Sei sulla pagina 1di 9

O que acontece com os Estados Unidos?

Pela primeira vez o país inspira no resto do planeta, mais medo que admiração. Mais raiva que simpatia.
Uma investigação dos valores e dos ideais americanos - e de como o discurso e a ação de Washington
evoluíram ao longo dos anos – ajuda a entender o que está acontecendo. E o que virá

Quando John Winthrop, um advogado do interior da Inglaterra, ia visitar Londres, ficava chocado com a
degradação moral da capital. Era o começo do século 17 e o país se consolidava como o mais poderoso do
mundo, sede de um império global, cada vez mais cosmopolita e urbano. Winthrop era adepto do puritanismo,
uma corrente religiosa que interpretava a Bíblia ao pé da letra e queria reformar tudo, a começar pelo
Anglicanismo. Tal objetivo era considerado subversivo pela coroa Britânica – o Anglicanismo era a religião
oficial do estado – e por isso muitos puritanos eram presos e mortos.
Em 1630, a perseguição convenceu Winthrop a aceitar a oferta de rei da Inglaterra, Carlos I, e fugir para
uma periferia quase desocupada do Império Britânico: a América. O advogado fundou lá uma colônia. Num
sermão, usando uma imagem bíblica, Winthrop disse aos colonos que eles estavam erguendo uma “cidade na
montanha” para o mundo ver. Se aquele experimento de governo pelos escolhidos de Deus funcionasse, sua luz
iluminaria o mundo.
Naquela manhã, na beira da baía de Massachusetts, nascia uma identidade nacional: a de um país puro,
sem a ferrugem corrupta da Europa, sem seus reis infiéis e injustos e, não menos importante, com a proteção de
Deus. Um país com uma missão: a de inspirar o mundo todo a essa pureza.

Poderoso e isolado

Os Estados Unidos mudaram muito de lá para cá. Mas poucos discutem que uma coisa permaneceu: o
espírito missionário, de país escolhido, destinado a servir de modelo. Temos muito o que agradecer por isso.
Esse espírito espalhou a democracia pela terra. Não fosse ele, as conquistas suadas de grupos minoritários e
oprimidos dos Estados Unidos – as mulheres, os negros, os homossexuais, para ficar em três exemplos – jamais
teriam ganhado o mundo.
Esse senso de missão se manifestou com força nos últimos dois anos, desde que um terrível atentado
terrorista em Nova York e Washington levou o presidente americano George W. Bush a declarar guerra contra o
terrorismo mundial e reivindicar para o seu país a responsabilidade e o direito de consertar a terra para torná-la
segura. Até aí, novidade nenhuma. Faz mais de meio século que os Estados Unidos lideram o mundo na luta
contra as ameaças à civilização. Nazismo, comunismo, narcotráfico, muda só o inimigo.
Mas parece haver uma diferença. Óbvio que, como toda guerra, a do Iraque provocou protestos. Acontece
que esses foram bem maiores do que o normal, somando aos pacifistas de sempre a comunidade econômica
internacional e gente que pode ser acusada de tudo, menos de ingenuidade. Até mesmo diplomatas americanos,
sempre tão orgulhosos, fizeram duras críticas à política de Bush. Amigos históricos, como a França, ou de
ocasião, como a Alemanha e a Rússia, se colocaram no lado oposto. A opinião pública global reprovou a ação
do Golfo Pérsico. O único país, além do Estados Unidos, onde as pesquisas mostraram uma maioria pró-guerra
foi Israel. Publicações liberais, historicamente simpáticas aos Estados Unidos, como a revista Britânica The
Economist, atacaram duramente Bush. A semanal americana Newsweek publicou uma extensa reportagem de
capa intitulada “O império arrogante”.
Espalhou-se a crença de que a nova guerra de Bush, embora justa, é impossível de ser vencida – não se
extermina o terrorismo com bombas que eventualmente atingem civis, muito pelo contrário – e que portanto é
só um pretexto para continuar guerreando, indefinidamente. É lógico que a oposição à política de Bush não é
uma unanimidade. Há especialistas no mundo todo que defendem o terror sem tréguas e de desestabilizar
governos que, como o de Saddam Hussein, não jogue pelas regras do jogo. O ex-secretário de estado americano
e especialista em política externa Henry Kissinger, por exemplo, foi enfático ao escrever que, enquanto Saddam
estivesse no governo, “o Iraque não poderia participar de nenhum esforço pelo equilíbrio na região. Fraco
demais para balancear o Irã, forte demais para a segurança dos pequenos vizinhos no golfo, hostil demais aos
Estados Unidos, o país seria sempre uma ameaça”. Ou seja, para Kissinger, faz sentido a argumentação de Bush
de que o Iraque é um risco a segurança nacional e à dos Estados Unidos. Acontece que hoje essa opinião é
minoritária, ainda mais fora da América do norte.
E isso num planeta onde os Estados Unidos são a superpotência indiscutível (veja nas tabelas ao longo da
matéria os números que atestam isso), da qual todas as nações dependem, cujo gasto militar acabou de
ultrapassar o de todos os outros 191 países somados. O que está acontecendo? Os Estados Unidos perderam o
encanto? Os valores americanos deixaram de fazer sentido? Ou eles continuam os mesmos e é o mundo que
ficou para trás? Algumas idéias e fatos históricos talvez ajudem a encontrar respostas.

