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RESUMO
O artigo analisa três narrativas constitutivas do imaginário brasileiro sobre a Amazônia, com ênfase especial na
obra de Euclides da Cunha (1866-1909). Seus escritos amazônicos são tratados como narrativas que, carregadas de
“literaturidade”, criticam e reproduzem a ideologia de sua época. Narrativas que inauguram, indicam e estabelecem
um vasto campo para interpretações futuras da Amazônia. Através da comparação com José Veríssimo (1857/1916)
e Ferreira de Castro (1898/1974), perscrutamos outras obras e visões que têm a Amazônia como cenário.
Palavras-chave: História, Narrativa, Literatura, Interpretação, Amazônia.
THE RURAL IN THE HISTORY - EUCLIDES DA CUNHA, JOSÉ VERÍSSIMO AND FERREIRA DE CAS-
TRO: THREE AMAZON NARRATIVES.
ABSTRACT
The article analyzes three constitutive narratives of the Brazilian imaginary on Amazon, with special emphasis on
Euclides da Cunha (1866-1909) work. His Amazonian writings are dealtl as narratives charged of “literaturidade”,
which criticize and reproduce the ideology of his time. Narratives that inaugurate, indicate and establish a wide
field for future interpretations of the Amazon. By comparing with José Veríssimo (1857/1916) and Ferreira de Cas-
tro (1898/1974), we watch over other views that have the Amazon as scenario.
Key words: History, Narrative, Literature, Interpretation, Amazon.
ELI DE FÁTIMA NAPOLEÃO DE LIMA: Professora Associada III do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade – CPDA/DDAS/ICHS/UFRRJ.
4. CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido (ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazônia) 2ª.ed. Organização, in-
trodução e notas de Leandro Tocantins. Rio de Janeiro: José Olympio,1994, pp. 52/55.
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naquela natureza anfíbia, misto de enormidade que só se pode medir
águas e terras, que se oculta, com- repartida: a amplitude, que se tem
pletamente nivelada, na sua própria de diminuir, para avaliar-se; a gran-
grandeza. E sente-se bem que ela deza, que só se dizia ver, apequenan-
permaneceria para sempre impen-
do-se, através dos microscópios: e
etrável se não se desentranhasse em
um que se dosa, a pouco e pouco,
preciosos produtos adquiridos de
pronto sem a constância e a con- lento e lento, indefinidamente, tor-
tinuidade das culturas. As gentes turantemente...
que a povoam talham-se pela brave- (...)
za. Não a cultivam, aformoseando- É natural. A terra ainda é misterio-
a: domam-na...5 sa. O seu espaço é como o espaço de
Milton: esconde-se a si mesmo.
Na verdade, toda a retórica de Euclides (...)
da Cunha faz parte de seu arcabouço para via- É a guerra de mil anos contra o
bilizar o progresso, para indicar a sua neces- desconhecido. O triunfo virá ao fim
sidade, sob as perspectivas e soluções por ele de trabalhos incalculáveis, em futu-
apontadas. O escritor pretendia oferecer uma ro remotíssimo, ao arrancarem-se os
visão própria, sua, única — quem sabe a ver- verdadeiros véus da paragem mara-
dadeiramente primeira — daquela empreitada. vilhosa, onde hoje se nos esvaem os
No prefácio a O Inferno Verde, de Alberto Ran- olhos deslumbrados e vazios.
gel, Euclides da Cunha destrincha esse “futuro Mas então não haverá segredos na
remotíssimo”. Avaliando suas fontes diz: própria Natureza. A definição dos
últimos aspectos da Amazônia será o
Lemo-los; instruímo-nos; edifica- fecho de toda a História Natural...6
mo-nos; apercebemo-nos dos rig-
orosos ensinamentos quanto às in- À necessidade de ser útil, juntava-se
finitas faces, partículas necessárias, uma inequívoca necessidade de alcançar um
da terra; e, à medida que as distin- lugar de destaque nos destinos da República. É
guimos melhor, vai-se-nos turvando, sintomática a escolha do roteiro da expedição
mais e mais, o conspecto da fisiono- por um rumo diferente daquele realizado por
mia geral. Restam-nos muito traços William Chandless. Como afirmado por José
vigorosos e nítidos, mas largamente Carlos Barreto de Santana, em Ciência & Arte:
desunidos. Escapa-se-nos de todo a Euclides da Cunha e as Ciências Naturais,
7. Arthur Cezar Ferreira Reis no prefácio a VERÍSSIMO, José. Estudos Amazônicos. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970.
p. 4.
