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Claudia Figaro-Garcia

Trauma e incesto

A clínica com famílias incestuosas permite observar como o incesto pode ser traumático
antes, durante ou depois da sua revelação. Este artigo aborda o tema do trauma por meio
da análise de alguns autores, principalmente no que diz respeito às conseqüências que
o ato incestuoso provoca no psiquismo.
> Palavras-chave: Trauma, incesto, abuso sexual, psicanálise

Clinical practice with incestuous families allows one to observe how incest can be
traumatic before, during or after its disclosure. This article discusses the question of
the trauma on the basis of several authors, especially in regard to the consequences
that incest causes on the mental apparatus.
> Key words: Trauma, incest, sexual abuse, psychoanalysis

O significado do traumático na questão mento da organização hierarquia do gru-


artigos > p. 66-73

do incesto pode variar consideravelmente po familiar. Desta confusão, podem apa-


entre as famílias incestuosas. Ele pode es- recer transtornos que muitas vezes pare-
tar na ocorrência, no conhecimento, no cem comprometer a adequação ao prin-
reconhecimento ou na sua revelação do cípio de realidade para estas pessoas. Tal-
ato incestuoso em si. E também pode se vez o traumático presente na dinâmica
pulsional > revista de psicanálise >

manifestar na constatação do desamparo incestuosa contribua para que a noção de


e da falta de estruturação que caracteri- realidade fique comprometida, propi-
zam um núcleo familiar que permite a ciando uma sensação de sentir-se confu-
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ocorrência deste tipo de violência entre so com relação aos fatos concretos e sua
seus membros. relação temporal. Podemos observar esta
Uma característica muito comum presen- confusão pela dificuldade destas pessoas
te nas famílias incestuosas é a confusão em descrever a história familiar incestu-
de funções familiares revelada por uma osa com uma certa ordem cronológica,
perda de assimetria nas relações ou seja, quando e como o incesto foi des-
intrafamiliares e no conseqüente esvaeci- coberto, há quanto tempo vinha aconte-
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cendo, quem sabia e quem desconhecia, passiva e não é capaz de lhe dar um sig-
o que a família fez depois da revelação. nificado de cunho sexual, sentindo-o ape-
Estes são parâmetros importantes para nas como algo apavorante. No segundo
uma compreensão inicial sobre estes in- tempo do trauma, esta criança, agora na
divíduos e como se organizam como gru- adolescência ou na fase adulta, se con-
po familiar. frontaria com alguma situação em sua
Muitas vezes torna-se uma tarefa árdua vida, não necessariamente com conota-
entender a história incestuosa e seu de- ção sexual direta, mas que evocaria uma
senrolar, seja ele jurídico, social ou emo- lembrança, traços associados àquele pri-
cional. Quem é quem, sobre quem estão meiro momento do trauma, àquela expe-
falando, sobre o que estão falando e com riência infantil. A excitação, ou melhor, o
quem estão falando. Este último aspecto afeto causado pela lembrança será supri-
é mais compreensível, pois estas famílias mido ou deslocado enquanto a represen-
podem vir de encaminhamentos que an- tação traumática permanecerá recalcada,
teriormente incluem entrevistas em dele- agora com mais intensidade – intensida-
gacias de polícia ou em varas da infância de traumática. O raciocínio de Freud con-
e juventude, cuja finalidade é a coleta de templaria a noção de ressignificação trau-
dados para que se possa chegar à verda- mática, ou seja, que os traumas operari-
de dos fatos. am de maneira adiada no tempo, isto é,
O que pude perceber é que a história in- são antigos, mas sentidos como recentes.
dividual e familiar sofre um hiato, ou seja, O fato traumático, que é externo e se-
parece entrar em uma espécie de buraco xual, seria o causador do sintoma histéri-
negro, em que a reconstituição de uma co e sua manifestação o reviver alucina-
ordem psíquica pode estar sujeita a não tório do processo que lhe originou (Uchi-
se organizar novamente. Mas seria este tel, 1997).
buraco negro aquilo que chamamos de Por meio do desenvolvimento da técnica
artigos