De exemplo à imposição

Quando formulou a idéia da “cidade na montanha”, Winthrop criou um conceito: o de que os Estados
Unidos deveriam construir uma nação perfeita e, assim, conquistar o mundo pelo exemplo. Esse espírito
continuou vivo nos séculos que se seguiram. Há inúmeras provas disso. Por exemplo, a retórica revolucionária
da década de 1770, época da independência americana, “pelos direitos inalienáveis de toda a humanidade”.
Mas essa retórica sofreu uma mudança no final do século 19. Surgiu uma nova idéia. Na medida em que
os Estados Unidos se consolidavam como uma potência econômica e em que seus interesses se estendiam para
além das fronteiras, alguns americanos foram notando que havia povos que simplesmente não conseguiam
perceber a óbvia superioridade de sua democracia. Esses americanos começaram a ficar insatisfeitos com a
postura de “cidade na montanha” - era preciso fazer algo mais, inclusive para proteger o negócio dos
conterrâneos ao redor do mundo. Era preciso ensinar essa lição a todos. Por bem ou por mal.
A humanidade estava sobre forte influência das teorias de Charles Darwin e, nesse clima, um certo John
Fiske formulou em 1885 a hoje infame teoria do “destino manifesto”, uma versão social da teoria da evolução,
carregada de racismo. Fiske falava da inevitabilidade da expansão americana, dada a mistura rara entre a
superioridade racial anglo-saxônica e a aptidão política americana. Apropriações indevidas das teorias de
Darwin deram origem a crenças parecidas em várias partes do mundo, inclusive na Alemanha – o que viria a
desembocar no nazismo.
Nascia com Fiske uma outra corrente de pensamento, que foi se tornado cada vez mais respeitável e
depois atraiu pensadores bem mais sérios. O historiador americano H.W. Brands, da universidade do Texas,
batizou-a de “vindicatismo”, ou seja, a crença de que cabe aos Estados Unidos a obrigação de impor à força
seus valores ao mundo. Brands opõe o vindicatismo ao “exemplarismo”, a corrente de pensamento nascida com
Winthorp pela qual os ideais americanos se imporiam pela simples observação.
A tese de Brands, exposta no ótimo livro What América Owes the World (“O que os Estados Unidos
devem ao mundo”, sem versão em português.), é que todo o pensamento americano sobre política externa pode
ser encaixado em uma ou outra corrente. Ou é exemplarista, e acredita que os valores superiores americanos
devem ser apenas exercidos para que o mundo assista e copie, ou é vindicalista, e acredita que os valores
superiores americanos devem ser enfiados goela abaixo. George W. Bush é claramente um vindicalista, ao
contrário de seu antecessor Bill Clinton. As duas correntes têm diferenças óbvias. Mas ninguém nos Estados
Unidos, salvo raríssimas exceções, discorda de uma coisa: os valores americanos são superiores.

Mas será que são só eles?

Antes de prosseguir, cabe uma ressalva. Esse sentimento de superioridade de forma alguma é
exclusividade americana. O sociólogo francês Jean-François Revel, em seu livro “A obsessão antiamericana”,
lembra que seus conterrâneos também são pródigos em megalomania. O General Charles de Gaulle, presidente
francês nos anos 1960, disse uma vez que “o mundo inteiro tem os olhos fixos na França”. E mesmo no Brasil,
tão orgulhoso de seu espírito tolerante, nossa crença atávica no fato de que somos mais criativos e de que
poderíamos ser facilmente os melhores do mundo, se quiséssemos, carrega uma boa dose de chauvinismo, todo
país, todo povo precisa de uma crença desse tipo – isso faz parte do processo de construir uma identidade
nacional. Qualquer uma.
Mas o fato é que, nos Estados Unidos, essas crenças se entranharam de uma forma extrema e são muito
difundidas. E mais do que isso: os americanos foram especialmente convincentes ao espalhá-las pelo o mundo.
Tanto que se tornaram o país mais influente e admirado do planeta, sua maior potência econômica, o maior
produtor de cultura popular, o mais rico, o mais poderoso. E é claro que tudo isso reforça a crença de que são
predestinados.