8. VERÍSSIMO, José. Estudos Amazônicos. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970. p. 141.
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sentada pelo que tinha de pior. do que porque desprezassem seus proventos.
Para o estado moral resultante teriam Dado aquele abatimento moral de que foram
concorrido, então, o meio no qual se efeti- vítimas, pouco lhes importava a comida ruim,
varam os cruzamentos, o ódio à civilização det- a casa paupérrima, a pouca roupa. Sentem-se à
onado pela perseguição e pelo aviltamento, e vontade nas extensas florestas dos seringais e
mais “um clima enervante a vencer, a subjugar dos castanhais. Por processos rudimentares ex-
o homem, uma natureza extraordinariamente traem a seringa, são capazes de passar longos
pródiga, a ponto de quase fazer cessar a luta dias de fome, bebem água de pântanos e se ali-
pela vida”. Veríssimo somava a esse meio natu- mentam de macacos, lagartos e “outros animais
ral pródigo “o abandono em que os deixam as repugnantes”, suportam com extraordinária
nossas circunstâncias políticas” para ponderar paciência a dolorosíssima picada do pium e de
que, talvez, sob essas, mais do que o simples outros insetos malignos. Filhos de selvagens,
fato dos cruzamentos ou a incapacidade absolu- descendentes dos brasílio-guaranis, nestas flo-
ta do índio para a civilização, [estão] as causas restas “trabalham com ardor, embora sem con-
do seu abatimento”9. tinuação, bebem, jogam, traficam, enganam e
Essa questão de que a prodigalidade da são enganados, passam a noite a beber cachaça
natureza que tudo oferta (rios infinitamente e a tocar viola, ganham um salário muitas vezes
piscosos, florestas onde a caça é farta, a ex- superior a dez mil-réis diários e voltam mais
istência de produtos úteis de toda a espécie) pobres do que foram, são o mestiço com toda a
seria a “responsável” pela indolência do cab- sua imprevidência”10.
oclo permeia, no senso mais comum, a visão Para estudar os usos e costumes
mais corriqueira que se fez da região. Em um amazônicos, José Veríssimo informa que não
patamar, digamos, mais “analítico”, o caboclo, será nos centros mais populosos que vai buscá-
desde há muito, dado que percebera a força de los, posto que já obliterados pela civilização,
sua “inimiga”, preferiu apegar-se ao recurso da e sim “entre os mais humilhados, porém mais
acomodação, da adaptação, a travar uma luta genuínos representantes das raças mestiças, do
que já sabia de antemão sairia derrotado. Mas, branco com o índio, e do tapuio, dessa gente
decerto, essa visão, ainda que corriqueira, não para quem a civilização foi madrasta...”. Era
será aquela que subsidiará os planos do pro- necessário ir buscá-los naquela “gente que vive
gresso. Será contra a “hostilidade” da natureza da sua primitiva e mesquinha lavoura de ma-
que, para vencer, precisará lutar. Seria tal “hos- niva, pescando ou caçando nas águas piscosas
tilidade” a responsável pelo “amesquinhamen- dos nossos rios imensos e quase inumeráveis,
to” do homem. ou nos fartos e infindos bosques da nossa terra
Veríssimo entendia que se não têm amor firme...”11.
