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AFORGA DE ATRACAO hrés breves ensaios, trés caminhos diferentes: o primeito [onduz ao sonho on, antes, ao “sonhar” a partir de um bmance insdlito; o segundo a transferéncia ou, antes, as fansferéncias a partir de Freud; o tetceiro a0 precério prigo das palavras a partir de uma experiéncia pessoal. hres figuras da alteridade que falam da forga de atragao Jue exerce sobre nés o “sonhar” como estado, mais do, |e © sonho como produto; a fascina¢ao por um outro hundo; 0 sonho como revelagdo, instrumento de conhe- imento, poesia involuntéti TEX TOS DE ERUDICAO & PRAZER egelea Arte [As “Teses sobre Feuerbach” (Gérard Bras ‘de Karl Marx btontso a Céu Aberto Georges Labiea Marcel Detienne 0 Processo de Sécrates lavra e Verdade Clauide Massé Luiz Alfredo Garcia-Roza _4 Vida na Grécla Clissiea ) “Zaratustra” de Nietzsche Jean-Jacques Maffre Pierre Héber-Suffrin A Forga de Atragi | Morte dos Deuses IB, Pontalis| Michel Henry ‘A Morte nos Olhos Jean-Pierre Vernant Nicole Loraux Jorge Zahar Editor ISBN; 85-7110-182-5 ogowaiy ac vosues e a A FORCA DE _ ATRACAO J.-B. Pontalis TEXTOS DE ERUDICAO & PRAZER Jorge Zahar Editor TEXTOS DE ERUDICGAO & PRAZER ‘A Morte dos Deuses, Michel Henry A Morte 10s Othos, Jean-Pierre Vernant Dioniso a Céu Aberto, ‘Marcel Detienne Maneitas Trégicas de Matar uma Mulher, ‘Nicole Loraux A Vida na Grécia Ctissica, Tean-Jacques Maffre © Processo de Sécrates, Claude Mossé As “Tests sobié Feuerbach” de Kati Marx. Georges Labica Hegel ¢ a Arte, Gérard Bras Palavra ¢ Verdade na filosofia antiga e na psicandlise, Luiz Alfredo Garcia-Roza © “Zaratustra” de Nietzsche, Pierre Héber-Sufrin ‘A Forga de Atragio, J-B. Pontalis J.-B. Pontalis A FORGA DE ATRACAO Tradugéo: Lucy Magalbies Marcelo S. Cruz 'sicblogo ‘CRP-08/68272 Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro ‘Tiewo orginal: La force Wattraction ‘Traduelo avtorizada da primera edigho francesa publicade fem 1990 por Paltions du Seu, de Pris, France, nna colegio "La Libraiie da XX° Sitcle’, iigida por Maurice Olendes. Copyright @ 1990, ditions du Seuil Copyright © 1991 de edicko em lingus portugues: Jorge Zahar Editor Ltda, rua Mézico 31 sobrloja 20031 Rio de Janeiro, RJ Todos 08 direitos reservados. A repredusio nfowautorzada desta publicagio, no todo (ou em parte, constitai violecdo do copyright (Lei 3.988) [Edisto pare o Brasil] Impre ISBN: 2-02-012428-9 (ed. og.) ISBN: 85-7110-182-9 UJZE, RJ) Sumario A Atracéo do Sonho A Estranheza da Transferéncia A Inquietagio das Palavras Notas Scbre 0 autor 9 69 113 135 140 “Fecha o teu olho fisico para ver pri- meiro 0 teu quadro com o olho do espitito. Depois, faz subir até 0 dia o que viste na noite, 68 A Estranheza da Transferéncia ‘As palavras, mais que as coisas, estio sub- metidas & entropia: gastam-se e degradam- se, E as palavras da psicandlise, que foram, durante um tempo que se pode julgar muito curto, transportadas — transferidas — para © discurso comum, se gastaram mais depres- sa do que as outras. “Transferéncia” é uma delas. Ao passo que todas as palavras viajam e que esta, que diz transmissio, revezamento, o transporte e os transports, parecia destinada a viajar mais que qualquer outra, eis que a detive- mos, coagulando-a em um conceito que des- conhece a migraco de que é portadora. Fi- zemos 0 que podiamos para banalizé-la. Entretanto, Freud nos preveniu: “Nao nos surpreendemos suficientemente com o fenémeno da transferéncia”, e o reafirma no fim de sua carreira, no Esboco de 1938: “ muito estranho que o analisado reencarne em seu analista um personagem do pas- sado.”" O estranho est4, a meu ver, em “re- encarne”, mais do que em “personagem” ou em “pasado”. Uma chance, uma cruz Assim, para Freud, a transferéncia foi cons- tantemente uma ocasifio de surpresa'e até, no comeco, de uma mé surpresa. Para n6s, ela € esperada. Para ele, no inicio e durante muito tempo, foi um obstdculo indesejével: “A transferéncia, nossa cruz”, escreve ele a0 pastor Pfister. Para nés, quando ela aparen- temente falta, é que nos inquietamos: “Trans- feréncia, onde estés?” A preocupacéo do supervisor, ajudado por sua posi¢éo de ter- ceiro, consiste, no essencial, em detecté-la onde o analista, por ser 0 suporte ou 0 obje- to dela — e as vezes a sua vitima — a des- conhece, 70 ‘Mas é uma chance para a andlise que Freud no tenha reconhecido logo esse ‘fend- meno estranho, e que o tenha considerado como um estranho na “casa” da psicandlise que ele estava edificando, que o tenha man- tido afastado como um héspede aborrecido, um importuno insistente. & uma chance, ve- remos por que, mas, por ora, isso pode nos desorientar, ainda mais porque esses termos de estranho, de intruso, séo os mesmos que Freud utilizaré em sua famosa comparacéo destinada a dar ao seu: ptiblico americano uma representagéo figurada do desejo:* por na rua o indesejével perturbador, repelir 0 “penetra”, ndo o impedira de voltar pela janela... Teria Freud repelido o que cha- mamos hoje a transferéncia? O que se queria primeiramente, na te- rapia, era uma tarefa de rememoracéo, de suspensdo da amnésia, remontando sempre mais a montante. Tratava-se menos de re- encontrar as origens (a nocio de “s6-depois” € uma das primeiras aquisigdes freudianas) do que de reconstituir uma histéria: pre- encher-Ihe as lacunas, diferenciar-Ihe os es- tratos, reduzir-lhe a confusio. A anélise é uma questio de tempo. A essa tarefa — que associa a do historiador, a do arqueélogo, e até a do pesquisador — pode-se dizer que Freud nunca renunciou, mesmo depois de ter-Ihe mais bem apreendido os limites. Ela pode ir até a preocupacio de datacao precisa (ver “O homem dos lobos”: em que idade exatamente — um ano e meio, dois anos ¢ meio — se da a observagdo do coito paren- tal?). De qualquer forma, é ela que preside descoberta do inconsciente: dos seus con- tetidos, dos seus modos de funcionamento, do “sistema” Ics enfim. Basta pensar aqui na metafora dos arquivos, presente nos Es- tudos sobre a histecia: “Tudo acontece como se examindssemos arquivos mantidos em per- feita ordem.”