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Biblioteca de Saúde e Soeled.

de
As análises sociológicas de Luc Boltanski nos remetem a uma
experiência rara em obras científicas, a uma leitura fascinante,
as classes sociais
apaixonada, que não queremos interromper. Isso nlo se deve
apenas ao excelente estilo; seu trabalho toca o próprio nervo de
uma situação total e nos traz, ao invés do homem partido em
disciplinas que está presente na maior parte da bibliografia das
.Ciências Sociais, o homem inteiro, o homem corpo-mente portador
das determinações sócio-econômico-políticas.
eocorpo
Luc Boltanski nos ensina que a tentativa de estudar
separadamente cada dimensão no intuito de somar depois não
passa de um exercício frusto para o autor e maçante para o leitor.
E mais: que a violência colonialista, domesticadora, para com o
outro, e no caso da saúde, para com as classes baixas, prescinde ~
da má-fé política do dominador, e que para sua efetivação pode ser ~
suficiente um marco teórico linear e ernpobreceder, que se arma, a
um tempo, em cilada contra as boas intenções do produtor e do
consumidor do trabalho científico.
Aracy Martins Rodrigues
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eraaJ eraaJ Biblioteca
de Saúde e Sociedade
Capa: Sõnia Maria Gou/art

Produção gráfica: Or/ando Fernandes,

1~ Edição: 1979
2~ Edição: 1984

Direitos adquiridos para a língua portuguesa no Brasil por


EDIÇOES GRAAL Ltda.
Rua Hermenegildo de Barros, 31-A - Glória
20.241 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Atendemos pelo Reembolso Postal

c Copyright by Luc Bo/tanski

Impresso no Brasil / Printed in Brazi!

íNDICE

PARTE I - A DESCOBERTA DA DOENÇA

Introdução 11

Capítulo I: Medicina popular e medicina científica 13


I. A medicina familiar 13
2. O conhecimento comum 17
FICHA CATALOGRÃFICA 3. Uma medicina imitativa 22
4. A legitimidade médica 28
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte 5. A difusão do conhecimento médico 31
Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ.
6. A confusão frente à doença 34
Boltanski, Luc.
Capítulo 11. A relação doente - médico. 37
B677c As Classes sociais e o corpo / Luc Boltanski; tradução de Regina
A. Machado; organização de texto de Maria Andréa Loyola Leblond e
I. Relação doente-médico e distância social 37
Regina A. Machado. - Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984 - 2~ 2. Relação doente - médico e comunicação 42
edição. 3. As categorias da percepção médica 48
(Biblioteca de Saúde e Sociedade: v. n? 5) 4. As estratégias do médico 52
5. O curandeiro 61
Apêndice 6. Relação doente - médico e nível de instrução 64
Bibliografia
Capítulo 111. A emissão do discurso sobre a doença 69
1. Classes sociais - Saúde e higiene I. Título 11. Série I. Representações hesitantes 69
2. Do discurso científico ao discurso popular 72
CDD - 301.44
613
614
79-0395 CDU - 613/614:323.3
3. A redução analógica 76
4. O espaço do corpo 78
5. A substância do corpo 81
6. A origem das categorias da medicina popular 84
Apêndices

Apêndice / - O guia de entrevistas 91


Apêndice I! - Repertório das fontes estatísticas \03
PARTE 11- OS USOS SOCIAIS DO CORPO

Prólogo 111
Introdução 113

I. A necessidade médica 121


2. A competência médica 131
3. A cultura sornática 145
4. O uso do corpo 167
Apêndice /I! - Repertório das fontes estatísticas 187

..Não existe índice mais claro da ruptu-


ra com a tradição camponesa do que to-
dos aqueles comportamentos nos quais
se exprime uma atitude completamente
nova em relação à doença: pode-se ima-
ginar uma negação mais total da moral
da honra do que essa complacência con-
sigo próprio e com seu próprio corpo
que a "civilização" incentivou?
P. Bourdieu e A. Sayad,
Le déracinelllenf. p. 2/5.
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Introdução

A pesquisa cujos resultados são apresentados neste trabalho, foi


realizada em dois momentos diferentes, nos meses de maio-junho de
1967 e de janeiro-fevereiro de 1968. Cento e vinte entrevistas, com
uma duração média de duas horas, foram realizadas em Paris, no su-
búrbio parisiense (Boulogne-sur-Seine e Saint-Denis), numa cidade
da Picardia de tamanho médio (Vervins), e finalmente numa comuni-
dade rural próxima de Vervins: Fontaine-les-Vervins. Pôde-se assim
controlar os efeitos da urbanização, comparando-se as entrevistas
realizadas em Paris ou subúrbios, entre famílias urbanizadas na
maior parte há várias gerações; em Vervins, cidade industrial de pri-
meira imigração, entre famílias (operárias principalmente) urbaniza-
das há apenas uma geração, e enfim, em Fontaine-les- Vervins, no
meio rural. '
As entrevistas foram todas realizadas no lugar de moradia. A
pessoa interrogada foi, na maior parte dos casos, a esposa do chefe
de família (a quem é delegada em quase todosos lares, a função sani-
tária). Em alguns casos, foi interrogado o chefe de família, quando a
mulher estava ausente.
O esquema de entrevista usado nessa pesquisa (cf. Apêndice 1)
compreendia a história sanitária da família, o consumo de cuidádos
médicos e de produtos farmacêuticos e as atitudes em relação aos
medicamentos, aos médicos e ao hospital, os conhecimentos sanitá-
rios e médicos, a puericultura, a higiene e a medicina preventiva, a
dietética, as fontes de informação médica. No final de cada entrevis-
II
ta, foram também colhidas informações sobre a história da família, a
instalação e equipamento da casa, o orçamento familiar. Procedeu-
se, enfim, durante cada um desses contatos, a um inventário da far-
mácia familiar.
Essas entrevistas foram objeto de uma análise de conteúdo, em
fichas de perfuração marginal. As entrevistas, distribuídas por assun-
tos, foram totalmente transportadas para as fichas (um fichário de
1000 fichas, aproximadamente, foi assim constituído). Foram elabo-
rados um gráfico de análise e um código, para que se pudesse encon-
trar rapidamente cada tema ou subtema e estudar, por exemplo, as
constelações de temas ou a freqüência de aparecimento de cada um
deles em função do contexto. I
Foram analisadas da mesma maneira, em fichas de perfuração
marginal, noventa obras de divulgação médica, publicadas entre
1830 e 1965, referentes à puericultura. 1
Entrevistou-se também um grande número de médicos, farma- Medicina Popular e Medicina Científica
cêuticos, assistentes sociais, divulgadores e redatores médicos. Pôde-
se proceder além disso, à observação de setenta consultas de lactentes
(durante as quais o diálogo entre o médico e o doente foi gravado),
no subúrbio parisiense, e de setenta consultas de clínica geral num
hospital parisiense. Procedeu-se, enfim, à análise secundária de vá-
rias pesquisas (cuja lista encontra-se no Apêndice 3), realizadas entre 1. A MEDICINA FAMILIAR
1959 e 1965, versando sobre o consumo médico, as atitudes em rela-
ção ao médico, os conhecimentos sanitários do público, a higiene, a Quando se trata de definir as características que diferenciam os
puericultura, etc. médicos dos outros detentores de conhecimentos e técnicas específi-
cas, como por exemplo, os engenheiros ou os técnicos, deve-se obser-
var que a atividade dos médicos não se exerce diretamente sobre a
doença, mas sobre o doente, que, diversamente do carro consertado
pelo mecânico, não é um objeto inerte, mas pode saber-se doente, sa-
ber alguma coisa sobre sua doença, desejar sarar e ter uma opinião
sobre a maneira como se deve proceder para curá-Io 1. Resulta então
que o médico, ao contrário da maioria dos outros especialistas, tem
perpetuamente que se defender contra um "exercício ilegal" de sua
profissão e fazer presente que ele é o único com direito a praticar a
medicina e o único representante da legalidade médica. Isto porque a
"co-ncorrência desleal" de que é vítima, não se deve apenas àqueles

Cf. E. Goffman, Asile, introdução de R. Castel, Les éditions de Minuit, col. "Le
sens commun", Paris, 1968; especialmente o quarto ensaio, "Les hôpitaux psychia-
Os resultados dessa pesquisa foram publicados à parte. Cf. L. Boltanski, Prime édu-
triques et le schéma médical-type, quelques remarques sur les vicissitudes des mé-
cation et morale de classe, edições Mouton et Cie., Paris; 1968. tiers de réparateurs".
12 13
especialistas ilegais e marginais que são os curandeiros, massagistas, Assim, por exemplo, a pesquisa realizada em 1960-
radiestesistas, ou mesmo os farmacêuticos: todos se tornam culpados 61 pelo Centro de Pesquisas e de Documentação
num certo grau. Pois tudo se passa efetivamente como se não houves- sobre o Consumo, revela que 41% dos produtos far-
se atividade mais difundida do que a medicina. macêuticos são comprados sem receita por particu-
N o entanto, existem "conhecimentos comuns" em outros cam- lares \ sendo que os segurados sociais compram
pos além da medicina. Mas, enquanto que os outros especialistas po- tantos produtos sem receita quanto os não segura-
dem, se bem que em graus diferentes - o especialista em eletrônica dos'. Uma pesquisa realizada pela SOFRE~fl e que
mais facilmente que o engenheiro agrônornu-- entrincheirar-se por abrangia uma amostra de 1.000 famílias,' mostra,
trás da tecnicidade de sua atividade e esquecer que existe na sua disci- por outro lado, que em 62% dos casos a "última
plina um conhecimento comum, o médico não pode nunca negligen- afecção rinobroncofaringítica sobrevinda na famí-
ciar a existência desse conhecimento e de práticas médicas.leigas com lia" foi tratada sem que se fizesse apelo ao médico.
às quais ele está permanentemente sendo confrontado. Deduz-se que, (I_I) 6
contrariamente aos outros conhecimentos constituídos cuja evolu- Tudo se passa portanto como se os médicos estivessem longe de
ção obedece quase que inteiramente a uma lógica interna e que se re- deter hoje em dia o monopólio da atividade médica, como se uma
definem, a cada geração, menos contra a opinião leiga do que contra alta proporção de atos médicos, das múltiplas ações empreendidas
as posições dos especialistas da geração precedente, a medicina com (, fim de curar fossem praticadas por não-médicos fora da vista e
científica teve que contar com a opinião leiga, impor-se contra a opi-
do controle médicos.
nião leiga e contra o "preconceito", e via-se obrigada a definir a cada Em que medida porém essa medicina dos não-médicos, - que se {-
momento de sua evolução o corpo de conhecimentos e práticas que manifesta nela compra livre e pelo consumo descontrolado dos pro-
constituem a legalidade médica; também, ao mesmo tempo, a definir dutos farmacêuticos e, em geral, pela realização de uma série de atos
seu contrário, reunindo o conjunto das práticas e conhecimentos ile- de natureza médica, destinados a localizar a presença do mal (tirar a
gais numa mesma categoria definida negativamente por oposição à temperatura por exemplo), ou a curar (fazer uma dieta, tomar um
medicina legítima: a medicina "popular". Assim, a história da medi- comprimido de aspirina ou um grogue), - representa uma outra me-
'l.. cina, pelo menos há um século, é a história de uma luta contra os pre- dicina independente da dos médicos e pode fazer-lhe uma concorrên-
conceitos médicos do público e, mais especialmente, das classes bai- cia qualquer? Se assim fosse, aqueles que praticam uma medicina fa-
xas, contra as práticas médicas populares, com o fim de reforçar a miliar e se tratam 'sozinhos, nunca fariam apelo ao médico. Ora,
autoridade do médico, de lhe conferir o monopólio dos atos médicos nada disso acontece. As estatísticas mostram que, pelo contrário, a
e colocar sob sua jurisdição novos campos abandonados até então ao compra de medicamentos sem receita, que pode ser considerada
arbítrio individual, tais como a criação dos recém-nascidos ou a ali- como um bom indicador da importância da medicina familiar, não é
mentação 2. nunca um comportamento isolado, e que em todos os grupos sociais,
No entanto, um grande número de atos médicos são, ainda hoje, aqueles que compram remédios sem receita e aparentemente por sua
praticados por não médicos, e as estatísticas, - que revelam o número
respeitável de especialidades farmacêuticas compradas sem receita,
ou que mostram que cerca de dois terços das afecções rinofaringíti-
cas, por exemplo, são tratadas sem que se faça apelo ao médico - só 3 G. Rosch, J.M.Rempp, M.Magdelaine, "Une enquête par sondage sur Ia consom-
fazem confirmar as afirmações dos médicos. mation médicale", Consommation, ano IX, I, Janeiro-março 1962, p. 3-84.
4 Cf. S. Sandrier,"L'influence des facteurs économiques sur Ia consommation médi-
cale", Consommation, ano XIII, 2, abril-junho 1966, p. 71-94.
5 Le syndrome grippal et ses complications, étude d'opinion auprés de 1000 foyersfran-
cais, edições dos laboratórios SOLAC, Toulouse, 1965.
2 Sobre a história da medicina social, cf. especialmente R.H. Shryock, Histoire de Ia J 6 Os algarismos entre parênteses (aqui: (I-I) ) remetem aos quadros estatísticos,
médecine moderne, edições Armand Colin, Paris, 1956. apêndice II

14 15
própria iniciativa, compram também remédios sob prescrição médi- A prática médica oficial que se manifesta pelo recurso ao médi-
ca e consultam os médicos. Além do mais, o consumo de medicamen- co e pela observação de seus conselhos e prescrições, e a prática mé-
tos sem receita aumenta mais ou menos no mesmo ritmo, de um ano 4 dica familiar, exercida por não-médicos, não se excluem mutuamen-
para outro, que o consumo de produtos comprados sob prescrição te; pelo contrário, parecem ser essencialmente complementares.
médica pelos segurados sociais, e varia de uma classe social para ou- Tudo se passa efetivamente como se, longe de se entregar a fantasias
tra como o consumo de produtos farmacêuticos comprados sob pres- e a loucas improvisações, a medicina familiar se contivesse, de certa
crição médica; a proporção dos produtos farmacêuticos comprados maneira por si própria, no interior de fronteiras estritamente delimi-
sem receita permanece relativamente estável e representa, qualquer tadas e obedecesse a normas que definiram tanto os limites de seu
que seja a classe social, 40% aproximadamente do consumo farma- campo de aplicação quanto os meios terapêuticos que ela tem o direi-
cêutico total.
to de empregar.
Simone Sandrier mostrou que entre 1950 e 1962 as
taxas médias de progressão de despesas dos segura- 2. O CONHECIMENTO COMUM
dos sociais com produtos farmacêuticos comprados
sob prescrição médica e os comprados sem receita Este se verifica de maneira mais precisa estudando-se os com-
foram muito próximas no conjunto do período, portamentos das mães pertencentes às classes populares ou à faixa
mantendo-se em torno de 17% e 18%'7. A pesquisa inferior das classes médias, frente às doenças que atingem seus fi-
do CREDOC sobre o consumo médico dos france- lhos". Este todavia não é um exemplo limite; a atenção dirigida à
ses mostra, por outro lado, que o consumo de pro- saúde das crianças é sempre maior do que a concedida à saúde dos
dutos comprados sem receita aumenta de uma clas- adultos, e o recurso ao médico, mais freqüente; o resultado disso-é
se social para outra, assim como o consumo de pro- que as normas que regem as práticas médicas familiares são, nesse
dutos comprados sob prescrição. Assim, os agricul- caso, ao mesmo tempo mais numerosas e mais estritas.
tores, que fazem o mais baixo consumo de produtos As mães, atentas à saúde dos filhos, sabem reconhecer por cer-
comprados sob prescrição médica (394,8 produtos
por 100 pessoas e por ano), fazem também o mais
4 tos sintomas se a criança está em boa saúde ou doente, e se, nessa úl-
tima eventualidade, elas próprias podem tratá-Ia ou devem chamar
baixo consumo de produtos comprados sem receita um médico. Esses sintomas são basta Ate estereotipados. As mães
(262,8 produtos por 100 pessoas e por ano, ou seja, guiam-se pelo comportamento da criança "manhosa", "calma de-
. 40% do consumo farmacêutico total). Ao contrário mais", ou "cansada"; pelo "apetite", ou em função das dores de que
desses, os técnicos e dirigentes de nível médio e os ela se queixa. Mas esses sinais são apenas secundários, e é a febre que
assalariados (abstração feita dos empregados de bai- constitui para as mães o sintoma mais claro da doença.
xa qualificação e dos inativos) que detêm o mais
alto consumo de produtos farmacêuticos compra- "Não se chama o médico enquanto não houver
dos sob prescrição (ou seja, respectivamente, 592,8 e febre. Para uma angina, faz-se uma vaporização,
668,4 produtos por 100 pessoas e por ano), têm tam- um gargarejo. Mas se de manhã ele tiver 38,5oé, já é
bém o mais alto consumo de produtos comprados
sem receita (517,2 e 492 produtos por 100 pessoas e
por ano) (1-3) 8
9 Para o estudo da "medicina popular" hoje em dia, escolheu-se centralizar o traba-
lho na análise do comportamento sanitário das classes baixas e faixa inferior das
classes médias (as análises englobando os membros das classes superiores tiveram
7 S. 'sandrier, loc. cito como função essencial mostrar as diferenças de classe frente à medicina) - pois es-
8 G. Rõsch, J.M.Rempp, M.Magdelaine, loc.cit. ses realizam exemplarmente a relação com a ciência e seus detentores que é o dos
profanos numa sociedade hierarquizada na técnica.
16
17
muito, aí chamo o médico. O doutor sabe que quan- nhecidas exigindo um recurso ao médico, que é o único com direito a
do vem em casa, é realmente por causa de uma tratar das inúmeras doenças desconhecidas que se suspeita que exis-
doença!" (Fontaine-Ies-Vervins, mulher de cultiva- tam, sem conhecer sua natureza, nem seus sinais e nem mesmo, na
dor, 38 anos, 3 filhos). maioria das vezes, seu nome.
"Se eles tossem, eu percebo, dou xaropes, supositó- Do mesmo modo, conhecem-se as doenças infantis
rios. Note que tenho sempre supositórios à base de particulares às crianças e que "elas têm que ter ne-
aspirina. Até 38°C, não chamo o médico". (Paris, mu- cessariamente", cada uma identificável por um sinal
lher de operário', 45 anos, 5 filhos). Uma pesquisa particular. Assim, uma informante distingue "o sa-
realizada em 1960 pelo I.F.O.P. (Instituto Francês rampo, em que se tem pintas vermelhas e febre al-
de Opinião Pública) sobre "A informação do públi- ta", da caxumba, "em que incham as orelhas" e da
co urbano sobre os problemas de higiene e de saú- varicela, que dá "espinhas com água" (Paris, mu-
de" mostra que 80% das mulheres de operários e lher de operário, 38 anos, 2 filhos); uma outra opõe
85% das mulheres de assalariados do terciário decla- a coqueluche, em que "as crianças tossem e ficam'
ram chamar o médico quando a criança está com com voz de taquara rachada", ao sarampo, em que
febre alta (1-4) 10. A pesquisa citada sobre a atitude "as crianças ficam primeiro com o nariz escorrendo
das famílias quanto, à gripe, mostra que, quando a e os olhos vermelhos" (Paris, mulher de operário, 67
criança está com 389C de febre, 51% das pessoas inter- anos, 2 filhos).
rogadas declaram que chamam o médico imediata-
mente, 25% após 24 horas, 8% após 48 horas. Quan-
do a criança atinge 39QC de febre, 78% das pessoas Como se vê, existe uma espécie de nosografia popular que define :1L
interrogadas declaram chamar o médico imediata- as doenças infantis benignas que a mãe tem o direito, principalmente 7
mente, 17% após 24 horas, 1% apenas após 48 horas quando a febre 6 baixa, de tratar, total ou parcialmerite, sozinha; es-
(1-5)" .. sas doenças organizam-se em três grandes categorias: doenças "cau-
sadas pelo frio" ou "doenças de inverno", resfriado, gripe,angina,
As mães em geral possuem também uma espécie de repertório bronquite; doenças "digestivas", prisão de ventre, dores de barriga,
das doenças que podem atingir as crianças, sendo que cada doença é indigestão; doenças "infantis" propriamente ditas, coqueluche, ca-
reconhecida por um sinal particular que permite distingui-Ia entre to- xumba, varicela, rubéola, sarampo.
das as outras. Assim, entre as doenças rinofaringíticas, distinguem- Tendo identificado a doença da criança, ou seja, tendo estabele-
se: o resfriamento, quando a criança "fica com o nariz escorrendo" cido uma relação entre uma das particularidades de seu estado e uma
sem ter febre; a gripe, caracterizada pela febre; a bronquite, pela tos- das doenças de que tem conhecimento e que pertence ao seu "reper-
se; finalmente a angina, que se manifesta pela "dor de garganta", e a tório", a técnica de tratamento da mãe consistirá simplesmente em
otite, que provoca "dor de ouvido": "pela garganta pode-se ver se é administrar à criança um remédio tido como "o específico" para
bronquite ou angina" (Paris, mulher de operário, 30 anos, 4 filhos). aquela doença. Do mesmo modo que conhecem apenas um número li-
Todas as doenças conhecidas são organizadas numa ordem de gravi- mitado de doenças, as mães conhecem também um número restrito
dade crescente, as doenças julgadas mais graves entre as doenças co- de remédios, tomados ao imenso universo de todos os remédios
possíveis, conhecidos unicamente pelo médico 'e o farmacêutico, e que
compõem seu repertório de remédios. Assim como as doenças, que
são classificadas numa ordem de gravidade crescente, os remédios
10 I.F.O.P., "L'lnformation du public urbain sur les problêrnes d'hygiêne et de san- são classificados numa ordem de eficácia ou de "força" crescentes, os
té", Santé de l'homme, n9 12, maio-junho 1963, p. 5-31 e n9121, julho-agosto 1963, remédios mais "fortes" (essencialmente. os antibióticos), que são
p.7-30.
II Le syndrome grippal e/ ses complica/íons, op. cit,
também os mais difíceis em sua manipulação e de utilização mais pe-

