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Feira De Santana
2017
EMANUELA BETHÂNIA SANTANA DA FONSECA
Feira De Santana
2017
Ficha Catalográfica - Biblioteca Central Julieta Carteado - UEFS
CDU:299.6(814.22)
______________________________________________________
Profª Drª Andréa da Rocha R. P. Barbosa. (Orientadora)
Universidade Estadual de Feira de Santana- UEFS
__________________________________________________
Profª. Drª. Ione Celeste Jesus de Sousa (membro)
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS
_______________________________________________________
Prof. Dr. Josivaldo Pires de Oliveira (Membro)
Universidade do Estado da Bahia- UNEB
(Maria Bethânia. In: Abraçar e Agradecer. São Paulo: Biscoito Fino, 2016.)
AGRADECIMENTOS
Meus eternos agradecimento aos meus familiares: meus irmãos, Alisson e Emanuel, e
a minha tia, Aderilva, pelo incentivo e força nos momentos difíceis. A minha mãe Neide, pela
amizade, companheirismo e amor, ao longo desta longa fase e em todos os momentos da vida.
As amigas: Mª Cristina Carvalho, pela amizade, pela leitura atenta do textos, pelas
palavras de conforto, e pelo estimulo para não desistir diante das dificuldades encontradas ao
longo desta trajetória. A Daiane Pires, amiga que a vida presenteou-me durante o mestrado, a
quem quero presente ao longo da vida, e que assim como Cristina, esteve sempre presente,
dando muita força, carinho e incentivo para prosseguir até o termino do curso.
A professora orientadora, Andréa Rocha e demais professores do PGH/UEFS pela
compreensão e pelos esforços, para que eu pudesse permanecer no curso até reestabelecer a
minha saúde, e então, dar continuidade a escrita do texto. A professora Ione Souza, que apesar
da pouca convivência, foi bastante solidária em diversos momentos ao longo do curso.
A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pelo
financiamento da pesquisa.
A todos que participaram desta pesquisa, que depositaram em mim, a confiança e o
privilégio de ouvir e guardar as narrativas sobre as suas vidas: Joel Sebastião, Nina Conceição,
Américo Porto, Gilton Oliveira, dona Dunguinha, Sr. Amado Pereira, Dª Maninha, Dª
Mariquinha, Dª Ana Maria, Dª Dalva, Dª Marcelina, Dª Calu, Dª Dedê, Dª Valdelice e Sr.
Arcelino.
Aos funcionários do Arquivo Público Municipal de Jacobina pelo profissionalismo e
disponibilidade.
Aos professores da UNEB Campus IV, Valter Oliveira e Adriano Menezes pela
confiança em permitir a minha participação no trabalho de digitalização do jornal A Palavra, e
por cedê-lo para o uso nesta pesquisa.
Aos amigos, que tendo conhecimento sobre minha pesquisa, me ajudaram a localizar os
agentes de cura da cidade.
The various forms of religious manifestations of African origin in Brazil were historically
deprecated, and for a long period they were the object of persecution and motive to bring their
practitioners to prison, either for their religious rituals or for their magic-healing practice, like
the curandeirismo. The present work aims to analyze the universe of healing practices from
Afro-Brazilian religiosity in Jacobina-Bahia between 1976 and 1988, as seen in State Decree
25.095 / 1976, which assured Afro-Brazilian religions the freedom of service without the
obligation of police license to carry out their celebrations. It was investigated to what extent the
decree guaranteed freedom of worship to the Afro-Brazilian rituals in Jacobina-Ba in the
mentioned period. In addition, we sought to understand how Afro-Brazilian religiosity
permeated traditional healing therapies, as well as to identify the main treatments performed by
these agents. The objects used, the remedies, the plants, the prayers and the religious entities
involved in the therapeutic processes, as well as the relationships of genres involved in the Afro-
Brazilian magic-religious context in the city. Therefore, a preliminary mapping of the Afro-
Brazilian religious field, and of its agents in the municipality, was necessary. In order to reach
these objectives oral statements through the methodology of oral history were central to the
construction of this work. Other documents such as newspapers, land registry records,
photographs and legislation were used.
Introdução
1
Até o século XVIII os nomes mais usados para designar as religiões de origem africana no Brasil eram calundu,
batuque e batucajé. O termo candomblé só passou a ser utilizado para designar os cultos afro-brasileiros no século
XIX.
2
FERREIRA, Luiz Otávio.Medicina Impopular: ciência médica e medicina popular nas páginas dos periódicos
científicos (1830-1840). IN. CHALHOUB, Sindney. et al (org). Artes e Ofícios de Curar no Brasil. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2003.p. 101-122.
12
3
BOURDIEU, Pierre. O Campo cientifico. Reproduzido de BOURDIEU, P. Le champ scientifique. Actes de Ia
Recherche en Sciences Sociales, n. 2/3, jun. 1976, p. 88-104. Tradução de Paula Montero.
4
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009. p 50.
13
5
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Dabat, Christine Rufino Dabat;
Ávila, Maria Betânia. Disponível em:
http://www.observem.com/upload/935db796164ce35091c80e10df659a66.pdf . Acesso em 06/10/2014. p.21.
6
TEIXEIRA, Marli Geralda. “Nós os batistas... Um estudo de História das Mentalidade. Tese de Doutorado.
São Paulo: USP, 1983. p. 14.
7
Ibidem. p. 15-16.
14
católicos, mas apresentam em suas atividades curativas, inúmeras práticas da religiosidade afro-
brasileira, como o culto e o transe espiritual através de divindades como caboclos, orixás, pretos
velhos e encantados. Existe ai, a vivência de identidades religiosas múltiplas e relacionais que
favorece a apropriação e o transito desses sujeitos por sistemas religiosos diversos. “à medida
em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados
por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das
quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.”8
A fim de compreender as questões apresentadas, é fundamental a utilização do método
da história oral para trazer à tona a memória desses agentes de cura em Jacobina. A pesquisa
com a temática relacionada à cura e religiosidade afro-brasileira, foi um grande desafio,
principalmente pelo fato dos conhecimentos que envolvem estas práticas, não serem registradas
de forma escrita. Por se tratar de um grupo historicamente marginalizado dentro da sociedade,
esses, muito raramente deixam escrito de próprio punho as impressões sobre o seu tempo e suas
vivências. Todo o conhecimento e práticas desses sujeitos, são transmitidos para as novas
gerações através da oralidade/memória. “Em todos os níveis, a memória é um fenômeno
construído social e individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também
dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de
identidade.”9 Desse modo, o depoimentos desses agentes de cura foram a principal fonte para
a construção deste trabalhos, na medida em que nas narrativas revelam-se detalhes do vivido,
alheio aos grandes discursos.10 Conforme Gandon,
A História Oral, seja em que versão ela for utilizada, põe em relevo a fala
humana e a memória. O discurso da memória é altamente dinâmico, vai sendo
construído em função de cada contexto do presente – o “lugar” do discurso –
e também em função da imagem que se quer transmitir e da “negociação”
identitária que consciente ou inconscientemente se estabelece numa fala. 11
Através das fontes escritas, como as leis e posturas municipais e do Jornal A Palavra,
em circulação na cidade entre as décadas de 1970 e 1990, buscou-se analisar as concepções e
as relações que os grupos dominantes da cidade tinham com os agentes de cura, e com a
diversidade das práticas mágico-curativas afro-brasileiras praticadas na cidade. Além disso,
estes documentos possibilitou-nos analisar aspectos importantes relacionados a esfera política,
8
HALL, Stuart. A Identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. p.13.
9
POLLACK, Michel. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10,1992. p. 5.
10
GANDON, Tânia Risério d’Almeida. Etnotexto e Identidade Cultural na Construção da Memória. Revista
da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 23, p. 227-233, jan./jun., 2005 p. 230.
11
Ibidem. p. 230.
15
A partir do uso da fotografia enquanto fontes históricas, compreende-se que estas são
representações de uma dada realidade social e por isso mesmo não deve ser compreendida
enquanto imagem monolítica do real.14
Toda fotografia resulta de um processo de criação; ao longo desse processo a
imagem é elaborada, construída técnica, cultural, estética e ideologicamente.
Para falarmos sobre a construção e desmontagem da imagem fotográfica
devemos perceber a sua complexidade epistemológica enquanto
representação e documento visual. A representação fotográfica é codificada,
característica peculiar, também, a outras formas de representação visual. Sua
desmontagem se faz na medida em que começamos a perceber os
componentes técnicos, culturais estéticos e ideológicos embutidos em sua
construção.15
12
CHARTIER, Roger. História Cultural: Entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: DIFEL S.A, 2002.
p. 17.
13
Idem.
14
MORGADO, Chablik de Oliveira. O Voo do Pássaro e Seu Canto: Trajetória de um Espírita e do
Espiritismo em Feira De Santana (1940-1960). Dissertação (Mestrado), Feira de Santana: UEFS, 2015.
15
KOSSOY, Boris. O Paradigma da Fotografia. Endereço eletrônico: http://boriskossoy.com/wp-
content/uploads/2014/11/paradigma_pt.pdf . Acesso em 20/11/2015.
16
O presente trabalho é composto por três capítulos, sendo que no primeiro, analisou-se
em que medida a liberdade de culto às religiões afro-brasileiras se efetivou em Jacobina após a
homologação do decreto 25.095/1976, num contexto em que a cidade de Jacobina foi submetida
a uma série de transformações urbanas que se intensificaram a partir da década de 1970. Este
processo de urbanização era bastante conclamado pela impressa que tinha como principal
veículo, o jornal A Palavra, que circulou no município entre as décadas de 1970 e 1990.
Refletiu-se também, sobre a atuação da FEBACAB enquanto instituição representativa
do povo de santo do município, buscando compreender, as suas concepções em relação aos
cultos afro-brasileiros praticados em Jacobina, a partir dos pijis ou pejis e da umbanda, cuja
figura das entidades caboclas, é central nos seus ritos. Diante disso, realizou-se uma breve
caracterização destes a partir do mapeamento das casas de cultos afro-brasileiros na cidade.
Na primeira parte do capítulo, foi realizada uma análise da repressão às atividades
mágico-religiosa afro-brasileira no município, com base na legislação local e nas publicações
da impressa da cidade, por meio dos jornais, O Lidador e Vanguarda. Este recuo, se fez
necessário para compreensão dos mecanismos de resistência desenvolvidos pelo povo de santo
ao longo deste período até a aprovação do decreto de lei 25.095, visto que não há ainda estudos
relacionados as perseguições aos cultos afro-brasileiros em Jacobina.
No segundo capítulo, foram analisadas questões referentes a concepção de doença e cura
no universo das terapêuticas mágico-religiosas afro-brasileiras. A partir das diferentes
percepções de doença, cura e da identificação dos agentes das terapêuticas mágico-religiosa em
Jacobina, sugiram algumas inquietações no que tange a formação desses sujeitos no universo
da cura. De que modo esses terapeutas dominavam o imenso repertório de rezas, plantas, e
demais rituais destinado ao alívio dos males que acometiam a saúde e o bem estar da sua
clientela? Como se deu a iniciação destes terapeutas no universo magico-curativo? De que
maneira a religiosidade afro-brasileira se faz presente no processo de “formação” e nas práticas
terapêuticas destes agentes? Deste modo, neste capítulo foram analisadas as questões acima
apresentadas.
No último capítulo, investigou-se as diversas práticas de cura realizadas no âmbito
terapêuticas mágico-religiosas em Jacobina, bem como, os males curados a partir dela. No que
tange os tratamentos, identificou-se as formas de diagnósticos e os elementos utilizados para se
tratar os diversos males que acometiam os consulentes. Destacou-se, as especificidades
relacionadas às enfermidades que afetavam com maior predominância as mulheres ou os
homens, no intuito de compreender se há doenças de caráter espiritual relacionadas ao gênero.
17
Jacobina, no início do século XX era caracterizada como uma “cidadezinha com feições
de vila”16, com uma pequena estrutura urbana que apresentava aspectos urbanístico e
arquitetônicos preservados dos séculos passados 17. Este fato, alimentou entre intelectuais
jacobinense, como no escritor e historiador membro do IGHB Afonso Costa e nos políticos e
dirigentes locais, anseios por mudanças que desse a Jacobina uma estética de urbe moderna. 18
Entretanto, de acordo com Edson Silva, foram poucas as intervenções no tecido urbano da
cidade na primeira metade do século. As pequenas transformações se deram na remodelação de
alguns prédios públicos, edificações de pontes, na área de comunicação e serviços de
iluminação pública elétrica e de transporte.19
Vanicléa Santos, afirmou que a década de 1920 foi substancial para os anos posteriores
da história e do desenvolvimento da cidade, na medida em que no referido período foi
implantado o serviço de iluminação pública elétrica e via férrea na cidade - a linha Centro Sul
da 4ª Divisão Operacional da Leste que ligava Senhor do Bonfim à Piritiba e favorecia Jacobina
como rota de passagem. Com a implantação da ferrovia, o espeço urbano da cidade começou a
sofrer uma série de transformações. Até então, Jacobina só era povoada na margem direita do
rio Itapicuru. Como a estação de trem foi construída do lado esquerdo da margem do rio, este
espaço começou a se desenvolver, e sobre o rio, construiu-se uma ponte ligando os dois pontos
da cidade. 20 Além disso, a ferrovia favoreceu o desenvolvimento do comércio, da agricultura e
da pecuária. Estas atividades, segundo Ricardo Batista21, passaram a predominar sobre a
16
OLIVEIRA, Valter Gomes Santos de. Revelando a cidade: Imagens da modernidade no olhar fotográfico
de Osmar Micucci. (Jacobina 1955-1963). Dissertação (Mestrado em História Social). Salvador: UFBA, 2007. p.
3
17
SILVA, Edson. Modernização, sanitaríssimo e cotidiano (Jacobina – BA 1955-1959), Dissertação (Mestrado).
Campina Grande- PB: UFCG, 2015. p. 33.
18
OLIVEIRA, Valter, Op. Cit, p.3.
19
SILVA, Edson, Op. Cit. p 33.
20
SANTOS, Vanicléia Silva. Sons, danças e ritmos: A Micareta em Jacobina - Ba (1920-1950). Dissertação
(Mestredo). São Paulo: PUC-SP, 2001.
21
BATISTA, Ricardo dos Santos. Lues Venerea e as Roseiras Decaídas: biopoder e convenções de gênero e
sexualidade em Jacobina-Ba (1930-1960). Dissertação de mestrado em História Social. Salvador: UFBA, 2010.
19
mineração durante este período. A extração de minerais, no entanto, não deixou de ter grande
importância na economia do município. Entre as décadas de 1930 e 1950, como demonstrou
Batista, a exploração do ouro fez com que muita gente migrasse para a cidade em busca de
enriquecimento rápido e de melhores condições de vida.
Até os anos 1950, faltavam à cidade ““maquinas modernas do conforto” como água
encanada, sistema de esgoto, melhoramento do asseio das ruas e ampliação do sistema de
energia elétrica, que então funcionava de forma deficitária e restrito a poucas ligações.” 22
Neste período, Jacobina contava com a população total de 61.681 habitantes, dos quais,
apenas 7.224 viviam na sede do município, sedo que 83,5% do total da população vivia na zona
rural. Na década seguinte, a população da zona urbana do município alcançou o índice de
12.373 habitantes.23 Sua economia girava em tono da agricultura, através da produção da
mamona, cujo município se destacava como maior produtor; da mineração, através da
exploração do ouro e de ametistas; e da pecuária, está através da criação de ovinos, caprinos,
suínos e bovinos. 24
A imprensa local teve grande importância como veículo de divulgação das ações dos
governos municipais que visavam o progresso, representado através do desenvolvimento
urbano, e pela mudança dos hábitos da população tidos como atrasados e incivilizados. Entre
os quais se incluía, a prática do curandeirismo e do candomblé.
Entre as décadas de 1930 e 1960 os principais jornais a circularem na cidade foram O
Lidador e Vanguarda. O primeiro foi criado em 1933, a partir de divergências do seu
proprietário com as autoridades na cidade de Mundo Novo, o mesmo transferiu-se para Jacobina
onde teve como o principal aliado o jovem, ainda em ascensão política, coronel Francisco
Rocha Pires. 25 O segundo, circulou em Jacobina entre as décadas de 1950 e 1960. Este veio
transferido da cidade de Feira de Santana, e assim como O Lidador, também recebia o apoio
dos políticos locais. 26 Entre o ano de 1973 até meados da década de 1990, o semanário A Palavra
foi o principal jornal em circulação na cidade. Este teve grande responsabilidade na montagem
e ações do grupo político liderado pelos irmãos Carlos Daltro e Fenando Daltro. 27
22
SILVA, Edson, Op. Cit. p. 35.
23
Ibidem, p. 35.
24
Idem.
25
MENEZES, Adriano Antônio Lima. A Imprensa Sertaneja: Uma Busca de Identidade Cultural no Piemonte
da Chapada Diamantina. IN: Anuário de Pesquisa. Nº1. Salvador: Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Novembro, 2009. p. 4-15.
26
OLIVEIRA, Valter Gomes Santos de. Op. Cit.p.3.
27
ARAÚJO, Carla Corte. Os Carcarás: Trajetória Política e Poder na Cidade de Jacobina. Texto encontrado
em: http://vencontro.anpuhba.org/anaisvencontro/C/Carla_Corte_de_Araujo.pdf em: 26/02/2015.
20
28
OLIVEIRA, Josivaldo. Adeptos da mandinga: candomblés, curandeiros e repressão policial na princesa do
sertão (Feira de Santana-Ba, 1938-1970). Tese (Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos) – Universidade
Federal da Bahia, Salvador – BA. 2010.
29
A expressão foi usada em Feira de Santana pelo jornal Folha do Norte para denunciar o “barulho infernal”
provocado por um batuque promovido pelos “adeptos da mandinga”, referindo-se aos curandeiros e aos
candomblés da cidade. Ver Oliveira: OLIVEIRA, Josivaldo. Adeptos da mandinga: candomblés, curandeiros e
repressão policial na princesa do sertão (Feira de Santana-Ba, 1938-1970). Tese (Doutorado em Estudos Étnicos e
Africanos) – Universidade Federal da Bahia, Salvador – BA. 2010.
30
Idem. p. 128.
31
Jornal O lidador. Nº10 de 10 de novembro de 1933. p. 1.
21
o tratamento dos médicos. Todos sabem mais do que estes e não sei porque,
ainda os procuram. (...) A impressão que se tem dos nossos Esculápios é
que é uma classe desnecessária porque qualquer o substitui. (...) Quem é
prejudicado! Única e exclusivamente o povo. 32
A partir do artigo escrito pelo médico Alfredo Souza ao jornal O Lidador, pode-se supor
que os médicos enfrentavam dificuldades para exercerem seu oficio em Jacobina. Isso poderia
ser em decorrência da concorrência com as práticas de cura oferecida pelos curandeiros,
parteiras, benzedeiras a partir da fitoterapia e tratamentos mágico-religiosos. Certamente, os
médicos acadêmicos tiveram que enfrentar a falta de confiança da população em tratar-se com
médicos, visto que já fazia parte da cultura local recorrer à medicina tradicional quando se
adoecia, sendo esta, parte da cosmogonia desta população, composta de saberes herdados dos
seus ancestrais africanos.33 Deve-se considerar também, os custo elevado do tratamento
oferecido pela medicina cientifica em relação à medicina tradicional. Diante do que foi posto,
coube aos grupos dominantes, a exemplo dos médicos, divulgar recorrentemente matérias nos
periódicos, afirmando sobre os perigos oferecidos pelos curandeiros em detrimento das
benéfices da medicina acadêmica.
A manchete “No Domínio das realizações”34, publicada em novembro de 1936 no jornal
O lidador, sintetizou o sentimento que aparentava existir principalmente entre os grupos sociais
mais abastados da cidade de Jacobina. Ao longo da matéria, o jornal anunciou a inauguração
do cinema falado na cidade, prevista ainda para aquele mês, bem como a filial da Caixa
Econômica Federal que já estava sendo instalada na Praça da Matriz. “A grande ponte de
cimento armado, sobre o rio Itapicuru” 35 que estava em construção, com inauguração prevista
para o próximos cinco meses. Para o ano seguinte, segundo a mesma reportagem, era prevista
a construção do Mercado Municipal, da usina para beneficiamento de algodão e o Instituto de
Pecuária.
Na medida em que implementou-se a instalação de empresas, melhoria no transporte,
com a chegada da ferrovia, entre outras transformações no espaço urbano de Jacobina, nesse
período, a impressa, demais grupos dominantes e o poder público, através das leis municipais,
passaram a determinar novas normas de comportamento condizente com esta Jacobina do
32
Jornal O lidador. Nº nº 18 de 5 de Janeiro de 1934. p. 4.
33
SILVA, Gabriela do Nascimento. Na Terra De Nanã: Candomblés, Territorialidade E Conflito Em Feira
De Santana (1890-1940). Dissertação (Mestrado em História Local e Regional). Santo Antônio de Jesus-Ba:
UNEB-Campus V, 2016. p. 44.
34
Jornal O Lidador. Nº 158 de 1 de Novembro de 1936. P. 1.
35
Ibidem.
22
século XX. As novas diretrizes impostas por estes grupos, eram carregados de enunciados
legitimadores de novos hábitos que visavam a higiene, o progresso e a civilização.
A partir Código de Posturas municipal de 1933, pôde-se perceber os esforços
desempenhados pelo poder público, no intuito de normatizar os costumes locais e moldá-los
conforme os padrões civilizatórios da época. Alguns hábitos comuns entre a população, como
lavar roupas e tomar banho nos rios, estender roupas nos passeios públicos, criar gados equinos,
caprinos e suínos soltos nas ruas da cidade, ou a aglomeração de pessoas consideradas
desocupadas nas portas dos estabelecimentos comerciais foram proibidos. As inovações
propostas pelos grupos dominantes às camadas populares geravam muitas vezes conflitos,
estando esses últimos, conscientes no sentido de resistir aos novos padrões impostos pelas
grupos dominantes.
Entre os hábitos preservados pela população jacobinense na primeira metade do século
XX, que eram considerados um impasse para a o avanço rumo a progresso, incluem-se aqueles
voltados para as tradições culturais de origem africana. No Código de Postura de 1933, a
administração da cidade, no intuito de atender aos seus anseios de civilização, deixa clara a
proibição às manifestações religiosas afro-brasileiras, penalizando com multas de 20$00 (vinte
contos de reis) quem violasse a lei. Mesmo valor, aplicado a quem infringisse o artigo 70 do
mesmo código, que se refere a afixação de cartazes, pinturas ou inscrições consideradas
indecentes em espaços públicos: “Art. 71- Igual poderá, digo, igual multa será aplicada ao
proprietário ou inquilino que consentir em suas casas danças indecentes, batuques, sambas,
feitiçaria ou algazarras que perturbem o sossego público”. 36
Apesar de não ter um mapeamento dos terreiros ou dados sobre o número de praticantes
das religiões afro-brasileiras em Jacobina naquele período, a partir da explícita proibição dessas
manifestações no referido documento municipal, é possível supor que estas não só existiam
com um número considerável de adeptos, como incomodavam pelo menos parte das camadas
sociais dominantes da sociedade jacobinense.
Decerto, a musicalidade, a dança, a religiosidade da população negra presente na cidade,
não se encaixavam nos moldes de cultura civilizada de cidade urbanizada propagada pelas elites
locais, através de leis e da imprensa. Vale lembrar, que tanto a constituição de 1890 quanto a
de 1940, garantia liberdade de cultos no país. Entretanto, o Estado, que tinha como seus
representantes uma minoria branca, através das leis municipais, como no caso de Jacobina,
sempre providenciava um jeito de reprimir os cultos afro-brasileiros e as tradições culturais da
36
Código de Posturas de Jacobina – Década de 1930.
23
população negra. Além disso, não se pode esquecer de que os códigos penais de 1890 e de
1940 criminalizavam a prática de curandeirismo.
Sabe-se que as práticas de cura, tanto do corpo quanto do espírito são intrínsecas às
religiões afro-brasileiras. Por conta disso, muitos sacerdotes poderiam ser acusados de praticar
o curandeirismo, o charlatanismo e a feitiçaria. O curandeirismo, desde o fim do século XIX
representava uma ameaça à medicina oficial, à ideia de sociedade civilizada e ao progresso. Por
isso, para os grupos dominantes estas práticas, que julgavam como “incivilizadas”, deveriam
ser extintas.