* O histérico: na fachada, os- tentatéria — desorientagio do coragio e do espirito. Mas é a mesma coisa: no interior, os documentos de arquivo, desde que se sai- ba lé-los e confronté-los uns com os outros, existem. Eles estéo 14, bem guardados, e até 2 conservaram todo o seu frescor de origem. Analogia com 0 sonho: absurdo, imprecisio, incoeréneia do contetido manifesto, 16gica do contetido latente. A finalidade é entdo subs- tituir pela lembranca (poderiamos aqui pre- ferir a velha palavra “remembranea”) as “‘re- miniscéncias” de que sofreria o histérico, isto & de um regresso ao presente de imagens passadas, néo identificadas como tais: “A re- miniscéncia 6 como que a sombra da lem- branga”, dizia Joubert. A histérica no é uma doente imagind- ria, mas uma doente do imagindrio. Gragas a ela, o que Freud encontra primeiro so representagées ¢ transferéncias — desloca- mentos — de representages. ‘Transferéncia de objeto: ei-la que se entusiasma por um, e no por outro. Transferéncia de afeto: sabe-se 14 o que a faz chorar “por uma coisa A-toa”... Transferéncia dos lugares do cor- po: o sintoma: muda de lugar, em menos tempo do que se gasta para dizé-lo. A coisa vai, vem, corre... e quebra. A histérica esta sempre pronta a transferir, a migrar: dai a 3 invocacéo, por-Freud, da “disposicéo para 8 transferéncia”, imputada apenas ao paciente, ressalvando tanto o analista quanto a si- tuacéio que ele instaura. E depois, em segundo plano, hé a hip- nose, 4 qual Freud quer arrancar a anélise, a hipnose que encontra sua eficdcia na trans- misséo (transferéncia) dos pensamentos (uma mesma palavra: Ubertragung) via sugestio. Dai vem a exigéneia primeira de reduzir tanto quanto poss{vel a “influéncia” do ana- lista sobre o paciente, de deixar o poder ape- nas ao comando interno. O analista, por seu lado, se quer neutro, asséptico (néo-téxico), in absentia, Na posigéo por ele adotada — escapar ao olhar que desvelaria os seus pen- samentos, suas emogdes — é preciso também encontrar o sinal de que ele ausenta o seu corpo. A questio do endereco é entdio menos mantida a distancia do que suspensa. Assim também, 0 fato de que Freud, principalmen- te no tempo da redacéo da Traumdeutung, tenha analisado os seus préprios sonhos, Ihe foi titil: péde ele assim percorrer em todos 4 | 08 sentidos 0 trajeto das representacies, de- « cifrar 0 contetido da carta, pondo entre pa- | rénteses o destinatério sem se preocupar com | 0 objetivo da mensagem: comover, seduzir, agradar. A menos que o destinatario dos so- nhos anotados, analisados por Freud, seja o “Livro do sonho” — 0 Traumbuch —, germe de toda obra futura. O que se chamou trans- feréheia para o amigo Fliess —e até a “pai- xo” — é outro assunto, paralelo, nfo entre- cruzado, Plural Antes de mais nada, transferéncias, no plu- ral. Esse plural merece atencao. Com efeito, temos tendéncia hoje, quando falamos, por exemplo, da predominancia de uma transfe- réncia “paterna” ou “materna”, “positiva” ou “negativa”, ou, ainda mais trivialmente, quando dizemos: “Ele (ou ela) opera uma ) transferéncia macica para a minha pessoa”, a identificar o fenémeno da transferéncia 8 ‘com um investimento global que teria sim- plesmente mudado de objeto ou de alvo. ‘Assimilag&io que pode levar, através de um deslizamento insensivel, a confundir a “pes- soa psiquica” com a pessoa real: “Ele se comporta comigo como se comportou com seu pai.” (Grande progresso!) E até, por um se- gundo deslizamento, levar a confrontar 0 sU- posto “infantilismo” do paciente com a “rea- Jidade” do analista. “Sabe muito bem que eu nio sou o capitéo cruel”, dizia Freud a0 hhomem dos ratos, num momento de extrema tensdo, é verdade, Evidentemente, esse “eu nio sou quem vocé pensa”, nés ndo 0 enun- ciamos, mas quem garantiria que, in petto, nio o formulassemos, nem que fosse ao me- nos para nos trangiiilizarmos quanto & nossa identidade vacilante? ‘Aqui, a ironia nfo cabe. De fato, é real- mente nisto que reside o paradoxo da trans- feréncia: o analista é simultaneamente o transitario e o destinatario. Muitas vezes, da parte deste, desviar o amor ou o ataque para ‘uma figura do passado é uma defesa: “Nao 6 a mim que se dirige esse discurso.” Desvio necessirio, desde que nio-seja uma fuga (no sentido em que o cavalo foge diante do obstdculo que o amedronta ou se afasta dian- te de uma sombra). Mas reduzir tudo ao + “aqui e agora” — “It a mim que esse dis- curso se dirige” — nao é melhor; seria to- mar a presa pela sombra, confundir o ma- nifesto e 0 latente. Eu é um outro,* mas é realmente um eu que é um outro. Podemos sair dessa; bem ou mal (antes mal), recor- rendo ao conhecido artificio: “Tudo acontece —aqui e agora — como se 1a ¢ naquele tempo...” Como ultrapassar (supondo-se que isso seja preciso) 0 paradoxo “destinatério-tran- sitério”? Primeiro, nfo chamando de trans- feréncia, num sentido derivado da psicologia, a permanéncia de uma relagio de objeto, ou até de hébitos progressivamente constitui- dos, ou a sedimentagio de um cardter (ao Aluso ao célebre verso de Rimbaud. (N:T.) 7 que néo escapa qualquer promocao da re- ago de objeto, oral, anal, narcisico-félica ete.). Voltemo-nos, antes, para uma das pri- meiras definigées freudianas da “coisa es- tranha”. O que encontramos nela? Que, du- rante a terapia, “a produtividade da neurose se exerce criando (o grifo é meu) um género particular de formacdes de pensamentos [Gedankenbildungen], na maioria inconscien- tes, as quais pode-se dar o nome de trans- feréncias”.