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11 CAPITULO Critica cinematogréfica: Exemplos de andlises ' Gada uma das quatro secbes principais deste capitulo enfativa diferentes aspectos de diversos filmes, Comegamos discutindo trés filmes narrativos clissicos:Jejun de amor (His gir friday), Intriga internacional (North by northwest) ¢ Faca a coisa certa (Do the right thing), Uma ver que filmes ‘nos mostra Leonard ¢ Van Damm lendo a mensagem. Agora sabemos ‘que Eve nao é apenas uma desconhecida simpética, mas alguém traba- Thando para a rede de espiées. Novamente, Roger saber disso muito depois. Em tais casos, a mudanca para um ambit de informagées menos limitado permite que a narrativa nos coloque um pouco acima de Thorn- hill na hierarquia de conhecimento, : ‘Tais momentos evocam suxpresa, mas ja observamos que, de modo geral, Hitchcock alegeva preferir criar suspense (pp. 168-9). O suspense €criado quando se fornecem ao espectador mais informagdes do que a ersonagem tem. Nas cenas que acabamos de mencionar, uma vez obti- do 0 efeito de surpresa, a narrativa pode usar nosso conhecimento su- perior para criat suspense durante varias sequéncias, Apés 0 publico descobrir que George Kaplan nao existe, todas as tentativas de Thornhill t de encontré-lo geram o suspense de saber se ele descobrird a verdade ou nao, Assim que descobrimos que Eve esté trabalhando para Van Damm, Critica cinematogrdfica: Exemplos de andtises 611 | sua mensagem em nome de Kaplan cria em nds a incerteza de saber se Roger cairé na armadilha. - Nestes exemplos, o suspense surge ao longo de uma série de cenas. Hitchcock também usa a narracdo com conhecimento irrestrito para criar suspense em uma tinica cena, Seu tratamento do assassinato na ONU difere marcadamente do tratamento dispensado cena que mostra Roger e sua mie no quarto de hotel de Kaplan, Na cena do hotel, Hitch- cock se recusou a utilizar a montagem paralela para mostrar a persegui- 0 dos espides. Porém, ele a usa nas Nagbes Unidas, alternando a came- ra entre Roger, que est procurando por Townsend, e Valerian, um dos criminosos que estio atrés dele. Antes do assassinato, um movimento de cimera para a direita estabelece a posigao de Valerian na entrada (algo que Roger desconhece completamente). Aqui, a montagem paralela € 0 ‘movimento de camera ampliam nosso quadro de conhecimento e criam suspense quanto ao desfecho da cena. ‘A sequéncia na Union Station de Chicago é tratada de maneira seme- Ihante, No caso, a montagem paralela alterna Roger se barbeando no banheiro masculino e Eve falando ao telefone. Entao, ovtro movimento de camera para a lateral revela que cla esté falando com Leonard, que The passa ordens de outra cabine telefnica. Agora temos certeza de que a mensagem que ela entregard a Roger o colocaré em perigo, eo suspense, portanto, aumenta. (Observe, entretanto, que a narrativa néo revela a conversa em si, Como acontece com frequéncia, Hitchcock oculta determinadas informacdes em prol de surpresas futuras.) O conhecimento de Thornhill aumenta & medida que as linhas de ago se desenvolvem. No terceiro dia, ele descobre que Eve ¢ amante de Van Damm, que ela é uma agente dupla e que Kaplan nao existe. Ele concor- i da em ajudar o Professor em um esquema para que Van Damm néo suspeite de Eve. Quando 0 plano (um falso tiroteio no restaurante do Monte Rushmore) é bem-sucedido, Roger acredita que Eve deixaré Van * : Damm. Novamente, cle foi enganado (como nés fomos). O Professor 1 insiste que ela deve partir para a Europa naquela noite no avido particu- lar de Van Damm, Roger resiste, mas é nocauteado ¢ mantido preso no i hospital. Sua fuga leva & viltima geande Sequéncia do filme. ‘ Aqui enredo resolve todas as suas linhas de aco e a narrativa con- ' tinua a expandir ¢ contrair nosso conhecimento em prol do suspense e da surpresa. Essa sequéncia culminante é composta de quase 300 cenas e dura varios minutos, mas podemos dividi-la convenientemente em trés segies. Na primeira segio, Roger chega a casa de Van Damm e faz uma ex- ploragio. Ele escala até a jancla e descobre, a partir de um didlogo entre ‘ Leonard ¢ Van Damm, que a escultura que eles compraram no leiléo contém um microfilme, Mais importante, ele vé Leonard informar a Van Damm que Eve é uma agente norte-americana. A agio é comunicada, em 612 A artedo cinema: Uma introducao {U1 =m nig nteriona, Thorn 19.13 —.aleonarddenunandotueptaian 14.14 — Quando Yan Damm cage socando assist onsternad, Damm. Leonard, ele & isto 2 partido plano pono de vista de leonard, TAS — Leonard vite a part do PPV 11.16 — Posteorment,oohar de Tamhill 11.17 —_um PP comcimeraatacondizeste deste er ita, na sal de estar, €segudo po. ‘com sua posi no ato da esata boa parte, com o uso de planos ponto de vista (11.12, 11.13; também 3.15-3.17). Em dois momentos, quando Leonard e Van Damm se defron- 1 tam, a narrativa nos oferece planos de ponto de vista dptico de cada um dos homens (11.14, 11.15), mas eles estio contidos, por assim dizer, na percepgao de Roger na medida em quea situagio se desenrola diante de seu olhar, Pela primeira vez no filme, Roger tem mais conhecimento da 11.48 — Quando fvenotaa alta de fsfons, Situacao do que qualquer outra personagem. Ele sabe como o contra- ' claGuisiaa part dopentacevstadeThamhil, bando foi feito e descobre que os viloes pretendem assassinar Eve. ro alo da ecda, Pode-se dizer que a segunda fase da sequéncia tem inicio quando i Roger entra no quarto de Eve, Ela voltou para o andar de baixo e esta, sentada em wm sofa. Novamente, Hitchcock enfatiza a restrigao 20 conhe- : simento de Thornhill através de cenas de PPV (11.16, 11.17). Para alertar Eve, ele usa sua caixa de fésforos adornada com o monograma ROT (um. motivo estabelecido no trem como piada). Ele atira a caixa de fésforos na diregao de Eve. Isso provoca ainda mais suspense quando Leonard a v¥é, mas, despreocupadamente, a coloca em um cinzeiro na mesinha de centro. Quando Eve nota a caixa de fésforos, Hitchcock varia o tratamento do plano ponto de vista do primeira subsegmento. Ali, ele estava dispos- toa nos mostrar o confronto entre Van Damm e Leonard (11.14, 11.15). Agora ele no nos mostra os olhos de Eve. Em vez disso, pelos olhos de Roget, vemos as suas costas entijecerem. Nés inferimos que ela esta olhando para a caixa de f6sforos. (11.18). Novamente, entretanto, 0 al- cance do conhecimento de Roger & 0 mais amplo e o seu plano ponto de i vista inclui a experiéncia de outra personagem. Valendo-se de um pre- texto, Eve retorna para o quarto Roger a alerta para nao pegar 0 aviao, Critica cinematogréfica: Exemplos de andlises 613 ! Quando os espides se dirigem para o campo de pouso, Roger comeca | a segui-los. Agora, a narrativa de Hitchcock se desloca novamente e mos- tra a governanta de Van Damm vendo o reflexo de Roger na televisio. Como ocorse anteriormente no filme, sabemos mais do que Roger e isso. | .gera suspense quando ela sai... e volta com uma arma apontada para ele. ‘A terceira parte do climax ocorre do lado de fora. Eve est prestes a“ Intiga interac, durante a cena no Monte Rushmore, eu qe que Cary Grant se escondesenanarina de incl ese aria i crise de estos. A Convo de Parqus do De | Nessa parte da sequéncia, o alcance de nosso conhecimento é igual 20 partment dori frouum pou hateada de Eve e isto € acentuado através de planos ponto de vista dela. O motivo _amaitea fragumentiotumdeesmeper da surpresa que interrompe um periodo de suspense — aqui, a fuga de ginturse eu gostaa que esem a cena com Roger da casa, interrompendo a tensa caminhada de Eve até 0 aviio — _ Lacaln no are de Cary Grant. Feces a légkca dominaré o restante da sequéncia, delesna hora.” corre em segnida a perseguicao pelos rostos dos presidentes no Monte Rushmore. A montagem paralela nos informa sobre o avango dos espises na perseguicio ao casal, mas no todo a narrativa restringe nosso conhecimento ao que Eve ¢ Thornhill sabem. Como de costume, alguns momentos s4o intensificados por planos ponto de vista, como quando Eve vé Roger e Valeriam rolarem no que parece ser um abismo ingreme. ‘No climax, Eve esté pendurada na borda enquanto Roger segura uma de suas maos ¢ Leonard pisa na outra mao de Roger. E uma situacao clis- sica de suspense, para nfo dizer um cliché. Novamente, porém, a narra- entrar no avido quando um tiro desvia a atengdo dos espides e ela tem | tempo de pegar 2 estatueta ¢ correr para o carro que Roger roubou. — Nite Hitdcoc, dete tiva revela os limites de nosso conhecimento. Ouve-se tiro de rifle € ' Leonard cai no chao. O Professor chegou e capturou Van Damm e um atirador atingiu Leonard. Mais uma vez, 0 conhecimento restrito permi- tiu que a narrativa surpreendesse o piiblico. O mesmo efeito é ampliado no final. Em uma série de planos ponto ‘ de vista, Roger puxa Eve para cima do abismo. Esse gesto, porém, torna-se continuo, no som e na imagem, com o gesto dele puxando-a para cima de um beliche de trem. A narrativa ignora os detalhes de seu resgate ¢ * abrevia o suspense da situagio de perigo de Eve. Uma transigéo assim autoconsciente nao est completamente deslocada em um filme que ar- rama tempo para piadas despreocupadas. (Durante os créditos de aber- : tura, o préprio Hitchcock aparece sendo deixado para fora de um énibus, Quando Roger entra no Plaza Hotel, prestes a mergulhar em sua aven- tura, a miisica de fundo 6 “Is a most unusual day”) Essa reviravolta final mostra novamente que a manipulacdo de nosso conhecimento, momen- : to a momento, resulta em um jogo que oscila constantemente entre 0 provavel e o inesperado, entre o suspense e a surpresa. Faga a coisa certa 1989. Forty Actes and a Mule Filmworks (distribuido pela Universal). Diregao e roteizo de Spike Lee. Fotografia de Ernest Dickerson. Montado 614 A arte do cinema: Uma introdugto por Barry Alexander Brown. Miésica de Bill Lee e outros. Com Danny Aiello, Ossie Davis, Ruby Dee, Giancarlo Esposito, Spike Lee, Bill Nunn, John Turtarro ¢ Rosie Perez. A primeira vista, Fapa a cotsa certa, de Spike Lee, com suas muitas cenas curtas e desconexas, a cimera que se move incessantemente e 0 grande ntimero de personagens sem objetivos, pode nao parecer um filme narrativo classico. B, de fato, de alguraas maneiras, ele se distancia do uso classico. Apesar disso, ele possui uma acéo clara e redundante e © forte impeto para diante que associamos & producao cinematogrifica clissica. Ele também se enquadra em um genero familiar do cinema norte-americano — 0 filme sobre problemas sociais. Além disso, uma anélise mais detalhada revela que Lee também se valeu de muitas carac- teristicas do classicismo para fornecer uma unidade subjacente a este enredo de construgao aparentemente livre, Fasa a coisa certa acontece em Bedford-Stuyvesant, a regio predomi- nantemente afro-americana do Brooklyn, durante uma onda de calor, As tensdes sexuais ¢ raciais se elevam enquanto Mookie, um entregador de pizza irresponsavel, tenta se entender com sua namorada porto-riquenha, Tina, ¢ seu patrio italo-americano, Sel, Um idoso bébado, Da Mayor, tenta se insinuar para sua vizinha de lingua afiada, Mother Sister. Uma discussio cada vez mais intensa entre Sal e dois clientes, Buggin’ Out ¢ Radio Raheem, leva a uma briga na qual Radio Raheem & morto pela Policia, Um tumulto ocorre em seguida e a pizzaria de Sal é incehdiada. Faga a coisa certa possui muito mais sequéncias individuais do que, digamos, Jejumt de amor, com as suas 13 cenas impecavelmente delinea- das (pp. 602-4). Mesmo juntando algumas das cenas mais curtas, ha pelo ‘menos 42 segmentos. Preparar uma segmentagao detathada de Faga a visa certa pode ser itil para outra anslise, mas, aqui, gostariamos de nos concentrar em como Lee integra as suas muitas cenas em um todo, ‘Um meio importante de unificar o filme é 0 cendrio, Toda a narrativa ocorre em um quarteirio de Bedford-Stuyvesant, A Famous Pizzeria de Sal eo mercado coreano do outro lado da rua criam uma ancora espacial em uma extremidade do quarteiréo, e grande parte da a¢io ocorre ali. Outras cenas ocorrem deatro ou diante dos prédios de arenito pardo que ladeiam o restante da rua, Os encontros entre 0s membros da vizinhan- a fornecem causalidade & narrativa. Em cortespondéncia com 0 cenério limitado, a agéo ocorre em uma estrutura temporal restrita — de uma manhé até a manha seguinte, Es ‘truturar um filme em torno de um breve momento da vida de um grupo de personagens € raro, mas néo desconhecido no cinema norte-ameri- cano, como em No turbithdo da metrépole (Street scene), Beco sem saida (Dead end), Loucuras de vero (American graffiti), Nashville e Magnélia (Magnolia). ' Critica cinematogréfica: Exemplas de andlises 615 0 DJ de radio Mister Senor Love Daddy fornece um padrio continuo que também une 0s eventos do filme. Ele aparece em primeiro plano da cena de abertura e sua transmissdo inicial oferece informagSes impor- tantes sobre 0 cendrio ¢ 0 clima — uma onda de calor que intensifica as, tenses das personagens e contribui pata a violenta explosio final. En- quanto 0 Dy fala, a cémera move-se saindo lentamente e se ergue com ‘uma grua, mostrando a rua ainda vazia no infcio da manba, Em inter- valos ao longo do filme, Mister Sefor Love Daddy também faz comen- tarios sobre a aco, como quando diz a um grupo de personagens que ' faz diatribes racistas para “se acalmarem’, A miisica que ele toca cria pontes sonoras entre cenas desconectadas sob outros aspectos, uma vez que os rédios nos diferentes locais frequentemente esto sintonizados em sua estagio, O final do filme ecoao infcio, quando a camera em dolly acompanha Mookie pela rua e ouvimos a vox do DJ fazendo um discur- so semelhante ao da manha anterior e depois dedicando a cangao final ao falecido Radio Raheem. ! Como o ambiente ¢ o uso da radio de bairro sugerem, Faga a coisa certa se concentra mais na comunidade como um todo do que em alguns personagens centrais. Por um lado, hé tradigdes mais antigas que vale @ | pena preservar, representadas pelas personagens mais velhas: a forca moral da matriarca Mother Sister, a decéncia e a coragem de Da Mayon | ‘0 humor eo senso comum dos trés homens que conversam — ML, Sweet ! Dick Willie e Coconut Sid, Por outro lado, es pessoas mais jovens preci- sam criar um novo espirito de comunidade superando o conflito racial e sexual. As mulheres sio retratadas tentando tornar mais responsaveis 08 enraivecidos jovens afro-americanos. Tina pressiona Mookie para que dispense mais atensao a ela e ao filho; Jade da ligdes de moral ao izmao Mookie ¢ a0 excitavel Buggin’ Out, dizendo a este que ele deveria dire- cioner suas energias para fazer “algo positivo na comunidade”. A énfase * na comunidade é sublinhada pelo fato de que a maioria das personagens se trata pelos apelidos. Um dos principais conflitos do filme ocorre quando Sal se recusa a incluir algumas fotos de herdis afro-américanos no seu “tol da fama” de italo-americanos. Sal poderia ter se tornado um Iider respeitado na co- munidade onde tem a pizzaria hé 25 anos. Ele parece gostar dos garotos que comem sua pizza, mas também vé o restaurante como um dominio inteiramente seu, declarando enfaticamente que ele ¢ quem manda. As- sim, ele revela sua falta de integragdo real com a comunidade e acaba incitando o ataque dos membros mais esquentados. ‘Ao criar sua comunidade, Faa @ coisa certa inclui um mimero de personagens inusitadamente grande para um filme clissico. Novamente, porém, uma anjlise mais detalhada mostra que apenas oito deles sio responsdveis pela aco cansal principal: Mookie, Tina, Sal, 0 filho de Sal, Pino, Mother Sister, Da Mayor, Buggin’ Out e Radio Raheem. Os outros, 616 A arte do cinema: Uma introdugao or mals fascinantes e engracados que possam ser, so mais periféricos, reagindo principalmente &s ag6es iniciadas pelos objetivos e contlitos dessas personagens, (Alguns dos modernos manuais norte-americanos