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Raízes

v.32, n.2, jul-dez / 2012

O RURAL NA HISTÓRIA. EUCLIDES DA CUNHA, JOSÉ VERÍSSIMO E FERREIRA DE CASTRO: TRÊS


NARRATIVAS AMAZÔNICAS.

Eli de Fátima Napoleão de Lima

RESUMO

O artigo analisa três narrativas constitutivas do imaginário brasileiro sobre a Amazônia, com ênfase especial na
obra de Euclides da Cunha (1866-1909). Seus escritos amazônicos são tratados como narrativas que, carregadas de
“literaturidade”, criticam e reproduzem a ideologia de sua época. Narrativas que inauguram, indicam e estabelecem
um vasto campo para interpretações futuras da Amazônia. Através da comparação com José Veríssimo (1857/1916)
e Ferreira de Castro (1898/1974), perscrutamos outras obras e visões que têm a Amazônia como cenário.
Palavras-chave: História, Narrativa, Literatura, Interpretação, Amazônia.

THE RURAL IN THE HISTORY - EUCLIDES DA CUNHA, JOSÉ VERÍSSIMO AND FERREIRA DE CAS-
TRO: THREE AMAZON NARRATIVES.

ABSTRACT

The article analyzes three constitutive narratives of the Brazilian imaginary on Amazon, with special emphasis on
Euclides da Cunha (1866-1909) work. His Amazonian writings are dealtl as narratives charged of “literaturidade”,
which criticize and reproduce the ideology of his time. Narratives that inaugurate, indicate and establish a wide
field for future interpretations of the Amazon. By comparing with José Veríssimo (1857/1916) and Ferreira de Cas-
tro (1898/1974), we watch over other views that have the Amazon as scenario.
Key words: History, Narrative, Literature, Interpretation, Amazon.

ELI DE FÁTIMA NAPOLEÃO DE LIMA: Professora Associada III do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade – CPDA/DDAS/ICHS/UFRRJ.

Raízes, v.32, n.2, jul-dez / 2012


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INTRODUÇÃO definir o que é literatura, o que é narrativa, ou


