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Diego A. Galeano
2012
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em História Social
Diego A. Galeano
Rio de Janeiro
Julho de 2012
Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais entre
Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930.
Diego A. Galeano
Aprovada por:
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Presidente, Prof.
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Prof.
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Prof.
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Prof.
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Prof.
Rio de Janeiro
Julho de 2012
GALEANO, Diego A.
Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais entre Rio de Janeiro e Buenos
Aires, 1890-1930/ Diego Antonio Galeano - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2012.
x, 384 f.: Il.; 31 cm.
Orientador: Marcos Luiz Bretas da Fonseca
Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de Pós-
Graduação em História Social, 2012.
Referências Bibliográficas: f. 346-384.
1. História da polícia. 2. História social do crime. 3. História transnacional. 4. Cooperação
policial sul-americana.
I. Fonseca, Marcos Luiz Bretas da. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em História Social. III. Criminosos
viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires,
1890-1930.
RESUMO
Diego A. Galeano
Rio de Janeiro
Julho de 2012
ABSTRACT
Traveling Criminals, Modern Cops. Police circulations between Rio de Janeiro and
Buenos Aires, 1890-1930
Diego A. Galeano
The thesis looks into formal and informal exchanges between the urban police
forces of Rio de Janeiro and Buenos Aires, which were consolidated over the first
two decades of 20th century. This network developed over a period during which
policing institutions had undertaken considerable internal reforms, which shared
common problems in the kinds of urban development experienced by port cities with
an influx of European immigrants. These cities were becoming conglomerates where
people hardly knew each other and the State had to develop new technologies to
manage urban society: one of the main challenges was to control a population in
constant movement, as well as with new crime phenomena that acquired a
transnational status. In order to deal with this problem, proposals were made to
coordinate urban police forces, starting a period of meetings, trips, information and
technological exchange. The culmination of this process was the organization of two
Police Conferences in Buenos Aires in 1905 and 1920, meetings in which the
category of "traveling criminal" occupied a more central place.
Rio de Janeiro
Julho de 2012
A Giuseppe Galeano, inmigrante italiano
que, procedente del puerto de Génova,
desembarcó en Buenos Aires el primero de
mayo de 1909. Día turbulento, célebre por los
disparos policiales contra la multitud
anarquista.
vi
Agradecimentos
vii
Hirose, Flora Charner, Yon Asdks, Tuomas Saikkonen e aos Fernandos, Borbolleto
Iaderosa e Sathler Breder, que também foram grandes companheiros de banquetes,
dias de praia e carnavais.
À minha família e amigos paulistas, aos que devo muito do que aprendi do
Brasil. Bernadete Fadel, Luciana Fadel, Tibor Hary e Gustavo Fadel Hary que se
converteram em uma parte fundamental da minha vida nesses últimos cinco anos. A
chácara de Itanhaém foi, sem dúvidas, o melhor lugar para escrever. Em cada um dos
dias que passei no litoral de São Paulo, conheci pessoas maravilhosas que hoje são
grandes amigos: quero agradecer particularmente a companhia e amizade de Viviane
e Monique. E no interior de São Paulo, em Santa Rita do Passa Quatro, muitas foram
as pessoas que rapidamente me trataram como parte da família: Erika, Paulinho,
Victor, os tios Nim, Vera, Paulo, Neuza, Nenê, Carmen e Alba Puig. Obrigado a
todos. A Vinícius Fadel, meu companheiro, por suportar todas as loucuras que
rodeiam meu trabalho de historiador e, em particular, a escrita de uma tese. Foi meu
grande suporte nestes anos em que transitei pelo doutorado com constantes mudanças
de ânimo, e também algumas perdas de seres queridos. Sua perseverança e
estabilidade se converteram em colunas fundamentais.
Ao meu círculo íntimo de La Plata, que segue sendo, mesmo à distância, outro
grande suporte. A meus pais, Antonio Galeano e Alejandra Graiver, e à minha irmã
Victoria Galeano, nunca deixarei de os agradecer pela absoluta incondicionalidade.
À Lucía, Vicky, Ana, Caro, Toto, Ramiro, Martín e Juan, amigos de tantos anos, que
souberam – mesmo com algumas inevitáveis reclamações – transmitir a certeza de
que ali estão, apesar das distâncias que o doutorado e a vida em outro país impôs. À
minha tia Andrea, Nito e María Elina, meus tios Susana e Nenel, quem têm sido,
cada um a sua maneira, absolutamente vitais. À minha avó Carmela, que desde
criança me contava histórias sobre o navio que a trouxe da Itália, e nessas histórias
leio muito das minhas fascinações atuais com as viagens e os viajantes. A ela dedico
especialmente esta tese, agora que perdeu sua filha, a querida tia Chicha, cuja morte
foi um golpe muito duro para mim nos trechos finais da tese.
viii
Mariana Di Bello, Luis Santarsiero e, em especial, à minha pequena debilidade,
Sabrina Calandrón. Também à própria universidade onde me formei em sociologia e
onde fui docente pela primeira vez, além de dar meus primeiros passos como
pesquisador: a ela, a seus espaços, à sua biblioteca, às livrarias que a rodeiam, aos
livreiros que as habitam, a meus bares favoritos, devo muito do que hoje sou.
Aos bibliotecários e arquivistas das distintas instituições a que esta tese foi me
levando. Estou agradecido pelo tempo dedicado por muitos funcionários dos
arquivos nacionais da Argentina e Brasil, do Arquivo Histórico do Itamaraty e de
diversas seções da Biblioteca Nacional Argentina. Seria difícil mencionar a todos,
mas sem eles, nunca é demais dizer, este trabalho teria sido impossível.
ix
para de crescer e acolher novos colegas. Dentro deste grupo, uma menção particular
merece minha mestra, conselheira e camarada de infinitas aventuras policiais: Lila
Caimari, a quem devo grande parte da minha formação como historiador e, por que
não, como pessoa.
x
Sumário
Abreviaturas ....................................................................................................... 4
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 10
1. “Fotografia ao interior de um dos quartos”. Fonte: AN, Fundo IJJ7, Caixa 133,
Processo de Expulsão de Francisco Barbieri, 1928 [pag. 40].
3. Caricatura de Deodoro da Fonseca. Fonte: BNA, Don Quijote, Buenos Aires, 15 fev.
1891 [pag. 81].
6. “El Canfinflero”. Fonte: BNA, Sherlock Holmes, Año II, n. 58, Buenos Aires 6 ago.
1912, p. 29 [pag. 96].
7. Viagem a Paris de Manuel Mujica Farías. Fonte: Revista de Policía, Año IV, n. 80,
Buenos Aires, 16 set. 1900, p. 117 [pag. 129].
10. Fotografia Judiciária da Polícia da Capital Federal (1896). Fonte: AN, Fundo GIFI,
6C8 [pag. 152].
11. Manuel Rossi, retratado em agosto de 1889. Fonte: BNA, Galería de Ladrones,
1888-1891. Buenos Aires, 1892, ficha 34 [pag. 152].
12. Ficha antropométrica de Justino Carlo, vulgo Carletto (frente). Fonte: BNB,
Hermeto Lima, A identidade do homem pela impressão digital, 1908, p. 16 [pag.
163].
14. Luciano Ludueña, retratado em julho de 1889. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones
de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1887, ficha 40 [pag. 188].
16. “El Doctor Beazley, por Mayor”. Fonte: BNA, Caras y Caretas, n. 22, Buenos
Aires, 4 mar. 1899 [pag. 189].
17. “La Policía de Río de Janeiro. El viaje del Doctor Beazley”. Fonte:BNA, Revista de
Policía, n. 55, Buenos Aires, 1 sep. 1899 [pag. 191].
18. “Despedida del Presidente Campos Sales – Grupo de Comisarios”. Fonte: BNA,
Revista de Policía, n. 84, Buenos Aires, 16 nov. 1900, p. 81 [pag. 192].
19. “Os Srs. Vucetich e Felix Pacheco trabalhando no Gabinete de Identificação do Rio
de Janeiro”. Fonte: Renascença. Revista mensal de letras, sciencias e artes, n. 49,
Rio de Janeiro, 1908, p. 89 [pag. 201].
20. “Dr. Félix Pacheco”. Fonte: BNA, Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15
sep. 1905, p. 1 [pag. 202].
23. Ficha individual dactiloscópica. Frente e verso. Fonte: AN, IJJ7 179, 1927 [pag.
211].
24. Prontuário de Cayetano Amadeo Piaggio. Fonte: AN, GIFI 6C 454, 1913 [pag. 218].
6
25. Conferencia Sudamericana de Policía (1920). Fonte: AGN, sección de fotografías,
Inv. 189.824 [pag. 221].
26. “Discurso del delegado paraguayo” (1920). Fonte: AGN, sección de fotografías, Inv.
92.640 [pag. 223].
27. “Fotografia da Wild Bunch”. Fonte: Forth Woth Five, fotografia de John Schwartz,
Texas, 1900 [pag. 229].
28. Cartaz com pedido de captura da Wild Bunch. Fonte: BNA, Boletín de Policía, jan.
1906, s/n. [pag. 234].
29. Manuel Aróztegui, “El apache argentino” (circa 1913). Fonte: BNA, Coleção de
Partituras, Inv. 179639 [pag. 246].
30. “La Mafia Criolla”. Fonte: BNA, Sherlock Holmes, año III, n. 80, 9 ene. 1923, p. 32
[pag. 250].
31. Feliciano Mauriño, retratado em junho de 1889. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones
Conocidos, Buenos Aires, 1904, ficha 202 [pag. 252].
32. Retrato do “Rusito de Palermo”. Fonte: BNA, Magazine Policial, Año II, n. 9,
Buenos Aires, abr. 1923, p. 24 [pag. 253].
33. “Ladrões batedores de carteiras”. Fonte: BNB, Revista Criminal, ano II, n. 18, Rio
de Janeiro, jul. 1928, p. 73 [pag. 259].
36. Ficha de identificação de Angelo Funes. Fonte: AN, Fundo IJJ7 139, 1922 [pag.
267].
37. Retrato de Arthur Narbona. Fonte: AN, Fundo IJJ7 142 (1927) [pag. 269].
38. Retrato de Arthur Narbona. Fonte: BNB, Revista Criminal, Ano I, n. 8, Rio de
Janeiro nov. 1927, p. 33 [pag. 271].
7
39. Retrato de Alfredo Sinquetti. Fonte: AN, Fundo IJJ7 126 (1927) [pag. 274].
40. Sir John Bulner. Fonte: BNA, Boletín de Policía, Ano I, n. 11, Buenos Aires, 30 sep.
1905, p. 22 [pag. 289].
41. “Juan Smith”. Fonte: BNA, Boletín de Policía, año I, n. 9, Buenos Aires, 30 ago.
1905, p. 19 [pag. 298].
42. “Dr. Antônio”. Fonte: Memórias de um rato de hotel (seg. ed.), p. 293 [pag. 298].
43. Ángel Artire (a) Minga-Minga. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones de la Capital,
1881-1891. Buenos Aires, 1881, ficha 1 [pag. 310].
44. Ángel Artire (a) Minga-Minga, retratado em abril de 1889. Fonte: CEHP, Galería de
Ladrones Conocidos, Buenos Aires, 1904, ficha 171 [pag. 310].
45. Retrato de Minga-Minga. Fonte: Vicente Reis, Os ladrões no Rio (1903), p. 140
[pag. 313].
46. Emilio Salvanasqui (a) Narigueta. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones de la Capital,
1881-1891. Buenos Aires, 1881, ficha 100 [pag. 314].
47. Retrato de Narigueta. Fonte: Vicente Reis, Os ladrões no Rio (1903), p. 141 [pag.
314].
48. Nota falsa de duzentos mil réis. Fonte: Elysio de Carvalho, A falsificação dos nossos
valores circulantes, 1912 [pag. 317].
49. “Trun- trun. Álbum da Seção de Fraudes y Estelionatos da Polícia da Capital. Fonte:
BNA, Colección Fotografías, c. 1912 [pag. 324].
8
Nota sobre as traduções
1
LÓPEZ, Leopoldo. Reseña Histórica de la Policía de la Capital. Buenos Aires: Imprenta y
Encuadernación de la Policía, 1911. Estudei a tradição dos historiadores da policía argentina em:
GALEANO, Diego. “El ojo y la pluma. La cultura narrativa de la policía en la ciudad de Buenos
Aires”. In: SOZZO, Máximo (coord.). Historias de la cuestión criminal en la Argentina. Buenos
Aires: Ediciones del Puerto, 2009, p. 214-220.
depois doou à polícia sua biblioteca pessoal.2 O manuseio da documentação do
arquivo ficou reservado ao círculo de policiais escritores nucleados em torno da
figura do Romay. Depois de sua morte, o Centro de Estudos – que agora leva seu
nome – passou a depender da Divisão de Museus e Pesquisas Históricas.
Alguns anos antes de ser iniciada essa pesquisa, ao menos dois historiadores
tiveram acesso ao arquivo policial, localizado num edifício à Rua Chacabuco, em
Buenos Aires.3 Lá estavam os livros de registros de ocorrências e a documentação
das seções de Investigação, Ordem Pública e Ordem Social da Polícia da Capital. No
entanto, quando pedi para ter acesso ao acervo, me explicaram que o material se
havia perdido numa inundação. O que estava ao meu alcance era a biblioteca de
Romay, engrossada por doações posteriores, diminuída também por algumas
“perdas” e guardada nos altos de uma delegacia do bairro Once. Além dos policiais
aposentados que a cada tanto visitavam o lugar, a biblioteca é atendida por agentes
em atividade que sofreram algum tipo de incidente, histórias cujas filigranas tive que
escutar, contra minha vontade, durante os meses em que a frequentei.
2
Ver a disposição circulada pela ordem do dia 3 de outubro de 1962 em: ROMAY, Francisco L.
Historia de la Policía Federal Argentina. Orígenes y evolución, Tomo 1, 1580-1820. Buenos Aires:
Biblioteca Policial, 1963, p. 7-8.
3
Refiro-me aos trabalhos de GAYOL, Sandra. Sociabilidad en Buenos Aires. Hombres, Honor y
Cafés (1862-1910). Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2007; e MOYA, José. Cousins and strangers.
Spanish immigrants in Buenos Aires, 1850-1930. Berkeley: University of California Press, 1998.
4
GALEANO, Diego. La policía en la ciudad de Buenos Aires, 1867-1880. Buenos Aires, Tesis de
Maestría en Investigación Histórica, Universidad de San Andrés, 2010.
11
Certo dia, encontrei uma fileira de livros que me chamou especialmente a
atenção. A biblioteca tem duas salas conectadas, sendo uma ocupada por leitores e
outra reservada aos empregados. Na parede do fundo dessa segunda sala havia várias
estantes com tratados e manuais de criminalística escritos em diversos idiomas. Mais
abaixo, empilhavam-se obras vinculadas à Interpol, delitos complexos e
criminalidade transnacional. No extremo dessa fila, havia uns vinte livros sobre as
polícias sul-americanas, em particular do Brasil e do Uruguai. Vários textos escritos
por funcionários da polícia carioca (Vicente Reis, Félix Pacheco, Aurelino Leal)
conseguiram nesse dia desviar minha atenção do objeto de tese. Nesse momento,
porém, nada me inquietou mais que as atas de duas conferências sul-americanas de
polícia celebradas em Buenos Aires em 1905 e 1920.5 Saí da biblioteca com cópias
dessas atas em minha máquina fotográfica e com a intenção de produzir um trabalho
sobre as conexões entre os vigilantes do sul. Não imaginava, então, que era o
primeiro passo para minha pesquisa de doutorado e, muito menos, que por isso
terminaria vivendo no Brasil.
Essa ideia apareceu um pouco mais tarde quando, por recomendação de Lila
Caimari, minha orientadora no mestrado, consultei uma obra chamada Galería de
Ladrones de la Capital. Era uma coleção de duzentos retratos de indivíduos
fotografados e detidos em diversas ocasiões pela polícia. O compilador era o
Comissário de Pesquisas José S. Álvarez, que pouco depois, sob o pseudônimo de
“Fray Mocho”, ficaria conhecido no ambiente das letras como escritor e diretor da
famosa revista ilustrada Caras y Caretas. Cada um desses retratos estava
acompanhado por uma descrição dos antecedentes e da carreira delitiva. O semblante
do primeiro surpreendeu-me muitíssimo. Esperava encontrar ladrões de aspecto
lastimoso, os gatunos que muita bibliografia apresenta como clientes fixos dos
xadrezes policiais. Mas Ángel Artire (vulgo, Minga-Minga), o retrato número um,
5
CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La
Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo
(R. O. del Uruguay). Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital Federal,
1905.CONFERENCIA INTERNACIONAL SUDAMERICANA DE POLICÍA. Argentina, Bolivia,
Brasil, Chile, Paraguay, Perú, Uruguay: Convenios y Actas. Buenos Aires: Imprenta J. Tragant,
1920.
12
ostenta um elegante penteado, bigodes prolixamente cortados e um olhar sedutor que
bem poderia ser o de um retrato artístico.6
6
REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Tomo 1. Buenos
Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1887, p. 6.
7
Idem, p. 8.
8
Idem, p. 40.
9
CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La
Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo
(R. O. del Uruguay). Op. Cit., p. 20.
13
delegado carioca Vicente Reis. Não apenas topei com relatos sobre criminosos
viajantes num tom muito similar aos anteriores, como no caso de Adolpho Silva,
“filho de uma grande família de artistas do conto do vigário”, vinculado a outros
célebres “gatunos” que chegaram na década de 1880 “pelo Rio da Prata”.10 Além
disso, numa seção dedicada a enumerar os vigaristas que atuavam no Rio de Janeiro,
aparecia Minga-Minga, o mesmo ladrão e estelionatário que dava início à galeria de
ladrões portenhos. Quem era este protagonista dos relatos de policiais argentinos e
brasileiros? Uma extravagância da memória policial pinçada da categórica maioria
de ladrões comuns? Ou acreditamos na hipótese do delegado chileno sobre a
presença de uma verdadeira casta de criminosos viajantes? O que buscavam os
policiais com estas conferências sul-americanas? E teve o convênio que firmaram
algum efeito sobre o trabalho cotidiano de vigilância?
Mesmo tomando com extremo cuidado as acusações que estes textos faziam
sobre sujeitos como Minga-Minga, essa primeira coincidência – ver seu rosto
estampado em livros daqui e de lá – era um forte indício da efetiva mobilidade
territorial de certas práticas delitivas na América do Sul. A figura do criminoso
viajante se insinuava além das acusações e fantasias policiais. Assim que fiquei
sabendo que a documentação manuscrita da polícia carioca durante a Primeira
República, diferentemente da situação que havia encontrado em Buenos Aires, era
conservada no Arquivo Nacional, foi apenas questão de cruzar a fronteira. Era
possível se aventurar numa história social dessas práticas.
10
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903, p. 150-155.
14
países, mas a intensidade dos intercâmbios concretos variava muito de acordo com as
contingências dos laços bilaterais. Desde finais do século XIX, o vínculo entre as
polícias das capitais da Argentina e Brasil foi um dos mais fortes da região. De fato,
a conferência sul-americana de 1905 foi decidida no Rio de Janeiro, durante o
Congresso Científico Latino-americano, por representantes de ambos os países.
11
Esta aproximação foi trabalhada recentemente por PREUSS, Ori. Bridging the Island. Brazilian´s
Views of Spanish America and Themselves, 1865-1912. Frankfurt/ Madri: Iberoamericana-Vervuert,
2011, p. 47-115.
12
GINZBURG, Carlo. El hilo y las huellas. Lo verdadero, lo falso, lo ficticio. Buenos Aires: Fondo
de Cultura Económica, 2010, p. 15.
15
intensificação dos vínculos entre ambos os países é, sem dúvida, um dado decisivo.
Também foi determinante a disponibilidade de um arquivo no Brasil com fontes
manuscritas da Polícia da Capital Federal. No entanto, o Arquivo Nacional do
Uruguai também conserva a documentação de sua polícia metropolitana. Nesse
sentido, um estudo sobre os intercâmbios entre Montevidéu e Rio de Janeiro teria a
vantagem relativa de contar com as vozes de ambos os lados. Mas na posição na qual
me encontrava, uma pesquisa assim apresentava outros contratempos. Seria
necessário assimilar a história de dois países (e a organização de dois arquivos
nacionais) que, em comparação com a Argentina, eu conhecia bem pouco. Além
disso, teria que lidar com uma desproporção enorme entre os estudos históricos sobre
as polícias no Brasil e no Uruguai.13
13
Até onde chega nosso conhecimento, apenas uma obra, escrita em três volumes por um delegado,
oferece um panorama da história da polícia no Uruguai: RODRÍGUEZ, José A. Evolución histórica
de la policía uruguaya. Montevideo: Byblos, 2005.
14
Ver, por exemplo: BAYLEY, David H. Patterns of Policing: A Comparative International Analysis.
New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1985. REINER, Robert. The Politics of the Police.
Londres: Wheatsheaf, 1992. MONJARDET, Dominique. Ce que fait la police. Sociologie de la force
publique. Paris: La Découverte, 1996.
16
análise centrava-se então em perguntas sobre a organização dos aparelhos
repressivos no processo de construção dos Estados nacionais e o papel da polícia nos
projetos de disciplinamento das classes populares concebidos pelas elites urbanas.15
Mais tarde, num diálogo crítico com esses trabalhos, outros autores acharam
necessário apresentar os policiais como sujeitos capazes de atuar, reconhecendo
interesses próprios e uma visão do mundo particular. Os conflitos entre distintos
corpos policiais, enfrentamentos nas ruas de vigilantes com militares e tensões com o
campo judiciário numa luta pelo monopólio da força pública foram questões que
adquiriram maior visibilidade.16
15
Para o Brasil: NEDER, Gizlene (et. al.). A Polícia na Corte e no Distrito Federal, 1831-1930. Rio
de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1981. CRUZ, Heloisa. “Mercado e
Polícia: São Paulo, 1890-1915”, Revista Brasileira de História, Vol. 7, n. 14, São Paulo, 1987, p. 115-
130. HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do
século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. No caso argentino: KIRK
BLACKWELDER, Julia. “Urbanization, Crime, and Policing. Buenos Aires, 1880-1914”. In:
JOHNSON, Lyman (ed.). The Problem of Order in Changing Societies: Essay on Crime and Policing
in Argentina and Uruguay. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1990, p. 65-87. RUIBAL,
Beatriz. Ideología del control social: Buenos Aires, 1880-1920. Buenos Aires: Centro Editor de
América Latina, 1992.
16
GAYOL, Sandra. “Entre lo deseable y lo posible. Perfil de la Policía de Buenos Aires en la segunda
mitad del siglo XIX”, Estudios Sociales, año VI, n. 10, Santa Fe, 1996, p. 123-138. BRETAS, Marcos
Luiz. A guerra das ruas. Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1997.
17
MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário, 1890-1920. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979. SURIANO, Juan. Trabajadores, anarquismo y Estado represor: de la Ley
de Residencia a la Ley de Defensa Social (1902-1910). Buenos Aires: Centro Editor de América
Latina, 1988.
17
trabalhadora, o mecanismo da polícia é assumido como natural: uma ferramenta das
classes dominantes voltada à vigilância dos subalternos.18
18
Uso a expressão “polo oposto” de MATTOS, Marcelo Badaró. “Greves e repressão policial aos
sindicatos no processo de formação da classe trabalhadora carioca (1850-1910)”. In: MATTOS,
Marcelo Badaró (coord.). Trabalhadores em greve, polícia em guarda. Rio de Janeiro: Bom
Texto/Faperj, 2004, p. 52.
19
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque: Campinas: Editora da Unicamp, 2001. SALVATORE, Ricardo. “Violencia sociopolítica
y procesamiento judicial en la Argentina (1890-1920)”. In: SOZZO, Máximo (coord.). Historias de la
cuestión criminal en Argentina. Buenos Aires: Ediciones del Puerto, 2009, p. 293-311.
20
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. MENEZES, Lená Medeiros de. Os
estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio (1890-1930). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1992. CAULFIELD, Susan. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1949). Campinas: Editora da Unicamp, 2000. SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo:
uma historia social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. GAYOL, Sandra. Honor y duelo en la Argentina moderna. Buenos
Aires: Siglo XXI, 2008. CHAZKEL, Amy. Laws of Chance. Brasil´s Clandestine Lottery and the
Making of Urban Public Life. Durham: Duke University Press, 2011. MAGALHÃES, Felipe.
Ganhou, Leva! O jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960). Rio de Janeiro: Editora da Fundação
Getulio Vargas, 2011.
21
Para o caso brasileiro, ver: NETO, Francisco Linhares F. Vigilância, impunidade e transgressão.
Faces da atividade policial na capital cearense (1916-1930). Dissertação de Mestrado em História
Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005. SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Lei,
cotidiano e cidade: Polícia Civil e práticas policiais na São Paulo republicana (1889-1930). São
Paulo: IBCCRIM, 2009. ROSEMBERG, André. De Chumbo e Festim. Uma história da polícia
paulista no final do Império. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2010. MAUCH, Cláudia. Dizendo-se
autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre, 1896-1929. Tese de Doutorado em História,
18
nenhuma uniformidade pode ser aceita sem cautela. Essa ampliação do espaço
abrangido permite desencadear novas perguntas sobre as formas de articulação entre
as polícias das províncias ou estados e, dentro desse mapa, o rol desempenhado pelos
corpos de segurança das capitais, antes da formalização das polícias federais a
década de 1940.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. Na Argentina: RAFART, Gabriel.
Tiempo de violencia en la Patagonia. Bandidos, policías y jueces, 1890-1940. Buenos Aires:
Prometeo, 2008. BOHOSLAVSKY, Ernesto. “El brazo armado de la improvisación. Aportes para una
historia social de los policías patagónicos”. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto; SOPRANO, Germán. Un
Estado con rostro humano. Funcionarios e instituciones estatales en Argentina (desde 1880 a la
actualidad). Buenos Aires: Prometeo, 2010, p. 215-242. FERNÁNDEZ MARRÓN, Melisa. “Éramos
Robinsones que, en lugar de quedar atrapados en una isla, estábamos aislados en nuestro propio
territorio: la institución policial pampeana en los inicios del siglo XX”. In: DI LISCIA, María Silvia;
LASALLE, Ana María; LLUCH, Andrea (eds.). Al oeste del paraíso. La transformación del espacio
natural, económico y social en la Pampa Central (siglos XIX y XX). Santa Rosa: Universidad
Nacional de La Pampa/Miño y Dávila, 2007, p. 155-178. BARRENECHE, Osvaldo. “Construyendo la
Casa de Piedra. La Policía de la Provincia de Buenos Aires durante la primera mitad del siglo XX”.
In: GALEANO, Diego; KAMINSKY, Gregorio (Coord.). Mirada (de) uniforme. Historia y crítica de
la razón policial. Buenos Aires: Teseo, 2011, p. 153-184.
22
KALMANOWIECKI, Laura. “Origins and Applications of Political Policing in Argentina”, Latin
American Perspectives, Vol. 27, n. 2, Mar. 2000, p. 36-56. CUNHA, Olívia M. Gomes da. Intenção e
Gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2002. RODRIGUEZ, Julia. “South Atlantic Crossings: Fingerprints,
Science, and the State in Turn-of-the-Century Argentina”, The American Historical Review, Vol. 109,
n. 2, 2004, p. 387-416. FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Dos Autos da Cova Rasa. A
identificação de corpos não-identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960.
Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2007. SAMET, Henrique. Construção de um Padrão
de Controle e Repressão na Polícia Civil do Distrito Federal por meio do Corpo de Investigações e
Segurança Pública (1907-1920). Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em
História Social, UFRJ, 2008. GARCÍA FERRARI, Mercedes. Ladrones conocidos / sospechosos
reservados. Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905. Buenos Aires: Prometeo, 2010.
GALEANO, Diego; GARCÍA FERRARI, Mercedes. “Cartographie du bertillonnage. Le système
anthropométrique en Amérique latine: circuits de diffusion, usages et résistances”. In: PIAZZA, Pierre
(dir.). Aux origines de la police scientifique. Alphonse Bertillon, précurseur de la science du crime.
Paris: Karthala, 2011, p. 308-331.
19
Os acervos das Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), recolhidos em
diferentes arquivos estaduais e bibliotecas públicas do Brasil, mobilizaram uma
importante quantidade de trabalhos sobre a polícia no período de Vargas, a República
Nova e os posteriores governos militares.23 Mais recentemente, na Argentina, foi
aberto o arquivo da División de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos
Aires (DIPBA) e algumas pesquisas baseadas em sua documentação foram
difundidas.24 Embora a conquista de novos arquivos, postos ao alcance das mãos
acadêmicas, seja por vezes acompanhada de retóricas iluministas, cobertas de
esperanças sobre a possibilidade de revelar verdades ocultas pelas trevas ditatoriais, é
muito importante não perder de vista um princípio: a melhor forma de inquirir nas
impressões que os arquivos policiais nos deixaram é compreender cabalmente a
instituição produtora desses papeis.
23
Alguns exemplos, sem considerar a profusa bibliografia sobre a ditadura militar: CARNEIRO,
Maria Luiza Tucci. Livros proibidos, idéias malditas: o DEOPS e as minorias silenciadas. São Paulo:
Ateliê, 2002. ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. O risco das idéias: intelectuais e a polícia
política (1930-1945). São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2006; MAGALHÃES, Fernanda Torres. O
suspeito através das lentes: o DEOPS e a imagem da subversão (1930-1945). São Paulo:
Humanitas/Imprensa oficial/Fapesp, 2006.
24
FUNES, Patricia. “Los libros y la noche. Censura, cultura y represión en la Argentina a través de los
servicios de inteligencia del Estado”, Dimensões, n. 19, Vitória, 2007, p. 133-155. KAHAN,
Emmanuel. Unos pocos peligros sensatos. La Dirección de Inteligencia de la Provincia de Buenos
Aires ante las Instituciones Judías de la Ciudad de La Plata. La Plata: Edulp, 2009.
25
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009, p. 11.
20
1868, pela primeira vez, as funções do “encarregado do arquivo” e os procedimentos
rotineiros para ordenar documentos, expedientes, ofícios e livros com índices para
facilitar a busca nas estantes.26
26
GALEANO, Diego. Escritores, detectives y archivistas. La cultura policial en Buenos Aires, 1821-
1910. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009, p. 58-59.
27
Decreto n. 1.034A – de 1 de setembro de 1892, en: Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil,
Ano XXI, n. 250, 14 set. 1892.
28
Regulamento para o serviço de Polícia do Distrito Federal. Decreto n. 3.640 – de 14 de abril de
1900, Diário Official dos Estados Unidos do Brasil, ano XXIX, n. 107, 21 abr. 1900, art. 40.
29
Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo
Chefe de Polícia do Distrito Federal A. A, Cardoso de Castro, Anexos ao Relatório apresentado ao
Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e
Negócios Interiores, em março de 1904. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904, p. 137.
21
nação.30 Ao contrário, Cardoso de Castro explicava como havia melhorado a situação
desde a incorporação de um arquivista, com quem o próprio chefe acertou os “meios
de aliviar o arquivo da pletora de papéis ali amontoados, eliminando-se para isso os
lá guardados sem utilidade alguma”; isto é, uma parte dos documentos da época do
Império, desde 1842 até 1889, “verdadeiras carradas de papéis inúteis” que foram
descartados por falta de espaço.31 Também se excluiu uma série de objetos
acumulados nas salas do arquivo, outrora utilizadas como depósito de “máquinas de
jogo, camisas de força, padiolas, estandartes carnavalescos, carabinas imprestáveis,
pandeiros, cornetas, alfarrábios sem préstimo”.32
30
DEVOTO, Fernando. “La construcción del relato de los orígenes en Argentina, Brasil y Uruguay:
las historias nacionales de Varnhagen, Mitre y Bauzá”. In: ALTAMIRANO, Carlos (dir.); MYERS,
Jorge (ed. vol. 1). Historia de los intelectuales en América Latina: 1. La ciudad letrada, de la
conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz, 2008, p. 269-289.
31
Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. J. J. Seabra, Op. Cit., p. 137-138.
32
Idem, p. 137.
33
PODGORNY, Irina. “Fronteras de papel: archivos, colecciones y la cuestión de límites en las
naciones americanas”, Historia Crítica, n. 44, Bogotá, may.-ago. 2011, p. 56-79.
22
Acumulava também as filiações dos criminosos, fichas de identificação, fotografias e
prontuários pessoais, e coordenava a “troca de retratos, coleções ou reproduções de
objetos com as demais polícias nacionais e estrangeiras”.34
Esta tese tratará de analisar toda uma série de objetos localizados nos arquivos
que podem ser interpretados como vestígios materiais da circulação internacional de
saberes policiais. Não se trata unicamente de testemunhos que falam de outras coisas:
eles mesmos são elementos cujo processo de produção merece ser explicado.
Telegramas, retratos e álbuns fotográficos, fichas antropométricas e datiloscópicas,
instrumentos para medições corporais, manuais de criminalística: estamos diante de
“artefatos portáteis”, concebidos para se inserir numa densa rede de intercâmbios.
Igualmente às bibliotecas públicas e às coleções dos museus de história natural, os
cartões com fichas individuais e os sistemas de classificação materializados em
ficheiros, como veremos a propósito dos gabinetes de identificação policial, surgem
como artefatos ligados a certas práticas de tráfico de objetos e informações.35
34
Artigo 365 do Proyecto de Código de Policía para la Capital de La Nación. Buenos Aires:
Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1894, p. 97. Artigos 1038 e 1043 do Proyecto
de Código de Policía para la Capital de la Nación. Buenos Aires: Establecimiento Gráfico Colón,
1911, p. 278-279.
35
Um estado da bibliografia sobre a noção de “artefato” sob o ponto de vista da arqueologia e da
história cultural pode ser encontrado em HENARE, Amira; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari.
Thinking through things: theorising artefacts ethnographically. Londres: Routledge, 2007. Sobre a
ideia da portabilidade dos objetos arquivísticos e museológicos: PODGORNY, Irina. “Antigüedades
portátiles: transportes, ruinas y comunicaciones en la arqueología del siglo XIX”, História, Ciências,
Saúde - Manguinhos, vol. 15, n. 3, Rio de Janeiro, jul-set 2008, p. 577-595. Sobre as fichas de
identificação policial como artefatos: CUNHA, Olívia M. Gomes da. “La existencia relativa de las
cosas (que reposan en los archivos): prácticas y materiales en relación”: In: SIRIMARCO, Mariana
(comp.). Estudiar la policía. La mirada de las ciencias sociales sobre la institución policial. Buenos
Aires: Teseo, 2010, p. 97-138.
36
Este “paradigma indiciário” baseado numa hermenêutica dos sinais, tal como explicaram Foucault e
Ginzburg, era um fenômeno que excedia amplamente o campo policial: FOUCAULT, Michel.
“Nietzsche, Freud, Marx”. In: Dits et Écrits, 1954-1988, Vol. 1. Paris: Gallimard, 1994, p. 592-607.
GINZBURG, Carlo. “Indicios. Raíces de un paradigma de inferencias indiciales”. In: Mitos,
emblemas, indicios: morfología e historia. Barcelona: Gedisa, 1989, p. 138-175.
23
Italiana e com os avanços da criminalística europeia, apareceram os primeiros
“museus policiais” em Buenos Aires (1899) e no Rio de Janeiro (1912).37 Em ambos
os casos, as coleções se aparelharam com objetos sequestrados pela polícia – armas
brancas, chaves, armas de fogo, máquinas para falsificar dinheiro, maletas com fundo
falso, bigodes postiços etc. – e não eram pensadas como exposições para o público
curioso, mas como instrumentos didáticos para os alunos das novas escolas de
polícia.38 Muitas desses itens também aparecem nos arquivos (entre as caixas de
documentação policial do Arquivo Nacional, encontrei bilhetes e cheques falsos,
fotos pornográficas e até um pequeno pacote com cocaína apreendido no início do
século XX), mas sobretudo se fazem presentes através de reproduções fotográficas
que se anexavam aos processos. Esses objetos podem ser lidos em sua dupla
historicidade: são ao mesmo tempo impressões das práticas criminais e das formas de
ação policial.
37
Sobre a aparição dos primeiros museus do crime na Europa ver: REGENER, Susanne.
“Criminological Museums and the Visualization of Evil”, Crime, Histoires & Sociétés/ Crime, History
& Society, vol. 7, n. 1, 2003, p. 43-56.
38
Sobre o museu da polícia portenha: RODRIGUEZ, Adolfo E. Historia de la Policía Federal
Argentina. Tomo IV, 1880-1916. Buenos Aires: Editorial Policial, 1975, p. 214-215. MUSEO
POLICIAL. Museo Policía Federal: 75 aniversario. Buenos Aires: Policía Federal Argentina, 1974. E
sobre a experiência carioca: CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1910, p. 133. LOCARD, Edmond. A Escola de Polícia do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1913.
24
(fundamentalmente memórias e revistas policiais) e na abundante produção
bibliográfica dos policiais escritores.
Esses três tipos de fontes foram produzidas tanto por policiais brasileiros como
argentinos, mas o acesso à documentação foi diferente no Rio de Janeiro e em
Buenos Aires. Para o período que abrange esta tese, como expliquei anteriormente, o
arquivo policial portenho está perdido. A ausência do arquivo é um grave obstáculo
para qualquer pesquisa sobre o cotidiano do trabalho policial em Buenos Aires, mas
isso não significa que não existam fontes. O principal acervo que ainda pode ser
consultado é a documentação institucional impressa, fundamentalmente a Revista de
Policía, que – diferente das revistas produzidas pela polícia carioca – teve uma
notável continuidade desde a década de 1890 até os anos 1930. Outra fonte impressa
utilizada foi a série de relatórios anuais do Departamento de Polícia, publicados
descontinuamente nas três últimas décadas do século XIX. Esses relatórios, e as
diferentes publicações oficiais da polícia portenha (desde galerias fotográficas de
criminosos até livros de instruções para policiais), foram consultados no acervo da
Biblioteca Nacional e no Centro de Estudios Históricos Policiales “Francisco
Romay”.
25
Uma explicação à parte merece a documentação sobre a expulsão de
estrangeiros. Consultei, no Fundo IJJ7 (Seção de Documentos do Executivo e do
Legislativo), uma série de cinquenta e três pacotes com os processos de expulsão de
estrangeiros e, muitas vezes, os pedidos de habeas corpus escritos por advogados.
Para aprofundar o estudo das práticas de cooperação policial entre Buenos Aires e
Rio de Janeiro, resolvi analisar uma figura específica no universo dos chamados
“gatunos internacionais”, segundo o jargão dos policiais cariocas. Primeiramente
excluí os processos de expulsão por lenocínio, que foram já estudados por alguns
pesquisadores.39 Também decidi deixar de lado as expulsões de vadios e batedores de
carteiras, para me concentrar numa figura que circulava com frequência no espaço
das cidades atlânticas sul-americanas: os vigaristas ou passadores do “conto do
vigário” (cuento del tío, no espanhol do Rio da Prata). Realizei uma seleção de vinte
expulsões de vigaristas, vários deles argentinos e uruguaios, embora as
nacionalidades dos acusados sejam, às vezes, difíceis de determinar.
39
Por exemplo: SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo. Op. Cit. MENEZES, Lená Medeiros
de. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio. Op. Cit.. MENEZES, Lená Medeiros de.
Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal
(1890-1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.
40
AGN, Archivo Intermedio, Fondo Ministerio del Interior/Secretos, Confidenciales y Reservados,
Caja n. 14.
26
contra a militância operária comunista e anarquista.41 O acervo de processos de
expulsão do Arquivo Nacional e outras fontes mostram, no entanto, que as leis foram
aplicadas (com muitas arbitrariedades) contra uma multiplicidade de práticas sociais
que a polícia buscava controlar. Até o final da tese, tratarei de reconstruir diferentes
histórias de “criminosos viajantes” como Minga-Minga, que caíram nas malhas
policiais. Alguns dos quais, inclusive, foram expulsos de Buenos Aires, do Rio de
Janeiro e outros portos brasileiros.
Como escrever então a história desses criminosos viajantes sem ouvir suas
próprias vozes? Como contá-las sem cair no que Gilles Deleuze chamou de
“indignidade de falar pelos outros”?43 O que me autoriza a reconstruir o que resta de
uma biografia quase perdida, a não ser pelos registros policiais e judiciários? Estas
perguntas se fizeram presentes cada vez que tive que decidir entre incluir um nome,
41
MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário, 1890-1920. Op. Cit.
SURIANO, Juan. Trabajadores, anarquismo y Estado represor. Op. Cit. ZIMMERMANN, Eduardo.
Los liberales reformistas. La cuestión social en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 1995.
VILLAVICENCIO, Susana (ed.). Los contornos de la ciudadanía. Nacionales y extranjeros en la
Argentina del Centenario. Buenos Aires: EUDEBA, 2003.
42
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Op. Cit., p. 13.
43
Ver ARTIÈRES, Philippe. “La sombra de los prisioneros sobre el tejado: las herencias del GIP”. In:
ERIBON, Didier (ed.). El infrecuentable Michel Foucault: renovación del pensamiento crítico.
Buenos Aires: Letra Viva, 2004, p. 148.
27
reproduzir um retrato fotográfico ou citar as palavras de uma autoridade estatal.44
Uma opção sempre à mão para moderar essas inquietudes era a possibilidade de
mudar os nomes, empregar somente as iniciais, talvez os pseudônimos, ou
diretamente inventar nomes fictícios para personagens do arquivo. No entanto, ao
transtorno que eu poderia provocar a qualquer historiador que quisesse revisar o
mesmo processo (afinal, é para isso que devemos citar a fonte), somava-se a
incerteza sobre a veracidade dos nomes.
Não existiam, naquela época, registros civis que pudessem garantir, com um
mínimo de certeza, se Minga-Minga havia sido registrado ao nascer como Ángel
Artire, ou se este era um dos tantos nomes que podia ter inventado, ao longo de sua
vida, para escapar das perseguições policiais. Raramente algum dos expulsos
aparecia registrado com menos de três nomes diferentes; em alguns casos, nem
sequer se sabia exatamente onde haviam nascido, e as informações vacilavam
também sobre a idade ou o estado civil. Alfred Matfeld, José Ritter, Fritz Steinhoff,
Alberto Routho e Alberto Landi eram, para a polícia carioca, a mesma pessoa. Mas
em nenhum momento se esclarecia, e nem podia se esclarecer, qual era o “nome
verdadeiro”. Ora registrado como holandês, ora como argentino; ora viúvo, ora
solteiro: o fato é que nenhuma dessas incertezas impediu que ele fosse expulso em
1907, embarcado para Buenos Aires no porto de Santos.45 Inventar um nome a mais
para Alfred, José, Fritz ou Alberto seria da minha parte quase um ato de arrogância.
Simplesmente tratarei de narrar – com a maior honestidade possível – as deliciosas
espertezas desse punhado de ladrões viajantes.
44
Uma profunda reflexão sobre a escrita da história de um indivíduo desconhecido, que não deixou
registros em arquivos policiais e judiciais, pode ser encontrada em: CORBIN, Alain. Le monde
retrouvé de Louis-François Pinagot: sur lês traces d’un inconuu (1798-1876). Paris: Flammarion,
1998.
45
Ver AN, IJJ7 130; AN, GIFI 6C 222 (1907); e AHI, Ofícios de Polícia, 300-3-6 (1907).
28
Histórias transnacionais
46
Usarei a noção de “criminalista” no sentido que esta expressão adquiriu na primeira metade do
século XX, é dizer, para falar destes especialistas nos estudos de “polícia científica”, e distingui-los
dos “criminologistas” da escola positiva de “antropologia criminal” do último quarto do século XIX.
29
O tema da tese, as circulações policiais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires,
está enfocado aqui sob um ponto de vista da história transnacional. No entanto, tal
perspectiva de análise dista de ser inequívoca e pressupõe a construção de um
problema que, por atravessar as fronteiras de um Estado nacional, envolve ao menos
dois países, mas não deve ser confundida com os métodos da “história comparada”.
Ao comparar, assumimos que as unidades de estudo confrontadas, submetidas a um
jogo de operações analógicas, à busca de contrastes, isomorfismos e correlações, são
na verdade unidades perfeitamente distinguíveis. Nesse sentido, a história comparada
tende a ser internacional, assim como a história diplomática e a militar: se às vezes
reconhece a existência de contatos e interfaces entre as unidades, a perspectiva
comparada as interpela como formas de vínculo entre os Estados. A história
transnacional, no entanto, trabalha com unidades que são, ao mesmo tempo, mais
amplas e mais estreitas.47
47
SIEGEL, Micol. “Beyond Compare: Comparative Method after the Transnational Turn”, Radical
History Review, n. 91, Winter 2005, p. 62-90.
30
cenário da tese. Esse território estava habitado por uma multiplicidade de sujeitos
cujos laços sociais, trajetórias de vida e construção de identidades coletivas tomam
como ponto de referência aquilo que autores vinculados aos estudos migratórios
denominam “espaço social transnacional”.48
48
FAIST, Thomas. The volume and dynamics of international migration and transnational social
spaces. Oxford: Claredon/ Oxford University Press, 2000. PRIES, Ludger. “The disruption of social
and geographic space: US-Mexican migration and the emergence of transnational social spaces”,
International Sociology, vol. 16, n. 1, 2001, p. 55-74.
49
BECK, Urich. “La sociedad civil trasnacional: cómo se forma una visión cosmopolita”. In: ¿Qué es
la globalización? Barcelona: Paidós, 1998, p. 99-126. WIMMER, Andreas, GLICK SCHILLER,
Nina. “Methodological nationalism and beyond: nation-state building, migration and the social
sciences”, Global Networks, vol. 2, n. 4, 2002, p. 301-304.
31
receptora.50 Estudos sobre a organização de conferências internacionais, missões
científicas, viagens e migrações de intelectuais em diversos espaços do saber,
mostraram a emergência de redes transnacionais, tráficos de ideias com múltiplos
destinos e processos de hibridação de conhecimentos.51 A dimensão transnacional
das reformas institucionais e o deslocamento de técnicos especialistas entre os países
foram objeto de várias investigações sobre planificação urbana, políticas sociais,
econômicas e sanitárias.52
50
Uma crítica pioneira a esse modelo da difusão foi feita pelo sociólogo norte-americano Edward
Shils num trabalho publicado em 1961, onde argumenta que a mundialização do campo intelectual
não deve ser pensada como a conformação de uma “comunidade intelectual transnacional”. Essa
comunidade tem múltiplos centros de atração (Shils os denomina “metrópoles”), ao redor dos quais
giram diferentes círculos de “provincialismo intelectual”. SHILS, Edward. “La metrópoli y la
provincia en la comunidad intelectual”. In: Los intelectuales en los países en desarrollo. Buenos
Aires: Ediciones Tres Tiempos, 1981, p. 42-63. Na América Latina, os críticos literários e
historiadores da cultura discutiram esta questão na segunda metade do século XX, por exemplo:
RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. Cidade do México: Siglo XXI, 1982.
RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina. Cidade do México: Fondo de
Cultura Económica, 1989.
51
CHARLE, Christophe; SCHRIEWER, Jürgen; WAGNER, Peter (eds.). Transnational Intellectual
Networks. Forms of Academic Knowledge and the Search of Cultural Identities. Frankfurt/ Nova
Iorque: Campus Verlag, 2004. ZIMMERMANN, Eduardo. “Global Intellectual Elites”. In: IRIYE,
Akira; SAUNIER, Pierre-Ives (eds.). The Palgrave Dictionary of Transnational History. Londres:
Palgrave/ Macmillan, 2009, p. 547-551.
52
RODGERS, Daniel T. Atlantic Crossings. Social Politics in a Progressive Age. Cambridge: Harvard
University Press, 1998. DEZALAY, Yves; GARTH, Bryan G. The Internationalization of Palace
War. Lawyers, Economists, and the Contest to Transform Latin American States. Chicago: The
University of Chicago Press, 2002. Veja também os trabalhos incluídos no dossiê “Transmissão e
herança científica: Europa y América Latina”, na revista História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol.
15, n. 2, Rio de Janeiro, abr.-jun. 2008, p. 433-557. Também é importante a discussão sobre os casos
de reformas urbanas de “inspiração haussmaniana”, ver: NEEDELL, Jeffrey. “Rio de Janeiro and
Buenos Aires: Public Space and Public Consciousness in Fin-de-Siècle Latin America”, Comparative
Studies in Society and History, vol. 37, n. 3, 1995, p. 519-540. GORELIK, Adrián. La grilla y el
parque: espacio público y cultura urbana en Buenos Aires, 1887-1936. Bernal: Universidad Nacional
de Quilmes, 1998, p. 115-124.
53
KALUSZYNSKI, Martine. “The International Congresses of Criminal Anthropology. Shaping the
French and International Criminological Movement, 1886-1914”. In: BECKER, Peter; WETZELL,
Richard F. (eds.). Criminals and their Scientist. The History of Criminology in International
Perspective. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2004, p. 301-316. Diversos trabalhos deram
conta do impacto desses congressos na América Latina, em especial: OLMO, Rosa del. América
32
inquietação com a existência de novas formas de criminalidade internacional,
vinculadas ao que Peter Hungill denominou “época neotécnica”, em referência a
proliferação das tecnologias de transporte e comunicação baseadas na eletricidade.54
Nas polícias da Europa e das Américas se propagou um discurso sobre a suposta cara
sinistra da modernização técnica, refletida nos múltiplos usos “criminais” das
inovações tecnológicas, desde o mercado de tráfico de mulheres até os atentados
anarquistas e os bandos de ladrões viajantes.55
Latina y su criminología. México: Siglo XXI, 1999. Trabalhos mais recentes têm criticado a visão de
Rosa del Olmo e de outros criminologistas críticos latino-americanos que leram a relação com a
Europa sob a chave da teoria da dependência cultural, ver por exemplo: SOZZO, Máximo.
“Traduttore Traditore. Importación cultural, traducción e historia del presente de la criminología en
América Latina”. In: SOZZO, Máximo (ed.). Reconstruyendo las Criminologías Críticas. Buenos
Aires: Ad-Hoc, 2001, p. 353-431. Ver também: MELOSSI, Dario; SOZZO, Máximo; SPARK,
Richard. Travels of the Criminal Question. Cultural Embeddedness and Diffusion. Oxford/Portland
Oregon: Hart Publishing, 2011.
54
HUGILL, Peter. Global communications since 1844: geopolitics and technology. Baltimore: John
Hopkins University Press, 1991.
55
DEFLEM, Mathieu. “Technology and the internationalization of policing: a comparative- historical
perspective”, Justice Quarterly, vol. 19, n. 3, sept. 2002, p.453-475. KNEPPER, Paul. The Invention
of International Crime. A Global Issue in the Making, 1881-1914. Basingstoke: Palgrave/Macmillan,
2009.
56
Os estudos, além do mais, têm sido muito descontinuados no tempo, ver: BACH JENSEN, Richard.
The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the Origins of Interpol, Journal of
Contemporary History, vol. 16, n. 2, apr. 1981, p. 323-347. NADELMANN, Ethan. Cops Across
Borders. The Internationalization of US Criminal Law Enforcement. University Park, PA:
Pennsylvania State University Press, 1993. DEFLEM, Mathieu. Policing World Society: Historical
Foundations of International Police Cooperation. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004.
57
Ver CANCELLI, Elizabeth. De uma sociedade policiada a um Estado policial: o circuito de
informações das polícias nos anos 30, Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 36, n. 1, 1993,
p. 67-86. HUGGINS, Martha. Polícia e política. Relações Estados Unidos/América Latina. São Paulo:
Cortez, 1998. MARTINS, Marcelo T. Quintanilha. “Policiais habilitados não se improvisam: a
33
falta examinar outras direções desse mesmo processo, começando por revisar o
próprio peso da América do Sul na rede mundial da cooperação policial. Pensar as
polícias do Rio de Janeiro e Buenos Aires como simples receptoras periféricas de
ideias produzidas nas regiões centrais (seja nos países da Europa ocidental até
meados do século XIX, ou nos Estados Unidos na segunda metade do século XX)
impede análise do nascimento de um espaço transnacional irredutível a olhares de
mão única.
modernização da polícia paulista na Primeira República (1889-1930)”, Revista de História, São Paulo,
n. 164, jan.-jun. 2011, p. 243-269.
58
REYNA ALMANDOS, Luis. Unión Policial Universal. Sus bases. La Plata: Talleres Gráficos
Christmann & Crespo, 1910, p. 6.
34
PARTE I
CARTOGRAFIAS DO CRIME SUL
AMERICANO
Rotas indesejáveis
1
“Después de la conferencia interpolicial”, Revista de Policía, Año IX, n. 204, Buenos Aires, 16 nov.
1905, p. 95.
No dia seguinte à descoberta do tronco, apareceu um pacote com os braços e as
pernas enrolados em papel de jornal; enquanto a cabeça foi encontrada algumas
semanas depois por duas crianças que brincavam perto do Rio da Prata. O enigma
correu pela imprensa de imediato, não faltaram comparações com Jack, the ripper, e,
a cada dia que passava, aumentava a pressão sobre as autoridades para revelar o
mistério. A polícia aproveitou o clamor popular e organizou uma exposição pública
no Departamento Central: durante vários dias, os portenhos puderam desfilar diante
de fotografias da cabeça, um retrato a óleo em que se reconstruía o rosto da vítima,
um busto de gesso esculpido por um escultor famoso e vários objetos encontrados
junto aos pacotes que continham as partes do cadáver.
2
UN ANTIGUO COMISARIO DE POLICÍA. El descuartizador. Historia íntima de un asesino.
Buenos Aires: s/m, 1894, p. 78-79.
37
Aparentemente, uma briga entre Farbos e Tremblié, talvez a ambição do
segundo para ficar com todo o ganho ou evitar pagar uma dívida a seu companheiro,
terminou nesse esquartejamento. A polícia recolheu provas bastante contundentes
contra Tremblié e soube que ele havia embarcado com destino a Dunkerque pouco
depois do crime. Embora as viagens em navios a vapor houvessem diminuído
consideravelmente o tempo da travessia transatlântica, outro avanço tecnológico do
oitocentos foi fatal para o destino de Tremblié. Um telegrama para a polícia francesa
foi o suficiente para que o esperassem no porto de Dunkerque, o detivessem e
confiscassem seus baús, nos quais encontraram a carga de moedas argentinas. O
governo francês recusou um pedido de extradição da justiça argentina e submeteu o
assassino a julgamento em sua terra natal. Condenado à morte, sua sentença terminou
sendo comutada e passou o resto de seus dias na prisão de Saint-Omer.3
Três décadas mais tarde, a polícia da capital brasileira solicitava a seu governo
a expulsão dos italianos Francisco Barbieri e Vicente Perniconi, acusados de integrar
um grupo dedicado a diversos tipos de roubos. No começo do século XX, tanto
Brasil como Argentina sancionaram uma série de leis de expulsão de estrangeiros
que previram procedimentos sumários, sem intervenção do Poder Judiciário (salvo
em casos de pedido de habeas corpus), fundamentados em frágeis depoimentos,
poucas testemunhas e alguma informação elaborada pela polícia. No caso de Barbieri
e Perniconi, esta informação era – em relação à média – bastante abundante. A folha
de antecedentes, várias fichas datiloscópicas e retratos fotográficos produzidos pelo
Gabinete de Identificação, estavam acompanhados por um anexo da Seção de
Investigações. Nele se explicava como havia sido detido no Rio de Janeiro, dentro de
uma casa, um arsenal de utensílios para a arte de roubar:
Uma pistola Colt calibre 38, número 50.585; uma pistola Colt
calibre 45, número 149.037; uma pistola Parabellum calibre 45,
número 5.649, modelo de 1916, sendo de cano longo; cinco pentes
pertencentes à mesma arma; sete pentes da pistola Colt calibre 38;
uma máquina portátil própria para furar ferro; um arco de pua de
carpinteiro, para furar madeira; uma chave inglesa; uma grifa de
ferro para segurar encanamento; (...) um alicate; um lima murça;
3
Sobre o affaire Tremblié, ver: GALEANO, Diego. Escritores, detectives y archivistas. La cultura
policial en Buenos Aires, 1821-1910. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009, p. 129-142.
38
14 brocas de diversas dimensões para furar ferro; um parafuso de
ferro e para torno; oito parafusos de ferro; uma chapa de ferro para
experiência; dois pares de luvas; uma lata pequena contendo ela:
duas blusas zuarte, uma gorra de casimira, um mapa das cidades de
Rio e Niterói, um mapa da Viação Férrea de Brasil; um mapa de
Brasil, da República Oriental de Uruguai, de Paraguai.4
Por que junto a todos estes objetos, além dos mapas do Rio de Janeiro e
arredores, guardavam um da rede ferroviária brasileira e outros de países sul-
americanos? Os testemunhos recolhidos nos expedientes nos dão alguns indícios para
responder a esta pergunta. Quando os detiveram, Francisco tinha 33 anos, havia
nascido em Catanzaro, estava casado e declarava ser sapateiro. Vicente era dois anos
mais novo, solteiro, nascido em Regalbuto e dizia ser pedreiro. Ambos sabiam ler e
escrever. Quando perguntaram a eles quando e como chegaram ao Brasil,
coincidiram na data (havia uns três meses que estavam no país), mas divergiam no
meio de transporte: segundo Vicente, chegaram por via marítima, em um navio
procedente de Buenos Aires; enquanto que para Francisco tinham ingressado por
trem, também desde a Argentina, atravessando a fronteira na altura do Rio Grande do
Sul.5
4
AN, IJJ7 133. Expulsão de Francisco Barbieri (1928). Cópia do Auto de apresentação e apreensão.