Através da denúncia publicada pelo jornal O Lidador em 1933, ficou elucidado estes
ideais. Com o título, “Os Curandeiros em Ação!”, a denúncia recai contra a ação dos
curandeiros no arraial de Gonçalo. Segundo a matéria, a ação dos curandeiros era “uma afronta
à sociedade, como também prejudicial à saúde dos pobres ignorantes incautos que os procuram,
julgando talvez, estarem trilhando pelo caminho verdadeiro.”37 No mesmo Jornal, ao longo da
sua existência, foram publicadas outras tantas reportagens criminalizando a prática do
curandeirismo. No ano de 1934, o jornal publicou uma denúncia contra a atuação de dois
curandeiros no distrito de Riachão. Com a manchete intitulada “Um curandeiro em Riachão:
com vistas as autoridades desta cidade” 38 a reportagem fez a seguinte denuncia:
Um curandeiro, de nome Samuel, e sua filha de nome Elvira de tal residentes
atualmente no arraial de Riachão deste município, estão a merecer por parte
da justiça desta comarca a punição a que fazem jus, pela audácia e desrespeito
com que vêm praticando, ali o candomblé. Estes infratores vivem com a má
doutrina, não só a explorar os incautos, como também aterrorizando os
moradores do arraial com ameaças de feitiçaria, etc. Segundo nos informou
pessoa autorizada e digna de fé, há meses faleceu, no dito arraial, um cidadão
chamado Malaquias, vítimas das medicações dos referidos curandeiros, que
até impediram à família do extinto de chamar o médico, sob garantia de que o
curavam, pois já havia curando outros doentes com estado mais grave. Urge,
pois, uma providência que ponha termo aos embustes de tais macumbeiros e
restituam a tranquilidade aos moradores do Riachão. Aqui fica a denúncia.39
Como era comum, neste tipo de denúncia veiculada pela impressa contra as práticas de
curandeirismo, pai e filha são acusados de explorar a população através da “má doutrina” do
candomblé e ameaças de feitiçaria. As representações sobre o candomblé, divulgadas pela
impressa serviu para cristalizar um estereótipo que associa as religiões afro-brasileiras ás
práticas do mal e a feitiçaria. As atividades mágico-curativa desta vertente religiosa, eram quase
sempre associadas nos noticiários, a mortes de quem as buscavam para tratamento. Para Edmar
37
Jornal O Lidador, 1933, p. 1. Edição desconhecida.
38
Jornal O lidador, 1934. Edição desconhecida.
39
Ibidem.
24
40
SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés : perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia
Salvador: EDUFBA, 2009. p. 84.
41
Jornal Vanguarda, 26 de outubro de 1958. p.1.
25
Não era rara a presença de membros da elite dentro dos terreiros de candomblé, os quais,
como bem revelou a reportagem, eram uma espécie de protetores do terreiro que frequentava.
Júlio Braga, destacou que estes membros da elite, desempenharam importante papel de
intermediários dos conflitos entre os candomblés baianos e a sociedade, principalmente no
período em que foram mais intensas as perseguições policiais ao candomblé. 42
Essa aproximação, dos praticantes das religiões afro-brasileiras aos membros dos grupos
dominantes, deve ser entendida como um dos diversos mecanismos de resistência desenvolvida
pelo povo de santo, vislumbrando a manutenção das suas heranças culturais ancestrais. Tendo
em vistas, as inúmeras formas de violência a que estava sujeita a sua cultura, em meio a uma
sociedade racista e preconceituosa. Na mesma medida em que o Estado, através dos seus
aparelhos repressores, violentou brutalmente a cultura da população negra, esta criou inúmeras
formas de resistência, às vezes através do enfretamento, outras utilizando formas de negociação,
visando manter vivas as suas tradições.
De acordo com Braga, a partir dos anos 1950 a invasão policial a terreiros e festas
religiosas nos templos afro-brasileiros no Brasil passou a ser menos frequente. Apesar de toda
rejeição sofrida ao longo dos anos, os praticantes das religiões de matriz africana se
fortaleceram e resistiram, elaborando de forma inteligente uma série de mecanismos
vislumbrando a manutenção das suas práticas religiosas. Por outro lado, a partir de 1950 as
classes dominantes usaram uma nova forma de controle policial aos terreiros. Daquele
momento em diante, todos os templos religiosos teriam que ser registrados nas delegacias de
polícia, e para “bater” candomblé teriam que conseguir uma autorização policial mediante o
pagamento de uma taxa. Quem “batesse” sem essa autorização estava cometendo uma grave
infração e corria o risco de ter sua cerimônia interrompida pela invasão policial, além de ter
seus objetos sagrados apreendidos.43
Todos os registros de denúncias, encontradas da imprensa de Jacobina contra as práticas
curandeiras e os candomblés no município, ocorriam nos distritos ou localidades longe da sede.
Acredita-se, que por conta das investidas policiais contra os praticantes das religiões afro-
brasileiras, no intuito de preservar e manter suas tradições culturais, seus adeptos muitas vezes
migraram para zona rural numa tentativa de dificultar a atuação da polícia.
Através da oralidade, foi possível identificar a existência tanto da perseguição, quanto
da migração dos praticantes dos candomblés para fora do perímetro urbano da cidade. Amado
42
BRAGA, Júlio. Cadeira de Ogãs: e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
43
BRAGA, Júlio. Candomblé da Bahia: repressão e resistência. In: Revista USP, nº18. São Paulo: 1993 p. 53-
59.
26
dos Santos, pai de santo líder do terreiro Sultão das Matas, quando questionado sobre as suas
lembranças da época da perseguição policial, afirmou: “Moça eu já vi falar, eu ver com minhas
vistas não, mas eu já ouvir falar que eles... Em quem batia tambor que eles paravam. Agora ali
no Caén eles batem, às vezes eles vão lá dá cobertura. Eu não vou falar. Aqui eu não posso falar
porque tem um sargento ai que...”44. Verificou-se a partir desse depoimento, certo receio do
entrevistado em falar sobre as batidas policiais aos terreiros. Braga salientou, que é comum essa
postura entre as pessoas do candomblé, quando o assunto são as batidas policiais. As narrativas
“geralmente se mostram extremamente reticentes, tendendo a minimizar as consequências
daquele desrespeito aos espaços e objetos sagrados afro-baianos. Em termos gerais, a
comunidade reage como se pretendesse esquecer os horrores das invasões aos templos
sagrados.”45 Ao mesmo tempo, pôde-se observa através do relato do pai de santo, que no atual
município de Caén, a própria polícia dava cobertura, no sentido de proteger os praticantes do
candomblé da localidade.
Como pode-se perceber através da reportagem do jornal Vanguarda, políticos locais,
como o então vereador Arnaldo Oliveira, não só frequentavam os terreiros, mas serviam como
protetores dos mesmos contra as batidas policiais. Segundo Braga, figuras públicas, alguns
deles com cargo de ogã na comunidade religiosa, 46 tiveram importância significativa na
negociação de conflitos que envolviam os praticantes do candomblé. Braga afirma ainda, que
muitos ogãs faziam parte das corporações policiais ou eram funcionários públicos, o que lhes
permitiam intervir vez por outra, junto às autoridades evitando ações mais brutais contra os
candomblés.47
Possivelmente, a situação descrita por Braga foi vivenciada por senhor Amado, visto
que entre os seus filhos de santo, destaca-se um ex-policial - sargento. Muito embora, a
fundação do seu terreiro se deu no ano de 1977, quando não mais havia a obrigatoriedade da
autorização policial para a realização das atividades religiosas afro-brasileiras na Bahia, o pai
de santo, não dispunha de licença para realização das suas atividades religiosas junto a
FENACAB até o ano de 2013.
Sobre a existência de poucos terreiros na zona urbana de Jacobina, senhor Amado
afirmou que “por causa desses problema, que antigamente não podia e o povo ficou com medo.
44
Entrevista com Amado Pereira dos Santos, entrevista concedida a autora em 20/03/2012.
45
BRAGA, Júlio, Cadeira de Ogãs: e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pallas, 2009. p. 38.
46
Ogã é um cargo religioso destinados aos homens nas casas de candomblé. Ver: BRAGA, Júlio. Na Gamela do
Feitiço: Repressão e Resistencia nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 1995; BRAGA, Júlio.
Cadeira de Ogãs: e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
47
BRAGA, Júlio. Cadeira de Ogãs: e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pallas, 2009. p. 42.
27
Você sabe que antigamente não... e o povo não aceitava né. Ai muitos foi saindo p’ra fora e
outros também já morreu.”48. Provavelmente, muitos pais e mães de santo, com a intenção de
fugir das perseguições da polícia e de manter suas práticas religiosas, preferiram se instalar
longe do centro de Jacobina. O próprio senhor Amado relatou que as suas casas sempre
situavam nas regiões periféricas da cidade. Quanto mais o cidade crescia em direção a estas
regiões, ele mudava-se em direção a outro bairro mais afastado.
A princípio, ele residia e realizava as atividades religiosas no bairro de Nazaré, com o
crescimento do mesmo mudou-se para o bairro da Jacobina III, um pouco mais afastado. Com
o a urbanização deste, ele construiu seu terreiro no bairro do Pontilhão – afastado do centro
urbano da cidade e de paisagem rural- onde realiza consultas, os sambas e para onde passou a
residir em 2013.
A proibição de “bater” candomblé, evidenciou-se também na narrativa da benzedeira
Maria Aurea dos Santos – dona Maninha, que relembrou os acontecimentos que envolveram a
iniciação e tratamento da sua madrinha – Erice - com quem vivia desde a infância. De acordo
com dona Maninha, por volta dos 10 anos de idade, Erice adoeceu, e ao longo de um ano só
conseguia ingerir banana frita. Por orientação de uma amiga, que acreditava tratar-se de uma
doença espiritual, a mãe de Erice a levou no terreiro do curador Joaquim Carga D’água, situado
na zona rural do município de Jacobina, na localidade de Curralinho. Para Joaquim, era possível
tratar da doença de Erice, mas que por conta da proibição de “bater”, ele teria que pedir
autorização ao deputado Francisco Rocha Pires.
Ela adoeceu passou um ano comendo banana frita, sem mais nem menos. Um
ano, um ano. Tudo pra ela fedia a barata. Não comia nada. [...] Ai foi que teve
uma amiga da mãe dela, e disse dona Aiá, leva essa menina na casa de um
curador, que essa menina tem problema espiritual. [...] Ai foi que a mãe viu
que a filha ia morrer, ai levaram escondido do outro filho. Dos outros dois
filhos, que eles não queria. Quando chegou lá o curador disse a ela que tratava
da filha, mas que tinha que tratar no tambor. Tinha que bater tambor, e ele não
podia bater porque tava proibido aqui em Jacobina. [...] Tava proibido, só se
ele fosse pedir licença ao deputado daqui, que era o deputado Chico Rocha.
[...] Ai ele foi pedir a Chico Rocha. Ai ele disse, Chico Rocha disse a ele: se
você tratar dessa menina eu lhe dou um boi. Que ela já tava tão magra, tava
quase na hora de morrer. [...] Ai ele disse: pode preparar o boi que ela vai ficar
boa. Ele: lhe dou o melhor que tem no pasto. Ai ele foi e disse: Posso bater
tambor? Ele disse: pode que ninguém vem lhe aborrecer.49
48
Entrevista com Amado Pereira dos Santos, entrevista concedida a autora em 20/03/2012.
49
Entrevista com Maria Aurea (Maninha), concedida a autora em 07/01/2015.
28
É provável que indivíduos como o deputado Francisco Rocha Pires, Analdo de Oliveira
entre outros, desempenhassem este papel junto aos candomblés da cidade, no longo período em
que estiveram sob ameaça da repressão policial.
Através da lei nº 201 de 5 de agosto de 1965, foi promulgado um novo Código de
Postura do munícipio de Jacobina, em substituição ao anterior que vigorara desde o ano de
1933. Neste, a proibição às tradições culturais afro-brasileiras permaneciam: “Art. 160º Não é
admissível a promoção de candomblés, sambas e batucadas digo, batuques outros no perímetro
da Cidade, Vilas e Povoados sem a competente licença das autoridades, não se compreendendo
nesta restrição bailes e reuniões familiares.” 51
A explicita proibição aos candomblés, sambas e batucadas é concebido no documento,
por um viés representativo oposto às festas familiares, como os bailes de micareta organizados
nos clubes da cidade52, cujo decreto salienta não serem afetados por tal norma. As
representações sociais, em relação às tradições religiosas afro-brasileiras, as situavam enquanto
práticas degeneradas, promiscuas que não condiziam aos costumes e a moral presentes nas
festas familiares.
Ao analisar as representação construídas pelos jornais em circulação no município de
Cachoeira-Bahia no início do século XX, em relação as mulheres de santo, Santos afirma que
estas eram caracterizadas enquanto prostitutas e praticantes de orgias, cujas práticas servia ao
mal exemplo as mulheres de família. 53 Do mesmo modo, em relação à figura masculina nos
50
SANTOS, Edmar Ferreira, Op. Cit, p. 126.
51
Código de Postura de Jacobina. IN: Registros de Lei Nº2: 10/1955 à 12/1967. Jacobina,1965.
52
Sobre os bailes e a micareta ver: SANTOS, Vanicléia Silva. Sons, Danças e Ritmos: A Micareta em Jacobina
Ba (1920-1950). São Paulo: PUC (dissertação de mestrado em História), 2001.
53
SANTOS, Edmar Ferreira, Op. Cit. p. 144.
29
54
SAMPAIO, Gabriela Reis. Tenebroso Mistérios: Juca Rosa e as relações entre crenças e cura no Rio de Janeiro
Imperial. IN: CHALHOUB, Sidney. Artes e Ofícios de Curar no Brasil: capítulos de História Social.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p. 393.
55
Jornal Vanguarda 14 de agosto de 1955, nº 305. Jacobina-Bahia.
56
Jornal Vanguarda 1 de setembro de 1955. Jacobina-Ba.
57
OLIVEIRA, Valter Gomes Santos de. REVELANDO A CIDADE: Imagens da modernidade no olhar
fotográfico de Osmar Micucci (Jacobina 1955-1963). Dissertação (Pós-Graduação em História Social).
Salvador: UFBA, 2007
30
58
Ibidem, p. 89.
59
Código de Postura de Jacobina. IN: Registros de Lei Nº2: 10/1955 à 12/1967. Jacobina,1965.
31
60
Lavadeiras de roupas no Rio do Ouro - 1958- Foto de Osmar Micucci. IN: 61
Lavadeiras de roupas no Rio do Ouro - 1958- Foto de Osmar Micucci. IN:
MENESES, Adriano; OLIVEIRA, Valter (org). Acervo Digitalizado da MENESES, Adriano; OLIVEIRA, Valter (org). Acervo Digitalizado da
Microrregião de Jacobina. Jacobina: UNEB Campus IV - NEO/NECC. Microrregião de Jacobina. Jacobina: UNEB Campus IV - NEO/NECC.
32
A proibição da pratica, é citada ainda em outro trecho do documento. “Art. 232º Para
preservar, de modo geral, a higiene das vias públicas fica proibido: a) lavar roupas em
chafarizes, fontes ou tanques situados nos logradouros públicos.” 62 De acordo com as imagens
1 e 2, é possível verificar a permanência do hábito da população, de lavar roupa nos rios da
cidade, ainda que, através da legislação, o poder público condenasse tal ação.
A partir do ano de 1955, Jacobina passou por intensas transformações urbanísticas sob
a gestão do prefeito Orlando Oliveira Pires, que administrou a cidade entre os anos de 1955-
1959. Este era considerado por muitos, como “o responsável por destravar as rodas do progresso
na cidade.”63 Para Oliveira, Orlando Oliveira Pires teve ao seu favor o contexto nacional sob a
era dos “Anos dourado” de JK; o fato de pertencer a uma família tradicional da cidade e as
alianças construídas com o deputado federal Manoel Novais e o deputado estadual Francisco
Rocha Pires, que se manteve a frete do grupo político que administrou a cidade entre as década
de 1920 até a década de 1970.64
Sob a gestão do prefeito Orlando Oliveira, várias ruas do centro da cidade receberam
calçamento de paralelepípedo. Além disso, foi construída a Avenida Beira Rio, uma das obras
mais significativas na infraestrutura e feição urbana da cidade. 65 Em meio as transformações
ocorridas entre 1955 e 1963, nas gestões de Orlando Oliveira e de Florisvaldo Barberindo,
Oliveira destacou.
No plano urbanístico, algumas construções e serviços inaugurados,
acentuados ou iniciados durante estas administrações contribuíram como
vetores de expansões, promovendo a urbanização para áreas mais afastadas do
centro administrativo. A este respeito merecem destaques o aeroporto,
inaugurado em 1957 e o matadouro, em 1962, colaborando para a expansão
em direção ao segmento oeste, ali surgindo novos bairros, como Caeira e
Catuaba. Com o Ginásio Deocleciano Barbosa de Castro, transformado em
instituição estadual em 1954; a construção do estádio de esportes em 1957; o
Hospital Regional, nos anos sessenta, bairros como Serrinha, Índios e Perú
foram cada vez mais se dinamizando e promovendo a expansão de residências
e ruas em direção ao sul, ou seja, ao lado direito da margem do Rio Itapicurú-
Mirim, reforçando para isso a construção da Ponte Francisco Rocha Pires, em
1960. Através de obras como a Usina Termoelétrica, de 1957, e construção da
Praça Miguel Calmon, em 1962, a expansão urbana ganha a direção ao bairro
da Bananeira, segmento leste da cidade. Em 1959, com a construção, no alto
da serra, de uma caixa reservatória de água para o abastecimento na cidade,
houve a partir dali um espontâneo adensamento de residências que mais tarde
levaria ao surgimento do Bairro da Caixa D´água. Aliados a isso, foram
construídas e reformadas algumas praças e diversas ruas pavimentadas,
62
OLIVEIRA, Valter. Op. Cit. p.78.
63
Ibidem, p. 78.
64
Idem.
65
Idem.
33
66
Ibidem, p. 84-85.
67
Código de Postura de Jacobina. IN: Registros de Lei Nº2: 10/1955 à 12/1967. Jacobina,1965.
68
Capítulo IV: Do Estilo dos Prédios. Código de Postura de Jacobina. IN: Registros de Lei Nº2: 10/1955 à
12/1967. Jacobina,1965.
69
Artigo 80º. Código de Postura de Jacobina. IN: Registros de Lei Nº2: 10/1955 à 12/1967. Jacobina,1965.
70
OLIVEIRA, Valter. Op. Cit. p. 87.
71
ARAÚJO, Carla Côrte. Os Carcarás: política e sociedade na cidade de Jacobina (1966-1973). Dissertação
(mestrado). Salvador: UFBA, 2012. p. 30.
72
OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. “Canções da Cidade Amanhecente”: urbanização,
memórias urbanas e silenciamentos em Feira de Santana, 1920-1960. Tese (Doutorado- Programa de Pós-
Graduação em História) Brasília: UNB, 2011. p. 93.
34
Figura 3- Construções de madeira inundadas durante a enchente do Figura 4- Características das construções nas regiões afastadas do
rio Itapicuru-Mirim. centro da cidade com destaque para a casa de taipa.
Enchente do Rio Itapicuru Mirim em 1957. Foto Osmar Micucci. 73 Fonte: Fotografia de Tibor Jablonsky. Acervo dos trabalhos geográficos de campo
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, década de 1960.
73
Enchente do Rio Itapicuru-Mirim em 1957. Foto- Osmar Micucci .IN:
MENESES, Adriano; OLIVEIRA, Valter (org). Acervo Digitalizado da
Microrregião de Jacobina. Jacobina: UNEB Campus IV - NEO/NECC.
35
Através das imagens registradas pelos fotógrafos Osmar Micuccci e Tibor Jablonsky
nas décadas de 1950 e 1960, observa-se as características das moradias construídas pela
população pobre da cidade. Na imagem 3, as casas são constituídas de madeira e estão em parte,
tomadas pelas águas do rio Itapicuru. Muito provavelmente, aquelas casas situavam-se às
margens do rio, e foram tomadas pelas águas em decorrência da enchente. Na imagem 4,
observa-se entre as residências, na subida da serra, uma casa de taipa (no centro inferior da
imagem) em meio a outras residências, aparentemente de concreto. Através da Imagem, é
possível afirma, que algumas delas poderiam ser casas de parede-meia, usual nas construções
mais simples por partilhar a parede com o vizinho, diminuindo, dessa maneira, os custos da
construção.
A década de 1970 iniciou-se com transformações no âmbito da administração local, a
partir da quebra do monopólio político do grupo liderado pelo deputado Francisco Rocha Pires,
que permanecia enquanto liderança local há quase 50 anos. Nas eleições de 1970, o candidato
indicado por Chico Rocha - o dentista e professor Carlos Gomes, foi derrotado pelo primo e
dissidente político do deputado – o advogado Fernando Mário Pires Daltro, apoiado pelo
deputado estadual Edvaldo Valois. Ambos disputavam pelo partido oficial do governo militar
– A ARENA. Diante das divergências locais o partido se subdividiu em dois grupos, a ARENA
1, liderada por Francisco Rocha Pires e a ARENA 2, comandada pelo candidato Fernando
Daltro. Localmente, estes grupos eram denominados Jacus e Carcarás, respectivamente.74 Os
Carcarás, permaneceram a frete do executivo municipal até o ano de 1976, quando foram
derrotado pelo médico representante dos Jacus, Flávio Antônio Mesquita Marques. 75 Nas
eleições seguintes, os Carcarás retomaram o executivo de Jacobina com a eleição do irmão de
Fenando Daltro, Carlos Alberto Pires Daltro (Carlito). Este, foi responsável por uma série de
transformações urbanísticas na cidade, principalmente no seu primeiro mandato entre 1983 e
1989. Com o apoio de Carlito, o médico Manoel Inácio Brandão Martins Paes foi eleito para a
gestão seguinte, 1989 -1992. Entre 1993 e 1996, Carlito se elegeu novamente prefeito, e ao fim
do seu mandato findou-se a era dos Carcarás na gestão do município.
Nos anos setenta, se acelerou o processo de urbanização em Jacobina. Entre 1940 e 1970
a taxa de urbanização da cidade cresceu de 12,7% para 33,3%. Houve aumento também nos
índices populacionais neste período, no perímetro urbano, que quadruplicou o número de
74
Sobre as mudanças políticas em Jacobina a partir da década de 1970 ver: ARAÚJO, Carla Côrte. Os Carcarás:
política e sociedade na cidade de Jacobina (1966-1973). Dissertação (mestrado). Salvador: UFBA, 2012.
75
Flávio Antônio Mesquita Marques foi o último Jacu a se eleger. O grupo foi se enfraquecendo politicamente após
a morte de Francisco Rocha Pires em 1974. Ver: ARAÚJO, Carla Côrte. Os Carcarás: política e sociedade na
cidade de Jacobina (1966-1973). Dissertação (mestrado). Salvador: UFBA, 2012.
36
habitantes. Em 1940 era de 4.389 e cresceu para 19.211 na década de 1970. 76 De acordo com
Ângelo Fonseca, este aumento populacional pode ser explicado pelo êxodo rural, que se
intensificou a partir desta década, em decorrência da forte seca que comprometeu a produção
agrícola e afetou a economia na região de Jacobina. O autor aponta ainda, que neste período foi
realizado um novo estudo para avaliação de ouro no município pela empresa Mineração Morro
Velho S/A, o que resultou na exploração de ouro pela multinacional ao longo das décadas de
1980 e 1990. Este fato, para Fonseca, dinamizou a economia local e atraiu mão de obra.77 Diante
deste quadro, a população do zona urbana cresceu de 26.674, na década de 1980, para 42.001
habitantes na década seguinte78. Do mesmo modo, a taxa de urbanização permaneceu
crescendo. Entre 1980 e 1991 este índice variou de 34,80% para 65,30%.79
Este é o período que Jacobina conseguiu a sua maior evolução, diversificando
as áreas já existentes, reformando espaços urbanos e expandindo para o lado
oeste da cidade, através de novos bairros residenciais, estabelecimentos
comerciais e de serviços. Um das características básicas da sua expansão
urbana recente é a presença do Estado através da construção planejada de
habitações. Com exceção do conjunto habitacional Jacobina I, que foi
construído em 1978, todos os outros surgiram a partir dos anos 80. Este
período coincide com a implantação da Mineração Morro Velho (1981) que,
inicialmente, atraiu muitos imigrantes para a cidade devido a oferta de
empregos diretos e indiretos, e pela queda na produção agrícola na região. 80
76
FONSECA, Antônio Ângelo Martins da Poder, Crise Regional e Novas Estratégias de Desenvolvimento: o
caso de Jacobina/Bahia. Dissertação (Mestrado). Salvador: UFBA, 1995.