trauma psíquico? e da teoria psicanalítica, da descoberta da


O trauma foi um dos principais interesses sexualidade infantil, Freud não pôde mais
de Freud nos primórdios da psicanálise, conceber o trauma em dois tempos como
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quando a “teoria da sedução” foi formu- explicativo dos sintomas histéricos e sim
lada como tentativa de explicação para a que os mesmos seriam resultado de fan-
causa dos sintomas histéricos. O trauma tasias inconscientes, de desejos incestuo-
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era então concebido em dois tempos, sos direcionados às figuras parentais. To-
sendo o primeiro na fase pré-genital e o davia, a teoria da sedução, ou melhor, a
segundo na fase genital. No primeiro mo- idéia de sedução na infância não foi com-
mento, a criança é abusada sexualmente pletamente abandonada por Freud, tanto
por um adulto, geralmente conhecido e que ele a considerou como sendo uma
com quem mantém vínculos de confian- das protofantasias. Como bem escreveu
ça, submete-se ao ato abusivo de forma Uchitel (2000, p. 28):
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Não é necessariamente o abandono da teoria danosas como tentativa de dominar este
da sedução que dá acesso ao Édipo e ao uni- plus de excitações provocado pelo trau-
verso infantil sexuado; essa linearidade Freud ma. Na instalação do trauma, Uchitel
não prevalece. A cena da sedução, a cena trau- (2001, p. 50) aponta que
mática, pode coexistir (e coexiste) com o papel
preponderante que a fantasia tem na organiza- ... a excitação que deveria ter tomado o cami-
ção psíquica, pois as fantasias não desmentem nho da representação, da ligação, ficou presa
todas as cenas de abuso e sedução, mas po- num circuito incessante das excitações sem
dem dar sustentação para que existam. forma. Por isso o trauma não fala, se faz sen-
tir e atua. O que ele repete não é uma repre-
O trauma reaparece com mais intensida- sentação, mas uma percepção sem palavra.
de no texto de 1920, no qual Freud reto-
ma a questão das neuroses traumáticas, Não é raro observarmos estas repetições
cuja manifestação se dava após a ocorrên- na clínica com famílias incestuosas, seja
cia de um forte choque emocional ou mediante relacionamentos conjugais nos
mecânico. O surgimento dos sintomas quais os múltiplos parceiros de uma mu-
decorria mais do impacto provocado lher violentam suas filhas ou de crianças
pelo fator susto, pela surpresa da situa- e adolescentes repetindo situações nas
ção, do que pelo impacto da lesão física. quais se submetem a violências sexuais
Neste sentido, os fatores imprevisibilida- praticadas por um adulto ou por pares,
de e incontrolabilidade do fenômeno como no incesto entre irmãos.
também estão presentes. Um exemplo desta invasão de estímulos
Freud se perguntava por que certos indi- no psiquismo, em que não há espaço
víduos repetiam situações desagradáveis, para a palavra, para a elaboração, foi des-
seja por meio dos sonhos ou de compor- crita em artigo de minha autoria (Figaro,
tamentos repetitivos em sua história 1999/2000). Nesse artigo, relato o atendi-
pessoal. O que estas pessoas estariam bus- mento realizado com uma menina pré-
adolescente, abusada por maus tratos e
artigos

cando? Prazer? Mas de que ordem?


Neste texto, Freud enfatiza que a intensi- sexualmente pelo pai, que sempre perma-
dade das excitações provocadas pelo necia em absoluto silêncio durante os
meses iniciais da terapia. A paciente ape-
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evento externo invade o psiquismo, não


