conceito de arte desinteressada não se sustenta, e observa
que alguns dos poemas mais desinteressados do amigo apresentam valor
social:

A verdade é que em tudo que fazemos há interesse


e arte ou qualquer outra atividade desinteressada é
coisa que não existe. Lembro-me que hesitei em
publicar o meu primeiro livro de versos porque
eram tão pessoais na sua tristeza de doente todo

628
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 215.
voltado para a sua doença. Depois, com o tempo,
vi que as minhas queixas exprimiam queixas de
outros, davam consolo a outros. Recebi
confidências nesse sentido. Fiquei muito
confortado porque não me senti mais inútil. Um
poeta que se exprime ingenuamente, mesmo que
tenha a ilusão de fazer arte pura, age socialmente.
Os seus "Poemas da negra" e da "amiga' são os
menos interessados nos outros, da sua obra.
Valem mais socialmente que os de Há uma gota
de sangue, porque são boa poesia.629

Tradicionalmente, o termo “poesia de circunstância” estava


associado à poesia feita para manifestações de amizade, agradecimento
ou admiração, como aqueles poemas escritos para celebrar um
aniversário ou outra data festiva, agradecer o recebimento de um livro,
enviar um presente. Conforme observa Marcos Antonio de Moraes, na
apresentação dos livros Viola de bolso (1952) e Viola de bolso
novamente encordoada (1955), de Carlos Drummond de Andrade, a
poesia de circunstância era considerada distinta da poesia densa e
reflexiva, por ser mais despretensiosa e evocar pessoas e situações
cotidianas. Muitas vezes, esses poemas são produzidos em paralelo com
outros projetos literários e não são incluídos nas edições de obras
completas dos escritores – “vários dos 'versos de circunstância’ inscritos
nos caderninhos de Drummond desaguaram na Viola de bolso, em
diferentes momentos de sua configuração editorial”. 630
“Mas que é circunstância, neste particular de versos?” A questão
foi formulada por Drummond na crônica literária "O poeta se diverte",
publicada no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Na
perspectiva de Drummond, a poesia não seria apenas uma “arte de
circunstância”, mas uma “arte de transfigurar as circunstâncias”:

Se se incorpora à poesia, deixa de ser


circunstância. Arte de transfigurar as

629
Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 12 de jan. 1944. 629
MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel
Bandeira. São Paulo, 2000, p. 665.
630
MORAES, Marcos Antonio de. “Artes de querer bem”. In: ANDRADE,
Carlos Drummond de. Versos de circunstância. São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2011, p. 22.
circunstâncias, poderíamos rotular a poesia. A
circunstância é sempre poetizável, e isso nos foi
mostrado até o cansaço pelos grandes poetas de
todos os tempos, sempre que um preconceito
discriminatório não lhes travou o surto lírico.631

Outro escritor brasileiro que dedicou uma atenção especial à


poesia de circunstância foi Manuel Bandeira, que reconhecia a si mesmo
como um poeta de circunstância e reuniu os versos inspirados em nomes
de amigos e efemérides no livro Mafuá do malungo:

Depois chegou a doença. Ainda circunstância e


desabafo. Fiz algumas tentativas de escrever
poesia sem apoio nas circunstâncias. Todas
malogradas. Sou poeta de circunstância e
desabafos, pensei comigo. Foi por isso que,
embora se dê comumente o nome de versos de
circunstância aos do tipo do mafuá do malungo,
preferi não intitulá-los Versos de circunstância,
como tive ideia a princípio. "Mafuá” toda a gente
sabe que é o nome por que são conhecidas as
feiras populares de divertimentos; "malungo",
africanismo, significa "companheiro, camarada”.
Uma boa parte do livro são versos inspirados em
nomes de amigos.632

Segundo observa Moraes, os poemas de circunstância remetem à


tradição lírica de Stéphane Mallarmé (1842-1898), poeta que foi
homenageado por Manuel Bandeira, em 1942, com uma conferência na
Academia Brasileira de Letras sobre a sua produção poética, “que não
admitiu nunca outra diversão senão aquelas deliciosas bagatelas por ele
chamadas de ‘vers de circonstance’”:

631
ANDRADE, Carlos Drummond de. "O poeta se diverte". In: Jornal Correio
da Manhã, 3 jul. 1948. Apud Ibidem, 2011, p. 22.
632
MORAES, Marcos Antonio de. “Artes de querer bem”. In: ANDRADE,
Carlos Drummond de. Versos de circunstância. São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2011, p. 20.
Para celebrar festas e aniversários, para enviar um
presente – flores ou frutas, ovos de Páscoa, um
livro, um leque, um retrato. Mallarmé fazia-o
sempre acompanhar de alguns versos onde punha
a dupla delicadeza do seu afeto e da sua arte. (...)
"Nessas bagatelas", estimuladas pelo "desejo de
brincar”, há sempre aquela intenção que Mallarmé
pôs em seus poemas mais ambiciosos, isto é, de
traduzir o fugaz e o súbito em ideia, de isolar para
os olhos um sinal da esparsa beleza geral. 633

Aparentemente, Mário se apropriou do termo “poesia de


circunstância” e o ampliou, usando-o para se referir à poesia feita de
acordo com as contingências do momento histórico e as circunstâncias
sociais e políticas de seu tempo, conforme indica no “Ensaio sobre a
música brasileira”: “Pois toda arte socialmente primitiva que nem a
nossa, é arte social, tribal, religiosa, comemorativa. É arte de
circunstância. É interessada. Toda arte exclusivamente artística e
desinteressada não tem cabimento numa fase primitiva, fase de
construção. É intrinsecamente individualista.”634
Se levarmos em conta o conceito de modernidade como aquilo
que é contingente e transitório, em contraponto ao eterno e imutável,
constataremos a atualidade dessa concepção de poesia. Na definição de
Baudelaire: “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é
a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”.635
Segundo Mário, querer dar à poesia um sentido de perpetuidade
implica querer livrá-la de toda a contingência, dos elementos
transitórios, tudo transferindo para os “valores eternos” – os quais,
segundo Baudelaire, são apenas metade da arte. Para o escritor
modernista, como elemento inicial, todo poema, seja a Divina Comédia
ou Os Lusíadas, é “poema de circunstância”, com elementos
transitórios, conforme indica em carta a Henriqueta:

633
MORAES, Marcos Antonio de. “Artes de querer bem”. In: ANDRADE,
Carlos Drummond de. Versos de circunstância. São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2011, p. 17.
634
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. In: A música e a
canção populares no Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1972, p. 7.
635
BAUDELAIRE, Charles. "O pintor da vida moderna”. In: Poesia e prosa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 859.
Ora, minha amiga, eu creio que como elemento
inicial da criação toda obra-de-arte é “poema de
circunstância”. Tanto é poema de circunstância
uma quadrinha mandando flores num aniversário,
como já nem digo a Divina Comédia de fato
lidando com tantos elementos transitórios,
homens, políticos que desapareceram, como... já
nem digo também Os Lusíadas, qualquer
arquitetura, como... (o difícil está em achar o que
não seja poema de circunstância) como, enfim,
aceitemos, a Ifigênia de Goethe ou o Quarteto de
Debussy.636

A questão se complica um pouco, uma vez que Mário afirma que


evita publicar em seus livros os poemas de sua autoria que sejam
“transitórios” ou “de combate”, conforme comenta com Henriqueta:

Afinal das contas, certas xingações e vinganças de


Dante, no “Inferno”, são tão sublimes como o “To
be or not to be” que eu aliás não gosto muito, ou a
Capela Sistina. Eu que jamais publiquei em livro
poesia minha que não fosse “fatalizada”, desde
concebida a transitoriedade na obra “de combate”,
publico sem a menor hesitação, numa revista ou
jornal, um poema não fatalizado, escrito “de
propósito”. Não em livro porém. É o caso de “A
Tal” por exemplo, que fez bastante barulho, mas
que nunca tive intenção nem desejo de publicar
nas futuras Poesias Completas. Mas nestas virão o
Café e a Lira Paulistana, não hesito nem há
dúvida.637

Mas será que se sustentaria mesmo essa oposição inconciliável


entre “arte de circunstância” e “arte de permanência”? De fato, a própria

636
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 222.
637
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 3 ago. 1944. Ibidem, 2010,
p. 291.
oposição entre o circunstancial e transitório, o permanente e universal se
mostra uma aporia. Não existe obra de arte “permanente” que possa
abrir mão do transitório; assim como não existe obra de arte transitória
que possa prescindir do Belo como ideal estético universal e
permanente. O artista é capaz de extrair o eterno do transitório, como
observa Baudelaire:

Certamente esse homem, tal como o descrevi, esse


solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre
viajando através do grande deserto de homens,
tem um objetivo mais elevado do que a de um
simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso
do prazer efêmero da circunstância. Ele busca esse
algo, ao qual se permitirá chamar de modernidade,
pois não me ocorre melhor palavra para exprimir a
ideia em questão. Trata-se, para ele, de tirar da
moda o que esta pode conter de poético no
histórico, de extrair o eterno do transitório. (...)
Houve uma modernidade para cada pintor antigo:
a maior parte dos belos retratos que nos provêm
das épocas passadas está revestida de costumes da
própria época. São Perfeitamente harmoniosos;
assim, a indumentária, o penteado e mesmo o
gesto, o olhar e o sorriso (cada época tem seu
porte, seu olhar e seu sorriso) formam um todo de
completa vitalidade. Não temos o direito de
desprezar ou de prescindir desse elemento
transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão
frequentes. Suprimindo-os, caímos forçosamente
no vazio de uma beleza abstrata e indefinível,
como a da única mulher antes do primeiro pecado.
638

De qualquer modo, seja de circunstância ou desinteressada, o


mais importante é que a arte seja bem realizada. Porém, conforme
observa o pesquisador Pedro Fragelli, “na maior parte de sua obra
teórica, Mário não superou a dicotomia a que Walter Benjamin se

638
BAUDELAIRE, Charles. "O pintor da vida moderna. In: Poesia e prosa. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. p. 859-860.
referiu como sendo característica de uma reflexão não dialética sobre o
tema: “por um lado, devemos exigir que o autor siga a tendência política
correta, e por outro lado temos o direito de exigir que sua produção seja
de boa qualidade”.639
Não que o “sacrifício” de Mário ao produzir a sua “arte de
circunstância” – empenhada, principalmente, na construção de uma
tradição cultural brasileira – tenha sido em vão. Para João Luiz Lafetá, a
variedade técnica e temática, “que perturbou de fato a qualidade” dos
textos de Mário de Andrade, não deveria ser vista apenas no que tem de
negativo: “o direito permanente à pesquisa estética apregoado pelos
modernistas trouxe pelo menos uma consequência importante: a
linguagem dos poemas de Mário de Andrade reflete a mesma
inquietação básica e a mesma desconfiança radical que caracterizaram
grande parte da melhor literatura produzida neste século”.640 Porém, de
acordo com o crítico, “as melhores composições do escritor são os
poemas líricos, nos quais o ‘eu’ se expande e sujeita o tumulto verbal a
uma disciplina interiormente conseguida”.641 Segundo ele, é justamente
o movimento de exploração da subjetividade que acaba por revelar o
mundo de forma mais clara do que os poemas intencionais,
possibilitando a Mário alcançar a sua melhor forma, ou seja, aquela que
explora “o seu sentimento íntimo de homem” (Álvaro Lins), aquele “que
se retira em si mesmo” (Antonio Candido).642
Conforme observa Lafetá, “é no movimento simultâneo de buscar
encontrar a si mesmo e explorar o seu “eu” e de encontrar a identidade
nacional e explorar a multiplicidade da cultura brasileira que o poeta vai
conseguir produzir poemas de fato brasileiros”.643 Essa perspectiva é
corroborada por Álvaro Lins, para quem os poemas de Mário de
Andrade de fato brasileiros são justamente aqueles em que não houve
intenção deliberada de um objetivo nacionalista.644

639
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: _____. Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história. Obras escolhidas 1. São Paulo:
Brasiliense, 2008. p. 121. Apud FRAGELLI, Pedro. Engajamento e sacrifício:
O pensamento estético de Mário de Andrade. Revista IEB, n. 57. São Paulo:
USP, 2013. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/76224
640
LAFETÁ, João Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens na poesia de Mário
de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 3-4.
641
Ibidem, 1986, p. 46.
642
Ibidem, 1986, p. 6.
643
Ibidem, 1986, p. 41-42.
644
Ibidem, 1986, p. 41-42.
O mesmo se dá com relação à poesia social ou engajada
politicamente. Para Lafetá, em 1930, quando escreveu O Carro da
Miséria, Mário já fazia uma poesia social e “eficaz” em seu lirismo:

