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Trauma e incesto
A clínica com famílias incestuosas permite observar como o incesto pode ser traumático
antes, durante ou depois da sua revelação. Este artigo aborda o tema do trauma por meio
da análise de alguns autores, principalmente no que diz respeito às conseqüências que
o ato incestuoso provoca no psiquismo.
> Palavras-chave: Trauma, incesto, abuso sexual, psicanálise
Clinical practice with incestuous families allows one to observe how incest can be
traumatic before, during or after its disclosure. This article discusses the question of
the trauma on the basis of several authors, especially in regard to the consequences
that incest causes on the mental apparatus.
> Key words: Trauma, incest, sexual abuse, psychoanalysis
ocorrência deste tipo de violência entre so com relação aos fatos concretos e sua
seus membros. relação temporal. Podemos observar esta
Uma característica muito comum presen- confusão pela dificuldade destas pessoas
te nas famílias incestuosas é a confusão em descrever a história familiar incestu-
de funções familiares revelada por uma osa com uma certa ordem cronológica,
perda de assimetria nas relações ou seja, quando e como o incesto foi des-
intrafamiliares e no conseqüente esvaeci- coberto, há quanto tempo vinha aconte-
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cendo, quem sabia e quem desconhecia, passiva e não é capaz de lhe dar um sig-
o que a família fez depois da revelação. nificado de cunho sexual, sentindo-o ape-
Estes são parâmetros importantes para nas como algo apavorante. No segundo
uma compreensão inicial sobre estes in- tempo do trauma, esta criança, agora na
divíduos e como se organizam como gru- adolescência ou na fase adulta, se con-
po familiar. frontaria com alguma situação em sua
Muitas vezes torna-se uma tarefa árdua vida, não necessariamente com conota-
entender a história incestuosa e seu de- ção sexual direta, mas que evocaria uma
senrolar, seja ele jurídico, social ou emo- lembrança, traços associados àquele pri-
cional. Quem é quem, sobre quem estão meiro momento do trauma, àquela expe-
falando, sobre o que estão falando e com riência infantil. A excitação, ou melhor, o
quem estão falando. Este último aspecto afeto causado pela lembrança será supri-
é mais compreensível, pois estas famílias mido ou deslocado enquanto a represen-
podem vir de encaminhamentos que an- tação traumática permanecerá recalcada,
teriormente incluem entrevistas em dele- agora com mais intensidade – intensida-
gacias de polícia ou em varas da infância de traumática. O raciocínio de Freud con-
e juventude, cuja finalidade é a coleta de templaria a noção de ressignificação trau-
dados para que se possa chegar à verda- mática, ou seja, que os traumas operari-
de dos fatos. am de maneira adiada no tempo, isto é,
O que pude perceber é que a história in- são antigos, mas sentidos como recentes.
dividual e familiar sofre um hiato, ou seja, O fato traumático, que é externo e se-
parece entrar em uma espécie de buraco xual, seria o causador do sintoma histéri-
negro, em que a reconstituição de uma co e sua manifestação o reviver alucina-
ordem psíquica pode estar sujeita a não tório do processo que lhe originou (Uchi-
se organizar novamente. Mas seria este tel, 1997).
buraco negro aquilo que chamamos de Por meio do desenvolvimento da técnica
artigos
quando a “teoria da sedução” foi formu- explicativo dos sintomas histéricos e sim
lada como tentativa de explicação para a que os mesmos seriam resultado de fan-
causa dos sintomas histéricos. O trauma tasias inconscientes, de desejos incestuo-
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era então concebido em dois tempos, sos direcionados às figuras parentais. To-
sendo o primeiro na fase pré-genital e o davia, a teoria da sedução, ou melhor, a
segundo na fase genital. No primeiro mo- idéia de sedução na infância não foi com-
mento, a criança é abusada sexualmente pletamente abandonada por Freud, tanto
por um adulto, geralmente conhecido e que ele a considerou como sendo uma
com quem mantém vínculos de confian- das protofantasias. Como bem escreveu
ça, submete-se ao ato abusivo de forma Uchitel (2000, p. 28):
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Não é necessariamente o abandono da teoria danosas como tentativa de dominar este
da sedução que dá acesso ao Édipo e ao uni- plus de excitações provocado pelo trau-
verso infantil sexuado; essa linearidade Freud ma. Na instalação do trauma, Uchitel
não prevalece. A cena da sedução, a cena trau- (2001, p. 50) aponta que
mática, pode coexistir (e coexiste) com o papel
preponderante que a fantasia tem na organiza- ... a excitação que deveria ter tomado o cami-
ção psíquica, pois as fantasias não desmentem nho da representação, da ligação, ficou presa
todas as cenas de abuso e sedução, mas po- num circuito incessante das excitações sem
dem dar sustentação para que existam. forma. Por isso o trauma não fala, se faz sen-
tir e atua. O que ele repete não é uma repre-
O trauma reaparece com mais intensida- sentação, mas uma percepção sem palavra.
de no texto de 1920, no qual Freud reto-
ma a questão das neuroses traumáticas, Não é raro observarmos estas repetições
cuja manifestação se dava após a ocorrên- na clínica com famílias incestuosas, seja
cia de um forte choque emocional ou mediante relacionamentos conjugais nos
mecânico. O surgimento dos sintomas quais os múltiplos parceiros de uma mu-
decorria mais do impacto provocado lher violentam suas filhas ou de crianças
pelo fator susto, pela surpresa da situa- e adolescentes repetindo situações nas
ção, do que pelo impacto da lesão física. quais se submetem a violências sexuais
Neste sentido, os fatores imprevisibilida- praticadas por um adulto ou por pares,
de e incontrolabilidade do fenômeno como no incesto entre irmãos.