Império americano?

Ultimamente uma palavra vem sendo usada com cada vez mais freqüência para caracterizar os Estados
Unidos império. É justo chamar o país de Bush desse nome feio? Quem tenta responder é o historiador britânico
Dominic Lieven, da London School of Economics, um dos maiores especialistas do assunto. Num artigo para a
revista inglesa Prospect , Lieven deu sua definição de império, que consta de três tópicos. Primeiro: “Um
império não é baseado no consentimento de quem ele governa”. Segundo: “tem um poder muito grande”. E, por
último: “governa vastos territórios e muitos povos”.
“Talvez os Estados Unidos se encaixem mais bem em umas partes dessa definição do que em outras”,
escreveu Lieven. Mas não há dúvida de que se encaixa pelo menos um pouco em todas. A ver: tem um poder
imenso, provavelmente o maior poder que um país já teve na história. E, se é verdade que não governa
diretamente boa parte do mundo, inegavelmente tem grande influência militar e econômica sobre o destino de
toda a terra, inclusive sobre cidadãos de países que não têm direitos a voto na hora de eleger o presidente
americano. Há bases militares americanas em pelo menos 93 países - metade das nações do mundo – e quase
todas as outras dependem em grande medida do comércio com os americanos, maiores importadores e
exportadores do planeta.
E qual o problema disso? O que há de errado em ser um império? Para entender isso, é preciso entender
também a identidade desse país singular. Os Estados Unidos nasceram sob a opressão imperial britânica,
‘império’, no imaginário dos estados Unidos, é sinônimo de perseguição religiosa, de impostos extorsivos, de
leis injustas. Na origem, o projeto nacional americano é antiimperial. “A lógica americana é a lógica da
liberdade”, afirma o cientista político Braz Araújo, coordenador do núcleo de análise interdisciplinar de
políticas estratégicas da Universidade de São Paulo (USP).
A “liberdade” à qual se refere Braz quer dizer várias coisas. Quer dizer liberdade individual, de professar
uma religião, de expor uma opinião, de se organizar – garantias fundamentais da constituição americana e de
quase todas depois dela Mas é também liberdade econômica, de comerciar com quem bem entender, de abrir
um negócio, de lucrar. Ambos os tipos de liberdade são muito caro para os americanos. E impérios são avessos
a ambos.
Quando o século 19 começou, os estados Unidos eram um imenso país cheio de potencial e de riquezas e
com uma altíssima produção. Mas não podiam ir muito além disso. Havia um sério empecilho atravancando seu
crescimento: o imperialismo. O mundo estava fatiado entre os grandes impérios europeus. Inglaterra, França,
Espanha, Portugal tinham absoluto monopólio sobre a matéria-prima barata e os mercados consumidores da
Ásia, África e de grande parte da América. O crescimento econômico americano era bloqueado por essa falta de
liberdade de comércio.
Não foi à toa que virou prioridade nacional americana fazer esforços diplomáticos para derrubar impérios
pelo mundo. Combater impérios não era só uma questão ideológica inatacável, justa e simpática, mas também
uma questão econômica, uma forma de abrir mercados. Os embaixadores trabalhavam orgulhosos dos valores
libertários que representavam e quase sempre tinham ótimas relações com movimentos nacionais e republicanos
em diversos países. “No Brasil, por exemplo, o embaixador americano vivia às turras com a família real, mas
dava-se muito bem com a elite liberal republicana”, diz a historiadora Antônia Fernanda Wright, da USP,
especialista na nossa já antiga relação com os governos americanos.
Muitas vezes os Estados unidos financiavam grupos pró-independência e antimonárquicos. Em 1898, foi
inclusive para a guerra – derrotou a então decrépita Espanha e tirou dela Cuba, as Filipinas e Porto Rico. Tudo
em nome da destruição dos velhos impérios. E, como a história é cheia de ironias, começou aí a grande
contradição americana: o país antiimperialista por excelência começou a se parecer com um império. Tanto que
as forças americanas massacraram rebeldes nacionalistas das Filipinas, numa passagem que causou muita
polêmica entre vindicatistas e exemplaristas.