18 19
rigosa, ficando reservados ao tratamento das doenças mais graves medicina familiar sabe reconhecer e tratar. São essencialmente, em
que só o médico está habilitado a tratar. A mãe, quando empreende primeiro lugar, desinfetantes, Mercurocromo, Álcool. Água oxigena-
o tratamento do filho doente, faz portanto duas operações mentais: da. Tintura de iodo. Éter; em segundo lugar, medicamentos antálgi-
põe em relação, termo a termo, primeiramente um sinal escolhido coso Aspirina, geralmente; em terceiro lugar, anti-histamínicos em
dentro de um repertório de todos os sinais conhecidos, com uma forma de xaropes, bastante difundidos e utilizados como calmantes
doença escolhida dentro de um repertório de todas as doenças conhe- leves de uso infantil, xarope Fenergan e de Teralene; em quarto lugar
cidas, e em segundo lugar, a doença assim identificada com um remé- medicações digestivas, Bisrnuto, Carvão, Normogastril, etc.: final-
dio escolhido dentro de um repertório de todos os remédios conheci- mente e sobretudo, medicamentos para as afecções rinofaringíticas,
dos. A doença, assim definida, está então inteiramente qualificada supositórios de Canfo-pneumina. cujo uso é, aparentemente, muito di-
pela sua relação, em primeiro lugar com um sinal e, em segundo lu- fundido, Pomadas de Broncodermina e Vick-vaporub, tam bém bastan-
gar, com um remédio: a gripe é a que se manifesta através da febre e te difundidos, Veganine e Antigripine, pastilhas de Solutricina e Argi-
se cura com a aspirina. cilina simples em gotas nasais, xarope de Neocodion, etc.
Designados às vezes de maneiras diferentes, os re-
médios contidos nas farmácias familiares são em ge-
ral idênticos de uma casa para outra 12, e sua enu-
Repertório Repertório Repertório meração pode parecer fastidiosa: .•Medicamentos
dos das dos de reserva, eu tenho de todos os tipos. Aspirina, que
sinais doenças remédios é a base de tudo. Para as crianças, gotas para o na-
riz: eles têm muito rinofaringite. Para nós, não va-
mos indo bem de saúde. Temos algumas coisas para
Nariz escorrendo o( ) resfriado o( ) gotas para o nariz a digestão, comprimidos, bicarbonato de sódio. De-
febre o( ) gripe o( ) aspirina pois, álcool, rnercurocrorno, água oxigenada, poma-
da para pancadas, tombos, pomada revulsiva. Uns
tosse ~ ) bronquite o( ) xarope supositórios para angina, resfriados". (Paris, mu-
dor de garganta o( ) angina ~,pastilhas para a garganta- lher de operário, 38 anos, três filhos).
"Sempre tive remédios de reserva. Xarope, su-
positórios. Se as crianças estão um pouco nervosas,
xaropes de Fenergan, de Teralene. Aspirina. Suposi-
tórios para quando ficam resfriados, Canfo-
Os remédios conhecidos e repertoriados pela mãe compõem a pneu mina. Gotas para o ouvido, para o nariz, tudo
farmácia familiar; real, fechada no armário; ou potencial, disponível isso." (Vervins, mulher de cultivador, 41 anos, 7 fi-
através do farmacêutico que pode fornecê-Ia sem receita. Exceto lhos).
quando um dos membros da família está com uma doença especial, o A pesquisa do I.F.O.P., mencionada anterior-
que explica a presença de remédios de uso pouco comum, numa far- mente, mostra que, interrogadas sobre "as coisas in-
mácia familiar, em geral comprados sob prescrição médica, os remé- dispensáveis que se deve ter na farmácia familiar",
dios que a compõem são extensamente difundidos e encontram-se na as mulheres de operários e de assalariados do ter-
maior parte das casas, as variações afetando de preferência o número
e a diversidade dos produtos possuídos do que Sl!as indicações tera-
pêuticas.
Esses remédios pertencem, essencialmente, a cinco grupos que, 12 Em todas as entrevi tas, as declarações da pessoa interrogada eram controladas
mutatis mutandi, correspondem aos diversos tipos de doença que a pelo exame dos remédios existentes na casa.
20 21
reproduzir os gestos e as palavras do médico, ou melhor, entre esses, "
ciário mencionam, pela ordem: material para curati-
os gestos que Ihes são perceptíveis, e as palavras que podem identifi-
vos (81 % e 88%), "desinfetantes" (76%), aspirina
car e memorizar 15. Essencialmente, é do médico que as mães rece-
(54% e 53%) e "revulsivos" (25/,~) (1-6) IJ. A pesqui-
bem os nomes dos remédios e os nomes de doenças que constituem o
sa do CREDOC sobre o consumo médico traz uma
conhecimento, todo feito de palavras, que é o delas. Longe de prati-
confirmação indireta do que foi dito acima: revela
carem uma medicina paralela, as mães administram aos filhos remé-
que os produtos mencionados mais frequentemente,
dios que o médico prescreveu anteriormente para tratar doenças si-
pelas pessoas interrogadas, como fazendo parte de
milares; e, de certa maneira, mesmo quando os medicamentos são
sua farmácia familiar são também, na maior parte,
comprados sem receita por particulares, o médico permanece, indire-
comprados sem receitas. Assim, os medicamentos
tamente e conforme a lei, "o ordenador das despesas médicas".
antálgicos apresentados sob forma de comprimidos
são comprados sem receita em 58% dos casos, os Interrogadas sobre a maneira como tiveram conhe-
medicamentos respiratórios sob forma de xaropes, cimento dos remédios da farmácia familiar, as mu-
em 60% dos casos, sob forma de supositórios em lheres atingidas pela pesquisa declaram em geral
52% dos casos, sob forma de pomada em 55% dos que são remédios prescritos pelo médico durante
casos; 43% dos sedativos apresentados sob forma de doenças precedentes: "Os supositórios que estão aí
xarope são comprados sem receita. Finalmente, as são para tosse, dor de garganta. Comprei-os sem re-
medicações digestivas em forma de soluto bebível e ceita. Já os conhecia porque tinham sido aconselha-
de supositório, são compradas sem receita respecti- dos pelo médico. Na última gripe, fui à farmácia e
vamente em 62"/~ e 76";~ dos casos (1-7) ". pedi remédios que já tinha comprado antes" (Paris,
mulher de marceneiro, 38 anos, 2 filhos). "Nas gri-
pes e anginas, não chamo o médico; dou os mesmos
3. UMA MEDICINA IMITATlVA
remédios que o médico deu uma outra vez ... A gente
não acaba nunca, com quatro filhos!" (Paris, mu-
Esta descrição sumária da prática médica familiar permite deter- lher de operário, 30 anos, 4 filhos). Livre na aparên-
minar uma de suas características essenciais, que é a de não se basear cia, a escolha de produtos farmacêuticos pelos agen-
num conhecimento propriamente dito, num conjunto de princípios
tes sociais conforma-se na realidade com as prescri-
que torne possível sua explicação, ou seja, o estabelecimento de uma ções indiretas do médico. As estatísticas não dizem
relação entre as receitas particulares e os princípios gerais que as fun-
outra coisa, no fundo, quando mostram que os me-
damentam, e nem sequer de se apoiar em representações do corpo, ,dicamentos que são na maior parte comprados sem
da doença ou do princípio de eficiência dos remédios utilizados. Para
receita, são também aqueles cujo consumo global é
cuidar da gripe. é necessário e suficiente saber que a gripe se trata mais alto. Tal é o caso de medicamentos digestivos,
com Antigripine, sem para isso saber qualquer coisa da natureza da
antálgicos, medicamentos respiratórios, que repre-
gripe ou da composição do remédio utilizado para curá-Ia. Se isso
sentam, respectivamente, 12,2";" 11,8"" e 9,5°,{, do
acontece, é em primeiro lugar, porque a medicina familiar é essen-
total de produtos comprados (1-8) 10.
cialmente imitativa, contentando-se as mães, de maneira geral, em

13 I.F.a.p. "L'information du public urbain sur les problêrnes dhygiene et de sante", 15 Cf. capítulo 111
/0(', cit.
16 M. e C. Mugdelaine, J.L. Portos, "La consommation pharmaceutique des Fran-
14 C.R.E. D.a.c.: La consommation pharmaceutique des Français, mirneografado, Pa-
cais, ('OIlSO/II/I/a/ioll. n.v 3. julho-setembro 1966, p. 54-86.
ris, 1965. 2 vols .• vol. I, quadro 29.
23
22
Se as práticas médicas familiares dos membros das classes popu- remédios caseiros", ou '.'são remédios da roça", ou
lares não são senão a imitação das práticas médicas legítimas toma- simplesmente, pelo tom de voz, ligeiramente diverti-
das em seu valor imediato, não se teria então o direito de dizer que a do ou desiludido da relação distante que mantêm
medicina legítima suplantou quase totalmente a antiga medicina po-
pular, da qual não subsistiriam hoje mais do que algumas "sobrevi-
J com essa medicina camponesa herdada do passado.
Trata-se evidentemente de dar a entender ao pesqui-
vências", simples relíquias de um passado remoto? Tal parece ser o sador que ela utiliza esses remédios sem alimentar
caso, por exemplo, desses remédios familiares preparados pelas pró- muitas ilusões sobre seu valor de cura, e principal-
prias mulheres na intimidade do lar. As mulheres que ainda hoje sa- mente sem confundi-Ios com 'os verdadeiros remé-
bem preparar remédios são raras. Encontram-se ainda entre os cam- dios prescritos pelo médico. Dizer, por exemplo,
poneses, sim, mas também entre as filhas de agricultores imigrados que esses remédios são "remédios caseiros" é distin-
para a cidade, casadas com operários ou pequenos funcionários (car- guir-se ostensivamente daquelas mulheres simples
teiros, funcionários dos transportes urbanos, etc.), entre as quais a que os utilizam ingenuamente, sem considerá-Ios as-
observância de costumes que se sabe herdados do passado e, mais sim 18. "As pessoas ensinam sempre alguns velhos
precisamente, folclóricos, é um meio de recusar magicamente sua ditados, como, por exemplo, "para o resfriado deve-
condição urbana, de reatar laços com sua região e condição de ori- se tomar um grougue". Remédios caseiros, remé-
gem e, portanto, constitui menos um sinal de verdadeira submissão à dios do tempo da minha avó. Mas eu só sei fazer ti-
tradição do que uma manifestação do "tradicionalismo do desespe- sanas. É só. (M ulher de agricultor, Fontaine-Ies-
ro" i7. Dos antigos remédios tradicionais, essas mulheres conhecem Vervins, 38 anos, 3 filhos). "Eu sei fazer leite com
apenas os de preparo mais simples e mais anódinos, tais como tisanas mel, coisas assim. É um pouco do remédio da roça.
de haste de cereja, xarope de nabo e cataplasma de linhaça, e pare- Quando às crianças estão cansadas, isso as acalma.
cem ligadas aos mesmos menos por seu valor curativo do que por seu Mas o antibiótico, é mais rápido." (Paris, mulher
valor simbólico: não é nunca ignorado seu valor antiquado, fala-se de operário, 30 anos, 4 filhos). "Sei fazer xarope de
deles no passado, são uma oportunidade de reativar as lembranças
de família, de falar da mãe ou da avó, enfim, de assinalar as oposi-
1
\
nabo (um risinho). São remédios caseiros, mas é
bem útil. Também sei preparar leite com mel. Quan-
ti

ções entre o passado e o presente, pois, como declara uma operária do tínhamos dor de garganta 'minha mãe fazia leite
do subúrbio parisiense, "os antibióticos, não há dúvida que são mais com iodo. Eu tomei isso muitas vezes, nunca me fez
rápidos" . mal. São talvez os remédios mais simples que fazem
mais bem. Mamãe tinha remédios caseiros..e passa-
Como mostram os exemplos a seguir, as mulheres va tudo: quando tínhamos dor de cabeça, ela nos fa-
ouvidas na pesquisa nunca se contentam em sim- zia tomar um banho de pés com mostarda: Garanto
plesmente enumerar os remédios que sabem prepa- que passava. (Vervins, mulher de comerciante, 47
rar (como se enumeram os produtos farmacêuticos anos, 5 filhos).
que se tem em casa), mas sempre fornecem ao pes-
quisador uma' série de indicações explícitas ou
implícitas, expressas em frases desse tipo: "são
18 O conhecimento das modalidades pelas quais uma receita médica é comuniçada ao
médico é essencial para compreender o tipo de utilização que os indivíduos fazem
dessa receita e a relação que mantêm com ela. Nas receitas médicas colhidas pelos
folcloristas, essas indicações em geral faltam; tanto assim que é impossível ao leitor
17 Sobre o "tradicionalismo do desespero", cf. P. Bourdieu e A. Sayad, Le déracine- saber se os remédios mencionados nessas obras são ainda utilizados freqüente e in-
ment, Ia crise de l'agriculture tradicionalle en Algérie, Editions de Minuit, Paris. genuamente, ou se são tidos pelos próprios informantes crmo remédios folclóri-
1964; p. 13-21. cos e fora de moda.
24 'I 25
Por outro lado, nào se poderia ver na medicina familiar, tal
nos séculos XVIII e XIX, entrou em contato com a
como é praticada hoje nas classes populares, uma forma moderna da medicina popular e como, ao se vulgarizar, e em se
antiga medicina popular coletada pelos folcloristas? Existem real-
deformando, ela pouco a pouco impregnou o co-
mente numerosas analogias formais entre a medicina familiar de hoje nhecimento popular a ponto de se confundir com
e a medicina popular de antigamente. Como a vulgata médica hoje, o ele ... Por uma série de transições insensíveis - escre-
saber médico popular antigo (com exceção de algumas receitas co-
ve M. Bouteiller - os velhos dados científicos entra-
nhecidas apenas por alguns curandeiros), era um "conhecimento co- ram no domínio dos curandeiros de aldeia" 21. ini- É

mum" a todos, constituído essencialmente por um duplo repertório: cialmente através da literatura divulgada pelos ven-
repertório das doenças e repertório dos remédios. Assim, os campo-
dedores ambulantes, que se difunde a medicina
neses de outrora conheciam um número limitado de males, cada um
científica. Como mostrou Robert Mandrou, esses li-
deles subordinado a um ou vários remédios 10.
vros de mascates, em geral anônimos, são "redigi-
Mas não seria ceder a uma ilusão, o fato de ver nas práticas mé-
dos por gráficos, tipógrafos ou outros, que se tor-
dicas dos mem bros das classes populares a expressão de uma "medi-
nam escritores", que vão buscar essas informações
cina popular", medicina pelo povo e para o povo, imanente ao povo
"no fundo da tipografia onde trabalham, ou seja, na
e desde sempre enraizada nele'? Em outros termos, tem-se o direito de
massa de publicações do século XVI que ainda exis-
postular a existência de dois corpos de conhecimentos autônomos e
f distintos, de duas "medicinas" paralelas; uma científica, medicina
tem em maior ou menor quantidade nos arquivos de
suas oficinas." "Eles basearam-se - escreve Man-
dos médicos (e dos membros das classes superiores) e uma "popu- drou - num repertório constituído em grande parte
lar", medicina dos membros das classes populares 20. f: o que se faz
pelá cultura científica da aristocracia medieval" e,
implicitamente quando, chamando-as "populares", pressupõe-se principalmente, em antigos tratados de medicina 22.
uma origem também "popular" para os remédios e técnicas do corpo
As receitas utilizadas pelos curandeiros era •.• fre-
coletadas nas classes populares. Se é verdade que a medicina familiar
qüentemente provenientes dessas obras, mantendo-
moderna é em primeiro lugar imitação da medicina oficial, a antiga
se secreta a posse de um desses livros comprados ou-
medicina popular era enraizada também na medicina científica e,
trora ao mascate, depois legados a um herdeiro e às
longe de constituir um corpo de conhecimentos perfeitamente autô-
vezes constituindo até a única superioridade do cu-
nomos, resultava, pelo menos parcialmente, da difusão da medicina
randeiro .:
científica de épocas anteriores.
Igualmente intermediários entre a medicina CIentífi-
Em Médecinepopulaired'hieretd'auhourd'hui, Mar- ca e a medicina popular eram os "amadores esclare-
celle Bouteiller mostra como a medicina científica, cidos e caridosos" ou o "vigário", que prodigavam
seus cuidados aos doentes. "Eles tiravam seu conhe-
cimento - escreve M. Bouteiller -- de velhos trata-
dos de cem ou duzentos anos ... editados e reedita-
19 Marc le Proux, na obra sobre a medicina popular da Charente, enumera cento e
dos nos séculos XVII e XVIII". Os autores dessas
dezesseis (Cf. M. Le Proux, Mêdecine, magie, sorce/lerie, P. U. F., Paris, 1954).
20 Encontra-se um exemplo desse tipo de análise no artigo de Lyle Saunders e Gor- obras de divulgação "valem-se dos mais ilustres
don W. Hewes, "Folk Medicine and Medical Practice", Journal of Medical Educa-
tion, t. XXVIII, setembro 1953, p. 43-46. L. Saunder e G. H. Hewes escrevem: ••...
O conceito de medicina popular aplica-se também a esse vasto corpo de crenças
que. em nossa própria sociedade, é usado pelos doentes e pelos "marginais", no
diagnóstico e tratamento das doenças ... Em nossa própriacultura existem duas es- 21 Cf. M. Bouteiller, Médecine populaire d'hier et d'aujourd'hui, ed. G. P. Maisonneu-
pécies de conhecimentos e de práticas médicas; a medicina científica, que é pratica- ve et Larose, Paris, 1966, p. 51.
da pelos médicos profissionais, e a popular, que é mais ou menos a propriedade cc . 22 Cf. Ro Mandrou, De Ia culture populaire aux XVlle e XVllle siêcles, Ia bibliothê-
mum a todos os membros de nossa sociedade". que bleue de Troyes. Stock, Paris, 1964, p. 2.-24.
26 27
Totalmente diferente, o usuário da medicina familiar hoje não
mestres da medicina, Hipócrates, Galeno, Dioscóri-
esquece nunca o caráter ilegal dos atos médicos que executa ou pelo
des A vicenna, Alberto o Grande, Paracelso, Riviê-
menos, que só tem o direito de executá-I os por procuração 24. Do
re, Arnault de Villeneuve, assinalando ao mesmo
mesmo modo que "ninguém tem o direito de ignorar a lei", ninguém
tempo a simplicidade e a modicidade das prepara-
mais tem o direito de ignorar que existe uma ciência médica, conheci-
ções que eles preconizam" 23.
mento de especialistas submetido à lei do progresso que a instituição
escolar é a única com direito de transmitir. Se é verdade que a medi-
4. A LEGITIMIDADE MtDICA cina não é propriamente objeto de um ensinamento, mesmo sumário,
na escola primária, o fato é que a introdução nos programas de estu-
Constatar que a medicina familiar de outrora era constituída es- dos das escolas primárias, das ciências naturais e de higiene, - sem
sencialmente, como a de hoje, pela difusão do conhecimento médico que isso tenha como conseqüência a difusão de conhecimentos médi-
científico não autoriza a ver na medicina familiar, - que utiliza medi- cos propriamente ditos, - tem como resultado pelo menos a inculca-
camentos comprados em farmácia e produzidos industrialmente - o cão da idéia de que existe nessa matéria um conhecimento verdadeiro
simples prolongamento da antiga medicina popular, que fabricava de e único, aquele que a escola detém e transmite 25. A escola primá-
modo artesanal e mesmo caseiro seus próprios remédios. Para cons- ria inculca nos membros das classes populares o respeito pela ciência,
tatar isso. aliás, basta não se limitar a comparar medicina popular e o respeito por aquilo que é, e ficar-Ihes-á para sempre, inacessível, res-
familiar em suas características mais exteriores, mas interrogar-se peito que deve se manifestar pela recusa da pretensão, ou seja, por
também sobre as relações que os sujeitos sociais mantinham outrora uma clara consciência de sua própria ignorância, pela submissão aos
e mantêm hoje com aquelas e, em geral, com o conhecimento médi- detentores legítimos do conhecimento médico, os médicos, aos quais
co. Q que distingue essencialmente o usuário da medicina popular de se delega atéo direito de falar do próprio corpo e dos males que o
outrora do usuário da medicina familiar de hoje, é que o primeiro, ao atingem.Os membros das classes populares, conscientes de sua igno-
inverso do segundo, ignorava as origens científicas das receitas que rância; não são livres para desenvolver um discurso sobre a doença,
usava, ignorava até a existência de uma ciência médica legítima e de sendo suas tentativas de explicação freqüenternente seguidas de uma
especialistas como os médicos, únicos detentores autorizados daque- constatacão de ignorância ou do apelo ao único especialista autoriza-
la ciência. Os camponeses de outrora possuíam portanto um conheci- do a falar da doença: o médico. Sabe-se que existe um número ili-
mento comum que Ihes fornecia respostas aos principais problemas mitado de doenças; uma multiplicidade de remédios, e que a medici-
colocados pela doença e podiam produzir um discurso estereotipado na constitui uma ciência complexa, extensa,' inacessível. As hesita-
sobre a doença, comentá-Ia e explicá-Ia. Pois não existiam para eles ções em produzir um discurso coerente e elaborado sobre a doença,
outras doenças possíveis além das conhecidas e outros remédios em descrevê-Ia explicando a origem, o desenrolar e a cura, não são
possíveis. que não os remédios conhecidos; eles não eram jamais pe- nunca tão fortes - senão talvez no gabinete do médico, como se verá
gos de surpresa pela doença, mesmo quando a morte era a saída ne- a seguir - quanto em situação de pesquisa, porque tal situação reativa
cessária. a relação de professor a aluno ou de examinador a candidato, e
lem bra, por isso mesmo, sem cessar, a existência de um saber médico
legítimo.

23 M. Bouteiller, op. cit., p. 27. M. Bouteiller cita entre as antigas obras de divulgação
médica: .. Le trésor des pauvres. le médecin des dames, Ia médecine e/Ia chirurgie des
pauvres": Encontram-se também inúmeras receitas médicas em obras de economia
doméstica publicadas nos século X VIII. Cf. por exemplo: La nouvelle maison rusti-
24 Sobre o conceito de legitimidade, cf. P. Bourdieu, Un art moyen, Les Editions de
que ou économie générale de tous les biens de compagne, Paris, 17.49. Um capítulo (p.
Minuit, Paris, 1965, col. "Le sens cornmun", p. 134-138.
392) é consagrado à "virtude dos simples e à boticada familiar' que é, "uma das
25 Cf. P. Bourdieu e A. Darbel com D. Schnapper, L'amour de l'art, les musées et leur
matérias mais úteis na roça, onde se está quase sempre desprevenido dos recursos
public. Editions de Minuit, Paris, 1966, col. "Le sens commun" p. 72
que se encontram na cidade."