Mário consegue aqui (e no instante em que se


sentia mais dilacerado em sua condição
“insolúvel” de intelectual) atinar com a forma em
que convergem os dois aspectos de sua poética: o
registro emotivo de tensões interiores e a forma
“socializada (embora não clara, nem didática), que
se enraíza na luta, participando. Na destruição
sistemática da linguagem (“Num grito não num
gruto”) a forma se recompõe: no dilaceramento da
consciência burguesa a forma se engaja; o projeto
ideológico encontra seu caminho no interior do
projeto estético.645

Na concepção de Lafetá e Álvaro Lins, seria justamente no


mergulho no lirismo e na exploração da subjetividade que Mário teria
alcançado uma realização mais perfeita, superior a seus “poemas de
circunstância”, criando assim imagens mais marcantes da cultura e da
sociedade brasileira.
Cabe observar, ainda, que a liberdade estética não exclui o
compromisso com as questões éticas. Afinal, segundo observa o próprio
Mário, a arte é fundamentalmente humana, seja em seu modo de fazer,
seja em função do vínculo que mantém com a sociedade, até pelo
próprio uso da linguagem. Contra a ideia de que a lírica é algo oposto à
sociedade e absolutamente individual e de que a expressão lírica é
subordinada apenas às suas próprias leis, livre da coerção da práxis
dominante, Adorno afirma que a arte é em si mesma social. Segundo o
autor, a idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas –
que culminou na busca de uma poesia autônoma – é apenas um modo de
reação à coisificação do mundo e à dominação das mercadorias entre os
homens, que se propagou desde o início da Era Moderna e que, desde a
Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante da vida.646

645
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, p. 188.
646
ADORNO, Theodor W.. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de
literatura I. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2012, p. 69.
Portanto, podemos pensar que embora a poesia constitua um
campo voltado para si mesmo, de modo a chamar a atenção para o
próprio texto, conforme a função poética proposta por Roman Jakobson,
ela guarda relação com a sociedade e os objetos, sem jamais perder o
seu vínculo com a referencialidade. Para Jakobson, ao colocar em
destaque o “lado palpável” do signo linguístico, a função poética
“aprofunda, por isso mesmo, a dicotomia fundamental entre os signos e
os objetos”. Entretanto, essa afirmação não implica considerar a palavra
poética exclusivamente como uma realidade totalmente autônoma e
independente, pois, como observa Jakobson, a função poética mantém
ainda certo vínculo com a referencialidade: “A supremacia da função
poética sobre a função referencial não oblitera a referência (a
denotação), mas torna-a ambígua. A uma mensagem de duplo sentido
corresponde um destinador desdobrado, um destinatário desdobrado e,
além disso, uma referência desdobrada.”647
Segundo Marjorie Perloff, a distinção entre signo e realidade feita
por Jakobson não implica numa abstração completa do referencial. A
poesia, segundo o pensador russo, não se resume à sua função poética,
ainda que esta seja dominante, pois existe sempre uma relação analógica
entre a estrutura material da linguagem (o som e as categorias
gramaticais) e o seu sentido.648 A relação do signo com o referencial
aproxima a poesia também do social.
Nota-se, porém, que a linguagem é usada na poesia de modo
distinto da prosa. De acordo com a pesquisadora Iumna Maria Simon,
Sartre estabelece uma distinção entre o universo da prosa e o universo
da poesia, afirmando que a poesia está mais ao lado da música e da
pintura do que da literatura. Na poesia, a palavra funciona como “coisa”
e não como “signo”, e a linguagem deixa de ser instrumento para
nomear o mundo: a poesia não se serve das palavras, pelo contrário,
serve-as. Para o filósofo, a prosa seria mais adequada à “ação” e a
poesia à “contemplação”, uma vez que a prosa é utilitária por excelência
e utiliza a palavra como “signo” e instrumento de nomeação do mundo.
Por isso, Sartre nega a possibilidade de “engajamento” à poesia.649

647
SIMON, Iumna Maria. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Ática,
1978, p. 37.
648
PERLOFF, Marjorie. Do que não falamos quando falamos de poesia:
algumas aporias do jornalismo literário. In: Inimigo Rumor. Rio de Janeiro,
Sette Letras, 2001, nº 12, p. 25-45.
649
Ibidem, 1978, p. 37.
Conforme observa Simon, Adorno, diferentemente de Sartre,
reconhece a presença do social nas próprias formações linguísticas:
“Embora recusando o engajamento – o dirigismo ideológico – tanto para
a arte como para a atividade crítica, Adorno não chega a negar, como o
faz Sartre, a função de “signo” da palavra poética, uma vez que mostra a
necessidade de se investigar a manifestação do social nas próprias
formações linguísticas.”650
Numa fase de maior maturidade, Mário passou a olhar com
desconfiança a arte empenhada ou de combate, consciente de que a
retórica verbal poderia prejudicar o lirismo e a fluidez psicológica de
seus poemas. Tanto que decidiu suprimir de sua coletânea de poesia os
“cacoetes de combate”: “Vou talvez polir algumas arestas e alimpar de
cacoetes de combate alguns dos meus livros publicados que mais estimo
e preparar uma edição de poesias escolhidas".651
O escritor tomava connsciência de que o importante não é tanto o
assunto abordado, mas o modo de realizar o assunto, que sempre traz a
marca pessoal do artista, mas também dialoga com o coletivo e o social.
Em “Elegia de Abril” (1941), Mário já havia proposto o
desenvolvimento de uma técnica pessoal e de seu modo particular de
realizar o assunto:

Participa da técnica, tal como eu a entendo,


dilatando agora para o intelectual o que disse
noutro lugar exclusivamente para o artista, não
somente o artesanato e as técnicas tradicionais
adquiridas pelo estudo, mas ainda a técnica
pessoal, o processo de realização do indivíduo, a
verdade do ser, nascida sempre da sua moralidade
profissional. Não tanto o seu assunto, mas a
maneira de realizar o seu assunto. Que os assuntos
são gerais e eternos, e entre eles está o deus como
o herói e os feitos. Mas a superação que pertence
à técnica pessoal do artista como do intelectual, é
o seu pensamento inconformável aos imperativos
exteriores. Esta a sua verdade absoluta.

650
SIMON, Iumna Maria. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Ática,
1978, p. 37.
651
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 27 ago. 1940. SOUZA,
Eneida Maria de. Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
São Paulo: Peirópolis/Edusp, 2010, p. 113.
E junto desta técnica intelectual, talvez
devêssemos obedecer mais à sensibilidade... Uma
circunstância incontestável da vida é que,
premidos por ela, nós exercitamos
quotidianamente a nossa inteligência, não pra
elevarmos a vida às suas alturas filosóficas, a uma
qualquer interpretação dela, mas pra justificarmos
os nossos próprios atos.652

Nessa perspectiva, o importante para o escritor não seria tanto o


assunto abordado, mas o modo de o artista realizar o assunto.
Complementando o que ele havia dito em “O artista e o artesão”, em que
valoriza o artesanato e a técnica e critica o individualismo, ele agora
destaca a importância da técnica pessoal do artista e a sua maneira
particular de realizar o assunto, usando a sua sensibilidade.
Para Mário, a palavra está relacionada ao assunto, e não ao tema,
o que implica dizer que não é o artista que desenvolve um tema, falando
a partir de si mesmo, mas o próprio tema que se impõe ao artista e se
desenvolve conforme as necessidades do poema. O verdadeiro assunto
da poesia seria, portanto, a própria poesia, que seria capaz de falar por si
mesma, a partir das exigências da técnica, da matéria-prima, da pulsão
do inconsciente, e não servir de instrumento de expressão do poeta: “O
verdadeiro assunto da poesia é a própria poesia, quero dizer, um
primeiro motor de volubilidade e independência diante do assunto, que
se utiliza não só da fluidez musical da palavra, como especialmente da
fluidez alógica da inteligência”.653
No artigo “Distanciamentos e aproximações”, também de 1942,
Mário sustenta que a finalidade legítima do artista “deve ser a própria
obra de arte (não o panfleto, portanto), como representação de um
assunto humano, vazado na beleza até a aspiração de uma vida
melhor”.654
Segundo o escritor, ao se realizar a “arte de combate”, acaba
prevalecendo a apologia às ideias do escritor, que se utiliza de um
disfarce retórico, em detrimento criação da obra de arte, conforme

652
ANDRADE, Mário. “A elegia de abril”. In: Aspectos da literatura
brasileira.. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 194.
653
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1974, p. 116.
654
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 215.
expressa no artigo “O crítico”, sobre a imparcialidade de Álvaro Lins,
em sua análise de Eça de Queirós:

Se o artista voluntariamente faz da sua arte uma


arma de combate, e nega aos seus calungas aquela
relativa independência em que ele, autor, é um
vate, um paralógico, um paraconsciente, um
“desumano” (...), a arte desaparece, a criação se
deforma e fragiliza. Quando não é quase
totalmente abandonada, como está sucedendo com
nossos romancistas combativos da atualidade.
Estes dirigem seus personagens até na gravata
com que se enfeitam ou na vontade de beber um
chope. E isto é tese, é apólogo, é fábula.655

Para Mário, o assunto nasce de um tema, que geralmente surge de


um fato contingente ou circunstancial, mas que é recriado e
transfigurado na obra de arte a partir das manifestações do lirismo,
conforme observa Luciano Costa Santos:

Segundo a distinção estabelecida por Mário,


podemos esclarecer que o ‘assunto” é o próprio
moto lírico, é a comoção indefinível que impele o
poeta à criação. Ocorre que quase sempre o
assunto acontece a partir de um “tema”, de
qualquer coisa dada – uma dor de dente, um
encontro amoroso – que remete o poeta à
experiência da revelação do mistério vivo da
realidade. Quanto menos, portanto, o poeta se
prende à reprodução descritiva do tema-fato, e
mais se deixa conduzir pelos movimentos do
assunto-estado lírico, tanto mais aprofunda aquela
experiência reveladora da qual é mensageiro.656

655
ANDRADE, Mário. “O crítico”. In: O empalhador de passarinho. São
Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 202.
656
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 33.
Ainda segundo o pesquisador, ao se abandonar ao impulso lírico
e à linguagem, o poeta exerce uma ética associada ao próprio lirismo e
ao artefazer:

Em arte o lirismo é prioritário mesmo em relação


às ideias morais, o que de modo algum quer dizer
que, para Mário, o domínio artístico seja alheio ao
da ética. A ética em arte consiste mesmo, em
primeiro lugar, justamente no abandono confiante
ao impulso lírico, em ser o artista cada vez menor
para que o impulso lírico ganhe a linguagem a
ponto de esta se transformar em puro dito, em
criação pura. Qualquer pretensão em ser moral
implica apenas numa “expulsão do ser total”, o
que faz a linguagem reduzir-se à condição de
instrumento de comunicação – ou até de
propaganda ideológica, em certos casos –, em
muito distante de seu destino originário de
‘morada do Ser”, para usar a imagem de
Heidegger.