ara roteiristas recomendam um méximo de sete a oito personagens importantes para a produgio de um filme claramente compreensivel, de modo que Lee nio esté se afastando tanto da tradicio como poderia parecer.) Além disso, a aso causal principal se enquadra em duas linhas relacionadas, como nos filmes tradicionais de Hollywood: uma envolve as relagdes da comunidade com Sal e seus filhos; a outra trata da vida pessoal de Mookie, Mookie se torna a figura central, unindo as duaslinhas de asio, Faca a coisa certa também se afasta das convengdes narrativas clissi- cas de algumas maneiras, Considere os objetivos das personagens. Nor- ‘malmente, as personagens principais de um filme formulam objetives de Jongo alcance bem definidos que as levam a conflitos entre si. Em Faga 4 coisa certa, a maioria das oito personagens principais cria objetivos apenas esporadicamente; os objetivos as vezes sao intoduzidos tardia- mente no filme e alguns deles so vagos. Buggir! Out, por exemplo, exige que Sal coloque fotos de alguns heréis negros na parede da pizzaria. Quando Sal se recusa eo expulsa, Buggis’ ‘Out grita para os clientes boicotarem a pizzaria de Sal. No entanto, um Pouco depois, quando ele tenta persuadir os vizinhos a participar do boicote, eles se recusam ¢ o projeto perece morrer, Entao, posteriormen- te, Radio Raheem ¢ o deficiente mental Smiley concordam em se juntar a ele, Sua visita a pizzaria para ameacar Sal precipita a acao climética. Tronicamente, o objetivo de Buggin’ Out é brevemente atingido quando Smniley coloca a fotografia de Malcolm X e de Martin Luther King Jr. na parede da pizzaria em chamas — mas, nesse momento, Buggin’ Out esta a caminho da prisio, objetivo de Mookie é sugerido na primeira vez que o vemos, Fle esté contando dinheito e constantemente enfatiza que quer apenas tra- balhar e ser pago. A repetida referéncia 20 fato de que cle deve ser pago 4 noite cria.o nico compromisso do filme, ajudando a enfatizar 0 es- quema de tempo compacto, Ainda assim, seu propésito permanece in- certo, Fle quer dinheiro apenas para se mudar do apartamento da ima, como ela exige? Ou ele também planeja ajudar Tina a cuidar do filho deles? © objetivo de Sal & igualmente vago — continuar 2 operar a pizzaria diante das crescentes tensGes, Da Mayor articula um dos tinicos objetivos realmente clatos no filme, quando ele diz a Mother Sister que um dia ela sera gentil com ele, Apés ele persistentemente agir com cortesia ¢ cora- gem, ela realmente cede ¢ se torna sua amiga. O filho venenosamente racista de Sal, Pino, tem um objetivo —convencer o paia vender a pizza- ria ea sair do bairro negro. Talvez ele consiga realizar seu desejo, embora Critica cinematografica: Exemplos de andlises 617 a narrativa deixe em aberto a questo de determinar se Sal reconstruiré a | pizzaria ou nao. Em filmes clissicos tradicionais, objetivos definidos geram conflitos, uma vez que os desejos das personagens muitas yezes séo conflitantes. / Lee inverte cuidadosamente esse padrio minimizando os objetivos, mas | ctiando uma comunidade repleta de conflitos desde o inicio do filme. Discusses sobre sexo ¢ raga ocorrem frequentemente ¢ hé insultos em | profusio. Tal conflito esté ligado ao fato de que Faca a coisa certa é um filme sobre problemas sociais. Sua mensagem didatica confere-lhe boa parte da sua unidade geral. Tudo que acontece esta relacionado a uma 1 questao central: Com a comunidade dilacerada por tais tensdes, 0 que se pode fazer para curd-ta? | Os objetivos e as agées das personagens sugerem algumas das possi- “€engraeda camo orto et volando port veis maneiras de reagir a situagdo. Algumas das personagens desejam um fe soe mages cas Ege ba pate | simplesmente evitar a atmosfera tensa, ou fugir dela — Pino saindo do problema dos ods Uni, sempre fi (deste bairro, Da Mayor superando a hostilidade de Mother Sister. Mookie que desembarcamos) sempre sei. Ev tnha tenta evitar encrencas ao nie ficar do lado de Sal nem de seus amigos mercionade soem meus trabalho anterires, ‘mas endo nd taka lidado com iso coma as- sunt prinpal” | negros na crescente discusso — apenas a morte de Radio Raheem o faz participar do ataque a pizzaria de Sal que, na verdade, inicia. Outzas per- | sonagens tet resolver seus problemas. Um objetivo esata €0dese- ssc paso sepntuoeruee jo de Tina de fazer Mookie se comportar de maneira mais responsivel eh passar mais tempo com ela eo filho deles. Hé uma sugestio no final de | que ela talvez esteja conseguindo. Mookie recebe o pagamento de Sal, { diz que encontraré outzo trabalho e que vai vero filho. © siltimo plano | | mostra ele andando na rua, agora calma, insinuando que pode realmen- te visitar o filo com mais frequéncia no futuro, A questio central no filme, entretanto, nio é se uma personagem atingiré seus objetivos ou nio. B se os contlites generalizados podem ser resolvidos de maneira pacifica ou violenta, Como o DJ diz na manha . seguinte ao tumulto: “Vamos viver juntos? E juntos que vamos viver?”, Faca a coisa certa deixa questées sem resposta no final. Sal ird re- construir a pizzaria? Mookie realmente vai vero filho? Mais importante € que, apesar de terminado o conflito, a tensdo continua presente na comunidade, esperando para vir i tona novamente, O antigo problema ‘ de como domé-lo persiste eo filme nio atinge um encerramento com- pleto. Na verdade, tal final € tipico do género “problemas sociais”. © conflito imediato pode ser resolvido, mas 0 dilema subjacente que o causou permanece, £ por isso também que hé uma ambiguidade deliberada no final. Assim como chegamos ao fim de Cidadao Kane (Citizen Kane) imagi- nando se a revelacio do sentido de “Rosebud” explica a personagem de Kane, em Faga a coisa certaficamos imaginando o que “a coisa cert’ ‘Apés a ago final da historia, o filme prossegue com duas citages no diegéticas de Martin Luther King Je, ¢ Malcolm X. O trecho de King ) : 11.19 — tm Faraaeisacerte, este diloga em ‘arpoicontracampo ere Jeo. 11.20— Buggin’ Ou sa cdesbescoretasnas Linas ota. 618 A arte do cinema: Una introdugio dlefende uma abordagem nao violenta da luta por direitos civis, enquanto Malcolm X justifica a violéncia em autodefesa. Faga a coisa certa vecusa-se a sugerir qual lider est4 certo — embora # ago narrativa e 0 uso da expressio “por quaisquer meios necessérios” no final dos créditos parecam fazer o filme pender para Malcolm X Ainda assim, a justaposigio das duas citagoes, em combinagdo com a narrativa de final aberto, também parece calculada para estimular o debate. Talvez a implicagao seja que cada posigao é vidvel em determi. nadas circunstancias, A linha de agao envolvendo a pizzaria de Sal ter mina em violencia; ao mesmo tempo, porém, Da Mayor ‘conquista com delicadeza a amizade de Mother Sister, Como em sua estrutura narrativa, 0 estilo de Faca a coisa certa ex- Pande as técnicas tradicionais do cinema clissico, Ele comega com uma Sequéncia de exéditos durante a qual Rosie Perez executa uma danga vigorosa e agressiva ao som do rap “Fight the Power”. A montagem, aqui, E bastante descontinua, jd que as vezes ela veste um vestido -vermelho, As vezes uma roupa de boxeador e, As vezes, jaqueta e calcas, Em um mo- ‘mento ela esté na rua; entéo, repentinamente, aparece em um beco. Essa breve sequéncia, que nao ¢ parte da narrativa, utiliza o estilo espalhafa- ‘oso celebrizado pela MTV e pelos comerciais de TV. O proprio Lee criou tanto videoclipes quanto comerciais. Nada no restante de Faga a coisa certa & tao descontinuo ou radical ‘quanto a sequéncia de créditos, mas Lee usa uma versio mais livre do sistema de continuidade tradicional. Ele se vale de ume ampla gama de {enicas, desenvolvendo algumas cenas na forma de tomadas longas ¢ Virtuos{sticas, trabalhando em outras com campo e contracampo ¢ ainda €M outras com extensos movimentos de camera. Em dois casos, ele até tune duas tomadas da mesma ago, de modo que o enredo apresenite um evento importante da histéria duas vezes: quando Mookie beija Tina pela Primeira vez ¢ quando a lata de lixo atinge a janela de Sal. Um resultado desse estilo variado é a sugestio do vigor e da vatiedade da prépria co- munidade, Apesar das muitas mudangas répidas de lugar, Lee usa recursos de continuidade para estabelecer 0 espaco claramente. Como vimos no Capitulo 6, ele ¢ perito no uso de planos de campo/contracampo sem Fuptura do eixo da asio (6.79-6.84, de Ela quer tudo She’ gotta have it), Pp. 376-7), Faga a coisa certa, igualmente, contém muitos didlogos em campo/contracampo em que as linhas de olhar sto coerentes (11.19, 11.20). Contudo, Lee opta por tratar outros didlogos sem nenhuma mon. tagem. A longa conversa em que Pino pede a Sal que venda a pizzaria & ‘construfda em uma tomada longa (11.21-11.23). A técnica cinematografica frequentemente enfatiza a comunidade como tum todo. Na verdade, a razlo para que o filme fenha tantos seg- mentos é a frequéncia nos cortes de uma agio para outra, A nastativa é, Critica cinematogréfica: Exemplas de andlises 619 1.21 — fsa longa tomada em Faga a ceso 11.22 —..na dkegio de Sale ino e dura até cesta omega com a camera fechand. Sale aparece do lado de for 11.24 — a Nayar bother Sister conversam 11.25 —..passando pele area quande els 14.26 —. para uma vista mals prévima de cevioparaasaledatfente,comacdmeramoven-_chegam nel, descend numa rus Mookie, 2 amin dap dossocom alee, ‘em boa parte, livre, mudando de um grupo de personagens para outro, ¢ raramente se detém em qualquer individuo. De maneira semelhante, movimentos de cimera complexos acompanham as personagens na rua, | captando vislumbres de outras atividades ocorrendo em segundo plano. : Outros movimentos de camera deslizam de uma linha de agio para ou- tra, Na manha seguinte ao tumulto, Da Mayor acorda no apartamento de Mother Sister e a cimera muda para Mookie (11.24-11.26). 11.27 — fat Raheem pede um gedaso de A trilha sonora densa ajuda a caracterizar a comunidade. Enquanto pia Sal, qveo mandou design rata, Mookie passa por uma fileira de casas, o som de rédios sintonizados em diferentes estagdes aumenta e diminui, sugerindo a presenga dos habi- tantes fora da tela, A masica transmitida pelo Df tem um grande papel na unido das muitas cenas breves, com a mesma miisica sendo executada 1 a0 longo de diferentes didlogos. Os diferentes grupos étnicos sia carac~ terizados pelo tipo de muisica que owvem, O estilo também enfatiza os problemas subjacentes da comunidade. Lee enfatiza o comportamento ameagador de Radio Raheem em algumas 44.25 — tm plano partir do tena valde cenas fazendo ele se dirigir diretamente a uma lente grande-angular Mookie caminhando ste um desenho de (11.27). A autoabsorcao e a falta de interesse de Mookie pelo bairro séo sugeridas por um tema visual com vistas de camera alta que o mostra | pisando descuidadamente em uma alegre imagem que uma garotinha estd desenhiando no chao (11.28). O som contribui para as tens6es raciais, como nas cenas em que Radio Raheem perturba as pessoas a0 tocar os seus raps em alto volume, Faga.a coisa certa, apesar da transgressio das convengoes tradicionais de Hollywood, continua a ser um bom exemplo de abordagem contem- 620 A arte do cinema: Uma introdugao Porinea da producio cinematogrifica classica, Seu estilo reflete as téc- nicas mais livres que se tornaram convengées no cinema posterior 205 anos 1960 — uma era em que o impacto da televisio e dos filmes de arte europeus inspirou os cineastas a incorporar um pouco mais de varieda- de ao sistema de Hollywood. Mesmo nos casos em que 0 entedo se fasta da tradicio, isso ocorre, de certa forma, porque Lee adota 0 pro- Pésito basico do filme sobre problemas sociais — fazer-nos pensar ¢ Incentivar 0 debate. Op¢ées narrativas @ producao cinematogrdfica classica Acossado 1960, Les Films Georges de Beauregard, Impéria Films ¢ Société Nou. ‘Yelle de Cinéma. Dirigido por Jean-Luc Godard. Histéria delineada por Frangois Truffaut, didlogos de Godard. Fotografia de Raoul Contatd. Mon- tado por Cécile Decugis. Miisica de Martial Solal, Com Jean-Paul Belmon- 0, Jean Seberg, Daniel Boulanger, Henti-Jacques Huet, Van Doude e Jean- Piecre Melvite De certa forma, Acossado imita um produto hollywoodiano tipico da década de 1940, o filme noir. ‘Tais filmes lidavam com detetives durées, sngsteres ou pessoas comuns atraidas para o crime. Frequentemente uma mulher fatal seduz 0 protagonista e o eavolve em um esqueima Perigoso que promove propésitas ocultos (por exemplo, Reliquia macabra [The maltese falcon) e Pacto de sangue [Double indemnity]). O enredo de Acossado remete a um tema noir comum, o filme de foras da lei envol- vendo jovens criminosos em fuga (como em Amarga esperanga (They live by night] e Mortalmente perigosa [Gun crazy)). A histéria, reduzida ao essencial, poderia servir como base pata uin roteiro de Hollywood. Um ladrao de carros, Michel, mata um poliial e foge para Paris a fim de conseguir dinheiro e fugit para a Iti, Ele tam- bem tenta convencer Patricia, uma estudante de artes norte-americana © aspirante @ escritora com quem ele tem um breve romance, a ir com cle. Ap6s se esquivar por quase dois dias, ea concorda. Justamente quan- do Michel est& prestes a receber o dinheiro de que precisa, Patricia cha- maa policia e eles o matam. Contudo, a apresentagdo da histétia por Godard nunca poderia pas- ‘sar por um produto de estitdio bem acabado, Primeiramente, 0 compor- tamento de Michel é apresentado como impelido pelos préprios filmes ‘que Acossado imita. Ele esfrega o polegar pelos labios imitando seu ido- lo Humphrey Bogart. No entanto, ele é unm ladréo insignificante cuja vida Critica cinematogrifica: Exemplos de andlises 621 escapa a seu controle. Ele apenas pode se imaginar como uma persona- gem durona e romantica de Hollywood, ' A atitude ambivalente do filme em relagdo ao cinema clissico de Hollywood também impregna a forma e a técnica. Como vimos, as nor- mas do estilo e da narrativa clissicos promovem a clareza e a unidade narrativa, Em contraste, Acassado parece desajeitado e informal, quase amador. Ele torna ambiguas as motivacées das personagens e detém-se ‘em didlogos fortuitos. A montagem pula freneticamente. E, enquanto os filmes noir eram feitos em estidios, onde uma iluminagao seletiva podia 11.29 — Ke cera do assasnata de Asad, enyolver as personagens em uma atmosfera taciturna, Acossado usa a Pane stn filmagem fora do estiidio e a iluminagao disponivel. Essas estratégias tornam a histéria de Michel peculiar, incerta e sem ‘glamour. Elas também pedem ao piblico que aprecie 2 maneira como 0 file remodela as férmmulas de Hollywood. Um titulo de abertura dedica © filme 20 Monogram Pictures, um estidio da Poverty Row, que produ- ziu filmes B aos montes. O titulo parece anunciar um filme que tem uma : divida para com Hollywood, mas que ndo se sujeita totalmente 8s suas normas, Como muitos protagonistas nos filmes clissicos de Hollywood, Michel tem dois objetivos principais. Para sair da Franca, ele precisa procarar por seu amigo Antonio, o tinico que pode descontar um cheque para ele. Ele também espera persuadir Patricia a ir com ele e,8 medida que a agio avanga, torna-se evidente que, apesar da postura petulante, seu amor por ela é mais importante do que o desejo de escapar. Em um filme cléssico, esses objetivos impelitiam a ago de maneira razoavelmente constante. Contudo, em Acossado, o enredo progride ‘aos trancos e barrancos. Cenas curtas — algumas bastante desconectadas dos objetives — alternam-se com longos trechos de didlogo aparen- temente irrelevante. A maioria dos 22 segmentos distintos de Acossado tem 4 minutos ou menos. Uma cena de 43 segundos consiste apenas em Michel parando em frente ao cinema ¢ olhando para uma foto de Bogart. 