também estão presentes. Um exemplo desta invasão de estímulos
Freud se perguntava por que certos indi- no psiquismo, em que não há espaço
víduos repetiam situações desagradáveis, para a palavra, para a elaboração, foi des-
seja por meio dos sonhos ou de compor- crita em artigo de minha autoria (Figaro,
tamentos repetitivos em sua história 1999/2000). Nesse artigo, relato o atendi-
pessoal. O que estas pessoas estariam bus- mento realizado com uma menina pré-
adolescente, abusada por maus tratos e
artigos
ções do ocorrido. Este excesso de energia mãos, com quadril mas sem pernas e pés.
não vinculada e a incapacidade de dar es- Por mais que eu tentasse me aproximar
coamento à mesma, propicia a instalação de seu mundo mental, era como se eu
do trauma. O excesso de energia liberada percebesse contornos sem finalizações,
dentro do aparelho psíquico acaba en- sem identificações, como seus desenhos.
trando em um movimento repetitivo, Um dia, as figuras humanas desaparece-
uma compulsão à repetição de situações ram e em seu lugar foram surgindo aglo-
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merados de formas geométricas que me ca tocassem em suas filhas, como se de
chamavam atenção. Perguntei-lhe, sem fato algo já tivesse pré-determinado para
muita esperança de obter uma resposta, acontecer.
o que era aquilo. Foi quando, de seu si- O atendimento de famílias incestuosas
lêncio mesclado com sua seriedade, ela mostra que, em muitas ocasiões, o ato se-
responde que era um robô. Aproveitan- xual em si parece menos traumático do
do esta pequena abertura de seu mundo que, por exemplo, a incerteza da criança
interno, propus-lhe que juntas fizéssemos ou do adolescente no que diz respeito à
uma história daquele robô. Minha pacien- crença por parte da mãe ou da família
te virou a folha do desenho na parte de com relação à sua história de abuso. A fi-
trás, em branco e escreveu: “Era uma vez gura materna, neste sentido, é de extrema
um robô...” e me ofereceu a folha para importância quando o incesto é pai/pa-
que eu completasse a frase. Assim, fomos drasto e filha/enteada. Muitas pacientes,
construindo juntas a história daquele principalmente as adolescentes, verbali-
robô, que se sentia muito diferente dos zam sua raiva ou tristeza pelo fato de
outros animais da floresta, porque era fei- suas mães não acreditarem em sua histó-
to de lata. Aos poucos, minha pequena ria e ficarem do lado dos parceiros, sen-
paciente foi relatando, por meio da histó- do este um dos motivos pela demora de
ria do robô, a sua história de incesto, de sua revelação.
maus tratos, de desespero, de dor e o Em muitas ocasiões, a história pessoal
quanto sua pele de lata parecia não sen- destas mães continha de fato uma situa-
tir mais nada. Observei que o traumático ção incestuosa, e o reviver da situação,
estava começando a ganhar contornos e sendo a filha o objeto incestuoso, acarre-
a ser elaborado. Aos poucos, as figuras tava culpa ou mesmo negação do inces-
humanas foram ganhando olhos, bocas, to. Em algumas situações, mesmo com
mãos, pernas e braços e o silêncio foi sua própria experiência incestuosa, algu-
artigos
dando lugar a uma comunicação verbal mas mães não conseguiam acreditar na
entre nós duas, que permitia à paciente possibilidade de ocorrência de incesto
conseguir expressar seu desejo de arru- com suas filhas. Outras justificavam o
pulsional > revista de psicanálise >
mar um emprego, ganhar dinheiro, cons- ocorrido como sendo o resultado de pro-
tituir uma família e ser feliz. vocações ou insinuações de cunho sexual
Considero que cada história incestuosa por parte da adolescente, por exemplo,
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como se esta tivesse se apoderando de que não havia sido abusado pelo pai (ou
forma indevida do lugar materno. À me- por qualquer outro adulto que exercesse
dida que o ressentimento cresce, cresce esta função). Assim sendo, o abuso da fi-
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também a hostilidade, o ódio em relação lha poderia acarretar um alívio, algo se-
à filha e um desejo de que esta seja puni- melhante à primeira fase da fantasia ma-
da, humilhada. Nesta caracterização ma- soquista descrita por Freud em seu texto
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pelos pais incestuosos. Bollas diz que o sempre, no nível da ternura. Já os adul-
pai invade o corpo da criança por inter- tos, com uma predisposição psicopatoló-
médio do corpo materno, uma vez que gica, ao se depararem com esta cena, in-
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este, desde o início, teve mais acesso ao cor- terpretam-na como um convite sexual e
po da criança, a higienizou, a ninou, a “confundem as brincadeiras das crianças
amamentou, etc. Diz, ainda, que a crian- com desejos de uma pessoa que já atingiu
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mas etapas da “Síndrome da acomodação do, que camuflava sua idade cronológica.
do abuso sexual infantil”, descrito por Ro- Uma das questões que este caso me des-
land Summit, em 1983. Esse psiquiatra, pertou foi o que tal discurso queria na
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