Saudades do quê?
Acusações de imperialismo jamais tinham sido um problema antes do século 20. As monarquias européias
não davam bola para o consentimento dos súditos. O poder era do rei. Exceto em alguns poucos lugares da terra,
democracia também não significava muito. A relação entre os países era, para dizer o mínimo, violenta e
injusta. Países poderosos, como os Estados Unidos são hoje, nunca tiveram que se preocupar muito com
questões como “justiça” ou “aprovação popular”. O mais forte sempre pôde invadir o mais fraco. E pronto.
Ainda que a democracia vigorasse internamente, as relações internacionais sempre foram regidas pela velha lei
do mais forte.
Afinal, quando o mundo reclama da arbitrariedade americana, está com saudades de quê? Ainda que parta
do princípio de que a guerra do Iraque foi injusta, qual guerra foi justa? Ainda que acreditemos que os Estados
Unidos têm sido arrogantes e autoritários na relação com os mais fracos, qual nação poderosa foi mais humilde
que eles? Ainda de que aceitemos a acusação de que a guerra foi feita por interesses econômicos, que outro país
na história, sendo mais forte militar e economicamente, deixou de exercer os seus interesses? Qual é o pecado
americano?
Talvez a resposta esteja no fato de que os Estados Unidos tenham construído sua identidade nacional
sobre os pilares das instituições democráticas. Ganharam a aprovação e admiração do mundo assim,
conquistaram assim sua liderança. Quando a primeira guerra mundial estourou, em 1914, o governo e o povo
americano não queria lutar. Acabaram jogados na guerra pelo desenrolar dos combates, quando fiou claro que,
no mundo novo que estava se desenhando, os mercados estariam fechados, os impérios continuariam
monopolizando o comércio, a tal “liberdade” (individual e econômica) não seria poupada. O presidente
americano, Woodrow Wilson, foi para a guerra dizendo que iria tornar o mundo “seguro para a democracia”. E
a guerra foi ganha.
Wilson achava que não bastava que os Estados Unidos fossem uma democracia exemplar, “uma cidade na
montanha” – como queriam os exemplaristas. Por mais que a relação com os americanos fosse por regras claras
e justas, o mundo seria “inseguro para a democracia” enquanto não existisse regras tão claras e justas para reger
a relação entre os países. Era necessário que surgissem organizações supranacionais que fizessem no mundo o
que as instituições democráticas - de executivo, do legislativo e do judiciário – fazem dentro dos países. Em
grande parte por pressão dele, surgiu após a guerra a Liga das Nações, antecessora da ONU, a primeira dessas
organizações que estão acima dos países. Mas os americanos perceberam que as outras potências não estavam
dispostas a abrir mão de seu controle colonial sobre boa parte do mundo em troca de coisas vagas como a
democracia. Por conta disso os Estados Unidos ficaram de fora da Liga das Nações: não quiseram compactuar
com um tratado que mantinha o mundo basicamente do jeito que era.
Povo e governo dos Estados Unidos tampouco queriam lutar a segunda guerra mundial. Guerra mundial.
Assistiram impávidos à tomada da Polônia e da Bélgica por Hitler. Viram Paris cair, de nariz empinado,
prometendo que nunca mais se sacrificariam para “corrigir os erros da Europa”, nas palavras do grande teórico
exemplarista Charles Beard. Até que foi ficando claro que Hitler era uma ameaça grande demais. Que, se ele
não fosse parado por alguém, logo chegaria à Grã-bretanha, tendo apenas um oceano a separá-lo dos Estados
Unidos. Resultado: os americanos entraram na guerra – e, de novo, mais até que a Primeira Guerra, foram
fundamentais para ganhá-la.
A pressão americana foi decisiva para que uma série de organizações internacionais surgisse com o fim da
guerra. O objetivo delas: evitar a ameaça de um novo Hitler. Civilizar a relação entre as nações. Acabar com
invasões arbitrárias. Fazer com que o mundo fosse regido por regras tão claras quanto as que vigoravam dentro
dos Estados Unidos e de outras democracias. Surge a ONU, para acabar com as guerras. Nasce, dentro da ONU,
o conselho de segurança, onde os países mais poderosos resolveriam as grandes questões da humanidade. É
criada a corte internacional de justiça. Outro legado daquele conflito foi o encontro de Bretton Woods, no
nordeste dos Estados Unidos, que gerou instituições econômicas internacionais, como o FMI e o Banco
Mundial, para assegurar o livre-comércio e a justeza das disputas comerciais.
Liberais do mundo todo, e especialmente dos Estados Unidos, passaram a sonhar com um mundo novo.
Um mundo democrático. Os valores tão fundamentais para os Estados Unidos – liberdade, democracia, justiça –
pareciam estar prestes a serem internacionalizados. O mundo todo estava olhando a “cidade na montanha”.