28 29
Qualquer pergunta feita em termos de verificação de se tem consciência de estar usando um termo emprestado da língua
conhecimentos, ou seja, do tipo "sabe o que é..." rea- científica, um termo que é estranho e do qual não sepode, sem riscos,
tivando assim a relação escolar de professor a aluno fazer uso ilegitimamente. Aliás, nas classes populares, o grupo social
e lembrando a existência de um conhecimento médi- apressa-se em pôr no devido lugar aquele que, cedendo à pretensão,
co legítimo, provoca, por parte dos membros das tenta apropriar-se de um vocabulário médico que deve permanecer
classes populares, uma recusa em responder. Por estranho, sancionando pelas caçoadas e ridicularizações os erros co-,
exemplo, à pergunta: "Você diz que o médico tirou metidos: "minha vizinha diz qualquer besteira, ela pensa que o pai
sua pressão; sabe o que é a pressão?" uma operária morreu de um enfarte do mio cardo!" (Paris, mulher de marceneiro,
responde: "Alain (seu filho de treze anos) seria mais 40 anos, 2 filhos).
capaz de lhe responder. Ele vai à escola; me dá algu-
mas aulas. Ele gosta de ciências. Eu não poderia lhe 5. A DIFUSÃO DO CONHECIMENTO MtDICO
explicar. A gente não esteve na escola, as crianças
aprendem coisas que a gente nunca aprendeu. Eu Só uma reaplicação do conceito de legitimidade permite explicar
me educo acompanhando Alain". (Vervins, mulher primeiramente as características específicas da difusão das ciências
de operário, 37 anos). Do mesmo modo, uma mu- médicas hoje e, em segundo lugar; as diferenças entre o modo e a ve-
Ihelr de agricultor que disse que seu marido tinha locidade de difusão dos diferentes tipos de conhecimentos médicos,
tido uma "congestão por hepatização", e a quem o Se a antiga medicina camponesa coletada pelos folcloristas difere da
pesquisador pergunta o que significa aquilo, respon- vulgata médica que é hoje a dos membros das classes populares, isso
de: "não sei muito bem. A gente é um pouco igno- acontece essencialmente porque o processo de difusão do conheci-
rante. Às vezes há palavras que a gente não enten- mento médico de origem científica operou-se de maneira diferente no
de ... " (mulher de agricultor, Vervins, 40 anos). primeiro e no segundo casos. Tudo se passa como se a difusão do co-
Pelas mesmas razões, a utilização pelos membros das classes po- nhecimento médico desde a cidadela científica até as classes popula-
pulares de termos médicos tomados ao discurso do médico nunca es- res tivesse se verificado antigamente conforme as leis da difusão defi-
tá livre de subentendidos ou de reticências. Mesmo quando se sentem nidas pelos etnólogos. Os elementos culturais tomados da medicina
à vontade para empregar termos ouvidos do médico, os membros das científica eram "integrados à cultura preexistente" 28. No caso, ao
classes populares fazem-no em geral com uma certa vergonha. Quan- corpo de conhecimentos de classe que constituía a medicina popular,
do não podem ser assimilados à fala comum e carregados de repre- sendo esta integração, em primeiro lugar, função' de sua "aptidão à
sentações familiares 26, esses termos só são utilizados por seus "efei- descontextualização" i9, e fazendo-se através de reinterpretações e de
tos de evocação", pois evocam, como escreve Charles Bally, "as múl- reformulações que transformam seu sentido e função. Pode-se dizer
tiplas associações que se costuma relacionar com a medicina" 27. O que o processo de difusão efetuava-se então de maneira completa no
termo tomado da linguagem médica permanece então Uma palavra sentido' de que os receptores podiam assimilar, ou melhor, digerir o
estranha que não se integra na fala vulgar. usado como uma cita-
Ê
empréstimo, até esquecer sua origem estranha 30. A reinterpretação
ção e freqüentemente acompanhado de locuções tais como "é o que
dizem os médicos", ou "como eles chamam isso", que visam essen-
cialmente a mantê-Io à distância. Trata-se de mostrar claramente que
28 Cf. E. Linton, De /'Homme, tradução em francês de Y. De1saut, Les Editions de
Minuit, Paris, 1968, col. "Le sens commun".
29 Cf. E. Sapir, Anthropologie, tradução e introdução de C. Baudelot, Les Editions de
26 Cr. capítulo 1lI. Minuit, Paris, 1967, vol. 2, p. 41.
27 Sobre o mecanismo da evocação, cf. C. Bally, Traité de stylisjique française, edições 30 Do mesmo modo, o empréstimo linguístico só é totalmente integrado na língua
C. Klincksieck, Paris, 1951, vol. I, p. 235-236. quando os locutores não têm mais consciência de sua origem estrangeira.

30 ,31

\,\
I

.1;1
do empréstimo sua assimilação, o esquecimento de sua origem
compõem a higiene parece difundir-se mais facilmente (pelo menos
científica, eram facilitados pela existência de um grande número de
nas classes médias) do que os conhecimentos médicos, propriamente
intermediários entre o emissor, a cidadela científica criadora dos no-
ditos, que se referem à doença e sua cura, pois a existência de uma
vos conhecimentos, e os receptores, pois os membros das classes po-
ciência naquele caso é menos evidente e menos nítida e refere-se a co-
pulares não recebiam diretamente do médico conhecimentos virgens
nhecimentos de orientaêao médica mais do que a conhecimentos pro-
de qualquer manipulação, mas do "curandeiro", da "castelã", ou do
priamente médicos, conquistas relativamente recentes da medicina
"cura", conhecimentos médicos já pa-rcialmente descontextualizados
que estão avançando sobre domínios outrora deixados à margem da
e reinterpretados. A assimilação pelas classes populares dos
ciência, e que ainda não conquistaram totalmente sua legitimidade.
cónhecimentos médicos de origem científica e sua integração no
Se, por exemplo, a puericultura fornece uma ocasião excepcionalmen-
corpo de conhecimentos de classe só era possível através de toda uma
te favorável de percepção do conhecimento médico popular e de sua
série de. transformações, que tinham como conseqüência desbaratar
formação, é porque, menos do que a medicina, ela desperta o medo
o empréstimo e mesmo desnaturá-lo. Se as classes populares hoje
de "ser desconsiderada, revelando ignorância das práticas e dos co-
não podem apropriar-se deles, é porque o respeito que têm pela ciên-
nhecimentos consagrados" ll.
cia e pelos sábios, pelo médico e por seu discurso, proíbe-lhes operar
com toda candura essas reinterpretações e essas reformulações que Tudo se passa então como se o reconhecimento unânime da le-
constituem, de certa maneira, o preço da difusão. Além disso, a fre- gitimidade do conhecimento médico oficial - criado e defendido por
quência renovada ao consultório médico, que é hoje o principal difu- instituições científicas e que detêm também o monopólio de sua di-
sor do conhecimento médico, proíbe-lhes esquecer a existência de um fusão, resultado da doutrinação escolar - que nunca aparece tão niti-
conhecimento médico legítimo, confundindo-se o respeito devido à damente como quando esse conhecimento é ignorado ou pelo menos
ciência com o respeito devido ao médico, como representante da na aparência,· transgredido, pelas práticas médicas familiares l4 - ti-
ciência e das classes cultas ".
vesse coagido os membros das classes populares a se despossuir de
Assim também, os diversos tipos de conhecimentos parecem di- um conjunto de conhecimentos e de receitas - a medicina popular -
fundir-se hoje tanto mais facilmente quanto menos nitidamente for que, sem Ihes pertencer de pleno direito nem constituir uma pura
reconhecido seu caráter científico, ou se preferirmos, quanto menos criação do pensamento popular, era-lhes no entanto familiar o bas-
evidente for seu caráter técnico e mais se aproximarem eles dos co- tante para Ihes permitir ter um discurso coerente, se ~em que sumá-
nhecimentos familiares utilizados na administração da vida cotidia- rio sobre a doença, explicá-Ia, compreendê-Ia e, por isso mesmo,
na; pois seu poder de evocação será menor, imporão menos respeito dominá-Ia, integrando-a ao universo das coisas costumeiras e conhe-
e poderão mais facilmente ser descontextualizados, fazer com que cidas antecipadamente.
seja esquecida sua origem científica e integrar-se no conjunto dos
conhecimentos de classe, enfim, quanto menos esmagadora for sua
legitimidade ". Por essa razão, o conjunto dos conhecimentos que

33 Do mesmo modo, a fotografia, que pertence à "esfera do legitimável" mais do que à


31 Cf. capítulo lI. "esfera de legitimidade com pretensão universal", "c uma ocasião excepcional de
se perceber a lógica da estética popular". Cf. P. Bourdieu, Un artmoyen, op. cit., p.
32 Se a amplitude de difusão de uma ciência-é função de. sua tecnicidade, isso talvez
não se deva apenas a que os .conhecimentos mais esotéricos sejam tecnicamente os 134.
34 Cf. P. Bourdieu, Un art moyen, op. cit., p. 135, n.9 30" ... A regra legítima pode não
mais difíceis de serem divulgados e os de mais árdua assimilação para. o senso co-
determinar em nada os comportamentos que se situam em sua área de influência,
mum. r:
também certamente porque os conhecimentos mais esotéricos são também
pode mesmo apresentar apenas exceções; nem po-r isso deixa de definir a modali-
os mais legítimos e, portanto, por isso mesmo os mais bem defendidos contra esse
dade da experiência que acompanha esses .comportamentos, e não pode ser
conjunto de mecanismos redutores, que são os únicos a tornar possível a difusão
do conhecimento numa sociedade hierarquizada. pensada e reconhecida, principalmente quando é transgredida, como a regra dos
comportamentos culturais quando se pretendem legítimos."
32
33

[I\,
6. A CONFUSÃO FRENTE Á DOENÇA. ter a uma crítica exigente, aplicável apenas aos fatos e gestos da vida
cotidiana 37.
Se por um dado é verdade que a situação dos membros
Assim sendo, isso acontece por não existir para eles nenhum
das classes populares face ao conhecimentos médico e aos médicos
meio de submeter à crítica as palavras ou os gestos do médico, nem
constitui apenas um caso particular da relação que os não-cientistas,
de estabelecer, no que é relatado em seguida ao discurso do médico,
membros das classes populares ou das classes médias, mantêm com a
pelos parentes ou amigos do doente, a parte de verdade e de mentira
ciência e os cientistas, ou seja, essencialmente com aqueles que per-
ou, simplesmente, o provável, o possível e o impossível ou fantasma-
tencem às classes superiores e possuem um nível de instrução eleva-
górico. Pois, como se sabe, existe uma infinidade de doenças possí-
do, numa sociedade submetida a um processo de "intelectualização
veis, mas desconhecidas, uma multiplicidade de remédios possíveis,
ou de racionalização crescentes" 3\ não é menos verdade que a dele-
mas cuja composição ou natureza fogem ao exame; nenhuma doen-
gação ao especialista, do discurso justificador .dos comportamentos e
ça, por mais estranha ou apavorante que seja, nenhum tratamento,
das situações mais cotidianas, como acender a luz, por exemplo, não
por mais incrível que pareça, poderia, absolutamente, desconcertar
é nunca tão desesperante nem tão frustrarite como no caso do médi-
ou surpreender. Os membros das classes populares sabem que tudo
co, porque o objeto que o sujeito abandona às manipulações do espe-
cialista e ao seu discurso, não é nada mais do que, no caso, o seu pró- pode acontecer com seu corpo, ou por culpa da doença ou por culpa
prio corpo. Assim, a relação nova com a doença e com o conheci- do médico, e que não há mal tão monstruoso que não possa atingi-Ios.
É também nas classes populares, e só aí, que encontramos a descri-
mento médico, instaurada pelo reconhecimento da única legitimida-
ção daquelas doenças que não têm nome em nenhum tratado de me-
de do conhecimento oficial, é essencialmente geradora de ansiedades
e de tensões. Como não possuem mais aquele conjunto de esquemas dicina, nem, com maior razão, no espírito daqueles que as agüentam
e descrevem; doenças estranhas, nas quais os ossos "ficam êsmiga-
explicativos e de receitas que constituía a medicina popular, e que
lhados" e "se enrolam", os corpos "se enchem d'água" ou então "de
nada veio preencher o vazio assim criado senão a consciência infeliz e
pus" e incham desmesuradamente, cobrem-se de "manchas gigantes-
angustiada de sua ignorância e falhas frente aos detentores do conhe-
cimento legítimo, os membros das classes populares estão hoje diante cas", "apodrecem por dentro", e cujo tratamento parece muitas ve-
zes tão monstruoso quanto os sintomas. Mas antes de estudar esse
da doença, da medicina e dos médicos como diante de um universo
discurso sobre a doença, desesperado e incoerente pelo menos na
estranho que, da mesma maneira que a organização capitalista, se-
aparência, e pata poder interpretá-Io corretamente, convém que se
gundo Max Weber, preexiste aos indivíduos e impõe-Ihes sua lingua-
examine suas condições objetivas de produção, ou seja, que se analise
gem e suas regras 36. Estranho ao "universo da experiência" e regido
o tipo de relação e de comunicação estabelecido entre o médico e o
por uma outra lógica cujas regras se ignora, o mundo da doença e da
doente das classes populares.
medicina é para os membros das classes populares "um universo on-
de, por essência, tudo é possível", e que em vão desejar-se-ia subme-

37 Pode-se dizer. a mesma coisa em relação ao mundo imaginário, para o camponês


kabile: cf. P. Bourdieu, Le désenchantement du monde, caderno mimeografaào do
"Centre de Sociologie Européenne", Paris, 1966, p, 33-3~. "Além do horizonte do
35 Cf. M. Weber, Le savant et te politique, edições Plon, Paris, 1959, p. 77-79, e L' êthi- presente começa o mundo imaginário, que não pode ser conectado com o universo
que protestante e l'esprit du capitalisme, edições Plon, Paris, 1964, prefácio, p. 11- da experiência e onde, por isso mesmo, reina uma outra lógica. O que pode parecer
30. absurdo ou irnpossivel, se situado no campo da experiência, pode se realizar em
36 A situação dos membros das classes populares face à doença, à medicina e aos mé- outros lugares afastados no espaço e no tempo ... Os mesmos critérios não po-
dicos não deixa de ter certas analogias com a dos subproletários argelinos face ao dem ser aplicados conforme se trate de um aconteéimento produzido dentro dos
universo capitalista. Cf. P. Bourdieu, Travail et travailleurs en Algérie, edições horizontes conhecidos ou de um fato sobrevindo no país das lendas que começa
nas próprias fronteiras do mundo conhecido".

34
Mouton, Paris, 1963.
j 35
11

A Relação Doente-Médico

1. RELAÇÃO DOENTE-MtDICO E DISTÃNCIA SOCIAL

Como o médico atualmente é ao mesmo tempo o principal


agente de difusão dos conhecimentos médicos e aquele que - ao afir-
mar a legitimidade de seus atos e discursos - limita sua reprodução, a
relação que os membros das classes populares mantêm com o univer-
so estranho da doença e da medicina aparece totalmente na relação
com o médico, como único representante da ciência legítima que eles
podem amiúde freqüentar. Habitualmente pouco loquazes quando
têm de falar da doença ou de enumerar seus conhecimentos médicos,
os membros das classes populares conversam de boa vontade sobre -,
\
seu médico suas qualidades e defeitos. Discurso prolixo, o discurso i
sobre o médico não deixa de ser, em geral, um discurso inquieto, he-
sitante, oscilando, num mesmo indivíduo, entre a afirmação de uma
submissão incondicional ao médico e a enumeração das queixas que
nutrem a seu respeito. A ansiedade dos membros das classes popula-
res em relação ao médico provém, em primeiro lugar, do fato de não
possuírem nenhum critério objetivo que Ihes permita apreciar as qua-
lidades profissionais do médico; nisso diferem dos membros das elas-
37

L
quase um amigo da família. Tem gente que não gos-
ses superiores, que podem procurar os conselhos dos médicos deten-
ta dele, que o acha apressado, que ele vai muito de-
tores de autoridade entre seus pares, esforçando-se por escolher, ba-
pressa n as visitas às casas; aqui, ele às vezes relaxa,
seados em seus títulos e reputação, aqueles que ocupam o centro do
acontece dele sentar para conversar". (Paris, mulher
campo médico. Isto porque a escolha do médico difere consideravel-
mente conforme a classe social do doente. Deliberada nas classes su- de aprendiz de açougueiro, 35 anos).
periores, essa escolha é feita em geral. nas classes populares, "ao aca- Se os doentes das classes populares são particularmente sensí-
so", ou seja, em função de critérios independentes de quem escolhe I, veis aos "modos" dos médicos e prontos a reparar em todas as nuan-
e dos quais o mais importante é sem dúvida a distância geográfica. t ces de sua atitude em relação a eles, de sua "familiaridade", ou "a-
Como não possuem os critérios específicos que Ihes permitiriam me- mabilidade" ao "orgulho", ou "arrogância", talvez seja também
dir a competência profissional do médico, os membros das classes porque têm uma aguda consciência da distância social que os separa
populares só podem avaliá-los em função daqueles critérios difusos, do médico, e porque estão em situação de saber, ou pelo menos de
usados cotidianamente na apreciação de outrem: a "amabilidade", a pressentir, que a relação doente-médico é uma relação de classe e que
"boa vontade", a "complacência". o médico adota um comportamento diferente conforme a classe so-
Assim, os membros das classes populares são os cial do doente.
mais numerosos a mencionar, entre as mais impor- "Fizemos uma pergunta ao médico sobre a intimi-
tantes qualidades do médico, o "devotamente" dade do casal. Ele desviou a conversa. Tínhamos a
(mencionado por 59";, dos agricultores, 53% dos impressão que não estava à vontade conosco para
operários, 39";, apenas de executivos e membros das falar disso. Ele deve falar disso com pessoas de ou-
profissões liberais) e o "tempo consagrado ao doen- tra classe, mas não conosco. U ma vez, estávamos no
te" (mencionado por 17"{, dos operários contra 7% consultório esperando e eu vi que ele falava livre-
apenas dos executivos e membros das profissões li- mente com alguns outros clientes". (Paris, mulher
berais). Inversamente, os membros das classes po- de operário, 30 anos).
pulares são os que atribuem menos importância às
qualidades específicas do médico, e principalmente Na maior parte dos casos, o médico é imediatamente percebido
à "exatidão do diagnóstico" (mencionado por 85% pelos membros das classes populares como o representante de um
de técnicos e assalariados e membros das profissões universo estranho, como um membro dessa vasta "maçonaria": "os
liberais contra 54% dos operários e 59% dos agricul- outros". Isso porque, para os membros das classes populares, o uni-
tores) (2-1) 2. "Estou muito satisfeita com nosso mé- verso social divide-se essencialmente, como mostrou R. Hoggart, em
dico: é jovem, simpático e gasta bem uns trinta se': dois grupos - "nós" e "os outros". "Os outros", são todos aqueles,
gundos para ser amável com a gente" (Paris, mulher patrões, professores, comissários de polícia, médicos que, membros
de contínuo, 28 anos). "Nosso médico é amável. É dos clãs superiores (ou das classes médias), têm contatos relativa-
mente freqüentes com as classes populares e são, junto a estes, os re-
presentantes da legalidade, os guardiães da ordem social J. Como os
"outros" são os membros e os representantes de um grupo estranho,
como suas exigências, atos e motivos que os movem permanecem em

I O mesmo pode-se dizer para várias outras "escolhas",principalmente a dos estudos


e, portanto, da profissão. tf. M. de Saint Martin, "Les facteurs de l'élimination et
de Ia sélection différentielles dans les études de science", Revue française de sociolo-
gie, vol. IX, n9 especial, 1968, p. 167-184. j' 3 Cf. R. Hoggart, The Uses of Literacy; Pelican book ed., Harmondsworth, 1958, p.
2 I.F.O.P. "Le Français et leur médecin", loco cito 72-101.

38 39
geral misteriosos ou incompreensíveis, os membros das classes popu- tos. Alguns pedem cinco mil, seis mil, oito mil fran-
lares atribuern-lhes facilmente uma disposição hostil ou, pelo menos, cos *. Isso tudo pela cara do cliente. Uma locatária
manipuladora. Sabe-se, com efeito, que "os outros" possuem conhe- .:t., daqui foi a uma médica, havia uma condessa antes
cimentos, meios materiais e direitos que Ihes conferem extensos po- dela, a quem cobraram seis mil; a ela quatro mil
deres, e dão-Ihes a possibilidade de manipulação ou então, necessa- francos. Nem mesmo o médico se lembrava mais, e
riamente, a vontade de manipular. Mas como a relação de força é perguntou "quanto eu lhe cobrei da última vez?"
aqui demasiado desigual e para desmascarar tal manipulação ou evi- Existem médicos que por uma doença banal fazem a
tá-Ia seria preciso possuir poderes equivalentes aos do manipulador, gente voltar três ou quatro vezes para nada. Para
os membros das classes populares não têm outros recursos para se voltar ao trabalho, eles cobram. As vezes a gente
defender e se assegurar senão a desconfiança e a caçoada, o mau hu- tem medo quando está nas mãos deles, é uma catás-
mor e a suspeita. Essa desconfiança exprime-se particularmente em trofe". (Paris, mulher de operário, 35 anos).
relação ao preço pedido pelo médico. Contrariamente aos serviços
Do mesmo modo, para os mem bros das classes populares não
do eletricista, do garagista ou do bom beiro, cujos custos os operários "" existe nenhum outro meio de saber se os medicamentos caros prescri-
podem avaliar, comparando-os ao preço pago por seu próprio traba-
tos pelo médico são todos necessários ao restabelecimento da saúde,
lho, os serviços médicos são difíceis de serem apreciados. Realmente,
se o médico não os prescreveu de propósito, ou por indiferença, ou
como saber se a importância pedida corresponde ao serviço presta-
porque recebe uma espécie de "comissão" ou percentagem sobre sua
do, ou se o serviço prestado está na medida das necessidades do
venda '.
doente'?' Dessa maneira, os membros das classes populares têm mui-
tas vezes o sentimento de que o preço do serviço médico é estabeleci- "O médico em que eu estava tinha dado menos re-
do de maneira totalmente arbitrária, o médico definindo o total de médios. Esse agora, às vezes tenho que gastar vinte
seus honorários segundo sua vontade ou humor do momento e, mais mil francos! É um exagero. Talvez ele tenha uma
diretamente, "pela cara do cliente". percentagem". (Vervins, mulher de operário, 42
anos, I filho).
"". Tudo isso depende dos médicos. O que eles fa-
"Os médicos deveriam dar um remédio para curar,
zem nem sempre é útil. Por exemplo, um médico
sem ficar sempre dando remédios assim. Eles alon-
que trabalha em convênio, vai cobrar três mil, um
gam a visita, isso os faz ganhar mais". (Vervins, mu-
outro que trabalha diferente, vai pedir seis mil pela
lher de operário, 42 anos, I filho).,
mesma coisa. Quando não existe convênio, eles pe-
dem o preço que querem. Deveriam ser mais modes-

* N. do T. - Trata-se de francos antigos.