5
AN, IJJ7 133. Expulsão de Francisco Barbieri (1928). Auto de Qualificação. AN, IJJ7 142. Expulsão
de Vicente Perniconi (1928). Auto de Qualificação.
39
mundo do delito urbano. O estereótipo de ladrão pobre, analfabeto e desordeiro, cuja
existência nos confirma grande parte da historiografia do crime na América Latina,
pouco nos serve para pensar quem eram estes dois italianos, a quem vemos nos
retratos de frente e perfil arrumadamente penteados, ambos vestidos com terno, um
com gravata, o outro com laço.
40
que dividiam, cada uma com uma maleta de viagem ao lado. Como os baús de
Tremblié, equipados com fundo falso, as malas de Francisco e Vicente eram uma
ferramenta a mais em seu instrumental de ladrões profissionais. Dessa vez, tiveram
que usá-las para abandonar o Brasil forçados pela polícia. Segundo o procedimento
de expulsões, o Ministro de Justiça os declarou “elementos nocivos à sociedade e
prejudiciais para os interesses da República” e decretou que abandonassem o
território nacional. Em 8 de janeiro de 1929, Francisco foi embarcado rumo a
Gênova no vapor Conte Verde e, separadamente, Vicente regressou a Itália no vapor
Arlanza.
41
O espaço atlântico sul-americano
As distâncias são algo mais que uma realidade física, segundo insistiu Braudel,
o grande historiador do Mediterrâneo: têm uma dimensão temporal que depende
diretamente da capacidade tecnológica para viajar no espaço.6 Na historiografia
extensa sobre as migrações internacionais muito se discutiu sobre os fatores que
impulsionaram o deslocamento de europeus e asiáticos para a América. Embora haja
divergências sobre o peso concreto das inovações no transporte marítimo na decisão
de emigrar, ninguém duvida das transformações que o navio a vapor provocou nas
viagens.
6
BRAUDEL, Fernand. La méditerranée et le monde méditerranéen a l’époque de Philippe II. Paris:
Librairie Armand Colin, 1979, p. 10-15.
42
décadas do século XX, mas ainda estavam longe do grande salto que provocou a
introdução do navio a vapor.7
7
COSTA LEITE, Joaquin da. “O transporte de emigrantes: da vela ao vapor na rota do Brasil, 1851-
1914”, Análise Social, Lisboa, v. XXVI, n. 112-113, 1991, p. 741-752.
MOYA, José C. Cousins and Strangers. Spanish Immigrants in Buenos Aires, 1850-1930. Berkeley:
University of California Press, 1998, p. 35-43.
8
Ver LINHARES, Maria Y.; TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. “Região e História Agrária”,
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 17-26. BLACHA, Noemí M Girbal de. “La historia
regional hoy: balances y perspectivas con enfoque agrario”. In: GELMAN, Jorge (Coord.). La historia
económica argentina en la encrucijada. Buenos Aires: Prometeo, 2006, p. 411-423.
43
Mapa do espaço atlântico sul-americano
Fonte: “South America”, Americanized Encyclopedia Britanica, Vol. 1, Chicago, 1892.
44
apenas no interior como também os importantes portos de Salvador e Recife).9 Em
segundo lugar, entre Buenos Aires e Rio de Janeiro alude a um ponto de vista:
analisaremos os fluxos da rota traçada desde estas capitais sul-americanas, através
dos escritos de seus políticos, jornalistas, literatos, mas também dos policiais e das
vozes de diversos sujeitos que ficaram registrados na documentação policial. Por
último, apesar destes recortes, abundam no relato as menções a outras cidades
abrangidas nessa rota: Montevidéu, Porto Alegre, São Paulo e seu porto de Santos
serão frequentes coprotagonistas, devido à espessa trama de relações que unia estas
cidades com Buenos Aires e o Rio de Janeiro.
9
A tese de Cleide de Lima Chaves, ainda que centrada nas relações comerciais e no controle de
epidemias de doenças infectocontagiosas, em um período anterior, oferece um panorama sobre o
espaço atlântico sul-americano através de uma rota mais ampla, que se estende desde o Rio da Prata
até a Bahia. CHAVES, Cleide de Lima. De um porto a outro: a Bahia e o Prata (1850-1889).
Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001.
10
MEDRANO, Lilia Inés Zanotti de. “Un ciclo comercial en la Cuenca del Plata (1850-1920)”,
Revista Complutense de Historia de América, Madrid, n. 18, 1992, p. 219-239. Ver também o trabalho
de Keila Grinberg sobre as fugas e a passagem de escravos as áreas de fronteira entre o Brasil e o
Uruguai no século XIX: GRINBERG, Keila. “Escravidão e liberdade na fronteira entre o Império do
Brasil e a República do Uruguai: notas de pesquisa”, Cadernos do CHDD, vol. 5, número especial,
Brasília, 2007, p. 89-112.
45
Durante a segunda metade do século XIX, este espaço de intensa
movimentação cresceu como articulador da economia regional devido à exportação
de produtos primários para a Europa e também pelas próprias relações comerciais
entre os países da região. Junto com o comércio legal, contrabandistas, ladrões de
gado e bandidos escolheram essas cidades de fronteiras elásticas para desenvolverem
suas atividades, muitas vezes protegidos por fazendeiros e coronéis. Os ladrões
viajantes utilizavam estas rotas fluviais para escapar da perseguição policial e
também para buscar novos rumos em cidades onde o dinheiro circulava com força.11
11
A centralidade econômica do “espaço fluvial platino” foi analisada por duas teses de doutorado
focalizadas em problemas e períodos diferentes: MEDRANO, Lilia Inés Zanotti de. A livre navegação
dos rios Paraná e Uruguai. Uma análise do comércio entre o Império Brasileiro e a Argentina (1852-
1889). Tese de Doutorado em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. E por:
OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Nas águas do Prata: os trabalhadores da rota fluvial entre Buenos
Aires e Corumbá (1910-1930). Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
12
Um bom panorama da historiografia do Cone Sul pode ser consultado nos diversos trabalhos que
integram o volume coletivo: RAPAPORT, Mario; CERVO, Amadeo Luiz (Comps.). El Cono Sur.
Una historia común. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002.
46
se reuniram em 1920 para discutir um convênio para o intercâmbio de informações,
chamaram a reunião “Conferência Sul-Americana de Polícia”. Esta iniciativa de
aproximação entre as polícias foi concebida nos Congressos Científicos Latino-
Americanos, realizados em Montevidéu (1901) e Rio de Janeiro (1905). Neste
último, o argentino Juan Vucetich havia proposto criar uma “polícia internacional
sul-americana”, baseada em um convênio entre as dez repúblicas existentes, não
obstante Equador, Colômbia e Venezuela nunca participaram nas conferências.13
13
VUCETICH, Juan. “Congreso Policial Sudamericano. Su necesidad y manera de promoverlo”. In:
AAVV. Terceiro Congresso Científico Latino-Americano: a polícia argentina e a polícia brasileira.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 53-79.
14
CORTINA, Alberto. La Policía en Sudamérica. La Plata: Talleres Gráficos La Popular, 1905. p. 21.
15
Idem, p. 21.
47
alto grau de mobilidade entre os países sul-americanos aos que o livro prestava maior
atenção (Argentina, Uruguai, Brasil e Chile).
16
AN, IJJ7 131. Expulsão de Aminta Victoria Palma (1930).
48
estava em torno dos 17.000 e, no início da década de 1930, chegava a quase 40.000
quilômetros.17
17
CARDOSO, Ciro F. S.; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Historia económica de América Latina. Vol. 2:
Economías de exportación y economía capitalista. Barcelona: Crítica, 1999, p. 69-75.
18
POLICÍA DE LA CAPITAL FEDERAL. La Policía de Investigaciones: su misión, organización y
funcionamiento. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1914, p. 34-36.
49
continente onde “a locomoção é coisa facílima” e um passageiro podia “tomar um
café em Berlim, almoçar em Liège e jantar em París, tudo no mesmo dia”.19
19
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres: relatório apresentado ao Ministro da
Justiça e Negócios Interiores, sendo ministro o ilustrado cidadão Dr. Gonçalves Ferreira. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1895, p. 112.
20
KALIFA, Dominique. L’encre et le sang. Récits et société à la Belle Époque. Paris: Fayard, 1995,
p. 235.
50
cabos telegráficos de reluzente instantaneidade. Nessas fronteiras elásticas entre a
ficção e a realidade, o temor (e a fascinação) frente ao delito instalou-se como um
dado recorrente nas conversações cotidianas.21
A polícia não ficou imune a essa época de mal estar. Ao contrário, a imprensa
se converteu também num espaço de críticas ao desempenho policial e reclamações
por reformas urgentes, bem como num produtor e canal de denúncias. “O clamor
contra a polícia é quase universal”, escrevia Elysio de Carvalho, personagem singular
do mundo literário carioca, quando ainda era diretor do Gabinete de Identificação e
Estatística: “aqui, como em Londres, em Paris, como em Berlim, em Buenos Aires,
como em Roma, por toda parte, surge uma como espécie de revolta contra a
malsinada instituição”.22 Os nomes destas cidades não estavam escolhidos por acaso.
Carvalho, como muitos policiais brasileiros e argentinos, defendiam a instituição das
diatribes que evocavam distintos exemplos europeus (e no caso do Brasil
republicano, também a polícia de Buenos Aires) para questionar a organização local.
21
Sobre a centralidade do crime na história da cultura popular na Argentina e no Brasil, ver:
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2002, p. 303-382. PORTO, Ana Gomes. Novelas sangrentas: literatura de crime no Brasil,
(1870-1920). Tese de Doutorado em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.
OTTONI, Ana Vasconcelos. O paraíso dos ladrões: crime e criminosos nas reportagens policiais da
imprensa. Tese de Doutorado em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.
CAIMARI, Lila. La ciudad y el crimen. Delito y vida cotidiana en Buenos Aires, 1880-1940. Buenos
Aires: Sudamericana, 2009.
22
CARVALHO, Elysio de. “Repressão e criminalidade nos Estados Unidos”, Boletim Policial, Ano
V, n. 16/17, Rio de Janeiro, jul.-set. 1911, p. 476. Sobre a figura de Elysio de Carvalho, ver:
SANT´ANA, Moacir Medeiros de. Elysio de Carvalho, um militante do anarquismo. Maceió:
Arquivo Público de Alagoas, 1982.
51
Para os escritores mais afeitos à literatura especializada, o mito do policial
profissional se organizava em torno de dois grandes modelos. O primeiro procede de
uma tradição anglo-saxônica difundida na Inglaterra vitoriana: a “New Police” de
Robert Peel, o criador da Polícia Metropolitana de Londres (1829). A
excepcionalidade do modelo britânico se reunia na figura do Bobby. Este agente
policial condensava o imaginário de uma força eminente civil, livre de determinações
políticas, respeitosa dos direitos e liberdades dos cidadãos. Era sem dúvida um
estereótipo que, aliás, funcionava em conjunto com outro: o do modelo francês (às
vezes chamado “continental”), ao qual os mesmos ingleses atribuíam um caráter
totalitário e verticalista, próprio de um poder exercido de cima para baixo e
controlado por uma autoridade central, parisiense, herança do Lieutenance Générale
de Police (1667).23
23
Historiadores das polícias inglesas e francesas questionaram este mito dos modelos.Ver, por
exemplo: EMSLEY, Clive. The English Police: A Political and Social History. London/New York:
Longman, 1996. LAWRENCE, Paul. “They have an admirable police at Paris, but they pay for it
dear enough: attitudes towards continental policing in nineteenth-century England”. In: Construction
et circulation des savoirs policiers en Europe centrale et septentrionale, XVIIIe-XIXe siècles, IV
Journées CIRSAP, Lille, 4-6 dez. 2008. DELUERMOZ, Quentin. “Circulations et élaborations d'un
mode d'action policier: la police en tenue à Paris, d'une police londonienne au modèle parisien (1850-
1914)”, Revue d'Histoire des Sciences Humaines, n. 19, 2008/2, p. 70-90.
24
A ideia das síndromes Fouché e Vidoqc é de BERLIÈRE, Jean-Marc. Le Préfet Lépine: vers la
naissance de la police moderne. Paris: Denoel, 1993, p. 118.
52
vida. De outro modo, quando se tratava de lamentar um novo crime não resolvido, a
inoperância das investigações policiais e a forma desonrosa com que eram burlados
por astutos criminosos, aí estava o argumento afrancesado, à mão, para mostrar quão
longe estava Paris.
25
“Sueltos. Policía de París. Impresiones de un profesional”, Revista de Policía, Año IX, n. 204,
Buenos Aires, 16 nov. 1905, p. 100.
26
“La policía de Londres”, Revista de Policía, Año XVI, n. 374, Buenos Aires, 16 dic. 1912, p. 123-
124.
53
poder central: embora seu território de ação seja sobretudo uma cidade, estão
separadas das instâncias locais do governo e constituem uma força civil a serviço da
nação. Em segundo lugar, aparecem as polícias locais que, em cada país, dependem
da esfera municipal ou provincial e são financiadas com recursos desses distritos.
Finalmente, essas duas forças convivem com diferentes corpos de caráter militar
destinados à segurança interior, entre os quais se destaca a Gendarmerie francesa,
um estilo de policiamento armado estendido no século XIX à Bélgica, Itália, Espanha
e outros países da Europa.27
27
EMSLEY, Clive. “A typology of nineteenth-century Police”, Crime, Histoires & Sociétés/ Crime,
History & Society, vol. 3, n. 1, 1999, p. 29-44.
28
MARIN, Brigitte. “L’alcalde de barrio à Madrid. De la création de la charge à l’amorce d’une
professionnalisation (1768-1801)”. In: AAVV. Métiers de police: être policier en Europe, XVIIIe-XXe
siècles, Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008, p. 165-174.
29
MINA, Jorge Nacif. “Policía y seguridad pública en la ciudad de México, 1770-1848”. In:
FRANYUTI, Regina Hernández (comp.). La ciudad de México en la primera mitad del siglo XIX.
Tomo II, México: Instituto de Investigaciones Mora, 1994, p. 9-50. GALEANO, Diego. La policía en
la ciudad de Buenos Aires, 1867-1880. Buenos Aires, Tesis de Maestría en Investigación Histórica,
Universidad de San Andrés, 2010, p. 30-36.
30
BRETAS, Marcos Luiz. “A Polícia carioca no império”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 12,
n. 22, 1998, p. 222-226.
54
“Alta” e “baixa” polícia articulavam-se com dificuldades e tensões. A
jurisdição da polícia portenha, por exemplo, foi motivo de debates que seguiram o
percurso das lutas entre Buenos Aires e as províncias. Desde a união definitiva dos
Estados numa confederação que incluía Buenos Aires, no início da década de 1860,
essa polícia aglutinou um triplo estatuto de força de segurança municipal, provincial
e, até certo ponto, nacional. Isso mudou com a federalização da cidade de Buenos
Aires em 1880, quando o velho Departamento Central foi dividido em dois: a Polícia
da Capital Federal, subordinada ao poder executivo nacional por intermédio do
Ministério do Interior, e a Polícia da Província de Buenos Aires. Até a criação da
Gendarmeria Nacional (1938) e, depois, da Polícia Federal Argentina (1944) essa
força de segurança com sede na cidade de Buenos Aires foi a única que respondia às
ordens do governo central. Todas as demais polícias eram provinciais.31
31
Há que destacar, no entanto, a especificidade dos “territórios nacionais” no extremo noroeste e sul
do país (Chaco, Formosa, Misiones, La Pampa e toda a região da Patagônia), cujos governadores eram
designados diretamente pelo Poder Executivo Nacional, embora as polícias – criadas nos finais do
século XIX – tivessem na prática uma ampla margem de autonomia. Ver: RAFART, Gabriel. Tiempo
de violencia en la Patagonia. Bandidos, policías y jueces, 1890-1940. Buenos Aires: Prometeo, 2008,
p. 155-167. BOHOSLAVSKY, Ernesto. “El brazo armado de la improvisación. Aportes para una
historia social de los policías patagónicos”. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto; SOPRANO, Germán. Un
Estado con rostro humano. Funcionarios e instituciones estatales en Argentina (desde 1880 a la
actualidad). Buenos Aires: Prometeo, 2010, p. 218-228.
32
Tanto o chefe da Polícia Civil quanto o comandante da Brigada Policial eram nomeados pelo
Presidente da República sob indicação do Ministro da Justiça. BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das
ruas. Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 38-51.
55
Em contraste, a polícia portenha, mesmo havendo perdido recentemente seu
poder sobre a Província de Buenos Aires, continuava sendo um monstro
administrativo. Além de reunir todas as tarefas que no Rio de Janeiro se dividiam
entre a polícia civil e a militar, ainda absorvia outras áreas – por exemplo, o Corpo
de Bombeiros, que na capital brasileira dependia da esfera municipal. Essas
diferenças resultam significativas para explicar a região do trabalho policial que será
objeto desta tese. Não se trata de um estudo sobre o serviço de segurança, a
vigilância preventiva nas ruas, nem sobre o cotidiano das delegacias. O interesse está
depositado sobre a arquitetura das modernas seções de investigação reformadas,
entre finais do século XIX e começos do XX, pelo advento de uma gama eclética de
técnicas que começará a receber o nome de “polícia científica”.33 Nesse espaço –
como veremos – se desencadeou um processo inédito de aproximação e cooperação
entre as polícias sul-americanas.
33
Ver QUINCHE, Nicolas. Sur les traces du crime. De la naissance du regard indicial à
l’institutionnalisation de la police scientifique et technique en Suisse et en France. Genebra: Slatkine,
2011. E também os trabalhos compilados em PIAZZA, Pierre (dir.). Aux origines de la police
scientifique. Alphonse Bertillon, précurseur de la science du crime. Paris: Karthala, 2011.
56
aglomeração de pessoas; e, finalmente, “Vigilância Geral” era um serviço
complementário encaminhado a seguir de perto, inclusive além dos limites da cidade,
certos sujeitos suspeitos de tramar ações delitivas.34
34
POLICÍA DE LA CAPITAL FEDERAL. La Policía de Investigaciones. Su misión, organización y
funcionamiento. Op. Cit., p. 17-39.
35
LAGUARDA, Francisco. “La Policía de Investigaciones: sus principios”, Revista de Policía, Año
XXI, n. 469, Buenos Aires, 1 ene. 1918, p. 5.
57
quais (Ordem Social, Leis Especiais) foram efetivamente colocadas em prática.36 No
entanto, em alguns aspectos, a polícia da capital brasileira manteve um maior grau de
descentralização comparativamente à argentina. Outras agências fundamentais, como
a Polícia Marítima e o Gabinete de Identificação e Estatística, continuaram
subordinadas diretamente à chefatura policial, mantendo certa autonomia em relação
ao Corpo de Investigação e à Segurança Pública.
Essa aproximação entre Rio de Janeiro e Buenos Aires não foi a primeira nem
seria a última. Formava parte de uma incipiente rede de contatos que envolvia os
policiais mais ilustres do Brasil e da Argentina. Essa inteligência policial se aferraria
a duas lutas paralelas e complementares. A primeira transitava num velho espaço de
atritos com a engrenagem judiciária, na disputa por maior autonomia para as tarefas
de investigação criminal, perseguição e captura de criminosos. No interior desse
espaço, a consolidação de uma “polícia científica” fornecia um argumento
excepcional para se discutir com os especialistas do mundo jurídico. A segunda luta
apontava para ganhar capacidade de deslocação territorial, apagar obstáculos
jurisdicionais, prerrogativas diplomáticas e óbices consulares, buscando abrir
múltiplas possibilidades de cruzar fronteiras. Os contatos internacionais entre as
polícias miravam diretamente esse alvo.
36
SAMET, Henrique. Construção de um Padrão de Controle e Repressão na Polícia Civil do Distrito
Federal por meio do Corpo de Investigações e Segurança Pública (1907-1920). Rio de Janeiro: Tese
de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ, 2008, p. 179-180.
58
raciocínio era simples e talvez servisse, em mais de uma oportunidade, como
escaramuça para reclamações orçamentárias. Para estes policiais escritores, os
criminosos utilizavam agora todos os inventos da modernidade: viajavam em trens e
transatlânticos, faziam uso do telégrafo para se comunicar entre eles, alguns
falsificadores incorporavam os avanços da química, e outros gatunos, mais temíveis,
renovavam armas com uma frequência desconhecida para o campo policial.
37
ROSSI, José G. “La criminalidad profesional en Buenos Aires”, Archivos de Psiquiatría y
Criminología, Buenos Aires, Año II, n. 1, 1902, p. 169.
59
A Polícia de Buenos Aires conhece mais de dez mil lunfardos
profissionais, aos que devem agregar os residentes desconhecidos e
as colônias viajantes, hábil e magistralmente organizadas, que
caem como enxames de gafanhotos, dão seus golpes e desaparecem
da cidade. Somando os conhecidos e os desconhecidos, pode-se
assegurar que a cifra de nossa população criminal oscila entre
quinze e vinte mil ladrões profissionais.38
38
Idem, p. 172. Nesta época, a noção de lunfardo era usada, em Buenos Aires, como sinônimo de
gatuno (esse era o significado que lhe dava aqui Rossi), mas também designava a gíria desses ladrões
profissionais.
39
ALLINNE, Jean-Pierre. Gouverner le crime. Les politiques criminelles françaises de La Révolution
au XXIe siècle. Paris: Harmattan, 2004, p. 192-195.
40
Art. 16. Código Criminal do Império do Brasil: anotado com as leis, avisos e portarias publicados
desde a sua data até o presente. Recife: Typographia Universal, 1858, p. 17.
60
por presunção de “hábito criminal” tinha uma longa linhagem no direito romano, que
remetia pelo menos ao Código de Justiniano.41
41
TEJEDOR, Carlos. Proyecto de Código Penal para la República Argentina. Parte primera. Buenos
Aires: Imprenta del Comercio del Plata, 1866, p. 193-197.
42
FERRI, Enrico. Sociologia criminale. Torino: Fratelli Bocca Editori, 1900, p. 194-218.
43
MOTTA, Cândido. Classificação dos criminosos. Dissertação para o concurso à vaga de lente
substituto de Direito Criminal na Faculdade de Direito de S. Paulo. São Paulo: Carlos Gerke & Cia.,
1997, p. 72-77.
61
criminológico. Esse espaço funcionou como um laboratório anexo à cátedra de
Medicina Legal, onde o professor Veyga e seus alunos estudavam os detidos.44
Frente ao escrutínio dos estudantes, desfilavam sujeitos que a Polícia da Capital
prendia por contravenções como embriaguez, desordem e uso de armas, mas segundo
criminologistas esta era uma porta de acesso privilegiada ao “mundo dos
delinquentes profissionais”.45 Em uma conferência intitulada “Los lunfardos”, Veyga
ensaiava uma radiografia deste tipo de criminalidade, que, segundo ele, tinha como
contrafigura os fatos de sangue. Enquanto no crime passional “tudo é dramático e
sempre original”, o delito habitual era visto como “um ato mecânico, de simples
execução e sempre motivados por uma mesma tendência”.46 Por isso, pensava-se que
a criminologia devia intervir por meio de uma dupla tarefa de observação do modo
de vida dos gatunos, e diagnóstico para a determinação de medidas de defesa social.
44
DEL OLMO, Rosa. Criminología argentina. Apuntes para su reconstrucción histórica. Buenos
Aires: Depalma, 1992, p. 14. CREAZZO, Giuditta. El positivismo criminológico italiano en la
Argentina. Buenos Aires: Ediar, 2007, p. 169-172.
45
BARBIERI, Pedro. “La clínica criminológica del Depósito 24 de Noviembre”, Archivos de
Psiquiatría y Criminología, Buenos Aires, Año V, n. 4, 1906, p. 297.
46
VEYGA, Francisco de. Los lunfardos. Psicología de los delincuentes profesionales. Buenos Aires:
Talleres Gráficos de la Penitenciaría Nacional, 1910, p. 8.
47
MOTTA, Cândido. Classificação dos criminosos. Op. Cit., p. 72.
48
“Necesidad de una ley de reincidencias”, Boletín de Policía, Buenos Aires, Año I, n. 4, 15 jun.
1905, p. 7-8.
62
No último quarto do século XIX, esta preocupação pela reincidência era
compartilhada por vários países e havia ocupado um lugar central nos debates da
União Internacional de Direito Penal, cujos integrantes propunham incorporar a
noção de “estado perigoso” como fundamento do castigo. De acordo com os
seguidores de Prins, Van Hamel e Von Liszt, a única forma de combater a essa
“criminalidade ambiente”, de caráter endêmico, era deixar de sancionar o sujeito pelo
que fazia e começar a castigá-lo pelo que essencialmente era.49 E se ele fosse
incorrigível? Uma medida que começou a tomar força em diferentes países da
América Latina foi o confinamento de reincidentes em ilhas e colônias
penitenciárias. Esta prática não era uma novidade e havia sido empregada por
diferentes impérios desde o século XVI: a Grã-Bretanha deportava criminosos para
as suas colônias, especialmente para a Austrália; Portugal enviava prisioneiros ao
Brasil e, durante o Segundo Império, a França impôs penas de trabalho forçado para
povoar a Guiana e o arquipélago de Nova Caledônia.50 Também os países sul-
americanos empregaram na etapa independente a pena de desterro, seja para
reafirmar soberania nos confins de seus vastos territórios (o fizeram Chile e
Argentina com a região do Estreito de Magalhães e as Ilhas Austrais), ou deportar os
condenados por certos crimes – estupro, falsificação de moeda, ou inclusive
contravenções – às colônias penitenciárias, como sucedeu no Brasil com Fernando de
Noronha e Ilha Grande.51
49
ANCHORENA, José M. Paz. “La noción de estado peligroso del delincuente”, Revista de
Criminología, Psiquiatría y Medicina Legal, año V, 1918, p. 129-157. Sobre os usos da noção de
periculosidade na justiça argentina, ver: SALVATORE, Ricardo. “Sobre el surgimiento del estado
médico legal en la Argentina (1890-1940)”, Estudios sociales, Buenos Aires, n. 20, 1er. semestre de
2001, p. 81-114.
50
EMSLEY, Clive. Crime, Police, & Penal Policy. European Experiences, 1750-1940. Oxford:
Oxford University Press, 2007, p. 37. Ver também os trabalhos coletados em: GUESLIN, André;
KALIFA, Dominique. Les exclus en Europe, 1830-1930. Paris: Les Éditions de l’Atelier, 1999. E
também em: GODFREY, Barry; DUNSTALL, Graeme (Eds.). Crime and Empire, 1840-1940:
Criminal Justice in Local and Global Context. Cullompton: Willan Publishing, 2005.
51
Sobre as deportações às Ilhas de Fernando de Noronha e Ilha Grande ver: COSTA, Marcos Paulo
Pedrosa. “O Presídio de Fernando de Noronha no século XIX”, In: MAIA, Clarissa Nunes; BRETAS,
Marcos L. (et. al.). História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. V. 1, p. 138-178.
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. Os porões da república: a barbárie nas prisões da Ilha Grande,
1894-1945. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 109-118.
63
determinava a relegação dos malfeiteurs d’habitude a destinos coloniais.52 Aqui não
se tratava tanto da questão jurídica do agravamento da pena por reincidência
(récidive), mas da afirmação do reincidente (récidiviste) como categoria autônoma
no campo das políticas criminais. O ladrão habitual e profissional se tornou a pedra
de toque dentro desse universo, o eixo das mais candentes reivindicações para
endurecer as penas. Se até então o vadio era um sujeito incorrigível por antonomásia,
o clima punitivo finissecular consagrou o reincidente como principal candidato a ser
embarcado pela força e desterrado para sempre.53
52
KALUSZYNSKI, Martine “Le criminel à la fin du XIXe siècle: un paradoxe républicain”, In:
GUESLIN; KALIFA, op. cit., p. 253-266.
53
SOULA, Mathieu. “Récidive et récidivistes depuis deux siècles”, In: ALLINE, Jean-Pierre;
SOULA, Mathieu (Dir.). Les récidivistes. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2011, p. 11-19.
54
CARVALHO, Elysio de. “A delinquência dos estrangeiros”, Boletim Policial, Rio de Janeiro, Ano
VII, n. 6, jun. 1913, p. 218.
64
código.55 Na Argentina, esse mesmo critério restritivo plasmado no Código de 1886
foi objeto de dois questionamentos diferentes.56 Em primeiro lugar, os partidários da
doutrina da periculosidade argumentavam que os ladrões raramente se dedicavam a
uma especialidade apenas, entre as muitas que tinham à mão no mundo do roubo.
Deste modo, circunscrever o castigo a delitos da mesma natureza ou espécie era, para
eles, uma medida insuficiente.57 Em segundo lugar, aparecia uma crítica à decisão de
limitar o agravamento da pena aos delitos com condenação firme. Alguns críticos
usavam os prontuários policiais para explicar que 90% dos delitos cometidos por
ladrões habituais passavam pela justiça sem ser condenados e por isso pediam a
sanção de uma lei que, baseada no conceito de estado perigoso, permitiria “afastá-los
indeterminadamente do meio social”.58
55
Código Penal dos Estados Unidos do Brasil: promulgado pelo decreto n. 847 de 11 de outubro de
1890. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891, art. 40.
56
Este ponto foi criticado por Piñero, Rivarola e Matienzo, os juristas argentinos que em 1891
revisaram o código vigente e fizeram uma proposta de reforma, embora ela não fosse aprovada e,
como no Brasil, continuou em vigência o critério restritivo. Ver: CREAZZO, op. cit., p. 77-82.
57
Ver: ZINNY, Enrique N. La delincuencia en la ciudad de Buenos Aires. Sus factores principales.
Tesis presentada para optar por el Grado de Doctor en Jurisprudencia, Universidad de Buenos Aires,
Facultad de Derecho y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Ed. Adolfo Grau, 1903.
58
Ver: “Reincidencia”, Revista de Policía, Buenos Aires, Año XXIV, n. 561, 1 nov. 1921, p. 505-506.
ANCHORENA, op. cit., p. 138. Também: “La criminalidad en el reincidente”, Revista de Policía,
Buenos Aires, Año VI, n. 131, 1 nov. 1921, p. 165-166. DÍAZ, Emilio, “La reincidencia y el moderno
concepto de la represión”, Revista de Policía, Buenos Aires, Año XXI, n. 483, 1 ago. 1918, p. 317-
318.
59
CAIMARI, Lila. Apenas un delincuente. Crimen, castigo y cultura en la Argentina, 1880-1955.
Buenos Aires, Siglo XXI, 2004. p. 69.
65
passeio, que também chamava “descanso obrigatório” (em forma maliciosamente
irônica, já que os presos viajavam entre dois e três meses no armazém do navio com
os pés acorrentados), devia, para este autor, ser substituído por uma deportação
indeterminada às colônias rurais, única maneira de “aliviar a capital” dessa “praga de
delinquentes de oficio”.60
60
ZINNY, Enrique N. La delincuencia en la ciudad de Buenos Aires. Op. Cit., p. 36-37.
61
QUESADA, Ernesto. Comprobación de la reincidencia. Proyecto de ley presentado al señor
Ministro de Justicia e Instrucción Pública, Doctor D. Osvaldo Magnasco. Buenos Aires: Imprenta y
Casa Editora de Coni Hermanos, 1901, p. 57.
66
se nutrir de retratos fotográficos.62 Esta técnica foi utilizada para formar o que na
Argentina chamaram de “galerias de ladrões conhecidos”, coleções de retratos
acompanhados de uma breve resenha da biografia delitiva, que inclusive chegaram a
ser objetos de troca com outras polícias.
62
No final do século XIX apareceram os primeiros álbuns fotográficos de criminosos no Brasil e
Argentina. Ver, para o caso argentino: FERRARI, Mercedes García. Ladrones conocidos/sospechosos
reservados. Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905. Buenos Aires: Prometeo, 2010. p. 55-
111. E para o Brasil: KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do fotógrafo. Brasil,
segunda metade do século XIX. Campinas: Unicamp, 2010, p. 205-259. E também: PESAVENTO,
Sandra J. Visões do Cárcere. Porto Alegre: Zouk, 2009.
63
Las Siete Partidas del Sabio Rey D. Alfonso el X. Tomo IV. Barcelona: Imprenta de Antonio
Bergnes, 1844, p. 252.
64
FARÍAS, Manuel Mujica. Repertorio de policía. Compilación de las disposiciones vigentes
comunicadas por la “orden del día” de la Policía de la Capital, 1880-1899. Buenos Aires: Imprenta y
Encuadernación de la Policía de la Capital, 1899, p. 303.
65
Idem, p. 304. RODRÍGUEZ, Adolfo E. Historia de La Policía Federal Argentina, Tomo VI, 1880-
1916. Buenos Aires: Editorial Policial, 1975, p. 177. Os policiais brasileiros também usavam as
67
O projeto de Quesada apontava diretamente contra as limitações destes
registros de informação, aos quais via demasiado emaranhados com a mecânica tão
pouco legalista das suspeitas policiais. Além disso, existia um problema de alcance
territorial dos arquivos. Por um lado, no caso dos imigrantes, era impossível agravar
a pena, computando condenações recebidas em seus países de origem, porque não
havia um mecanismo confiável e simples para conseguir essa informação. E ainda a
própria Alcaldía de Policía apenas registrava os fatos delitivos da capital e isso
significava que nem sequer os crimes sancionados em outras províncias contavam na
hora de ponderar a reincidência de um acusado.66 O problema é que esta proposta
significava a construção de um arquivo que diminuía os privilégios da polícia e,
como tal, foi uma das tantas disputas que a instituição manteve com o poder
judiciário. Esta batalha se prolongaria, ao menos, até a década de 1930, quando se
conseguiu criar o Registro Nacional de Reincidência graças ao sucesso da
datiloscopia.67
O novo projeto obrigava aos juízes remeter uma cópia de suas sentenças ao
Ministério da Justiça, nesta nova repartição que ainda teria a seu cargo a elaboração
de estatísticas criminais e carcerárias. Fora do alcance da polícia, o Registro
guardaria esta informação com caráter estritamente “reservada” e apenas poderia ser
usada para responder pedidos formais da justiça. Embora os vigilantes não pareciam
ter posto muita resistência, pediram através de suas revistas que o chefe de polícia
fosse designado como diretor “natural” da repartição, considerando que o arquivo
policial reunia, nesse momento, mais de um milhão de prontuários com informações
sobre reincidentes e profissionais do delito, “minuciosas biografias com infinidade de
pormenores, utilíssimos, das atuações desses sujeitos”.68 Mas ao mesmo tempo o
escritor deslizava um argumento adicional que respondia diretamente ao problema do
alcance territorial desses arquivos. Os prontuários e as fichas datiloscópicas que a
expressões ladrão conhecido e gatuno conhecido, ver: BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas.
Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 105.
66
QUESADA, Ernesto. Comprobación de la reincidencia. Op. Cit., p. 55-57.
67
“Proyecto de Ley. Registro Nacional de Reincidencia”. In: Memoria presentada al Honorable
Congreso de la Nación por el Ministro de Justicia e Instrucción Pública, Dr. José S. Salinas, año
1920, tomo I. Buenos Aires: Rosso y Cia., 1921, p. 11.
68
“El registro nacional de reincidencia y su instalación”, Revista de Policía, Buenos Aires, Año XXI,
n. 481, 1 jun. 1918, p. 271-271.
68
polícia acumulava em seus armários não se limitavam, como se afirmava, a
indivíduos domiciliados na cidade de Buenos Aires. Ainda que essa fosse a
jurisdição que a correspondia, a Polícia da Capital trocava periodicamente
informações com outras províncias e inclusive, “à maneira de gabinete central”,
coordenava as permutas com países europeus e sul americanos.69
Assim chegamos a um ponto crucial para este trabalho. Muitos desses ladrões
profissionais formavam parte dessas “colônias viajantes” as quais Rossi se referia,
uma forma de migração derivada da lógica que governava suas práticas delitivas.
Dedicados quase exclusivamente aos atentados contra a propriedade, estavam longe
daquilo que os criminologistas definiam como “delinquentes ocasionais”. Ao
contrário, os roubos eram para eles uma forma de vida, um ofício que se ensinava e
se aprendia. Mover-se de um país a outro podia ser nesse contexto uma estratégia
para buscar melhores oportunidades, escapar da perseguição judicial ou, ainda, ser
parte do próprio modus operandi da especialidade, tal como sucedia com o tráfico de
mulheres e com certas formas de estelionato.
69
Idem, p. 272. Ver também: “Registro nacional de reincidencia”, Revista de Policía, Buenos Aires,
Año XXI, n. 487, 1 oct. 1918 p. 420-421.
70
Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 10 ago. 1899.
69
Esta tese de soma zero explicava a intensa circulação de criminosos no espaço
atlântico sul-americano, algo que o chefe de polícia e outros vigilantes portenhos
diziam ter confirmado com seus próprios olhos no Rio de Janeiro, quando da visita à
Casa de Detenção da capital brasileira, encontraram vários ladrões bem conhecidos
em Buenos Aires.71 Esses eram os reincidentes, incorrigíveis e delinquentes
profissionais que os policiais do Brasil e da Argentina começaram a perseguir com
estratégias de colaboração internacional, envolvendo ainda outros países sul-
americanos. As leis de expulsão de estrangeiros, sancionadas no começo do século
XX, se converteriam em uma ferramenta de incomparável arbitrariedade, porque
tornaria possível o velho sonho de se desfazer literalmente de uma parte dos viajantes
indesejáveis. A mecânica concreta dessas expulsões abriu uma época de cooperação
sem precedentes, coroada por aquelas duas conferências sul-americanas que tiveram
lugar em Buenos Aires, em 1905 e 1920. A cooperação policial sul-americana era um
fato inédito, não apenas na região, mas no mundo todo.
71
Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 13 ago. 1899.
70
Capitais em movimento
1
MENDES FRADIQUE. Contos do vigário. Rio de Janeiro: Soria & Boffoni Ed., 1922, p. 18-19.
“Mendes Fradique” era o pseudônimo usado pelo caricaturista José Madeira de Freitas, ver: MENDES
FRADIQUE. História do Brasil pelo método confuso. Organização de Isabel Lustosa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, p. 9-26.
2
CARVALHO, Elysio de. “Arsène Lupin, cambrioleur gentleman”. In: Sherlock Holmes no Brasil.
Rio de Janeiro: Casa A. Moura, 1921, p. 139-142.
imigrantes de distintos países, desembarcados há anos, meses ou dias, mas sempre
acostumados ao anonimato como um dado da vida cotidiana. A figura do “recém-
chegado” era central para a experiência urbana do Rio de Janeiro e Buenos Aires
durante a Belle Époque, como era também fundamental a preocupação sobre a
suposta cara perversa das imigrações massivas: o sujeito se infiltrava nas multidões
migrantes para ganhar muito dinheiro com pouco trabalho.
3
CARVALHO, Elysio de. “A delinqüência dos estrangeiros”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de
Janeiro, jun. 1913, p. 222-223.
4
Idem, p. 223.
5
HALPERIN DONGHI, Tulio. “¿Para qué la inmigración? Ideología y política inmigratoria la
Argentina (1810-1914)”. In: El espejo de la historia. Buenos Aires: Sudamericana, 1998, p. 191-238.
72
até 1930, mais de cinquenta milhões de pessoas deixaram a Europa rumo ao
continente americano. Os Estados Unidos foi o país que registrou mais imigrantes
nesse período (32,6 milhões), seguido por Canadá (7,2), Argentina (6,4) e Brasil
(4,3).6
A maior parte desses imigrantes não eram os camponeses das Ilhas Britânicas e
da Europa setentrional que se orientaram em primeiro lugar aos Estados Unidos, mas
tampouco os alemães e italianos do Norte que povoaram as colônias agrícolas de São
Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul antes de 1880. Nessa nova etapa,
predominaram os imigrantes do Sul e Leste da Europa, a maior parte deles homens
jovens, pouco qualificados, que buscavam mercados com maior demanda de mão de
obra e eventualmente melhores salários. “Fazer a América” era o lema que abreviava
a expectativa de acumular economias para regressar com dinheiro a seus países de
origem. Em muitos casos, esse retorno foi uma realidade: mais da metade dos
italianos e algo menos da metade dos espanhóis que ingressaram na Argentina entre
1861 e 1920 voltaram a Europa; e no Brasil, tomando um período mais curto (1899-
1912), retornaram 65% dos imigrantes desembarcados.8
6
BAINES, Dudley. Emigration from Europe, 1815-1930. Cambridge: Cambridge University Press,
1995, p. 1-2.
7
KLEIN, Herbert S. “Migração Internacional na História das Américas”. In: FAUSTO, Boris (Org.).
Fazer a América. A imigração em massa para a América Latina. São Paulo: Edusp, 2000, p. 13-31.
8
DEVOTO, Fernando. Historia de la inmigración en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana,
2009, p. 73.
73
Este ciclo esteve marcado por outros contrastes significativos comparando os
casos de Argentina e Brasil. Em primeiro lugar, as imagens que circulavam na
Europa sobre as condições de vida em ambos os países eram bem diferentes. À
volumosa informação sobre maiores oportunidades de trabalho e melhores salários
no litoral argentino, se somavam a ciência de achar em Buenos Aires um clima mais
parecido com o europeu, o temor às doenças contagiosas no Brasil e o comentário
espalhado sobre o trato quase escravista que denunciavam os trabalhadores das
fazendas de café. Esses fatores motivaram uma forte política de propaganda e
subsídios à imigração organizados pelo estado de São Paulo, enquanto na Argentina
a política de passagens subsidiadas esteve limitada a um breve período na década de
1880.9
Nas últimas décadas do século XX, foi tomando força um discurso que
associava o aumento da população estrangeira com a presença de uma criminalidade
nova e a cada dia mais robusta. Esta ideia circulou – com diferentes nuances – desde
Buenos Aires até o Rio de Janeiro, abrangendo, obviamente, São Paulo. No Brasil,
desde os primeiros anos republicanos já se ouviam vozes de advertência sobre os
9
BERNASCONI, Alicia; TRUZZI, Osvaldo. “Las ciudades y los inmigrantes: Buenos Aires y São
Paulo (1880-1930)”. In: FUNCEB/FUNAG. Brasil-Argentina: a visão do outro. Brasília:
FUNCEB/FUNAG, 2000, p. 205-242.
10
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-
2002). São Paulo: Editora 34, 2005, p. 174-178.
74
efeitos da imigração europeia no crime urbano. A construção de estatísticas criminais
que desagregavam as taxas por nacionalidade era um sintoma desta preocupação. De
fato, dois dos difusores da criminologia no Brasil, José Viveiros de Castro e Cândido
Mota, publicaram estudos que leriam nessas estatísticas claras tendência nas taxas
delitivas do Rio de Janeiro e de São Paulo: os espanhóis e os italianos se destacavam
entre as ofensas físicas e os crimes contra as pessoas; os russos, os alemães e os
polacos dominavam o lenocínio, os portugueses costumavam ser golpistas hábeis e a
população negra se impunha no mundo da gatunagem.11
Em Buenos Aires, essa sentença era muito mais enfática e sua pregnância se
notava na imprensa, na literatura e nos círculos científicos. Desde a década de 1870,
a polícia difundia, em seus relatórios anuais, estatísticas criminais separadas por
nacionalidade e até finais do século manteve um discurso institucional que
frequentemente acusava os imigrantes pelo aumento dos delitos urbanos.14 Tema
11
CASTRO, José Viveiros de. Ensaio sobre a estatística criminal da República. Rio de Janeiro:
Tipografia Leuzinger, 1894. MOTA, Cândido N. Nogueira da. A justiça criminal na capital do Estado
de São Paulo. São Paulo: Espíndola, Siqueira & Cia., 1895.
12
FAUSTO, Boris. Crime a cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Edusp,
2001, p. 71-81.
13
Boletim Policial, Ano I, n. 1, Rio de Janeiro, mai. 1907, p. 4. Ver também: BRETAS, Marcos.
Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907-1930. Rio de
Janeiro: Editora Rocco, 1997, p. 87.
14
Alguns historiadores mostraram que o nexo entre crime e imigração não se sustentava nem sequer
nos próprios dados difundidos nas publicações da polícia, em que os argentinos estavam
75
privilegiado também pelos textos criminológicos, entre eles um livro de Moyano
Gacitúa, que Lombroso qualificou – depois de sua publicação em 1905 – como “o
trabalho mais importante de sociologia e antropologia criminal surgido nestes dois
últimos anos e em ambos os mundos”.15 Tratava-se, ao menos, de um minucioso
estudo das estatísticas que girava em torno ao espinhoso problema do vínculo entre
crime, raça e imigração. O corolário do livro dirigia um questionamento à política
imigratória projetada pelos intelectuais liberais, founding fathers da nação argentina,
em particular a Juan Bautista Alberdi. Para Moyano Gacitúa, pouca atenção havia se
prestado à necessidade de selecionar os estrangeiros que chegavam ao país, levando
em conta que a raça latina (italianos, espanhóis, portugueses) era mais propensa a
cometer delitos. Embora o diagnóstico indicasse que a sociedade argentina ainda não
apresentava realidades criminais “aberrantes e irreversíveis”, era preciso ficar alerta
porque “tudo que se conhece hoje como provocação atrativa do delito está aqui
latente ou militante em palpitação”.16
76
casavam-se com argentinas e passavam a seus filhos as características mais brutais
de sua raça.17 No entanto, além destas ficções condenatórias e das frequentes
paródias da imprensa satírica, houve vozes que se levantaram contra essas leituras,
desde romances que narravam histórias de pacíficos e laboriosos imigrantes, até
visões dissonantes de criminologistas que refutavam as estatísticas desfavoráveis aos
italianos e espanhóis.18
O imigrante era visto como uma pessoa nascida em outro país, mas
transplantada para essas terras sul-americanas que devia laboriosamente cultivar,
incorporando-se ao mercado de trabalho. Em troca, o estrangeiro era representado
como um sujeito errante, sem pátria, domicílio fixo, nem intenção de se fixar. Por
isso, os esforços se concentraram em separar com clareza estes dois universos (os
imigrantes dos estrangeiros, os desejáveis dos indesejáveis), embora ambos
viajassem nos mesmos navios e chegassem pelos mesmos portos.
Na Argentina, a ideia do “aluvião” foi uma metáfora potente para dar conta da
massa humana que ingressava nos países do atlântico sul-americano. Metáfora
carregada de simbologias marítimas, aludia a esse fluir de corpos cujo principal
defeito não era que fossem muitos, mas fundamentalmente que eram anônimos,
desconhecidos, estranhos. Nos fluxos aluviais, cada sujeito perdia singularidade,
tornava-se parte de uma multidão na qual, segundo opinião dos policiais, era muito
17
Ver: ONEGA, Gladys. La inmigración en la literatura argentina (1880-1910). Buenos Aires:
Centro Editor de América Latina, 1982, p. 58-90. LAERA, Alejandra. “Representaciones obliteradas:
inmigrantes y extranjeros en la romance popular argentina del siglo XIX”. In: BRAVO, A. Fernández;
GARRAMUÑO, F.; SOSNOWSKI, S. (Eds.). Sujetos en tránsito: (in)migración, exilio y diáspora en
la cultura latinoamericana. Buenos Aires: Alianza, 2003, p. 231-253.
18
SCARZANELLA, Eugenia. Ni gringos, ni indios. Inmigración, criminalidad y racismo en la
Argentina, 1890-1940. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003, p. 36-37.
77
difícil distinguir os trabalhadores dos perigosos. A amalgamação era um desses
símbolos que acompanhava a imagem do aluvião.
Outra ideia era a da ressaca que deixa a maré. Os indesejáveis eram como as
impurezas abandonadas pela água quando se retira. A imigração “como a ressaca que
as ondas lançam às praias do mar, com espólios bons e ruins, também traz de tudo,
bons e maus elementos”.19 Assim, pensava também o policial carioca Vicente Reis
sobre os crimes cometidos por “mão de estrangeiros, na maior parte evadidos das
prisões” e “impelidos pela enxurrada imigratória”.20 Reis, igual a Moyano Gacitúa,
entendia que os indesejáveis ainda não constituíam um mal irreversível. Mas, como
em qualquer aluvião, o perigo latente era que se instalassem na terra como uma
inundação perene. Esse “transbordamento caudaloso”, escrevia o jurista argentino,
essa “invasão dominadora do crime”, podia se derramar furiosamente pelo solo dos
países sul-americanos.21
Este era um dos discursos sobre os efeitos não desejados das imigrações
maciças. Mas não era o único. Junto à ideia da penetração de sujeitos perigosos
arrastados pelo mesmo aluvião que trazia os trabalhadores honestos, a partir da crise
financeira de 1890, irrompeu uma visão mais abrangente, que arremetia contra o
mesmíssimo conceito de “fazer a América”. Não apenas o delito, mas o culto
desmedido ao dinheiro, a motivação do lucro e da cobiça apareciam como
consequências de uma sociedade cosmopolita desprovida de valores nacionais. O
burguês especulador, o advogado inescrupuloso, o jogador compulsivo e o agiota
judeu estariam agora sentados no banco dos acusados.
19
Boletim Policial, Rio de Janeiro, Ano IV, n. 1, jun. 1910, p. 8.
20
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903, p. 2.
21
GACITÚA, Cornelio Moyano. La delincuencia argentina. Op. Cit., p. VII.
78
Cidades e cobiças
“Quando a parteira atira neste vale de lágrimas um homo sapiens, não vem ele
munido de carteira ou livro de cheques”, ironizava um escritor e caricaturista
brasileiro com pseudônimo de Mendes Fradique. “Traz para a função de apropriação
apenas dois elementos: miolo e gadanho, que, segundo o grau de perfeição a que
atinjam, podem dar um pick-pocket, um banqueiro ou um cavalheiro da indústria”.22
A massa encefálica, em alusão à astúcia, e as garras das aves de rapina, cuja própria
existência depende da destruição dos outros, eram duas potentes figuras entre os
textos que condenavam a libertinagem da vida metropolitana. No início do século
XX, a denúncia sobre os efeitos devastadores do dinheiro tinha essa tônica
niveladora que podia igualar um ladrão com um homem das finanças: a avareza – se
dizia – pouco distingue entre ricos e pobres, nacionais e estrangeiros, homens e
mulheres. Tudo se misturava ao ritmo da circulação do dinheiro, “igual às vitrines
desrespeitosas dos cambalaches”, segundo protestava o tango de Santos Discépolo,
em 1934, comparando o século XX com as lojas nas quais se trocavam bugigangas.
22
MENDES FRADIQUE. Contos do vigário. Op. Cit., p. 96.
23
Esta visão tomou força depois da crise de 1890 e se materializou em uma infinidade de intervenções
escritas de um incipiente nacionalismo de direita. Sobre o tema, ver: DEUTSCH, Sandra McGee. Las
derechas. La extrema derecha en la Argentina, el Brasil y Chile, 1890-1939. Bernal: Universidad
Nacional de Quilmes, 2005, p. 49-85.
79
Essas ideias encontraram no crack de 1890 uma conjuntura ideal para serem
escutadas. A crise financeira se desencadeou em Buenos Aires e teve como efeito
mais visível a quebra da companhia bancária Baring Brothers, provocada por seus
investimentos no Rio da Prata e pela suspensão de pagamentos do estado argentino.
Embora a companhia tenha sido resgatada pelo Banco da Inglaterra, evitando que a
crise se expandisse, teve um forte impacto na economia argentina, com a depreciação
da moeda e revogação dos créditos.24 O impacto chegou ao Brasil no final desse ano,
derrubando os preços das ações e agravando uma instabilidade financeira que se
arrastava desde 1886. Rui Barbosa, primeiro Ministro da Fazenda da República,
continuou a política de créditos outorgando a diversos bancos o poder de emitir
papel-moeda, o que provocou uma febre especulativa similar a de Buenos Aires. Este
processo foi conhecido no Brasil como “encilhamento”, uma analogia com a
preparação que se dá aos cavalos antes das corridas.25
24
ROCCHI, Fernando. “El péndulo de la riqueza: la economía argentina en el período 1880-1916”. In:
LOBATO, Mirta (Comp.). El progreso, la modernización y sus límites. Nueva Historia Argentina,
vol. 5. Buenos Aires: Sudamericana, 2000, p. 37-40.
25
Sobre o “encilhamento”, ver: SCHULZ, John. A crise financeira da abolição, 1875-1901. São
Paulo: Edusp, 1996, p. 75-100.
26
QUESADA, Ernesto. “Discurso pronunciado por el doctor Ernesto Quesada, con motivo de
fundarse la Asociación de los Hombres de letras del Brasil”. Nueva Revista de Buenos Aires, año III,
tomo 8, Buenos Aires, Imprenta y Librería de Mayo, 1883, p. 477. Sobre as consequências da crise de
1890 e a “especulação desenfreada”, ver do mesmo autor: QUESADA, Ernesto. Dos novelas
sociológicas. Buenos Aires: Jacobo Peuser, 1892. p. 7-8.
80
portenha Don Quijote, o presidente brasileiro Deodoro da Fonseca aparecia gordo e
inflado pela emissão monetária, enquanto um burro argentino gargalhava gritando
“como a mí te pondrá el oro”.
27
MARTEL, Julián. La Bolsa. Estudio social. Buenos Aires: Imprenta Artística Buenos Aires, 1898,
p. 173.
81
precisamente “ciclo da bolsa” e que compreende outras obras como Quilito de Carlos
María Ocantos e Horas de fiebre de Segundo Villafañe, todas publicadas em 1891,
que tiveram sempre o motor da trama na ânsia de obter dinheiro.28
28
Sobre esses romances, ver: LAERA, Alejandra. “Danza de millones: inflexiones literarias de la
crisis de 1890 en Argentina”, Entrepasados, Buenos Aires, n. 24-25, p. 135-147, 2003. BIBBÓ,
Federico. “Dinero, especulación y pobreza: las novelas de la crisis en los límites de la
modernización”. In: LAERA, Alejandra (Dir.). El brote de los géneros. Historia crítica de la literatura
argentina. Buenos Aires: Emecé, 2010. V. III, p. 535-553.
29
WASSERMAN, Renata Mautner. “Financial Fictions: Émile Zola´s L´Argent, Frank Norris´ The
Pit, and Alfredo de Taunay´s O Encilhamento”, Comparative Literature Studies, Penn State
University Press v. 38, n. 3, p. 193-214, 2001.
30
Esta ideia da emergência de uma “sociedade mundial” foi desenvolvida pelas teorias sistemáticas da
globalização, ancoradas na noção de interdependência das nações. Veja um panorama dessa
perspectiva em: IANNI, Octavio. Teorías de la globalización. México: Siglo XXI, 2006. p. 44-58.
82
planeta podia repercutir imediatamente em outra.31 Essa circulação mundial do
dinheiro terá seu episódio mais dramático no crack de 1929, contudo seus contornos
estavam claramente delineados nesses romances financeiros do oitocentos tardio.
31
Taunay, por exemplo, inclui no relato o texto de um telegrama publicado na imprensa carioca,
anunciando uma nova companhia de pesca nos Mares do Sul. “estourou o telegrama como uma bomba
na bolsa do Rio de Janeiro e as ações da companhia tão favorecida pularam logo a $60”. TAUNAY,
Visconde de. O Encilhamento: cenas contemporâneas da Bolsa do Rio de Janeiro em 1890, 1891 e
1892. São Paulo: Melhoramentos, 1923. p. 258.
32
SIMMEL, Georg. “Las grandes urbes y la vida del espíritu”. In: El individuo y la libertad. Ensayos
de crítica de la cultura. Barcelona: Península, 1986, p. 247-261.
33
TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 223-224. A ideia de “modernidade
neurológica” foi tratada por: SINGER, Ben. “Modernity, Hyperstimulus, and the Rise of Popular
Sensationalism”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (Eds.). Cinema and the Invention of
Modern Life. Berkeley: University of California Press, 1995. p. 72-99.
83
inflado. Mas o crack de 1890 prejudicou o advogado até colocá-lo perto da ruína e
seus espúrios sócios desapareceram deixando numerosas dívidas. Para pagar os
credores e salvar sua honra, termina apostando o pouco que lhe resta em uma corrida
de cavalos, supostamente combinada, em que, no entanto, perde todo o seu dinheiro.
O panorama que Martel descrevia na Buenos Aires do final do século XIX bem
poderia sintetizar-se com uma frase que José Murilo de Carvalho usou para o Rio de
Janeiro desses mesmos anos: “os heróis do dia eram os grandes especuladores da
bolsa”.34 Nos romances de Martel e Taunay, a Bolsa de Comércio era uma metáfora
do colapso geral das cidades e também de sua essência trapaceira. As capitais
pareciam como grandes montagens cenográficas nas quais o dinheiro transmutava
todo o tempo (de papel e moeda a títulos e ações), exibindo seu caráter artificioso:
34
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 27.