A guerra fria, lembra?


Mas havia um problema para ser resolvido antes. Um outro país saíra fortalecido da segunda Guerra
Mundial. A União Soviética tinha sido também fundamental para a vitória aliada. Seus exércitos liberaram
vários países dos nazistas (para impor uma outra ditadura). E, em muitos outros, os socialistas emergiam como
o grupo mais popular, graças à liderança que eles exerceram nos movimentos de resistência.
Os soviéticos eram diferentes dos americanos em quase tudo. “Liberdade”, e se é que era um valor
importante, não significava para eles o mesmo que para os americanos. Tanto é assim que todos os governos
comunistas viviam sob ditaduras rigorosas. E todas as economias dos países comunistas eram absolutamente
fechadas. Era tudo o que os Estados Unidos, tão preocupados em abrir mercados, não queriam.
Mas havia uma coisa que os dois países tinham em comum: o senso de missão, a crença na predestinação.
No caso soviético, era a teoria de Karl Marx que os levava a acreditar nisso. Marx previu a inevitabilidade da
revolução. Assim como os americanos, os russos tinham certeza de que o processo histórico levaria à adoção
dos seus ideais por uma porção cada vez maior do mundo. Não existe espaço para duas nações predestinadas
num mundo tão pequeno quanto o nosso se tornou no século 20.
Terminada a guerra, as nações aliadas logo começaram a se estranhar. Em fevereiro de 1946, Stálin disse,
sem a menor sutileza, que capitalismo e socialismo são incompatíveis: “um triunfará o outro desaparecerá”. O
primeiro ministro britânico, Winston Churchill, não foi mais sutil no mês seguinte, quando declarou que havia
uma “cortina de ferro” separando as ditaduras sob influência russa do “mundo livre”.
Era esse o clima quando chegou a Washington um telegrama de oito mil palavras (algo como o dobro
desta reportagem), transmitido de Moscou. O remetente era um diplomata chamado George Kennan e o assunto
era o governo de Kremlim. Parte do telegrama descrevia o “tradicional e instintivo senso de segurança dos
russos”, natural num povo agrário morador de amplas planícies atravessadas toda hora por nômades agressivos.
“Eles aprenderam a buscar segurança apenas na luta paciente, porém mortal, cujo objetivo era a total destruição
total do rival, nunca fazendo pactos ou acordos”, afirmou.
Segundo Kennan, a revolução comunista tinha apenas agravado esses traços, ao estender para o palco
global a luta interna inconciliável entre o capital e o trabalho: os soviéticos se consideravam representantes do
trabalho e tinham que destruir os países que representavam o capital. A tradicional paciência russa teria sido
aumentada pela crença marxista na inevitabilidade da revolução. Eles não tinham pressa em vencer – sabiam
que o futuro era deles. Kennan em seguida fazia previsões sobre a estratégia russa para vencer esta guerra. Eles
apoiariam partidos comunistas e grupos sem ligação oficial com o Kremlin no mundo inteiro, para causar
desunião, revoltas populares, inquietação social. Até que o mundo todo fosse comunista.
Tais características faziam da União Soviética um inimigo natural. E um inimigo singular, que exigiria
uma tática igualmente singular. Os americanos teriam que ser tão pacientes quanto os russos, talvez mais.
Teriam que lutar sem tréguas, mas sem jamais se expor no confronto direto. Não poderiam tentar acordos, já
que os russos são impermeáveis a eles. E deveriam defender inúmeros fronts evitando que amigos dos russos
chegassem ao poder no mundo todo. O confronto estava fadado a levar décadas.
Estava desenhada a tática da “contenção”, a luta indireta contra os russos, jamais enfrentando-os no campo
aberto, apenas bloqueando seus avanços pelo mundo afora. Estava desenhada a guerra fria. Por meio século esta
conflito velado ditou os russos do mundo – país nenhum ficou imune a ele. Como a União Soviética era
expansionista por definição, não cabia mais aos americanos serem exemplaristas – cuidar de casa e esperar que
o mundo os copiasse. Era preciso ser vindicatista – e atacar antes que o mundo virasse comunista. Ficar parado
seria dar espaço ao inimigo. Em cada país do globo havia grupos financiados pelos soviéticos. Os Estados
Unidos teriam que estar igualmente presentes em toda parte.
A Guerra fria congelou o sonho de um mundo gerido por instituições transnacionais. A ONU era travada
pela disputa automática entre Estados Unidos e União Soviética. Como ambas as potências tinham direito a
veto, nunca nada era aprovado no Conselho de segurança. A guerra ideológica contaminou o planeta. Não
havia a opção de fugir dela, como constataram amargamente os países que tentaram um caminho independente.
Ser contra os Estados Unidos era ser pró-União Soviética. Ser socialista era, por definição, ser antiamericano –
uma expressão típica daquela época hoje resgatada por Bush. E, diante da necessidade premente de combater o
inimigo, o mundo se encheu de ditaduras. Muitas delas eram apoiadas pelos soviéticos. E os Estados Unidos
apoiaram outras tantas. Não era difícil para muitos presidentes americanos justificar esse apoio, aparentemente
contrários aos ideais democráticos nacionais. Afinal o que era mais importante: a falta de democracia em um
único país ou a ameaça constante de que os comunistas acabassem de uma vez com a democracia no mundo
todo.