ao trabalho seria menos pela preguiça somente
9. Ibid., p. 23.
10. Ibid., p. 24.
11. Ibid., p. 70.
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Poderíamos inferir da narrativa amazôni- de conservar a saúde. Ao forasteiro
ca de José Veríssimo que esta buscava a com- oriundo dos climas frios, ele será
preensão “exata” da região, diferente daquela sempre fatal, fazendo assim deste
Amazônia romântica que, se lhe legou algu- magnífico vale apenas uma região
ma poesia, “importou no desvirtuamento do — porventura a mais bela e a mais
que ela representava realmente como espaço, rica de todas — de mera exploração
como natureza e como resultante da ação cria- mercantil.13
dora e disciplinadora do homem”12. Diferente
também daquela que ao recusar esse caráter O autor acreditava que a excelência do
romântico, invoca não a exuberância do meio meio físico favorecia a criação de uma “socie-
físico como beleza, fecundidade, salubridade, dade progressista”, como tantas outras exis-
mas como hostilidade ou, para usar uma pa- tentes em outros lugares, bem como consider-
lavra mais amena, exotismo, este não somente ava a gente mestiça tão capaz quanto qualquer
como descoberta do outro, do diferente, mas outra. Mas haveria que se proceder ao incen-
como descoberta de que esse outro, esse dife- tivo ao povoamento, à agricultura (incluindo aí
rente deve ser encaminhado para não ser nem a pecuária). Reputava ser temerária e mesmo
outro nem diferente. nefasta a dependência exclusiva à valorização
Veríssimo não reputava que coubesse ao da borracha. É ainda a questão do clima que
clima qualquer culpa, mas também não repu- vai levá-lo às suas mais contundentes afirma-
tava que coubesse ao homem a inviabilidade de ções, posto que conhecedor do fato de que a
progresso na região. Amazônia não é toda ela dominada por um cli-
ma “hostil” e por acreditar que o povoamento
Não acredito que nenhuma raça es- feito com critério, inteligência e método pode
trangeira do Norte possa aqui fazer tornar o clima adequado à experiência humana
prole perdurável, a menos que se exitosa.
não cruze com os elementos indí- José Maria Ferreira de Castro nasceu em
genas, tapuios, negros ou seus de- Salgueiras, aldeia situada no povoado de Freg-
scendentes. Para o indígena, porém, uesia de Ossela, povoado dos mais antigos de
o clima, beneficiado pelas grandes Portugal, em 24 de maio de 1898. Aos 12 anos
correntes dos ventos alísios, é be- de idade, em 1910, completa sua instrução
nigno, e seria até favorável, se não primária, tira um passaporte para o Brasil e
fora a constante e flagrante viola- parte de Ossela a 6 de janeiro de 1911. Vinha
ção dos primeiros preceitos da arte para a Amazônia lendária, para o chamado “In-
12. Prefácio de Arthur Cezar Ferreira Reis. In: VERÍSSIMO, José, op. cit., 1970, p. 2.
13. VERÍSSIMO, José, op. cit., 1970, p. 84.
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ferno Verde”. mento sobre as formas modernas de escravidão.
Em A Selva, Ferreira de Castro traz à Fato esse recorrente na Amazônia de ontem e
tona “a vida miserável, o panorama soberbo, hoje.
o mundo novo, bárbaro e assombroso”, aquela
epopeia que assombrava “de que não ajuíza
quem no resto do mundo se deixe conduzir, ve- CONCLUSÃO
loz e comodamente, num automóvel com rodas
de borracha — da borracha que esses homens É de se notar que tanto Euclides da
tiram à selva, misteriosa e implacável”.14 No ro- Cunha como José Veríssimo pretendem o pro-
mance é evidente, translúcida a causa social, a gresso para a Amazônia. O que une os dois é
denúncia dos fatos da injustiça social. precisamente a ideia de que há uma proposição
altruísta, humanista-positiva. É justamente a
Eu devia este livro a essa majestade compreensão de que algo se pode erigir, pro-
verde, soberba e enigmática que é por soluções. As soluções apontadas, no entan-
a selva amazônica, pelo muito que to, seguem rumos diferentes. Aquela apontada
nela sofri durante os primeiros anos por Euclides da Cunha é a da domesticação da
da minha adolescência e pela cora- natureza (natureza que inclui solo, clima, veg-
gem que me deu para o resto da etação, homem) — conquistar a terra, dominar
vida. E devia-o, sobretudo, os anôni- a água, sujeitar a floresta — como condição
mos desbravadores, que viriam a ser do progresso, obedecendo à tradição do evo-
meus companheiros, meus irmãos, lucionismo positivista, confiante demasiado na
gente humilde que me antecedeu ou perspectiva civilizatória do progresso técnico-
acompanhou na brenha, gente sem científico. A de José Veríssimo é a de que o pro-
crônica definitiva, que à extração gresso chegue tendo em conta o vilipêndio das
da borracha entregava a sua fome, a populações nativas, apontando, por estudos
sua liberdade e a sua existência. De- pormenorizados, traços peculiares tanto das
via-lhes este livro, que constitui um populações indígenas e mestiças da Amazônia,
pequeno capítulo da obra que há de como dos problemas e interesses da região.
