Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
PUC-SP
DOUTORADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2018
1
PUC-SP
DOUTORADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2018
3
Banca Examinadora
4
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
Títle: Michel Foucault and medicine – on the birth of the modern clinic
This work starts from the death experiences and the encounter with Michel
Foucault thoughts, to interrogate the medical discursive practices about the pretension
of the construction of a totalizing and hegemonic knowledge about the individuals. This
thesis followed two parallel projects: one seeking to understand the descriptions of the
book Naissance de la Clinique about modern medicine, denominated by Foucault as
clinical medicine; and the other, concerned to contribute with medical formation. It was
decided to organize the work following Foucault demarcations about the medical
knowledge that are, mainly, in the book L’archéologie du savoir, because they made
sense to explain the generalized dispersion of the medical knowledge in our days.
References to Foucault biopolitics studies were included, whereas this moment
indicates another important theme from the reflection about medicine. It was concluded
that the power of the medical knowledge is in the way that it perceives, penetrates and
approaches the body, even though its truths might be partial and provisory. Two
dialogue directions are proposed to a new medical art, more flexible, critical and fair:
one in the discussion of the new layers that can be added to the medical knowledge,
and another, in the analysis of the experiences of medical practices.
ABREVIATURAS UTILIZADAS
NC Naissance de la clinique
RR Raymond Roussel
AS L’archéologie du savoir
DE I Dits et écrits I
DE II Dits et écrits II
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 9
1. Considerações iniciais: reflexões sobre os 30 anos da morte de Michel Foucault
(1926-1984) ................................................................................................................... 9
2. Considerações sobre a biografia de Michel Foucault .......................................... 13
3. Considerações sobre a tese ............................................................................... 20
CAPÍTULO I – ARQUEOLOGIA............................................................................................................ 22
1. Arqueologia vertical ........................................................................................... 23
2. Arqueologia horizontal foucaultiana ................................................................... 27
3. Conclusões sobre arqueologia ........................................................................... 32
CAPÍTULO II – SABER MÉDICO ............................................................................................................... 34
CAPÍTULO III – DISCURSOS DESCRITIVOS CIENTÍFICOS ..................................................................... 45
1. Medicina clássica do século XVIII ....................................................................... 45
2. Medicina clínica do século XIX ........................................................................... 47
3. Protoclínica, lógica da linguagem ....................................................................... 50
CAPÍTULO IV – OLHAR MÉDICO E SEUS DESLOCAMENTOS ......................................................... 72
1. Doença, corpo ............................................................................................................ 72
2. “Abram alguns cadáveres” ................................................................................. 74
3. Dissolução das febres ............................................................................................ 78
CAPÍTULO V - DISCURSO, MORTE, VIDA ......................................................................................... 81
1. Linguagem médica, literatura, distância ............................................................. 82
2. Morte, finitude, vida .................................................................................... 86
CAPÍTULO VI – RELAÇÕES DISCURSIVAS DO SABER MÉDICO ......................................................... 96
1. Hospitais, corporações médicas, faculdades ......................................................... 98
2. Medicina das epidemias .................................................................................. 115
3. Relações estratégicas ........................................................................................... 122
CAPÍTULO VII – DIREÇÕES DO DIÁLOGO ....................................................................................... 136
REFERÊNCIAS...........................................................................................................................................147
9
INTRODUÇÃO
No Brasil e no mundo, sabia-se, em geral, nada mais que isso. Não havia um
teste laboratorial disponível para o diagnóstico da doença, tampouco qualquer tipo de
tratamento específico para o HIV. O primeiro tratamento aprovado nos EUA pelo FDA
(Food and Drug Administration) foi o AZT, em 1987.
Lembro-me especialmente de um caso, que ficou sob meus cuidados. Era uma
jovem mulher, cujo marido era marinheiro e havia sido contaminada provavelmente
por ele. Quando ela se internou, já estava num estágio avançado da doença. Para
visitá-la, lembro-me do longo trajeto: ter de atravessar dois pavilhões do hospital, subir
escadas de mármore, seguir pelo corredor, onde seu quarto era o último daquela ala.
Sempre a encontrava sozinha, deitada, silenciosa. Penso, agora, que talvez a luz
excessiva daquele quarto a incomodasse, porque havia grandes janelas. Não me
recordo do que ela se queixava ou do que eu falava para ela. Recordo-me, contudo,
de sentir a presença da doença como um peso moral naquele silêncio e na solidão
que parecia ainda mais vazia; e perceber uma desesperança quase palpável. Nem
todos os pacientes eram internados naquela ala distante das enfermarias da clínica
médica, mas havia um mal-estar comum aos casos de AIDS.
1 DEFERT, Daniel. Foucault. Les derniers jours. Interview avec Eric Favereau. Libération, Paris, 19
nov. 2004. Culture, Livres. Disponível em: http://www.liberation.fr/livres/2004/06/19/les -derniers-
jours_483626. Acesso em: 05 nov. 2014.
12
A seguir, nos dias logo após a morte de Foucault, ele percebeu o horror que a
doença causava, fazendo-a parecer o “impensado social”, esse medo social que
levaria ao desejo de apagar a doença e ocultar toda relação de verdade, mesmo nas
respostas dos médicos. E, ao mesmo tempo, tornando-a objeto de voracidade, que
desnudava as relações homossexuais, transformando a AIDS em mais um modo de
discriminação social. Ao entender essas coisas, ele decidiu transformar seu luto em
um combate.
Paul Veyne, no livro que escreveu sobre Foucault, trata a morte do amigo como
um evento inesperado, mal compreendido por aqueles mais próximos dele. Conta que,
numa conversa, chegou a perguntar a Foucault sobre a própria existência da AIDS, a
qual parecia uma realidade distante, ele respondeu que havia pesquisado sobre a
AIDS e procediam os relatos sobre ela. Veyne conclui que ele parecia ter
conhecimento da sua doença, e a enfrentava com certo sangue-frio.3 Em sua biografia
de Foucault, Didier Eribon relata esse clima de perplexidade com a morte dele,
fulminado por uma doença pouco esclarecida, mas cercada de boatos indiscretos. Os
jornais, nas manchetes, falavam das homenagens póstumas ao filósofo ilustre,
escritas por seus amigos do meio intelectual; e deixavam nos rodapés as linhas
crispadas do preconceito contra a nova doença.4
2 LINDON, Mathieu. O que amar quer dizer. Tradução de Marília Garcia. São Paulo: Cosac Naify,
2014. Ver em p.145-55.
3 VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques de Morais. Rio
em p.350-5. Tradução em: ERIBON, Didier. Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p.304-11.
13
Outro episódio biográfico, citado por ele em várias entrevistas, é que os seus
trabalhos partiam de alguma experiência direta, nesse caso, deve-se lembrar que
Foucault trabalhou em hospitais psiquiátricos, como o Hospital Sainte-Anne, e
também no hospital prisional. Essa experiência no tratamento psiquiátrico hospitalar
e o contato com os médicos foi identificada por ele como um dos focos para, mais
tarde, escrever a Histoire de la folie (HF). 8
5 GROS, Frédéric et al. Foucault: a coragem da verdade. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo:
Parábola Editorial, 2004. p.27.
6 FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 6. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008. p.134. Leia-se em FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. 7e ed.
Paris: Quadrige/PUF, 2007. “Le coup d’œil, lui, ne survole pas un champ: il frappé en un point, qui a le
privilège d’être le point central ou décisif; [...] va droit: il choisit, et la ligne qu’il trace d’un trait opère,
en un instant le partage de l’essentiel”.
7 VANDEWALLE, Bernard. Michel Foucault – Savoir et pouvoir de la médecine. Paris: L’Harmattan,
2006. p.9-10.
8 Ver em ERIBON, Didier. Michel Foucault. 2.ed. Paris: Flammarion: 1991. p.68-9. Tradução em:
ERIBON, Didier. Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p.62. Passagem em que Foucault fala sobre seu trabalho no Hospital Sainte-Anne, quando
estudava psicologia.
15
conviveu com Georges Dumézil, quem foi talvez “um modelo para ele: modelo de rigor
e paciência no trabalho; modelo também pela diversidade de centro de interesses,
pela minuciosa atenção dedicada aos arquivos”; ensinando-lhe a forma de analisar os
discursos segundo suas transformações e relações com as instituições, como relata
Eribon.9 Ali estava, também, a grande Biblioteca Carolina Rediviva, cujo acervo
contava com uma coleção de livros de história da medicina, doados por um
colecionador, dr. Erik Waller. Nessa biblioteca Foucault passava muitos dias
estudando e fazendo anotações. Perto de Uppsala, havia ainda outro lugar que
Foucault gostava de visitar, a casa de Lineu.
Na cronologia estabelecida para Dits et écrits [1994], Daniel Defert diz que a
redação de NC fora concluída em 1961, e Foucault a apresentava como “remates de
História de Loucura”.10 Pode-se reconhecer que ele pesquisava para NC na mesma
época em que compunha HF [a apresentação da sua tese de doutorado na Sorbonne
foi em 1961].
archéologie du regard médical. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallima rd,
2015.p.1526-7. Ele informa “boîte XCI du fonds Foucault déposé à la Bibliothèque nationale de
France (NAF 28730)”.
12 Ibid., p.1527. Leia-se: “Alors, il apparaîtra clairement que la Naissance de la clinique est un projet à
13 DELAPORTE, François. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique: une archéologie
du regard médical. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1514 -5.