Esqueceram o sonho?

A Guerra fria acabou em 1989, com o colapso humilhante da União soviética, quebrada pelo esforço
econômico de construir armas para intimidar os Estados Unidos e dividida pela insatisfação de sua população
com a pobreza e a falta de liberdade. Por alguns anos, idealistas do mundo, que acreditavam sinceramente nos
valores liberais, libertários e democráticos (gente muito numerosa nos Estados Unidos), acharam que seria
estabelecida uma pax americana – um período de ânimos tranqüilos, liderado magnanimamente pelos Estados
Unidos e regulado por instituições supranacionais fortes, cujas decisões seriam guiadas por princípios jurídicos,
políticos e técnicos, e não pela ideologia.
O governo republicano de George Bush pai foi vindicalista – o pai do atual presidente acreditava na
importância de seu país atuar como uma espécie de polícia do mundo. Mas, apesar das guerras, é inegável que
houve progressos para que surgisse esse mundo com instituições fortes. Pela primeira vez, com Bush pai, os
membros do conselho de segurança da ONU (CS) concordaram numa decisão – a de invadir o Iraque. Clinton,
bem mais exemplarista, mas igualmente inclinado a intervenções externas, também caminhou na direção das
instituições democráticas mundiais. A novidade, agora, é que Bush não apenas fez guerras – como todos os
presidentes nas ultimas décadas. É o fato de que ele seguidamente minou as instituições que os Estados Unidos,
mais que qualquer outro país, ajudaram a construir.
Ele retirou-se de diversos acordos internacionais e desrespeitou outros. Chutou o protocolo de Kioto, pela
redução da emissão de gases de efeito estufa. Boicotou a Corte Internacional Penal de Justiça, sob a alegação de
que os americanos seriam muito visados nesse tribunal que julgaria criminosos internacionais. E virou a costa
ao CS, que não comprou as justificativas para a segunda guerra do Iraque.
A grande potência “ignorou que vivemos na era da globalização”, afirmou o economista e ex-ministro Luiz
Carlos Bresser Pereira, num artigo para a revista Política Externa. A tese de Breser diz que os Estados Unidos
se tornaram, ironicamente, a maior ameaça à causa tão americana da globalização. É que Bresser entende
globalização num sentido amplo: não são apenas as fronteiras comerciais que têm que ser abertas, faz parte
disso fortalecer instituições globais, como essas que Bush decidiu deslegitimar. Sem elas, continua imperando a
força, em vez do já tão citados valores democráticos. E, sem elas, o livre comércio, outra causa americana, fica
seriamente ameaçado.
“George W. Bush é a negação no espírito liberal americano”, afirmou numa entrevista o economista Clyde
Prestowitz, que não pode ser considerado um esquerdista – atual presidente do Instituto de Estratégia
Econômica, ele foi um destacado membro da área econômica do governo Ronald Reagan, do Partido
Republicano, o mesmo dos Bush. Ainda assim, ele acabou de escrever um livro chamado Rogue Nation (“país
delinqüente”, sem versão brasileira), no qual compara os Estados Unidos a outros países tidos como indignos de
confiança, como a Líbia e o Iraque. É a critica não apenas política, mas também ideológica. “Nós sempre
pregamos a redução do tamanho do Estado. Bush está aumentando enormemente a presença estatal,
principalmente na área militar”, diz o economista.
A crítica de Prestowitz é prova cabal de que a postura de Bush não reflete a opinião de toda a classe
política americana – muito menos de toda a população. Mas, ainda assim, o atual presidente está na frente pela
corrida pela reeleição, em parte pela quase absoluta falta de candidatos carismáticos no campo da oposição.