permitindo, ou melhor, não possibilitan- nas desenhava figuras humanas com ca-
do-lhe fazer conexões, criar representa- beça mas sem rosto, com braços mas sem
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ções do ocorrido. Este excesso de energia mãos, com quadril mas sem pernas e pés.
não vinculada e a incapacidade de dar es- Por mais que eu tentasse me aproximar
coamento à mesma, propicia a instalação de seu mundo mental, era como se eu
do trauma. O excesso de energia liberada percebesse contornos sem finalizações,
dentro do aparelho psíquico acaba en- sem identificações, como seus desenhos.
trando em um movimento repetitivo, Um dia, as figuras humanas desaparece-
uma compulsão à repetição de situações ram e em seu lugar foram surgindo aglo-
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merados de formas geométricas que me ca tocassem em suas filhas, como se de
chamavam atenção. Perguntei-lhe, sem fato algo já tivesse pré-determinado para
muita esperança de obter uma resposta, acontecer.
o que era aquilo. Foi quando, de seu si- O atendimento de famílias incestuosas
lêncio mesclado com sua seriedade, ela mostra que, em muitas ocasiões, o ato se-
responde que era um robô. Aproveitan- xual em si parece menos traumático do
do esta pequena abertura de seu mundo que, por exemplo, a incerteza da criança
interno, propus-lhe que juntas fizéssemos ou do adolescente no que diz respeito à
uma história daquele robô. Minha pacien- crença por parte da mãe ou da família
te virou a folha do desenho na parte de com relação à sua história de abuso. A fi-
trás, em branco e escreveu: “Era uma vez gura materna, neste sentido, é de extrema
um robô...” e me ofereceu a folha para importância quando o incesto é pai/pa-
que eu completasse a frase. Assim, fomos drasto e filha/enteada. Muitas pacientes,
construindo juntas a história daquele principalmente as adolescentes, verbali-
robô, que se sentia muito diferente dos zam sua raiva ou tristeza pelo fato de
outros animais da floresta, porque era fei- suas mães não acreditarem em sua histó-
to de lata. Aos poucos, minha pequena ria e ficarem do lado dos parceiros, sen-
paciente foi relatando, por meio da histó- do este um dos motivos pela demora de
ria do robô, a sua história de incesto, de sua revelação.
maus tratos, de desespero, de dor e o Em muitas ocasiões, a história pessoal
quanto sua pele de lata parecia não sen- destas mães continha de fato uma situa-
tir mais nada. Observei que o traumático ção incestuosa, e o reviver da situação,
estava começando a ganhar contornos e sendo a filha o objeto incestuoso, acarre-
a ser elaborado. Aos poucos, as figuras tava culpa ou mesmo negação do inces-
humanas foram ganhando olhos, bocas, to. Em algumas situações, mesmo com
mãos, pernas e braços e o silêncio foi sua própria experiência incestuosa, algu-
artigos

dando lugar a uma comunicação verbal mas mães não conseguiam acreditar na
entre nós duas, que permitia à paciente possibilidade de ocorrência de incesto
conseguir expressar seu desejo de arru- com suas filhas. Outras justificavam o
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mar um emprego, ganhar dinheiro, cons- ocorrido como sendo o resultado de pro-
tituir uma família e ser feliz. vocações ou insinuações de cunho sexual
Considero que cada história incestuosa por parte da adolescente, por exemplo,
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possui um elemento traumático particu- como se a filha merecesse o incesto por


lar, que pode se fundamentar como trau- ter provocado os desejos incestuosos pa-
ma antes, durante ou depois do incesto ternos.
concreto. Ouvi relatos de adolescentes A questão da negação ou falta de prote-
que se incomodavam apenas com o olhar ção da mãe no incesto pai/padrasto e fi-
do abusador, ou de mães que de antemão lha/enteada já foi abordado anteriormen-
preveniam seus parceiros para que nun- te. No livro A traição da inocência. O in-
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cesto e sua devastação, a assistente so- dros psíquicos mais severos que partici-
cial americana Susan Forward (1989) es- pam ativamente do abuso praticado con-
creve um capítulo sobre a “cúmplice si- tra suas filhas, ajudando os maridos du-
lenciosa”, referindo-se à mãe que partici- rante o ato incestuoso.
pa do incesto de forma inconsciente e As descrições acima são uma forma de
que “ ... é incapaz de manter qualquer tipo tentar explicar o comportamento da mãe
de relação generosa, afetuosa, com seu no incesto pai/filha. Todavia, a negação
marido ou com sua filha” (p. 56). Segun- do óbvio incesto ou a descrença presen-
do a autora, o incesto ocorreria como re- te nas mães com quem tive contato fez-
sultado deste abandono conjugal e ma- me pensar se a repetição da história in-
terno. Além da falta de afeto, outra ca- cestuosa não seria realmente, para elas,
racterística da cúmplice silenciosa seria uma tentativa de elaboração de sua pró-
seu desejo em livrar-se de suas obriga- pria experiência de abuso sexual, uma
ções emocionais, fazendo com que ela tentativa de dominar novamente a cena
abdique de seu papel materno e conjugal (re)vivida para entender o que aconteceu.
para a filha. No entanto, há outro tipo de Esta possibilidade faz sentido, mas, talvez,
mãe descrito pela autora, que é aquela também pudesse ser mais um desejo sá-
que possui um envolvimento ativo na re- dico de que outrem sofresse e passasse
lação incestuosas pai/filha, que pode ser pelo que ela passou. Tal hipótese explicita-
em diversos graus, desde estímulos sutis ria a total ausência de aspectos proteto-
até um envolvimento físico efetivo na si- res e amorosos por parte das mães, que
tuação, propiciando o ato propriamente muitas vezes é verbalizada pelas filhas.
dito. São mulheres dependentes tanto Em minha opinião, é possível que a figu-
dos maridos quanto das filhas que aca- ra da filha abusada se mescle, se misture
bam por ocupar os afazeres domésticos. no psiquismo materno com a figura de
A mãe começa a ressentir-se da filha, outra criança, uma irmã ou irmão da mãe
artigos

