BERTRAND RUSSELL

BIBLIOTECA DO ESPÍRITO MODERNO

( FILOSOFIA )

Série 1.a * Volume 19

A PERSPECTIVA
,
CIENTIFICA
nova tradução .e notas de
JosÉ SEVERO DE CAMARGO PEREIRA
(Doutor em Pedagogia - Assistente da Faculdade de Filo-
sofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo.)

terceira edição

COMPANHIA EDI110RA NACIONAL

sÃo PAULO
CAPITULO I

Exemplos do método científico

I. GALILEU

S E BEM QUE nas suas formas mais refinadas o método cien-

tífico possa parecer complicado, êle é, na sua essência,
bastante simples. Consiste na observação daqueles fatos que
permitam ao observador descobrir as leis gerais que regem os
fatos da mesma natureza. Os dois períodos - o de obser-
vação e o de descoberta de uma lei - são, ambos, essenciais,
e cada -um dêles é suscetível de um refinamento quase inde-
finido. Mas, em essência, o primeiro homem que afirmou que
o fogo queimava estava empregando o método científico, espe-
cialmente se tivesse chegado a essa conclusão depois de se
ter queimado várias vêzes. Êsse homem passou pelos dois
períodos mencionados: o de observação e o de generalização.
No entanto, êle não procedeu exatamente como a téonica cien-
tífica exige: não fêz uma escolha cuidadosa dos fatos rele-
vantes, nem dispunha dos diversos meios de descobrir leis,
exceto a mera generalização. O homem que afirma que os
corpos abandonados sem apoio no espaço caem, faz uma sim-
ples generalização, e pode ser refutado pelos balões, pelas
°
borboletas e pelos aviões. Por outro lado, homem que co-
nhece a teoria da queda dos COI'pOS,também sabe a razão pela
qual certos corpos,como os mencionados, não caem.
Apesar da sua simplicidade essencial, o método científico
foi estabelecido oom grande dificuldade, e ainda é empre-
gado unicamente por uma minoria, que, por sua vez, limita o
seu emprêgo a apenas uma pequena parte das questões a res-
peito das quais opina. Se o leitor contar entre os seus conhe-
cidos com algum eminente cientista, acostumado à mais
minuciosa precisão quantitativa nos seus experimentos e extre-
mamente perito em tirar conclusões a partir dos resultados
obtidos, experimente submetê-Io a uma pequena prova, que,
 18 A perspectiva científica
muito provàvelmente, dará um resultado instrutivo. Consulte-o
a respeito de partidos políticos, teologia, impostos, corretores
de negócios, fortalecimento das classes trabalhadoras e outros
temas parecidos que, em pouco tempo, quase certamente, pro-
vocará uma explosão e ouvirá opiniões int~iramente nã? fu~-
h
damentadas serem emitidas com um dogmatísmo que ele JamaIS
revelaria ao se referir aos resultados bem comprovados dos
seus experimentos.
Êsse exemplo demonstra que, de certo modo, a atitude
científica não é uma característica natural da natureza humana.
( -Na sua maioria, as nossas opiniões não passam de realizações
de dese,jos, exatamente como os sonhos, de acôrdo com a teoria
. freudiana. A mente do mais racional de nós pode ser compa-
" \ rada com um tormentoso mar de convicções apaixonadas, fun-
- J dadas no desejo; sôbre êsse mar flutuam arriscadamente uns
tantos barcos pequenínos, que transportam uma carga de cren-
,/ ças demonstradas cientificamente. Não devemos deplorar de
\ todo que seja assim; a vida tem de ser vivida, e não há
I vl;\ \ tempo paTa demonstrar racionalmente tôdas as crenças que
1\.r 1 ~ regulam a nossa conduta. Sem 'certo arrôjo saudável, ninguém
.LApoderia sobreviver durante muito tempo. O método cientí-
fico deve, pois, pela sua própria natureza, limitar-se às nossas
opiniões mais solenes e oficiais. Um médico, por exemplo, ao
aconselhar um regime, levará primeiramente em conta tudo
o que a ciência tem a dizer a respeito do assunto, mas o
I
paciente que segue o seu oonselho não pode deter-se para
comprová-Io e está, portanto, obrigado a confiar, não na cíên-
da, mas na crença de que o seu médico procede científica-
mente. Uma comunidade impregnada de ciência é uma
comunidade em que os especialistas reconhecidos chegaram
às suas opiniões mediante métodos científicos; mas o cidadão
comum não pode, em geral, repetir por conta própria o tra-
I balho dos peritos. Há no mundo moderno um grande con-
junto de 'conhecimentos bem comprovados em todos os assuntos,
e o homem comum os aceita mediante o princípio da auto-
ridade, sem sentir necessidade de duvidar. Mas, no momento
em que uma paixão violenta intervém para distorcer o juízo
do especialista, êste passa a ser indigno da confiança que
merecia, qualquer que seja a bagagem científica que possua.
Até há pouco tempo, as opiniões dos médicos a respeito da
gestação, do parto, da amamentação etc. estavam impregnadas
de um pouco de sadismo. É necessário, por exemplo, mais pro-
o conhecimento científico 19
vas para persuadi-Ias de que os anestésicos podem ser usados
por ocasião do parto, do que para convencê-Ios do contrário.
A qualquer pessoa que deseje passar uma hora divertida, eu
aconselho a leitura das discussões de eminentes craniólogos,
no sentido de provar, por meio de medidas cerebrais, que
as mulheres são mais estúpidas do que os homens (1).
Não são, todavia, os lapsos dos homens de ciência que
nos interessam quando. procuramos descrever o método cien-
,tÍ!fico. As opiniões científicas se caraoterizam pelo fato de
existirem razões para as crermos verdadeiras, ao passo que as
não-científicas são opiniões sustentadas por outras razões que
não a sua provável verdade. A nossa era se distingue de tôdas
as eras anteriores ao século xvrr pelo fato de que algumas das
nossas opiniões são científicas, no sentido mencionado acima.
Excetuo os próprios fatos, uma vez que a generalização, em
um grau maior ou menor, é uma característica essencial da
ciência, e que os homens (excluindo-se uns poucos místicos)
nunca foram capazes de negar totalmente os fatos evidentes da
vida quotidiana.
Os _gr~Q§,,- que se salientaram em quase todos os caIIljpOS
da atividade humana, contribuíram pouco, o que é surpre-
endente, para a criação da ciência. A grande vitória intelec-
tual dos gregos foi a Geometria, que consideravam um estudo
a priori, derivado de premIssas evidentes por si mesmas, isto
que não requeriam verificação experimental. O gênio grego
fOimais dedutivo, do que indutivo, salientando-se, conseqüen-
l!111)(nt, no campo matemático. Nas idades seguintes, as
"Ollr\lIistas matemáticas dos gregos foram quase totalmente
olvk nelas, ao passo que outros produtos da paixão grega pela
dl'c1"S'u sobreviveram e floresceram, sobretudo a Teologia e
O I irt-ito. Os gregos observaram o mundo mais como poetas,
d qll .orno cientistas, em parte, oreio eu, porque, conside-
rando los tôda atividade manual como indigna de um "cava-
lh iro", todo studo que requeresse experimento era conside-
rado um pouco vulgar. Talvez fôsse interessante relacionar
com êst pl' }j'llÍzoo fato de os gregos terem demonstrado
um máximo d espírito científico em relação à Astronomia,
-,
c~ência essa qu trata de corpos que podem ser vistos, mas
nao manuseados.
( 1) Cf. Havelock ELLlS: Man and Woman, 6.a edição, pág,
119 e segs.
 20 A pe1'spectiva científica
Qualquer que seja a explic~çãO' para O' Fato, merec:e repar~
O' muito que Ü'Sgregos descO'bnram nesse campo. Mirmaram,
desde O' princípio, que a Terra era redo~da, e alguns greg~s
che aram à teoria de Copérnico, que ,ah.['ma. que a causa ~O'
mo~mento aparente do ~0'1 e das .estrelas reside na revÜ'luc;:ao
,/ () da Terra e não na dos ceus. Arquimedes, esürevendQ a Gelao,
~ r~i de Sira1cusa, afirmava: "Arista~oo, de S~mos, eS?Teveu um
livro em que menciona algumas hipóteses, c~Jas premlssas l~vam
J à conclusão de que o universo é muito maior do que o tí~ha-
mos suposto até agora. A sua hipótese é de que as estre~as
fixas e O' SO'lpermanecem imóveis, ao pa.sso que, a !erra gIra
ao redor dêste astro, desorevendO' a ClrcunferencIa de um
círculo, de que o Sol O'cupa o centro." Assim,?s gregos des-
cobriram não só a rotação da Terra, mas tambem a sua revo-
lução an'ual em tôrno do Sol. Foi o fato de ter ,de~ooberto
que um grego tinha essa opinião que l~vou Copérnico a. :e
animar a revivê-la, Nos dias do RenasClmento, quando VIVIa
Copémico, aceitava-se correntemente a idé~a de que qualquer
tese sustentada por um antigo era verdadeira; ao ~esmO' tem-
pO', acreditava-se que não deveria mere.cer respeI~o qualquer
opinião não defendida pO'r algum antIgo.. DUVIdo~ d~ que
Copérnioo tivesse chegado a ser umcopemicmno, se n.ao tiv~sse
existido Aristarco, cuja opinião permaneceu esquecida ate o
Renascímento dQS ensinamentos olássícos.
Os gregO's também descob?,a~ métodos perfeit~ente
válidos para medir a circunferencIa ,d~ Terra. Eratoste~e;,
o geógrafo, a estimava em 250.000 estádios (uns 39.500 quilô-
metros ), o que não está muito longe da verdade.
Arquimedes (257 - 212 a. C.) foi O' mais cie~tíf~oo esp~-
rito grego. Da mesma forma que Le?n~rdo da VmcI, Arqui-
medes conseguiu as graças de um prmClpe por causa da sua
habilidade nas artes guerreiras. E, da mesma f?rma que a
Leonardo, foi-lhe permitidO' aumentar os oo~he?Imentos hu-
manos com a condição de contribuir para liquidar algumas
vidas humanas. Neste particular, as suas atividades ~or.am mais
importantes do que as de Leonar~O': .porrque 0'. sábio gregO'
A fi! s Ial
inventou os mais surpreendentes arhflClos mecamc?s para. de-
fender a cidade de S'iracusa contra os romanos, ate ser, final-
mente, morto por um soldado ínímígo, ao ser tornada a cidade.
Contam que êle estava tão absorto com um problema mate-
mático que não tornou consciência da ohegada dos romanos.
Plutarco se mostra muito apologétíco em relação às invenções
o conhecimento científico 21
mecânicas de Arquimedes, julga que elas dificilmente pode-
riam ser dignas de um "cavalheiro", mas acha que Arquimedes
pode ser desculpado pelo fato de estar ajudando seu primo, O'
Rei, num momento de terrível perigo.