Na concepção de Heidegger, para que a palavra possa se


manifestar de modo inaugural, o poeta precisa renunciar às suas
verdades preconcebidas (ou “re-anunciar”, segundo o filósofo) e deixar
o pensamento escutar o consentimento que ele próprio faz para
encontrar a essência da linguagem:

A palavra, a linguagem pertencem ao âmbito


dessa paisagem misteriosa onde a saga poética do
dizer delimita a fonte cheia de destino da
linguagem. De início e por muito tempo, parece
que o poeta precisa somente de um milagre que o
encante ou de sonhos que o capturem a fim de
chegar à fonte da linguagem e, assim com
confiança inabalável, deixar que lhe cheguem as
palavras capazes de corresponder a tudo de
milagroso e quimérico que lhe adveio. Fortalecido
pelo êxito de seus poemas, o poeta antes
acreditava que as coisas poéticas, milagre,
quimeras, já se achavam por si mesmas bem
abrigadas no ser, faltando somente a arte de
encontrar a palavra capaz de descrevê-las e
apresentá-las. De início e por muito tempo, era
como se as palavras fossem garras que agarram e
seguram o que já existe e o que se toma por
existente, conferindo-lhes densidade, expressão e
auxiliando-os a alcançar beleza.
(...)
Para nós, no entanto, ainda não está decidido se
somos capazes de fazer, de forma apropriada, uma
experiência poética com a linguagem. Estamos
sempre no perigo de sobrecarregar um poema com
excesso de pensamento e assim impedir que o
poético nos toque. Um perigo ainda maior - hoje
dificilmente assumido - é o de pensar de menos,
de resistir ao pensamento de que a experiência em
sentido próprio da linguagem só pode ser uma
experiência de pensamento, de que a grandeza
poética de toda poesia sempre vibra num
pensamento. Mas se em jogo está uma experiência
pensante com a linguagem, por que fazer
referência a uma experiência poética? Porque o
pensamento segue seu caminho na vizinhança da
poesia. Por isso, é bom pensar no vizinho, naquele
que habita a mesma proximidade. Ambos, poesia
e pensamento, precisam um do outro ao extremo,
precisam de cada um em sua vizinhança. Qual o
campo em que essa vizinhança tem seu âmbito
próprio, isso a poesia e o pensamento terão de
definir cada um a seu modo, não obstante ambos
se encontrarem no mesmo âmbito. Como há
séculos nos alimentamos do preconceito de que o
pensamento é coisa da ratio, ou seja, do cálculo
em sentido amplo, falar sobre a vizinhança de
pensamento e poesia parece sempre muito
suspeito.
O pensamento não é nenhum meio para o
conhecimento. O pensamento abre sulcos no agro
do ser. Por volta do ano de 1875, Nietzsche
escreve o seguinte: "Nosso pensamento deve ter o
cheiro forte de um trigal numa noite de verão".
Quantos ainda possuem olfato para esse cheiro?657

No artigo “O psicologismo na poética de Mário de Andrade”,


Roberto Schwarz aponta as limitações e contradições percebidas por ele
na conceituação estética de Mário.658 A proposição inicial do escritor
modernista, a poesia como expressão do inconsciente, com um mínimo
de interferência técnica (momento individualista), seria inválida, na
análise de Schwarz, por limitar a poesia a uma verdade psicológica, em
que a poesia é usada como instrumento para expressar o inconsciente e
destituída de seu papel criador (e por isso perde sua especificidade) e a
linguagem (social) é vista como negação dessa expressão individual.
Ainda segundo Schwarz, Mário propõe, num segundo momento,
que a expressão do inconsciente deve ser tornada socialmente
significativa pela interferência técnica (momento antiindividualista, de
busca do coletivo e do nacional no folclore). Porém, para o ensaísta, “a
dialética do particular e do universal, do individual e do significativo,
núcleo justamente da experiência estética, torna-se inconcebível na
oposição absoluta em que são mantidos os pares conceituais”. Segundo
ele, tanto a verdade psicológica do primeiro momento quanto a
proposição social do segundo pretendem fundar o valor estético em vez
de se realizar por meio dele.
O autor considera que a concepção estética de Mário vai então
culminar num terceiro momento (técnica pessoal), em que um lirismo
específico (subconsciente individual) encontra uma técnica (nível
consciente) capaz de realizá-lo no plano do significado geral.
A arte não deveria, portanto, ser vista como instrumento para o
artista dizer algo ou fazer proselitismos (expressar a cultura brasileira,
fazer militância política); se ela tem algo a dizer, deve falar por si
mesma, a partir da técnica pessoal do artista, que traz ao fundo o social.
Nas palavras de Schwarz:

É pela expressão mais rigorosa de sua verdade


pessoal, diz Mário, que o indivíduo se

657
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Editora
Vozes/Bragança Paulista; São Francisco: Editora Universitária, 2003, p. 131-
133.
658
SCHWARZ, Roberto. “O psicologismo na poética de Mário de Andrade”. In:
A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
universaliza; ao mergulhar em sua própria
subjetividade o artista encontrará, ao fundo, o
social. A técnica deixa de ser negação do lirismo,
pelo contrário, torna-se a condição de sua
realização. Nesta dialética estará a moralidade do
artista, assim como a possibilidade de pensar
filosoficamente a obra de arte.659

Em “Elegia de Abril”, Mário valoriza, portanto, a técnica pessoal


do artista, o seu modo original e criativo de lidar com a matéria-prima
artística e realizar o assunto. Para ele, porém, a arte não se limita a
questões técnicas – como o artesanato –, mas envolve a capacidade de
intuição e síntese do artista:

Porque a “mensagem” do artista, aquilo em que


ele se confrange em sua originalidade mais
inconfundível, transitória e só dele, é exatamente
aquilo em que ele nos alarga e enriquece em nós.
É a definição. É a síntese. É a intuição divinatória.
Absolutamente não mais perpétuas, mas como um
ovo, um bife, um tomate, uma ginástica, uma
noite dormida, mais concorrentes em nossa
diuturnidade, que quando física (ovo, sono) é
imediata, sendo espiritual (Belo, Verdade) é
mediata. Mediata mas tão imprescindível como
respirar.660

Podemos pensar que, para Mário, a técnica pessoal do artista


envolve uma atitude de libertação do individualismo, a partir da
manifestação do lirismo e das exigências da matéria-prima e do
artesanato, em que ele se torna uma espécie de ferramenta para a
realização da obra de arte – é o poema que fala a partir do poeta, e não o
oposto.

659
SCHWARZ, Roberto. “O psicologismo na poética de Mário de Andrade”. In:
A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
660
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 8 ago. 1942. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 222.
Conforme observa Agamben, na relação entre o artista e a obra de
arte, realiza-se uma “adequação ontológica” do sujeito com relação à
obra criada e vice-versa, a partir da contemplação da potência – ou seja,
da essência ou da natureza –, de modo que tanto o artista quanto a obra
passam por uma transformação. Nessa perspectiva, o artista / sujeito não
é dado antecipadamente, mas construído em sua relação com a obra de
arte e passa a coincidir com ela: “A forma-de-vida é o ponto em que o
trabalho numa obra e o trabalho sobre si coincidem perfeitamente”.661
Ainda segundo Agamben, o ato da criação poética – e, talvez,
todo ato de palavra – supõem de algum modo uma subjetivação e,
consequentemente, uma dessubjetivação – para ele, “musa” é o nome
que os poetas sempre deram a essa dessubjetivação: “Poetas, segundo
Bachmann, são justamente aqueles que “têm feito do Eu o terreno de
seus experimentos, ou que têm feito de si mesmos o terreno
experimental do Eu. Por isso, correm constantemente o risco de perder a
clareza de saber o que dizem”.662
De acordo com o filósofo, na língua, o discurso é um ato
paradoxal, que implica, ao mesmo tempo, uma subjetivação e uma
dessubjetivação, na qual o indivíduo se apropria da língua somente
como uma expropriação integral de si mesmo, e se torna falante somente
sob a condição de fundir-se ao silêncio:

No presente absoluto da instância do discurso,


subjetivação e dessubjetivação coincidem em todo
ponto, e tanto o indivíduo de carne e osso como o
sujeito da enunciação calam do modo mais
completo. O que também se pode expressar
dizendo que o que fala não é o indivíduo, e sim a
língua; porém, isso significa, nem mais nem
menos, que uma impossibilidade de falar se faz
presente à palavra.663

Segundo Victor Knoll, o poeta não deve ser visto como um


sujeito empírico, mas antes como um lugar, onde brotam as imagens
capazes de transformar e ressignificar o mundo:

661
AGAMBEN, Giorgio. “Opus Alchymicum”. In: O fogo e o relato. Trad.
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 165.
662
AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo.
Homo Sacer III. Valência: Pré-textos, 2002, p. 120.
663
Ibidem, 2002, p. 123.
O universo imaginário de uma obra é um conjunto
de significações constituídas em virtude das
relações intra e inter imagens. Não é constituído
por uma consciência empírica ou natural, mas
graças a um pôr-se-em-obra que ultrapassa a
imediatidade do mundo. O poeta-em-obra não é
um sujeito empírico. É, antes, um lugar. A
significação do mundo na imagem brota do
próprio mundo, como apreensão do poeta-em-obra
– um campo imaginário transcendental. Quando
nos referimos ao poeta, desaparece o sujeito
empírico.664

Ainda segundo Knoll, a imagem poética é uma explosão de


cultura, de uma alma coletiva, em que o universal se aloja no particular;
por isso, em sua explosão ressoa uma humanidade. A obra ultrapassa o
autor – o poeta – porque é um espelho do mundo, assim como o poeta é
um catalisador da comunidade e do vivido pela comunidade.665
De acordo com Hegel, é na expressão de sua particularidade de
modo mais substancial que a arte alcança o universal: “(...) À esfera do
geral como tal, agrega-se, em segundo lugar, o aspecto da
particularidade. Esta, com efeito, pode combinar-se com essas verdades
substanciais, quanto tal situação particular, tal sentimento, tal
representação isoladas estão apreendidas na sua profunda essencialidade
e expressas de uma maneira substancial”666.
Podemos pensar que, na fase de maturidade alcançada nos
últimos anos de sua vida, Mário conseguiu desenvolver uma concepção
sobre a criação artística capaz de conciliar as exigências estéticas com as
éticas, a partir da própria relação do artista com a obra de arte. Em carta
a Henriqueta, Mário afirma ter percebido, nessa época de sua vida, que a
arte se realiza em um estado de consciência em que a obra de arte se
apodera do artista, de tal modo que ele próprio perde o controle sobre a
sua criação:

664
KNOLL, Victor. Paciente arlequinada: Uma leitura da obra poética de
Mário de Andrade. São Paulo: Hucitec: Secretaria de Estado de Cultura, 1983,
p. 28.
665
Ibidem, 1983, p. 36-37.
666
HEGEL, Georg Wilhein Fridrich. Cursos de Estética. Apud LAFETÁ, João
Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens na Poesia de Mário de Andrade. São
Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 68.
Hoje eu olho pras minhas obras de agora com um
respeito adorante, elas não nascem de mim, elas
vêm lá de fora. Não sou eu que cedo elas aos
outros, como que elas é que vêm me contar como
é o mundo dos outros, não sei bem, não consigo
me analisar. Sei que faço elas como se elas não
me pertencessem, não fossem minhas, há um
temor novo em mim. E assim terrivelmente
inquieto quando eles se destacam de mim pela
publicidade e tenho um medo feroz do que elas
virão me contar, assim livres e publicadas.667

Em um de seus ensaios sobre Mário, Henriqueta observa que a


concepção estética do poeta modernista, em consonância com a de
Jacques Maritain, busca atender às exigências da própria obra de arte, e
não mais do artista:

- “A arte - diz Jacques Maritain - tem um fim,


certas regras, valores que não são os do homem,
mas os da obra a produzir. Essa obra é tudo para a
arte, só há para ela uma lei - as exigências e o bem
da obra”.
O pensamento de Mário de Andrade coincide com
estas palavras. Eis o que ele escreveu no seu
magistral estudo "O artista e o artesão": - "Hoje, o
objeto da arte não é mais a obra de arte, mas o
artista. E não pode haver maior engano".668

2.6 A Meditação sobre o Tietê

“A Meditação sobre o Tietê” é um poema longo e melancólico


que faz um resumo da trajetória literária de Mário, em diálogo com as
suas obras anteriores. A despeito das declarações de Mário sobre o

667
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 15 jun. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 257.
668
LISBOA, Henriqueta. Convívio Poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1955, p. 63.
caráter transitório de sua obra, o poema é fruto do esforço do poeta para
criar uma arte capaz de permanecer, levando ao paroxismo a
dramatização da vida em sua poesia:

É um poema muito mais calmo, um


reconhecimento dolorido da minha incapacidade
pra me ultrapassar e fazer alguma coisa de
proveitoso à humanidade. E se esforça pra ser
belo, mas um belo de pedra, de granito bem duro,
antes de bronze, porque é de um material que dá
som. Não é em versos-livres, como o outro,
embora não haja propriamente metrificação. São
versos muito cadenciados, usando mesmo às
vezes algumas constantes rítmicas. Mas é também
cadência mais interior, não apenas verbal, mas
buscando espelhar pelo ritmo o sentimento das
frases. Mas é difícil de ler, penoso. Não tem nada
dessa sensualidade lírica que pega a gente e
agrada logo. E são mais de trezentos versos!669