registrar a tremenda caminhada dos O que une Euclides da Cunha, José Verís-
deserdados através dos séculos, em simo e Ferreira de Castro é o tema da denúncia
busca de pão e justiça.15 social. Observando a questão do romance de
Ferreira de Castro e dos relatos de Euclides da
Sem dúvida, A Selva é um patético docu- Cunha e José Veríssimo, o romance de Castro
16. Sertão e selva, no período ao qual estamos nos referindo, são espaços geográficos tomados na relação/oposição à civilização do
litoral. São seus similares os espaços de fronteira, tais como o deserto, o pampa, o llano, o altiplano, o mato.
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referente ao sertão e à Amazônia (ambos mi- astrônomos Louis Cruls, em 1892, ao Planalto
tos de caráter regional que não foram capazes Central visando à mudança da capital; e, as ex-
de incluir a nação em uma única narrativa), pedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz.
marcando o pensamento social ocupado na A viagem de Euclides da Cunha a Canudos e o
produção de uma identidade cultural para o
impacto de Os Sertões na intelectualidade do
país.
período atestam o grau de importância que as-
É preciso lembrar que um discurso sumira a interiorização do país. O sertão, para
negativo sobre o homem e a nature- os intelectuais-cientistas do primeiro período
za da América permite a legitimação republicano, integra o mesmo campo semân-
da expansão européia. A tese da de- tico de incorporação, progresso, civilização e
generação dos animais, das plantas e conquista (LIMA, 1997, p. 167). Assim,
do homem americano, assim como
a tese da juventude do continente, Em diálogo com o sertanismo de
abre espaço para a ação civilizada inspiração romântica, mas não ne-
do homem branco. (OLIVEIRA, cessariamente em oposição a ele, é
1997, p. 204) possível também falar de um movi-
mento de valorização do sertão que
Lúcia Lippi Oliveira nos lembra que foi acompanhou projetos de construção
no período 1890/1930 — em plena vigência da de ferrovias, de delimitação de
República cuja estratégia era manter São Paulo fronteiras, de saneamento, de ma-
no controle da vida política no país — que se peamento cartográfico e utilização
resgata a figura do bandeirante “como símbolo de recursos naturais. Fortemente
da pujança paulista baseada em qualidades indi- associado à presença do Estado, ele
reuniu atores sociais informados
viduais de coragem, determinação e ao mesmo
pelo cientificismo dominante entre
tempo em atributos nacionais, já que fora a ação a intelectualidade. (LIMA, 1997, p.
destes homens que dera sentido à integração 164)
territorial do país”. E acrescenta, mais adiante,
“os mamelucos formaram uma raça aclimatada Razões de natureza estratégica, es-
ao solo e ao clima, e o êxito da expansão ter- pecialmente o problema das fron-
ritorial acaba por compensar a dizimação dos teiras, eram igualmente levadas em
povos inferiores” (OLIVEIRA, 1997, p. 209 e consideração no conjunto de sua
210). obra. O país deveria rumar em di-
reção ao Pacífico e tecer uma malha
Durante os primeiros anos da Repúbli-
ferroviária capaz de integrar suas
ca, as incursões ao interior, já iniciadas no Im- distintas regiões. Daí a admiração
pério, se intensificaram e ganharam novos sig- que, mais de uma vez, manifestou
nificados: as expedições de Cândido Rondon; pelas atividades de Rondon. (LIMA,
a da Comissão Geológica em São Paulo; as dos 1997, p. 172)
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Cândido Mariano da Silva Rondon, IBGE, o DNOCS e, até mesmo, a
figura mítica da história do Brasil republicano, Calha-Norte. (OLIVEIRA, 1997, p.