Arquimedes demonstrou ter grande gêniO' matemá-tico, ao
mesmo tempo que possuir grande habilidade para inventar
artifícios mecânicos; mas, a sua contribuição científica, apesar
de notável, também mostra a a.!itude_dedutiva dos g:c.egos, qUy
~nO'u _quase impossível, para êles, O' uso do _método experi-
mental. A sua obra no ca~ da estática é famosa, e com
mzãO'; mas, o seu trabalho está aseado em axiomas, exata-
mente como a geO'metria de Euclides, axiomas, êstes que são
supostos evidências em si, não resultados da experiência. O
seu livro Sôbre os Corpos que Flutuam, nasceu, segundo
contam, do fato de Arquimedes ter resolvido o problema da
coroa do Rei Hierão, que se suspeitava não fôsse de ouro purO'.
Corno é sabido por todos, êsse problema é tido corno tendo
sído resolvido por .Arquímedes quando se banhava. Em todo
caso, O' método que propõe em seu livro para casos análogos
é totalmente válido, de tal modo que, apesa,r de O' livro come-
çar apresentando postulados e usar em seguida O'método dedu-
tivo, devemos supor que Arquimedes chegou experimental-
mente a êsses postulados, A mencionada obra é, provàvelmente,
a mais científica (no sentido moderno do têrmo) das obras
de Arquimedes. Todavia, logo depois da sua época, diminuiu
a paixão que os gregüs tinham sentido pela investigação cien-
tífica dos fenômenos naturais, de tal moda que, apesar de o
desenvolvimento da Matemática Pura ter continuado até a
tomada de Alexandria pelos maometanos, apenas existiram
alguns avanços posteriores nas ciências naturais, e a melhor
f(11 havia sido elaborado, como a teoria de Aristarco, por
ox mplo, foi esquecido.
s árabes revelaram possuir um ~Eírito mais ex erimen..:
tal 10 que os regos, especialmente no campO' da Química!
Prot 'o liam transmuarr O'Smetais em ouro, descobrira- pedra
fabricar O' elixir da longa vida. Em parte pO'r esta
ca sa, as investigações de natureza química foram vistas com
bons olhos. Durante a Idade Média, a tradição da civiliza-
ção foi mantida princípalmente pelos árabes, e foi dêles que
os cristãos, OOmO'Roger Baoon, por exemplo, adquiriram quase
todo o conhecimenrtacientífica que a Idade Média chegou a
22 A perspectiva científica
possuir. Não obstante, os árabes apresentavam, em relação
aos gregos, o defeito oposto: buscavam ant~~}atos separados,
9:0 que princípios gerais, de tal-fiõdõ que não foram capazes
de deduzir leis a partir dos fatos que descobriram.
• Ouando o sistema escolástíco começou a ceder diante do
Renascimento, campeou durante certo tempo na Europa uma
grande aversão por tôdas as generalizações e por todos os
sistemas. Montaigne ilustra essa tendência. Gosta de salientar
os fatos raros, especialmente quando contradizem qualquer
coisa. Não mostra nenhum desejo de reduzir as suas opiniões
a sistemas coerentes. Também Rabelais, com o seu lema Fais
ce ·'que voudras, mostra-se tão contrário às restrições de ordem
intelectual quanto a quaisquer outras. O Henascimento se re-
jubilou com a reconquista da liberdade de especulação, e não
se mostrava disposto a renunciar a ela, nem mesmo no interêsse
da verdade. Das figuras típicas do Renascimento, a de espírito
mais científico foi Leonardo da Vinci. Os seus livros de
notas são fascinantes, e contêm muitas antecipações brilhantes
de descobertas posteriores, mas Leonardo não levou adiante
quase nada, nem exerceu influência nos cientistas que o
sucederam.
O método científico, tal como o entendemos hoje, surgiu
com Galileu (1564-1642) e, em menor escala, com o seu con-
temporâneo, Kepler (1571-1630). Êste conquistou fama por
causa das suas três leis. Em primeiro lugar, descobriu que os
planêtas descrevem elípses, não círculos, ao redor do Sol. Para
os homens de hoje, não há nada demais no fato de a Terra
descrever elípses ao redor do Sol. Mas, para Ü'S antigos, só
um círculo, ou um conjunto de círculos, poderia ser uma órbita
adequada para o movimento de um corpo celeste. Para os
gregos, os planêtas eram criações divinas e deviam, portanto,
mover-se de acôrdo com curvas perfeitas. Os circulas e os
epiciclos não chocavam a sua sensibilidade estética, mas uma
órbita encurvada e oblíqua, como a que a Terra realmente
descreve, os teria impressionado profundamente. Por causa
disso, naquela época, uma observação não afetada por precon-
ceitos estéticos exigiria um notável ardor científico. Kepler
e Galileu provaram que os planêtas, inclusive a Terra, giram
ao redor do SaI. Isso, como vimos, já havia sido afirmado por
Copérníoo e por alguns gregos, mas nenhum dêles havia conse-
guido provaif essa afirmação. Copérníco, na verdade; não
encontrou argumentos de pêso para defender o seu ponto de
o conhecimento científico 23
f~ ser justo para com Kepler afirmar que êle, ao adotar
, .',tese de Copérnico, se apoiava em razões puramente
<,u:.~ücas. Contam que, quando jovem, Kepler foi um ado-
rador do Sol, o que o teria levado a pensar que só o centro
do universo seria um lugar digno para tão grande divindade.
Podemos admitir isso, mas também devemos concordar que
só argumentos científicos é que poderiam tê-lo levado a desco-
brir que as órbitas dos planêtas são elíptícas, ao invés de
circulares.
Êle, e Galileu ainda mais, possuíam o método científico
em sua integridade. Apesar de sabermos hoje muito mais do
gue sabíamos na sua época, nada de essencial foi acrescentado
ao seu método. Êles passaram da observação de fatos parti-_ \v\
culares ao estabêlêêíiiiénto de leis quantitativas rigorosas, que ~)
'permítíam a previsão de acontecimentos futuros. Am~'s oho- ~
·car~.~ profunda!!l~.1.J'~ c~IP..9!âE:eos..'. em ~art~ por-
gue ~s ~~S2ncll!:>õ,es iam de encontro as erenç~s a~Eoca;
mas, ~IT.l_Bartel Q.mbem porque a crença no princípio da auto-
.ridade havia }ev~ª-o o~ eru_âito~a limitar as suas investigações
às suas. bibliotecas, e porque Ü'S professôres se mostravam
angustiados_diante Cl~ s'yg~stão de que poderia ser necessário
contemplar o mundo, para saber como êle é.
l!:- necessário r~cOnhecermos que GalHe~ foi um pouco
"brincalhão". Quando ainda era muito jovem, êle foi nomeado
professor de Matemática em Pisa' mas, como o seu salário
era, apenas, de 7,5d. por dia, parece que êle não tinha ilusões
a respeito de esperarem muito dêle, Começou, portanto, escre-
vendo um tratado contra o uso da borla e da toga na Uni-
versidade, tratado êsse que, talvez, tenha conseguido ser popu-
lar entre os estudantes, mas que foi acolhido com grande
doscontentamento por seus pares. Além disso, Calileu vivia
Iirocnrando ocasiões que pusessem os seus colegas em ridículo.
I~sll's afirmavam, por exemplo, baseados na física de Aristó-
Idos, que um pêso de 10 quilos cHegaria ao solo dez vêzes
1,llillls depressa do que um de apenas um quilo, se ambos
/liss('1ll, abandonados da mesma altura. Uma manhã, quando Ü'S
SOIlS (.'nlogasse dirigiam gravemente às suas cátedras, acom-
1".111 lindos por seus discípulos, Calíleu que havia subido à
tôrro Juclínada de Pisa levando dois pesos, um de 10 quilos
e outro do um, chamou a atenção dos passantes e deixou cair
ambos os pesos do alto da tôrre. Ambos chegaram pràtíea-
mente juntos ao chão, mas os professôres não se deram por
 24 A perspectiva científica
aohados, afirmando que tinha havido fraude no experimento,
uma vez que era impossível Aristóteles ter-se equivocado.
Em outra ocasião, Galileu foi mais atrevido ainda. Gio-
vanni dei Mediei, que era o Governador de Livorno, ti~ha
inventado uma máquina de dragar, de que se ufan~va mUl~o,
mas Galileu afirmou que, ma,lgrado tudo o que fizesse, ele
não conseguiria dragar com ela. E como, novamente, a razão
estava com Galileu, Giovanni dei Mediei foi levado a se trans-
formar num aristotélíco entusiasta.
Dêsse modo, Galileu se tomou impopular e foi vaiado
quando no exercício da sua cátedra, o que t.am~ém suce?eu
algumas vêzes a Einstein, em Berlim, pe)?0A1S _dIsso, C:a!lle~
construiu um telescópio e convidou os profe~sores da Uníversi-
~cfe_R.ara obsjtvarem,çom a sua ajuda, os saJ~li~s fl.e }l!piter,
mas os seus colegas se recusaram a ISSO,eXp\lCando a sua
~~~ p~el?fato de Aristóteles não ter mencíonado 05 :~~-
riaos_satéHtes,_o que s!gnifi.9av~gu~ as_pessoas que mam ve-los
dêVe~~~~r _~q1!-ivocaclas._> . .
O experimento da tôrre de Pisa corroborou a, pnmell'3;
ill~tigação i~P?rt~n~e de_Gali1eu, isto é, o ~stabeleeim~nto ~
~lei g!:!&..gQ'y~~a qued~os .Çorpos. De acor O' com essa lei,
tô:(fos os corpos caem, no vácuo, com a mesma velocidade, e,
ao fim de determinado tempo, adquirem todos uma. velo-
cidade proporcional ao tempo de queda, e percorrem um
;I espaço proporcio?al a? quadr.ado dêsse temp~'.. Aristóteles ha-
~ via afirmado COIsa diferente, mas nem o sábio grego, nem
qualquer dos seus pósteros, nos dois mil anos seguintes, tinha
tido o trabalho de verificar se o que afirmavam correspondia
ou não à verdade. A idéia de fazer esta inyestigação era uma
novidade, de modo que à falta de respeito pela autoridade,
)lemonstrada por Gali1eu, foi considerada abominável. Mas
~, Galileu também tinha muitos amigos, homens para os quais
o espetáculo da inteligência era decisivo em si mesmo. Toda-
via, poucos dêsses homens ocupavam postos acadêmicos, e a
opinião universitária era amargamente hostil em relação aos
descobrimentos de Galileu.
Como é sabido por todos, o grande sábio de Pisa teve,
no fim da sua vida, de enfrentar a Inquísição por sustentar
que a Terra gira ao redor do Sol. Aliás, já se defrontara
anteriormente com essa instituição, numa primeira escaramuça,
sem grandes conseqüênoias. Em 1632, Galileu publicou um
livro de diálogos a respeito dos sistemas de Copérnico e de
o conhecimento científico 25
I'tolomeu, em que, temeràriamente, põe na bôca de um per-
sonagem chamado Simplício algumas observações que haviam
sido feitas pelo Papa. Êste tinha mantido até então boas rela-
çõ s com Galileu, mas êsse fato o deixou furioso. Galileu vivia,
na ocasião em Florença, em boas relações com o Grão-Duque,
mas a Inquisição exigiu que êle se transportasse para Roma,
P ra julgá-Io, ameaçando o Grão-Duque com castigos e multas,
.aso continuasse protegendo Galileu, que, na época, já tinha
.ôrca de 70 anos, estava bastante doente e quase cego. Enviou,
mtão, Galileu, a Roma, um atestado médico que o declarava
impossibilitado de viajar. Em resposta, a lnquisição remeteu-
lhe um dos seus médicos, com ordens de enviá-lo acorrentado
'u Roma, tão cedo estivesse suficientemente restabelecido para
tanto. Calíleu, entretanto, ao tomar ciência dêsses fatos, viajou
ispontâneamente para Roma, onde, mediante ameaças, foi
obrigado a fazer um ato de submissão.