Como se pode notar, a preocupação maior de Mário ao escrever o


poema era com questões estéticas e rítmicas, de modo a permitir ao
poema se revelar. Não houve propriamente um sacrifício do poeta por
alguma causa, como as questões de identidade nacional e sociais que
permeiam a sua obra, mas um empenho para se superar e criar a obra de
arte capaz de permanecer.
Segundo observa Luciano Costa Santos, Mário, assim como
Heidegger, valorizava a configuração rítmica e musical da poesia, que
está diretamente ligada ao sentido mais profundo da poesia, em conexão
com o assunto:

Assim, segundo Heidegger, a “configuração


rítmica” – isto é, essa espécie muito sutil e
profunda de sentimento rítmico – não somente
preside à disposição externa, métrica, das
palavras, como guarda em si a “intuição

669
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 322.
primeira”, o próprio sentido da poesia. No
pensamento de Heidegger e de Mário, o sentido
mais profundo da poesia não se deixa apreender,
portanto, apenas como discurso, mas também e
muito como música, como logos musical.670

Em “A Meditação sobre o Tietê”, Mário parecia querer valorizar,


sobretudo, a própria especificidade poética, de modo que o poema
pudesse falar por si próprio, a partir da experiência da linguagem e da
manifestação de seu próprio mistério. Segundo Heidegger, o poema,
embora não se furte de ser uma expressão humana, deve ser capaz de
falar por si próprio, de modo inaugural, e não servir de instrumento para
o poeta expressar seus ideais ou os seus sentimentos: “a linguagem fala”
671
.
De acordo com Heidegger, no texto “A caminho da linguagem”,
“dizer genuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do dizer,
própria ao dito, é por sua vez inaugural. O que se diz genuinamente é o
poema”.672 Segundo o filósofo, a linguagem, em sua essência, não é a
expressão e nem atividade do homem, o que buscamos no poema é o
falar da linguagem.673 Nessa perspectiva, o poema não é, propriamente,
a expressão da fala do poeta, de um conteúdo. A linguagem fala por si
mesma. O homem fala à medida que corresponde à linguagem – ou seja,
que escuta a linguagem.674 Para Heidegger, nomear não é atribuir
palavras, “nomear é evocar para a palavra”, “nomear aproxima o que se
evoca”, “a evocação convoca”675. Evocar é sempre provocar e invocar,
provocar a vigência e invocar a ausência. Fazendo-se coisa, as coisas
des-dobram mundo. O mundo, por sua vez, concede coisas. O poema
chama as coisas para virem ao mundo e o mundo para vir às coisas.676
Ao parabenizar Mário por Lira Paulistana, Henriqueta chama a
atenção para um equilíbrio entre os versos, nem sempre presente na obra
do poeta modernista, entre a “arte realizada” e a “arte de combate”:

670
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 37.
671
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Editora
Vozes/Bragança Paulista; São Francisco: Editora Universitária, 2003, p. 22.
672
Ibidem, 2003, p. 12.
673
Ibidem, 2003, p. 14.
674
Ibidem, 2003, p. 25.
675
Ibidem, 2003, p. 15.
676
Ibidem, 2003, p. 19-20.
O popular sobreposto ao culto, eis aí! O que mais
chama a atenção nesta sua poesia, em que a terra
brasileira, não apenas a paulistana, está presente
até na respiração dos versos, é o equilíbrio que
nem sempre dominou na anterior. Não estou
preferindo este equilíbrio ao deslumbrante
desequilíbrio de outros poemas; verifico somente
que a força de convicção é maior, em exata
correspondência com as suas preocupações de
ordem social. A sátira veio forte e rija – poderei
dizer ruminada? – das profundezas do ser. Só
convence aquele que tem a verdade em si mesmo.
Só a arte realizada é verdadeiramente arte de
combate. Como você é grande!677

As questões circunstanciais estão, de fato, presentes no poema


(como “assunto”, e não como “tema”), mas como elementos
constitutivos e intrínsecos, e não configuram a força motriz principal
que direciona o seu fluxo. Mário está mais preocupado com a cadência
dos versos, o ritmo, o “sentimento das frases”, evitando assim incorrer
no “excesso de intencionalidade” de que falava Álvaro Lins. É o fluxo
do rio que arrebata o poeta e o leva em suas águas, e não o poeta que
dita a direção do fluxo do rio. Paradoxalmente, no momento em que
Mário restringe a sua voz para que o poema possa falar, a sua própria
voz também ganha volume, pela força lírica alcançada.
Como aponta Mário, realizar a arte, atendendo a critérios
estéticos, não exclui os aspectos éticos e sociais da arte: “está claro que
especialmente para os escolásticos, mas também para qualquer artista
que não se tenha entregue de pés e mãos à estreiteza sem ar da estética
experimental, está claro que o ser a obra de arte a finalidade mesma da
arte, não exclui os caracteres e exigências humanos, individuais e
sociais, do artefazer”.678

677
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 22 out. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 302.
678
ANDRADE, Mário. “O Artista e o Artesão”. In: O baile das quatro artes.
São Paulo: Martins Editora, 1975, p. 75.
Segundo observa Leandro Pasini, "A Meditação sobre o Tietê"
faz uma revisão praticamente completa da obra poética de Mário, que
pode ser acompanhada explicitamente a partir de citações literais ou
quase literais de seus poemas. De acordo com o pesquisador, “os três
primeiros livros de poemas modernistas de Mário, que visavam
construir positivamente uma modernidade brasileira, são retomados por
um viés negativo, invertendo e rechaçando a adesão construtiva e
nacionalista de então”. Conforme demonstra Pasini, embora os temas
abordados na “Meditação” sejam os mesmos dos livros anteriores, eles
são tratados de modo mais pessoal, mais denso e mais crítico,
geralmente em tom de negação ou questionamento. No poema
encontramos a fusão do mítico e do histórico, do arcaico e do moderno,
o que reforça a ideia de eterno retorno do mesmo, que seria, segundo o
pesquisador, um dos elementos-chave para a sua compreensão.
O poema desconstrói vários aspectos sociais brasileiros, o
convívio do progresso com o subdesenvolvimento, a violência mesmo
em tempos de paz, as famílias desestruturadas, o voto de cabresto, a
exploração do trabalho, a desigualdade social, o racismo, a herança
colonial da miséria. A ausência do ideal, a perda da noção de totalidade,
a impossibilidade de harmonia e a diluição da comunidade de sentido
representam dificuldades intrínsecas e imponderáveis ao poeta. Ele
empreende então uma destruição do passado, em busca de criar as
condições para resolver os problemas da formação e construir uma nova
civilização brasileira.
Desde 1925, quando escreveu “Louvação da tarde”, Mário havia
iniciado uma nova fase em sua produção, passando da poesia mais
exterior dos primeiros tempos de luta modernista para uma poesia mais
interior, conforme observa Antonio Candido:

Falando do poema numa carta a Manuel Bandeira,


de 12 de outubro de 1925, Mário de Andrade
registra este caráter de transição (para melhor
segundo ele) e diz com humor que está fazendo
poemas de leitura difícil, cacetes, ao gosto dos
ingleses pela extensão, o cunho meditativo e a
subordinação a um esquema de pensamento, tendo
por finalidade manifestar um lirismo mais
profundo, menos comprometido com a notação
exterior e o pitoresco.679

Escrito em decassílabo branco, “Louvação da tarde” incorpora as


conquistas expressionais e temáticas a um esquema do passado, o que,
segundo o crítico, assinala “o triunfo do modernismo, porque denota a
confiança adquirida por quem é capaz de incorporar as conquistas
expressionais e temáticas a um esquema do passado”.

O poema reflexivo dos românticos, chamado


algumas vezes “meditação”, difere-se dos poemas
de cunho filosófico dos neoclássicos denominados
“epístola”, “ensaio”, por partir de algum estímulo
dos sentidos ou do sentimento, devido geralmente
à contemplação da natureza, em vez de partirem
de algum conceito, juízo ou afirmação.680

Ainda de acordo com Candido, “Louvação da tarde” se relaciona


com outros poemas do autor. Principalmente dois, que formam com ele
os pilares de uma trajetória: “Louvação matinal”, pouco posterior, e “A
Meditação sobre o Tietê”, do fim de sua vida:

Comparando-os percebemos uma função diferente


das horas do dia. Em “Louvação matinal” a
manhã corresponde à vida consciente e à luta
diária. É o momento da vontade e da razão. A
noite d’ “A Meditação sobre o Tietê” sintetiza
todas as noites da poesia de Mário de Andrade e
corresponde entre outras coisas à vida recalcada,
aos desejos irregulares, ao inconsciente que
assusta e a tudo que a sociedade oprime. É o
momento das rebeldias e dos impulsos arriscados.

Ao escrever Lira Paulistana, Mário finalmente pôde mergulhar


livremente em seu eu lírico e combater a partir de sua “torre-de-

679
CANDIDO, Antonio. “O Poeta Itinerante”. In: O Discurso e a
Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998, pp. 277-278.
680
Ibidem, 1998, pp. 277-278.
marfim”, sem precisar fazer concessões formais em função de uma arte
empenhada ou de proselitismos, que prejudicavam a sutileza da sua
poesia. Em carta a Drummond, em junho de 1944, ele expressa o seu
contentamento com a sua nova fase “lírico-combativa”, durante a escrita
de Lira Paulistana e “A Meditação sobre o Tietê”:

Aqui lhe mando uns poemas que ando fazendo.


Por enquanto são só os que eu fiz mas como me
deu a louca de repente é possível que ainda faça
mais alguns. Parece que enfim acertei a mão (a
mão minha, está claro) nesta fase nova e
combativa do meu espírito. Que palavra
pernóstica e importante demais, "espírito". Da
minha direção. Agora já a tese, o combate creio
que se intimida (sic) mais dentro de mim num
estado-de-poesia mais legitimável. No princípio
gostei muito dos poemas, porém estava
entusiasmado. Agora já não gosto muito mais,
gosto bem de poucos, e de alguns quase nada. Não
sei dizer os que ficarão, pois tudo data de uma
semana atrás e falta dormir. Pelo menos como
reflexão: dormir. Se gostar, escreva contando. Se
não gostar, não responda esta carta que
compreendo da mesma maneira e não dói.681

Ainda em carta a Drummond, Mário conta sobre o processo


criativo de “A Meditação sobre o Tietê” e discorre sobre a importância
de ter vencido o sentimento de isolamento e solidão. O verso "Nunca
estarás sozinho", de “Lira Paulistana”, está presente no poema do livro
que antecede “A Meditação sobre o Tietê”. O verso nasceu da percepção
do poeta de que a solidão que sentia podia ser vencida tendo como
antídoto a própria solidão, que permite a ele desfrutar de sua riqueza
interior e compartilhá-la com os outros homens, a partir da literatura e
da correspondência. Em carta a Drummond, Mário conta ao amigo como

681
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 30 jun. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 204.
foi importante para a concepção do poema a percepção de que “nunca
estará sozinho”:

Depois veio o barbeiro e peguei no livro do


Amando Alonso sobre Pablo Neruda e me bateu
um bruto desejo de fazer uma poesia, uma espécie
de "A Meditação sobre o Tietê" que ando
premeditando pra Lira e que não tem nada que ver
com uma ambiciosa "Meditação sobre o
Amazonas" que muito tempo andei desejando
escrever, nunca saiu. E hoje sei reconhecer que
era mais vaidosa que minha. Nem bem me lavei
apressado, peguei no caderninho de notas da Lira,
pra ver um verso do esperado Tietê, veio, mas fui
vendo as outras notas, surgiu o "Poeta, como estás
sozinho", me deu um desânimo de atacar a
"Meditação", mas já estava na Estação da Luz, era
só continuar pela avenida Tiradentes que ia dar
direto na ponte das Bandeiras onde passa o Tietê.
Foi fácil como água. O poemazinho veio dum jato
só, assim que me surgiu o verdadeiro verso
"Nunca estarás sozinho", que logo feito o poema,
ainda consertei pra muitíssimo mais exato do que
sou, pra "Nunca estará sozinho", assim como uma
ordem do meu destino. Gosto muito do poeminha,
mas creio que é meu por demais pros outros
sentirem ele. Depois passei à máquina e então
tomei a nota sobre a espécie da minha solidão, ou
melhor: a minha angustiosa impossibilidade de
solidão, mesmo quando estou sozinho. (E não será
isso que faz de mim um infatigável escrevedor de
cartas?...) Não vou procurar agora, mas me
lembro meio esgarçado que já numa das minhas
duas viagens mais longas, a do Amazonas ou a do
Nordeste, tomei uma nota sobre isso. Bem, o
papel que peguei era pequeno, logo percebi que a
nota ia ser longa e principiei escrevendo
miudíssimo pra caber. E a escrita miúda voltou
agora que de repente pensei em você outra vez.682