5 Note-se, de passagem, que tais suspeitas estão longe de serem totalmente ilusórias.
4 Os membros das classes populares adotam uma atitude semelhante em relação às Como sua atividade situa-se na interferência de três lógicas diferentes e mesmo
organizações de crédito. Como o preço do serviço médico, o preço do crédito é contraditórias - lógica do desinteresse humanitário ("fazer tudo pelo doente"), da
difícil de se apreciar e avaliar. De maneira geral, a relação doente-médico não é, racionalidade e do interesse científico ("fazer progredir a ciência"), e enfim do lu-
como gostaria a ideologia médica, uma relação específica, mas pertence a um gêne- cro e da rentabilidade econômica ("ganhar dinheiro") - e realizar-se dentro de um
ro mais vasto de relações interindividuais, que põem face a face um especialista de- sistema de coerções legais (o direito médico) e de forças tradicionais (a deontologia
tentor de um conhecimento específico e manipulador, e um profano que suspeita médica), os médicos não podem, como os outros comerciantes, negociantes de
da manipulação sem poder provar nada e nem, com maior razão, evitá-Ia. Cf. para bens ou de serviços, dar-se explicitamente como fim a maximização dos lucros. As-
toda esta parte, P. Bourdieu, L. Boltanski e J. C. Chamboredon, La banque et sa sim sendo, aperfeiçoaram toda uma série de técnicas complexas (que só elas mere-
cliente/e. é/éments d'une sociologie du crédit, caderno mimeografado do Centre de ceriam um estudo particular), com o fim de salvaguardar seus interesses materiais
Sociologie Européenne, Paris, 1963. sem transgredir de maneira muito evidente os princípios da moral do desinteresse
I1
40 41
2. RELAÇÃO DOENTE - M~DICO E COMUNICAÇÃO leur médécin". Essa pesquisa mostra que a propor-
ção daqueles que declaram que o "médico não lhes
Porém o que os doentes das classes populares reprovam essen- dá bastante explicações" aumenta em alta propor-
cialmente ao médico é "não ser franco", "não dizer direito o que a ção quando se passa das classes superiores às classes
gente tem", não mostrar 'tudo o que está pensando', e o mutismo do populares (2-2) 6. •
médico só pode reforçar a ansiedade dos membros das classes popu-
Se, aparentemente, ainda hoje os membros das classes baixas te-
lares face à doença e sua desconfiança desse juiz cujo veredicto se ig-
mem a hospitalização para eles mesmos mas talvez ainda mais para
nora.
seus próximos, é porque a instituição hospitalar, que coloca um
"Quando dá um medicamento, o médico nunca dá grande número de intermediários entre o médico, personagem consi-
explicações. Dá o remédio e pronto: tome isto e vol- derado intocáve! e invisível, e o doente ou sua família, e que limita e
te depois de amanhã". Nunca diz porque a gente es- regulamenta os contatos entre o doente e seus médicos, as famílias e
tá doente. É o jeito dele. Eu gostaria que ele expli- o doente, aumenta a solidão e a ansiedade dos membros das classes
casse mais claramente. Mas a gente não é mesmo ca- baixas frente à doença e à medicina 7.
paz de compreender mais do que isso. Estamos
Seria convincente escutar essa mulher de operário
acostumados a eles não dizerem mais nada. (Mulher
falar da doença de seu marido: "e aí meu marido
de cultivador, Fontaine-Ies- Vervins, 38 anos); "o
quase morreu e levaram-no para o hospiral de L'IlIe.
médico não é tagarela. Faz as perguntas, quer saber,
Lá, em L'IIIe, no hospital, também não me diziam
mas eu não tenho coragem de lhe fazer muitas per-
nada. Só 'que "é um caso grave", "é um caso que
guntas. Ele não gosta muito que lhe façam pergun-
tem que ser acompanhado" e como usavam pala-
tas. Tira a pressão e diz "a senhora está com "treze",
vras que a gente não conhecia! Uma vez vi o Profes-
mas não gosta que lhe façam perguntas. "A sen-
sor. Ele disse: "É muito grave!" Depois disso tentei
hora precisa se cuidar, dizem eles, não tem que fi-
éar perguntando o que tem". A gente tem que se
deixar guiar por eles, ter confiança, e só. Toma-se
tal remédio sem saber se é para essa ou aquela coi-
sa" (Vervins, mulher de operário, 37 anos). Poder-
6 I.F.O.P., "Les Français et leur rnédecin", loc. eu.
se-ia acumular os exemplos desse tipo; essas res-
7 "Os hospitais e as clínicas - escreve A.L.Strauss - são organizados para que o tra-
postas aparecem na maioria das entrevistas feitas balho seja feito o melhor possível, do ponto de vista do pessoal médico; mas é mui-
entre as classes populares. Esses resultados são cor- to raro que alguma coisa seja feita para minimizar a angústia do doente. O doente
roborados pela pesquisa do IFOP "Les français et tem que se arrumar sozinho, e às vezes se perde quando o mandam ir "até o fim do
corredor", Os doentes são muitas vezes mandados para exame, de um serviço para
outro, sem explicações, num tom imperioso e brutal. Essa situação aumenta sua
ansiedade e não deixa de ter influência sobre seus sintomas. Após terem ficado sen-
tados, esperando durante horas, os doentes das classes populares estão em geral re-
voltados por ver que recém-chegados passam antes deles, mas ninguém lhes explica
nCI11se expor ao escândalo. Algumas dessas técnicas situam-se nos limites da lega- o porque das entradas e das prioridades. Além disso queixam-se de não poder che-
lidude. Tal é o caso. por exemplo. da dicotomia que consiste, para o cirurgião, em gar até os médicos de sua preferência e nos quais têm confiança. Quando os
pugnr ao médico que lhe enviou o doente uma comissão sobre uma parte de seus membros das classes superiores encontram-se em situação similar, podem sem difi-
benefícios. ;\ maior parte, no entanto, permanece perfeitamente legal e só se mani- culdade acionar certos métodos que lhes permitem furar o sistema tmeihods ofbea-
festa por UI11excesso de leio. Assim, certos clínicos compram um material de ra- ting lhe systemi ou obter comodidades e informações que podem incomodar o pes-
diogrufi.i c ra/CI11 sisicm.uicumente uma radiografia dos doentes que vêm consultá- soal, mas que diminuem sua ansiedade. Os pobres, esses não sabem como escapar
los, Mas, Clll110 declarou UI11desses médicos, para se justificar: "isso não Ihes faz ao sistema". (A.L.Strauss, "Medical Ghettos", Trans-Action, yol.4, n9 6, Maio
111ai c é reembolsado pela previdência". 1967, p. 7. 16)

42 43
revê-lo, mas sabe, são professores. Sempre ocupa- ses populares é em primeiro lugar um membro de uma classe inferior
dos. Não pude lhe perguntar nada. Cruzei com ele à sua, possui o mais baixo nível de instrução, e que, fechado na sua
no corredor, havia outras pessoas escutando, ele ignorância e seus preconceitos, não está portanto em estado de com-
nada disse diante delas. Mesmo ao meu marido ele preender a linguagem e as explicações do médico, e a quem, se se
não disse nada. Não o punha a par de nada ... O mé- quer fazer compreender, convém dar ordens sem comentários, em
dico daqui é a mesma coisa, não diz muito. E de- vez de conselhos argumentados.
pois, não se compreende tudo. Compreende-se ape- Assim, um certo número de médicos (20%), alcan-
nas que o coração está cansado. Eu lhe faço pergun- çados por uma pesquisa sobre a informação médica
tas e ele só responde: "Seu marido é um pobre infe- do público, realizada em Bordeaux entre 80 clínicos,
liz!", mas para dizer o que está acontecendo real- declaram "só dar informações contra a vontade" e
mente!", (Vervins, mulher de operário, 26 anos). "preferir uma confiança quase cega" ou "só informar
É em primeiro lugar uma barreira linguística que separa o médi- aqueles que julgam capazes de compreender sem de-
-...J.
co do doente das classes populares, pois a utilização pelo médico de formação", ou seja, em primeiro lugar os membros
um vocabulário especializado redobra a distância linguística, devida das classes superiores. Efetivamente, dizem vários
.ao mesmo tempo a diferenças lexicológicas e sintáticas, que separam deles, "seria preciso que os doentes tivessem pelo
a língua das classes cultas da língua das classes populares 8. menos o nível ginasial para compreender o que Ihes
explicamos" 11.
A pesquisa do IFOP, já mencionada, revela que a
proporção dos que acham que o médico tem tendên- A atitude autoritária do médico frente aos membros das classes
cia a empregar "palavras incompreensíveis" decresce populares, sua reserva em fornecer-lhes aquela informação mínima,
regularmente quando se passa dos agricultores a única que Ihes permitiria dar um sentido aos atos e às misteriosas
(49%) para os operários (47%), para os assalariados prescrições do médico, nunca aparece tão claramente quanto no
do terciário (36%), Nra os ténicos e dirigentes assa- exercício da medicina preventiva "medicina da saúde", que exige, no
lariados e membros das profissões liberais (23%) (2- entanto, para se completar totalmente, uma estreita colaboração en-
3) 9. tre o médico, encarregado de difundir as regras de higiene e aqueles
Porém, não basta mostrar que o médico e o doente das classes que devem pô-Ias em prática 12. Assim, por exemplo, nas clínicas de
populares não falam a mesma língua 10. As explicações dadas pelo -J. lactentes freqüentadas essencialmente por membros das classes po-
médico ao doente variam, efetivamente, em função' da classe social pulares, aquilo que deveria ser transmitido em prioridade, ou seja, as
do paciente; os médicos, em geral, nãô dãolongas explicações senão razões e os conhecimentos que fundamentam e dão sentido às regras
àqueles quejulgam "bastante evoluídos pára compreender o que vai de criação ordenadas pelo médico, fica sempre implícito, enquanto o
Ihes ser explicado", Para o médico, efetivamente, o doente das elas- médico age como se a mãe fosse iniciada na lógica da higiene pasteu-
riana, ao pedir-lhe que ferva a mamadeira antes de cada refeição. E
mais ainda, se por acaso o médico encontra e percebe resistências por

11 Dr. P. Coudray, M. Cerise e P. Fréour, Information médicale du public, aspects psy-


8 Cf. P. Bourdieú, i,C,Passeron, M, de Saint-Martin, Rapport Pédagogique et Com-
chosociaux, rapport introducttf au IX e. colloque international de psychologie médica-
munication, ed. Mouton, Paris, 1965, col. "Cahiers du Centre de Sociologie Euro-
péenne", n9 2.
te, mimeografado, Paris, 1966, p. 75-83.
12 Sobre a "medicina da saúde", cf. P. Fréour, "Le'éducation médicale du public est-
Q I.F.O.P., "Les Français et leur médecin, loc. cit.
10 Cf. c. Bally, Traité de Stylistique française, edições C. Klincksieck, Paris. elle dangereuse? Journal de médecine de Bourdeaux, n9 5, maio 1965. p. 1008-1010.

44 45
parte da mãe, nunca é através de uma explicação do que constitui o Se as reticências em fornecer ao doente informações propriamente
princípio de eficiência do remédio prescrito ou da regra enunciada médicas mantêm-se mesmo quando se está pretendendo lutar contra
que ele procura eliminar essas objeções, mas através do enunciado "os preconceitos e a ignorância do público", e se a ideologia que
das sanções que decorrerão automaticamente da desobediência, pela exalta a educação sanitária combina muito bem com a que desaprova
enumeração das conseqüências, que não faltarão sobre a saúde da a "divulgação" e que vê no gosto pela divulgação médica o resultado
criança em conseqüência da transgressão da norma: "A senhora lhe de "uma atração nociva e perigosa", isso acontece em primeiro lugar
dará sem falta essas vitaminas, senão ele terá pernas fracas". porque o poder médico, para se exercer plenamente, precisa de um
doente educado, mas que nem por isso deixa de se conformar e, uma
A observação de 30 consultas com uma duração de vez informado, permanece tão modesto, tão ingênuo, tão confiante
cinco a vinte minutos cada, realizadas em julho de na presença do médico quanto o era na sua total ignorância. Enfim,
1967 no subúrbio parisiense, freqüentadas quase o poder médico, que da mesma maneira que o poder religioso, sem-
que exclusivamente por mulheres de trabalhadores pre teme ver uma autoridade concorrente levantar-se contra ele, só
braçais e de operários, mostra que 3/4 das coisas di- pode ser plenamente exercido fazendo de seus sacerdotes os detento-
tas, foram-no pelo médico, autor de 73% das pala- res de segredos inacessíveis aos profanos. 14
vras pronunciadas durante o diálogo com a mãe.
Em 47% dos casos, os enunciados emitidos pelo-mé- É exatamente a linguagem religiosa da profanação
dicos são perguntas dirigidas à mãe, em 27% dos ca- que os médicos utilizam para falar da divulgação
sos, conselhos ou ordens, em 23% dos casos, consta- médica; "N ada pior do que a meia-instrução; - de-
tações sobre o estado de saúde do bebê, tais como clara um cirurgião - em vez de aprender pouco e
"ele é bonito", "ele fica de pé", "ele tem quatro bem, aprende-se muito e mal. Em vez de limitar-se a
dentes", etc .... em 3% dos casos apenas, respostas noções de higiente geral, elementar e moral, em vez
às questões da mãe. Em 75% dos casos, os enuncia- de aprender as conseqÚências desastrosas do álcool,
dos emitidos pela mãe são respostas às perguntas do do fumo, chega-se até a produzir na televisão, ope-
médico, dos quais a metade mais ou menos são um rações up to date do coração, das quais ninguém
"sim" ou um "não", e apenas em 5% dos casos, per- pode nem deve compreender nada, procurando com
guntas dirigidas ao médico a fim de obter ou um su- isso jazer. a massa penetrar até o último recinto do
plemento de informação ou a prescrição de um re- templo, onde a maioria dos médicos não é sequer
médio especial. admitida; "o 'progresso da informação e a divulga-

Como se vê no exemplo acima, a vontade de proceder à "educa-


ção sanitária do público", ou seja, em última análise, de produzir
usuários racionais e conformes com a medicina moderna e a recusa a vida do outro mas matar o assassino", e enfim, que vai diretamente do particular
em. transmitir ao público os princípios médicos que fundamentam e ao particular, sem f!lzer o desvio pela regra universal que fundamenta a obrigação
subentendem as ordens e as prescrições do médico, não são incompatí- e a sanção. (Cf. E. Durkheim, La division du travail social. P.U.F., Paris, 1960,
p.4I).
veis, pois a educação sanitária pode também ser feita de maneira pu-
14 Fazer concorrência à medicina oficial e, através da transmissão tanto de princípios
ramente autoritária e, economizando um desvio pelos princípios, como de receitas, colocar os membros das classes populares "ao abrigo dos erros
contentar-se em ir do particular aoparticular ou da culpa à sanção 13. culpáveis dos médicos", dando-Ihes meios de se tornarem "seus próprios médi-
cos", "livrarem-se um pouco do charlatanismo ruinoso das panacéias", como es-
creveu Aubry, um litógrafo de Rouen, citado por G .Duveau (La pensée ouvriére
sur /'éducation pendant Ia Seconde République et le Second Empire, edições Domat-
Montchrestien, Paris, 1947, p.121), eram exatamente as funções que alguns de seus
13 Da mesma maneira que o Direito Penal tradicional, que "só enuncia sanções", promotores, entre os quais o Doutor Raspail, em fins do século passado, definiam
mas "não diz nada das obrigações às quais elas se referem" e "não ordena respeitar para a divulgação médica. "Escolher um médico num caso de necessidade - escre-
46 11 47
cão dos conhecimentos em geral - declara um clíni- ciência e de uma confiança" ", ou ainda, como descrevem alguns so-
co de bairro - tirou da medicina seu caráter um pou- ciólogos, apenas a relação entre um especialista e um profano, a rela-
co extraordinário, taumatúrgico. Publicando suas ção doente-médico é também sempre uma relação de classe, modifi-
técnicas e segredos, ela foi despojada de muito de cando-se a atitude do médico em função principalmente da classe so-
seu prestígio, e isso, paradoxalmente, no momento cial do d oen te ".
em que começa a ter meios instrumentais, químicos Mas, como a confissão de uma modificação no comportamento
e biológicos potentes 15.A enquete realizada em 80r- do médico conforme a classe social do doente viria contradizer os
déus sobre as atitudes dos médicos face à informa- princípios de uma ética médica de inspiração evangélica, para a qual
ção médica do público, já citada, mostra que 50% os doentes, despojados de seus atributos sociais desde o instante em
dos médicos interrogados "são claramente hostis a que tiram suas roupas, são, nessa nudez, todos iguais perante o médi-
qualquer idéia de informação a priori do público, e co; mas igualmente talvez porque o tipo de formação que receberam
que 15% só a aceitam com muita reserva ... ". "Para e a ideologia que é a sua, ÓS predispõem a manifestarem mais interesse
muitos - escrevem os autores da pesquisa - essa in- pelas diferenças psicológicas do que pelas diferenças sociais, os médi-
formação representa um constrangimento no exercí- cos pretendem adaptar suas atitudes não às características sociais de
cio de sua profissão. Uma vez em duas, declaram seus doentes, mas ao "caráter" particular de cada um deles ou, se
eles, os doentes não sabem nada e acham que sabem preferirmos, à sua "natureza" 19. Tudo se passa no entanto como se a
tudo. Eles nos fazem perguntas impossíveis. A obje- percepção que tem o médico do doente, longe de ser imediata e es-
ção básica, acrescentam os autores, parece-nos estar pontânea, fosse uma percepção seletiva e organizada, que se operasse
ligada à deterioração da confiança, que seria causa- através de um número limitado de categorias que o jovem médico ad-
da por essa informação de massa" 16.