14 Ibid., p.1515.
17
15 Ibid., p.1515.
16 Ibid., p.1515.
18
17 FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Présentation de Pierre Macherey. Collection Folio / Essais.
Paris: Gallimard, 1963, pour le texte et 1992 pour la présentation. Tradução brasileira: FOUCAULT,
Michel. Raymond Roussel. Manoel Barros da Motta e Vera Lucia A vellar Ribeiro. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1999. (RR)
18 Ver em ERIBON, Didier. Michel Foucault. 2.ed. Paris: Flammarion: 1991, p.171: “Pourtant, Foucault
ne ménage pas sa peine. En, 1963, il publie deux ouvrages fort différents. Il s’agit de son étude sur
Raymond Roussel, qui paraît chez Gallimard, dans la collection ‘Le Chemin’ que dirige Georges
Lambrichs, et de Naissance de la Clinique. Il a pris soin de les faire paraître le même jour. Pour
manifester l’égale importance des deux centres d’intérêt qui mobilisent son attention? Ou plus
profondément pour montrer qu’il parle ici et là de la même chose?”. Tradução em: ERIBON, Didier.
Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.150. “No
entanto, Foucault trabalha muito. Em 1963, publica duas obras bem diferentes. Um estudo sobre
Raymond Roussel, lançado pela Gallimard na coleção ‘Le chemin’, que Georges Lambrichs dirige, e
Naissance de la clinique. Foucault cuidou para que as duas obras fossem lançadas no mesmo dia.
Para mostrar a importância igual dos dois centros de interesse que mobilizavam sua atenção? Ou,
mais profundamente, para mostrar que numa e na outra está falando da mesma coisa?”
19 SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome I.
Ora, o olhar, a morte e a linguagem também são os eixos das análises em NC.
As distinções, contudo, vêm dos dois lugares diferentes em que esses livros
são desenvolvidos, diz Sabot, porque RR nasce no espaço heterotópico da biblioteca
e percorre uma experiência da linguagem no espaço da literatura; enquanto NC vem
dos arquivos e dos discursos na sua historicidade.23 Sabot conclui que RR substitui o
relato arqueológico por “uma reflexão de caráter ontológico sobre a literatura e o ser
da linguagem.”24
21 Ver em SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome I.
Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1554-5.
22 Sabot cita: Fonds Foucault, BNF, boîte XCI, cahier nº 1, note du 29 du mai 1962. 1. O olhar e as
Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1555: “Là où Naissance de la clinique s’écrit dans
une relation privilégiée à l’archive et à la sédimentation historique des choses dites, alliant la
systématicité des discours et leur historicité (c’est -à-dire le système de leur transformation), Raymond
Roussel s’écrit plutôt dans l’espace hétérotopique et heterochronique de la bibliothèque.” (Tradução
minha).
24 Ibid., p.1554-5. Leia-se: “Mais l’étude monographique de Foucault se développe en dehors de toute
CAPÍTULO I – ARQUEOLOGIA
Considerações iniciais
Ciência, política e práticas sociais não podem ser separadas, mesmo quando
se pretende estudar apenas um campo de saber. Isto se mostra no desenvolvimento
dos capítulos de Naissance de la clinique (NC).25 Esse livro trata da emergência da
“clínica médica” no fim século XVIII, a qual, para Foucault, é o tipo de racionalidade
prática que organizará a medicina moderna. No livro, há uma alternância interessante
entre capítulos que tratam das lutas e das conquistas políticas da época, reconhecidas
como o período da Revolução francesa, e outros, da busca das corporações médicas
da França para regulamentar a profissão médica e fundamentá-la como uma ciência.
Foucault mostra como a confluência de alguns acontecimentos políticos, sociais e
científicos, no fim do século XVIII, puderam formar o saber médico moderno. Além
das violentas reviravoltas políticas da sociedade, das epidemias, das novas técnicas
de investigação médica que passaram a ser adotadas, há um foco em algumas
personagens médicas, das quais Pinel, Tenon, Cabanis, Laennec, Bichat, Broussais
são os principais exemplos. São médicos que provavelmente ocuparam certo status,
pelo que puderam estabelecer relações e funções em diversas instituições, na sua
época.
NC é um livro árduo para ler ou retornar a ele, porque reúne eventos históricos,
termos médicos de antigo significado e interpretações desconcertantes. Várias
passagens sobre a Revolução Francesa, decretos feitos e desfeitos, idas e vindas das
datas embaralham-se em detalhes que aparentemente já não são importantes.
Acrescentem-se ainda as descrições dos achados físicos da tuberculose, das
inflamações e das febres como já não são compreendidos; e chega-se à morte como
um dos conceitos fundadores da medicina atual. Aparentemente, não é um livro
contínuo e encadeado. Essa é a primeira impressão. Para compreender melhor NC,
1. Arqueologia vertical
26 No primeiro Prefácio de Histoire de la Folie à l’âge classique, 1961. Em FOUCAULT, Michel. Dits et
écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. p.188. (DEI)
27 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,
Portanto, Michel Foucault não foi o primeiro a utilizar o termo arqueologia, deve-
se isso a Kant. Para Kant, a arqueologia filosófica designava a história do que torna
necessária certa forma de pensamento.28 Era delimitada pela história das
racionalidades, ou das ideias como fatos da Razão, solo sobre o qual repousa o
conhecimento humano. Permitia reconstruir “o quadro histórico das ideias filosóficas”,
em que toda filosofia deve se situar temporalmente; e isto demostrava a relação
arqueológica da filosofia com a sua própria história, relação pela qual os eventos do
passado continuavam a ter efeitos no presente.29 Não tratava de uma cadeia de causa
e efeito ou do progresso das racionalidades, mas de l’arché filosófica donde provém
seu próprio fundamento constitutivo e justificativo.
p.599-618. Republié dans Les mots e les choses de Michel Foucault. Regards critiques 1966-1968,
Caen, Presses universitaires de Caen – IMEC, 2009. Leia-se na p.254: “La géologie connaît des
sédiments et l’archéologie des monuments.” (Tradução minha)
25
estudo do solo histórico (uma geologia), mas vem a ser uma investigação ampliada
das próprias condições de possibilidade da história. Canguilhem esclarece que
mesmo que Foucault se expresse num vocabulário da geologia quando se refere ao
solo silencioso e imóvel e às rupturas sobre as quais se caminha hoje, não é para
remeter às camadas ocultas e sedimentadas por fenômenos naturais; na verdade, o
que ele investiga são os “desníveis da cultura ocidental”, os “limiares” dos saberes.32
Note-se que naquele ponto, diferentemente de Guéroult, para Foucault os problemas
também mudam em cada época, acompanhando as modificações de organização do
sentido e da coerência dos diferentes saberes. Explicando melhor, a arqueologia é um
movimento histórico que conduz às próprias condições de possibilidade do
conhecimento; como afirma Foucault: “[...] as modificações que alteraram o próprio
saber, nesse nível arcaico que torna possíveis os conhecimentos e o modo de ser
daquilo que se presta ao saber.”33 Essas mutações se dão no nível mais profundo,
aquele de l’arché histórica, por isso representam rupturas, ou descontinuidades, que
impedem a reconstrução de uma lógica contínua de uma época para outra. Ora,
Paltrinieri indaga, então como investigar esse a priori histórico se ele muda? Por onde
começar? Ele mesmo prossegue: resta buscar nas condições que determinam o
próprio presente. Relendo-o: “a operação arqueológica consistirá então num trabalho
de escavação de nosso ‘solo’ à procura de uma evidência mais fundamental capaz de
revelar o senso do desenvolvimento histórico.”34
Resumidamente, até aqui se contam três pontos principais que dão uma visão
geral da pesquisa arqueológica foucaultiana. Primeiramente, ela investiga os saberes
e, desde o início, vincula-se a uma abertura kantiana para a história do pensamento
32 FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. Les mots
e les choses: une archéologie des sciences humaines , p.1045. Leia-se: “En essayant de remettre au
jour cette profonde dénivellation de la culture occidentale, c’est à notre sol silencieux et naïvement
immobile que nous rendons ses ruptures, son instabilité, ses failles; et c’est lui qui s’inquiète à
nouveau sous nos pas.” Tradução: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia
das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007.p.XXII.
33 FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. Les mots
e les choses: une archéologie des sciences humaines , p.1101. Leia-se: “[…] les modifications qui ont
altéré le savoir lui-même, à ce niveau archaïque qui rend possibles les connaissances et le mode
d’être de ce qui est à savoir.” Tradução: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma
arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.p.75.
34 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,
novembre 2015, p.21. Leia-se: “[…] l’opération archéologique consistera alors en un travail
d’excavation de notre “sol” à la recherche d’une évidence plus fondamentale capable de révéler le
sens du développement historique.” (Tradução minha)
26
35 Ibid, p.21-2.
36 Ibid, p.23.
37 Ibid, p.23. Leia-se: “Mais les modèles de cette ‘fouille dans notre passé’ à la recherche des archi -
évidence – ces fondations oubliées qui habitent et influencent notre présent – sont innombrables et ne
se limitent pas au courant phénoménologique.” (Tradução minha)
38 Ibid, p.23-4.
27
39 Ibid, p.24. Segue: “En ce sens, l’archéologie n’est pas seulement une fouille dans notre passé, mais
aussi une recherche d’un archaïque psychologique et sociologique, fondation oubliée d’habitudes et
modes de pensées qui continuent d’influencer les pratiques quotidiennes.” (Tradução minha)
40 Ibid, p.24. Leia-se: “Bien évidemment, Freud lui-même qui avait transféré l’imaginaire archéologique
dans le domaine psychologique, en pensant la conscience comme une série de couches juxtaposées
auxquelles l’exercice psychanalytique doit permettre l’accès […].” (Tradução minha)
41 Ibid, p.24. Segue: “[...] l’arché hors du temps, une fondation immobile dont les traces sont encore
42 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001 (DEI),
respectivamente: “Je voudrais mettre au jour un inconscient positif du savoir”, p.877; “Une telle activité
de diagnostic comportait un travail d’excavation sous ses propres pieds [ ...]”, p.641; e “Et c’est le
sous-sol de notre conscience moderne de la folie que j’ai voulu interroger”, p.528. (Tradução minha)
43 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,
savoir. Paris: Gallimard, 1969, p.15 (AS). Tradução brasileira: FOUCAULT, Michel. A arqueologia do
saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária: 2009, p.8.