qual a diferença entre uma e outra, mas, o que
Este artigo é um excerto de minha Tese é a história e como os textos e a compreensão
de Doutorado intitulada “História e narrativa: que temos deles se relacionam com a história.
Euclides da Cunha na Amazônia”, voltada para Para Fredric Jameson é antiquada a interpreta-
a análise das diversas narrativas constitutivas do ção que continua perguntando ao texto o que
imaginário brasileiro sobre a Amazônia, com ele significa, quando poderia ser perguntado
ênfase na obra de Euclides da Cunha (1866- como ele funciona (JAMESON, 1992).
1909) - narrativa consagrada sobre os sertões Se entendermos tanto literatura quanto
nordestinos e sobre a Amazônia - atentando narrativa como produção cultural, a proposta
para os sentidos histórico-culturais, literários e de Jameson torna-se esclarecedora: a narrativa
políticos de sua obra. Narrativa que inaugura, é um ato socialmente simbólico.
atinge, estabelece um vasto campo para inter-
pretações e investidas futuras da e na região.
Assim, é na perspectiva de considerar- CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICO-MET-
mos a Amazônia dos escritos de Euclides da ODOLÓGICA
Cunha como parte de uma vasta história de es-
peculações sobre a Hiléia e suas experiências, Muitos foram os trabalhos aos quais
que o consideramos precursor das concepções recorremos e que nos serviram como uma es-
futuras da região, muito evidenciada na polar- pécie de guia, mas estivemos trabalhando basi-
ização Inferno / Paraíso, visando apreender o camente com três autores: Terry Eagleton, Ed-
significado dessa dicotomia, por ele enfatizada, ward Said e Fredric Jameson.
para melhor entender as diversas investidas so- A abordagem de Terry Eagleton pa-
bre a região. Como contraponto, trazemos as rece-nos de grande valia quando se utiliza da
concepções de José Veríssimo e Ferreira de Cas- definição de literatura como escrita “imaginati-
tro. va”, como ficção, escrita que não é literalmente
Torna-se importante frisar que o texto verídica, para perguntar: “o fato de a literatura
se insere no âmbito de uma trajetória de pes- ser a escrita ‘criativa’ ou ‘imaginativa’ impli-
quisa marcada pela preocupação com as possi- caria serem a história, a filosofia e as ciências
bilidades interpretativas das relações História/ sociais não criativas e destituídas de imagina-
Literatura, especialmente tendo em conta a ção?” Para Eagleton, há necessidade de uma
questão de em que medida, e com que cautelas, abordagem absolutamente diferente. A litera-
ensaios e, sobretudo, ficções, apesar de sua rel- tura pode ser definida não por ser ficcional ou
ativa autonomia estética, podem ser lidos como “imaginativa”, mas pelo emprego da linguagem
documentos ou estudos sociais e históricos. A de forma peculiar.
questão crucial, nessa perspectiva, não seria Tal definição de literário foi proposta
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pelos formalistas russos, como Vitor Sklovski, da imaginação criativa ou interpre-
Roman Jakobson, Osip Brik, Yuri Tymyanov, tativa, e depois mostrá-las como
Boris Eichenbaum e Boris Tomashevsky. Por parte da relação entre cultura e im-
que essa definição nos interessa especialmente? pério. Não creio que os escritores
sejam mecanicamente determina-
Porque, para esses autores, o caráter literário
dos pela ideologia, pela classe ou
provinha das relações diferenciais entre um tipo
pela história econômica, mas acho
de discurso e outro, o que não era uma car- que estão profundamente ligados à
acterística perpétua. Não se tratava de definir história de suas sociedades, moldan-
a literatura e sim a literaturidade — “os usos do e moldados por essa história e
especiais da linguagem — que não apenas po- suas experiências sociais em dife-
diam ser encontrados em textos literários, mas rentes graus. A cultura e suas formas
também em muitas outras circunstâncias exte- estéticas derivam da experiência
riores a eles” (EAGLETON, 1997, p. 07). histórica... (SAID, 1995, p. 23)
Desta feita, acreditamos ter chegado
Temos clareza que Said trabalha, privi-
próximo ao que intentamos: tratar os escritos
legiadamente, o romance. De qualquer forma,
de Euclides da Cunha sobre a Amazônia (no-
assim como examina o romance como uma for-
tadamente os que estão insertos em À Margem
ma cultural que julga ter sido de “enorme im-
da História, 1909) como narrativa, relato de
portância na formação de atitudes, referências
sua experiência sobre e na região, narrativa
e experiências imperiais” (SAID, 1995, p. 02),
esta que, carregada desta “literaturidade” —
pondero que a narrativa euclidiana da Amazô-
que critica e reproduz a ideologia de sua época
nia também exerceu enorme influência na for-
(como missionário do progresso) — inaugura,
mação de atitudes, referências e experiências
indica, atinge, estabelece um vasto campo para
“imperiais” na região.
as interpretações futuras de Amazônia.
Estivemos sempre imbuídos de que
devemos estar basicamente atentos para as
CARACTERIZAÇÃO DO UNIVERSO
condições de produção do texto — quadro in-
EMPÍRICO
stitucional, aparelho ideológico no qual ele se
inscreve, representações que a ele subjazem,
Em que possa pesar imprecisões de
conjuntura política, relação de forças, efeitos
ordem conceitual, estaremos aqui tomando
estratégicos procurados, etc. Lemos a obra in-
sertão, selva, natureza, terra, como partes con-
dividual de Euclides da Cunha, assim a nor-
stituintes do que reconhecemos como rural
destina como a amazônica, como diria Edward
ou, ainda, mundo rural. Por outras palavras,
Said em outro contexto,
e evidentemente, não estaremos nos referindo
inicialmente como grandes frutos às capitais amazônicas, notadamente Belém e
Manaus.
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Do Pequeno Dicionário de Literatura nojo da selva, está familiarizado com a sua an-
Brasileira, no tocante ao grupo de escritores arquia de vida e morte”1.
que teriam contribuído para a formação de uma O que gostaríamos de destacar é que a
literatura regionalista da Amazônia, consta: personificação da natureza como um inimigo
a ser vencido, mais do que evidenciada em Eu-
Em síntese decerto imperfeita, pod- clides da Cunha (1866/1909)2, foi seguida por
er-se-ia dizer que suas produções outros autores e apropriada pela burocracia
literárias representam ou refletem, do Estado preocupada em buscar uma “identi-
de um lado, o sentimento de in-
dade” para a Amazônia.
ferioridade ou de humilhação do
A prática do povoamento da região pela
Homem, como que esmagado pelas
forças da natureza, nessa terra colonização no Império seguida da emigração
amazônica que – no dizer de um “espontânea” de nordestinos continuou na
observador – ‘amedronta e cansa República Velha e não se interrompe: nos anos
pela monotonia invariável do gran- 1970/80, o migrante mandado, por exemplo,
dioso’, e de outro lado funcionam para Rondônia, em ônibus alugados pelo Gov-
como documento social e humano, erno era o degradado contemporâneo, aqueles
enfocando situações e tipos ligados que na sua terra de origem “representava um
principalmente às indústrias básicas
empecilho à ordem econômica que favorece
da região como a pesca, a extração
o regime da grande propriedade” (MALIGO,
do cacau e a atividade nos seringais.
(MASSAUD e PAES, 2011, p. 41) 1985, p. 86).
Na prosa amazônica de Alberto Rangel,
Trocando em miúdos: a personificação Gastão Cruls e Peregrino Júnior se evidencia
da terra como inimigo a ser vencido é um fato. que a ideologia da conquista embota, não per-
Dificilmente se encontrará quem tenha con- mite que o escritor veja o degredado como ele,
seguido escapar do arquétipo inferno ou paraí- realmente, é. Tomemos como um exemplo o
so que teve quatrocentos anos de repetição para caso de Peregrino Júnior3 que retrata com cui-
consolidar-se (MALIGO, 1985). Excetuem-se, dado os costumes, as paisagens e o linguajar da
poucos, que empregaram a metáfora critica- Amazônia, o que não o exime de estereótipos.
mente, como Márcio Souza, que observando o De todo modo, a preocupação com o caráter
poeta Elson Bacellar, afirma que este “não tem documental de seus escritos é relevante. No en-