A sentença da Inquisição é um documento interessante,
que merece ser transcrito, Eí-lo:
" ... Considerando que vós, Galileu, filho do falecido Vicenzio
alíleí, de Florença, de 70 anos de idade, fôstes denunciado em 1615
a êste Santo Ofício, pelo fato de sustentar, como verdadeira, uma falsa
doutrina, que é ensinada por muitos, a saber, que o Sol está imóvel
no centro do mundo e que a Terra se move, inclusive com um movi-
mento diurno; considerando que fôstes .denuncíado pelo fato de terdes
alunos, a quem ensinastes estas coisas; 'considerando que fôstes denun-
.iado por manterdes correspondência a respeito dêsses assuntos com
ulguns matemáticos alemães; considerando que fôstes denunciado por
t rdes publicado algumas cartas a respeito das manchas solares, em
que apresentastes como verdadeira a referida doutrina; considerando que
[ôstes denunciado pelo fato de terdes respondido às objeções que continua-
m nte foram levantadas com base nas Sagradas Escrituras; considerando,
ainda, que, logo em seguida, foi apresentada a cópia de um escrito,
111 forma de carta, declaradamente escrita por vós e dirigida a um
vosso ex-aluno, carta essa em que, seguindo a hipótese de Copérníco,
in .luístes várias afirmações contrárias ao verdadeiro sentido e à auto-
r! lade das Sagradas Escrituras, as duas proposições a respeito da
imobilidade do Sol e do movimento da Terra, por desejo de Sua Santi-
dnde e dos mais eminentes srs. cardeais desta suprema e universal
luquisíção, e porque êste Santo Tribunal deseja' combater a desordem
to O mal que, desde essa ocasião, vêm surgindo e aumentando, em
ddl'imento da Santa Fé, são classificadas como segue pelos classífí-
""do,!' s teológicos:
26 A perspectiva científica
l. A afirmação de que o Sol é o centro do mundo e de que
permanece imóvel é absurda, filosoficamente falsa e Formalmente heré-
tica, porque é expressamente contrária às Sagradas Escrituras;
2. A afirmação de que a Terra não é o centro do mundo, de que
se move, inclusive com um movimento diurno, também é absurda, filo-
soficamente falsa e, teologicamente considerada, pelo menos errônea
na fé.
Mas, como, nessa ocasiao, estávamos decididos a tratar-vos com
brandura, na Sagrada Congregação, que se reuniu diante de Sua Santi-
dade, em 25 de fevereiro de 1616, foi decidido que Sua Eminência,
o Cardeal Bellarmino, deveria ordenar-vos que abandonásseis inteira-
mente a referida- falsa doutrina; foi decidido que, no caso de vós vos
recusardes a isso, o Comissário do Santo Ofício ordenasse que abju-
rásseis essas crenças, que não mais as ensinásseis, e que não mais as
defendêsseis; foi decidido que, em caso de recusa, se ordenasse a vossa
prisão. Em cumprimento a essas decisões, no dia seguinte, em palácio,
na presença de Sua Eminência, o referido Cardeal Bellannino, de um
notário, e de testemunhas, depois de terdes sido brandamente admoes-
tado pelo mencionado Cardeal, o Comissário do Santo Ofício ordenou-
vos que renunciásseis inteiramente a essas falsas opiniões, que, no
futuro, não mais as deferÍdêsseis ou ensinásseis, nem verbalmente, nem
por escrito. E, depois de terdes prometido obedecer, fôstes dispensado.
E, para que doutrina tão perniciosa fôsse totalmente extirpada,
para que ela não mais continuasse a se difundir, em detrimento da
verdade católica, foi publicado um decreto da Santa Congregação do
.Index, proibindo os livros que tratassem dessa doutrina, declarando-a
falsa e inteiramente contrária à Sagrada e Divina Escritura.
Considerando que, depois de tudo isso, foi publicado em Florença,
no ano passado, um livro, cujo título - O Diálogo de Calileu Galilei
sôbre os Dois Sistemas Principais do Mundo: o Ptolomaico e o Coper-
niciano - demonstrava a sua autoria; considerando que, pQr ter tido
a Sagrada Congregação conhecimento de que, em conseqüência da
publicação do referido livro, a falsa doutrina da imobilidade do Sol
e do movimento da Terra está, dia a dia, ganhando terreno, esta exa-
minou atentamente o mencionado livro, descobrindo nêle uma clara
violação da ordem anteriormente dada a vós; considerando que no
mencionado livro vós defendeis a referida opinião, que, anteriormente,
havia sido condenada na vossa presença; considerando ainda que, nesse
livro, vós vos esforçais, por meio de muitas circunlocuções, a induzir
o leitor à crença de que essa opinião não é questão decidida, mas
apenas provável, o que também é um êrro muito grave, uma vez que abso-
o conhecimento científico 27
lutamente não pode ser provável uma afirmação que já foi declarada,
d modo definitivo, como contrária à Divina Escritura, fôstes, por nossa
ord nn, citado perante êste Santo Ofício. Aqui, depondo sob juramento,
r conhecestes que o referido livro foi escrito e publicado por vós. Con-
fcssastes ainda que começastes a escrever o dito livro há 10 ou 12
1I110S, depois de a ordem anteriormente referida ter sido dada a vós.
onfessastes também que solicitastes licença para publicá-lo, mas sem
esclarecer aos que concederam a permissão que já havíeis recebido
ordem para não sustentar, defender ou ensinar, de qualquer modo, essa
doutrina, Admitistes também que o leitor poderia pensar que os
urgumentos aduzidos a favor da falsa doutrina tinham sido escritos com
11 intenção de serem fàcilmente refutados. Alegastes, em vossa defesa,
.(llle incorrestes involuntàriamente em êrro porque, ao escrever sob a
forma dialogada, fôstes levado pela natural complacência que todos
sentem em relação às suas próprias sutilezas em mostrar-se mais habi-
lidoso do que o comum do gênero humano ao inventar, ainda que a
favor de falsas proposições, argumentos engenhosos e plausíveis.
E, depois de vos ter sido concedido um tempo razoável para
u vossa defesa, vós exibistes um certificado do punho de Sua Eminência,
(1 Cardeal Bellarmino, obtido, segundo dissestes, pessoalmente, para
poderdes vos defender contra as calúnias dos vossos inimigos que propa-
lavam que havíeis abjurado das vossas opiniões e sido punido pelo
Sunto Ofício; nesse certificado, está declarado que vós não abjurastes
das vossas crenças, nem fôstes punido pelo Santo Ofício, mas tão-somente
que a declaração feita por Sua Santidade e promulgada pela Santa
ongregação do Index, declarando que a afirmação a respeito do movi-
111 mto da Terra e da imobilidade do Sol é contrária às Santas Escrituras
e, portanto, que não pode ser sustentada ou defendida, foi comuní-
euda a vós. Conseqüentemente, pelo fato de não se fazer menção nesse
v(lrlifioado da proibição que vos foi imposta de não ensinar, e de não
oonstar nêle a expressão "de nenhum modo", pretendeis que devamos
1101' ditar que, nestes catorze ou dezesseis anos, estas coisas foram esque-
oklus, razão pela qual silenciastes a respeito delas, ao requererdes per-
IIllssão pam publicar o referido livro. Declarastes, ainda, que estas coisas
I) ditas por vós, não como uma desculpa para o êrro cometido, mas
plll'n que êle seja atribuído antes a uma ambição de vanglória, do que
11 lima intenção maliciosa. Mas, êsse mesmo certificado, apresentado
I,'H' vós, agravou sobremodo a infração cometida, porque nêle se declara
I [lI' ssamente que a referida opinião é contrária às Sagradas Escrituras,
11 qll não vos impediu de vos ocupardes com ela e de a declarardes
1,,'ovÍtvcl. Da mesma forma, a licença obtida para a publicação não ate-
'''lI! m nada o vosso êrro, porque ela foi obtida de modo insidioso e
28 A perspectiva científica
astuto, mediante a ocultação do fato de existir contra vós a mencionada
ordem. Mas, considerando que a nós pareceu que não revelastes tôda
a verdade em relação à vossa intenção, achamos necessário continuar
investigando-vos rigorosamente, e nessa inquisição (feita sem nenhum
preconceito em relação ao que tínheis já confessado - que está relatado
detalhadamente mais acima, em detrimento da vossa pcsição - a res-
peito da vossa intenção manifesta) vós respondestes como um bom
católico.
Dessa Forma, tendo visto e considerado maduramente os méritos
do vosso caso, as vossas confissões e as vossas escusas, e tudo o mais que
julgamos merecer ser visto e considerado, chegamos à seguinte sentença:
'Invocando o Sacratíssimo Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo
e de Sua Mui Glàriosa Virgem Mãe, Maria, nós pronunciamos esta nossa
irrecorrível sentença que, reunidos em conselho e tribunal, juntamente
com os reverendos mestres da Sagrada Teologia e com os doutôres em
ambas as leis, nossos assessôres, transcrevemos nesta peça, em relação
aos assuntos e às controvérsias entre o magnífico Carlo Sincero, doutor
em ambas as leis, Fiscal e Procurador do Santo Ofício, de uma parte,
e vós, Galileu Galilei, acusado, julgado e confesso, do outro lado; nós
pronunciamos, julgamos e deelaramos que vós, Galileu, pelas razões
mencionadas detalhadamente neste documento e pela que confessastes,
vos tornastes profundamente suspeito de heresia por êste Santo Ofício,
isto é, suspeito de ter esposado e sustentado a doutrina (que é falsa
e contrária às Sagradas e Divinas Escrituras) de que o Sol é o centro
do mundo, de que êle não se move de Oriente para Ocidente, de que
a Terra se move, de que ela não é o centro do mundo, de que a
vossa opinião pode ser sustentada, defendida e crida provável, depois
de ter ela sido declarada e irrecorrivelmente decretada contrária à Sagrada
Escritura; em conseqüência de tudo isso, vós incorrestes em tôdas as
censuras e penalidades determinadas e promulgadas nos cânones sagra-
dos e em outras leis gerais e particulares relativas às transgressões capi-
tuladas nesta elas-se. Mas, apraz a nós que sejaís absolvido, desde que,
com coração sincero e com verdadeira fé, abjureis, amaldiçoeis e
detesteís os referidos erros e heresias, bem como qualquer outro êrro
e heresia que seja contrário à Igreja Católica e Apostólica de Roma, na
forma que passamos a especificar.
Mas, para que o vosso sério e pernicioso êrro e transgressão não
fique de todo sem punição, para que sejais mais cauteloso para o
futuro e para que o vosso caso constitua um aviso para outros se
absterem de transgressões dessa espécie, nós decretamos que o livro
Diálogos de Galileu Galilei seja proibido por um édito público, e vos
condenamos à prisão formal dêste Santo Ofício, por um período que
o conhecimento científico 29
I
('rá determinado à nossa vontade; como penitência salutar, ordenamos
uinda ue, durante os próximos três anos, reciteis, uma vez por semana,
os S t salmos de penitência, reservando-nos o poder de minorar, comu-
lar ou suprimir em parte, ou no todo, a referida punição ou a referida
p mitência."
