“FUTURE-SE” (Ou de como e quando a educação formal pública será sacrificada no “sagrado altar” do mercado)
O neoliberalismo [...] ameaça a educação ao submetê-la à noção de que só a
empresa e o lucro movimentam a sociedade. [...]. A escola passa a ser um negócio e o ensino público, agonizante, vai fazendo parcerias crescentes que o subordinam às necessidades dos donos das indústrias e do capital.
Pablo Gentili e Chico Alencar
Educar na esperança em tempos de desencanto.
Somos o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, herdeiro de uma tradição de
110 anos de esforços públicos pela educação profissional no Brasil. Por 86 anos, fomos a única unidade no estado do Rio Grande do Norte. Somente em 1995, inaugurou-se o Campus Mossoró do IFRN, e, a partir de 2006, vivemos uma expansão que permitiu a construção e o pleno funcionamento de 21 novos campi e 01 Reitoria. Como autarquia federal, somos 100% financiados pelo orçamento da União. No Campus Natal/Central do IFRN (com 9,1 hectares), há 7.550 estudantes matriculados, 351 docentes, 209 técnicos(as) administrativos(as) e 103 trabalhadores(as) de empresas terceirizadas. Em 2014, O Campus Natal/Central recebeu R$ 9.879.000,00 de recursos de custeio do Governo Federal. Em valores corrigidos hoje equivaleria a 19,190.000,00, contudo, com os cortes orçamentários promovidos pelo Governo Federal agora em 2019, chegamos a quantia de R$ 7.590.000,00. Com esses recursos, promovemos uma educação de qualidade social e técnica, sendo o Campus Natal/Central do IFRN uma referência nacional em educação formal, tanto em nível médio integrado à Educação Profissional quanto em outros níveis e modalidades de ensino. Ainda assim, não medimos esforços na busca por mais apoio e parcerias, de modo a melhor cumprir nossa missão socioeducacional. Entretanto, mais uma das ações do atual governo nos deixou preocupados, seja na condição de profissionais da educação, seja na condição de cidadãos(ãs) ou de sujeitos humanos empenhados na construção de uma sociedade democrática, justa e humanizante. Em recente pronunciamento, o Ministério da Educação (MEC) do governo do Presidente Jair Bolsonaro lançou, no dia 17 de julho de 2019, o Programa Educacional “Future-se”, cujos objetivos, segundo seus idealizadores, são os de reestruturar o financiamento da educação pública federal e reforçar a autonomia das universidades e dos institutos federais em suas instâncias administrativas, pedagógicas, extensionistas e científicas. Ao analisar o teor do anteprojeto de lei, apresentado de forma pirotécnica, identificamos que o atual mandatário da pasta desconhece os documentos e as leis que regem os institutos federais e as universidades federais, como as prestações de contas anuais realizadas pelo tribunal de contas da União, a lei de acesso à informação e o portal da transparência, que são órgãos fiscalizadores das nossas ações. Ao falar em empreendedorismo como algo novo, desconhece que as incubadoras e empresas juniores são realidades vivenciadas em muitas instituições de ensino federais. Cabe relatar que a nossa Instituição de ensino tem um núcleo de incubação tecnológica funcionando no Campus Natal/Central desde 1998, que hoje conta com 13 empresas incubadas. Essa empreitada seria bem-vinda se a lógica que a sustenta estivesse fundamentada no princípio democrático da educação pública como direito social imprescindível ao fortalecimento da dignidade da pessoa humana, imperativo ético assegurado tanto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto pela Constituição Federal brasileira, mas não é esse o caso. Analisado em seus fundamentos não declarados, o “Future-se” revela-se como um projeto que prevê a retirada do financiamento público da Educação. Se aprovado, transformará muito rapidamente as universidades e os institutos federais de educação pública em organizações subordinadas às demandas mercantis e à financeirização da educação. Observe-se, nesse sentido, a entrada das grandes Organizações Sociais (OS’s) como responsáveis diretas pela gestão dessas instituições de educação sem a necessidade de chamada pública, como disposto na seção II, art. 3º, § 1º, fato que anulará por completo o princípio da Gestão Democrática, assegurado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) e da autonomia das instituições públicas federais. Assim, o que aparentemente seria desejável, demonstra-se – no escopo