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O adjetivo e o ornitorrinco

(dilemas da classificação das palavras)

Mário A. Perini∗

Grande parte do labor cientı́fico consiste em classificar entidades, ela-


borar justificativas para essa classificação. A ciência não se limita a isso,
evidentemente: uma ciência é muito mais que uma classificação de obje-
tos. Mas, em geral, depende de classificações, até mesmo para possibilitar o
diálogo entre os cientistas.
Por exemplo, os zoólogos dividem os animais em diversas categorias:
mamı́feros, répteis, peixes, insetos, aves, anfı́bios, e assim por diante. Sem
essas categorias seria muito difı́cil fazer zoologia, ou mesmo falar de zoo-
logia, pois elas permitem ao cientista referir-se a tipos de animais, em vez
de referir-se a cada animal (ou a cada espécie) individualmente. Assim, po-
demos encontrar trabalhos descritivos sobre os mamı́feros da América do
Sul, ou sobre a evolução dos répteis, ou sobre a fisiologia dos insetos etc.
Esses trabalhos, e muitı́ssimos outros, dependem da classificação prévia dos
animais (em classes, ordens, famı́lias, gêneros e espécies) para a definição de
seu campo de interesse; nesse sentido, todo o trabalho da zoologia repousa
sobre classificações.
É preciso, naturalmente, dispor de critérios objetivos para colocar um
animal nesta ou naquela classe. Assim, os mamı́feros se distinguem dos
répteis graças a diversos traços de sua estrutura e funcionamento: a tempe-
ratura do corpo dos mamı́feros é constante, a dos répteis depende da tem-
peratura ambiente; os mamı́feros dão à luz filhotes vivos, os répteis põem
ovos; os mamı́feros amamentam os filhotes, os répteis não; os mamı́feros têm
pêlos, os répteis têm a pele nua ou coberta de escamas. Com esses quatro
critérios é possı́vel, em geral, decidir rapidamente se um animal é mamı́fero
ou réptil: lagartixas e vacas não apresentam dificuldades a esse respeito.
Mas dificuldades há, embora nem sempre sejam mencionadas nos livros
de introdução à biologia. Uma delas é o ornitorrinco. Esse estranho bicho
australiano bota ovos, mas amamenta os filhotes; tem a temperatura do
corpo parcialmente dependente da temperatura ambiente e tem pêlos. Será
um mamı́fero, um réptil ou outra categoria qualquer? Isso depende de dar-
mos mais importância a um ou outro dos critérios que definem as classes. De
qualquer forma, é necessário admitir que as categorias “mamı́fero” e “réptil”,

Capı́tulo 5 do livro Sofrendo a Gramática, Editora Ática, 2005, pp. 39–46.

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embora convenientes e úteis, não são perfeitas. A maioria dos animais se
coloca claramente em uma ou outra das diversas classes reconhecidas pelos
zoólogos; mas há alguns, como o ornitorrinco, que ficam mais ou menos no
meio.
Bem, eu não comecei este ensaio para falar de animais. Meu campo de
estudo é o da linguagem - mas este tem um ponto importante em comum
com a zoologia: depende muito de classificações. Em lingüı́stica, não falamos
de mamı́feros nem de répteis; falamos de adjetivos, verbos, preposições,
orações e sintagmas nominais: todos esses nomes designam classes de formas
lingüı́sticas. Ora, veremos que nem sempre os limites entre essas classes são
claros e bem definidos: a lingüı́stica também tem seus ornitorrincos.
Há muitos tipos de classes em gramática; aqui vou falar apenas de classes
de palavras — substantivos, adjetivos e verbos, velhos conhecidos nossos (e
às vezes inimigos) desde os tempos de escola.
Uma coisa que nos poderiam ter dito na escola (mas, em geral, não
disseram) é para quê a gente precisa separar as palavras em classes. Ora, a
razão é semelhante à que nos obriga a separar os animais em classes, ordens,
espécies etc.: classificamos as palavras para podermos tratar delas com um
mı́nimo de economia. Vamos supor que não se definisse a classe dos verbos,
por exemplo. Nesse caso, terı́amos de tratar na gramática das palavras que
variam em pessoa; como não haveria classes, seria necessário dar a lista
completa delas: começarı́amos por abanar e irı́amos até zumbir (uma lista
de umas boas dez mil palavras). Depois, seria preciso tratar das palavras
que têm tempos (presente, pretérito, futuro) - e aı́ terı́amos de dar a mesma
lista de dez mil palavras. É evidente que, desse modo, nossa gramática
seria um pouco difı́cil de manusear. E também é pouco provável que as
pessoas aprendam uma lı́ngua desse jeito, decorando listas imensas várias
vezes. O que as pessoas fazem é reconhecer uma palavra como pertencente
a determinada classe, e aı́ atribuir à classe as propriedades relevantes.
Assim, um falante aprende a reconhecer um verbo, e é só os verbos que
ele faz variar em pessoa e em tempo. Isso não é coisa que se aprende na
escola; faz parte do nosso conhecimento gramatical implı́cito (ver o ensaio
“Nossa sabedoria gramatical oculta”). Nenhum falante, mesmo analfabeto,
tenta conjugar a palavra computador, ou a palavra sempre, ou a palavra e.
Conjuga palavras como vender, ver e viver; andar, amar e amarrar; partir,
ir e punir. De um jeito ou de outro, os falantes reconhecem todas essas
palavras como verbos e sabem que podem dizer eu vendo, ele vende, eu
vendi, ele vendeu.
O caso dos verbos é bastante favorável, porque eles são muito diferentes
das outras palavras da lı́ngua. Isto é, a classe dos verbos é muito fácil de
definir: são as únicas palavras que variam em pessoa, as únicas que fazem
o plural com sufixos especiais como -mos, as únicas que têm tempos. São
como as vacas e as lagartixas, que têm várias caracterı́sticas que as colocam
claramente em determinado lugar na classificação geral.