1. Apud MALIGO (1985, p. 85).


2. Euclides da Cunha segue para a Amazônia “longínqua” representando o Ministério das Relações Exteriores do Brasil na
condição de Chefe da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, na fronteira Brasil/Peru, cujos re-
sultados iriam dar base ao Tratado de 1909 que fixaria os limites do Brasil com o Peru, no Acre, recém anexado ao Brasil (missão
realizada em 1904/5).
3. Puçanga (1929), Matupá (1933), Histórias da Amazônia (1936) e A Mata Submersa (1960) e os contos “O Paroara”e “O
Gapuiador”.
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tanto, o escritor está marcado por símbolos, já Na definição climática das circun-
desgastados, “característicos” da Amazônia. scrições territoriais criadas pelo
A caracterização da região como espaço Tratado de Petrópolis tem-se incluí-
sem lei; a imagem de luta incessante, do isola- do sempre um elemento curiosís-
mento, do luto, do dilúvio, do silêncio, da escu- simo, ante o qual o psicólogo mais
ridão; e, a denúncia social realizada pelas refer- rombo suplanta a competência do
ências ao exilado (Amazônia como lugar de Professor Hann, ou qualquer outro
exílio), constitui o modelo ou o protótipo dos mestre em coisas metereológicas: o
textos sobre a Amazônia gestados em princípios desfalecimento moral dos que para
do Século XX. Nem tudo, contudo, obedece a lá seguem e levam desde o dia da
essa denominação, como se verá mais adiante. partida a preocupação absorvente
A narrativa euclidiana da Amazônia da volta no mais breve prazo pos-
está carregada de pessimismo. A natureza é sível. Cria-se uma nova sorte de exi-
adversária do homem e o progresso ali preten- lados — o exilado que pede o exílio,
dido só seria possível em um “futuro remotís- lutando por vezes para o conseguir,
simo”. Quando indicamos que as fontes da nar- repelindo outros concorrentes, ao
rativa euclidiana sobre a Amazônia, estudadas mesmo tempo que vai adensando
como parte dos preparativos da expedição (ou na fantasia alarmada as mais lutuo-
para a operação de campo), são constituídas sas imagens no prefigurar o paraíso
em grande parte por viajantes estrangeiros, tenebroso que o atrai.
marcados pelo assombroso, pelo exótico e, Parte, e leva no próprio estado
principalmente, pela imagem de missão e fardo emotivo a receptividade a todas as
do homem civilizado na conquista do Inferno moléstias.
Verde, estamos querendo marcar que informa- (...)
ções o autor buscara para enfrentar a Amazô- Dentro dos lineamentos largos das
nia e que sua leitura e visão de mundo estavam características fundamentais do cli-
moldadas por essas informações. Evidencia-se ma quente para onde ele se desloca,
que Euclides da Cunha adapta expressões de urde-se a trama de uma higiene indi-
enorme efeito espetacular, como estratégia de vidual, onde se prevêem todas as ne-
estetização e convencimento que coloca o leitor cessidades, todos os acidentes e até
diante de um espetáculo, espectador diante de os perigos da instabilidade orgânica
uma narrativa que o leva a visualizar, ouvir, inevitável à fase fisiológica da adap-
sentir, convencer-se. tação a um meio cósmico, cujo in-
Assim, tomemos, para exemplo, primei- fluxo deprimente sobre o europeu
ro o clima. vai da musculatura, que se desfibra,
à própria fortaleza de espírito, que
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se deprime. (...) De permeio com os a imensidade deprimida — onde o
preceitos vulgares para o reagir con- olhar lhe morre no próprio quadro
tra a temperatura alta e a umidade que contempla, certo enorme, mas
excessiva, que se lhe abatem a tensão em branco e reduzido às molduras
indecisas das margens afastadas.
arterial e a atividade, lhe trancam as
Sobe o grande rio; e vão-se-lhe os
válvulas de segurança dos poros e
dias inúteis ante a imobilidade estra-
lhe fatigam o coração e os nervos, nha das paisagens de uma só cor, de
criando-lhe ao cabo, a iminência uma só altura e de um só modelo,
mórbida para os males que se des- com a sensação angustiosa de uma
dobram do impaludismo que lhe so- parada na vida: atônicas todas as
lapa a vida, às dermatoses que lhe impressões, extinta a idéia do tem-
devastam a pele — despontam, mais po, que a sucessão das aparências
eficazes e decisivos, os que os apa- exteriores, uniformes, não revela
— e retraída a alma numa nostalgia
relham para reagir aos desânimos, à
que não é apenas a saudade da ter-
melancolia da existência monótona
ra nativa, mas da Terra, das formas
e primitiva; às amarguras crescen- naturais tradicionalmente vincula-
tes da saudade; à irritabilidade pro- das às nossas contemplações, que ali
vinda dos ares intensamente eletri- não se vêem, ou não se destacam na
zantes e refulgentes; ao isolamento uniformidade das planuras...
— e, sobretudo, ao quebrantar-se da Entra por um dos grandes tribu-
vontade numa decadência espiritual tários, o Juruá e o Purus. Atinge o
subitânea e profunda que se afigura seu objetivo remoto; e todos os de-
salentos se lhe agravam. A terra é,
a moléstia única de tais paragens, de
naturalmente, desgraciosa e triste,
onde as demais se derivam como ex-
porque é nova. Está em ser. Faltam-
clusivos sintomas...4 lhe à vestimenta de matas os recortes
artísticos do trabalho.
Da terra e do homem: Há paisagens cultas que vemos, por
vezes, subjetivamente, como um re-
Atravessa quinze dias infindáveis flexo subconsciente de velhas con-
a contornear a nossa costa. Entra templações ancestrais... Ali, não.
no Amazonas. Reanima-se um mo- Desaparecem as formas topográficas
mento ante a fisionomia singular da mais associadas à existência huma-
terra; mas para logo acabrunha-o na. Há alguma coisa extraterrestre

4. CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido (ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazônia) 2ª.ed. Organização, in-
trodução e notas de Leandro Tocantins. Rio de Janeiro: José Olympio,1994, pp. 52/55.
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naquela natureza anfíbia, misto de enormidade que só se pode medir
águas e terras, que se oculta, com- repartida: a amplitude, que se tem
pletamente nivelada, na sua própria de diminuir, para avaliar-se; a gran-
grandeza. E sente-se bem que ela deza, que só se dizia ver, apequenan-
permaneceria para sempre impen-
do-se, através dos microscópios: e
etrável se não se desentranhasse em
um que se dosa, a pouco e pouco,
preciosos produtos adquiridos de
pronto sem a constância e a con- lento e lento, indefinidamente, tor-
tinuidade das culturas. As gentes turantemente...
que a povoam talham-se pela brave- (...)
za. Não a cultivam, aformoseando- É natural. A terra ainda é misterio-
a: domam-na...5 sa. O seu espaço é como o espaço de
Milton: esconde-se a si mesmo.
Na verdade, toda a retórica de Euclides (...)
da Cunha faz parte de seu arcabouço para via- É a guerra de mil anos contra o
bilizar o progresso, para indicar a sua neces- desconhecido. O triunfo virá ao fim
sidade, sob as perspectivas e soluções por ele de trabalhos incalculáveis, em futu-
apontadas. O escritor pretendia oferecer uma ro remotíssimo, ao arrancarem-se os
visão própria, sua, única — quem sabe a ver- verdadeiros véus da paragem mara-
dadeiramente primeira — daquela empreitada. vilhosa, onde hoje se nos esvaem os
No prefácio a O Inferno Verde, de Alberto Ran- olhos deslumbrados e vazios.
gel, Euclides da Cunha destrincha esse “futuro Mas então não haverá segredos na
remotíssimo”. Avaliando suas fontes diz: própria Natureza. A definição dos
últimos aspectos da Amazônia será o
Lemo-los; instruímo-nos; edifica- fecho de toda a História Natural...6
mo-nos; apercebemo-nos dos rig-
orosos ensinamentos quanto às in- À necessidade de ser útil, juntava-se
finitas faces, partículas necessárias, uma inequívoca necessidade de alcançar um
da terra; e, à medida que as distin- lugar de destaque nos destinos da República. É
guimos melhor, vai-se-nos turvando, sintomática a escolha do roteiro da expedição
mais e mais, o conspecto da fisiono- por um rumo diferente daquele realizado por
mia geral. Restam-nos muito traços William Chandless. Como afirmado por José
vigorosos e nítidos, mas largamente Carlos Barreto de Santana, em Ciência & Arte:
desunidos. Escapa-se-nos de todo a Euclides da Cunha e as Ciências Naturais,

5. Ibid., pp. 52/53.


6. Ibid. pp. 200/201.
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Nos meios científicos a valorização escritos amazônicos de Euclides da Cunha co-
da ‘descoberta’ é um dos aspectos brem o período que vai de 1898 (com a publi-
mais consagrados. Tratando-se de cação do artigo “Fronteira Sul do Amazonas:
Euclides da Cunha que, ao longo Questões de Limites”, no O Estado de São Pau-
deste trabalho, vem aparecendo
lo) a 1909 (com a publicação do livro póstumo
como alguém que buscava o recon-
À Margem da História). Os de José Veríssimo,
hecimento da comunidade cientí-
fica, revelar para o mundo culto a de 1878 (com a publicação de “As populações
existência de um novo ‘fato geográ- indígenas e mestiças da Amazônia. Sua lingua-
fico’ certamente se constituía num gem, suas crenças e seus costumes — contri-
elemento de grande importância. buição para o estudo da psicologia do povo
Talvez isso explique, em parte, a brasileiro”, cujo primeiro título foi “Raças cru-
persistência do Chefe da Comissão zadas do Pará” publicado no livro Primeiras
Brasileira em prosseguir os trabal- Páginas) a 1915 (com a publicação do artigo
hos no trecho final do Purus, nas
“Interesses da Amazônia”, no Jornal do Com-
condições mais adversas, em virtude
mércio).
do esgotamento físico dos integran-
tes e da escassez de recursos mate- Como dissemos, tratamos os textos
riais, que são apontados nas ‘No- como narrativas. Temos a clareza de que o tex-
tas Complementares’. (SANTANA, to de Ferreira de Castro é um romance, o que
2001, p. 172) lhe atribuiria, em princípio, um caráter diverso
dos escritos dos outros dois autores. Mas, ele
Através da comparação com outros dois aqui está por mais um motivo: conquanto possa
autores que têm a Amazônia como cenário, ser tido como ficção, consideramos A Selva um
José Veríssimo (1857-1916) e Ferreira de Cas- romance prenhe de verdades as mais aflitivas
tro (1898-1974), perscrutamos sobre outras sobre o terrível e patético drama do seringueiro
possíveis visões de Amazônia. na Amazônia. A primeira edição do livro é de
É importante frisar que intentávamos 1930, escrito 15 anos após sua experiência por
uma análise das “três obras” no que elas têm de quatro anos, vivida no seringal Paraíso, no mes-
fundamento para as suas narrativas: a Amazô- mo Acre, espaço geográfico-tema de Euclides
nia espoliada, ou ainda, o cenário amazônico da Cunha. O tempo que separa o romance de
como tema, muito especialmente, aquele da Ferreira de Castro das narrativas de Euclides
produção do látex. Os textos de Euclides da da Cunha e de José Veríssimo só nos ajuda na
Cunha e José Veríssimo têm uma aproximação nossa proposição de que há uma narrativa in-
pela geração partilhada: José Veríssimo foi um interrupta sobre a “hostilidade” da natureza
daqueles homens ilustres que viabilizaram a ida amazônica. Em que pesem as diferenças de
de Euclides para a Amazônia, foi um dos que abordagem, entendimento e compreensão.
ajudaram a guindar Os Sertões às alturas. Os José Veríssimo, igualmente profundo
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conhecedor da obra de naturalistas e viajantes, oportunidade de fazer parte de uma expedição
à diferença de Euclides da Cunha, travava com ao interior da grande bacia hidrográfica. Foi
eles um diálogo em que postulava conceber a empregado da Companhia de Navegação do
experiência amazônica como resultado do fato Amazonas e, por concurso, foi amanuense da
da colonização ali empreendida. No prefá- Secretaria do Estado, concomitantemente co-
cio aos Estudos Amazônicos, afirmava Arthur laborava nos jornais O Liberal e Diário do Grão-
Cezar Ferreira Reis que o escritor participava Pará. Fundou A Gazeta do Norte. Participa na
ativamente do movimento cultural que girava Europa, em 1881, aos 24 anos, do Congresso
em torno da Sociedade Paraense de Estudos Literário Internacional com um trabalho sobre
Históricos e do Museu Paraense de História o movimento literário no Brasil, recebendo a
Natural (hoje Museu Paraense Emílio Göeldi) e Comenda da Ordem de Cristo. Em 1883, já de
“era o mais decidido dos que o integravam. Fa- volta a Belém, colaboraria no A Província do
zia literatura de ficção, mas fazia, igualmente, Pará, no O Comércio do Pará e na A República
a literatura científica, nos estudos acerca das e, fundaria a Revista Amazônica, que investia
populações mestiças locais”7. com vigor em cultura na região. Em 1884, fun-
A influência exercida pela obra de Au- dou o Colégio Americano e introduziu uma
gusto Comte sobre o espírito de José Veríssimo novidade em todo o Brasil: a educação física e
pode ser vislumbrada nos Estudos de Literatura o jardim da infância.
Brasileira. “A obra de Augusto Comte é dessas Novamente na Europa, em 1889, to-
que se podem combater, mas que se não podem mou parte do Congresso de Antropologia e
negar. O seu valor é, sem exagero, enorme, e Pré-História, realizado em Paris, apresentando
a sua influência, principalmente a não confes- uma tese sobre “O Homem do Marajó e a An-
sada, considerável”8. tiga Civilização Amazônica”. Em 1891, sai de
Como era um espírito objetivo e de ciên- Belém, definitivamente, para o Rio de Janeiro.
cia, o atraía a busca da verdade, como era igual- Iniciar-se-ia na crítica literária com a fundação
mente a motivação declarada de Euclides da do Jornal do Brasil (1892), de Rodolfo Dantas.
Cunha (“restabelecer a verdade”). Resultariam O crítico ponderava que o tapuio e o
dessa perspectiva seus trabalhos sobre a “Pesca mameluco resultariam desse contato de uma
na Amazônia”, as “Cenas da Vida Amazôni- raça selvagem, inferior, perseguida e envilecida
ca”, os “Esbocetos”, a “Amazônia, aspectos pela escravidão, assim como pelo desmembra-
econômicos”, e o estudo “Populações indígenas mento de sua rudimentar família, com aquela
e mestiças da Amazônia”. Veríssimo tivera a raça civilizada, superior, mal educada, repre-