* Nessas transferéncias, Freud vé “novas edigées”, que podem ser’ simples re- impressées, ou, na maioria das vezes, edigdos revistas e corrigidas. A analogia com o livro néo é indiferente; ela conduz para as inscri- ges e para os vestigios, e no diretamente para o objeto, para o nascimento de uma escrita, e nfo para a revivescéncia de uma imagem ou a evocacdo da lembranga. Novas ediges de qué? Em outras palavras, 0 que 6 transferido? A resposta de Freud, nessa etapa j4 avangada de sua experiéncia (1905), nao contém ambigitidade: mogées pulsionais, fantasias, experiéncias ps{quicas (Erlebnisse). E estes sdo transferidos para o analista, um Pouco como os desejos infantis utilizam, na formaciio do sonho, alguns restos seleciona- dos do dia. Da mesma forma, a concordancia entre o analista — esse “resto” permanen- te, oferecido dia ap6s dia — e o sonho & ex- plicitamente apresentada por Freud. Cito ainda: “A psicologia das neuroses nos ensina que a representacio inconsciente néo pode, como tal, penetrar no pré-constiente e que ela 86 pode exercer ali um efeito quando se alia a alguma representagéo anédina que jé pertencia ao pré-consciente, para a qual ela transfere sua intensidade e que lhe serve de cobertura. Isso é o fenémeno da transferén- cia.” A funcdo trensferencial do analista se acha reduzida @ de uma representacéo ané- dina, de um resto diurno ou de uma lembran- ¢a de cobertura, Nada mais nem nada me- nos: s6 procedemos por “conexdes falsas” e “falsas aliancas”. As conexdes se fazem ape nas mais estreitas. Nesse ponto, duas observagées: 1) Ainda que o lugar do analista nfo seja mais assimilado ao de um arquivista-leitor — a inflexivel Dora nfo o teria permitido! — nem por isso a.transferéneia é definida como ressurgéncia de uma relagéo ou de uma figura parental, ou mesmo de uma ima- go. So elementos de natureza diversa — pensamentos, afetos — que séo transferidos para, Entio, pode-se afirmar que uma and- lise, no sentido estrito do termo — desliga- go — 6 possivel. Deve-se, diz Freud, “dis- solver” as transferéneias uma a uma. 2) Todavia, permanece um equivoco: esses elementos transferidos — e que podem ser to pontuais quanto tragos de identifi- cago: uma entonacéo, uma data, a silaba de um nome — voltam, sob uma forma que os tora irreconheciveis A primeira vista, mas isso é uma volta? Ou entdo — reporto- me & palavra “criando”, que sublinhei ha pouco — so elas algo de novo? Também aqui, correspondéncia possivél com o sonho: exprime este 0 desejo ou o cria? E a inter- 80 pretacio? E a metéfora? Apenas transpéem? ‘A transferéneia 6 algo novo, 6 algo velho, ou algo novo feito com algo velho? Prosa laboriosa do que foi ou poesia do que advém? Qualquer que seja, no momento, a nossa resposta, j4 tomamos alguma distancia — viajamos lentamente, também nés, com brus- cos arrancos.., — em relagéo & concepgao mais usualmente admitida, que Michel Ney- raut designou sob 0 nome de qui pro quo (em trés palavras que mais freqiientemente se condensam numa sé, ¢ com isso nos en- contramos no teatro e até no vaudeville). Qui pro quo, isto é “ressurgéncia de uma figura anterior em uma figura do momen- to”* Eis de novo a “figura” e eis de novo a “ressurgéncia”. De minha parte, e conti- nuando na nossa cozinha em latim, eu diria pars pro toto: metonimia. Alguém diré que até aqui tomei como apoio um periodo antigo, “arcaico”, segundo alguns, da psicandlise, um periodo em que Freud tentava atribuir limites @ transferén- cia, inseri-la, no fundo, na série das forma- Bes do inconsciente, e que foi com Dora, precisamente (ou depois, uma vez inter- rompida a terapia) que ele tomou-lhe a justa medida, isto é, que ele conheceu-lhe a des- medida: eco enfraquecido de Breuer fugindo diante de Anna O. Talvez; embora seja fa cil — mas meu propésito néo é tracar a his- t6ria, extremamente complexa, da nocio’ — encontrar provas da preocupacéo de Freud em circunscrever-lhe 0 alcance, tanto na teoria quanto na pratica. Paixiio O que, aparentemente, vai mudar por com- pleto essa maneira de ver e proceder? A re- peticgo. Em vez de rememorar, elaborar, ou seja, de fazer o que se espera deles, cles re- petem, repetem incansavelmente, Em vez de dizer e simbolizar, agem, pois a repeticéo, mesmo que utilize a via das palavras, é um “agir”. Uma meméria agida, se assim po- demos dizer, isto é, uma nio-meméria, uma recusa da meméria que 6 totalmente dife- rente de uma amnésia, Enfim — 0 cimulo para a tese original da realizagéo do desejo — 0 que se repete & a experiéncia dolorosa. E como reconhecer na dor — no digo no sofrimento* — um parentesco, mesmo dis- tante, com o prazer? © masoquismo e suas pretensas delicias ndo tém resposta para tudo. Dai o Além do principio do prazer, 0 texto mais aventuroso de Froud, e também © mais clinico, sob seu aspecto “especula- tivo”. & ali, sem dtivida, que a estranheza da transferéneia nos aparece em plena sombra, mais do que em plena luz, no que cla tem de “demoniaco”, de basicamente unheimlich: © estranho, desta vez, se mantém e nos mans tém iméveis. “Repeticfio” pode ser uma palavra enga- nosa. Mais que “transferéneia” ainda, que implica pelo menos deslocamento, ela desig- na algo pasado: repete-se um ato, uma fra- se, uma cena. Por qué? Nao para despren- der-se, mas ao contrério, para ser sempre 83. mais fiel ao que j4 esté ai, para ficar o mais perto possivel do original (pensemos no obje- tivo e nos tormentos do tradutor, no intér- prete musical, no trabalho dos ensaios tea- trais). Para que tudo sejao mesmo, e se possivel uma vez por