46 AS, p.14. No original: “[...] l’histoire a changé sa position à l’égard du document: ele se donne pour
Herança kantiana
Ela não trata o discurso como documento, como signo de outra coisa,
como elemento que deveria ser transparente, mas cuja opacidade
importuna é preciso atravessar frequentemente para reencontrar,
enfim, aí onde se mantém à parte, a profundidade essencial; ela se
dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de
monumento. Não se trata de uma disciplina interpretativa: não busca
um “outro discurso” mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”. 51
Nessa passagem, fica claro que Foucault não crê numa essência profunda
discursiva a ser revelada, mas se atém ao que o discurso mesmo pode ser.
47 AS, p.14. Continuando: “[...] elle cherche à définir dans le tissu documentaire lui-même des unités,
des ensembles, des séries, des rapports.” Na tradução brasileira, p.7.
48 AS, p.14. Acrescentando: “[...] livres, textes, récits, registres, actes, édifices, institutions,
signe d’autre chose, comme élément qui devrait être transparent, mais dont il faut souvent traverser
l’opacité importune pour rejoindre enfin, là où elle est tenue en réserve, la profondeur de l’essentiel;
elle s’adresse au discours dans son volume propre, à titre de monument. Ce n’est pas une discipline
interprétative: elle ne cherche pas un “autre discours” mieux caché. Elle se refuse à être ‘allégorique’.”
Na tradução brasileira, p.157.
30
52 Ver em: PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque,
n. 48, novembre 2015, p.26.
53 Ibid., p.26.
54 DE I, p. 800. Em “Michel Foucault explique son dernier livre” [1969]: “Ce mot “archéologie” me gene
un peu, parce qu’il recouvre deux thèmes qui ne sont pas exactement les miens. D’abord l e théme du
commencement (archè en grec signifie commencement). [...] Ce sont toujours des commencements
relatifs que je recherche, plus de instaurations ou des transformations que des fondements, des
fondations. Et puis me gêne également l’idée de fouilles. [...] J’essaie au contraire de définir des
relations qui sont à la surface même des discours; je tente de rendre visible ce qui n’est invisible que
d’être trop à la surface des choses.” Na tradução brasileira, em Ditos e escritos II, p.145-6.
31
Diagnosticar
“Ciência do arquivo”
sur les discours, à la tâche d’entendre ce qui a été déjá dit.” Na Tradução brasileira, p.XIII.
57 Sobre “arquivo”, ver em DEI, p.527; em “Les mots et les choses”: “[...] il faut avoir à sa disposition
l’archive générale d’une époque à un moment donné.” E também, DEI p.623, em “Sur les façons
d’écrire l’histoire”: “[...] mon objet n’est pas le langage mais l’archive, c’est -à-dire, l’existence
accumulée des discours. L’archéologie, telle que je l’entends, n’est parente ni de la géologie (comme
analyse des sous-sols) ni de a généalogie (comme description des commencements et des suites),
c’est l’analyse du discours dans as modalité d’archive.”
32
énoncés comme des événements (ayant leurs conditions et leur domaine d’apparition) et des choses
(comportant leur possibilité et leur champ d’utilisation). Ce sont tous ces systèmes d’énonc és
(événements pour une part, et choses pour une autre) que je propose d’appeler archive.” Na tradução
brasileira, p.146:
60 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,
novembre 2015, p.28. Leia-se: “[…] l’archéologie foucaldienne assumait l’idée d’une transformation
radicale des cadres de la connaissance et de l’expérience.”
33
63 Leia-se: “On voit également que cette description du discours s’oppose à l’histoire de la pensée. [...]
L’analyse de la pensée est toujours allégorique par rapport au discours qu’elle utilise. Sa question est
infailliblement: qu’est-ce qui se disait donc dans ce qui était dit? L’analyse du champ discursif est
orientée tout autrement; il s’agit de saisir l’énoncé dans l’étroitesse et la singularité de son événement;
de déterminer les conditions de son existence, d’en fixer au plus juste limites, d’établir ses corrélation
aux autres énoncés qui peuvent lui être liés, de montrer quelles autres formes d’énonciation il exclut.
On ne cherche point, au-dessous de ce qui est manifeste, le bavardage à demi silencieux d’un autre
discours; on doit montrer pourquoi il ne pouvait être autre qu’il n’était, en quoi il est exclusif de tout
autre, comment il prend, au milieu des autres et par rapport à eux, une place que nul autre ne pourrait
35
occuper. La question propre à une telle analyse, on pourrait la formuler ainsi: quelle est donc cette
singulière existence, qui vient au jour dans ce qui se dit, – et nulle part ailleurs?, em FOUCAULT,
Michel. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.p.39-40 (AS). Tradução brasileira:
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária: 2009, em p.30-1.
64 Ver em Ibid., p.31-8. Trad., p.23-9.
65 FOUCAULT, Michel. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.p.33. Trad. brasileira, p.24.
36
66 No original: “En résumé, nous voici en présence de quatre critère qui permettent de reconnaître des
unités discursives qui ne sont point les unités traditionnelles (que ce soit le “texte”, l’“oeuvre”, la
“science”; ou que ce soit le domaine ou la forme du discours, les concepts qu’il utilise ou les choix qu’il
manifeste). Non seulement ces quatre critères ne sont pas incompatibles, mais ils s’appellent les uns
les autres: le premier définit l’unité d’un discours par la règle de formation de tous ses objets; l’autre
par la règle de formation de tous ses types syntaxiques; le troisième par la règle de formation de tous
ses éléments sémantiques; le quatrième par la règle de formation de toutes ses éventualités
opératoires.”, em FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. (DE
I), em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.747. Trad. brasileira
Ditos e Escritos Vol II, p.106.
67 Ver DE I, em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.740-2 e
Enunciados descritivos
medicina clínica como formulada no século XIX, por conta de que ela vem se
desfazendo desde o seu surgimento. Ou seja, ao olhar do médico em si, foram sendo
lentamente adicionados instrumentos, métodos de análise de registros, e outros
recursos descritos por Foucault numa redefinição do discurso clínico, reproduzida
abaixo.
69 DE I, em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.741. Trad. Vol II,
p.100-1.
70 DE I, em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.750. Trad. Vol II,
p.109.
71 AS, p.68. Trad., p.56.
39
acentua a maneira como a medicina clínica instaura um sistema de relações que não
estaria dado a priori, através das suas práticas discursivas. Ele reconhece que a
unidade do saber médico se dá por permitir a articulação dos diversos tipos de
discursos. As condições de possibilidade para isto estariam ligadas a elementos que
ele tentou identificar, pontuados abaixo.72
Status do médico
É o médico quem ocupa o lugar reconhecido por competência e por direito para
proferir os discursos (segundo os critérios das normas pedagógicas ou das
regulamentações e limitações legais). Além disso, seu lugar compreende estar
inserido em um sistema de relações com outros indivíduos que têm status próprios
em diferentes instituições ou corpos profissionais – políticos, jurídicos e religiosos.
Nesse sistema de relações o médico cumpre “divisão das atribuições, subordinação
hierárquica, complementaridade funcional, demanda, transmissão e troca de
informações.”73 Seu status compreende também os papéis que deve desempenhar
quando requisitado por uma pessoa, profissionalmente, ou pela sociedade, em
funções reconhecidas pelo direito de decisão e de intervenção; porque ele deve ser o
responsável pela saúde dos indivíduos, da família, dos grupos ou da população.
Foucault conclui que o status do médico é bastante singular dentro da sociedade, não
sendo intercambiável com outros profissionais. Portanto, o discurso que ele profere é
indissociável da sua personagem, definida por seu status, o qual lhe dá o direito de
proferi-lo, e através dele “reivindicar para si o poder de conjurar o sofrimento e a
morte.”74
Lugares institucionais
adotar registros sobre a frequência das doenças e o seu processo de evolução, a fim
de analisar as oportunidades para uma forma homogênea de abordagem, portanto, a
estatística e a documentação tiveram crescente importância; (3) o laboratório foi
integrado à prática médica, adotando-se as normas experimentais da física, química
e biologia. Numa conclusão importante, na qual Foucault resume as modificações
ocorridas no século XIX, o hospital será: “o local de aparecimento da doença, não
mais como espécie singular que desdobra seus traços essenciais sob o olhar do
médico, mas como processo intermediário com seus marcos significativos, seus
limites, suas oportunidades de evolução.”75 É, portanto, através desses locais,
principalmente do hospital, que a doença se transforma em um meio para a atuação
das práticas discursivas.
Situação ocupada pelo sujeito em relação aos objetos e aos diversos domínios.
75AS, p.70-1. Trad., p.58. Leia-se: “{l’hôpital devient] le lieu d’apparition de la maladie, non plus
comme espèce singulière déployant ses traits essentiels sous le regard du médecin, mais comme
processus moyen avec ses repères significatifs, ses limites, ses chances d’évolution.”
41
do doente, sendo analisada inicialmente pelo olhar médico, e logo em seguida, com
auxílio de instrumentos ópticos, técnicas de exploração do corpo, análises estatísticas
e laboratoriais, experimentações e outros. A doença também se dispersou em uma
série de domínios, levada pelas situações relacionadas às funções do médico na
sociedade.