A fórmula da abjuração que, em conseqüência dessa
s mtença, GalHleu teve de pronunciar, foi a seguinte:
"Eu, Galileu Galilei, de 70 anos de idade, filho do falecido Vicenzio
alilei, de Florença, tendo sido trazido pessoalmente para ser julgado,
stando ajoelhado diante de vós, emínentíssímos e reverendíssimos car-
d ais, inquisidores gerais da República Cristã Universal contra a depra-
vação herética, e tendo diante dos meus olhos os Santos Evangelhos,
que toco com minhas mãos, juro que sempre acreditei, e que, com o
auxílio de Deus, sempre acreditarei, em todos os artigos que a Santa
Igreja Católica e Apostólica de Roma sustenta, ensina e prega. E, por
que me foi ordenado pelo Santo Ofício abandonar a falsa opinião de
Cf,ue o Sol é o centro do mundo, de que está imóvel, bem como me
foi proibido sustentar, defender ou ensinar de qualquer modo a refe-
rlda falsa doutrina; porque, depois de me ter sido dito que tal dou-
trina é contrária à Santa Escritura, escrevi e publiquei um livro, em
que trato dessa doutrina condenada, aduzo fortes razões a favor dela,
s '111 dar ao problema qualquer solução, o que me tornou seriamente
suspeito de heresia, isto é, eu sustentei que o Sol é o centro do
mundo, que êle está imóvel, que a Terra não é o centro do mundo
l) que ela se move; porque desejo afastar das mentes de vossas eminên-
elus e de todo cristão católico esta séria suspeita, justamente Iançada
sôbre mim, eu, com sinceridade e verdadeira fé, abjuro, amaldiçôo e
detesto os referidos erros e heresias, bem como qualquer outro êrro
(I S otarismo contrários à Santa Igreja. Da mesma forma, juro que nunca
muis, no futuro, direi ou afirmarei, verbalmente ou por escrito, qualquer
I'oisa que possa dar margem a uma suspeita semelhante; juro, ainda,
/(11 , se vier a saber de qualquer herético, ou suspeito de heresia, eu
(I lcnunciarei a êste Santo Ofício, ou ao inquísídor ou ordinário do
lugar em que me encontrar. Juro, ainda, e prometo que hei de cum-
1'1'11' e observar totalmente aos penitências que me foram, ou que me
venham a ser impostas por êste Santo Ofício. Porém, se acontecer de
1'11 vir a violar qualquer das minhas promessas, juramentos e protestos
((I que Deus 'não permita), eu me submeterei a tôdas as penas e
Jlllldçõ s que foram decretadas e promulgadas pelos cânones sagrados
I' por quaisquer outras leis gerais e particulares relativas a delitos desta
I 'p cie, Assim, com a ajuda de Deus, e dos seus Santos Evangelhos,
 30 A perspectiva científica
f
que toco com minhas próprias mãos, eu, o mencionado Galileu falilei,
abjureí, jurei e prometi; e com as minhas próprias mãos supscrevi
o presente têrmo da minha abjuração, que recitei, palavra por palavra.
Em Roma, no Convento de Minerva, aos 22 de junho ~e 1633,
abjurei como acima, pelas minhas próprias mãos." (2) I ram oosseguidores de GaJileu? Apenas a lei da queda dos
Não é verdade que, depois de ter pronunciado essa abju-
ração Galileu tenha murmurada: Eppur si muove!. .. Foi o
mundo que disse isso, não Galileu.
A Inquisição afirmou que a sorte de Galile,upoderia cons-
tituir uma "advertência para que outros se abstivessem ~e pm-
ticardelitas dessa espécie." E, a êsse respeito, a Igreja con-
seguiu ser bem' sucedida até hoje, pela menos na que tange
à Itália. Galileu foi o último dos grandes italianos, Desde
essa época, nenhum outro italiano teve. a caragem de. oometer
delitos dessa espécie. Não se pode afirmar que a a~ltude da
Igreja tenha mudado muita desde a tempo de Gahleu. .fun.
todos os lugares em que detém podêres, como acontece na
1rlanda e em Boston, ela ainda praíbe qualquer literatur~ue_
"abrigue idéias riovas. _' --.
- '9 c~flito j~tre[9aWeu e a I uisiÇi0 n.ãa foi apenas
um caiíflito entre a livre pensamento e a fanatismo, ou entre
a ciência e a religião; fai um c.9nflito eIlltre.o espiDtÇ),indu-
tivo e o es' írito dedutiva. Aiquélesque acreditam que a dedu-
ção é o método indicado para a obtenção de conhecimentos
~
são obrigadas a buscar as suas premissas em algum lugar, nos
livros sagradas, as mais das vêzes, A dedução a partir de
livras inspiradas é o método de se chegar à verdade empre-
gado pelos juristas, pelos cristãos, pelos maometanos e elÇ,.S
('1\ comunistas. Mas, uma vez que a método dedutiva, como modo
\.Y de obter conhecimentos, entra em colapso quando lançamos
dúvidas sôbre as premissas que serviram de ponto de partida,
os que acreditam na dedução recebem maIos homens que
põem em dúvida a a~toridade dos livros ~agradas. G~lileu
duvidou tanta de Aristoteles, quanto das Esonturas, destruindo,
dessa forma, todo o edifício do conhecimento medieval. Antes
dêle, os homens sabiam camO' O' mundo havia sido criado e
qual era o destino do homem, conheciam os mais profundas
mistérios da metafísica e as ocultos princípios que gavernavam
(2) Extraído de J. J. FAHIE: Calileo, His Life and Work,
págs. 313 e segs.
o conhecimento científico 31
o comportamento dos carpas. Tanto no campo moral, quanto
no material, nada era misterioso para êles, nada era desco-
nhecído, nada era incapaz de ser exposto em silagismas arde-
nados. Em comparação com semelhante riqueza, que herda-
corpos, a teoria do pêndulo e as elípses de Kepler, NãO' é,
pais, de causar espécie que as eruditas de então protestassem
contra essa destruição da riqueza que tinham àrduamente
acumulado. Da mesma farma ue o SOoIao nascer faz .desa:...-..
j2'arecer ~ma mu tidãa d~ estrêlas, as ~o~ças ver~ades, demans-
tradas e Ga ileu destruíram tadO'a cmtilante fírmamento das;
certezas medievais.
Sócrates afirmava que era mais sábio da que as seus con-
temporâneos, pO'rque só êle sabia que não sab~a.nada, I?as
essa afirmação não passava de um recurso de retórica, Gahleu
poderia ter dito, e com razão, que êle tinha paucas conheci-
mentos, mas que tinha consciência disso, ao passa que os seus
arístotélícos contemporâneos nada sabiam, apesar de pensarem
conhecer muito. O conhecimento, tomando O' têrmo no sen-
tido de qualquer coisa oposta às fantasias de satisfação de
desejos é difícil de ser adquirida. Ouando estabelecemos um
pequeno contato com o verdadeiro conhecimento, as fantasias
,passama ser menos aceitáveis. De fato, O'conhecimento é ainda
mais difícil de ser adquirido, da que Galileu pensava, e mui-
tas das verdades em que acreditava não passavam de ver-
dades aproximadas. Mas, no 'rocesso de obten ão d~ conh~ci-
mentos ue sejam_aO'm~'Ü' tempo, seguras e-geraIS, Gahleu
deu ·0 12rimeiro grand~ asso. çQ.nseqüe!1t~mente,_p~dem<:!s
cansiderá-Io ~~_O' _I.:laidos tempos modernos. Independente-
mente-áas coisas que apreciamos, ou que detestamos na época
m que vivemos, a aumenta populacíonal que presenciamos,
n melhoria da saúde humana, os nossos trens, os nossos auto-
móveis, O' rádio, a política, os anúncios de sabãO' etc., tudo
emanou de GaHleu. Se a Inquísição tivesse lançado a sua
garra sôbre êle nas seus verdes anos, é bem passível que, neste
m mento, não estivéssemos gozandO'as "delícias" das guerras
nér as e das bombas atômicas, nem as bênçãos da diminuição
I lt pobreza e das doenças, que são características da nossa
1'( o 'a.
17: habitual entre as seguidores de certa escola sociológica
tlllldnllj[' a importância da inteligência pessoal e atribuir todas
1903,
(. rrnnd S acontecimentos a causas impessoais muito vastas.
32 A perspectioa científica o conhecimento científico 33

Creio que essa opinião é totalmente errônea. Acredito que rato, nervoso e, ao mesmo tempo, briguento e inimigo de
talvez não existisse o mundo moderno se a Qgntena_d.e cer, controvérsias. Temia publicar os seus trabalhos, porque isso
tos homens que viveram no século __ XVII!h: ..essem sido mortos. expô-le-ia a críticas, de modo que as suas obras só foram
"na infância. E dessa centena de homens,,-GaU,Ie.n...f.{;)i-o-mais publica das pO'r inf,luênc~a dos seus amigo.s d.evot,~do~. _A p1:0-
·iinp~ante. ' pósito da su Opticks, ele escreveu a Leibniz: FUI tão per-
seguido pelas Íscussões que a minha teoria da luz provocou,
que me censurei pela minha imprud~ncia de a~.~~donar uma
bênção tão substancial quanto a mmha tranqüilidade, para
11. NE WTON
correr atrás de uma sombra." Se êle se tivesse defrontado
com as oposições com que Galileu teve de lutar, é muito
Sir Isaac Newton nasceu no ano em que Galileu morreu provável que nunoa tivesse publicado uma só linha.
( 164;2), e, da mesma forma que êste, teve uma vida bastante
O triunfo obtido por N ewton constitui a. mais ~];letª,..9ular
longa, pois só morreu em l727, aos 85 anos.
vitória de ue se tem notícia na histÓriª- da ciência. Desde
Durante o pequeno período que separa as atividades dês- 'os tempos ci;-Gréci;, "a Astra';;~:;;;iatinh-;' sido: simultânea-
tes dois homens, mudou completamente a posição da ciência mente, a mais avançada e a mais respeitada das ciências. As
no mundo. Durante tôda a sua vida, Galileu teve que lutar leís descobertas pO'l' Kepler eram ainda bastante recentes, e
contra os eruditos oficiais, e, nos seus últimos anos, viu-se a terceira delas ainda não havia conquistado o consenso uni-
perseguido e teve as suas obras condenadas. Com Newton versal. Além disso, elas pareciam estranhas e inexplicáveis
aconteceu o contrário; desde o momento em que, aos dezoito aos que estavam acostumados a lidar com círculos e epiciclos.
anos, êle se tomou undergraduatet ~) no Trínity College, de A teoria galileica a respeito das marés não era correta, os
Cambridge, recebeu aplausos universais. Menos de dois anos movimentos da Lua não eram bem compreendidos, de modo
depois da obtenção doseu título de Master in Artibus o Dire- que os astrônomos nada podiam fazer a não ser lamentar a
tor' da Seu colégio já se referia a êle corno um homem extra- perda da unidade épica que os céus ~ossuíam no sistema de
ordinàriamente genial. N ewton foi aclamado par todos os Ptolomeu. Mas,~, com a sua-J"::::aay~~ trouxe,
eruditos; foi honrado por reis; e, de acôrdacom a melhor com um só golpe, ordem e unidade para essa confusão. Não
tradição inglêsa, teve os seus trabalhos recompensadas com só a sua lei explicava _os_asp-êQtº's g§rais~do.s...m.oyiIDentos ..do~
uma nomeação para um cargo púhlico, no exercício da qual planêl.~ ~9S sat-~li!§s_,_cQ!Jlo.