como se esta tivesse se apoderando de que não havia sido abusado pelo pai (ou
forma indevida do lugar materno. À me- por qualquer outro adulto que exercesse
dida que o ressentimento cresce, cresce esta função). Assim sendo, o abuso da fi-
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também a hostilidade, o ódio em relação lha poderia acarretar um alívio, algo se-
à filha e um desejo de que esta seja puni- melhante à primeira fase da fantasia ma-
da, humilhada. Nesta caracterização ma- soquista descrita por Freud em seu texto
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terna, observa-se a ambivalência de sen- de 1919, “Uma criança é espancada”. Nes-


timentos que sempre está presente na te complexo texto, Freud descreve três fa-
questão incestuosa, neste exemplo temos ses desta fantasia de flagelação para a
a abdicação de sua função e ressentimen- menina: na primeira fase, um adulto bate
to pela filha ter se apropriado da mesma. numa criança de sexo indeterminado, ir-
A autora descreve ainda que há uma pe- mão ou irmã, odiado pela menina; na se-
quena porcentagem de mães com qua- gunda fase, é a própria menina que apa-
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nha do pai e tal fato provoca intenso pra- por meio da autorização da mãe.
zer, e, na terceira fase, a pessoa que bate O pai então representa um pai-mãe no
é indeterminada, podendo ser, por exem- momento que comete o incesto. A mãe
plo, um professor e a figura da menina não fica revestida de potencialidades mascu-
mais aparece na fantasia. Assim, na pri- linas e fálicas, uma vez que o pai fica anu-
meira fase desta fantasia é como se a me- lado no ato incestuoso e surge apenas
nina pensasse: “Meu pai bate na criança como um homem impotente; nas palavras
odiada por mim, não gosta dela, só de mim”. de Bollas, “... um ‘homem-da-mamãe’,
Quanto às mães que foram abusadas e que, debilmente, procura compartilhar
que negam ou não acreditam no incesto seu pênis como um objeto da co-
com as filhas, penso que a repetição do vitimização” (ibid., p. 193).
ato incestuoso parece provocar um alívio A questão do traumático e de sua presen-
inconsciente, mantendo-as na posição de ça no abuso sexual infantil também foi
filhas amadas e ficando em última instân- objeto de estudo e interesse de Sándor
cia com o pai projetado na figura do ma- Ferenczi, que em 1933 escreveu o texto
rido. Daí, talvez, a explicação para a difi- ”Confusão de línguas”. Neste escrito, Fe-
culdade em assumir o apoio e dar credi- renczi aborda a relação entre a criança e
bilidade à filha, permanecendo ao lado seu agressor sexual, sua identificação
dos parceiros. A negação ou a descrença com o mesmo, e aborda a questão do
também poderia servir como defesa con- traumático nos mostrando como a violên-
tra o reviver da situação dolorosa na pró- cia sexual invade o psiquismo da criança,
pria mãe. ocasionando uma possível cisão com a
Bollas (1992) descreve com muita proprie- realidade e uma acomodação à situação
dade o papel da mãe no incesto pai/filha da violência sexual. O autor diz que a crian-
e porque as filhas teriam tanto ou mais ça, por meio de suas brincadeiras, pode
ressentimento em relação às mães que dar ensejo a uma forma erótica, mas,
artigos