76AS, p.93, lê-se: “Ces options [les stratégies] […] ce sont des manières réglées (et descriptibles
comme telles) de mettre en œuvre des possibilités de discours. ” Trad., p.77.
42
77 Em AS, p.74, lê-se: “Dans l’analyse proposé, les diverses modalités d’énonciation au lieu de
renvoyer à la synthèse ou à la fonction unifiante d’un sujet, manifestent sa dispersion. [Note. A ce
titre, l’expression de “regard médical” employée dans Naissance de la Clinique n’était pas très
heureuse.] Aux divers statuts, aux divers emplacements, aux diverses positions qu’il peut occuper ou
recevoir quand il tient un discours. A la discontinuité des plans d’où il parle. Et si ces plans sont reliés
par un système de rapports, celui-ci n’est pas établi par l’activité synthétique d’une conscience
identique à soi, muette et préalable à toute parole mais par la spécificité d’une pratique discursive. [...]
plutôt un champ de régularité pour diverses positions de subjectivité.” Trad., p.61
78 AS, p.74. Trad., p.61. Lê-se: “Il est un espace d’extériorité où se déploie un réseau d’emplacements
distincts”
43
(2) Olhar médico e seus deslocamentos: trata-se também das práticas discursivas e
do seu funcionamento, das escolhas, das decisões, das regularidades, das novas
racionalidades práticas sobre o corpo. A serem abordadas no capítulo IV.
(3) Dispersão das práticas discursivas: quais são as relações discursivas, quais são
as relações sociais em que o médico participa? Quais são as funções preparadas para
os médicos, quais instituições o reclamam? E também, o que bloqueia, anula, reduz
o discurso médico? São questões investigadas no capítulo VI.
79 FOUCAULT, Michel. Articles, préfaces, conférences. Oeuvres. Tome II. Bibliothèque de la Pléiade.
Paris: Gallimard, 2015.p.1279 (Qu’est-ce qu’un auteur?) (QA ?). Tradução brasileira, FOUCAULT,
Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e Escritos, vol. III. Tradução de
Inês Autran Dourado Barbosa. Organização de Manoel Barros da Motta. 2.ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006.p.287. No original: “Il s’agit de retourner le problème traditionnel. Ne plus
poser la question : comment la liberté d’un sujet peut-elle s’insérer dans l’épaisseur des choses et lui
donner sens, comment peut-elle animer, de l’intérieur, les règles d’un langage et faire jour ainsi aux
visées qui lui sont propres ? Mais poser plutôt ces questions : comment, selon quelles conditions et
sous quelles formes quelque chose comme un sujet peut -il apparaître dans l’ordre des discours ?
Quelle place peut-il occuper dans chaque type de discours, quelles fonctions exercer, et en obéissant
à quelles règles ? Bref, il s’agit d’ôter au sujet (ou à son substitut) son rôle de fondement originaire, et
de l’analyser comme une fonction variable et complexe du discours. ”
80 Ver em MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2009.p.156-62.
44
quadro das espécies, sendo que esse quadro nosológico era o meio de formalizar um
diagnóstico. Era preciso articular os achados concomitantes e encontrar homologias
para concluir a classificação. Quais eram as configurações primárias das doenças?
No primeiro capítulo de NC, “Espaços e Classes”, Foucault identifica quatro: (1) pelo
desenrolar dos fenômenos mórbidos, que eram fundados historicamente, e não por
causa e efeito; (2) por analogia ou parentesco das sensibilidades e dos movimentos
que se estreitam e se repetem levando a uma identidade; (3) pela ordem racional
segundo as leis naturais; (4) pelas espécies naturais e ideais. O paciente ou o médico,
contudo, poderiam perturbar a experiência ideal da doença. O paciente devia ser
abstraído, como um acidente na expressão da doença a ser decifrada; e o médico
dirigia sua atenção não ao corpo concreto do doente, mas à rede de combinações que
ficava diante dele e ao seu histórico, para reconhecer a configuração essencial da
doença e saber a hora certa de agir, nem cedo, nem tarde.
Foucault tenta mostrar que o plano da doença não é exatamente o corpo, mas
um espaço ideal em que estavam representadas as afecções e onde se desenrolava
47
palavras. No extrato 1), vemos um médico como Cabanis diagnosticar a pleurisia, mas
bem poderia ser a tuberculose, utilizando o método dos signos sintomáticos. Em
seguida, nos extratos 2) e 3), para o estabelecimento do diagnóstico, fora preciso
encontrar um sinal patognomônico ao examinar o doente, qual era perceber um som
distinto na ausculta do tórax, de Bayle a Laënnec. Enfim, nos extratos 4) e 5), com
Bichat, as próprias lesões mórbidas características é que significaram a doença, assim
entrelaçando a vida e a morte num mesmo ato de percepção.
2) Foi aplicando esse princípio [da tipologia das alterações dos tecidos
de Dupuytren] que Bayle pode seguir totalmente a evolução da tísica,
reconhecer a unidade de seus processos, especificar suas formas e
distingui-la de afecções, cuja sintomatologia pode ser semelhante,
mas que respondem a um tipo absolutamente diferente de alteração.
A tísica se caracteriza por uma “desorganização progressiva” do
pulmão, que pode tomar uma forma tuberculosa, ulcerosa, calculosa,
granulosa com melanose, ou cancerosa; e não se deve confundi-la
com a irritação das mucosas (catarro), nem com a alteração das
secreções serosas (pleurisia), nem sobretudo com uma modificação
que também ataca o pulmão, mas sob a forma de inflamação: a
peripneumonia crônica.82
81 NC, p.120. Trad., p.131. Leia-se : “Un homme tousse ; il crache du sang ; il respire avec difficulté ;
son pouls est rapide et dur ; sa température s’élève : autant d’impressions immédiates, autant de
lettres, pour ainsi dire. Toutes réunies, elles forment une maladie, la pleurésie : ‘Mais qu’est-ce donc
qu’une pleurésie ?... C’est le concours de ces accidents qui la constituent. Le mot pleurésie ne fait
que les retracer d’une manière plus abrégée. La ‘pleurésie’ n’emporte pas avec soi plus d’être que le
mot lui-même ; elle ‘exprime une abstraction de l’esprit’ ; mais, comme le mot, elle est une structure
bien définie, une figure multiple ‘ dans laquelle tous ou presque tous les accidents se trouvent
combinés. S’il en manque un ou plusieurs, ce n’est point la pleurésie, du moins la vraie pleurésie.’”
Foucault está citando Cabanis, Du degré de certitude, 3ª ed., Paris, 1819, p.86.
82 NC, p.154. Trad., p.166. Leia-se: “C’est en appliquant ce principe que Bayle a pu suivre de bout en
bout l’évolution de la phtisie, reconnaître l’unité de ses processus, spécifier ses formes, et la
distinguer d’affections dont la symptomatologie peut être semblable, mais qui répondent à un type
d’altération absolument différent. La phtisie est caractérisée par une ‘désorganisation progressive’ du
poumon, qui peut prendre une forme tuberculeuse, ulcéreuse, calculeuse, granuleuse, avec
mélanose, ou cancéreuse ; et on ne doit la confondre ni avec l’irritation des muqueuses (catarrhe) ni
avec l’altération de sécrétions séreuses (pleurésie), no surtout avec une modification qui attaque elle
aussi le poumon lui-même, mais sur le mode de l’inflammation : la péripneumonie chronique.”
Foucault está citando G.L. Bayle, Recherches sur la phtisie pulmonaire, 1810, p.12.
49
83 NC, p.163. Trad., p.176. Leia-se: “Bayle en 1810 avait été contraint de récuser successivement
toutes les indications séméiologiques de la phtisie: aucune n’était évidente ni certaine. Neuf ans plus
tard Laënnec auscultant une malade qu’il croyant atteinte d’un catarrhe pulmonaire doublé d’une
fièvre bilieuse a l’impression d’entendre la voix sortir directement de la poitrine, et ceci sur une petite
surface d’un pouce carré environ. Peut-être était-ce là l’effet d’une lésion pulmonaire, d’une sorte
d’ouverture dans le corps du poumon. Il retrouve le même phénomène chez uns vingtaine de
phtisique ; puis il le distingue d’un phénomène assez voisin qu’on peut constatez chez les
pleurétiques : la voix semble également sortir de la poitrine, mais elle est plus aiguë qu’au naturel :
elle semble argentine et chevrotante. Laënnec pose ainsi la ‘pectoriloquie’ comme seul signe
pathognomonique certain de la phtisie pulmonaire, et ‘l’égophonie’, comme signe de l’épanchement
pleurétique.” Foucault está citando Laënnec, Traité de l’auscultation médiate, Paris, 1819, t I.
84 NC, p.140. Trad., p.152-3. Leia-se: “Le cours symptomatique de la phtisie pulmonaire donne : la
toux, la difficulté de respirer, le marasme, la fièvre hectique, et parfois des expectorations purulentes ;
mais aucune de ces modifications visibles n’est absolument indispensable (il y a des tuberculeux qui n
toussent pas) ; et leur ordre d’entrée en scène n’est pas rigoureux (la fièvre peut apparaître tôt ou ne
déclencher qu’au terme de l’évolution). Un seul phénomène constant, condition nécessaire et
suffisante pour qu’il y ait phtisie : la lésion du parenchyme pulmonaire qui, à l’autopsie, ‘se révèle
parsemé de plus ou moins de foyers purulents. Dans certains cas, ils sont si nombreux que le p oumon
ne semble plus être qu’un tissu alvéolaire qui les contient. Ces foyers sont traversés par un grand
nombre de brides ; dans les parties voisines on trouve un endurcissement plus ou moins grand.’”