3. AS CATEGORIAS DA PERCEPÇÃO MÉDICA

Longe de ser uma simples relação "de homem para homem" ou, 17 Professor Portes, citado pelo doutor A. Soubiran, "Responsabilité médicale et in-
formation du public'tem Deuxiéme Congrés international de morale médicale, edi-
como quer a ideologia médica - que ensina a ver no doente apenas ções da Ordem Nacional dos Médicos, Paris. 1966. p. 82.
um ser abstrato e indiferenciado, sem levar em consideração, por 18 Analisando os comportamentos e as atitudes face à morte e aos moribundos do
exemplo, sua classe social ou sua religião - "o encontro de uma cons- pessoal de um grande hospital americano, David Sudnow mostrou que os esforços
empreendidos a fim de reanimar as pessoas em estado de morte clínica e cujo cora-
ção tinha parado de bater, variavam conforme o "valor social" atribuído ao mori-
bundo, ou seja, em função de sua idade, respeitabilidade, classe social. Assim, o al-
coólatra, a prostituta, o drogado e o doente que, ao entrar no hospital, está pobre-
mente vestido e aparenta pertencer às camadas inferiores, não será objeto de um
exame aprofundado nem de tentativas prolongadas de reanimação, e será declara-
ve o Doutor Raspail - é um ato de consciência. Aprender a não precisar dele é um
do morto com base unicamente num exame estetoscópico do coração. Da mesma
ato de razão. Escolher um médico ao acaso e sem se preocupar em distinguir o
maneira, encoraja-se tacitamente os jovens médicos a treinar nos moribundos cujo
charlatão do filósofo, é um desses atos de louco descuido, que frisam o suicídio ou
valor social é baixo e, principalmente, nos suicidas (Cf. D. Sudnow, Passing on, lhe
o homicídio, conforme se trate de si próprio ou de outrem. Quer proteger-se desses
social organisation of dying, Printice-Hall inc. editores, Englewood Cliffs, 1967, pp.
erros culpáveis? Torne-se seu próprio médico". (Dr. F. V .Raspail, Manuel annuaire
100-109.)
de Ia santé ou médecine et pharmacie domestiques. Vigot frêres editores, Paris, 1881,
19 "O médico - escreve por exemplo o Doutor Georges Torris - em primeiro lugar,
9a. edição, 1935, p.7-8).
não lida com uma doença, nem sequer com um homem doente, mas com uma pes-
15 Cf. Les médecins vous par/ent de Ia mêdecine - enquête et propositions. "Esprit", n9
soa humana, com a qual ele deve, pela sua própria profissão, estabelecer uma co-
2, fevereiro 1957. .
municação de consciência, a melhor possível, para penetrar, para compreender o
16 Drs. Coudray, M.Cerise e P.Fréour, lnformation médicale du public, aspects pshy-
valor, o significado da queixa do doente ... " (Cf. G. Torris, L'Acte médical et le ca-
chosociaux, rapport introductif au IXe. colloque international de psychologie médica-
ractêre du malade, P.U.F., Paris, 1954).
le, op. cit., pp. 82-84.
48 49
menos, uma tipologia social que jamais é explicitamente definida
quire durante sua formação e seus primeiros anos de exercício da
como tal. Assim, por exemplo, o doente que se descreve como "des-
profissão 2", e que lhe permite catalogar os doentes dentro de um nú-
provido de inteligência e que não compreende as questões mais evi-
mero restrito de tipos psicológicos.
dentes" tem todas as chances de pertencer às classes populares, en-
Assim, um "Précis de clinique sérnéiologique" mui- quanto que o "psicopata", ou seja, aquele que está atento às mensa-
to utilizado,' o do doutor Gaston Lyon, ensina ao jo- gens do corpo e lhes presta uma atenção apaixonada, e o doente "que
vem médicó o processo segundo o qual deve desen- interpreta o que diz o médico", ou seja, aquele que possui elementos
rolar-se a consulta médica, e a atitude que deve ado- esparsos de conhecimentos médicos e que se interessa pela "divulga-
tar em relação ao doente. Fornece além disso ao ção médica", encontram-se essencialmente nas classes médias. O
aprendiz de médico uma espécie de inventário dos primeiro não merece, e facilmente concordaria com isso, explicações
"tipos de doentes" e ensina quais sinais o ajudarão a que "não com preenderia e que nem sequer deseja obter", quanto ao
recon hecer o "psicopata", o "doente desprovido de segundo, "não se pode, sem perigo, fornecer-lhe uma informação
inteligência que não entende as perguntas mais cla- médica que alimentaria sua mania ou reforçaria sua pretensão" 2J.
ras", e o "doente demasiado inteligente que inter- Assim, não convém negligenciar a importância da interrogação
preta o que diz o médico" 21. do doente, que preludia a consulta médica. Se sua utilidade para a
Como a percepção que o médico tem do doente opera-se natu- formação do diagnóstico é hoje, com o desenvolvimento dos exames
ralmente através de tais categorias, sua experiência cotidiana não de laboratório, menos importante do que foi nos grandes momentos
apenas nunca desmente a legitimidade da tipologia que recebeu du- da clínica médica 24, sua função social, permanece no entanto total, e
rante a educação médica e que herdou de seus antecessores, mas ain- justifica a importância que lhe atribuem os médicos. Efetivamente, se
da a reforça, exemplificando-a 22.
a maior parte dos médicos, apressados e cortantes quando se trata de
Do mesmo modo, os contatos profissionais ou amigáveis com
colegas formados na mesma escola vêm perpetuamente reativar as
representações que o médico tem do doente ou dos doentes típicos, e
asjustificam. Tudo parece indicar que essa tipologia psicológica lar-
Paris, 1966). Além disso, o ensino médico, que como mostraram Howard S. Becker
gamente difundida entre o corpo médico recobre, parcialmente pelo e Blanche Geer ("Medical Education" em H. E. Freeman, S. Levine, L. G. Reeder,
Handbook of Medical Sociology, Prentice-Hall inc. editores, Englewood Cliffs, p.
169-186) possui algumas das características de aprendizagem tradicional e incita à
imitação prestigiosa dos mestres mais famosos, até nas manias ou maneirismos, fa-
vorece mais clara e explicitamente que a maior parte dos outros tipos de ensino, a
20 Cf. sobre esse ponto. P. L. Kendall e R. k.. Merton, "Medical Education as Social transmissão de valores profissionais e de valores das classes dominantes.
Process", em G. Jaco, Patients Physicians and lllness, The Free Press editores, 23 Convém não subestimar a finalidade dessas categorias. Assim, por exemplo, com a
Nova lorquc. IlJ50. p. 321-350. finalidade de construir uma caracterologia científica dos doentes, A. Le Gall e R.
21 G. Lyon. Précis de clinique séméiologique. diagnostic, prognostic et traitement, Mas- Brun, na realidade apenas retomam, estendendo-as e sistematizando-as, as catego-
son et Cic, editores. Paris, 1933, p. 5-54. rias implícitas da percepção do outro, que são as dos médicos. Cf. A. Le Gall e R.
22 As categorias da percepção do doente pelo médico possuem um caráter coletivo: Brun, Les malades et les médicaments, P.U.F., Paris, 1968, principalmente p. 84-
aparentemente, sào comuns à maioria dos membros do corpo médico e parecem 125.
transmitir-se com uma grande estabilidade, de geração em geração. De maneira 24 Cf. R. Villey, Rej7exions sur Ia médecine d'hier et de demain, edições Plon, Paris,
mais geral, talvez não se possa explicar o tradicionalismo e a forte integração do 1966. "O clínico - escreve Raymond Villey - deve convir que seu julgamento e in-
corpo médico sem levar em conta características particulares do recrutamento dos tuição não têm senão uma pequena importãncia face aos modernos meios de inves-
estudantes de medicina e do ensino médico. Os estudantes de medicina, na maio- tigação. A qualidade do raciocínio clínico conta menos. E a tentação égrande de se
ria, provêm das classes favorecidas: 58";, são originários das classes superiores (dos deixar levar a esse método medíocre de diagnóstico por exclusões sucessivas, que
quuis 20"" aproximadamente, filhos de médicos), 3,4% apenas filhos de operários consiste em emitir hipóteses uma após outra, a "tratar" cada uma por exames de
ou de agricultores (cf. P. Bourdieu, J. C. Passeron, M. de Saint-Martin, Les étu- laboratórios adequados (como um químico submete uma "mistura" a reativos
diants ein médecine, caderno mirneografado do Centre de Sociologie Européenne, apropriados), até que uma resposta indique que aquele é o certo".

50 51
se dobrar às fantasias dos doentes, respondendo às suas perguntas,
declara que se deve interrogar cuidadosamente o doente no início da Têm um modo errado, mas normal, de expressar o
consulta e deixá-Io falar livremente, mesmo se suas palavras não que sentem". O médico pode então sugerir ao doen-
trouxerem informações diretas sobre a doença, isso se dá, pelo menos te pouco falante, as sensações que normalmente de-
em parte, porque o interrogatório do médico e a "entrevista dirigi- veriam ser as suas. Assim, examinando uma mulher
da" :' a que submete o doente, fornecem-lhe as informações indis- das classes populares que tem dificuldade em ex-
pensáveis para definir o "tipo psicológico", ou seja, social, a que per- pressar suas sensações e que se queixa de "dores na
tence o doente. A ficha que o médico constitui sobre o doente, na barriga", o médico atingido pela pesquisa e que nos
qual estão consignados seus "antecedentes" e que ele completa a admitiu na consulta, pergunta: "está queimando,
cada nova visita, ou a carta que habitualmente acompanha o doente coçando, o que é que a senhora está sentindo?", "es-
de um médico a outro, representam, mutatis mutandi, um papel idên- tá coçando", respondeu a mulher. A uma outra
tico ao do interrogatório, fornecendo toda uma série de informações doente, também pertencente às classes baixas, serão
selecionadas, que orientam a percepção que o médico tem do doente também sugeridas sensações de "coceira", ou de
e que, reunindo-se como as peças de um' quebra-cabeça, traçam uma "bolo", no estômago.
imagem social do doente, conforme as expectativas do médico.
Quando o doente foi classificado pelo médico na categoria dos
"psicopatas", ou apenas dos "doentes que prestam demasiada aten-
4. AS ESTRATÉGIAS DO MÉDICO. ção a si próprios", a estratégia utilizada pelo médico será inversa à
que fora no caso precedente, recusando-se ao doente o direito de sen-
É em função dessa imagem social que o médico definirá sua es- tir as sensações mórbidas que descreve, seja ridicularizando-as, seja,
tratégia frente ao doente, as diversas estratégias possíveis visando, mais simplesmente, negando sua existência, podendo a chamada à
habitualmente, mas em graus diferentes segundo a classe social do ordem ir desde a simples repreensão, se o doente aceita não mais
doente, a fazer-lhe reconhecer a autoridade do médico e aceitar sua prestar tanta atenção a si próprio ou, pelo menos, não mais ir comu-
vontade todo-poderosa, desapropriando-o de sua doença e até mes- nicar ao médico tudo o que "ouviu dizer", até a transferência do
mo, de certo modo, de seu corpo e sensações. doente para um psiquiatra se se obstina em sentir o que sente.
Assim, ao doente "desprovido de inteligência e que não sabe se
expressar" sugerem-se sensações sintomáticas, empregando-se em
geral os termos usados nas classes baixas quando falam de seus ma- A técnica utilizada pelo médico para reduzir ao si-
les. lêncio o doente que "presta demasiada atenção a si
o médico conhece a linguagem das sensações em- próprio" consiste geralmente em suspeitar sistema-
ticamente da legitimidade de suas afirmações. Ver-
pregada pelos membros das classes baixas, que dife-
re daquela das classes superiores e, a priori, da lin-
se-á bem isso lendo os dois diálogos abaixo:
guagem médica. Como declara um clínico parisien-
1
se: "Eles exprimem muito mal seus sintomas, mas
todos da mesma maneira, então dá para entender. o médico: Como vai a senhora?
a doente: (trata-se de uma mulher de 72 anos, apo-
sentada, que tinha uma loja de roupa de baixo e
que, segundo o médico, é "uma doente funcional,
25 A relação doente-médico.aproxima-se, em mais de um ponto, de uma situação co- enviada pelo médico psico-somático"). Eu ia muito
nhecida dos sociólogos, que é a situação de pesquisa. Como o pesquisador, o médi-
bem, mas há três semanas tive uma crise de dores
co faz ao doente perguntas sobre sua vida pessoal e íntima, gostos alimentares, so-
no, vida sexual, etc., e só ele detém a chave dessas questões. aqui (mostra a barriga). Veio de repente. Uma dor
vaga no começo, que aumenta e me provoca enjôos
52
53

J
linguagem médica é imediatamente sancionada, o médico lembrando
e vômitos, muitas vezes seguidos de um desarranjo
ao doente que é o único com direito de utilizar essa linguagem e que
in testinal.
detém o monopólio dos conhecimentos médicos.
o médico: O que é que a senhora tinha comido na
véspera? Algum prato pesado? "Os piores são aqueles que se crêem inteligentes,
a doente: Não, veio sem razão. que empregam palavras complicadas. São os falsos
o médico: e a senhora estava preocupada naquele eruditos os mais ignorantes. Na realidade, são pro-
momento? fundamente estúpidos. Vão procurar idéias nas con-
a doente: não. versas com a vizinha, ou em France-Soir ou no rá-
o médico: e agora, como está se sentindo? dio" (clínico, 55 anos, subúrbio parisiense). A fim
a doente: depois de comer me sinto melhor, e às 5 de reduzir à modéstia e à submissão o doente julga-
horas começam o mal-estar, as náuseas, os soluços. do "pretencioso", o médico exige dele, por exemplo,
O médico que eu fui ver pensou em uma úlcera. a definição dos termos empregados, para provar-lhe
o médico: (após ter examinado a doente, com uma que está utilizando palavras cujo sentido ignora, ou,
voz alta e cortante): Não é verdade! melhor ainda, que não têm sentido nenhum, como
a doente: que eu estou sentindo dor? mas eu estou! mostram os diálogos seguintes:
o médico: •• senhora está nervosa ...

2 1

o médico: (a uma doente de 34 anos, zeladora de um o doente: (trata-se de um empregado de escritório,


prédio, que diz estar com febre há três semanas). com 50 anos de idade) sou alérgico aos medicamen-
Como sabe que está com febre? tos, doutor.
a doente: eu nunca tomo a temperatura ... o médico: meu senhor, o que é ser alérgico?
o médico: está vendo, como pode saber que está com o doente: foi o meu médico que disse que eu sou alér-
febre? gico, doutor.
a doente: não, eu nunca punha o termômetro antes,
mas justamente agora eu estou pondo.
2
o médico: (depois de ter examinado a doente) não
acho nada, acho que a senhora não está com febre. o doente: (uma mulher de 76 anos, ex-operária numa
a doente: enfim, doutor, eu medi antes de vir aqui e fábrica de cintas); estou com dor na ponta do fíga-
estava com 38°2. do, doutor.
o médico: o seu termômetro não está quebrado? o médico: e onde é o seu fígado, minha senhora?
a doente: não doutor, eu tenho certeza que ele não a doente: (rindo com um ar embaraçado) não sei.
está quebrado. o médico: como é que a senhora pode dizer que está
o médico: (após ter preenchido uma receita e pedido com dor na ponta do fígado se nem sequer sabe
um exame). Estou certo que não haverá nada no re- onde fica o fígado!
sultado dos exames e que tudo ficará em ordem, não a doente: (tateando a parte direita do ventre, na altu-
é preciso ficar muito preocupada. ra da cintura) sinto dor aqui, doutor, na ponta do
fígado.
Enfim, quando o doente, segundo o médico, pertence à catego- o médico: (com um tom douto e exasperado) mas o
ria dos doentes que "se acham inteligentes e empregam palavras fígado não tem ponta, minha senhora.
complicadas", qualquer utilização pelo doente de termos tomados à
55
54
Fora estas técnicas específicas de manipulação, o médico ge- de objeto, favorece a manipulação moral do doente pelo médico. O
ralmente adota em relação ao doente das classes populares ou da fai- doente nu, deitado, imóvel e silencioso é, realmente, objeto das mani-
xa inferior das classes médias, toda uma série de atitudes bastante pulações físicas do médico, que, vestido, de pé e com seus gestos li-
particulares, desde brincadeiras infantilizantes até uma representa- vres, ausculta-o ou apalpa-o, ordena-lhe que sente, que estenda as
ção de brutalidade que caricaturam e conscientemente se distinguem pernas, pare de respirar ou tussa. Se é verdade que existem normas
das atitudes comumente adotadas nos principais tipos de relações in- estritas definindo os limites do direito do médico à manipulação físi-
dividuais em uso na vida cotidiana, e que visam a lembrar ao doente ca do doente e o protegem contra toda exploração possível por parte
a especificidade da relação doente-médico e a superioridade deste 26. do médico, que não pode transgredir essas normas sem perder total-
Assim, por exemplo, os médicos que se pôde observar no exercício de mente a estima dos doentes e de seus colegas e até ser objeto de san-
suas funções, utilizam várias vozes diferentes durante a consulta mé- ções penais, não é menos verdade que o médico sempre pode "apro-
dica, conforme se dirijam ao doente, a um outro membro do pessoal veitar-se da situação" e, passando da manipulação física à manipula-
médico, enfermeira ou médico presentes à consulta, ou ainda a si ção moral, aumentar no doente, por meio de técnicas sutis, o senti-
próprios. Voz forte e breve, de entonações bem marcadas, para se di- mento de dependência e de sugestão.
rigir ao doente; voz cochichada, confidencial e cheia de nuances,
para se dirigir à enfermeira ou ao colega. Os médicos, freqüentemen- Nota-se isto mais exatamente estudando as atitudes
te, com efeito, agem como se o doente, por uma espécie de surdez se- do médico durante um exame difícil para a dignida-
letiva. não pudesse ouvir as palavras "cochichadas" em voz alta e in- de do doente, como a retoscopia. A posição do
teligível na sua presença, mas que não se destinam diretamente a ele, doente, durante esse exame, é na verdade particular-
conforme a tradição teatral que faz com que os atores possam dirigir- mente constrangedora e humilhante: nu até a cintu-
se em apartes ao público sem serem ouvidos pelos outros protagonis- ra o doente fica de quatro sobre a mesa de exame,
tas da ação. totalmente imóvel e de cabeça baixa. O médico, du-
Além disto, as características propriamente técnicas da relação rante tal exame, pode se mostrar especialmente dis-
terapêutica, que a tornam uma relação assimétrica e de dependência, creto, ou então, como às vezes acontece, aumentar o
na qual um dos parceiros, o doente, representa efetivamente o papel contrangimento do doente através de reflexões ou
brincadeiras tais como: "tire a calcinha, não posso
fazer um furo' nela", ou "vamos, minha senhora, na
pista!" .
Mais sutilmente, o médico pode aumentar a tensão
26 Todo processo de comunicação implica estratégias implícitas e toda relação com própria à tal situação, fingindo ignorá-Ia totalmente
outrem é também, de uma certa maneira, manipulação de outrem, sendo a atitude e continuando, por exemplo, durante o exame, com
adotada face ao interlocutor principalmente função do que se sabe do outro e do conversas sociais ou brincadeiras com o assistinte
que se sabe que o outro sabe da gente, como mostram Barney Glaser e Anselm ou a enfermeira, tais como: "como vai seu mari-
Strauss (Cf. B. Glaser e A. Strauss, "Awareness Context and Social Interaction",
American Sociological Review, t. XXX, outubro 1964, p. 669-679). Se essas estraté- do?... Ah, sim, ele passou no exame! Mas isso tem
gias são especialmente manifestas no caso da relação doente-médico, e se os médi- que ser comemorado! ..."
cos racionalizam as técnicas de manipulação implicitamente empregadas nas rela-
ções cotidianas e delas fazem um emprego semi-consciente, isso se dá talvez tam- Assim, também, a "personalização" da relação doente-médico
bém porque eles exercem uma atividade cujo sucesso nunca é certo e cujos resulta- que, contrariamente às idéias feitas, é muito mais obra do médico do
dos comportam sempre uma margem de incerteza, sendo assim obrigados a tomar que do doente e que - trazendo uma mudança brutal de registro e a
um certo cuidado contra os "riscos da profissão". (Cf. R. L. Fox, Experiment Peri- passagem de uma relação específica de médico a doente, centrada na
lous, the Free Press ed., Glencoe, 1959). Todas as técnicas de manipulação utiliza-
das pelo médico visam, no final das contas, a inculcar no doente a idéia de que, o doença, a uma relação difusa de "pessoa a pessoa", visa essencial-
que quer que possa acontecer depois, a competência e a consciência do médico não mente a "distender" o doente, ou seja, a eliminar suas últimas defe-
podem e não devem ser colocadas em dúvida. sas frente ao médico - esta também constitui freqüentem ente uma
56 57

l.
técnica de manipulação 27. Efetivamente, na maior parte dos casos é equipamento lingüístico e, mais particularmente, o vocabulário da
') médico e não, como quer a ideologia médica, o doente, que vem introspecção e a linguagem das emoções que Ihes seria necessária
"personalizar" a conversa e introduzir aí aquelas pequenas observa- para abrir-se ao médico sobre seus problemas e preocupações mais
ções acessórias e inúteis sobre "o tempo", "a poluição sonora" ou íntimos". É também porque, sem dúvida, obstáculos puramente ma-
"os benefícios do lazer", tirados da tagarelagem cotidiana, através teriais, como por exemplo, a raridade dos contatos com o médico ou
das quais pretende adaptar seu discurso a cada caso e cada indivíduo a pouca duração de cada entrevista, impedem o doente das classes
em particular. populares de personalizar a re.açâo que mantém com aquele. Primei-
De modo mais geral, tudo se passa como se a idéia, ramente, os membros das classes populares, trabalhadores agrícolas
bastante difundida no meio médico (e adotada por e operários, consultam o médico mais raramente do que os das clas-
certos sociólogos), 28 segundo a qual os doentes pro- ses superiores. Em segundo lugar, a duração da consulta médica pa-
curam transformar a relação puramente profissio- rece diminuir bastante com a classe social do doente.
nal do médico e do paciente numa relação pessoal A pesquisa do C.R.E.D.a.c. sobre o consumo mé-
ou personalizada, fosse diversamente verdadeira dico na França, realizada em 1960-61, mostra aue
conforme a classe social do doente. os atos médicos (visitas e consultas) são em número
A pesquisa do I.F.a.p. sobre "os franceses e o mé- de 1,95 por pessoa e por ano para os trabalhadores
dico" mostra que a proporção dos que declaram fa- agrícolas, de 2,41 para os agricultores, de 3,48 para
lar de seus problemas pessoais com o médico au- os operários, de 4,02 para os técnicos e dirigentes as-
menta sensivelmente com a classe social, passando salariados e membros das profissões liberais. (1-3) 31
de 36~'-;; para os operários a 48% para os membros A pesquisa do I.F.a.p. sobre os franceses e o médi-

*
das classes superiores (2-4) 29. co mostra, por outro lado, que os operários são os
Se os doentes das classes populares se sentem pouco inclinados a que, em maior número, julgam o exame médico
se confiar ao médico, é em primeiro lugar porque não possuem o muito rápido. (2-5) J?
a "colóquo singular" do médico e do doente 33 reduz-se, assim,
na maior parte das vezes, ao monólogo do médico, que, como um