7. Arthur Cezar Ferreira Reis no prefácio a VERÍSSIMO, José. Estudos Amazônicos. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970.
p. 4.
8. VERÍSSIMO, José. Estudos Amazônicos. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970. p. 141.
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sentada pelo que tinha de pior. do que porque desprezassem seus proventos.
Para o estado moral resultante teriam Dado aquele abatimento moral de que foram
concorrido, então, o meio no qual se efeti- vítimas, pouco lhes importava a comida ruim,
varam os cruzamentos, o ódio à civilização det- a casa paupérrima, a pouca roupa. Sentem-se à
onado pela perseguição e pelo aviltamento, e vontade nas extensas florestas dos seringais e
mais “um clima enervante a vencer, a subjugar dos castanhais. Por processos rudimentares ex-
o homem, uma natureza extraordinariamente traem a seringa, são capazes de passar longos
pródiga, a ponto de quase fazer cessar a luta dias de fome, bebem água de pântanos e se ali-
pela vida”. Veríssimo somava a esse meio natu- mentam de macacos, lagartos e “outros animais
ral pródigo “o abandono em que os deixam as repugnantes”, suportam com extraordinária
nossas circunstâncias políticas” para ponderar paciência a dolorosíssima picada do pium e de
que, talvez, sob essas, mais do que o simples outros insetos malignos. Filhos de selvagens,
fato dos cruzamentos ou a incapacidade absolu- descendentes dos brasílio-guaranis, nestas flo-
ta do índio para a civilização, [estão] as causas restas “trabalham com ardor, embora sem con-
do seu abatimento”9. tinuação, bebem, jogam, traficam, enganam e
Essa questão de que a prodigalidade da são enganados, passam a noite a beber cachaça
natureza que tudo oferta (rios infinitamente e a tocar viola, ganham um salário muitas vezes
piscosos, florestas onde a caça é farta, a ex- superior a dez mil-réis diários e voltam mais
istência de produtos úteis de toda a espécie) pobres do que foram, são o mestiço com toda a
seria a “responsável” pela indolência do cab- sua imprevidência”10.
oclo permeia, no senso mais comum, a visão Para estudar os usos e costumes
mais corriqueira que se fez da região. Em um amazônicos, José Veríssimo informa que não
patamar, digamos, mais “analítico”, o caboclo, será nos centros mais populosos que vai buscá-
desde há muito, dado que percebera a força de los, posto que já obliterados pela civilização,
sua “inimiga”, preferiu apegar-se ao recurso da e sim “entre os mais humilhados, porém mais
acomodação, da adaptação, a travar uma luta genuínos representantes das raças mestiças, do
que já sabia de antemão sairia derrotado. Mas, branco com o índio, e do tapuio, dessa gente
decerto, essa visão, ainda que corriqueira, não para quem a civilização foi madrasta...”. Era
será aquela que subsidiará os planos do pro- necessário ir buscá-los naquela “gente que vive
gresso. Será contra a “hostilidade” da natureza da sua primitiva e mesquinha lavoura de ma-
que, para vencer, precisará lutar. Seria tal “hos- niva, pescando ou caçando nas águas piscosas
tilidade” a responsável pelo “amesquinhamen- dos nossos rios imensos e quase inumeráveis,
to” do homem. ou nos fartos e infindos bosques da nossa terra
Veríssimo entendia que se não têm amor firme...”11.
ao trabalho seria menos pela preguiça somente