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As coisas se tornam muito diferentes quando tratamos dos chamados
“adjetivos” e “substantivos”. Essas duas classes, embora tradicionalmente
separadas, são extremamente difı́ceis de distinguir. Na verdade, depois de
vários anos estudando o problema, acredito que são impossı́veis de distinguir
pelo menos em duas classes como fazem as gramáticas usuais. O que temos
aı́ é ou um grande número de classes ou, mais provavelmente, uma grande
classe composta de membros cujas propriedades são muito variadas.
É melhor começar a dar exemplos, para ilustrar o que estou querendo
dizer.
Para tratar de adjetivos e substantivos como classes, a primeira coisa a
fazer é definir essas classes. O que é que faz de uma palavra um adjetivo ou
um substantivo? Não podemos dar simplesmente a lista dos adjetivos e a
dos substantivos, porque, além de ser uma maneira anti econômica de fazer
as coisas, uma lista pode ser arbitrária, juntando alhos e bugalhos sob o
mesmo rótulo. Precisamos de definições, pois são a garantia de que estamos
falando de classes que realmente funcionam dentro da lı́ngua.
Tradicionalmente, diz-se que os substantivos são “nomes de coisas”, e
os adjetivos expressam “qualidades”. Ignorando por ora a vaguidão dessas
definições (já sofremos bastante com elas no primeiro grau), vamos fazer
de conta que sabemos o que são nomes de coisas e o que são qualidades; e
vamos tentar aplicar essas definições a algumas palavras.
Se as palavras forem João e paternal, a aplicação é razoavelmente fácil.
João é nome de uma coisa (uma pessoa) e paternal exprime apenas uma
qualidade; logo, João é substantivo e paternal é adjetivo.
Mas como classificar maternal? Essa palavra parece, à primeira vista,
ser idêntica a paternal com a única diferença de que se refere à mãe, não ao
pai. Assim, dizemos atitudes maternais do mesmo jeito que dizemos atitudes
paternais. Mas na verdade há uma diferença: maternal (mas não paternal)
é também o nome de uma coisa, ou seja, designa um tipo de escola infantil:
meu menino ainda está no maternal.
E agora? Maternal é adjetivo, porque expressa uma qualidade; e é subs-
tantivo, porque é o nome de uma coisa. Ou será um caso, com certeza
excepcionalı́ssimo, de palavra que está no limite das duas classes e tem as
propriedades de ambas?
Nem isso, porque o caso de maternal não é raro nem excepcional. Há
milhares de palavras que se comportam de maneira semelhante. Basta ver
os exemplos abaixo:

(1) a. Uma palavra amiga (qualidade)

b. Um amigo fiel (nome de coisa)

(2) a. Uma menina magrela (qualidade)

b. Essa magrela (nome de coisa)

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(3) a. Um homem trabalhador (qualidade)

b. Os trabalhadores (nome de coisa)

(4) a. O carro verde (qualidade)

b. O verde está na moda (nome de coisa)

etc., etc., etc.