Alguém explica?

E por que idéias que soam tão antiamericanas - Estado inchado, instituições supranacionais enfraquecidas,
livre-comércio ameaçado, pendão imperial – tornaram-se tão difundidas nos Estados Unidos? O ex-presidente
Dwight Eisenhower, cujo governo, aliás, por um forte ânimo militarista, esboçou uma explicação já em 1961.
Foi o que ele chamou de “complexo militar-industrial”. Em outras palavras, Eisenhower achava que tantos anos
de Guerra Fria tinham criado uma elite militar e econômica dependente de conflitos. E que essa elite tinha poder
suficiente para levar o país a guerras contínuas.
Que a economia americana lucrou com as guerras do passado é difícil refutar. Aliás, não foi só a economia
americana se beneficiou – foi o mundo todo. Você, inclusive, pacífico leitor. Tanto as empresas de alta
tecnologia como quanto os institutos de pesquisa de ponta tiram grande parte de suas verbas do orçamento
militar nacional. Para ficar num exemplo, toda a indústria de computadores, internet incluída, foi desenvolvida
primeiramente para fins militar. O consumidor ficou com o fruto disso.
O complexo militar-industrial do qual falava Eisenhower, inclui um contingente de meio milhão de
soldados espalhados pelo mundo e de uma infinidade de oficiais poderosos e influentes nas altas esferas
governamentais. Isso além de uma quantidade absurda de armas, suficiente para destruir todos os planetas do
sistema solar, já que a lógica da Guerra Fria era a acumulação, independentemente da necessidade real. O
raciocínio do ex-presidente, muito repetido pela oposição de Bush, é de que tanto as empresas que lucram com
as guerras quanto as militares que vivem delas usam suas influência para que elas nunca terminem e para que
surja sempre um novo inimigo.
O aliados de Bush negam essa versão. Rudoph Giuliani, ex-prefeito de Nova York e um dos mais
populares políticos do país, afirma que o que está acontecendo agora é uma “luta global para erradicar o
terrorismo” e que o resultado dela será, aí sim, uma “paz duradoura”, aquela mesmo que tinha sido prometida
para o fim da Guerra Fria.

E o que vem depois?