Assim como Lira Paulistana, o poema “Meditação sobre o Tietê”


é também uma vitória sobre a solidão. Em um momento em que o poeta
se sentia deprimido e muito só, em parte por falta de apoio para levar
adiante o seu projeto cultural para o país e também pelo distanciamento
dos colegas modernistas, ele percebe que, na verdade, “jamais estará
sozinho”, pois pode contar sempre com a riqueza de sua vida interior e
dialogar com os amigos que cultivou ao longo da vida: “Já nada me
amarga mais a recusa da vitória/ Do indivíduo, e de me sentir feliz em
mim.”
A comunhão com os outros homens, principalmente nessa fase da
vida de Mário, se dava na solidão. E se os homens nada mais tivessem
em comum, poderiam ao menos dividir esse sentimento que todos
partilham e no qual todos se irmanam. E diante das barreiras do
individualismo e do egoísmo que separam os homens, há sempre de
haver a esperança de encontrar, se não na amizade, ao menos na solidão,
um elemento comum a partir do qual se possa ansiar por um sentimento
de comunhão ou simpatia humana.
Como observou Drummond, nas notas de A lição do amigo, a
impossibilidade de solidão de Mário confirmou o que ele havia lhe dito
na primeira carta que lhe escrevera:

Mas ninguém nunca está só a não ser em especiais


estados de alma, raros, em que o cansaço,
preocupações, dores demasiado fortes tomam a
gente e há essa desagregação dos sentidos e das
partes da inteligência e da sensibilidade. Então a
gente fica só por milhões de amigos que tenha ao
lado. Se não, não. Um sentido conversa com
outro, a razão discute com a imaginativa etc. e é
uma camaradagem sublime de pessoas tão íntimas
como incubus Castor e Pólus ideais. 683

682
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 15 out. 1944.
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 220.
683
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 10 nov. 1924.
Ibidem, 1988, s/p.
Mário desejava escrever uma poesia conectada com a vida e com
as pessoas. Paradoxalmente, foi mergulhando em seu próprio eu lírico,
ao escrever a “A Meditação sobre o Tietê”, que ele conseguiu alcançar o
outro de modo mais eficaz e vencer o individualismo e o isolamento.
Curioso notar que Mário receava que “A Meditação sobre o Tietê” não
fosse compreendido ou apreciado pelos leitores por ser “seu por
demais”, demasiadamente pessoal, e trazer uma radicalização do
mergulho no eu lírico, em vez de se dirigir conscienciosamente para o
leitor.
Podemos pensar que, ao escrever o poema, Mário abandonou as
teorias literárias para se abandonar às atitudes vitais, o que possibilitaria
um maior contato com a vida e com as pessoas, conforme ele defende,
em carta a Drummond:

Acho que agora você está em melhores condições


de ser literato bom porque apesar de teorias e
teorias de que já ando farto o que eu vejo nos
artistas fecundos, não digo artistas grandes, é total
abandono das atitudes literárias e apego a atitudes
vitais. São seres de relação e por isso são, muito
mais que os outros.684

Em carta a Manuel Bandeira, Mário conta ao amigo sobre sua


nova fase criativa, com a escrita dos poemas de Lira Paulistana, em que
teria conseguido vencer as preocupações das poesias de combate, que
andaram desvirtuando seus processos e convicções:

Até hoje, já escrevi uma carta, e deliciosamente


escrevi uma poesia, que faz bem mais de um mês
estava engatilhada, sem chegar. Chegou hoje, de
repente, sem pedir licença, estava pretendendo
fazer coisas muito outras e ela chegou. Faz parte
aliás de um grupo novo, a que dei o título de A
Lira Paulistana, porque são poemas que se
referem a todo instante a São Paulo. Creio que
achei de novo a mão, isto é, a minha mão. Depois
do Café, as preocupações das poesias de combate,

684
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 210.
andaram meio que me desvirtuando os processos e
convicções, não pegava o jeito. Pois de supetão
deslanchado por um acontecimento inesperado e
que não vale a pena contar, a coisa jorrou, me
saíram de jorro uns dezesseis poemas. São
coisinhas curtas, muito sintéticas, em geral
metrificadas e rimadas. Se pudesse lhe mandar...
Gostei desses poemas porque sei que sou eu.685

Não se trata propriamente de fazer ou não poesia de


circunstância, social ou de combate; o que importa mesmo não é o
assunto, mas o artefazer, a maneira como o artista realiza o assunto na
sua criação. Segundo observa José Emílio Major Neto, “A Meditação
sobre o Tietê” “traz as mesmas constâncias temáticas que as lírica de
Mário das fases anteriores: “a poética da cidade; a relação entre poesia e
música; o cruzamento entre tradição e renovação estética; a questão do
popular e do erudito; do nacional e do universal; do arcaico e do
moderno; do mítico e do histórico, etc.”686 O que teria mudado é a
maneira de abordar esses assuntos. Essa mudança coincidiu com o que o
escritor já havia proposto em “Elegia de Abril”, ao falar sobre a
necessidade de realizar a técnica pessoal do artista, que deveria nascer
da sua moralidade profissional, sem se deixar conformar pelas
contingências exteriores, mas atentando principalmente para a maneira
de realizar o assunto:

Será preciso ter sempre em conta que não entendo


por técnica do intelectual simploriamente o
artesanato de colocar bem as palavras em juízos
perfeitos. Participa da técnica, tal como eu a
entendo, dilatando agora para o intelectual o que
disse noutro lugar exclusivamente para o artista,
não somente o artesanato e as técnicas tradicionais
adquiridas pelo estudo, mas ainda a técnica
pessoal, o processo de realização do indivíduo, a

685
Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, 5 ago. 1944. MORAES,
Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira.
São Paulo, 2000, p. 210.
686
NETO, José Emílio Major. A Lira Paulistana de Mário de Andrade: a
insuficiência fatal do Outro. Tese. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, USP, 2006, p. 28.
verdade do ser, nascida sempre da sua moralidade
profissional. Não tanto o seu assunto, mas a
maneira de realizar o seu assunto. Que os assuntos
são gerais e eternos, e entre eles está o deus como
o herói e os feitos. Mas a superação que pertence
à técnica pessoal do artista como do intelectual, é
o seu pensamento inconformável aos imperativos
exteriores. Esta a sua verdade absoluta.687

No momento em que Mário deixou de fazer arte empenhada, a


poesia pôde então falar por si mesma. Não a arte desinteressada, essa
outra utopia, nem a arte empenhada, refém da prosa, mas uma fusão da
função poética e função referencial, do coletivo e individual. Ainda que,
no caso de Mário, esse equilíbrio só pareça possível nos extremos, no
paroxismo da razão e da loucura.
Em A morte do poeta, Eduardo Jardim descreve a trajetória
vivida por Mário até mergulhar numa crise existencial profunda no final
de sua vida, em decorrência principalmente do desencantamento sofrido
com a interrupção de seu projeto junto ao Departamento de Cultura, mas
também pela desilusão com a vida pública, a desunião entre seus pares,
fatores que o impediram de realizar seu sonho de consolidar uma
tradição cultural para o país e contribuir para o “amilhoramento”
político-social do homem. Para o autor, foi a partir de uma tensão entre
elementos éticos e estéticos que o poeta teria conseguido alcançar uma
nova solução estética:

A construção em antítese é a mais característica


de “Meditação sobre o Tietê”. Ela expressa a
enorme tensão vivida pelo poeta pressionado, de
um lado, pelas exigências morais, exacerbada pela
situação política da época, e, de outro, pela
atração da fruição puramente estética. No final
sinfônico do poema, vozes desencontradas
opõem-se e procuram se ajustar. De um lado, é
feita menção às auroras represadas, levadas para o
peito do sofrimento dos homens, de outro,
sustenta-se muito viva a imagem da correnteza

687
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1974, p. 193-194.
que representa o impacto da expressão estética. A
tensão nunca totalmente resolvida entre essas duas
forças constitui a base sobre a qual se ergue uma
nova solução poética. (...)
“Meditação sobre o Tietê” apresenta-se como o
momento de maior tensão na imaginação do poeta
devido à afirmação simultânea da atração da
fruição estética e da exigência da vida ética e
política. Do confronto dessas duas forças muito
vigorosas resulta a realização do impressionante
poema, que abriga em seus versos intensa carga
dramática. Teria o poeta, nessa altura, alcançado a
serenidade referida nas imagens derradeiras da
lágrima diluída e a alga escura? O poema está
datado de 30 de novembro de 1944 a 12 de
fevereiro de 1945. MA morreu duas semanas
depois, em 25 de fevereiro.688

Ao experimentar uma espécie de morte psicológica, pouco tempo


antes de sua morte física se consumar, Mário entoou o seu canto de
cisne, vendo todas as imagens de sua vida passarem à sua frente, nas
águas do rio. Esse estado de alucinação poético, que ele antes costumava
provocar deliberadamente, dessa vez se apresentou de modo espontâneo
e sem planejamento. O estado psicológico de Mário nessa fase é descrito
em carta a Oneyda Alvarenga:

E é só isto que peço agora: estar só, sozinho, de


longe, com meus horríveis, desconcertados e
contraditórios pensamentos. Me sinto
perfeitamente caótico e não faço nada. Uma
volúpia esta solidão sem fazer nada. É espantoso
como estou vivendo dos meus olhos – mas não me
utilizo deles pra ler não. Fico horas perdido sem
pensar, sem amar, sem detestar, olhando as vistas.
Sinto que elas me fazem bem e não me fadigo

688
JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: A morte do poeta. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 143.
delas. Mas não penso nelas. Só os olhos vivem. Só
os olhos vivem por enquanto.689

Esse estado de espírito de desolamento, cansaço e solidão


perpassa “A Meditação sobre o Tietê”; porém, como observa Alfredo
Bosi, o poema tem algo de solene e humilde ao mesmo tempo, numa
atitude que lembra talvez o de um capitão que vê seu navio afundar, mas
se recusa a deixá-lo. O poeta assim enfrenta a fatalidade do destino com
despojamento e entrega:

Voltando à poesia nos últimos anos, compôs a


Lira Paulistana. A cidade é apreendida e
ressentida nas andanças do poeta maduro que se
despojou do pitoresco e sabe dizer com a mesma
contensão os cansaços do homem afetuoso e
solitário e a miséria do pobre esquecido no bairro
fabril. O lirismo da "Meditação sobre o Tietê" tem
algo de solene e de humilde; e o espraiado do seu
ritmo não é sinal de gratuidade, mas expressão de
entrega do poeta ao destino comum que o rio
simboliza (...).690

Henriqueta também percebe uma evolução da poesia de Mário,


apontando que a contradição entre o elemento moderno e o romântico,
em sua busca de expressar uma identidade nacional, sob o jugo (parelha
de bois) da “fatalidade da raça”, foi depois amadurecida numa guinada
para a poesia “clássica”: “Certa rusticidade ingênua de superfície (o
elemento moderno) e uma profusão de raízes arraigadas ao solo (o
romântico) fazem extremamente contraditória essa poesia, que aos
poucos se foi tornando clássica – no sentido do equilíbrio entre essência
e forma”. 691
A poesia é fruto de uma obra individual que ultrapassa o
indivíduo, sendo ao mesmo tempo uma experiência individual e
689
JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: A morte do poeta. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 134.
690
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix,
2006, p. 354.
691
LISBOA, Henriqueta. “Lembrança de Mário”. SOUZA, Eneida Maria de.
(Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo:
Peirópolis / Edusp, 2010, p. 344-345.
coletiva. E é livrando-se do proselitismo e do uso instrumental da
linguagem que o poeta permite que a linguagem fale por si mesma, e
assim se torne a voz do próprio sujeito e da sociedade. Conforme
observa Henriqueta Lisboa, sobre “A Meditação sobre o Tietê”:
“Amadurecida, (sua poesia) faz-se mais participante e comunicativa de
emoções generalizadas. Nesse momento o poeta comunga intimamente
com o espírito dos homens, cada qual perdido na sua solidão, cada qual,
como ele, debruçado sobre o seu Tietê, nas grandes noites serenamente
meditativas.”692