O leitor poderá facilmente aumentar a lista.
Agora dá para ver o problema com mais clareza: se aceitarmos as de-
finições tradicionais, dadas anteriormente, teremos pelo menos três classes,
e não apenas duas: há as palavras como João, xı́cara e alto-falante, que só
podem ser nomes de coisas; depois, há as palavras como paternal, genial e
triangular, que só podem expressar qualidades; e, finalmente, há as palavras
como maternal, amigo, magrela, trabalhador, verde, que podem ser as duas
coisas. E o pior é que estas últimas são as mais numerosas. O mı́nimo que
podemos concluir é que a distinção entre substantivos e adjetivos, tal como
formulada nas gramáticas comuns, é inadequada.
É como se as espécies de animais como o ornitorrinco fossem mais nume-
rosas do que os casos claros de mamı́feros e répteis: terı́amos de começar a
desconfiar das próprias noções de “réptil” e de “mamı́fero”, pois não seriam
suficientemente úteis para nos permitir reconhecer a classe a que pertence
um animal. Parece que não é isso o que acontece na zoologia; mas na gra-
mática a situação, como acabamos de ver, é mais incômoda.
Há muitas maneiras de classificar as palavras, e cada uma dessas ma-
neiras atende a uma necessidade especı́fica. No exemplo anterior, vimos
uma classificação pelo significado; mas também podemos necessitar de uma
classificação pela forma, isso quando estivermos tratando da descrição dessa
mesma forma. Assim, podemos definir o substantivo como a palavra que:
(a) pode aparecer logo depois de um artigo, formando um sintagma, como
em a xı́cara (mas não * o paternal); e (b) aceita aumentativo e diminutivo,
como em xicrinha. Essa definição pode ter seus méritos, mas os resultados
de sua aplicação discordam, mais uma vez, das classes tradicionais. Assim,
verde, tradicionalmente um adjetivo, pode ocorrer depois de artigo (o verde
está na moda) e aceita diminutivo, mesmo quando exprime qualidade (um
pé de alface verdinho). Também podemos definir o substantivo como a pa-
lavra que faz plural em -s; isso o distingue eficazmente do verbo (cujo plural
se faz de outra maneira) e das palavras que não têm plural (preposições,
advérbios etc.). Porém, a classe dos substantivos assim definida vai incluir
não só os substantivos tradicionais, mas também os adjetivos e os pronomes:
xı́caras, paternais, eles.
A conclusão é que a classificação tradicional, no que se refere aos subs-
tantivos e aos adjetivos (e ainda aos pronomes), não tem salvação. Não
se conseguiu, até hoje, uma definição que separasse com clareza essas três

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classes. Eu tendo a acreditar que são uma grande classe, dentro da qual se
distinguem muitos tipos de comportamento gramatical. Acredito que as di-
ferenças de comportamento dentro dessa grande classe (que podemos chamar
a classe dos nominais) provêm principalmente de diferenças de significado.
No momento em que uma palavra começa a ser usada com um novo signifi-
cado (o que acontece com frequência), ela precisa mudar seu comportamento
gramatical de acordo com sua nova função.
Isso se harmoniza com a flexibilidade que se observa no uso dos nominais.
Por exemplo, a palavra cabeça era, até há pouco, das que só se usavam como
nomes de coisas. Um belo dia, alguém teve a idéia de usá-la para designar
uma pessoa ou coisa admirável de certo ponto de vista; a partir daı́, a palavra
cabeça não só passou a ter o significado de “qualidade”, mas também passou
a ser usada em estruturas tipicamente “adjetivais”, como:

(5) Ontem fui ver um filme muito cabeça.

Essa flexibilidade, que todos conhecemos, segue estritamente a necessi-


dade de comunicação: no momento em que isso é necessário, um “substan-
tivo” vira “adjetivo”, ou vice-versa. O que aconteceu com cabeça também
aconteceu com gato (ela tem um irmão gato) e ultimamente com prego (mas
que sujeito prego) . O processo oposto se deu com maternal, que há alguns
anos só podia expressar qualidade, tal como paternal, e agora é também o
nome de uma coisa.
Como se vê, o que temos em mãos não são duas classes de palavras niti-
damente diferentes, mas uma classe que possui potencialidades expressivas
variadas; entre outras coisas, pode expressar nomes de coisas ou qualidades.
E expressa uma ou outra dessas coisas no momento em que é necessário.
Acontece que, até hoje, ninguém teve a idéia de usar xı́cara para exprimir
uma qualidade; e é por isso, somente, que xı́cara continua sendo apenas
nome de uma coisa. Também não ocorreu a ninguém utilizar paternal para
designar uma coisa (um novo tipo de escola?); e é por isso que paternal ainda
é tão nitidamente qualificativo. A distinção entre a classe dos “adjetivos” e
a dos “substantivos” simplesmente não existe.
Sinto-me obrigado a dizer que a conclusão acima não é aceita pela maioria
dos linguistas. Muitos dos meus colegas rangem os dentes de raiva quando
ouvem uma heresia como essa. No entanto, até hoje ninguém respondeu
aos argumentos apresentados de maneira a me satisfazer. Por isso, continuo
desacreditando de adjetivos e de substantivos, e continuo fazendo gramática.
Talvez eu tenha muito a pagar na outra vida.

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