9. Ibid., p. 23.
10. Ibid., p. 24.
11. Ibid., p. 70.
132
Poderíamos inferir da narrativa amazôni- de conservar a saúde. Ao forasteiro
ca de José Veríssimo que esta buscava a com- oriundo dos climas frios, ele será
preensão “exata” da região, diferente daquela sempre fatal, fazendo assim deste
Amazônia romântica que, se lhe legou algu- magnífico vale apenas uma região
ma poesia, “importou no desvirtuamento do — porventura a mais bela e a mais
que ela representava realmente como espaço, rica de todas — de mera exploração
como natureza e como resultante da ação cria- mercantil.13
dora e disciplinadora do homem”12. Diferente
também daquela que ao recusar esse caráter O autor acreditava que a excelência do
romântico, invoca não a exuberância do meio meio físico favorecia a criação de uma “socie-
físico como beleza, fecundidade, salubridade, dade progressista”, como tantas outras exis-
mas como hostilidade ou, para usar uma pa- tentes em outros lugares, bem como consider-
lavra mais amena, exotismo, este não somente ava a gente mestiça tão capaz quanto qualquer
como descoberta do outro, do diferente, mas outra. Mas haveria que se proceder ao incen-
como descoberta de que esse outro, esse dife- tivo ao povoamento, à agricultura (incluindo aí
rente deve ser encaminhado para não ser nem a pecuária). Reputava ser temerária e mesmo
outro nem diferente. nefasta a dependência exclusiva à valorização
Veríssimo não reputava que coubesse ao da borracha. É ainda a questão do clima que
clima qualquer culpa, mas também não repu- vai levá-lo às suas mais contundentes afirma-
tava que coubesse ao homem a inviabilidade de ções, posto que conhecedor do fato de que a
progresso na região. Amazônia não é toda ela dominada por um cli-
ma “hostil” e por acreditar que o povoamento
Não acredito que nenhuma raça es- feito com critério, inteligência e método pode
trangeira do Norte possa aqui fazer tornar o clima adequado à experiência humana
prole perdurável, a menos que se exitosa.
não cruze com os elementos indí- José Maria Ferreira de Castro nasceu em
genas, tapuios, negros ou seus de- Salgueiras, aldeia situada no povoado de Freg-
scendentes. Para o indígena, porém, uesia de Ossela, povoado dos mais antigos de
o clima, beneficiado pelas grandes Portugal, em 24 de maio de 1898. Aos 12 anos
correntes dos ventos alísios, é be- de idade, em 1910, completa sua instrução
nigno, e seria até favorável, se não primária, tira um passaporte para o Brasil e
fora a constante e flagrante viola- parte de Ossela a 6 de janeiro de 1911. Vinha
ção dos primeiros preceitos da arte para a Amazônia lendária, para o chamado “In-

12. Prefácio de Arthur Cezar Ferreira Reis. In: VERÍSSIMO, José, op. cit., 1970, p. 2.
13. VERÍSSIMO, José, op. cit., 1970, p. 84.
133
ferno Verde”. mento sobre as formas modernas de escravidão.
Em A Selva, Ferreira de Castro traz à Fato esse recorrente na Amazônia de ontem e
tona “a vida miserável, o panorama soberbo, hoje.
o mundo novo, bárbaro e assombroso”, aquela
epopeia que assombrava “de que não ajuíza
quem no resto do mundo se deixe conduzir, ve- CONCLUSÃO
loz e comodamente, num automóvel com rodas
de borracha — da borracha que esses homens É de se notar que tanto Euclides da
tiram à selva, misteriosa e implacável”.14 No ro- Cunha como José Veríssimo pretendem o pro-
mance é evidente, translúcida a causa social, a gresso para a Amazônia. O que une os dois é
denúncia dos fatos da injustiça social. precisamente a ideia de que há uma proposição
altruísta, humanista-positiva. É justamente a
Eu devia este livro a essa majestade compreensão de que algo se pode erigir, pro-
verde, soberba e enigmática que é por soluções. As soluções apontadas, no entan-
a selva amazônica, pelo muito que to, seguem rumos diferentes. Aquela apontada
nela sofri durante os primeiros anos por Euclides da Cunha é a da domesticação da
da minha adolescência e pela cora- natureza (natureza que inclui solo, clima, veg-
gem que me deu para o resto da etação, homem) — conquistar a terra, dominar
vida. E devia-o, sobretudo, os anôni- a água, sujeitar a floresta — como condição
mos desbravadores, que viriam a ser do progresso, obedecendo à tradição do evo-
meus companheiros, meus irmãos, lucionismo positivista, confiante demasiado na
gente humilde que me antecedeu ou perspectiva civilizatória do progresso técnico-
acompanhou na brenha, gente sem científico. A de José Veríssimo é a de que o pro-
crônica definitiva, que à extração gresso chegue tendo em conta o vilipêndio das
da borracha entregava a sua fome, a populações nativas, apontando, por estudos
sua liberdade e a sua existência. De- pormenorizados, traços peculiares tanto das
via-lhes este livro, que constitui um populações indígenas e mestiças da Amazônia,
pequeno capítulo da obra que há de como dos problemas e interesses da região.
registrar a tremenda caminhada dos O que une Euclides da Cunha, José Verís-
deserdados através dos séculos, em simo e Ferreira de Castro é o tema da denúncia
busca de pão e justiça.15 social. Observando a questão do romance de
Ferreira de Castro e dos relatos de Euclides da
Sem dúvida, A Selva é um patético docu- Cunha e José Veríssimo, o romance de Castro