77
Idem, p. 148.
78
A proporção em relação a população total do município diminuiu em decorrência a elevação à categoria de
município quatro distritos antes pertencentes a Jacobina; Capim Grosso (1985), São José do Jacuípe (1989), Várzea
Nova (1985) e Ourolândia (1989). Ver: FONSECA, Antônio Ângelo Martins da Poder, Crise Regional e Novas
Estratégias de Desenvolvimento: o caso de Jacobina/Bahia. Dissertação (Mestrado). Salvador: UFBA, 1995.
79
Idem. p. 167.
80
FONSECA, Antônio Ângelo, Op. Cit. p. 198.
37
da década de 1957 eram constituída por uma área verde, entre as décadas de 1980 e 1990,
estavam ocupadas por novas construções.
38
Panorâmica 1 - 1957. Foto: Aurelino Guedes. 81 Panorâmica 3 - 1957. Foto: Aurelino Guedes82
81
Panorâmica 1 - 1957. Foto: Aurelino Guedes. .IN: MENESES, Adriano; OLIVEIRA, Valter (org). Acervo Digitalizado da Microrregião de Jacobina. Jacobina: UNEB
Campus IV - NEO/NECC.
82
Panorâmica 2 - 1957. Foto: Aurelino Guedes. .IN: MENESES, Adriano; OLIVEIRA, Valter (org). Acervo Digitalizado da Microrregião de Jacobina. Jacobina: UNEB
Campus IV - NEO/NECC.
39
.
Figura 6- Foto Panorâmica de Jacobina-Ba, entre as décadas de 1980 e 1990
Fonte: Fotografia de Tibor Jablonsky. Acervo dos trabalhos geográficos de campo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE, década de 1980.
A habitação, passou a ser um grande problema em Jacobina a partir dos anos 1970, em
decorrência da migração dos moradores da zona rural, para o centro urbano do município. O
resultado disso foi a inflação nos custos da habitação ao longo desta década. Na edição do dia
21 de fevereiro de 1976, o jornal A Palavra, cobrava das autoridades a resolução dos problemas
habitacionais enfrentados em Jacobina, sugerindo o incentivo governamental para a construção
de casas populares pela URBIS (Habitação e Urbanização da Bahia S/A). 83
Entre 1983 e 1988, Jacobina ganhou um novo fôlego no processo de urbanização, sob a
gestão do Carcará Carlos Daltro. Neste período, inúmeras obras foram realizadas na cidade,
como construção do Calçadão, na rua Coronel Teixeira, que constituiu no fechamento da rua
para tráfegos de veículos. Além da pavimentação do Calçadão, feita com pedras portuguesas
e canteiros de concreto, Carlos Daltro realizou a reforma da Praça Castro Alves, calçada
também com pedras portuguesas e ladrilhos hidráulicos, canteiros e fonte luminosa; Construção
de prédio da Faculdade de Formação dos Professores; Reforma do Estádio José Rocha e
construção do Ginásio de Esportes; reforma da Praça Dois de Julho, onde foi construído um
ponto de ônibus, estacionamento rotativo, canteiro com jardim, e quadra de esportes;
83
Jornal A palavra. 21 de Fevereiro de 1976. Ano III, nº120, p. 1.
40
84
SANTOS, Lizandra dos. Modernidades: Um estudo Sobre as Práticas na Cidade de Jacobina- Ba (1983-
1888). Monografia (Especialização em História Cultura Urbana e Memória), Jacobina: UNEB/CAMPUS IV, 2013.
p. 13.
85
SILVA, Franklin Rios da. Utopias de Cidade: A Jacobina de Cícero Matos (1984-1994). Monografia
(Graduação). Jacobina:UNEB/CAMPOS IV, 2012. p. 16.
86
Idem, p. 17.
87
OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes, Op. Cit. p. 21.
41
88
Jornal A Palavra. 26 de maio de 1973. Ano 1, nº1.
89
Jornal A Palavras. 12 de Janeiro de 1974. Ano 1, nº32.
90
Jornal A Palavras. 27 de julho de 1974. Ano II, nº42.
42
população. Em 1971 através dos editais nº1 e 3 publicados em fevereiro daquele ano, tendo
como referência o Código de Posturas de 1965, reiterou-se a não autorização para criação de
animais de qualquer espécie à solta pelas ruas da cidade, vilas e povoados91. Do mesmo modo,
permaneceu proibido tomar banho, lavar roupas ou carros dentro dos açudes ou qualquer fonte
de água que serviam ao abastecimento da cidade. 92
Apesar do editorial anteriormente citado, referir-se a criação de animais à soltas nas
ruas, em se tratando da criação de porcos, esta já era proibida pelas posturas municipais 93,
inclusive quando realizadas em pocilgas ou chiqueiros. Diante disso, o jornal A Palavra, em
197594, publicou uma denúncia sobre a criação de porcos em quintais situados na Rua dos
Humildes. Segundo a matéria, a vizinhança estava incomodada com o mau cheiro na região,
inclusive o delegado que moraria nas proximidades dos criatórios. A reportagem fazia um apelo
aos proprietários dos animais para pôr fim a criação no prazo de 15 dias como disposto na lei,
caso contrário, seriam tomadas outras providências junto as autoridades de saúde.
Outro aspecto que aparecia nos noticiários como um reflexo da incivilidade e mal
hábitos da população, diz respeito ao sossego público. Questão esta, devidamente tratada pelas
posturas municipais de 1965. Na primeira página do semanário, em 25 de janeiro de 1975, é
anunciado que o delegado havia prendido baderneiros que há uma hora da manhã saiu nas ruas
da cidade “cantando músicas imorais, ofensivas ao decoro público.” O grupo foi preso ao passar
na rua do delegado de polícia, que de acordo com a reportagem, “acordado pouco emocionado
com as “músicas”, este resolveu levantar-se para ouvir melhor e, depois, decidiu convidar a
turma para passar o restante da noite na sala de “show” da Delegacia de Polícia.” 95 O grupo
composto por cinco homens, foi solto no dia seguinte. Segundo a denúncia o fato deveria servir
de exemplo “aos perturbadores do sossego alheio e aos cantadores de músicas imorais.”
Em 3 maio do mesmo ano, o delegado de polícia da cidade, novamente teria se
incomodado com o barulho, desta vez provocado pelos fiéis da Igreja Assembleia de Deus da
cidade. Estes, haviam colocado serviço de alto-falantes sem a devia autorização das autoridades
responsáveis, o que caracterizava-se, de acordo com as leis municipais, como perturbação do
sossego público, tal qual a cantoria, realizadas pelos cinco homens classificados como
“baderneiros” pelo semanário, na matéria anteriormente citada. Em um longo texto, a matéria
91
Edital nº1 de 5 de fevereiro de 1971. In: Avisos e Editais: Livro nº1 (1967-1973).
92
Edital nº3 de 5 de fevereiro de 1971. In: Avisos e Editais: Livro nº1 (1967-1973).
93
Norma determinada através das Posturas Municipais no parágrafo único do capítulo III. IN: Código de Postura
de Jacobina. IN: Registros de Lei Nº2: 10/1955 à 12/1967. Jacobina,1965.
94
Jornal A Palavra. 1 de fevereiro de 1975. Ano II, nº69.
95
Jornal A Palavra. 25 de Janeiro de 1975. Ano II, nº68.
43
questiona sobre a legitimidade da ação policial, que havia interrompido a celebração religiosa,
e infringido dessa forma, a constituição federal no que diz respeito à liberdade de culto. A
reportagem do jornal, buscou o então delegado regional, Hugo Perrone, para obter maiores
esclarecimentos.
Reporte - Dr. Hugo, como temos sabido que o Sr. Mandou suspender o serviço
de alto-falantes da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, sem qualquer aviso
prévio e sem ouvir as autoridades daquela instituição religiosa; quebrando
assim o princípio de liberdade de culto. Que nos informa?
Delegado – Realmente, o serviço de alto-falantes da Igreja Assembleia de
Deus foi suspenso por esta autoridade, uma vez que o funcionamento sem uma
licença prévia da Delegacia de Regional agride frontalmente o Dec. nº. 22.881,
de maio de 1972, o qual, no seu art. 26, permite a autoridade policial suspender
as atividades desse tipo de serviço, desde que esteja funcionando
irregularmente ou, como diz a Lei “Sem o devido registro de licença”.
Entretanto, essa suspensão não implicou na quebra do princípio da liberdade
de culto defendida pela Constituição Federal, uma vez que os trabalhos
religiosos não foram interrompidos e continuam se realizando sem
anormalidade. O fato desta autoridade haver interrompido o serviço de alto-
falantes referido vai encontrar guarida também na Lei de contravenções
Penais, que no seu art. 42, pune a perturbação com instrumentos sonoros.
Inclusive a retransmissão de trabalhos religiosos de qualquer templo, por meio
de serviços de alto-falantes localizados nas torres das igrejas constituem, no
nosso entender, uma agressão ao princípio de liberdade individual, de cada
um, proclamada na Constituição Federal, nossa Lei Magna, uma vez que não
estamos obrigados a suportar, nos nossos tímpanos, pregações religiosas de
qualquer natureza.96
96
Jornal A Palavra. 3 de maio de 1975. Ano II, nº78, p.1.
44
97
Decreto Estadual 25.095 de 15 de Janeiro de 1976. IN: BRAGAG, Júlio. Na Gamela do Feitiço: Repressão e
Resistencia nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA,1995.
45
Braga, destacou que a promulgação deste decreto foi resultado de uma luta encabeçada
por diferentes segmentos da sociedade, que endossaram o enfrentamento em defesa da liberdade
aos cultos afro-brasileiros na Bahia, iniciada desde 1937, a partir das discussões II Congresso
Afro-Brasileiro. Após o Congresso foi criado o Conselho Africano da Bahia, posteriormente
denominado União da Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, que tinha como objetivo se encarregar
de dirigir as religiões afro-brasileiras em substituição à polícia. O conselho tinha como um dos
seus principais apoiadores o etnólogo Edson Carneiro.98
Em 1946, a União da Seitas Afro-Brasileiras foi substituída pela Federação Baiana de
Cultos Afro-Brasileiros (FEBACAB) em decorrência de uma série de conflitos internos
situados nas diversidade dos candomblés existente em Salvador. Diante disso, uma das funções
da FEBACAB seria disciplinar, representar seus associados, e conclamar a liberdade de culto.99
No ano de 1972, o ““fichamento” dos candomblés nas delegacias, se consolidou
enquanto prática repressiva e controladora”100 através da publicação da lei estadual nº3.097.
Esta, estabelecia que diversas atividades desempenhadas por pessoas físicas e jurídicas passava
a ser submetidas à aprovação da polícia. Sheiva Sörensen destacou entre estes espaços, cabarés,
clubes recreativos, hospitais, circos, comercio de infláveis, armas de fogo e as “sociedades afro
brasileiras para atos folclóricos”. 101 Em janeiro de 1976, o então presidente da FEBACAB,
endereçou uma carta ao governador do Estado, Roberto Santo, solicitando o não pagamento de
taxas para realização de cultos pelas sociedades afro-brasileiras, por estas não se tratarem de
folclore mas de uma religião.102 No mesmo mês foi então sancionado o decreto 25.095.
No ano de 1978, o jornal A palavra, divulgou a carta de um leitor de nome Epitáfio,
queixando-se às autoridades, do que caracterizou como “abusos causados por um “candomblé”
ou coisa que o valha”103. De acordo com a carta, a casa de candomblé que situava-se na Rua
Alto Bonito, às margens do Riacho Manoel Coelho, promovia festas ao sons de atabaques em
determinados dias da semana, tendo a última se iniciado na noite do dia 1 do mês corrente, até
às 17 horas do dia seguinte. O autor da carta afirma que é do seu conhecimento que
Existe uma licença ou liberação para as realizações de determinados cultos e
que os mesmos, seitas, religiões, etc., com as suas respectivas solenidades ou
98
BRAGAG, Júlio, Op. Cit. p. 105
99
Ibidem, p.175.
100
SÖRENSEN, Sheiva. De tombamentos e museus. Estratégias político-culturais no candomblé de Salvador.
São Carlos: UFSCar, 2015. p.33.
101
Idem.
102
BRAGAG, Júlio. Na Gamela do Feitiço: Repressão e Resistencia nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA,1995. p. 180.
103
Jornal A Palavra. 23 de Dezembro de 1978. Ano IV, nº248, p. 1.
46
rituais, podem, evidentemente, ser realizados desde que não atentem à moral
e aos bons costumes, todavia os direitos alheios devem ser acatados mormente
quando se trata do descanso diário que é o sono, dado a labuta do cotidiano,
no entanto os moradores da artéria acima mencionada e adjacências, estão
carentes deste direito. Antes, durante as noitadas domingueiras se
prolongando até o amanhecer das segundas-feiras, tendo por último
prolongado o seu “calendário” inimigo do descanso.104
A carta do leitor Epitáfio, foi publicada pelo jornal quase dois anos após aprovação do
decreto de lei 25.095. Apesar disso, a matéria foi veiculada pelo jornal como se os ritos afro-
brasileiros ainda dependessem do aval da polícia para serem realizados. A FEBACAB,
mantinha sua representação em Jacobina e região desde o ano de 1976, quando então cadastrou
inúmeras casas de culto afro-brasileiros da e região.
Ao contrário do que ocorreu em relação a ação policial na Igreja Assembleia de Deus
no ano de 1975, o redatores dos jornais não buscaram através do representante da FEBACAB
ou da casa de candomblé em questão, informações relacionadas a procedência da denúncia e a
legislação referente a liberdade de culto, nem tampouco mostraram indignação em relação as
queixas do leito, tal qual o fizeram em relação a ação policial na Igreja Assembleia de Deus.
Apesar disso, os noticiários com denúncias contra as práticas curandeiras, candomblés
e demais expressões religiosas afro-brasileiras, praticamente não foram encontrados no jornal
em circulação entre as décadas de 1970 e 1990. A ausência de denúncias, pode ser explicado,
pela organização, resistência, e enfretamento legal dos adeptos dos cultos afro-brasileiros,
frente as repressões sofridas.
Pôde-se verificar, os mecanismos utilizados pelo pai de santo Amado dos Santos, para
realizar suas atividades religiosas. Mesmo após a publicação do decreto 25.095, ele se
deslocava, para áreas menos urbanizadas e mais afastadas do centro da cidade. Apesar de nunca
ter sido abordado pela polícia enquanto realizava seus ritos religiosos, o Sr. Amado receava que
isso pudesse ocorrer, visto que ele não tinha registro junto a FENACAB. Este só foi realizado
em 2014, após sua filha de santo ter sido abordada por policiais em seu terreiro.
Foi uma filha de santo minha que mora na Lagoa 33, e ela tinha o alvará e ai
esqueceu de pagar. Quando pensou que não, eles baixaram lá. [...] Não inda
não tava nem no samba. Eles sabem quem bate quem não bate assim.
Baixaram lá, ai perguntou se ela tinha pagado, sabiam que não tinha. Ai ela,
não. Ai eles disse então, ou paga agora ou vai fechar.”105
104
Ibidem.
105
Entrevista com Amado Pereira dos Santos, entrevista concedida a autoras em 15/10/2015.
47
Nota-se, através do depoimento de dona Mariquinha, que ao longo dos 40 anos em que
promoveu os festejos de São Cosme e São Damião, ela os fazia sem o registro da FENACAB.
Devido a isso, a polícia já teria sido chamada para interromper os sambas. Entretanto, por
realizar festejos com uso de atabaques apenas nos carurus, que ocorriam uma vez ao ano, ela
preferiu não fazer o registro de sua casa junto a Federação, visto que seus festejos não
ultrapassava o horário das 11 horas na noite. Braga, ao analisar as perseguições aos candomblés
em Salvador, afirmou que muitos pais e mães de santo se vangloriavam de nunca terem ido a
delegacia pedir autorização para a realização de suas festas públicas, no período anterior a
106
Maria Jesus da Silva (Mariquinha), entrevista concedida a autora em 17/08/2013.
107
Maria Jesus da Silva (Mariquinha), entrevista concedida a autora em 17/08/2013.
48
promulgação da lei 25095 de 1976, devido ao prestígios que estes tinham para negociar junto
às esferas de poder constituído.108
É possível que dona Mariquinha, tivesse, ao longo dos 40 anos em que realizou os
carurus, se utilizado do seu prestigio, junto a alguém com influência e poder no município, para
livrará de ser incomodada pela polícia durante a realização dos sambas em seu terreiro. Por
outro lado, percebe-se, que nem todos os adeptos dos cultos afro-brasileiros contavam com esta
prerrogativa, como no casa da filha de santo de senhor Amado, que não teve escolha, ou pagava
a taxa para manter a licença para tocar nas festas que realizava em seu terreiro, ou o terreiro
seria fechado. Sr. Amado, por sua vez, apesar de ter regularizado o seu terreiro junto a
Federação depois de mais de 35 anos de existência do mesmo, permaneceu se deslocando para
os bairros menos afetados pelo processo de urbanização, na tentativa de não ser abordado pela
polícia. Além disso, deve-se destacar, que um dos seus filhos de santo é ex-policial militar, isso,
provavelmente tenha contado a seu favor, para que não fosse abordado pela polícia a longo de
tantos anos de funcionamento do seu terreiro.
108
BRAGAG, Júlio. Na Gamela do Feitiço: Repressão e Resistencia nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA,1995.. p. 177.
109
Em 2002 FEBACAB passou a ser denominada Federação Nacional dos Cultos Afro-brasileiro (FENACAB).
110
Nas casa de Giro de Caboclo o culto centraliza-se nas entidades dos ancestrais indígenas, caboclo.
49
Tudo misturado era, era... umbandomblé como o pessoal fala por ai. Não era
o caboclo mesmo fechado porque eles botavam, falava de ogum, falava de
Iansã, falava de Nanã, mas a Iansã deles falava e cantava, os ogum deles fala
e canta, e no candomblé não...111
Apesar da classificação feita pela FEBACAB, os entrevistados que não são adeptos do
candomblé tradicional, identificam suas práticas com a umbanda e peji ou piji. A palavra peji,
é utilizada pelos praticantes do candomblé tradicional para referir-se a um espaço do terreiro
restrito aos iniciados.114 Em Jacobina, peji ou Piji, se referem aos sambas de caboclo que
111
Joel Sebastião Xavier. Entrevista concedida a autora em 22/02/2011.
112
BRAGA, Júlio. Na Gamela do Feitiço: Repressão e Resistencia nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA, 1995. p. 174.
113
Idem, p. 174-175.
114
SANTOS, Edmar Ferreira, Op. Cit. p. 88.
50
ocorrem em alguns ritos, ou como denominação do culto.115 Para Santos, a palavra tem suas
prováveis origens no termo de língua fon Kpeji, que significa “sobre o altar”116
O pai de santo umbandista Amado Santos, refere-se ao piji da seguinte maneira: “No
piji que você tá falando, quem tem caboclo brinca que não tem que quiser brincar brinca, agora,
os que tem, não tem jeito cai mesmo, brinca, samba.”117 Na sua concepção o piji refere-se aos
sambas de caboclo que compõe inúmeros ritos em sua casa. Segundo Mariza Rodrigues, o peji
é usado para designar os cultos afro-brasileiros situados na zona rural do município “além de
curandeirismo, zeladores de santo e até umbanda” 118 O que pôde-se observa através da presente
pesquisa, é que embora o termo peji seja também usado para designar a casas de cultos, isto
não se restringiu que estão situadas zona rural do município, uma vez que o termo é também
utilizado para identificar as casas de culto ou os sambas de caboclo realizados no perímetro
urbano do município. Do mesmo modo, não constatou-se o emprego da palavra peji para fazer
referência aos curandeiro/Curandeiras e zeladores/zeladoras de santo como afirmou
equivocadamente a referida autora.
Segundo Joel Xavier, a partir da catalogação feita pela FENACAB, em 1976, foram
encontrados dezenas de casas de culto afro-brasileiras organizadas a partir de diferentes
estruturas religiosas.
115
FONSECA, Emanuela Bethânia Santana da. Religiões Afro-Brasileiras em Jacobina: intolerância,
repressão e resistência. Monografia (Especialização em Cultura Urbana e Memória), Jacobina-Ba:
UNEB/CAMPUS IV, 2012.
116
SANTOS, Edmar Ferreira, Op. Cit. p. 88.
117
Entrevista com Amado Pereira dos Santos, entrevista concedida a autoras em 15/10/2015.
118
RODRIGUES, Mariza do Carmo. Religião no sertão baiano: o candomblé em Jacobina. Dissertação
(Mestrado), Salvador: UEFBA/CEAO, 2014. p.40.
119
Joel Sebastião Xavier. Entrevista concedida a autora em 22/02/2011.
51
catalogação pela FEBACAB, ao morrerem, não deixaram herdeiros, ou uma família de santo
para dá continuidade àquela prática religiosa. Por conta disso, com a morte dos líderes
religiosos, muitas casas deixaram de existir. Observa-se pelos relatos do babalorixá, que diante
do grande números de casa registradas por ele, que não eram classificadas enquanto de nação,
a Federação passou a questionar, a natureza dos cultos realizados em Jacobina, e a não
considera-los como “de santo” e sim caboqueiros.
As entidades caboclas, são cultuadas nas religiões afro-brasileiras como os donos da
terra, primeiros habitantes do território brasileiro. Inúmeros terreiros de candomblé cultuam
estes ancestrais, e têm um espaço reservados para estas entidades, geralmente na área exterior,
nas proximidades da porta de entrada junto ao orixá Exu.120 De acordo com Emmanuelly Tall,
os caboclos são também os donos do mato. Estes ancestrais, teriam ensinado, aos africanos
escravizados no Brasil, a sabedoria das folhas nativas, das quais o negro não tinham
conhecimento, de modo que possibilitou a população negra escravizada, manter sua relação
com a natureza e suas divindades.121 Para a autora,
Como primeiro ocupante da terra, o caboclo tem de ser respeitado e
cumprimentado como o ancestral primordial e legítimo do povo brasileiro.
Pois, nas sociedades tradicionais africanas, a autoctonia prevalece, na maestria
mística da matéria terra, sobre as relações de força política. As duas funções
são quase sempre separadas, a chefia da terra sendo um atributo do autóctone,
primeiro ocupante do território, enquanto a chefia política é o privilégio do
estrangeiro conquistador.2 Assim, o dono da terra sempre tem de ser
consultado, saudado, cada vez que os produtos da terra são solicitados, tanto
mais quando se destinarem aos trabalhos cultuais. 122
Acredita-se que o candomblé é uma religião de matriz africana, mas que foi ressignificada,
readaptada pelos diversos grupos étnicos dos quais faziam parte o grande contingente de africanos
escravizados no Brasil. Como afirma Teixeira “o candomblé surgiu no Brasil como produto de
reinvenções – de adaptações e de síntese – dos vários sistemas de crenças provenientes do
continente africano, durante mais de três séculos do período da escravidão.” 123 Nesse processo de
reinvenção, os modelos existentes na África tiveram de ser adaptados à nova realidade social
encontrada pela população negra no Brasil. O que possibilitou, inúmeras trocas com os diversos
elementos culturais existente na sociedade. É certo, que estas se fizeram também em relação às
culturas nativas e em relação à cultura europeia.
120
TALL, Emmanuelle Kadya. O Papel do Caboclo no Candomblé Baiano. IN: CARVALHO, Maria Rosário de;
CARVALHO, Ana Magda. Índios e caboclos: a história recontada. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 80.
121
Ibidem.p.80.
122
Ibidem. p.80.
123
Ibidem. p. 13.
52
124
FERRETTI. Sergio. Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; São Luís:
FAPEMA, 1995.p. 110
125
Ibidem, p.151
126
A reafricanização pôde ser observada desde o início do séculos XX e era defendida por alguns líderes religiosos
daqueles anos como Martiniano do Bonfim. Para mais informações ver: BRAGA, Júlio. A Cidade dos Homens e
das mulheres. Feira de Santana-Ba: EDUEFS, 2014; outros
53
De acordo com Vagner Silva, a busca por uma africanidade perdida e idealizada se deve,
entre outros fatores, à iniciação de vários intelectuais no candomblé, e ao acesso a trabalhos
acadêmicos de cunho etnográficos por membros das religiões afro-brasileiras, o que, de certa
maneira, contribui também para a supremacia do modelo keto, visto que as pesquisas etnográficas
são realizadas principalmente em terreiros dessa nação. O autor destacou, que além da contribuição
das etnografias para o processo de reafricanização, muitos pais e mães de santo estão viajando para
a África, na tentativa de aproximarem suas práticas aos cultos africanos, participando de congressos
e visitando em território africano, os templos dos orixás.127
Acredita-se que “todas as religiões são sincréticas, pois representam o resultado de grandes
sínteses integrando elementos de várias procedências que formam o novo todo.” 128 Para Ferretti o
sincretismo provoca um mal estar em muitos autores, que muitas vezes interpretam como algo
negativo, sinônimo da imposição evolucionista e colonialista. Contudo o sincretismo religioso não
significa “desmerecer nenhuma religião, mas em constatar que, como os demais elementos de uma
cultura, a religião constitui síntese integradora englobando conteúdos de diversas origens.” 129.