~ tê.,~.l>_émtô.çtt_L_~.LP_aJti~l}Jari-
não poderia continuá-Ias. Foi tal a sua importância que, quan- dades conheci.das àJqllela~p_o'cª; até mesmo os cometas, que
do Jorge I subiu ao trono inglês, o grande Leibniz fai até há não muito tempo eram considerados como "anuncia-
obrigado a permanecer em Hanôver, não o acompanhando à dores da morte de príncipes", passaram a obedecer à lei da
Inglaterra, porque êle e N ewton tinham tido uma questão. gravitação. O Cometa de Halley era um dos mais serviçais,
Foí uma felicidade para as tempos vindouros êsse fato , Halley foi o melhor amigo de Newton.
de terem sido tão plácidas as circunstâncias que cercaram a Os Principia de Newton estão organizados de acôrdo com
vida de Newtan. O grande sábio inglês fai um homem timo- O grande estilo gregO': a partir das três leis do movimento e
da lei da gravitação, o autor explica todo o sistema solar, lan-
(~) Não há uma tradução inteiramente satisfatória para o têrrno. çando lllão-ª;~~!lllLQ~ dedu ão p:uramente .ID.at§!Uática. A obra
Êle provém da separação em dois ciclos, existentes .nos colleges inglêses
e norte-americanos, e nas faculdades inglêsas de artes liberais. O pri-
ti' Newton é estatuária e helênica, contràríamente ao que
meiro ciclo é denominado urulergraduate (não graduado), e o segundo, 1\ -ontece com o~eihores trãbaI~atuais. Dêstes, o que mais
graduate (graduado). Também para a expressão Master ín Artíbus, que se aproxima dessa perfeição clássica é a teoria da relatividade,
aparece mais abaixo, não hátra:dução satisfatória em português, porque IlU1S mesmo esta teoria não pretende ter o caráter de coisa
não existe na nossa vida acadêmica um título correspondente a êsse,
que se situa, hieràrquicamente, entre o de Bacharel e o de Doutor.
d finitiva e acabada, corno acontece com a obra do sábio inglês,
(Nota do Tradutor.) l' lrque o ritmo do progresso é, atualmente, muito grande. To-
34 A perspectiva científica
dos conhecem a l.&stória da ~ueda-ºª-maçã. Contràriamente
ao que acontece com a maior parte das histórias dessa espécie,
não temos certeza de que ela seja falsa. Em todo caso, foi
em (!665'\que Newton pensou, pela primeira vez, na lei da
gravitação. Foi o ano da Qgnd_~ Peste, e N ewton mudou-se
para o campo, provàvelmente para uma propriedade em que
hav~~Q{ pomar. Mas, os seus Principia só foram publi:cados
em~Z) porque, durante vinte e um anos, êle se contentou
em meaitar sôbre a sua teoria, aperfeiçoando-a gradualmente.
Nenhum estudioso da nossa época arriscaria a fazer tal coisa,
porque, atualmente, um intenegno de vinte e um anos é um
lapso de tempo bastante grande para que o panorama cien-
tífico mude completamente. Mesmo a obra de Einstein sem-
pre teve arestas não polidas, dúvidas não solucionadas e espe-
culações não terminadas. Não afirmamos isso como uma
crítica, mas apenas para ilustrar a diferença que existe entre
a nossa época, e a newtoníana. Já não buscamos a perfeição,
por causa do exército de sucessores que nos seguem rente aos
nossos calcanhares e que estão sempre prontos a apagar as
nossas pegadas.
O respeito universal tributado a Newton, em contraste com
o tratamento que foí dado a Galileu, teve como causas, em
parte,as obras dêste sábio e as dos outros cientistas que vive-
ram nos anos imediatamente anteriores às obras de Newton e,
em parte também, e não em menor escala, os acontecimentos
políticos da época. Na Alemanha, a Cuerra dos Trinta Anos,
que estava no seu apogeu quando da morte de Galileu, divi-
diu a população, sem alterar em nada o equilíbrio de fôrças
existente entre os católicos e os protestantes. :f:sse fato deve
ter levado até os menos acostumados a refletir a pensar que,
talvez, as guerras religiosas fôssem um êrro. A França, apesar
de ser um país católico, havia apoiado os protestantes alemães,
e Henrique IV, apesar de ter-se convertido ao catolicismo para
conquistar Paris, não demonstrou nenhum fanatismo em rela-
ção à sua nova fé. Na Inglaterra, a Guerra Civil, que se ini-
ciou no próprio ano em que N ewton nasceu, teve como con-
seqüência o Covêrno dos Santos, 00 que fêz com que todo
mundo se voltasse contra o excesso de zêlo religioso, exceto
os próprios santos. Newton ingressou na universidade um ano
depois que Carlos II retomou do exílio, monarca êsse que
fundou a Royal Society e que fêz tudo quanto estava ao seu
alcance para o desenvolvimento da ciência, em parte, como
o conhecimento científico 35
um antídoto contra o fanatismo religioso. O fanatismo protes-
tante havia feito com que êle permanecesse no exílio, enquanto
que o fanatismo católico fiz~ra com que o s~u ir~ão perdesse
o trono, Carlos II, que fOI um monarca inteligente, trans-
formou em regra de govêrno o evitar tudo que pudesse man-
dá-lo de nôvo para o exílio. ,0 período que s~ estende de~dD
a sua ascensão ao trono, ate a morte da Rainha Ana, fOI o
mais ~rilha~te da his~ória da Inglaterra, do ponto de vista das
[ conquistas intelectuais. _ •
Nesse meio tempo, na França, 'esca~ei) havia ~augu-
rado a fiIosofia moderna, mas a sua eona a respeito dos
vórtic~~tr0'u ser um o stáculo à aceitação das idéias new-
tonianas, Só epois da ~orte do sábio inglês, e ~m g;ande
parte devido às Lettres Phslosophiques, de Voltaíre, e 9-ue
as suas idéias passaram a estar em voga, mas, quando ISSO
aconteceu, o entusiasmo que despertaram foi ~imenso. De
fato, no século seguinte, até a queda de Napoleão, a obra de
Newton foi desenvolvida principalmente pelos franceses. Por
causa do seu patriotismo, os inglêses, errôneamente, se afer-
raram aos métodos newtonianos, apesar de êstes serem, em
certos casos inferiores aos de Leibniz; em conseqüência dêsse
fato, depois' da morte de Newton, a escola inglêsa de Mate-
dária. °
mática, durante cêrca de um século, teve importância secun-
dano que, na Itália, foi devido ao fanatismo
r lígíoso, na Inglaterra, foi provocado pelo nacionalismo. É
difícil afirmar qual dêsses dois fanatismos demonstrou ser o
mais pernicioso. .
Ainda que os g1'inciJ2ia de N ewton conservem a forma
d dutiva de raciocínio, que foi o apanágío do g~Ilio grego, "
O seu espírito é bastante diferente do das obras gregas, uma
v z que a lei da gmvitação, que é uma das premissas funda-
m ntais do seu livro, não é suposta ser uma verdade por
si mesma, mas uma conclusão obtida indutívamente, a partir
das leis de Kepler, Portanto, o citado livro constitui um exem-
)10 de método científico, ~
) (Jo)5
a orma i eaLA partir a
t
l'vação_de-fatos .partiCu.lar.es,êle chega,_poL indução, a~ t'I/;
ostabelecímento de uIl)a lei geraLe, em segujda, gednJiv-ª.mente, . - ~~!rO
) outros fatos particulares são inferidos, a partir dessa l~g~al ~,,-; .-e-
~ste é o ideal da Física, ciência que, teoricamente, deveria L)V (
11 nvír de ponto de partida para a dedução de tôdas as outras
t'i n ias. Mas, a realização dêsse ideal é um pouco mais dífí-
·ll de ser conseguida, do que parecia nos dias de Newton;

36 A perspectiva científica
e não nos podemos esquecer de que a experiência tem mos-
trado que as sistematizações prematuras constituem um perigo.
A lei gª_,g!..<!Yi!:a.Ç.ªº,_de_Ne.w1D:n,
tem tido uma história
peculiar. Apesar de ter explicado, por mais de 200 anos, todos
os fatos conhecidos a respeito do movimento dos corpos celes-
tes, permanecia ela própria isolada e misteriosa entre as leis
naturais. Desenvolveram-se enormemente novos ramos da Fí-
sica; as teorias do som, do calor, da luz e da eletricidade foram
exploradas com êxito, mas não foi descoberta nenhuma· pro-
priedade da matéria que pudesse, de algum modo, ser relacio-
nada com a gravitação. Foi sàm~E.t~p.2!.J!I~iO' 9~ t:..eoria=ger~L
~elfltiyida<ie,. de _E~~t~~_r1.~r~) !qu~ a__g13yitação_f.?L
~encaixª,ªuentrQ-ªº _~g)JeIlJa geral da Física e, quando isso
aconteceu, descobriu-se que ~la pertencia muito mais ao cam-
po da Ge~triª,,> do que ao da Físíca, no velho sentido do
têrmo. 00 ponto de vista prático, ~ia de Einstein i ;p.õ~
çPrreções muito pequenas ~~ res~l!.~~-ºbtidos }2orNe;vt~I!.
Essas pequenas correçoes-;-na medida em que são mensuraveis,
têm sido verificadas experimentalmente; mas, enquanto as mu-
danças de ordem aplicada são pequenas, a mudança teórica
é enorme, porque tôda a nossa concepção de espaço e de
tempo sofreu uma evolução. A obra de Einstein acentuou a
dificuldade de conseguirmos conquistas permanentes no ter-
reno científico. A lei newtoniana da gravitação foi aceita
durante tanto tempo e explicou tantos fatos que, dificilmente,
se admitiria necessitasse ela de ser corrigida. Não obstante,
essa correção tornou-se, finalmente, necessária, e, agora, nin-
\
guém duvida de que essa correção necessitará, por sua vez,
de sofrer outra correção.
\ pelos ?ampos, a colecionar escaravelhos, o que era oficialmente
m. DAR WIN
No passado, os triunfos do método científico se deram
no campo da Astronomia, mas nos tempos modernos as
suas vitórias mais notáveis devem ser procuradas no campo
da Física atômica. Tanto num caso, quanto no outro,
estamos em presença de fatos que requerem muita matemática
para o seu tratamento. Ao alcançarem o seu último estágio
de perfeição, é possível que tôdas as ciências tenham caráter
matemático, mas, por enquanto, há muitos campos científicos,
bastante vastos por sinal, em que a Matemática é raramente
---~----------
o conhecimento científico 37
empregada. Pois é justamente nêles que vamos encontrar algu-
mas das mais importantes realizações da ciência moderna.