14. VERÍSSIMO, José, op. cit., 1970, p. 84.


15. CASTRO, Ferreira de, op. cit., p. 15.
134
é muito mais documental. É quase um docu- servar o comportamento dos rios nas diferen-
mento. Suas personagens, mesmo que figuras tes estações climáticas, a possibilidade de uma
retiradas de sua biografia, são uma seleção que rede de vias navegáveis, etc. No seu idealismo
reflete a condição humana na Amazônia da consubstanciava-se a ideia de tudo fazer para o
borracha. É clara a reflexão igualmente em José progresso do país, reunir esforços para que a
Veríssimo. Em Euclides da Cunha se evidencia Amazônia entrasse para a História, para uma
mais a necessidade de ali se formar um novo história “nossa”. Será precisamente nessa per-
povo. A denúncia social fica em segundo plano spectiva de construção de uma história “nossa”,
pelo sobrecarregado das palavras. A grandilo- do caráter documental de sua obra de que se
qüência, o talento literário, poético, movidos apropriará o projeto de nacionalidade inaugu-
pela incansável busca de prestígio, provoca rado pelo Estado Novo.
imprecisões e contradições. Fica em segundo O tema sertão16 aparece na literatura
plano igualmente pela proposição de uma nova brasileira sob três aspectos: como paraíso, ex-
ordem que é a mesma que engendra a pobreza. presso basicamente no romantismo (linha que
Assim, há em Euclides da Cunha uma vitalidade se mantém no séc. XX através de Catulo da
negativa, até por ser um produtor de cânones. Paixão Cearense, popular e Afonso Arinos,
Se repararmos bem, termos que apon- veia mais erudita e de elite); sertão como pur-
tam para uma “natureza implacável”, onde gatório, passagem, travessia, penitência e re-
se impõem a luta, o isolamento, o abandono, flexão, como o mundo de Guimarães Rosa e,
estão presentes nos três autores citados. Mas, sertão associado ao inferno:
porque é a narrativa euclidiana que triunfa so-
bre as demais? O destempero da natureza, o desem-
Estivemos lendo o Euclides da Cunha penho dos que perambulam (reti-
amazônico também como parte de um projeto rantes, cangaceiros, volantes, bea-
tos), a violência como código de
de nacionalidade e apreender a sua apropria-
conduta, o fatalismo são os princi-
ção/reelaboração significa não isolá-lo com sua
pais traços apontados. Euclides da
obra-prima, Os Sertões, desta outra produção Cunha é certamente um dos repre-
que o faz precursor de um conhecimento “siste- sentantes desta leitura do espaço do
matizado” sobre a região. Quando seguiu para sertão como inferno ainda que sua
essa região já era um autor consagrado. A ex- explicação seja de ordem político-
periência nordestina já lhe dera régua e com- cultural. (OLIVEIRA, 1997, p. 200)
passo. Partira para a imensidão da Hiléia para
um trabalho de cunho estritamente técnico: ob- Euclides da Cunha produziu narrativas