Deve-se, entretanto, ao estudar esses fenômenos, atentar-se para as suas especificidades, que estão
relacionadas a processos históricos que envolvem a sociedade em que está inserido o objeto de
estudo em questão.
O sincretismo ocorre na religião, na filosofia, na ciência, na arte, e pode ser
de tipos muito diversificados. Nas religiões afro-brasileiras podemos localizar
vários tipos, conforme o aspecto que esteja estudando ou a ênfase do estudo.
Para evitar mal-entendidos e confusões, é preciso explicar exatamente o
sentido que se quer dar ao termo que está sendo utilizado. Apesar dos aspectos
pejorativos que prevalecem, sincretismo é um fenômeno que existe em todas
as religiões, está presente na sociedade brasileira e deve ser analisado, que
gostemos ou não.130
127
SILVA, Vagner Gonçalves. Reafricanização e Sincretismo: Interpretações Acadêmicas e experiências
Religiosas. In: BACELAR, Jeferson; CARDOSO, Carlos. Faces da tradição Afro-Brasileiras: religiosidade,
sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. 2 ed. Rio de Janeiro:
Pallas; Salvador: CEAO, 2006.
128
FERRETTI. Sérgio Figueiredo. Sincretismo Afro-Brasileiro e resistência Cultural. In: BACELAR, Jeferson;
CARDOSO, Carlos. Faces da tradição Afro-Brasileiras: religiosidade, sincretismo, anti-sincretismo,
reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. 2 ed. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador: CEAO, 2006.
p. 114.
129
Ibidem.p. 114.
130
Ibidem, p. 91.
54
por altares com imagens de santos católicos, pretos velhos, caboclos, ciganas, marinheiros,
orixás entre outras divindades. Alguns destes médiuns, realizavam festas com samba em datas
especificas, especialmente no mês de setembro em homenagem aos santos São Cosme e São
Damião.
As benzedeiras, embora se definam enquanto pertencentes à religião católica, dialogam
com diversas religiosidades, principalmente com o espiritismo e as práticas religiosas afro-
brasileiras. Em seu oficio, estas buscam alcançar a cura dos diversos males através do uso de
ervas, banhos, garrafadas, e muitas vezes a partir do auxílio de entidades religiosas afro-
brasileiras, como caboclos, pretos velhos, orixás e encantados. Assim como os curandeiros,
algumas delas também oferecem carurus em setembro, ou fazem bolos para as crianças em
homenagem aos santos gêmeos.
Elas são figuras marcantes no universo das terapêuticas tradicionais em Jacobina. Os
que as diferencia dos curandeiros e curandeiras é a não realização de trabalhos religiosos,
despachos ou ebós, como meio de alcançar a cura dos seus consultantes. A apropriação, por
parte dos adeptos do catolicismo, de diversos aspectos da religiosidade afro-brasileira, vem de
longas datas. Riolando Azzi afirmou que o catolicismo implantado pelos portugueses no Brasil
se aproximava de um catolicismo tradicional, que tinha como características sua origem luso-
brasileira de caráter “leigo, medieval, social e familiar” 131. Este, era combatido pelo clero
romano, que buscou implantar no Brasil, um catolicismo renovado que se caracterizasse como
“romano, clerical, tridentino, individual e sacramentalista".132 Segundo o autor, é
representativo neste tipo de catolicismo, a construção de lugares destinados ao culto, que iam
de simples cruzes, a capelas, ermitas e igrejas.133 Diante da natureza devocional deste
catolicismo, Edilece Couto destacou que “Eremitas, irmãos, mulheres recolhidas, beatos,
Ordens Terceiras e confrarias se organizavam para promover retiros religiosos, romarias e
procissões. Os leigos construíam os oratórios e as capelas para a veneração de um determinado
santo.”134 Portanto, as religiosidade vivida pelas benzedeiras provém deste catolicismo
tradicional, que realizou inúmeras trocas com as demais culturas existente no Brasil naquele
período.
131
AZZIR, RioLando. O Episcopado do Brasil Frete ao Catolicismo popular. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
1977. p. 9.
132
Ibidem. p.9.
133
Ibidem. p.9.
134
COUTO, Edilece Souza. Tempo de Festas: Homenagens a Santa Bárbara, N. S. da Conceição e Sant’Ana em
Salvador (1860-1940). Tese de doutorado. São Paulo: UNESP, 2004. P. 47.
55
135
FONSECA, Emanuela Bethânia Santana da. Religiões Afro-Brasileiras em Jacobina: intolerância, repressão e resistência. Monografia (Especialização em Cultura Urbana
e Memória), Jacobina-Ba: UNEB/CAMPUS IV, 2012.
57
O quadro acima, demonstra que a maioria desses agentes de cura, possuem idade acima
dos cinquenta anos; predominantemente, se auto definem enquanto pertencente à religião
católica; oferecem caruru em homenagem a São Cosme e São Damião, na maioria dos casos
sem sambas ou batuques; em prevalência, estes mantêm devoção por uma infinidade de santos
e divindades pertencente ao universo afro-brasileiro; e todos residem na sede do município.
Observou também, a predominância de mulheres entre os agentes das terapêuticas
mágico-religiosa de esfera doméstica. Conforme afirmou Elda Oliveira, quando se busca quem
benze, a questão é sempre elaborada no feminino, partindo-se do pressuposto, de que as
mulheres são majoritárias neste ofício 136. Diferente do que ocorria na sociedades “primitivas”,
onde estas funções era desenvolvida principalmente por homens.137
Ao estudar a importância da figura feminina nos cultos afro-brasileiros em Salvador na
década de 1940, Ruth Landes constatou que a partir da tradição religiosa afro-brasileiras, só as
mulheres estariam aptas para zelar pelas divindades, e que, os serviços dos homens a estes
deuses seria desvirilizaste e blasfemo. Segundo a autora, ainda que estes, em algumas ocasiões
se tornassem líderes religioso, o desempenho masculino “jamais pode funcionar tão
completamente como uma mulher.”138 Para Landes, em períodos anteriores alguns homens
tinham certa ligação com estes cultos, mas não como chefes de terreiros, estes desempenhavam
apenas atividades relacionada a adivinhações e feitiçarias. Tanto no que se refere ao
candomblé, quanto em relação as benzedeiras e curandeiras, compreende-se que,
Mulheres, mães, domesticas, pobres, idosas, sem estudo, reunindo qualidades
inferiorizadoras para o contexto de produção capitalista, mas portadoras de
um oficio que lhes exige a posse de um poder peculiar. Por que isso? Talvez
por se tratar de uma profissional doméstica, suspeito que haja diferenças no
tocante ao desempenho do seu ofício. Por exemplo, enquanto pode ser
observada a predominância masculina em ofícios itinerantes pode-se observar
também a feminina em atividades domésticas, onde se apresentam como
cartomantes, benzedeiras, costureiras, caracterizando-se aí uma espécie de
divisão sexual do trabalho.139
136
OLIVEIRA, Elda Rizzo de. Doença, Cura e Benzedura: estudo sobre o ofício das benzedeiras em Campinas.
Dissertação UNICAMP- Campinas- São Paulo:1983. p. 138.
137
Ibidem.p. 138.
138
LANDES, Ruth. A cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p.321
139
OLIVEIRA, Elda Rizzo, op. Cit, p. 138.
58
140
BRAGA, Júlio. Candomblé da Bahia: a cidade das mulheres e dos homens. Feira de Santana-Ba: EDUEFS,
2014. p.123.
141
Ibidem, p. 124.
142
BASTOS, Ivana Silva. Mulheres Iabas: liderança, sexualidade e transgressão no candomblé. Dissertação
(Mestrado em Sociologia), João Pessoa: UFPB, 2011. p.127.
143
Ibidem.p.127.
59
Até meados do século XX, era um tabu a presença de homens no comando de uma casa
de santo, bem como, o transe destes por alguma entidade durante as celebrações. Estas eram
funções exclusivamente feminina. Apesar disso, em terreiros menos rígidos, em especial nos
candomblés de caboclos, alguns homens já desempenhavam estas funções, mas os mesmo, eram
por isso, estereotipados pelos mais ortodoxos como homossexuais. Deste modo, como assinalou
a autora, as barreiras da tradição são rompidas mais facilmente pelos homens.
A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa
justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem
necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem
social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a
dominação masculina.144
144
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina: A condição feminina e a violência simbólica. Rio de Janeiro:
Best Bolso, 2014. p. 22-24
145
Joel Sebastião Xavier. Entrevista concedida a autora em 22/02/2011.
60
sociais mais pobres. Outro aspecto importante no depoimento do babalorixá Joel Xavier, se
refere aos frequentadores das festas no terreiro de dona Dominga, que incluía pessoas de alto
poder aquisitivo e políticos da cidade. Certamente, não seria coincidência o fato desta ser a casa
que mais realizava festejos na cidade no período, dada a posição social das pessoas que
frequentavam seu terreiro.
Deve-se destacar que a catalogação realizada até o presente momento, privilegiou a
mapeamento dos terreiros localizados na sede do município, no entanto, um dos sete terreiros,
encontram-se em localidade rural. Seu líder, o babalorixá Américo Porto, reside na sede do
município, indo ao terreiro somente para realização de atividades religiosas.
O mapa a seguir, está representando a localização das seis casas situadas no perímetro
urbano da cidade. A partir dele, observa-se que os terreiros Ilê Axé Odé Cassulandê, Ilê Axé
Odoiá, Onzó de Matamba, e o terreiro liderado Ialorixá Dunguinha, situam-se em bairros
próximos à área central da cidade. Os terreiros liderados pela ialorixá Cristina e o terreiro Sultão
das Matas, situam-se em bairros mais afastados e menos afetados pelo processo de urbanização.
Em sequência, o quadro 2 fornece outros dados sobre estes terreiros.
61
146
Quando foi contactada para saber sua disponibilidade para conceder uma entrevista para a realização deste trabalho Cristina, líder do terreiro, afirmou que seu terreiro se
tratava de uma casa de candomblé de nação, advinda de salvador, a qual tinha parentesco com o famoso pai de santo Joaozinho da Gomeia. Entretanto a mesma não quis
participar da pesquisa.
147
Quando foi contactada para saber sua disponibilidade para conceder uma entrevista para a realização deste trabalho Dona Dunguinha, líder do terreiro, afirmou que seu
terreiro se tratava de uma casa de Umbanda e que teria se iniciado em Bom Jesus da Lapa. Entretanto a mesma não quis participar da pesquisa.
148
FONSECA, Emanuela Bethânia Santana da. Religiões Afro-Brasileiras em Jacobina: intolerância, repressão e resistência. Monografia (Especialização em Cultura Urbana
e Memória), Jacobina-Ba: UNEB/CAMPUS IV, 2012.
63
Chama atenção, o fato de todos os terreiros de nação, com a exceção do Ilê Axé
Odoiá terem surgido de famílias de santo originárias de outras cidades e até mesmo de
outros estados. Além disso, três deles, o Ilê Axé Odé Cassulandê, o Ilê Asé Aganjulobá,
e o Ilê Axé Odoiá pertencem à mesma família de santo. O primeiro seria a “casa mãe”,
instalada na cidade na década de 1970; o segundo foi fundado pelo sobrinho de santo de
Joel Xavier, babalorixá do Ilê Axé Odé Cassulandê, na década de 1990, e a terceira casa
pertence a uma filha de santo de Joel Xavier, também aberta na década de 1990.
A casa Onzó de Matamba, também teve seu responsável iniciado na cidade de
Petrolina- Pe. No que refere-se aos terreiros de umbanda, um teve seu líder iniciado no
município de Caém – Ba, localizado na microrregião de Jacobina, e o outro na cidade de
Bom Jesus da Lapa-Ba. Vale lembrar que o processo de iniciação da umbanda é diferente
da iniciação no candomblé, assim como a composição da religião em relação à divisão
dos cargos, e ao próprio culto às divindades.
A não existência de terreiros de Candomblé de nação, e de famílias de santo, que
possam ter surgido em Jacobina, no período anterior a fundação do Ilê Axé Odé
Cassulandê, pode estar relacionada às questões históricas na região de Jacobina, que
envolvem a população negra, ao longo do período de vigência da escravidão. Além disso,
destaca-se a maior rigidez que existe no candomblé em relação a Umbanda e ao peji, em
aspectos como o cumprimento das obrigações e o próprio processo de iniciação.
Na Umbanda, em Jacobina, a iniciação ocorre a partir dos ensinamentos,
transmitidos oralmente por um pai ou mãe de santo, e diferentemente do candomblé de
nação, seus membros não costumam se organizam em torno de uma família de santo.
Conforme Oliveira e Jorge,
A Umbanda, com raras exceções, apresenta grandes exemplos de
linhagens que nos facilite conhecer a origem de uma determinada linha
de pensamento religioso, seus sacerdotes, discípulos ou filhos-de santo,
local do culto e período em que iniciaram a praticar a Umbanda. Isto é
bem diferente do Candomblé, religião em que “a questão da origem
parece ser o assunto predileto do povo-do-santo” (...). Muitos terreiros
umbandistas, ao contrário, surgem da vontade individual de indivíduos
que vivenciaram algum tipo de experiência religiosa (católica e
kardecista na maior parte das vezes) e que acreditam ser médiuns
umbandistas a partir de experiências particulares como a mediunidade,
o transe, sonhos ou vidências. A partir daí, buscam locais para
entenderem e lidarem com a mediunidade ou ainda abrem por si só seus
terreiros, sem passar por um processo de iniciação, Este último caso não
é muito bem visto, pois segundo os pressupostos da religião, para o
indivíduo alcançar o status de pai ou mãe-de-santo ele deve
64
149
OLIVEIRA, Irene Dias de; JORGE, Érica Ferreira da Cunha. Espiritualidade Umbandista: recriando
espaços de inclusão. Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 29, p. 29-52, jan./mar. 2013.p.4
150
Maria da Conceição (Nina), entrevista concedida a autora 23/2/2011.
151
O kardecismo é uma religião que surgiu na França, teve como criador Alan Kardec, e chegou ao Brasil
na segunda metade do século XIX, e teve como principais adeptos no país a classe média. De acordo com
a doutrina espírita kardecista os espíritos dos caboclos pertencem a uma categoria de espíritos não
65
o espiritismo e orientado pelo seu mentor espiritual, o Caboclo das Sete Encruzilhadas,
fundou o primeiro centro umbandista.
Os dissidentes do espiritismo kardecista, ao se afastarem deste se aproximaram
dos terreiros de macumba, onde a presença dos caboclos era bem aceita. Entretanto, ao se
aproximarem dos cultos afro-brasileiros julgaram-no primitivo em alguns aspectos, como
em relação a matança e aos batuques. Surge então a umbanda, que segundo Ortiz, por um
lado tenta “empretecer” o espiritismo kardecista e por outro, “embranquecer” algumas
práticas da macumba. Assim, “embranquecer” seria um “movimento de uma camada
social branca em direção às crenças tradicionais afro-brasileiras”152, enquanto
“empretecer” significava a aceitação por parte da população negra de valores impostos
por uma classe social branca, para que ela pudesse se elevar socialmente. “A síntese
umbandista pôde assim conservar parte das tradições afro-brasileiras, mas para estas
perdurarem, foi necessário reinterpretá-las, normatizá-las”153. Essas ressignificações
tinham como fim adequar algumas práticas negras a uma sociedade onde a ideologia
branca era dominante.
Somente após 1966 a umbanda foi considerada pelos órgãos oficiais como
religião, pois até então era classificada pelo IBGE como seita supersticiosa ou como
kardecismo. Com a proposta de estudar, organizar as doutrinas e codificar os ritos que a
compunha, foi realizado em 1941 o Primeiro Congresso Umbandista. Outros dois foram
realizados nos anos de 1961 e 1973 com o mesmo objetivo, organizar e legitimar
socialmente a religião. A busca pela legitimação da religião se fez também por meio de
publicações e da organização das federações, movimento que se fortaleceu a partir da
década de 1950. Com o tempo, a umbanda se espalhou por todo o país, e em cada
localidade tomou dimensões próprias, absorvendo aspectos das culturas locais. 154
evoluídos, por isso esses não são permitidos em suas sessões. Para essa doutrina os espíritos evoluídos são
aqueles capazes de interferir no mundo dos vivos, de praticar a caridade e difundir a doutrina e de “elevada”
instrução, ou seja, espíritos que em vida ocuparam posições sociais de destaque, o que não é o caso dos
caboclos – espíritos indígenas – ou pretos velhos – espíritos de antepassados africanos. Sobre a doutrina
espírita ver: BORGES, Mackely Ribeiro. Gira dos Escravos: a música dos Exus e das Pombagiras no
Centro Umbandista Rei de Bizara. Salvador: UFBA, 2006.
152
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda na sociedade brasileira. São Paulo:
Brasiliense, 1999. p. 33
153
Idem.
154
Sobre a organização da Umbanda no início do século XX ver: ORTIZ, Renato. A morte branca do
feiticeiro negro: umbanda na sociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1999; BORGES, Mackely
Ribeiro. Gira dos Escravos: a música dos Exus e das Pombagiras no Centro Umbandista Rei de Bizara.
Salvador: UFBA, 2006.
66
Diante disso, pode-se afirmar, que assim como em outras regiões do país, existe
por parte dos adeptos do candomblé de nação, a busca por uma reafricanização, com o
intuito de aproximar as práticas atuais às práticas africanas, tal qual existia na África.
Nesse sentido, torna-se incompreensível para os praticantes do Candomblé de nação em
Jacobina, algumas tradições das demais religiões afro-brasileiras existentes na cidade,
como por exemplo, denominar como peji festa ou culto, ao invés do assentamento onde
são colocadas as imagens das divindades, como ocorre nos cultos nagôs. Capone afirma
que tanto o modelo de embranquecimento, pregado pelos teóricos umbandistas na década
de 1930, quanto à africanização contra qualquer tipo de sincretismo no candomblé, que
ganhou força a partir da década de 1970, são ortodoxias que
“Constituem modelos ideais, historicamente determinados e ligados ao
processo de legitimação dos terreiros no mercado religioso. Ambas mais
aspirações que realidades, devem aprender a conviver com os múltiplos
arranjos que permitem a adaptação de um modelo ideal a complexidade da
prática ritual.157
155
CRUZ, Alexnaldo Teodoro. O candomblé de Jacobina. Monografia (Graduação em História) –
Universidade do Estado da Bahia, Jacobina-Ba: 2004.
156
Maria da Conceição Barbosa da Silva (Nina) apud CRUZ, Alexnaldo Teodoro. O candomblé de
Jacobina. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, Jacobina-Ba: 2004.
p.43.
157
CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Pallas, 2009.p. 28-29.
67
peji. Numa relação entre o “nós”, original, verdadeiros; e o “eles”, inventado. Para Stuart
Hall, como toda a prática de significação a identidade está sujeita ao jogo da différance.
“Ela obedece à lógica do mais-que-um. E uma vez que, como num processo, a
identificação opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o
fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de
fronteiras.”158 Assim, compreende-se que as identidades se formam a partir das fronteiras
simbólicas entre o “nós” e o “eles”. Ela se afirma, justamente através da différance.
Nota-se que há, entre os praticantes do candomblé de nação, uma visão
essencialista, em relação às religiosidades no campo religioso afro-brasileiro. Na medida
em que, se busca reafricanizar aspectos relacionados a religiosidade afro-brasileira, com
intuito de aproximá-los ao máximo, a forma como estes se apresentavam na África, nega-
se, que a cultura, bem como a identidade, são fluidas. Em concordância com Hall,
compreende-se que “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é
uma fantasia”159
158
HALL, Stuart. A Identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.p.106.
159
Ibidem.p.13.
68
Todas as terapêuticas que visam à cura, seja ela numa perspectiva da medicina
acadêmica ou das práticas tradicionais de cura, têm em vista, como aspecto central, a
doença.160 A busca pela cura é um dos principais motivos que levam as pessoas a
recorrerem às religiões afro-brasileiras. Em grade partes dos casos, a procura por
tratamento religioso ocorre quando não se obtém a cura através dos serviços oferecidos
na medicina cientifica. Assim, muitos passam de consulentes, a integrantes deste universo
religioso.
Muitas vezes, o estado de desordem, que apresenta o solicitante, exige que este
passe pelo processo de iniciação ou pelo ritual do bori, para que se alcance o reequilíbrio.
O bori, ritual próprio dos candomblés de nação, deriva das palavras em ioruba ebó e ori
– sacrifício e cabeça161. Este, consiste em uma oferenda à cabeça, “dar comida à cabeça”,
da pessoa que busca auxílio na religião, e se submete ao rito com o intuito de “acalmá-la,
e assim recompor suas energias para enfrentar a vida e os problemas, sob proteção dos
orixás.”162 Vale ressaltar a importância da cabeça (ori) para o candomblé. É nela que se
encontra o orixá de cada um, e é através dela, que eles vêm à terra. Portanto, a cabeça é
lugar de energia.163
O ori, em sua totalidade, é um objeto de culto. Possui toda a
potencialidade do sucesso e do fracasso, de tudo o que é bom ou ruim,
e por esse motivo é que dá maior ou menor força à atuação do òrìsà
numa pessoa. Dai a razão do seu fortalecimento através dos ritos
especiais denominados bori, o qual é sempre a primeira obrigação que
se faz numa pessoa antes de qualquer coisa que se faça ao òrìsà. O òrìsà
está atrelado ao ori e dele depende para uma maior ou menor ação junto
à pessoa.164
160
QUINTANA, Alberto M. A ciência da Benzedura: mau olhado, simpatias e uma pitada de psicanálise.
Bauru, São Paulo: EDUSC, 1999.
161
BRAGA, Júlio. Fuxico de candomblé. Feira de Santana: UEFS, 1988. p.64.
162
Ibidem, p. 66.
163
REIS, Marieta. Do moço do anel às coisas do azeite: um estudo sobre as práticas terapêuticas no
candomblé. Dissertação de Mestrado (Pós-Graduação em Saúde Coletiva), Salvador: UFBA, 2012. p. 77.
164
BENISTE, José. Òrun, Àiyé: O Encontro Dos Dois Mundos: o sistema de relacionamentos nagô-
iorubá: Entre o céu e a terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 142-143.
69
As características, bem como a natureza dos boris são diversas. Braga, afirma que
estes vão dos mais simples, bori de obi com água, aos mais complexos, bori de sangue.
O primeiro, pode ser utilizado tanto por iniciados quanto por não iniciados e se trata de
um ritual que busca reestabelecer o equilíbrio, seja ele físico, emocional e espiritual. O
segundo tipo, se faz necessário o sacrifício de algum animal, que pode ser de pena ou
peixe, a depender das orientações dadas pelas divindades através do jogo de búzios. 165 O
bori de sangue, segundo Braga, pode ser caracterizado como bori festivo ou bori
iniciático, sendo que o festivo, é realizado geralmente, na cabeça de alguém que tenha
alcançado posição de destaque dentro das ordens hierárquicas da religião. O autor ressalta
que o bori festivo não se isenta do caráter sagrado dos demais tipos de bori, “de melhorar
as condições de vida da pessoa, seja recuperação de suas forças, seja pela volta à
tranquilidade espiritual perdida por alguma razão.”166
O bori iniciático, compõe o complexo ritual de iniciação, e inserção no
candomblé. Este processo começa, conforme descreve Braga,
Com as práticas divinatórias para identificar o santo protetor (eledá) e
os que acompanham (junto), passando pelos banhos purificatórios, (de
limpeza), os ebós internos e de rua, o assentamento dos santos, e
raspagem do noviço (iaô), pelos ritos de reclusão, (cantar folhas), pelo
rito do dia do nome, pelo urupim, (carrego do Iaô) até o panã ou a
quitanda em que o noviço passa por um processo de reaprendizagem do
seu viver no mundo profano.167
165
Braga, Júlio, op. Cit.