E o futuro, você sabe, a Deus pertence. Mas, descontada a interferência divina, a maior influência sobre os
amanhãs de toda a Terra definitivamente cabe aos Estados Unidos. Os especialistas discordam sobre o que vai
acontecer nos próximos anos. Mas os muito insensatos entre eles duvidam que as decisões americanas
moldarão, em grande medida, o planeta no qual viveremos no futuro.
E o que vai acontecer? Boa parte da classe política americana – incluídos quase todos os democratas e
alguns republicanos “históricos”, de estirpe de Prestowitz – acreditam que o país está no caminho do qual se
desviou com Bush. Braz Araújo enxerga um futuro no qual a ONU vai “refletir o equilíbrio real de poder no
mundo” e os Estados Unidos “liderarão a humanidade, com respeito às instituições e à ‘lógica da liberdade”.
O britânico Eric Hobsbawn, um dos grandes historiadores vivos, vê mais nuvem no horizonte. Ele acha
que a Guerra do Iraque conseguiu colocar países poderosos na oposição. Além disso, enfraqueceu governos
aliados: o primeiro-ministro britânico Tony Blair está numa situação frágil. No mundo inteiro, participar de
eleições com a proposta de se opor aos Estados Unidos virou uma estratégia ganhadora de votos. “A atual
política americana é mais impopular que a de qualquer outro governo americano”, afirmou, num artigo para a
revista francesa Le Monde Diplomatique. E um país que ganhou o planeta apostando na sua popularidade não
deve subestimar o peso de ser impopular.
Hobsbawn acha que está nascendo um mundo mais tenso e que os Estados Unidos só têm a perder com
esse cenário. Não que ele acredite que possa acontecer uma guerra contra os americanos – nem uma grande
frente de oposição poderia enfrentar os Estados Unidos militarmente. Mas uma frente assim poderia afetar a
potência economicamente. “A economia dos EUA, apesar de fortíssima, é vulnerável: imaginemos, por
exemplo, que os países exportadores de petróleo decidam que o barril seja faturado em euros, e não em
dólares”, diz Hobsbawn. Seria um duro golpe para Washington.
Ainda mais sombrio é o futuro imaginado pelo pensador Noam Chomisky, talvez o mais radical dos
autores da esquerda americana, embora não nutrisse simpatia pela União Soviética. Segundo Chomisky a
Guerra Fria não foi contra os comunistas e não tinha nada a ver com ideologia. Ela foi parte de uma guerra,
começada bem antes da revolução Russa e ainda não terminada, contra o Terceiro Mundo. Os Estados Unidos
irão sempre invadir países pobres e sem poder de reação como forma de proteger seus interesses, abrir mercados
e garantir matéria-prima, em especial, petróleo. A invasão do Iraque teria sido apenas mais uma batalha de uma
guerra que poderá ser eterna.
Mas talvez a melhor previsão para o futuro tenha sido uma formulada a mais de 150 anos, por um teórico
nascido longe dos Estados Unidos, o francês Alexis de Tocqueville. No seu clássico, A Democracia na
América, Tocqueville descreve os Estados Unidos como um país no qual os problemas da Democracia são
resolvidos com mais democracia. Essa analise combina com o fato de que as críticas mais contundentes aos
Estados Unidos vêem de dentro dos Estados Unidos. O país sempre foi lugar propício para o florescimento de
soluções para os problemas. Talvez seja o caso de esperarmos uma calma – e com os olhos fixos na “cidade da
montanha”.

Denis Russo Burgierman http://super.abril.com.br/superarquivo/2003/conteudo_299303.shtml


Ensino Superior (em milhões de pessoas)
EUA 1º 2º China
13,59 12,14
Índia 9,40 3º 4º Rússia
7,22
Japão 5º 6º Indonésia 3,01
3,97
Coréia do Sul 7º 8º Brasil
3,00 2,78
Egito 2,44 9º 10º Filipinas
2,43
Fonte: Exame Almanaque Abril Mundo em dados 2003

Investimento em educação e pesquisa é uma das principais razões do predomínio americano.

População carcerária (em milhões de pessoas)


EUA 1º 2º Rússia
2,019 874,3
Tailândia 258 3º 4º Brasil
240,1
Ucrânia 5º 6º África do Sul
198,8 176,8
Irã 7º 8º México
163,5 154,7
Cazaquistão 9º 10º Polônia
84 83,1
Fonte: International Centre for Prison Studies. Dados de 2003.

O número de presos mostra que a lei é cumprida, mas também indica um grave problema social.

Conflitos com participação americana


Guerras com participação americana no último século que não foram oficialmente declaradas pelo Congresso americano.
1899-1901 – Repressão insurreição popular nas Filipinas
1900 – Repressão à rebelião dos Boxers (seita secreta) na China
1903-1914 – Repressão a revolução popular no Panamá
1918-1920 – Repressão a revolução Bolchevista na Rússia
1926-1933 – Repressão a golpe de estado na Nicarágua
1950-1953 – Guerra contra a Coréia do Norte e contra a China
1962 - Quarentena naval durante crise dos mísseis em Cuba
1964-1973 – Guerra contra Vietnã do Norte e vietcongues
1965 – Repressão a revolta popular na Republica Dominicana
1980 – Tentativa frustada de resgate de reféns americanos no Irã
1982 - Envio de tropas para conter Guerra civil no Líbano
1983 – Repressão a rebelião após golpe de estado em Granada
1989 – Repressão para tirar do poder o general Noriega no Panamá
1991 – Guerra do Golfo contra o Iraque após a invasão do Kuwait
1992 – Envio de forças para conter guerra civil na Somália
1994-1995 – Ataque à Iugoslávia para conter política de limpeza étnica
1998 – Ataques aéreos a alvos terroristas no Afeganistão e no Sudão
1999 – Bombardeiros junto com Otan contra sérvios no Kosovo
2001- 2002 – Invasão do Afeganistão em busca de Osama Bin Laden
2003 – Guerra contra Iraque para tirar Saddan Hussein do poder
FONTE: Instances of Use of United States Forces Abroad, 1798-2001.

Potrebbero piacerti anche