todas! Palavra enga- nosa, dizia eu, se a orientamos inteiramente para o passado, pois o que a repeticéo da transferéncia visa é 0 presente. Freud bem percebeu isso, certamente sempre no con- texto da oposicdo canénica entre repetico e rememoragéo, como se o tempo da reme- moragio no fosse uma referéncia mitica (nenhuma terapia nunca se submeteu a isso). Mas é para acrescentar logo que o que procuram as mogGes inconscientes é “repro- duzir-se segundo a intemporalidade e a ca- Pacidade de alucinacéo préprias ao incons- ciente”. A analogia com o sonho se impde outra vez, mas toma agora um sentido com- pletamente diferente: na transferéncia, assim como nos sonhos, “o paciente atribui ao que resulta dessas mogGes inconscientes desper- tadas um cardter de presenca e de realida- 84 de”. E depois, esta f6rmula tio forte, para coneluir, téo forte e desconcertante quanto 0 que ela encontra: “Ele quer agir suas pai- x6es."* Intemporalidade, alucinagio_primitiva: motivos tiltimos do que chamei atracdo do sonho. Procura idéntica na transferéncia, mas em outro registro, e entéo, 6 uma forca de atragio mais poderosa que seria neces- sario invocar. A imposigio exercida pelo analista — afaste-se da imagem, persiga os vestigios, verbalize, associe, em resumo, fa- amos uma anélise — responde uma outra imposig&o que, note-se, 6 menos repeticéo do que encarnacéo. Como se chegasse um tempo — um tempo ne¢essirio — em que néo pudéssemos mais nos satisfazer com pa- lavras e evocagées, cadeias associativas, li gagdes e desligacses, deslocamentos e con- densagées. Pedimos aquela “libra de carne”, Exigimos ser pagos em objetos reais e em pessoa, sem moeda de troca, Estamos cansa- dos de viajar, de ir de uma estagéo a outra, queremos permanecer. I preciso que a “coi- 85 sa” esteja 14, que o lago com ela esteja as- segurado — lago de amor ou de édio, mas © de édio, como se sabe, é mais estavel, pois institui e fixa para mim o objeto, em seu estatuto de néo-eu. O paciente “age suas pai- xes”. No presente. © que se torna entéo a anélise? A causa est perdida no préprio momento em que os assuntos sérios comegam, em que a paixéo, em geral mais surda que declarada, ocupa © terreno? Paixfio mais estranha ainda que as paixdes ordindrias, sendo 0 seu objeto de origem desconhecida. E isso, 0 paciente o pressente, esforcando-se, na maioria das ve- zes, em néo querer nada da vida privada ou das eventuais atividades piblicas do seu analista: ele pertence s6 a ele. A “vida pri- vada” esté ali, apenas ali, entre as quatro paredes do consultério. Estranheza dessa transferéncia, Especi- ficidade que, geracdo apés geracéo, analista apés analista, experimentamos cotidianamen- te, mas que temos tanta dificuldade em de- finir e transmitir. 86 Evidentemente, os analistas nfo sao os inicos a serem objeto ou alvo da transferén- cia, sob todas as suas formas — idealizante, persecutéria, de amor e de édio — a litera- tura romanesca oferece mil exemplos: eles se inscrevem na “série ps{quica” bem conhe- cida do padre, do médico, do professor e do dono. Essas sio figuras, menos de autorida- de, como se diz as vezes apressadamente, do que de detentores do segredo: segredo da alma, do corpo, do saber, do poder sobre o espirito, sendo o analista, neste aspecto mais préximo dos pais, aquele que se supde de- ter o saber sexual (mas isso j4 esta inscrito nas figuras precedentes), Saber que, certa- mente para a crianga, e também para o adul- to, transcende todo saber —o que a sexo- logia, em seu principio, desconhece —, saber que nao pode se representar ou s6 se repre- senta de maneira “genialmente” deformada (as “teorias sexuais”), 1 possivel observar um coito, 0 gozo no se observa. Nao basta assistir a um nascimento, sempre se indagardé indefinidamente a-sua origem. Talvez a cena 87 primitiva sé adquira seu estatuto de acon- tecimento real entre as quatro paredes da anilise. “gir suas paixdes.” A transferéncia é um “agir”, a transferéneia é uma paixfo, nao um “dizer” (ou entéo, um “dizer” que 6 “fazer”), e € isso que torna téo dificil, tan- to para o paciente quanto para o analista, falar do assunto. Um sonho, com a condi¢io de limitar-se ao relato, e mais ainda se é qualificado de “material onirico”, pode ser reconduzido a um texto, e, ao menos no pa- pel, interpreté-lo é traduzi-lo Da mesma for- ma o conteiido verbal de uma sessio, Mas a transferéncia ndo se relata, néo se escreve nem se traduz, niio é um texto: daf a insu- ficiéncia basica de todo relato de anilise, tome ele ou néo a forma narrativa, seja ele histria de caso ou ordenacdo de fragmen- tos. Transmitir por escrito, na verdade, o que constitui a andlise esté por ser inventado. Um discurso sobre a transferéncia, como 0 que estou fazendo agora, esté ao alcance de todos. O problema é que a transferéncia, na sua violéncia presente, escapa & ordem ea violéncia do discurso. Mais ainda: ela a contradiz. Violéncia contra violéncia. Freud descreveu a paixdo da transfe- réneia principalmente quando ela assume a forma confessada do amor, e entao, ele que 6 tio pouco inclinado para o pathos (enquan- to que nossos contempordneos cultivam a “andlise patética”: sofrimento, solidao extre- ma, abandono etc.) encontra imagens fortes. Suas “Observagées sobre o amor de trans- feréncia” continuam sendo um dos seus tex- tos mais interessantes, mais corajosos, em que, com a dose exata de humor (0 contrério da ironia), nada 6 omitido do desencadear- encadear que a andlise pode suscitar. Talvez eu devesse contentar-me em retranscrever aqui, na integra, essas paginas tio profunda- mente perturbadoras. Lembremos ao menos isto: “Qualquer que tenha sido, até agora, a sua docilidade [da paciente], ei-la que cessa de mostrar 0 menor interesse, a menor com- preensio em relagdo ao seu tratamento [...] A cena mudou inteiramente, tudo acontece 80 como se alguma comédia tivesse sido subita- mente: interrompida por um acontecimento real, por exemplo como quando hé um in- céndio durante uma representagao teatral.’ Talvez se deva atentar menos para ‘a imagem do fogo (a “chama”, 0 “fogo”, a “queimadura” das paixdes) ou até mesmo para a imagem, apresentada um pouco de- pois, das “matérias explosivas” que o ana- lista manipularia, do que para a oposi¢ao entre comédia e cena, por um lado, e acon- tecimento real, por outro, A aparicio do acontecimento — aqui amor, ali édio, mas também sob formas menos acusadas, menos claras, toda transferéncia — faz assemelhar- se a uma “comédia” aquilo que, de modo mais ou menos temperado, se representava até entéio na cena da anilise. 1 por isso que associar, segundo o uso, cena e transferéncia — entio reduzida a um repertério de dra- matis personae — me parece inadequado. Se prosseguimos com a metéfora do tea- tro, chegaremos ao paradoxo seguinte: a repeticao, a “verdadeira” repeticao, no sen- 90 tido freudiano, que a transferéncia provoca, 6 0 que escapa A representacdo, a cena re- presentada e figurada, e & série de “ensaios” que, precedendo-a, a permitiram, Ou ainda, para recorrer de novo A metéfora ferrovidria, eis que saimos dos caminhos j4 “desbrava- dos”: descarrilamos. A referéncia ao inconsciente como outra cena (Fechner pingado por Lacan, retomado e desenvolvido por Octave Mainoni) e até a assimilagio do inconsciente a um corpo esteanho (antepassado: Charcot) tomam um aleance completamente diferente. Corpo a corpo psiquico, por assim dizer, entre 0 amor e a guerra, Concebe-se que, quando a anilise acaba falando assim a linguagem da paixio (a pai- xdo esta sempre 14, adormecida, e volta a superficie entre os grupos psicanalfticos e mais ainda no interior deles), o analista, numa situagio inversa 4 de Ferenczi evo- cando a confusdo das Iinguas entre a crianca € 0 adulto, fique tentado a se proteger pela linguagem da ternura: tentagio A qual tal- aL vez nfo escapou Winnicott, desconhecendo © pai e principalmente recobrindo, com a s0- licitude da mie “suficientemente boa”, a mu- her excitante, desejavel, perdida, esquiva e maliciosa, .. (quando nao se sabe como qua- lificar, os adjetivos ocorrem as diizias!). O acontecimento real ‘Um pequeno passo atras. No mesmo momen- to em que Freud reconhece plenamente, de- pois de té-lo considerado por muito tempo como um obstaculo, 0 que hA néo s6 de ine- vitavel mas de necessério na experiéncia da transferéncia, néo abandona por isso a idéia primeira de transferéneia de representagées. Eno mesmo trecho do Além... que ele ret ne as duas afirmagées. Trecho bem conhe- cido, mas que sempre se deve meditar. Por um lado, diz ele que, ao contrério das “pre- feréncias” do médico, o doente é obrigado a “epetir o recaleado como experiéneia vivida no presente”, que nao hi meio de fazer vol- 92, tar & meméria todo o recaleado e talvez, pre- cisa-se, 0 essencial. Mas, por outro lado, 0 que sobrevém assim com “uma fidelidade que nao se teria desejado [sublinho a pala- vra “fidelidade” que apresentei hé pouco] sempre teve como contetido um fragmento da vida sexual infantil” * Ou seja, nao somos convidados a rele- gar a um tempo findo a concepgiio das trans- feréncias pontuais, identificdveis, de uma representacdo a outra, e a considerar como nica valida, correspondente a um segundo tempo da evoluc&o de Freud — tempo que também seria o nosso — a que faz da trans- feréncia o tnico motor, muitas vezes imé- vel, da andlise. Essas duas’ concepeées, cabe- nos pensé-las conjuntamente na teoria, para poder separd-las na pratica, Tal 6 a condi¢&o do movimento da anélise. Qual 6 pois esse “essencial” que se re- cusa & meméria, & “remembranga”, seniio 0 que foi chamado realidade psiquica? “Rea- lidade psiquica”, mais uma nogéo que se tornou irisipida até designar apenas um “psi- quismo” mole, sem contornos, ou mesmo um reservatério de imagens, proprio a cada ‘um, ao passo que ela visa, no fundo, a irredu- tibilidade do sujeito, esse “nicleo do nosso ser”, do qual os vest{gios mnésicos, os “pen- samentos de transigéo e de ligagiio” consti- tuiriam somente a periferia. “Quando nos encontramos, escreve Freud, em presenca dos desejos inconscientes reduzidos A sua expresso dltima e mais verdadeira, somos realmente forcados [de novo a imposigao] a dizer que a realidade psiquica é uma forma de existéncia particular.” A repetigéio transferencial nos confronta com essa realidade, nos pée na presenca dela, “a tiltima e mais verdadeira”. Ela é realmente esse acontecimento real evocado ha pouco, esse incéndio no teatro, que poe fim a representagio e mistura em grande desordem espectadores e atores. E é um acon- tecimento: no ocorreu outrora, ocorre ago- ra, advém, Estranho fendmeno, em que se conjugariam repeticao e primeira vez. Quan- to mais se repete, menos se gasta; mais se 4 | t torna atual, a0 contrério, O que se repete na transferéncia, age-se na paixio, e, logo, néo acontecera, nao encontrara seu lugar psiquico. Ensaia-se sem texto.