27 Essa técnica é bem conhecida dos sociólogos que a utilizam durante a entrevista
centrada e que sabem que às vezes pode ser útil "descentralizar" momentaneamen-
te a entrevista, a fim de distender o interrogado e distrair sua vigilância; depois,
por transição, voltar ao que constitui propriamente o objeto da pesquisa. 30 Basil Bernstein mostrou que as características próprias à situação psicoterápica, -
2~ Cf. por exemplo, T. Parsons, "Structure sociale et processus dynamique: le cas de ou seja, a forma da relação face a face que ela instaura e o tipo de relação com a
Ia pratique médicale rnoderne", em Eléments pour une sociologie de t'action, tradu- linguagem que existe, em afinidade com o etos das classes superiores e com as prin-
ção de F. Bourricaud, edições Plon, Paris, 1955. T. Parsons escreve: (p. 233) "Pou- cipais normas de educação das classes superiores, - torná-Ia-iam imprópria ao tra-
co importa que seja o amor ou o ódio que o doente "projete" sobre ele: o médico tamento dos doentes pertencentes às classes populares que, primeiramente, têm
recusa-se a reagir de acordo com os termos projetados pelo doente. Permanece ob- consideráveis dificuldades ao tentar reproduzir um discurso sobre suas experiên-
jetivo e efetivamente neutro. O doente esforça-se em irnplicá-lo no campo de suas cias intimas, principalmente porque não possuem os instrumentos conceituais da
"histórias pessoais" e conduzi-lo para fora do domínio médico: mas ele ... mantém- introspeccão, e que, em segundo lugar, não se sentem à vontade na relação social-
se à distância para evitar as circunstâncias que exigiriam a reciprocidade". Como mente descontextualizada que o terapeuta pretende instaurar (Cf., B. Bernstein,
mostra este exemplo, o sociólogo que se contenta em analisar uma situação olhan- "Social class, speech Systerns and Psycho- Therapy", British Journa/ of Sociology, t.
do sua própria "experiência vivida" daquela situação, arrisca-sea cair na armadi- 15. 1964, p. 54-64).
lha do etnocentrismo de classe, quando esquece que não é um "homem como os 31 Cf. G. Rõsch, J. M. Rernpp, M. Magdelaine, "Une enquête par sondage sur Ia
outros", ou "como todos os outros", mas um membro das classes superiores, ou consornrnation médicale", loc. cito
melhor, dessa fração das classes superiores que chamamos "intelligentsia". 32 I.F.O.P., "Les Frunçuis et leur médecin", /oe. cit.
29 I.F.O.P., "Les Fr ancais et leur médecin", loc. cit 33 Médicos e psicossociólogos ao falar da relação do doente e do médico, utilizam um
58 59
gar alguém a confessar coisas que não são verdadei-
pesquisador, dirige e conduz a seu bel-prazer uma conversa aparente- ras". (Vervins, mulher de operário, 45 anos, 4 fi-
mente livre, cujo desenrolar obrigatório vai das perguntas que mar- lhos).
cam seu início até às ordens que a terminam. 34 5. O CURANDEIRO
Frente às estratégias sutis do médico, de cuja existência muitas
vezes desconfia sem conhecer a exata natureza ou funcionamento. os Compreender-se-á melhor a relação que os membros das classes
membros das classes populares têm poucos recursos. Ser-lhes-ia efe- populares mantêm com o médico estudando suas atitudes em relação
tivamente necessário, para elaborar estratégias contrárias, em pri- a esse concorrente ilegal e clandestino do médico que é o curandeiro.
meiro lugar, conhecer e reconhecer as estratégias do médico, e, em Contrariamente às idéias correntes no meio médico e, em geral, entre ~
segundo lugar, possuir senão um conhecimento médico propriamen- "as pessoas esclarecidas", ou seja, essencialmente nas classes supe-
te dito, pelos menos uma autoridade qualquer, por exemplo, a que é riores e numa parte das classes médias, que vêem na procura do cu-
fornecida por um alto nível de educação, propiciando os meios de randeiro o resultado de uma "mentalidade mágica" e de uma atração
elaborar um discurso com uma certa força e coerência que pudesse se irracional pelo obscuro e o misterioso, parece que um dos principais
opor ao discurso médico. Como isso não acontece e não podem fazer méritos que os membros das classes populares reconhecem ao curan-
um controle racional dos fatos e dos gestos médicos, os doentes das deiro reside, principalmente, no fato de que ele explica ao doente a
classes populares não têm outros recursos além da dúvida não metó- doença de que ele sofre. Além disso, o curandeiro utiliza uma lingua-
dica e a vaga desconfiança daqueles que, face aos especialistas mani- gem imediatamente acessível aos membros das classes populares e
puladores, vendedores de carros de segunda-mão, cobradores ou mé- fornece explicações que contêm representações da doença que des-
dicos, não querem "se deixar levar" sem conhecer muito bem a natu- pertam alguma coisa no espírito dos membros das classes baixas: as
reza e a extensão das manipulações de que são objeto. representações da doença que o curandeiro tem, são efetivamente
À pergunta: "acha que o médico às vezes se enga- próxima das representações latentes dos membros das classes popu-
na?", uma operária de 35 anos responde "Sim, mas lares, sendo as diferenças entre umas e outras mais de ordem quanti-
isso a gente nunca sabe, ele nunca diz o que está ha- tativa do que qualitativa, caracterizando-se essencialmente as repre-
vendo no início; não se pode provar-lhe nada, pois sentações do curandeiro pelo seu mais alto nível de elaboração e de
ele não diz nada" (Vervins, mulher de operário, 35 verbalização J;.
anos). É altamente significativo que, ao evocar as Será convincente escutar essa mulher, a quem o cu-
manipulações do médico, os membros das classes randeiro, ao contrário do médico, forneceu um es-
populares façam uso de uma linguagem judicial: quema explicativo da doença: "Existe aqui uma
"Minha irmã, o marido dela fez uma desintoxicação porção de gente que vai ao curandeiro. Nós tam-
e agora não bebe mais; outro dia ele estava doente, bém. A gente tira o casaco e, com uma placa, ele vê
o doutor veio e disse: "ah, sim, o senhor ainda está todo o interior. Eu tinha ido, por causa de uns ór-
bebendo". Ah, eu não gosto disso, não se pode obri- gãos caídos, ele viu sem que eu dissesse. É um dom
que ele tem, um dom que existe nele. Para o estôma-
go, ele nos explica O que está fazendo. Enfaixa aqui,
põe uma coisa redonda de espuma, enfaixa e levanta
vocabulário particular, cuja conotação é científica e o uso é ideológico. J:, a esse vo-
cabulário em parte erotizado do encontro do "casal doente-médico", como o cha-
ma Michel Foucault, que se tomou a expressão "colóquio singular" (cf. M. Fou-
cault, Naissance de Ia clinique, P.U.F., Paris, 1963, p. X).
34 Sobre a ideologia da relação doente-médico, cf. por exemplo, M. Balint, Le méde- quisse d'une analyse psycho-sociale", Population, nQ 4, agosto-setembro 1960.
35 Cf. capítulo 111.
cin, son malade et Ia maladie. tradução para o francês de J. P. Valabrega, edições
Payot, Paris, 1966, e também J. Stoetzel, "La maladie, le malade et le médecin, es- 61
60
o estômago ao mesmo tempo. Três dias depois aper- ciumentos de suas prerrogativas e imbuídos do espírito de casta 36.
ta, e nove dias mais tarde, pronto, está curado. Ele Mas, paradoxalmente, dado que a posse de um dom ou de uma graça
explicou que o estômago é como uma bolsa. Se essa particular por si só não constitui, em nossa sociedade, uma fonte de
bolsa se dilata, os órgãos saem para fora. Com os autoridade suficiente, capaz de se igualar à autoridade conferida ao
órgãos é a mesma coisa. Estão arrumados num médico pela freqüência à instituição escolar e a caução da cidadela
compartimento que é o corpo humano. Se a bolsa se científica, os membros das classes populares parecem sempre esperar
alarga, os órgãos caem e a gente tem que ser opera- que o valor do curandeiro seja reconhecido pelos mais eminentes
da. Ele conhece tudo, aquele homem. Conhece o mem bros da cidadela científica, pelos "professores", contra a opi-
corpo todo, como o doutor. Meu marido tinha ido nião de "simples médicos", como aquele curandeiro de Mazamet
vê-lo por causa de uma coisa no braço, e depois foi que, segundo o informante, "foi reconhecido oficialmente por um
ver o doutor; e os dois disseram a mesma coisa. Ele professor de Toulouse, que reconheceu seu remédio"
é muito bom; no entanto é um cabeleireiro. Conhece
"Na minha terra, em Mazamet, é a terra do carnei-
toda a anatomia do corpo, o nome dos ossos, das
ro, e existe a doença do carvão. um micróbio que
Ê

glândulas no pescoço. Tudo! Conhece nomes que eu


dá na pele do carneiro, faz mal, as pessoas ficam
não sei dizer, nós somos muito ignorantes. Ao dou-
loucas. Parece que só tem uma pessoa que sabe cu-
tor eu não disse que ia ao curandeiro. São assim os
rar isso, é um curandeiro. Um cara teve isso e dizia:
comerciantes. Se vêem a gente com compras de ou-
"eu queria me jogar pela janela". Foi internado no
tro, ficam com ciúmes (Vervins, mulher de carteiro,
42 anos). hospital e não puderam fazer nada por ele. O curan-
deiro p<lSSOUuma garrafada* no lugar da picada. Es-
tava inchado em três lugares, estava tomando o
--( De maneira mais geral, o que, aos olhos das classes populares, ombro e tudo. Houve uma guerra entre o curandei-
confere ao curandeiro o essencial de seu valor é que mesmo sendo um ro e os doutores de Mazamet. Mas ele foi reconheci-
especialista qualificado para identificar e curar a doença, ele é ainda do oficialmente. Um professor de Toulouse reco-
assim um membro das classes populares, de cujo modo de vida e de nheceu o remédio. Para aquele homem, meia hora
pensamento ele participa. E, de fato, contrariamente ao médico, o depois, começou a passar. Na minha terra, havia
curandeiro pertence à mesma classe que o doente, na maior parte do pessoas que sabiam coisas assim. Ele curou também
tempo exerce como ele uma profissão manual, freqüenta o mesmo outros doentes. Eu, pessoalmente, fui curado por
meio social, e é frequentemente recrutado dentro da família ou no um massagista não diplomado, um simples operá-
círculo de relações. Se os membros das classes populares falam com rio. Tinha descolado o Talão de Aquiles. O doutor
admiração da ciência do curandeiro, insistindo ao mesmo tempo no dizia que eu ia ficar manco. E o que aconteceu foi
caráter inato de sua ciência, não sendo o conhecimento deste, como o que com quinze sessões no massagista eu fiquei cura-
do médico, resultante de um aprendizado escolar mas a conseqüência do. Esse curandeiro nunca tinha aprendido. Dizia
de um "dom", é porque o curandeiro, sábio que nada aprendeu e que era um dom. como tem alguns que têm dons
É

que, permanecendo no meio dos ignorantes, iguala ou ultrapassa o para a pintura. Ele tinha um dom para isso. (Paris,
médico, faz com isso uma espécie de vingança de classe: fornece a carteiro, 30 anos).
prova de que o médico não é nem infalível nem o único depositário
do conhecimento médico, e dá o exemplo de um profano que, por
uma espécie de virtude intrínseca ou escolha, tornou-se dono do .dis-
curso médico. Assim, as perseguições de que são objeto os curandei- 36 Sobre a evolução da legislação referente aos curandeiros, cf. S. Boulle "La lutte
ros, são muitas vezes assimiladas pelos membros das classes baixas a contre les illégaux", La Presse médica/e. n9 22, maio 1965.
uma espécie de perseguição exercida sistematicamente por médicos • N.T. - "fiole" no original.

62 63
Mas a crença na eficácia das técnicas de tratamento utilizadas
>t pelo curandeiro não tem como conseqüência uma rejeição da medici- conhecimento médico e aos detentores desse saber. Os membros das
na oficial, e a busca do curandeiro não exclui o recurso ao médico, classes populares, sempre que possível, evitam levar às últimas conse-
não se considerando absolutamente a medicina exercida pelo médico qüências a questão da verdade do conhecimento médico do curandei-
e a que é praticada pelo curandeiro como antagônicas. Quando, ro ou do médico. A "crença" na eficiência do médico ou curandeiro é ,
numa situação de pesquisa, os membros das classes populares são realmente vivida como uma "crendice", incontrolável por definição e .
obrigados a escolher entre o médico e o curandeiro e dizer se crêem portanto pertencente, como uma infinidade de outras crenças (o que
na eficácia das técnicas utilizadas por este, a resposta em geral é dada se costuma chamar "superstição", por exemplo J\ ao domínio do
em termos ambígüos, porque a situação de pesquisa, reativando a "dizem que", "fazem assim", ou seja, a esse vasto conjunto de coisas
consciência da legitimidade do médico, lembra que este é o único au- subidas por ouvir dizer e praticadas por hábito, que se têm implicita-
torizado a tratar, mas traz também o relato das curas efetuadas pelo mente por inverificáveis e que não têm que ser absolutamente verda-
curandeiro. Como se verá no exemplo a seguir, os agentes sociais pa- deiras ou absolutamente falsas. Do mesmo modo, se os membros das
recem possuir vários conjuntos diferentes de racionalização, que se classes populares têm uma certa desconfiança em relação ao médico,
superpõem sem interferirem uns sobre outros. Assim, ao argumento essa desconfiança exerce-se mais sobre o médico e suas manipulações
incréd ulo: "é preciso acreditar para fazer efeito", sucede a relação do que sobre o conhecimento médico propriamente dito, sobre o
das curas obtidas pelo curandeiro, e finalmente a afirmação que "de- qual não se emite nenhum julgamento porque escapa à reflexão e não
vem existir dons especiais" é como outros conhecimentos, como por exemplo os que se referem
ao carro, às ferramentas mais comuns ou à pesca, ou seja, aqueles
que a experiência cotidiana pode confirmar ou desmentir. Assim sen-
"Eu conheço pessoas que acreditam nos curandei- do, os membros das classes baixas, em geral, não adotam uma atitu-
ros. Eu, não. Aliás, é preciso acreditar para fazer de crítica em relação ao conhecimento médico, nem aquela atitude
efeito. Disseram-me para ir ver um, por causa de um racional que consistiria em tê-Io como falso ou verdadeiro ou, pelo
eczema. Eu acho que ele não faz nada só tocando. menos, em supor que ele deveria necessariamente ser uma coisa ou
Eu não acredito. Se não houvesse outras possibili- outra.
dades, se eu estivesse morrendo, eu iria! Na família De modo mais geral, tudo parece indicar que os membros das
do meu marido também não acreditam. Eu conheço classes populares estão pouco familiarizados com as noções de
uma mulher que é muito boa para um membro des- "problema" ou mesmo de "causalidade". Se não parecem possuir o
locado ou iuxado. A diretora do centro infantil foi que se chama habitualmente "espírito crítico", é porque essa disposi-
lá. Meu marido foi quando quebrou não sei o quê. ção mental, longe de ser igualmentre repartida entre todos, é em pri-
Ela reconhece o lugar sem ter estudado. Écerto que meiro lugar uma disposição adquirida e o resultado da ação forma-
devem existir dons. Tenho uma prima que teve uns dora da escola. Entre o conjunto das atitudes mentais que são trans-
órgãos caídos, ela não disse nada, mas sabe o que a mitidas pela escola, a mais essencial e mais velada é talvez a própria
gente tem, mas não sabe tratar. E como o curandei- intenção intelectual. O que a escola transmite é em primeiro lugar
ro. O curandeiro dava uma porção de remédios, uma postura intelectual: é a idéia de que não existe nada que não
umas coisas com óleo. Pode ser bom para algumas
coisas (Paris, mulher de empregado-do comércio, 30
anos).

6. RELA(ÃO DOENTE-MÉDICO E NíVEL DE INSTRlJ(ÃO. 37 Falando da crença nas superstições nas classes populares, Richard Hoggart escre-
ve: "Em que medida pode-se dizer que os membros das classes populares crêem
Para compreender esse aparente paradoxo, é preciso examinar nas superstições? Eles repetem as frases obrigatórias no caso, mas precedendo-as
sempre de um "dizem que" (...) Na realidade, não refletem nessas práticas. Acredi-
de perto a atitude dos membros das classes populares em relação ao
tam e não acreditam nelas". R. Hoggart, op. cit., p. 31
64
65
possa ser objeto de uma interrogação crítica e t-ornar-se objeto de um periores ao médico. A pesquisa do I.F.O.P., citada
conhecimento racional. Assim, a prolongação da escolaridade traz anteriormente, mostra que os técnicos e assalaria-
uma mudança de atitude frente ao mundo e especialmente em rela- dos e membros das profissões liberais são os que,
ção às ciências e técnicas, inculcando a idéia de que tudo pode ser ou em maior número, vão unicamente ao médico parti-
tornar-se objeto de ciência, que existem coisas absolutamente verda- cular (S9'iq), em vez de ir a um dispensário ou a um
deiras que foram objeto de uma verificação experimental e coisas ab- hospital. A pergunta "prefere ser examinado pelo
solutamente falsas, e enfim, que o conhecimento é cumulativo e que a médico responsável de um órgão social para ser
coisa nova é, por isso mesmo, um progresso. Nas classes superiores, reembolsado pelas suas despesas de saúde ou con-
o médico pode fazer-se ouvir pelo doente e o doente suscitar o inte- sultar seu médico pessoal mesmo se não puder ser
resse e mesmo a amizade do médico, porque eles falam a mesma lin- reembolsado?", os membros das classes superiores
guagem, têm os mesmos "hábitos mentais", utilizam categorias de são os que, em maior número (43%), respondem que
pensamento semelhantes e, enfim, sofreram a influência da mesma preferem consultar apenas seu médico pessoal.
força formadora de hábitos" que é, no caso, o sistema educacionall8 Pode-se compreender a razão disso, se se sabe que a
E se os membros das classes superiores se dizem e, de fato estão, pelo quase totalidade (90%) atribui uma grande impor-
menos na maior parte dos casos, aparentemente "de perfeito acordo tância ao fato de. poder "escolher livremente o médi-
como médico", é em primeiro lugar porque o médico e seu cliente co". Aliás, os membros das classes superiores, em
das classes superiores pertencem à mesma classe social, ou seja, ao geral, escolhem seus médicos dentro de seus grupos
mesmo "meio", sendo freqüentemente o médico da família um ami- de relações; em 32% dos casos "por recomendação
go da família ou mesmo um de seus membros:. de parentes ou amigos", em 24% dos casos entre
seus amigos pessoais. Compreende-se, nestas condi-
"O médico é um amigo nosso. Nós o encontramos
ções, que sejam eles em maior número a, primeira-
num "círculo de casais" e durante muitos anos nos
mente, conhecer o apartamento pessoal do médico
vimos como amigos. Depois, tornou-se nosso médi-
(67%), e também a sentir-se embaraçados no mo-
co. Do ponto de vista médico, só ouvimos falar bem
mento de "perguntar ao médico quanto lhe devem"
dele e, do ponto de vista moral, acreditamos que é
(12%) 39
um sujeito sério. É um rapaz que tem uma idéia ele-
vada de sua profissão, que tem uma consciência ex- Por não permitir estabelecer relações de amizade com o médico
traordinária. Com ele o diálogo é fácil e, aliás, nós e falar-lhe de igual para igual, como nivela os casos "mais diversos" e
nos tratamos de você. Concordamos em todos os os indivíduos mais diferentes socialmente, a consulta hospitalar é ra-
planos." (Paris, mulher de dirigente assalariado, 54 ramente freqüentada pelos membros das classes superiores, que, em
anos, 5 filhos). "O médico é um amigo de infância vez dessa, preferem a consulta particular; aqueles que, excepcional-
de meu marido, ele vem por causa das crianças. mente, são obrigados a experimentá-Ia, descrevem-na em termos in-
Meu marido tem confiança nele, é seu melhor ami- dignados e catastróficos:
go. Para nós, um velho amigo da família". (Paris,
"Poderíamos ir ao hospital, mas aquilo é um escân-
mulher de dirigente assalariado, 32 anos, 2 filhos).
dalo; a espera é de três horas e eu fiquei menos de
Um certo número de indícios revela a familiaridade
um segundo com o médico, diante de vinte e cinco
de classe que une o doente pertencente às classes su-
estudantes. Por causa de um dedo torcido do garo-

38 Cf. E. Panofsky, Architecture gothique et pensée scolastique, tradução e posfácio de


P. Bourdieu, Les Editions de Minuit, Paris, 1967, p. 83-84, col. "Le sens cornmun". 39 I.F.O.P. - "Les Français et leur rnédecin", loc. cito
66 67
to, a enfermeira obrigou-o a tirar a roupa; fiquei fu-
riosa. Eles fazem desfilar na frente de todo o mundo
uns desgraçados de pés tortos; deve ser horrível para
eles! Disseram-me para voltar dentro de três meses.
Nunca mais ponho os pés lá. Os hospitais são real-
mente horríveis; eles põem juntos os casos mais di-
versos!" (Paris, mulher de dirigente assalariado, 31
anos, 2 filhos): "Quando eu estava esperando bebê,
fui fazer uma consulta no Hospital Foch. É horrível,
fazem a gente esperar horas e tudo isso para chegar
diante de um médico rodeado de oito enfermeiras;
como é para formar uma escola, você se encontra lU
diante de uma classe! A atitude deles desanima com-
pletamente. Aí, eu mudei, fui procurar um médico
particular para não me sentir um número" (P.aris,
mulher de dirigente assalariado, 30 anos, I filho).
Se o desamparo dos membros das classes populares diante da A Emissão do Discurso Sobre a Doença
doença não tem equivalente nas classes superiores, é em primeiro lu-
gar porque o médico, para estas últimas, não é o delegado anônimo
da instituição médica, mas um personagem familiar, do qual se pode
apreciar a competência e o valor, e em quem se pode apreciar a quali-
dade do homem atrás do profissional. Deduz-se daí que em relação
ao discurso médico, haverá uma diferença entre as duas classes - o 1. REPRESENTAÇOES HESITANTES
médico fornecerá aos membros das classes superiores certas explica-
ções e manterá em sua presença um discurso eduJcorado e vulgariza- S e é verdade que a existência de um conhecimento médico legí-
do, dando-Ihes uma espécie de delegação de poder que os autoriza a timo e a delegação ao especialista - o médico - do discurso sobre a
j doença, proíbe a constituição de uma vulgata médica autônoma e
manipular com prudência certas partes do discurso médico. Pois o
desprezo do especialista pelo profano não se aplica igualmente a to- coerente, não é menos verdade que os membros das classes populares
dos, mas varia em função da "inteligência" deste, de seu bom-senso não podem ter para com o corpo esse olhar respeitoso e distanciado
ou de seus "méritos", enfim, de seu valor social. com o qual consideram os progressos da física nuclear, da eletrônica
ou da astronomia. E ainda mais, a recusa de fornecer ao doente um)..
mínimo de informações sobre seu corpo e doenças, em função essen-
cialmente de irnpedi-lo de manter com o corpo uma relação científica
e reflexiva com a doença, - essa atitude tem conseqüências inversas,
pois leva o doente à obrigação de construir com seus próprios meios,
ou seja, "com os recursos de bordo", o discurso sobre a doença que o
médico não transmitiu. Conseqüentemente, o efeito de legitimidade
não tem um peso suficiente para impedi!' que os agentes sociais man-
tenham um discurso qualquer sobre a doença, ou, pelo menos, que
tentem reproduzir o discurso do médico. Mas como o médico só
transmite, como vimos, informações parceladas e não faz nada para
68 69
favorecer a comunicação entre ele e o doente das classes populares. sistiria em reconstruir, ou melhor, em construir, dando-lhes uma for-
estes se vêem condenados a reconstruir um discurso com materiais ma sistemática, as representações que tais índices revelam (da mesma
fragmentados e heteróclitos, palavras mal entendidas, frases descosi- maneira que se procuraria reconstituir uma gravura completa com os
das, arrancadas ao discurso do médico. A ação desses mecanismos pedaços esparsos de um quebra-cabeça do qual a maior parte das pe-
contraditórios permite perceber características particulares do dis- ças estivessem perdidas, ou seja, procurar substituir às representa-
curso sobre a doença, próprias aos membros das classes baixas. Dis- ções latentes do agente, representações coerentes e organizadas), te-
curso ou esboço de discurso que tende à coerência sem jamais atingi- ria um caráter ambígüo, porque chegaria finalmente à produção de
Ia totalmente, e que parece desencorajar-se à medida que se expres- um objeto que não é a representação tal como é representada pelo
sa, com as tentativas de descrição e de explicação da doença inter- agente, mas a representação que seria a desse agente se ele mesmo
rompendo-se freqüentemente no meio de uma frase ou terminando fosse o teórico de suas próprias representações ou, na pior das hipó-
com uma constatação de ignorância. teses, "o arquétipo" imutável e misterioso que modelasse à sua pró-
Incapazes de emitir um discurso que reproduza o do médico ou pria revelia as suas representações. Pior ainda, alguém que se atri-
mesmo de repetir textualmente o discurso deste, os membros das buísse a tarefa de reconstruir essas representações uma por uma, tais
classes populares constróem, com o discurso do médico, um outro no como se mostram através de cada discurso particular, arriscar-se-ia a
qual exprimem quase que apesar deles próprios e, como se verá, atra- substituir à análise sociológica uma espécie de inventário das manias
vés do jogo das reinterpretações, suas representações da doença. Es- e fantasias individuais. Trazidas pela necessidade de tornar com-
tas representações são às vezes relativamente bem acabadas, coeren- preensíveis as doenças que os atingem, as sem i-representações que
tes e explícitas: tal é, por exemplo, a representação da úlcera do estô- têm os agentes sociais de sua doença não são propriamente represen-
mago feita apor uma operária, na pesquisa, na qual o estômago é re- tações coletivas que se pudessem encontrar, por exemplo, em todos
presentado como um recipiente que poderia ser furado sob a ação de os membros de uma mesma classe social atingidos pela mesma doen-
alimentos muito quentes, ácidos ou apimentados e que, como um ça. Assim, tomando um caso limite como exemplo, a representação
balde enferrujado cede quando está cheio demais, estouraria de re- feita por um operário parisiense durante a pesquisa, sobre o câncer
pente após uma refeição muito copiosa ou sob o efeito de um esforço da face, seria um animal que, incrustado na pele, roesse pouco a pou-
demasiado grande. Essas representações permanecem no entanto, na co as carnes e que seria bom alimentar aplicando sobre a pele, carne
maioria dos casos, em estado latente, de uma certa maneira escondi- sangrenta, representação esta que antigamente já foi coletiva e que
das no discurso, e só se traem pelo emprego de certas palavras ou de tem sua origem na medicina científica (principalmente na obra de
certas imagens particulares. Se é verdade que está na natureza do co- Amboise Paré 2, mas que, atualmente, não é mais do que uma espécie
nhecimento popular não se expressar de maneira sistemática ou teó- de fantasia individual. Falta a essas representações quase clandesti-
rica, mas sim através da anedota e do relato, - não podendo as receio nas, para tornar-se (ou voltar a ser) coletivas, uma autoridade qual-
tas, técnicas e conhecimentos aplicáveis a inúmeras situações possí- quer que lhes conferisse uma espécie de direito de cidadania e permi-
veis dissociarern-se pelo raciocínio das situações concretas em que fo- tisse sua difusão dentro de todo um grupo social. Esse era, ao que
ram experimentadas I -, não é menos verdade que a consciência agu- tudo indica, o status das representações médicas outrora ligadas à
çada da ilegitimidade das representações populares da doença contri- existência de uma medicina popular, corpo de conhecimentos e de re-
bui ainda mais para entravar sua elaboração e verbalização. ceitas comum a todo um grupo social e solidamente enraizado nele 3.
Também o trabalho de análise que, através da reunião e organi
za'{ão dos índices parcelados que o informador entrega a granel, con-