1131— a0 apontars ama As veres, cenas contendo agao crucial sio curtas e confusas. O assas- sinato do guarda de transito, um acontecimento do qual decorre boa : parte do que vem a seguir, é tratado de maneira bastante eliptica. No plano de conjanto, vemos o policial aproximar-se do carro de Michel, estacionado em uma rua lateral. Em um meio plano de conjunto, Michel faz mengio de pegar a arma dentro do carro, Segue-se uma cena proxi- ‘ma de sua cabega, enquanto ouvimos a vor do policial dizer: “Nao se mexa ou eu atiro” (11.29). Dois primeiros planos breves fazem um mo- vimento panoramico ao longo do braco de Michel ¢ da arma (11.30, i 11.31), com o som de um tiro, Temos entéo um vishumbre do policial caindo nos arbustos (11.32), seguido por um plano de conjunto de Michel 1132 —..eamorteda plea sem moster correndo em um campo, Tanta agio foi deixada de fora que mal conse- _42canmente 622 A arte do cinema: Uma introdugio Suimes compreender 0 que esti acontecendo, muito menos julgar se ‘ Michel disparou deliberadamente ou por acidente, Em contraste com a apresentacio frenética dessa agao central, um ongo dtilogo no meio do filme detém quase completamente ¢ progres- sane Suerte dela, Em alguns momentos, Michel tenta avangar em seus " cbietivos,procurando, em vio, telefonar para Antonio e convences Pa- trisie 24 para Roma. Grande parte do didlogo, no entanto, trivial como quando Michel critica a forma como Patricia passa batom ou quando ela Eim determinado momento, Patcicia sugere que no fugiré com ele Epradue nao sabe se 0 aina, Michel: “Quando vocé vai saber?” Patricia “Logo”. Michel: “O que isso quer dizer — Jogo? Em um més, um ano?” Patricia: “Logo quer dizer logo” Embora o casal fega amon, no final da Tonga cena (que dua aproximadamente um tergo desse hme de to mi Rates) sada néo tvemos um passo, para frente ou para ti, na corte do Michel a Patricia, e ele nio fez neshum avango na fuga, Tais cenas 0 favem parecer mais um delinguente errante e qute se dist i facilmente do que o herdi desesperado e motivado de um filme noi. E apenas na cena diante do escritétio do Tribune que outra ago caue sal decisiva ocorre. Um transeunte (representado por Godard) reconhe- ¢ Michel de uma fotografia no jornal e avisa a policia, Isso infers uma cadeia de eventos que levard i morte de Michel. Mesino asim, 6 enredo divaga novamente, Na cena seguinte, Patricia Participa de uma coletiva com um famoso romancista, uma personagei ndo relacionada com ¢ dliferensas entre homens e mulheres, mas as respostas do eacriter Parecem mais divertidas do que significativas, Por fim, Patricia Perguntaa ele qual ésoa maior ambigéo e ele responde enigmaticamente: “Tornan-me inna tale entéo, morrer’ O olhar surpreso de Patricia para a camece encerra cena e sugere a ambiguidade que persistiré no final do filme. Depois que o detetive Vital questiona Patricia no escritério do Tribu. ne, cla € Michel percebem que a policia esté no seu encalgo, Agora, Acossado passa a avangar de uma maneira, de certo modo, mais conven. ' Sfonal. Na cena seguinte, Patricia diz que ama Michel “enormemente’ « cles roubam um carro. Aqui, Michel parece ter atingido seu objetivo “nimantico, quando Patricia se compromete a fugir com ele. Quando Antonio concorda em levar o dinheiro na manhi seguinte, Michel cami- nha em ditecio ao segundo objetivo, Podemos antecipar os possiveis ‘eeultados: 0 casal rd escapar ou um deles — ou ambos — seri morte ‘na tentativa. Na manha Seguinte, entretanto, Patricia confunde nossas Critica cinematogrifica: Exemplos de andlises 623 expectativas ao denunciar Michel para Vital. Mesmo entéo Michel tem ‘uma iltima chance, Antonio chega pouco antes da policia, com dinheiro € um carro para fuga — mas Michel nao consegue deixar Patricia, final é particularmente enigmatico. Enquanto Michel jaz sangran- do, agonizante, Patricia olha para ele. Lentamente, ele faz. as mesmas caras engragadas que fez durante o didlogo no quarto, Murmurando “Isso € realmente nojento” (“Cest vraiment dégueulasse”), ele morre, Patricia Pergunta ao detetive Vital o que ele disse e este repete erradamente as Ultimas palavras de Michel: “Ele disse: Voce ¢ realmente uma vadia” (“I] a dit: ‘Vous étes vraiment une dégueulasse”). Ficamos nos perguntando © que Michel achava nojento — a traiséo de Patricia, seu fracasso em escapar no Ultimo minuto ou simplesmente a sua morte. Na cena final, Patricia otha para a cimera, pergunta 6 que “dégueulasse” significa, es- frega 0 lébio com o gesto inspirado em Bogart usado por Michel duran- te todo o filme (11.33) ¢ vira abruptamente as costas para nés, enquanto a imagem desaparece. Acossado atinge certo grau de concluséo: Michel nao atinge seus obje- tivos. Contudo, restam muitas diwvidas. Embora Michel e Patricia falem constantemente sobre si mesmos, sabemos muito pouco sobre a razdo que os leva a agir como agem. Ao contrario das personagens em filmes classicos, cles nao tém um conjunto de caracteristicas claramente defi- nidas. O filme comesa com Michel dizendo: “De modo geral, eu sou um canalha idiota’, e, de certa forma, suas ag6es confirmam isso. No entanto, nunca conseguimos informagées de fundo que possam explicar suas decis6es. Por que ele se tornou um ladrio de carros? Uma vez que aban- dona despreocupadamente sua comparsa feminina no inicio do filme, por que ele se mostra disposto a arriscar a vida para ficar com Patricia, ‘uma mulher que ele conheceu recentemente? Porque morrer pelo amor de ume mulher indigna ¢ 0 que se espera de um pretenso herdi de Hollywood? As caracteristicas ¢ os objetivos de Patricia so ainda mais amorfos ¢ ambiguos. Quando Michel a encontra pela primeira vez, vendendo jornais no Champs Elysées, ela estd longe de ser receptiva. Apesar disso, no final da cena, ela corre de volta para dar um Beijo nele. Hla vive dizendo que quer um emprego como repérter no Tribune e eserever um romance, €, ‘no entanto, parece renunciar a essas ambiges quando acredita amar Michel. Patricia também diz a Michel que esta gravida dele, mas ainda nao recebeu os resultados finais do teste e nunca cita isso como razdo ara continuar em Paris. Fla diz frequentemente que esta assustada, mas, depois que cla e Michel roubam um carro, observa: “E tarde demais para ficar assustada” Isso sugere que ela resolveu suas diividas e decidiu se arriscar com Michel. Quando repentinamente o trai, ela nao pretende ue ele seja morto — quer apenas fors4-lo a abandoné-la. Ainda assim, seu discurso sobre a razéo de ter delatado Michel néo parece explicar 11.33 —Ogestoenignstee de Paice no fal deAanssado 624 A artedo cinema: Uma introdusao 1134 — Quando Petridasesenta de castaspara uma janlaeacende um cigaro,afuz natural da ‘cena lumina soment ports, realmente sua mudanga de opinto, Assim como Michel é inadequado Para o papel de durio, Patricia é muito ingenua ¢ indecisa para o de mulher fatal clissica, No filme noir com personagens fora da lei, comprometimento mi- tuo destes ¢ intenso; aqui, Michel ¢ Patricia parecem ter poucos senti- ‘mentos fortes sobre o que fazem. Quando a mulher traigoeira engana o her nofr, ele muitas vezes fica amargamente desiludido; Michel, no entanto, aparentemente ndo culpa Patricia por trai-lo. E como se essas Personagens confusas, hesitantes ¢ ambivalentes nao fossem capazes de desempenhar os paptis desespecadamente apaixonados que a tradicao de Hollywood lhes atribuiu, A natrativa eliptica e ocasionalmente opaca de Acassudo & apresenta- a por meio de técnicas igualmente nio convencionais. Como-vyimos, os filmes de Hollywood usam um sistema de iluminagdo de ts pontos, composto de luz principal [key light}, uz de preenchimento {fill light] ¢ Juz de fundo (backlight), cuidadosamente controlado em um estidio ‘cinematogrifico (pp. 226-7), Acossado foi filmado inteiramente fora do estidio, mesmo nas cenas em interiotes. Godard e o fotdgrafo Raoul ‘Coulard optaram por nao usar nenhuma luz artifical nos cendrios, Como resultado, 05 rostos das personagens as vezes fica na sombra (11.34), Filmar fora do estidio, especialmente em apartamentos pequienos, normalmente dificultaria a obtengao de uma variedade de movimentos ¢ angulos de cAmera. Contudo, aproveitando o novo equipamento por- ‘Atl, Coutard conseguie filmar com a cdinera na mio, Diversos travelings Jongos seguem as personagens (11.35). Aparentemente, Coutard sentou. seem uma cadeira de todas para filmer essa cena, assim como para exe cutar movimentos mais elaborados que seguem as personagens 10s in- feriores (11.36), Tais cenas lembram as filmagens fora de estiidio de muitos filmes noir, como as cenas finais do aeroporto em O grande golpe {The killing], de Stanley Kubrick, mas a posigéo baixa da camera e os {1135 — 0 rime encoste de Wichel com 11.36 — Quando Mil vista um agente de Fata, quando ea passe pte Charis Eysées_viagenstenand endcarseu cheqe, oer. vendendo ras ec em um plano de tes quadramentadesia e e volta com aglidade mninstos, «enqanto ele se mavimenta em tna dos mess cearaes dos corer, Critica cinematogréfica: Exemplos de anclises 625 1137 — Quando Wick! pa em feniea un 1138 — Bogart também parece ola para 11.38 —0 imo quad de plan durante caer oa para a fot em eb fle em contracamp. asta de ice aumaatiga narorada, transeuntes que se viram para olhar os atores (como 0 homem & direita em 11.35) chamam a atencdo para a técnica de uma forma que se afasta do uso de Hollywood. Ainda mais impressionante do que a mise-en-scéne é a montagem de Godard. Novamente, ele as vezes segue a tradico, mas, em outros mo- mentos, ee a transgride. Cortes de cumpo/contracampo dentro dos pa- res organizam diversas cenas (11,37, 11.38). De maneira semelhante, quando Michel percebe um homem examinando a foto delatora no jor- ral, a correspondéncia dos olhares & precisa. Uma vex que esse é um 1140—.-eoprinebo plana segunt,ciando momento decisive no enredo, a observancia da regra de 180° evidencia “77 que o homem viu Michel e pode denuncié-lo. ‘No entanto, o que mantém o filme provocante ainda hoje so as suas -violagées da montagem em continuidade. Nos filmes de Hollywood feitos antes dos anos 1960, o jump cut (ou falso raccord) — quando um seg. ‘mento do tempo é eliminado sem que a cimera se mova para uma nova posigdo (pp. 389-93) — era deplorado. Ainda assim, Acossado utiliza jump cuts 0 tempo todo, Em uma cena inicial, quando Michel visita uma an- tiga namorada, jump cuts alteram suas posigdes abruptamente (11.39, ® 11.40), Vimos outro exemplo, quando Godard apresenta uma série de jump cuts de Patricia durante um dilogo no carro (6.137, 6.138, nova- ‘mente mostrando o iltimo ¢ o primeiro quadro de cenas contiguas). ‘Mesmo quando Godard muda a posiséo da cimera entre os cortes, cle pode eliminar um pedago de tempo ou nao estabelecer uma correspon déncia perfeita das posicdes dos atores, Fm varios cortes, a acdo parece avangar de supetio, Um efeito dessa montagem aos saltos [jump cuts] & animar o ritmo. Em alguns momentos, como durante o assassinato do policial, temos de estar bem atentos para acompanhar a acéo. A monta- gem eliptica também faz determinadas cenas se destacarem pelo con- taste: cenas longas de uma tomada tinica com a cimera em movimento contrapsem-se & divagacdo de 25 minutos no apartamento de Patricia ‘Além de evitar cortes na agio, Godard frequentemente expée osten- sivamente os momentos em que nao adere a regra de 180°, como quando Patricia caminha lendo um jornal (11.41, 11.42). Na cena de abertura, 1 626 Aarte do cinema: Uma introdugéo “tm Acossae, le Godard perquntavoa cont ut que pe de plano devia rem seguida ara peencer os requisites da continuidade ‘uadcona Ela dia eee faziaexatamente@ posta® — Raoul Coutand,degraista ‘TAL — Mo primero plano, Pavicase more da T1.A2 —..c,no sequnt, ela esd andande da esquerds paras drt, ‘ita pate a esquerda, ume vilego Megane a rego de campo convenciona. quando 0 comparsa de Michel aponta o carro que ele deseja roubat, as linhas de olhar so bastante indistintas e nao temos uma percepgao cla- 1a da posigao relativa dos dois. © som do filme frequentemente reforca as descontinuidades de mon- tagem. Quando o didlogo das personagens e outros sons diegéticos con- tinuam depois dos jump cuts, somos obrigados a perceber a contradicio: 0 tempo € omitido da trilha visual, mas no da trilha sonora. A filmagem fora de estiidio também criou situagdes em que sons do ambiente inter- ferem no didlogo. Uma sirene passando do lado de fora do apartamento de Patricia soa quase mais alto do que sua conversa com Michel duran- te a longa cena central. Posteriormente, a coletiva com Parvulesco, de forma inexplicdvel, ocorre em uma plataforma de observagao do aero- porto, na qual o som dos aviGes proximos abata o didlogo. Tais cenas nao tem o equilibrio de volumes da trilha sonora bem miixada de Hollywood. A rejeigio de Godard as regras de som ¢ imagem bem ordenados mantém Acossado longe dos retratos glantourosos vistos nos filmes de crime de Hollywood. 4 falta de polimento estilistico condiz com uma aspereza de pseudodocumentirio na filmagem de uma Paris real e fer- vilhante. As descontinuidades também sio compativeis com outras tée- nicas nao tradicionais, como o tema motivo dos olhares misteriosos das ersonagens para a cimera. Além disso, os solavancos na imagem e no som criam uma narrativa consciente de si que faz o espectador perceber as escolhas estilisticas feitas. Ao fazer a mio do diretor aparecer, o filme se apresenta como uma revisdo deliberadamente rade da tradigao, A intengao de Godard nao era critiear os filmes de Hollywood. Em ‘ver disso, ele tomou convengées de género identificadas com os Estados Unidos dos anos 1940 ¢ deu-lhes um ambiente parisiense contemporineo © um tratamento moderno ¢ consciente de si, Com isso, criou um novo tipo de herdi e de heroina. Amantes em fuga, sem objetivos e, de certa forma, banais tornaram-se centrais em filmes posteriores sobre crimino- 80s, como Bonnie « Clyde — Uma rajada de balas (Bonnie and Clyde), Terra de ninguém (Badlands) e Amor & queima-roupa (True romance) Mais amplamente, o filme de Godard tomnou-se um modelo para dire- Critica cinematogrdfica: Exemplos de andlises 627 tores que desejaram criar homenagens exuberantes ¢ reformulagoes da tradigao de Hollywood. Essa atitude seria central para 0 moviraento estilistico que Acossado ajudou a langar, a Nouvelle Vague francesa. (Veja Capitulo 12, pp. 718-23.) Era uma vez em ‘Téquio 1953, Shochiku/Ofuna, Japao. Dirigido por Yasujiro Oza. Reteiro de Ozu ¢ Kogo Noda, Fotografia de Yuharu Aisuta. Com Chishtt Ryu, Chieko Hi- ina, So Yamamura, Haruko Sugimura e Setsuko Hara Vimos como a abordagem hollywoodiana clissica da realizagao cine- matogrifica criou um sistema estilistico (a continuidade) a fim de esta- belecer e manter um tempo e um espago narrativos claros. O sistema de continuidade é um conjunto especifico de diretrizes que pode ser seguido pelo cineasta. Porém, alguns cineastas nao utilizam o sistema de conti- nuidade. Eles podem exibir ostensivamente as diretrizes violando-as, como Godard faz em Acossado, a0 criar um filme informal, porém vi- goroso, Ou eles podem desenvolver um conjunto de diretrizes alterna- tivas — to restritas quanto as de Hollywood — que Ihes permita pro- duzir filmes completamente diferentes dos clissicos. Yasujiro Ozu é um desses cineastas, Sua abordagem para o desenvolvi ‘mento narrativo difere da utilizada em filmes mais classicos como Jejum de amor ou Intriga internacional. Em vez de fazer dos eventos narratives © principio organizador central, Ozu tende a descentralizar a narrativa, Como resultado, as estruturas espagotemporais sio ressaltadas e criam o seu proprio interesse. Era uma vez em Téquio, o primeiro filme de Ozu a causar impresséo considerivel no Ocidente, oferece uma introducao esclarecedora a algumas das estratégies cinematogréticas caracteristicas de Om, : Era uma vec em Téquio apresenta uma narratiya simples sobre umn casal provinciano que visita os filhos adultos em Téquio e se vé tratado ‘como uum estorvo inconveniente. A