35
TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento, Op. Cit., p. 224-225.
36
CÂNDIDO, Antonio. “Visconde de Taunay e os fios da memória”. In: Formação da Literatura
Brasileira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2000. p. 275-282. Sobre Taunay e o encilhamento ver
84
agora o universo dos arrivistas rastaquoères. A febre bursátil era um
“indecorosíssimo e frenético jogo que, debaixo das mais variadas formas,
ultimamente se implantou no Rio de Janeiro e em muitos pontos do país, penetrando
no seio das melhores famílias”.37
também: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1995.
37
TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 301.
38
Idem, p. 20. Existem estudos sobre esses conflitos entre aristocratas e adventícios para as capitais de
Argentina e Brasil na Belle Époque: NEEDELL, Jeffrey D. A Tropical Belle Époque: Elite, Culture
and Society in Turn-of-the Century Rio de Janeiro. Princeton: Princeton University Press, 1987. p. 82-
115. LOSADA, Leandro. La alta sociedad en la Buenos Aires de la Belle Époque. Buenos Aires:
Siglo XXI, 2008. p. 319-340.
39
MARTEL, Julián. La Bolsa. Op. Cit., p. 173.
40
Idem, p. 7.
85
vistos por Taunay como “enorme massa passiva e hipnotizada nas mãos de quatro ou
cinco dezenas de ávidos bolsistas”, todos caiam sucumbidos por investir em ações de
novas e duvidosas empresas que “surgiam como irisados e radiantes cogumelos após
chuvas”.41
41
TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 20; 235.
42
MARTEL, Julián. La Bolsa. Op. Cit., p. 11.
43
TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 16.
44
MARTEL, Julián. La Bolsa. Op. Cit., p. 152.
86
de roubos e furtos, para os quais as leis em vigor são de uma brandura irrisória”. A
esses personagens dava o nome de receptadores, uma “corja daninha que estende seu
manto protetor sobre a gatunagem”.45 Junto aos compradores de coisas roubadas,
apareciam outras figuras que os policiais desvendavam, como o advogado de gatunos
e, em especial, o agiota:
45
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio. Op. Cit., p. 7-10.
46
“Los usureros”, Magazine Policial, Buenos Aires, Año 2, n. 9, abr. 1923, p. 41.
47
“La usura en Buenos Aires. Crecimiento prodigioso de los Bancos de Préstamo”, Sherlock Holmes,
Buenos Aires, Año III, n. 88, 4 mar. 1913, p. 23.
48
“La usura en Buenos Aires”, Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año III, n. 100, 27 may. 1913, p. 8-
12. A condenação moral dos usurários, pela revista, chegou até o ponto de justificar a ação de uma
mulher que assassinou um agiota. Ver: “Bajo las garras del águila negra. Las víctimas de la usura”,
Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año III, n. 104, 24 jun. 1913, p. 12-16.
49
Nestas notícias sobre a usura se criticava o credor judeu, mencionado também nos romances de
Martel e Taunay. Ver: BAGÚ, Sergio. “Julián Martel y el realismo argentino”, Comentario, Buenos
Aires, oct. 1956, p. 9-15. Um antissemitismo ainda mais violento aparece em um livro dedicado
87
inescrupuloso e o financista corrupto, engrossando as fileiras da aristocracia criminal
nestas cidades da cobiça.
Os romances bursáteis realizavam uma crítica que não se centrava nos vícios
da plebe nem das chamadas “classes perigosas”. Embora o cenário narrativo fosse
totalmente metropolitano, os cortiços, prostíbulos e tugúrios do submundo brilhavam
por sua ausência. Seu lugar era ocupado por entidades bancárias, salões de baile,
clubes e hipódromos, portadores de uma forma diferente de imoralidade. Nesse
território, a Bolsa de Comércio era o eixo nevrálgico de todos os males ou, em
palavras de Taunay, o “centro miasmático” do qual emanavam todas as pestilências
da febre do ouro.50 A literatura modernista do século XIX soube elaborar um relato
crítico do culto ao dinheiro e o consumo desenfreado, instalando uma suspeita sobre
o próprio caráter civilizatório das grandes cidades.51
integralmente à usura, escrito por um oficial da polícia portenha: BARRÉS, Manuel. Males sociales.
Buenos Aires: Imprenta López, 1939.
50
TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 301.
51
SCHORSKE, Carl E. “The Idea of the City in European Thought: Voltaire to Spengler”. In:
HANDLIN, Oscar; BURCHARD, John (Eds.). The Historian and the City. Cambridge: The MIT
Press, 1966, p. 103-104. Ver também: SCHORSKE, Carl E. La Viena de fin de siglo: política y
cultura. Buenos Aires: Siglo XXI, 2011.
52
LANCELOTTI, Miguel A. “El factor económico en la producción del delito”, Criminalogia
Moderna, Buenos Aires, Año III, n. 16, feb. 1900, p. 496.
88
“miséria dourada” alcançava a todos os estratos da alta sociedade, disposta a
“recorrer a artifícios ilícitos e ilegais” para satisfazer seus inescrupulosos luxos.
Também se destacava Florida, a rua das lojas mais sofisticadas, que em 1900
recebeu o presidente Campos Sales com uma deslumbrante instalação de iluminação
elétrica. Se prestarmos a atenção aos relatos de brasileiros que viajaram a Buenos
Aires nas três primeiras décadas do século XX, além de reafirmar a fama de cidade
europeia, sobressai admiração que provocava sua fachada mais aristocrata. “A capital
platina caracteriza a sua equiparação aos grandes centros cosmopolitas do globo:
seus hotéis são monumentos” escrevia Arthur Dias, jornalista integrante da comitiva
que acompanhou a Campos Sales em sua visita.55 Inclusive Mario Cattaruzza, em um
livro que construía uma visão muito mais crítica de sua estadia na Argentina, opinava
que ao lado da Avenida de Mayo, “os grandes boulevards de Paris não têm nada de
superior”.56 A mesma impressão teve outro jornalista em 1916, quando viajou junto
53
Embora o mito da cidade europeia estivesse fortemente ligado às reformas de Alvear, a inspiração
francesa na trama urbana de Buenos Aires existia desde muito antes. Uma genealogia desse mito pode
se encontrar em: GORELIK, Adrián. “¿Buenos Aires europea? Mutaciones en una identificación
controvertida”. In: Miradas sobre Buenos Aires: historia cultural y crítica urbana. Buenos Aires: Siglo
XXI, 2004, p. 71-94.
54
BRAUN, Carla; CACCIATONE, Julio. “El imaginario interior: el intendente Alvear y sus
herederos. Metamorfosis y modernidad urbana”. In: VÁZQUEZ-RIAL, Horacio (Dir.). Buenos Aires,
1880-1930. La capital de un imperio imaginario. Madrid: Alianza, 1996, p. 32-71.
55
DIAS, Arthur. Do Rio a Buenos Aires. Episódios e impressões d´uma viagem. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1901, p. 90.
56
CATTARUZZA, Mario. Buenos Aires: aspectos da cidade, o Congresso Pan-Americano. Rio de
Janeiro: s/n, 1906, p. 24.
89
com uma delegação diplomática encabeçada por Rui Barbosa para assistir os festejos
pelo centenário da Independência. “Há certamente em Buenos Aires um pouco de
ostentação de riqueza”, concluía após um passeio pela Avenida Alvear, Palermo e
seu Hipódromo, cujos passeantes lhe outorgavam “um aspecto tão distinto como as
dos prados de Paris e Londres”.57 Por último, Luiz Amaral revelava em 1927 a
persistência deste olhar:
Mas ao contrário do que sugeria o relato de Arthur Dias, neste momento o Rio
de Janeiro não parecia estar tão atrasado em suas pretensões de metrópole moderna.
Igual a Buenos Aires, havia passado comodamente a faixa de um milhão de
habitantes e podia se orgulhar de ter seu próprio Haussmann: sob a mesma
racionalidade política que orientou as reformas urbanas de Paris e Buenos Aires
(edificar uma cidade moderna a partir dos seus escombros), o prefeito Francisco
Pereira Passos iniciou uma série de demolições no velho centro, prolongando ruas e
abrindo amplos bulevares.59 A glamorosa Avenida Central inaugurada em 1905 nada
tinha que invejar sua antecessora portenha com seus edifícios de estilo eclético que
se construíram ao longo de seu trajeto.
57
BRANT, Mario. Viagem a Buenos Aires. Rio de Janeiro: Tip. Martins de Araujo & Cia., 1917, p.
70.
58
AMARAL, Luiz. A mais linda viagem. Um “raid” de vinte mil kilómetros pelo interior brasileiro.
São Paulo: Melhoramentos, 1927, p. 51.
59
BENCHIMOL, Jaime. Pereira Passos, um Haussmann Tropical. Rio de Janeiro: Biblioteca
Carioca, 1992.
90
“Avenida Central” (Rio de Janeiro, 1906) Fotografia de Augusto Malta
Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
91
Era precisamente o aspecto ostentoso que envolvia estas artérias e seus
aristocratas caminhantes o que incomodava a alguns escritores, fundamentalmente
aos críticos das políticas urbanas que modernizavam expulsando as classes populares
do centro. Era o caso de Lima Barreto: em 1915, condenava essas “elegâncias
idiotamente binoculares” que se multiplicavam junto com os bulevares. Para este
flâneur dos subúrbios cariocas, o Rio de Janeiro corria atrás da ilusão de parecer a
Paris ou, o que era ainda pior, a versão sul-americana de Paris. “A obsessão de
Buenos Aires sempre nos perturbou o julgamento das coisas”, insistia enfurecido
ante as fantasias de imitar a essa cidade de longas ruas retas, realidade que julgava
impossível para a geografia local interrompida por gigantescos morros.60 Por isso
ironizava sobre os discursos que enalteciam a “rainha do Prata”, essa “verdadeira
capital europeia”, essa cidade tão “limpa, bonita, elegante”, frente a qual o Rio de
Janeiro ficava reduzido a uma mísera “estação de carvão”.61 Edificar uma cidade
europeia as custas da destruição e negação de outra cidade que agora sobrevivia nos
subúrbios da capital: essa era a denúncia dirigida por Lima Barreto contra o culto às
aparências.
Mas Buenos Aires também teve seus cronistas maldizentes da Belle Époque.
Inclusive no momento de maior otimismo, em plenos festejos pelo primeiro
Centenário da Revolução de Maio, enquanto ilustres visitantes franceses, como
Georges Clemenceau ou Jules Huret, estavam cheio de elogios em relação à
Argentina, o jornalista espanhol Miguel Toledano (com pseudônimo de Miguel Gil
de Oto) chamava o país de “nação da quimera e da mentira”.62 Para Toledano,
Buenos Aires vivia um “delírio de grandeza”, imensa mise-en-scène pronta para
desmoronar-se em pedaços a qualquer momento. O suporte era, por enquanto, essa
60
BARRETO, Lima. “A Volta”, In: Toda crônica. Vol. 1 (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004, p.
166.
61
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 136.
62
GIL DE OTO, Manuel. La Argentina que yo he visto. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2010, p.
151. Sobre Buenos Aires e os festejos do Centenário, ver: SALAS, Horacio. “Buenos Aires 1910:
capital de la euforia”. In: GUTMAN, Margarita; REESE, Thomas (Eds.). Buenos Aires 1910: el
imaginario para una gran capital. Buenos Aires: Eudeba, 1999, p. 41-54.
92
grande montagem construída sobre o luxo fictício, por uma aristocracia rural que da
crise de 1890 não havia podido extrair nenhuma lição.
Algo não se pode negar: desde Julián Martel até Alfredo de Taunay, desde
Lima Barreto até Gil de Oto, a inquietação pelos modos de circulação do dinheiro
nas cidades estava vinculada à questão da “simulação”. Na Argentina, converteu-se
em um verdadeiro tema de época, tratado com igual fervor em textos científicos de
criminologia e ensaios de interpretação nacional. A onda imigratória havia
convertido Buenos Aires em um cenário de interações entre desconhecidos, uma
massa confusa em que se misturavam todos os tipos de sujeitos. Assim imaginava
José María Ramos Mejía, em Las multitudes argentinas, quando descrevia esta
tipologia de arrivistas na qual despontavam duas variedades dos chamados
guarangos: o canalha (“que ascendeu pela escada do bom vestir ou do dinheiro”) e o
burguês (“milionário improvisado nascido do sortilégio da loteria”).64 Mais
preocupado ainda se mostrava Manuel Gálvez sobre a simulação: o argentino era
“superficial e exibicionista, tem a arrogância do ignorante metido e pratica um
arrivismo desenfreado, ostentando seus desejos de rastaquouère e sua forçada
teatralidade”.65
63
GIL DE OTO, Manuel. La Argentina que yo he visto. Op. Cit., p. 44-45.
64
RAMOS MEJÍAS, José M. Las multitudes argentinas. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1899, p. 320.
65
GÁLVEZ, Manuel. El diario de Gabriel Quiroga. Opiniones sobre la vida argentina. (1910).
Buenos Aires: Taurus, 2001, p. 122.
93
simulavam-se o talento, a honestidade, os vínculos sociais e políticos, a riqueza, o
estudo, a fortuna com as mulheres, a fama literária ou científica.66 A sombra do
adventício atravessava todas as conversações do patriciado portenho, se infiltrava em
bailes e revelava que seus espaços de sociabilidade eram mais permeáveis do que a
elite desejava. De fato, apesar de um dos seus filhos prediletos, Miguel Cané, sugerir
maliciosamente que reconhecia os adventícios nos salões porque entravam
“tropeçando com os móveis”, os contornos da alta sociedade eram certamente mais
borrados.67
66
Idem, p. 122-123. Esta visão ampla da simulação também aparece em INGENIEROS, José. La
simulación en la lucha por la vida. Buenos Aires: Spinelli, 1903.
67
CANÉ, Miguel. “De cepa criolla” (1884). In: Prosa ligera. Buenos Aires: La cultura argentina,
1919, p. 124.
68
“Los bribones aristocráticos”, Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año II, n. 68, 15 oct. 1912, p. 22-25.
Outro exemplo, neste caso chego da Alemanha, em: “Notas del extranjero. Aristócrata ladrón”,
Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año II, n. 75, 3 dic. 1912, p. 59.
94
aparências de verdadeiro “homme du monde”, habituado a chegar a destinos com
malas cobertas dessas etiquetas de cores que indicavam a frequentação dos hotéis
mais luxuosos da Europa.69 A imprensa fez eco deste curioso ladrão aristocrata, uma
“encarnação do banditismo cavalheiresco” que o cronista imediatamente associava a
essa “malandragem de alto tom que desfilava ante os olhos atônitos dos espectadores
de cinematógrafos”.70 Na realidade, os delinquentes gentleman alcançariam uma
fama especial na indústria do cinema, em que se trasladou a devoção da literatura do
novecentos pelos assassinos seriais, estelionatários e ladrões viajantes que faziam uso
dos mais modernos transatlânticos, telégrafos e, a partir do século XX, também de
telefones, automóveis e aeronaves.
Fantômas foi, sem dúvidas, a série mais famosa e – como mostrou Dominique
Kalifa – em seu êxito estava cifrada uma mutação na topografia dos imaginários
criminais. Paris estava perdendo sua condição de capital mundial da ladroagem, não
apenas pela emergência dos Estados Unidos e seus gangsters, mas também pela
aparição de inumeráveis histórias que falavam de um universo mais policêntrico, um
espaço mundializado com gatunos que passeavam suas ações por vários
continentes.71 No entanto, apesar da complexidade da relação entre as representações
do crime e o seu devir concreto como prática social, abundam os indícios sobre a
existência destas novas formas delitivas, além de suas manifestações literárias e
cinematográficas. Embora frequentemente incorram em excessos e dramatizações
monumentais, jornalistas e literatos davam conta de algumas mutações efetivas nas
trajetórias criminais.
O rato de hotel era uma das figuras estereotípicas do ladrão viajante, junto ao
punguista internacional, o falsificador e alguns vigaristas. Além de certo nível de
mobilidade territorial, era identificado por duas qualidades, que, ao mesmo tempo, o
separava do universo dos pequenos punguistas urbanos. Em primeiro lugar, o aspecto
físico, em particular a vestimenta: “o ladrão dos nossos dias é um tipo como qualquer
um de nós”, opinava o escritor brasileiro Elysio de Carvalho, já que “vestindo-se
69
LOCARD, Edmond. Le Crime et les Criminels. Paris: La Renaissance du Livre, 1925, p. 100-104.
70
“Los bribones aristocráticos”, Op. Cit., p. 22.
71
KALIFA, Dominique. “La fin des classes dangereuses? Ouvriers et délinquants dans la série Des
Fantômas (1911-1913)”. In: Crime et culture au XIXe siècle. Paris: Perrin, 2005, p. 116-129.
95
com apurada elegância” conseguia “todas as aparências de um verdadeiro
gentleman”.72 Similar impressão causava ao delegado Alberto Dellepiane o
canfinflero, palavra da gíria portenha que aludia aos exploradores de mulheres. O
policial arremetia contra este personagem, cuja elegância não negava, dirigindo
igualmente seu discurso a uma cidade que apenas exigia construir um semblante
atraente, apresentar ante o olhar dos demais como “elementos triunfadores” e, no
possível, “sem ostentar o menor sinal de pobreza, único e exclusivo sinal que a
sociedade rejeita”.73
“El Canfinflero”
Fonte: Sherlock Holmes, Año II, n. 58, Buenos Aires, 6 ago. 1912, p. 29.
72
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano
VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 143.
73
DELLEPIANE, Alberto. “El canfinflero”, Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año II, n. 58, 6 ago.
1912, p. 29. Ver também: MARIUS, Hugo, “Plagas sociales. El canfinflero”, Revista de Policía,
Buenos Aires, Año XV, n. 357, 1 abr. 1912, p. 186.
96
A segunda qualidade distintiva dos criminosos viajantes era dada pelos seus
modos. Certo physique du rôle delicado era necessário para ingressar em hotéis sem
inspirar desconfiança, estabelecer conversações na primeira classe dos transatlânticos
ou se aproximar de um cavalheiro para propor algum negócio. No Brasil, inclusive,
vários deles ostentavam o título de “doutor” como forma de iniciar alguns dos
múltiplos pseudônimos que acompanhavam uma carreira delitiva. “Dr. Antônio” era
o nome mais conhecido de Arthur Antunes, um rato de hotel que passou à fama
porque publicaram suas memórias.74 Dr. Anísio e Dr. Cornélio eram outros dos
ladrões a quem Carvalho chamava de “moços bonitos” quando em 1913 anunciava –
com certo ar de paródia – que haviam acabado os tempos dos “ladrões de galinhas,
sujos e repelentes”.75 Ainda na década de 1930 se viam os retratos de José Augusto
Braga (Dr. Braguinha) e Paulo Alves Ferreira (Dr. Junqueira) vestidos com elegantes
trajes em uma galeria fotográfica de ladrões cariocas.76
74
DR. ANTÔNIO. Memórias de um rato de hotel. A vida do “Dr. Antônio” narrada por ele mesmo.
Rio de Janeiro: s/d, 1912.
75
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Rio
de Janeiro, Ano VII, n. 4, abr. 1913, p. 58-65.
76
Ver os retratos, sem numeração de páginas, ao final do livro: PEDREIRA, Rolando. Lições de
Polícia Prática (seguida de uma galeria dos principais habitués das prisões do Distrito Federal). Rio
de Janeiro: Ed. da Gazeta Policial, 1935.
77
ENZENSBERGER, Hans M. “La balada de Chicago: modelo de una sociedad terrorista”. In:
Política y delito. Barcelona: Seix Barral, 1968, p. 105.
97
De qualquer maneira, devemos ser cautelosos em um ponto: que se haja
prestado escassíssima atenção a esta sorte de Belle Époque do crime, não implica que
os contemporâneos tivessem poucas notícias sobre o fenômeno. Junto aos poeirentos
papéis dos arquivos policiais, muitos são os documentos impressos que testemunham
a existência desta aristocracia do roubo tão frutífera no início do século XX e, além
disso, as vozes não são desconhecidas. Cronistas prestigiosos na imprensa carioca,
como Elysio de Carvalho e João do Rio, narraram tantas histórias de ladrões
viajantes, como os argentinos Eduardo Gutiérrez, Fray Mocho ou Roberto Arlt, e
nenhum deles o fez com uma frase tão requintada como a que o poeta Olavo Bilac
escreveu para a Gazeta de Notícias de 10 de novembro de 1907:
78
BILAC, Olavo. “Crônica. 10 nov. 1907”, In: DIMAS, Antonio (Ed.). Bilac, o Jornalista. Crônicas.
Vol. 1. São Paulo: Edusp/Unicamp, 2006, p. 850.
98
PARTE II
TECNOLOGIAS E CIRCULAÇÕES
As polícias estrangeiras
1
SARMIENTO, Domingo F. Viajes por Europa, África i América, 1845-1847. Madrid: Edición
Crítica ALLCA XX, 1996, p. 35.
2
GORON, Mr. Las policías extranjeras. Madrid: Sáenz de Jubera Hermanos, 1902.
3
Sobre as memórias policiais como prática de escrita, ver: KALIFA, Dominique. “Les mémoires de
policiers: l’émergence d’un genre?”. In: Crime et culture au XIXe siècle. Paris: Perrin, 2005, p. 66-
103; e os trabalhos reunidos em: MILLIOT, Vincent (dir.). Les mémoires policiers, 1750-1850.
Écritures et pratiques policières du Siècle des Lumières au Second Empire. Rennes: Presses
Universitaires de Rennes, 2006.
publicado em 1929 já indicava a existência de um rico acervo com milhares de
livros, folhetos e revistas especializadas.4
Ainda que por intuição se associe a polícia com o uso da força, como uma
atividade eminentemente muscular, o certo é que ela constitui, antes que nada, um
saber: conhecimento sobre o território, seus habitantes e seus costumes. A “cultura
policial” foi assinalada por sociólogos e historiadores como um dos nós centrais para
entender esta instituição, muito mais que sua organização formal e seus fundamentos
jurídicos.5 Essa cultura tem, ao menos, duas dimensões entrelaçadas. Em primeiro
lugar, ela existe cristalizada em aquilo que os policiais exibem orgulhosamente como
a “experiência”, um savoir-faire informal, aprendido nos anos de carreira e nas suas
escolas prediletas (a delegacia e a rua). Em segundo lugar, existe também refletida
em um saber técnico, frequentemente chamado “científico”, de corte erudito,
transmitido através de livros, manuais, revistas e, a partir do século XX, ensinado por
professores nas academias de polícia.6
Tanto na Argentina como no Brasil esta segunda forma cultural teve seguidores
e diferentes vias de difusão. A Polícia de Buenos Aires foi pioneira neste sentido,
visto que desde a década de 1870 se nota a reprodução de uma verdadeira linhagem
de policiais escritores que lançaram os primeiros periódicos policiais da região. La
Revista de Policía e sua continuação Anales de Policía (1871-1872) iniciaram uma
série que – com algumas breves interrupções – se estendeu até a primeira metade do
século XX. O maior de todos estes empreendimentos, Revista de Policía (1897-
1939), foi publicada quinzenalmente durante mais de quarenta anos e se consolidou
4
POLICIA DE LA CAPITAL. Oficina General de Estadística y Biblioteca: Catálogo General de la
Biblioteca. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Policía, 1929.
5
Ver REINER, Robert. The Politics of the Police. London: Wheatsheaf, 1992, p. 107-137.
MONJARDET, Dominique. Ce que fait la police: sociologie de la force publique. Paris: Éditions La
Découverte, 1996, p. 155-165.
6
Estas duas dimensões refletem os significados da noção de cultura aos que se referem Pierre
Bourdieu e Roger Chartier: a cultura em sentido amplo, “sem qualidades”, ou seja, o conjunto de
práticas que dão conta do modo em que um grupo representa o espaço social e seu próprio papel
dentro dele, e a cultura “distinguida” como aquela à qual atribuímos um sentido refinado, não apto
para profanos, cuja compreensão profunda está reservada aos especialistas. Ver CHARTIER, Roger;
BOURDIEU, Pierre. “A leitura: uma prática cultural”. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas da
leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 231-253. Também: CHARTIER, Roger. El orden de
los libros. Lectores, autores, bibliotecas en Europa entre los siglos XIV y XVII. Barcelona: Gedisa,
2005, p. 19-22.
101
como a tribuna de opiniões iniludíveis para qualquer debate policial. Nesta
publicação, se difundiam os textos dos principais escritores da polícia portenha
(autores como Antonio Ballvé, Leopoldo López, Manuel Mujica Farías, Luis Albert
o Ernesto de Mendizábal), que ainda se preocuparam por sistematizar esses
conhecimentos em manuais de estudo e livros de instrução para os vigilantes.7
Era difícil para a Brigada Policial lutar contra essas inclinações, porque os
soldados – como escrevia um redator da revista – provinham “dessa própria camada
social, densa e inculta, que constitui o proletariado da nossa terra”.10 Esse problema
7
Por exemplo: MENDIZÁBAL, Ernesto de. Memento policial: o Breve manual del empleado de la
policía. Buenos Aires: J. Peuser, 1897. BALLVÉ, Antonio. Manual de instrucción policial para
sargentos, cabos y vigilantes. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital,
1898. BALLVÉ, Antonio. Texto de Instrucción Policial (primera edición). Buenos Aires: La Revista
de Policía, 1899. LÓPEZ, Leopoldo. Texto de Instrucción Policial. Buenos Aires, 1910. Sobre os
policiais escritores de Buenos Aires ver: GALEANO, Diego. Escritores, detectives y archivistas. La
cultura policial en Buenos Aires, 1821-1910. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009.
8
México teve revistas policiais anteriores às de Brasil, mas também foram publicadas por breves
períodos. Ver: SPECKMAN GUERRA, Elisa. Crimen y castigo. Legislación penal, interpretaciones
de la criminalidad y administración de justicia (Ciudad de México, 1872-1910). México: El Colegio
de México/UNAM, 2002, p. 115-136.
9
Ver sobre esta revista: BRETAS, Marcos L. “Revista Policial: formas de divulgação das polícias no
Rio de Janeiro de 1903”, História Social, n. 16, Unicamp, primeiro semestre de 2009, p. 87-104.
10
C.A.C. “O soldado de polícia”, Revista Policial, Ano I, n. 3, Rio de Janeiro, 25 out. 1903, p. 21. O
principal redator da revista, Cruz Sobrinho, havia publicado alguns anos antes um guia de
procedimentos voltada aos agentes da Brigada: CRUZ SOBRINHO. Guia processual para a Brigada
Policial. Rio de Janeiro: Pap. L. Macedo, 1896.
102
da base social dos vigilantes de rua esteve também presente na Polícia de Buenos
Aires, durante toda a segunda metade do século XIX.11 No entanto, no início de
novecentos, o panorama começava a mudar. Aparecia as primeiras escolas de
formação de agentes e a Revista de Policía se posicionava como um aliado vital na
tarefa de educação dos vigilantes, que podiam conseguir uma assinatura especial por
trinta centavos mensais.
O jornalista e poeta Félix Pacheco a dirigiu desde sua criação em 1903, e logo
ocuparam a chefia o advogado Edgard Costa, autor de várias obras sobre
jurisprudência criminal, e o polifacético escritor Elysio de Carvalho.13 Este último
marcou o ritmo da revista, estabelecendo um diálogo estreito com as discussões
internacionais sobre as técnicas de identificação e polícia científica, mas
simultaneamente dando certo espaço a um saber policial mais profano e até a um
certo relato literário sobre a criminalidade, desde uma perspectiva que denominou
“história natural dos malfeitores”.14 Ao mesmo tempo, Carvalho dirigiu a “Biblioteca
11
Ver GAYOL, Sandra. “Entre lo deseable y lo posible: perfil de la policía de Buenos Aires en la
segunda mitad del siglo XIX”, Estudios Sociales, Año VI, n. 10, 1996, p. 123-138. GALEANO,
Diego. La policía en la ciudad de Buenos Aires, 1867-1880, Tesis de Maestría en Investigación
Histórica, Universidad de San Andrés, Buenos Aires, 2009, p. 156-198.
12
“Escolas de Agentes”, Boletim Policial, Ano I, n. 3, Rio de Janeiro, jul. 1907, p. 17-18.
13
Sobre a ligação entre a elite intelectual e a polícia carioca, ver: BRETAS, Marcos L. Ordem na
cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997, p. 67-68.
14
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Ano
VII, n. 4, Rio de Janeiro, abr. 1913 p. 58-65. CARVALHO, Elysio de. “História natural dos
malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 143-155.
103
do Boletim Policial”, uma coleção de mais de trinta folhetos com textos de policiais
brasileiros e traduções de criminalistas estrangeiros.
15
Annaes da Conferencia Judiciaria-Policial, convocada por Aurelino de Araujo Leal, 2 vols. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1918.
104
tentavam oferecer ao grande público sua “verdade” sobre o crime e também sobre o
próprio mundo daqueles que perseguiam criminais. Até fins do século XIX
começaram a revelar que tal perseguição se regia por técnicas cada vez mais
rigorosas, cientificamente validadas e praticadas por agentes policiais
profissionalizados. A investigação criminal, ou seja, os saberes orientados a desvelar
a trama de um delito, estavam se convertendo em um objeto de fascinação para os
leitores das novelas de enigma, e as memórias policiais conseguiram oferecer um
relato que as editoras souberam igualmente capitalizar. No período de maior
popularidade, quando Goron publicou suas memórias, algumas saíram em três ou
quatros edições, várias foram traduzidas a distintos idiomas e outras apareceram
como folhetins em jornais de tiragem massiva.16
16
LAWRENCE, Paul. “Scoundrels and scallywags, and some honest men… Memoirs and the self-
image of French and English policemen, c. 1870-1939”. In: EMSLEY, Clive; GODFREY, Barry;
DUNSTALL, Graeme (eds.). Comparative Histories of Crime. London: Willan Publishing, 2003, p.
128.
17
POLICÍA DE LA CAPITAL. Oficina General de Estadística y Biblioteca: Catálogo General de la
Biblioteca. Op. Cit., p. 11-26.
105
regionais de materiais impressos. No catálogo argentino figuravam várias obras de
Elysio de Carvalho, outras de Eurico Cruz e Aurelino Leal, assim como também
compêndios de estatísticas criminais e alguns números do Boletim Policial.18 Por sua
vez, no relatório que o chefe da polícia carioca apresentou ao Ministro de Justiça a
começos do século, se incluíram alguns informes sobre a secção de “Arquivo” e
“Biblioteca” que permitem reconstruir a circulação de obras estrangeiras. Quando
assumiu a chefia de polícia, como mencionamos na introdução, Cardoso de Castro
tentou melhorar essa seção incorporando a figura do arquivista, do tradutor e do
intérprete, a quem encarregou a tarefa de estabelecer um serviço regular de permuta
bibliográfica com outras polícias. A ideia era pedir “qualquer publicação impressa
sobre o serviço policial”, enviando correspondência ao exterior e aos demais estados
brasileiros, para formar a “primeira Biblioteca Policial do Brasil”.19
18
Consultei a maior parte destes livros em Buenos Aires, em duas bibliotecas pertencentes à Polícia
Federal Argentina (o Centro de Estudios Históricos Policiales “Comisario Inspector Francisco L.
Romay” e a Biblioteca del Instituto Universitario de la Policía Federal Argentina). Nestas
instituições localizei vários dos exemplares mencionados no catálogo de 1929, geralmente com
dedicatórias manuscritas de seus autores brasileiros, por exemplo: CARVALHO, Elysio de. A polícia
carioca. A criminalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1910. LEAL, Aurelino.
Polícia e poder de polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918. CRUZ, Eurico. Relatórios
policiais e sentenças criminais. Rio de Janeiro: Typographia dos Annaes, 1914.
19
“Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores,
pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal A. A, Cardoso de Castro”. In: Anexos ao Relatório
apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Dr. J. J. Seabra, Ministro
da Justiça e Negócios Interiores, em março de 1904. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904, p. 137-
140.
20
Idem, p. 138-139. No relatório do ano seguinte já apareciam os primeiros livros recebidos de
diferentes países europeus (Francia, Inglaterra, Itália, Espanha, Bélgica, Alemanha, Holanda, Suécia e
106
Provavelmente estas palavras de Cardoso de Castro foram otimistas em
demasia, se ponderarmos o alto nível de analfabetismo dos agentes policiais
brasileiros − problema de longa data que se arrastava desde os tempos do Império.21
No entanto, a aposta às revistas policiais ia muito além dessa esperança de convertê-
las em um instrumento de instrução para o pessoal subalterno. Uma análise
diacrônica do corpus total, desde as publicações argentinas da década de 1870 em
diante, revela uma tendência a diversificar seus conteúdos, incorporando ficções
detetivescas escritas por policiais e um grande caudal de artigos dedicados ao
entretenimento que, embora nunca chegaram a substituir completamente às notas de
análise técnica, mudaram totalmente o foco e a relação com uma comunidade ampla
de leitores que transcendia a esfera policial. As revistas dos anos 1920 (como
Magazine Policial e Gaceta Policial em Buenos Aires, ou Vida Policial no Rio de
Janeiro) já incluíam poesias, histórias em quadrinhos e uma forte aposta à
iconografia, começando pelas capas ilustradas em cores. Estes magazines circulavam
no mercado geral de publicações periódicas da época, se comercializavam por
assinatura e por venda livre nas ruas, e eram lidas com igual paixão tanto pelos
vigilantes como pelos amadores devotos da literatura policial.22
Noruega) como resposta ao pedido da polícia brasileira: “Anexo G. Relatório apresentado ao Exmo.
Snr. Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo Dr. A. A, Cardoso de Castro,
Chefe de Polícia do Distrito Federal”. In: Relatório apresentado ao Presidente da República dos
Estados Unidos do Brazil pelo Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, em março
de 1905. Vol. I. Diretoria da Justiça. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 101-104.
21
BRETAS, Marcos L. “A Polícia carioca no Império”, Revista Estudos Históricos, vol. 12, n. 22, Rio
de Janeiro, 1998, p. 219-234. ROSEMBERG, André. De Chumbo e Festim: uma história da polícia
paulista no final do Império. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2010, p. 130.
22
Sobre Magazine Policial e Gaceta Policial ver o capítulo 4 de CAIMARI, Lila. Mientras la ciudad
duerme. Pistoleros, policías y periodistas en Buenos Aires, 1920-1945. Buenos Aires: Siglo XXI,
2012; e sobre Vida Policial: CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e a
produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2002, p. 197-208.
23
GALEANO, Diego. “El decano de la policía. Laurentino Mejías y la autoridad del comisario en la
ciudad de Buenos Aires, 1870-1930”, Signos, segunda época, vol. 5, Buenos Aires, 2011, p. 137-161.
107
forma, os primeiros volumes das memórias, tituladas La policía por dentro, apenas
encontraram uma saída ao público por uma editora espanhola, e somente em 1927,
data próxima de sua morte, conseguiu que uma companhia argentina de livros
populares imprimisse seus novos textos. Até meados do século XX não existiu uma
indústria de livros que, como na Inglaterra, França ou Espanha, cobiçara a estes
policiais escritores, pela própria fraqueza do mercado editorial em geral.24 Por isso,
da mesma forma que os literatos, os policiais utilizaram a imprensa jornalística como
via de difusão de seus escritos. As revistas policiais constituíram, sem dúvida, a
principal saída para a narrativa local.
24
A fragilidade do mercado editorial na capital brasileira foi analisada por: SEVCENKO, Nicolau.
Literatura como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p. 101-102. Na Argentina, esse mercado começou a decolar a começos do século
XX: ROMERO, Luis Alberto. “Una empresa cultural: los libros baratos”. In: GUTIÉRREZ; Leandro;
ROMERO, Luis Alberto. Sectores populares, cultura y política. Buenos Aires: Sudamericana, 1995,
p. 47-71. Ver também: DE DIEGO, José Luis (ed.). Editores y políticas editoriales en Argentina,
1800-2000. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006.
25
“A obra de Conan Doyle”, Boletim Policial, Ano II, n. 4, Rio de Janeiro, jun. 1908, p. 174.
108
engenhosa, sem dúvida, mas se sustentava em uma “falsa arquitetura”, em uma “base
inverossímil”, convertendo seus episódios em uma “peripécia que tem muito mais de
fantástico que de real”.26
A singularidade deste livro era que, após formular todos estes questionamentos
na introdução dirigida aos leitores, logo, no interior de cada um dos relatos,
Dellepiane utilizava vários recursos narrativos da novela de enigmas, até o ponto de
escolher como personagem principal um detetive de nome anglo-saxão – chamado de
William Kurts – e reservar sempre a resolução do crime para o final de cada história.
Esse jogo vacilante de reverência da novela policial, mas ao mesmo tempo um
protesto para que sejam reconhecidos os verdadeiros especialistas da investigação
criminal, estava presente em uma compilação de textos de Elysio de Carvalho,
originalmente publicados na imprensa e editados em volume único com o título
Sherlock Holmes no Brasil. Para o escritor brasileiro, a obra de Conan Doyle não era
produto da pura imaginação, mas uma “pálida cópia da realidade palpitante”.
A aposta era bastante clara: o público leitor, tão afeito às ficções policiais,
devia reconhecer o trabalho dos policiais reais, e estes últimos deviam se preocupar
por estudar os notáveis avanços destes criminalistas dos laboratórios franceses,
belgas, suíços, italianos e romanos. Não é casual que a biblioteca do Boletim
Policial, impulsionada por Carvalho, tenha traduzido em 1914 um ensaio de Alfredo
Niceforo sobre a novela policial e a investigação judicial; e que o livro de Edmond
Locard, Policiers de roman et policiers de laboratoire, fosse o primeiro título
26
DELLEPIANE, Alberto. Memorias de un Detective. Buenos Aires: Imprenta Roma, 1912, p. 5-6.
27
CARVALHO, Elysio de. “Sherlock Homes não é uma ficção”. In: Sherlock Holmes no Brasil. Rio
de Janeiro: Casa A. Moura, 1921, p. 37.
109
publicado pela Biblioteca Policial portenha (uma editora da própria polícia, fundada
na década de 1930 e que existe ainda hoje).28 Estes livros não desconheciam o mérito
e o encanto de Dupin, Lecoq, Sherlock Holmes, nem nenhum outro detetive de papel.
Mas, segundo escrevia Locard, “à sombra do policial de romance que inquietava
todos os cérebros”, o criminalista, na obscura sala do laboratório, “realizava as
fantasias dos escritores”.29 A premissa sobre a que se sustentava toda a arquitetura da
polícia cientifica rezava que nenhum delinquente, por mais esperto que fosse,
cometia um crime sem deixar algum vestígio. A tarefa do investigador não apenas
consistia em fabricar raciocínios dedutivos, mas em observar uma infinidade de
indícios e interpretá-los empregando certas técnicas.
28
LOCARD, Edmond. Policías de novela y policías de laboratorio. Buenos Aires: Biblioteca Policial,
1935. NICEFORO, Alfredo. O romance policial e a investigação judiciária científica. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1914.
29
LOCARD, Edmond. Policías de novela y policías de laboratorio. Op. Cit., p. 11.
110
As visitas de estudo
30
O mesmo acontecía nos Estados Unidos e em outros países europeus. Ver: MONKKONEN, Eric H.
Police in Urban America, 1860-1920. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 41-49. Nas
IV Jornadas de Estudo da rede CIRSAP (Circulation et construction des savoirs policiers européens,
1650-1850), realizadas na Université de Lille 3 entre os dias 4 e 6 de dezembro de 2008, se
apresentaram alguns trabalhos que demonstram a amplitude da circulação internacional ds “modelos
policiais”b, por ejemplo: DENYS, Catherine. “Paris ne jouit peut-être pas à cet égard d’une police ni
plus méditée ni mieux combine: la police parisienne vue de Bruxelles au XVIIIe siècle”. JOHANSEN,
Anja. “Lost in Translation: the English Bobby seen through a German monocle”. (Disponíveis em
linha: irhis.recherche.univ-lille3.fr/ANR-CIRSAP). Ver também: LEVY, Noémi. “Modalités et enjeux
de la circulation des savoirs policiers : un modèle français pour la police ottomane?”, Revue d'Histoire
des Sciences Humaines, Paris, n. 19, 2008/2, p. 11-27. LUCREZIO MONTICELLI, Chiara. “La
policía moderna en Roma: entre la matriz francesa y el modelo eclesiástico”. In: GALEANO, Diego;
KAMINSKY, Gregorio (coord.). Mirada (de) uniforme: Historia y crítica de la razón policial. Buenos
Aires: Teseo, 2011, p. 69-85.
31
“Noticias Policiales”, La Prensa, Buenos Aires, 4 feb. 1875, p. 1.
32
“A nossa polícia”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 24 fev. 1875, p. 2.
111
perguntava o redator. “Temos os elementos morais e materiais para lhes imitar?
Nossas práticas administrativas não fariam de todo ponto impossível sua
execução?”.33
Três décadas mais tarde, o Major João Bernardino da Cruz Sobrinho, redator
chefe da primeira revista policial carioca, mostrava a vigência no tempo deste debate,
manifestando algumas dúvidas sobre as comparações que se faziam com Paris.35
Outro redator admitia que o soldado da Brigada Policial não era “o ideal dos policiais
e nem sabemos de outro que tal possa considerar-se, a não ser o policeman londrino,
aliás, subordinado a uma organização muito diferente da que aqui temos”; mas sentia
na obrigação de recordar que no Rio de Janeiro, ao contrário de Londres, os agentes
eram recrutados nos setores mais baixos da sociedade.36 Apesar destas cautelas, em
seus dois anos de existência a revista publicou numerosos artigos sobre a polícia
metropolitana de Londres, a Gendarmerie francesa, a Guardia Civil de Madri, a
polícia de San Petersburgo e até a do longínquo Japão, que “embora afastado, como
se acha, do convívio social, mantém uma polícia moralizadora, como não tem, por
certo, nenhum país de Europa”.37
33
“La Policía de Buenos Aires”, La Prensa, Buenos Aires, 26 jul. 1874, p. 2.
34
FLORES BELFORT, Daniel. “Organización de la policía”, Anales de Policía, Buenos Aires,
entrega II, 15 set. 1872, p. 37.
35
CRUZ SOBRINHO. “A Polícia de Paris e a nossa”, Revista Policial, Ano I, n. 2, Rio de Janeiro, 25
set. 1903, p. 11.
36
C.A.C. “O soldado de polícia”, Op. Cit., p. 20-21.
37
CRUZ SOBRINHO. “No Japão”, Revista Policial, Ano II, n. 9, Rio de Janeiro, 25 abr. 1904, p. 71-
72. Véase también del mismo autor: Polícia de Espanha, Revista Policial, Ano I, n. 5, Rio de Janeiro,
112
Como chegavam aos redatores destas revistas as notícias sobre as polícias
estrangeiras? Os canais de comunicação eram múltiplos: traduções de textos
publicados na imprensa europeia e de memórias de policiais escritores, muitas vezes
divulgadas nos folhetins; informações intercambiadas via postal entre as autoridades
policiais e que chegavam às mãos dos editores das revistas; tecnologias, artefatos e
invenções da modernidade policial que contavam com um mercado de difusão a
nível internacional; viagens transatlânticas de intelectuais e funcionários públicos,
visitas de estudo e treinamento de policiais que viajavam a outros países como
comissionados oficiais. Vejamos alguns exemplos.
As trocas diretas entre as polícias eram também moeda corrente. Nos arquivos
da Préfecture de Police de Paris, existe uma série de correspondências enviadas pelas
autoridades da Argentina, Brasil e Uruguai, solicitando informação sobre a
25 dez. 1903, p. 36-38. “A Guarda Civil de Madrid”, Revista Policial, Ano II, n. 6, Rio de Janeiro, 25
jan. 1904, p. 43-46. “A Gendarmerie”, Revista Policial, Ano 2, n. 14, Rio de Janeiro, 25 ago. 1904, p.
133-135.
38
“La Policía de París. Su organización, su funcionamiento”, Revista de la Policía de la Capital, Año
I, n.7, Buenos Aires, 1 set. 1888, p. 83. Desde o número 7 até o número 30, foi publicada a obra, cujo
original – segundo a aclaração dos editores – constava de 191 páginas. Outra tradução, desta vez sobre
Scotland Yard, mas redigida por um colaborador da Revue belge de la police administrative et
judiciaire, apareceu em: “La policía inglesa”, Revista de Policía, Año V, n. 106, Buenos Aires, 16 oct.
1901, p. 153-155; e “La policía inglesa (conclusión)”, Revista de Policía, Año V, n. 107, Buenos
Aires, 1 nov. 1901, p. 170-172.
39
Sobre as críticas à polícia francesa na segunda metade do século XIX, ver: DELUERMOZ, Quentin.
“Images de policières en tenue, images de gendarmes. Vers un modèle commun de représentants de
l’ordre dans la France de la seconde moitié du XIXe siècle”, Sociétés & Représentations, n. 16,
2003/2, p. 197-211.
113
organização burocrática e o funcionamento da polícia francesa.40 Mas não era o
único destino que interessava. Em 1887, o chefe da polícia da capital argentina,
Aureliano Cuenca, escreveu uma carta ao médico e escritor Eduardo Wilde, então
Ministro de Relações Exteriores. Pedia que enviasse uma circular aos cônsules em
diferentes capitais europeias para coletar informações sobre as organizações policiais
dos países em que eles residiam. O Ministro recebeu um extenso relatório do
embaixador em Londres, que em 1901 a Revista de Policía reproduziu integralmente
em diferentes números.41 Outro chefe de polícia, Francisco Beazley, solicitou em
1900 informações à chefia de Hamburgo e recebeu como resposta um pacote com
regulamentos, decretos, estatísticas, retratos de delinquentes, fichas antropométricas
e detalhes sobre o Museu Criminal dessa cidade. Em troca, os alemães pediram que
lhes enviassem fotografias dos uniformes policiais usados em Buenos Aires.42
A questão dos uniformes era um tópico constante nos debates sobre os modelos
policiais. Neste tema jogava-se boa parte da definição do caráter das forças que
patrulhavam as cidades. De forma geral, o divisor de águas está entre os partidários
de uma polícia “cidadã” (opção que tinha a figura do Bobby inglês como paradigma
indiscutível) e os defensores da “militarização”, que elegiam o gendarme francês
como exemplo dos valores, práticas e esprit-de-corps necessários para garantir a
segurança nestas repúblicas jovens onde – se dizia – havia pouco apego às leis.
40
ROSEMBERG, André. De chumbo e festim. Op. Cit., p. 43.
41
DOMÍNGUEZ, Luis L. “La policía de Londres. Un informe interesante”, Revista de Policía, Año
V, n. 99, Buenos Aires, 1 jul.1901, p. 38-39; DOMÍNGUEZ, Luis L. “La policía de Londres. Un
informe interesante (continuación)”, Revista de Policía, Año V, n. 100, Buenos Aires, 16 jul. 1901, p.
59-61. DOMÍNGUEZ, Luis L. “La policía de Londres. Un informe interesante (continuación)”,
Revista de Policía, Año V, n. 101, Buenos Aires, 1 ago. 1901, p. 73-75.
42
“Sueltos. La policía de Hamburgo”, Revista de Policía, Año IV, n 84, Buenos Aires, 16 nov. 1900,
p. 205. “Carta de Alemania. La policía de Hamburgo. El Doctor Roscher. El museo criminal”, Revista
de Policía, Año IV, n. 90, Buenos Aires, 16 feb. 1901, p. 277-278. “Sueltos. Policía de Hamburgo”,
Revista de Policía, Año V, n. 104, Buenos Aires, 16 set. 1901, p. 123-124.
114
No entanto, o delegado Laurentino Mejías desconfiava da paixão pelas vestimentas
copiadas da esfera castrense no início do século XX:
43
MEJÍAS, Laurentino. Policíacas: mis cuentos. Buenos Aires: Tor, 1927, p. 9-10.
44
NEEDELL, Jeffrey D. A Tropical Belle Époque: Elite, Culture and Society in Turn-of-the Century
Rio de Janeiro. Princeton: Princeton University Press, 1987. p. 125-126. LOSADA, Leandro. La alta
sociedad en la Buenos Aires de la Belle Époque. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008, p. 149-166.
45
Ver COLOMBI, Beatriz. Viaje intelectual. Migraciones y desplazamiento en América Latina (1880-
1915). Rosario: Beatriz Viterbo, 2004. FOMBONA, Jacinto. La Europa necesaria: textos de viaje de
la época modernista. Rosario: Beatriz Viterbo, 2005.
115
único lugar e, além disso, nem sempre tinham um caráter oficial. Em 1900, por
exemplo, outro alto funcionário da polícia portenha estava na Europa por motivos de
saúde, quando enviou uma carta à Revista de Policía com observações feitas “por
vício”.46 Também havia escritores que, enquanto trabalhavam para a polícia,
incursionavam no gênero de livros de viagem, mas sem centrar o relato em temas
afins ao métier. Era o caso de Evaristo da Veiga: em 1903, sendo chefe do Gabinete
Antropométrico da polícia paulista, publicou o livro Notas de viagem, recompilando
uma série de cartas enviadas ao Correio Paulistano desde diferentes cidades da
América do Norte e Europa, entre março e outubro desse mesmo ano.47 Pouco tempo
antes, esse jornal divulgou outra correspondência que Evaristo mandou desde Paris.
O estilo era completamente diferente ao do livro, não narrava as impressões gerais de
um “gentleman viajante”, mas uma visita ao serviço de identificação da polícia
parisiense.48
Caso parecido foi o do policial portenho Miguel Denovi, outro dos tantos
escritores dessa instituição.49 Em 1925, as páginas de Magazine Policial começaram
a publicar umas “crônicas de viagem”, enviadas por Denovi da Europa e
acompanhadas por reproduções de cartões postais que anexava a suas cartas. Embora
fossem textos literários sob a forma de relato de viagem, igual a seu antecessor,
tampouco conseguia evitar o “vício” de comparar sua experiência como policial
portenho com as observações dos vigilantes europeus. Assim, detinha-se nos mais
ínfimos detalhes dos uniformes policiais de distintas cidades. Na Itália, apesar da má
fama do povo napolitano, conhecido pelos mitos da máfia e da camorra, se
assombrava com a tranquilidade pública obtida pelos rigorosos Carabinieri. Em
46
“Sueltos. Policía de Paris. Impresiones de un profesional”, Revista de Policía, Año IX, n. 204,
Buenos Aires, 16 nov. 1905, p. 100.
47
VEIGA, Evaristo da. Notas de viagem. São Paulo: Duprat & Comp., 1903.
48
VEIGA, Evaristo da. “Identificação Anthropométrica”, Correio Paulistano, São Paulo, 5 jan.1903.
A ideia de “gentleman viajante” foi desenvolvida pelo crítico literário argentino: VIÑAS, David. “La
mirada a Europa: del viaje colonial al viaje estético” (1964). In: Literatura argentina y política: I. De
los jacobinos porteños a la bohemia anarquista. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2005, p. 43-67.
49
Nesse lapso, Denovi assumiu duas vezes a chefia em forma provisória, pela crise desatada à raiz dos
enfrentamentos com o movimento operário. Denovi havia estudado no prestigioso Colégio Nacional e
entrou na polícia com 18 anos como “oficial escrevente”, enquanto estudava Ciências Jurídicas na
Universidade Católica. Ver: SILVA, Hernán (recopilación y prólogo). La obra institucional y literaria
del Comisario de Órdenes Dr. Miguel Luis Denovi. Buenos Aires: Maucci Hermanos e Hijos, 1920, p.
5-13.
116
contraste, não ocultava o desgosto que lhe provocou contemplar, no bairro parisiense
de Montmartre, o espetáculo que rodeava o Moulin Rouge, onde ao compasso do
“tango argentino” e do “maxixe brasileiro” a mulher branca se mercantilizava em
braços de homens negros. E finalmente, na Espanha, se maravilhava com um passeio
pelo Departamento de Polícia de Madri, que lhe causou uma excelente impressão. 50
50
Estas cartas foram publicadas em Magazine Policial entre 1925 e 1926. O diretor da revista, Ramón
Cortés Conde, as compilou mais tarde em um livro: DENOVI, Miguel L. Impresiones de viaje: Italia,
Francia y España. Buenos Aires: Editorial Verbum, 1929.
51
No Arquivo Nacional, por exemplo, encontra-se a documentação manuscrita sobre um encargo que
em1891 o governo federal fez ao professor da Faculdade de Direito de Recife, Joaquim de
Albuquerque Barros Guimarães para estudar o sistema antropométrico de identificação de criminosos
da polícia parisiense. A documentação oferece detalhes sobre o financiamento da viagem, cujo
orçamento Barros Guimarães achava insuficiente. AN, GIFI, Gabinete do Ministro, 8N-80, Despacho
do Sr. Ministro da Justiça, 5 de fevereiro de 1892. Houve outras viagens de sul-americanos ao serviço
antropométrico de Paris: o médico de polícia argentino Agustín Drago (1887), o médico carioca
Henrique Monat (1889), o criminologista brasileiro José A. de Souza Gomes (1900), o próprio
Evaristo da Veiga (1903) e o chefe da Seção de Estatística do Gabinete de Identificação do Rio de
Janeiro, Hermeto Lima (1910). Estas viagens serão analisadas no próximo capítulo, quando trataremos
o nascimento dos primeiros serviços de identificação de criminosos na Argentina e no Brasil.
117
de Scotland Yard, apresentando seu relatório em 1898.52 Os outros dois casos
correspondem a viagens das primeiras décadas do século XX, realizadas por
argentinos que trabalhavam nas altas esferas policiais de Buenos Aires, uma espécie
de legião erudita que trabalhava no Departamento Central: o advogado (e Secretário
Geral de Polícia) Manuel Mujica Farías visitou as polícias de Paris e Bruxelas em
1900,53 e o Delegado Inspetor José Vieyra percorreu instituições policiais italianas e
belgas em 1912.
52
João Batista de Sampaio Ferraz foi o primeiro chefe de polícia da capital republicana (1889-1890)
restituído por Campos Sales em 1898 e permaneceu até 1899, sendo substituído precisamente por João
Brasil Silvado, chefe até princípios de 1900. Ver: BRETAS, Marcos L. A guerra das ruas. Povo e
polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p. 40.
53
Mujica Farías embarcou para Europa em 15 de fevereiro de 1900 e regressou desde o porto de
Barcelona em 16 de julho do mesmo ano, como noticiava a revista policial portenha, da qual era
assíduo colaborador: “En viaje de estudio”, Revista de Policía, Año III, n. 65, Buenos Aires, 1 feb.
1900, p. 289; e “El Doctor Mujica Farías”, Revista de Policía, Año IV, n. 77, Buenos Aires, 1 ago.
1900, p. 76.
54
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres: relatório apresentado ao Ministro da
Justiça e Negócios Interiores, sendo ministro o ilustrado cidadão Dr. Gonçalves Ferreira. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1895.
55
No momento de começar a missão, Brasil Silvado trabalhava para a Prefeitura Municipal do Rio de
Janeiro, como inspetor do terceiro distrito escolar. O prefeito, Cândido Barata Ribeiro, autorizou um
pedido de um ano de licença para cumprir com a viagem encomendada pelo governo federal, mas
pediu que entregasse também ao Conselho Municipal os informes sobre os sistemas de ensino
público: INTENDENCIA MUNICIPAL. Secretaria da Prefeitura do Distrito Federal. Secreto n. 36 –
de 1 de maio de 1893, Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil, n. 119, Rio de Janeiro, 2 mai.
1893.
118
“nem tudo o que se vê no estrangeiro é adaptável ao nosso meio, às nossas
circunstâncias ou aos nossos costumes”.56
O livro oferecia descrições gerais das polícias de Paris e Londres. Não prestava
atenção apenas aos aspectos que, segundo sua opinião, deviam ser reproduzidos na
capital brasileira, senão também sobre questões que podiam merecer uma reflexão
crítica. Os modelos de polícia da França e Inglaterra não eram tratados no relatório
como alternativas antitéticas. Pelo contrário, o plano de reformas esboçado nas
conclusões combinava, com certa dose de heterodoxia, algumas virtudes da polícia
parisiense com outras vantagens de Scotland Yard.
56
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. IV.
57
Idem, p. 237-249.
119
exigências na hora de engajar pessoas para o cargo de delegado, já que até esse
momento, no Rio de Janeiro, “o bacharel em direito, o médico, o negociante ou o
funcionário público, são por igual julgados aptos para exercer as melindrosas funções
policiais”.58
58
Idem, p. 235.
59
Idem, p. 233.
60
CRUZ SOBRINHO. “A Polícia de Paris e a nossa”, Op. Cit., p. 11.
61
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 248-249.
120
Em seu relatório de viagem, João Batista de Sampaio Ferraz tratava de
responder este mesmo interrogante, quando estudava o funcionamento de Scotland
Yard:
62
SAMPAIO FERRAZ, João Batista de. “Do delito, Código Penal e Organização Policial na
Inglaterra: Intróito do Relatório apresentado ao Governo do Estado de São Paulo”, Separata da Revista
do Arquivo Municipal, n. CXXVI, São Paulo, 1949, p. 51. Esta é a única fonte encontrada sobre o
Relatório de Sampaio Ferraz, apresentado em 1898, cuja versão completa não pude localizar no
próprio Arquivo Municipal, nem no Arquivo do Estado de São Paulo.