2 Cf. M.Bouteiller, op.cit., p. 305.


3 Por todas essas razões, não se pode transpor sem risco ao estudo do discurso vul-
Cf. L.Schatzmann e A. Strauss, "Social class and modes of communication", Ame· gar sobre a doença emitido pelos membros das classes populares numa sociedade
rican Journal of Sociology, Chicago, Hl, vol. LX. n9 4, p. 329-338. hierarquizada e tecnicizada, os métodos de análise componencial utilizados pelos

70 71
Assim sendo, em vez de limitar-se a uma análise puramente descriti- tem no nosso doente lesões do sangue que consti-
va de tais representações que, como se viu, compreende muitas vezes tuem uma anemia intermediária do primeiro e do
implicitamente, como uma operação prévia, a construção, pelo ana- segundo grau de Hayem ... "
lista, das representações que pretende descrever, seria conveniente Além disso, o médico, que sempre se adianta ao que supõe se-
destacar as regras que possibilitam a construção de todas as repre- rem as expectativas do doente, mistura aos termos técnicos represen-
sentações populares da doença, reais ou virtuais, ou seja, as regras de tações ilustrativas da doença e já aí introduz no seu próprio discurso,
divulgação do discurso científico. Pois se essas representações, toma- deliberada ou involuntariamente, reinterpretações cuja função habi-
das em particular, têm efetivamente um caráter individual, elas se tual é fazer com que o doente aceite a técnica de tratamento que o
constróem segundo regras fixas e fazem apelo a um grupo de catego- médico quer lhe impor.
rias e de esquemas de classificações que possuem um caráter coletivo.
A fim de levar as mães a vacinar seus filhos com a
BCG, os pediatras freqüenternente apresentam
2. DO DISCURSO CIENTlFICO AO DISCURSO POPULAR. aquela vacina, que é feita através de escarificação,
como uma "simples cutirreação" 4.
o discurso que o médico mantém na presença do doente e que Do mesmo modo, a idéia, bastante difundida nas
fornece a este os materiais para elaborar o seu próprio sobre a doen- classes baixas, de que o esfigmômetro serviria para
ça não é igual ao discurso científico coerente e exaustivo que o médi- medir a tensão nervosa ', é confirmada pelo discur-
co produz quando, por exemplo, expõe um caso diante de uma as- so dos médicos que, tirando a pressão dos doentes,
sembléia de colegas ou alunos. perguntam-lhes freqüentemente: "sente-se nervoso
Assim, por exemplo, o discurso do médico frente ao neste momento?", sem maiores explicações, e que
doente difere consideraveimente de uma exposição freqüentemente prescrevem, após esse exame, cal-
técnica do tipo: "N osso doente é um jovem de deze- mantes e soníferos.
nove anos que, com a idade de três anos foi atingido No discurso autocensurado do médico, o doente por sua vez faz
pela primeira vez de escarlatina; na idade de cinco uma seleção, retendo apenas os termos que reconhece, ou seja, aque-
anos foi atingido uma segunda vez pela mesma les que já conhece de uma maneira ou de outra, mesmo ignorando
doença. Em seguida à segunda escarlatina, teria sido seu significado científico. Em outras palavras, o doente das classes
atingido por uma difteria laríngea. Foi nessas condi- populares toma do discurso médico os termos que "são aptos a uma
ções, após duas escarlatinas e uma difteria, que descontexturalização" e que, destacados do contexto, conservam um
sobreveio a nefrite, nefrite esta que se caracteriza sentido 6, seja porque se trate de termos médicos que passaram para a
por uma albuminuria intensa, por extensos edemas,
anasarca e perturbações da vista persistentes ... Exis-

4 Em Bengala, as mulheres não dão suco de laranja aos lactentes no inverno porque
o suco de laranja é tido como um alimento frio. Os pediatras, para incentivar a ad-
antropólogos no campo da etnociência (taxinomias mórbidas e sintomatológicas, ministração do suco de laranja e vencer as resistências das mães, recomendam-lhes
taxinomias botânicas e zoológicas, etc.) (Cf. B.N. Colby et aI., op. cit. - ver nota que acrescentem um pouco de mel porque o mel é classificado pelos indígenas en-
n9 5, p. 132). Se é verdade que os membros das classes populares produzem, apesar tre os alimentos quentes. (Cf. D. B. Jelliffe, "Cultural Variation and the Practical
de tudo. um discurso sobre a doença pela combinação de categorias simples, a Pediatrician", em E.Gartly Jaco, Patients, Physicians and IIIness, The free Press,
compreensão desse discurso passa menos pela análise ou pela- pesquisa de seus New York, 1958, p. 397-405).
princípios de coerência interna (pois esse discurso pode, finalmente, ser incoerente 5 cr. Sinergie, Enquête sur l'hypertension artérielle, opinions et attitudes du grand
sem se destruir totalmente) do que pelo estudo das condições objetivas de sua pro- pubtic. mimeografado, Paris, 1965.
dução. ou seja, do sistema de coerções que o determina. 6 "A transmissibilidade de um elemento - escreve Sapir - depende de sua aptidão à

72 73
língua comum mas que conservaram seu "poder de evocação" \ seja princípio de eficácia e muitas vezes - principalmente quando vários
ainda por se tratar de termos que, por sua raiz ou mesmo por sua so- remédios são prescritos durante uma mesma doença - nem mesmo
noridade, enfim, pelo seu valor expressivo, evocam palavras da sua função específica. O trabalho que desenvolvem então os
língua com um. Com esses poucos termos esparsos e que resistiram à mem bros das classes populares consiste em substituir à classificação
dupla seleção feita pelo médico e pelo doente, o doente das classes científica que ignoram, uma classificação fabricada com os meios de
populares vai tentar reconstruir um discurso coerente ou, pelo me- que dispõem, levando em conta unicamente as propriedades de as-
nos, tendendo à coerência. Para isso, ele precisa, em primeiro lugar, pecto imediato dos remédios e feita através da combinação de um
reatribuir um sentido aos termos que tomou do discurso do médico, número limitado de categorias simples. Distinguir-se-ão assim os me-
reinterpretando-os e, em segundo lugar, preencher o vazio que fica dicamentos em função de sua apresentação ou da forma de adminis-
entre esses termos, da mesma maneira que o arqueólogo reconstitui tração (xaropes, pomadas, supositórios, pílulas, injeções, etc.). Den-
um texto do qual não restam mais que fragmentos. O primeiro traba- tro de cada um desses grupos assim constituídos, far-se-ão, se houver
lho, na construção das representações populares da doença, vai con- necessidade e, por exemplo, quando se tem que tomar duas pílulas
sistir em trazer o desconhecido ao conhecido, injetando sentido nos diferentes no mesmo dia, novas distinções, levando-se em conta por
termos emprestados ao discurso médico. Porque como os termos em- um lado o tamanho (pequeno ou grande) e por outro lado a cor do
prestados são tomados pelo seu "valor facial", para falar como Lin- medicamento. Assim, por exemplo, dir-se-á ao médico que se toma
ton", e independentemente do "conjunto" ao qual pertencem, quer "de manhã, pílulas pequenas azuis e de tarde as pílulas grandes ver-
dizer, o sistema das categorias médicas científicas, os membros das melhas", ou ainda que "a coqueluche do bebê foi tratada com inje-
classes baixas, para lhes conferir sentido, têm que fazer coincidir es- ções de duas espécies: verdes e cor-de-rosa" (Paris, mulher de operá-
ses termos com categorias cuja manipulação lhes seja familiar. O re- rio, 37 anos). Se a reconsideração das propriedades de aspecto ime-
curso a categorias simples é, portanto, imposto aos membros das diato dos medicamentos tem uma "função opositiva", no sentido
classes baixas, pelo confronto com objetos, a doença, o corpo, os que permite distinguir, classificar e designar esses produtos, ela
remédios, que se apresentam a eles através de uma linguagem da qual preenche também o que se poderia chamar uma "função expressiva".
não possuem a chave. Isso será visto de maneira mais precisa, estu- Assim, por exemplo, a cor do remédio pode chamar a atenção do
dando-se como os membros das classes baixas descrevem os remé- doente que dirá então: "fui tratado de uma infecção dos rins. O dou-
dios que lhes são prescritos pelo médico. tor me tratou com comprimidos azuis. Era o azul que me fazia bem.
O problema que têm a resolver é o seguinte: como classificar, Havia azul na minha urina" (Paris, mulher de operário, 55 anos). De
distinguir e designar objetos, remédios, cujas denominações científi- maneira mais geral, a aparência exterior, sob a qual se apresentam os
cas, freqüentem ente formadas sobre um radical grego ou latino, não diversos medicamentos, não é independente da idéia que se tem de
têm para eles nenhum significado, apresentam-se habitualmente sob sua natureza e, principalmente, de sua potência, ordenando-se os me-
uma forma fônica complexa e de certa maneira com palavras de uma dicamentos, em função da apresentação que lhes é dada, numa hie-
língua estrangeira e dos quais, além disso, não conhecem nem o rarquia que vai do menos eficaz ao mais eficaz, mas também do anó-
dino ao temível e, em resumo, do fraco ao forte. Assim, os xaropes,
preparação açucarada quase caseira e cujo uso é bastante antigo, são
medicamentos doces tidos como pouco eficazes, mas também pouco
perigosos. Ao contrário, a injeção, cuja administração é dolorosa e
descontextualização. Destacado de seu contexto, deve ainda assim ter um sentido. exige manipulações técnicas, constitui a forma de remédio mais forte,
Ninguém duvida que existam elementos culturais amovíveis, ou seja, elementosca- mais temível e mais rara; como declara um operário da região pari-
pazes de serem reinterpretados diferentemente pelas diferentes populações", (cf. E.- siense: "a penicilina existe em injeção e em pomada, mas a injeção
Sapir, Anthropologie, Les Editions de Minuit, Paris, 1967, col: "Le sens commun",
deve ser mais eficaz" (Bulogne, operário, 37 anos). Por extensão,
vol. 2: p. 42).
7 Cf. c. Bally, op. cit., vol. I, p. 235. dir-se-á que alguém que nunca esteve doente "não sabe o que é uma
8 Cf. R. Linton, op. cit. p. 379. injeção" (Vervins, mulher de operário, 49 anos).
74 75

,-J
3. A REDUÇÃO ANALOGICA clara: "o câncer, isso não é contagioso, não acredito
que venha de fora. A gente deve tê-lo dentro, no
A redução analógica que permite a passagem das categorias da braço, na barriga ou em outra parte" (Paris, mulher
medicina científica às categorias da medicina popular, efetua-se na de mecânico ajustador, 60 anos). Do mesmo modo,
maior parte dos casos em função, ou da sinonímia, ou da homonímia falando de um de seus filhos, atacado de miopatia,
do termo emprestado e desconhecido, com outros termos conheci- uma mulher declara: "é hereditário, está na fainília,
dos 9. A passagem das categorias específicas que os médicos utilizam, é uma coisa que as mulheres carregam dentro e que
às categorias mais gerais contidas na linguagem comum far-se-á, por só se desenvolve nos meninos." (Paris, mulher de
exemplo, seguindo-se o traçado de uma série sinonímica que em al- marceneiro, 38 anos, 2 filhos). A proporção dos que
guns casos pode ser exprimida pelo informante - uma mulher de ope- pensam que o câncer é curável em certos casos au-
rário interrogada sobre as propriedades do álcool a 900 declara que menta continuamente com a classe social, passando
este "desinfeta, cicatriza e faz secar" -, mas que na maior parte do de 43% para os operários, a 57% para os assalaria-
tempo permanece implícita dos do terciário, a 63% para os técnicos e dirigentes
Isto pode ser visto mais claramente estudando-se, por exemplo, assalariados 10.
o que dizem os membros das classes populares sobre a origem da Por exemplo, o termo predisposição utilizado para falar de
doença. Os termos de "hereditariedade" e de "contágio", freqüente- uma "predisposição à tuberculose", não cobre outras noções além da
mente utilizados pelos membros das classes baixas quando interrro- de hereditariedade e designa em primeiro lugar, como aquele, para os
gados sobre as origens de suas doenças, recobrem, atrás de sua espe- membros das classes populares, uma "predestinação", mas com uma
cificidade aparente, categorias muito gerais: é hereditária a doença força menor, sendo que a utilização de um ou outro termo permite
que é própria ao indivíduo e se confunde com ele; contagiosa aquela introduzir variações quantitativas em vez de qualitativas. Além do
que lhe vem do exterior, que é adquirida. Dizer de uma doença que ''1ais, o termo predisposição permite estabelecer uma ponte entre
elá é hereditária, é dizer ao mesmo tempo que é inevitável, fatal. A d hereditariedade e o contágio. Pois como o termo "hereditariedade"
doença contagiosa, pelo contrário, é acidental e fortuita. Assim, é só é tomado no sentido de estar enraizado no indivíduo e na sua linha-
porque é tido como incurável e necessariamente mortal que o câncer gem, as doenças das quais se sabe, por ter ouvido dizer pelo médico,
muitas vezes é declarado hereditário: diz-se que ele "segue o sangue", que são contagiosas e transmitidas por um micróbio, mas que perma-
ou seja, que está potencialmente incluído na própria substância do necem "na família" e que atingem vários membros dessa família, são
indivíduo. ti das ao mesmo tempo como hereditárias e contagiosas, seja quando
Opondo o câncer à tuberculose, tida como "conta- se fale de "predisposição" ou quando se declare, por exemplo, que
giosa", "microbiana", uma mulher de operário de- "existe um micróbio que segue o sangue".
"Tenho uns primos que morreram de tuberculose;
eles tossiam muito, cuspiam e estavam sempre mui-
to cansados. Isso segue muito a família, segue o san-
9 Os processos utilizados pelos membros das classes populares para reinterpretar o
discurso do médico nào deixam de ter uma relação, como se verá mais adiante,
com os processos empregados pelas crianças para reatribuir um sentido às palavras
desconhecidas pronunciadas na frente delas pelos adultos. Assim, por exemplo,
uma criança de seis anos ouviu seu pai falar "do sabre e do aspersório" ("du sabre, assim construída, o primeiro termo pôde ser reinterpretado, por sua vez, em fun-
et dugoupillon"). A màe, que lhe pergunta o que aquelas palavras significam, ela ção da semelhança fônica entre o "sabre" e o "sable" e por outro lado em função
responde: "é a areia e a soneca ("c'est le sable et le roupillon "). A areia do homen- da analogia de sentidos entre o homenzinho da areia "marchand de sable" e a so-
zinho da areia que faz a gente dormir". Nota-se que, neste caso, a reinterpretação neca ("roupillon").
foi feita pela redução analógica do "goupillon" ao "roupillon", em função da se- 10 Cf. I.F.O.P. "L'information du public urbain sur les problêrnes d'hygiêne et de
melhança fônica entre os dois termos. A significação do segundo termo tendo sido santé", loco cito
76 77
gue. Mas também se pode pegar quando alguém trução do discurso sobre a doença. A produção de um discurso coe-
tosse, por um micróbio (Paris, mulher de operário, rente e conseqüente exige efetivamente que se estabeleça uma ligação
31 anos). "Houve tuberculosos na minha família. entre as diferentes partes desse discurso, ou seja, entre as diferentes
Meu pai morreu disso e eu tive duas lesões ... Isso doenças de que sofreu o agente, sucessiva ou simultaneamente. Mas
certamente vinha de meu pai. Eu tinha trazido tudo como habitualmente para eles não existe nenhum meio de estabelecer
o que restava nele" (Paris, mulher de operário, 60 uma ligação lógica entre as diferentes doenças que os atingiram, os
anos). "Pessoalmente, não acredito na BCG. Não membros das classes populares estabelecem essa ligação mínima que
acho que seja necessário. Se uma criança é predis- é a ligação cronológica e espacial, as diferentes doenças de que fala o
posta para a tuberculose ... (Paris, mulher de cobra- médico, tendo pelo menos em comum o fato de ter como sede um
dor de ônibus, 29 anos). mesmo corpo e terem-se sucedido durante uma mesma biografia. As-
Para falar das origens da doença, os membros das classes supe- sim, o enunciado sucessivo das diferentes doenças é freqüentemente
riores utilizam termos que recobrem categorias diferentes, mais pró- entrecortado pela locução "e depois a doença passou para ... " (o co-
ximas das categorias da medicina científica. Efetivamente, distin- ração, a perna, as costas, qualquer lugar), que permite descrever as
guem o que é "congênito" do que é "infeccioso", sem que estes ter- diferentes doenças caracterizadas por um nome e das quais o médico
mos cubram todo o campo do possível, algumas doenças podendo falou, como um único e mesmo mal que se transporta sucessivamente
não ser nem "congênitas" nem "infecciosas", sendo a idéia de predis- para as diferentes partes do corpo, deslocando-se do alto para baixo,
posição substituída pela noção mais específica de "terreno próprio", da frente para trás, e ganhando assim, pouco a pouco, o corpo na to-
que permite atribuir à doença, mesmo se esta é infecciosa, um caráter talidade. Dir-se-á também que o sarampo "cai nos pulmões" (Paris,
endógeno sem por isso declará-Ia hereditária. mulher de marceneiro, 38 anos), ou que a coqueluche "recai nos pul-
mões" (Paris, mulher de operário, 37 anos).