narrativa ¢ calma e contemplativa e, no entanto, o estilo de Ozu nao se conforma simplesmente ao sistema de producio cinematogréfica japonesa, caracteristicamente espiritual. Na verdade, os cineastas ¢ criticos japoneses ficaram tao perplexos com sua abordagem nio classica quanto o piiblico ocidental. Ao criar um método alternativo sistematico para modelar as relacées espagotemporais, Ozut busca envolver mais profundamente a atengao do espectador. Em Hollywood, 0 estilo é submisso & narrativa, porém Ozu o transforma em um parceiro igual. Veros a a¢do narrativa, as relagbes espaciais e as re- : lagbes temporais desentolarem-se simultaneamente ¢ todas sio igual- mente dramaticas ¢ envolventes. Como resultado, mesmo uma netrativa simples como a de Era uma vez em Téquio torna-se nova e fascinante es 628 A arte do cinema: Uma introducdio A natrativa de Era uma vez em Téquio, pelos padres classicos, é um tanto obliqua, Algumes vezes tomamos conhecimento de importantes eventos narrativos somente apés eles terem ocorrido, A tiltima parte de Era uma vez em Téquio, por exemplo, envolve uma série de acontecimen- tos em torno do sibito adoecimento e morte da avé da familia. Apesar de os avés serem as duas personagens centrais do filme, nao vemos a avé adoecer. Sabemos disso somente quando o filho ¢ a filha recebem tele- gramas com a noticia, Similarmente, o falecimento da avé ocorre entre ccenas. Em uma cena, os filhos encontram-se ao lado de sua cama; na cena seguinte, eles choram sua morte. Apesar disso, essas elipses nao evidenciam um filme de ritmo rapido como Jejum de amor, que precisa abranger rapidamente uma grande extensio narrativa, Pelo contrario; as sequéncias de Era uma vez em ‘Féquio muitas vezes se detém em detalhes: a conversa melancélica entre av6 € 0s amigos em um bar, quando discutem a decep¢ao com os filhos, ou a caminhada de domingo da avé com o neto. O resultado ¢ uma al- teragao no equilibrio narrativo. Elipses retiram a énfase de acontecimen- tos centrais da narrativa, enquanto os eventos narrativos que de fato vemos no enredo sao simples e minimizados. Acompanhar esse afastamento na apresentacao dos acontecimentos ‘mais draméticos da narrativa ¢ afastar-se do espaco narrativamente sig- nificativo. As cenas nao comegam e terminam com planos que enquadrem 6s elementos narrativos mais importantes da mise-en-scéne. Em vez. dos Tecursos usuais de transicdo, como fusio ¢ escurecimento, Ozu normal- ‘mente emprega uma série de planos transicionais separados, ligados por cortes. E essas cenas de transi¢ao muitas vezes mostram espacos nao relacionados diretamente & agio da cena; os espacos geralmente estio Préximos de onde a agao ocorreri. A abertura do filme, por exemplo, ‘mostra cinco cenas da cidade portuéria de Onomichi —a bata, colegiais, uum trem passando — até que a sexta cena revela os avés preparando-se " para a-viagem a Téquio, Apesar de alguns temas importantes aparecerem pela primeira vez nessas cinco primeiras cenas, nenhuima causa narrati- va coloca a ago em andamento, (Compare com as aberturas de Jejunt de amor e Intriga internacional.) As cenas de transigio nao aparecem somente no inicio. Vérias sequéncias em ‘Téquio comegam com cenas de chaminés de fabricas, embora a ago nunca ocorra nesses locais. Essas transigdes possuem uma fungi minima come planos introdu- torios. As vezes as transigdes mio estabelecem nenhum espaco, mas ten- dem a confundir o espago da cena posterior. Apés.a nora, Noriko, receber ‘uma chamada telefénica no trabalho e tomar conhecimento da doenca da av6, a cena termina com um plano médio da nore sentada pensati mente A mesa; 0 tinico som diegético ¢ o ruido das maquinas de escrever (11.43). Uma transigiio musical ndo diegética aparece nesse plano. Hi entio um corte para um plano de conjunto em cdmera baixa de um a Critica cinematogrdfica: Exemplos de andlises 629 1143 — Em fo.uravezem Fiquio, am plane 11.44 —...evaa um plavo de um pid. de Noto er sua mesa prédio em construgao (11.44). O barulho de rebitadoras toma o lugar do das maquinas de escrever e a mtisica continua. O plano seguinte é outra cimera baixa do canteiro de obras (11.45) Um corte muda o local para a clinica do filho mais velho, 0 Dr. Hi- rayama. A irmé, Shige, est presente, A nuisica termina e uma nova cena comega (11.46). Neste segmento, os dois planos do canteiro de obras nio sio necessérios para a agio. O filme nio nos da nenhuma indicagao de onde fica prédio em construgdo. Supomos que seja perto do escritrio de Noriko, mas o ruido de rebitadoras nao é audivel nas cenas no interior do escritério. Como de costume, procuramos pelas fungées de tais recursos estilis- ticos. F dificil atribuir significados explicitos ou implicitos a tais cenas de transiséo. Por exempla, seria possivel propor que as cenas de transig40 simbolizam a nova Toquio, estranha para os avés, que vem de um povoa- do que lembra o Japio antigo. Porém, muitas vezes os espacos de tran- sigdo ndo envolvem locais externos e algumas cenas se passam dentro das casas das personagens, Uma funcdo mais sistematica, sugerimos, 6 narrativa ¢ estd relacionada ao fluxo de informagées da histéria. ‘A narrativa de Ozu se alterna entre cenas de ago na histéria ¢ inser- Ges diversas que nos aproximam ou nos afastam delas. Ao vermos filme, comegamos a formar expectativas sobre as cenas inseridas, Ozu enfatiza o estabelecimento de padrées estilisticos criando expectativa sobre quando uma transigdo ocorreré ¢ o que cla mostrard. Os padrdes estabelecidos podem retardar nossas expectativas ou mesmo criar certa surpresa. Por exemplo, no inicio do filme, a Sra. Hirayama, esposa do médico, discute com o filho, Minoru, onde colocar a mesa dele para liberar espa- $0 para os avés. O assunto é deixado de lado e segue-se uma cena mos- trando a chegada dos avés. Esta termina em uma conversa num quarto do andar de cima, Novamente, ouve-se miisica de transigao ao final da cena, A cena seguinte enquadra um corredor vazio no andar de baixo, onde se encontra a escrivaninha de Minoru, mas néo hé ninguém na cena. Segue-se um plano de conjunto exterior mostrando criangas cor- 11.46 — antes de passer para local da cena sequinte, “toa penso que o file tenha uma gramdtica, Noo penso que o cinema tenha apenas uma fer. (na Seo sated éum bon fe entoee crow «sua paige gromitca.? Yasui Ou, dretor 630A arte do cinema: Uma introdusio TLAT — Ke sale de beleraos cates sstems- ‘lcs movem-se de um lado do exo dea. 1148 — para out do, 1149 —~ devote endo em penhasco perto da casa; as criangas nao sfo personagens da acdo, Finalmente, hé um cotte para o interior que mostra Minora na escrivaninhe do pai na parte da casa em que funciona a clinica, estudan- o. Aquia montagem cria uma rota muito inditeta entre duas cenas, indo Primeiramente 2 um local onde esperamos que a personagem esteja (sta escrivaninha), mas onde ela nao est4; entdo, a cena se afasta completa- mente da ago, para o exterior. Apenas entio, na terceita cena, a perso- ‘nagem feaparece e a aco continua. Nessas passagens de transicao, surge jum tipo de jogo que nos convida a formar expectativas ndo apenas sobre a asao da histéria, mas também sobre a montagem e mise-en-scéne. Os padroes de montagem de Ozu nas cenas sto tao sistemsticos quanto 98 de Hollywood, mas tendem a estar em nitida oposicdo as regzas de continuidade. Por exemplo, Ozu néo respeita a linha dos 180 graus, o cixo da agio. Tampouco ocasional a violagao dessas regras, como é 0 caso de John Ford em No tempo das dilgencias (Stagecoach) (p. 373). Oxu #requentemente corta 180 graus através da linha para enquadrar 0 espago dla cena da diresao oposta. Isso, naturalmente, viola as regras do eixo da acdo, uma vez que as personagens ou objetos & direita na primeira cena aparecerio & esquerda na segunda e vice-versa. No inicio de uma cena no saldo de beteza de Shige, o plano médio interior inicial enquadra Shige do lado oposto a porta da frente (11.47). Um corte de 180 graus tevela entéo um plano médio de conjunto de uma mulher sob um secador de cabelos; a camera esté direcionada Para o fundo do salao (11.48), Outro corte de 180 graus apresenta um novo plano de conjunto do comodo, novamente directonado para a porta, € os avés entram ‘no salao (11.49). Em vez de ser uma violagio isolada das regras de continuidade, essa éa ‘maneira tipica de Ozu enquadrar e montar uma cena. Ozu um mestre em raccords de aco, mas muitas vezes ele realiza isso de maneitas incomuns, Por exemplo, enquanto Noriko ea avéandam até a porta do apartamento de Noriko, hé um corte de 180 graus (11.50, 1,51). A correspandéncia nos movimentos das mulheres ¢ perfeita, mas, como a altura e distancia constantes da camera criam enquadramentos 11.50 — Oeste dngul rontl de NorRo 4a 11.51 —..héum corte param angulo wase- a6. todels, Critica cinematogrifica: Exemplos de andlises 631 assim similares, 0 efeito do corte é momentaneamente fazer parecer que © par colide, Suas posicdes na tela, da esquerda para a direita, também : so invertidas abruptamente, algo normalmente considerado um erro de continuidade, Um cineasta cléssico tentaria evitar um corte assim inco- mum, mas Ozu os utiliza aqui e em outros filmes como parte de seu estilo caracteristico. Como ilustram estes exemplos, Oza nao restringe a camera e os pa- drdes de montagem ao espago semicircular ao lado do eixo da agdo, Seus cortes acorrem em um circulo completo ao redor da agéo, normalmen- te em segmentos de 90 ou 180 graus. Isso significa que os planos de fundo mudam drasticamente, como ema ambos os exemplos anteriores, 1152 —Eama ecen iin Nos filmes de Hollywood, a cimera quase nunca ctuza o eixo da agio em dirego A quarta parede. Como os arredores mudam com mais fre- quéncia em Era uma vez em Téquio, eles se tornam mais proeminentes em relagio a acdo e 0 espectador deve prestar atencio ao cendrio ou fi- card confuso. Os planos de transigo que prolongam ou frustram as expectativas do observador e 0 espaco em 360 graus que nos convida a notar os ar- redores podem funcionar em conjunto, Quando os avés visitam um spa em Atami, a cena se inicia com um plano de conjunto de um corredor (11.52). Ouve-se misica dangante de estilo latino tocar fora de campo varias pessoas andam pelo corredor. A cena seguinte (11.53) um plano 11.53 — Bawa veren Tquio de conjunto de outro corredor no andar de cima, com uma criada car- regando uma bandeja; mal se percebem dois pares de chinelos no vio da porta, na esquerda inferior. Em seguida vem um plano médio de conjunto de um corredor ao lado de um patio (11.54). Mais pessoas passam. Segue-se um plano médio de um jogo de majongue (11.55); hé ‘0 som de conversa e de pecas sendo movidas. Ozu corta em 180 graus 0 eixo, enquadrando outra mesa de majongne (11.56). A primeira mesa agora esta no plano de fundo, vista do lado oposto. O corte seguinte retorna para o plano médio de conjunto no corredor do patio (11.57). Os avés, que sio as tinicas personagens importantes presentes no spa, ndo aparecem em nenhuma dessas cenas. Finalmente, hé um plano mé- 11.55 — froma vr em Tigut 11,56 — fro uc vr em Fu 11.57 — Fauna verem Toque. 1st — versam. Aaarte do cinema: Uma introdugéo jaro amigo enquanta eles con- 11.59 — frou ver em Tui. 11.60 — Ua corespondénda gia riada «turand anna no cote do av dio de dois pares de chinelos ao lado da porta no corredor do andar de cima (11.58), sugerindo que aquele é o quarto dos avés, Os painéis de vidro na parede refletem o movimento animado da festa fora de campo ¢ ainda se podem ouvir conversas € misica alta, Um plano médio dos Hirayamas na cama, tentando dormir com o barulho, revela finalmente a situagdo narrativa e uma conversa entre o casal tem inicio (11.59), Por sete planos o filme explora lentamente 0 espago da cene, deixando-nos descobrir a situagao gradualmente. A presenga dos chinelos do segundo plano (11.53) é quase imperceptivel. Ela sugere que os avés esto ali, mas a revelagio de sua localizagao é adiada por virios outros planos. Dessa maneira Ozu afasta a nossa atengao das funcdes estritamente causais do espago ¢ torna 0 espaco importante por si s6. Ele faz 0 mesmo com o espaco plano da tela. (Exemplos de correspondéncias graficas nos filmes de Ozu séo encontrados em 6,128-6.131.) Esse recurso estilistico é caracteristico de Ozu, que raramente utiliza a correspondéncia gritfica para fins narratives. Em Era uma vez evt Téquio, uma situagao de con- versa leva a um padrio de campo/contracampo, mas, ainda, com cortes de 180 graus cortando do eixo da aco. Os dois homens conversando séo enquadrados para que ambos olhem para a direita e para fora da tela. (Em Hollywood, os defensores do sistema de continuidade diriam que isso indica que ambos esto olhando para a mesma coisa.) Por estarem posicionados de maneira semelhante no quadro, o resultado é uma for- te correspondéncia grifica de um plano para o outro (11.60, 11.61). Nesse aspecto, 0 estilo de Ozu deve algo & forma abstrata (Capitulo 10, pp. 559-69). E como se ele buscasse fazer um filme narrativo que, ainda assim, tornasse as similaridades grificas tio evidentes quanto em um. filme abstrato como Balé mecanico (Ballet mécanique) ‘A utilizacéo do tempo e do espaco em Era uma vez em Téquio nao é intencionalmente obscura nem possui funcao simbélica na narrativa. Em ver disso, ela sugere uma relago entre cenério, duragao e a¢a0 da hist6- ria diferente da que existe nos filmes classicos. Espago ¢ tempo nao possuem somente a simples fun¢éo de criar uma linha narrativa clara sem chamar a atengo para si. Ozu os evidencia e os torna elementos Critica cinematogrdfica: Exemplos de andlises 633 estéticos proeminentes por si mesmos. Grande parte da atragao do filme reside no tratamento estrito, porém brincalhio das figuras, dos cenirios edo movimento, Ozu nio elimina a narrativa; ele a abre. Era uma vez em Toquio e seus outros filmes permite que outros recursos estilisticos existam ao lado da narrativa, O resultado é que o espectador é convida- do a participar de seus filmes de uma nova forma, Amores expressos 1994, Jet Tone, Hong Kong. Dirigido por Wong Kar-wai, Roteiro de Wong, Kar-wai, Fotografia de Andrew Lau Wai-keung e Christopher Doyle. Com Brigitte Lin Ching-hsia, Takeshi Kaneshiro, Tony Leung Chiu-wat e Faye ‘Wong Jingwen. Cineastas contemporaneos de Hollywood as yezes exploraram um. tipo de trama que recebeu o nome de te‘a da vida. Em vez de duas linhas primérias de ago, como em Jejum de amor ou Intriga internacional, al- guns filmes recentes entretecem um grande nimero de linhas de enredo, nuitas vezes envolvendo varias personagens. 