63
Sobre Sampaio Ferraz e a campanha contra os capoeiristas em 1890 ver: BRETAS, Marcos. “A
queda do império da navalha e da rasteira (a República e os capoeiras), Estudos Afro-Asiáticos, n. 20,
jun. 1991, p. 239-256. DIAS, Luiz Sérgio. Da “Turma da Lira” ao Cafajeste. A sobrevivência da
capoeira no Rio de Janeiro na Primeira República. Tese de Doutorado em História, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2000.
64
Citado em BRETAS, Marcos L. A guerra das ruas. Op. Cit., p. 65.
121
Esse “grande país” era Inglaterra, cuja realidade mostrava, segundo Sampaio
Ferraz, que o cuidado dos direitos do cidadão não era incompatível com medidas
rígidas contra o crime, sempre que estivessem guiadas por um espírito pragmático. O
equilíbrio estaria dado pela balança da experimentação cotidiana: “em outros países
os problemas da criminalidade estão a agitar os filósofos e os pensadores, enquanto
na Inglaterra o principal objetivo é bater o crime com medidas práticas”.65 A polícia
apenas podia trabalhar sobre o terreno barroso das “eventualidades da vida”, usando
como ferramenta um cardápio flexível de medidas repressivas, aplicadas quando
fosse necessário, e pouco contestadas por outras autoridades. Nisso os britânicos
tinham muito a ensinar aos juristas brasileiros, a quem Sampaio recomendava uma
saudável “viagem de observação e estudos nesse país”.66
Esta era a forma em que justificava o recorte de seu estudo. Em 1900, Mujica
Farías possuía um alto cargo na polícia portenha, quando o chefe Francisco Beazley
autorizou uma missão de estudo sobre as polícias das principais capitais europeias.68
65
SAMPAIO FERRAZ, João Batista de. “Do delito, Código Penal e Organização Policial na
Inglaterra”. Op. Cit.,. p. 40.
66
Idem, p. 50.
67
MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Buenos Aires: Arnold Möen, 1901, p. 10.
68
O cargo de Secretário Geral de Polícia havia sido criado em 1880 e ocupado por diferentes juristas e
homens de letras de Buenos Aires. De tal modo, Mujica Farías não era um policial “de carreira”, mas
um advogado que foi convocado para desempenhar esse posto, em que permaneceu desde 1898 até
1902. Ver: CORTÉS CONDE, Ramón. Historia de la Policía de la Ciudad de Buenos Aires. Su
desenvolvimiento, organización actual y distribución de sus servicios. Buenos Aires: Imprenta López,
1937, p. XVI. O Secretário Geral era o sucessor imediato do chefe, de fato, Mujica Farías substituiu a
Francisco Beazley quando este acompanhou o presidente Roca em sua visita ao Rio de Janeiro.
122
Segundo a Revista de Policía, o plano original de viagem incluía visitas a Paris,
Londres, Roma, Viena, Nápoles, Bruxelas, Madri e Frankfurt.69 Contudo, depois da
viagem, Mujica Farías decidiu concentrar o relatório apenas nas polícias de Paris e
Bruxelas, porque entendia que tanto as instituições como as sociedades dessas duas
capitais europeias tinham maiores “pontos de semelhança” com Buenos Aires.
Considerava que buscar exemplos em outras latitudes, como os países saxões,
implicaria mergulhar em realidades por demais alheias para encontrar algum
aproveitamento possível. Para Mujica Farías, esse erro de cálculo estava na base do
fracasso de muitas “reformas absurdas”.70
Deste ponto de vista, Mujica Farías elaborou um plano de obra dividido em três
partes. A primeira, La Policía de París, foi apresentada em dezembro de 1900 ao
Ministro do Interior como relatório e publicada no ano seguinte como livro.72 A
RODRÍGUEZ, Adolfo E. Historia de La Policía Federal Argentina, Tomo VI, 1880-1916. Buenos
Aires: Editorial Policial, 1975, p. 224.
69
“Al partir”, Revista de Policía, Año III, n. 66, Buenos Aires, 16 feb. 1900, p. 295. Efectivamente
visitó alguna de estas policías, como las de Roma, Londres y Madrid, según noticiaba la revista en:
“El Dr. Mujica Farías”, Revista de Policía, Año III, n. 69, Buenos Aires, 1 abr. 1900, p. 353; y “El
doctor Mujica Farías”, Revista de Policía, Año IV, n. 76, Buenos Aires, 16 jul. 1900, p. 61.
70
MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 11.
71
“Regreso del Dr. Mujica Farías. Sus impresiones de viaje”, Revista de Policía, Año IV, n. 78,
Buenos Aires, 16 ago. 1900, p. 84. A exclusão das polícias espanholas e italianas como material de
estudo se justificava diretamente em que eram vistas como organizações ao nível da polícia portenha,
e inclusive inferiores, como parecia se deslizar em uma reportagem que fez o jornal El Español,
reproduzido em: “Un reportaje interesante. El doctor Mujica Farías en Madrid”, Revista de Policía,
Año IV, n. 79, Buenos Aires, 1 set. 1900, p. 102-104.
72
Antes da aparição do livro, a revista policial publicou avanços, e depois reproduziu comentários
elogiosos: MUJICA FARÍAS, Manuel. “Dirección General de Investigaciones. Fragmento del
123
seguinte estaria dedicada à polícia de Bruxelas e a última a uma comparação entre
ambas e Buenos Aires, mas aparentemente estes outros dois estudos não se
concretizaram. Por sua parte, a estrutura de análise da polícia parisiense adotada por
Mujica Farías no “livro-relatório” (como o chamava a revista policial) dedicava-se
mais às leituras que às observações in situ. Obras do prefeito Louis Lépine, Maxime
de Camp, Gustave Macé e Marie-Françoise Goron apareciam como referências
bibliográficas obrigatórias tanto no estudo de Mujica Farías como no de Brasil
Silvado, cujo livro, além disso, o argentino conhecia.73
Capítulo XIII del libro en prensa La Policía de París”, Revista de Policía, Año IV, n. 87, Buenos
Aires, 1 ene. 1901, p. 230-232. “La policía de París por el Dr. Manuel Mujica Farías”, Revista de
Policía, Año IV, n. 88, Buenos Aires, 16 ene. 1901, p. 242-244. “Bibliografía policial. La policía de
Paris y Falsificación de moneda. Juicios honrosos”, Revista de Policía, Año V, n. 99, Buenos Aires, 1
jul. 1901, p. 39-42.
73
“La policía de París por el Dr. Manuel Mujica Farías”, Revista de Policía, Año IV, n. 88, Buenos
Aires, 16 ene. 1901, p. 243.
74
Os comissários inspetores eram os funcionários encarregados de fiscalizar o trabalho das delegacias
de distrito, mantendo informado o chefe de polícia através de uma rede telegráfica que tinha como
centro o Departamento Geral. Ver “Orden del día 31 de agosto de 1899”. In: MUJICA FARÍAS,
Manuel (dir.). Repertorio de Policía, 1880-1898. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la
Policía, 1899, p. 575.
75
VIEYRA, José. “La policía italiana”, Revista de Policía, Año XVI, n. 379, Buenos Aires, 1 mar.
1913, p. 178.
124
fotografias e fichas datiloscópicas de diversos “sujeitos perigosos para a ordem
social”. 76
76
REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria de la Policía de la Capital, 1911-1912. Jefatura del General
Ingeniero Luis J. Dellepiane. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1912, p. 10-11.
77
Idem, p. 10. Ver também: “Las policías extranjeras”, Revista de Policía, Año XVII, n. 399, Buenos
Aires, 1 ene. 1914, p. 166.
78
Ver: SALCEDO, Eugenio H. Las policías de Londres, París y Roma. Informe presentado a la
Jefatura de Policía con motivo de una comisión oficial para estudiar la organización de las mismas.
Buenos Aires: Biblioteca Policial, 1936. SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO
DE SÃO PAULO. A Polícia Metropolitana de Londres e a Polícia Italiana. Conferências realizadas
pelos integrantes da Delegação Paulista enviada à Europa. São Paulo: Serviço Gráfico da Secretaria de
Segurança Pública, 1958.
125
O subdelegado Eugenio Salcedo, enviado em 1934 para visitar as polícias do
velho mundo, regressava satisfeito de haver conhecido pessoalmente a “famosa
Scotland Yard”, mas um deleite maior lhe provocava constatar o que já parecia um
axioma: “no momento atual nossa polícia se encontra em um nível de organização e
domínio de elementos de luta contra a criminalidade, que a coloca em situação
destacada em relação a qualquer das instituições visitadas”.79 A nova Guerra
Mundial ajudaria a reforçar esta suspeita. A essa altura das circunstâncias, não havia
muito que invejar da Europa.
79
SALCEDO, Eugenio H. Las policías de Londres, París y Roma. Op. Cit., p. 10.
80
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 3.
126
e Inglaterra.81 Em Paris, ambos se encontraram com Louis Lépine, o prefeito que
durante duas décadas (quase sem interrupções desde 1893 até 1913), ganhou a fama
de grande modernizador da polícia francesa.82 Lépine se encontrou pessoalmente
com Brasil Silvado e Mujica Farías, mas, além disso, deixou os visitantes sul-
americanos em mãos de “guias” para o passeio institucional. O comissionado
argentino telegrafou à revista policial, pouco depois da primeira reunião com o
prefeito, contando que Monsieur Lépine havia designado “a um dos empregados
superiores da prefeitura para que o acompanhasse em suas visitas a todas as vastas
dependências da administração”.83 Brasil Silvado justificava a necessidade imperiosa
de contar com um guia na Prefeitura da Polícia:
81
“Al partir”, Revista de Policía, Año III, n. 66, Buenos Aires, 16 feb. 1900, p. 295. SILVADO, João
Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. IV.
82
BERLIÈRE, Jean-Marc. Le Préfet Lépine: vers la naissance de la police moderne. Paris: Denoel,
1993.
83
“El Dr. Mujica Farías en París”, Revista de Policía, Año III, n.71, Buenos Aires, 1 may. 1900, p.
387.
84
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 5.
85
Idem, p. 5-7. Analisarei o serviço de identificação antropométrica de Bertillon e suas relações com
as polícias sul-americanas no próximo capítulo.
86
MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 9.
127
da Revista de Policía ofereciam maiores detalhes. Lépine e Mujica Farías foram
apresentados pelo embaixador argentino em Paris. “M. de Chabrol, chefe do gabinete
da prefeitura, foi designado como guia em sua longa visita” e outro funcionário
superior acompanhou-lhe na excursão pelas delegacias da banlieue, hospitais e
diferentes prisões.87 Somente essa visita parisiense consumiu dois meses da viagem,
em que – segundo a revista – Mujica Farías usou todos os dias para percorrer
repartições e acompanhar procedimentos nas ruas.
87
“El Dr. Mujica Farías en Europa. Honrosas demostraciones”, Revista de Policía, Año IV, n.73,
Buenos Aires, 1 jun. 1900, p. 4-5.
88
Idem, p. 5.
128
uma medalha de prata, reproduzida pela revista portenha como homenagem aos
anfitriões de Mujica Farías.89
89
Idem, p. 5-6. A medalha foi reproduzida em “Nuestro grabado”, Revista de Policía, Año IV, n. 80,
Buenos Aires, 16 set. 1900, p. 117-118, onde ainda se pediam desculpas pela ausência de um retrato
do prefeito Lépine, que os editores da revista nesse momento não tinham.
129
contrário dos comisarios portenhos e dos delegados cariocas, o commisaire
parisiense era um personagem cinzento, sem agentes subordinados para atuar em sua
jurisdição, quase sem interação com a Sûreté e a Polícia Municipal.90 Para pior dos
males, os delegados deviam se afastar de seus postos e comparecer periodicamente
na prefeitura para receber ordens diretas de Lépine. Em seu livro, Mujica Farías
questionava este mecanismo de forma muito enfática:
90
Sobre esta condição incômoda do comissário parisiense, tensionada entre o poder central e o poder
local, ver KALIFA, Dominique; KARILA-COHEN, Pierre. “L’homme l’entre-deux. L’identité
brouillée du commissaire de police au XIXe siècle”. In: KALIFA, Dominique; KARILA-COHEN,
Pierre (dir.). Le commissaire de police au XIXe siècle. Paris: Publications de la Sorbonne, 2008, p. 17-
20.
91
MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 178.
92
A concepção oficial da polícia portenha sobre o equilíbrio entre centralização e descentralização
(um equilíbrio, por certo, mais retórico que efetivo), ficou plasmado no projeto de Código de 1911,
quando definia os três princípios que sustentam a organização dos serviços policiais: unidade de
direção focalizada na chefatura; descentralização dos serviços de acordo com a natureza de suas
funções; e autonomia do funcionário. Proyecto de Código de Policía para la Capital de la Nación.
Buenos Aires: Establecimiento Gráfico Colón, 1911, p. VIII-IX.
130
maiores escrúpulos, mas não produziam os resultados esperados por um “defeito de
administração bastante censurável em um sistema tão inteligente e completo”, ou
seja, “o hábito inveterado da centralização na França”.93 O comissionado brasileiro
julgava preferível guardar uma “pequena brigada de reserva” no edifício da
Prefeitura, distribuindo o resto da tropa nos distritos da cidade e na banlieue. Não era
suficiente ajustar os requisitos de ingresso e treinar melhor o vigilante de rua. Havia
que convertê-lo em “conhecedor cada vez mais completo dessas circunscrições” e
colocá-lo “sob as ordens imediatas dos chefes locais”.94
Vários anos depois destas viagens, as mesmas ideias persistiam em uma carta
que o Inspetor da Polícia Marítima do Rio de Janeiro, Trajano Louzada, enviava ao
chefe Leoni Ramos desde Paris. Louzada também havia percorrido Itália, Suíça,
Inglaterra, mas não se tratava de visitas oficiais. Mesmo assim, aproveitava a ocasião
para difundir no Brasil algumas observações:
93
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 47.
94
Idem, p. 48.
95
LOUZADA, Trajano. “A nossa polícia e a polícia estrangeira. Uma carta interessante”, Boletim
Policial, Ano IV, n. 2, jun.1910, p. 54.
131
refere à organização policial, porque o sistema por nós adotado é bem superior ao
que rege nas mais afamadas polícias do velho continente”.96 No entanto, a “única e
relativa desvantagem” em relação à instituição que tinha a fama de “melhor polícia
do mundo” era a qualidade dos “elementos subalternos” disponíveis no mercado de
trabalho. Os agentes portenhos não se identificavam com o ofício, não estavam
dispostos a começar uma carreira policial, permanecer no posto e profissionalizar-se.
A organização policial de Buenos Aires parecia muito mais simples, racional e
eficaz. Mas o pessoal existente para executar as ações deixava muito que desejar.97
96
“La policía de París por el Dr. Manuel Mujica Farías”, Revista de Policía, Año IV, n. 88, Buenos
Aires, 16 ene. 1901, p. 243.
97
Idem, p. 243-244. Os elogios ao caráter profissional do agente subalterno francês se repetem, no
inicio do século XX, em outros artigos da revista. Ver por exemplo: MENDOZA, José T. “Modelos
que hay que imitar. Las academias de Policía de París y Londres”, Revista de Policía, Año XXIII, n.
534, Buenos Aires, 16 set. 1920, p. 456-457. “La Policía de París y la de Buenos Aires”, Revista de
Policía, Año XXIV, n. 557, Buenos Aires, 1 set.1921, p. 401.
98
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 154.
99
“A Polícia de Londres”, Boletim Policial, Ano II, n. 6, Rio de Janeiro, out. 1908, p. 247-248. Este
artigo é uma reprodução de uma nota publicada no jornal O País, o dia 18 de set. 1908.
100
“El Policeman de Londres”, Revista de Policía, Año VII, n. 157, Buenos Aires, 1 dic. 1903, p. 201.
132
Vieyra lhe contou sobre sua viagem europeia na década de 1910. Em uma estação de
trens em Londres, um esbelto vigilante lhe havia advertido, com fabulosos modos,
que não se separasse da sua mala porque a podiam roubar, por aquilo de que “a
ocasião faz o ladrão”. Assim era visto o Bobby: “bastava simplesmente um toque
com seu bastão, todo um símbolo, para que se acatasse e respeitasse nele a lei”.101
Para Elysio de Carvalho, esse respeito à lei era uma prolongação policial de uma
característica essencialmente britânica:
101
LABANCA, Nicolás. Recuerdos de la comisaría 3º. Ambiente y acción policial hace 50 años.
Buenos Aires: Ediciones Viomar, 1969, p. 29.
102
CARVALHO, Elysio de. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Op. Cit., p. 28.
103
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 163.
104
“La policía de Londres. Un estudio curioso”, Revista de Policía, Año VI, n. 145, Buenos Aires, 1
jun. 1903, p. 395. Este argumento foi resaltado por um historiador que comparou o desempenho dos
cops norte-americanos e os Bobbies londrinos do século XIX, assinalando ainda que os primeiros
intervinham nos conflitos sociais (por exemplo, os enfrentamentos entre trabalhadores nativos e
imigrantes em diversas cidades dos Estados Unidos) em qualidade de parte interessada. MILLER,
133
Alguns policiais da Argentina e Brasil, no entanto, se irritavam com os elogios
ao policial inglês. Muitos apelavam a contra-argumentos estatísticos, revelando com
cifras que os vigilantes de Londres recebiam melhores salários, trabalhavam menos
horas e, dividindo a quantidade total de agentes pelos quilômetros quadrados da
cidade, resultava maior a extensão territorial que devia patrulhar cada policial carioca
ou portenho.105 Outros, talvez a maioria, pensavam que o Bobby podia ser muito
bonito, porém, assim como era, com sua elegância, não poderia sobreviver nem uma
tarde na selva urbana das capitais sul-americanas, entre tanta falta de respeito à lei,
tanta viveza criolla, tanta malandragem carioca, tanta desordem. Isidoro Nunes,
tenente da Polícia Militar do Rio de Janeiro, se referia a isso quando criticava uma
nota do jornal O Brasil:
Não obstante, nestes livros de viagem havia uma região do trabalho policial
onde a Inglaterra parecia estar bastante atrasada, pelo menos em relação à França: a
“caça de delinquentes”, segundo a expressão que usava Brasil Silvado. O brasileiro
escrevia que em Londres os grandes crimes ficavam na impunidade e que “apesar do
orgulho britânico, a polícia inglesa consulta constantemente à Prefeitura de Paris”.
Quando os visitantes diziam-lhe isso, Monsieur Bertillon, “sorria maliciosamente”.107
Wilbur R. Cops and Bobbies. Police Authority in New York and London, 1830-1870. Chicago:
Chicago University Press, 1977.
105
Ver: “Las policías de Londres y Buenos Aires. Comparación entre sus gastos y servicios”, Boletín
de Policía, Año I, n. 8, Buenos Aires, 15 ago. 1905, p. 11-12. “Variedades”, Revista Policial, Ano II,
n. 14, Rio de Janeiro, 25 ago. 1904, p. 140.
106
NUNES, Isidoro.“O elogio do policial londrino”, Revista de Polícia, Club dos Oficiais da Polícia
Militar, Ano I, n. 8, Rio de Janeiro, ago. 1926, p. 244.
107
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 158.
134
Como Auguste Dupin, o detetive imaginado por Edgar Allan Poe, o investigador
ideal, o descobridor de crimes da polícia, falava francês. Um folhetinista portenho,
autor de famosos romances populares sobre vigilantes e ladrões, se referia às técnicas
de investigação criminal como uma “especialidade da polícia belga”, em tempos que
em Buenos Aires os próprios delegados perseguiam aos autores dos delitos.108
108
GUTIÉRREZ, Eduardo. Amor funesto. Buenos Aires: La Patria Argentina, 1881, p. 6.
109
CRUZ SOBRINHO. “A Polícia de Paris e a nossa”, Op. Cit., p. 11.
110
MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 257.
111
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 34-35.
112
Idem, p. 34.
135
formas de intercâmbio entre os policiais, que iam muito além da comparação de
modelos institucionais.
113
Idem, p. 112.
136
Mujica Farías também destacava as possibilidades de cooperação internacional,
a propósito de outro invento de Bertillon, a técnica do “retrato falado” (portrait
parlé):
114
MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 306.
115
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 235.
137
O bureau e o laboratório
João Brasil Silvado e Manuel Mujica Farías não foram os primeiros nem os
últimos policiais em se interessar pelo bureau de Alphonse Bertillon durante uma
viagem de estudos. Nos primeiros anos de existência, esse serviço foi visitado por
delegados de vários países, inclusive alguns sul-americanos. Na França, Brasil
Silvado havia advertido que os modernos sistemas de identificação de pessoas
começavam a ser usados no campo da cooperação internacional entre policiais
europeus. Por sua parte, na segunda metade do século XIX as polícias da América
Latina haviam incorporado a produção de retratos fotográficos de criminosos, o que
foi percebido como um grande avanço em relação ao único método utilizado até esse
momento: a circulação de filiações escritas com dados pessoais.2
1
BENTHAM, Jeremy. Deontology or the science of morality. Vol 2. London/Edinburgh: Longman
and William Taft, 1834, p. 100.
2
A historiografia das modernas técnicas de identificação ganhou densidade recentemente. Alguns
autores têm mostrado que as práticas de vigilância baseadas na identificação individual apareceram
em meados do século XVIII, em contextos de tentativas por controlar a aceleração da mobilidade
territorial humana. Ver os trabalhos coletados em CAPLAN, Jane; TORPEY, John (eds.).
Documenting Individual Identity. The Development of State Practices in the Modern World.
Princeton: Princeton University Press, 2001; e também: ABOUT, Ilsen; DENIS, Vincent. Histoire de
l’identification des personnes. Paris: La Découverte, 2010. Sobre os inícios da fotografia com fins
policiais na Argentina, ver: GARCÍA FERRARI, Mercedes. Ladrones conocidos/sospechosos
reservados. Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905. Buenos Aires: Prometeo, 2010, p. 55-
78. Sobre a fotografia de criminosos no Brasil: KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no
estúdio do fotógrafo. Brasil, segunda metade do século XIX. Campinas: Unicamp, 2010, p. 205-259; e
PESAVENTO, Sandra J. Visões do Cárcere. Porto Alegre: Editora Zou, 2009.
A fotografia policial foi rapidamente utilizada para intercambiar informações
sobre diversos tipos de criminosos que atravessavam as fronteiras dos países. Em
1887, o chefe da polícia portenha, Aureliano Cuenca, escreveu uma carta à chefia do
Uruguai, propondo que os departamentos de polícia de ambas as capitais do Rio da
Prata trocassem “retratos de ladrões conhecidos que houvessem sofrido uma ou mais
condenações”.3 Para isso, Cuenca havia encarregado ao Comissário de Investigações
a impressão de uma galeria fotográfica de ladrões, que nesse mesmo momento
enviava a Montevideo.4 O chefe acrescentava:
3
Carta de 16 jul. 1887, reproduzida em: ROMAY, Francisco L. Extradición de delincuentes y
cooperación policial. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Penitenciaría Nacional, 1944, p. 13-14. E
em: REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1887-1888.
Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía de la Capital, 1888, p. 35-36.
4
Esta galeria foi publicada em dois volumes nesse mesmo ano: POLICÍA DE LA CAPITAL
FEDERAL. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887. Buenos Aires: Imprenta del
Departamento de Policía, 1887.
5
REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1887-1888. Op.
Cit., p. 35.
6
A viagem também havia sido uma visita de estudo encomendada pela chefia de polícia, embora
originalmente tivesse propósitos mais amplos e envolvesse outras cidades europeias. Isso fica claro na
carta que Cuenca entregou a Drago para que pudesse apresentá-la frente ao Prefeito Lépine: “Tenho a
honra de me dirigir a V.Sa. solicitando sua valiosa cooperação para que o Doutor Agustín Drago, que
apresentará pessoalmente esta nota, possa desempenhar com êxito a comissão que esta chefia lhe
confiou. Creio que em nenhuma parte mais que nas grandes capitais europeias, e especialmente
naquelas como Paris que tem reputação de contar com um excelente serviço de polícia, pode-se achar
um modelo para a organização definitiva do serviço médico policial. É este estudo o que constitui a
comissão encomendada ao Doutor Drago”. Drago levou à Europa cartas similares para apresentar nas
polícias de Londres, Viena, Bruxelas e Madrid. Idem, p. 38.
139
fotográfico, instalado na Polícia de Buenos Aires desde a década de 1870, era,
segundo Cuenca, uma “repartição de bastante movimento que, caso se estabelecesse
o Gabinete Antropométrico, duplicaria seu trabalho”.7 Drago regressou a Buenos
Aires em abril de 1888 e expôs ao chefe os resultados de suas observações em Paris.
Entusiasmado, Cuenca o autorizou a adquirir os instrumentos e aparelhos necessários
para o estabelecimento do serviço.8 Oficialmente, o Gabinete foi inaugurado um ano
depois, porque foi necessário instruir os funcionários na tomada de medições
antropométricas e no registro dos dados nas fichas. A “ordem do dia” da chefatura
que criou esta repartição por decreto, em abril de 1889, dizia:
7
Idem, p. XIV.
8
CONI, Emilio R. Código de Higiene y Medicina Legal de la República Argentina. Buenos Aires:
Librería de Juan Etchepareborda, 1891, p. 392-393.
9
CEHP. “Orden del día 3 de abril de 1889”, Libro de Órdenes del Día 1889.
140
próprios corpos dos criminosos para tirar o crime da obscuridade do enigma
metafísico.
Por isso, pouco chama a atenção o fato de que Lacassagne, ao mesmo tempo
em que combatia as “teorias antropométricas” (como ele chamava as contribuições
dos criminologistas italianos), acolhia com entusiasmo os novos usos que o policial
francês Alphonse Bertillon inventou para a antropometria. Estas técnicas não
buscavam uma explicação científica da etiologia do delito; ao contrário, aplicavam a
ciência para resolver alguns problemas concretos das burocracias judiciais e
policiais. No momento do Congresso de 1889, Bertillon já era Chefe do Serviço de
Identificação na Prefeitura de Polícia de Paris e membro da Sociedade de
Antropologia. Essas conquistas, junto ao apoio de Lacassagne, foram suficientes para
que ele se imiscuísse na lista de médicos e advogados do comitê organizador, sem ter
ele próprio título universitário algum.
A aposta de Bertillon era difundir seu sistema pelas polícias do mundo, uma
ambição desmedida, sem dúvidas, mas que começava a dar seus primeiros frutos.
10
QUINCHE, Nicolas. Sur les traces du crime. De la naissance du regard indicial à
l’institutionnalisation de la police scientifique et technique en Suisse et en France. Genève: Slatkine,
2011.
141
Após uma conferência teórica e prática sobre a identificação antropométrica,
Bertillon sentou-se em uma mesa presidida por Lombroso, para escutar o discurso de
um dos representantes argentinos. O bacharel Cantilo explicou que o sistema já havia
sido adotado fora da França: as polícias de alguns estados norte-americanos e a de
Buenos Aires tinham serviços antropométricos instalados sob os lineamentos de
Bertillon. Ao final de sua exposição, Cantilo leu as seguintes palavras:
11
CANTILO, M. “Sur le signalament anthropométrique”. In: Actes du Deuxième Congrès
International d’Anthropologie Criminelle, Biologie et Sociologie, Paris, 1889, p. 379.
12
Sobre a difusão na América Latina ver: GALEANO, Diego; GARCÍA FERRARI, Mercedes.
“Cartographie du bertillonnage. Le système anthropométrique en Amérique latine: circuits de
diffusion, usages et résistances”. In: PIAZZA, Pierre (dir.). Aux origines de la police scientifique.
Alphonse Bertillon, précurseur de la science du crime. Paris: Karthala, 2011, p. 308-331.
142
No ano seguinte à inauguração do Gabinete Antropométrico de Buenos Aires e
à consagração internacional do método de Bertillon no congresso parisiense, o
médico carioca Henrique Monat enviava da França ao primeiro chefe de polícia da
República do Brasil, um relatório sobre o sistema antropométrico.13 A instabilidade
política dos primeiros anos republicanos impediu avançar com as diferentes
propostas que chegaram às mãos das chefias. Em 1891, por exemplo, o professor da
Faculdade de Direito de Recife, Joaquim de Albuquerque Barros Guimarães, viajou a
Paris para estudar o sistema antropométrico, comissionado pelo governo federal.14
No ano seguinte, apresentou um volumoso relatório cujos capítulos foram publicados
parcialmente, em 1900, pelo “Boletim do Serviço de Identificação Judiciária”. No
relatório, o jurisconsulto pernambucano argumentava que os “malfeitores
internacionais” estavam desaparecendo de Paris e se mudavam a outras cidades
europeias, com medo que o serviço de identificação demonstrasse sua condição de
reincidentes e, em consequência, a justiça os deportasse às colônias francesas.15
Além disso, Barros Guimarães acrescentava:
13
MONAT, Henrique. “Carta do Dr. Henrique Monat”, Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, Ano
XLII, n. 117, 1903, p. 17-18.
14
AN, Fundo GIFI, Gabinete do Ministro, 8N-80. Despacho do Sr. Ministro da Justiça, 5 fev. 1892.
15
BARROS GUIMARÃES, Joaquim de Albuquerque. “Efeitos da aplicação do Método Bertillon”,
Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 2, Rio de Janeiro, mar. 1900, p. 2.
16
Idem, p. 5.
143
Bolsa. “Pouco depois, ninguém, nem o policial farejador de melhor olfato, poderia
suspeitar quem se ocultava detrás daquele operário loiro, com óculos azuis e ar
cordial”.17 Mudança de nomes, emprego de um arsenal de pseudônimos e disfarces
de todos os tipos eram parte do trabalho dos ladrões viajantes, que aproveitavam uma
realidade urbana cada dia mais contundente: nas capitais sul-americanas, em especial
nas cidades que recebiam imigrações maciças, as interações cotidianas estavam
dominadas pelo anonimato.
Simulações e identidades
17
MARTEL, Julián. La Bolsa: estudio social. Buenos Aires: Imprenta artística Buenos Aires, 1898, p.
256.
18
“El servicio antropométrico de París”, Revista de la Policía de la Capital, Año I, n. 2, Buenos
Aires, 15 jun. 1888, p. 22-23.
144
indivíduos presos, as coleções fotográficas eram imensas (...). A
única classificação que podia ser empregada era a ordem alfabética
e bastava que o preso desse um nome falso para que o índice não
tivesse nenhuma utilidade.19
19
“Determinación de la identidad. Sistema de señalamientos antropométricos”, Revista de la Policía
de la Capital, Año I, n. 3, Buenos Aires, 1 jul. 1888, p. 27-28.
20
DELLEPIANE, Antonio. El idioma del delito. Contribución al estudio de la psicología criminal.
Buenos Aires: Arnoldo Moen, 1894, p. 118. No mesmo momento em que Agustín Drago estava
estudando o sistema antropométrico na Europa, em Buenos Aires houve uma reunião dos funcionários
superiores no despacho da chefatura, com a presença do Comissário de Investigações e dos vinte
delegados da cidade. Um deles tomou a palavra para explicar que frequentemente levavam presos
“indivíduos sobre cujos maus antecedentes se têm veementes suspeitas, e que não podem ser
confirmadas pelos delegados porque eles dão nomes falsos”. A solução que propunha este delegado
era de levá-los nos “carros de polícia” para uma ronda pelos cárceres e correcionais, de modo que os
empregados dessas instituições os reconhecessem visualmente. REPÚBLICA ARGENTINA.
Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1887-1888. Op. Cit., p. 187.
145
pelos magistrados para saber se um acusado tinha antecedentes criminais, informação
que podia determinar um agravamento da pena por reincidência.
Desde a sanção de uma lei que em 1832 aboliu na França a prática de marcar a
pele dos reincidentes com um carimbo de ferro quente, o reconhecimento dos
reincidentes havia se tornado um processo burocrático bastante complexo. A busca
de um indivíduo no arquivo apresentava duas sérias complicações. Em primeiro
lugar, a quantidade de fichas crescia em ritmo constante e a averiguação fazia-se
cada dia mais dificultosa. Em segundo lugar, os chamados “malfeitores de profissão”
haviam aprendido um artifício para escapar à imputação de reincidência: bastava
trocar de nome, elegendo possivelmente um mais comum para aumentar a
dificuldade da procura na coleção alfabética, e desse modo a polícia não tinha forma
de demonstrar que esse nome era falso. Inclusive, essa artimanha tinha uma
expressão na gíria dos delinquentes franceses. Enganar a polícia e passar como um
novato sem antecedentes criminais era uma ação denominada “se blanchir”,
branquear-se.21
21
KALUSZYNSKI, Martine. “Alphonse Bertillon et l’anthropométrie”. In: Vigier, Philippe; Faure,
Alain (eds). Maintien de l’ordre et polices en France et en Europe au XIXe siècle. Paris: Créaphis,
1987, p. 270-272.
22
CARMIL, Renato. “Circular da Seção de Identificação Anthropométrica da Polícia da Capital
Federal”, Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 3, Rio de Janeiro, mai.-jun. 1900, p. 10.
146
Foi para esquivar-se deste mesmo problema que a polícia francesa resolveu
abonar uma gratificação de cinco francos a cada agente – policial ou penitenciário –
que reconhecesse um reincidente. Esta proposta confiava na capacidade dos
funcionários para memorizar os rostos dos criminosos, tradição que Macé, chefe da
Brigada de Segurança (Sûreté), chamava de “école de reconnaissance”. Bertillon,
acérrimo inimigo de Macé dentro da polícia parisiense, denunciava as deficiências
desta prática, pelos métodos violentos e truques ilegais que utilizavam para obter
uma confissão de reincidência. Segundo Bertillon, quando chegavam os carros com
detidos, estes eram submetidos, um por um, a interrogatórios que continham vários
tipos de emboscadas: “Ha quanto tempo não te vemos, meu velho!”, “Você de volta!
Como é mesmo que você se chama?”. E se o sujeito insistisse em afirmar um suposto
nome falso, os agentes empregavam uma armadilha um pouco mais sofisticada:
“Você afirma que seu nome é Bernard Paul, nascido em Paris tal ano! Bem, você está
sem sorte: aqui está a ficha desse tal Bernard que você pretende ser!”.23 Essa ficha
inventada continha supostamente uns antecedentes tão ruins que o preso preferia
retificar-se e confessar o verdadeiro nome, para evitar uma condenação maior.
23
BERTILLON, Alphonse. L'Identité des récidivistes et la loi de relégation. Paris: G. Masson, 1883,
p. 4.
147
Paul e que não tem condenação prévia, como podemos suspeitar de
sua mentira? Como podemos demonstrá-la? 24
24
Idem, p. 1-2.
25
BERTILLON, Alphonse. Identification anthropométrique. Instructions signalétiques. Melun:
Imprimerie administrative, 1893.
148
“Tomada do assignalamento anthropométrico”
Fonte: João Brasil Silvado, O serviço policial em Paris e Londres (1895), p.113.
149
chegar finalmente a uma caixa que somente continha uma dezena de fichas, em uma
operação que demorava – segundo seu autor – apenas alguns minutos.26
Para Bertillon, dois indivíduos podiam ter algumas dessas medidas iguais, mas
em nenhum caso apresentariam as mesmas dimensões nas nove categorias. Dessa
maneira, o próprio corpo humano brindava os dados necessários para estabelecer
rigorosamente a “identidade”, entendida aqui como uma qualidade do indivíduo que
o faz absolutamente singular; característica em que se pode reconhecer sempre como
ele mesmo e como diferente, por sua vez, de qualquer outro indivíduo. Quando um
detido passava pelo Serviço de Identificação, tiravam suas medidas e as anotavam
em uma ficha junto com outros dados. As medições antropométricas permitiam por
em funcionamento o sistema de classificação de fichas, mas a comprovação direta da
identidade se completava com três conjuntos de informações adicionais.
26
BERTILLON, Alphonse. Identification anthropométrique. Op. Cit., p. XXI-XXV.
27
Dentro do kit de instrumentos para a identificação antropométrica, que os serviços policiais de
vários países importaram de Paris, havia uma tabela com as variações cromáticas da pigmentação da
íris. Idem, p. 137-140.
150
antropométrico tornava possível chegar até uma ficha, a coincidência do retrato
estampado no papel com rosto do detido era uma prova mais que contundente.
28
DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 218-220.
29
BERTILLON, Alphonse. Notice sur le fonctionnement du service d'identification de la Préfecture
de Police: suivie de tableaux numériques résumant les documents anthropométriques accumulés dans
les archives de ce service. Paris: G. Masson, 1889, p. 847.
30
BERTILLON, Alphonse. La Photographie Judiciaire en France: avec un appendice sur la
classification et l’identification anthropométriques. Paris: Gauthier-Villars et fils, 1890.
151
Fotografia Judiciária da Polícia da Capital Federal (1896)
Fonte: AN, Fundo GIFI, 6C8
152
Uma vez consolidado o serviço de identificação na Prefeitura de Polícia,
Bertillon avançou na criação de um sistema nacional centralizado em Paris
(conquista concretizada em 1893), e ainda continuou estendendo suas investigações a
outros domínios da polícia científica: fotografia métrica no lugar do crime,
identificação de cadáveres, etc.31 Todo esse ensamble de técnicas foi batizado por
Lacassagne com o nome de bertillonnage, apelido que dominaria a cena na árdua
tarefa de difusão internacional que recém começava.32
31
ABOUT, Ilsen. “Les fondations d’un système national d’identification policière en France (1893-
1914). Anthropométrie, signalements et fichiers”, Genèses, Paris, n. 54, 2004, p. 28-52.
32
LOCARD, Edmond. “L’œuvre d’Alphonse Bertillon”, Archives d’Anthropologie Criminelle, n. 243,
1914, p. 169.
33
BERTILLON, Alphonse. Identification anthropométrique. Op. Cit., p. LXXXII.
34
SILVADO, Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Relatório apresentado ao Ministro da
Justiça e Negócios Interiores, sendo ministro o ilustrado cidadão Dr. Gonçalves Ferreira. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1895, p. 106.
153
logo após explicar cada um dos componentes do bertillonnage, recomendava
energicamente sua adoção no Brasil, para evitar a defasagem com a capital argentina.
Os gabinetes antropométricos
O que curiosamente Brasil Silvado desconhecia aqui era que enquanto ele
viajava pela Europa, o chefe da Polícia da Capital Federal, coronel Valladão, abria
no Rio de Janeiro um gabinete antropométrico. Diferente do caso argentino, aqui a
iniciativa provinha de fora da esfera policial: partiu do seio da Associação de
Antropologia e Assistência Criminal, fundada em 1892 por um grupo de médicos
legistas, juristas e criminologistas ligados à escola italiana, como Agostinho J. de
Souza Lima, Cândido Mendes de Almeida, José A. de Souza Gomes e Antônio
Maria Teixeira. Estes três últimos constituíram uma comissão que estudou o relatório
de Barros Guimarães e redigiram um parecer – datado de 20 de abril de 1893 – com a
ideia de persuadir o governo para que criasse o serviço. Nesse mesmo ano, antes de
fazer com que a Polícia da Capital aceitasse a proposta, Souza Gomes viajou ao
estado de Minas Gerais em nome da Associação e conseguiu que a chefia da polícia
instalasse um gabinete antropométrico na Cadeia de Ouro Preto. Dirigido por um
médico, segundo parece, o gabinete foi fechado antes de chegar a funcionar
regularmente.35
35
CARMIL, Renato. “Relatório sobre o serviço de identificação antropométrica, apresentado ao
cidadão Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo bacharel Renato Carmil, 4° adjunto dos
promotores”, Diario Official da União, Ano XXXVI, n. 91, abr. 1897, p. 4537-4539.
154
ataques, suspeitas e resistências. O bacharelismo vigente desde a época do Império
estava vendo como brotavam uma pletora de novos saberes – higienismo,
criminologia, psiquiatria, medicina legal – que começavam a disputar espaços no
campo estatal.36
36
Neste terreno, o rival mais forte dos juristas foram os médicos, cuja ascensão durante a Primeira
República foi um processo bastante estudado pela historiografia brasileira Ver, por exemplo:
CARRARA, Sergio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do
século. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: Nina Rodrigues e
a antropologia no Brasil. Bragança Paulista: EdUSF, 1998. ÁLVAREZ, Marcos. Bacharéis,
criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003.
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no
Brasil (1870-1930). São Paulo: Unesp, 1999.
37
PACHECO, Félix. “O problema da identificação: reforma do serviço anthropométrico”, Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, 30 dez. 1902. Traduzido na Argentina em: PACHECO, Félix.
“Identificación de los delincuentes. Ventajas del sistema dactiloscópico”, Archivos de Psiquiatría,
Criminología y Ciencias Afines, Buenos Aires, abr.-mai. 1903, p. 227-235.
38
Pouco depois da inauguração do gabinete carioca, Souza Gomes publicou um folheto em que
mostrava os resultados de uma série de “exames antropométricos” sobre homicidas brasileiros, presos
nas Casas de Detenção e Correção. SOUZA GOMES, José A. Crimes e criminosos: contribuição para
o estudo da criminologia no Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Moraes, 1895. Em 1896 criou-se um
gabinete antropométrico na Cadeia de Porto Alegre, cujo diretor, o médico legista Sebastião Leão,
também incursionou em estudos de antropologia criminal empregando as medições antropométricas
sobre os detidos. LEÃO, Sebastião. “Relatório do Doutor Sebastião Leão, Médico da Polícia”. In:
Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Exterior do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: s/d, 1897, p. 213-225.
39
Sobre estas críticas ver: CUNHA, Olívia M. Gomes da. “The Stigma of Dishonor: Individual
Records, Criminal Files, and Identification in Rio de Janeiro, 1903–1940”. In: CAULFIELD, Sueann;
PUTNAM, Laura; CHAMBERS, Sara (org.). Honor, Status and Law in Modern Latin America.
Durham: Duke University Press, 2005, p. 295-316.
155
Mesmo que na capital argentina a proposta de criação de um serviço de
identificação antropométrico surgisse da chefatura de polícia, existia também uma
ligação estreita do serviço com os círculos médicos e criminológicos de Buenos
Aires. Em 1885, o primeiro Congresso de Antropologia Criminal havia contado com
a participação de Bertillon, que apresentou um trabalho sobre a aplicação da
antropometria para a comprovação de antecedentes penais nos casos de
reincidência.40 O impacto do triunfo da escola italiana de criminologia nesse
congresso chegou rápido a Buenos Aires, onde em 1888 se criou a “Sociedade de
Antropologia Jurídica”, por iniciativa de Luis M. Drago, irmão do primeiro diretor
do Gabinete Antropométrico.41 Nesse ano Drago publicou Los hombres de presa,
considerado o primeiro livro de criminologia na América Latina, onde dedicava
algumas páginas a explicar o sistema de Bertillon, utilizando as atas do Congresso de
Roma e, além disso, anunciava a instalação do serviço na polícia portenha.42
40
BERTILLON, Alphonse. “Sur l'anthropométrie appliquée aux récidivistes”. In: Actes du Premier
Congrès International d’Anthropologie Criminelle, Biologie et Sociologie. Rome, Nov. 1885. Turin:
Bocca, 1886, p. 151-158.
41
DEL OLMO, Rosa. América Latina y su criminología. México: Fondo de Cultura Económica,
1981, p. 59.
42
DRAGO, Luis M. Los hombres de presa. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1888, p. 183-188.
43
REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1888-1889.
Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1889, p. X-XI.
156
Como ficava claro no orçamento da polícia, o Gabinete Antropométrico estava
subordinado ao Serviço Médico.44 Apesar de Drago ter enfrentado problemas
estruturais para a instalação da nova repartição (como, por exemplo, falta de
despesas e escassa instrução dos funcionários), havia algumas diferenças com relação
à experiência no Rio de Janeiro: o gabinete portenho manteve seu funcionamento
sem interrupções até princípios do século XX e conseguiu aumentar o nível de
produção de fichas de identificação. Ao passo que durante o primeiro ano se
mediram 582 indivíduos, em 1901 a cifra anual de sujeitos fichados chegava a 2.507
e, nesses trezes anos, o serviço acumulou 16.147 fichas. A capacidade de
identificação de reincidentes também cresceu: 30% dos indivíduos medidos em 1892
já contavam com fichas no arquivo e em 1899 essa cifra chegou a um pico de 80%.45
44
O Serviço Médico da Polícia da Capital se dividia em duas repartições: o Gabinete Antropométrico,
que contava somente com um “médico diretor” e um “ajudante de escritório”, e a “repartição de
conservação e exposição de cadáveres”. Idem, p. 4. Dois anos depois, haviam-se agregado um “oficial
primeiro”, um médico que atuava como subchefe, um fotógrafo e dois ajudantes. CONI, Emilio R.
Código de Higiene y Medicina Legal de la República Argentina. Op. Cit., p. 393.
45
GARCÍA FERRARI, Mercedes. Ladrones conocidos/sospechosos reservados. Op. Cit., p. 128-144.
46
“Oficina antropométrica”, Revista de policía, Año I, n. 15, Buenos Aires, 16 ene. 1897, p. 292-293.
157
em Paris permaneceram guardados no depósito da sala de medicina legal.47 Em uma
série de cartas enviadas por Juan Vucetich à polícia carioca, em 1896, percebe-se a
desordem administrativa em relação ao problema da identificação. Vucetich tratava
de difundir no Brasil seu sistema de filiação “baseado nos sinais particulares e
cicatrizes do corpo humano, segundo o método dos professores Broca e Bertillon”,
como escrevia em uma destas cartas. Da chefia respondiam que o gabinete
antropométrico não havia passado de “simples ensaios” e que atualmente estava de
fato paralisado.48
47
Em 1899, quando foi reaberto o serviço, um cronista do Jornal do Comércio que narrava a visita do
chefe da polícia portenha ao Gabinete Antropométrico, escreveu sobre o destino dos instrumentos:
“Ao tempo da administração do Coronel Valadão, cogitou-se da criação deste serviço e chegou-se
mesmo a adquirir o material necessário e a efetuar diversas experiências. Sobreveio porém a revolta
setembrina e todo o serviço ficou não só paralisado como também desorganizado. Os aparelhos
voltaram para o depósito, onde ninguém mais se lembrou de retirá-los”. “Polícia Argentina”, Jornal
do Comércio, Rio de Janeiro, 15 ago. 1899, p. 1-2.
48
Cartas de Juan Vucetich (10 de abril e 16 de outubro de 1896), Arquivo Nacional, Fundo GIFI,
Documentos de Polícia, 6C8. Neste momento Vucetich era o chefe da Oficina Antropométrica na
Província de Buenos Aires. Embora já incorporasse em seu sistema as impressões digitais, ainda não
tinha descartado a antropometria, ver: GARCÍA FERRARI, Mercedes. “Juan Vucetich. Una respuesta
desde la dactiloscopia a los problemas del orden y la consolidación de la Nación Argentina”. In:
SOZZO, Máximo (coord.). Historias de la cuestión criminal en la Argentina. Buenos Aires: Ediciones
del Puerto, 2009, p. 235-236.
49
AN, Fundo GIFI, 6C 23 (1898). Carta do Cônsul do Império austro-húngaro, 7 mai. 1898, e
resposta da chefia da polícia, 11 mai. 1898.
50
SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Lei, cotidiano e cidade. Polícia Civil e práticas na São Paulo
republicana (1889-1930). São Paulo: IBCCRIM, 2009, p. 197-199.
158
A possibilidade de estabelecer um mecanismo de trocas de informação entre as
polícias, sob um mesmo código, era uma das ambições que movia a difusão do
bertillonnage: “suprema aspiração da antropometria que é tornar-se um sistema
internacional, entendido em uma só linguagem escrita – a dos algarismos e a dos
sinais”, como observava Brasil Silvado.51 Foi precisamente ele quem resolveu
reestabelecer o serviço antropométrico, após ser designado chefe de polícia pelo
presidente Campos Sales. A rapidez com que o fez parece sugerir que a decisão
estava tomada de antemão: assumiu a chefia em 26 de julho de 1899 e nos primeiros
dias de agosto já começava a funcionar o novo gabinete.52
51
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 105.
52
CARMIL, Renato; SOUZA GOMES, José A. “Relatório da Seção de Identificação Judiciária.
Apresentado ao Dr. Chefe de Polícia”, Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 1, Rio de
Janeiro, jan. 1900, p. 4-6.
53
Ver a seção de Notas diversas no Boletim do Serviço de Identificação Judiciária n. 1, jan. 1900, p.
8-9; e no Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 2, mar. 1900, p. 14-15; Boletim do Serviço
de Identificação Judiciária, n. 3, mai.-jun. de 1900, p. 11-12.
159
e organizar o arquivo para reconhecer reincidentes. Para isso, os diretores contaram
com dois agentes a quem ensinaram tomar as medidas e a preencher as fichas. O
serviço foi instalado em uma sala da Repartição Central da Polícia e pôde incorporar
o instrumental fotográfico que já era empregado para retratar “gatunos conhecidos” e
cadáveres. De qualquer forma, os diretores pretendiam que o gabinete se realocasse
para a Casa de Detenção, para evitar o envio de presos até a polícia e unificar os
registros da prisão com o arquivo de fichas antropométricas.54 Isso foi contemplado
durante a reforma policial de 1900, em dois decretos do governo que regulamentaram
o funcionamento da Polícia da Capital e da Casa de Detenção.
54
CARMIL, Renato; SOUZA GOMES, José A. “Relatório da Seção de Identificação Judiciária”. Op.
Cit., p. 4-5.
55
Atos do Poder Executivo. Decreto n. 3640 (Regulamento para o Serviço de Polícia do Distrito
Federal), Art. 70, e Decreto n. 3641 (Regulamento da Casa de Detenção da Capital Federal). Art. 149-
164. Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 3, Rio de Janeiro, mai.-jun. 1900, p. 3-8.
56
Tais estimativas pertencem ao relatório apresentado ao chefe de polícia: CARMIL, Renato; SOUZA
GOMES, José A. “Relatório da Seção de Identificação Judiciária”. Op. Cit. Em um relatório posterior,
160
identificados, dois dos quais negaram ser reincidentes até que lhes mostraram o
retrato fotográfico tomado na detenção anterior. No entanto, os diretores aclaravam
que somente “estabeleceu-se a classificação alfabética, faltando apenas a
antropométrica, a qual depende de armários especiais que estão sendo
confeccionados”.57
161
era o modelo adotado para realizar as identificações. Tratava-se da “ficha
parisiense”, um protocolo criado para unificar as informações na França que, a partir
de 1894, havia incorporado as impressões digitais da mão direita. Esta novidade era,
no interior do bertillonnage, uma tentativa de cooptação de uma técnica cada vez
mais ressonante, utilizada no mundo anglófono. Mas neste momento Bertillon não a
considerava uma peça do sistema classificatório, como mais tarde faria Vucetich,
porém uma prova suplementar de identificação, ao nível da fotografia e das marcas
particulares.61
162
Ficha antropométrica de Justino Carlo, vulgo Carletto (frente)
Fonte: Hermeto Lima, A identidade do homem pela impressão digital (1908), p. 16.
Incluída no mesmo livro, a ficha alfabética de Carletto fornece ainda uma pista
a mais. Neste cartão, registravam-se os dados de filiação e as “prisões verificadas”,
espaço onde aparecia anotada, abaixo da primeira detenção por roubo, a reclusão de
1906 pelos estrangulamentos da Rua Carioca.62 Isso mostra que o arquivo
antropométrico, enviado para a Casa de Detenção no final de 1900, continuou sendo
usado apesar da renuncia dos diretores, Carmil e Souza Gomes. Ainda assim, o
volume anual de identificações se manteve, e inclusive cresceu um pouco em 1901:
realizaram-se 1.770 medições, correspondentes a 751 verificações de reincidências e
1.019 novas identificações.63 Em agosto de 1901 havia assumido a direção do serviço
62
LIMA, Hermeto. A identidade do homem pela impressão digital (datiloscopia). Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1908, p. 21.
63
CASTRO, Antônio A. Cardoso de. “Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios
Interiores, pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal”. Op. Cit., p. 154.
163
antropométrico Félix Pacheco, que se converteria no principal promotor da
datiloscopia no Brasil e obstinado adversário do bertillonnage.
64
Idem, p. 154-155.
65
“Regulamento da Secretaria de Polícia do Distrito Federal”, aprovado por decreto n. 4764, de 5 de
fevereiro de 1903. Diário Oficial da União, Ano XLII, n. 36, Rio de Janeiro, 12 fev. 1903.
66
Durante a Primeira República, cientistas como Edgard Roquette-Pinto usaram o bertillonnage no
laboratório de antropologia física do Museu Nacional. KEULLER, Adriana Tavares do Amaral
164
É preciso salientar que, apesar da sua inserção no mundo policial, Bertillon
nunca deu as costas às ciências antropológicas, com as quais estava vinculado desde
o início de sua vida profissional. Ao contrário, em 1909 publicou um tratado de
antropologia métrica junto a Arthur Chervin, cujo subtítulo era “conselhos práticos
para os missionários científicos sobre a forma de medir, fotografar e descrever
sujeitos vivos e peças anatômicas”.67 No livro, os autores difundiam um estojo
portátil com instrumentos para as medições antropométricas (denominado boîte de
mensuration), que havia sido utilizado uns anos antes por uma missão científica
francesa na América do Sul, especificamente nas regiões andinas do Peru, Bolívia,
Chile e Argentina. O estojo era composto por oito instrumentos para medições
antropométricas, três para as impressões digitais, uma tabela com a escala cromática
da íris humana e um livro de instruções.68
Martins. Os estudos físicos de antropologia no Museu Nacional do Rio de Janeiro: cientistas, objetos,
ideias e instrumentos (1876-1939). Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, 2008, p. 162.
67
BERTILLON, Alphonse; CHERVIN, Arthur. Anthropologie métrique: conseils pratiques aux
missionnaires scientifiques sur la manière de mesurer, de photographier et de décrire des sujets
vivants et des pièces anatomiques. Paris: Imprimerie Nationale, 1909.
68
Idem, p. 9-11. Tudo isso era guardado em uma mala de madeira idêntica a que usaram os
antropólogos brasileiros, cujo exemplar se preserva no Setor de Antropologia Biológica do Museu
Nacional. Ver: SÁ, Guilherme José da Silva e; SANTOS, Ricardo Ventura; RODRIGUES-
CARVALHO, Claudia; SILVA, Elizabeth Christina da. “Crânios, corpos e medidas: a constituição do
acervo de instrumentos antropométricos do Museu Nacional na passagem do século XIX para o XX”,
História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, Vol.15, n.1, jan-mar. 2008, p. 197-208.
165
rizoma criminológico: “é curioso acentuar que andam sempre juntas a antropometria
do Sr. Bertillon e a antropologia do Sr. Lombroso”.69
69
PACHECO, Félix. “O problema da identificação: reforma do serviço anthropométrico”, Jornal do
Comércio, Rio de Janeiro, 30 dez.1902.
70
QUESADA, Ernesto. Comprobación de la reincidencia. Proyecto de ley presentado al señor
Ministro de Justicia e Instrucción Pública, Doctor D. Osvaldo Magnasco. Buenos Aires: Imprenta y
Casa Editora de Coni Hermanos, 1901, p. 145.
71
HOLMES, H. H. “La confesión de un gran criminal”, Criminalogia Moderna, Año II, n. 6, Buenos
Aires, abr. 1899, p. 168.
166
simples ordem do chefe de polícia. Entretanto, esse fato tem-se
reproduzido inúmeras vezes, sem levantar protestos.72
72
CARMIL, Renato. “Relatório sobre o serviço de identificação antropométrica”. Op. Cit., p. 4538.
73
Sobre Buenos Aires, ver: RUGGIERO, Kristin. Modernity in the Flesh: Medicine, Law and Society
in Turn-of-Century Argentina. California: Stanford University Press, 2004, p. 101-106. E sobre
México: SPECKMAN GUERRA, Elisa. “En la inmensa urbe y el laberinto de los archivos: la
identificación de criminales en la ciudad de México”. In: GALEANO, Diego; KAMINSKY, Gregorio
(Coord.). Mirada (de) uniforme. Historia y crítica de la razón policial. Buenos Aires: Teseo, 2011, p.
142. Não faltaram nestas repúblicas comparações com velhas práticas punitivas que implicavam
castigos corporais, tais como as marcas de ferro ou os açoites aos escravos. Ver: GALEANO, Diego;
GARCÍA FERRARI, Mercedes. “Cartographie du bertillonnage”. Op. Cit., p. 323-325.
74
SENADO FEDERAL. “Projeto n. 29, 15 de outubro de 1903”, citado em CARVALHO, Elysio de.
A identificação como fundamento da vida jurídica. Biblioteca do Boletim Policial: VI. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1912, p. 17. Sobre este tema, ver: CUNHA, Olívia M. Gomes da. Intenção e
Gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2002, p. 17-20.