166
Ibidem, p. 66.
167
Ibidem, p. 69.
168
QUERINO, Manuel. Costumes Africanos no Brasil. Salvador: EDUNEB, 2010. p. 61.
169
REIS, Marieta. Do moço do anel às coisas do azeite: um estudo sobre as práticas terapêuticas no
candomblé. Dissertação de Mestrado (Pós-Graduação em Saúde Coletiva), Salvador: UFBA, 2012. P. 70.
70
170
Ibidem p. 68.
71
O relato de dona Nina, revela a doença como motivadora para a sua inserção
candomblé. Os sintomas que ela apresentava afetavam tanto o corpo - através de desmaios
ou um estado de sono, e cegueira - quanto aspectos sobrenaturais - como a intuição e o
transe. Tal estado de desordem, acometia além disso, a sua vida profissional, visto que a
“manifestação” das entidades espirituais acorria em seu ambiente de trabalho, exigindo
que ela o interrompesse. Desse modo, a concepção de dona Nina em relação à doença,
relaciona-se como um fator responsável por interromper as suas atividades cotidianas.
Conforme Montero,
A experiência vivida da "doença" se consubstancia, se torna concreta e
perceptível para o sujeito na medida em que, ao imobilizar o corpo,
provoca interrupções no fluxo cotidiano de atividades rotineiras,
domesticas ou economicamente produtivas, interrupções estas que
trazem resultados nefastos para a própria organização da vida da
família. Somente na medida em que a "imobilidade" significa
suspensão da ação, isto é, instalação de uma situação-problema, é que
o individuo se percebe doente; enquanto for possível "ir levando",
enquanto dores e mal-estares não desorganizam a atividade, a doença
não obriga o individuo a maiores atenções. 172
Não pode-se desconsiderar, na fala de dona Nina, o fato do seu local de trabalho
tratar-se de uma unidade hospitalar. Embora, ela não tenha citado em sua fala, podemos
supor que ela tenha realizado tratamento junto à medicina acadêmica, ou mesmo tenha
sido atendida por profissionais da saúde veiculados a biomedicina, ao longo dos vários
episódio de transe, até então compreendido por ela como uma espécie de
“adormecimento”. A não solução da enfermidade pela medicina cientifica, levou-a a
buscar auxílio através das terapias mágico-religiosas afro-brasileiras.
Embora alguns dos seus familiares, como a sua mãe e a sua tia, tivessem tido
alguma vivência nesse universo religioso, dona Nina reiterou sua relutância em buscar
ajuda através das religiões afro-brasileiras, por não acreditar que estas fossem capazes de
oferecer-lhe a cura para as suas enfermidades. De acordo com a sua narrativa, a solução
para seus problemas só foi alcançada, a partir do momento em que ela realizou o bori, a
feitura de santo e começou a ofertar serviços mágico-religiosos para a comunidade.
171
Maria da Conceição (Nina), entrevista concedida a autora em 23/02/2011.
172
MONTERO, Paula, Op. Cit, p. 11.
72
Ai, como eu estava falando. Ai minha tia foi me levou numa casa em
Mata de São João. Ai eu, lá eu fiz bori, era pra fazer o santo, mas eu
passei num concurso da UNEB não fiz o santo e tudo. Ai eu aqui em
Jacobina conheci o meu pai Joel, ai meu santo não quis me fazer meu
santo lá, só quis fazer aqui com ele.[...] Ai eu fiz o santo com ele aqui,
eu tinha vinte e três anos de idade, quando eu fiz o santo com ele. Ai
comecei a trabalhar. Antes eu trabalhava, antes de fazer o santo, eu não
tinha altar, como diz o povo, não tinha nada disso, eu ia, eu fazia, ai o
povo chegava eu não sabia nem fazer, eu ia pra beira do rio, pra esses
lugares e fazia, mas mesmo assim contra a minha vontade. 173
A doença, foi descrita também pelo senhor Joel Sebastião, babalorixá, líder do
terreiro Ilê Axé Odé Cassulandê situado na cidade de Jacobina, como principal motivo
para a sua iniciação no candomblé.
Eu era garoto, tinha seis... seis anos, fiz santo, fui pro candomblé com
sete anos.[...] A minha mãe não era de santo na época, ela não tinha
ligação nenhuma. Me levar pra um terreiro foi problema de saúde. E
quando minha mãe andou vários setores de médicos, rezador, essas
coisas, ai uma rezadeira disse a ela: seu filho tem problema de orixá é
problema espiritual, mediúnico. Ai então elas me levaram pr’um
terreiro de candomblé, fizeram as primeiras obrigações de limpeza, de
limpeza de corpo; mas não fiquei nesse terreiro. Porque meu pai era
ferroviário e mudou da cidade e veio, e veio... Saiu de Propiá e veio
morar em Aracaju. Eu continuava garoto mas ai passado um ano e
pouco continuava os problema ai minha mãe já sabia que o caminho era
levar pra casa de orixá. Ai me levou pra casa dessa zeladora que hoje é
minha mãe de santo, e é um terreiro de Oxum, fica na rua Rio Grande
do Sul, 1521, Bairro Novo Paraíso, Aracaju, Sergipe. Nesse terreiro...
Nesse terreiro eu fiz santo: raspei, pintei, catulei, todos os rituais que
passa de iniciação. Mas meu pai era ferroviário e foi transferido para
Salvador. Eu vim garoto para Salvador com doze pra treze anos e como
era a distância muito grande, era menor não tinha situação financeira
pra tá pra lá e pra cá. Meu pai tinha uma irmã que já era envolvida com
o santo e nessa altura ela já era mãe de santo. Como eu já era do santo,
filho do orixá então passei pra casa da minha tia e tive todo o apoio da
minha zeladora lá em Aracaju. E fui crescendo na casa da minha tia, e
na minha chegada na vida adulta em Salvador e como tem o deká, os
cargos, entrega de cargos na maioridade. Pra o pessoal do santo se
tornar babalorixá, ialorixá, tem que passar por esse fundamento um
grande fundamento que é a entrega de cargo. Ai recebi com minha tia
que passou a ser a minha zeladora, já tinha zelado do meu santo já tinha
mais ou menos uns oito anos no orixá, e não sair mais da casa da minha
tia até os dias de hoje. 174
173
Maria da Conceição (Nina), entrevista concedida a autora 23/2/2011.
174
Joel Sebastião Xavier. Entrevista concedida a autora em 22/02/2011.
73
175
Idem.
176
BENISTE, José, op. Cit, p.143.
177
REIS, Marieta. Op. Cit, p. 77-78.
178
MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 68.
74
doenças. Isto porque, nas práticas terapêuticas tradicionais, o processo de cura, bem como
as causas das doenças seguem uma lógica multifatorial. 179 De acordo com Montero,
Quando a doença é "espiritual", o médico se torna incapaz de
diagnostica-la — já que sua tecnologia se torna impotente para
apreende-la em sua materialidade — e de qualificar o doente dentro da
esfera de sua competência, isto e, enquanto doente: a "doença
espiritual", ao subtrair-se a materialidade essencial de qualquer doença,
se torna algo distinto dela, supera a ordem do puramente fisiológico e
se torna indicador da presença de forças sobrenaturais cuja natureza,
origem e intenções cabem ao médium, e não ao médico, investigar.180
Senhor Amado Pereira, lavrador, líder umbandista do templo Sultão das Matas,
relatou uma série de sintomas referentes ao seu estado de desordem e a sua resistência em
aceitar os tratamentos oferecidos pelos agentes de cura veiculados as práticas afro-
brasileiras.
Eu moça, sufri muito pra chegar ai. Eu tinha coisa eu não queria
acreditar. Rolei pr’aqui, rolei pr’acolá. Tive muita oportunidade boa,
trabalhei n’uma fazenda ali uns dias e danei e sair, por causa já dessas
coisa. Andei em muitas casas, nunca teve uma para achar o caminho
certo. Ai cismei: não vou mais na casa de ninguém! Ai disse: vou em
Bom Jesus da Lapa. Rompi daqui p’ra lá n’um carro. Eu e um velho de
Cachoeira sentado de junto de mim, a Cachoeira de São Félix. Ai
chegou lá, cê sabe quando a pessoa tá desconcertado, não tem amor,
alegria p’ra nada. Eu fui na gruta de Bom Jesus, fiz minha devoção e
voltei p’ra cima do carro. Quando eu tô em cima do carro o velho
rateou. [...] O velho rateou, começou a chorar, e dizer, contando minha
vida todinha, e que eu tinha dito que não ia mais na casa de ninguém,
mas na dele eu ia. Eu disse, não vou! Mas ele contou as coisa tudo
certinho. Ai vim me embora, isso foi na quinta, na sexta nós viemos
embora de lá. No sábado eu tinha que ir lá na Monoel Novaes181 que eu
tinha um negócio [...]. No que eu vou chegando no canto do DERBA tá
o véio em pé. Pegou em meu braço pr’eu ir p’ra casa dele. Eu disse: não
vou! Não vou não! Já disse que eu não vou! Só vi até nessa hora. Fui
pra casa dele, ele me rezou, ai ordenou que pr’eu ir quatorze veis pr’ele
me rezar. Ai a natureza abriu e eu fui as quatorze vezes. [...] Ai, fui p’ra
casa dele, ele sempre dizendo, você tem que trabalhar, você tem que
fazer alguma coisa, e eu não aceitava. O véio morre, ai a vida
desmantelou outra vez. Ai um parente meu foi e disse, rapaz você vá ali
no Caén, vá no Caén que você melhora, que eu fui lá, estava assim e
melhorei. Ai eu fui lá, apulso, mas fui. Quando eu cheguei lá, era um
senhor de idade muito bom, trabalhava também na umbanda, do lado
bom. Ai contou, disse tudo. agora virou p’ra mim e disse, só fazia meu
trabalho se eu cumprisse o que era p’ra ser. Ai eu disse, então vamos
deixar como está, ai sair p’ra vim me embora. [...] Ai, depois vim p’ra
179
SANTOS, Denilson Lessa dos. NAS ENCRUZILHADAS DA CURA: Crenças, saberes e diferentes
práticas curativas Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado
(Mestrado em História). Salvador: UFBA, 2005.
180
MONTERO, Paula. op. Cit. p. 135.
181
Rua localizada no centro comercial de Jacobina.
75
182
Entrevista com Amado Pereira dos Santos, entrevista concedida a autora em 20/03/2012.
183
Idem.
76
através de visões, sonhos e manifestações dos seus guias espirituais. Conforme Oliveira
e Jorge,
A umbanda, com raras exceções, apresenta grandes exemplos de
linhagens que facilitam conhecer a origem de determinada linha de
pensamento religioso, seus sacerdotes, discípulos ou filhos de santo,
local do culto e período em que iniciaram a praticar a umbanda. [...].
Muitos terreiros umbandistas, ao contrário, surgem da vontade de
indivíduos que vivenciaram algum tipo de experiência religiosa
(católica e kardecista na maior parte das vezes) e que acreditam ser
médiuns umbandistas a partir de experiências particulares como a
mediunidade, o transe, sonhos ou vidências. A partir daí, buscam locais
para entender e lidar com a mediunidade ou, ainda, abrem seus próprios
terreiros, sem passar por um processo de iniciação. Este último caso não
é muito bem visto, pois, segundo os pressupostos da religião, para o
indivíduo alcançar o status de pai ou mãe de santo ele deve
primeiramente ter recebido os fundamentos de alguém e,
principalmente, tê-los vivenciado. 184
184
OLIVEIRA, Irene Dias de; JORGE, Érica Ferreira da Cunha. Espiritualidade Umbandista: recriando
espaços de inclusão. Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 29, p. 29-52, jan./mar. 2013. p.43-44.
185
Sobre a concepção de Dom ver: MAUSS, Marcel. Ensaios sobre a Dádiva – Forma e Razão nas
Sociedades Arcaicas. IN: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2015; BOURDIEU, Pierre.
Marginalia. Algumas Notas Adicionais Sobre o Dom. In: Mana vol.2 no.2 Rio de Janeiro,1996.
77
Desse modo, a aceitação desse dom por senhor Amado, foi a condição que seu pai
de santo lhe impôs para a realização dos trabalhos espirituais iniciais, que lhe
proporcionariam a cura, tendo em vista, que ele já haviam feito vários trabalhos, mas se
negava a pôr em prática o que seria fundamental para a sua cura – cumprir as atividades
relacionadas ao seu dom: “Ai, contou, disse tudo, agora virou p’ra mim e disse, só fazia
meu trabalho se eu cumprisse o que era p’ra ser.” Nesse sentido, Montero destacou,
O individuo pode ser considerado o causador da doença que o aflige
quando transgride as regras do jogo ritual desconhecendo-as ou
negligenciando seus deveres religiosos, ou quando se recusa a
desenvolver sua mediunidade e/ou a utiliza de maneira desvirtuada
(fazendo “trabalhos” contra terceiros). Em qualquer dessas
circunstancias o individuo, moralmente debilitado, torna-se vitima da
influência nefasta de toda uma gama de forças maléficas que o fazem
sofrer espiritual e fisicamente: “maus fluidos”, “quiumbas” (almas de
pessoas más que ainda não foram controladas pelo culto religioso =
exus pagãos, “obsessores” ou “encostos” são forças maléficas que
ficam vagando sem destino, no espaço, a procura de um corpo frágil e
desprotegido no qual possam infiltrar-se (ou encostar-se). Assim, os
indivíduos que se recusam ao fortalecimento espiritual, que o
desenvolvimento da mediunidade e a obediência aos deveres religiosos
significam, ficam expostos e vulneráveis as influência deletérias desses
seres inferiores e mal-intencionados.188
Assim, senhor Amado, bem como dona Nina e o babalorixá Joel, ao se iniciarem
nos cultos afro-brasileiros e ao exercerem o oficio de agentes de cura, puderam combater
os agentes causadores do adoecimento. A manutenção do estado de saúde destes agentes
entretanto, está diretamente relacionada com o cumprimento de suas obrigações
186
Ibidem. p.11.
187
Ibidem, p.9.
188
MONTERO, Paula. op. cit, p.142-143.
78
189
OLIVEIRA, Elda Rizzo de. Op, cit, p. 3.
79
Através das percepções das suas memórias, estes agentes da cura refazem as suas
lembranças a partir das representações de um passado envolto em suas experiências de
inserção nas práticas de cura. “Desse modo, lembrar não é reviver, mas refazer,
reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado.”191
Dona Marcelina Moura Pereira, 59 anos de idade, professora aposentada, nasceu
em Caatinga do Moura, distrito de Jacobina, é umbandista, mas ao longo da sua infância
teve uma formação católica. A partir da reconstrução do seu passado, dona Marcelina
narrou os momentos da sua infância, aos quais ela acredita sinalizarem para o seu dom da
cura, expresso através da mediunidade.
Eu me sentia mal, eu adoecia, eu via vultos, eu via imagens, via... coisas
assim... E minha mãe e meu pai não sabiam interpretar. Como a gente
era muito religiosa, eu estudava em Escola Paroquial, o padre
hospedava lá na minha casa e a gente tinha uma ligação muito forte com
a igreja. Então meus pais não aceitava aquilo que eu dizia. Ficava
parecendo que eu era anormal. Mas um anormal pra loucura. Ai padre
Alfredo ainda me deu dois novos testamentos pra mim ler, eu lia muito.
Meu pai ensinou sempre a gente a rezar, a gente rezava muito, [...] Fazia
primeira comunhão, frequentava a igreja todos os dias, [...] Novenas,
tudo, tudo, tudo... Uma formação totalmente católica.[...] Ai depois de
doze anos continuou, treze continuou, catorze anos. Ai minha mãe...
Tinha um rezador lá em Caatinga do Moura, que chama Amâncio, e
todo mundo ia para ele benzer, ele só faz benzer, ele não tem terreiro
não tem nada. Ai ele benzeu. Quando eu chegava lá que ele me benzia,
ai ele falava para minha mãe assim. Oh essa menina, quando ela crescer
mais, ela vai... ser... é médium. Só que ele não falava a palavra médium.
Ela vai receber, vai incorporar, ela tem o povo dela. Ai eu perguntava
190
POLLAK, Michael. Memória, Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5,
n. 10, 1989, p. 5.
191
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de Velho. 11. ed. São Paulo, SP: Companhia das
Letras, 2004.
80
pra ele, que povo? Ai ele dizia, seu povo dos seus parentes, da sua avó,
bisavó, tataravó...192
192
Marcelina Moura Pereira, entrevista concedida a autora em 21/03/2012.
193
VAINI, Solange Salussolia. O Sagrado ganha Espaço:Um estudo de caso sobre a Umbanda. São
Paulo: PUC- SP, 2008. p.149.
194
Distrito do município de Jacobina.
81
que for, ou na hora que você incorporar, você veste esta roupa. Ai eu
disse: ah, tá certo. Eu vou rezar quem? Eu não sei rezar, eu vou rezar o
que? [...] Ela: ah, você reza um pai nosso, você sabe rezar as reza da
igreja, qualquer oração. Simplesmente coloca a mão, onde a pessoa
disser que tá com... doendo. Ai eu: tá bom! Ai fui pra casa, eu oxe! Vou
dobrar esse guarda pó, guardar bem guardadinho, isso aqui só foi hoje
mesmo, não vou estuciar nada disso. Ai rapidinho, ninguém conversou,
ninguém espalhou, chegou uma mulher lá dizendo pra minha mãe que
tava sentindo mal, sentindo mal e que não tava se guentando, uma coisa
ruim, ai pra vim aqui pra Jacobina. Ai eu peguei, me lembrei do que ela
tinha dito. Não primeiro eu incorporei, ai minha mãe pegou esse guarda
pó e me vestiu. Ai quando eu vesti, que já estava incorporada, ai passou
o chá, o que era, o que não era, e tal, e tal, e tal, e foram embora.195
195
Marcelina Moura Pereira, entrevista concedida a autora em 21/03/2012.
82
ser considerado louco, o que o levou a buscar auxílio em um templo umbandista. A busca
de tratamento nas religiões afro-brasileiras ocasionou um rompimento entre senhor
Arcelino e a sua família por esta não aceitar a sua escolha.
Comecei, eu enlouqueci. Fiquei perturbado, depois, fiquei assim
andando do nada, depois vim pra casa e comecei a manifestar, peguei,
manifestei espíritos fazendo cura das pessoas. [...] Ninguém entendia
não. Ele pegava assim, o pessoal ficava tudo com medo, o pessoal me
abandonaram. Procurai uma casa lá no Ribeirão196 e o pessoal me
curando lá, e eu casei justamente com a filha dela. Esse pessoal que me
curaram me levaram pra Alagoinhas e lá me trataram. 197
A loucura é uma efemeridade comum entre os que buscam auxílio nas terapêuticas
mágico-religiosas afro-brasileiras. Roger Bastide afirmou que o transe, muitas vezes
confundido com problemas psíquicos pode correr nas seguintes situações.
Indivíduos não iniciados que escutam o chamado do seu orixá são
possuídos por santos brutos, e a finalidade da iniciação será então
libertá-los dessa violência, por meio do batismo da divindade. Ou ainda,
trata-se da possessão por um Exu, que é violenta, mas justamente os
africanos não a confundem com o verdadeiro êxtase, dando-lhe, como
já mostramos denominação diferente: carrega-se Exu. Finalmente, há
o caso de certas possessões verdadeiras, como, por exemplo, a de
Ogum; mas então a crise não é fenômeno patológico; segue o modelo
místico, pois Ogum é uma divindade impetuosa. Assim sendo, é a
sociedade que impões a seus “filhos”, essas manifestações terríveis
exteriormente amedrontadoras.198
196
Localidade rural do município de Jacobina.
197
Arcelino Francisco dos Santos, entrevista concedida a autora em 9/4/2012.
198
BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia da Letras, 2001. p. 189.
83
de pai católico e mãe evangélica, desde os 16 trabalha como benzedeira. Ao relatar sobre
suas atividades enquanto rezadeira, ela narrou como se deu as suas primeiras experiências
mediúnicas. Estas, lhe causou enfermidades físicas como desmaios e mudez e só
cessaram, após a realização de um trabalho por um curador, que a iniciou como agente de
cura.
O primeiro contato eu tive com 16 anos de idade. Eu sempre tenho
aquelas visões assim de noite, ai eu desmaiava. Quando eu desmaiava,
minha... meus parente, tudo ia em volta de mim chorando. Ai eu já
começava aquelas coisa que eu nem sabia o que era. Ai quando eu me...
aquilo passava, todo mundo tava chorando dentro de casa. [...] Mas era
a mediunidade que tava falando as coisas. Mandava fazer os remédios,
mandava fazer isso aquilo outra... ai comecei assim. Como não tinha
ninguém, não tinha assim... curador, ai chegou um rezador, ai me
levaram na casa do rezador. Ai o rezador disse, olha ela tem que fazer
um trabalho porque ai é a mediunidade, que chama hoje em dia,
antigamente falava os caboclos né, (risos).Que, eles querem trabalhar.
Isso já era ele, os espíritos [...]. Ai esse curador mandou fazer um
trabalho lá, rezou, ai comecei. Porque tinha que trabalhar para
desenvolver, tinha que fazer aquelas coisas pra desenvolver. Foi no
terreiro de João Curaçá. Morreu há pouco tempo. Bom, bom, bom!
Agradeço a deus e a ele que me acudiu muito. Eu cansei de sair da
minha casa, chegar na casa de João Curaçá, eu ia sem falar nada. Sem
voz, não respondia, não conversava nada. Eles toma as cordas vocais
que você não conversa nada. Ai quando chegava lá que eles me rezava,
me benzia ai melhorava [...] Ele fez uma trabalho de circo, de reviração.
Porque tem uns bons e outros maus, que ficam perturbando, ne isso? O
negativo não deixa os que tá querendo trabalhar, fica mentindo dizendo
que é caboclo bom e não era, era um obsessor. O obsessor é assim, você
tá na casa do pai de santo, você reza, ele lhe reza, você faz tudo melhora.
Quando você chega em casa, ele já tá na porta lhe esperando para torna
pegar. Ai você torna sentir mal. Eu sofri, mia filha!199
199
Maria Jesus da Silva (Mariquinha), entrevista concedida a autora em 17/08/2013.
84
cobrava nada, [...] era como diz, de graça né. Ele também fazia caridade, e disse que eu
também tinha que fazer caridade.”200 A gratuidade dos serviços oferecidos por estes
agentes está diretamente relacionada às suas concepções no que tange o ofício por eles
exercido, o qual, a cura se dá por intervenção divina e não por ele, logo não deve ser
cobrada.201
Se a benzedeira colocasse um preço no seu trabalho, ela o estaria
desvalorizando, pois ele é algo da ordem do sagrado, que não pode ser
medido na ordem do material. Agindo assim, ela estaria misturando
fenômenos que correspondem a duas ordens distintas – o sagrado e o
profano –, e estaria, confundindo ou contradizendo classificações
ideais.202
Do mesmo modo, dona Maria Aurea, conhecida como Maninha, nascida em 1945
em Mucambo – Curralinho- Jacobina, católica, rezadeira desde os doze anos, também
ressaltou a importância da gratuidade da benzeção.
Nunca cobrei nada de ninguém não. Rezo todo mundo não cobro nada
de ninguém, só falo o que, traga uma vela pra não rezar no escuro. Ai
as pessoas que gosta, se sente bem: olha trouxe aqui o vidro de seiva,
que eu uso muito seiva pro pessoal; olha vou deixar aqui dinheiro pra
senhora comprar flores pra botar no santos, tudo bem. Mas pra eu dizer
assim, só rezo por tanto, não! Cobro nada pra rezar e graças a deus até
hoje nunca me faltou nada.203
200
Idem.
201
QUINTANA, Alberto, op. cit. p.89.
202
Ibidem, p. 89.
203
Maria Aurea da Silva (Maninha), entrevista concedida a autora em 07/04/2015.
85
Do mesmo modo, dona Senhorinha Queiroz, conhecida como dona Dedê, nascida
em Fazenda Cajá – Mairi- Ba, no ano de 1938, lavradora aposentada, católica, dona Dedê
também não benze sob transe espiritual. Dentre todos os entrevistados, ela foi a única que
atribui o seu ofício de rezadeira, exclusivamente, aos ensinamentos passados por sua avó
e não a uma mediunidade pré-existente.
Ai a minha avó rezava criança, mas só vendo! Dia de quarta, dia de
sexta, as crianças, as mães pegava as crianças chegava pra Dindinha
rezar. Ai ela chegava pra mim: Dedê tu quer aprender minha filha? Eu
disse, se Dindinha quiser me ensinar eu quero, ai ela me ensinou. Eu
aprendi com a idade de doze anos. Ai enquanto eu era assim jovem,
204
Maria Aurea da Silva (Maninha), entrevista concedida a autora em 07/04/2015.