4. O ESPAÇO DO CORPO Diz-se também que os antibióticos, que ocasionam


principalmente perturbações intestinais, "deslocam
As categorias utilizadas pelos membros das classes populares o mal", "fazem-no ir para outra parte". "Os anti-
para reinterpretar o discurso do médico são em geral categorias que bióticos, quando a gente está curada, vão para outra
"correspondem às propriedades mais universais das coisas" e que parte do corpo. I?, sim, faz nascerem espinhas"
são "quase inseparáveis do funcionamento normal do espírito" 11 (Vervins, mulher de operário, 37 anos). "Uma ami-
Essas categorias, como escreveu M.Mauss, "estão constantemente ga teve uma gripe ao mesmo tempo que eu. Ela to-
presentes na linguagem, sem necessariamente estar explicitadas" e mou antibióticos e agora não pode mais andar. Teve
"existem em geral com mais freqüência sob a forma de hábitos dire- uma trombose venosa no tornozelo. Foi por causa
tores da consciência" 12. Na maior parte dos casos trata-se ou de ca- dos antibióticos. Os antibióticos deslocam o mal e
tegorias espaciais ou de categorias de substância. trazem outra coisa" (Paris, mulher de artesão, 72
As categorias espaciais são também utilizadas para descrever os anos). No exemplo seguinte, a reinterpretação é
movimentos da doença, seu caminho no corpo do agente, como vere- mais complexa e situa-se em vários níveis. "Tive
mos mais adiante. Com isso representam um papel essencial na cons- uma úlcera de estômago. Depois tive úlceras nas
pernas. Era a doença vinda do estômago que tinha
ido para as pernas. Vinha pelo sangue, não sei; ou
talvez pelos nervos, parece que a úlcera de estômago
11 E.Durkheim, Les formes élémentaires de Ia vie religieuse, P.U .F., Paris, 1960, p. 13. vem dos nervos. São os nervos que estão enrolados,
12 M. Mauss, Oeuvres, Les Editions de Minuit, Paris, 1967, col. "Le sens commun", que se batem" (Vervins, mulher de operário, 48
vol.1, p.28. anos): A pessoa interrogada que teve uma "úlcera no
78 79
Assim também é a existência de um esquema de reinterpretação
estômago" e "úlceras nas pernas", considera que se
facilmente mobilizável que permite explicar porque a operação da
trata de uma mesma doença pois o mal "vindo do
vesícula biliar, muitas vezes e contrariamente à maior parte das ou-
estômago" tem o mesmo nome que atingiu sua per-
tras operações, dá origem a um discurso prolixo e natural. Se se
na. A doença do estômago e a das pernas estando
"compreende" o que o médico fez quando operou a vesícula, é que
numa relação de sucessão, ela dirá que "o mal vindo
os traços de suas manipulações existem sob a forma de "pedras", que
do estômago foi para as pernas". Esta primeira rein-
foram extraídas do corpo e que se pode guardar, olhar e mostrar, e
terpretaçâo torna necessárias várias outras explica-
que eram o mal no interior do corpo, agora fora dele ".
ções' assim sendo, torna-se necessário um "veículo"
para levar a doença do estômago até as pernas. Esse "Fui operada da vesícula, foi muito complicado. Ti-
veículo é o sangue, tal é a explicação mais simples nha pedras na vesícula e outras pequenas no colédo-
que se apresenta ao espírito. Mas ela é imediata- co. Não podia mais comer. Tinha sempre crises, có-
mente substituída por outra: não é o sangue, são os licas hepáticas ... Na chapa do fígado, eles viram as
nervos. A pessoa interrogada efetivamente ouviu di- pedras: a operação tinha que ser feita. Havia uma
zer que a úlcera do estômago "vinha dos nervos". pedra muito grande na vesícula. O mais delicado era
Se os nervos exprimem, como se verá mais adiante, o colédoco. f: um canal pequeno como um dedo ...
o imaterial, o espírito oposto ao corpo, "o nervo" é diz-se que essas doenças são as cólicas do fígado.
muitas vezes substancializado e imaginado como Era aqui (mostra a parte mediana do abdômen, à di-
um "tendão" que se encontra na carne de vaca, reita). Com certeza havia pedras que obstruíam. As
principalmente na sopa, e que comumente se chama pedras teriam durado bastante tempo para perfurar
"nervos". O nervo então é um filamento gelatinoso, a vesícula. Aliás, estou com elas aqui, vou lhe mos-
uma corda que liga entre si os diferentes órgãos. Se trar. (A informante vai buscar as pedras num peque-
a úlcera de estômago é uma doença que vem dos no saco plástico). A vesícula estava obstruída pela
nervos, dos nervos que "se enrolaram e se batem" maior, as outras estavam no colédoco". (Fontaine-
no estômago, é normal que a doença siga o traçado les-Vervins, mulher de agricultor, 41 anos).
dos nervos para ir para outras partes do corpo.
5. A SUBSTÂNCIA DO CORPO
Se é verdade que esse tipo de crença pertence à antiga medicina
popular, não basta, para justificar tal fato, invocar a teoria das A construção do discurso sobre a doença necessita também da
sobrevivências, pois seria preciso ainda explicar porque a sobrevivên- utilização de categorias de substâncias muito simples e gerais: assim
cia sobrevive. A pregnância desse esquema liga-se ao fato de que ele são o seco e o úmido, o magro e o gordo,.-o suave e o forte, etc,
se baseia numa oposição fundamental, a de interior e exterior, por Dir-se-á por exemplo que a pleurisia é "água nos pulmões".
meio da qual é possível esboçar a representação de um grande núme- Essa idéia é reforçada pela crença (herdada da antiga medicina) se-
ro de diferentes doenças. A da gripe, por exemplo:
"Para tratar da gripe, deve-se usar ventosas, cata-
plasmas de farinha de mostarda e de farinha de li-
nhaça. A mostarda tira o mal para fora, quando se
13 Cf. R. Hoggart, op.cit., p. 46. Falando da. mulheres das classes populares ingle-
põe o cataplasma, forma manchas vermelhas, e isso sas, R. Hoggart escreve: "o grande medo em torno dos quarenta ou cinqüenta
é a doença. Aliás, depois a gente respira melhor. Ê
anos, que volta constantemente na conversa, é o de uma gravidez, que é represen-
mais eficaz do que um xarope." (Paris, faxineira, 55 tada como um enorme câncer invasor, ou então como uma pedra, um grande seixo
anos). duro.

80 81
gundo a qual a pleurisia e a tuberculose são, como a bronquite, doen- como uma podridão na parte externa do corpo, mas também dentro,
ças imputáveis ao frio. Doença causada pelo frio, a pleurisia é "um podridão dos lugares obscuros e úmidos. Assim, de acordo com esse
grande frio", é uma doença na qual se tem "água (fria) nos pulmões" esquema, os ossos, as entranhas, o próprio sangue podem decompor-
(Vervins, mulher de operário, 49 anos). * se e apodrecer.
Categorias climáticas como o frio, o calor, o frio seco, úmido,
etc. são muito utilizadas essencialmente para se falar da origem da Essa representação catastrófica da infecção não se
doença. Particularmente freqüentes no discurso sobre as doenças exprime em nenhuma parte tão bem como no dis-
pulmonares ou rinofaríngeas, as categorias climáticas, mais raramen- curso dessa mulher que, certa que "estava com algu-
te, podem ser empregadas para justificar qualquer outra doença. ma coisa podre por dentro", imagina seu corpo
Princípio de explicação universal, este esquema é utilizado; em últi- como um saco inchado e escorrendo umidade, dei-
xando escapar pelas extremidades água e pus. "Ti
mo caso, quando falta qualquer outra explicação e sem que o infor-
ve uma infecção.o doutor me tratou muito bem. Eu
mante, aparentemente, sequer tente estabelecer um elo lógico entre o
estava inchada da cabeça aos pés. Ele me tratou
frio, o calor, e as doenças das quais se supõe que eles sejam a causa.
muito bem. Fiz o que ele mandou. Eu não podia pôr
Explicar-se-á assim uma "anemia" por um "golpe os pés no chão, de tanto que estava inchada. Estava
de calor", ou uma "depressão" por um "golpe de inchada e tinha manchas. Tinha água que me saía
frio". "Meu marido teve uma anemia muito forte. dos pés. Era como o pus, que me saía por toda par-
Por que? Não sabemos. Ele estava cansado, não co- te. Não era nem mais pus, era água. Eu estava cheia
mia mais. Fizeram-lhe sete transfusões. Mas nós d'água. Estava com alguma coisa podre por den-
achamos que a anemia dele foi um golpe de calor! tro". (Paris, zeladora, 39 anos).
(Vervins, mulher de pedreiro, 43 anos). "Agora, foi Mas como a infecção que é umidade, podridão, é também, e por
meu pai que teve uma depressão. Ele tem um traba- definição, "infecta", desinfetar pode ser reduzido não a secar mas a
lho duro, é cantoneiro. Trabalhava muito e ficoues- limpar. Assim, dir-se-á que o mercurocromo ou o álcool a 90° servem
gotado. Está com idéias negras, acha que querem para "limpar" a ferida como um bom detergente permite limpar, la-
matá-lo. Achamos que é o cansaço e também foi um var os lugares úmidos, escondidos, infectos I'
golpe de frio, mas na profissão dele, como não ter
frio? Eles estão na estrada o tempo todo". (Paris, "O micróbio, eu acho que está no sangue. As vezes a
mulher de operário, 35 anos). gente pega, ou é hereditário. As vezes também se
tem quando se é sujo. A sujeira, a falta de ar, criam
Se se pode ver na pleurisia (e também na pneumonia, pois as micróbios." (Paris, cantoneiro, 64 anos). "Micró-
duas doenças são freqüentemente confundidas pelos membros das bios, há mais no inverno. O sol mata os micróbios.
classes populares, como na antiga ;1 --:iicina), uma doença na qual No inverno, há mais umidade, que sustenta esses bi-
"fica-se cheio d'água", é também porque ouviu-se o médico dizer chinhos." (Paris, mulher de funcionário dos cor-
que esta é uma doença "infecciosa". A infecção é o que se pode ver reios, 28 anos).
na ferida aberta, é a umidade do pus misturado com sangue. Daí a
representação particularmente tenaz da doença como uma podridão, O pensamento popular não pode aparentemente manipular por
muito tempo esses seres abstratos, invisíveis, inapreensíveis que são

• N.T. O emprego dessas categorias está amplamente ilustrado na Parte 11, no capítu- 14 Sobre a representação dos micróbios, cf. F. Dagognet,' La raison et les remêdes,
lo referente à competência médica. PUF, Paris, 1964, p. 184-188.

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os "micróbios", sem procurar materializá-los, fornecer-Ihes um cor- Ela engordava e ficava oprimida. Estava com o coração afogado na
po e uma natureza familiares. Aliás, em geral, fala-se de micróbios gordura, sufocava!" (Fontaine-les-Vervins, mulher de agricultor, 41
no singular. Imagina-se então um "micróbio que anda", "um micró- anos).
bio que desliza" como um peixe num rio. Declara-se que se deve Tais categorias de percepção do outro parecem ter ligação com
prestar muita atenção para descobrir o micróbio. O "micróbio" tor- as categorias dietéticas utilizadas pelos membros das classes popula-
na-se assim mais familiar: no exterior do corpo é um inseto daninho res para falar do que absorvem pela boca e, do mesmo modo, do que
como a mosca que voa na casa; no interior do corpo, é um parasita eliminam. Tratando-se de alimentos, e principalmente de alimentos
incrustado na carne. que devem ser aconselhados ou desaconselhados às mulheres que es-
tão amamentando, as mulheres das classes populares utilizam uma
Uma mulher sofrendo de herpes-zoster declara: "é oposição que, ela própria, vem na frente de toda uma série de oposi-
um micróbio que eu tenho aqui (designa a parte su- ções e de homologias: a oposição entre os alimentos leves e os ali-
perior direita do tórax), ele está aí, nas costelas que mentos fortes. A maioria dos alimentos enumerados pelos membros
me doem. Deram-me antibióticos, isso mata os mi- das classes populares são ventilados, implícita ou explicitamente
cróbios, mas para mim, o micróbio ainda está aí. como suaves e fortes. Por exemplo, o repolho, o alho, o vinagre, os
Ele se aloja nas costelas e quando está lá, lá ele fi- temperos, são alimentos fortes. Esse atributo refere-se em primeiro
ca".(Vervins,mulher de operário, 43 anos). Da mes- lugar, é evidente, ao gosto. Os alimentos fortes, de que devem abster-
ma maneira, dir-se-á que "as doenças infantis são se as mulheres que amamentam, são os alimentos muito sápidos e
necessárias porque "purgam as crianças, livram-nas portanto aqueles cujo gosto pode passar ao leite e fazer com que os
dos outros micróbios" (Paris, mulher de operário, lactentes se desgostem do seio materno. Contrariamente, os alimen-
67 anos). tos leves, massas, batatas, arroz, e principalmente o leite, são tam-
bém alimentos insossos. Mas a oposição entre alimentos leves e for-
6. A ORIGEM DAS CATEGORIAS tes recobre outra: a que distingue alimentos "quentes" dos alimentos
DA MEDICINA POPULAR "diluídos". As propriedades aquecedoras ou diluidoras dos alimen-
tos referem-se à natureza das evacuações que provocam naqueles que
As categorias de seco e de úmido, utilizadas para falar da infec- os ingeriram. Os alimentos "quentes" prendem o intestino. Os ali-
ção recobrem parcialmente duas outras categorias da língua comum, mentos "diluídos" provocam evacuações fluidas, moles e, até mesmo
que os membros das classes populares utilizam freqüentemente para diarréias.
falar da doença: magro e gordo. São categorias muito gerais que têm Se as categorias da caracterologia popular têm afinidade com as
um rendimento considerável na apreciação imediata do outro. Tudo categorias da dietética popular, não é porque seriam - como a maio-
então se passa como se a percepção imediata do outro, na vida coti- ria das categorias utilizadas pelos membros das classes baixas para
diana, se fizesse em função de tipologias fortemente interiorizadas, falar da doença, - herdadas de uma mesma tradição que é a tradição
construídas por combinação de categorias de primeiro aspecto: ma- da antiga medicina e, particularmente, da medicina hipocrática?
gro e gordo, seco e inchado. grande e pequeno, etc .... A essas carac- O autor do tratado Do regime, por exemplo, utiliza as "noções
terísticas morfológicas, associa-se primeiramente uma caracterologia de aquecimento, de resfriarnento, de umectação e de dessecação" 15.
fundada sobre oposições simples, como calmo ou nervoso, rápido ou Assim, o queijo nesse tratado é "forte, muito quente, nutritivo", a á-
lento, forte ou fraco, etc .. e em segundo lugar uma patologia; asso- gua, assim como a cevada, fria e úmida, o vinho, quente e seco, a car-
ciar-se-á assim a tuberculose à "magreza" ou à "secura", distinguir-
se-á a "diabete gorda" e a "diabete magra't..a "anemia gordurosa" e
a "anemia comum". Do mesmo modo dir-se-á que a respiração difí-
cil das pessoas idosas e obesas deve-se ao fato de que seu coração está 15 cr. R. Joly, Le niveau de Ia science hippocratique, contribution à Ia psychologie de
aprisionado e sufocado na gordura: "minha mãe teve um enfarte. f'histoire des sciences, edições Les belles lettres, Paris, 1966, p. 127.

84 85
ne de vaca, forte 16. E, efetivamente, sobre a base da oposição do Se se pode ver nas categorias de que dispõem os membros das -{...
quente e do frio, do seco e do úmido, do forte e do suave 'que foram classes populares, para construir seu discurso sobre a doença, catego-
construídas uma medicina, uma fisiognomonia, uma caracterolo- rias pertencentes ao fundo comum, ou categorias de origem científi-
gia 17 e uma dietética que foram objeto de uma difusão/muito extensa ca é que as categorias muito gerais, nasquais se baseia a medicina
durante cerca de vinte séculos e que, quase cotidianamente penetra- hipocrática - e que são próximas das categorias fundamentais conti-
ram no pensamento popular, primeiramente por intermédio dos mé- das na língua, masja sistematizadas de modo consciente - prestam-se
dicos, entre os quais as idéias médicas de Hipócrates e de Galleno às construções sempre mais científicas e mais complexas dos médi-
permaneceram vivas até o século XVIII, aproximadamente, e em se- cos, mas também, por outro lado, às reduções do pensamento popu-
guida continuaram durante algumas dezenas de anos a estruturar seu lar que, de certo modo, relaciona-as com seu fundo original. Pois, se é
pensamento e modelar sua linguagem 18; em segundo lugar através verdade que o pensamento científico difere essencialmente do pensa-
dos curandeiros que, como mostrou A. Van Gennep 19, utilizam fre- mento popular por. ser conscientemente animado por um espírito sis-
qüentemente receitas herdadas da antigüidade, conservadas nos con- temático e pela vontade deliberada de erguer construções teóricas
ventos e depois difundidas nos opúsculos populares de larga difu- sempre renovadas e sempre mais complexas, as categorias da medici-
são 2", e finalmente retomadas e anotadas nos "cadernos de curandei- na antiga (mas também certamente numerosas categorias do pensa-
ros", *, transmitidos de pai para filho dentro das famílias em que cir- mento filosófico), que só são científicas pela disposição que as liga
cula o dom de curar. entre si, elas não podem, fora dos sistemas coerentes que as integra-
va, senão retornar ao fundo comum de onde o pensamento teórico as
tinha extraído 11. E aparentemente é esse o destino de todo empreen-
dimento de difusão conceitual espontânea.
16 Cf. em R. Joly, Hippocrate. médecine grecque, edições Gallimard, Paris, 1964, o li- É certo que o pensamento popular não é, como "o fundo do sen-
vro li, Do regime (p. 174-181).
so comum" de que fala P. Duhem, "um tesouro enterrado no solo,
17 Sobre a fisiognomonia hipocrática, cf. F. L. M ueller, Histoire de Ia psychologie de
iantiquité à 1I0.\'jours, Payot, Paris, 1960, p. 42. ao qual nenhuma moeda vem mais juntar-se", mas "o capital de uma
1H Assim. em Paris, no século XVIII, as "leituras" latinas dos bacharéis e doutores- sociedade imensa e prodigiosamente ativa formada pela união das in-
regentes tratavam obrigatoriamente dos aforismos de Hipócrates e de Galleno. Os teligências humanas" e que "de século em século se transforma e
ensinamentos fundamentais eram feitos em latim, sob forma de comentários de li- cresce". "A essas transformações, a esse crescimento, escreve ainda
vros. Muito tradicionais, inspiravam-se freqüentemente em fontes ultrapassadas.
Duhen, a ciência teórica contribui numa grande parte: sem cessar ela
O curso de cirurgia latina fundado em 1607 e conservado até 1791, comportava os
seguintes pontos: a) Hipócrates: úlceras, fístulas, feridas na cabeça; fraturas dos ar- se difunde pelo ensino, pela conversação, pelos livros e jornais" e
tigos: a oficina de medicina. b) Galleno, ossos, ataduras, administrações anatõmi- "penetra até o fundo do conhecimento vulgar •...22. Mas como o pen- ,J,
cas. Comentários sobre as fraturas, as doenças articulares, a oficina de medicina; o samento popular só pode assimilar e utilizar aquilo que já conhece, l
livro XVI sobre as fraturas. c) Oribase, aparelhos, laços; ataduras, máquinas. Cf, as novas categorias tomadas da ciência ao mesmo tempo que as pala-
P. Huard. "L'enseignement médico-chirurgical", sob a direção de R. Taton, em
1:'nseiKIII'I/ll'11I et diffusion des sciences en France au XVII 11'. siécle, Hermann edito:
vras-suporte, são imediatamente submergidas pelas categorias mais
res. Paris. 1964, p. 170-236. antigas e mais gerais, das quais os membros das classes populares fa-
19 Cf. A. Vun Gennep, LI' folkore de Ia F/andre et du Hainaut français, edições G. P. zem uso corrente e que lhes são familiares. Tal é, por exemplo, o caso
Muisonneuve, Paris. 1935-36, t. li, p. 611-618.
20 Sobre a difusão, através da literatura trazida pelos mascates, da fisiognomonia an-
tiga, ct. r. Mandrou, "Littérature de colportage et mentalités paysannes aux
XVlk-XVIk. siêcles". Etudes rurales, nv 15, outubro-dezembro 1964, p. 72-85. R.
Mandrou. no Vieu» Compost des bergers, principalmente, revela diversas conside-
rações sobre (,1 corpo humano e as fisionomias, e sobretudo a interpretação moral
dos traços: "O homem é apresentado nos velhos almanaques como um tempera- 21 C f. E. Benveniste, "Catégories de pensée et catégories de langue", em Problêmes de
mento. uma compleição homoral (as quatro compleições que correspondem aos linguistique générale. edições Gallirnard, Paris, 1966, p. 63-74.
quatro elementos: ar. terra, água, fogo)". 22 P. Duhem. La théorie phvsique, son objet, sa structure, livraria Mareei Riviêre et
• No original "cahiers de panseurs". Cie .. Paris. 1914. p. 397.
86 87
da noção de alergia, cuja formação é relativamente recente e que co- dam a medicina, as mesmas diferenças que entre o empreiteiro na
meça a tomar lugar no discurso médico dos membros das classes bai- fase do capitalismo nascente, descrito por Sombart, e os membros da
xas. Passando para a língua comum, o termo alergia despojou-se da sociedade tradicional que têm de se adaptar "graças a uma reinven-
maioria de seus atributos para recobrir apenas a idéia vaga de antipa- ção criadora", à economia capitalista imp.ortada pela colonização 24,
tia ou de repulsa. Dir-se-á assim que se é "alérgico" a este ou àquele pois existem os médicos. Assim, longe de ser invenção, a atividade
alimento porque "não se pode suportá-Io", ou mesmo se é "alérgico médica dos membros das classes populares é bem "reinvenção cria-
ao calor muito forte" (Paris, aprendiz de açougueiro, 31 anos) para dora", imposta pela necessidade de se adaptar ao universo estranho e
dizer simplesmente que não se gosta do calor. desconhecido da medicina e dos médicos. Mas como trabalha tatean-
O pensamento popular pode assim parecer enriquecer-se ou se do e com um material arcaico, essa reinvenção erra necessariamente
transformar sem modificar notavelmente seu material conceitual de sua meta: incapaz de reinventar a medicina científica de hoje, ela mal
base. Se existem semelhanças formais muito numerosas entre o pen- consegue reativar os esquemas da antiga medicina. Compreende-se
samento popular de hoje e o que G. Bachelard chama o pensamento que, nessas condições, o pensamento popular não possa se transfor-
pré-científico, e se as representações médicas produzidas pela primei- mar radicalmente sob o efeito da difusão selvagem e descontrolada,
ra parecem em muitos casos ser a reprodução ou a reinvenção das tal qual ela é feita inevitável e paulatinamente dentro de uma socie-
construções científicas elaboradas pela segunda, isso se deve talvez dade estratificada, mas apenas sob o efeito daquela difusão sistemáti-
ao fato de que o pensamento científico dos séculos precedentes difun- ca, progressiva e completa a que procede a instituição escolar e que,
diu-se pouco a pouco até atingir os membros das classes sociais situa- não se limitando a transmitir palavras, mas também conceitos e me-
das no degrau mais baixo da hierarquia; mas talvez também porque, canismos de pensamento, modifica por isso mesmo a própria inten-
mais simplesmente, esses dois pensamentos trabalham sobre uma ção intelectual.
mesma matéria-prima e utilizam um material conceitual idêntico lJ ••
Mas aí acaba a analogia. Há efetivamente entre os teóricos da medi-
cina antiga e os membros das classes populares de hoje, quando estu-

23 As semelhanças formais entre o pensamento popular de hoje e o que G. Bachelard


chama o pensamento pré-científico, são muito significativas. N um e noutro caso, a
analogia é empregada do mesmo modo a título de princípio explicativo. Além dis-
so, as analogias utilizadas pelo pensamento popular e pelo pensamento pré-
científico são muitas vezes do mesmo tipo, e os fenômenos naturais são explicados
por comparação com objetos fabricados pelo homem (em Empêdocles, por exem-
plo, a comparação do olho e da lanterna. Cf. J. Bollack, Empêdocle, introduction à
l'ancienne physique, Editions de Minuit, Paris, 1965, p. 29. O autor faz aí o inventá-
rio do que ele chama "cenas de oficina"). Como o pensamento pré-científico, o
pensamento popular tem certa predileção pelas analogias domésticas. Como escre-
ve G. Bachelard, "o homem comum é às vezes um salsicheiro. Busca suas intuições
na salgadeira. Pensa como salga" (Laformation de l'esprit sctentifique, J. Vrin edi-
tores, Paris, 1965, p. 121). Assim é, por exemplo, a comparação no tratado hipo-
crático Do regime "do ovo que se constitui ao pão que coze, com oposição da cros-
ta no exterior e dos canais no interior" (R. Joly, op. cit., p. 23). Tudo se passa
como se, a nível de informação equivalente, correspondessern sempre explicações
do mesmo tipo. A reflexão popular, à qual falta a herança cultural e os esquemas
de pensamento transmitidos pela escola, utiliza um material heteróclito e toma ca-
minhos já explorados pelo pensamento pré-científico. 24 Cf. P. Bourdieu, Le déser chantement du monde, op. cit., p. 9-10.

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