167
identificação dos réus definitivamente condenados”, rematava o parecer, “é excluir
dessa medida uma porção da população adventícia, tão frequente nas grandes cidades
(...), que afluem às prisões e delas saem por motivos de segurança, mas sem que na
maior parte das vezes haja meios de processá-los”.75 Mesmo que o projeto do
senador Barata Ribeiro não fosse aprovado, a assimilação da antropometria com uma
prática vexatória é uma das chaves para entender o posterior sucesso das impressões
digitais.
75
Comissão de Justiça do Senado Federal, parecer n. 160, 22 de setembro de 1903 e parecer n. 22, 16
de agosto de 1906, citados em CARVALHO, Elysio de. A identificação como fundamento da vida
jurídica. Op. Cit., p. 17-19.
76
“La oficina antropométrica. Carta de F. Beazley”, Revista de Policía, Año I, n. 6, Buenos Aires, 15
ago. 1897, p. 93.
77
Idem, p. 94.
78
MUJICA FARÍAS, Manuel. La policía de París. Buenos Aires: Arnold Möen, 1901, p. 301.
79
PACHECO, Félix. “O problema da identificação”. Op. Cit.
168
Souza Lima, elogiou as atividades do serviço antropométrico, seus diretores saíram a
responder que eles não pretendiam “meter a mão em seara alheia”. Que queriam
dizer com isso? Esclareceram no artigo com todas as letras:
80
Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 5, Rio de Janeiro, set.-out.1900, p. 1-2.
81
Ver “Instituto de Advogados”, Jornal do Comércio, 6 ago. 1901.
82
TERCEIRO CONGRESSO SCIENTIFICO LATINO AMERICANO. A Polícia Argentina e a
Polícia Brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 2.
169
vigência nas polícias. Mas nenhuma explicação deste triunfo pode omitir a vantagem
relativa que as impressões digitais tinham sobre as medições antropométricas, por ser
uma prática que – inclusive utilizando uma parte do corpo dos identificados –
implicava um processo muito mais rápido, simples e, sobretudo, discreto.
A linguagem universal
83
FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Dos Autos da Cova Rasa. A identificação de corpos
não-identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960. Rio de Janeiro:
UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2007. FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia
médica do biodeterminismo, São Paulo (1920-1945). São Paulo: Alameda, 2009.
84
LORETO, Aliatar de Araujo. Lições de datiloscopia: a identidade do homem pela impressão digital.
Juiz de Fora: Companhia Dias Cardoso, 1930, p. 19.
170
pessoal. No entanto, outra corrosão, mais lenta, porém implacável, estava sucedendo
no terreno das técnicas de identificação. Longe de Paris, em cidades situadas fora do
mapa mental de muitos especialistas europeus, dois funcionários policiais
trabalhavam sobre novos sistemas baseados nas impressões digitais: Juan Vucetich,
na Província de Buenos Aires, e Edward Henry, nas Índias britânicas, desenvolveram
métodos de classificação de fichas datiloscópicas que rapidamente se expandiram
pelo mundo.85 Além da França, eram poucos os países que na década de 1910
mantinham ainda a antropometria judiciária. De fato, após a morte de Bertillon, a
própria Prefeitura de Polícia de Paris se rendeu ante a vitória incontestável das
impressões digitais.86
Mesmo assim, e como costuma suceder, sua morte acarretou uma série de
homenagens que tentaram reconhecer o lugar de Bertillon na história da polícia
científica e, inclusive, da ciência em geral. Lacassagne não duvidou em lhe dedicar
um dos últimos números de sua revista, onde Locard trazia as palavras do
antropólogo Léonce Manouvrier: “temos dois homens de gênio na França: Pasteur e
Bertillon”.87 No Brasil, a homenagem ficou nas mãos do escritor Elysio de Carvalho,
então Diretor do Gabinete de Identificação e Estatística. Embora esta instituição já
cumprisse uma década de forte defesa da datiloscopia, tampouco aqui se
economizavam elogios para este personagem considerado o “fundador da moderna
técnica policial”.88 Igualmente, para Carvalho, o triunfo do método datiloscópico era
uma realidade incontestável:
85
COLE, Simon A. Suspect Identities. A History of Fingerprinting and Criminal Identification.
Cambridge: Harvard University Press, 2001. SENGOOPTA, Chandak. Imprint of the Raj. How
Fingerprinting was born in Colonial India. London: Macmillan, 2003. RUGGIERO, Kristin.
“Fingerprinting and the Argentine Plan for Universal Identification in the Late Nineteenth and Early
Twentieth Centuries”. In: CAPLAN, Jane; TORPEY, John (eds.). Documenting Individual Identity.
Op. Cit., p. 184-196. RODRIGUEZ, Julia. “South Atlantic Crossings : Fingerprints, Science, and the
State in Turn-of-the-Century Argentina”, The American Historical Review, Vol. 2, n. 109, 2004, p.
387-416.
86
PIAZZA, Pierre. “Alphonse Bertillon face à la dactyloscopie. Nouvelle technologie policière
d’identification et trajectoire bureaucratique”, Les Cahiers de la sécurité, Paris, n. 56, 2005, p. 251-
270.
87
LOCARD, Edmond. “L’œuvre d’Alphonse Bertillon”, Archives d’Anthropologie Criminelle, n. 243,
1914, p. 167.
88
CARVALHO, Elysio de. Alphonse Bertillon. Biblioteca do Boletim Policial: XXVI. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1914, p. 6.
171
Antigamente o criminoso ficava aterrorizado, quando se falava em
deixar o retrato na polícia, em ser escrachado. Tudo fazia para não
ser fotografado. Hoje ele se submete, sem protesto, facilmente, e
até com um sorriso nos lábios, a esta operação. Mas quando tem de
dar os dez dedos das mãos para serem tomadas as impressões,
protesta, discute, grita e até chora. (...). Não só os boçais, os
gatunos idiotas e os bandidos ignorantes sofrem o pavor da ficha.89
89
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano
VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 145.
90
VUCETICH, Juan. “Evolução da Datiloscopia”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO
LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brasileira. Op. Cit., p. 3-13. VUCETICH,
Juan. Dactiloscopia. Cuál debe ser la idoneidad del identificador. Su prueba legal en la reincidencia.
Congresos Científicos. La Plata: Joaquín Sesé Ed. 1909, p. 21-23.
172
Após inventar um sistema para a classificação de impressões digitais no arquivo,
Vucetich buscou a forma de criar um código para a transmissão dos dados
datiloscópicos, uma cifra que se converteria em uma “verdadeira linguagem
universal”.91 Para discutir este ponto, Locard escreveu da Suíça uma carta a
Vucetich, em 4 de agosto de 1905:
Vucetich ficou seduzido com esta ideia, mas também era consciente da
dificuldade da missão. O principal obstáculo era a diversidade de sistemas e critérios
de classificação utilizados nas distintas polícias do mundo, como ficava claro no
trabalho que o próprio Locard publicou, no ano seguinte, aprofundando a ideia da
ficha internacional.93 O criminologista de Lyon analisava os serviços de identificação
em dezenove países: onze da Europa, cinco da América Latina (México, Argentina,
Brasil, Chile e Uruguai), Egito, Indochina e as Índias inglesas. Desses países, doze
ainda empregavam o sistema antropométrico, as quatro repúblicas sul-americanas
haviam incorporado a datiloscopia de Vucetich e os restantes adotavam o sistema de
impressões digitais sob a classificação inglesa (Galton-Henry).94
91
Idem, p. 23.
92
“Cartas de dos sabios”, Boletín de Policía, Año I, n. 10, Buenos Aires, 15 set. 1905, p. 22.
93
LOCARD, Edmond. “Les services actuels d’identification et la fiche internationale”, Archives
d’Anthropologie Criminelle, n. 147, 1906, p. 145-206.
94
Idem, p. 153-201.
173
megalômanas da conquista universal, Vucetich apostou em uma estratégia que
consistia em mostrar ao mundo as maravilhas da cooperação policial com o exemplo
dos países sul-americanos. As palavras usadas pelos vucetichistas em suas
exposições em congressos internacionais sugerem que realmente acreditavam estar
falando ao mundo, e em cada resposta de uma eminência europeia interpretavam que
o mundo os estava escutando.
95
REYNA ALMANDOS, Luis. Unión Policial Universal. Sus bases. Tesis presentada a la Sección de
Ciencias Jurídicas, Congreso Científico Internacional Americano, Buenos Aires, 10 a 25 de Julio de
1910. La Plata: Talleres gráficos Christmann & Crespo, 1910, p. 5.
96
VUCETICH, Juan. “Necesidad de crear en cada país una Oficina Central de Identificación”, Boletín
de la Policía de Santiago, Número especial, dedicado a los estudios y trabajos sobre Policía en el IV
Congreso Científico (1º Panamericano), Año IX, n. 79, Santiago de Chile, Enero de 1909, p. 60-66.
174
A ideia da “União Policial Universal” era um jogo de palavras com a “União
Postal Universal”, o organismo que regulava, desde a década de 1870, o intercâmbio
de correspondências entre os países. Esta comparação tinha muitos significados: no
século XIX, o telégrafo havia permitido unir as diferentes repartições policiais, no
sonho de instantaneidade que mais tarde a radiocomunicação ajudaria a reforçar.
Agora, os fios telegráficos se uniam aos métodos de identificação para produzir a
ficção de uma polícia universal. A cooperação internacional entre as forças da ordem
era uma velha aspiração, mas – segundo dizia o Comissário de Investigações da
polícia portenha – ainda não havia encontrado uma saída para o “problema de sua
praticabilidade”, que a datiloscopia resolvia convertendo-se na “linguagem de nossos
futuros alertas”.97
97
“Convención Internacional de Policía”, Boletín de Policía, Año I, n. 12, Buenos Aires, 15 out. 1905,
p. 13.
98
REYNA ALMANDOS, Luis. Unión Policial Universal. Op. Cit., p. 12-13.
99
LOCARD, Edmond. “Les services actuels d’identification et la fiche internationale”, Op. Cit., p.
202-206. Sobre los usos del retrato hablado en Francia, véase: LÓPEZ, Laurent. “Alphonse Bertillon
dans l’ombre des récidivistes et le bertillonnage dans l’œil des forces de l’ordre de la Belle Époque”.
In: Piazza, Pierre (dir.). Aux origines de la police scientifique. Op. Cit., p. 102-111.
100
LOCARD, Edmond. “L’identification par les empreintes digitales. L’emploi de la dactyloscopie en
Amérique du Sud. Le procédé Vucetich ”, Archives d’Anthropologie Criminelle, 1903, p. 145-206.
175
Locard, onde o professor de Lyon aceitava as vantagens da datiloscopia sobre a
antropometria. Porém, ao chegar ao tema do retrato falado, o tradutor incluía, em
nota rodapé, uma discussão com o autor traduzido:
101
LOCARD, Edmond. A identificação pelas impressões Digitais. O emprego da datiloscopia na
América do Sul. O processo Vucetich (Trad. Félix Pacheco). Rio de Janeiro, Typ. Rebello Braga,
1904, p. 23. Outro questionamento de um vucetichista brasileiro, dirigido contra a defesa que Locard
fez do retrato falado, pode ser visto em: LIMA, Hermeto. “Retrato falado”, Boletim Policial, Ano III,
n. 8, Rio de Janeiro, dez. 1909, p. 183-185. Neste caso, a crítica se baseava em argumentos mais
técnicos que os de Pacheco, já que Hermeto Lima argumentava sobre as falhas do método quando dois
indivíduos pareciam-se fisionomicamente e, inclusive, se referia à possibilidade de um indivíduo
modificar seu rosto com cirurgias estéticas. Ver: LIMA, Hermeto. A identidade do homem pela
impressão digital (datiloscopia). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908, p. 15-18.
102
REISS, R.A. Un code télégraphique du portrait parlé. Paris: A. Meloixe, 1907, p. 9.
176
dava no texto, Reiss reduzia um retrato falado de 75 caracteres em letras a 29
caracteres em números).103 Em segundo lugar, ao ser um código numérico, não
necessitava de traduções quando as mensagens se intercambiavam entre dois países
que falam idiomas distintos. Reiss explicava:
Seguindo esta mesma ideia, Séverin Icard começou a publicar em 1909 seus
trabalhos difundindo uma “fórmula cifrada” que reduzia os custos da transmissão
telegráfica e fazia, supostamente, mais simples as traduções da linguagem
numérica.105 Enquanto Reiss continuava com sua obra de difusão e sistematização da
criminalística, Icard dedicou a este tema vários trabalhos, onde foi aperfeiçoando
cada vez mais a proposta.106 Mas o núcleo original da ideia de Reiss se mantinha
intacto. Se conseguisse instalar uma linguagem universal para a transmissão
internacional do retrato falado, a captura dos criminosos viajantes seria cada vez
mais simples e menos lenta.107 Estava claro que esse era o problema que Reiss
apontava:
103
Idem, p. 22-23.
104
Idem, p. 23.
105
ICARD, Séverin. “La formule chiffrée du portrait parlé. Application de la méthode aux marques
particulières”, Archives d’Anthropologie Criminelle, 1909, p. 783-790.
106
ICARD, Séverin. “Nouvelle méthode pour obtenir la formule chiffrée du portrait parlé. Le nombre
signalétique international”, Archives d’Anthropologie Criminelle, 1909, p. 123-131. ICARD, Séverin.
“Code signalétique international”, Archives d’Anthropologie Criminelle, 1912, p. 561-615.
107
No campo dos estudos da datiloscopia também buscaram-se formas diferentes de transmitir
internacionalmente as fichas de identificação, ver: ROMAY, Francisco. Teledactiloscopia.
Identificación a la distancia. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Penitenciaría Nacional, 1928.
177
impossível, vigiá-los pela polícia de um país, se esta não é ajudada
na tarefa por informações rápidas e precisas provenientes das
polícias dos países ou lugares onde estes bandos operam com seus
negócios delitivos.108
Em São Paulo também falou sobre esta multiplicidade de saberes, mas agregou
uma lição sobre a necessidade de avançar no campo da polícia internacional. Embora
108
REISS, R.A. Un code télégraphique du portrait parlé. Op. Cit., p. 23.
109
CARVALHO, Elysio de. “Escolas de Agentes”, Boletim Policial, Anno I, n. 3, Rio de Janeiro, jul.
1907, p. 17-18.
110
CARVALHO, Elysio de. La Police Scientifique au Brésil. Biblioteca do Boletim Policial: VIII. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 15-19.
111
Ver: MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha. A civilização do delegado. Modernidade, polícia e
sociedade em São Paulo nas primeiras décadas da República, 1889-1930. Tese de Doutorado em
História Social, Universidade de São Paulo, 2011, p. 227-234.
112
REISS, R.A. Polícia Technica. Resumo das conferências realizadas no Rio. Biblioteca do Boletim
Policial: XXI. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914.
178
Reiss entendesse a criminalística como um conjunto de técnicas diversas, a variedade
de procedimentos devia ter um limite: cada polícia tinha direito de organizar seus
serviços como quisesse, mas todas tinham a obrigação de encontrar uma linguagem
para transmitir informações e cooperar nas capturas dos criminosos transnacionais.113
Se no domínio das técnicas tinha se avançado muito, neste terreno da cooperação
policial estava tudo por ser feito. E, frente ao público brasileiro, Reiss realizava uma
observação curiosa sobre a internacionalização das polícias:
113
REISS, R.A. Polícia Técnica. Resumo das conferências realizadas em S. Paulo. Biblioteca do
Boletim Policial: IXI. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 39-42.
114
Idem, p. 41.
179
- Não, respondemos, do Rio de Janeiro, capital do Brasil, que é um
país que nada tem que ver com Buenos Aires, e que é tão grande,
que de seus vinte estados um dos menores é maior que a França.
(...) Passamos depois a visitar a repartição, onde não achamos
nada de novo, a não ser a descoberta, que fizemos, de mais uma
vantagem do vucetichismo sobre o bertillonnage. Aqui a ficha é,
como se sabe, dupla, o que dá lugar a maior quantidade de
armários e consequentemente de espaço para os colocar. Na
repartição há uma sala destinada à aula do portrait parlé, criação
do Sr. Bertillon e onde os agentes policiais vão aprender esse
complicado e falho método de achar entre a multidão o indivíduo
procurado.115
As coisas haviam mudado muito, não apenas na opinião que os policiais sul-
americanos tinham da Europa, mas também no olhar que os europeus arrojavam
sobre estas terras. Por isso, talvez, Locard não duvidou muito em declarar que os
gabinetes europeus de datiloscopia pareciam “sótãos infames ao lado das suntuosas
instalações americanas” e concluía: “mais uma vez se adivinhará onde está a
civilização e onde está a decadência”.116
115
LIMA, Hermeto. “A identificação em Paris”, Boletim Policial, Ano III, n. 12, Rio de Janeiro, abr.
1910, p. 84-85.
116
Citado em RIBEIRO, Leonidio. Dactiloscopia: a propósito do cinquentenário da sua descoberta.
Rio de Janeiro: Est. Graphico Canton & Reile, 1941, p. 23.
180
Encontros de policiais
Na reportagem que a imprensa espanhola lhe fez, durante seu passeio pelas
polícias europeias, Mujica Farías contava este caso de um anarquista italiano, a quem
havia recebido em seu gabinete no Departamento Central de Polícia pouco tempo
antes. O militante libertário procurou a polícia para conversar sobre um assunto
vinculado a sua profissão de advogado e não hesitou em confessar, ao secretário
geral da instituição, suas inclinações ideológicas. No entanto, Mujica Farías não
narrava esta anedota com a única intenção de questionar a atitude dos países
europeus de expulsar seus “indesejáveis” à América do Sul, mas para mostrar a
capacidade de regeneração nestas repúblicas, com suas terras promissoras e sua
abundancia de trabalho. Segundo contava o policial portenho, três meses depois de
sua chegada a Buenos Aires, “o famoso anarquista italiano, cujo nome peço não
publicar, revalidava um título de doutor em jurisprudência, abria escritório e fundava
uma revista muito interessante (...). Eu, secretário de polícia, figuro na redação da
revista”.2
1
“Un reportaje interesante. El doctor Mujica Farías en Madrid”, Revista de Policía, Año IV, n. 79,
Buenos Aires, 1 set. 1900, p. 103.
2
Idem, p. 103.
Não é difícil adivinhar o nome deste anarquista e o da revista que dirigia.
Tratava-se de Pietro Gori, um conhecido militante libertário que se exilou na
Argentina em 1898 para evitar uma condenação à prisão por sua participação nos
protestos desse ano em Milão. A revista que fundou era Criminalogia Moderna, a
primeira publicação periódica de antropologia criminal na América Latina. De fato,
Mujica Farías aparecia – junto a outros nomes ilustres como Juan Vucetich, Antonio
Dellepiane, os irmãos Agustín e Luis María Drago – na lista de redatores da revista
desde seu primeiro número, do dia 20 de novembro de 1898. Apesar da confiança de
Mujica Farías em que esta dedicação a uma revista científica, produzida junto com
criminologistas e policiais, significava um afastamento do pensamento anarquista, a
realidade era muito mais complexa. Gori continuou sua atividade propagandística na
Argentina, influenciando, por exemplo, o pensamento do jovem criminologista José
Ingenieros, e seguiu professando essas ideias em sua última década de vida, na Itália,
aonde regressou em 1902.3
3
Ver GELI, Patricio. “Los anarquistas en el gabinete antropométrico. Anarquismo y criminología en
la sociedad argentina del 900”, Entrepasados, Año I, n. 2, 1992, p. 7-24. ANTONIOLI, Maurizio.
Pietro Gori, il cavaliere errante dell’anarchia. Studi e testi. Pisa: BFS Ed., 1995.
4
As leis de expulsões de estrangeiros foram amplamente trabalhadas pela historiografia argentina,
com ênfase em seu surgimento e aplicação para a repressão do movimento operário e, em particular,
do anarquismo. Ver, por exemplo: SURIANO, Juan. Trabajadores, anarquismo y Estado represor: de
la Ley de Residencia a la Ley de Defensa Social (1902-1910). Buenos Aires: Centro Editor de
América Latina, 1988. ZIMMERMANN, Eduardo. Los liberales reformistas. La cuestión social en la
Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 1995. VILLAVICENCIO, Susana (ed.). Los contornos de la
ciudadanía. Nacionales y extranjeros en la Argentina del Centenario. Buenos Aires: EUDEBA, 2003.
CONSTANZO, Gabriela. Los Indeseables. Las Leyes de Residencia y Defensa Social. Buenos Aires:
Madreselva, 2009.
5
CANÉ, Miguel. Expulsión de extranjeros. Apuntes. Buenos Aires: J. Sarrailh, 1899, p. 11-12.
182
anarquistas com bombas e sua imediata resposta repressiva: a Conferência
Internacional celebrada em 1898 na cidade de Roma.6
Tal como Ori Preuss mostrou recentemente, esta aproximação formava parte de
trocas mais amplas nas renovadas relações culturais e políticas entre ambos os países.
A majestosa visita do presidente Roca ao Rio de Janeiro em 1899 e, em retribuição, a
6
Idem, p. 9-10. Sobre a Conferência Anti-Anarquista de Roma e o movimento de internacionalização
da vigilância policial, ver: BACH JENSEN, Richard. “The International Anti-Anarchist Conference of
1898 and the Origins of Interpol”, Journal of Contemporary History, Vol. 16, n. 2, apr. 1981, p. 223-
347. E sobre os atentados anarquistas da década de 1890: MERRIMAN, John. The Dynamite Club.
How a bombing in fin-de siècle Paris ignited the age of modern terror. New York: Harcourt, 2009.
KNEPPER, Paul. “Anarchist Outrages”. In: The Invention of International Crime. A Global Issue in
the Making, 1881-1914. London: Palgrave, 2010, p. 128-158.
7
BACH JENSEN, Richard. “The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the Origins of
Interpol”, Op. Cit., p. 338-342. DEFLEM, Mathieu. Policing World Society: Historical Foundations of
International Police Cooperation. New York: Oxford University Press, 2004, p. 66-68. ANDREAS,
Peter; NADELMAN, Ethan. Policing the Globe. Criminalization and Crime Control in International
Relations. Oxford/New York: Oxford University Press, 2008, p. 79-96.
183
viagem de Campos Sales a Buenos Aires, foram o auge de um estreitamento de
vínculos que havia começado com os festejos portenhos pela abolição da escravatura
no Brasil e a transformação, produzida pelas elites republicanas, do olhar para a
República Argentina, país que os monarquistas consideravam um exemplo da
desordem política hispano-americana.8
8
PREUSS, Ori. Bridging the Island. Brazilian´s Views of Spanish America and Themselves, 1865-
1912. Frankfurt/Madrid: Iberoamericana-Vervuert, 2011, p. 116 e ss.
9
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 31 jul. 1899, p. 1.
10
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 3 ago. 1899, p. 1.
184
primeiras páginas com retratos e biografias de Roca, o primeiro presidente latino-
americano a fazer uma visita oficial ao Brasil. Alguns dias depois da chegada, o
Jornal do Comércio publicava uma extensa reportagem com o chefe da polícia
portenha, realizada por Félix Pacheco.11
Havia que apurar esse canal de comunicações que tinha algumas interferências.
Os contatos nos anos prévios, aos que se referia Beazley na reportagem, eram tão
reais como os inconvenientes que os rodeavam. Um ano antes da visita, por exemplo,
a polícia portenha enviava um telegrama ao chefe da polícia do Rio de Janeiro
“rogando-lhe encarecidamente que se digne a responder os telegramas datados de 31
de outubro e 2 atual”, sobre um preso francês que fugiu do cárcere da província de
Misiones, e que segundo as investigações argentinas se encontrava em Porto Alegre,
hospedado no hotel Lagaché.13 A polícia de Buenos Aires solicitava sua captura
11
“Entrevista com o Dr. Beazley”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 ago. 1899, p. 3. Embora
o jornalista que realizou a entrevista não aparecia mencionado na publicação, em seu discurso na
sessão inaugural da Conferência Sul-americana de Polícia de 1905, Félix Pacheco (que chegou a ser
coproprietário do Jornal do Comércio) recordava “a entrevista que o ilustre Dr. Francisco Beazley me
concedeu quando esteve no Rio de Janeiro com o senhor General Roca, e que foi publicada”. Discurso
reproduzido em: “Convención Internacional de Policía”, Boletín de Policía, Año I, n. 12, Buenos
Aires, 15 oct. 1905, p. 9.
12
“La policía de Río de Janeiro. El viaje del Doctor Beazley”, Revista de Policía, Año III, n.55,
Buenos Aires, 1 sep. 1899, p. 99.
13
AN, Fundo GIFI, 6C24, telegrama de 3 de nov. de 1898.
185
imediata e sua extradição. Em uma anotação nas margens do expediente gerado pela
reiteração de telegramas de Buenos Aires, lê-se:
Após esta explicação, o jornalista interrompeu Beazley para contar um fato que
apoiava sua teoria. Logos após ser anunciada a visita de Roca ao Rio de Janeiro,
segundo as investigações da polícia carioca, começaram a chegar gatunos de Buenos
Aires, que pretendiam aproveitar as aglomerações dos festejos públicos para roubar.
Pacheco agregava que o próprio Jornal do Comércio noticiara, recentemente, a
14
AN, Fundo GIFI, 6C24, nota de 17 nov. 1898. O primeiro tratado de extradição entre as repúblicas
do Brasil e Argentina se celebrou em 1933 e estabelecia que os pedidos de extradição deviam ser
apresentados sempre por “via diplomática”. AHC, “Tratado de Extradición entre la República
Argentina y el Brasil”, Río de Janeiro, Octubre de 1933, art. IV.
15
“Entrevista com o Dr. Beazley”, Op. Cit., p. 3.
186
detenção de um ladrão conhecido como “Gallego Octavio” que, com um grupo de
colaboradores portenhos, foram detidos ao desembarcar na capital brasileira e
enviados de volta a Buenos Aires no vapor Duchessa Di Genova.
Para provar o intenso fluxo de ladrões entre ambas cidades, Beazley ordenou
que viajassem ao Rio de Janeiro, em um navio diferente ao da comitiva oficial, “três
velhos agentes experientes” que conheciam “absolutamente a todos gatunos que
infestam Buenos Aires”.16 O chefe da polícia carioca, Brasil Silvado, autorizou esses
agentes a fazer uma ronda de reconhecimento pelas distintas prisões da capital. Dois
dias depois da reportagem, o Jornal do Comércio anunciava o desembarque dos
agentes secretos, que não eram três senão quatro, e que o cronista descrevia como
“perfeitos gentleman” que falavam diferentes idiomas.17 No mesmo dia os agentes
visitaram a Repartição Central de Polícia, a Casa de Detenção e a Casa de Correção,
onde reconheceram ao redor de doze ladrões que tinham visto em Buenos Aires,
entre os quais estavam: Felippe Monfo, vulgo “el brasilerito”; Francisco Taborda,
vulgo “ojo de buey”; Manoel de Oliveira, conhecido na capital argentina como
“Segundo Lobo”; José Ferrari e sua mulher Theresa, cúmplice em seus roubos, “que
ficou muito envergonhada e confusa com a descoberta”.18
Além disso, o jornalista teve acesso aos dois volumes da galeria fotográfica de
ladrões conhecidos que Beazley obsequiou a Brasil Silvado e pôde fazer seus
próprios reconhecimentos visuais. O criminoso número 40, segundo explicava a seus
leitores, que figurava no álbum portenho como Luciano Ludueña, Pantaleón Gómez
ou Pedro Ruiz, era conhecido pela polícia fluminense como “Julio Madurano”; e o
mesmo sucedia com Alberto Gomensoro.19 Efetivamente, os retratos desses ladrões
estavam numa galeria policial de 1892:
16
Idem, p. 3.
17
“Os Agentes da polícia secreta de Buenos Aires”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 12 ago.
1899, p. 3.
18
Idem, p. 3. A roda de reconhecimento dos agentes secretos portenhos foi notícia também em: “Na
polícia”, Jornal do Brasil, 12 ago. 1899 e “Na polícia”, Jornal do Brasil, 13 ago. 1899.
19
“A polícia argentina”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 13 ago. 1899, p. 2.
187
Luciano Ludueña, retratado em julho de 1889.
Fonte: Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1887, ficha 40.
188
Beazley também percorreu as instalações das Casas de Detenção e Correção, e
passou pelo Gabinete Antropométrico, onde cumpriu com a cerimônia de se deixar
retratar com os padrões da fotografia métrica de Bertillon.20 No entanto, a parte mais
significativa da visita foram as reuniões entre os chefes de ambas polícias. Segundo o
jornal O País, esses encontros tiveram como principal objetivo firmar um acordo
para facilitar reciprocamente “os meios necessários à repressão da gatunagem”.21 Na
entrevista com Pacheco, Beazley explicou que durante sua chefia, a perseguição de
ladrões e punguistas intensificara-se muito, uma fama que a imprensa portenha
alimentava com frequência, como se via em uma ilustração da revista Caras y
Caretas, onde o chefe da polícia aparecia “limpando a cidade” de gatunos.
20
“Polícia argentina”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15 ago. 1899, p. 1-2. “O Dr. Francisco
Beazley”, O Paiz, Rio de Janeiro, 15 ago. 1899, p. 1.
21
“O Dr. Beazley”, O Paiz, Rio de Janeiro, 10 ago. 1899, p. 1.
189
De acordo com a entrevista, muitos ladrões começaram a fugir para
Montevidéu por causa desta perseguição, mas os acordos com a polícia uruguaia para
intercambiar informações telegraficamente permitiram que os criminosos viajantes
fossem detidos ao atravessar o Rio da Prata. Beazley suspeitava que agora o novo
destino escolhido por estes sujeitos fossem os portos brasileiros. Por isso, o objetivo
do chefe de polícia era estender esses acordos informais aos três países envolvidos
nas rotas transatlânticas sul-americanas: “com um serviço assim, internacionalmente
combinado, mas independente e harmônico, o Brasil, a Argentina e o Uruguai
acabariam por devolver à Europa o elemento pernicioso que ela nos envia”.22
Estes projetos difundidos pela imprensa carioca coincidiam com a versão que a
revista policial portenha dava sobre a visita do chefe de polícia ao Rio de Janeiro.
“Não se firmaram convênios, nem se têm escrito tratados”, explicava o cronista, mas
haviam conseguido estabelecer acordos para a troca de comunicações, prontuários,
avisos e diversas informações sobre o “ativo e natural intercâmbio que a gente do
mal viver e os malfeitores de toda espécie mantém constantemente entre uma e outra
cidade”.24 Esta revista difundia, ainda, uma fotografia de uma das reuniões, onde se
viam os dois chefes rodeados por distintos funcionários da polícia carioca, entre os
quais estavam os titulares do Gabinete Antropométrico, Souza Gomes e Renato
Carmil.
22
“Entrevista com o Dr. Beazley”, Op. Cit., p. 3.
23
Idem, p. 3.
24
“La policía de Río de Janeiro. El viaje del Doctor Beazley”, Op Cit., p. 100.
190
“La Policía de Río de Janeiro. El viaje del Doctor Beazley”
Fonte: Revista de Policía, n. 55, Buenos Aires, 1 sep. 1899.
“Cremos não errar afirmando que entre os dois chefes de polícia, Drs. Beazley
e Brasil Silvado, ficou definitivamente assentado o modo em que de ora em diante se
comunicarão as duas polícias das duas grandes capitais da América”, festejava o
cronista do Jornal do Comércio.25 Mas alguns indícios sugerem que o entendimento
mútuo não foi tão completo. Quando na reportagem a Beazley, Félix Pacheco
perguntou sobre a possibilidade de “permuta de fichas antropométricas”, a resposta
do chefe portenho foi categórica: julgava-a totalmente desnecessária, “uma vez que
os retratos trazem à margem todos os dados indispensáveis para a verificação da
identidade dos criminosos”.26 É provável que a opinião de Brasil Silvado fosse outra,
considerando que recentemente havia criado o Gabinete Antropométrico, cujas
instalações mostrou com orgulho a Beazley durante a visita institucional. Mas poucas
implicações teve essa eventual diferença: os anos imediatamente seguintes seriam
testemunhas de uma ascensão inédita da cooperação policial entre Argentina e Brasil,
processo onde nem a antropometria nem a fotografia seriam as verdadeiras
protagonistas.
25
“Polícia Argentina”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 18 ago. 1899, p. 1.
26
“Entrevista com o Dr. Beazley”, Op. Cit., p. 3.
191
Congressos, Convênios, Conferências
27
Ver, por exemplo: “La visita internacional” Revista de Policía, Año III, n. 65, Buenos Aires, 1 feb.
1900, p. 289. “Recepción del presidente de Brasil. Servicios policiales extraordinarios”, Revista de
Policía, Año III, n. 68, Buenos Aires, 16 mar. 1900, p. 330-331. “Sueltos. Visita del señor presidente
del Brasil”, Revista de Policía, Año IV, n. 79, Buenos Aires, 1 sep. 1900, p. 109-110.
192
Depois da visita, os jornais de Buenos Aires festejaram a “apurada aparência
dos delegados e a compostura de todos seus subordinados”, o modo em que a
“cultíssima polícia da capital” havia sido a estrela das celebrações.28 Sem ocultar
muito sua vaidade, os redatores do boletim policial exclamavam: “nossa polícia é,
sem dúvidas, superior a todas as outras deste continente sul-americano”.29 Este
postulado era inclusive alimentado por alguns representantes dessas outras forças do
subcontinente. Para uma comitiva de chilenos que viajou em 1903 a Buenos Aires,
com a intenção de estudar a organização da polícia portenha, esta era “não apenas a
primeira da América do Sul, senão também digna de figurar ao lado das melhores da
Europa”.30 No ano seguinte, após uma visita de policiais uruguaios, lia-se na revista
portenha:
28
Expressões dos jornais El País e El Diario, citadas em: “Ecos amables. La policía en las fiestas
brasileño-argentinas”, Revista de Policía, Año IV, n. 84, Buenos Aires, 16 nov. 1900, p. 177-179.
29
“El Coronel Fraga”, Boletín de Policía, Año I, n. 1, Buenos Aires, 30 abr. 1905, p. 6.
30
“Policías chilenas. Cuestiones interesantes”, Revista de Policía, Año VII, n. 156, Buenos Aires, 16
nov. 1903, p. 181. Sobre a visita ver também: “Sueltos. Jefe de Policía de Montevideo”, Revista de
Policía, Año VII, n. 148, Buenos Aires, 16 jul. 1903, p. 47. “Sueltos. De la policía de Chile”, Revista
de Policía, Año VII, n. 154, Buenos Aires, 16 oct. 1903, p. 154-155.
31
“La policía de Montevideo”, Revista de Policía, Año VIII, n.172, Buenos Aires, 16 jul. 1904, p. 51.
A visita dos funcionários uruguaios aparece também em: “Sueltos. Policía Uruguaya”, Revista de
Policía, Año VIII, n. 170, Buenos Aires, 16 jun. 1904, p. 21.
193
como veremos nem sempre eram as polícias das capitais.32 Evidentemente, as
palavras dos escritores da polícia portenha formavam parte de uma estratégia de
posicionamento. Mas nem o auge das visitas entre policiais sul-americanos no início
do século XX, nem a centralidade de Buenos Aires nessa trama de circulações, eram
ideias tão desconectadas com o que estava acontecendo.
32
Como indiquei na introdução, esta noção de “metrópole” foi problematizada pelo sociólogo norte-
americano Edward Shils, para discutir as interpretações do “modelo de transfusão” de um centro único
até a periferia. SHILS, Edward. La metrópoli y la provincia en la comunidad intelectual. In: Los
intelectuales en los países en desarrollo. Buenos Aires: Ediciones Tres Tiempos, 1981, p. 42-63.
33
“Sueltos. Un huésped distinguido”, Revista de Policía, Año V, n. 107, Buenos Aires, 1 nov. 1901,
p. 174.
34
“Sueltos. Delegados de la policía de San Pablo”, Revista de Policía, Año VII, n. 164, Buenos Aires,
16 mar. 1904, p. 315. “Sueltos. De la policía brasileña”, Revista de Policía, Año VIII, n. 169, Buenos
Aires, 1 jun. 1904, p. 15.
35
Ver, por exemplo: “Las revistas policiales sudamericanas”, Boletín de Policía de la Provincia de
Buenos Aires, Año I, n. 5, La Plata, 30 nov. 1905, p. 5-6. “La policía de Montevideo”, Revista de
194
publicações especializadas no campo da questão criminal, onde os intercâmbios entre
colegas da América do Sul também se fizeram mais frequentes.36
Policía, Año X, n. 233, Buenos Aires, 1 feb. 1907, p. 348-349. “Policía de Río de Janeiro. Boletín
Mensual”, Revista de Policía, Año XI, n. 241, Buenos Aires, 1 jun. 1907, p. 439.
36
Ver, entre outros exemplos, a resenha que Evaristo de Moraes fez em sua revista das estatísticas
publicadas por Criminalogia Moderna: “Estatística criminal. República Argentina”, Boletim Criminal
Brazileiro, Año I, n. 2, Rio de Janeiro, 15 nov. 1900, p. 7; ou a tradução que a principal revista
criminológica argentina fez de um artigo de Félix Pacheco, com anotações a rodapé de José
Ingenieros: PACHECO, Félix. “Identificación de los delincuentes. Ventajas del sistema
dactiloscópico”, Archivos de Psiquiatría, Criminología y Ciencias Afines, Buenos Aires, abr.-may.
1903, p. 227-235.
37
Sobre os congressos científicos, ver: SUPPO, Hugo Rogelio. “Ciência e relações internacionais. O
Congresso de 1905”, Revista da SBHC, n. 1, 2003, p. 6-20. Sobre os Congressos Médicos Latino-
Americanos e as Exposições Internacionais de Higiene: ALMEIDA, Marta de. “Circuito aberto: idéias
e intercâmbios médico-científicos na América Latina nos primórdios do século XX”, História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 13, n. 3, jul.-set. 2006, p. 733-757; e sobre a cooperação latino-
americana em matéria sanitária: REBELO, Fernanda. A travessia: imigração, saúde e profilaxia
internacional (1890-1926). Tese de Doutorado em História das Ciências e da Saúde, Fundação
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2010.
38
VUCETICH, Juan. Dactiloscopia. Cuál debe ser la idoneidad del identificador. Su prueba legal en
la reincidencia. Congresos Científicos. La Plata: Joaquín Sesé ed 1909, p. 19-20.
195
processos de verificação de identidade e criava-se uma comissão a fim de estudar
qual era o melhor procedimento “para que as nações americanas ibero-latinas
internacionalizem o serviço de identificação de pessoas”.39 Pela influência de
Garibaldi sobre os congressistas, as conquistas de Vucetich foram muito limitadas
nesta primeira investida fora da Argentina. No entanto, os vínculos que durante os
anos seguintes Vucetich foi estabelecendo com o Gabinete de Identificação do Rio
de Janeiro, dirigido por Félix Pacheco desde agosto de 1901, foram fundamentais
para avançar em seu projeto de construir uma polícia internacional sul-americana,
baseada nos intercâmbios de fichas datiloscopias.
39
Idem, p. 20-21.
40
RIBEIRO, Leonidio. Dactiloscopia: a propósito do cinquentenário da sua descoberta. Rio de
Janeiro: Est. Graphico Canton & Reile, 1941, p. 18.
196
A individual dactiloscópica, por si só, determina a identidade da
pessoa, acrescendo que todas as polícias do mundo poderão ler na
mesma individual, qualquer que seja a classificação que adotem,
vindo assim a constituir o “Sistema Dactiloscópico” uma
verdadeira linguagem universal.41
Pacheco recuperou uma ambiciosa tese que Vucetich havia apresentado antes,
no Congresso de Montevidéu de 1901: a criação de três “gabinetes intercontinentais
para a troca das fichas datiloscópicas de indivíduos perigosos”.45 A ideia original era
41
TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a
Polícia Brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 16.
42
“Tercer congreso científico latinoamericano. El triunfo de las ideas modernas. Fraternidad de
brasileños y argentinos”, Boletín de Policía, Año I, n. 10, Buenos Aires, 15 sep. 1905, p. 10-12.
43
VUCETICH, Juan. “Evolução da Dactyloscopia”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO
LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brasileira. Op. Cit., p. 3-13. Traduzido ao
espanhol em: “Tercer congreso científico latinoamericano. Memorias de brasileños y argentinos. I.
Evolución de la Dactiloscopia por D. Juan Vucetich”, Boletín de Policía, Año I, n. 12, Buenos Aires,
15 oct. 1905, p. 15-19.
44
“La Policía de la Provincia en el Tercer Congreso Científico Latinoamericano. Ruidoso triunfo de la
dactiloscopia”, Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, Año I, n. 2, La Plata, 31 ago.
1905, p. 7.
45
PACHECO, Felix. “A excelência do sistema datiloscópico Vucetich e a criação dos gabinetes inter-
continentais”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia
197
que um desses gabinetes estivesse em uma capital europeia, outro em uma capital da
América do Sul e o último em América do Norte, mas o delegado de Guatemala
questionou que América Central ficasse supeditada aos Estados Unidos, e a proposta
finalmente aprovada recomendou a criação de quatro gabinetes.46
Se esta tese, por sua própria desmesura, não prosperou, distinta sorte teve a
segunda grande aposta do congresso. O próprio Vucetich e Alberto Cortina
apresentaram em público uma ideia que estava circulando entre os policiais da
Argentina e Brasil: a conformação de um “congresso policial sul-americano”.47
Segundo os representantes da Província de Buenos Aires, este passo seria o meio
mais eficaz para avançar na edificação de uma polícia internacional, uma
necessidade universal que, por complexas razoes geopolíticas, América do Sul podia
responder melhor que nenhum outro continente no mundo.48 Essas razões
justificavam a conveniência de “circunscrever unicamente aos países sul-americanos
a formação do congresso”, envolvendo as dez repúblicas de Venezuela, Colômbia,
Equador, Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai.49
Argentina e a Polícia Brazileira. Op. Cit., p. 45. Este trabalho também foi traduzido ao espanhol e
publicado em três entregas: Boletín de Policía, Año I, n. 13, Buenos Aires, 30 oct. 1905, p. 1-9;
Boletín de Policía, Año I, n. 15, Buenos Aires, 30 nov. 1905, p. 6-10; y Boletín de Policía, Año I, n.
17, Buenos Aires, 30 dic. 1905, p. 7-10.
46
“Tercer congreso científico latinoamericano. El triunfo de las ideas modernas. Fraternidad de
brasileños y argentinos”. Op. Cit., p. 11.
47
VUCETICH, Juan; CORTINA, Alberto. “Congreso Policial Sudamericano. Su necesidad y manera
de promoverlo”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia
Argentina e a Polícia Brazileira. Op. Cit., p. 53-79.
48
Esses motivos, que iam desde vantagens geográficas e uniformidade dos sistemas políticos, até
questões históricas, eram um dos eixos do livro em que Cortina analisava comparativamente as
organizações policiais da Argentina, Brasil Chile e Uruguai. CORTINA, Alberto. La Policía en
Sudamérica. La Plata: Talleres Gráficos “La Popular”, 1905.
49
VUCETICH, Juan; CORTINA, Alberto.. “Congreso Policial Sudamericano. Su necesidad y manera
de promoverlo”. Op. Cit., p. 68.
198
posteriormente aos convênios acordados. A proposta de realização do primeiro
congresso policial foi também aprovada por unanimidade e entre os fundamentos se
aclarava:
50
Idem, p. 79.
51
FARIA, Antônio Bento de. “Da necessidade e uniformizar a ação da polícia dos países americanos”.
In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a
Polícia Brazileira. Op. Cit., p. 81-87.
52
ROSSI, José G. “La policía internacional”, Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 sep.
1905, p. 5.
199
ponto que quando um ladrão viajante chegava a seu novo destino, era recebido por
um guia “para fazê-lo conhecer a cidade”.
53
Idem, p. 6.
54
CRUZ, Eurico. “Necessidade da fundação de um Congresso Policial Sul-Americano”. In:
TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia
Brazileira. Op. Cit., p. 91-94. Reproduzido também em: CRUZ, Eurico. Relatórios policiais,
sentenças criminais. Rio de Janeiro: Typografia dos Annaes, 1914, p. 1-6.
55
“Convención Interpolicial”, Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, Año I, n. 4, La
Plata, 31 oct. 1905, p. 4.
200
gerais”: estabelecer a troca recíproca de fichas individuais datiloscópicas e acordar
formulas rápidas para a transmissão de antecedentes “com fins policiais”.56
“Os Srs. Vucetich e Felix Pacheco trabalhando no Gabinete de Identificação do Rio de Janeiro”
Fonte: Renascença. Revista mensal de letras, sciencias e artes, n. 49, Rio de Janeiro, 1908, p. 89.
56
“La próxima conferencia policial internacional”, Revista de Policía, Año IX, n. 201, Buenos Aires,
1 oct.1905, p. 70.
57
Véase “Del Doctor Félix Pacheco”, Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, Año I, n. 3,
La Plata, 30 sep. 1905, p. 3-4.
58
“Sr. Juan Vucetich y Dr. Félix Pacheco”, Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 sep.
1905, p. 1-2.
201
“Dr. Félix Pacheco”
Fonte: Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 sep. 1905, p. 1.
59
“El Convenio Internacional. La aceptación de la dactiloscopia”, Boletín de Policía, Año I, n. 13,
Buenos Aires, 30 oct. 1905, p. 12.
202
Uma reunião dos chefes do serviço de identificação datiloscópica
de La Plata, Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro, opinando
que dita reunião poderia ser efetuada em 15 de setembro na
segunda das referidas cidades. Esses funcionários teriam a missão
de celebrar, ad-referendum nosso, um acordo para a troca de
“individuais datiloscópicas” relativas aos ladrões conhecidos, aos
sujeitos perigosos e, em geral, aos frequentadores habituais das
prisões.60
60
Idem, p. 14.
61
“Convenio Interpolicial Sudamericano”, Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, Año I,
n. 3, La Plata, 30 sep. 1905, p. 6.
62
Sobre a recepção de Vucetich no Chile ver o dossier publicado no Boletín de la Policía de Santiago,
Año IX, No. 79, Santiago de Chile: Imprenta de la Prefectura de Policía, enero de 1909.
63
CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La
Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo
(R. O. del Uruguay). Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital Federal,
1905.
203
“Congreso Internacional Dactiloscópico – La primera sesión”
Fonte: Boletín de Policía, Año I, n. 12, Buenos Aires, 15 oct. 1905, p. 8.
204
As fotografias das reuniões mostram os delegados em uma mesa de trabalho
repleta de papeis, entre os que se advertem algumas fotografias de criminosos, e um
tinteiro no meio. Nesse sentido, a reunião parecia estar um pouco mais afastada da
solenidade nos congressos científicos e mais perto de uma tertúlia íntima. Em torno à
mesa estava sentado Félix Pacheco, os dois representantes das polícias argentinas,
Juan Vucetich e José G. Rossi, Luis M. Rodríguez pela polícia de Santiago do Chile
e Alejandro Saráchaga pela de Montevidéu. Este último era o chefe do Gabinete de
Identificação Datiloscópica da capital uruguaia e mantinha uma feroz disputa com
Alfredo Garibaldi, que continuava encarregado do serviço antropométrico e seguia
defendendo o bertillonnage em seu país.64
64
Veja, sobre este tema, SARÁCHAGA, Alejandro. Dactiloscopia y Convenio Internacional de
Policía. Montevideo: Imprenta El Siglo Ilustrado, 1906.
65
“Actas de las Conferencias. Sesión Inaugural”. In: CONFERENCIA INTERNACIONAL DE
POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de
Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo (R. O. del Uruguay). Op. Cit, p. 21-22.
66
Idem, p. 20.
67
“Conferencia internacional de policías”, Revista de Policía, Año IX, n. 202, Buenos Aires, 16 oct.
1905, p. 78.
205
concentraram especialmente na definição da noção de “pessoa perigosa” e no
significado da frase “fins policiais”. Mais uma vez, o representante chileno marcou
diferenças com os demais, quando pedia que a informação circulada entre as polícias
tivesse um “caráter absolutamente reservado”. Rodríguez temia que a publicação de
dados acusatórios sobre um indivíduo sem condenação judicial pudesse ser
interpretada como uma prática vexatória. Para Pacheco, no entanto, “o interesse
superior da defesa da coletividade social” estava acima do direito individual e
justificava a vigilância preventiva.68Apesar desta resposta, e destas discussões, o
texto final do convênio incorporou a advertência de manter “em estrita reserva” os
antecedentes trocados e limitar seu uso a “fins policiais”.
68
“Actas de la Segunda Sesión”. In: CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio
celebrado entre las policías de La Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de
Santiago de Chile y de Montevideo (R. O. del Uruguay). Op. Cit, p. 33.
69
CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La
Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo
(R. O. del Uruguay). Op. Cit, art. 2, inc. a.
206
tráfico das brancas”, “os incitadores habituais a subverter a ordem social, por meio
de crimes comuns contra a propriedade, as pessoas ou as autoridades” e, por último,
“os agitadores de grêmios operários para perturbar com atos de violência ou de força
a liberdade de trabalho ou para atacar as propriedades, sempre que fizerem de
semelhante propaganda sua ocupação habitual e um meio de lucro”.70
70
Idem, Art. 2, inc. b-g.
71
“Saudades! El torneo científico policial”, Boletín de Policía, Año I, n. 14, Buenos Aires, 15 nov.
1905, p. 4-5.
207
tratadistas”.72 O novo convênio para o intercâmbio de informações entre as polícias
habilitava um campo de atuação às costas das autoridades diplomáticas.
72
Idem, p. 5.
73
SOCIETE DES NATIONS/UNITED NATIONS. “Convention de police. Signée à Buenos Aires, le
29 février 1920”, Recueil des Traités/Treaty Series, n. 2930, 1932, p. 434. Ver também: CANCELLI,
Elizabeth. “De uma sociedade policiada a um Estado policial: o circuito de informações das polícias
nos anos 30”, Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 36, n. 1, Brasília, 1993, p. 67-. 86.
74
AN, GIFI 6C 180 (1906). República Argentina, Policía de la Capital: Carta do Chefe de Polícia,
Ramón Falcón, ao Chefe da Polícia do Rio de Janeiro, Dr. Antonio Joaquim de Albuquerque Melo,
Buenos Aires, 19 oct. 1906. Ofício n. 1494, Gabinete de Identificação e Estatística, Rio de Janeiro, 7
nov. 1906.
208
anterior. Muitos nomes haviam mudado, mas o canal de trocas de fichas e
antecedentes pareciam se manter firme.
75
Ver, por exemplo: MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário,
1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis:
desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de
Janeiro: Eduerj, 1996. SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo: uma historia social da
prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2006.
76
Carta de Ramón Falcón ao Senhor Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, Buenos Aires, Abril de 1907,
reproduzida em: REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria de la Policía de Buenos Aires: 1906-1909,
Jefatura del Coronel Ramón L. Falcón. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1909,
p. 130.
209
ou que ainda devesse passar por ele,”, se enviasse um aviso telegráfico,
especificando o nome do passageiro e o navio em que viajava. Simultaneamente,
pedia que mandassem por correio os antecedentes e dados de identidade que
permitissem reconhecê-lo facilmente no porto.77 Existem múltiplos indícios para
sustentar a ideia de que este pedido de Falcón teve consequências concretas, durante
os anos seguintes, nos intercâmbios entre as polícias da Argentina e Brasil.
77
Idem, p. 130-131.
78
Estes processos foram selecionados do AN, Fundo IJJ7, Caixas 126 a 180. Os processos
compreendem os anos 1907 a 1930, com exceção do período em que a lei de expulsão ficou abolida,
entre 1913 e 1917. Sobre as leis de expulsão de estrangeiros no Brasil, ver: BONFÁ, Rogério Luis G.
“Com lei ou sem lei”. As expulsões de estrangeiros e o conflito entre o Executivo e o Judiciário na
Primeira República. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 2008. Os
processos de expulsão da República Argentina também foram aplicados sobre uma multiplicidade de
sujeitos vigiados pela polícia. Ver os prontuários de expulsos nas primeiras três décadas do século
XX, elaborados pelas seções de “Ordem Social” e “Roubos e Furtos”, onde além de anarquistas e
comunistas aparecem numerosos casos de ladrões e vigaristas. AGN, Archivo Intermedio, Fondo
Ministerio del Interior/Secretos, Confidenciales y Reservados, Caja n. 14.
210
Ficha individual dactiloscópica. Frente e verso.
Fonte: AN, IJJ7 179 (1927)
79
Carta de Ramón Falcón ao Sr. Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, Buenos Aires, Nov. de 1907,
reproduzida em: REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria de la Policía de Buenos Aires: 1906-1909.
Op. Cit, p. 154-155.
211
vez à polícia de São Paulo, ficava explícito que o principal objetivo desses avisos era
evitar os desembarques nos portos do espaço atlântico sul-americano:
80
Carta de Ramón Falcón ao Sr. Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, Buenos Aires, Abr. de 1907,
reproduzida em: REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria de la Policía de Buenos Aires: 1906-1909,
Jefatura del Coronel Ramón L. Falcón. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1909,
p. 130.
81
“El Coronel Fraga”, Boletín de Policía, Año I, n. 1, Buenos Aires, 30 abr. 1905, p. 3-7.
82
Reyna Almandos, Luis. “A Dactiloscopia e a Defesa Social”, Boletim Policial, Anno IV, n. 1, jun.
de 1910, p. 7-8.
212
aglomerações nos portos jogavam a favor deles na tarefa de se esconderem das
autoridades. A cooperação policial era uma forma de contra restar esta defasagem
com os recursos do mundo criminal. Em particular, havia um elemento da
modernização tecnológica que podia marcar uma nova diferença: os fios telegráficos.
O telégrafo foi pensado como uma forma de corrigir essa diferença cinética com que
podiam se deslocar policiais e delinquentes. “Em sua tarefa de fazer a polícia de
segurança”, opinava em 1869 o jornal La Tribuna sobre o chefe da Polícia de Buenos
Aires, “não se limitaram aos subúrbios da cidade ou aos limites da província e,
usando o telégrafo provisoriamente e enviando empregados quando for necessário,
ele tem conseguido que nem Rosário, nem Montevidéu, sejam asilos dos criminosos
daqui”.83
O telégrafo selava esta nova época da modernidade policial além das fronteiras,
posicionando-se como um contrapeso dos problemas gerados pelas viagens
ultramarinas: ao contrário do correio postal, que dependia dos meios de transporte, os
telegramas estabeleciam uma distância temporal em relação às cartas, porque
viajavam mais rápido que os navios a vapor. Assim, para conseguir que um suspeito
fosse detido no porto de destino, ou em alguma eventual escala, bastava em princípio
enviar uma mensagem telegráfica com seu nome e sua descrição física. As velhas
filiações de criminosos ordenavam a informação em listas com o nome, apelidos,
idade, nacionalidade, cor dos olhos etc. Todos esses dados eram integrados em uma
linguagem telegráfica, sem pontuações: “no vapor Algerie partido ontem vão
deportados ladrão Juan Corradi italiano 23 anos 167 estatura branco bem sardento e
anarquista Afonso Garcia (a) Lanata espanhol 25 anos branco 170 estatura cabelo
castanho”.84
83
La Tribuna, “El Sr. O´Gorman, Jefe de Policía”, Buenos Aires, 2 oct. 1869.
84
AN, GIFI 6C 158 (1905). “Telegrama de Baires”, 10 mai. 1905,
213
americanas: as autoridades de um país queriam evitar qualquer possível regresso dos
expulsos. Um dos destinos do vapor Algerie era Barcelona (aonde provavelmente se
dirigiam Corradi e García), mas tinha uma escala no Rio de Janeiro e o governo
argentino temia que um eventual operativo de retorno se iniciasse com o
desembarque no porto brasileiro. Isso ficava claro em uma anotação à margem do
papel que levava impresso a mensagem telegráfica: “parece que haveria que
recomendar ao Inspetor da Polícia do Porto para que não os deixe desembarcar”.
85
AN, GIFI 6C 158 (1905). Telegrama da Polícia de Buenos Aires, 9 out. 1905.
86
AN, GIFI 6C 158 (1905). Carta 25 out. 1905.
87
Sobre a circulação de informações entre a polícia carioca e os consulados estrangeiros, ver:
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. “A polícia e o porto: marinheiros, imigrantes e os consulados
estrangeiros no Rio de Janeiro (1890-1920). In: BOHOSLAVSKY, Ernesto; CAIMARI, Lila;
SCHETTINI, Cristiana (org.). La policía en perspectiva histórica: Argentina y Brasil (del siglo XIX a
la actualidad). Buenos Aires: UDESA/UNGS/UNSAM (CD-Rom), 2009.
214
Nesse sentido, havia uma diferença significativa com os intercâmbios entre as
polícias do Rio de Janeiro e Montevidéu, porque cada vez que os uruguaios
respondiam um pedido dos brasileiros utilizavam mediações diplomáticas. Longe da
informalidade e do aclamado caráter expeditivo da cooperação policial, que se
constatavam em cada um dos intercâmbios entre as polícias das capitais de Argentina
e Brasil, os uruguaios cingiam seus pedidos em uma trama consular precisa e ainda
assim bastante dinâmica. Através do Ministério de Relações Exteriores, a polícia
enviava um telegrama ao cônsul do Brasil, que por sua vez elaborava uma carta
dirigida à polícia carioca:
88
AN, GIFI 6C 443 (1913), Policía Marítima, mai. 1913.