pelos pais incestuosos. Bollas diz que o sempre, no nível da ternura. Já os adul-
pai invade o corpo da criança por inter- tos, com uma predisposição psicopatoló-
médio do corpo materno, uma vez que gica, ao se depararem com esta cena, in-
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este, desde o início, teve mais acesso ao cor- terpretam-na como um convite sexual e
po da criança, a higienizou, a ninou, a “confundem as brincadeiras das crianças
amamentou, etc. Diz, ainda, que a crian- com desejos de uma pessoa que já atingiu
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ça sente como se a mãe tivesse autoriza- a maturidade sexual, e se deixam levar


do esta penetração de um corpo paterno por atos sexuais sem pensar nas conse-
revestido sob uma capa materna no cor- qüências” (p. 351). A linguagem do adulto,
po da filha e em seu psiquismo. Esta pe- portanto, permanece no nível da paixão.
netração autorizada pela mãe provoca Poderíamos perguntar como se processa
confusão e culpa na criança, pois a mes- a identificação com o agressor e a acomo-
ma acaba permitindo o pai na sua cama dação desta situação? Cromberg (2001)
>71
sintetizou este processo em etapas, a sa- te o ato incestuoso, ela finge estar doen-
ber: a recusa, ou seja, a criança deveria te ou desentendida do que está aconte-
resistir ao ato violentamente; mas isto não cendo. Como se ela descolasse de seu
ocorre em virtude do medo intenso, pois corpo físico e psíquico e imaginasse ou-
o adulto possui uma autoridade muito tra cena, outro tipo de relacionamento,
grande sobre a criança, constituindo-se outras sensações que não a invasão sexu-
como matriz superegóica de um ego ain- al em seu corpo. Esta despersonalização
da frágil, em constituição; neste sentido, pode ser perigosa, uma vez que a crian-
ocorre uma intensa submissão e obediên- ça pode cindir de vez e não retornar ao
cia, levando a criança a adivinhar o desejo seu mundo psíquico dentro do princípio
do agressor e a um esquecimento de si, a da realidade. Na etapa da acomodação,
ponto do agressor passar a ser sentido por incapacidade de culpar e pelo medo
como uma realidade intrapsíquica, o que de que a revelação possa destruir o
propicia sua identificação com o mesmo agressor, ela acaba acomodando-se no
e, uma vez internalizado, o processo pri- abuso sexual.
mário acaba agindo na defesa patológica O texto de Ferenczi também aponta para
e no conteúdo, transformando-o deliran- a questão do amadurecimento precoce
temente, e a criança mantém a ternura da criança abusada sexualmente em de-
anterior. Portanto, ocorre uma cisão, em corrência da pressão traumática, que o
que uma parte age como se nada tivesse autor denomina de progressão traumáti-
acontecido, mantendo a relação de ternu- ca (patológica) ou de prematuração (pa-
ra; e a outra age internamente, transfor- tológica). Certa ocasião, supervisionei o
mando-se no agressor, na qual a outra caso de uma família incestuosa, na qual
parte está submetida. os filhos abusados de fato ou com sus-
As etapas de cisão e acomodação descri- peita de abuso apresentavam um discur-
tas por Ferenczi se assemelham com algu- so extremamente articulado, amadureci-
artigos

mas etapas da “Síndrome da acomodação do, que camuflava sua idade cronológica.
do abuso sexual infantil”, descrito por Ro- Uma das questões que este caso me des-
land Summit, em 1983. Esse psiquiatra, pertou foi o que tal discurso queria na
pulsional > revista de psicanálise >