Foucault está citando X. Bichat, Anatomie pathologique, 1825, p.174.
50
85 NC, p.176. Trad., p.190. Leia-se: “Le Morbide autorise une perception subtile de la manière dont la
vie trouve dans la mort sa figure la plus différenciée. Le morbide, c’est na forme raréfiée de la vie ; en
ce sens que l’existence s’épuise, s’exténue dans le vide de la mort ; mais en cet autre sens
également, qu’elle y prend son volume étrange, irréductible aux conformités et aux habitudes, aux
nécessités reçues ; un volume singulier, que définit son absolue rareté. Privilège du pht isique : jadis
on contractait la lèpre sur fond des grands châtiments collectifs ; l’homme du XIXe siècle devient
pulmonaire en accomplissant, dans cette fièvre qui hâte les choses et les trahit, son incommunicable
secret. C’est pourquoi les maladies de poitrine sont de même nature exactement que celles de
l’amour : elles sont la passion, vie à qui la morte donne un visage qui ne s’échange pas. La mort a
quitté son vieux ciel tragique ; la voilà devenue le noyau lyrique de l’homme : son invisible vérité, son
visible secret.”
51
doentes nas escolas médicas e nos hospitais. Com isso, sua prática clínica
permanecia no nível teórico da análise das ideias, herdada de Condillac, e na
superfície dos sinais e sintomas. Cabanis não se aprofundou em buscar as causas
das doenças, nem se interessou pelas probabilidades matemáticas, diferentemente
de outros médicos, como Pinel, Corvisart e Bichat. Na sua coleção Rapports du
physique et du moral de l’homme, Cabanis criou ainda uma doutrina que procurava
desfazer a dualidade entre corpo e alma, detalhando as ligações nervosas entre os
órgãos e o cérebro, e descrevendo as influências recíprocas das sensibilidades e dos
pensamentos, do organismo e do ambiente exterior.86 A sua doutrina não foi adiante,
mas ele acabou sendo reconhecido como reformador da saúde pública e da
pedagogia médica.
87 NC, p.59-60. Trad., p.64-5. Foucault está citando Tissot, Mémoire pour la construction d’un hôpital
clinique, in Essai sur les études médicales, Lausanne, 1785.p.120-4. “La clinique n’est pas un
instrument pour découvrir une vérité encore inconnue ; c’est une certaine manière de disposer na
vérité déjà acquise et de la présenter pour qu’elle se dévoile systématiquement. La clinique est une
sorte de théâtre nosologique dont l’élève ne connaît pas, d’entrée de jeu, la chef. Tissot prescrit de la
lui faire longtemps chercher. Il conseille de confier chaque malade de la clinique á deux étudiants ; ce
sont eux, et eux seuls, qui l’examineront ‘avec décence, avec douceur, avec cette bonté qui est si
consolante pour ces pauvres infortunés.’ Ils commenceront par l’interroger sur sa patrie, et les
constitutions qui y règnent, sur son métier, ses maladies antérieures ; la manière dont celle-ci a
commencé, les remèdes pris ; ils feront l’investigation de ses fonctions vitales (respiration, pouls,
température), de ses fonctions naturelles (soif, appétit, excrétions), et de ses fonctions animales
(sens, facultés, sommeil, douleur) ; ils devront aussi lui ‘palper le bas-ventre pour constater l’état de
ses viscères’. Mais que cherchent-ils ainsi, et quel principe herméneutique doit guider leur examen ?
Quels sont les rapports établis entre les phénomènes cons tatés, les antécédences apprises, les
troubles et les déficits remarqués ? Rien d’autre que ce qui permet de prononcer un nom, celui de la
maladie. La désignation une fois faite, on en déduira aisément les causes, le pronostic, les indications
‘en se demandant : qu’est-ce qui pèche dans ce malade ? Qu’y a-t-il par là même à changer ?’. Par
rapport aux méthodes ultérieures d’examen, celle recommandée par Tissot n’est guère moins
méticuleuse, á quelques détails près. La différence de cette enquête avec ‘l’examen clinique’ est en
ceci qu’on n’y fait pas l’inventaire d’un organisme malade ; on y relève les éléments qui permettront de
mettre la main sur une clef idéale – chef qui a quatre fonctions puisqu’elle est un mode de
désignation, un principe de cohérence, une loi d’évolution et un corps de préceptes.”
53
88 NC, p.87. Trad., p.95-6, Foucault cita I.C.-L., Dumas, Éloge de Henri Fouquet, Montpellier, 1807,
apud A. Girbal, Essai sur l’spirit de la clinique médicale de Montpellier, Montpellier, 1858.p.18.
89 NC, p.88. Trad., p.96. Leia-se : “Tant de pouvoir, depuis le lent éclaircissement des obscurités, la
lecture toujours prudente de l’essentiel, le calcul de temps e des chances, jusqu’à la maîtrise du c oeur
et la confiscation des prestiges paternels, sont aut ant de formes à travers lesquelles s’instaure la
souveraineté du regard. Oeil qui sait et qui décide, oeil qui régit. ”
90 NC, p.89. Trad., p.97. Leia-se : “A ces niveaux, pas de partage à faire entre théorie et expérience,
ou méthodes et résultats ; il faut lire les structures profondes de la visibilité où le champ et le regard
son liés l’un à l’autre par des codes de savoir ; nous les étudierons dans ce chapitre sous leurs deux
formes majeures : la structure linguistique du signe, et celle, aléatoire, du cas.”
54
Foucault propõe três itens para explicar essa parte da nova ciência médica que se
baseia na sintaxe inteligível, na lógica da linguagem, enumerados a seguir.
Não existe mais uma essência patológica, a doença passou a ser a coleção de
sintomas que a compõem no corpo do doente. A doença é o todo, os sintomas são os
fenômenos ou signos que a constituem, os signos ingênuos de uma verdade exposta.
Portanto, reconstituir e analisar a linguagem dos signos patológicos é reconhecer a
natureza da doença; e realizar essa semiótica da doença é enunciar sua verdade.
91 NC, p.90. Trad., p.99. Leia-se : “La formation de la méthode clinique est liée à l’émergence du
regard du médecin dans le champ des signes et des symptômes”
92 NC, p.90.Trad., p.99. Leia-se : “Les symptômes constituent une couche primaire indissociablement
signifiante et signifiée”.
93 NC, p.91.Trad., p.100. Leia-se : “Par cette simple opposition aux formes de la santé, le symptôme
quitte se passivité de phénomène naturelle devient signifiant de la maladie, c’est -à-dire de lui-même
pris en sa totalité, puisque la maladie n’est que la collection des symptômes. ”
55
94 NC, p.92. Trad., p.101. Leia-se no original: “C’est l’intervention d’une conscience qui transforme le
symptôme en signe”.
95 NC, p.93. Trad., p.101. Leia-se: “Comment se fait cette opération qui transforme le symptôme en
élément signifiant, et que signifie précisément la maladie comme vérité immédiate du symptôme ? ”.
56
96 NC, p.93. Trad., p.101. Leia-se: “Par une opération qui se rend visible la totalité du champ de
l’expérience en chacun de ses moments, et en dissipe toutes les structures d’opacité”.
97 Ver em NC, p.93. Trad., p.102.
98 NC, p.93. Trad., p.102. No original: “En quoi il [le symptôme] n’est, au fond, que l’Analyse de
vérité”.
100 NC, p.94. Trad., p.103. Leia-se: “[...] La maladie doit être considérée comme un tout indivisible
depuis son début jusqu’à sa terminaison, un ensemble régulier de symptômes caractéristiques et une
succession de périodes”. Foucault está citando Ph. Pinel, Le médecine clinique (3ª ed., Paris, 1815),
introd. P.VII.
101 NC, p.94. Trad., p.103. Leia-se: “Il ne s’agit plus de donner de quoi reconnaitre la maladie, mais de
restituer, au niveau des mots, une histoire qui en couvre l’être total”.
57
Para definir, nas palavras de Foucault, essa forma de saber que ele mesmo
denominou “olhar médico” (e sobre o qual não se pode deixar de pensar que tenha
sido um modelo de saber nominalista e redutor), veja-se a seguir.
102 NC, p.95. Trad., p.104. Leia-se: “La description du clinicien, comme l’Analyse du philosophe,
profère ce qui est donné par la relation naturelle entre l’opération de conscience et le signe”.
103 NC, p.96. Trad., p.105. Leia-se: “Le regard du clinicien et la réflexion du philosophe détiennent des
pouvoirs analogues, parce qu’ils présupposent tous deux une structure d’objectivité identique : où la
totalité de l’être s’épuise dans les manifestations qui en sont le signifiant-signifié ; où le visible et le
manifeste se rejoignent en une identité au moins virtuelle ; où le perçu et le perceptible peuvent être
tout entiers restitués dans un langage dont la forme rigoureus e en énonce l’origine. Perception
discursive et réfléchie du médecin, et réflexion discursive du philosophe sur la perception viennent se
rejoindre en une exacte superposition, puisque le monde est pour eux l’analogon du langage”.
58
104NC, p.97. Trad., p.106. Leia-se: “A l’époque de Laplace, soit sous son influence, soit à l’intérieur
d’un mouvement de pensée du même type, la médecine découvre que l’incertitude peut être traitée,
analytiquement, comme la somme d’un certain nombre de degré de certitude isolables et susceptibles
d’un calcul rigoureux”.
59
Mas foi mesmo aí, num vazio de compreensão dos movimentos imprecisos da
natureza, que foi se estabelecendo uma nova técnica da percepção dos casos,
constituída para tentar dar uma armadura científica ao discurso médico. Seus
princípios são enumerados por Foucault em quatro itens.