89
AN, GIFI 6C 308 (1909). “Telegrama de B. Aires”, 3 nov. 1909.
215
polícia argentina que “a viagem deste indivíduo ao Rio da Prata podia ter como
finalidade buscar novos clientes para o negócio que há muito tempo exerce”.90
90
AN, GIFI 6C 308 (1909). Ofício do Inspetor da Polícia Marítima, n. 693, 19 out. 1909.
91
AN, GIFI 6C 308 (1909). Ofícios Reservados da Polícia Marítima, n. 818, 20 dez. 1909, n. 840, 29
dez.1909, n. 793, 7 dez. 1909. Não apenas com anarquistas se deram os processos de expulsões
massivas. Em 1913 a polícia portenha embarcou no vapor inglês Aragon mais de 200 proxenetas, com
destino ao porto de Southampton. No Rio de Janeiro a Polícia Marítima teve que impedi-los de
ingressar e aparentemente aconteceu o mesmo na Bahia e em Pernambuco. , AN, GIFI 6C 443 (1913).
Relatório da Polícia Marítima n. 714, 1 out. 1913.
216
“Silva não tem moeda falsa é estafador por simulação de falsificações mantenho
vigilância saudações atentamente R. M. Fraga”.92 Ou seja, aqui havia uma resposta a
um primeiro telegrama enviado do Rio de Janeiro sobre um sujeito que
provavelmente estava detido na Argentina.
92
AN, GIFI 6C 158 (1905). Telegrama 7 ago. 1905.
217
que desceram no Rio de Janeiro e tampouco encontrou coincidências. O navio
continuou rumo a Gênova.93
93
AN, GIFI 6C 454 (1913). Relatório sobre Cayetano Amadeo Piaggio. Jun. 1913.
94
Idem, Telegrama 23 jun. 1913.
218
O texto explicava que Piaggio era gerente de uma companhia de seguros e que
desaparecera uns dias antes após uma importante fraude. Desde o arquivo da polícia
do Rio de Janeiro não fica claro se os investigadores portenhos tinham indícios
precisos sobre sua possível fuga ao Brasil ou se era uma vaga hipótese. De qualquer
forma, uma semana depois o Ministro de Justiça ditou uma ordem de detenção de
Piaggio, em que se declara que poderia haver ingressado também em outros navios
que chegaram naqueles dias desde o Rio da Prata.
95
AN, GIFI 6C 308 (1909). Relatório da Polícia Marítima, n. 312, 9 mar. 1909.
219
Desta maneira, o trabalho cotidiano da Polícia Marítima nem sempre era
compatível com os objetivos da cooperação policial sul-americana, porque muitas
vezes no Brasil se impedia o desembarque de passageiros que vinham da Europa,
mas os deixavam continuar o caminho até o Rio da Prata.96 Nota-se isso em vários
casos de homens sobre os quais recaiam suspeitas de proxenetismo, provavelmente
por suas aparências ou seus países de origem. A Polícia Marítima evitava que
descessem no Rio de Janeiro, mas não reunia suficientes elementos para devolvê-los
aos seus respectivos países e então seguiam no mesmo navio até Montevidéu ou
Buenos Aires.97 Estas eram limitações na tarefa de circunscrever um mapa que devia
ser defendido dos “indesejáveis”, uma região marcada por constantes fluxos
atlânticos.
96
Ver, por exemplo, o caso de um comandante de um barco que se negou a continuar a viagem com
um grupo de passageiros que haviam provocado distúrbios a bordo. O chefe da polícia escreveu ao
cônsul francês no Rio de Janeiro e recebeu como resposta uma carta em que o consulado pedia aos
cidadãos franceses que “continuassem sua rota como simples passageiros” até Buenos Aires. AN,
GIFI 6C 308 (1909). République Française, Consulat de France à Rio de Janeiro, 16 Février 1909.
97
Ver os Relatórios da Polícia Marítima n. 173 e n. 174, 1 mar. 1909. AN GIFI 6C 308 (1909).
220
“Conferencia Sudamericana de Policía” (1920)
Fonte: AGN, sección de fotografías, Inv. 189.824.
98
Esta posição estava alinhada com a escalada repressiva na polícia carioca, que recentemente havia
discutido o endurecimento da vigilância política em uma conferência organizada por Aurelino Leal.
Ver: TÓRTIMA, Pedro. Polícia e justiça de mãos dadas: a Conferência Judiciária-Policial de 1917.
Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1988.
99
“Congreso Sudamericano de Policía. Sus orígenes. Constitución y desarrollo”, Revista de Policía,
Año XXIII, n. 523, Buenos Aires, 1 abr. 1920, p. 177.
221
Pouco depois da primeira reunião, Ramón Falcón havia assumido a chefatura
da polícia e, na Seção Especial, liderou uma batalha contra o anarquismo que incluía
infiltrações nos âmbitos de sociabilidade libertária e repressões nas mobilizações de
rua. Um massacre na greve geral convocada para o 1º de maio de 1909 e o posterior
atentado em que morreu Falcón desencadearam uma onda repressiva que derivou na
sanção da lei de Defesa Social, em 1910 .
100
CONFERENCIA INTERNACIONAL SUDAMERICANA DE POLICÍA. Convenios y Actas.
Buenos Aires: Imprenta J. Tragant, 1920, p. 44. O vínculo imediato da conferência com os
acontecimentos políticos prévios era reconhecido também na carta convite que girou telegraficamente
pelas chefaturas. O texto dizia: “O Governo Argentino, em vista dos últimos acontecimentos de
caráter social subversivo ocorrido em distintos pontos do Continente Americano, que evidenciaram
que seus diretores mantinham relações com seitas radicadas em um desses países, resolveu apoiar a
ideia sugerida pela Chefatura da Polícia da Capital, com o propósito de que se realize uma
Conferência entre todas as polícias interessadas para acordar formas de procedimento que sirvam de
defesa comum e tendentes a uma maior vinculação institucional.” Idem, p. 52.
101
Sobre este tema, ver: GARCÍA FERRARI, Mercedes. “Juan Vucetich. Una respuesta desde la
dactiloscopia a los problemas del orden y la consolidación de la Nación Argentina”. In: SOZZO,
Máximo (coord.). Historias de la cuestión criminal en la Argentina. Buenos Aires: Ediciones del
Puerto, 2009, p. 225-243.
222
dos congressos científicos nos quais a datiloscopia havia adquirido espaço graças a
dissertações magistrais. No banquete de encerramento, um dos delegados argentinos
celebrava que a conferência não havia “perdido seu tempo em dissertações banais” e
que havia se dedicado “à realização de uma obra prática, de suma utilidade”.102
102
CONFERENCIA INTERNACIONAL SUDAMERICANA DE POLICÍA. Convenios y Actas. Op.
Cit., p. 125.
103
VUCETICH, Juan. “Reseña histórica de la primera aplicación oficial de las impresiones digitales
(icnofalangometría) y sus resultados”, Revista de Policía, Año XXIII, N. 520, Buenos Aires, 16 feb.
1920, p. 108-110.
223
do convênio, mas as propostas discutidas durante as reuniões indicam algumas
mudanças na trama da cooperação policial.
104
CONFERENCIA INTERNACIONAL SUDAMERICANA DE POLICÍA. Convenios y Actas. Op.
Cit., p. 25.
224
províncias, que já não tinham representação direta no novo congresso internacional.
Mas se prestarmos atenção na forma em que os delegados discutiram as medidas
concretas de cooperação, fica claro que, tanto no nível dos procedimentos e das
técnicas, como nas definições de periculosidade, a questão dos criminosos viajantes e
da mobilidade territorial dos sujeitos a vigiar, seguia dominando as discussões.
225
PARTE III
LA CHASSE A L’HOMME
Interlúdio: bandidos e detetives
1
CARVALHO, Elysio de. Sherlock Holmes no Brasil. Rio de Janeiro: Casa A. Moura, 1921, p. 143.
2
“Bank Held Up in San Luis. Exciting morning at the Banco de la Nación”, The Buenos Aires Herald,
Buenos Aires, 20 dez. 1905. “Asalto al Banco de la Nación en Villa Mercedes. Audacia de los
bandoleros. El gerente del banco herido. Persecución de los asaltantes”, La Prensa, Buenos Aires, 20
dez. 1905. “San Luis. El asalto al Banco de la Nación. Un bandolero herido. Peripecias de la
persecución”, La Prensa, Buenos Aires, 21 dez. 1905. “San Luis. El asalto al Banco de la Nación.
Antecedentes de los bandoleros. Persecución infructuosa”, La Prensa, Buenos Aires, 22 dez. 1905.
“The Bank Robbers”, The Buenos Aires Herald, Buenos Aires, 23 dez. 1905.
uma mulher elegantíssima, a única do grupo que falava espanhol. Passaram cinco
dias entre a chegada a Villa Mercedes e o roubo. Os viajantes se hospedaram no
Hotel Young, o melhor da cidade. Tentaram se assegurar de que ninguém duvidasse
da veracidade de suas intenções comerciais usando a ostentação e o consumo
desmedido. A mulher foi à principal loja de roupas importadas e comprou um traje
recém-chegado de Paris, participaram de bailes no hotel e assistiram a uma corrida
no Hipódromo.
228
amazona “de uma coragem viril admirável” que, além disso, manejava todas as
armas com a maior precisão.3
Os outros dois sujeitos mencionados eram Harvey Logan, vulgo Kid Curry ou
Boh, também usava os nomes de Jonas Tom Mevilles ou R. T. Whelar; e George
Parker ou James Ryan ou Casmidg, vulgo Buth.4 Este último era nada mais nada
menos que “Butch Cassidy”, o mais conhecido de todos os pseudônimos de Robert
LeRoy Parker, um popularíssimo ladrão norte-americano, salteador de bancos e
trens. Ele e os outros dois acusados pela publicação policial haviam integrado uma
quadrilha famosa para o imaginário do Western: a “Wild Bunch”, formada nos
últimos anos do século XIX, mas cujo prestígio atravessou comodamente o século
XX, desde que John Schwartz os retratou no Texas em 1900, pouco depois de um
assalto ao First National Bank de Nevada, até o longa-metragem Butch Cassidy and
the Sundance Kid (1969).5
3
“El robo de Villa Mercedes. Los presuntos asaltantes del Banco Nacional”, Boletín de Policía, Año
I, n. 17, Buenos Aires, 30 dez. 1905, p. 6.
4
Idem, p. 6-7.
5
O assalto em Villa Mercedes, seguindo a crônica dos jornais locais, foi reconstruído por:
GUTIÉRREZ, Ricardo; MORENO, Hugo. Butch Cassidy & the Wild Bunch. Asalto al Banco Nación
de Villa Mercedes. San Luis: Instituto Científico y Cultural El Diario, 1992, p. 39-117.
229
Encurralados pelas autoridades norte-americanas, os membros da Wild Bunch,
encabeçada por Butch Cassidy, Sundance Kid e sua companheira, fugiram para
Buenos Aires, embarcando no porto de Nova York em fevereiro de 1901. Chegaram
à capital argentina em março e se hospedaram com nomes falsos no Hotel Europa.
Adquiriram terras na Patagônia e partiram para o sul do país. Na América do Norte
ficou uma sólida lenda, cuja épica o cinema de Hollywood se encarregou de cultivar:
eram uma quadrilha de ladrões simpáticos e criativos, mais propensos à astúcia que à
violência. Na Argentina, no entanto, Sundance Kid e Butch Cassidy deixaram um
saldo de enfrentamentos armados, feridos e, segundo parece, alguns assassinatos.6
6
Sobre a vida de Cassidy, Sundance Kid e Etta Place na Patagônia, ver: GAVIRATI, Marcelo.
Buscados en la Patagonia. La historia no contada de Butch Cassidy y los bandoleros norteamericanos.
Buenos Aires: La Bitácora Patagónica, 2011. Uma visão mais ampla sobre o bandidismo rural na
região: RAFART, Gabriel. “Violência rural e bandoleirismo na Patagônia”, Topoi, vol. 12, n. 22, Rio
de Janeiro, jan.-jun. 2011, p. 118-136.
7
“El asalto al Banco de Tarapacá en Río Gallegos. Medidas del Gobierno”, La Prensa, Buenos Aires,
16 fev. 1905. Uma das hipóteses policiais sobre o trajeto percorrido por estes bandidos sugere que
fugindo de Río Gallegos se dirigiram à Cordilheira e que em São Carlos de Bariloche tomaram um
navio para cruzar a fronteira com o Chile pelo Lago Nahuel Huapi.
8
Segundo o Boletín de Policía, quando a imprensa da capital começou publicar os retratos, os
habitantes de Villa Mercedes, e em particular o dono de uma confeitaria onde haviam tomado whisky
até minutos antes do roubo, reconheceram os membros da Wild Bunch como os assaltantes do banco.
“El robo de Villa Mercedes. Los presuntos asaltantes del Banco Nacional”, Op. Cit., p. 7.
230
agência nacional de pesquisas estabelecida nos Estados Unidos se
encarregou de fazer conhecida a quadrilha que nos ocupa e o
doutor Beazley, sendo chefe de polícia no ano 1903, mandou à
Delegacia de Investigações os prontuários de toda a curiosa
história. 9
Qual era essa “agência nacional de pesquisas” dos Estados Unidos? Referiam-
se ao serviço de detetives privados criado em 1850 por Allan Pinkerton, na cidade de
Chicago. Nos anos de 1870, converteu-se na National Detective Agency, estendeu
suas oficinas a outras cidades norte-americanas e adotou como logotipo um olho
aberto sob a legenda “We Never Sleep”. Longe da figura do investigador privado dos
romances de enigma, os agentes de Pinkerton eram operários da detecção que muitas
vezes desempenhavam um trabalho mecânico submetido a regras estritas. Se alguma
ficção se aproximava, não era a daqueles detetives homo cogitans de Poe y Conan
Doyle, senão daqueles cinzentos investigadores assalariados da literatura noir,
principalmente na obra de Dashiell Hammett, que por sinal trabalhou para a Agência
Pinkerton no início do século XX.10
Para esse então a Pinkerton era uma complexa organização burocrática de uma
estrutura hierárquica impecável. Além de empregar guardas de segurança privada
para proteger empresas, bancos e custear transporte de dinheiro, realizava diversas
tarefas de espionagem política e investigação criminal propriamente dita. Contratava
centenas de agentes para arrecadar informações “nas sombras”, de acordo com
instruções precisas, detalhadas em uma série de regulamentos e manuais para
detetives. As regras definiam critérios para se comportar na via pública, estabelecer
comunicação com estranhos, manipular a informação juntada e produzir relatórios
escritos para os prontuários do arquivo. No terreno da perseguição de bandidos, a
Agência Pinkerton era considerada de uma eficácia superior a de qualquer força
9
“Noticias de Policía. ¿Los bandoleros de San Luis? El Asalto al Banco de Villa Mercedes. Nuevos
detalles. Sospechas justificadas. Historia de unos salteadores. Avisos a la policía de Chile. Medidas
que deben adoptarse. Los bancos de la República en peligro”, La Prensa, Buenos Aires, 24 dez. 1905.
10
RACZKOWSKI, Christopher. “From Modernity’s Detection to Modernist Detectives: Narrative
Vision in the Work of Allan Pinkerton and Dashiell Hammett”, Modern Fiction Studies, vol. 29, n. 4,
2003, p. 629-659.
231
policial da América do Norte.11 De fato, frente a casos difíceis como os de Jesse
James, da própria Wild Bunch e vários “yeggmen” (gíria usada nos finais do século
XIX para se referir aos bandos de ladrões de bancos e caixas fortes), o governo
deixou o trabalho nas mãos da Pinkerton.12
11
Goron afirma que nos Estados Unidos havia mais fé na “iniciativa privada” que na “polícia oficial”.
A Agência Pinkerton – escrevia – contava com um “exército de detetives” que até então somavam
mais de 2.500 homens repartidos em diferentes cidades do país. Quando detiam um delinquente,
podiam colocá-lo nas mãos da justiça, mas também podiam apelar a mecanismos de resolução não
judicial dos conflitos, mediante pagamento de uma compensação às vítimas, clientes da Agência.
GORON, Mr. Las policías extranjeras. Op. Cit., p. 338-344.
12
Referências sobre os Arquivos da Agência Pinkerton, os yeggmen e os bandos de ladrões de bancos:
FRISBY, David. Paisajes urbanos de la modernidad. Exploraciones críticas. Bernal: Universidad
Nacional de Quilmes/Prometeo, 2007, p. 82-102.
13
“El Yegg y los Yeggmen. Los grandes ladrones norteamericanos”, Revista de Policía, Año VIII, n.
180, Buenos Aires, 16 nov. 1904, p. 185. Outra nota sobre um bandido norte-americano “com dados
extraídos dos Arquivos da famosa Agência Nacional de Investigações Pinkerton”, aparece em:
“Ladrones famosos. Adam Worth (a) el pequeño Adam, uno de los que se han apropiado mayor suma
de dinero en el mundo”, Boletín de Policía, Año I, n. 5, Buenos Aires, 30. Jun. 1905, p. 12- 13.
14
“Nuevas formas de la delincuencia”, Revista de Policía, Año IX, n. 207, Buenos Aires, 1 ene. 1906,
p. 119.
15
Idem, p. 119. Em Buenos Aires, estas três características do fenômeno do pistoleiro moderno terão
uma enorme visibilidade nas décadas de 1920 e 1930, pelo surgimento das armas automáticas e do
automóvel como meio de locomoção para a fuga. Ver: CAIMARI, Lila. La ciudad y el crimen. Delito
y vida cotidiana en Buenos Aires, 1880-1940. Buenos Aires: Sudamericana, 2009, p. 145-188; e
CAIMARI, Lila. Mientras la ciudad duerme. Pistoleros, policías y periodistas en Buenos Aires, 1920-
1945. Buenos Aires: Siglo XXI, 2012, p. 27-58.
232
O que estas notícias revelavam era que a Agência Pinkerton sabia o destino
sul-americano de Butch Cassidy desde o preciso momento em que os membros da
Wild Bunch embarcaram para Buenos Aires. Inclusive, a polícia portenha foi avisada
e um detetive norte-americano viajou à Argentina:
Tudo isto sugere que a rápida difusão dos nomes da quadrilha e a imediata
publicação de seus retratos na imprensa teve a ver com a existência de contatos
prévios entre a Agência Pinkerton e a Polícia da Capital. Os prontuários dos
bandidos norte-americanos estavam na Delegacia de Investigações ao menos desde
1903. Quando souberam dos roubos a bancos cometidos por sujeitos anglofalantes
com aspecto de cowboys, a pista da Wild Bunch se ativou imediatamente. A polícia
portenha coordenou as comunicações de duas formas: por um lado, mantinha uma
linha de diálogo internacional com os Estados Unidos e com a polícia do Chile, onde
se supunha que a quadrilha havia escapado; por outro, recebia informações de San
Luis e pedia às polícias das províncias próximas que aumentassem a vigilância rural
para encontrar os bandidos. Além da publicação dos retratos nos jornais da capital, a
Delegacia de Investigações se encarregou de circular um cartaz de três páginas com
dados expressamente obtidos pela Agência Pinkerton.17
16
“Nuevas formas de la delincuencia”, Op. Cit., p. 119.
17
Este cartaz se encontra encadernado junto ao Boletín de Policía (1905-1906), no volume
conservado na Hemeroteca da Biblioteca Nacional Argentina, Topográfico n. 226533. Sobre esta
circulação, na revista de polícia se lia: “é sabido que a Delegacia de Investigações indicou
imediatamente às polícias das províncias interessadas, o nome e antecedentes dos supostos autores do
mencionado delito, cujos retratos têm circulado profusamente em diversos órgãos da imprensa”.
“Nuevas formas de la delincuencia”, Op. Cit., p. 119.
233
Cartaz com pedido de captura da Wild Bunch
Fonte: Boletín de Policía, jan. 1906, s/n.
Este caso mostra que as polícias das capitais buscavam assumir a representação
do país na trama internacional da cooperação policial. A tentativa de federalização de
facto das polícias metropolitanas chocava frequentemente contra a inércia dos
contatos diretos entre diversas cidades sul-americanas: as trocas de informação das
polícias do Rio de Janeiro, Montevideo e Santiago do Chile com La Plata, sem passar
por Buenos Aires, ou da polícia de São Paulo com diversas cidades argentinas, eram
testemunhas dessa prática. Desde o último quarto do século XIX, os escritores da
polícia portenha vinham requerendo o reconhecimento de iure para essas atribuições
federais que – segundo eles – correspondiam por estar esta instituição sob ordens
diretas do governo nacional.
234
extradição interprovincial na forma determinada por lei”.18 Igual ao convênio sul-
americano de 1905, a ideia era que bastasse um aviso telegráfico entre as chefias de
polícia para permitir que os vigilantes se movessem pelo território do país sem
obstáculos burocráticos. Este projeto e todas as tentativas posteriores para avançar
sobre a jurisdição das polícias provinciais naufragaram até a criação da Polícia
Federal Argentina, em meados do século XX. No entanto, quando se tratava de
perseguir delinquentes viajantes, que além de circular por vários pontos do país,
tinham prontuários no exterior, muitas vezes a Polícia da Capital intervinha através
de sua enérgica seção de investigações, por mais que os crimes houvessem sido
cometidos em território das províncias, como havia sucedido com a Wild Bunch.
Nas primeiras décadas do século XX, ao ritmo das notícias sobre façanhas dos
yeggmen e dos pistoleiros norte-americanos, o trabalho dos detetives privados
começou a interessar cada vez mais aos policiais sul-americanos. Esse interesse tinha
muito a ver com a péssima fama dos vernáculos agentes de investigação. Em Buenos
Aires e no Rio de Janeiro existiam serviços de “polícia secreta” desde o último
quarto do século XIX. Estavam constituídos por agentes sem uniforme, mais
orientados às tarefas de polícia política que à perseguição de ladrões, estafadores ou
18
REPÚBLICA ARGENTINA. Proyecto de Código de Policía para la Capital de la Nación. Buenos
Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1894. Título III. “Jurisdicción
Territorial”, art. 103, p. 23.
19
“Conferencia internacional de policías. Terminación de sus trabajos”, Revista de Policía, Año IX,
n.203, Buenos Aires, 1 nov. 1905, p. 86.
235
assassinos. A polícia portenha instituiu o serviço depois da revolução de 1874, e no
relatório anual do ano seguinte o chefe Manuel Rocha respondia as primeiras críticas.
Reconhecia que desde seu nascimento francês a inícios desse século, a polícia secreta
havia desatado “controversas apaixonantes” no mundo da cultura. Mas entendia que
seus agentes não deviam ser julgados seguindo princípios morais abstratos, porque
eram – de fato – uma “negação viva de todas as qualidades que realçam e enobrecem
o homem”. Mentiam, ocultavam sua identidade, viviam entre ladrões, falavam seu
mesmo jargão: em suma, existiam graças a um tipo de pacto com o diabo, a um
“sacrifício de todas as virtudes humanas”. Sua diferença com o mundo dos
criminosos era da ordem dos fins: em todo o resto se pareciam.20
20
ROCHA, Manuel. Memoria del Departamento General de Policía correspondiente al año 1875.
Buenos Aires: Imprenta La Tribuna, 1876, p. 91-98.
21
“Vigilantes disfrazados”, La Prensa, Buenos Aires, 28 fev. 1875. Véase también: GALEANO,
Diego. Escritores, detectives y archivistas. La cultura policial en Buenos Aires, 1821-1910. Buenos
Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009. p. 86-87.
22
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 dez. 1905.
236
vezes por um simples fio ou remotíssimo indicio à concretização das provas do fato
criminoso”.23 Mas nestes mesmos relatórios dos últimos anos do Império, os
inquéritos por “crimes contra as pessoas” (homicídios, ferimentos graves) e “crimes
contra a propriedade” (roubos, assaltos, estafas) eram feitos por delegados e
subdelegados. O serviço secreto estava mais vinculado à polícia política e, por isso,
depois de 1889, alguns republicanos o consideravam um baluarte monárquico que
era necessário desarmar. 24
23
LIMA. Francisco José de. “Relatório do Chefe de Polícia da Corte. Secretaria da Polícia da Corte,
em 30 de setembro de 1878”. In: Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa pelo Ministro
e Secretario de Estado dos Negócios da Justiça, Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira. Rio de
Janeiro: Typ. Perseverança, 1878, Anexo 5, p. 56-58.
24
SAMET, Henrique. Construção de um Padrão de Controle e Repressão na Polícia Civil do Distrito
Federal por meio do Corpo de Investigações e Segurança Pública (1907-1920). Rio de Janeiro: Tese
de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ, 2008, p. 54-57.
25
Sobre a figura do detetive policial, veja os trabalhos compilados em EMSLEY, Clive; SHPAYER-
MAKOV, Haia (eds.). Police Detectives in History, 1750-1950. Aldershot: Ashgate, 2006.
SHPAYER-MAKOV, Haia (eds.). The Ascent of the Detective. Police Sleuths in Victorian and
Edwardian England. New York: Oxford University Press, 2011.
26
CARVALHO, Elysio de. “As descobertas extraordinárias do Dr. Balthazard”. In: Sherlock Holmes
no Brasil. Op. Cit., p. 51.
237
como tinha feito a Agência Pinkerton – suas atividades aos demais estados da
confederação.27 Não cabe nenhuma dúvida que o exemplo dos detetives norte-
americanos era o que pairava sobre a cabeça de Carvalho. Em um texto publicado
neste período, ele mesmo explicava claramente:
27
AN, GIFI 6C, Caixa 378, Requerimento de Elysio de Carvalho ao chefe da polícia Belisario
Taborda, 11 out. 1912.
28
CARVALHO, Elysio de. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Op. Cit., p. 94-95.
Veja também: CARVALHO, Elysio de. Repressão e criminalidade nos Estados Unidos, Boletim
Policial, Ano V, n. 16/17, Rio de Janeiro, jul.-set. 1911, p. 476-483.
238
aposta do delegado Olyntho Nogueira em seu Tratado elementar para se chegar a
ser polícia e detetive (1923), livro que se originava de uma viagem aos Estados
Unidos realizada seis anos antes.29 Não estava aqui, como em Elysio de Carvalho, a
ideia de formar uma agência privada. Tratava-se principalmente de dar ao detetive da
polícia pública um status profissional. A singular proposta de Nogueira consistia em
combinar elementos da tradição detetivesca dos Estados Unidos com as últimas
novidades da polícia científica europeia.
29
NOGUEIRA, Olyntho. Tratado elementar para se chegar a ser polícia e detetive. Rio de Janeiro:
Imprensa Guanabara, 1923.
30
Idem, p. 115-126 y p. 188-203.
31
Idem, p. 128-180. Estas mesmas noções estarão presentes em distintos manuais destinados aos
agentes policiais, investigadores e detetives, e publicados nas décadas de 1930 e 1940 por policiais
civis em atividade e aposentados. Por exemplo: NOGUEIRA, Olyntho. Policia Técnica: Base para a
Criação da Escola Brasileira de Detetives. Rio de Janeiro: Renascença, 1934. TERRA, Sylvio. A
polícia e a defensa social. Rio de Janeiro: Graphica Guarany, 1939. Sobre estes manuais veja:
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. “Os Domínios da Experiência, da Ciência e da Lei: os Manuais da
Polícia Civil do Distrito Federal, 1930-1942”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 12, n 22, 1998,
p. 235-263.
239
investigador. Era, definitivamente, uma versão científica do matrimônio que os
leitores de ficções policiais conheciam muito bem pelos folhetins. O novo “policial
de laboratório”, segundo a expressão usada por Locard para se referir aos agentes de
investigações, era um tipo de reencarnação dos detetives de Poe e Conan Doyle. Para
Elysio de Carvalho, na América do Sul, chegava a hora de utilizar os avanços no
campo da criminalística para combater os ladrões viajantes e gatunos internacionais,
“desmascarar os cavalheiros da indústria”, a todo rastaquouère que se escondia
detrás do cambrioleur gentleman.32
32
CARVALHO, Elysio de. Sherlock Holmes no Brasil. Op. Cit., p. 139-140.
240
A sociedade dos malfeitores
1
“Corpo de Investigação e Segurança Pública”. In: Relatório apresentado ao Presidente da
República dos Estados Unidos do Brazil pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 84.
2
Sobre a Escola Policial, ver: SAMET, Henrique. Construção de um Padrão de Controle e Repressão
na Polícia Civil do Distrito Federal por meio do Corpo de Investigações e Segurança Pública (1907-
1920). Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ,
2008, p. 326-336.
categorias de criminosos, seus hábitos e seus costumes, seu argot e arte do disfarce”.3
Por que estudar estes ladrões a partir de suas práticas habituais, sua forma de falar e
se vestir? Carvalho explicava:
3
CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1910, p. 132-133.
4
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano
VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 147.
5
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903.
6
LOUZADA, Trajano. “A nossa polícia e a polícia estrangeira. Uma carta interessante”, Boletim
Policial, Ano IV, n. 2, jun. 1910, p. 55.
242
Em segundo lugar, cada vez mais ofícios dentro do campo da criminalidade
profissional involucravam práticas de mobilidade territorial, facilitadas pela
revolução nos transportes. O surgimento do crime internacional e, dentro deste
campo, a figura do “ladrão viajante” era destacada como uma novidade mundial e
mundializada. Este “grande número de ladrões internacionais que não fixam
residência” e que “viajam sempre após os roubos sem que ninguém os detenha”,
estavam por todos os lados.7 Não apenas os yeggmen norte-americanos viajavam de
um país a outro. Apenas ao Rio de Janeiro – segundo escrevia Elysio de Carvalho –
tinham vindo apaches e cambrioleurs de Paris, hooligans e hobos da Inglaterra,
atracadores e guapos andaluzes, camorristas de Nápoles e mafiosi da Sicília,
spitzbuben da Alemanha, charami árabes, oyabuns do Japão, capucheros do Chile,
lunfardos da Argentina, além de “anarquistas, niilistas e revolucionários de todas as
raças e de todas as cores”.8
Talvez Carvalho exagerasse um pouco, mas o certo é que algumas destas castas
circulavam efetivamente pela América Latina. Mencionamos as viagens dos
yeggmen, por causa das aventuras sul-americanas de Butch Cassidy e a Wild Bunch.
Mais à frente veremos a presença de lunfardos do Rio da Prata em diferentes estados
do Brasil. Antes, detenhamo-nos um momento nas notícias sobre a suposta existência
de apaches parisienses em Buenos Aires e Rio de Janeiro.9 Quatro anos antes da
publicação do artigo onde Carvalho os mencionava, o jornal carioca Gazeta de
Notícias, em sua seção “bastidores da polícia”, se referia à presença de violentos
apaches, que aqui se relacionavam com a família dos “gravateiros”.10
7
Idem, p. 54-55.
8
CARVALHO, Elysio de. “A delinqüência dos estrangeiros”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de
Janeiro, jun. 1913, p. 223.
9
Sobre a figura dos “apaches” na Paris da Belle Époque ver: KALIFA. Dominique. “Archéologie de
l´apachisme : barbares et Peaux-Rouges au XIXe siècle”. In: Crime et culture au XIXe siècle. Paris:
Perrin, 2005. p. 44-66. Carvalho se referia também aos apaches parisienses em: CARVALHO, Elysio.
A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Op. Cit., p. 51-54.
10
“Bastidores da polícia”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 6 mar. 1909; e “Os bastidores da
polícia: gravateiros ou apaches”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 7 mar. 1909. Segundo o
dicionário de gíria do próprio Carvalho, o “gravateiro” era o gatuno que passava “o braço no pescoço
de um indivíduo de modo a tolher-lhe os movimentos, sufocando-o, enquanto outro ladrão lhe saqueia
as algibeiras”. CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Vocabulário organizado para os
alunos da Escola de Polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 25.
243
Em 1912, o jornalista Juan José de Soiza Reilly começou a difundir, na recém-
fundada revista Fray Mocho, notícias sobre apaches em pleno centro de Buenos
Aires:
Soiza Reilly narrava nesta crônica o percurso junto ao comissário pelos bares
em que tramavam seus roubos estes apaches, que eram seguidos de perto pela polícia
de investigações. Segundo o relato, escaparam da França porque a perseguição
policial havia se tornado intensa. Alguns – assegurava o cronista – saíam de Paris
chorando. Tempo atrás os haviam visto por Marrocos e Argélia. Agora estavam em
Buenos Aires. Ironicamente, Soiza Reilly celebrava o que parecia ser uma nova
conquista da europeizada modernidade portenha, que sempre se imaginava inspirada
na capital francesa: “não podemos nos queixar, posto que o apache é como uma flor
de Paris que não parece ser transplantável a estufas crioulas”.12
No mesmo ano, a revista Sherlock Holmes difundiu uma série de notícias sobre
outros roubos cometidos pelos apaches. Até este momento, lia-se em uma delas, “a
lenda tenebrosa do apachismo” era uma coisa de Paris e do “prestígio de sua novela
folhetinesca”. No entanto, um “sopro trágico de sangue” havia atravessado o
atlântico para chegar à capital argentina e romper essa asséptica distância marcada
pela realidade de papel.13 Neste caso, tratava-se de um assalto a uma agência de
loteria que a polícia portenha atribuía a um grupo de apaches armados com
11
SOIZA REILLY, Juan José de. “Buenos Aires tenebroso. Los apaches”, Fray Mocho, Año I, n. 3,
Buenos Aires, 17 may. 1912, p. 20.
12
Idem, p. 22.
13
“El apachismo en acción”, Sherlock Holmes, Año II, n. 65, Buenos Aires, 24 sep. 1912, p. 34-35.
244
revólveres e cassetetes. Dias depois outra, sobre um roubo em uma confeitaria
perpetrado por estes “exímios artistas recém-chegados da Europa”, fração integrante
de uma “inesgotável gatunagem pour l’exportation”, que aparentemente tinham um
volumoso prontuário de antecedentes na polícia parisiense.14
14
“Los apaches en acción. Un golpe audaz que se frustra”, Sherlock Holmes, Año II, n. 68, Buenos
Aires, 15 oct. 1912, pp. 54-55. Neste mesmo número, a revista noticiava sobre ações dos apaches em
Paris: “Los grandes crímenes de París. Apaches en la estación de Aubrais”, Sherlock Holmes, Año II,
n. 68, Buenos Aires, 15 oct. 1912, p. 69.
15
“La deportación de tenebrosos. Complementos indispensables”, Sherlock Holmes, Año II, n.70,
Buenos Aires, 29 oct. 1912, p. 63.
16
“Deportación de apaches”, Sherlock Holmes, Año II, n. 71, Buenos Aires, 5 nov. 1912, p. 32.
17
Idem, p. 32-33.
18
A letra começava enfatizando o caráter nacional desta figura e os traços que o aproximavam ao
compadrito: “Es el apache argentino/el tipo fiel de una raza/que se echa’e ver por su traza/la astucia
245
Manuel Aróztegui, “El apache argentino” (circa 1913)
Fonte: BNA, Coleção de Partituras, Inv. 179639.
de su valor”. Veja a partitura: ARÓZTEGUI, Manuel. El apache argentino. Buenos Aires: Juan S.
Baleiro, s/d. Biblioteca Nacional, Colección de Partituras, Inv. 179639.
19
SOIZA REILLY, Juan José de. “Buenos Aires tenebroso. Los apaches”, Op. Cit., p. 22-23.
246
convencional, secreta, que é arma de defesa da associação, que o fala ou a escreve, o
argot”.20
20
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Op. Cit., p. 152.
21
Ver DEFLEM, Mathieu. Policing World Society: Historical Foundations of International Police
Cooperation. New York: Oxford University Press, 2004, p. 45-77; y KNEPPER, Paul. The Invention
of International Crime. A Global Issue in the Making, 1881-1914. London: Palgrave, 2010, p. 12-42.
22
A sociedade com fins criminosos criada nesta novela se chamava “El club de los caballeros de la
media noche”. ARLT, Roberto. El juguete rabioso. Buenos Aires: Latina, 1926, p. 24-29. Sobre o
tema do delito urbano na obra de Arlt, ver: SAÍTTA, Sylvia. “Traiciones desviadas, ensoñaciones
imposibles: los usos del folletín en Roberto Arlt”, Iberoamericana, vol. 23, n. 2, 1999, p. 63-81.
CANALA, Juan Pablo. “Las aspiraciones de Silvio Astier: fama, delito y lectura en El juguete rabioso
de Roberto Arlt” (Mimeo). Parte das publicações de Roberto Arlt sobre o crime foram coletadas em:
ARLT, Roberto. Escuela de delincuencia. Aguafuertes (selección y prólogo de Sylvia Saítta).
Montevideo: Ed. de la Banda Oriental, 2000.
247
cambrioleur”, um ladrão de luvas brancas. O criminoso viajante e aristocrático foi
um grande assunto policial nas primeiras décadas do século XX, que ainda
transcendeu as fronteiras da polícia para fazer lugar no jornalismo gráfico, na
literatura, na música popular e nos cinematógrafos. A novela de Arlt, mas
fundamentalmente algumas de seus “Aguafuertes” na imprensa, davam conta deste
fenômeno. No mesmo ano de 1926, na revista Don Goyo, aparecia este diálogo entre
ladrões portenhos que discutiam as bases para a criação de outra sociedade
criminosa:
23
ARLT, Roberto. “Nuestra policía, la mejor del mundo”, Don Goyo, n. 55, Buenos Aires, 19 oct.
1926, p. 10.
248
migração de criminosos viajantes. O comentário irônico sobre o alarde de ser “a
primeira polícia do mundo” aludia a um discurso repetido uma e outra vez: a imagem
que uma polícia dava ante o olhar do estrangeiro – imagem conformada, entre outras
coisas, por seus recursos tecnológicos e suas capacidades repressivas – parecia
incidir diretamente nas decisões dos ladrões viajantes, na hora de escolher um novo
destino.
Por sua parte, a ligação entre o progresso urbano e crime, era um dos temas
preferidos do escritor Elysio de Carvalho, na época em que dirigia o Gabinete de
Identificação e editava a revista Boletim Policial: “a nossa cidade vai adquirindo os
principais aspectos das grandes metrópoles, cuja vida social se caracteriza pela sua
criminalidade astuta, fraudulenta”.24 Sua Historia natural dos malfeitores, publicada
em série nessa revista, propunha uma hipótese sobre a evolução da delinquência, que
ia de mão com uma teoria da civilização. Segundo esta leitura, a sociedade moderna
e urbana não trazia consigo uma supressão, nem sequer uma diminuição da barbárie
criminal. Na realidade, o desenvolvimento efetivo da modernidade social em
distintas partes do mundo, vinha a demonstrar que a cada momento correspondia
configurações específicas das práticas delitivas. Assim, a lei desta história evolutiva
indicava que “a criminalidade natural vai substituindo as formas primitivamente
rudes, musculares, impulsivas da violência, pelas formas modernamente intelectuais,
requintadas, civilizadas de astucia”.25
Para Carvalho, Rio de Janeiro não estava ainda à par das cidades mais
civilizadas da Europa. A criminalidade violenta, expressa nas altas taxas de
homicídios, ainda prevalecia sobre a “delinquência civilizada, intelectual,
fraudulenta”.26 No entanto, o predomínio das habilidades “espirituais” sobre o uso da
24
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Rio
de Janeiro, Ano VII, n. 4, abr. 1913, p. 60.
25
CARVALHO, Elysio de. “A physionomia da criminalidade carioca”, Boletim Policial, Rio de
Janeiro, Ano VII, n. 5, mai. 1913, p. 107.
26
Idem, p. 109-111. Embora Carvalho não fosse muito propenso a explicitar suas fontes, esta teoria
havia sido formulada antes pelos criminologistas italianos da escola lombrosiana, em particular
Alfredo Niceforo. Além disso, a ideia havia sido bem recebida pelos criminologistas argentinos. Veja,
por exemplo: GÓMEZ, Eusebio. La Mala Vida en Buenos Aires. (Prólogo del Doctor José
Ingenieros). Buenos Aires: Juan Roldán, 1908, p. 41-44.
249
violência física não era a única característica do protótipo de criminoso moderno e
civilizado. A profissionalização e a consolidação de especialidades na arte de roubar,
o emprego de inovações tecnológicas e a mobilidade territorial, eram outros aspectos
em que a delinquência brasileira estava mostrando notáveis avanços. Mas o traço
mais sobressaliente, o que revestia o crime de maior modernidade, era a organização
coletiva, a formação de sociedades com fins criminosos; aquelas sociedades que Arlt,
a meados da década de 1920, levava ao terreno da literatura.
27
VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla”, Sherlock Holmes, Año III, n. 80, Buenos Aires, 9 ene.
1913, p. 32. Um dado que chama a atenção em ambos os números da revista é que Villamayor em
nenhum momento menciona o nome dos integrantes da sociedade, limitando-se a chamá-los por seus
pseudônimos e letras iniciais. No entanto, ao pé dos retratos aparecem os nomes completos junto aos
apelidos, o que parece indicar que os editores, e não o autor, tomaram a decisão de incluir as
fotografias e os nomes.
250
As primeiras reuniões se realizaram em um café-bilhar do centro de Buenos
Aires onde costumava se reunir a gatunagem. O dono do local era conhecido como
Don Drope, o “pai da muchachada maleante”, que acolhia os ladrões quando recém
saíam da prisão, dando a eles casa e comida, sabendo que mais tarde receberia em
troca dinheiro e objetos roubados.28 Depois de comer um guisado de galinha,
discutiram acaloradamente a proposta da sociedade, que ficou conformada por um
presidente (el Zurdo P), um vice-presidente (Pibe Oscar), um secretário (Pibe
Curdela), um encarregado da correspondência e um tesoureiro. Os outros ladrões
presentes ficaram como simples membros e “sócios honorários”. Muitos deles eram
nomeados com frequência por jornalistas e policiais argentinos: Mandaleón, o Loco
Camilo, Madama, Franginche, o Tano Roque, a Tota, o Tartamudo ou Colita, o Pibe
Caraelá ou Miguelito.29
28
Idem, p. 32.
29
Segundo o autor, no momento de escrever a nota, quatro anos depois da constituição da sociedade, a
maior parte dos fundadores estava fora da Argentina porque os haviam aplicado a lei de expulsão de
estrangeiros. VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla”, Op. Cit., p. 33.
251
Feliciano Mauriño, retratado em junho de 1889.
Fonte: Galería de Ladrones Conocidos, Buenos Aires, 1904, ficha 202.
30
VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo: vocabulario lunfardo. Buenos Aires:
Establecimiento Gráfico La Bonaerense, 1915, p. 95.
252
Retrato do “Rusito de Palermo” (à direita)
Fonte: Magazine Policial, año II, n. 9, Buenos Aires, abr. 1923, p. 24.
31
VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla”, Op. Cit., p. 32.
253
Frente a este exitoso recrutamento, cabe se perguntar que exigências
implicavam ser parte desta sociedade e, fundamentalmente, que vantagens oferecia.
Estas dúvidas podem ser respondidas com a segunda nota, já que oferece um dado
curioso e essencial para entender as intenções da chamada “Maffia Criolla”.32 A
sociedade tinha um regulamento com cinquenta e oito artigos, um estatuto por escrito
que o autor considerava “uma jóia nos anais de história da gatunagem argentina”.
Villamayor havia consultado o que parecia ser o único exemplar, manuscrito, em
mãos de um “gatuno velho, retirado da vida, que não abre mão dele nem por mil
pesos, e nem permite que se tire uma cópia”.33 De uma leitura rápida, Villamayor
havia tomado nota de seus princípios.
32
VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla II”, Sherlock Holmes, Año III, n. 81, Buenos Aires, 16
ene. 1913, p. 9-11.
33
Idem, p. 9.
34
Seguindo novamente o dicionário de Villamayor, apuntador era o “ladrão que já não exerce sua
profissão e serve de auxílio à polícia, para o qual indica quando um ex-companheiro perambula por
algum lugar”. VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo. Op. Cit., p. 34.
35
VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla II”, Op. Cit., p. 9.
254
ganho estritamente individual. Mas os membros deviam cumprir com seriedade o
pagamento das cotas:
36
Idem, p. 10.
37
VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla”, Op. Cit., p. 32.
38
VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla II”, Op. Cit., p. 9.
255
fazer um corte com uma navalha no rosto).39 Se um sócio decidisse sair para
trabalhar por sua conta em atividades lícitas, simplesmente deveria deixar de
cumprimentar e simular desconhecer os membros em caso de encontrá-los em
qualquer situação. Todos os empregos estavam admitidos menos um: o sócio que
saía tinha proibido o ingresso na polícia ou, caso contrário, lhe “declaravam a
guerra”. No entanto, podiam se converter em empregados do serviço penitenciário,
sempre que com dissímulo se dedicassem a proteger os sócios que caíssem presos.40
39
VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo. Op. Cit., p. 69 y p. 80.
40
VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla II”, Op. Cit., p. 9.
41
Idem, p. 10.
42
Idem, p. 11.
256
É verdade que algumas formas arraigadas de roubar nos países sul-americanos
continuavam sendo – como também sucedia na Europa e América do Norte –
práticas delitivas solitárias e individualistas. Mas ao contrário da opinião do
informante uruguaio, a inícios do século XX era muito clara a tendência à
conformação de grupos e quadrilhas de ladrões. Este fenômeno tinha seu correlato
linguístico na aparição de noções como “máfia” e mais tarde “hampa”, que aludiam
às sociedades organizadas em torno de um código de honra, com regras explícitas de
conduta e o uso de um argot específico.43
Uma das características mais sobressalentes destas organizações era seu caráter
internacional, seja porque seus membros eram de diversas nacionalidades ou porque
43
Um estudo clássico sobre o surgimento do crime organizado e o desenvolvimento do hampa urbana
no século XX, aborda estas características: MCINTOSH, Mary. La organización del crimen. México:
Siglo XXI, 1977, p. 24-32. Os usos da noção de “hampa” pode-se ver em: MEJÍAS, Laurentino.
“Coloquio hampesco”, Magazine Policial, Año 4, n. 43, Buenos Aires, Abril de 1926, p. 11-12.
BARRÉS, M. El hampa y sus secretos. Buenos Aires: Imprenta López, 1934.
44
LUGONES, Benigno B. “Los beduinos urbanos”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-
1984). Edición crítica y estudio preliminar de Diego Galeano. Buenos Aires: Biblioteca Nacional,
2012, p. 99-112. ALVAREZ, Jose S. (Fray Mocho). Memorias de un vigilante. Buenos Aires,
Vaccaro, 1920.
45
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio. Op- Cit., p. 72-86. MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de.
Factos e Memórias. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1904, p. 31-45.
46
Sobre as bandas de pistoleiros, assaltos a bancos e sequestros na Argentina durante os anos de 1920
e 1930, ver: CAIMARI, Lila. “Suceso de cinematográficos aspectos: secuestro y espectáculo en la
Buenos de los años treinta”. In: CAIMARI, Lila (comp.). La ley de los profanos. Delito, justicia y
cultura en Buenos Aires (1870-1940). Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 209-250.
E também: CAIMARI, Lila. La ciudad y el crimen. Delito y vida cotidiana en Buenos Aires, 1880-
1940. Buenos Aires: Sudamericana, 2009, p. 145-188.
257
o território de ação delitiva envolvia vários países. No Rio de Janeiro e Buenos
Aires, haviam se internacionalizado até os grêmios de punguistas. Palavra que
segundo Elysio de Carvalho passou do lunfardo argentino à gíria dos ladrões
cariocas, nomeando aos especialistas no “furto de carteira de bolso, relógio de
algibeira, alfinete de gravata, etc., cometido nas ruas, nos lugares onde há muita
gente, nos bonds, com apropriada habilidade, sem que a vítima pressinta, valendo-se
da especial agilidade manual, especificada nos dedos polegar e indicador da mão
direita”.47
É verdade que a punga era, dentro da arte de roubar, uma especialidade que
requeria destrezas eminentemente manuais, e nesse sentido, segundo a teoria de
Carvalho, remetia à criminalidade muscular, rudimentar, primitiva. No entanto,
desde finais do século XIX, havia adquirido uma forma mais “moderna” e
“civilizada”: o pick-pocket profissional. Já o havia notado João Brasil Silvado
durante sua visita a Paris, em 1895: nas principais capitais europeias, os gatunos de
rua haviam se transformado em verdadeiros “ladrões internacionais, inteligentes,
muitas vezes instruídos, viajando muito, falando diversas línguas”.48
47
CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 38.
48
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres: relatório apresentado ao Ministro da
Justiça e Negócios Interiores, sendo ministro o ilustrado cidadão Dr. Gonçalves Ferreira. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1895, p. 106.
258
discípulos ladrões a maneira de roubar, lições de educação e bom tom”. O pick-
pocket era visto, assim, como um punguista profissionalizado.49
49
“Los pickpockets y el pickpocketismo en Francia e Inglaterra”, Revista de Policía, Año V, n. 108,
Buenos Aires, 16 nov. 1901, p. 186. Ver também: “La policía detuvo a una banda de ladrones que
operaba en el subterráneo”, Gaceta Policial, Año 3, n. 42, Buenos Aires, 30 jun. 1928, p. 17-18.
50
“Ladrões batedores de carteiras”, Revista Criminal, ano II, n. 18, Julho 1928, p. 73.
259
Este quadro representava bastante bem o universo dos punguistas expulsos do
Rio de Janeiro durante as três primeiras décadas do século XX. Para começar, a
elegância na vestimenta estava longe dos andrajosos “ladrões de galinhas” e perto
dos “batedores de carteiras” que descrevia Vicente Reis em 1903.51 O mesmo se
adverte nos retratos fotográficos de punguistas nos processos de expulsão de
estrangeiros. Dos sessenta casos de ladrões selecionados no arquivo, mais da metade
eram marcados como punguistas integrantes de uma “quadrilha internacional”. Tanto
os países de origem como o território de ação desses casos coincidiam bastante com
o quadro da Revista Criminal. Excetuando aos europeus que ficaram fora da mostra
(em sua grande maioria portugueses e espanhóis, embora também houvesse alguns
italianos), dos trinta e dois punguistas sul-americanos, vinte e dois provinham da
Argentina, cinco do Uruguai, quatro do Chile e apenas um do Peru. É hora de ver
alguns destes casos com detalhes.
A figura do punguista profissional era uma das mais antigas entre os ladrões
internacionais. Embora a viagem não era parte do modus operandi, se convertia com
frequência em uma sequela inevitável de suas ações. O segredo da punga era passar
despercebido, atuar sigilosamente, mimetizar-se com a paisagem urbana. Mas como
o punguista trabalha na rua, nos trens, nos bancos, seu rosto estava exposto
constantemente ao olhar alheio. Qualquer descuido resultava fatal. A primeira
detenção policial prognosticava futuras perseguições, muitas prisões arbitrárias por
estar em companhia de delinquentes, e novos períodos “em cana” que não faziam
mais que acrescentar sua fama de ladrão. A necessidade de fugir e levar o ofício à
51
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 69-89.
260
outra cidade era uma solução repetida em cada prontuário criminal, nas galerias
fotográficas de ladrões conhecidos e nos processos de expulsão de estrangeiros.
Manuel Rossi, por exemplo, havia sido detido por roubo em 11 de maio de
1873. Tinha vinte e um anos e era sua primeira prisão. Catorze anos mais tarde,
acumulava cento e quarenta e oito entradas na polícia. O chamavam “el Ruso”,
embora fosse italiano e falasse espanhol com grande facilidade. Em 1887 já era um
dos delinquentes mais conhecidos de Buenos Aires e seu retrato ocupava um lugar na
Galeria de Ladrões da Capital, editada pelo escritor José S. Álvarez (Fray Mocho).
Essa fama o obrigou migrar ao Brasil e ao Uruguai.52 O mesmo caminho haviam
seguido Carmelo Laguna, vulgo Linterna, e Adolfo Lucas Antinori, vulgo Mosquito,
dois ladrões argentinos que empreenderam juntos viagens pelo Brasil. A descrição
que Fray Mocho fazia de Antinori dava conta destes caminhos:
Por este fluido movimento de ladrões entre o Rio da Prata e Brasil, e pelo
aumento dos intercâmbios entre as polícias, não chama atenção encontrar os mesmos
nomes e as mesmas caras em publicações policiais dos diversos países. Esse era o
caso de Agustín Almada ou Melgarejo ou Ciciaco ou Tocas, segundo o Magazine
Policial de Buenos Aires; Alberto Mujica ou André Melgarejo ou Agostinho
52
REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Tomo 1. Buenos
Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1887, p. 31-33.
53
REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Tomo 2. Buenos
Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1887, p. 174.
261
Melgarejo ou Cyriaco Souza ou Pedro Zomoza ou Bautista Troncoso, segundo a
Revista Policial do Rio de Janeiro, que o definia como “um ladrão conhecido,
escorraçado das Repúblicas do Prata e de diversos Estados do Brasil”.54 Muitos
nomes, duas revistas separadas por sete anos, mas um mesmo retrato fotográfico:
54
“Ladrões conhecidos”, Revista Policial, ano I, n. 1, Rio de Janeiro, 15 out. 1919, p. 11.
262
O caso de Zapaterito mostra claramente esta novidade. Na capa do processo se
lê: “Expulsão do estrangeiro Agustín Ferreira Baudraco. Gatuno conhecido”.55 A
polícia do Rio de Janeiro iniciava este pedido de expulsão em agosto de 1911, logo
após submetê-lo a um interrogatório na Sala de Audiências da Segunda Delegacia
Auxiliar. O Auto de Qualificação dizia o seguinte:
55
AN, IJJ7 129. Secretaria de Estado da Justiça e Negócios Interiores. Expulsão de Agustín Ferreira
Baudraco (1911).
56
AN, IJJ7 129. Expulsão de Agustín Ferreira Baudraco (1911). Segunda Delegacia Auxiliar. Auto de
Qualificação. Rio de Janeiro, 16 ago. 1911.
263
A atuação continuava com as declarações das “testemunhas” que, tal como
ditava o ritual burocrático das expulsões, eram extraídas da própria instituição
policial e se limitavam a confirmar os dados incriminatórios.57 A primeira das
testemunhas era o Agente de Segurança Pública Olympio José dos Santos, que
contava como havia conhecido a Zapaterito. Durante os festejos de Carnaval desse
ano, o havia descoberto em flagrante delito quando acabava de furtar a carteira de um
cavalheiro com “um conto e cento e vinte mil réis”. Por esse feito foi preso e
absolvido, mas – agregava a testemunha – “continuou a sua vida de gatunice”.58 A
segunda testemunha confirmava estes dados e acrescentava que Zapaterito integrava
um grupo de punguistas, “indivíduos de má nota, com os quais convive, vivendo do
produto de pequenos furtos”.59 A terceira testemunha repetia o mesmo e não somava
nada.
57
O caráter inventado das declarações testemunhais foi questionado pelos juristas contemporâneos
que consideravam as expulsões como processos “inquisitoriais” ou “simulacros” de justiça. Ver:
MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e
expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996, p. 221-236. SCHETTINI,
Cristiana. “Los elementos inadaptados: ley e identidades en las expulsiones de extranjeros en
Argentina y en Brasil, a comienzos del siglo XX”, Fuera de la ley. Jornadas de discusión sobre delito,
policía y justicia en perspectiva histórica (siglos XIX y XX), Universidad de San Andrés, Buenos
Aires, 17-19 jun. 2010. Sobre as discussões jurídicas dos processos de expulsão, ver: BONFÁ,
Rogério Luis G. “Com lei ou sem lei”. As expulsões de estrangeiros e o conflito entre o Executivo e o
Judiciário na Primeira República. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas,
2008.
58
AN, IJJ7 129. Expulsão de Agustín Ferreira Baudraco (1911). Segunda Delegacia Auxiliar. Auto de
Declarações que faz Olympio José dos Santos. Rio de Janeiro, 16 ago. 1911.
59
Idem. Auto de Declarações que faz Antonio Marinho de Aguiar. Rio de Janeiro, 16 ago. 1911.
60
Idem. Gabinete de Identificação e Estatística, Rio de Janeiro, 19 ago. 1911.
264
sociedade e comprometedor da tranquilidade pública”, segundo a fórmula empregada
nos decretos de expulsão firmados pelo Ministro de Justiça.61
Nos arquivos de Buenos Aires seus antecedentes eram muito mais extensos. O
primeiro roubo estava datado em agosto de 1897 e o valeu três meses de prisão.
Possuía várias detenções por furto até que em 1905 o Juiz Madero o condenou a três
anos de prisão. Pouco depois de cumprir a pena, em 1908, já aparecia outra detenção,
novamente por furto. Ao ano seguinte, outra pelo mesmo motivo, mas no Uruguai.
Em 1910 voltam a aparecer detenções em Buenos Aires e o Juiz Argerich o condena
a outros dez meses de encarceramento.63 Tudo indica que Zapaterito decidiu
abandonar o Rio da Prata, sem saber que pelo mesmo meio de transporte que o levou
ao porto de Santos viajaria tempos depois seu próprio prontuário.