2.7 O poeta na Modernidade


No “Prefácio interessantíssimo”, Mário de Andrade declara que
“o impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada”: “A turba é
confusão aparente. Quem souber afastar-se idealmente dela, verá o
imponente desenvolver-se dessa alma coletiva, falando a retórica exata
das reivindicações”693 A turba (o povo) é vista como “confusão
aparente”, da qual o poeta precisa se afastar para observar criticamente o
desenvolver dessa “alma coletiva”. Ele reivindica então a liberdade para
fazer as suas escolhas intelectuais e artísticas, deixando claro que são
opções individuais e que não pretende ser seguido por ninguém:
“Costumo andar sozinho”.694
Nota-se que as tensões entre as instâncias individual e coletiva,
particular e universal, estão sempre presentes na obra de Mário de
Andrade. Isso nos leva a pensar sobre o significado de povo e multidão,
nesse contexto, em busca de entender como o poeta se relaciona com a
coletividade. Segundo Leopoldo e Silva, refletir sobre “quem sou” ou
“quem somos” traz uma pergunta cartesiana presente na origem da
metafísica moderna – a metafísica do sujeito, em que o espírito é
substituído pela ideia –, que se reformula em Baudelaire, incorporando a
experiência da Modernidade. Será possível, na modernidade, diante da
multidão febril e anônima, onde o poeta se perde e se encontra,

692
LISBOA, Henriqueta. Vigília poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1968, p. 21.
693
ANDRADE, Mário. Losango cáqui. In: Poesias Completas – De Pauliceia
Desvairada a Café. Círculo do Livro, s/d, p. 26.
694
Ibidem, s/d, p. 26.
constituir uma subjetividade singular, que possa distingui-lo dos
demais?695
De acordo com o estudioso, poderíamos esperar, numa
perspectiva mais romântica, que o poeta se distinguisse dos demais ou
da multidão, por estar acima ou fora dela. No caso de Baudelaire,
porém, essa distinção se dá exatamente na medida em que o poeta sente
mais intensamente a multidão, os seus efeitos, do que aqueles que nela
vivem submersos, de modo indistinto. A singularidade do poeta não se
faz, portanto, de um modo alheio à multidão, mas inserida no meio dela.
Segundo Baudelaire, “o poeta é o solitário na multidão”. Há, portanto,
uma sensibilidade peculiar a esse traço da vida moderna, que traz em si
um paradoxo: o poeta se encontra quando ele se perde na multidão.
Conforme observa Luciano Costa Santos696, mais que uma busca
por encontrar a identidade cultural do homem brasileiro, a questão da
nacionalidade adquire, para Mário, uma dimensão ontológica, pois é a
partir da consciência com relação ao lugar que o seu país ocupa no
concerto das nações civilizadas que será possível ao homem brasileiro se
situar no mundo e ter condições de autodeterminação.
Assim como Baudelaire, Mário de Andrade provavelmente se
sentiu só em meio à multidão vociferante, estando ao mesmo tempo
inserido, mas também distanciado com relação a ela. Para conhecer a
identidade de seu país, foi preciso, num primeiro momento, que ele
abdicasse um pouco de si mesmo, de suas possibilidades e inquietações
individuais e artísticas, para procurar se integrar a essa multidão e
buscar encontrar nela uma identidade coletiva. “Nós temos que dar ao
Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos
que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é
sublime. E nos dá felicidade”, conclama o escritor a Drummond.697
Desejoso de construir uma identidade nacional e contribuir para
formar uma tradição cultural brasileira, Mário encarava com
desconfiança produções culturais “contaminadas” pelo mundo moderno
e urbano e pela cultura de massa. Segundo ele, a arte nacional já estava
presente no povo, no folclore, na arte popular no inconsciente coletivo, e

695
SILVA Franklin Leopoldo. Curso de Filosofia e Intuição Poética na
Modernidade. USP / Univesp, 2013. Disponível em:
http://www.veduca.com.br/play/5678
696
SANTOS, Luciano Costa. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de
Mário de Andrade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005.
697
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 70.
o artista, poderia, portanto, transpor seus elementos particulares para a
arte erudita, e desse modo encontrar um caráter particular e
diferenciador, característico de nossa identidade. A partir do dado
cultural recolhido em suas pesquisas, em que eram utilizados métodos
de etnografia, antropologia e sociologia, ele procurou penetrar nos
universos simbólicos do povo, a fim de identificar tradições capazes de
transitar entre a arte folclórica e popular e a arte erudita.
Essa “construção” de uma identidade brasileira não se limita a
descrever índices de nacionalidade em aspectos exteriores – a natureza,
o índio, a cor local –, mas remete ao “instinto de nacionalidade”
proposto por Machado de Assis, ao se referir a “um certo sentimento
íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando
trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. Em “O poeta come
amendoim”, Mário de Andrade expressa essa busca de uma identidade a
partir de um sentimento e um jeito de ser próprios do brasileiro:

Brasil amado não porque seja minha pátria,


Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde
Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço
aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão
muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer
e de dormir.698

Mário buscava construir uma identidade nacional baseada no


estudo minucioso do folclore e da cultura popular, em contato direto
com o povo. Agindo desse modo, ele valorizava o papel mediador do
intelectual e do artista, que deveria se apropriar de elementos já
existentes na cultura popular e dar-lhe uma transposição erudita. Essa
busca de uma identidade, porém, se mostra problemática, pela
complexidade de se construir uma narrativa que envolva uma unidade
totalizante de nação e pela dificuldade do intelectual de compreender o

698
ANDRADE, Mário. Poesias Completas – De Pauliceia Desvairada a Café.
In: Losango cáqui. Círculo do Livro, s/d, p. 120.
povo e criar uma empatia com ele. Segundo Mário, no “Ensaio sobre a
música brasileira”, “uma arte nacional não se faz com escolha
discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na
inconsciência do povo. O artista tem apenas que dar aos elementos já
existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música
artística, isto é, imediatamente desinteressada.”699
A questão, porém, se mostrava mais problemática, pois os
elementos que caracterizariam a arte nacional seriam fruto de uma
comunhão inconsciente e silenciosa entre os homens não acessível à
consciência, mas revelada apenas pela catarse coletiva do artista
popular, numa experiência quase mística. Nas palavras de Pedro Meira
Monteiro:

(...) o plano inconsciente em que os gestos se


deixam guiar não pela genialidade individual, mas
pela plena realização da coletividade em sua
misteriosa consubstanciação, naquele momento
em que o cantador já não é mais ele mesmo,
imerso que está no corpo místico da “cultura
nacional”. O drama aparecerá, como verdadeira
transubstanciação crística, na figura de Chico
Antônio, que Mário de Andrade conheceria em
sua viagem ao Nordeste em 1928, para finalmente
convertê-lo em personagem de sua Vida do
cantador, já nos anos 1940.700

Portanto, a busca de Mário por identidade é sempre angustiosa e


dilacerante, pois o sentido de totalidade, se existe, não lhe é revelado.
Na correspondência com Sérgio Buarque de Holanda, a questão
predominante é justamente a estratégia da construção de uma identidade
brasileira a partir da arte. Enquanto Mário acredita que os artistas devem
se empenhar nessa construção, Sérgio Buarque refutava esse empenho,
sugerindo que a construção de uma cultura brasileira seria menos o fruto
da vontade interessada e mais o resultado do desinteresse, ou da
“indiferença”: “(...) onde Mário soçobra, na angústia de nunca encontrar
699
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. In: A música e a
canção populares no Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1972.
700
MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade/ Sérgio Buarque de
Holanda: Correspondência. São Paulo: Companhia das Letras / Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB) / Edusp, 2012, p. 213.
a ‘cultura brasileira’, Sérgio segue em frente, porque se desfez, muito
cedo – e num diálogo com o próprio Mário –, do impulso de buscar com
precisão a fonte de onde emanaria a cultura”, observa Monteiro.701
Embora tenha se dedicado a buscar uma identidade para o país,
Mário reconheceu que o brasileiro é um povo constituído por uma
multiplicidade de etnias e não possui um caráter definido, como sugere
em Macunaíma, o herói “sem nenhum caráter”. De acordo com Raúl
Antelo, Mário preconiza a falta de lugar do intelectual público
contemporâneo. Para o autor, o poeta modernista “inaugura uma épica
da consciência e da subjetividade. Com base na figura do poeta-profeta
whitmaniano, percebe-se em Mário a necessidade de absorver o mundo
e a ideia de que o homem contemporâneo é um ser multiplicado”.702
Ao procurar levar o povo brasileiro a conhecer a si mesmo, Mário
contribuiu para lhe dar uma identidade e desenvolver a sua consciência
crítica. Nas palavras de Telê Porto Ancona Lopez:

A intenção principal de Mário quanto ao povo


brasileiro é deixá-lo consciente de suas
características particulares, presentes no
inconsciente coletivo, no folclore e na cultura
popular, para que possa se afirmar como
coletividade no cenário internacional. Nesse
sentido, viu o circo e principalmente a figura de
Piolim, como espelhos críticos em que uma série
de características do povo estavam sendo
representadas e questionadas para o povo-
espectador.703

Após a Revolução de 1930, o país se dividiu ainda mais em


disputas regionais de poder, tornando ainda mais difícil pensá-lo em
termos de unidade. Com a declaração do Estado Novo, em 1937, Mário
percebeu que o intelectual não pode manter-se afastado da política. O

701
MONTEIRO, Pedro Meira (org.). Mário de Andrade/ Sérgio Buarque de
Holanda: Correspondência. São Paulo: Companhia das Letras / Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB) / Edusp, 2012, p. 209.
702
ANTELO, Raúl. Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-
americanos. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-
Memória, 1986, p. 16.
703
LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. S. Paulo,
Duas Cidades, 1972, p. 204.
povo brasileiro começava então a adquirir consciência política, mas
ainda não o bastante para fazer uma revolução capaz de mudar as
arraigadas estruturas de poder do país e romper com a desigualdade
social. Durante as suas viagens pelo Brasil, em suas peripécias de
Turista Aprendiz, Mário escreve para uma amiga francesa e conta sobre
o sofrimento que observava no povo brasileiro:

Os vossos operários europeus? Eles não sofrem


não, eles teorizam sobre o sofrimento. A dor, a
imensa e sagrada dor do irreconciliável humano,
sempre imaginei que ela viajara na primeira vela
de Colombo e vive aqui. Essa dor não é de ser
operário, que não é de ser intelectual, que
independe de classes e de políticas, de
aventureiros Hitlers e de covardes Chamberlains,
a dor dos irreconciliáveis vive aqui.704

Na mesma viagem de encontro ao povo, o poeta se deparava com


o desafio de superar a alteridade e ter que enfrentar, no contato do dia a
dia, a herança do passado colonial, da escravidão, da desigualdade, do
analfabetismo. Diante dessa realidade, ele percebe que a possibilidade
de o povo brasileiro ganhar consciência crítica e capacidade de
autodeterminação era ainda longínqua:

São 24 horas e me deito. O zambê continua ao


longe. E continuará de certo até que rompa a
arraiada. Uma sensação estranha de século XIX...
Samba de escravos perpetuado através de todas
essas liberdades servis... Que não acabarão de
verdade enquanto não vier uma fatal, mas
longínqua ainda, bandeira encarnada.705

Podemos pensar que a personalidade histórica de um povo se


constitui quando, graças a estímulos concretos, ele é levado à percepção
dos fatores que o determinam, o que equivale à aquisição da consciência
crítica. Segundo Guerreiro Ramos, a consciência crítica é um modo de