14 precedentes, como Gran- de Hotel (Grand Hotel, 1932) e Nashville (1975), porém, nos anos 1990, fil mes como Short cuts —- Cenas da vida (Short cuts), Pulp Fiction — Tempo de violencia (Pulp Fiction), Magnélia, Traffic: Ninguém sai limpo (Traffic) ¢ Simplesmente amor (Love actually) tornaram mais comum esse tipo de construgao de enredo, As tramas podem inicialmente parecer completa- mente isoladas, mas elas normalmente convergem, revelando conexées causais inesperadas, Em Magndlia, as personagens sio ligadas pela tele~ visio (todas esto conectadas de uma maneira ou outra ao produtor de televisdo Earl Partridge) e por encontros casuais (como quando o policial encontra a filha descontente de Partridge). O piiblico espera que uma trama “teia da vide" revele relagdes ines- peradas entre as diferentes personagens. Visto desse ponto de vista, Amto- res expressos constitu um experimento interessante em forma nao clas- (rias distintas, cada uma organizada ao redor de um grupo diferente de personagens, e as duas histérias nao sao intercaladas, mas simplesmente colocadas Iado a lado. Uma pergunta normalmente feita pelos espectadores é: 0 que o diretor Wong Kar-wai consegue ao colocar essas duas histérias no mesmo filme? Na primeira hist6ria, o Oficial 223 (para facilitar, vamos chamé-lo de Oficial 1) acaba de terminar com a namorada e vive na esperanga de que ela o aceite de volta antes de 1° de maio, seu aniversitio de 25 anos. Va- gando pela cidade & noite, ele encontra uma mulher misteriosa de éculos escuros € peruca loira. Fle nfo sabe que ela comanda uma organizagao de tréfico de drogas. Ela contratou alguns marginais indianos para en- golir sacos de cocaina € voar para fora do pais, porém eles fagiram com *{0s patrocinadores na Asia} sempre perguntam: ‘Eumabistiradepeliialoude gangster Endo voce precise escother. Uma ov outta... Entdo, cam o-Amores expressos, eu dfsse que é uma histori de pail ee gngtr am gingers tern poll, Mas nda € una tide gagsees « polio opens sore suas wes sa quee” Wong Kar-wal,dretor 634 Aarte do cinema: Uma introdugao as drogas. Fla deve recuperar os produtos ou enfentar a ira do chefe, um. ocidental que comanda um bar. O Oficial 1 a encontra em um bar ea leva para um hotel barato, onde ela cura a bebedeira e le faz um lanche. Pela manha, ele a deixa; ela deixa uma mensagem carinhosa no pager dele antes de retornar ao bar e matar seu chefe com um tiro. A segunda historia, mais longa, apresenta o Olicial 633 (Oficial 2), que esté feliz com sua namorada, uma comissiria de bordo. Porém, um dia ela © deixa. Ele ainda esté tentando superar 0 relacionamento quando Faye, ‘uma balconista de sua lanchonete favorita, a Midnight Express, se interes- sa por ele, A comisséria de bordo deixa as chaves do Oficial 2.na Midnight Express e Faye as usa para explorar o apartamento enquanto ele esté fora. Ela limpa e redecora o lugar para tentar animé-lo, deixando sabao e toa- Thas novas e enchendo seu aquirio com peixes. Apés surpreendé-la no apartamento, ele percebe que ela esta flertando com ele; entio, ele guarda as coisas da antiga namorada e sai para se encontrar com Faye. Ela, porém, ndo aparece e vai para a Califérnia — 0 Tugar que ela sempre sonhot visitar. Passado um ano, 0 Oficial 2 comprou a Midnight Express ¢ a estd reformando, quando ela retorna. Agora ela é comisséria de bordo ¢ hé uma insinuagio de que o romance entre eles pode finalmente comegar. O que liga as duas partes? Ambas utilizam trabalho de cémera na mio, :mdsica sombria e comentarios ocasionais em voz over. Contudo, um es- tilo comam normalmente nao basta para justficar a unio de duas his- ‘t6rias. Uma vez. que ambos os protagonistas sio policiais, esperamas que les se encontrem, o que nunca acontece; 0 primeiro é um detetive & Paisana, enquanto o segundo faz a sua ronda regularmente, Nem 0 tré- fico de drogas da loira misteriosa interfere nas atividades dos policiais. © Oficial 1 nao esta ciente de sua atividade criminosa e 0 Oficial 2, por ‘exemplo, ndo investiga o assassinato do dono do bar, como poderia fazer ‘em outro tipo de trama. As duas linhas certamente compartilham um local: 0 Oficial 1 e 0 Oficial 2 frequentam a Midnight Express. Contudo, {sso nao conecta as partes causalmente, uma vez que o Oficial 1 encontra Faye apenas ume vez ¢ nunca entra em disputa pela sua afeigéo. Como que para atigar os espectadores mais atentos, Wong insere na primeira parte um plano, breve e distante, de cada uma das personagens principais, que aparecero na segunda parte — 0 Oficial 2, a comissétia de bordo Faye (11.62). Porém, eles séo desconhecidos para nés quando 0s vemos pela primeira vez € néo so apresentados como méveis da ago na pri- meira parte. E como se Wong fizesse a justaposicéo de duas historias de modo a ‘nos obrigar a criar nossas préprias conexies entre elas. Ao analisar a forma ¢ 0 estilo narratives, podemos revelar algumas similaridades ¢ diferengas desconcertantes, que, por sua vez, indicam um conjunto de temas que unifica o filme, Critica cinematogrifica: Exemplos de andlises 635 11.62 — Em Amores pesos, erquantoaloi- 1a misteriosa passla por fore de uma lea, Faye (que no coneemos ata parte2} sa com un {ue de pli (talvezdstnado 20 apartamen- todo Ofcal 2, Em termos narrativos amplos, as duas partes esto em nitido contraste. A primeira acontece na peninsula Kowloon, em Hong Kong, nas pro- ximidades das Chungking Mansions, um quarteirao decadente de hotéis baratos, lojas e restaurantes indianos. (0 titulo cantonés do filme signi- fica “Selva de Chungking” ¢ isso pode levar o espectador nativo a acre- ditar que a segunda hist6ria retornara ao bairro.) A segunda parte acon- tece na ilha de Hong Kong, do outro lado da baia de Kowloon, nos arredores da Midnight Express. Na Kowloon da primeira parte, o crime prolifera; o Oficial 1 persegue suspeitos com a arma em punho, enquan- to a loira trabalha para um cartel de drogas. A parte 2 apresenta um mundo muito menos ameagador, onde 0 romance pode florescer e 0 policial faz um lanche durante a ronda. © titulo em ingles do filme fun- 1 de as locais basicos de cada parte, unindo as Chungking Mansions e a Midnight Express em uma tinica frase. ‘As duas partes também oferecem esquemas temporais muito diferen- tes. A primeira se passa em pouco tempo, cerca de quatro dias, e a ago trabalha com prazos. O Oficial 1 deu a May, sua namorada, o més de abril . como limite para voltar com ele, © prazo da loira para a operagao de tréfico foi definido por seu chefe e ela o cumpre ao atirar nele e fugir de Hong Kong em 1¢ de maio. A segunda parte possui um fluxo de tempo mais solto ¢ nenhum prazo estritamente determinado. No perfodo de algumas semanas, a namorada do Oficial 2 0 deixa, Faye invade o apar- tamento dele, ele muda de ronda e, aps uma série de encontros informais, eles finalmente marcam um encontro... que Faye ignora, indo embora repentinamente, A ago € concluida um ano depois, quando ela volta para Hong Kong. No entanto, em meio a esses amplos contrastes, alguns ecos ressoam. Cada um dos homens esta saindo de um relacionamento; cada um en- contra uma mulher por acaso; répida ou lentamente, cada um deles se apega & mulher, que repentinamente se vai. Os objetivos das personagens também sio reveladores. © Oficial 1 procura uma nova mulher para amar e,embora o Oficial 2 esteja contente em ficar sozinho, Faye parece tentar confortar seu corasao partido. Esses objetivos so apresentados mais en aia ti 636 A arte do cinema: Uma introdugao 11.63 — 0 fice 1 em cas, eesolad, 11.64 — Ofc 2 pensa sobre se amr perdido, vagamente e procurados de maneira mais errética do que em um filme de Hellywyood, mas os paralelos sagerem que Amores expressos gira em forno do romance. Quanto mais detalhadaniente observamos as cadeias de causa ¢ efeito, os motivos eo estilo visual, mais evidéncias encontrs, mos de que o filme esté comparando maneiras pelas quais as pessoas tentam encontrar o amor, Os problemas romfnticos dos dois policiais moldam suas atitudes para cor 0 tempo. Nenhium dos dois é sensivel ao fato de que os rela. Clonamentos amorosos devem ajustar-se & mudanca. Na primeira parte, dominade pelo ritmo rapido e pelos prazos, o Oficial 1 esta softendo he um més ¢ agora quer encontrar uma nova namorada imediatamente. 0 Oficial 2, tepentinamente abandonado pela namorada, nao consegue Juntar energias para recomecar sua vida amorosa. Ambos preenchem o Periodo de espera com cictos de comportamento repetitive. O Oficial 1 importuna a familia de May c liga para antigas namoradas chamando-as Para sair.O Oficial 2 vista repetidamente alanchonete Midnight Express, Primeiramente para comprar lanches para si e para sua namorada, depois simpesmente para fieatcismande, Apés trocar de turno, ele freqacata tums barraca de comida em outra rua. Apesar de um querer uma aven. {ura repentina e.0 outro cair na ratina, ambos sio pegos om espirais de imatividade, Wong entatiza isso através de imagens paralelas da apatia dos dois homens em seus apartamentos (11.63, 11,64). Files precisam de mudanca — ou, segundo o motivo que impregna o filme, uma mudanga de cardépio. A comida é um elemento central eo, amas as histérias, anunciada no inicio nos vertiginosos planos em tra. velling pelas Chungking Mansions, com os seus cafés cheios de frequen- ‘adores. © Oficial 1 mede 0 tempo que espera por May (que adorava abacaxi) usando latas de abacaxis, comprando a cada dia uma com data de vencimento em 18 de maio, No éltimo dia, ele se empanturra com ae 50 latas que havia guardado. Quando ele encontra a loira, pergunta se ela gosta de abacaxi. Da mesma maneira, 0 Oficial 2 sempre pede a salada tit Critica cinematogrdfica: Exemplos de andlises 637 11.65 — Apéssua corde matinal a Oda! recebea mensagem dessiands 11.66 — 0 Ofc 2 Jagou fora o arto de embarque faso gue Faye Ihe {ele aniversra, elo; agora espera que le seque para que posse do chefna Midnight Express. Em contraste, as mulheres sio apresentadas como desejosas de menus variados. Enquanto a loira analisa 0 Oficial 1 no bar, seu comentario em off declara: “Conhecer uma pessoa nao signi- fica ficar com ela. As pessoas mudam. Uma pessoa pode gostar de abacaxi hoje e de algo diferente amanh3”, Quando o Oficial 2 traz pizza e peixe com fritas para casa, sua namorada o abandona, Ele reflete e acha que cla percebeu que tinha novas opgdes de amantes, bem como de jantares. \ © motivo da comida segue definindo as posturas dos homens para a mudanga. Enquanto a loira dorme em um quarto de hotel das Chungking Mansions, o Oficial 1 se empanturra com hambiirgueres, saladas e fritas. Apés ter saido, ele acha que ela se esqueceu dele, mas a mensagem no pager (“Feliz aniversrio”) o leva a desejar que a data de vencimento em sua Jembranga dure para sempre, Nao mais tratando uma namorada como um lanche ripido, a percepso temporal do Oficial 1 se expande. Em vez de buscar um novo futuro, ele guarda com carinho um momento no passado (11.65). Ao invadir a vida do Oficial 2, a balconista Faye substitui as marcas baratas de peixe enlatado por outra marca, coloca droga em sua garrafa de 4gua para que ele possa dormir ¢ 0 tira de sua autopiedade (na qual ele imagina a toalha chorando e o sabio se esvaindo). Quando falta ao. encontro, ela Ihe deixa um cartdo de embarque de mentira que pintou em um guardanapo. Inicialmente ele o joga fora, mas, em uma composi- 40 paralela a do Oficial 1 meditando sobre a mensagem do pager, ele 0 seca na chorrasqueira de wma lanchonete (11.66). Um ano depois, 9 Ofi- cial 2 adotou um cardapio variado, Ele comprou a lanchonete Midnight Express e, quando Faye retorna, convence-a a escrever um novo cartao de embarque. Antes ele estava relutante em viajar com ela, mas agora, quando ela pergunta para onde ele quer viajar, xesponde: “Para onde voce quiser me levar”. Ble saiu da rotina e esta disposto a aceitar mudangas. Esta tiltima cena resume outro motivo do filme, o da viagem de avido, que percorre ambas as partes da obra e cria paralelos. Ambas esto as- 11.67 — Faye, que se tomaré uma comissna 4e bore, competase com a mult que denoy ofl 2 ‘11.65 — A oir da primera parte refit 638 A arte do cinema: Uma introdugio 11.69 — ..em uma posturasemehante 3 de Fay na segunda parte sociadas a0 desejo de mudanga das mulheres, Na primeira parte, @loira Prepara os transportadores de drogas para um vo e foge da cena do crime pegando um avido cedo, Na segunda parte, a comissaria de bordo do Oficial 2 € substitufda por Faye, que, ao conhecer a rival, se compara com ela (11.67). Os motivos musicais também assinalam a importancia da mudanga. A cangao reggae que se repete na primeira parte diz: “Nio € todo dia que vai ser do mesmo jeito; deve ter alguma mudanga de al- guma maneira”". A segunda parte destaca a miisica “What a difference a day makes’ e repete “California dreamin’ que expressao desejo de it para ambientes mais ensolarados. Diversos motivos pict6ricos unem as duas mulheres principais, entre eles os sapatos, os dculos escuros e o hibito de sonhar acordadas (11.68, 11.68). Seo tema principal do filme é realmente a aceitagao da mudanga como parte do amos, as duas partes sdo engenhosamente planojadas para levar © pablico a esta conclusdo indiretamente. A primeira parte comeca com 4 loira passando apressadamente pelas Chungking Mansions ¢ depois ‘mostra o Oficial 1 correndo atrés de wm criminoso e colidindo com ela "No orginal "ts not every day thats gonna be the sare way, chere must bea change somehow" (N. da T) Critica cinematogrifica: Exemplos de andlises 639 antes de continuar. O disfarce de femme fatale e a transagio com drogas sugerem que é o inicio de um suspense policial (veja pp. 506-9). Logo, porém, a situago do tréfico cede lugar aos desejos romanticos do Oficial 1, € 0 abrupto ataque da loira contra seu chefe encerra a linha de ago de crime. A segunda histéria comega retratando a serena rotina e 0s pro- blemas pessoais do Oficial 2, Os elementos de thriller serviram em boa parte como iscas, levando-nos a analisar as personagens antes que o gé- nero do enredo mudasse e se tornasse uma comédia romantica em aberto. ‘Wong assinala a mudanca de genero por meio de um paralelo estilis- tico. Quando o Oficial 1 colide com a loira, 0 quadro é congelado ¢ ele diz em off:“Cinquenta e sete horas depois eu me apaixonei por esta mu- her’. Quando o Oficial 1 visita novamente a Midnight Express no final da primeira parte, ele se encontra com Faye (11.70). Seu comentério afirma: “Seis horas depois..”. Apés um fade-out, a imagem reaparece em tum fade-in mostrando 0 Oficial 2 se aproximando da lanchonete (11.71) e ouvimos o Oficial 1 continuar: “..Ela se apaixonou por outro homem”, Nao vemos 0 Oficial 1 novamente. Esses comentitios em off (pouco plausiveis em uma base realista — como o Oficial 1 poderia saber que Faye se apaixonaria pelo Oficial 2?) marcam explicitamente os paralelos rominticos do filme. ‘Uma vez que as linhas de ago das duas partes nao estio ligadas por causalidade, o filme, num primeiro momento, pode desapontar as expec- tativas do piiblico. No entanto, a estratégia de Wong convida os especta- dotes a procurar outras conexdes. As situagoes paralclas apontam para a ideia de que mudancas sio tio necessdrias para o amor quanto 0 é a variedade para a dieta alimentar. As implicagGes temsticas sao reforgadas pela mise-en-scéne, pela cinematografia, pela musica e pelos comentarios em off. Ainda assim, se Amores expressos nao é um filme com mao pesa- da, deve-se, em parte, a transis gradual ¢ habilidosa de um filme poli- 11.70 ~ A primera parte de Amores expressos termina com o Oficial en- 11.71 — A segunda parte comoga com o Ofial 2s apronimando da Min ‘ontonda Faye na lanchonete Midnight Express ht Express. le substitu o al 1 come protagonita masculine do filme, 40 A arte do cinema: Uma introdugio cial para um filme romantico e, em parte, ao fato de nos deinar apreciar ‘seus divertidos artificios. Forma e estilo no documentério Um homem com uma camera Feito em 1926, lancado em 1929. VUFKU, Unido das Repablicas Socia- lstasSoviéticas, itigido por Dziga Vertov. Fotografia de Milhafl Kaufman, Montado por Blizaveta Svilova, De algumas manciras, Ui homem com uma camera pode parecer um documentisio jomnalistico-padio, e, no entanto, ele néo tenis Passar a impresséo de que a realidade que apresenta nfo ¢ afetada pelo veicule cinematografico, Em vez disso, Dziga Vertov, Proclama o poder manipu- ¢, de certo modo, experimental, O nome de Vertov é normalmente ligado a técnica de montagem. No Capitulo 6 (pp. 360-1), citamos uma Passagem em que ele compara o Gincesta 'um olho, reunindo cenas de muitos lugares eligando as ria, tlvamente para o espectador. Os escritos tedricos de Vertov também Comparam o olho & lente da cdmera, em um conceito a que ele dea o nome de kino-glaz. (Kino é a palavta russa para “cinema” ¢ um de seas Primeiros filmes chama-se Kino-glaz, ou Cine-olho.) Um liomem com una camera toma essa ideia — a equagao do olko do cineasta com a lente da cimera — como base para a forms associa- tiva do filme. O filme s¢ torna uma celebracio do poder do docaments, {122 —OcneyafsawaaléeVetoy ital rista de controlar a nossa