intitulava-se um “sertanista” que há vinte anos 202)
lidava com as rudezas semibárbaras da lingua- Com efeito, Euclides da Cunha ideal-
gem dos caboclos e com as asperezas torturantes izou o projeto de uma ferrovia transacreana,
dos idiomas indígenas (LIMA, 1997, p. 174). minuciosamente descrito, como uma “grande
Uma das leituras da obra de Euclides estrada internacional de aliança civilizadora,
da Cunha, apropriada pelo Estado Novo, foi e de paz”. Como afirma Francisco Foot Hard-
precisamente aquela que não vê aí o sertanejo man, ao idealizá-la “em meio a argumentos
como degenerado (por conta da miscigena- técnicos, geopolíticos e econômicos, elabora
ção) e sim como retrógrado. O atraso se deve uma visão plenamente organicista, tornando o
ao abandono e não a determinações de ordem caminho de ferro corpo vivo e integrado num
genética. À civilização caberia “sincronizar os movimento evolutivo uniforme da sociedade
tempos sociais do sertão e do litoral, trazendo em relação à natureza” (HARDMAN, 1991, p.
para o nosso tempo ‘aqueles rudes compatri- 101). Exemplifiquemos, como faz Hardman:
otas retardatários’”. A ação governamental se-
ria capaz de conciliar “a diferença entre tem- Todas as grandes estradas, no evita-
pos sociais”, posto que a ela cabia “trazer os rem os empeços que se lhes antol-
espaços atrasados e incultos para a civilidade” ham, transpondo as depressões e
iludindo os maiores cortes com os
(OLIVEIRA, 1997, p. 201).
mais primitivos recursos que lhes
Note-se que essa leitura corresponde
facultem um rápido estiramento
àquela ideia preconizada por Bilac, Alberto dos trilhos, erigem-se nos primeiros
Torres e outros autoritários, agora mais elab- tempos como verdadeiros camin-
orada. Euclides da Cunha, o “missionário do hos de guerra contra o deserto,
progresso”, na Amazônia, imperfeitos, selvagens... Depois en-
volvem; e crescem, aperfeiçoando
propõe a recuperação do rio Purus, os elementos da sua estrutura com-
a construção de uma estrada de fer- plexa, como se fossem enormes or-
ganismos vivos transfigurando-se
ro — a Transacreana — que seria ca-
com a própria vida e progresso que
paz de espalhar frentes de coloniza-
despertam. (HARDMAN, 1991, p.
ção e proteger as fronteiras do país. 101)
Neste sentido, Euclides pode ser
visto como um precursor de idéias À visão aguda “das linhas desviantes do
e projetos que foram implementa- progresso”, o engenheiro-militar-artista “con-
dos com, ou sem sucesso, anos mais trapõe um projeto integral de civilização, in-
tarde, como a Madeira-Mamoré, o spirado, também, nos melhores exemplos do
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neocolonialismo europeu na África e na Ásia. A nos dias atuais.
ciência toma o lugar, aqui, das antigas missões O autor fornecerá subsídios para o en-
religiosas”. E Hardman percebe, de forma cer- frentamento daquela “terra ignota” à buro-
teira, tratar-se “de um transplante ainda mais cracia ilustrada da República e influenciará a
radical da cultura”, expressado assim por Eu- maior parte da produção literária que, a partir
clides da Cunha: de então, tomará a Amazônia como cenário de
suas obras, até que, nos anos quarenta do sé-
Abra-se qualquer regulamento de culo XX, venha a surgir uma visão mais autóc-
higiene colonial. Ressaltam à mais tone da região, muito especialmente com Dal-
breve leitura os esforços incom- cídio Jurandir (dentre outros títulos, Chove nos
paráveis das modernas missões e o campos de Cachoeira, 1941; Marajó, 1947; Três
seu apostolado complexo que, ao casas e um rio, 1958; Passagem dos Inocentes,
revés das antigas, não visam a ar- 1963; e, Primeira manhã, 1968).
rebatar para a civilização a barbaria Será contra, justamente, o preconceito
transfigurada, senão transplantar, telúrico, posto que estigmatizara a região, que
integralmente, a própria civiliza- levantar-se-á a voz daqueles que lutaram firme
ção para o seio adverso e rude dos e arduamente para combatê-lo. Sem dúvida,
territórios bárbaros. (HARDMAN, uma interpretação já consagrada é difícil de ser
1991, p. 104) derrubada.