704
ANDRADE, Mário. O Turista Aprendiz. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1983, p. 166.
705
Ibidem, 1983, p. 280.
apreender os fatos radicalmente distinto da consciência ingênua, que é
puro objeto de determinações exteriores. Ela implica não apenas uma
conduta humana desperta e vigilante, mas também uma atitude de
domínio de si mesmo e do exterior, a partir de uma compreensão de seus
condicionamentos. Para o autor, a consciência crítica instaura a aptidão
autodeterminativa que define a pessoa como ente portador de
consciência autônoma, isto é, nem determinada de modo arbitrário, nem
pela pura contingência da natureza.706
Guerreiro Ramos menciona alguns fatos que autorizariam afirmar
que o povo brasileiro vivia uma nova etapa do seu processo histórico-
social: a industrialização e suas consequências, a urbanização e as
alterações do consumo popular.707 A autodeterminação está, segundo
ele, associada com o refinamento dos motivos da vida ordinária, com a
libertação progressiva dos afazeres elementares. Nessa perspectiva, a
assimilação crítica desses produtos teria de se opor à assimilação literal
e passiva dos produtos científicos importados.708
Um risco que se corre ao se pensar a nação, procurando
identificar os seus traços distintivos, é considerá-la uma unidade, apesar
de sua multiplicidade, e não atentar para as diferenças de classe e de
acesso aos direitos que nela subsistem. Outro risco é projetar no
intelectual, em seu papel de mediador entre a cultura erudita e popular,
um protagonismo como agente mediador num processo de
transformação social e afirmação das camadas populares que conta
também com a participação ativa desse próprio povo.
Ao se pensar a coletividade, devemos fazer uma distinção entre
povo e multidão. Essa conceituação tem uma prerrogativa histórica, que
remete à Roma Antiga. No texto “Para uma definição ontológica da
multidão”709, Antônio T. Negri procura redefinir o conceito de multidão,
tomando-o como uma imanência e um conjunto de singularidades não
representáveis. Ele opõe o conceito de multidão ao de povo e de massa,
libertando-o da transcendência da unificação e da tirania do soberano. A
multidão designa, assim, uma multiplicidade imensurável que constitui
um ator social ativo, um “monstro revolucionário” que nos conduz a um

706
GUERREIRO RAMOS, Alberto. A redução sociológica. 3a.edição, Rio de
Janeiro, Editora da UFRJ, 1996, p. 53.
707
Ibidem, 1996, p. 53.
708
Ibidem, 1996, p. 68.
709
NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da Multidão. Revista Lugar
Comum, nº 19-20, 2009, 15-26.
mundo inteiramente novo, fazendo-nos mergulhar em um turbilhão de
mudanças que se encontram em curso.710
Segundo o autor, a massa e a plebe foram colocadas,
historicamente, como força social irracional e passiva, violenta e
perigosa, facilmente manipulável. Porém, a multidão é, ao mesmo
tempo, sujeito e produto da prática coletiva, resultado da multiplicidade
de corpos, que expressa a potência enquanto conjunto e enquanto
singularidade. Para ele, as metamorfoses que colocam a multidão como
conjunto e a singularidade como multidão nada mais são que produtos
de lutas, movimentos e desejos de transformação.
Paolo Virno, no texto “Multidão e princípio de individuação”,
também assinala que as formas de vida contemporâneas testemunham a
dissolução do conceito de "povo" e uma renovada pertinência do
conceito de "multidão".711 Segundo o pesquisador, o "povo" é de
natureza centrípeta, pois converge numa vontade geral, é a interface ou
o reflexo do Estado; enquanto a "multidão" é plural, pois foge da
unidade política e não firma pactos com o soberano, não porque não lhe
relegue direitos, mas porque é reativa à obediência e tem inclinação para
certas formas de democracia não-representativa.
Porém, o autor aponta que, desde o Século XVII, é o "povo" que
obtinha e destinava a existência política da multidão, que havia sido
afastada do horizonte da modernidade: não somente pelos teóricos do
Estado absolutista, mas também por Rousseau, pela tradição liberal e
pelo próprio movimento socialista. No entanto, hoje a multidão
desforra-se, ao caracterizar todos os aspectos da vida social: os hábitos e
a mentalidade do trabalho pós-fordista, os jogos de linguagem, as
paixões e os afetos, as formas de conceber a ação coletiva.712
Virno conclui que a multidão é uma rede de indivíduos que indica
um conjunto de singularidades contingentes. Estas singularidades são o
resultado complexo de um processo de individuação. Portanto, o ponto
de partida de toda verdadeira individuação é algo ainda não individual.
O que é único, não reprodutível, passageiro, provém, de fato, do que é
mais indiferenciado e genérico. As características particulares da
individualidade enraízam-se em um conjunto de paradigmas

710
NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da Multidão. Revista Lugar
Comum, nº 19-20, 2009, p. 15-26.
711
VIRNO, Paolo. Multidão e princípio de individuação. Revista Lugar Comum,
nº 19, 2009, p. 27-40.
712
Ibidem, 2009, s/n.
universais.713 A multidão mostra a mescla inextricável de singularidade
não reprodutível e anônima da espécie, individuação e realidade pré-
individual. Cada uma das multidões tem atrás de si o universal, a modo
de premissa ou de antecedente, mas não tem a necessidade dessa
universalidade postiça que constitui o Estado.
Cabe também atentar para a distinção entre plebe e povo, estando
a primeira à margem da segunda, embora também se veja dentro da
totalidade do povo e reivindique a sua inclusão nos direitos desfrutados
pelas camadas mais favorecidas. O conceito de povo implica saciedade,
completude, homogeneização, universalidade. Enquanto que a plebe
remete a parcialidade, heterogeneidade, incompletude, pulsões e
demandas sócio-políticas.
Conforme observa Raúl Antelo714, havia em Roma uma
assimetria entre o conceito totalizador de comunidade (o populus) e o
conjunto altamente heterogêneo dos marginalizados (a plebs). Cada um
dos termos inclui e, ao mesmo tempo, exclui o outro – a margem é
sempre uma parcialidade que, no entanto, identifica-se a si mesma com
a comunidade enquanto todo. Em Roma, porém, a plebisque (plebe)
estava excluída da populus (povo).
Mário de Andrade viveu uma crise existencial profunda no final
de sua vida, desencantado com o individualismo de seus pares, os
desentendimentos entre eles, a falta de união em torno de um projeto
coletivo para a cultura brasileira, a falta de consciência política e social,
a perda do cargo na Secretaria Municipal de Cultura e a falta de
continuidade para o trabalho que havia iniciado à frente da instituição.
Após ter empenhado toda a sua vida e sua obra na luta pela cultura
brasileira, ele se mostrava desapontado com os resultados alcançados.
Mário volta então para a sua casa, situada à rua Lopes Chaves,
em São Paulo, decidido a combater somente a partir de sua torre-de-
marfim e jamais se sujeitar novamente a cargos institucionais ou
conchavos políticos. Mesmo que, naquele momento, tudo pudesse
parecer sem sentido para o poeta, ele jamais deixou de buscar um
sentido ou de acreditar em utopias, como na possibilidade de comunhão
entre os homens e de transformação da realidade brasileira. E foi talvez
a atitude de substituir a arte empenhada por uma arte que pudesse falar

713
VIRNO, Paolo. Multidão e princípio de individuação. Revista Lugar Comum,
nº 19, 2009, s/n.
714
ANTELO, Raúl. Os confins como reconfiguração das fronteiras. Revista
Brasileira de Literatura Comparada. Rio de Janeiro: julho de 2006, nº8, p. 59-
82.
por si mesma que tenha lhe possibilitado escrever a sua obra-prima, “A
Meditação sobre o Tietê”.
Ao fazer a crítica de um livro de Cecília Meireles, no artigo
“Cecília e a poesia”, em 1939, Mário se deteve num poema sobre um
cão perseguindo o eco de seu próprio latido. Trata-se de uma imagem
poderosa, que pode servir para ilustrar a própria busca pelo sentido por
parte do poeta diante de mistérios que o ultrapassam, da impossibilidade
de acessar o sentido que tanto o angustiava, mas lhe servia de força para
seguir adiante:

E ele para e vira a cabeça. E mira com seus olhos


de homem
Não é nada disso, porém...
Alta noite, diante do oceano, senta-se o animal em
silêncio.
Balançam-se as ondas negras. As cores do farol se
alternam.
Não existe horizonte. A água se acaba em tênue
espuma.
Não é isso! Não é isso!
Não é a água perdida, a luz andante, a areia
exposta...
E o animal se levanta, e ergue a cabeça, e late, e
late...
E o eco responde.
Sua orelha estremece. Seu coração se derrama na
noite.
Ah! - Para aquele lado apressa o passo, em busca
do eco.

Eis o que me soa como definição do mais íntimo


sentido de poesia. A nossa grande poetisa busca
penetrar os arcanos do simples animal, o "pobre
animal", que depois das obrigações fisiológicas do
seu dia, aparece alta noite no morro em silêncio.
Quem já observou, por acaso, um pobre animal
num destes momentos de gratuidade, sabe como
ele é prodigiosamente dramático. Dir-se-ia, com
efeito, que ele procura e ao mesmo tempo se
desinteressa de procurar alguma coisa a mais,
algum sentido pra si mesmo. A sua inquietação é
apenas um dos momentos de sensibilidade dessa
insuportável vagueza, dessa inexplicável
insolução do ser e da vida, apenas terrestremente
concebidos. Cecília Meireles, pela sua força lírica
de conhecimento, ainda unifica nisso os homens
aos irracionais, naquela pincelada firme em que
indica que o animal "mira com seus olhos de
homem". Não diz "com olhos de homem", o que
seria apenas uma comparação, mas "seus" olhos
de homem, com excelente felicidade expressiva
nos identificando a todos, nessa mesma tristeza de
buscar um eco, um sentido, uma identidade maior.
Mas por outro lado, com uma escolha inventiva
extraordinária, ela caracterizou o trágico da nossa
insolubilidade, transpondo uma observação
comezinha, sublimando-a numa síntese nova, e
iluminando o seu valor de drama, por conservá-lo
no mutismo trágico, no mistério dessa alma
irracional. Apenas, "Não é isso! Não é isso!".
Ficamos sabendo que essa incógnita infeliz não
achou o seu sentido, nem encontrou a sua
correspondência. E então, tragicamente lhe nasce
a reação que é de todos nós, o clamor, e ele late e
late. O eco responde. Sensualizado, cheio de
esperança e de amor, sua orelha estremece. "Seu
coração se derrama na noite. Ah! - Para aquele
lado apressa o passo, em busca do eco."715

2.7.1 Carta a um amigo distante

Atualmente, a literatura apresenta um posicionamento mais


crítico em relação ao coletivo. Predominam personagens fechados em si
mesmos, absortos em seus conflitos internos e em sua
incomunicabilidade. A multidão potencializa a solidão, o isolamento, o
individualismo. Cada um cuida dos próprios interesses, dentro de suas

ANDRADE, Mário. “Uma suave rudeza”. O Empalhador de Passarinho.


715

São Paulo, Martins Editora; Brasília, INL, 1972, p. 58.


expectativas e pequenas realizações pessoais. Já não há mais idealismos
políticos, econômicos, talvez nem mesmo humanismo. Tudo que antes
era sólido se desmanchou no ar (e talvez nunca tenha sido realmente
sólido).
Em “Regras para o parque humano”, Peter Sloterdijk afirma,
citando o poeta Jean Paul, que os livros são como cartas volumosas
enviadas a amigos.716 Segundo o autor, a filosofia recruta os seus
seguidores escrevendo de modo contagiante sobre amor e amizade. O
remetente desse gênero literário envia seus escritos ao mundo sem
conhecer os destinatários. Porém, com o estabelecimento midiático da
cultura de massas e a revolução da internet, a coexistência humana na
sociedade atual foi retomada a partir de novas bases.
O autor recorda que, em 1946, no momento mais miserável da
crise europeia pós-guerra, o filósofo Martin Heidegger escreveu o seu
célebre artigo sobre o humanismo – um texto que também se poderia
entender, à primeira vista, como uma carta mais longa a amigos. Porém,
o conceito de amizade que ele utilizou não foi o da comunhão entre um
público nacional e os seus clássicos. Ele sabia, ao redigir essa carta, que
tinha de falar com voz frágil ou escrever com a mão hesitante, e que a
harmonia entre o autor e os seus leitores não mais poderia ser presumida
como previamente estabelecida. A era do humanismo moderno havia
terminado, porque não se sustentava mais a ilusão de que grandes
estruturas políticas e econômicas pudessem ser organizadas segundo o
amigável modelo da escola literária.
Ao expor e interrogar nesse escrito as condições do humanismo
europeu, Heidegger inaugurou um campo de pensamento trans-
humanista ou pós-humanista.717 A partir daí, não se poderia mais definir
o ser humano como animal racional, nem contar com grandes sínteses
políticas ou culturais. O humanismo que poderia retirar o ser humano da
barbárie e desembrutecê-lo havia perdido o seu sentido. A catástrofe
havia mostrado que o problema é o próprio ser humano, com seus
sistemas metafísicos de autoexplicação e auto-elevação. Cristianismo,
marxismo e existencialismo aparecem lado a lado como três modos de
evitar a radicalidade última da questão sobre a essência do ser humano.