Percepcio da realidade por meio da montagem ‘Kaufman, como operador de cémera em Um ho- © dos efeitos especiais, A imagem inicial mostra uma camera em primei- (men com ama cera, ro plano. Como resultado de um efeito de exposicio dupla, vemos 0 homem da camera do titulo do filme repeatinamente subir, em um pla- Zo geral em cima da cémera gigante (11.72). Ele coloca a sua cimers ems tim trip6, filma um pouco e depois desce novamente. Essa brincadeins felis especiais cinematograticos desse tipo aparecem como um motive 2e longo de todo o filme, Nao ha a intengo de que estes sejam imperceptiveis, como em um filme de ficgdo ciemtifica. Em vez disso, eles TAZ atcovawauna cn deracnum e%ibem ostensivamenteo fato de que a camera pode alters ¢ realidade Conte amin epvedanene, cotidiana. Um exemple tipico é mosttado em tips Mais tarde, Vertov Sn scinen nds en tree posts. tiling uma técnica denominaga Pixillation (animacao quadro a quadro), Critica cinematogréfica: Exemplos de andlises 641 ara animar objetos (11.74). Em outra cena, ele transmite 0 som de um radio sobrepondo imagens de uma dancarina e uma mao tocando piano contra um fundo preto (11.75). Esse motivo de efeitos especiais virtuo- sisticos culmina na famosa cena final (11.76). Em diversos pontos do filme, a camera também € personificada, as- sociada pela montagem a ages de seres humanos, Um breve segmento mostra a lente da cimera ajustando o foco ¢, entéo, um plano fora de foco de flores assumindo contornos nitidos. Imediatamente a seguit, ocorre uma justaposigdo cOmica em montagem paralela, com cortes rapidos entre dois elementos: uma mulher abrindo e fechando as palpe- bras enquanto enxuga o rosto com uma toalha ¢ um grupo de persianas abtindo e fechando, Finalmente, outra cena mostra a lente da cdmera com um diafragma fechando e abrindo. O olho humano é como as per- sianas; a lente é como 0 olho — todos podem se abrir e fechar, absor- vendo ou blogueando a luz. Depois, uma pixillation faza camera mover- se sozinha (11.77) e sair andando com suas trés pernas. Ui homem com uma cémera pertence aum género de documentarios que se tornou importante durante a década de 1920: as sinfonias metro- politanas, Obviamente, existem muitas maneiras de fazer um filme sobre uma cidade, Pode ser utilizada uma forma categorica para expor a sua geografia ou atragées, como em um travelogue. Uma forma retdrica pode cesenvolver argumentos sobre aspectos do planejamento uzbano ou politicas de governo que precisam de mudanga. Uma narrativa pode enfatizar a cidade como pano de fundo para muitas agdes das perso- nagens, como em Roma, cidade aberta (Roma, cittd aperta), de Rossellini, ou o drama policial semidocumentério Cidade nui (The naked city), de Jules Dassin, As primeiras sinfonias metropolitanas, porém, estabeleceram a tradigdo de utilizar tomadas com cimeras ocultas (ou ocasionalmente encenadas) da vida na cidade e ligé-las, normalmente sem comentarios, para sugerir emogées ou conceitos por meio de associagées. A forma associativa é evidente nestes primeiros exemplos do género, como em Rien que les heures (1926), de Alberto Cavalcanti, e Berlim: Sinfonia da metrépole (Berlin: Symphony of a metropolis, 1927), de Walter Ruttmann, Filmes mais recentes, como Koyaanisqatst (1983) e Powaggatsi — A vida em transformagao (Powaggatsi, 1988), de Godfrey Reggio, utilizam téc- nicas similares, evitando a narragdo com voz over em favor de um. acompanhamento musical que, em conjunto com a justaposigao de ima gens, cria um estado de espfrito particular e evoca certos conceitos. (Ver pp. 280 © 284,) Na abertura de Uin homem com uma cdmera, vemos um operador de camera filmando e, depois, passando entre as cortinas de um cinema vazio e movendo-se em diregao a tela, Vemos entao o cinema abrindo, os espectadores lotando 0 lugar, a orquestra se preparando para tocar ¢ © filme comegando. O filme que nés € 0 pablico vemos parece, em um 11.74 — Un lagostm far una pequena dana no decor desta cena 11.76 — ti home cam una cea tena ‘om um alho sobrepeste lente da cimera, clhando retamente para nds 77 — A camera animada sa de sua cae, Sob no tripe demonstra como suas vias par= ‘es funconam. 642 A arte do cinema: Uma introducao 11.78 — A cbmera fax panoramicas fends ara captuar visas vistas da ade 11.79 ~ 0 enquadtamentoe 3 iuminaydo tealcam o dinamismo das pattes 2 miguing ‘camera que pulsam e bam. primeiro momento, ser uma sinfonia da cidade exibindo um dia tipico na vida de uma cidade (como 0 Berlim de Ruttmann faz). Vernos ume mulher dormindo, manequins em lojas fechadas ruas vazias. Logo al- sgumas pessoas aparecem ea cidade acorda, Na verdade, boa paste de Un hhomem com uma chmera segue wm principio radimentar de desenvolv,, ‘mento qu val do acordar até 0 horério de trabalho e o tempo de lazer, Contudo, logo no inicio da parte que trata do despertar, vemos também, Povamente, 0 operador de cdmera saindo com o sew equtipamento, come Se comesasse seu dia de trabalho, Hssa acéo cria a primeica de muitas inconsisténcias propositais. O operador de camera agora aparece em seu Proprio filmee Verto enfatiza isso cortando rapidamente pata a mulher dormindo, que foi a primeira coisa que vimos no filme dentro do filme ‘Ao longo de Uin homem com uma camera, vemos as mesmas acées cenas sendo filmadas, editadas e vistas, em ordem embaralhada, pelo Puiblico na tela, Na verdade, perto do fim do filme, vemos o piblico ais. tindo ao operador de cimera na tela, flmando de wna motocicleta ems movimento, Além disso, nesta parte final do filme, muitos motivos das artes anteriores do dia retornam, muitos deles em acelerado. A ordem simples da sinfonia da cidade comum & quebrada e misturada. Verto cria um esquems temporal impossivel, uma vez mais enfatizando os extraordinarios poderes de manipulagio do cinema. 0 filme também se recusa @ Mostrar apenas uma cidade, misturando sequéncias filmadas em Moscotn Kiev ¢ Odessa, como se o heréi homem da cimera pudesse Se mover facilmente pela URSS durante esse “did” de filmagem, A visio de Vertov sobre a relacio do cinema com a paisegem urbana ébem trans, ‘mitida em uma cena que utiliza uma extraordinaria comaposigao de foco em profundidade que coloca a camera no primeiro plano, erguendo-se acima dos prédios distantes (11.78). Em suma, Um homem com uma cé- ‘mera € uma sinfonia metropolitans, mas também vai além desse género, Além da exuberante celebracio dos poderes do cinema, o filme de Vertov contém muitos signiticados implicitos ¢ explicitos, alguns dos auais podem nao ser notados por espectadores que nao sabem ler russo, Explicitamente,o filme busca enaltecer e crticar aspectos da sociedad Sovietica uina década apds a Revolusdo, Muitas das justaposigdes do filme envolvem méquinas e o trabalho humano. Sob o comando de Stélin, estava comegando um grande impulso rumo & industrializagao 2a URS, € as fébricas mecanizadas eram mostradas como lugares fur! nantes, cheios de movimento (11.79). © homem da cimera escala uma Brancie chaminé de fébrica ou balanga suspenso sobre uma barvagem Para capturar toda essa atividade, Os trabalhadores nio sio vistos como ‘oprimidos, mas participando alegremente no crescimento do pals, como auando uma Jovem xi ¢ conversa enquanto embralha caixas de cigarros em uma linha de producio. Critica cinematogréfica: Exemplos de andlises 643 Vertov também assinala 0s pontos fracos da vida contemporinea, como as persistentes desigualdades das classes. Cenas de um saldo de beleza sugerem que alguns valores burgueses sobreviveram & Revolugéo ‘easequéncia do tempo livre, perto do final, contrasta trabalhadores pra- ticando esportes ao ar livre e mulheres rechonchudas exercitando-se em uma academia para perda de peso. Vertov também se esforga para criti- car o alcoolismo, um grande problema social da URSS. Uma das primei- as cenas do filme dentro do filme mostra um desabrigado dormindo ao ar livre, justaposto a uma grande garrafa fazendo a propaganda de um café, Uma fachada de loja que vemos repetidamente anuncia vinho ¢ ‘yodca, ¢ depois hé uma cena em que o homem da cimera visita esse bar. Quando ele sai, vemnos cenas de antigas igrejas convertidas em clubes de trabalhadores. © contraste entre esses dois lugares onde os trabalhadores podem pasar o tempo livre torna-se claro peles montagens paralelas associativas. Uma mulher atirando em alvos em um dos clubes parece ‘estar atirando em garrafas de cerveja que desaparecem (por stop-motion) de um engradade no bar. Durante a década de 1920, funciondrios do governo instituiram uma politica explicita cujo objetivo era utilizar 0 cinema ¢ os clubes dos trabalhadores para substituir 0 bar ¢ a igreja na ‘vida dos cidadaos soviéticos. (Visto que a maior fonte de renda do go- yerno vinha do monopélio das vendas de vodca, a politica também buscava tornar o cinema uma grande alternativa como fonte de renda.) ‘Assim, Unt homent com uma camera parece promover sutilmente essa politica utilizando técnicas de camera divertidas para tornar atraentes tanto o cinema quanto os clubes. Implicitamente, Um homem com wma cdmera pode ser visto como um. argumento a favor da abordagem vertoviana da realizagio cinematogra- fica. Ele se opunha & forma narrativa e a0 uso de atores profissionais, preferindo que os filmes utilizassem as técnicas da cémera e a mesa de montagem para criar os sens efeitas no ptblico. Ele nao era, contudo, totalmente contririo ao controle da mise-en-scéne, e varias cenas desse filme — particularmente a mulher acordando e se lavando — claramente precisaram ser encenadas. Ao longo de todo o filme, justaposigdes asso- ciativas comparam o trabalho de fazer um filme com os outros tipos de trabalhos retratados. O homem da cimera acords ¢ vai trabalhar pela ‘manha, como outros trabalhadores, Como eles, utiliza uma maquina em seu oficio. A manivela da camera 6, em varios momentos, comparada & manivela de uma caixa registradora ou a outras partes méveis de méqui- nas de fabrica, As partes méveis do projetor do cinema também lembram as pegas das miquinas industriais que vernos em varias sequéncias. ‘Vertoy demonstra ainda como o filme ao qual nés, € 0 piblico dentro do filme, assistimos & um produto de trabalho especifico. Vemos a mon- tadora trabalhando (Blizaveta Svilova, esposa de Vertov ¢ vecdadeira montadora de Ut homem com uma camera). Seus gestos de raspar € 644 A arte do cinema: Uma introdugao colar o filme com um pincel s40 entremeados por cortes para um salio de beleza, onde uma manicuse maneja uma tixa de unhas e um pincel semethante, Em vétios momentos no filine vemos os mesmos planos em diferentes contextos: em nossa tela, na tela do cinema que aparece no filme, em um quadro congelado, sendo filmados, sendo cortados ou colados pela montadora, em cimera répida e assim sucessivamente, Nao devemos, portanto, vé-los apenas como momentos de tealidade gravada, ‘mas também como pesas de um todo que é construide com grande es- forco da parte desses trabathadores do cinema, Finalmente, o homem da camera deve recorrer a varios meios, por vezes perigosos, para obter suas cenas; ele néo apenas sobe em uma enorme chaminé, mas também se absixa entre os trilhos para filmar um trem passando ¢ dirige uma mo- tocicleta com apenas uma mao enquanto aciona a camera com a outra para capturar a agdo de uma corrida, O cinema é, portanto, apresentado como um trabalho ou oficio, nto como uma arte dirigida as elites. A julgar pelas reagées satisfeitas do pliblico que vemos no cinema, Vertov tinha esperanga de que o publico sovietico achasse essa celebracio da produgao cinematografica educativa ¢ interessante, Esse significado implicito esti relacionado a um sentido sintomstico ue também podemos perceber no filme. Em fins dos anos 1920, as au- toridades soviéticas queriam filmes que fossem facilmente compreendi- dos e que transmitissem mensagens de propaganda para uma populacio espalhada por lugares remotos e muitas vezes analfabeta. Elas criticavam cada vex mais cineastas como Sergei Eisenstein ¢ Vertoy, cujos filmes apesar de celcbrarem a ideologia revolucionéria, eram extremamente complexos. No Capitulo 6, vimos como Eisenstein adotou um estilo denso ¢ descontinuo demontagem. Embora Vertov discordasse em varios Pontos de Risenstein, especialmente quanto ao uso da forma narrativa, ambos pertenciam a umm movimento estilistico maior chamado montagem soviética, cuja histéria examinaremos no Capitulo 12 (pp. 707-11). Ambos utilizavam procedimentos bastante complexos de montagem, com os uais esperavam causar reagdes previsiveis no piblico. Com seu esquema temporal contraditério e montagem répida (contém mais de 1.700 planos, mais do que 0 dobro do encontrado na maioria dos filmes de Hollywood do mesmo periodo), Ui homem com uma camera 6 irrefutavelmente um filme dificil, especialmente para um piblico néo acostumado com as convengées cinematograficas da montagem soviética. Talvez, com o tem- Po, mais espectadores soviéticos tivessem aprendido a apreciar filmes como Outubro (Oktyabr) Um homem com uma citmera ea reagit a eles com o contentamento evidente do piblico dentro do filme de Vertov. Porém, nos anos seguintes, as autoridades criticaram cada vez mais Ver- tov e seus colegas, limitendo sua capacidade de experimentar com con- Ceitos como 9 cine-olho {Aino-glaz]. Vertov foi contido em seus tiltimos iii Critica cinematogréfica: Exemplos de andlises 645 projetos, mas Um homem com wma cémera acabou por ser reconhecido, na Unido Soviética e no exterior, como um experimento clissico no uso da forma associativa em documentirios. A ténue linha da morte 1988, Uma produgio de American Playhouse (PBS). Dirigido por Errol Morris, Fotografia de Stefan Czapsky ¢ Robert Chappell. Montado por Paul Barnes, Musica de Philip Glass Certa noite, em 1976, em uma estrada a oeste de Dallas, um policial chamado Robert Wood € atingido fatalmente por um tiro disparado por uum motorista que ele havia parado. Sua parceira, Teresa Turko, viu 0 ‘ assassino fugit, mas foram necessérios meses de investigacao para que a | policia descobrisse que o carro havia sido roubado por David Harris. | Harris, um adolescente de 16 anos da pequena cidade de Vidor, admitiu | ter estado no carro, mas disse que o assassino era Randall Adams, um i homem com quem havia passado algum tempo naquele dia. Adams foi julgado por homicidio, condenado e sentenciado a pena de morte. Gragas um recurso, a sentenga foi abrandada para priséo perpétua. Harri, por causa da idade e por cooperar com a policia, tem a sentenga suspensa. Em 1985, o documentarista Errol Morris encontrou Randall Adams enquanto pesquisava um filme sobre um famoso psiquiatra de Dallas conhecido como “Doutor Morte” por causa de seu hist6rico de apresen- tar provas que mandavam os réus para a cadeira elétrica. Morris se convenceu de que Adams havia sido condenado injustamente e, durante 08 trés anos seguintes, preparou um filme sobre o caso. A ténue linha da morte ilustra como um documentirio pode usar a ' forma narrativa, pois em suas origens conta a histéria dos eventos que levaram ao assassinato do oficial Wood e do que aconteceu depois, Con- | tudo, a narrativa do filme enriquece esta histéria bisica. Manipulando 0 i tempo, inserindo detalhes, desenvolvendo reconstituigées do crime em um padrio vigoroso e sulilmente despertando nossa solidariedade para com Randall Adams, Morris nao apenas nos leva ao longo de um caso : criminal, mas também sugere como pode ser dificil a busca pela verdade. Q enredo geral nos guia através dos eventos da histéria, mas nao de «uma maneira totalmente linear. © filme se divide de forma razoavelmente clara em 31 sequéncias, porém muitas contém breves flashbacks do in- : terrogatério ¢ do crime e algumas contém reconstituisdes um tanto longas, (As reconstituigdes mais longas esto assinaladas em itdlico.) ! C. Créditos de abertura. 1, Dallas, Randall Adams e David Harris sio apresentados. 