1) “A complexidade de combinação”106
O dado mais simples adotado será o fato básico inicial, é sobre os elementos
simples que se repetem que serão realizados os cálculos combinatórios. Se antes se
partia das diversas formas de ser, para ascender à unidade mais simples e essencial,
na clínica dá-se o inverso. O curso de acompanhamento no tempo, será dos sintomas
simples à complexidade das combinações possíveis; e conhecer as doenças será
restituir o movimento pelo qual a natureza associa as variáveis. Foucault afirma que o
progresso do conhecimento passa a ter a mesma origem e se identifica igualmente
com a progressão da vida.
2) “O princípio da analogia”107
105 NC, p.97. Trad., p.106. Leia-se: “Par l’importation de la pensée probabilitaire, la médecine
renouvelait entièrement les valeurs perceptives de son domaine : l’espace dans lesquels devait
s’exercer l’attention du médecin devenait un espace illimité, constitué d’événements isolables dont la
forme de solidarité était de l’ordre de la série. […] La médecine ne se donne plus à voir le vrai
essentiel sous l’individualité sensible ; elle est devant la tâche de percevoir, et à l’infini, les
événements d’un domaint ouvert. C’est cela la clinique”.
106 NC, p.98. Trad., p.108. Leia-se: “La complexité de combinaison”.
107 NC, p.99. Trad., p.109. Leia-se: “Le principe de l’analogie”.
60
108 NC, p.101. Trad., p.111. Leia-se: “Le perception des fréquences”.
109 NC, p.102. Trad., p.112. Leia-se: “Dans, l’ombre, et sous un vocabulaire approché, des notions
circulent, où on peut reconnaître le calcul d’erreur, l’écart, les limites, la valeur de la moyenne. ”
110 NC, p.103. Trad., p.113. Leia-se: “Le calcul des degrés de certitude”.
111 NC, p.103. Trad., p.113. Leia-se: “Il s’agit d’un calcul qui, d’entrée de jeu, vaut à l’intérieur du
domaine des idées, étant á la fois principe de leur analyse en éléments constituants, et méthode
d’induction à partir des fréquences ; il se donne d’une façon ambiguë, comme décomposition logique
et arithmétique de l’approximation ”.
61
Foucault conclui que a clínica foi uma das primeiras aplicações da lógica da
análise na vida concreta, através dos modelos gramaticais e probabilísticos. Abriu-se
na medicina um campo de visibilidade matemático, formalizado e invocado, através
de uma “contribuição dos temas da formalização”; enquanto o modelo gramatical
permanecia implícito, na sombra, como uma “transferência das formas de
inteligibilidade”.112
No capítulo VII de NC, “Ver, Saber”, ele continua a delinear sua tese sobre a
percepção médica, abordando o método clínico nas práticas médicas, e também
mostrando suas fragilidades, as quais ele denomina “mitos epistemológicos”.
112NC, p.105. Trad., p.115-6. Leia-se: “Le modèle grammatical, acclimaté dans l’analyse des signes,
reste implicite et enveloppé sans formalisation au fond du mouvement conceptuel : il s’agit d’un
transfert des formes de l’intelligibilité. Le modèle mathématique est toujours explicite et invoqué ; il est
présent comme principe de cohérence d’un processus conceptuel qui s’est accompl i hors de lui : il
s’agit de l’apport de thèmes de formalisation.”
62
exercício da observação e compor uma verdade sintática, pela lógica das suas
operações analíticas.
O olhar médico era, portanto, “analítico” pois devia restituir como verdade o que
foi produzido segundo uma gênese, reproduzindo o que lhe foi dado como elemento
visível de composição. Por isso, Foucault afirma que a lógica era a base da arte de
observar; “seria a arte de estar em relação com as circunstâncias que interessam,
receber as impressões dos objetos como nos são oferecidas, e delas tirar as induções
que são suas justas consequências”.113 Foucault define-o, então, noutra aproximação
ao olhar clínico, como um ato perceptivo e analítico, que pretendia ser neutro e isento.
113 NC, p.109. Trad., p.119. No original: “En un mot, [l’art d’observer] serait l’art d’être en rapport avec
les circonstances qui intéressent, de recevoir les impressions des objets comme el les s’offrent à nous,
et d’en tirer les inductions qui en sont les justes conséquences.”
114 Philippe Pinel (1745-1826) era de uma família de médicos, mesmo tendo estudado teologia e
matemáticas, decidiu-se pela medicina e realizou sua formação em Toulouse e Montpellier. Pinel
fixou-se em Paris em 1778, e participou do movimento revolucionário. Tornou-se amigo de Cabanis,
com quem frequentava o salão dos Ideólogos, e partilhou com ele o pensamento científico da época,
baseado na experimentação e na análise filosófica. Pinel foi nomeado médico em Bicêtre, e depois
médico-chefe do Hospital Salpêtrière, em 1795. Ele publicou seu Tratado médico filosófico sobre a
alienação mental ou a mania em 1800. Esse livro teve várias traduções e exerceu grande influência
na psiquiatria, que estava se formando como especialidade médica. A terapêutica proposta por Pinel
para os doentes mentais era baseada no confinamento, no isolamento e na correção moral. O
confinamento em hospícios afastados visava, além de dar segurança à soc iedade, levar o louco a
ambientes onde pudesse ser observado e tratado. Esse local deveria ser calmo e ordenado, sem os
tumultos e os estímulos da vida cotidiana. O isolamento completo era indicado temporariamente para
aqueles excessivamente agitados e coléricos, ou como parte da terapia. Esperava-se a recuperação
da razão pela disciplina e pela repressão medida. O médico alienista deveria conduzir o tratamento
sob “cuja autoridade fosse inquestionável, devido à sua alta estatura moral, e que mesclasse
sabedoria, bondade e firmeza”. Uma personagem fundamental era o seu auxiliar, representado no
livro pelo vigilante-chefe de Bicêtre, Pussin, descrito como “firme, forte, sensato, criativo e
compassivo”. Somente a obtenção da permanente submissão a essas duas autoridades poderia levar
a quebrar das ideias viciosas do louco, conduzindo ao objetivo do tratamento, qual era corrigir os
erros da razão. Pinel também teve influência nos métodos da clínica médica por ter publicado obras
reconhecidas de nosografia e semiologia médica. Ele faleceu aos 81 anos, em Paris. Ver
“Apresentação” por Ana Maria Galdini Raimundo Oda e Paulo Dalgalarrondo em: PINEL, Philippe.
Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania. Tradução de Joice Armani Galli. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2007.
63
acreditava-se que a família era o local ideal para deixar que a doença seguisse seu
curso natural e se manifestasse em toda a sua verdade, agora se acreditava que em
casa ela possa estar mascarada pelos cuidados que cercam o doente. Ainda que a
casa constitua um “meio natural” onde se desenvolve a doença, a necessidade de
comparação entre os casos demanda um “meio neutro” como o hospital, uma vez que
agora o conhecimento médico se define em termos de frequência. As doenças
similares são agrupadas em enfermarias e podem ser observadas em todas as suas
variações de febres e flegmasias.
Era necessário, no entanto, fixar um método clínico pois o conjunto do que pode
ser observado, descrito, questionado e a conjunção destes poderia ser infinito. Pinel,
por exemplo, criticou dois métodos, o da Clínica de Edimburgo e o de Montpellier, que
sugeriam que se levantasse um número grande de sintomas e questões, tornando a
análise ilimitada e impossível. Quando permanecia simplesmente aberto aos domínios
da linguagem e do olhar, o domínio da clínica poderia não ter fim. Por isto, o método
clínico de Pinel procurava delimitar o lugar de encontro entre o médico e o paciente,
64
115 NC, p.112. Trad., p.122-7. Foucault se refere ao método delineado por Philippe Pinel em Medicine
clinique, Paris, 1802.
116 NC, p.112. Trad., p.122. No original: “L’alternance des moments parlés et des moments perçus
regard e le langage. ”
65
118 NC, p.113. Trad., p.124. No original: “Le travail n’est donc pas de mise en corrélation, mais de pure
et simple redistribution de ce qui était donné par une étendue perceptible dans un espace conceptuel
défini à l’avance. Il ne fait rien connaître ; il permet tout au plus de reconnaître. NC, p.114. Trad.,
p.125.
119 NC, p.114. Trad., p.125. No original: “L’ideal d’une description exhaustive”.
120 NC, p.114. Trad., p.125. Foucault se refere aos escritos de Philippe Pinel em Nosographie
No entanto, Foucault alerta que era um equilíbrio instável e precário, uma vez
que se apoiava no ilusório postulado de que: “todo o visível é enunciável e que é
inteiramente visível porque é integralmente enunciável”.124 Mesmo o modelo lógico
gramatical de Condillac não aceitava o estabelecimento de uma adequação total entre
o visível e o dizível, a filosofia dele ia muito mais na direção de uma lógica dos signos,
num procedimento de compor e decompor as noções geradas para calcular as
descobertas mais favoráveis.