61
AN, IJJ7 129. Expulsão de Agustín Ferreira Baudraco (1911). Decreto de Expulsão, Rio de Janeiro,
30 ago. 1911.
62
AN, IJJ7 129. Expulsão de Agustín Ferreira Baudraco (1911). República Argentina, Policía de la
Capital Federal, División de Investigaciones, Buenos Aires, 14 mar. 1911.
63
Idem.
265
Paulo, a que elevou seu pedido de expulsão.64 As primeiras eram resultado de dados
enviados pela polícia da cidade de Buenos Aires, onde havia sido aprisionado por
furtos e fraude entre 1907 e 1909. No entanto, neste caso a polícia portenha não era a
única que aportou informações.
64
AN, IJJ7 135. Expulsão de Angelo Funes (1929). Polícia do Estado de São Paulo, Gabinete de
Investigações, Serviço de Identificação, Boletim Positivo n. 39.609, 19 jun. 1929.
65
Idem. Dos quatro feitos registrados em 1915, o primeiro foi uma detenção em Rosário no mês de
março como “Angel Funez”, o segundo foi em junho e no Rio de Janeiro, sob o nome de “Frederico
Amaro”, o terceiro foi em novembro, novamente no Rio de Janeiro, mas anotado como “Angelo
Funes”, enquanto que poucos dias depois, em 4 de dezembro, volta a ser preso em Rosário.
266
Ficha de identificação de Angelo Funes
Fonte: AN, Fundo IJJ7 139 (1922)
66
AN, IJJ7 139. Expulsão de Angelo Funes (1922). Secretaria da Justiça e da Segurança Pública,
Gabinete de Investigações e Capturas, Seção de Identificação, São Paulo, 12 abr.1922.
67
Idem. Decreto de Expulsão, República dos Estados Unidos no Brasil, Secretaria de Estado da
Justiça e Negócios Interiores, Rio de Janeiro, 20 jul. 1922.
68
O decreto de expulsão levava a data de 20 de julho de 1922 e a detenção em Belo Horizonte foi em
26 de julho do mesmo mês. AN, IJJ7 135. Expulsão de Angelo Funes (1929). Polícia do Estado de
São Paulo, Gabinete de Investigações, Serviço de Identificação, Boletim Positivo n. 39.609, 19
jun.1929.
267
Curiosamente, nem essa nem as quatro detenções seguintes em São Paulo reativaram
o processo de expulsão, trazido à tona recentemente em 1929.
69
AN, IJJ7 135. Expulsão de Angelo Funes (1929). Polícia do Estado de São Paulo, Gabinete de
Investigações, Inquérito Policial, São Paulo, 25 jun. 1929.
70
Idem. Termo de declarações, São Paulo, 25 jun. 1929.
71
Idem. Relatório do Chefe do Gabinete de Investigações , São Paulo, 19 jun. 1929.
72
AN, IJJ7 135. Expulsão de Angelo Funes (1929). República dos Estados Unidos no Brasil,
Secretaria de Estado da Justiça e Negócios Interiores, Rio de Janeiro, 3 jun. 1929.
268
Nada permite afirmar, com alguma certeza, se Choricero nasceu na Argentina
ou no Uruguai, como tampouco podia ser comprovada a procedência de Arthur
Narbona, cuja história, no entanto, merece também ser narrada. Sua trajetória de
punguista viajante se replica – cidade mais, cidade menos – em muitos outros casos
de ladrões expulsos pelas autoridades brasileiras. Em 1926 um agente policial do Rio
de Janeiro o caçou infraganti. Terminou preso na Casa de Detenção, embora a
condenação tenha ficado em suspenso e ao ano seguinte voltou a ser preso,
desencadeando o processo de expulsão. Tinha então trinta e cinco anos e uma
carreira de punguista de aproximadamente duas décadas.
269
nos comércios e conseguiu trabalhar na Casa Rossi. Igualmente foi preso três vezes e
resolveu de novo buscar outro destino. Foi assim que terminou no Brasil, onde
deambulou com suas pungas por vários estados: primeiro no Rio Grande do Sul,
depois em São Paulo e finalmente no Rio de Janeiro. À capital chegou em torno de
1920 e em seguida entrou em contato com o submundo delitivo. Começou a visitar
com assiduidade “a casa da meretriz Annita, que era nesse tempo frequentada por
toda espécie de ladrões” e a polícia carioca o deteve por punguista várias vezes.73
O processo de expulsão foi, como na maior parte dos casos, sucinto, embora
algo demorado porque o Consulado da República do Uruguai recusou o pedido do
passaporte necessário para sua viagem, porque argumentava que Narbona mentia em
sua declaração de nacionalidade.74 Apesar de tudo, um ofício reservado do chefe de
polícia comunicava que em 23 de outubro de 1927 Arthur Narbona embarcou a
bordo do vapor Commandante Capella com destino a Porto Alegre, sem especificar
até onde iria desde essa cidade.75 É possível que ante as reclamações das autoridades
diplomáticas uruguaias, a polícia carioca tenha determinado – em segredo – enviá-lo
para Argentina. Conjectura difícil de corroborar, mas alimentada por um desses
quadros de indesejáveis que publicava a Revista Criminal, no que se festejava a
expulsão de Narbona, sinalando-o como batedor de carteiras argentino.
73
AN, IJJ7 142. Processo de Expulsão dos indivíduos Víctor Reys, Alfredo Giménez e Arthur
Narbona (1927). Quarta Delegacia Auxiliar, Seção de Arquivo e Informações, Cópia do Prontuário de
Arthur Narbona, Rio de Janeiro, 12 set. 1927.
74
Ver a cópia da resposta do Consulado em: Arquivo Histórico do Itamaraty, Lata 54, Maço
425.Legación de la República del Uruguay, Oficio n. 380/927, Rio de janeiro, 18 oct. 1927.
75
Idem, Secretaria da Polícia do Distrito Federal, Oficio Reservado, Rio de Janeiro, 28 out. 1927. O
mesmo sucedeu com outros dois ladrões que haviam declarado ser uruguaios, mas o Consulado
recusou a emissão do passaporte: Víctor Reys y Alfredo Giménez. Os processos de ambos se
encontram no Arquivo Nacional, agrupados junto com o de Narbona. Reys foi expulso com destino a
Lisboa e Alfredo Gimenez com destino a Porto Alegre, em 26 de julho e em 30 de agosto de 1927,
segundo consta nas listas de expulsos do Arquivo Histórico do Itamaraty, Lata 54, Maço 425, Relação
dos indivíduos expulsos do território nacional (1927).
270
Retrato de Arthur Narbona (acima)
Fonte: Revista Criminal, Ano I, n. 8, Rio de Janeiro nov. 1927, p. 33.
271
continuar no cárcere onde se encontrava acusados de roubo.76 Frente a um caso
similar, em 1907, o chefe da polícia portenha (Ramón Falcón) escreveu uma carta ao
seu par do Rio de Janeiro, advertindo-o que a polícia carioca havia expulso para
Buenos Aires um sujeito de suposta nacionalidade espanhola. O mais chamativo
desta carta era que Falcón não exigia a seus colegas brasileiros que se informassem
melhor sobre o lugar de nascimento dos acusados antes de expulsá-los. Na realidade,
pedia que se cumprisse um acordo informal entre as polícias sul-americanas: em
casos de controversa de nacionalidade, o combinado era mandá-los a Europa.77
(...) que desde a idade de sete anos, em Buenos Aires, sua terra
natal, iniciou-se na prática de furtos de carteiras, acompanhando
ladrões dessa especialidade; que uns anos depois, já com oito anos
de idade furtou a carteira da esposa do falecido coronel argentino
Ataliba Roque, quando essa senhora viajava em um bonde; que
preso em flagrante na prática desse furto, foi internado no Cárcere
de Menores “Marcos Paz”, (...) quatro anos, e dele saindo
continuou sua vida de furtos de carteiras; que só no Depósito de
Contraventores de Buenos Aires foi várias vezes processado, sendo
que no ano de 1914 foi processado com o nome de José Ponce de
76
AN, GIFI 6C 27 (1899).
77
AN, GIFI 6C 252 (1907). Ofício do Chefe da Polícia de Buenos Aires, 24 mar. 1907.
78
AN, IJJ7 126. Expulsão de Alberto Graffiña (1927). Polícia do Estado de São Paulo, Delegacia de
Técnica Policial, Serviço de Identificação, São Paulo, 29 nov. 1927.
272
León por ter assaltado uma senhora na via pública, Avenida de
Mayo, das mãos de quem arrebatou a carteira (...); que vindo para o
Brasil há sete anos continuou nesta Capital [São Paulo] e no Rio de
Janeiro sua vida de gatuno, tendo cometido uma infinidade de
furtos e roubos; cometeu ainda vários roubos em casas comerciais,
à noite, e muitos outros furtos de carteiras de cujo produto tem
vivido sempre; que na cidade do Rio Grande do Sul, no ano de
1915 ou 1916, assaltou à noite uma casa comercial sita à rua
Quinze de Novembro, daí subtraindo a importância de 38 contos de
réis em dinheiro que se achavam em um cofre, sendo que este
estava aberto; que com esse dinheiro embarcou para Europa onde
permaneceu três messes, percorrendo a Espanha, Portugal e
França; que nas capitais desses países se associou a ladrões que
eventualmente conhecia e praticou somente furtos de carteiras; que
perseguido em Paris por um furto que cometeu, fugiu, embarcando
para sua terra natal; que depois de estar no Brasil, tem
constantemente viajado para Buenos Aires e Montevidéu,
demorando-se as vezes mais de seis meses; (...) que já conta entre
processos, suspeita e vadiagem mais de cento e vinte passagens
pelas polícias dos lugares onde tem residido ou passado.79
79
Idem, Polícia do Estado de São Paulo, Delegacia de Investigações sobre Roubos, Auto de
Qualificação, São Paulo, 1 dez. 1927.
80
Idem, Relatório do Delegado de Investigações sobre Roubos, São Paulo, 11 jan. 1928.
81
Idem, Declaração da 2ª. Testemunha, São Paulo, 1 dez. 1927.
273
testemunhas parecia importar muito. Em 28 de janeiro de 1928 decretou-se sua
expulsão.
82
AN, IJJ7 135. Expulsão de Héctor Eulogio Morales (1927).
83
AN, IJJ7 126. Expulsão de Alfredo Sinquetti (1927). A fotografia foi reproduzida entre os quadros
de expulsos da Revista Criminal, ver: “Outros mais que se vão. A polícia continua deportando
indesejáveis”, Revista Criminal, Ano I, n. 4, Rio de Janeiro, set. 1927, p. 35.
274
Também Leónidas Arena, ladrão argentino com uma década de carreira
criminal; Luis Mariani, vulgo Jeilefe, punguista com ramificações em Buenos Aires,
Santiago del Estero, Montevidéu e São Paulo; Julio Dantas, batedor de carteiras na
Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai; José Castillo; Pedro Enrid e outros: todos
punguistas com vasto território de ação, enviados à Buenos Aires durante a década
de 1920.84 Estes “gatunos internacionais” viajavam, tinham contatos com ladrões de
distintos países e manejavam vários idiomas. Falavam, ainda, uma linguagem
transnacional que haviam filtrado nas babélicas conversações no Rio de Janeiro e
Buenos Aires, entrelaçando-se com o português e o espanhol, incorporando palavras
do italiano e do francês, enlouquecendo aos acadêmicos e puristas da língua. Eram a
gíria e o lunfardo. Era o argot dos ladrões viajantes.
84
AN, IJJ7 177. Expulsão de Leónidas Arena (1928). AN, IJJ7 177. Expulsão de Luis Mariani (1928).
AN, IJJ7 175. Expulsão de Julio Dantas (1930). AN, IJJ7 167. Expulsão de José Castillo (1928). AN,
IJJ7 149. Expulsão de Pedro Enrid (1927).
85
“El dialecto de los ladrones”, La Prensa (Sección “Boletín del día”), 6 jul. 1878.
275
traduzia a seus leitores para socorrê-los na tarefa cotidiana de se cuidarem dos
roubos.
Embora não se aclarava o nome do autor desta resenha sobre o livro de Senna,
é provável que fosse o então subdiretor do Gabinete de Identificação, Elysio de
Carvalho, já que quatro anos depois cumpriu com a tarefa. Em 1912 publicou o
folheto Gíria dos Gatunos Cariocas, um dicionário composto por mais de quinhentas
vozes e orientado à leitura dos alunos da Escola de Polícia.89 Em um conjunto de
vinte palavras extraídas da etnografia carcerária de Senna, chama atenção que oito
estavam presentes no texto de 1878 sobre o argot dos ladrões portenhos.
86
“O calão dos delinqüentes”, Boletim Policial, Ano I, n. 12, Rio de Janeiro, abr. 1908, p. 7-8.
87
SENNA, Ernesto. Através do Cárcere (Casa de Detenção). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1907. Sobre esta e outras crônicas jornalísticas da prisão carioca no começo do século XX, ver:
ANTUNES, Marilene Sant´Anna. “Histórias do confinamento nas crônicas cariocas”, Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, jul. 2011.
88
“O calão dos delinqüentes”, Op. Cit., p. 7.
89
O próprio folheto especificava que era um “vocabulário organizado para os alunos da Escola de
Polícia”: CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 3. O programa da
disciplina “polícia científica” que ditava Carvalho na Escola incluía o ensino do argot, ver:
CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Op. Cit., p. 132.
276
Em ambas as listas, bobo aparecia como o termo que usavam os punguistas
para se referirem aos relógios que roubavam; enquanto que bacán e bacano,
respectivamente em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, faziam referência à “pessoa
rica que esta em condições de ser roubada”, e se era pobre o chamavam de misho ou
micho.90 Campana era o que vigiava para que não chegasse a polícia enquanto seus
companheiros roubavam. A mulher do delinquente era conhecida como mina; o
oficial ou delegado de polícia, mayorengo ou majorengo; a vítima ingênua era o
otário. Finalmente, ao ladrão ou gatuno também se dizia lunfardo, palavra que na
argentina designava tanto ao delinquente como ao seu argot particular.91
Esta prática de recompilar vozes do calão dos ladrões não era uma
exclusividade sul-americana. Desde a publicação do livro de Vidocq Les voleurs,
pshysiologie de leurs moeurs et de leur langage (1837), e em particular desde a
interpretação que Lombroso ofereceu sobre o argot em L´uomo delinquente (1876),
os especialistas da questão criminal não pararam de auscultar jargões secretos e de
discutir a natureza da sua existência.92 Assim fizeram outros criminologistas italianos
como Niceforo e Ferri, alguns da escola francesa, como Lacassagne e Tarde.
Também foi matéria de análise de Los hombres de presa, considerado o primeiro
90
“O calão dos delinqüentes”, Op. Cit., p. 8. VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo. Op.
Cit., p. 38.
91
Na nota de 1878 não aparecia esse duplo significado da voz lunfardo, mas uma crônica publicada
no ano seguinte no folhetim do jornal La Nación afirmava que a expressão “o lunfardo” podia fazer
referência tanto ao ladrão como ao calão utilizado por este. LUGONES, Benigno B. “Los beduinos
urbanos”. Op. Cit., p. 99-100.
92
VIDOQC, Eugène-François. Les voleurs, pshysiologie de leurs moeurs et de leur langage. Paris :
Imp. de Beaulé et Jubin, 1837. LOMBROSO, Cesare. L´uomo delinquente. In Rapporto
all´antropologia, alla giurisprudenza e dalle discipline carcerarie. Quinta Edizione. Vol. 1. Torino:
Fratelli Bocca, 1896, p. 531-552.
277
livro da criminologia latino-americana e traduzido ao italiano sob o título de I
criminali nati, pelo próprio Lombroso.93
93
CREAZZO, Giuditta. El positivismo criminológico italiano en la Argentina. Buenos Aires: Ediar,
2007, p. 46.
94
DRAGO, Luis M. Los hombres de presa. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1888, p. 99. Uma parte das
páginas que Drago dedicou neste livro à análise do argot foram publicadas simultaneamente na revista
policial: “El argot de los lunfardos bonaerenses”, Revista de la Policía de la Capital, Año I, n.9,
Buenos Aires, 1 oct. 1888, p. 108; e “El argot de los lunfardos bonaerenses”, Revista de la Policía de
la Capital, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 oct. 1888, p. 120.
95
DRAGO, Luis M. Los hombres de presa. Op. Cit., p. 100.
278
necessidade que tinham estas confrarias de “recorrer em certos casos a uma gíria
especial, desconhecida dos profanos”, a um vocabulário “destinado, como dizem os
mesmos criminosos, a ocultar dos estranhos suas comunicações”.96
96
Ídem, p. 101-102. A interpretação do uso de argot como uma característica das associações de
delinquentes profissionais estava alinhada com a leitura dos criminologistas mentores da polícia
científica. Ver, por exemplo: REISS, Rudolph A. Manuel de Police Scientifique (Technique). Vol. 1.
Vols et Homicides. Lausanne: Payot, 1911, p. 82-113. LOCARD, Edmond. Le Crime et les Criminels.
Paris: La Renaissance du Livre, 1925. p. 34-45.
97
MEJIAS, Laurentino. La policía por dentro. Tomo 1. Barcelona: Imprenta Viuda de Luis Tasso,
1911, p. 182.
98
BARBIERI, Pedro. “Clínica criminológica en el depósito 24 de Noviembre”, Revista de Policía,
Año IV, n.73, Buenos Aires, 1 jun. 1900, p. 6-7. Sobre esta Sala de Observação instalada no Depósito
de Contraventores, ver: VEZZETTI, Hugo. La locura en la Argentina. Buenos Aires, Paidós, 1985, p.
175-176. RUIBAL, Beatriz. Ideología del control social. Buenos Aires: Centro Editor de América
Latina, 1992, p. 54. SALESSI, Jorge. Médicos, maleantes y maricas. Higiene, criminología y
homosexualidad en la construcción de la nación argentina. Buenos Aires: Beatriz Viterbo, 1995, p.
148-151.
99
DE VEYGA, Francisco. Los lunfardos. Psicología de los delincuentes profesionales. Buenos Aires:
Talleres Gráficos de la Penitenciaría Nacional, 1910.
279
Para Francisco de Veyga, os lunfardos eram sujeitos “dotados de escassíssima
capacidade mental e desprovidos de todo recurso moral para a luta pela vida”.100
Toda a descrição dos ladrões habituais que havia observado no Depósito de
Contraventores estava dominada pelas ideias de “inferioridade psíquica”,
“degeneração” e “debilidade de espírito”.
Dellepiane coincidia então com Drago em assinalar o lunfardo como a gíria dos
ladrões profissionais. Mas entendia que esse vocabulário não buscava ocultar as
intenções delitivas na presença de vigilantes e vítimas incautas, mas que tinha um
caráter bem mais lúdico: “a característica culminante das gírias criminais – escrevia
– é o cinismo, a tendência à burla sarcástica e às vezes cruel”.102 A questão é que,
seja para encobrir seus diálogos ou simplesmente para se entreterem, o vocabulário
lunfardo era visto aqui como o calão de um grupo profissional.
100
Idem, p. 10.
101
DELLEPIANE, Antonio. El idioma del delito. Contribución al estudio de la psicología criminal.
Buenos Aires: Arnoldo Moen, 1894, p. 16.
102
Idem, p. 40.
280
nacional”.103 Ernesto Quesada, por exemplo, opinava em 1902 que o lunfardo era
uma “gíria dos delinquentes” que – parafraseando a Dellepiane – qualificava de
“verdadeiro tecnicismo, cheio de colorido”.104 Enquanto que em 1926, um linguista
argentino de ascendência alemã, Rudolf Grossmann, afirmava que muitas destas
palavras nascidas na sede delitiva haviam sido adotadas já pela “língua coloquial
geral”.105
103
Ver DI TULLIO, Ángela L. Políticas lingüísticas e inmigración. El caso argentino. Buenos Aires,
Eudeba, 2010, p. 99-134.
104
QUESADA, Ernesto. “El criollismo en la literatura argentina”. In: RUBIONE, Alfredo V. (comp.).
En torno al criollismo. Textos y polémica. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1983, p.
213.
105
GROSSMANN, Rudolf. El patrimonio lingüístico extranjero en el español del Río de la Plata.
Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2008, p. 149. Estudos posteriores abordaram esta relação do
lunfardo com a fala popular dos argentinos. Alguns autores continuaram considerando o lunfardo
como uma gíria nascida no mundo dos ladrões profissionais, ver: VILLANUEVA, Amaro. “El
lunfardo”, Universidad, n. 52, Santa Fe, abr.-jun. 1962, p. 13-42. Outros, em uma operação crítica que
buscava redimir este vocabulário de seu “pecado original” delitivo, inverteram os termos,
argumentando que foi “o mundo da delinquência que se apropria das palavras que estão no uso do
povo”. TERUGGI, Mario E. Panorama del lunfardo. Buenos Aires: Sudamericana, 1978, p. 247. A
mesma hipótese foi aprofundada recentemente por: CONDE, Oscar. Lunfardo. Un estudio sobre el
hablar popular de los argentinos. Buenos Aires: Taurus, 2011, p. 60 y p. 86-91.
106
GROSSMANN, Rudolf. El patrimonio lingüístico extranjero en el español del Río de la Plata. Op.
Cit., p. 149-150.
281
e vinte entradas, entre vozes e locuções.107 O número não estava longe das
quinhentas e sessenta e oito registradas no folheto que Elysio de Carvalho publicou
em 1912. No Brasil, haviam aparecido antes outros vocabulários que davam conta da
existência de um argot de delinquentes. Ao redor de 1897, o médico Sebastião Leão,
diretor da Oficina de Antropologia Criminal, dependente da polícia do Rio Grande
do Sul, elaborou um estudo empírico baseado nos detentos da Casa de Correção de
Porto Alegre. No texto analisou o uso do argot por parte dos presos e ensaiou um
brevíssimo glossário.108
107
DELLEPIANE, Antonio. El idioma del delito. Op. Cit., p. 57-104.
108
LEÃO, Sebastião. “Relatório do Doutor Sebastião Leão, Médico da Polícia”. In: Relatório da
Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Exterior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: s/d,
1897, p. 230. Sobre Leão e seus trabalhos na Cadeia de Porto Alegre ver: PESAVENTO, Sandra J.
Visões do Cárcere. Porto Alegre: Editora Zou, 2009.
109
MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 337-344. Às
coincidências já mencionadas, sobre o livro de Ernesto Senna, agregavam-se outras novas como gurda
(adinheirado), marroco (pão), ragú (fome) e vento (dinheiro).
110
PEDERNEIRAS, Raul. Geringonça carioca. Verbetes para um dicionário da gíria. Rio de Janeiro:
s/d, 1910. Nesse mesmo ano publicou-se no Chile um dicionário apresentado no Congresso
Internacional Americano (realizado em Buenos Aires durante o mês de julho de 1910). VICUÑA
CIFUENTES, Julio. Jerga de los delincuentes chilenos. Estudio y vocabulario. Santiago de Chile:
Imprenta Universitaria, 1910.
111
VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo. Op. Cit., p. 27.
282
“LUNFARDO – Gatuno [G. dos gs. args]”, se lia no meio do folheto: essa
aclaração entre colchetes significava que a voz procedia da gíria dos gatunos
argentinos.112 Cento e vinte vozes e locuções eram reconhecidas por Carvalho como
usos da gíria derivados do espanhol e do lunfardo portenho. Por isso em 1913, a
Revista de Polícia de Buenos Aires publicava uma nota com o título “Vocabulário
dos ladrões no Brasil”, que informava a seus leitores sobre o dicionário de Carvalho
e destacava que muitos vocábulos eram “análogos aos que usam nossos
delinquentes”.113 Se o ladrão lunfardo era, segundo escrevia Francisco de Veyga,
“todo um nômade que se movia de um lado a outro sem encontrar paradeiro aonde se
assentar”; se ele era, como lhe chamava Benigno Lugones, um tipo de “beduíno
urbano”, então não resultava estranho que suas viagens deixassem sedimentos no
argot criminal.114
112
CARVALHO, Elysio de. Gíria dos gatunos cariocas. Op. Cit., p. 30.
113
“Sueltos. Vocabulario de los ladrones en el Brasil”, Revista de Policía, Año XVI, n. 379, Buenos
Aires, 1 mar. 1913, p. 182.
114
DE VEYGA, Francisco. Los lunfardos. Op. Cit., p. 26. LUGONES, Benigno B. “Los beduinos
urbanos”. Op. Cit., p. 99-112.
115
CARVALHO, Elysio de. Gíria dos gatunos cariocas. Op. Cit., p. 4, 13 e 20.
116
Idem, p. 11 e 30.
283
algibeira”; toco à “porção que toca a cada um na partilha do produto de um
roubo”.117
117
Idem, p. 11, 14, 31, 34 e 43.
118
SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 233-234.
284
A aristocracia do roubo
1
GOFFMAN, Erving. Relaciones en público. Microestudios de orden público. Madrid: Alianza, 1979,
p. 354.
2
RIO, João do. “O representativo do roubo inteligente”, A Notícia, Rio de Janeiro, 20 ago. 1911.
3
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Rio
de Janeiro, Ano VII, n. 4, abr. 1913, p. 60.
Agora, o criminoso típico não era o escruchante, “gatuno que comete a
subtração da coisa alheia, com arrombamento, escalamento ou chave falsa”, segundo
definia o próprio Carvalho em seu folheto sobre a gíria delitiva, orientado à leitura de
alunos da Escola de Polícia.4 Carvalho contrastava aqui o tempo dos escruchantes,
protagonistas de um passado recente dominado pelo roubo manual e muscular, com
esse presente do século XX, da delinquência astuta e dos ladrões gentlemen. Mas isso
não significava que todos os ladrões do século anterior fossem da mesma categoria.
Em 1879, num dos primeiros textos dedicados a descrever o lunfardo portenho, o
jornalista Benigno Lugones assegurava que os “escruchantes inteligentes” tinham o
costume de enviar a “Montevidéu, Rosário, Rio de Janeiro e ainda à Europa” as joias
que roubavam em Buenos Aires, e que também recebiam artigos roubados daquelas
cidades.5
4
CARVALHO, Elysio de. Gíria dos gatunos cariocas. Op. Cit., p. 20.
5
LUGONES, Benigno B. “Los beduinos urbanos”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-
1984). Edición crítica y estudio preliminar de Diego Galeano. Buenos Aires: Biblioteca Nacional,
2012, p. 108.
6
“Ladrões conhecidos”, Revista Policial, Ano I, n. 1, Rio de Janeiro, 15 out. 1919, p. 21.
286
tecnológicas aplicadas a alguma especialidade na arte de roubar. A segunda tinha a
ver com a aprendizagem dos estilos necessários para se infiltrar nos espaços da alta
sociedade e com as capacidades dramatúrgicas nas interações com os outros.
Finalmente, a última característica aludia à construção de uma fama dentro do
próprio mundo dos ladrões e, em parte, à projeção dessa popularidade nas páginas da
imprensa e nos seus leitores.
7
SIGHELE, Scipio. Delinquenza Settaria. Apuntti di sociologia. Milano: Fratelli Treves, 1897.
NICEFORO, Alfredo; SIGHELE, Scipio. La mala vita a Roma. Torino: Roux Frassati, 1898, p. 11-
30.
8
LANCELOTTI, Miguel A. “Civilización y delito”, Criminalogia Moderna, Año II, n. 13/14, Buenos
Aires, nov.-dic. 1899, p. 407;
9
ZINNY, Enrique N. La delincuencia en la ciudad de Buenos Aires. Sus factores principales. Tese de
doutorado, Universidad de Buenos Aires, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Ed.
Adolfo Grau, 1903, p. 15. Ver também: PESENTI, Víctor R. Influencia de la civilización sobre el
movimiento de la criminalidad. Tese de doutorado, Universidad de Buenos Aires, Facultad de
Derecho y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Tailhade y Rosselli, 1901. TABORDA, Héctor. Factores
del delito. Tese de doutorado, Universidad de Buenos Aires, Facultad de Ciencias Médicas. Buenos
Aires: Rodríguez Giles, 1910.
287
A imprensa policial também brindava detalhes sobre a modernização dos
delinquentes no mundo inteiro. Em 1912, uma “nota do estrangeiro” da revista
Sherlock Holmes contava o caso de dois ladrões especializados em abrir cofres, que a
polícia russa havia detido, encontrando em sua residência “uma biblioteca composta
de obras científicas sobre explosivos, metalurgia, construções de cofres e sobre
maçaricos para fundir metais”. Também havia nas estantes “alguns volumes de
criminologia” e, ao lado da biblioteca, um laboratório para fazer experimentos.10 E
nas páginas do Boletim Policial do Rio de Janeiro, Elysio de Carvalho escrevia um
texto sob o título de “As nevroses e os vícios da cidade”, no qual vinculava a
criminalidade fraudulenta à dinâmica da vida metropolitana, onde “todo mundo está
atacado pela febre dos negócios, é preciso correr, andar célere, chegar à hora,
engolindo quilômetros e ampliando o tempo numa fúria louca”.11
10
“Notas del extranjero. Los ladrones estudian para robar”, Sherlock Holmes, Año II, n. 76, Buenos
Aires, 10 dic. 1912, p. 46.
11
CARVALHO, Elysio de. “As nevroses e os vícios da cidade”, Boletim Policial, Ano VIII, n. 7, Rio
de Janeiro, jul. 1914, p. 328.
12
SIMMEL, Georg. “Las grandes urbes y la vida del espíritu”. In: El individuo y la libertad. Ensayos
de crítica de la cultura. Barcelona: Península, 1986, p. 247-261.
288
país”.13 As revistas policiais de Buenos Aires difundiam histórias de ladroes
gentlemen norte-americanos, algumas delas acompanhadas de ilustrações, como o
caso de Sir John Bulner:
Carvalho também via nos Estados Unidos da América o reino dos ladrões
aristocráticos e uma prefiguração da criminalidade científica que estaria invadindo
todos os demais países. Nas práticas criminais, os norte-americanos haviam sido os
primeiros a utilizar o telégrafo, o telefone, o automóvel e o aeroplano “como
instrumentos de delito”. Eram os pioneiros em “construir aparelhos especiais para
abrir os cofres-fortes, para arrombar portas de aço e para abrir fechaduras
complicadas” e, ainda, pioneiros em empregar as últimas descobertas da ciência,
fornecendo “os recursos aperfeiçoados de que se servem atualmente em todo o
mundo os pick-pockets, os cambrioleurs e os ratos de hotel”. Sem eles, concluía
Carvalho, “a arte de furtar não teria progredido tanto nem se teria tornado uma
13
STEEVENS, C. “Mundo criminal Norte Americano”, Criminalogia Moderna, Año II, n. 6, Buenos
Aires, abr. 1899, p. 165.
289
profissão tão próspera”.14 O crime de colarinho branco (white collar crime) se
converteria, a partir da década de 1930, num campo de estudos para os sociólogos da
Escola de Chicago, em especial nos escritos de Edwin H. Sutherland.15 Porém, nas
três décadas anteriores já era um tema muito presente nos discursos de policiais de
todo o continente e, em particular, nos dois maiores países da América do Sul:
Além de fazer uso das inovações científicas, esses ladrões aristocratas eram
sujeitos com aparência de homens de negócios cuja fachada – segundo denunciavam
os policiais – escondia forasteiros e oportunistas que, em sociedades com um alto
grau de mobilidade demográfica e social, era muito difícil distinguir dos novos ricos
da burguesia. O grande problema da simulação de identidade era parte do jogo das
interações metropolitanas, onde os encontros entre estranhos facilitavam a
“fabricação de uma nova personalidade”, como escrevia em 1889 um redator da
revista portenha, sobre um ladrão viajante milionário de origem francesa.17
14
CARVALHO, Elysio de. “A história do diamante azul”. In: Sherlock Holmes no Brasil. Rio de
Janeiro: Casa A. Moura, 1921, p. 154.
15
White Collar Crime (1949) foi um dos livros mais ressonantes da série de investigações
sociológicas sobre o delito que proliferaram nos Estados Unidos na primeira metade do século XX,
mas já na década de 1930 Sutherland havia publicado The Professional Thief, onde enfocava o estudo
do delinquente sob um ângulo muito diferente daquele das criminologias europeias da moda.
SUTHERLAND, Edwin H. The Professional Thief: by a Professional Thief. Chicago: University of
Chicago Press, 1937. SUTHERLAND, Edwin H. White Collar Crime. The Uncut Version. Nova
Iorque: Yale University Press, 1983.
16
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 65.
17
“La vuelta al mundo de un galeote. Las aventuras del bandido Couteseune. Pescador, guerrero,
relojero, millonario y ladrón”, Revista de la Policía de la Capital, Año I, n. 15, Buenos Aires, 1 ene.
1889, p. 179.
290
A performance pública dos delinquentes gentlemen, a construção teatral de
uma identidade forjada para obter benefícios era o espelho invertido da lógica geral
da burguesia. Por isso, quanto mais incertos fossem os limites entre os setores com
linhagem aristocrática e os novos ricos, mais fina era a linha que separava um
estelionatário de um burguês qualquer. “Talvez o verdadeiro crime do vigarista –
escrevia sarcasticamente Erving Goffman, outro sociólogo de Chicago – não seja
roubar dinheiro das vítimas, mas livrar-nos, a todos, da crença de que as maneiras e a
aparência da classe média podem ser sustentadas apenas pela gente da classe
média”.18
Assim como nas principais metrópoles dos Estados Unidos, a vida em algumas
capitais sul-americanas era uma mise-en-scène permanente, onde a construção de
uma fachada, a vestimenta e as habilidades retóricas valiam muito mais que a
linhagem social efetiva. Nesse contexto, os ladrões com aparência nobre eram um
grande problema para os vigilantes, já que, como é sabido, provinham em sua grande
maioria dos setores populares: de fato, se um agente policial se encontrasse “frente a
frente com um desses escrocs internacionais, inteligentes e astuciosos, elegantes e
audaciosos, afeitos à vida cosmopolita, conhecedor de todos os meios sociais”,
perguntava Elysio de Carvalho: “que poderá fazer o nosso pobre diabo senão deixar-
se embrulhar?”19 Por isso Rolando Pedreira, diretor da Gazeta Policial e chefe da
Quarta Delegacia Auxiliar, advertia aos novos agentes, no seu livro Lições de Polícia
Prática, que tivessem desconfiança frente a estes “tipos curiosos que são
delinquentes simpáticos à polícia: bem educados, maneirosos, agradáveis na palestra
e leais à autoridade, desde o momento em que se mostra o cavalheiro de sua árdua
missão”.20
18
GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. Nova Iorque: Anchor Books, 1959,
p. 18. Sem intenção nem espaço para realizar aqui exposições teóricas, é preciso, no entanto,
reconhecer que a análise que esse capítulo faz de certas práticas delitivas deve-se muito às ideias de
Goffman. Vários elementos de seus escritos estão aqui presentes: a concepção teatral das “situações
de interação”, a personalidade (self) como uma mise-em-scène, o valor das aparências, das fachadas, e
do gestual nos encontros com outros no espaço público. Ver também sobre este tema: GOFFMAN,
Erving. Encounters. Harmondsworth: Penguin, 1972, p. 17-72.
19
CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1910, p. 87.
20
PEDREIRA, Rolando. Lições de Polícia Prática: seguida de uma galeria dos principais habitués
das prisões do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Ed. da Gazeta Policial, 1935, p. 40.
291
A centralidade da fisionomia, a vestimenta e as maneiras dos ladrões viajantes
refletia-se na expressão que Carvalho usava com maior frequência para se referir a
eles: “moços bonitos”.21 Os pseudônimos usados por esses personagens marcavam
uma diferença com os punguistas e gatunos comuns. Em seu livro de memórias sobre
a vida carioca, Mello Moraes Filho incluía uma lista dos “vulgos” mais famosos.22
Ao lado dos sobrenomes de diversos “ladrões conhecidos” (Bunda-Estragada,
Borracheira, Carvão de Pedra, Chico Bigodinho, Carne Seca, Perna Podre, etc.),
apareciam os “doutores”: Dr. Anísio, Dr. Cornélio, Dr. Cartola, Dr. Faria. Muitos
deles eram mencionados também no livro de Vicente Reis, e alguns (Dr. Braguinha,
Dr. Junqueira) reapareciam três décadas depois na galeria fotográfica “dos principais
habitués das prisões do Distrito Federal”, publicada como apêndice no livro de
Pedreira.23
21
Em seu dicionário de gíria o definia como “um rapaz inteligente, vestindo-se com certo apuro,
ostentando luxo, frequentador de rodas alegres e elegantes, mas que não tem modo de vida conhecido
nem decente e, entregando-se à prática de expedientes ilícitos, vem um dia cair nas mãos da polícia
acusado de falcatrua”. CARVALHO, Elysio de. Gíria dos gatunos cariocas. Vocabulário organizado
para os alunos da Escola de Polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 33.
22
MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1904,
p. 343-344.
23
PEDREIRA, Rolando. “Galeria dos principais vigaristas e batedores de carteira que infestam a
Metropole brasileira”. In: Lições de Polícia Prática. Op. Cit., s/n.
24
REISS, Rudolph A. Manuel de Police Scientifique (Technique). Vol. 1. Vols et Homicides.
Lausanne: Payot, 1911, p. 38-41.
292
O mentor de Reiss, Alexandre Lacassagne, havia denominado “erostratismo”
esta tendência vaidosa dos delinquentes, marcada por desejos de exibição pública e
de celebridade.25, e o mais ilustre criminologista argentino, José Ingenieros, opinava
que havia “verdadeiros Quixotes e Cyranos do crime”, que buscavam um “caminho
para a glória”, uma “vaidade criminal que visa ao público e à posteridade”.26 Esse
cultivo da aparência, da vestimenta e das maneiras como ferramenta própria de
algumas práticas delitivas, e também como parte da construção de prestígio, estará
presente neste capítulo final, onde o foco de análise se concentrará em duas figuras
destacadas dentro do mundo criminal sul-americano: o rato de hotel e os passadores
de contos do vigário.
– Ah! Meu amigo, este hotel tem casos curiosos… Sabe que fui
roubada?
25
VALETTE, Pierre. De l’érostratisme ou vanité criminele. Lyon: Storck, 1903, p. 8.
26
INGENIEROS, José. “La vanidad criminal”, Archivos de Psiquiatría y Criminología, Año IV, n. 3,
Buenos Aires, 1907, p. 163.
27
RIO, João do. “Aventura de hotel”. In: Dentro da noite. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910, p. 130.
293
– Sério?
– Sim. O objeto tinha um valor todo estimativo, era um berloque
que me dera o Raymundo logo no começo de nossa ligação. Não
lhe diga nada que o incomodaria. De resto, não sou eu a única. O
Dr. Pontes foi também roubado no seu portemonnaie.
– Como eu!
– O Sr. também? Mas estamos na caverna de Ali-Babá! 28
Até esse momento, o narrador havia mantido em segredo, por pudor, o roubo
de seu alfinete, mas depois do diálogo com a atriz, explodiu o escândalo. A outro
hóspede também haviam roubado uma madrepérola com incrustações de ouro, e o
gerente despediu o criado porque faltavam os passadores de guardanapos. Mas como
os roubos continuaram, os hóspedes entenderam que o ladrão estava entre eles e isso
desatou um estado de pânico. Ninguém conversava com os demais, e saíam de seus
quartos com seus valores no bolso. A tensão chegou ao ponto de aceitarem que a
polícia revisasse todos os quartos com a esperança de que encontrasse as joias
roubadas e descobrisse o ladrão, mas o próprio narrador terminou descobrindo que o
autor era uma das damas hospedadas, Madame de Santarém, que padecia do vício da
cleptomania.
28
Idem, 132-133.
29
DR. ANTÔNIO. Memórias de um rato de hotel. A vida do “Dr. Antônio” narrada por ele mesmo.
Rio de Janeiro: s/d, 1912. Existem poucos exemplares desse livro. Até onde investiguei, a Biblioteca
Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Casa de Rui Barbosa guardam um volume
da obra em seus acervos. O exemplar desta última instituição pertencia à biblioteca pessoal de Plínio
Doyle, que assegura tê-lo comprado num sebo. Quando o comprou, o livro já tinha na primeira página
uma anotação manuscrita do seu dono original – Francisco Prisco –, que diz “o autor deste livro é
João do Rio”. Ver a nota prévia na segunda edição: DOYLE, PLÍNIO. “De como surgiram as
Memórias de um rato de hotel, do Dr. Antônio, edição de 1912”, In: MACIEL, Arthur Antunes (Dr.
Antônio). Memórias de um rato de hotel. Rio de Janeiro: Dantes, 2000, p. 9-13.
30
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 58-65.
294
morrido o verdadeiro ladrão que se escondia por detrás do pseudônimo “Dr.
Antônio”: chamava-se Arthur Antunes Maciel e morreu aos quarenta e sete anos de
idade, enquanto estava preso. Havia entrado na cadeia em agosto de 1911. Entre
dezembro desse ano e fevereiro de 1912, as Memórias de um rato de hotel foram
publicadas como folhetim no jornal Gazeta de Notícias, enquanto que o livro saiu no
mês de março, e em novembro falecia seu suposto autor.31
Para Elysio de Carvalho, a biografia era obra de “um dos nossos jornalistas”,
mas a história de Dr. Antônio era verdadeiramente digna de ser contada. Perfeito
modelo do “gatuno inteligente e astucioso”, sua fisionomia era típica nesta classe de
gatunice: “singular expressão de bonomia, alguma coisa de clerical, o que, sem
dúvida, muito contribuiu, na sua agitada carreira, a inspirar confiança às vítimas”. O
rosto de Dr. Antônio mostrava a “astúcia da raposa, uma astúcia feita de hipocrisia e
de extrema cautela, insinuante e canalha”.32
31
RODRIGUES, João Carlos. “Um mistério literário”. In: MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio).
Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 287.
32
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 63.
33
CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Vocabulário organizado para os alunos da
Escola de Polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 37 e 39.
34
REISS, Rudolph A. Manuel de Police Scientifique (Technique). Op ; Cit., p. 213.
295
O rato de hotel reunia todas as características de um ladrão internacional: se
deslocava a uma velocidade assombrosa e tinha a aparência de um “verdadeiro
gentleman”, o que o permitia evitar que sua presença chamasse a atenção entre os
outros hóspedes. Às vezes, como no caso do Dr. Antônio, trabalhavam sozinhos, mas
segundo Reiss, era comum que integrassem bandos de dois ou três ladrões e, em
alguns casos, até pertenciam a vastas redes transnacionais.35 As mulheres ladras
constituíam uma porcentagem alta no universo dos ratos de hotel. Operavam nos
hotéis de luxo das grandes cidades, onde o fluxo constante de viajantes dificultava
reconhecer a todos. Registravam-se usando nomes falsos que aparentassem uma
linhagem aristocrática e ganhavam a confiança da recepção distribuindo gorjetas com
generosidade, embora nunca em excesso para não despertar suspeitas.36
35
Sobre um bando internacional de ladrões de hotéis dava notícia a revista portenha Sherlock Holmes:
“Una banda internacional de ladrones”, Sherlock Holmes, Año II, n. 62, Buenos Aires, 3 sep. 1912, p.
45-46.
36
Idem, p. 213-215.
37
Idem, p. 222-223.
38
Idem, p. 220. LOCARD, Edmond. Le Crime et les Criminels. Paris: La Renaissance du Livre, 1925.
p. 101.
296
Os ladrões que pertenciam a associações de rats d’hôtels faziam uso de
cúmplices que ingressavam nos hotéis como visitas ou como entregadores, entrando
em seu quarto com a desculpa de deixar alguma encomenda, quando na verdade o
faziam para sair com as joias roubadas. Inclusive, algumas investigações policiais
haviam demonstrado que essas quadrilhas conseguiam introduzir cúmplices como
funcionários dos hotéis de luxo, para facilitar os roubos aos hóspedes. Reiss
explicava uma série de medidas que podiam ser tomadas para melhorar a perseguição
aos singulares ladrões, mas advertia que o rato de hotel era um “malfeitor
internacional por excelência” e que para combatê-lo era imprescindível adotar
medidas de polícia transnacional. Assim, voltava à ideia de os policiais sul-
americanos criarem gabinetes de polícia internacional, sob o modelo da União Postal,
a fim de estabelecer formalmente a troca de informações sobre os ladrões viajantes.
A fórmula repetia-se: ante o fenômeno da criminalidade internacional, era preciso
criar uma polícia técnica e transnacional.39
39
REISS, Rudolph A. Manuel de Police Scientifique (Technique). Op. Cit., p. 227.
40
LOCARD, Edmond. Le Crime et les Criminels. Op. Cit., p. 100.
41
O’BRIEN, Charles. “Motion Picture Color and Pathé-Frères. The Aesthetic Consequences of
Industralization”. In: GAUDREAULT, André; DULAC, Nicolas; HIDALGO; Santiago (eds.). A
Companion to Early Cinema. West Sussex: Wiley-Blackwell, 2012, p. 298-313. Longas-metragens
estreados na América do Sul também difundiram essa figura delitiva. Por exemplo, o periódico O
Jornal anunciava a estreia de Grand Hotel! (1927), drama protagonizado pela estrela Mady
297
Fosse pela via da ficção ou pela própria intensificação da mobilidade delitiva, a
figura do rato de hotel chegou rapidamente à América do Sul. Em 1905, o Boletin de
Policía de Buenos Aires noticiava o caso de Juan Smith ou Schorat ou Zemet, um
alemão de quarenta e oito anos de idade que havia migrado à Argentina em 1887 e
acumulava uma dezena de prisões por furtos, destacando-se na especialidade da
“punga hoteleira”.42 O cronista enfatizava seu semblante refinado, seu cabelo e barba
loira, quase ruiva, que lhe davam um ar de pessoa rica. Por sua vez, a revista
reforçava esse relato com a inclusão de uma fotografia em que se o via vestindo um
fraque elegante, chapéu e gravata borboleta, numa imagem parecida à do célebre rato
de hotel carioca, Dr. Antônio.
“Juan Smith”. Fonte: Boletín de Policía, año I, n. 9, Buenos Aires, 30 ago. 1905, p. 19 (à esquerda).
“Dr. Antônio”. Fonte: Memórias de um rato de hotel (seg. ed.), p. 293 (à direita).
Christians, em cuja trama aparecia a figura de um rato de hotel. “Grande Hotel Boulevard, Um
romance cheio de emoção vivido por Mady Christians”, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 nov, 1929.
42
“Juan Smith o Schorat o Zemet. Un profesional distinguido huésped de nuestros principales
hoteles”, Boletín de Policía, Año I, n. 9, Buenos Aires, 30 ago.1905, p. 19.
298
Em 1908, o criminologista argentino Eusebio Gómez incluiu os “punguistas de
hotel” em sua classificação dos ladrões profissionais. Tratava-se de uma “classe
elevada, quase aristocrática, no mundo dos lunfardos”.43 No estudo de suas
características principais havia um dado importante para compreender a carreira
delitiva desses ladrões. Gómez considerava que a maior parte deles tinha começado
por crimes inferiores na escala da complexidade delitiva, como o de “burrista” e
“espiantador”.44 Subiam um degrau se convertendo em “escruchantes” e no final de
sua carreira já estavam em condições de se dedicar ao complicado ofício de rato de
hotel.45
Essa análise era próxima à leitura que João do Rio fazia da vida de Arthur
Antunes Maciel. O cronista anunciava o começo do final do grande rato de hotel
brasileiro, quando caiu preso em Juiz de Fora em meados de 1911. Não ocultava sua
tristeza por essa conquista policial, já que o Dr. Antônio lhe parecia o único ladrão
digno de fama em todo país. A carreira delitiva de Maciel havia se iniciado como
punguista, ofício em que demonstrou topete, calma e elegância, a ponto de se
converter num “sportman da caça de carteiras, verdadeiramente razoável”. Sua
última metamorfose, a que o transformou num rat d’hôtel (assim, em francês,
escrevia João do Rio), constituía o cume de sua carreira, sua performance mais
elevada, um trabalho de “superior refinamento”.46
Embora João do Rio escrevesse esse relato em 1911, assegurava que conhecia
Maciel havia uns anos, quando alguém lhe indicou sua presença na Rua do Ouvidor.
O fato de que a polícia carioca o perseguisse desde os primeiros anos do século XX
não era sugerido apenas nas notas de João do Rio e na história narrada nas Memórias
de um rato de hotel, mas também no livro de Vicente Reis sobre os ladrões cariocas
43
GÓMEZ, Eusebio. La Mala Vida en Buenos Aires. (Prólogo del Doctor José Ingenieros). Buenos
Aires: Juan Roldán, 1908, p. 85.
44
Segundo o dicionário de lunfardo de Villamayor, burrear era “apoderar-se do dinheiro que contém
uma caixa de balcão” das lojas, e o espiantador era o “profissional do delito que furta carros com
mercadorias”. VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo: vocabulario lunfardo. Buenos
Aires: Establecimiento Gráfico La Bonaerense, 1915, p. 43 y 71.
45
GÓMEZ, Eusebio. La Mala Vida en Buenos Aires. Op. Cit., p. 86.
46
RIO, João do. “O representativo do roubo inteligente”, A Notícia, Rio de Janeiro, 20 ago. 1911.
299
entre 1898 e 1903. Ao lado de uma reprodução litográfica do retrato de Maciel, o
delegado explicava a forma em que o Dr. Antônio desenvolvia seus roubos:
Esse relato apresentava os fatos numa versão muito parecida com a que Maciel
dava em suas memórias. Correspondia ao que ele – ou João do Rio – chamava o
“momento de apogeu” do Dr. Antônio, na primeira década do século XX. Ele tinha
carro próprio e se hospedava em três hotéis simultaneamente: Hotel dos Estrangeiros,
Hotel Vitória e Hotel Internacional. Havia chegado ao Rio de Janeiro em 1889, por
isso dizia-se que “o Dr. Antônio nasceu com a República”.48 Após uma série de
roubos em sua terra natal, Rio Grande do Sul, a autobiografia marca um
acontecimento que prefigurava toda sua trajetória posterior. Os membros de uma
quadrilha de ladrões internacional, com território de ação no Rio da Prata e no Brasil,
lhe propõem formar parte do grupo. Embora ele tivesse aceitado o convite num
primeiro momento, o impulso vital que o levou a escapar dessa quadrilha fugindo
para a capital federal era como um rito de passagem para o destino de rato de hotel:
trabalhar sozinho, sem empregar armas e afastado dos criminosos violentos que
menosprezava em seu relato.
O combustível que movia a vida de Dr. Antônio era o dinheiro. Não apenas
pela cobiça que o levava a roubar sem descanso nos hotéis, mas pelo uso que fazia do
produto de seus roubos. Maciel gastava suas fortunas rapidamente para conservar
47
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903, p. 68.
48
MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 61.
300
seus hábitos de bon-vivant e para manter suas sucessivas amantes, que enchia de
joias e outros luxos. Seus amores eram, quase sempre, abruptamente interrompidos
pelas prisões e pelos períodos de reclusão nas prisões. A perseguição da polícia
carioca o levou a fugir da capital em diferentes ocasiões. Viajou a Santos no vapor
Rio Pardo e daí de trem à São Paulo, de onde retornou ao Rio de Janeiro “cheio de
dinheiro”, mas não ficou lá; passou um tempo roubando nos hotéis de Petrópolis.
Outras detenções no Rio de Janeiro determinaram que escapasse para o nordeste,
com uma primeira viagem a Salvador, mas a polícia carioca soube de seu paradeiro e
mandou telegramas à Bahia. Mesmo que não descobrissem nenhum de seus roubos,
Dr. Antônio terminou preso e teve que voltar ao Rio, de onde seguiu imediatamente
para São Paulo.49
49
Idem, p. 199-202.
50
Idem, p. 206.
301
De nada serviram as artimanhas retóricas de Dr. Antônio. Mais uma vez, as
trocas entre as polícias mandaram-no para a cadeia. Cumpriu a pena e viajou a Porto
Alegre, mas também teve que fugir. Os destinos possíveis reduziam-se cada vez
mais: “eu era tão conhecido na polícia como qualquer funcionário ativo”; a capital e
as cidades de São Paulo e Salvador eram, para ele, “perfeitamente intransitáveis”.51
Por isso, decidiu se instalar em Recife durante um tempo, mas nunca parou: voltou a
São Paulo, ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais, até que foi detido em Juiz de Fora em
1911, por um erro de cálculo durante o que seria seu último roubo. Nas memórias
que desde dezembro deste ano a Gazeta de Notícias começou a publicar, apresenta-se
esse final, pelas reflexões em tom de testamento.
É difícil saber se havia sido realmente o primeiro, mas tinha razão quando
afirmava que agora havia muitos. A morte de Maciel e a publicação de suas
memórias significavam o ápice da fama do grande rato de hotel sul-americano. No
entanto, não era o fim desse tipo de criminoso viajante. Pelo contrário, os ladrões de
hotéis proliferaram nas primeiras décadas do século XX, afetando o cotidiano de um
mundo muito particular: os hotéis da Belle Époque, espaço europeizado por
51
Idem, p. 214.
52
Idem, p. 277.
53
Idem, p. 277-278.
302
excelência, que integrava os circuitos dos modernos bulevares, restaurantes e cafés;
esse universo das avenidas de Mayo e Callao em Buenos Aires, e das ruas Ouvidor e
Catete no Rio de Janeiro estava repleto de suspeitas delitivas.
54
MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Buenos Aires: Arnold Möen, 1901, p. 236-242.
55
GIL DE OTO, Manuel. La Argentina que yo he visto. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2010. p.
201. Sobre as disposições policiais que endureciam a vigilância sobre o trabalho dos “corredores de
hotel”, ver: ROSSI, José Gregorio. “Los corredores de hotel. Explotación de los pasajeros. Cómo se
les roba”, Revista de Policía, Año VIII, n. 169, Buenos Aires, 1 jun. 1904, p. 10-12.
56
Sobre os hotéis, o consumo e o turismo moderno no século XX, ver: URRY, John. “The
consumption of tourism”. In: Consuming Places. Nova Iorque: Routledge, 1995, p. 129-140. URRY,
John. “Culturas móviles”. In: ZUSMAN, Perla; LOIS, Carla; CASTRO; Hortensia (orgs.). Viajes y
geografías. Exploraciones, turismo y migraciones en la construcción de los lugares. Buenos Aires:
Prometeo, 2007, p. 17-29.
303
Durante as décadas de 1910 e 1920, a difusão destes ladrões no Rio de Janeiro
e em Buenos Aires foi um dado registrado pelos jornais e revistas da época. Em
junho de 1911, o Correio da Manhã noticiava uma nova façanha de um rato de hotel
que saqueou dinheiro e joias de um hóspede da Pensão Verdi na Rua do Catete. O
jornal ainda sentia a necessidade de explicar a expressão e sua procedência francesa:
“uma espécie de ladrões que os habitantes da cidade luz pitorescamente denominam
rato de hotel” e que demonstravam ser “tipos inteligentes, algumas vezes mesmo
cultos”. Esse ladrão de hotel, que apesar da data não era Dr. Antônio, tinha uma
fisionomia mais parecida com a de Juan Smith: “sujeito de maneiras delicadas, alto,
elegante, cabelo e barba ruivos, muito bem trajado”. Falava inglês, francês e alemão,
vestia um refinadíssimo fraque e, cada vez que pagava uma conta, sacava as notas de
uma “bela carteira de ouro da Rússia”. Ninguém no hotel teve suspeitas até descobrir
o roubo e sua repentina saída: parecia um cavalheiro, um “verdadeiro gentleman”.57
57
“Um rato de hotel suspende com 13.000$ e jóias pertencentes a um hospede da Pensão Verdi”,
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 jun. 1911.
58
“Rato de hotel. Um indivíduo intitulando-se engenheiro construtor consegue iludir uma senhora
roubando-lhe a importância de 600$000”, A Época, Rio de Janeiro, 21 nov. 1912.
59
“Um rato de hotel”, A Noite, Rio de Janeiro, 22 mar. 1913.
60
“Os ratos de hotel agindo. A polícia do 14ª distrito descobre uma quadrilha”, A Noite, Rio de
Janeiro, 1 mai. 1914. “Os ratos de hotel. O Gutierrez ainda está na moita!”, A Noite, Rio de Janeiro, 8
mai. 1914.