* “Esta noite se improvisa.” © que se deve chamar contratransferéncia? Se a transferéncia é realmente aquilo atra- vés do qual se exprime o “essencial”, se o Jogo se perde ou se ganha nesse terreno, seremos naturalmente levados a levantar a espinhosa questo da contratransferéncia, Espinhosa, pois oscilamos entre duas atitudes entre as quais nfo ha escolha, Uma, consi- derada “ultrapassada”, que vé nela apenas a interferéncia da “equacdo pessoal”, a cor- rigir imediatamente, do analista: se este foi bem “profundamente” analisado, ele mal per- * Em francés, “on répéte sans texte”. O verbo Tépeter signitiea “ensalar” © também “repetix”. (N.T.) cebe uma manifestacéio contratransferencial que ele deveria apressar-se a reconduzir, para impedir-lhe os efeitos, as suas fontes subjetivas, com a ajuda das virtudes da auto- andlise. A outra concepgfio, que prevalece hoje — néo se exige do candidato que so- licita a validagiio dos seus controles que ele tenha bem percebido e sabido utilizar a sua contratransferéncia? Isso tornou-se um cri- tério —, considera como um componente fun- damental de toda terapia aquilo que, partindo do analista, vem menos infletir do que in- formar a relagio, Sempre a relagdo! Afinal, ébem verdade que nfo se dizem as mesmas coisas, e principalmente no se dizem do mesmo jeito, segundo o interlocutor: a este, devemos poupar (cle 6 fragil), aquele, deve- mos atacar (ele é blindado, procuremos o calcanhar-de-aquiles). Nesse ponto, a expe- riéncia de andlises sucessivas é elogiiente. ‘Mas quantos equivocos em tudo isso! Primeiramente, se a contratransferéncia 6 0 homélogo da transferéncia, o que significa estar consciente dela? Ver os seus pontos 96 cegos? Depois, insistindo-se demasiadamente na contratransferéncia, no se acaba confun- dindo a sittagao analitiea com a relagio en- tre dois inconscientes? O espectro da “lo cura a dois”, em que ninguém pode decidir quem é 0 indutor e quem é o induzido, nio esta longe. Tentemos esclarecer a situacio. Aqui, no parece que Freud possa ajudar muito. Apenas duas ou trés indicagGes:!* “dominar” a contratransferéncia, e, se for necessirio, se a auto-anélise néo bastar, refazer uma fatia de sua prépria anélise, tomar um banho, Na falta de uma assepsia total, sejamos nés mesmos limpos, pelo menos! # as geracdes seguintes que caberd efe- tuar, quanto a contratransferéncia, uma evo- lugéo comparavel a que se atribui a Freud em relagéo & transferéncia: obstdculo e de- pois alavanca (se bem que as coisas, como vimos, ndo sejam tao simples). Poderfamos comparar, a esse respeito, dois artigos de psicanalistas mulheres. Um deles, de Ida Macalpine, que teve grande re- 7 percussio quando foi publicado (1950): a transferéncia ndo vem apenas do neurético, da sua “disposicao para a transferéncia”; ela & produzida pela situac&o, indutora até pelo set, da regressio. O outro, de Paula Hei- mann (mesmo ano), que hoje parece bem timido, mas que marcou época porque pre- conizava a utilizagio das “reagées emocio- nais” do analista na propria interpretagio.'* Nao € certo que esse modo de ver contra- diga, como diz Paula Heimann, a concepeao dita classica do analista como superficie pro- jetiva, espelho, tela. Antes, ele The assegura- ria uma extensio, tornando-se o analista uma pelicula ultra-sensivel e ndo mais apenas esse caderno de notas magico, que registra e guarda inscriges na meméria, No entanto, pressente-se o riseo — um conluio, uma trapalhada — e compreende- se a prudéncia de Freud. Alguns partidarios figis da contratransferéncia dizem: “Eu me aborreci mortalmente durante a sessio, logo, © paciente esté procurando’ me humilhar”, ou: “Tive uma fantasia erdtica, logo, ele (ow ela) esté procurando me excitar”... Agéo imediata direta, transmissio sem desvios, contaminago. Emissor-receptor, agente-pa- ciente, nés nos perdemos nessa relago que merece entdo ser plenamente quelificada de dual, em que néo se poderia separar 0 teu do meu, determinar quem é 0 reflexo do outro. ‘Tentei, num texto j4 antigo — “Le mort et le vif entrelacés” — distinguir, justamen- te, 0 que est por trés da palavra “contra- transferéncia”.* Diferenciei quatro niveis, designados por quatro palavras, mais suges- tivas de imagens do que de conceitos: em- presa, surpresa, posicio e dominacio. — O que é a “empresa”? I o que nos levou a nos tornarmos analistas, e mais ain- da o que nos faz continuar a sé-lo. Para isso 86 pode haver respostas muito pessoais, que no se poderiam resumir, como se desejou fazer, sob 0 titulo: “o desejo do analista”’ # lamentavel que tenhamos tio poucas no- ticias, mesmo longinquas, do que foi, do que € para cada um esse trajeto, Do tornar-se- 99 analista de Freud temos alguma idéia, e néo é a sua Selbstdarstellung que a dé, mas toda a sua obra de pensamento — esta é a verdadeira autobiografia de um criador — pois todos sabem que ele nfo tinha nenhum gosto pela confissio intima, e menos ainda pela auto-andlise em pitblico. — Por “surpresas”, fago alusio a esses movimentos que acontece pereebermos em nés — idéias, emogGes — quando tal discur- so, tais associagdes do paciente. entram em ressonancia com tal ponto sensivel de nossa histéria ou de nossa fantasistica, tal defeito de nossa couraga, Somos entéo atingidos em carne viva, e isso é bom, Isso nos lembraré, caso necessirio, nfio que somos semelhantes ao nosso paciente, mas que somos um pa- ciente. (Tantos analistas falam de seus paci- entes como se fossem superiores a esses “coi- tados”!) — Por “posigdes”, entendo algo que muitas vezes é definido como sendo a con- tratransferéncia, enquanto que se trata do Tagar que o analisado nos atribui, no qual 100 ele procura nos manter e do qual é as vezes bem dificil desprender-se, seja esse lugar o de um tirano persegitidor, e entéo toda in- terpretagdo é transformada em intrusio, ou de um ideal, que faz de nossas menores palavras um ordculo pronunciado pela “boca da verdade”. Por pouco que o lugar assim atribuido se superponha ao que nés mesmos nos atribuimos, as coisas se paralisam. Eis um exemplo, que me torna um tanto ridieulo Lembro-me de um paciente que atribuia & minha pessoa, e isso sem uma indenizacio excessiva (na minha opinido...) as qualida- des que, nos meus melhores dias, tendo a reconhecer em mim mesmo (néo direi