Podemos tomar a obra de Darwin como uma ilustração
para o caso das ,fiências de:..carát.e.r .ão_matê-mático. Darwin,
da mesma forma que Newton já o fizera anteriormente, domi-
nou o panorama intelectual da sua época, não apenas entre os
homens de ciência, mas entre o público educado, em geral.
Semelhantemente ao que já acontecera antes com Calíleu, o
sábio ing1ês entrou em conflito com a teologia, se bem que
com resultados menos desastrosos para si próprio. A importân-
cia de parwin na história da cultura é muito grande, mas
de um ponto de vista estritamente científico é difícil avaliar-se
o valor da sua obra. Ele não inventou a hipótese da evo-
lução, que jáhav~ OCÕrr.09 ..ã !llQitosdbs"]'eus preqecessoreJ::
Ele coligiu uma grande massa de E.fOvasa favor dessa i1tó-.,.
tese, ª-9~smotempo que imaginou uma es, écie de meca-
~i~~que a§llomin6ir_..sj!~ç:ãoE~túr~~pargt_ex,pl~:;la.
MUltas das provas que acumulou continuam válidas, mas a
sua seleção natural é aceita pelos biólogos num grau menor
do que se deveria esperar.
Darwin foi um homem que viajou muito, que Iêz obser-'
vações de um modo inteligente, que refletiu pacientemente.
Poucos homens de importância comparada ~ sua apresenta-
ram essa qualidade que chamamos brilhantismo em grau menor
do que êle, ninguém se incomodou muito com Darwin du-
rante sua juventude. Em Cambridge, êle não se preocupou
t)~ trabalhar e se contentou. com uma aprovação simples.
Não sendo capaz, naquele tempo, de estudar Biologia na Uni-
v rsidade, Darwin preferiu despender o seu tempo vagando
urna. forma de vadiação. Êle deveu a sua verdadeira educa-
~'I O à viagem que empreendeu a bordo d Be~viagem essa
(11 I( lhe deu a oportunidade d~ar a lora e a fauna de
multas r~g~s,_ e de ob_~rvar-Es_habítats e_mui as ~sÊéCies
NI'"~()lhantes,~~ ~e1Laraçlasgeºg!:&i~atpente._Parte da sua
melhor oora e relativa ao que hoje chamamos de ~ngia.;·
Isto é, a distribuição geográfica das diversas espécies dos
1111' r ntes gêneros(3). Ele observou, por exemplo, que a
VI'(('Laçãodos Altos Alpes assemelha-se muito à das regiões
!l0 !l1'OS, ,dessa semelhança, inferiu a existência de um ances-
(:1) ,r. no 13EN: The Nature of Living Matter, 1930, pág, 143.
 l
38 A perspectiva científica o conhecimento científico 39

traI comum para essas vegetais espécies, antepassado êsse mas, se Ia tivesse sido obra de macacos, ou de habitantes
que teria vivido na época glacial. de Vônus, ela não teria essa característica. Os homens sempre
Deixando de lado os detalhes científicos, podemos afir- d f nd ram a sua auto-estima, pensando que estavam deferi-
mar que a importância de Darwin reside no fato de êle ter d ndo a sua religião. Além disso, nós sabemos que o homem
levado os <biólogos e, atravésdêles, o público em geral, a tem uma alma e que os macacos, não. Portanto, se o homem
~?andQDªr..Jl--:...slJª_crença anterior na im~a~ilidade das_êpj- tiv sse provindo gradualmente dos 'macacos, em que momento
cies, e a aceitar o ponto de. vista de que todas as diferentes t ria êle adquirido a sua alma? Esse problema, na realidade,
esp1cies de animais se desenvolveram, por varíação.r'â pãr~ir 1 t O é mais complicado do .que a questão de se saber em
" e um ancestral cOEI1um. Exatamente como qualquer outro flllo estágio do seu desenvolvimento o feto adquire uma alma,
inovador dos tempos mo ernos, Darwin teve de lutar contra ma~ as novas dificuldades sempre parecem piores do que as
a autoridade de Aristóteles. É preciso que se diga que a exis- antigas, porque estas perdem as suas arestas por causa da
tência do estagirita constituiu uma das grandes infelicidades familiaridade. Se, para escaparmos dessa dificuldade, con-
da humanidade. Atualmente, o ensino de Lógica em muitas viermos que os macacos também têm alma, seremos obri-
universidades está cheio de incongruências, que são devidas dos, pouco a pouco, a atribuir também uma alma aos preto-
ao sábio grego. zoários. Por outro lado, se negarmos uma alma aos protozoá-
rios, e se formos evolucionistas, seremos quase obrigados a
Antes de Darwin, os biólogos acreditavam que um gato
negá-Ia também ao homem. Tôdas essas dificuldades não
ideal, um cão ideal etc. tinham sido concebidos no céu, o
passaram despercebidas aos oponentes de Darwin, de modo
que significaria que os nossos gatos e cachorros atuais deve-
que é realmente surpreendente o fato de êle não se ter defron-
riam ser considerados como cópias mais ou menos imperfeitas
tado com uma oposição maior do que a que, de fato, encontrou.
dêsses protótipos celestiais. Cada espécie correspondía a uma
idéia diferente na mente divina, e, portanto, não poderia ha- Apesar de necessitar ser corrigida em vários pontos, a
ver nenhuma transição de uma espécie a outra, porque cada obra de Darwin serve para exemplificar o que há de essencial
espécie tinha resultado de um ato de criação separado. As no método científico, a saber: a substituição dos contos de
~descobert~ geológicas foram fazendo com que essa crença fadas, que encerram fantasias de rea1iza~o de desejos, por
~tõri1asse cada dia mais difícil de ser defendida, porque os I is gerai~, gue se baseiam "em fatos. Os sêres humanos acham
ancestrais das espécies atuais que se apresentam g.eogràfica- lifícil, em tôdas as esferas do conhecimento, fundamentar as
JHente muito separadas assemelhavam-se uns aos outros muito suas crenças em fatos, e não em desejos. Quando o seu vizinho
mais estreitamente, do que os seus descendentes atuais. O Ó acusado de alguma falta o indivíduo sente que é quase
cavalo, por exemplo, teve dedos um dia; os pássaros primi- impossível esperar que a acusação seja comprovada, para acre-
tivos dificilmente poderiam ser distinguidos dos répteis etc, ditar nela. No caso da eclosão. de uma guerra, ambos os lados
Apesar de um mecanismo da seleção natural já não ser atual- acreditam cegamente que a vitória será sua. Quando alguém
mente considerado como adequado pelos biólogos, a idéia geral aposta num cavalo, êsse alguém está seguro que ganhará.
da evolução, nos dias de hoje, é aceita universalmente por Quando os indivíduos se contemplam a si próprios, êles têm
qualquer indivíduo culto. rteza de que são ótimas pessoas, animadas de uma alma
Em relação aos animais sub-humanos, a teoria da evo- imortal. Para cada uma destas crenças ou afirmações, as pro-
lução, poderia, sem grande dificuldade, ser admitida por muita vas podem ser realmente muito pequenas, mas os nossos dese-
gente, mas acontece que, para o povo em geral, o darwinism ~ jos d spertam uma quase irresistível tendência para crer. O
to· ldentifícadocco a hi ótese de ue o homem descende ót 10 científico pjíe d~.Jil~
por c11egar a o iniões i!l~J.llill.ge~.dQs
no~,~.ut~ej~u§
no~s
sfo'rÇa
deseios, É '
jO_l!.lê:.caco. _.Isso é dolo~oso pãraü nosso orgu1l10 humano,
quase tão doloroso quanto a doutrina de Copérníco, de que ~laro que Q. éto o cielliíiiço..implica~çer.tas yanlagensaê qt;.. -
a Terra não é o centro do universo. A teologia tradicional, Cle!U prática; se não fôss~~sim, êle n-2-~êJia cQ!!.S~~.
como era mesmo de se esperar, sempre endeusou o homem;
-
defender a sua posição contra o mundo da fantasia.
---. O ban-
 40 A perepectioa científica
queiro de bicho comporta-se cientificamente, e enriquece, ao
passo que o apostado.r comporta-se de maneira não científica,
e, portanto, empobrece. Em relação à excelência humana, a
crença ·do que o homem possui. uma alma desen~olv.eu certa
técnica para melhorar a humamdade, mas essa tecmca, ape-
sar dos prolongados e caros esforços despefo1did~, não produziu,
até agora, nenhum bom resultado que seJa visível. Por outro
lado, o estudo científico da vida, do corpo e da mente hum~-
nas provàvelmente estará, dentro de pouco tempo, em condi-
ções de nos dar o poder de produzir melhoras não sonhadas,
no que concerne à saúde, à inteligência e à virtude do homem
comum.
Darwin estava enganado em relação às leis da heredit~-
riedade, que foram completamente transformadas pela teor~a
mendeliana. Além disso, êle não dispunha de nenhuma teoria
para exp~_ origem da~~aIi~ções, qt!e .E:.c~e~_Aser~IIJ
beW menores e !pais _graduais do ~que, e11)certas Clrcunsta_~l~s,
realmente o são, como__depois se desç9.brÍ2.:...~estes pontos, .o§.
OIÓogos rriõde!n~_!oram muito Am~s 10ng~Ado.que Darwín,
~ e-é-º.llse.guir.am.chegat,a ess~ponto, eles o ae~em a?_
:.:im~:::u:;;,;ls;.:::o~d~~
p~,la_s_ua obm,. E a massa. das su~s mves.tl-
~ções foi neces~ia para que os omens icassem Impressl2;
nados com a im ortância e ainevitabilioaCle da- teoria da
\ evolu ão. - At6 onde êle já foi compreendido, demonstrou-se que assim
IV. PAVLOV
Cada nôvo avanço da ciência num nôvo domínio tem
produzido uma resistência da Amesma espécie da encontr.ad~
por Galileu, mas a sua veemencia tem, gradualmente, dimi-
nuído. Os tradicionalistas sempre tiveram esperanças de que
se descobriria, em algum lugar, um terreno em que o método
científico fôsse inaplicável. Depois de Newton,. êles aban~o-
naram, em desespêro, os corpos celestes; depois de Darwm,
a maior parte dêles passou a admitir, em linhas gerais, a. idéia
evolucionista, apesar de continuarem, até Os nossos dias, a
sugerir que o curso da evolução não foi guiado ??r. fôrças
mecanícístas, mas orienado por uma vont~de dll'lglda A~e
antemão. Nessas condições, devemos acreditar que a tema
se tornou o que é, não porque não teria, de outro modo, sobre-
vivido no. intestino humano, mas porque estava obedecendo a
o conhecimento científico 41
lima idéia concebida no céu, pertencente à mente divina. De
u .ôrdo com o Bispo de Birmingham (4), " o repugnante para-
sita é o resultado da integração de mutações; é, ao mesmo
t 'mpo, um excelente exemplo de adaptação ao meio. e etica-
mente revoltante." Esta controvérsia ainda não se encerrou
totalmente, mas não pode haver a menor dúvida de que a
t oría meca icista_iLa evo.lJJção prevalecerá completamente em
pouco.