716
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano – uma resposta à carta
de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo, Estação Liberdade, 2000.
717
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano – uma resposta à carta
de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo, Estação Liberdade, 2000, s/n.
Que não pode mais ser definido como animal racional, zoológica ou
biológica. Mesmo com adições espirituais.718
A partir do momento em que os homens não poderiam mais
escrever cartas, no tão sombrio ano de 1945, morria Mário de Andrade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mário de Andrade amadureceu a sua concepção sobre a criação


artística no final de sua vida, substituindo a atitude empenhada e
sacrificial das fases anteriores – um sacrifício mais da arte que do artista
– por uma atitude de valorização da obra de arte e da técnica do artista,
de modo a evocar a manifestação da presença da obra de arte a partir de
seus próprios elementos e possibilitar “a fundação do ser pela palavra”.
“A Meditação sobre o Tietê” dramatiza o sacrifício pessoal do poeta – e
não mais o sacrifício da obra – e celebra o nascimento de uma nova fase
de criação do escritor, que ele chama de “lírico-combativa”.
O poema se destaca por sua musicalidade e fluidez de
movimento, denotando um equilíbrio entre forma e conteúdo nem
sempre presente na obra do escritor modernista – segundo o próprio
Mário, “A Meditação sobre o Tietê” é fruto do seu esforço para criar
uma arte capaz de permanecer e representa uma vitória sobre as
preocupações sobre a poesia de combate, que andaram desvirtuando
seus processos e suas convicções .719 A configuração rítmica e musical
do poema está diretamente ligada ao sentido mais profundo da poesia,
em conexão com o assunto.
Nessa fase de maturidade, Mário havia conseguido desenvolver
uma concepção sobre a criação artística capaz de conciliar as exigências
estéticas com as éticas, a partir de uma moralidade que nascia da própria
relação do artista com a obra de arte. Ele demonstra ter tomado
consciência de que a criação se realiza em um estado de consciência em
que a arte e o lirismo se apoderam do artista, rompendo com as barreiras
do individualismo e da razão instrumental. Paradoxalmente, no
momento em que Mário restringe a sua voz para que o poema possa
falar, a sua própria voz também ganha volume, pela força lírica
alcançada.

718
Ibidem, 2000, s/n.
719
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 20 jan. 1945. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 322.
Até então, o poeta estava empenhado em realizar uma “poesia de
circunstância” que direcionava as manifestações do impulso lírico
inconsciente para determinadas finalidades éticas, morais e sociais da
vontade consciente, em detrimento da finalidade precípua da obra de
arte. Porém, depois o escritor modernista se deu conta de que a criação
artística é também humana em seu modo de fazer, e portanto moral e
social, e buscou criar uma ética a partir da própria criação artística.
Complementando o que ele havia dito em “O artista e o artesão”, em que
valoriza o artesanato e a técnica e critica o individualismo, Mário
destaca em “Elegia de Abril” a importância da técnica pessoal do artista
e a sua maneira particular de realizar o assunto, usando a sua
sensibilidade.
Em “A Meditação sobre o Tietê”, o escritor parece querer
valorizar, sobretudo, a própria especificidade poética, de modo que o
poema possa falar por si próprio, a partir da experiência da linguagem.
Segundo Heidegger, o poema, embora não se furte de ser uma expressão
humana, deve ser capaz de falar por si próprio, de modo inaugural, e não
servir de instrumento para o poeta expressar seus ideais ou os seus
sentimentos: “a linguagem fala”. 720
Mário destaca o valor da consciência moral do fazer artístico, que
exige o instrumento (obra de arte) e também se utiliza da beleza, mas
não deve jamais “perder de vista os outros homens”, ou seja, não deve
se furtar de seus compromissos com a sociedade e com o seu tempo e
nem perder de vista a “influência moralizadora do artesanato, da técnica
no grande sentido”. 721 Ele chama a atenção para a necessidade de o
artista se preocupar não apenas com a Beleza – e a busca da perfeição
estética –, mas sobretudo com a moral do fazer artístico, que está
vinculada com o caráter humano da criação artística e se utiliza da
beleza (em minúsculo) – que é uma consequência natural da técnica do
objeto.
Ao escrever Lira Paulistana, Mário finalmente pôde mergulhar
livremente em seu eu lírico, sem precisar fazer concessões formais que
prejudicavam a fluidez de sua poesia. Diante das contingências de seu
momento histórico, o poeta modernista passou a considerar que, ao
menos naquele momento, o artista não poderia se abster de participar

720
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Editora
Vozes/Bragança Paulista; São Francisco: Editora Universitária, 2003, p. 22.
721
Carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, 15 jun 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 256-257.
ativamente da vida política. Mas, para isso, não seria necessário fazer
“arte empenhada ou “poesia de combate” – bastaria deixar a poesia falar
por si mesma.
Ele percebe que toda poesia é, em última instância, “poesia de
circunstância’, uma vez que a arte está sempre associada ao contingente
e transitório – embora também mantenha relação com o Belo
permanente e universal. A arte não deveria, portanto, ser vista como
instrumento para o artista expressar um pensamento preconcebido ou
fazer proselitismos (expressar a cultura brasileira, fazer militância
política); se ela tem algo a dizer, deve falar por si mesma, a partir da
técnica pessoal do artista, que traz ao fundo o social.
A questão, portanto, não é fazer ou não poesia de circunstância,
social ou de combate; o que importa mesmo não é o assunto, mas o
modo como o artista realiza o assunto. No momento em que Mário
deixou de fazer arte empenhada, a poesia pôde então falar por si mesma.
Não a arte desinteressada, essa outra utopia, nem a arte empenhada,
refém da prosa, mas uma fusão da função poética e função referencial,
do coletivo e individual, como observaram Antonio Candido e José
Aderaldo Castello. 722
Como procuramos argumentar, a distinção entre “poesia de
circunstância” e “poesia desinteressada” se mostra, antes, uma aporia,
pois, como aponta Mário, realizar a arte atendendo a critérios estéticos
não exclui os aspectos morais e sociais, uma vez que a arte é
fundamentalmente humana e social em seu modo de fazer. Não se trata
propriamente de fazer ou não poesia de circunstância, social ou de
combate; o que importa mesmo é o artefazer, o modo como o artista
realiza a sua criação. Um poema pode ser arte de combate político, mas
não como instrumento para propagar ideias preconcebidas pelo seu
autor, e sim a partir dos elementos que se apresentam na criação do
poema e que a palavra evoca no momento da criação. A ênfase aqui está
no processo criativo como o surgimento de algo novo, até então ausente,
que foge ao condicionamento da linguagem cotidiana e instrumental,
bem como ao discurso preconcebido, retórico e proselitista.
A obra de arte se realiza, portanto, em uma esfera própria, mas
ainda assim vinculada ao artista, a seu modo de fazer e à sociedade – o
que assegura o caráter humano, moral e social da arte. O mais
importante, nessa perspectiva, é que a poesia se realize plenamente, seja
qual for o seu motivo e a sua circunstância. Nas palavras de Henriqueta:

722
CANDIDO, Antonio. CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura
brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977, p. 85.
“Só a arte realizada é verdadeiramente arte de combate. Como você é
grande!723
Ao fazer uma reflexão sobre os rumos da poesia contemporânea,
Mário faz um contraponto ao abuso do individualismo e das veleidades
da inflação do ego na criação artística, valorizando aspectos da poesia
clássica e romântica, como o domínio técnico, a atenção às exigências
da matéria-prima artesanal – o que não implica numa volta ao passado,
mas numa busca de atualização da tradição literária no presente. Tanto
Mário quanto Henriqueta pareciam buscar no escolasticismo e no
pensamento de São Tomás de Aquino – reinterpretado por Jacques
Maritain – as soluções para corrigir as distorções que percebiam na arte
de seus contemporâneos, como o individualismo, a intelectualização
exagerada, as perífrases, as analogias herméticas, o preciosismo e o
artificialismo ao modo parnasiano.
O conteúdo dessa análise corrobora, portanto, as hipóteses
iniciais – a de que a correspondência entre Mário de Andrade e
Henriqueta Lisboa revela uma tensão entre “poesia de circunstância” ou
“arte de combate” e “poesia de permanência” ou “arte desinteressada”.
Também buscou-se mostrar como Mário amadureceu a sua
concepção de poesia, de modo a conseguir unir os elementos éticos com
os estéticos na criação artística. Considerando-se os aspectos éticos e
políticos, verificou-se como Mário buscava subsídios para elaborar uma
concepção de poesia que fosse capaz de unir o belo ao útil humano, o
estético ao ético.
Com relação a Henriqueta, confirmou-se a premissa de que a
poeta mineira atualizou a sua poesia e desenvolveu a sua técnica,
ganhando o reconhecimento da crítica e de seus pares. Porém, talvez
porque tenha escolhido seguir um caminho próprio, sem participar de
grupos e escolas, e também devido a certo hermetismo de linguagem, a
poeta mineira se manteve ainda pouco conhecida do grande público.
Como pudemos perceber nas diversas críticas à sua poesia,
Henriqueta era muito elogiada pelo domínio técnico e pela perfeição
formal de sua poesia, mas enfrentava certa resistência dos críticos
principalmente com relação ao tratamento dado a temas ligados à
espiritualidade, por incorrer em certo hermetismo.
Ela define a poesia como “a contingência do eterno no efêmero”
e declara a sua ambição de, com ela, “fundir o perene e o transitório”.724

723
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 22 out. 1944. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 301.
A poeta mineira vivia o permanente conflito entre o caminho da arte e o
da religião. Ela queria atualizar a sua poesia, mas encarava o mundo
material e contingente com desconfiança e distanciamento crítico.
Para a poeta mineira, a obra de arte não deve ser apreciada em si
mesma, na materialidade de sua linguagem, mas também se deve
considerar, intuitivamente, aquilo que a palavra não revela, guardando
em seu silêncio a essência das coisas. Em sua concepção, o poema,
embora possa constituir uma estrutura com certa autonomia em si
mesma, se realiza na subjetividade humana – como presságio e augúrio
de uma realidade mais sublime.
Porém, ao elaborar uma concepção de poesia que não se baseia
propriamente no poder da linguagem, mas requer o auxílio da
subjetividade e da empatia espiritual, Henriqueta corre o risco de perder
a capacidade de se comunicar com o leitor. Ela muitas vezes deslocava o
foco da experiência particular e cotidiana do artista para um ponto de
vista universal, colocando o geral em primeiro plano e tornando a poesia
mais conceitual e abstrata, em prejuízo do lirismo e da materialidade da
linguagem.
Podemos pensar que, a partir de sua experiência poética, um
poeta pode, eventualmente, alcançar um sentido mais abstrato e
universal; o problema seria partir do universal, dos valores eternos, para
o particular, e não o oposto. A questão que se coloca não é abordar ou
não “valores eternos” ou fazer “poesia de combate”. Assim como
acontecia com Mário, o problema não seria propriamente o assunto
tratado, mas o modo de abordar o assunto.
Na poesia de Henriqueta, as palavras – e o mundo material –
figuram como uma espécie de metáfora de uma realidade superior, que
cabe ao leitor desvelar e encontrar o sentido, não bastando, portanto,
como fontes de significação “imanente” e capazes de trazer o sentido em
si mesmas. A própria linguagem figura como uma metáfora ou um
símbolo do mistério da criação, do transcendente e imaterial.
Por outro lado, podemos pensar que a decifração do mundo e do
mistério realizada pela poeta mineira não necessariamente limita a sua
poesia ao hermetismo, pois muitas vezes aquilo que é objeto de sua
intuição se converte em belas imagens, capazes de repercutir na
compreensão da inteligência e na sensibilidade dos sentidos. Como
procuramos demonstrar, a poesia de Henriqueta ganha força à medida

724
Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 30 mar. 1943. SOUZA,
Eneida Maria de. (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta
Lisboa. São Paulo: Peirópolis / Edusp, 2010, p. 250-251.
que a poeta se sujeita a viver “o desgosto e a necessidade da vida”,
talvez porque assim ela adquira mais realidade humana e se torne menos
cifrada e mais capaz de se comunicar com o leitor.

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