quais sfo). Pois bem, ele me remetia uma imagem de mim mesmo téo de acordo com meus desejos — apesar de tudo, néo estou dizendo: de acordo com minha realidade — que tive muita dificuldade para desfazer-me dela. Inutilmente eu me dizia: como desmascarar a rivalidade? Onde se esconde a agressivi- dade? Seria a figura da mie? Ele me aca- 101 lenta com doces palavras, como sonha que foi acalentado. A figura do pai? Pelo espe- Iho lisonjeiro-que ele me oferece, ele nos poe a salvo do alcance, eu dos seus golpes, ele dos meus, ¢ fica assim bem confortével com uma mie s6 dele. Ou ainda: ele se de- precia osterisivamente para melhor reduzir- me, afinal, a nada, Nada adiantava. Ficamos assim durante algum tempo encantados um com o outro. Nunea se desconfia demais do consentimento mituo, inclusive daquele que muitas vezes pontua o fim da andlise: “Ter- minei, em perfeito acordo com meu anelis- ta.” Sim, diante desse consenso, nesse e em outros casos, 6 preciso desconfiar. preferf- vel a briga de foice ou o amor louco! — Insisto principalmente no quarto re- gistro, qualificado de “dominacio”, e que me parece o mais especifico do sentido, restrito, como se vé, que dou A contratransferéncia. Essa dominagio, cortos pacientes — e nao me parece oportuno relacioné-los exclusiva- mente com esta ou aquela entidade noso- 102 grfica, nem mesmo a dos “estados-limites”” — aexercem com uma violéncia psiquica particular. © caso mais notdvel é certamen- te 0 ja descrito por Ferenczi e ao qual voltei a partir de minha prépria experiéncia, er que o paciente suscita em seu analista uma paralisia do pensamento, uma imobilizagéo da psique, que pode também acarretar a do corpo. Nada se move, nada tem mais o di reito de mover-se, tudo esta sob interdicdo: auséneia de pensamentos, de representacées, constricéo corporal. Dessa vez, eu diria que se 6 atingido nfo em carne viva, mas morta. Seria possivel distinguir outras formas de dominagio. Harold Searles, baseado em seu trabalho de longa duragéo com psicéti- cos, forneceu impressionantes ilustragées cli- nicas, Bion também, com seus “objetos zarros”.!* Cada um, nessa rea, s6 pode fazer apelo a sua experiéncia singular, a experién- cia de uma alteridade fundamental em que somos ultrapassados por aquilo, que, em nés, acontece. 103 Poder-se-ia dizer certamente que esse é um tipo particular de reago (de reacéo pas- siva, por assim dizer: nfo nos sentimos passivos, mas “apassivados”), transferindo o paciente em nés, mais do que para nés, a fim de livrar-se dela, a sua loucura privada, © seu poder destruidor ou, em termos klei- nianos, os seus maus objetos. Poder-se-ia também, nesse ponto, dar ao gegen o seu pleno sentido de “contra”: ficamos con- teariados em nossas capacidades, tornados incapazes, completamente absorvidos que es- tamos pela dor de no conseguir represen- tar, fantasiar, associar, de ndo nos sentirmos outra coisa senfo aquilo que o paciente faz de nés, Nao é mais um papel que ele nos atribui. Ele nos atinge em nosso ser: seu “es~ forgo” para nos tornar loucos (segundo a formula de Searles), para nos tornar idiotas, doentes, amedrontados, dard resultado? Ser um objeto parcial, um objeto “a mimisculo”, 6 aceitével. Um objeto inanimado, é mais dificil. E, no entanto, isso é apenas o extremo da mudanga de estado. 104 ‘A capacidade de migrar Ora, é na mudanga de estado que reside a mola da anélise, que est essa especificidade de que procuramos aqui nos aproximar, que 6 simultaneamente para os dois protagonis- tas uma evidéncia e uma realidade indiscer- nivel. Se meu propésito tem um sentido — dou-me conta disso no decorrer do meu ca- minho incerto, mesmo se tomei o cuidado de demarcé-lo com algumas balizas freudia- nas — ele esta nessa palavra migracdo, que me ocorreu. Migracéo de uma representacdo para uma outra, de um sujeito para um ou- tro, de um mundo interno para um outro. Durante o panorama que tracei do destino da palavra “transferéncia”, também a vimos em acéo. Sim, a palavra “transferéncia” & uma palavra que se move, migra, como a coisa que ela desejaria designar. E seria ne- cessirio reconhecer essa capacidade migra- toria na prépria psicandlise. Penso aqui em uma palavra escrita por Freud, & qual eu desejaria dar um maior aleance do que aque- 105 le que Ihe confere o seu contexto. Nos a encontramos em uma carta dirigida a Max Eitingon, no momento em que o problema da andlise praticada pelos néo-médicos amea- cava abrir uma grave crise no que se podia ainda nessa data (1926) chamar de “comu- nidade” psicanalitica. Se deixamos cada So- ciedade, escreve Freud no essencial, resolver © problema como bem Ihe parece, “perdere- mos 0 privilégio de que gozamos até agora, © de emigrar como quisermos”.." Certamente ele néo pressentia entéo a sua propria emigragio, esta forcada, alguns anos depois. Mas talvez ele nao tenha esque- cido as suas primeiras migragdes: de Fri- burgo a Viena, do estudo do sistema nervoso ao do que se chamavam entdo as “doencas nervosas” (de onde deriva a palavra “neu- rose”, que permaneceu atual), da observacdo a0 microscépio das enguias de Trieste & es- cuta, atenta aos detalhes até entéo desaper- cebidos, das jovens vienenses. E para encon- trar 0 qué? A bissexualidade de umas e outras... A libido sciendi néo- para de se 106: deslocar, de mudar de lugar e de objeto. Ela viaja, e, ao viajar — Roma, Pompéia, a Acrépole, os longos passeios na montanha — muda de rosto: as vezes, usa uma méscara tragica, outras vezes adota os tragos e a mar- cha ligeiramente claudicante da Gradiva. O que é reivindicado aqui, nesse “privi- égio de emigrar”, nfo é 0 que definiria a psicandlise como uma disciplina essencial- mente migrante? De uma lingua — e de um dialeto — a outra, de uma cultura a outra, de um saber a outro, com os riscos que uma tal transferéncia comporta? A psicanélise nfio se desloca com armas e bagagens: apli- car os seus conceitos, impor suas grades de leitura é desconhecer a sua funcio. Ela é um movimento, mais do que uma instituicao, mais até do que uma histéria: um movimen- to que, ‘como a terapia, avanca por desvios, inflexées, procede por espirais, tem paradas © progressos. Falou-se muito da resisténcia 4 mudan- a, a do analisado, claro, mas nada se disse sobre a do analista. De um artigo recente de 107 ‘Maurice Dayan, que trata da mudanga, da- rei aqui apenas o titulo: “A impossibilidade de se desfazer de si”."