122 NC, p.115. Trad., p.125-6. No original: “Décrire, c’est suivre l’ordonnance des manifestations, mais
c’est suivre aussi la séquence intelligible de leur genèse ; c’est voir et savoir en même temps, parce
qu’en disant ce qu’on voit, on l’intègre spontanément au savoir ; c’est aussi apprendre à voir puisque
c’est donner la clef d’un langage qui maîtrise le visible. ”
123 NC, p.116. Trad., p.127. No original: “[…] nous sommes au cœur de l’expérience clinique – forme
de manifestation des choses dans leur vérité, forme d’initiation à la vérité des choses. ”
124 NC, p. 116. Trad., p.128. No original: “Equilibre précaire [de l’expérience clinique], car il repose sur
un formidable postulat : que tout le visible est énonçable et qu’il est tout entier visible parce que tout
entier énonçable.“
125 NC, p. 117. Trad., p.128. No original: “Elle [la méthode clinique] redescend de l’exigence du calcul
au primat de la genèse, c’est-à-dire qu’après avoir cherché à définir le postulat d’adéquation du visible
à l’énonçable par une calculabilité universelle et rigoureuse, elle lui donne le sens d’une descriptibilité
67
totale et exhaustive. L’opération essentielle n’est plus de l’ordre de la combinatoire, mais de l’ordre de
la transcription syntactique. “
126 NC, p. 118. Trad., p.129. No original: “Le regard reprenait en son exercice souverain les structures
passo que o número de combinações possíveis dos sintomas será infinito, mesmo no
interior de uma mesma doença.
Assim como as palavras, as doenças não teriam outra realidade além da ordem
de sua composição. A doença é um nome. Nome, em dois sentidos, acrescenta
Foucault, “no sentido em que usam os nominalistas quando criticam a realidade
substancial dos seres abstratos e gerais”; e, noutro sentido que se aproxima da
filosofia da linguagem, “desde que a forma de composição do ser da doença é de tipo
linguístico”.129 Na redução nominalista, a doença não tem um ser, ela tem uma
configuração, por isso Cabanis afirmava que perguntar sobre a natureza da essência
de uma doença é tão incabível quanto perguntar sobre a natureza da essência de uma
palavra.
128 NC, p. 119. Trad., p.131. No original: “2. Le regard clinique opère sur l’être de la maladie une
réduction nominaliste. “
129 NC, p. 119-20. Trad., p.131. No original: “Et nom en un double sens: au sens dont usent les
nominalistes quand ils critiquent la réalité substantielle des êtres abstraits et généraux ; et en un autre
sens, plus proche d’une philosophie du langage, puisque la forme de composition de l’être de la
maladie est de type linguistique.“
130 NC, p. 120. Trad., p.132. No original: “3. Le regard clinique opère sur les phénomènes
que ele deveria esquadrinhar, descrever, dominar. O olhar seria o feixe de luz q ue
despertaria a objetividade das coisas, a visibilidade seria a fundadora das qualidades
dos objetos a conhecer e da linguagem descritiva. Essa reorganização formal do
pensamento científico fundada na percepção dos objetos é que tornou a experiência
clínica possível.
Foucault relata que essa nova racionalidade médica se esforçava por ser livre
das falsas interpretações, mantendo-se na estrita materialidade dos achados físicos,
baseando-se na observação e na lógica de uma linguagem descritiva e formal. De
fato, o método clínico organizou novas possibilidades para o saber médico através
dos registros dos casos e das séries, das comparações e do conhecimento indutivo
que isso permitiu, para verificar as hipóteses sobre as doenças. Contudo, Foucault
mostra que o método clínico também trouxe outras duas consequências.133
Primeiramente, ele menciona que esse novo discurso parecia redutor e surdo,
entende-se por isso que todas as dimensões da doença se reduziram à da visibilidade,
e a linguagem não era uma resposta ao que o doente falava, mas nascia da percepção
do médico. Essa nova racionalidade clínica seria uma fórmula empobrecida e pálida,
uma compreensão unilateral, talvez também desumana e impiedosa da doença e do
doente. Pode-se realçar como essa condição histórica de possibilidade do discurso
médico foi limitadora e presa ao espaço da visibilidade, um espaço finito, sem
mistérios. Percebe-se a construção de um saber positivista, fundamentado na
objetividade sobre o corpo. E não importa quão profundamente o olhar médico se dirija
às camadas corporais ou que ele o decomponha até suas partes mínimas, o princípio
de tal objetividade permanecerá o cerne da experiência médica. Esse
condicionamento limitou o que poderia ser dito a uma experiência limpa,
excessivamente luminosa e racional, talvez sem críticas, sem ficção, sem imaginação.
E desconsiderou outros tipos de experiências do corpo, aquelas que não seriam
visíveis ou dizíveis, talvez entre elas a solidão, o sofrimento, o isolamento, a
perplexidade e a incompreensão diante da doença e da morte.
E, numa segunda consequência, pode-se dizer que foi a primeira vez na história
do ocidente que um saber ligou o indivíduo concreto ao discurso da racionalidade. No
início dessa experiência nova, esteve o encontro entre um golpe de vista e um corpo
mudo, numa relação desequilibrada, não recíproca, que pretendia formar uma
observação científica. O método clínico se fundamentava na percepção clara e
deveria ser rigoroso, minucioso, descritivo, exaustivo e incessante. Compreende-se,
pela condução de Foucault, que a visibilidade se tornou o princípio científico que
funcionava nas pesquisas clínicas, e que os enunciados adquiriram a força de uma
verdade operatória sobre a doença. A fraqueza do método clínico foi a lógica da
linguagem, a sua força foi a apreensão do corpo.
72
1. Doença, corpo
espaço corporal”, em que Bichat levava em conta cada tecido como o elemento
primário para a análise do funcionamento e das alterações patológicas.134
134 NC, p. 128. Trad., p.140. No original: “La découverte majeure du Traité des membrane,
systématisée ensuite dans l’Anatomie générale, c´est un principe de déchiffrement de l’espace
corporel qui est à la fois intra-organique, interorganique et trans-organique.“
135 NC, p. 130. Trad., p.141-2. No original: “Il s’agit bien du même mode de perception que celui
emprunté par la clinique à la philosophie de Condillac : la mise à jour d’un élémentaire qui est en
même temps un universel, et une lecture méthodique qui, en parcourant les formes de la
décomposition, décrit les loi de la composition. Bichat est, au sens strict, un analyste : la réduction du
volume organique à l’espace tissulaire est probablement, de toutes les applications de l’Analyse, la
plus proche du modèle mathématique qu’elle s’était donnée. L’œil de Bichat est un œil de clinicien
parce qu’il donne un privilège épistémologique absolu au regard de surface.“
74
136 NC, p.125. Trad., p.136. No original: “Ouvrez quelques cadavres”, citando X. Bichat, Anatomie
générale, Prefácio, p.XCIX, Paris.
137 NC, p.130. Trad., p.142. No original: “D’où l’allure que prit à son départ l’anatomie pathologique :
celle d’un fondement enfin objectif, réel et indubitable d’une description des maladies ”.
76
material dos tecidos, passava a ser o estado real das lesões nas superfícies
perceptíveis dos órgãos.
Essa regra da comparação das lesões para sua caracterização foi levada ainda
mais longe, diz Foucault, foi dessa investigação que a lesão tecidual passou a ser
buscada para diagnosticar a doença. Esse foi um passo fundamental para
estabelecer a direção do diagnóstico: via vertical do sintoma para a lesão tecidual e
vice-versa, da superfície dos sintomas para a superfície dos tecidos, percepção que
penetrava no volume do corpo e estabelecia os vínculos significativos. É importante
reler o extrato abaixo:
138NC, p.134. Trad., p.146. No original: “A l’époque de Laënnec, Alibert, sur le modèle des chimistes,
tente d’établir une nomenclature médicale : les terminaisons en ose désignent les formes générales
de l’altération (gastroses, leucoses, entéroses), celles en ite désignent les irritations des tissus, celle
en rhée, les épanchements, etc. ”
77
139NC, p.138. Trad., p.151. No original: “Dans l’expérience anatomoclinique, l’œil médical doit voir le
mal s’étaler et s’étager devant lui à mesure qu’il pénètre lui-même dans le corps, qu’il s’avance parmi
ses volumes, qu’il en contourne ou qu’il en soulève les masses, qu’il descend dans ses profondeurs.
La maladie n’est plus un faisceau de caractères disséminés ici et là à surface du corps et liés entre
eux par des concomitances et des successions statistiquement observables ; elle est un ensemble e
formes et de déformations, de figures, d’accidents, d’éléments déplacés, détruits ou modifiés qui
s’enchaînent les uns aux autres selon une géographie qu’on peut suivre pas à pas. Ce n’est plus une
espèce pathologique s’insérant dans les corps, là où c’est possible ; c’est le corps lui-même devenant
malade.”
78
Em 1808, ele publicou sua Histoire des phlegmasies chroniques, em que fez
um retorno à ideia pré-clínica de que a febre e a inflamação dependiam do mesmo
processo patológico, contudo seguiu também o princípio tissular de Bichat, de que
havia a necessidade de encontrar a superfície do ataque orgânico. Sua teoria
simplificou a análise das febres, explicando as alterações inflamatórias próprias de
cada tecido, as formas de evolução e de transmissão local ou mais geral, às quais se
correlacionavam a sintomatologia. Para Foucault, nisso residiu a grande conversão
conceitual, que o método de Bichat tinha autorizado, mas ainda não esclarecido: é a
doença local que, generalizando-se, apresenta os sintomas particulares de cada
espécie, e quando tomada em sua forma geográfica primeira, a febre nada mais é do
que um fenômeno localmente individualizado com uma estrutura patológica geral.
140NC, p.188-9. Trad., p.204. Leia-se : “Broussais n’est que le point de convergence de toutes ces
expériences, la forme individuellement modelée de leur configuration d’ensemble.”
79
Foucault afirma que houve uma reorganização do olhar médico porque desde
Bichat e a partir de Traité des membranes (1799), o princípio de visibilidade era a
regra absoluta e a localização constituía apenas sua consequência; mas com
Broussais, a ordem se inverteu: porque a doença é local, ela é, de maneira
secundária, visível.