do Projeto de Lei (PL) – ser um equívoco proposital. A autonomia didático-pedagógica, administrativa e patrimonial já estão garantidas às universidades brasileiras no art. 207 da Constituição Federal e disciplinada pelos artigos 53, 54 e 55 da Lei 9.394/1996 da LDB. Esse “fortalecimento da autonomia “do FUTURE-SE diz respeito ao fato de o MEC entender a autonomia como a “universidade bancada por ela mesma”. Isso, obviamente, fere o disposto no artigo 55 da LDB que afirma: “Caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento Geral, recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de educação superior por ela mantidas”. O avanço do ataque à autonomia das Instituições Federais de Ensino Superior – IFES - ganha um aspecto mais macabro, quando se lê o disposto na Seção IV do PL, que trata do Fomento. Nessa seção, em seu Art. 7º, fica estabelecido que as IFES podem repassar recursos orçamentários e permissão para uso de bens públicos pelas Organizações Sociais. O artigo 8º avança no sentido de que a Secretaria de Patrimônio da União deverá transferir bens imóveis para o MEC, como pré-requisito do que virá no art. 9º, o MEC poder participar como cotista de fundos de investimentos. Aí temos a possibilidade real de o MEC alienar bens imóveis da União para investir no mercado de capitais. Isso fere a Constituição Federal. Finalmente, e não menos importante, os artigos 22 e 23 da Seção V definem a criação de um Fundo de Financeiro com aporte de recursos oriundos de receitas de prestação de serviços, mensalidades de pós-graduação, investimentos financeiros, rentabilidade de fundos de investimentos (se houver). Só não fala nos aportes constitucionais da União para as mantenedoras das IFES. Aqui fica clara a noção de “fortalecimento da autonomia” que o MEC pensa: “tirar a responsabilidade da União e deixar as universidades buscarem autofinanciamento no mercado financeiro”. Na prática, isso significa a PRIVATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO DO PAÍS. Trata-se, nesses termos, de um projeto de educação que radicalizará a já evidente fusão de empresas educacionais nacionais e internacionais, o que dará condições para a criação de novos monopólios e oligopólios financeiros por meio dos quais a educação assumirá o caráter de mercadoria negociável no mercado das trocas: quem tem mais compra mais, sabe mais, pode mais. Nessa direção, a aprovação do “Future-se” acarretará, ao mesmo tempo, o esfacelamento da educação como direito social inalienável e sua consequente transformação em mercadoria cultural, concebida e regulada sob as regras da “mão invisível do mercado”, intensificando práticas de competição, de eficácia, de eficiência e de ciclos de controle voltados para a garantia da “qualidade” do produto a ser vendido: o conhecimento. Convém destacar ainda que, nas entrelinhas do discurso pseudomodernizante propalado pelos interlocutores do “Future-se”, o político torna-se subserviente às demandas do econômico, produzindo um Estado mínimo para as questões sociais. Nessa direção, a lógica neoliberal do “Future-se” traz consigo um projeto de educação em que o Estado inverte sua dinâmica de atuação: os investimentos necessários para políticas educacionais diminuem ao passo que aumentam os repasses do orçamento público para as empresas privadas. ISSO SIGNIFICA QUE OS FILHOS E AS FILHAS DO(AS) TRABALHADORES(AS) NÃO TERÃO MAIS ACESSO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO PÚBLICO. Diante disso, não se pode ignorar os interesses econômicos subjacentes a esse programa educacional. Ademais, cumpre enfatizar que somente o Estado possui um raio de ação ampliado, de modo que todos possam ter acesso à educação formal e não formal sem restrições, como direito social, como direito humano universal necessário à promoção de vida digna. “Fature-se” seria uma denominação mais adequada e até mais honesta, considerando o perfil daqueles que hoje ocupam as estruturas administrativas do Estado brasileiro. Mediante o exposto, ou lutamos por um projeto de educação alinhado a um projeto de sociedade abalizado nos princípios da justiça social e cognitiva, com vistas à valorização da vida em suas diversas formas de realização, ou nos tornaremos expectadores passivos diante do sacrifício da educação pública no “sagrado altar” do mercado, nos indagando sobre o que restou de educação na educação em algum lugar do passado.