304
último roubo, no Hotel Fluminense, havia permitido à polícia prender o chefe dos
“ratoneiros emigrados” do Rio da Prata.61
Durante esta década, e em particular nos anos 1920, as notícias sobre ratos de
hotéis estavam cada vez mais centradas na presença de ladrões viajantes e bandos de
criminosos internacionais.62 “Contra os ladrões internacionais que operam nos
hotéis” era precisamente o título que a revista policial portenha elegia para difundir,
aos seus leitores, uma série de notas trocadas, em 1921, entre o chefe de polícia
Elpidio González e as autoridades da Associação Mútua de Proprietários de Hotéis,
Restaurantes, Confeitarias e Cafés de Buenos Aires. Os ladrões viajantes eram
qualificados pelo chefe como “sujeitos que além de se especializar em suas maldosas
artes, logo se encontram exercendo suas feitorias, nesta capital como no interior,
aparecem da noite para o dia em qualquer país vizinho”.63
Aqui, a temível figura do rato de hotel servia para aproximar posições entre o
grêmio dos hoteleiros e a polícia, que até então haviam mantido relações tensas. Os
registros de hóspedes baseados em documentação de identidade e passaportes parecia
a única solução possível ante a praga de rateiros internacionais. A comissão diretiva
do grêmio se reuniu em 22 de janeiro de 1921, aceitou por unanimidade a proposta e
pediu, em carta para a chefatura, que se ditasse um decreto policial regulamentando a
admissão de passageiros nos hotéis mediante apresentação obrigatória de
documentos de identidade.64
De fato, tudo parece indicar que as três primeiras décadas do século XX foram
a idade de ouro dos rats d’hôtel, e que possivelmente os controles hoteleiros
61
“Os ratos de hotel no Rio. Quadrilha chegada da Argentina”, O Paiz, Rio de Janeiro, 1 mai. 1914.
62
Ver “Um rato de hotel pronunciado”, A Noite, Rio de Janeiro, 5 fev. 1916. “Um rato de hotel”, O
Paiz, Rio de Janeiro, 24 set. 1919. “O colar da baronesa Schompré”, Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 25 abr. 1920. “Um perigoso scroc nas malhas da polícia”, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jan.
1923. “Rato de hotel”, O Imparcial, Rio de Janeiro, 19 mai. 1924. “Rato de hotel”, O Paiz, Rio de
Janeiro, 5 ago. 1925. “A ladroagem”, O Paiz, Rio de Janeiro, 21 mar. 1926. “Um rato de hotel. O
hospede do aposento 239”, O Paiz, Rio de Janeiro, 29 set. 1926. “Era um rato de hotel”, O Jornal, Rio
de Janeiro, 30 set. 1926. “Ficou sem as compras... Lesado em mais de dez contos de réis”, O Paiz, Rio
de Janeiro, 30 set. 1926.
63
“Contra los ladrones internacionales que operan en los hoteles”, Revista de Policía, Año XXIV, n.
544, Buenos Aires, 16 feb. 1921, p. 110-111.
64
Idem, p. 111. Ver também: “Ladrones de hoteles y simples rateros. Se han efectuado varias
capturas”, Gaceta Policial, Año I, n. 15, 11 dic. 1926, p. 6.
305
contribuíram para marcar seu declínio. Durante os anos 1920 na América do Sul, a
fama do ladrão de hotéis passou das páginas de notícias policiais à literatura, ao
teatro e ao cinema. A revista portenha Caras y Caretas publicou vários contos,
alguns deles traduzidos, a exemplo de “O mistério do Grande Hotel” e “Katie”,
ambientados em hotéis onde irrompia o enigma do rato desconhecido.65 Também
houve alguns relatos vernáculos, como o conto que o escritor Enrique Méndez
Calzada incluiu em seu livro Jesús a Buenos Aires (1922), onde narrava a história de
um rato de hotel de nacionalidade italiana.66
65
“El misterio del Gran Hotel”, Caras y Caretas, n. 1285, Buenos Aires, 19 may. 1923, p. 4-8.
“Katie”, Caras y Caretas, n. 1409, Buenos Aires, 3 oct. 1925, p. 6-9.
66
MÉNDEZ CALZADA, Enrique. Jesús en Buenos Aires. Buenos Aires: Cooperativa Ed. Limitada,
1922, p. 179-196.
67
SHIZUNO, Elena. A revista Vida Policial (1925-1927). Mistérios e dramas em contos e folhetins.
Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p. 99-113.
68
“Os ratos de hotel”, Revista Criminal, n. 18, Rio de Janeiro, Julho de 1928, p. 92. “O Dr. Junqueira
novamente em scena”, Revista Criminal, n. 18, Rio de Janeiro, Julho de 1928, p. 18. Sobre o Dr.
Junqueira ver também seu retrato: PEDREIRA, Rolando. Lições de Polícia Prática. Op. Cit., s/n.
69
“No Municipal. Souris d’ hôtel”, O Imparcial, Rio de Janeiro, 22 ago. 1920. “A Estação Dramática
Francesa no Municipal. Souris d’ hôtel”, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 ago. 1920.
306
Lisboa a obra O Rato de Hotel. Era uma peça em três atos, protagonizada pela estrela
Auzenda de Oliveira e apresentada no Teatro República, com excelentes críticas.70
Esses contos e representações teatrais eram também relatos sobre a vida urbana
em Paris, em Buenos Aires e no Rio de Janeiro. Tais cidades minadas de ratos de
hotéis reuniam as características de uma metrópole. Cidades onde despontava o
anonimato, eram um território de múltiplos nomes, todos duvidosos. Cidades dos
pseudônimos inventados para se escapar da polícia. Cidades das notas falsas. Cidades
de propostas indecentes. Cidades das simulações e das aparências que enganavam.
Cidades onde “o homem é aquilo que veste”, segundo dizia um velho ladrão carioca.
Cidades de mil rostos desconhecidos. Eram também cidades dos vigaristas.
70
“Teatros. A festa de Auzenda de Oliveira”, O Paiz, Rio de Janeiro, 11 ago. 1925. “Teatros. A récita
de Auzenda de Oliveira”, O Paiz, Rio de Janeiro, 18 ago. 1925. “Teatros. República. O rato de hotel”,
O Paiz, Rio de Janeiro, 20 ago. 1925.
71
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 61. REIS,
Vicente. Os ladrões no Rio. Op. Cit., p. 39.
72
MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 175-176.
307
Mais uma vez, outra fonte traz ao centro das atenções um homem de apelido
“Minga-Minga”. Seria este ladrão o mesmo que sob o nome de Ángel Artire aparecia
na galeria fotográfica portenha lá por 1887?73 Tratava-se, por acaso, do sujeito que
Vicente Reis indicava, por volta de 1903, como um dos estafadores que operavam no
Rio de Janeiro?74 Seria aquele que, no ano seguinte, Mello de Moraes Filho incluiu
numa lista de pseudônimos com centenas de membros do “exército dos
criminosos”?75 Não são poucos os indícios que permitem se aproximar de uma
resposta afirmativa.
Mesmo que seja difícil determinar com exatidão a data em que Dr. Antônio
conheceu Minga-Minga, sabemos que foi depois do verão de 1891 (período em que,
segundo sua autobiografia, passou um tempo em Petrópolis, previamente à sua
detenção na capital) e antes de 1894, quando Maciel empreendeu uma viagem à
Bahia, aparentemente posterior a sua liberação.76 Se tomarmos em conta alguns
dados do prontuário de Ángel Artire na polícia de Buenos Aires, resulta verossímil
que nesse tempo Minga-Minga estivesse preso no Brasil. Segundo a folha de
antecedentes penais reproduzida no álbum fotográfico de 1887, Artire havia nascido
na Itália, mas emigrou à Argentina quando jovem, aproximadamente com treze anos
de idade. Chegara em Buenos Aires no início da década de setenta e, em março de
1875, sofreria sua primeira detenção, numa delegacia seccional do centro da cidade.
Nos dez anos seguintes, ele computou outras vinte entradas registradas, nas quais se
percebe um aumento das prisões por roubo, muitas vezes com reclusão na
penitenciária, e certa diminuição das acusações por infrações menores (vadiagem,
desordem, furto).77
73
REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Tomo 1. Buenos
Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1887, p. 6-8.
74
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 140.
75
MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 343.
76
MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 103 e 203.
77
REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Op. Cit., p. 7-8.
308
punguista”, mas que ultimamente estava mais voltado ao trabalho de “estafador”.78
Essa era – recordemos – a especialidade que Vicente Reis atribuía a Minga-Minga
em sua taxonomia dos ladrões cariocas. Mas havia nessas linhas outras três questões
relevantes: em primeiro lugar, a polícia considerava Artire um sujeito “de maneiras
um tanto cultas”; segundo, ele havia se transformado num ladrão “conhecido
demais” dentro do mundo policial; por último, como consequência de sua má fama,
estava obrigado a passar longos períodos fora da Argentina, optando por viajar ao
Brasil e ao Uruguai.
78
Idem, p. 8.
79
ÁLVAREZ, José S. (Fray Mocho). Memorias de un vigilante. Buenos Aires: Vaccaro, 1920, p. 97.
Os termos em que o menciona – “Ángel Artire (á) Minga-Minga” – deixam pouco lugar a dúvidas
sobre ele ser ou não o mesmo personagem da galeria fotográfica de 1887.
309
Ángel Artire (a) Minga-Minga.
Fonte: Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1881, ficha 1.
310
Após a alusão em Memorias de un vigilante, o retrato de Minga-Minga
reaparece na “galeria de ladrões conhecidos” de 1904, também produzido pela
polícia portenha. No entanto, a nova fotografia havia sido tirada antes, em abril de
1891, durante os primeiros anos de funcionamento da Oficina Antropométrica e sob
os padrões da fotografia judiciária de Alphonse Bertillon.80 Se está fora de discussão
a notoriedade pública (ou ao menos policial) desse ladrão ítalo-portenho, por outro
lado a insistência sobre sua elegância, caráter culto e educado era ratificada pelo tom
da descrição fisionômica. Sua pele branca, seus olhos azuis, seu cabelo loiro curto e
seu bigode também loiro eram as características que, segundo Elysio de Carvalho,
completavam a estampa de um “moço bonito” e, por sua vez, sua distância dos
farrapentos ladrões de galinhas. 81
80
Sobre a incorporação da fotografia de frente e perfil na Oficina Antropométrica de Buenos Aires e
às “galerias de ladrões conhecidos” no início do século XX, ver: GARCÍA FERRARI, Mercedes.
Ladrones conocidos/sospechosos reservados. Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905.
Buenos Aires: Prometeo, 2010, p. 79-101.
81
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano
VII, n. 6, Rio de Janeiro, junho 1913, p. 146.
82
REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887. Op. Cit., p. 208-
209.
83
CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 32. VILLAMAYOR, Luis C. El
lenguaje el bajo fondo: vocabulario lunfardo. Buenos Aires: Establecimiento Gráfico La Bonaerense,
1915, p. 99.
311
[pobres]”.84 Duas décadas depois, Fray Mocho se referia aos escruchantes como
“indivíduos de avareza, homens habituados a todas as asperezas da vida”. Esses
sujeitos – explicava – “brotam das capas inferiores da sociedade e raras vezes
alcançam outras mais elevadas”, e terminavam se convertendo em “um trapo humano
a força de se consumir nos cárceres ou nos mais baixos níveis da corrupção”.85
84
LUGONES, Benigno B. “Los beduinos urbanos”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-
1984). Edición crítica y estudio preliminar de Diego Galeano. Buenos Aires: Biblioteca Nacional,
2012, p. 104.
85
ÁLVAREZ, José S. (Fray Mocho). Memorias de un vigilante. Buenos Aires: Vaccaro, 1920, p. 105.
86
REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Op. Cit., p. 33.
87
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 96.
312
Retrato de Minga-Minga
Fonte: Vicente Reis, Os ladrões no Rio (1903), p. 140.
88
“A Polícia Argentina”, Jornal do Commercio, 13 ago. 1899.
89
REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887. Op. Cit., p. 212.
313
luzia mais jovem, vestindo um elegante traje, o pequeno retrato litografado que
aparecia no livro de Reis mostrava-o, mais de uma década depois, algo envelhecido.
Retrato de Narigueta
Fonte: Vicente Reis, Os ladrões no Rio (1903), p. 141.
314
Outro dos estelionatários famosos mencionados por Reis era Afonso Coelho,
também conhecido como o “homem do cavalo branco” e “Rocambole brasileiro”, em
referências aos folhetins que os jornais cariocas dedicaram às suas histórias delitivas
em finais do século XIX e, em particular, a uma mítica fuga da justiça paulista, da
qual escapou em 1897 montado num cavalo branco. Além das séries folhetinescas
sobre a figura de Coelho, existem relatos de João do Rio, Orestes Barbosa, Lima
Barreto e até um poema de Olavo Bilac.90 No texto sobre “o representativo do roubo
inteligente”, João do Rio o descrevia como “um exemplo admirável de gatuno
literário”, ou seja, o gatuno que conquista a atenção da sociedade com suas aventuras
“como um romance folhetim”.91
90
Sobre a biografia de Afonso Coelho recentemente foi publicado um livro que, mesmo escrito em
estilo de romance, está baseado em fontes da imprensa e em processos judiciais do Arquivo Nacional.
Ver: PAIVA, Ely Carneiro de. O Homem do Cavalo Branco. Rio de Janeiro: Documenta Histórica,
2012.
91
RIO, João do. “O representativo do roubo inteligente”. Op. Cit. O autor, no entanto, desacreditava
na fama do Coelho real. Havia-o conhecido cinco anos antes na Casa de Detenção. De fato, numa das
crônicas carcerárias publicadas na Gazeta de Notícias em 1905 e compiladas em A alma encantadora
das ruas, João do Rio descrevia Coelho na prisão como um sujeito vulgar e grosseiro, que escrevia
umas “cartas fervorosas de regeneração”. RIO, João do. “As quatro idéias capitais dos presos” (1905).
In: A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das letras, 2008, p. 224.
92
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 97-106.
93
CARVALHO, Elysio de. A falsificação dos nossos valores circulantes. Biblioteca do Boletim
Policial – VII. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912.
315
Essas especialidades eram múltiplas, mas no universo dos falsários havia uma
divisão fundamental entre os “moedeiros falsos”, ou seja, os fabricantes ilegais de
dinheiro, e os “passadores de notas falsas”, que se encarregavam de comprar o
produto nas fábricas e o distribuir sub-repticiamente nas cidades. Nesta lucrativa
indústria, segundo explicava Carvalho, “os fabricantes nunca são emissores, jamais
aparecem em cena e residem no estrangeiro”. 94 Aparentemente, além da divisão do
trabalho, havia uma separação territorial do negócio da falsificação, e nesse mapa
Brasil ocupava um lugar particular:
94
Idem, p. 4.
95
Idem, p. 6.
96
Idem, p. 13-18.
316
A participação de Afonso Coelho nessas redes de falsificação espalhadas pelo
espaço atlântico sul-americano estava documentada também por algumas notícias da
imprensa. De acordo com uma crônica do jornal O Paiz, depois de haver cumprido o
período de confinamento durante o qual conheceu João do Rio na Casa de Detenção,
Coelho “andava fazendo alarde de sua reabilitação”. No entanto, a polícia e os
cronistas policiais suspeitavam do caráter espetacular de seu reestabelecimento
financeiro e do quão rápido havia adquirido nova fortuna. Descobriram que Coelho
fazia frequentes viagens a Buenos Aires e vinculavam este fato à recente
multiplicação de notas falsas de duzentos mil réis.97
97
“Ainda Afonso Coelho”, O Paiz, 13 mar. 1909.
98
MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 72.
317
Tinha mil modos de passar o conto. Se necessário era fazer-se
padre, o Cornélio arranjava uma batina, escanhoava-se, munia-se
de um par de óculos, e ei-lo reverendo. Na falta de um engenheiro
para um dado serviço, ele era chamado para representar esse papel.
Durante algum tempo foi comissário de higiene. Como tal operou
nos bairros elegantes da cidade. (...) O Dr. Cornélio, por último, se
fez advogado de porta de xadrez e chegou a ter uma grande
clientela. Nada mais curioso que ver o Dr. Cornélio nas pretorias,
nas delegacias ou na porta da Casa de Detenção, sobraçando uma
pasta, a requerer habeas corpus, solicitar audiências, etc. (...) O Dr.
Cornélio, como se vê, era de força. E basta dizer que acabou como
Vidocq, chefe do corpo de agentes da polícia do Amazonas,
quando chefe de polícia o Dr. Vicente Reis, ex-delegado no Rio.99
Em que consistia esta prática de “passar o conto do vigário”? Quem eram estes
sujeitos chamados “vigaristas”? Para começar, utilizemos mais uma vez o dicionário
de gírias de Elysio de Carvalho. Na entrada “conto do vigário” se lê uma definição
simples: “furto feito por meio de uma mentira artificiosa contada a um indivíduo
ingênuo”.100 A palavra “otário”, que como mencionamos era utilizada tanto na gíria
dos gatunos cariocas como no lunfardo portenho, aludia precisamente a essas vítimas
crédulas e incautas. Embora o arco semântico do termo fosse se ampliando, primeiro
às vitimas de qualquer tipo de roubo e depois às pessoas ingênuas em geral, seus
inícios estavam ligados às praticas do conto do vigário. Por isso, no dicionário de
Carvalho, a definição de otário era “homem de boa fé, ingênuo, tolo, que facilmente
cai no conto do vigário”. O mesmo acontecia com as locuções “fazer otário”
(“arranjar dinheiro cometendo o conto do vigário”) e “filar um otário” (“preparar um
indivíduo para vítima do conto do vigário”).101
99
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”. Op. Cit., p. 62.
100
CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 16.
101
Idem, p. 22, 23 e 33.
102
Idem, p. 16.
318
deste último – havia chegado ao Rio de Janeiro nas últimas décadas do século
XIX.103 Essa datação coincide com uma das primeiras notícias sobre os vigaristas
que circulou em Buenos Aires – um folhetim escrito em 1879 por Benigno Lugones
e publicado no jornal La Nación.104 Embora esse escritor não utilizasse ainda a
expressão “cuento del tío” (versão platense do conto do vigário), oferecia um relato
minucioso sobre alguns roteiros de trapaças que, no século XX, se popularizariam
através das letras do cancioneiro popular, do tango e, claro, da literatura policial.105
Lugones chamava os estelionatários de “cavalheiros da indústria”, um conceito que
na Espanha havia sido utilizado, ao menos desde inícios do século XIX, para
designar os vigaristas.106
103
MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 46. REIS, Vicente. Os
ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 111.
104
LUGONES, Benigno B. “Los caballeros de la industria”. In: Crónicas, folletines y otros escritos
(1879-1984). Op. Cit., p. 113-128. Em 1932, o escritor Félix Lima dava uma versão parecida sobre
suas origens, quando afirmava que o “conto do vigário” era um invento importado da Europa que
“atravessou o charco [o oceano atlântico] durante a presidência de Sarmiento, ao se intensificar a
imigração de italianos e espanhóis”. LIMA, Félix. “El cuento del tío también tiene su historia”, Caras
y Caretas, n. 1736, Buenos Aires, 9 ene. 1932, p. 81.
105
Para uma visão do tema em intervalos temporais mais amplos, ver a compilação: SCHNIRMAJER,
Ariela (ed.). ¡Arriba las manos! Crónicas de crímenes, “filo misho” y otros cuentos del tío. Buenos
Aires: Eterna Cadencia, 2010.
106
Veja, por exemplo: FORONDA, Valentín de. Cartas sobre la policía. Madrid: Imprenta del Cano,
1801, p. 115. Em seu livro sobre trapaças perpetradas em ambientes portuários, Herman Melville
empregava a locução “chevalier d’industrie” como sinônimo de vigarista. MELVILLE, Herman. The
confidence-man: his masquerade. Londres: Longman, 1857, p. 2.
319
cidades, os rostos dos vigaristas e os roteiros de seus contos terminavam se fazendo
conhecidos. Quando isso sucedia, era preciso migrar para outro lugar.107
De fato, em Buenos Aires, a versão mais conhecida do cuento del tío não
incluía a figura do vigário, nem apelava necessariamente para a piedade ou a
caridade cristã. O que movia o funcionamento do conto era o secular e profano
desejo de lucro.110 Desejo de lucro experimentado por quem? Grande parte dos
relatos sobre os vigaristas assinalam como vítimas privilegiadas os “recém-
chegados” à cidade, imigrantes estrangeiros provenientes de pequenos vilarejos da
Europa ou camponeses que se mudavam do interior para as metrópoles. Todos eles
comungavam um mesmo desconhecimento dos códigos, regras, cultura e linguagem
107
Os alcances territoriais dessa prática são até agora incertos, de acordo com escassas pesquisas que
existem sobre sua presença em outros países. Pablo Piccato analisou um caso de dois estelionatários,
um argentino e outro espanhol, que levaram seus “contos do vigário” à Cidade do México por volta de
1911. Talvez o mais interessante deste caso seja que quando a polícia os prendeu, encontrou no hotel
vários manuscritos que continham roteiros e instruções precisas para a dramatização do conto.
PICCATO, Pablo. “Guión para un engrupe: engaños y lunfardo en la ciudad de México”. In: Caimari,
Lila (comp.). La ley de los profanos. Delito, justicia y cultura en Buenos Aires (1870-1940). Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 135-172.
108
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 110-130.
109
MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 48.
110
Veja, por exemplo, as descrições que alguns criminologistas argentinos fizeram dos conteiros do
vigário baseados nas observações e diálogos com ladrões presos: GÓMEZ, Eusebio. La Mala Vida en
Buenos Aires. Op. Cit., p. 90-91. DELLEPIANE, Antonio. El idioma del delito. Contribución al
estudio de la psicología criminal. Buenos Aires: Arnoldo Moen, 1894, p. 116-122.
320
urbana. Segundo Benigno Lugones, uma das trapaças mais comuns em Buenos Aires
era a de fazer passar uma nota brasileira de quinhentos réis como se fosse quinhentos
pesos argentinos, quando na realidade o valor de cada uma dessas notas brasileiras
equivalia aproximadamente a seis pesos.
111
LUGONES, Benigno B. “Los caballeros de la industria”. In: Crónicas, folletines y otros escritos
(1879-1984). Op. Cit., p. 114-115.
112
SALDÍAS, José A. “Cuento del tío”. In: La inolvidable bohemia porteña. Buenos Aires: Ed.
Freeland, 1968.
113
Ver: Manual del inmigrante italiano. Traducción, selección y prólogo de Diego Armus. Buenos
Aires: Centro Editor de América Latina, 1983, p. 52-53. Outro relato de um imigrante italiano
vitimado por um cuentero del tío em Buenos Aires, com o conto do bilhete de loteria, aparece em uma
321
A opinião que Elysio de Carvalho tinha dos vigaristas não distanciava muito
deste olhar sobre a inocência das vítimas, embora pusesse o foco nos casos de
pessoas chegadas do interior do Brasil à capital: “o conto do vigário passado a
ingênuos capitalistas do interior é um fato da crônica diária”, escrevia Carvalho.114
No entanto, a própria revista onde publicava estas ideias, o Boletim Policial,
noticiava casos onde a interação entre o vigarista e sua vítima não parecia se ajustar à
ideia do trapaceiro avarento contra o inocente incauto.
O ardil aplicado com a ajuda do “paco” era parte do universo portenho dos
cuenteros del tío e também do cardápio de enredos dos vigaristas cariocas, embora o
conto em si não incluísse tios nem vigários. Sua existência tanto em Buenos Aires
como no Rio de janeiro era um dos muitos testemunhos da notável circulação desses
contos no espaço atlântico sul-americano. Os jornalistas e alguns policiais escritores
canção popular coletada em: NAVA, Juan de. El payador oriental con las nuevas inspiraciones de
Juan de Nava. Buenos Aires: s/d, 1898, p. 24-28.
114
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 61.
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio. Op. Cit., p. 60.
115
Segundo Carvalho, a palavra paco era outro dos empréstimos do lunfardo à gíria carioca:
“invólucro de papéis inservíveis simulando pacotes de dinheiro, de que se servem os gatunos para
passar o conto do vigário”. CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 35. A
definição do dicionário de lunfardo de Villanayor era quase uma reprodução textual do anterior:
“pequeno envoltório ou pacote que aparenta conter muita quantidade de dinheiro (...) com o que
operam os profissionais do delito de categoria cuenteros”. VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el
bajo fondo. Op. Cit., p. 104.
116
Ver “Relatórios. 4º Distrito Policial”, Boletim Policial, Ano II, n. 3, Rio de Janeiro, maio de 1908,
p. 134-135.
322
demostravam uma mesma atitude sobre a gíria dos ladrões e sobre os roteiros dos
vigaristas: era preciso difundir as palavras desconhecidas e revelar a trama recorrente
dos contos para que as vítimas potenciais pudessem se prevenir através da leitura e,
obviamente, através do efeito multiplicador das divulgações orais.
117
Sobre os efeitos da irrupção do dinheiro nas interações cotidianas, ver: SIMMEL, Georg. Filosofía
del dinero. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1977; e também: FRISBY, David. Paisajes urbanos
de la modernidad. Exploraciones críticas. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes/Prometeo, 2007,
p. 119-177.
118
LUGONES, Benigno B. “Los caballeros de la industria”. In: Crónicas, folletines y otros escritos
(1879-1984). Op. Cit., p. 122.
119
A presença desse conto em Buenos Aires, desde finais do século XIX, foi analisada por CAIMARI,
Lila. La ciudad y el crimen. Delito y vida cotidiana en Buenos Aires, 1880-1940. Buenos Aires:
Sudamericana, 2009, p. 80-84; e também por GALEANO, Diego. Escritores, detectives y archivistas.
La cultura policial en Buenos Aires, 1821-1910. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009, p.
102-104. Sua existência no Rio de Janeiro e São Paulo durante os anos 1930 e 1940 foi documentada
por: DIAS JUNIOR, José Augusto. Os contos e os vigários: uma história da trapaça no Brasil. São
Paulo: Leya, 2010, p. 144-151.
323
trun-trun – era esta máquina que, após introduzir os aparentados materiais para
produzir moedas, lançava libras esterlinas, que em realidade eram verdadeiras e
estavam depositadas na máquina de antemão.
324
No conto do filo misho, ou guitarra, o vigarista terminava por convencer seu
interlocutor sugerindo que poderia ficar com as libras esterlinas e tentar trocá-las em
um banco. Claro que, como as moedas eram autênticas, o enganado voltaria
acreditando na história e disposto a investir no negócio. Quando esse dinheiro
aparecia, o bando e sua engenhosa falsa máquina de falsificar moedas desapareciam.
Segundo concluía Benigno Lugones:
120
LUGONES, Benigno B. “Los caballeros de la industria”. In: Crónicas, folletines y otros escritos
(1879-1984). Op. Cit., p. 127.
121
BARRÉS, Manuel. “Filo Misho”. In: El hampa y sus secretos. Buenos Aires: Imprenta López,
1934, p. 139-141.
325
expulsão e, em particular, aos expulsos do Brasil por “delitos comuns”, segundo a
amostra de Lená Medeiros de Menezes.122 A maior parte dos vigaristas restantes era
do Rio da Prata, uruguaios, argentinos e, frequentemente, de nacionalidade vacilante
entre os dois países. Eram, também, pessoas do sexo masculino em sua esmagadora
maioria.
122
MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime
e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996, p. 127-150. Neste ponto, a
comparação com o trabalho de Lená Medeiro de Menezes tem algumas limitações, já que ela divide os
processos de expulsão de estrangeiros em três grandes grupos: em primeiro lugar, expulsos do
“mundo do trabalho” (anarquistas e comunistas); em segundo, expulsos do “mundo do crime” por
delitos vinculados à pobreza (aqui inclui os vigaristas, o que já é – em si mesmo – muito discutível); e
por último os “criminosos internacionais”, que segundo a autora eram quase exclusivamente cafetões.
No entanto, a mostra de quarenta vigaristas selecionados neste trabalho inclui casos de anarquistas
espanhóis acusados de passar o conto do vigário e outros aos quais a polícia combinava imputações de
estelionato e proxenetismo. Veja, por exemplo, os casos de Hugo Ottoni, argentino acusado pela
polícia paulista de cafetão, estafador e vendedor de drogas (AN, Fundo IJJ7 155) e do russo Isaac
Kuteck, apontado como vigarista e grevista (AN, Fundo IJJ7 157). Por isso, os 248 casos de “ladrões
comuns” selecionados por Medeiros de Menezes diluem os vigaristas num conjunto cuja delimitação
resulta problemática. Este tipo de intercalações complexas também se percebe nas expulsões de
estrangeiros decretadas na República Argentina. Ver: AGN, Archivo Intermedio, Fondo Ministerio del
Interior/Secretos, Confidenciales y Reservados, Caja n. 14. Policía de la Capital Federal, Nota al
Ministro del Interior solicitando decretos de expulsión de extranjeros, 2 fev. 1932. Prontuario n.
99.851, Sección Orden Social e Prontuario n. 65.131, Sección Robos y Hurtos, ambos pertencentes a
um anarquista que formava parte de uma quadrilha de “pistoleros”. Também: Policía de la Capital
Federal, Nota al Ministro del Interior solicitando decretos de expulsión de extranjeros, 31 may. 1935.
Prontuario n. 51.473, Sección Robos y Hurtos (“Blanco Varela”) e Prontuario n. 51.473, Sección
Robos y Hurtos (“El Brasilero”).
123
Segundo o trabalho de Medeiros de Menezes, 20,2% dos ladrões eram analfabetos, mas –
seguramente – se separássemos os vigaristas e outros delinquentes de perfil mais alto, a porcentagem
seria maior. MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis, Op. Cit. p. 144.
326
de um rico repertório de contos, entre os que estavam o filo misho, o paco e outros,
narrados por Vicente Reis como o “conto da barra”, a “cana falsa” ou o “conto do
bilhete de loteria”.124 Alguns desses vigaristas tinham uma longa experiência no uso
das tramas. Era o caso dos irmãos Rodrígues, portugueses, que partindo do Rio de
Janeiro haviam levado seus contos a São Paulo, Curitiba, Salvador e Recife.
Expulsos em 1928, apareciam na Revista Criminal como parte de um seleto grupo
dos oito vigaristas mais célebres do Brasil.125 Também era o caso de Alfredo dos
Santos, uruguaio, mencionado na revista policial carioca de 1920 já como um
conhecido vigarista e expulso em 1928, aos quarenta e nove anos de idade. 126
124
REIS, Vicente. Os ladrões no Rio. Op. Cit., p. 134-139.
125
“Ladroes vigaristas”, Revista Criminal, Ano II, n. 17, Rio de Janeiro, Junho 1928, p. 45. Veja o
processo de expulsão em AN, Fundo IJJ7 136 (1928) e o retrato de ambos reaparecem em:
PEDREIRA, Rolando. Lições de Polícia Prática. Op. Cit., s/n.
126
“Ladrões conhecidos”, Revista Policial, Ano I, n. 12, Rio e Janeiro, 31 mar. 1920, p. 17. AN,
Fundo IJJ7 127 (1928). Processo de expulsão de Alfredo dos Santos. Também aparecia em “Ladrões
vigaristas”, Revista Criminal, Ano II, n. 19, Rio de Janeiro, Agosto 1928, p. 36.
127
AN, Fundo IJJ7 131 (1907).
128
AN, Fundo IJJ7 164 (1927).
327
falsa máquina falsificadora mostra que a vítima tinha as mesmas expectativas que o
golpista: ambos jogavam o mesmo jogo da cobiça.
129
MENDES FRADIQUE. Contos do vigário. Rio de Janeiro: Soria & Boffoni Ed., 1922, p. 10.
130
SENNET, Richard. El declive del hombre público. Barcelona: Península, 2001, p. 113-150.
131
BARRÉS, Manuel. “Ladrón de hotel, de frac o levita, de valija y de abordo”. In: El hampa y sus
secretos. Op. Cit., p. 134.
132
MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 215.
328
Epílogo
1
VEBLEN, Thorstein. The Theory of the Leisure Class. New York: Mentor Book, 1912, p. 237.
2
KNEPPER, Paul. The Invention of International Crime. A Global Issue in the Making, 1881-1914.
London: Palgrave, 2010, p. 1.
3
DEFLEM, Mathieu. Policing World Society: Historical Foundations of International Police
Cooperation. New York: Oxford University Press, 2004, p. 111-140.
Em uma temporalidade de curta duração, as origens da Interpol remetiam a
uma série de encontros policiais celebrados na década de 1920: a própria
Conferência Sul-Americana de Buenos Aires, a International Police Conference de
Nova York (1922) e, finalmente, as reuniões de Viena que, em 1923, derivaram na
formação da International Criminal Police Comission. No entanto, alguns autores
reconheceram que este processo deve ser pensado a longo prazo, em uma linha de
discussões que se inicia com os congressos penitenciários e criminológicos do último
quarto do século XIX e culmina em 1914, pouco antes do começo da Primeira
Guerra Mundial, quando se realiza em Mônaco o primeiro Congresso Internacional
de Polícia Criminal.4 No mesmo sentido, os historiadores dos métodos de
identificação e documentação para o controle dos viajantes mostraram que os
dispositivos de vigilância da mobilidade territorial das pessoas, cuja máxima
sofisticação ficou plasmada nos aeroportos, também têm uma rica genealogia.5
4
BACH JENSEN, Richard. “The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the Origins of
Interpol”, Journal of Contemporary History, Vol. 16, n. 2, Apr. 1981, p. 223-347. ANDREAS, Peter;
NADELMAN, Ethan. Policing the Globe. Criminalization and Crime Control in International
Relations. Oxford/New York: Oxford University Press, 2008, p. 59-104. DEFLEM, Mathieu. Policing
World Society. Op. Cit., p. 97-110.
5
Ver, por exemplo: TORPEY, John. The Invention of the Passport. Surveillance, Citizenship, and the
State. Cambridge : Cambridge University Press, 2000. NOIRIEL, Gérard. “Les pratiques policières
d’identification des migrants et leurs enjeux pour l’histoire des relations de pouvoir. Contribution à
une réflexion en longue durée”. In: BLANC-CHALEARD Marie-Claude; DOUKI, Caroline;
DYONNET, Nicole; MILLIOT, Vincent (eds.). Police et migrants en France, 1667-1939. Rennes:
Presses Universitaires de Rennes, 2001, p. 115-132. ABOUT, Ilsen. “Portraits d’étrangers.
L’identification photographique des migrants en France (1870-1940)”. In: AMAR, Marianne;
POINSOT, Marie; WIHTOL DE WENDEN, Catherine (eds.). À chacun ses étrangers? France-
Allemagne de 1871 à aujourd’hui. Paris: Actes Sud/Cité Nationale de l’Histoire de l’Immigration,
2009, p. 119-121.
6
REISS, R.A. Polícia Técnica. Resumo das conferências realizadas em S. Paulo. Biblioteca do
Boletim Policial: IXI. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 41.
330
vucetichistas Félix Pacheco no Congresso Científico do Rio de Janeiro (1905) e Luis
Reyna Almandos no Congresso Americano de Buenos Aires (1910).7 O sonho de
uma polícia mundial estava longe de um terreno firme, mas, como sucedeu com as
conferências sul-americanas de 1905 e 1920, todos esses encontros conseguiram
traçar algumas rotas onde a circulação de informações, tecnologias e funcionários
policiais efetivamente se intensificaram.
7
PACHECO, Felix. “A excelência do sistema datiloscópico Vucetich e a criação dos gabinetes inter-
continentais”. In: TERCEIRO CONGRESSO SCIENTIFICO LATINO AMERICANO. A Polícia
Argentina e a Polícia Brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 17-45. REYNA
ALMANDOS, Luis. Unión Policial Universal. Sus bases. Tesis presentada a la Sección de Ciencias
Jurídicas, Congreso Científico Internacional Americano, Buenos Aires, 10 a 25 de Julio de 1910. La
Plata: Talleres gráficos Christmann & Crespo, 1910.
8
CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Rio
de Janeiro, Ano VII, n. 4, abril de 1913, p. 64.
9
LOCARD, Edmond. “Les services actuels d’identification et la fiche internationale”, Archives
d’Anthropologie Criminelle, n. 147, 1906, p. 145-146.
331
A tese da internacionalização do crime não significava que todos os criminosos
tivessem se tornado ladrões internacionais. O que estavam indicando era uma
tendência à multiplicação dos delitos que envolviam, em sua própria lógica, viagens
de um lugar a outro e cruzamentos de fronteiras. Além de se multiplicar, se
diversificavam: ao proxeneta e ao falsário, personagens centrais da criminalidade
viajante do século XIX, somavam-se agora as quadrilhas internacionais de pick-
pockets, os assaltantes de bancos, os ratos de hotel, os vigaristas e outras figuras que
irromperam com a força nas cidades sul-americanas da Belle Époque.10
10
Nesse sentido, a tipologia de criminosos viajantes sul-americanos desenvolvida na terceira parte da
tese relativiza outras leituras prévias, como a de Lená Medeiros de Menezes. Apesar de utilizar as
mesmas fontes no mesmo período, esta autora considera que no Rio de Janeiro “o crime internacional
limitava-se, praticamente, ao caftismo”. MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis:
desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de
Janeiro: Eduerj, 1996, p. 128.
11
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os “outsiders”. Sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
12
Em sua tese de doutorado sobre as notícias policiais no Rio de Janeiro das duas primeiras décadas
do século XX, Ana Vasconcelos Ottoni mostra a grande visibilidade desses criminosos viajantes, em
especial os provenientes do Rio da Prata, na imprensa. OTTONI, Ana Vasconcelos. O paraíso dos
ladrões: crime e criminosos nas reportagens policiais da imprensa. Tese de Doutorado em História
Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 185-198.
13
A noção de “desencaixe” tem sido problematizada pela teoria sociológica contemporânea, num
sentido que permite pensar estas defasagens entre o mundo criminal e o policial. Para Anthony
Giddens, por exemplo, o “desencaixe” (disembedding) consiste na separação de certas práticas sociais
a respeito de seus contextos locais e imediatos da interação, uma característica do processo de
modernização e tecnificação da vida social que desafia as estruturas tradicionais, e que
frequentemente se percebe como uma ameaça. GIDDENS, Anthony. The Consequences of Modernity.
Stanford: Stanford University Press, 1990, p. 20-25.
332
de policiamento do território, e também os saberes aplicados para controlar as
práticas ilegais nas cidades. Isto era o que percebiam policiais como o Comissário de
Investigações de Buenos Aires, José Gregorio Rossi, quando na conferência de 1905
comparava a perseguição policial dos criminosos viajantes com a impossível tarefa
de encontrar “um rastro na areia movediça”.14
14
ROSSI, José G. “La policía internacional”, Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 sep.
1905, p. 5.
15
“Saudades! El torneo científico policial”, Boletín de Policía, Año I, n. 14, Buenos Aires, 15 nov.
1905, p. 5.
16
Entrevista a Vucetich reproduzida em: CLARO, Juan A. Cooperación Policial de los Pueblos
Civilizados. Mar del Plata: Talleres Gráficos La Capital, 1923, p. 36.
17
“Adidos Policiais”, Revista de Polícia, Club dos Oficiais da Polícia Militar, Ano I, n. 2, fev. 1926,
p. 33.
333
Arroxellas Galvão, a delinquência estava internacionalizada, mas a polícia
internacional brilhava pela ausência:
18
Idem, p. 33-34.
19
SODERMAN, Harry. Cuarenta años de policía internacional. Barcelona: Luis de Caralt, 1963, p.
228.
20
Idem, p. 225.
334
confundida, os autorizava a revisar seus pertences, os ladrões aproveitavam para
roubar as joias que supostamente haviam sido furtadas antes.21 Esse “aqueles” do
título era uma referência nostálgica a certos criminosos espertos e requintados,
perdidos em um passado brumoso. No entanto, muitos relatos dos anos trinta
mostram que, apesar da nostalgia de Mejías, os vigaristas viajantes seguiriam
existindo. Que coisa levou então ao velho delegado se despedir “daqueles lunfardos
internacionais”? Nesta parábola do ladrão travestido de policial com a desculpa de
impedir um roubo que termina cometendo, mais uma vez, a ficção não estava tão
longe da realidade, nem a realidade da ficção.
21
MEJÍAS, Laurentino. “Aquellos solitarios lunfardos internacionales”, Magazine Policial, Año 5, n.
50, Buenos Aires, sep. 1926, p. 9-10.
22
AN, IJJ7 140. Expulsões de Vittorio Parrochetti y Jorge M. Wilkes (1911). Decreto de Expulsão,
Rio de Janeiro, 30 nov. 1911.
23
Idem, Relatório da Inspetoria de Investigações e Segurança Pública. Auto de declarações, p. 9.
335
pudesse efetuar um saque no Banco Frances ou no Italiano, que nesse dia se
encontravam fechados.24 Junto a este bilhete, no relatório, aparece a suposta carta de
recomendação firmada pelo chefe da polícia de Buenos Aires:
24
Idem, Carta ao Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, 5 nov. 1911, p. 13.
25
Idem, p. 16.
26
Idem, Carta ao Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, 7 nov. 1911, p. 17.
336
Adjunto a la carta de fecha 7 Noviembre 1917, pidiendo:
a) Fundar una policía secreta y privada, estando en el mismo
tiempo a disposición de esta Policía, por solo sentimientos de
hospitalidad, en todo lo que fuera útil mi concurso.
b) Que esta policía especial pueda tener aquellos privilegios
necesarios e indispensables a la investigación de cualquier clase
de asuntos.
c) Que la Policía de esta Capital Federal me prestase la suma
necesaria para implantar esta Agencia, restituible en sus pagarés
a plazo de dos meses cada uno.
Obligándome:
a) Al subordinamiento completo relativo a cualquier deber de
Policía.
b) A la vigilancia y seguridad de las leyes íntimas de esta
República.
c) A la solución gratuitamente de cualquier asunto dado por la
Policía Oficial de esta ciudad.
d) A la permanente residencia en esta Capital.
Vittorio Parrochetti.27
27
Idem, p. 19.
28
Idem, Telegrama da “Polícia Capital Bayres”, 10 nov. 1911, p. 21.
29
Idem, Carta ao Exmo. Sr. Dr. Belisário Fernandes Tavorda, 11 nov. 1911, p. 20.
337
O próprio Elysio de Carvalho, chefe do Gabinete de Identificação, firmou uma
declaração, dirigida a Eurico Cruz, assegurando que os indivíduos não tinham
antecedentes no arquivo datiloscópico, e Cruz elevou o relatório ao governo
sugerindo aplicar a lei de expulsão de estrangeiros, como finalmente sucedeu. O caso
dos falsos detetives atravessa quase todos os eixos desenvolvidos nesta tese: eram
vigaristas, ladrões elegantes, se hospedaram em um hotel de luxo e buscavam fazer
dinheiro fácil, usando mais inteligência que violência. A resposta das autoridades
também mostra os percursos da circulação policial de papeis e tecnologias:
telegramas, cartas e fichas de identificação formavam parte da documentação
compilada no processo. Parrochetti e Wilkes não eram detetives, mas criminosos
viajantes, porém não se misturavam com os gatunos dos submundos delitivos.
Pertenciam a outra classe. Eram, precisamente, “aqueles solitários lunfardos
internacionais”.
Considerações finais
30
Ver, por exemplo: GUIMARAES, Alberto Passos. As classes perigosas. Bandidismo urbano e rural.
Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008 [1ª Ed. 1982]. CORRÊA, Marisa. Os crimes da paixão. São
Paulo: Brasiliense, 1982. FAUSTO, Boris. Crime a cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-
1924). São Paulo: Edusp, 2001 [1ª Ed. 1984]. VEZZETTI, Hugo. La locura en la Argentina. Buenos
Aires, Paidós, 1985.
338
Este trabalho se baseou em fontes similares (documentação policial, imprensa,
discursos científicos), mas envolveu biografias bem diferentes, porque partiu de
outras perguntas. Os criminosos viajantes não formavam parte dos setores populares,
nem tampouco da alta sociedade, embora compartilhassem com ela muito de seus
hábitos, entretenimentos e luxos. Eram, como dizia Dr. Antônio, um efeito não
desejado da burguesia, o espelho criminal no qual o novo rico podia ver-se refletido.
As cenas dos ratos de hotel mostravam a consternação frente um dado
desconcertante: todos os hóspedes, até o mais requintado, podiam ser o ladrão,
porque a aparência e os modos já não garantiam nada. Para os escritores que
desprezavam tanto os ladrões como a burguesia local, havia uma continuidade em
ambos, porque estavam intimamente conectados pelo fio do desejo de lucro e da
cobiça. “O vigarista nada tem a ver com o advogado”, ironizava Ezequiel Martínez
Estrada, “mas como tipos extremos de uma série, estão mais em linha filogenética
que o mecânico e o peão do forno de tijolos”.31
Esse mundo dos bons, dentro do qual os policiais pretendiam se colocar como
integrantes e protetores, estava conformado por ricos, pobres e não tão pobres. Era o
31
MARTÍNEZ ESTRADA, Ezequiel. Radiografía de la Pampa. Buenos Aires: Losada, 1953, p. 367.
32
Sobre este tema ver: LAWRENCE, Paul. “Images of Poverty and Crime. Police Memoirs in
England and France at the end of the nineteenth Century”, Crime, Histoires & Sociétés/ Crime,
History & Society, vol. 4, n. 1, 2000, p. 63-82. E também: CAIMARI, Lila. Mientras la ciudad
duerme. Pistoleros, policías y periodistas en Buenos Aires, 1920-1945. Buenos Aires: Siglo XXI,
2012, p. 187-212.
339
mundo dos estabelecidos, os que tinham família e redes afetivas. Por isso, a
condenação ao criminoso viajante punha o acento no caráter imoral de seu estilo de
vida: carecia de “animus de residência”, não tinha lar, nem pátria, como dizia um dos
delegados brasileiros na conferência sul-americana de 1920.33 Esta afirmação valia
para os proxenetas, os anarquistas e os gatunos internacionais, que segundo o olhar
dos policiais eram meras variantes dentro de um mesmo universo. A distinção entre
os “estabelecidos” e os “estranhos” era ainda muito mais poderosa que aquela outra
que separava os “delinquentes comuns” dos “delinquentes políticos”.34 Sujeitos
nômades como os ratos de hotel, os vigaristas e inclusive os agitadores políticos,
eram vistos como “estrangeiros” nem tanto pelo seu lugar de nascimento (que, como
vimos nos processos de expulsão, muitas vezes era incerto), mas por seu pouco
apego às identidades nacionais que se estavam construindo.
33
“A expulsão de estrangeiros”, Revista Policial, Ano 1, n. 2, Rio de Janeiro, 30 out. 1919, p. 15.
34
Simmel dedicou um ensaio à figura do estranho e sua função estruturante em relação à coesão
dentro de um espaço social. Para este autor, a ideia do “estrangeiro” como alteridade está diretamente
articulada com o mecanismo identitário de constituição de um “nós”. SIMMEL, Georg. “El
extranjero”, en Sobre la individualidad y las formas sociales. Buenos Aires: Universidad Nacional de
Quilmes, 2002, p. 211-217.
340
modus operandi baseava-se em destrezas manuais; por outro, ladrões aristocratas
como os ratos de hotel e alguns passadores de conto do vigário, atividades onde o
central era a aparência física e as habilidades retóricas.
O fato de roubar se movendo de um país a outro era causa necessária mas não
suficiente para a definição dos criminosos viajantes. Além disso, os policiais
marcavam outros elementos que os caracterizavam: eram parte do mundo da
“delinquência” profissional” e isso significava que existia uma certa divisão do
trabalho, com especialidades e regras do ofício, com uma gíria particular (a “gíria
ladra” e o “lunfardo”), e inclusive com instrumentos específicos – artefatos materiais
– construídos para o aperfeiçoamento do roubo. Por outro lado, o uso sistemático de
múltiplas inovações tecnológicas (entre as que estavam, desde já, os avanços nos
transportes e na telecomunicação), era um dos eixos da tão denunciada defasagem
com o mundo policial.35
35
Sobre o uso de tecnologias no campo do crime internacional, ver: DEFLEM, Mathieu. “Technology
and the internationalization of policing: a comparative- historical perspective”, Justice Quarterly, vol.
19, n. 3, sept. 2002, p.453-475. BELL, David. “Technologies of Speed, Technologies of Crime”, Yale
French Studies, n. 108, 2005, p. 8-19. KNEPPER, Paul. The Invention of International Crime. A
Global Issue in the Making, 1881-1914. Basingstoke: Palgrave/Macmillan, 2009, p. 12-42.
341
internacionais que registram as datas mais caras a cada povo, não
lhes escapando também nenhuma das grandes solenidades
intercorrentes, afluem em massa para a capital em festa, e a polícia
local, que os desconhece, não lhe pode legalmente tolher a
entrada.36
36
“Adidos Policiais”, Revista de Polícia, Club dos Oficiais da Polícia Militar, Ano I, n. 2, fev. 1926,
p. 33-34.
37
“Conto do vigário”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 ago. 1899, p. 1.
38
PESSOA, Fernando. Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática, 1966, p. 420.
342
Nos anos da Belle Époque, os policiais de Argentina e Brasil tinham uma
percepção muito clara da centralidade dessas rotas. Em sua visita ao Rio de Janeiro
junto a Roca, Beazley havia desenvolvido uma teoria sobre a interconexão das
cidades que, por suas características demográficas e culturais, eram os nós principais
desta extensa rede. Essa teoria considerava que qualquer cidade que se atrasasse em
seus mecanismos de vigilância e repressão do delito, convertia-se no novo destino
preferido pelos fluxos de ladrões viajantes. A modernização técnica da polícia era
então um elemento dissuasivo, como explicava o responsável de traduzir o sistema
antropométrico para a polícia de Santiago de Chile: os países que incorporassem esta
inovação – argumentava – iam ver que seus criminosos “não teriam outra opção que
escapar aos países selvagens e incivilizados”.39
Mas importar e traduzir tecnologias europeias não foi a única solução, nem a
principal. Nos inícios do século XX, a cooperação policial sul-americana se
converteu na principal aposta para o combate dos criminosos viajantes. Além das
fronteiras nacionais, e inclusive de alguns conflitos de jurisdição que se fizeram
presentes nesses anos, havia um território em comum que era preciso defender.
Enquanto os países europeus entravam e saiam de guerras, América do Sul devia
tomar a iniciativa de internacionalizar a ação das polícias. Os convênios de
extradição, e os mecanismos diplomáticos que envolviam, era uma ferramenta muito
débil e, fundamentalmente, lenta, para as capacidades cinéticas e tecnológicas dos
novos delinquentes profissionais. A cooperação policial devia se basear em acordos,
convênios e pactos muitos mais ágeis, menos burocráticos e mais silenciosos, como
explicava um vigilante portenho em 1913:
39
BARROS OVALLE, Pedro. Manual de antropometría criminal y general. Santiago de Chile:
Imprenta de Enrique Blanchard-Chessi, 1900, p. 123.
343
caráter, antes que sua extradição seja solicitada por via diplomática.
Enquanto se procuram os processos, o malfeitor tem tempo de fugir, e os
convênios policiais se antecipam às fórmulas legais para assegurar a ação
da autoridade pública.40
40
ALBERT, Luis J. Historia de la policía. Buenos Aires: Otero, 1913, p. 75-76.
41
As polícias federais da Argentina e Brasil se criaram ambas em 1944. Ver: FENTANES, Enrique.
Compendio de Ciencia de la Policía. Buenos Aires: Editorial Policial, 1979. REZNIK, Luís.
Democracia e Segurança Nacional. A Polícia Política no pós-guerra. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2004.
344
respondia. “O tema passou de moda. Queixar-se do esquecimento em que a Europa
tem a nossa América é um costume muito feio. É costume infantil”.42
42
SOIZA REILLY, Juan José de. “Los sudamericanos” (1911). In: Crónicas del Centenario. Buenos
Aires: Biblioteca Nacional, 2008, p. 145.
345
Fontes e bibliografia
1. Fontes manuscritas
347
Magazine policial. Publicación mensual. Buenos Aires, 1922-1927.
O Jornal. Rio de Janeiro, 1920-1929.
O Paiz. Rio de Janeiro, 1899-1900.
Revista Criminal. Rio de Janeiro, 1927-1928.
Revista de Criminología, Psiquiatría y Medicina Legal. Órgano del Instituto de
Criminología de la Penitenciaría Nacional. Buenos Aires, 1913-1930.
Revista de la Policía de la Capital. Buenos Aires, 1888-1889.
Revista de Policía. Periódico quincenal. Buenos Aires, 1897-1930.
Revista de Polícia. Rio de Janeiro, Club dos Oficiais da Polícia Militar, 1926-1928.
Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brazileiros. Rio de Janeiro, 1907.
Revista Policial. Rio de Janeiro, 1903-1904.
Revista Policial. Publicação Quinzenal. Rio de Janeiro, 1919-1920
Sherlock Holmes. Buenos Aires, 1912-1913.
Vida Policial. Órgão de defesa e educação social. Rio de Janeiro, 1925-1927.
2.2 RELATÓRIOS
348
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presupuesto de gastos para 1895, por el Jefe General Don Manuel J. Campos.
Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1894.
República Argentina, Policía de la Capital. Memoria del año 1894-1895 y
presupuesto de gastos para 1896, por el Jefe General Don Manuel J. Campos.
Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1895.
República Argentina. Memoria de la Policía de Buenos Aires, 1906 a 1909. Jefatura
del Coronel Ramón L. Falcón. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la
Policía, 1909.
República Argentina. Memoria de la Policía de la Capital, 1911-1912. Jefatura del
General Ingeniero Luis J. Dellepiane. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de
la Policía, 1912.
República Argentina. Memoria de la Policía de la Capital, 1913-1914. Proyecto de
Presupuesto para 1915. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía,
1914.
República Argentina. Memoria de la Policía de la Capital, 1915-1916. Buenos
Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1916.
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos
estadísticos correspondientes al año 1919. Jefatura del Doctor Elpidio González.
Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1920.
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes, datos
estadísticos y crónica de actos públicos correspondientes al año 1920. Jefatura del
Doctor Elpidio González. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía,
1921.
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos
estadísticos correspondientes al año 1921. Jefatura del Doctor Elpidio González.
Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1922.
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos
estadísticos correspondientes al año 1922. Buenos Aires: Imprenta y
Encuadernación de la Policía, 1923.
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos
estadísticos correspondientes al año 1923. Buenos Aires: Imprenta y
Encuadernación de la Policía, 1924.
349
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes, datos
estadísticos y crónica de actos públicos correspondientes al año 1924. Buenos
Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1925.
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos
estadísticos correspondientes al año 1925. Buenos Aires: Imprenta y
Encuadernación de la Policía, 1926.
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria correspondiente al año
1926. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1927.
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria correspondiente al año
1927. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1928.
República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos
estadísticos correspondientes al año 1928. Buenos Aires: Imprenta y
Encuadernación de la Policía, 1929.
Secretaria dos Negócios da Justiça do Estado de São Paulo. Relatório apresentado
ao Sr. Dr. Vice-Presidente do Estado de São Paulo, pelo Secretario dos Negócios da
Justiça, Manoel Pessoa de Siqueira Campos, a 7 de abril de 1892. São Paulo,
Typografia Edelbrock & Moreira, 1892.
Secretaria dos Negócios da Justiça do Estado de São Paulo. Relatório apresentado
ao Presidente do Estado pelo Secretario Interino dos Negócios da Justiça de São
Paulo, João Alvares Rubião Junior, em 31 de dezembro de 1894. São Paulo, Typ. A
Vapor de Espindola, Siqueira & C., 1895.
Secretaria dos Negócios da Justiça e da Segurança Pública. Relatório apresentado ao
Dr. Jorge Tibiricá, presidente do Estado, pelo Secretario da Justiça e da Segurança
Púbica, Washington Luis P. de Sousa, anno de 1906. São Paulo, Typografia Brasil
de Rothschild & Comp., 1907.
Secretaria dos Negócios da Justiça e da Segurança Pública. Relatório apresentado ao
Dr. Jorge Tibiricá, presidente do Estado, pelo Secretario da Justiça e da Segurança
Púbica, Washington Luis P. de Sousa, anno de 1907. São Paulo, Typografia Brasil
de Rothschild & Comp., 1907.
Secretaria dos Negócios da Justiça e da Segurança Pública. Relatório apresentado ao
Dr. M.J. de Albuquerque Lins, presidente do Estado, pelo Secretario da Justiça e da
Segurança Púbica, Washington Luis P. de Sousa, anno de 1908. São Paulo,
Typografia Brasil de Rothschild & Comp., 1908.
350
2.3 OUTRAS PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS
Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, promulgado pelo decreto n. 847 de 11
de outubro de 1890. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891.
Las Siete Partidas del Sabio Rey D. Alfonso el X. Tomo IV. Barcelona: Imprenta de
Antonio Bergnes, 1844.
351
POLICÍA DE LA CAPITAL FEDERAL. La Policía de Investigaciones. Su misión,
organización y funcionamiento. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la
Policía, 1914
AMARAL, Luiz. A mais linda viagem. Um “raid” de vinte mil kilómetros pelo
interior brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1927.
ARÓZTEGUI, Manuel. El apache argentino. Buenos Aires: Juan S. Baleiro, s/d.
352
BALLVÉ, Antonio. Manual de instrucción policial para sargentos, cabos y
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1898.
BARRÉS, Manuel. El hampa y sus secretos. Buenos Aires: Imprenta López, 1934
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Jornalista. Crônicas. Vol. I. São Paulo: Edusp/Unicamp, 2006.
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Cia., 1917.
353
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CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Rio de
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354
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GÓMEZ, Eusebio. La Mala Vida en Buenos Aires. (Prólogo del Doctor José
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355
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NAVA, Juan de. El payador oriental con las nuevas inspiraciones de Juan de Nava.
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QUESADA, Ernesto. Dos novelas sociológicas. Buenos Aires: Jacobo Peuser, 1892.
358
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