2. O policial Wood é atingido. Primeira reconstituicao do crime, 646 A arte do cinema: Uma introdugao 3. Adams é preso e interrogado. Primeira reconstituicdo do interrogat6rio. 4, A policia descreve o interrogatério e o inicio da investigacao. Segun- da reconstituigéo do interrogatéri. A policia descreve o estado de espirito dos dois oficiais. Segunda reconstituigéo do crime. 6. A polfcia procura o carro, utilizando até mesmo hipnotismo. Terceira reconstituigao do crime, 7. Grande pausa: David Harris é descoberto em Vidor, Texas, 8, Harris acusa Randall Adams pelo crime. 9. Adams responde & acusagio de Harris. 410. Adams € interrogedo. Terceira reconstituicao do interrogatério. . A policia explica a identificagao incorreta do carro. Os dois advogados de Adams sio apresentados e descrevem suas investigagdes na cidade natal de Harris. 13, Os advogados de Adams falam de Harris como criminoso; o juiz descreve sua postura para com a policia. 14, Adams reconta a versio de Harris dos eventos. Quarta reconstituigdo do crime. 15, Adams explica seu alibi. 16, Julgamento: A policial Turko testemunha, implicando Adams. Quinta reconstituicdo do crime. 17, Julgamento: Novas testemumhas aparecem. O Sr. ea Sra. Miller decla- ram ter visto Adam atirar em Wood. Sexta reconstitui¢ao do crime. 18, Osadvogados de Adams e a Sra. Carr refutam o testemunho do casal. 19, Julgamento: Uma terceira nova testemunha, Michael Randell, declara ter visto Adams atirar em Wood. Sétima reconstituigdo do crime. 20. Julgamento: © jiri declara Adams culpado. 21. Julgamento: O juiz sentencia Adams & pena de morte, 22. Adams reage & sentenca de morte, 23. Os advogados de Adams entram com peticdo para um novo julga- mento e perdem. 24. O recurso de Adams é apoiado pela Suprema Corte dos BUA; a sen- tenga é comutada para prisdo perpétua. 25. O detetive de Vidor explica: Harris é preso novamente. 26, Repensando o caso: As testemunhas refletem e Harris deixa transpa- recer que mentiu. Oitava reconstitui¢do do crime. 27. O detetive de Vidor explica: Harris cometen um assassinato na cidade, 28. Adams: “O garoto me assusta”; ele reflete sobre 0 erro de deixar Harris livre. 29, Harris, agora no corredor da morte, reflete sobre sua infancia. 30. Ultima entrevista em fita de dudio: Harris chama Adams de “bode ‘expiatério” ¢ virtualmente confessa. 31. Titulo: Situagio atual dos dois homens. E. Créditos finais. Critica cinematogréfica: Exemplos de andlises 647 Os segmentos 1-3 formam um prélogo, introduzindo informacées essenciais e despertando nossa curiosidade e nosso interesse. A sequén- | cia de abertura apresenta a cidade de Dallas, as duas personagens prin- cipais, Randall Adams e David Harris, e sua situagao atual; ambos estéo presos, O que os levou até lé? Bles contam como se encontraram ¢ pas- saram o dia bebendo, fumando maconha e vendo um filme em um drive- in, O segmento 2 é a primeira de muitas reconstituigdes chocantes do 11.80 — 0 interogatiro de Renal Ada, assassinato do policial Wood num acostamento escuro da estrada, Como #ttenadade moda queficaabslitamente care que se trata deume damatizagio, nas outras reconstituigdes, atores fazem o papel dos participantes ¢ 0 enquadramento muitas vezes oculta seus rostos, concentrando-se em vez disso em detalhes da ago ou do cenario. A terceira sequéncia mostra a prisio eo interrogatério de Adams, que ele descreve como intimidador e que é mostrado numa reconstituic¢do (11.80). © enredo do filme entao recua em flashback para explicar os aconte- cimentos que levaram a priso de Adams, concentrando-se na investiga- ‘sho policial (segmentos 4-11). David Harris aponta Randall Adams como i © assassino (8) ¢ Adams é preso ¢ interrogado (10). confusio sobre a ‘marca do cairo finalmente é resolvida, porém Morris sugere que a inves- tigagdo policial foi confusa (11). As sequéncias sao interrompidas por mais duas reconstituigdes do interrogatério de Adams e duas reconsti- tuigdes da morte do oficial Woods. trecho mais longo do filme (segmentos 12-24) € centrado no con- fronto de Rendall Adams com os tribunais, Depois de apresentados 0 seus advogados 0 juiz (12-13), so exibidas duas versdes conflitantes dos acontecimentos — a de Adams e a de Harris (14-15). Trés testemu- nhas-surpresa identificam Adams como o atirador (16-19), apesar de partes dos testemunhos serem desacreditadas por ume mulher que de- ( clara que duas testemunhas comentaram com ela algo sobre receber uma . tecompensa (18). Novamente, em certos momentos, 0 crime é reconsti- tuido. O jtiri condena Adams (20) ele é sentenciado i morte (21-22)..As ‘manobras legais que se seguem colocam Adams em prisdo perpétua sem direito a liberdade condicional (23-24). , O filme respondeu a uma pergunta colocada no inicio: agora sabemos como Randall Adams foi preso. Mas e David Harris, que também esté : cumprindo pena? A tltima ¢ maior sesio do filme continua com a his- tria apés o julgamento, concentrando-se na vida criminosa de Harris. i Harris ¢ preso por outros crimes (25) ¢ entdo Morris insere uma sequén- cia (26) concebida para sugerie que ele é culpado no caso Woods. As testemunhas-surpresa so mostradas como indignas de confianga, con- | fusas e com fatos a esconder. Muito reveladoramente, Harris explica: “Claro que eu escolbi Randall Adams’, Na sequéneia seguinte, um dete- i tive em Vidor, cidade natal de Harris, explica como Harris invadiu a casa : de um homem, raptou violentamente sua namorada e 0 matou com um tiro (27). Harris, agora revelado como um sociopata tranquilo e educado, “x queria fazer uns me sobre como & aft hogar verdad, nao impossivel” | — fro tot, diretor iia 648A arte do cinema: Uina introdusiio reflete sobre sua infaincia, quando o irmio se afogou € o pai se tornou mais distante (29). Porém, qualquer simpatia que pudesse despertar & anulada pela confissio final, capturada por Moftis em fita de Sudio, de que Randall Adams ¢ inocente (30). Um titulo explica que Adams ainda esta cumprindo sua pena perpétua, enquanto Harris esté no corredor da morte (31). Assim delineado, trata-se, entdo, de uma historia simples e direta de ctime ¢ injustica. O significado explicito do filme foi convincente o bas- tante para suscitar uma nova investigasio do caso e Adams foi solto em 1989. O filme de Morris, porém, é mais do que uma pega processual em favor da defesa. Ble exige muito do espectador e nao explicita sta mensagem como faz a maioria dos documentérios. Nossa tendéncia é tomar partido de Randall Adams e desconfiar da policia, dos promotores ¢ das “testemunhas oculazes” que esto contra ele, mas Morris néo favo- rece Adams nem critica 0s outros explicitamente. A forma e o estilo do ' filme moldam nossa solidariedade de maneira sutil. Em outro nivel, © filme nega ao espectador muitos dos auxilios costumeiros para deter- minar o que aconteceu naquela noite de 1976. Em ver disso, ele pede que agucemos nossa atencio, que nos concentremos nos detalhes e que jul- guemos as informagSes incompativeis que recebemos. A historia de detetive de Morris pede que reflitamos sobre os obstéculos na busca da verdade sobre qualquer crime, © material do filme é, em sua maior parte, a matéria de qualquer reportagem sobre crimes reais. Morris utiliza entrevistas, manchetes de jornais, mapas, fotos de arquivo e outros documentos para apresentar I informagées sobre o crime. Ele também faz reconstituigdes de aconteci- mentos importantes, assinalando-as como tal. Contudo, outras convengoes dos documentirios esto ausenites, Ndo ha nenhum nartador explicando ‘ a situagao em voz over e nenhuma legenda identificando os falantes ou | fomecendo datas, As reconstituigées nao tém a legenda de “Dramatizago” vista nos documentarios televisivos. Como. resultado, somos forgados a avaliar o que vemos ¢ ouvimos sem auxilio. Essa responsabilidade extra ¢ intensificada por um enquadramento raramente utilizado na maioria das entrevistas de documentérios: vérios dos falantes olham diretamen- : te-para a cimera (11.81). Essa maneira um tanto inguietante de dirigir-se a0 piblico (ainda mais proeminente em outros filmes de Mortis) nos coloca na posicdo de detetives, obrigando-nos a julgar o testemunho de cada pessoa. Além disso, a utitizacio de documentos de papel é bastante obscura: o filme nem sempre especifica sua origem, 0 uso do primei- rissimo plano muitas vezes mostra apenas fragmentos do texto, (Uma cena de um artigo de jornal enquadra apenas estas frases parciais: “, dita-se que seja um 1975... com placa do Texas... contendo as letras H..”) 11.81 — Um dette de poliia dé sua versio B a composicio repetitiva de Philip Glass nao é misica convencional de 4a inteogatii ge Adams. documentério, especialmente para a histéria de um crime verdadeiro, 1 ht Critica cinematogréfica: Exemplos de andlises 649 Com suas harmonias higubres hesitantes e figuras nervosamente osci- lantes, a misica desperta tensio, mas também cria um misterioso dis- tanciamento da agio: ela continua a pulsar inalterada, seja acompanhan- do uma paisagem urbana varia, seja um assassinato violento. Outras qualidades formais e estilisticas complicam 0 enredo. Por exemplo, quando um entrevistado menciona um local especifico, Morris insere uma breve cena do local (11.82). Tais interrupgdes abruptas néo seriam utilizadas em um documentério comum, visto que néo nos forne- cem muitas informagdes adicionais. £ como se Morris quisesse ilustrar a enorme quantidade de pedagos de informacio que um investigador deve processar: De maneira similar, durante a maioria das reconstituig6es, 0s rostos dos participantes nao so mostrados. Em ver. disso, as cenas sio construidas a partir do uso constante do primeiro plano: dedos re- pousando em um volante, um milkshake voando pelos ares em cAmera enta, a maquina de pipoca no drive-in (11.83). Morris enfatiza detalhes aparentemente triviais que podem afetar nossa percepcao do que realmen- te aconteceu na estrada, No entanto, integrados cuidedosamente e com iluminagao em high-key, os detalhes também se tornatn motivos evocati- vos. Algumas inserg6es comentam ironicamente a situagéo (11.82). Ou- tras, como os onipresentes relégios, indicam a sinistra passagem do tempo; mesmo a lanterna que se quebra vagarosamente € o milkshake que escorre na calcada sugerem a vida que se esvai do oficial mortal- mente ferido. A sistemética retencdo de informagées de Morris nos convida a completar partes da histéria e, 20 amplificar detalhes aparen- temente secundarios, ele também nos convida a desenvolver significados implicitos. ‘Nossa postura para com as pessoas apresentadas no filme é critica para esses significados. De modo geral, 0 enredo ¢ moldado para criar solidariedade para com Randall Adams. Ele é a primeira pessoa que ‘vemos ¢ Morris imediatamente o torna interessante ao deixar que expli- que que esta grato por ter conseguido um emprego logo apés chegar a Dallas. “E como se eu tivesse mesmo de estar agui:” Morris o apresenta como um homem decente e trabalhador, atropelado pelo sistema judicié- rio, O interrogatério de Adams é associado a cinzeiros cheios, fazendo-o parecer nervoso ¢ vulnerdyel (11.84), assim como 0 uso repetido das fotos de jornais em primeiro plano, mostrando seus olhios amedrontados. Quando os acusadores expdem sua argumentagio, Morris nos mantém do lado de Adams ao deixar que ele os refute, No segmento 9, Adams responde & acusagio de Harris de que ele foi o atirador; no segmento 15, Adams apresenta seu alibi em resposta as afirmagoes de Harris sobre a cronologia dos acontecimentos, Ao final, Adams torna-se o comentaris- ta com credibilidade, No segmento 28, apés Harris ter cometido outro assassinato, Adams nos lembra que uma vida poderia ter sido salva se a polfcia de Dallas nao tivesse libertado Harris. Neste ponto, nossa solida- 11.82 — 0 mote onde Adams ou; em vista do destino de Adams, utdeor ao funda toma se énico, 11.83 — Armaquina de pipoca no dave, fle ‘mada snsiramenten prameraplanoenguanto elo seve cma baseparaotestemunta de David Harr. © 11.84 — Enquanto Hai, o adolescent, as. saciad a pipoca, Adams, a vina em pico, € ecciade au cna cheio de cgaros 650 A arte do cinema: Uma introdugao ‘11.85 — tim eco do fre noir numa reene- ‘age, pail Hood émestradeaproximando~ sedocara, ‘iedade para com Adams esti forte ¢ compreendemos por que ele muda sua opinigo inicial sobre Dallas: agora, ela é “o inferno na terra’ Nossa accitacio do relato de Adams é sutilmente reforcada pelas ‘uitas reconstituigdes do assassinato. Estas se destacam claratnente como reconstituigdes pelo uso de técnicas associadas mais estritamente a0 Cinema de ficedo, particularmente ao filme noir (11.85; também 10.6). Flas também se distinguem das dramatizagdes exibidas em programas Policiais de televisio, que tendem a mostrar o rosto dos atoxes € que normalmente sio flmadas em um estilo soto, com cimera& mao, suge- indo que estamos testemunhando o fato, Asreconstituisdes apresentam diferentes versdes do crime, deacordo com as lembrangas das diferentes testemunhas. Ao apresenter versbes contraditérias do que aconteceu naquela noite, pode parecer que Morris esteja stigerindo que todos os envolvidos viram os fatos de sua propria Perspectiva e que, portanto, no ha uma verdade final sobre o assunto, Contudo, a progressio geral do filme nos leva a uma conclusio provivel 4 de que David Uacris, sozinho, matou Wood. im ver de sugeritem que a verdade é relativa, reconstitui¢des incompativeis dramatizam os teste- ‘aunhios contlitantes. Como jarados ou espectadores de um julgamento, devemos decidir qual é a verséo mais plausivel, e 0 enredo desenvolve as Teconstituigdes em um padrdo fortemente sugestivo, Nos segmentos dedicados & investigasdo policial, as reconstituigies enfatizam as questdes de procedimento. A oficial Turko identificen o carro corretamente? Nao, concluem os detetives da policia, mas, antes depois desta conclusio, Morris nos mostra dois carros diferentes, tor. ‘nando ambas as opgbes visualmente concretas Ha outra questi igual- ‘mente importante: Turko apoiou 0 oficial Wood segundo as normas out cla permaneces no carro? Morris dramatiza ambas as possibilidades, mas feva-nos a deduzir que ela provavelmenteestava dentro do carto tomando © seu milkshake, jé que 0 crogui da cena do crime indica que foi encon- trado liquido de chocolate derramado perto do catto. E uma questio de Probabilidade e nunca podemos ter certeza, mas, com os indicios apre- Sentados, inferimos que ela provavelmente ndo apoiou Wood. As reconstituigbes do assassinato de Wood na parte dedicada 4 inves- tigagio concentram-se nos procedimentos policias, mas, durante o jul Samento, as reconstituigées sugerem diferentes verses do que aconteceu no carro do assassino, David Hattis estava abaixado no banco da frente? A silhueta peluda de Adams teria sido confundida com a gola de pele de tum casaco? Quando as testemunhas-surpresa sio epresentadas, Morris ‘mostra reconstituicdes que exibem seus carros passando pela cena do crime. Outra vez, as reconstitaigdes apresentam as alternativas de forme neutra, mas algumas se tornam mais plausiveis do que outras, especial- mente quando as testemunbas oculares sio refutadas por outro testemu ‘nho ou trafdas por suas préprias respostas evasivas, i tl Critica cinematogrifica: Exemplos de andiises A tiltima reconstituico, apresentada na seco dedicada a David Har- ris, mostra como ele poderia ter cometido o assassinato, e, significativa- mente, é acompanhada pelo comentario em voz over em que ele virtual- mente confessa o crime. Agora, depois de muitas outras reconstituig6es, esta é apresentada como a mais digna de nosso crédito. Morris tem 0 cuidado de evitar dizer explicitamente que Harris € o assassin, Contu- do, 0 desenvolvimento das dramatizagées, eliminando as verses mais questionaveis e concentrando-se cada vez mais na identidade do moto- rista, nos