205
Idem.
86
No que concerne às práticas de cura exercida por dona Dedê, estas têm como
principal clientela as crianças. No depoimento supracitado, esta preferência fica bastante
evidente. Do mesmo modo, dona Dalva dos Anjos, nascida em 1932 em Gameleira do
Ventura – Morro do Chapéu- Ba, costureira, católica, também iniciou as atividades de
benzedeira rezando, inicialmente as crianças.
Eu comecei novinha, eu não sei lhe dizer como foi que comecei. Rezava
criança, depois o povo foi descobrindo, ai foi chegando pessoas adultas
para eu rezar [...] Comecei novinha, foi. Ai fui crescendo e fui
continuando. Ás vezes eu corria me escondia por causa do pessoal. Eu
tinha vergonha! Mas não era uma coisa porque eu queria não, era, era
uma força, um dom que deus me deu. [...] Adoecia uma criança, e eu
chegava lá e dizia: vou rezar esse menininho, ai rezava e ficava sã. 207
Dona Dalva atribuiu o seu ofício de cura a um dom divino, ou um missão que vai
muito além da sua vontade, querer exerce-lo ou não. Ao contrário de dona Dedê, dona
Dalva afirma benzer com o auxílio dos seus guias, que lhe dizem como proceder durante
a benzeção, lhes indicando inclusive a oração a ser feita.
Ai a oração eu não sei lhe explicar não, só se você ver uma hora eu
rezando uma pessoa, mas o contrário eu não posso lhe explicar. [...] Eu
tenho meus guias, desde pequenininha, ainda pequena, desde novinha.
Eu trabalho do jeito que eu tô aqui, você não sabe se é eu ou se é meus
guias. [...] Eles falam pra mim né... Eu comecei novinha como eu tava
206
Senhorinha de Oliveira Queiroz (Dedê), entrevista concedida a autora em 13/08/2014.
207
Dalva dos Anjos Silva, entrevista concedida a autora em 3/10/2013.
87
Assim como na narrativas dos demais agentes, com a exceção de dona Dedê, dona
Dalva, afirma recebe auxilio de forças sobrenaturais, propiciado pelo desenvolvimento
da mediunidade, para realizar a benzedura. Diante disto, neste processo de inserção no
universo das curas mágico-religiosas não é possível dissociar o dom, compreendido como
o chamado dos seus guias; do aprendizado, que se dar a partir do ensinamento de um
agente mais velho. Como pôde-se verificar a partir dos depoentes, há “a combinação
dessas disposições, uma supondo a outra durante toda a longa caminhada do
desenvolvimento religioso.”209 Para Renata Bergo, o chamado do santo, é o começo de
um processo e não o seu fim. Ainda que tenham o auxílio dos guias, os agentes também
passam por um processo de aprendizagem, ao longo do desenvolvimento das suas práticas
terapêutico-religiosas. Destarte, os agentes de cura que não trabalham com o auxílio de
guias espirituais aprimoram o seu dom a partir do ensinamento dos agentes mis velhos.
Ao estudar o dom e a iniciação nas religiões afro-brasileiras Roger Sansi defende
que dom e iniciação (aprendizado) são imprescindíveis um ao outro. Para o autor,
Não podemos simplesmente dizer que a iniciação se impõe ao dom, mas
o facto é que eles estão mutuamente implicados. O “dom” pode ser tão
imprescindível nas religiões afro-brasileiras como a iniciação. O
conhecimento que a iniciação perde por esquecimento, desistência e
conflitos interpessoais é substituído pela inspiração dos médiuns, que
estabelecem através do seu “dom” um contacto directo com os espíritos.
Nesses termos, o dom e a iniciação geram uma dialéctica histórica da
produção de conhecimento, no qual novos espíritos, objectos e valores
são incorporados.210
208
Idem.
209
BERGO, Renata Silva. Quando o Santo Chama: O Terreiro de Umbanda como contexto de
aprendizagem na prática. Belo Horizonte: Faculdade de Educação (Tese de doutorado), UFMG, 2011. p.
34.
210
SANSI, Roger. “Fazer o santo”: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras.
Análise Social, vol. XLIV (1.º), 2009. p.142.
88
211
CONCEIÇÃO, Alaíse dos Santos. “O Santo é quem nos vale, rapaz! Quem quiser acreditar,
acredita!”: Práticas culturais e religiosas no âmbito das benzeções. Governador Mangabeira – Recôncavo
Sul da Bahia (1950-1970). Salvador: Faculdade de Filosofia (dissertação de mestrado) ,UFBA, 2011. p. 74.
212
OLIVEIRA, Elda Rizzo de. op. cit, p. 137.
89
213
Senhorinha de Oliveira Queiroz (Dedê), entrevista concedida a autora em 13/08/2014.
214
Idem.
215
Arcelino Francisco dos Santos, entrevista concedida a autora em 9/04/2012.
90
216
Idem.
217
Idem.
91
218
Marcelina Moura Pereira, entrevista concedida a autora em 21/03/2012.
219
SILVA, Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Selo
Negro, 2005.p. 19.
220
Reginaldo (2005) aponta que muitos escravos, principalmente os oriundos do centro-sul africanos já
chegavam ao Brasil convertidos à religião católica.
92
religiosa destes grupos, ora fazia vistas grossas às suas danças, cânticos
e rezas realizados em domingos e feriados santificados nos terreiros das
fazendas, em frete a senzalas. Nessas ocasiões os padres preferiam
acreditar na justificativa dos negros que diziam ser os “batuques”
homenagens aos santos católicos feitas em sua língua natal e com as
danças da terra. Nesse sentido, os batuques eram tolerados porque
vistos como um inofensivo “folclore.” 221
221
SILVA. Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Selo
Negro, 2005. p.34.
222
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
93
são, em sua maioria, doadas por seus consulentes, como forma de agradecimento por uma
graça alcançada através das atividades mágico-religiosas exercida ela.
Além das imagens sacras, existia uma série de objetos como búzios, copos com
água, terço, pedras utensílios de argila e de louça, velas e plantas como rosas, arruda.
Estes elementos, em especiais os naturais, representam os orixás, compreendidos como a
força da natureza.223 Estes aspectos podem ser observados a seguir, nas imagens dos
altares de dona Marcelina.
223
ARAÚJO, Sheilla Sousa. A arquitetura iconográfica dos altares dos terreiros de umbanda em
Caucaia e Fortaleza no Ceará : Uma prática educadora multicultural. Dissertação (mestrado) –
UFC/Programa de Pós-Graduação em Educação. Fortaleza- CE, 2015. p. 45.
94
Imagens Santa Barbara, Nossa Senhora Aparecida, Maria Santíssima e São Jorge. Fotografia: Emanuela
Bethânia, 2012
Imagens de Nossa Senhora de Aparecida, Santa Barbara e de Ciganas dispostas um móvel localizado na
sala. Fotografia: Emanuela Bethânia, 2015.
96
224
SILVA, Vagner Gonçalves da. Arte Religiosa Afro-Brasileira: as múltiplas estéticas da devoção
brasileira. DEBATES DO NER, PORTO ALEGRE, ANO 9, N. 13, JAN./JUN. 2008. p.105.
225
Ibidem. p.106.
97
226
Ibidem. p. 104.
227
ARAÚJO, Sheilla Sousa, Op. Cit. p. 45.
228
Maria Aurea da Silva (Maninha), entrevista concedida a autora em 7/01/2015.
229
Idem.
98
o mal eles faz, mas se... Ai, quem é que é ruim é eles? Não, quem é ruim
é seu coração que pediu pra fazer isso, fazer aquilo com os outros. Eu
não peço pra fazer o mal a ninguém, eu só peço pra fazer o bem. Ai eu
faço, ôh meus filhos ajude fulano que tá precisando disso, e disso, e
disso. E ajuda!230
230
Idem.
99
Figura 11- Imagens dispostas sobre a estante da sala de dona Maria Aurea da Silva.
Imagens de Martin Pescador, Marujo, Iansã, Ogum Edé e Iemanjá. Fotografia: Emanuela Bethânia, 2015.
100
Altar principal, diante do qual são realizadas as benzeções. Este é composto por uma infinidade de imagens. Do lado esquerdo pode-se verificar as imagens de Pretos e Pretas
Velhas, exus e pombas giras. Na parte central e no lado direito do altar concentram-se as imagens de santos católicos. Fotografia: Emanuela Bethânia, 2015.
101
Nicho principal do altar de dona Maninha composto por imagens de santos católicos, bem como o nicho à
direita. A foto foi tirada no dia do caruru de São Cosme e São Damião, durante a qual o mesmo
encontrava-se aberto, com as luzes e com velas acesas, e oferendas do caruru sobre ele. Fotografia:
Emanuela Bethânia, 2016.
102
Nicho localizado no lado esquerdo do altar principal de dona Maninha, composto de imagens de
divindades pertencentes ao panteão afro-brasileiros. Entre os quais observa-se pretos e pretas velhas,
caboclos, exus e encantados, Sereia Iara e a orixá Iemanjá. A foto foi tirada no dia do caruru de São
Cosme e São Damião, durante a qual o mesmo encontrava-se aberto, com as luzes e com velas acesas e
com oferendas do caruru sobre ele. Fotografia: Emanuela Bethânia, 2016.
103
231
Maria Aurea da Silva (Maninha), entrevista concedida a autora em 7/01/2016.
232
Maria Jesus da Silva (Mariquinha), entrevista concedida a autora em 17/08/2013.
233
Idem.
104
Quando questionada sobre a diferença e sobre a relação dos seus guias da umbanda
com os do Centro Espírita, dona Mariquinha afirmou que os guias da umbanda,
Não baixavam lá não. Era outras pessoas, lá é média. Ai às vezes o chefe
mandava eu abençoar, terminando a reunião, todo mundo, agente
ficava, ai eu ficava em pé sozinha na porta, assim e abençoa o pessoal.
Que minha mediunidade fala... Porque no Centro é médium e no
curador é... mas é a mesma coisa. É tudo espiritismo. (risos) [...] É...
muito bem, porque a parte de minha mediunidade no espiritismo, as
pessoas que já foram, já morreram, e cá mesmo é os caboclo, é outra
linha, de outras correntes né, das águas, Iemanjá das Águas.234
234
Idem.
235
RODRIGUES, Jeyson Messias. Identidades Compostas por Múltiplas Pertenças Religiosas: um
estudo de caso na Igreja Batista do Pinheiro. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias, 2012. p.62.
105
Dona Dalva, rezadeira católica, afirmou que benze com o auxílio dos seus guias e
que durante a benzeção pede a interseção dos seus santos de devoção; “peço a deus, ao
Pai Eterno, o Divino Espirito Santo, Imaculada Conceição, Deus Menino de Jesus...” 237.
Apesar de relatar que não sofre preconceito no ambiente religioso católico em decorrência
das suas vivências mágico-religiosas, dona Dalva, manifestou ter vontade de deixar de
benzer por ser identificada como feiticeira.
Eu disse o padre! Quando eu fui pra Igreja da Irmandade do Coração de
Jesus, eu disse. Ele disse que não tinha nada a ver uma coisa com a
outra, que ai foi um dom que deus me deu, que ninguém podia tirar! [...]
Eu tenho às vezes vontade de deixar porque isso é uma coisa, não é
porque a gente quer, é uma coisa que deus passou pra mim, foi deus que
me deu, mas existe perseguição no meio, o povo persegue a gente:
feiticeiro, feiticeira. [...] Às veis chama de feiticeiro, que é uma coisa
que a gente não é. Eu acho isso perseguição é um despeito com agente.
Só que eu não ligo num sabe! Eu não me importo não.238
Para dona Dalva, ser identificada como feiticeira lhe atribui caráter depreciativo,
assim como o termo curandeiro na concepção de dona Marcelina e senhor Arcelino. Paula
Montero, ao diferenciar estas três denominações, acaba cometendo um grande equívoco,
na medica em que remete a feitiçaria às tradições africanas, logo, orientadas para as
práticas maléficas. Segundo a autora, “O curandeiro e o benzedor se distinguem do
feiticeiro, marcado pela tradição negra, por orientarem sua prática para o "Bem",
enquanto este último detém o domínio das forças maléficas.”239
236
HALL, Stuart. A Identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. p. 13-14.
237
Dalva dos Anjos Silva, entrevista concedida a autora em 3/10/2013.
238
Idem.
239
MONTERO, Paula. Op, cit. p. 45.
106
A partir do que foi exposto por Santos, pode-se concluir que, atribuir as práticas
tidas como feitiçaria às tradições africanas é um enorme equívoco, na medida em que
estas são representações sociais construídas na Europa a partir do pensamento cristão. No
entanto, não pode-se ignorar que este termo foi usualmente empregado às práticas
religiosas afro-brasileiras com o intuito de depreciá-las e atribuí-las um caráter
demoníaco e maléfico.
Apesar de dona Dalva não ter revelado quais eram os seus guias, e nem permitido
o aceso ao seu altar, é possível que ela, assim como as outras benzedeiras que participaram
desta pesquisa, mesmo assumindo a identidade religiosa católica, em suas vivências
religiosas e terapêuticas mantivesse algum dialogo com outras religiosidades,
especialmente com as religiões mediúnicas, tendo em vista, a presença de guias espirituais
durante as benzeções. Sabe-se, que através dessas múltiplas influências culturais, as
240
SANTOS, Edmar Ferreira, Op. cit. p.74.
241
Ibidem, p. 75.
107
242
BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paula: Companhia das Letras, 2001 p. 125.
243
PRANDI, Reginaldo. Axé, Corpo e Almas: Concepção de Saúde e Equilíbrio Segundo Candomblé.
In: Paulo BLOISE. (org.). Saúde integral: a medicina do corpo, da mente e o papel da espiritualidade.
São Paulo, Editora Senac, 2011, v. 1, p.1-2.
244
REIS, Marieta. Do moço do anel às coisas do azeite: um estudo sobre as práticas terapêuticas no
candomblé. Dissertação de Mestrado (Pós-Graduação em Saúde Coletiva), Salvador: UFBA, 2012. p. 87.
109
245
REIS, Marieta, op. cit. p. 87.
246
Maria da Conceição (Nina), entrevista concedida a autora em 19/08/2015.
110
de uma ensaba com outra ai não dá certo. Invés de sua vida ir pra frente,
sua vida vai pra trás. [...] Porque não tem... Às vezes você pega uma
ensaba, folha, coloca e faz uma chá e você não se dá bem com aquele
chá. Mesmo você não sendo de candomblé. Você dá vontade de tomar
um chá que você vê que tem pessoas que toma... vou te citar uma
exemplo, chá de cidreira e dorme e tem pessoas que toma e não
dorme. 247
247
Idem.
248
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro: Editora 34.p.
38.
249
Ibidem. p. 15.
250
GOMES, Ângela Maria da Silva. Rotas e Diálogos de Saberes da Etnobotânica Transatlântica
Negro-Africana: Terreiros, Quilombos, Quintais da Grande BH. Tese (Doutorado em Geografia) -UFMG.
Belo Horizonte,2009. p.32.
111
251
Ibidem. p. 91.
252
CARNAY, Judith. Navegando Contra A Corrente: O Papel dos Escravos e da flora africana na botânica
do período colonial. Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, São Paulo, 25-47, 1999/2000/2001.
p. 27.
253
Ibidem. p. 27-28.
254
VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: O Uso das Plantas na Sociedade Iorubá. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p.28.
255
Ibidem. p. 24.
256
Ibidem. p.24.
112
O emprego da palavra durante os rituais de cura, pôde ser observado nas práticas
dos mais diversos agentes no contexto afro-brasileiro em Jacobina. Seja no candomblé,
através de cantos entoados para os agentes mágicos, seja entre os curandeiros/curandeiras,
rezadeiras e umbandistas. Assim como no candomblé, na umbanda ou no pigi, as
“encantações” através das palavras são usadas nos cânticos e nas orações aos agentes
mágicos.
O diagnóstico das doenças na umbanda e no pigi, é feito pelos guias dos agentes
de cura – caboclos, encantados, exus, ciganas e pretos velhos - que são chamados à
incorporar nos agentes de cura, através de orações ou dos cânticos específicos de cada
agente mágico. Por meio do transe dos agentes de cura, os seus guias realizam o
diagnóstico da enfermidade e orientam os consulentes em relação ao tratamento a ser
adotado.
Senhor Amado, líder umbandista do terreiro Sultão das Matas salientou ser
imprescindível a presença dos seus guias através do seu transe na realização dos trabalhos
em seu terreiro. “Ah eu só faço trabalho com eles. Na hora eu tô lá fora, é dia de trabalho,
[...] Ai eles já me pegam, ai eu já começo a fazer as coisas, e não vejo nada.”257
Os rituais de cura, são realizados na maioria das vezes, no espaço do terreiro. A
depender do problema apresentado pelo consulente, podem ser feitos em várias etapas.
Estas incluem, primeiro uma consulta, onde são indicados banhos de limpeza com ervas,
geralmente realizado na casa do consulente por ele mesmo. Em uma segunda consulta é
realizado o trabalho – “Primeiro eu paço os banhos. Sem os banhos eu não faço trabalho
nenhum, eu paço uns banhos. É. Ai toma os banhos, no derradeiro banho no outro dia
vem aqui ver se já terminou. Ai eles já vai ordenar o trabalho, orientar pra fazer .”258
Os banhos são feitos com as ervas indicadas pelos guias do argente de cura e têm
a função de limpar o corpo físico e espiritual de sobrecargas causadoras pelo adoecimento.
De modo geral, a indicação das ervas pelo agente mágico, leva em consideração, o orixá
de cabeça do mesmo. Em decorrência disso, nota-se a observância dos agentes de cura
quanto a outo-medicação e personalização das consultas espirituais realizadas por eles.
257
Entrevista com Amado Pereira dos Santos, entrevista concedida a autora em 20/03/2012.
258
Entrevista com Amado Pereira dos Santos, entrevista concedida a autoras em 15/10/2015.
113
259
CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. As plantas medicinais e o sagrado, considerando seu
papel na eficácia das terapias mágico-religiosas. Revista Nures | Ano X | Número 26 | janeiro-abril de
2014. p. 10.
260
CAMARGO, op. Cit, p 10.
261
GOMES, Ângela Maria da Silva. Op. Cit, p. 137.
262
Entrevista com Amado Pereira dos Santos, entrevista concedida a autoras em 15/10/2015.
114
263
GOMES, Op. Cit, p. 100.
264
GOMES, Op. Cit, p. 122.
265
Entrevista com Maria Áurea, entrevista concedida a autoras em 07/01/2015.
115
O copo com água usado junto com as plantas, desempenha também a função de
potencializar descarrego do corpo do consulente e evitar a sobrecarga negativa para o
corpo do agente de cura. “Às vezes quando a pessoa tá muito pesada eu boto um copo
com água, ai rezo depois eu jogo fora. Pra não ficar na gente que reza a energia negativa.
Às vezes eu boto no chão, na frete da pessoa, outra hora boto no altar.”268
266
Entrevista com Ana Maria da Silva, entrevista concedida a autora em 4/8/2015.
267
Entrevista com dona Dalva dos Anjos , entrevista concedida a autora em 13/10/2013.
268
Entrevista com Maria Áurea, entrevista concedida a autoras em 07/01/2016.
116
269
SOUZA, Op. Cit.
270
SOARES, Cecília Conceição Moreira. Encontros, desencontros e (re) encontros da identidade
religiosa de matriz africana: a história de Cecilia do Bonocô Onã Sabagi. Tese (Doutorado em
Antropologia). Recife: UFPE, 2009.
271
SOARES, Cecília, Op. Cit.
272
THEORONHO, Andrea Carla Rodrigues. Entre Ramos de Poder: rezadeiras e práticas mágicas na
zona rural de Areia. Dissertação (Mestrado em História) UFCG. Campina Grande- PB, 2010. p. 34-35.
117
273
VERGER, Op. Cit, p. 20.
274
Ibidem. p.20.
275
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª Edição – HUCITEC. 2006. p. 96.
276
BAKHTIN, Op. Cit.. p.115.
118
277
Ibidem, p.115.
278
Entrevista com Maria Aurea (Maninha), concedida a autora em 07/01/2015.
119
279
MONTERO, Paula, Op. Cit, p. 61.
280
MONTERO, Paula, Op. Cit, p. 61.
281
Ibidem. p. 61.
120
identificava um problema de ordem espiritual, que não tinha a capacidade de curar, ela
orientava o consulente a procurar os curandeiros/curandeiras.
Sobre o ofício do curandeiro, a benzedeira Maninha faz o seguinte comentário.
Verdade deve ser dita uma missão dessa pra pessoa assumir [....] E a
pessoa ele sofre muito também é pessoas carregada que chega. Chega
muita gente com força espiritual negativa e pra pessoa retirar, nem todo
mundo acredita não tem força pra tirar e depois fica um baleio de gato
daqueles. Não é como aqui que neguinho chega cai ali: C’ê caiu por
quê? Caiu na minha casa? Levanta! Aqui mesmo não, que eu não quero
este balaio de gato! (Risos). [...] É mas... Maninha eu tava bom vim cair
aqui em tua casa. Eu: Problema é seu! C’ê trouxe lá da rua, de sua casa
veio cair aqui porque não pode ficar aqui! Que nesta casa o que é ruim
não fica, o que é ruim tem que sair daqui, pra porta da rua. Vai embora!
(risos). 282
282
Entrevista com Maria Aurea (Maninha), concedida a autora em 07/01/2015.
283
Idem.
121
doenças tipicamente das benzedeiras, que são tratadas com a benzeção, banhos e remédios
feitos por elas em suas residências. Entre as doenças mais comuns, destaca-se o “mal
olhado” também conhecido como “quebranto” ou “morfina”.
A benzedeira Dedê, que benze especialmente crianças, descreve como sintomas
de olhado, vômito, falta de apetite e em caso de bebês, a recusa em ser amentado. A causa
do olhado, segundo ela, vem de uma admiração de terceiros - “oh mas deus benza, com
ele tá gordo!”; “ah, mas ele mama bem!”284. Para ela, mau-olhado não é colocado no
outro propositadamente, ela o descreve da seguinte forma.
“É o olhar da pessoa. É a pessoa que tem assim... com um anjo forte,
fraco. [...] Admira, outras vezes assim. Eu queria ter, num tem; queria
poder fazer isso, não posso; e às veis através daquilo, aquele jeito
daquela pessoa, a pessoa se sente mal.”285
O rito da benzeção, tal qual o estudado aqui, era composto, de modo geral por uma
Jaculatória, “orações curtas, simplificadas, reduzidas, fervorosas e suplicantes”289, em
que mesclam-se às orações consagradas pelo catolicismo como Pai-Nosso e da Ave-
284
Entrevista com Senhorinha de Oliveira Queiroz (Dedê), concedida a autora em 13/08/2014.
285
Entrevista com Senhorinha de Oliveira Queiroz (Dedê), concedida a autora em 13/08/2014.
286
QUINTANA, Op. Cit, p. 121.
287
SOUZA, Op. Cit, p. 239.
288
SOUZA, Op. Cit, p. 239.
289
OLIVEIRAS, Elda Rizzo. O que é benzeção. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 59.
122
Maria. 290 Nessas Jaculatórias, geralmente fala-se uma série de males que devem ser
combatidos pela benzeção, podendo também existir uma reza para cada enfermidade.
Além disso, estas jaculatórias são oferecidas aos santos de devoção da benzedeira. 291
Oh meu Senhor Ogum, meu Senhor São Jorge, meu Senhor São
Sebastião, minha Nossa Senhora Aparecida do Norte, minha Nossa
Senhora da Conceição, eu te chamo, eu peço pelo amor de Deus, eu
peço pelo amor de Deus, com a minha fé em Deus, meu coração pra
Deus. Pai nosso que está no céu, santificado seja o vosso nome, venha
a nós a vosso reino, seja feira a tua vontade, assim na terra como no céu.
O pão nosso de cada dia nos daí hoje, perdoai a nossas ofensas, assim
como nós perdoamos aqueles tenham te ofendido, não te deixo tu caí
em tentação mas te livre do mal. Ave Maria, Ave Maria cheia de graça,
o senhor é convosco, bendita as suas vozes entre as mulheres, bendito
é o fruto do vosso ventre Jesus. Santa Maria mãe de Deus rogai por nós
pecadores, agora e na hora da tua morte, amém. Pai Nosso pequenino,
tem a chave do paraíso, que Deus te leve um bom caminho, Nosso
Senhor teu padrinho, Nossa Senhora tua madrinha, quem te fez a cruz
na testa pro inimigo não te atentar, nem de dia, nem de noite, pino do
meio dia, nem na hora de tu deitar, nem na hora de tua morte, amém.