Uma das conseqüências da teoria da evolução foi obrigar
o. ho e a con.c.e.de os animais llma-parte .ao menos dos_
méritos que êle proclamq"VacomQ,..Fertencentes ao homo sa1!.iens.
1 scartes sustentava que os animais nao passavam e meros
autômatos, ao passo que o homem dispunha do livre arbítrio.
Pontos de vista desta espécie perderam a sua plausíbilídade,
ainda que a teoria da "evolução emergente", que iremos con-
siderar posteriormente, tivesse sido concebida para reabilitar
u idéia de que o homem difere qualitativamente dos outros
animais. A Fisiologia tem sido,o_camp_Q....Qe atalbJ!_dos qU$
consideram Pêl(Ís os enomenos como. sujeitos ao mé!mf.o cien;..
tíflco, e aquêles que continuam pretendendo que, entre os
r mômenos vitais, haja pelo menos alguns que exijam trata-
m nto místico. Seria o corpo humano tão-somente uma má-
quina governada inteiramente pelas leis físicas e químicas?
(I, mas ainda há processos que não. foram completamente elu-
eldados, talvez encontrássemos escondido nêles um processo
vital. Nesse sentido, os paladinos do vitalismo se transformam
em amigos da ignorância. Não aprofundemos muito o nosso
eonhecímento a respeito do corpo humano - pensam êles -
para que não. aconteça de descobrirmos, para desilusão nossa,
l1u podemos entendê-Io. Cada nova descoberta toma êste
ponto de vista menos plausível, e restringe o território que
ulnda está aberto aos obscurantistas. Mas, há algu~s, entre-
tanto que estão. dispostos a abandonar o corpo humano aos
ouldados temos do homem de ciência, desde que possam salvar
11 alma. Todos nós sabemos que a alma é imortal, e que
'apaz de distinguir o bem, do mal. A alma, quando ela
1•-rt nce a um justo, sabe que existe Deus. Aspira a coisas
I. vadas, e está impregnada pelo sôpro divino. Sendo assim,
111 () há dúvida de que a alma não pode ser governada pelas leis
(4) Nature, n.? de 29 de novembro de 1930.
 42 A perspectiva científica
físicas e químicas ou, mesmo, por qualquer lei. Conseqüente-
mente mais do que qualquer outro campo, do conhecimento
humano a Psicologia tem sido obstinadamente defendida pelos
~inimigoSão método científico. Apesar de tudo.iaté.a PM~ologill
está-se tomando científica; muitos homens têm contribuído
para isso, mas nenhum dêles tanto quanto o fisiologista russo
Pavlov.
(Pavlov nasceu em. 1849, ~ dedicou a maior parte da sua
vida de trabalho ao estudo do comE.2!tªUill.DJll...-dos~ci~._ Mas,
esta ainda é uma afirmação muito geral: o núcleo do seu
trabalho consistiu, simplesmente, em ob:s_CrY_ªL ..quando..xu.cãn,
§alivava, e em que quantidade. Isto ilustra u!l111_ das .E1ai.§_im-,
.portantes características do método científico, co~o oposto ao
método dos metafísicos e dos teólogos. O cientista procura fatos
que sejam signíficantes, signicantes no sentido de levarem a
leis gerais; e tais fatos são, freqüentem ente, quase sem interêsse
intrínseco. A primeira impressão de qualquer indivíduo não
afeito à ciência, ao tomar conhecimento dos trabalhos que estão
sendo realizados em alguns famosos laboratórios, é a de que os
pesquisadores estão desperdiçando o seu tempo' com trivialida-
des. Mas, os fatos que são esclarecedores - do ponto de vista
intelectual - são frequentemente triviais e desinteressantes,
quando considerados em si próprios. Isto se aplica, em par-
ticular, à especialidade de Pavlov, isto é, ao fluxo de saliva
nos cães. Acontece que, estudando êsse fluxo, Pavlov chegou
a leis gerais que governam grande parte do comportamento
animal e, também, do comportamento humano.
A maneira de agir é a seguinte. Todo mundo sabe que,
à vista de um manjar suculento, as glândulas salivares do
cão entram em funcionamento. Pavlov colocou um tubo na
bôca de um cão, de modo a ser possível medir a quantidade
de saliva' segregada. Quando há comida em contato com a
niucosa bucal, o afluxo de saliva à bôca é chamado um
~ isto é, um dos atos que o organismo executa espontâ-'
neamente, sem nenhuma influência de experiências anteriores.
Há muitos reflexos, alguns muito específicos, outros menos.
Alguns dêsses reflexos podem ser estudados no recém-nascido,
ao passo que outros só aparecem em fases mais avançadas do
crescimento. O recém-nascido é capaz de espirrar, bocejar, es-
preguiçar-se, mamar, voltar os olhos para uma luz brilhante,
bem como pode executar vários outros movimentos corporais,
em ocasiões adequadas,. sem necessidade de qualquer apren-
o conhecimento científico 43
dtzudo prévio. Tôdas essas atividades são chamadas reflexos,
/'(J!lexos tncondioionadoeçue: terminologia de Pavlov, Eles se
referem a comportamentos que antigamente eram explicados
utrnvós da vaga denominação de instinto. Atualmente, certos
Instilltos complicados, tais como. o de construção do ninho apre-
sentado pelos pássaros, passaram a ser encarados como uma
sório de reflexos. Nos animais inferiores, os reflexos são muito
pOIlCO modificados pela experiência: a mariposa continua sen-
do atraída pela chama, mesmo depois de ter chamuscado as suas
usas. Mas, em se tratando de animais superiores, as.exl?~iên.çl'if
(I capaz de_agir_gm..ndemente sôbre os reflexos, especialmente
110 caso d.o homem. Pavlov estuâou õ"-efêito da experiência
sÓbre os reflexos salivares do cão. Neste assunto a lei funda-
mental é a lei dos rre~xos cond2,~~~:} quando o estímulo
do um reflexo inc6üchclOnaàõtoi, repetidamente, acompanha-
do, ou imediatamente precedido, por certos estímulos adequa-
dos, êstes novos estímulos passarão, COmo tempo, a produzir
IL mesma resposta que, anteriormente,' só era provoca da pelo
ostimulo próprio do reflexo incondicionado. A secreção de
sullva é, originalmente, provoca da pelo contato efetivo. do
ullmcnto com a mucosa bucal; posteriormente, ela passa a ser
provocada pela visão ou pelo cheiro do alimento, ou por
qualquer sinal que se faça, habitualmente, preceder a refeí-
~if\() do animal. Neste caso, temos o que se chama de reflexo
mJ/lelicionado. A resposta obtida é a mesma já obtida ante-
riormente - fluxo de saliva - mas o estímulo é nôvo, um
oslímulo que ficou associado ao primitivo, através da expe-
1'1ti11cía. Esta lei do reflexo. condicionado é a base da apren-
dl:t.ngem, é o fUJ?51~~ntQ=,Q.~ml~ql,!.El""QL..p§icÓJogos .antigos
1I111l1naVam ~~()ciaç!.9 de idéias"J da compreensão da li~-
~lllLgom, dos hábitos, e também de quase todos os compor-
tumcntos devidos à experiência.
Baseado na sua lei fundamental, Pavlov realizou, experi-
11IClIl
talmente, tôda sorte de complicações. Além dos estí-
,"ulos constituídos pelos alimentos agradáveis, êle usou tarn-
hÔI1l ácidos, de modo a poder estudar, tanto respostas de
11proxlmação, quanto as reações de recusa. Depois de esta-
1,"loc:ido, mediante um conjunto de experimentos, um reflexo
I'fllldldonado, Pavio v prosseguiu nos seus estudos, tentando
iulhl-lo, mediante OUITOreflexo. Se determinado sinal era
f\~It1do., algumas vêzes, por uma recompensa e, outras, por
"11111 punição, o cão, depois de algum tempo, podia ser vítima
 44 A perspectiva científica
J de um colapso nervoso, tornando-se histérico ou neurastênico,
{ um verdadeiro doente mental. Pavlov não o curava fazendo-o
refletir a respeÜÕ-aa suãillfâru;'ia, ou fazendo-o confessar uma
paixão incestuosa em relação à sua mãe, mas por meio de
repouso e de brometos. Éle relatava uma história que deveria
ser estudada por todos os educadores. Pavlov tinha um cão,.
a quem sempre mostrava um círculo brilhante, antes de lhe
dar alimento, e uma elipse brilhante, antes de lhe dar um
choque elétrico. O cão aprendeu a distinguir claramente entre
círculo e elipse, rejubilando-se com a apresentação do pri-
meiro, e evitando a segunda, com temor. Então Pavlov
começou a diminuir a excentricidade da elípse, fazendo com
que ela tendesse cada vez mais para o círculo, mas o cão
continuou, durante muito tempo, a distinguir claramente entre
as duas figuras. Dêmos, agora, a palavra a Pavlov.
"Quando a forma da elipse se assemelha gradualmente à do círculo,
passamos a obter mais ou menos ràpidamente uma diferenciação crescen-
temente delicada. Mas, quando usamos uma elípse, cujos eixos manti-
nham entre si a relação 9/8, isto é, uma elipse quase circular, tudo
mudou. Obtivemos novamente uma diferenciação delicada, que sem-
pre permaneceu imperfeita; durou duas ou três semanas e, depois, não
só desapareceu espontâneamente, como provocou o desaparecimento de
tôdas as diferenciações anteriores, até as menos delicadas. O cão que,
primitivamente, se mantinha quieto no seu tamborete, passou a se mos-
trar agitado, forcejando e uivando. Foi necessário começarmos de nôvo
o aprendizado de tôdas as diferenciações, mas, agora, até as menos
refinadas exigiam mais tempo do que da primeira vez. Quando tenta-
mos obter a última diferenciação mencionada, tudo se repetiu, isto é,
tôdas as diferenciações aprendidas foram esquecidas, e o cão caiu de
nôvo num estado de excitação" (5).
Eu temo que um processo semelhante aconteça comumente
nas escolas, e seja responsável pela aparente estupidez de
muitos alunos.
Pavlov supunha que o sono era, em essência, uma InI-
bição, mas uma inibição de caráter geral, não uma inibição
específica. Com base nos seus estudos a respeito dos
(5) P AVLOV, Ivã Petrovitch: Lectures on Conditioned Beilexes,
Martin Lawrence Publisher, Londres, tradução de W. Horsely GANTT,
pág. 342. Cf., também, PAVLOV, I. p,: Conditioned Beilexes: an
lnvestigation of the Physiological Activity of the Cerebral Cortex, Oxford,
1927, trad. de G. V. ANREP.
o conhecimento científico 45
c li, êle aceitou o ponto de vista de Hipócrates, que acre-
lava existirem quatro temperamentos, a saber: colérico, melan-
"61i '0, sangüíneo e fleumático. Os dois últimos seriam saudá-
v is, ao passo que os dois primeiros estariam sujeitos a pertur-
hnções nervosas. Pavlov achou que os seus cães podiam ser
-lnssífícados nesses quatros tipos, e acreditava que o mesmo
deveria acontecer com os sêres humanos.