16. Sertão e selva, no período ao qual estamos nos referindo, são espaços geográficos tomados na relação/oposição à civilização do
litoral. São seus similares os espaços de fronteira, tais como o deserto, o pampa, o llano, o altiplano, o mato.
135
referente ao sertão e à Amazônia (ambos mi- astrônomos Louis Cruls, em 1892, ao Planalto
tos de caráter regional que não foram capazes Central visando à mudança da capital; e, as ex-
de incluir a nação em uma única narrativa), pedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz.
marcando o pensamento social ocupado na A viagem de Euclides da Cunha a Canudos e o
produção de uma identidade cultural para o
impacto de Os Sertões na intelectualidade do
país.
período atestam o grau de importância que as-
É preciso lembrar que um discurso sumira a interiorização do país. O sertão, para
negativo sobre o homem e a nature- os intelectuais-cientistas do primeiro período
za da América permite a legitimação republicano, integra o mesmo campo semân-
da expansão européia. A tese da de- tico de incorporação, progresso, civilização e
generação dos animais, das plantas e conquista (LIMA, 1997, p. 167). Assim,
do homem americano, assim como
a tese da juventude do continente, Em diálogo com o sertanismo de
abre espaço para a ação civilizada inspiração romântica, mas não ne-
do homem branco. (OLIVEIRA, cessariamente em oposição a ele, é
1997, p. 204) possível também falar de um movi-
mento de valorização do sertão que
Lúcia Lippi Oliveira nos lembra que foi acompanhou projetos de construção
no período 1890/1930 — em plena vigência da de ferrovias, de delimitação de
República cuja estratégia era manter São Paulo fronteiras, de saneamento, de ma-
no controle da vida política no país — que se peamento cartográfico e utilização
resgata a figura do bandeirante “como símbolo de recursos naturais. Fortemente
da pujança paulista baseada em qualidades indi- associado à presença do Estado, ele
reuniu atores sociais informados
viduais de coragem, determinação e ao mesmo
pelo cientificismo dominante entre
tempo em atributos nacionais, já que fora a ação a intelectualidade. (LIMA, 1997, p.
destes homens que dera sentido à integração 164)
territorial do país”. E acrescenta, mais adiante,
“os mamelucos formaram uma raça aclimatada Razões de natureza estratégica, es-
ao solo e ao clima, e o êxito da expansão ter- pecialmente o problema das fron-
ritorial acaba por compensar a dizimação dos teiras, eram igualmente levadas em
povos inferiores” (OLIVEIRA, 1997, p. 209 e consideração no conjunto de sua
210). obra. O país deveria rumar em di-
reção ao Pacífico e tecer uma malha
Durante os primeiros anos da Repúbli-
ferroviária capaz de integrar suas
ca, as incursões ao interior, já iniciadas no Im- distintas regiões. Daí a admiração
pério, se intensificaram e ganharam novos sig- que, mais de uma vez, manifestou
nificados: as expedições de Cândido Rondon; pelas atividades de Rondon. (LIMA,
a da Comissão Geológica em São Paulo; as dos 1997, p. 172)
136
Cândido Mariano da Silva Rondon, IBGE, o DNOCS e, até mesmo, a
figura mítica da história do Brasil republicano, Calha-Norte. (OLIVEIRA, 1997, p.
intitulava-se um “sertanista” que há vinte anos 202)
lidava com as rudezas semibárbaras da lingua- Com efeito, Euclides da Cunha ideal-
gem dos caboclos e com as asperezas torturantes izou o projeto de uma ferrovia transacreana,
dos idiomas indígenas (LIMA, 1997, p. 174). minuciosamente descrito, como uma “grande
Uma das leituras da obra de Euclides estrada internacional de aliança civilizadora,
da Cunha, apropriada pelo Estado Novo, foi e de paz”. Como afirma Francisco Foot Hard-
precisamente aquela que não vê aí o sertanejo man, ao idealizá-la “em meio a argumentos
como degenerado (por conta da miscigena- técnicos, geopolíticos e econômicos, elabora
ção) e sim como retrógrado. O atraso se deve uma visão plenamente organicista, tornando o
ao abandono e não a determinações de ordem caminho de ferro corpo vivo e integrado num
genética. À civilização caberia “sincronizar os movimento evolutivo uniforme da sociedade
tempos sociais do sertão e do litoral, trazendo em relação à natureza” (HARDMAN, 1991, p.
para o nosso tempo ‘aqueles rudes compatri- 101). Exemplifiquemos, como faz Hardman:
otas retardatários’”. A ação governamental se-
ria capaz de conciliar “a diferença entre tem- Todas as grandes estradas, no evita-
pos sociais”, posto que a ela cabia “trazer os rem os empeços que se lhes antol-
espaços atrasados e incultos para a civilidade” ham, transpondo as depressões e
iludindo os maiores cortes com os
(OLIVEIRA, 1997, p. 201).
mais primitivos recursos que lhes
Note-se que essa leitura corresponde
facultem um rápido estiramento
àquela ideia preconizada por Bilac, Alberto dos trilhos, erigem-se nos primeiros
Torres e outros autoritários, agora mais elab- tempos como verdadeiros camin-
orada. Euclides da Cunha, o “missionário do hos de guerra contra o deserto,
progresso”, na Amazônia, imperfeitos, selvagens... Depois en-
volvem; e crescem, aperfeiçoando
propõe a recuperação do rio Purus, os elementos da sua estrutura com-
a construção de uma estrada de fer- plexa, como se fossem enormes or-
ganismos vivos transfigurando-se
ro — a Transacreana — que seria ca-
com a própria vida e progresso que
paz de espalhar frentes de coloniza-
despertam. (HARDMAN, 1991, p.
ção e proteger as fronteiras do país. 101)
Neste sentido, Euclides pode ser
visto como um precursor de idéias À visão aguda “das linhas desviantes do
e projetos que foram implementa- progresso”, o engenheiro-militar-artista “con-
dos com, ou sem sucesso, anos mais trapõe um projeto integral de civilização, in-
tarde, como a Madeira-Mamoré, o spirado, também, nos melhores exemplos do
137
neocolonialismo europeu na África e na Ásia. A nos dias atuais.
ciência toma o lugar, aqui, das antigas missões O autor fornecerá subsídios para o en-
religiosas”. E Hardman percebe, de forma cer- frentamento daquela “terra ignota” à buro-
teira, tratar-se “de um transplante ainda mais cracia ilustrada da República e influenciará a
radical da cultura”, expressado assim por Eu- maior parte da produção literária que, a partir
clides da Cunha: de então, tomará a Amazônia como cenário de
suas obras, até que, nos anos quarenta do sé-
Abra-se qualquer regulamento de culo XX, venha a surgir uma visão mais autóc-
higiene colonial. Ressaltam à mais tone da região, muito especialmente com Dal-
breve leitura os esforços incom- cídio Jurandir (dentre outros títulos, Chove nos
paráveis das modernas missões e o campos de Cachoeira, 1941; Marajó, 1947; Três
seu apostolado complexo que, ao casas e um rio, 1958; Passagem dos Inocentes,
revés das antigas, não visam a ar- 1963; e, Primeira manhã, 1968).
rebatar para a civilização a barbaria Será contra, justamente, o preconceito
transfigurada, senão transplantar, telúrico, posto que estigmatizara a região, que
integralmente, a própria civiliza- levantar-se-á a voz daqueles que lutaram firme
ção para o seio adverso e rude dos e arduamente para combatê-lo. Sem dúvida,
territórios bárbaros. (HARDMAN, uma interpretação já consagrada é difícil de ser
1991, p. 104) derrubada.

Euclides da Cunha juntou às convenções


narrativas o seu próprio talento e experiência REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
pessoal. Agora, se faz mister refletir, acreditar-
se que essa narrativa por ser estética, erudita, CASTRO, Ferreira de. A Selva. 23ª ed. Lisboa:
plástica — extremamente rica, sem dúvida — Livraria Editora Guimarães e Cia., s/d.
representa, reflete “de fato” a Amazônia, é
um tanto frágil e certamente burlesco. Mas foi CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido
eficiente, muito eficiente. A Amazônia estava (ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a
rotulada: a vida ali ajusta-se aos ditames do Amazônia) 2ª.ed. Organização, introdução e
“paraíso diabólico” da selva. notas de Leandro Tocantins. Rio de Janeiro:
A compreensão da importância do ser- José Olympio, 1994.
tanejo- ou do homem do interior- para a for-
mação da nação, na Amazônia, reduziu-se à EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma
confirmação dos estereótipos da indolência e introdução.Trad. de Waltensir Dutra. 3 ed. São
da preguiça, estabelecidos pelo preconceito Paulo: Martins Fontes, 1997.
telúrico, cujos efeitos nefastos são visíveis ainda
138
HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma. Universidade Federal de Feira de Santana,
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