Com as sete palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, creia sempre no
nosso Senhor Jesus Cristo, derramou o vosso manto sagrado no teu
corpo quer te livrar de toda perseguição mal. Com Deus tu se deita, com
Deus tu se alevanta, com a graça de Deus e do Divino Espirito Santo,
amém. 292
A oração utilizada por Ana Maria durante a benzeção, inicia-se com a invocação
a vários santos católicos, dos quais ela é devota, e a Ogum seu orixá de frente e primeiro
a ser aclamado. Depois, ela reza uma jaculatória seguida do Pai-Nosso, Ave-Maria, e Pai
Nosso Pequenino, oração disseminada no catolicismo devocional. Por fim, ela encerra a
benzeção com a jaculatória - “Com Deus tu se deita, com Deus tu se alevanta” – bastante
comum entre as jaculatórias utilizadas nas benzeções e que ao longo de gerações sofreram
algumas transformações tanto perdendo quanto ganhando novos elementos a exemplo da
variante, “Com dois de botaram, com três te tiro”.293
Destaca-se, que as benzedeiras que participaram desta pesquisa, com a exceção de
Dona Dedê e dona Ana Maria, afirmaram, não recordarem da reza que utilizavam para
benzer, e que estas eram ditas espontaneamente durante o ritual da benzeção. Isso pode
ser explicado, pelo fato de que boa parte delas, entravam em traze no momento da
benzeção, logo, a benção era conduzida por seus guias, o que poderia dificultar a
290
Ibidem, p. 59.
291
Ibidem, p. 59.
292
Entrevista com Ana Maria da Silva, Concedida a autora em 4/08/2015.
293
Esta jaculatória foi observada em campo no decorrer da pesquisa.
123
lembrança das mesmas após ritual. Por outro lado, a não lembrança da reza, pode
representar uma forma de controle em relação ao simbólico. O poder simbólico de quem
possue, se define numa dada relação entre os que exercem o poder e os que lhes são
sujeitos, na estrutura do campo onde se produz e se reproduz determinada crença. 294 Os
agentes de cura, no campo mágico-religioso, constituem-se enquanto especialistas
“socialmente reconhecidos, como os detentores exclusivos da competência necessária à
produção e reprodução de um ‘corpus’ deliberadamente organizado de conhecimento
secretos (e portanto raros).”295 Em vista disso, este conhecimento é exclusivo destes
especialistas, sendo os leigos destituídos do capital mágico-religioso necessário para ter
acesso a eles.
Entre as demais doenças tratadas pelas benzedeiras estão, peito aberto, espinhela
caída, erisipela e fogo selvagem. Peito aberto é atribuída a uma dor óssea que surge entre
as mamas e por vezes se estende até a região das costas. A erisipela e fogo selvagem
possuem ambas características dermatológicas relacionadas a irritação, ferimento e
coceiras na pele, como descreveu A benzedeira Maninha.
Peito aberto pega muito peso e fica com uma dor aqui oh. (Aponta para
a região que fica entre as mamas) aquela dor aqui no meio ai responde
pras costas. Ai você não gueta respirar. [...] Espinhela caída é uma
coisinha que a gente tem aqui oh, ai quando cai... (aponta para uma
proeminência no pescoço conhecida popularmente como Pomo-de-
adão) Ai a gente reza e melhora. Tem gente que fica rouco, rouco
quando tá caída, não dá uma palavra. Ai eu rezo. Eu rezo às vezes a
pessoa torce o pé, eu rezo, eu rezo de erisipela. Erisipela é aquela
doença que dá nas pernas que fere, dá coceira, rezo de fogo selvagem.
Fogo selvagem é aquele que parece que você tomou um banho de água
fervendo [...] Uma doença que dá e o corpo fica cheio de bolha aquelas
bolha de fogo. Tem gente que dá na cabeça, tem gente que dá debaixo
do braço, tem pessoas que dá nas costas.296
294
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.p. 14-15.
295
BOURDIEU, A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 39.
296
Entrevista com Maria Aurea (Maninha), concedida a autora em 07/01/2015
124
– que estava fazendo o tratamento com o xarope produzido por ela após ter sofrido um
derrame que a deixou com limitações na fala e na musculatura do rosto. A partir de uma
rápida conversa, que foi inviabilizada pelo problema que comprometeu a sua fala, ela
relatou que vendia em média 4 litros do xarope para derrame por semana. Vale destacar,
que a venda destes medicamentos, muito embora seja de baixo custo, complementam a
renda destas mulheres.
Marcelina, que realiza consultas em sua residência com auxílio dos pretos velhos
e caboclos, além de realizar alguns trabalhos espirituais, quando necessário – por isso se
encaixa na categoria de curandeira doméstica – produz o medicamento nas duas versões,
em pó e em xarope. Entre as sementes que compõem o remédio ela destacou noz-
moscada, pixuri, umburana de cheiro e girassol preto, sendo que para fazer o efeito
desejado deve ser tomado com chá de hortelã.
Outros medicamentos, todos feitos de vegetais, são produzidos por estas agentes
de cura, como pôde-se verificar a partir do depoimento da benzedeira Maninha, que
destacou a produção do pó para combater o derrame entre os remédios feitos por ela.
Eu faço os xaropes, pra gripe, faço remédio pra sinusite, e faço um pó
contra derrame. O pó eu vendo muito, vendo muito até pra fora. Eu
vendo aqui e o povo se dá muito bem. O povo que tem derrame que
entorta a boca, entorta os olhos ai toma, ai com o tempo vai ficando, vai
melhorando. [...] Tem noz-moscada, pixuri, tem umburana de cheiro,
tem erva doce, tem endro, tem girassol preto, e é quase tudo preto. Tudo
preto... tem semente de jalapa, tem café beirão. 297
Pelo fato de ser empregado muitas ervas na produção do pó para tratar de derrame,
dada a impossibilidade de cultivar um número maior de vegetais em seu quintal, e pela
própria limitação do espaço urbano, Maninha adquire as 21 sementes para a confecção
do xarope na feira livre da cidade, na zona rural, quando vai visitar seus familiares, ou
comprar em lojas especializadas em fitoterapia. A benzedeira destacou que o mesmo pó
utilizado pra derrame, pode ser usado também para má digestão e para dor de cabeça.
São 21 sementes, e é bom pra digestão, pra dor de cabeça, pra dor de
barriga. Você comeu uma coisa ficou cheio, só é jogar uma colherzinha
na boca, beber água que melhora. Agora pra derrame c’ê faz o chá de
hortelã miúdo, bota uma colherzinha na xícara, ferve a água é... ferve a
água, bota na xícara e abafa. Até ficar bom da pessoa tomar. [...] Ai
toma. Pra quem tem derrame toma 3 vezes ao dia. E se for só pra dor
de cabeça, a pessoa tá com dor de cabeça, às vezes uma comida fez
mal.298
297
Entrevista com Maria Aurea (Maninha), concedida a autora em 07/01/2015.
298
Idem.
125
299
Entrevista com Marcelina Moura Pereira, concedida a autora em 27/07/2015.
300
BARRO, Sulivan Charles. As Entidades Brasileiras da Umbanda. IN: MANOEL, Ivan Aparecido;
ISAIAS, Artur Cesar. Espiritismo & Religiões Afro-Brasileiras: História e Ciências Sociais. São Paulo:
Editora Unesp, 2012. p. 293.
301
Ibidem. p.293.
302
Ibidem. p.293.
303
Ibidem. p.293
126
indivíduos que socialmente os tem como subalternos, mas que não dispõem do poder que
eles têm, enquanto seres mágicos possuem304.
Nessa perspectiva, Concone pontua que as representações que se tem a respeito
dos caboclos são a juventude, força, justiça, chefia, agitação, símbolo de masculino,
liberdade, da mata, arrogância e o paganismo. Enquanto os pretos velhos representam a
velhice, fragilidade, bondade, autoridade familiar, calma, símbolo feminino,
prisão/escravidão, símbolo do rural, da humanidade e símbolo do cristianismo 305.
Quando incorporam nos médiuns, de acordo com Barros, os caboclos manifestam-
se falando enrolado, numa referência ao “tupi”, considerado pelos umbandistas, como a
língua “oficial” de comunicação com os índios.306 Enquanto os pretos velhos, quando se
apresentam entre os umbandistas, de maneira geral, mostram-se
Muito idosos, curvados pelos anos, às vezes apoiados em uma bengala.
Falam sempre com uma voz meiga, algo paternal, que atrai a confiança
e simpatia de quem os ouve. Possuem um modo peculiar de falar com
erros de gramática e concordância, e com expressões “roceiras” de
quem demonstra a falta de instrução formal. 307
A agente de cura Marcelina, tem os pretos velhos como principais guias para tratar
doenças como depressão e demais distúrbios psíquicos-emocionais. “Quando é espiritual,
psicológica, ela pode se tornar patológica, mas ai a gente cura também com oração, com
banhos, com salmos, ai a pessoa fica boa.”308
A busca de tratamentos através das terapêuticas mágico-religiosa afro-brasileiras
para doenças com sintomas psíquicos é bastante comum. Como exemplo, pode-se citar
os próprios agentes que participaram desta pesquisa, que na maioria dos caso,
apresentaram aparentes distúrbios psíquicos antes de se iniciarem enquanto agentes de
cura. Alguns sintomas apresentados durante as crises são interpretados no contexto
religioso afro-brasileiro como doenças relacionadas ao espirito.
“Comecei, eu enlouqueci. Fiquei perturbado, depois, fiquei assim
andando do nada, depois vim pra casa e comecei a manifestar.”309
304
Ibidem. 295.
305
CONCONE, Maria Helena Villas Bôas. Caboclos e Pretos Velhos da Umbanda. IN: PRANDI,
Reginaldo. Encantaria Brasileira: o Livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Palla,
2011. p. 286-287.
306
BARRO, Sulivan Charles. As Entidades Brasileiras da Umbanda. IN: MANOEL, Ivan Aparecido;
ISAIAS, Artur Cesar. Espiritismo & Religiões Afro-Brasileiras: História e Ciências Sociais. São Paulo:
Editora Unesp, 2012. p. 300.
307307
Ibidem. p. 301.
308
Entrevista com Marcelina Entrevista com Marcelina Moura Pereira , concedida a autora em 27/07/2015.
309
Entrevista com Arcelino Francisco dos Santos, concedida a autora em 9/04/2013.
127
“Ai o povo dizia, mas oia pra Luzia, morreu um filho, e a outra vai
morrer também, começou a loucura. É chamava loucura, era.”310
310
Maria Jesus da Silva (Mariquinha), entrevista concedida a autora em 17/08/2013.
311
MONTERO, Op. Cit, p. 160.
312
Ibidem. p.160.
313
Ibidem, p. 161.
128
314
Entrevista com Marcelina Moura Pereira, concedida a autora em 27/07/2015.
315
CAPRARA, Andrea. Polissemia e Multivocalidade da Epilepsia na Cultura Afro-Brasileira. IN:
BACELAR, Jeferson; CARDOSO, Carlos. Faces da tradição Afro-Brasileiras: religiosidade,
sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. 2 ed. Rio de
Janeiro: Pallas; Salvador: CEAO, 2006.
p. 264-625.
316
Ibidem, p. 267.
317
MONTERO. Op. Cit. p. 161.
318
Entrevista com Marcelina Moura Pereira, concedida a autora em 27/07/2015.
129
Vale destacar, que o ambiente doméstico também era utilizado para a realização
de alguns trabalhos espirituais. Quando existia a necessidade de estar ao ar livre, a
médium utilizava o espaço do quintal para executar o ritual. Como exemplo ela citou um
trabalho que realizou orientada por seus guias pretos velhos para o tratamento de
depressão.
E tem pessoas que tem uma depressão também e eles fazem tipo uma
limpeza. Ele te leva assim pr’um lugar aberto, quintal. Ai te passa assim
319
Entrevista com Marcelina Moura Pereira, concedida a autora em 27/07/2015.
130
no teu corpo, assim uns ingrediente, uns materiais tipo feijão preto,
feijão branco, pré-cozido, milho branco, pipoca feita sem sal e sem
gordura, passam em você estas coisas. Às vezes leite, vinho tinto, mel
e depois você toma todo o banho normal. Depois a gente pega e vai
expor assim pro lado que o sol se põe. [...] Pode ser qualquer hora do
dia, mas é pra colocar, pegar, varrer, juntar e colocar do lado que o sol
se põe praquilo não voltar.320
Nos trabalhos cujos problemas são causados por estes espíritos obsessores,
segundo o pai de santo, parte do rito consiste na realização de orações, e cânticos para
diversas entidades, queima de incensos e no desenho dos pontos riscados com a pemba
(giz mineral), pólvora, velas e outros elementos ritualísticos. Os pontos riscados são
símbolos desenhados no chão, paredes ou tábuas, com a pemba. Eles têm a função de
“atrair ou repulsar forças positivas ou negativas. São riscados apenas por sacerdotes
(iniciados) com a finalidade magística, ou para identificar e qualificar a entidade espiritual
incorporada durante o rito”322. Neste tipo de trabalho, os pontos são desenhados na parte
interna de um círculo, dentro do qual se coloca o consulente, vestido com uma capa. Após
o canto de alguns pontos a pólvora é queimada e todo o material usado no ritual é
323
despachado num local adequado. Este trabalho, de acordo com o médium, pode ser
320
Idem.
321
Entrevista com Amado Pereira do Santos, concedida a autora em 15/10/2015.
322
SOLERA, Osvaldo Olavo Ortiz. Op. Cit, p. 36.
323
Estas informações foram obtidas a partir da observação da realização de alguns trabalhos mágico-
religiosos que tinham com objetivo afastar espíritos obsessores. A observação se deu no terreiros de Amado
Pereira dos Santos no ano de 2015.
131
324
Sobre a permanência dos costumes através da cultura popular. Ver: THOMPSON, E. P. Costumes em
Comum: Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 18.
325
Idem.
132
Figura 15- Ponto riscado em trabalho realizado para retirada de Figura 16- Queima do ponto riscado em trabalho realizado para
espíritos obsessores. retirada de espíritos obsessores.
A execução dos trabalhos espirituais é feita sob a orientação dos guias de Amado
dos Santos, que são os caboclos Sultão das Matas e Capitão das Matas e o encantado
Logun Edé (marinheiro). Além destes, o senhor Amado recebe São Cipriano e São
Sebastião, sendo que o primeiro é chamado pelo médium para afugentar as entidades “da
esquerda” nas giras, nos pegis e nos trabalhos espirituais. Enquanto o segundo,
participava dos rituais de batismo. Ele explicou que São Cipriano, era tido como um
espirito sem luz, mas que diante do seu arrependimento ele passou a participar de ritos
com o intuito de expulsar estes espíritos ruins.
Tem de meia noite em diante, acostuma, esses espíritos querer chegar.
[...] Tem aqueles que recebe eles, eu canto pra eles, eles brinca neles ai,
eu dou a bebida e tudo. Ai também quando dá a hora [...] Eu suspendo,
tem ordem. Eu tenho um encantado que se chama Cipriano, na hora que
eu canto o canto de Cipriano eles começa a desconjurar ai vai tudo fora.
Que ele antigamente foi. Antigamente foi bruxeiro, fazia todo mal
também, mas se rependeu, hoje ele é um santo. Ai ajuda quem trabalha
a expulsar os ruins.326
Amado dos Santos, afirmou que todos os terreiros de umbanda trabalham com os
espíritos “de esquerda”, que são tidos como espíritos não evoluídos. São em geral os Exus
e as Pombagiras (Exus femininos), cultuados na quimbanda - culto onde se domina o mal
e o feitiço327. Ele explica que é necessário trabalhar com estes espíritos, denominado por
ele também como escravos, vistos que somente eles, são capazes de solucionar alguns
tipos de problemas espirituais, como no caso do consulente que frequentemente se auto
mutilava.
Sempre tem, quem trabalha com o lado bem, agora tem que ter um
quartinho separado dos escravos, que é pra fazer este serviço pra
carregar uma carga dessa. [...] A gente pede ai ele vai, dá uma cachaça
a ele pra ele carregar. Inda ontem eu fiz um trabalho aqui, muito pesado,
pesado. Tava com muitos espíritos mal no corpo, era espírito ruim
mesmo. Quase morria dentro do círculo. O pai ficou chorando aqui, só
vendo! E deus ajudou, que ele ainda caiu no meio do círculo. Ai ele vai
voltar de ontem a oito, eu não vou fechar ainda, vou repetir o trabalho
dele. Ai quando for uns oito dias través ai ele vem fechar que é pra nada
encostar. [...] Acontece que se faz até três pra poder vencer a batalha.
Esses mesmo vai ter duas veis pra poder vencer. E tem deles que você
faz três veis e o infeliz não sai.328
326
Entrevista com Amado Pereira do Santos, concedida a autora em 15/10/2015.
327
MONTERO, Op. Cit. p. 42.
328
Entrevista com Amado Pereira do Santos, concedida a autora em 15/10/2015.
134
Cabe diferenciar as entidades exus e pombagiras, que são entidades tidas como
“inferiores” dentro da hierarquia umbandistas, com os egúns, que são espíritos de mortos
tidos como obsessores, e que são uns dos principais causadores de doenças de ordem
psíquicas. De todo modo, os exus não batizados, podem também causar transtornos e
adoecimento mas estes podem ser controlados na medida em que são batizados e
reconhecidos.331
No candomblé de nação faz-se a distinção entre a contaminação por egúns –
espirito de qualquer morto- e egunguns – espíritos de ancestrais. Ambos os casos, no
entanto são vistos com preocupação, tendo em vista que causam uma série de transtornos
na vida de quem é afetado polo mal332. Os distúrbios causados pelos egúns são
denominado de encosto. Para Barro e Teixeira, os encostos dão indícios de desordem,
provocado pelo contato de instancias que devem ser mantidas separadas. Ou seja, deve
haver um distanciamento entre os vivos e os mortos. Esta contaminação pode-se dar por
mortos da própria comunidade religiosas, entre o ciclo familiar consanguíneo, entre
pessoas que tenham contatos sociais próximos, ou mesmo por espíritos de
329
MONTERO, op. Cit. p. 148.
330
Ibidem. p. 148.
331
Sobre Ação do exus e egúns ver: MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Rio
de Janeiro: Graal, 1985.
332
BARROS, José Flávio Pessoa de; TEIXEIRA, Maria Lina Leão. O Código do Corpo: Inscrições e
Marcas do Orixás. IN: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Candomblé: Religião do corpo e
da alma. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p. 122.
135
Pombagira vem da palavra banto bombonjira, sendo que gira vem do njila/njira
- rumo, caminho - e pomba designa os órgão sexuais.338 As pombagiras constituem-se
enquanto a inversão da representação social do feminino. Ela simboliza a sexualidade
feminina marginalizada, o “outro” do ideal de “feminino” e daí advém o seu poder
mágico-religioso.339 Montero, destacou que é através das pombagiras que a sexualidade,
333
Ibidem.p.122.
334
BARRO, ;TEIXEITA. Op cit. 123.
335
PRANDI, Reginaldo. Pombagira e as faces inconfessas do Brasil. IN: PRANDI, Reginaldo. Herdeiras
do Axé. São Paulo: Hucitec, 1996, Capítulo IV. p. 3.
336
Sobre as divisões hierárquicas na umbanda ver PRANDI, Reginaldo. Pombagira e as faces inconfessas
do Brasil. IN: PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do Axé. São Paulo: Hucitec, 1996, Capítulo IV.
337
Ibidem. p.4.
338
AUGRAS, Monique. De Iyá Mi a Pomba-Gira: transformações do símbolo da libido. IN: MOURA,
Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Candomblé: Religião do corpo e da alma. Rio de Janeiro: Pallas,
2000. p. 32.
339339
CARDOSO, Vânia Z. Assombrações do Feminino: Estórias de Pombarigas e o poder feminino. IN:
ISAIAS, Artur César; MANOEL, Ivan Aparecido. Espiritismo e Religiões Afro-Brasileiras: História e
Ciências Sociais. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. p. 179-202.
136
o erotismo e a malicia vão ser exaltadas na mulher, especialmente na mulher negra, visto
que estas são o feminino dos Exus, representados enquanto homens negros. Além disso,
em alguns casos, a referência da pombagira enquanto representação da mulher negra, se
apresenta no próprio nome das entidades; Pombagiras Mulata, Rosa de Maio, em
referência a abolição, Maria Quitéria, entre outras.340 A autora afirma, que o estigma de
prostituta não permitem que as pombagiras assumam posição de autonomia em relação
ao exu masculino, na medida em que estas só podem assumir publicamente a sua
sexualidade enquanto objeto de prazer do homem - “mesmo no interior do universo
maligno ela é associada ao negativo por oposição ao masculino, considerado positivo.”341
Na sociedade patriarcal brasileira, a existência da mulher-prostituta
permite a expansão da lubricidade masculina, sem comprometer os
fundamentos da organização familiar, isto é, sem colocar em risco a
virgindade das jovens destinadas ao papel de esposas e mães. Mas
recupera também, em segunda instancia, as contradições históricas
inerentes ao papel social da mulher negra que, pelo seu sexo e pela sua
cor, viu-se duplamente submetida aos estereótipos que faziam de sua
sensualidade um objeto de propriedade do homem. 342
340
MONTERO, Op. Cit, p. 226.
341
Ibidem, p. 228.
342
Ibidem, p. 230.
343
AUGRAS, Monique. Op. Cit.
344
Ibidem. p. 29.
345
Ibidem. p. 30.
346
MONTERO, Op. Cit, 233.
137
347
AUGRAS, Op. Cit, 37.
348
Entrevista com Marcelina Moura Pereira, concedida a autora em 27/07/2015.
349
BARROS, Sulivan Charles. As entidades Brasileiras da Umbanda. IN: Espiritismo e Religiões Afro-
Brasileiras: História e Ciências Sociais. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. p.308.
350
D’AVILA, Maria Inácia; LAGES, Sônia Regina Corrêa. Vida Cigana: Mulheres, Possessão e
Transgressão no Terreiro de Umbanda. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 2(1), São João del-Rei,
Mar./Ag., 2007.
138
direita, neste caso pertencente a linha do oriente, e em outros como de esquerda, sendo
que na esquerda eles representam o mais alto grau de evolução. De acordo com a autora
exus e pombagiras são capazes de evoluírem espiritualmente através da doutrinação e
passarem para a categoria de ciganos, não podendo no entanto, passar para linha da
direita. Isso porque, a linha da esquerda é fundamental para o equilíbrio das práticas
umbandistas. 351 Como assinalou Augras, “a quimbanda é uma categoria de acusação
dentro da própria umbanda.”352
A busca por resoluções de problemas conjugais, amorosos ou sexuais é feita
principalmente por mulheres, conforme os relatos dos agentes de cura em Jacobina. A
maioria destes agentes, no entanto, negam realizar práticas mágicas para este fim,
justamente por estas estarem vinculada às entidades da esquerda, como pode-se observar
a partir do depoimento da benzedeira Maninha.
Mulheres tem muitas que vêm por causa de namorado, às vezes brigou
mais o namorado, quer que retorne, não sei o quê... Eu digo, ai isso aqui
eu não faço! Isso ai nem comigo não. Minhas reza é pra doença. Doença
e pra abrir os caminhos também né. Mas pra negócio de homem de
ajeitar coisa pra homem não. Nem pra mulé também. Quem tiver seus
negócios pra resolver que resolva por lá. Se a vida tiver atrapalhada...
Que às vezes a pessoa tá com um carrego que atrapalha a vida até com
o namorado com o marido, e muitas vezes com a reza melhora, ai tem
os banhos pra fazer ai melhora. Pro casal né. Mas tem muitas mulheres
que vem pra eu fazer isso, fazer aquilo, pra separar pra arranjar, fulano
largar fulano, pra... não.353
A procura por trabalhos mágicos para fins amorosos no Brasil são bastantes
comum desde o século XVI, como assinalou a historiadora Mary Del Priore. Estes
trabalhos, eram compostos de elementos da religiosidade católica, como a hóstia, cruzes
e orações, que eram utilizados com fins amorosos e eróticos, “que aludiam às almas, ao
leite da Virgem, às estrelas, ao sangue de Cristo, aos santos, anjos e demônios.”354 Outros
elementos como cabelo da região genital, bem como sémen, sangue menstrual
compunham os ingredientes nos trabalhos para viver bem como o marido, ou atrair a
351
BORGES, Mackely Ribeiro. Gira de Escravos: A Música dos Exus e Pombagiras no Centro
Umbandista Rei de Bizara. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Música) Salvador: UFBA,
2006. p. 134.