impele a aceitar este como o relato mais provavel. Como em qualquer filone narrativo, a maneira de contar a histéria — 0 jogo com a narracio ¢ o conhecimento — molda nossa postura para com as personagens. Ao permitir que Adams faga comentarios sobre as outras personagens e ordenar as reconstituigées de modo a apontar a culpa de David Harris, o filme nos alinha com Randall Adams, a vitima inocente. De maneira correspondente, Morris utiliza outros recursos estilisticos para nos fazer descontiar das forgas voltadas contra Adams. filme nao apresenta os agentes da let de Dallas como vildes brutaiss todos tém um discurso tranquilo ¢ articulado, e o juiz Metcalfe parece calmo e paciente, Porém a montagem dé ptimazia a0 relato de Adams ¢ permite que ele responda &s acusagdes, de modo que tendemos a avaliar ag palavras deles com cautela. Ostensivamente mais criticas em relagdo as autoridades sto duas digressdes quase cOmicas que lembram um tipo semelhante de forma associativa ja explorada por Bruce Conner em A movie (pp. 570-9). O juiz Metcalfe relembra que cresceu com um grande respeito pela lei e pela ordem porque seu pai estava presente quando os agentes do FBI ‘mataram o gangster John Dillinger (11.86). Morris corta para uma cena de um filme policial de Hollywood que apresenta a morte de Dillinger (11.87), Metcalfe também fornece informagées sobre o histérico da mu- her que traiu Dillinger, e, quando ele diz. que ela foi enviada de volta a0 seu pais de origem, a Roménia, Morris corta para um mapa de Bucares- te (um momento de autoparédia, vist que ele utilizou mapas muitas ‘vezes durante o filme). Ocorre uma montagem paralela durante 0s co- mentérios de uma testemunha ocular, que diz sempre ter-se imeginado como uma detetive, como nos programas de televisio da década de 1950, ‘Mortis deixa seu comentario em off enquanto exibe um trecho de um filme B no qual uma jovem ajuda um detetive a capturar um criminoso. Essas sequéncias nos encorajam a ver os adversérios de Adams baseados em conceitos de combate ao crime retirados de filmes populares. ‘Os motives de cor que evocam autoridade policial e duplicidade sto ‘ais sutis. As primeiras cenas do filme mostram arranha-céus ¢ outras estruturas, cada uma delas com um luz vermelha piscando (11.88). Apés ‘um corte para Randal] Adams comegando a contar sua histéria, a tela cescurece e vemos as luzes rotat6rias vermelhas de uma viatura policial, 651 652 A arte do cinema: Uma introdugiio 11.88 —Pasagens de Dlis com lzesvermethas pscande. 1189 11.87 —.. Moms corte para uma cena de Flme 8 mastande a morte ho Force como que recodando a tentative anterior de reconstiigio do mesma tin em 4 teve ta domrt. — O motivo €reiterae por fequentes cenas de hes de tures Polis dan, 11.90 — Ottlé te abertura da fime anuneao motivo verte, ‘wna imagem que se repetiré em outros momentos do filme (11.89), an- tes de um corte para o relato de David Harris sobre como ee foi parar em Dallas. O motivo “cor vermelha” liga Dallas ¢ a policia como forcas alinhadas contra Adams e sugere uma explicagio para isso nos créditos iniciais, em que a palavra azul {blue} estd escrita em vermelho (11.90). O titulo do filme ¢ tirado da referencia do juiz Metcalfe & conclusio do Promotor, na qual ele caracteriza a policia como a “fina linha azul” [thia blue line) entxe a clviliza¢ao © a anarquia. Ao colorir de vermelho essa linha, Morris nao apenas evoca o derramamento de sangue, mas também lige o azul da policia as sinistras luzes vermelhas piscando na abertura, Critica cinematogrdfica: Exemplos de andlises 653 O motivo se expande ainda mais no relato do juiz Metcalfe da morte de Dillinger, que foi traido pela notéria “mulher de vermelho” Metcalfe : afirma que, na verdade, ela nio estava vestindo vermelho; seu vestido laranja simplesmente parecia vermelho sob certa luz. David Harris, em todas as suas entrevistas no filme, é visto usando o uniforme laranja da prisdo, sugerindo que ele € outra figura de traicio e, talver, insinuando ‘sua relagio com o vermelho da luz da viatura policial. Como documen- tarista, Morris provavelmente nao ditou que roupa Harris vestiria, mas ccriou outras imagens que enfatizam motivo da cor e decidiu manter as observagdes (um tanto irrelevantes) de Metcalfe sobre a mulher de ver~ melho. Como muitos documentaristas, Morris destacou certos aspectos do material filmado existente para revelar implicagdes temiticas. A histéria da prisdo injusta de Randall Adams é apresentada como ‘uma intersecdo das vidas de muitas pessoas. Em ver de simplificar 0 caso a favor da clareza, Morris o trata como um ponto onde muitas histérias se cruzam — as vidas privadas das testemunhas, as rivalidades profissio- nais entre os advogados, a histéria de Dillinger, os dramas policiais da televisao, as cenas do filme que Adams e Harris viram no drive-in. Qual- quer crime, sugere o filme, ser4 composto desse emaranhado de fios. Qualquer crime parecerd soterrado sob uma avalanche de detalhes (né- meros de placas, marcas de carros, milkshakes derramados, programagies de televisio) e gerard diversos roteiros alternativos para o que realmen- te ocorreu. A t2nue linha da morte incorpora esses aspectos investigativos a sua propria estrutura e estilo, A narracio concede a cada versio do crime o seu tempo de tela, mas finalmente nos guia para que eliminemos as implausiveis. Ela se detém em detalhes triviais, mas finalmente des- carta alguns como menos importantes. E mostra que a massa complexa de testemunhos e evidencias de um crime pode ser organizada. O filme : se apresenta como um relato do que de fato ocorreu naquela estrada do . Texas e como uma reflexdo sobre como investigadores persistentes podem chegar a verdade. Forma, estilo e ideologia Agora seremos felizes 1944, MGM. Dirigido por Vincente Minnelli. Roteiro de Irving Brecher Fred F. Finklehoffe, baseado na livro de Sally Benson, Fotografia de Geor- ge Folsey. Montado por Albert Akst. Misica de Hugh Martin ¢ Ralph Blane. Com Judy Garland, Margaret O'Brien, Mary Astor, Lucille Bremer, Leon Ames e Tom Drake. 654 A arte do cinema: Uma introdugio “Eun fag fes legates. 05 Vincente Min- ‘el sim ele ae flies elegantes” —Bily Wide, detor Perto da metade de Agora seremos felizes, Alonzo Smith anuncia para a familia reunida que foi transferido para um novo cargo na cidade de Nova York. “Tenho de pensar no futuro, no futuro de todos nés, ‘Tenho de me preocupar com nossa fonte de renda’ dix ele ao consternado eru- po. Essas ideias de familia e futuro, centrais para a forma eo estilo do filme, também eriam uma estrutura ideolégica dentro da qual o filme ganha significado e impacto. ‘Todos os filmes que analisamos poderiam ser examinados tendo em Vista 0s seus pontos de vista ideolégicos. Qualquer filme combina ele. mentos formals estlisticos de modo a criar uma posigdo ideolégica, ostensivamente declarada ou ticita, Optamos por enfatiar a ideclogia, de Agora seremos felizes por ser wim exemplo clare de filme que nao bus. ca mudar a maneira de pensar das pessoas. Em vez disso, ele tende a ‘eforgar alguns aspectos de uma ideologia social dominant. Nesse caso, Agora seremios felizes, como a maioria dos filmes de Hollywood, busca sustentar valores concebidos como caracteristicamente norte-americanos de unido famiiar e vida doméstica, Agora seremos flies transcorre durante os preparativos para a Expo- Sisio Universal em St. Louis, ¢ a prépria feira se torna o ponto alto da a¢ao. O filme mostra sua forma de maneira direta e titulos anunciam cada tuma de suas quatro partes com uma estagao diferente (11.91). Des. 52 forma, o filme sugere simultaneamente a passagem de tempo (equi- Parada a um movimento ramo a feira da primavera de 1904, que traré 0s frutos do progresso para St. Louis) e o ciclo irmutvel das estacoes, Os Smiths, que vivem em uma grande casa vitoriana, formam uma familia grande ¢ extremamente unida. A estrutura das estacées permite que o filme os mostre nos momentos tradicionais de unio familiar, os feriados. Nos os vemos celebrando o Halloween eo Natal. E, no final, a feira se torna um novo tipo de feriado, que celebra a deciséo dos Smiths de permanecer em St. Louis. 11.91 — Otitula de abetura, "Verde do 1903 em Agora seremos es. 1.82 — Atranscéo para mundo da St, Louis de 190. ii Critica cinematogréfica: Exemplos de andlises Abertura do filme rapidamente apresenta a ideia de St. Louis como uma cidade na fronteira entre a tradigao e 0 progresso. O intertitulo para © vero, ornamentado ¢ lembrando uma caixa de bombons, forma uma vinheta de flores brancas e vermelhas em torno de uma foto antiga em preto e branco da casa dos Smiths. A medida que a cAmera se move para frente, a cor passa gradualmente para a foto e ela gana vida (11.92). Os acordes suaves ¢ lentos que acompanham o titulo dao lugar a uma me- Jodia mais animada, mais condizente com o movimento na tela, Carto- cas de cerveja ¢ carruagens transitam pela rua, mas um automével de modelo antigo (de um vermelho brilhante, que atrai nosso olhar) as ultrapassa, O motivo “progress” e “invengées” jé se torna proeminente. Ele se desenvolverd rapidamente e se manifestard na énfase sobre a fei- ravindoura, Quando Lon Smith, 0 filho, chega em casa de bicicleta, uma fusio com 4.cena da cozinha inicia a exposigo. Um por um, conhecemos os mem- bros da familia enquanto eles realizam suas atividades didrias na casa, A cdmera segue a segunda filha mais nova, Agnes, enquanto ela sobe as escadas cantando “Meet me in St. Louis” (11.93). Ela encontra o Vovd, que continua 2 miisica enquanto a camera o segue brevemente, Gracas @ precisos cortes na ago enquanto cada personagem continua a cangao, a trilha visual produz um fluxo de movimento que aptesenta a casa como repleta de agitasao e miisica, O Vové ouve vozes fora de campo cantan- do a mesma cangao. Ele caminha até a janela e uma cena de camera alta por sobre sew ombro mostra a segunda irma mais velha, Esther, saindo de uma charrete (11.94). Com sua chegada, a sequéncia se completa, retornando & frente da casa, A casa continua a ser a principal imagem de unido familiar durante a maior parte do filme. Com excegao da saida dos jovens para ver os 655 11.93 — Acancio"Meet nent. Louis" os aprsenta as peronagens ¢ 11.94 — fimporcanda da casa da fami: Ura jana enguads nossa oslo, primeira visio da bering. 656 A.arte do cinema: Uma introdugao preparativos paraa feira, da danga de Natal ¢ da sequéncia final na feira, toda a aso do filme ocorre na casa dos Smiths ou perto dela. Embora 0 emprego de Sr, Smith seja o motivo da mudanga para Nova York, nunca © vernos no escritorie, Na sequéncia de abertura, os membros da familia vyoltam para casa, um por um, até todos se reunirem na mesa de jantar Cada sesao do filme comeca com um intertitulo decotado e um movi- mento da camera em diresio a casa, Na ideologia do filme, o lar parece ser um Ingar autossuficiente; as outras instituicdes sociais tornam-se periféricas, até mesmo ameagadoras. Essa visdo da familia unida em um lar idealizado coloca as mulheres ‘em uma posicio central, A narrativa no restringe nosso conhecimento 440 que uma tinica personagem sabe, mas tende a se concentrar no que as mulheres da familia Smith sabem, A Sra. Smith, a filha mais velha, Rose, a filha mais jovem, Tootie, ¢, especialmente, Esther séo as persona- ‘gens em torno das quais a narrativa é organizada. Além disso, as mulhe- tes so retratadas como agentes de estabilidade, A ago na histéria re- torna constantemente a cozinha, onde a Sra, Smith ea empregada, Katie, trabalham calmamente no meio de pequenas crises. Os homens repre- sentam a ameaga a unidade da familia. O Sr. Smith deseja levar a familia para Nova York, destruindo assim os seus lagos com o passado. Lon vai embora para o leste, para estudar em Princeton, Apenas 0 Vové, como representante da geragao mais velha, toma partido das mulheres no de- sejo de ficarem em St. Louis. Em geral, a causalidade da narrativa torna problematico qualquer abandono do lar — exemplo de como o desen- volvimento de uma narrativa pode gerar premissa ideolégica, Na familia, ha pequenos desentendimentos, mas os membros coope- ram. As duas irmas mais velhas, Rose e Esther, ajudam-se mutuamente em seus flertes. Esther esta apaixonada pelo garoto da casa ao lado, John : ‘Truitt, eo casamento com ele nao apresenta nenhuma ameaca para a uunidade da familia. Varias vezes no filme ela contempla a casa dele sem precisar sair da sua. Primeiro, ela e Rose vao até a varandae tentam atrair sua atensao; depois, ela senta na janela e canta “The boy next door” (11.95). Finalmente, muito depois, quando ficam novos, cla se senta em um quarto as escuras no andar de cima e-vé John descer a cortina, O fato de que talvez as garotas prefiram viajar, ou estudar além do ensino médio, snunca é considerado. Ao se concentrar nos pequenos incidentes da casa ¢da vizinhanga, o filme bloqueia a consideragao de qualquer outro modo de vida — exceto a temida mudanca para Nova York. Muitos recursos estilisticos constroem a imagem de uma vida familiar feliz. O tecnicolor contribui muito para a exuberdincia da mise-en-scéne, fazendo a cor dos trajes, dos ambientes e dos cabelos destacar-se vivida- mente (5.5). As personagens vestem roupas brilhantes; Esther frequen- temente esta de azul. Fla ¢ Rose vestem vermelho e verde para o baile de Natal (11.96). Isso reforga a associagao da unidade familiar com os fe- Critica cinematogrifica: Exemiplos de andlises 657 11,95 — . psteionmene sua can, “The by next dor 11.96 — Os restids da festa de Nota Tazem parte do mote frags” no filme. riados e, também, torna as irmds mais facilmente visiveis na multidio rodopiante de dancarinos vestindo tons pastel. Em 5.5, a cena do bonde, Esther destaca-se visualmente por ser a tinica mulher de preto em meio aos vestidos coloridos. Agora seremos felizes 6 um musical a misica tem um grande papel na vida da familia. As cangdes surgem em momentos de romance ou reunido. Rose ¢ Esther cantam “Meet me in St. Louis” na sala, antes do jantar. Quando 0 Sr. Smith as interrompe ao voltar do trabalho — “Pelo amor de Deus, parem com essa gritaria!” —, ele é imediatamente ca- racterizado como contrério a cantoria e & feira. As outras cangdes de Esther mostram que seu romance com John ‘Truitt é seguro e razoavel. Uma mulher nao precisa sair de casa para encontrar um marido: ela pode cencontra-lo na prépria vizinhanga (“The boy next door”) ou ao andar de bonde (“The trolley song”). Outras cangées acompanham as duas « festas, e ther canta “Have yourselfa merry little Christmas” para Tootie, a irma mais nova, apés o baile de Natal. Aqui, ela tenta tranquilizar ‘Tootie, assegurando que a vida em Nova York sera boa se a familia per- ‘manecer unida. JA se percebe, porém, que essa unidade est4 em perigo. Esther canta: “Algum dia estaremos todos juntos, se o destino permitir. / télé, vamos ter de nos virar de algum jeito”’, Nés jé sebemos que Esther atingiu seu objetivo romantico ¢ ficou noiva de John Truitt. Se a familia Smith real- mente se mudar para Nova York, ela terd de escolher entre ele e sua fa- milia. Nesse ponto, o enredo chegou a um impasse; seja qual for sua deciséo, o antigo modo de vida serd destruido. A narrativa precisa de 2 No original, “Someday soon we all will be together, if the Fates allow / Until then well have to muddle through somehow”. (N. ds T) 658 A arte do cinema: Uma introdugao TH87 — Boneces de neve de vires Parallo cm a fami Seto e tamantosconstituem um 11.98 — 0 ataque deToatie ansbonecos. uma solusdo ¢ 0 choro histérico de Tootie ao ouvir a musica faz 0 Sx ‘Smith reconsiderar sua decisio. A destruigao das “pessoas” de neve por Tootie apés a cangio de Esther é uma imagem notével da ameasa & unidade da familia que a mudanga para Nova York representa. Na abertura da segdo “Inverno’, as criancas

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