* Pois bem, a meu ver, uma analise s6 é operante se o analista con- sente em desfazer-se de si: entendam-se nao 86 as imagens que ele pode ter e querer dar de sua pessoa, as certezas que o seu saber, a sua habilidade e.a pequena teoria portétil que ele fabricou Ihe dao, mas também, mais radicalmente, aquilo que se constituiu pou- 0 a pouco como o seu “auto-analista”. Tal- vex 86 trabalhemos verdadeiramente como analistas se conseguirmos curar-nos do de- sejo afirmado de sermos analistas. Quando ‘Winnicott dediea um de seus livros “Aos meus pacientes, que me ensinaram tudo”, nao faz alusio a um aeréscimo de experién- cia clinica que deveria a eles — 0 que todo médico, todo analista pode obter — mas a algo bem mais fundamental: uma anélise 56 6 realmente eficaz se faz vacilar as referén- cias, modifica o regime de pensamento, ¢, ousemos dizer a palavra, o ser do analista, A prova do esteanho: verificamos a cada 108 momento, em nosso trabalho, a pertinéncia dessas palavras vindas de Hélderlin.” Um trabalho que afinal sémpre nos confronta com esta tinica pergunta: por que, para sen- tirmos e reconhecermos em nés o estranho, temos necessidade de um outro estranho? Por que esse outro nos é indispensdvel para que nos tornemos um eu que nfo seja redu- zido a uma funcéo gramatical? © estranho é primeiro e mais evidentemente “esse desco- nhecido que vem até nds e que nio é nada para nés. Depois, num primeiro tempo, é aguele que evoca uma histéria a mil léguas da nossa, que luta com ela e se compraz em sintomas que nos fariam sorrir ou nos irrita- riam se no estivéssemos sentados em nossa poltrona profissional, e que se fecha em im- passes dos quais acreditamos ter saido. Isso pode nos instigar, fascinar ou cansar, como pode acontecer com todo viajante em terra estranha (nao digo com o turista que jf pen- sano dia em que voltaré para casa). O que so pois essas maneiras de viver, de alimen- tar-se, de amar? O que 6 essa lingua, que 109 néo entendo, mas que é uma lingua, isto 6, para os que a falam e no sao lingitistas, to- da a linguagem? O que sdo esses lagos de pa- rentesco tao autoritérios e aberrantes em comparaciio com aqueles aos quais estamos submetidos sem perceber? E depois, pouco a pouco, migramos, nfo para — ndo vamos nos confundir com, cada um com sua terra natal — mas em direco a essa terra, essa lingua, esse sistema estranhos. Entéo, a andlise co- mega. Ainda depois, quando nos tornamos familiarizados — heimlich — com esse mun- do, talvez excessivamente familiarizados — chega o tempo em que podemos legitima- mente dizer: meu paciente — é entio que a prova (nao recuso a ressondncia inicidtica da palavra) toma outro tom. Ela se interioriza. estranho, a alteridade esta em nés. B isso que eu visava na acepedo que dou & contra- transferéncia: transferéncia para nés do es- tranho, do que é mais estranho ao paciente. ‘A especificidade residiria ali. Falar a esse respeito de criacéo € excessivo: uma andlise nfo é uma obra, ainda menos uma m0 obra de arte; ao passo que pode acontecer que uma neurose seja uma, e grande, como Freud dizia da do homem dos ratos. Entre- tanto, produziu-se, no encontro entre dois estranhos e entre o que ha de mais estranho em cada um deles, algo que nfo pode se pro- duzir em outro lugar: 0 acontecimento real. Depois, haverd outras transferéncias: amaremos, trabalharemos, “sublimaremos”. As séries psiquicas so infinitas: teremos ou- tros amigos, colegas que consideraremos ir- miios — falsos e verdadeiros — alunos que consideraremos filhos — submissos e revol- tados — conheceremos mulheres que tere- mos aprendido a manter a boa distancia da “representagéo incestuosa” com a mie. Em suma, n6s nos sentiremos menos dominados e mais aptos a localizar as mareas de nossa servidao, e, assim, a responder ao velho de- sejo freudiano, mais capazes de diferenciar © presente do passado, isto é, de acolher presente como um dom, mais do que como uma sobrevivéncia. Mas a transferéncia agi- da, experimentada na anilise, produzida por uu ela, no se transfere, Inutilmente sera esque- cida, como o sonho, nos movimentos que a percorreram — sua escansio de queixas, prantos, ressentimento e prazer, seus altos e baixos — ela é inesquecivel no acontecimen- to, no advento que ela foi, Tal é a sua forga de atracio. uz A Inquietacéo das Palavras ‘A linguagem a salvo do desastre O vienense Karl Kraus que, como Lichten- berg, gostava de aforismos e, conseqiiente- mente, da lucidez escorchante, escreveu: “Ha duas espécies de escritores. Os que 0 sio e 0s que nao o so. Nos primeiros, o fundo e a forma pertencem-se como a alma e 0 cor- po. Nos segundos, adaptam-se como 0 corpo e a vestimenta.”* ‘Nao estou certo de que se possa afirmar que Freud era um “grande escritor”. Ba- sear-se no fato de que ele recebeu o prémio Goethe no é um argumento admiss{vel. Pa- rece que esse prémio prestigioso Ihe foi atri- buido por suas descobertas de pesquisador, de “incompardvel explorador das paixdes hu- us

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