352
AUGRAS, Monique. Op. Cit. p.30.
353
Maria Aurea da Silva (Maninha), entrevista concedida a autora em 07/04/2015.
354
DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p. 51.
139
pessoa amada ou desejada. 355 Para Del Priore, a partir da concepção da mulher enquanto
agente diabólica,
Toda a sexualidade feminina podia prestar-se à feitiçaria. Seu corpo,
ungido pelo mal, tornava-se o território de intenções malignas. Cada
pequena parte seria representativa desse conjunto diabólico, noturno e
obscuro. Além dos sucos femininos, também os pelos compõem essa
ambígua farmacopeia que trata e cura as astúcias do Demônio. 356
Quando não diabólicas, loucas. Assim a mulher com domínio da sua sexualidade
passou a ser vista pela medicina e pelos discursos moralizante e de higiene a partir do
século XIX.357 A representação da mulher “normal”, era caracterizada por um ser doce,
frágil, boa mãe e submissa. O oposto a configuraria enquanto anormal e histérica, cuja
sexualidade exacerbada anularia o instinto materno.358 As explicações médicas dadas à
histeria feminina iam desde a caracterização física da mulher - de cor escura ou vermelha,
olhos e pelos negros- a sintomas emocionais, como “um sistema nervoso pronunciado”.
Segundo Del Priori, este era um pensamento dominante na medicina do período, que
acreditava que “histeria era decorrente do fato de que o cérebro feminino podia ser
dominado pelo útero”359, ou mesmo pelo fato destas serem péssimas donas de casa, em
detrimento de uma sexualidade voluptuosa. O tratamento reservado ao que a medicina
do período referia-se como histeria, de acordo com Del Priori, eram os mesmo há mais
de 200 anos e consistiam em “banho frio, exercícios, passeios a pé. Em casos extremos,
recomendava-se — pelo menos em tratados médicos — a ablação do clitóris ou a
cauterização da uretra.”360
É importante observar que a sexualidade feminina é historicamente marginalizada.
Às mulheres que a dominam, coube a representação enquanto comportamento doentio.
No universo umbandista, estas mulheres são representadas como seres involuídos
espiritualmente, más, diabólicas, como é o caso das pombagiras. Não deve-se perder de
vista que a umbanda, conforme Ortiz, incorporou “às representações sociais a nível de
frequência religiosa”361 Desta maneira, a dominação masculina se faz presente nas
355
Ibidem. p. 52.
356
DEL PRIORI, Mary. Op. Cit. p. 52.
357
Idem.
358
DEL PRIORE, Mary. p. 218.
359
Op. Cit. p. 219.
360
Op. Cit. 219.
361
ORTIZ, Renato, A Morte Branca do Feiticeiro Negro: A umbanda e a sociedade brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1999. p. 96.
140
concepções simbólicas umbandistas tal qual a ampla sociedade, onde esta dominação
coloca a mulher em constate dependência simbólica segundo a lógica de que,
Elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto
objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se espera que sejam
"femininas", isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas,
discretas, contidas ou até mesmo apagadas. E a pretensa "feminilidade"
muitas vezes não é mais que uma forma de aquiescência em relação às
expectativas masculinas, reais ou supostas, principalmente em termos
de engrandecimento do ego. Em consequência, a dependência em
relação aos outros (e não só aos homens) tende a se tornar constitutiva
de seu ser.362
362
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 82.
363
Entrevista com Marcelina Moura Pereira, concedida a autora em 27/07/2015.
364
BARROS, José Flávio Pessoa de; TEIXEIRA, Maria Lina Leão. O Código do Corpo: Inscrições e
Marcas do Orixás. IN: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Candomblé: Religião do corpo e
da alma. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p.125.
141
egunguns, ou pela contaminação por elementos naturais, vírus, micróbios, etc.365 Desse
modo, as doenças femininas, ou doenças ligadas ao sistema reprodutor feminino, estão
ligadas as ações das orixás Oxum e Iemanjá que são representadas como símbolos de
maternidade e fertilidade.
Doenças venéreas femininas, a falta ou excesso de regras menstruais,
abortos, infertilidade e os demais distúrbios incluídos na categoria
“doença de barriga” constituem apelo ou “marcas” de Iemanjá e de
Oxum, ligadas ao elemento água, à feminilidade e à maternidade.
Ressalta-se que em quase todas as oferendas para Oxum verificamos a
presença de ovo, símbolo da fertilidade, e que a esta orixá cabe o
reestabelecimento das “doenças de meninos”.366
365
Ibidem. p. 119-124.
366
BARROS, José Flávio Pessoa de; TEIXEIRA, Maria Lina Leão. Op. Cit. p.126.
367
CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino no culto aos orixás. IN: NASCIMENTO, Elisa
Larkin. Guerreiras da Natureza: A mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro,
2008. p. 126.
142
368
Jornal O lidador. Nº10 de 10 de novembro de 1933. p. 2.
369
Entrevista com Ana Maria da Silva, Concedida a autora em 4/08/2015.
370
FERREIRA FILHO, Alberti Heráclito. Salvador das Mulheres: A condição Feminina Popular na
Belle Époque Imperfeita. (Mestrado em História), Salvador: UFBA, 1994. p. 195.
143
371
Bastos, Diniz e Rabinovich. Op, Cit. p.70.
372
Ibidem. p. 66.
373
Entrevista com Ana Maria da Silva, Concedida a autora em 4/08/2015.
374
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Op. Cit. p.161.
144
O saber da parteira, bem como das benzedeiras e dos demais agentes das curas
mágico-religiosas, é compreendido enquanto um dom, carregado por algumas mulheres
que detêm também um conhecimento acumulado empiricamente através das experiências
375
Ibidem. p.162.
376
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Op. Cit. p. 165.
377
Entrevista com Ana Maria da Silva, Concedida a autora em 4/08/2015.
145
no partejar e nos cuidados com a saúde feminina como um todo. Segundo Santos, até o
século XIX as parteiras eram responsáveis pelo cuidados com as gestantes, com os partos
e com os recém-nascidos. Do mesmo modo, elas “Também eram procuradas para atender
as mulheres nos cuidados com o corpo, doenças venéreas e para a prática do aborto.”378
De acordo com a autora, estas mulheres eram geralmente oriundas das camadas populares
e que apesar de não terem tido acesso à educação formal, dispunham da confiança da
população quando o assunto se referia à saúde feminina. Os cuidados advindos dos
médicos parteiros era dispensado pelas parturientes que davam preferência “a companhia
das parteiras durante seus partos, tendo em vista a preocupação com a confiança e
segurança conquistas pelas mulheres que partejavam, o que por certo era reforçado pela
moralidade difundida pela Igreja.”379
Santos, atribuiu a chegada da Corte Portuguesa no Brasil a incorporação das
práticas de partejar pela medicina e o ingresso dos homens no universo antes exclusivo
das parteiras “culminando com a proclamação masculina de exclusividade da
obstetrícia”380
Na temporalidade da modernização, dá-se a apropriação do saber-fazer
das parteiras tradicionais pelo saber médico que constituiu a obstetrícia.
Tal confronto resultou na incorporação da prática das parteiras pela
medicina, cujo discurso centrava-se na premissa do exercício da clínica
e da investigação anatomopatológica, a partir da presença masculina
nessa área.381
378
SANTOS, SiIvéria Maria dos. Parteiras tradicionais da região do entorno do Distrito Federal. Tese
(doutorado). Brasília: Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Humanas, Departamento de História,
2010. p. 89.
379
SANTOS, SiIvéria Maria dos. Parteiras tradicionais da região do entorno do Distrito Federal. Tese
(doutorado). Brasília: Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Humanas, Departamento de História,
2010.p. 90.
380
Ibidem. p 91.
381
Ibidem. p. 92.
382
Ibidem. 93.
146
3.2- “Cosme e Damião ninguém brinque que se não fizer as coisas dele, o caruru dele
direitinho [...] aparece doença na pessoa”: os carurus, entre a obrigação e a cura.
383
LIMA, Vivaldo Costa Lima. Cosme e Damião: o culto aos santos gêmeos no Brasil e na África.
Salvador: Corrupio, 2005. p.14.
384
Ibidem, p.15-16.
385
Ibidem, p.29.
386
Ibidem, p.34.
387
Ibidem. p. 34.
147
388
LODY, Raul. Santo Também Come. Rio de Janeiro: Pallas, 2012. p.104.
389
LODY, Raul. Op. Cit. p.106.
390
REGIS, Olga Francisca. A Comida de Santo numa Casa de Queto da Bahia. Salvador: Corrupio,
2010.
391
Ibidem. p.109.
148
os carurus servidos aos Ibêjis nos terreiros tradicionais de candomblé. Em geral são
composto de vatapá, caruru (o quiabo), farofa, legumes diversos e carne de galinha ou
frango caipira – como é denominada a carne das aves que são criadas em ambiente
doméstico pelos próprios agentes de cura ou comprados na feira local. As carnes de
galinha ou frango industrializados, não são bem vista pela maioria dos agentes de cura.
O vatapá é feito de pão ou fubá de milho, castanha e amendoim moídos, leite de coco ou
de licuri, azeite de dendê e em alguns casos põe-se o camarão e bacalhau seco. Como
acompanhamento, serve-se junto ao vatapá, o quiabo ou caruru (amalá) e a abobora
cozida. Observou-se que alguns agentes servem outros legumes, principalmente como
acompanhamento do caruru como saladas - a alface e tomate - beterraba cozida, e repolho
cozido, elementos incomuns nos carurus oferecidos nos terreiros tradicionais.
Nos terreiros, os carurus costumam ser servidos no chão, em uma esteira, ou em
pedaço de tecido enfeitados com flores e com a imagem dos santos gêmeos católicos. Nos
terreiros de piji e umbanda em Jacobina, primeiro as sete crianças serviam-se com as
mãos, em pratos individuais feitos previamente. Ao termino da refeição das crianças, elas
lavavam as mãos em um recipiente comum e então era retirada a esteira – a mesa dos
meninos. Posteriormente, os demais convidados e adeptos são servidos. Todo rito de
alimentação das crianças eram acompanhado de cânticos em homenagem os santos
gêmeos. No âmbito doméstico, o rito se faz da mesma maneira. Vias de regra, os carurus
são servidos em uma mesa e não no chão como nos terreiros. 392
392
Informações obtidas a partir de entrevistas com os agentes de cura e através da observação entre os anos
de 2011 e 2016.
149
Caruru de Ibêji composto de feijão fradinho, vatapá, pipoca, carne de frango cozida, acaçá,
abará, acarajé e amalá. Emanuela Bethânia, 2011.
150
Figura 18- Composição do caruru de São Cosme e São Damião Figura 19- Caruru de São Cosme e São Damião oferecido por
oferecido pela Benzedeira Maria Aurea dos Santos Amado Pereira dos Santos e por seus filhos de Santo
Caruru de São Cosme e São Damião composto arroz, farofa, frango, Caruru de São Cosme e São Damião composto arroz, legumes diversos: alface,
vatapá e quiabo/caruru (amalá). Foto: Emanuela Bethânia, 2015. tomate, beterraba, chuchu, couve, salada de maionese e galinha. Foto: Emanuela
Bethânia, 2016.
151
Observa-se na figura 9, que o caruru oferecido por Amado Pereira e seus filhos de
santo, era composto de elementos pouco comuns aos tradicionais carurus, com uma
diversidade de saladas e legumes. A introdução de ingredientes alheios à culinária afro-
brasileira pode ser compreendido como uma ressignificação dessas tradições culinárias
em decorrência da não existência de algumas iguarias típicas de um caruru tradicional na
região; pela forte presença do culto aos caboclos, entidade indígena; ou mesmo, pelo alto
preço desses ingredientes, que impossibilita, a compra por alguns devotos da prática afro-
brasileiras na cidade. Reitera-se, que estes praticantes, são em sua grande maioria, de
baixo poder aquisitivo. Alguns depoentes relataram a dificuldade financeira em cumprir
a obrigação religiosa de oferecer o caruru de São Cosme e São Damião diante das
limitações financeira vivenciada por eles.
Num tinha nada minha fia, tem dia que não tinha nem açúcar pra tomar
café. Como era que eu ia bater, meu deus? Como é que eu ia dá caruru?
Desempregada, mocinha nova que vivia por conta dos pais, os pais
fracos... Minha filha olha, se chegar até aqui, olha é uma semana pra eu
te contar (risos).393
393
Maria Jesus da Silva (Mariquinha), entrevista concedida a autora em 17/08/2013.
394
Maria da Conceição Barbosa da Silva (Nina). Ialorixá líder do terreiro Ilê Axé Odoiá. Entrevista
concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em 23/02/2011, Jacobina, Bahia.
152
elementos nas receitas do caruru de São Cosme e São Damião certamente é resultado da
resistência pela sobrevivência desta prática religiosa na cidade. Para Braga, o candomblé
deve ser compreendido a partir das diversas interferências de diversos procedimentos
socioculturais que o definem “como produto de recriação, adaptação e amálgama de
valores religiosos ocorridos no Brasil.”395 Desse modo, não é possível desprezar os
diversos valores sociais e culturais presentes na sociedade jacobinense, que estão
presentes no processo de adaptação e ressignificação das religiões afro-brasileiras no
município. Destaca-se também, a presença da cultura indígena herdada dos povos nativos
que viveram na região de Jacobina. A forte presença do peji- que refere-se ao culto aos
caboclos, certamente, tem relação com a ancestralidade indígena na cidade.
O costume de oferecer caruru aos santos gêmeos entre os meses de setembro e
outubro, está diretamente relacionada a manutenção da saúde dos agentes de cura. O não
cumprimento desta obrigação religiosas, acarretaria o adoecimento do devoto. A
benzedeira Maninha, começou a dar o caruru de São Cosme e São Damião em decorrência
de um problema relacionado a saúde, surgidos após a morte da sua madrinha, com quem
residia, e que tinha a obrigação de oferecer o caruru aos os santo gêmeos.
Porque eu não tinha sossego dentro de casa. Um negócio no meu
ouvido, que era uma agonia, eu não ficava em casa. Não ficava! Não
era com medo não. Era um negócio dentro do ouvido que eu não podia
ficar em casa só vivia na rua. [...] Um ano depois que ela tinha morrido.
Tinha dias eu com essa confusão no ouvido. Ai fui pra doutor Manoel,
doutor Manoel disse. Vamos lá fazer uma lavagem neste ouvido. Fez a
lavagem e nada. Continuou. Mandou pra doutor Agnaldo, doutor
Agnaldo fez a lavagem e nada continuou. Voltei de novo pra ele, vai
passar pra mão de Tuca: agora meu filho. Passei pra Tuca, nada! Ai
quando foi um dia ele disse. Oh Maninha você não vai fazer o caruru
de São Cosme não? Que ele era acostumado a vir comer aqui. Eu disse
não porque o caruru não era meu. Pois então cuide do seu santo que eu
não tenho remédio pra você! (risos) Eu disse, oh doutor Manoel será
que é isso mesmo? Ele disse, eu não quero nem saber, se vire! Ai eu
cheguei aqui e disse [...] é por causa disso que eu tô com essa confusão
do ouvido porque eu disse que não ia fazer o caruru! Pois eu vou fazer
pra sete criança se eu ficar boa, se eu não ficar eu não faço. Passou o
zumbido nessa hora.396
395
BRAGAG, Júlio. Na Gamela do Feitiço: Repressão e Resistencia nos candomblés da Bahia.
Salvador: EDUFBA,1995. p. 38.
396
Marcelina Moura Pereira, entrevista concedida a autora em 21/03/2012.
153
caruru acarretou-lhe o desequilíbrio em sua rotina. 397 Chama atenção, o fato de o médico,
que participava do caruru oferecido por sua madrinha, ter atribuído a causa da sua doença
ao rompimento da obrigação com os santos, diante das diversas tentativas de tratamento
da doença através da medicina acadêmica sem sucesso. Situação semelhante, foi narrada
por senhor Amado, sobre o adoecimento da sua ex-companheira, que decidiu romper com
as obrigações do caruru, acarretando-lhe adoecimento, que só foi tratado após o
cumprimento da obrigação do caruru.
C’ê vê oi Cosme e Damião ninguém brinque, que se não fizer as coisas
deles direito o cariru direitinho, eles não recebe e aparece doença na
pessoa [...] Tem gente que dá porque quer, mas tem muitos que é
obrigado a dar. Tenho filho de santo mesmo que tem que dar. Adoece
ou aparece desmantelo na família um doenceiro, uma coisa e outra que
vai não tem jeito. A minha primeira mulher mesmo ela dava, parou um
ano porque ela zangou disse que não ia dá mais, foi tanta doença que
apareceu sem quê nem pra que. Deus ajudou depois ela voltou atrás ai
melhorou.398
Apesar de muitas pessoas oferecerem o caruru a São Cosme e São Damião, senhor
Amado ressaltou que nem todas as pessoas têm a obrigação com os santos de dar o caruru.
Outras, entretanto, se infringirem o “pacto” estabelecido com os santos são acometidos
por uma desordem que atinge a própria e vida e a dos seus familiares.
O caruru de São Cosme e São Damião em alguns casos, é seguido de peji, que é a
roda de samba dos caboclos em homenagem aos santos gêmeos. De acordo com senhor
Amado, em seu terreiro, primeiro é servido o vatapá das crianças no chão, que tem como
acompanhamento quiabo, abobora, alface, tomate e galinha de quintal. O ritual acontece
ao som dos pontos cantados, entoados para os santos homenageados.
Eu pego é boto sete crianças, seis home e uma mulher. A mulher é Santa
Barbara. Tem gente que bota duas, mas eu só boto uma, santa barbara é
ela e é ela mesmo. Ai boto um filho de santo lá, outro cá e os meninos
virado pra mim ou de junto de mim. [...]Dos meninos, os pratos já vêm
feitos lá de dentro, eles já tão sentados, ai vai botando o prato de cada
um, o copo de guaraná. Se às vezes tiver bolo, às vezes uma pessoa trás.
Caramelo sempre tem, ai bota três quatro em cada menino e ai vai. 399
397
CONCEIÇÃO, Alaíse dos Santos. “O Santo é quem nos vale, rapaz! Quem quiser acreditar,
acredita!”: Práticas culturais e religiosas no âmbito das benzeções. Governador Mangabeira – Recôncavo
Sul da Bahia (1950-1970). Salvador: Faculdade de Filosofia (dissertação de mestrado) ,UFBA, 2011.p. 85.
398
Entrevista com Amado Pereira do Santos, concedida a autora em 15/10/2015.
399
Idem.
154
Associada na tradição afro-católica a orixá Iansã, que na mitologia dos orixás, juntamente
com Xangô, seriam os pais do orixá Ibêji. De acordo com Couto, provavelmente a
associação entre Santa Barbara e Iansã tenha se iniciado no século XVIII, com a chegada
dos nagôs na Bahia. Para a autora, ambas possuem o poder de controlar as tempestades e
o trovão, ambas são consideradas mulheres guerreiras que defendem os seus filhos das
guerras e de todas as batalhas cotidianas. 400 Destaca-se, que na tradição afro-católica,
Santa Barbara e Iansã são homenageadas no dia 4 de dezembro, ocasião em que seus
adeptos também oferecem caruru. Couto afirmou, que a festa para Santa Barbara teve seu
início no século XVI na Cidade Baixa em Salvado. Entre seus devotos encontravam-se
os comerciantes africanos e brasileiros de baixo poder aquisitivo. Até o início do século
XX, os festejos a santa era realizado sem o incentivo da igreja e das elites. Segundo Couto
Após a destruição da capela do mercado, em 1899, no dia 4 de
dezembro a imagem de Santa Bárbara era levada, em procissão, pelas
ruas do comércio até a Igreja do Corpo Santo. O cortejo era animado
com músicas e foguetes. Após a realização de uma missa solene, a santa
e os fiéis voltavam ao mercado. Quando a imagem retornava ao seu
nicho “era servido, à farta, caruru acompanhado de aberém, acarajé e
outros quitutes. Corria muito aruá de milho maduro, gengibirra e a
inevitável cachaça. Formavam-se rodas de samba e de batuque,
interrompidos por pequenas arruaças”.401
400
COUTO, Edilece. Op. Cit. p.156.
401
Ibidem. p. 91.
155
pisa junto, o amendoim era pisado, pisava castanha, pisava... Tudo com
farinha eles determinavam assim.402
Caruru das Pretas Velhas composto de vatapá, quiabo (caruru), arroz, pipoca, galinha e rapadura. Foto:
Emanuela Fonseca, 2015.
402
Entrevista com Marcelina Moura Pereira, concedida a autora em 27/07/2015.
403
Informações obtidas a partir de entrevista e da observação do caruru ocorrido em Julho de 2015.
156
CONSIDERAÇÕES FINAIS
LISTA DE FONTES
LISTA DE FONTES
Manuscritas
Código de Posturas de Jacobina (1933)
Correspondências (1948-1949)
Leis e resoluções do Conselho Municipal (1908-1915)
Jornais
O lidador (1933-1943);
Correio de Bonfim (1912-1942);
Correio do Sertão (1917-1950)
Jornal Vanguarda (1955-1960).
Jornal Centro Norte (1967)
Jornal A palavra (1970-90)
Fotografias (1950-1960)
1.6- Site:
http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-
catalogo?acervo=todos&campo=todos¬qry=&opeqry=&texto=Jacobina&digital=fal
se&fraseexata=
http://www.uneb.br/pgdp/files/2010/07/Constitui%C3%A7%C3%A3o-do-Estado-da-
Bahia.pdf
1.7- Orais
Amado Pereira Santos. 73 anos de idade. Lavrador. Sacerdote da umbanda
Linha Branca. Entrevista concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em
20/03/2012 e em 15/10/2015. Jacobina – Bahia.
160
Joel Sebastião Xavier 63 anos de idade. Babalorixá líder do terreiro Ilê Axé
Odé Cassulandê. Entrevista concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em
22/02/2011 e me 21/05/2012. Jacobina – Bahia.
Marcelina Moura Pereira. 59 anos de idade. Professora aposentada. Médium
umbandista da linha Umbanda Espírita. Entrevista concedida a Emanuela
Bethânia S. da Fonseca, em 21/03/2012 e em 27/07/2015, Jacobina – Bahia.
Maria da Conceição Barbosa da Silva. Apelido (Nina). 58 Anos de idade.
Professora. Ialorixá líder do terreiro Ilê Axé Odoiá. Entrevista concedida a
Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em 23/02/2011 e em 19/08/2015. Jacobina –
Bahia.
Valdelice Soares De Oliveira. 59 anos de idade. Doméstica. Praticante do
candomblé. Entrevista concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em
19/03/2012, Jacobina – Bahia.
Arcelino Francisco dos Santos. 88 anos de idade. Agricultor aposentado.
Benzedor umbandista. Entrevista concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca,
em 09/04/2012, Jacobina – Bahia.
Maria de Jesus Silva. Apelido (Mariquinha). 70 anos de idade. Dona de Casa.
Rezadeira umbandista. Entrevista concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca,
em 09/04/2012, Jacobina – Bahia.
Dalva dos Anjos Silva. 81 Anos de idade. Costureira. Benzedeira. Entrevista
concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em 170/08/2013, Jacobina –
Bahia.
Carolina de Jesus, Apelido (Calu) 95 anos de idade. Dona de Casa. Entrevista
concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em 18/08/2014, Jacobina – Bahia.
Ana Maria da Silva. 63 anos de idade. Dona de casa, Entrevista concedida a
Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em 04/08/2015, Jacobina – Bahia.
Senhorinha de Oliveira Queiroz. 76 anos de idade. Dona de casa. Entrevista
concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em 13/8/2014, Jacobina – Bahia.
Maria Aurea da Silva , Apelido ( Maninha), 70 anos de idade. Dona de casa.
Entrevista concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em 07/04/2015 e em
07/04/2016, Jacobina – Bahia.
Américo Silva Porto. 45 anos de idade. Técnico em enfermagem. Entrevista
concedida a Emanuela Bethânia S. da Fonseca, em 11/02/2011 e em 07/04/2016,
Jacobina – Bahia.
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Bethânia S. da Fonseca, a em 09/10/2012, Jacobina-Ba.
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