que não é psicanalista, após estudar vári- verdade encobrir? O abuso em si ou a


os casos de incesto entre pai e filha, ve- possibilidade da família se deparar com o
rificou que este tipo de relação incestuo- que aconteceu?
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sa inclui cinco etapas: segredo, desampa- O amadurecimento precoce das crianças


ro, acomodação, descoberta e retratação. abusadas, sua impossibilidade de viver a
Na etapa do desamparo, Summit obser- latência, pode remetê-las a uma impossi-
vou que a criança se submete ao abuso bilidade de sonhar. Bollas (1992) descre-
por ser menor e dependente do adulto, ve o quanto a criança abusada é invadi-
sentindo-se culpada e envergonhada e, na da na sua possibilidade de sonhar eroti-
tentativa de aliviar seu sofrimento duran- camente com o pai, ou seja, a realidade e
>72
a fantasia ocupam o mesmo espaço psí- cansar. Possam devanear e voltar para
quico. Neste sentido, a realidade deixa de uma realidade diferente e segura.
ter um aspecto aliviador quando a crian-
ça desperta do sonho com o pai. O autor Referências
diz que o pesadelo BOLLAS, Christopher. Forças do destino. Rio de
Janeiro: Imago, 1992.
... é o pânico psicótico da criança sonhadora
que não é capaz de distinguir o sonho da rea- CROMBERG, Renata. Cena incestuosa. São Paulo:
lidade. É o momento quando sente que o so- Casa do Psicólogo, 2001.
nho é verdadeiro, que ela é apanhada dentro FERENCZI, Sándor. Confusão de línguas. In: ____.
da realidade, e portanto deve despertar para o Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
mundo concreto para encontrar alívio. Esse é p. 97-106.
um reverso do lugar de descanso. O sonhador FIGARO, Claudia Jorge. Famílias incestuosas e a
não-ansioso dorme para descansar, enquanto
psicanálise: os desafios institucionais do
a vítima de um pesadelo não encontra este re-
Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao
pouso em lugar nenhum. (p. 196)
Abuso Sexual – CEARAS. Pulsional Revista de
Para Bollas, este é o pior aspecto do trau- Psicanálise, São Paulo, ano XII-XIII, n. 128-129,
ma do abuso sexual infantil, ou seja, a p. 24-33, dez.1999/jan.2000.
criança fica empobrecida na experiência F OWARD , Susan & B UCK, Craig. A traição da
do devaneio e da construção de um psi- inocência. O incesto e sua devastação. Rio de
quismo pelo temor de sonhar e por não Janeiro: Rocco, 1989.
encontrar este descanso, este alívio, na F REUD , Sigmund (1917[1919]). Uma criança é
realidade. O pai que abusa, na opinião do espancada. Uma contribuição ao estudo da
autor, acaba com o imaginário da filha, origem das perversões sexuais. In: E.S.B. Rio de
pois na mente da mesma não há espaço Janeiro: Imago, 1977. p. 223-53. v. XVII.
para o brincar com ele. _____ (1920[1922]). Além do princípio do
Portanto, toda dinâmica incestuosa pode prazer. In: E.S.B. Op. cit. p. 13-85. v. XVIII.
artigos

provocar elementos traumáticos mais ou SUMMIT, Roland. Recognition and treatment of


menos graves em decorrência da confu- child sexual abuse. In: HOLLINGSWORTH, Charles
são que se instala, seja ela de línguas, de (ed.). Coping with pediatric illness. New York:
pulsional > revista de psicanálise >

corpos, de funções familiares, de sonho Spectrum Publications, 1983. p. 115-71.


ou de realidade. U CHITEL , Myriam. Além dos limites da
Em minha opinião, quando pensamos em interpretação. indagações sobre a técnica
ano XVII, n. 177, março/2004

eficácia, em resultados no atendimento a psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo,


famílias incestuosas, um dos aspectos po- 1997.
sitivos é a possibilidade desta família so- _____ Neurose traumática. São Paulo: Casa
nhar novamente, fazer planos, desejar do Psicólogo, 2000.
algo que não interfira na intimidade e no
sonho individual de seus membros. Pos- Artigo recebido em julho de 2003
sibilitar que todos possam dormir e des- Aprovado para publicação em dezembro de 2003
>73

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