Segundo Pavlov, o córtex era o órgão responsável' pela
IItl1'cndizagem,de modo que declarava ser êsse órgão o seu
o ijoto de estudos, isto é, afirmava que era um fisiólogo, não
11m psicólogo. Defendia a idéia de que, em se tratando de
unimais, não podemos ter nenhuma psicologia semelhante à
CfI1 deriva da introspecção, no caso do homem. Portanto,
quando ficamos no terreno humano, parece que o sábio russo
III O foi tão lon e uanto o Df. John B. Watson. "A Psico-
e
logía - afirmava e - enquanto se imita ao estado subje-
tivo do homem, tem um direito natural a existir, porque o
JlOSSO mundo subjetivo é a primeira realidade com que nos
rk-Frontamos. Mas, apesar de a psicologia humana ter garan-
tido o seu direito de existir, não há nenhuma razão para não
dls .utírmos a neoessidade de existir uma psicologia animal.l'(")
Em relação aos animais, Pavlov era um behaviorista puro, por-
qu acreditava que ninguém pode saber se um animal tem
011 não consciência, e, no caso afirmativo, de que natureza é
.'ssn. consciência. No referente aos sêres humanos, apesar
du sua concessão teórica à psicologia introspectiva, tudo o que
II v a dizer estava baseado nos seus estudos a respeito dos
•.•·fI .xos condicionados, e está claro que, em relação ao com-
portamento corporal, a sua posição era inteiramente mecani-
dsla. Dêmos, novamente, a palavra a Pavlov:
"li: muito difícil negar que somente o estudo dos processos físico-
1111(1111 'os que têm lugar no tecido nervoso nos possa dar uma verdadeira
Ir 111'11\dos fenômenos nervosos, bem como que as fases dêste processo
IlIhul1l a nos fornecer uma completa explicação de tôdas as manifestações
I!lrlOl' s da atividade nervosa, da sua continuidade e das suas inter-
,,11\, is" (7).
A citação seguinte também é interessante, não somente
I mqu ilustra a posição de Pavlov a respeito dêste ponto
(O) PAVLOV, I. P., ob. cit., pág, 329.
(7) PAVLOV, I. P., ob. cit., pág. 349.
46 A perspectiva científica
como também porque mostra quais são as esperanças que,
com base no progresso científico, êle acha que o homem pode
ter no futuro:
... "Nas fases iniciais do nosso trabalho, e durante um longo tempo
ainda fomos vítimas da fôrça do hábito ao explicarmos os resultados
obtidos mediante interpretações psícológícas. Sempre que a investi-
gação objetiva encontrava um obstáculo, ou sempre que ela era suspensa
por causa da complexidade do problema, ocorriam-nos dúvidas a respeito
da correção do nosso nôvo método. Mas, gradualmente, com o progresso
das nossas pesquisas, essas dúvidas começaram a aparecer mais rara-
mente, e, agora, eu estou profunda e irrevogàvelmente convencido de
que através dêste longo caminho obteremos o triunfo definitivo da
inteligência humana sôbre o seu problema supremo: o conhecimento
do mecanismo e das leis gue governam a natureza hW:;;-ana. Somente
;ssim é que pode;el;:;-;;;-;;bte7"'uma felicidade comp eta, verdadeira e
permanente. Deixemos que a mente se eleve, de vitória em vitória,
acima da: natureza círcundante, deixemos que ela conquiste, para a
vida e a atividade humanas, não apenas a superfície da terra, mas tudo
o que se situa entre a profundeza dos mares e os limites superiores
da atmosfera, deixemos que ela ponha a seu serviço uma prodigiosa
energia, para poder voar de uma parte do universo a outra, deixemos
que ela aniquile o espaço para a transferência dos seus pensamentos.
Mas, apesar de tudo, o mesmo ser humano, impelido por fôrças tene-
brosas para as guerras, as revoluções e os seus horrores, produz, para
si próprio, incalculáveis perdas materiais e indescritíveis dores, e retoma
à condição animal. Somente a ciência, a ciência exata a respeito da
natureza humana, e a mais sincera abordagem, realizada com a ajuda
do onipotente método científico, conseguirão libertar o homem da sua
atual sensação de impotência, e conseguirão redímí-lo da sua vergonha
contemporânea, na esfera das ínter-relações humanas" (8).
No campo da metafísica, Pavlov não foi um materialista,
nem um mentalista. ítle defendia a idéia, que eu também
acredito firmemente ser a verdadeira, de que o costume de
distinguir entre espírito e matéria é um êrro, e que a reali-
dade pode ser, igualmente, considerada como pertencente a
ambas as naturezas, ou a nenhuma delas. "Estamos, agora,
sendo levados - afirma Pavlov - ,a~oº!1!iid~ar_ a I!len~e, a
alma e a matéria como uma coisa só, e com êsse ponto de
vista não há necessidade a~
realizar uma escolha entre elas."
(8) PAVLOV, L P., ob. cit., pág. 41.
o conhecimento científico 47
Como pessoa, Pavlov tinha a simplícidade e a regulari-
dade dos sábios de antigamente, como Immanuel Kant, por
xemplo. Teve uma vida familiar tranqüila, e era invarià-
velmente pontual no seu laboratório. Uma vez, por ocasião
da Revolucão o seu assistente se atrasou dez minutos, e des-
ulpou-se pel~ atraso, alegando a situação revolucionária que
stavam atravessando. Mas, Pavlov replicou: "Que diferença
pode a Revolução fazer, quando tendes trabalho a realizar,
no laboratório?" A única alusão a respeito das dificuldades
atravessadas pela Rússia, que podemos encontrar nos seus
trabalhos, relaciona-se com a dificuldade de conseguir ali-
mentação para os seus animais, durante os anos de raciona-
mento. Ainda que a sua obra tenha sido de molde a servir
de apoio à metafísíca oficial do Partido Comunista, Pavlov
p nsava bastante mal a respeito do Govêrno Soviético, que
foi denunciado veementemente por êle, pública e privada-
fi nte. Mas, apesar dêsse fato, as autoridades sempre o tra-
taram com tôda consideração, e sempre forneceram ao seu
laboratório todo o necessário.
.É típico da moderna atitude no campo científico, quando
I
tomamos Newton ou, mesmo, Darwin, corno têrmo de compa-
ração, o fato de Pavlov não ter tentado conseguir uma per-
feição estatuária na apresentação das suas teorias. "A razão
p Ia qual eu não apresentei uma exposição sistemática dos
resultados que obtivemos durante' os últimos vinte anos é a
se uinte. O nosso campo de estudos era inteiramente nôvo I
c o nosso trabalho estava em oonstante progresso. De que \
modo poderia eu parar para tentar qualquer concepção com-
I''' nsiva, para sistematizar os resultados já obtidos, se, cada
dia, novos experimentos e novas observações traziam-nos fatos
udi ionais !"(9) O ritmo do progresso científico na atuali-
dlld é demasiado grande para permitir obras como os Prin-
{'[pia, de Newton, ou como As Origens das Espécies, de Dar-
win. Livros dessa classe já estariam desatualizados, antes
111 SITIO de estarem completamente escritos. Isso é lamentável
I I muitos sentidos, porque os grandes livros do passado têm
('C rta beleza e magnífícêncía que não são apresentados pelos
fllgllzes trabalhos atuais, mas isso é uma conseqüência ine-
Il'I'w I do rápido avanço do conhecimento, e precisa ser aceito
f'IIo'sOficamente.
(9) PAVLOV, L P., ob. cit., pág. 42.
48 A perspectiva científica
Podemos discutir se os métodos de Pavlov servmam ou
não para estudar todo o campo do comportamento humano,
mas não há dúvida de que êles se prestam para o estudo de
vastos domínios; e, dentro dêsses domínios, êles mostraram de
que modo o método científico pode ser usado com uma exa-
tidão quantitativa. Pavlov conquistou uma nova esfera para
a ciência exata, e, portanto, deve ser considerado como um
dos grandes homens do nosso tempo. O problema e~fre~tad?
vitoriosamente por Pavlov foi o de submeter a leis cientí-
ficas aquilo que até então tinha sido considerado como com-
portamento voluntário. Dois animais da mesma espécie, ou
o mesmo animal em duas ocasiões diferentes, podem respon-
der diversamente ao mesmo estímulo. Esse fato deu lugar à
idéia de que existe qualquer coi~a chamada vonta~e, que .nos
permite responder de modo capnchoso,. sem regulandade CIe~-
tífíca, Os estudos de Pavlov a respeito dos reflexos condi-
cionados demonstraram de que modo o comportamento que
não é determinado pela constituição congênita de um animal
pode, apesar disso, ter as suas próprias regras e ser tão capaz
de ser tratado cientifioamente, quanto o comportamento go-
vernado pelos reflexos. íncondicionados, Citando o Prof. Rog-
ben: "Na nossa geração, os trabalhos de PavIov e de sua
escola enfrentaram vitoriosamente, pela primeira vez na his-
tória, o problema do que o DI'. Haldane chamou "comporta-
mento consciente", em têrrnos não teleológicos. Êsse problema
foi reduzido à investigação das condições capazes de gerar
novos sistemas reflexos."( 10)
Quanto mais esta contribuição é estudada, mais impor-
tante ela parece ser, e é exatamente por essa razão que Pavlov
deve ser colocado entre os mais eminentes homens do nosso
tempo.
(10) HOGBEN: The Nature of Liv.ing Matter, 1930, pág. 25.
CAPITULO II
Características do método científico
O MÉTODO CIENTÍFICO já tem sido descrito tantas vêzes que,
a esta altura dos acontecimentos, já não é mais possí-
vrl dizer qualquer coisa realmente nova a seu respeito. Não
ohstante, é necessário que O' descrevamos mais uma vez, se
PI'( t ndermos, posteriormente, estar em condições de decidir
( existe ou não qualquer outro método de adquirir conheci-
mentos de caráter geral.
Para ohegarmos a alguma lei científica, temos de passar
POI' tr s estágios principais; em primeiro lugar, devemos obser-
ur O~ fatos importantes; em segundo, devemos levantar uma
11 pót s capaz, no caso de ser verdadeira, de explicar os fatos
CI",~ rvados, finalmente, a partir dessa hipótese, devemos dedu-
\fll' eonseqüências que possam ser postas a prova, por meio da
11" ervação. Se essas conseqüências forem verificadas, a hípó-
lI' (\ Ó provisoriamente, aceita como verdadeira, ainda que,
11 1111111 nte, ela venha a requerer modificações posteriores,
pW' euusa da descoberta de novos fatos.
N atual estágio do desenvolvimento científico, não exis-
""1 fatos nem hipóteses isolados; êles existem como partes
IIIlt runt s do corpo geral dos conhecimentos científicos. A
IIIIJHII'I{\n .ia de um fato depende dêsse conhecimento. Dizer
Ijlll 11111 fato é importante do ponto de vista científico, signi-
11"11 diz r que êle ajuda a estabelecer, ou a refutar, alguma
III1 'tOm!, isso porque a ciência, apesar de partir da obser-
I 'fio d fatos particulares, não se interessa realmente pelo
1'11 1111'1 11 ur, e sim pelo geral. Do ponto de vista científico,
11111 luto não é apenas um fato, mas um exemplo. Neste ponto,
" I,IIIII! lstn difere do artista pOl1que êste, quando pretende
I " l'I'I\Vt I' [atos, provàvelmente o faz apresentando-os em todos