141 NC, p.194. Trad., p.209. No original: “Alors – et c’est là la grande découverte de 1816 – disparaît
l’être de la maladie. Réaction organique à un agent irritant, le phénomène pathologique ne peut plus
appartenir à un monde où la maladie, dans sa structure particulière, existerait conformément à un type
impérieux, qui lui serait préalable, et en qui elle se recueillerait, une fois écartés les variations
individuelles et tous les accidents sans essence ; il est pris dans une trame organique où les
structures sont spatiales, les déterminations causales, les phénomènes anatomiques et
physiologiques. La maladie n’est plus qu’un certain mouvement complexe des tissus en réaction à
80
une cause irritante : c’est là toute l’essence du pathologique, car il n’y a plus ni maladies essentielles,
ni essences des maladies”.
142 NC, p.125. Trad., p.211. No original: “Cette dissolution de l’ontologie fébrile, avec les erreurs
qu’elle a comportées (à une époque où la différence entre méningite et typhus commençait à être
perçue clairement), est l’élément le plus connu de l’analyse”.
81
Foucault, em As palavras e as coisas (MC, Les mots e les choses), afirma que
existe em cada época um solo geral do pensamento que torna possível os
conhecimentos e o modo de ser daquilo que se sabe.143 É um espaço comum, em que
os saberes existem em dispersão, em jogos simultâneos, em redes de elementos
confluentes ou contraditórios. Foucault denomina esse espaço de episteme. As
epistemes são formadas pela singularidade e pelo acaso da convergência dos
acontecimentos históricos de cada época. O nível da episteme moderna é constituído
pelas positividades, que são campos de formações discursivas mais ou menos
delimitados em torno das regularidades formais, das relações temáticas, dos
conceitos ou das opiniões no interior dos temas. É, por exemplo, a positividade do
discurso médico, que o caracteriza como uma área de saber, conforme já foi abordado
neste trabalho no capítulo II.
143 FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. (Les
mots et les choses) (MC)
82
capítulo, Foucault expia essa figura do homem, porque pressente que ela está se
dissolvendo, pois é apenas um reflexo pálido dos seres humanos, e que vem sendo
colocado em cheque pelo “impensado”. Para acessar o que seria o “impensado”, é
preciso rever que, na investigação de Foucault, aparecem dois tipos de duplos do
homem: um, da representação externa que se faz do objeto-sujeito homem pelas
positividades; e o outro tipo, o duplo gêmeo de si mesmo, que se manifesta fraterno,
obscuro, ora confuso, ora ridente, e insiste no que deixou de ser pensado no discurso
das ciências do homem. Embora Foucault também tenha procurado investigar certos
“saberes do impensado”, supostas “contraciências”, que pareciam se opor aos da
finitude, porque elas se dirigiam a estruturas inconscientes que provinham do desejo,
da palavra e da ação – os casos da psicanálise, da linguística e da etnologia, essa
aposta não prosperou.
Neste trabalho, contudo, para abordar o tema da morte em NC, talvez seja
preciso se remeter aos significados da finitude e do impensado em MC. Deve-se
perguntar: NC traria, nos capítulos centrais, a descrição exemplar dessa analítica da
finitude? Quais estatutos da morte se condensam em NC? Parecem ser os
significados epistemológicos e as experiências poéticas. Então, vai-se tentar seguir
entrelaçando as descrições de Foucault nos dois livros.
144 Ver em FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.
(Les mots et les choses) (MC), chapitre “L’homme et ses doublés”, I. Le retour du langage, p.1365-9.
Trad., p.417-23.
145 Ver em MC, p.1364 Trad., p.415.
84
A distância que separa o discurso médico e a literatura, entre o sujeito que diz
a verdade sobre o doente e o discurso sem sujeito, seria possível superá-la para
construir uma nova experiência? Para Foucault, em MC, essa questão vem sendo
formulada, mas ele não saberia respondê-la. O reencontro desses dois jogos de
linguagem seria uma questão da atualidade, cujos desfechos talvez possam ser um
novo pensamento ou um fechamento sobre o mesmo anterior. 147
148NC, p.145. Trad., p.157. No original: “Dans la mort naturelle, la vie animale s’éteint la première :
extinction sensorielle d’abord, assoupissement du cerveau, affaiblissement de la locomotion, rigidité
de muscles, diminution de leur contractilité, quasi-paralysie des intestins et finalement immobilisation
du cœur. ” Foucault está citando X. Bichat em Recherches physiologiques sur la vie et la mort, Paris,
an. VIII, p.242.
88
Foucault conclui que “os processos da morte, que não se identificam nem com
os da vida nem com os da doença, servem, no entanto, para esclarecer os fenômenos
orgânicos e seus distúrbios.”149 É na morte natural e na cronologia natural de
desprendimento de cada órgão da vida, que “o sistema das dependências funcionai s
e das interações normais ou patológicas se esclarece, [...] a morte pode servir de
ponto de vista sobre o patológico e permitir fixar suas formas ou suas etapas.”150
149 NC, p.145. Trad., p.158. No original : “Les processus de la mort que ne s’identifient ni à ceux de la
vie ni à ceux de la maladie sont de nature pourtant à éclairer les phénomènes organiques e leurs
perturbations.”
150 NC, p.145. Trad., p.158. No original : “Le système des dépendances fonctionnelles e des
interactions normales ou pathologiques s’éclaire aussi de l’analyse de ces morts en détail […] elle
peut servir de point de vue sur le pathologique et permettre d’en fixer les formes ou les étapes. ”
151 NC, p.146. Trad., p.159. No original : “La vie, la maladie et la mort constituent maintenant une
trinité technique et conceptuelle. La vieille continuité des hantises millénaires qui plaçaient dans la vie
la menace de la maladie, e dans la maladie la présence approchée de la mort est rompue : a la place,
une figure triangulaire s’articule, dont le sommet supérieur es définit par la mort. […] Au lieu d’être ce
qu’elle avait été si longtemps, cette nuit où la vie s’efface, où la maladie même se brouille, elle est
douée désormais de ce grand pouvoir d’éclairement qui domine et met à jour à la fois l’espace et le
temps de la maladie… ”
89
Foucault apenas cita o vitalismo de Bichat e sua célebre frase de que a vida é
aquilo que se opõe à morte. Embora, de fato, Bichat tenha estabelecido uma
especificidade da vida fora do domínio inorgânico e dos fenômenos simplesmente da
física, ele, ainda assim, definiu a vida na experiência da morte. Parece que Foucault
prefere crer que Bichat desenvolveu um “mortalismo”.152 O vitalismo apenas invocaria
a distância que separa o discurso clínico e a morte, esta que é o duplo impensado da
vida, porque o saber da verdade sempre fora do domínio da vida, e transpor o limite
da morte “é uma tarefa difícil e paradoxal para o olhar médico”.153 Se antes a morte
era o temor sombrio às costas do médico, o olhar precisava agora girar sobre si
mesmo e pedir que a morte esclarecesse sobre a vida e a doença. No imaginário, a
vida se tornaria noite e a morte, claridade.
152 NC, p.148. Trad., p.161. No original : “Le vitalisme apparaît sur le fond de ce ‘mortalisme’. ”
153 NC, p.148. Trad., p.162. No original : “Sans doute était-ce une tâcha bien difficile et paradoxale
pour le regard médical que d’opérer une telle conversion.”
154 NC, p.149. Trad., p.162. No original : “La nuit vivante se dissipe à la clarté de la mort. ”
155 NC, p.169. Trad., p.183. No original : “La structure à la fois perceptive et épistémologique qui
commande l’anatomie clinique et toute la médicine dérivant d’elle, c’est celle de l’invisible visibilité. ”
90
internas. Enfim, porque a individualidade dos casos, antes invisível, se tornava visível,
pois a abertura do cadáver explicava as verdadeiras particularidades das lesões de
cada um. Outra vez, Foucault utiliza o exemplo da tuberculose, citando Laënnec e o
caso de uma mulher com tísica pulmonar em forma de lesões pleurais fibrosas que
provocaram alterações circulatórias simulando um quadro cardíaco, mas cujo
diagnóstico específico pode ser esclarecido após a morte.156
Foucault define o olhar médico tal “um olhar local e circunscrito”, “olhar limítrofe
do tato e audição”, “olhar absoluto e integrador”, “olho que se põe sobre a fundamental
visibilidade das coisas”, “olho absoluto do saber”.157 O olhar que domina o campo do
saber possível e se associa ao poder da morte.
É importante concluir que, para ele, a individualização passou a ser dada pelo
modo de adoecer, pelo patológico, ao se colocar a vida em referência ao mórbido, ao
ter a morte como a disposição subliminar. Explica-se, então, o privilégio do tísico na
modernidade: ele era a vida a quem a doença e a morte transmitiam uma fisionomia,
porque elas estavam visíveis em seu núcleo lírico. O entrelaçamento epistemológico
e poético em NC mostra o que existia nos arquivos médicos e nas imagens poéticas,
expérience, et selon toute son épaisseur, pour offrir enfin à une perception scientifique ce qui pour elle
était resté si longtemps l’invisible visible – interdit et imminent secret : le savoir de l’individu.”
91
espaço obscuro dos seus corpos. E a morte é o limite inerente à vida, é a finitude
essencial dos seres vivos. Vida e morte estão interligadas.
Desta forma, entende-se porque Foucault suspeita dessa noção de vida, ela é
um ponto de articulação obscuro, inacessível, indefinido, e que se expressa no limite
que impõe aos seres, na sua finitude mortal. Foucault adverte, o pensamento
contemporâneo deve redescobrir o que foi esquecido, deve puxar os fios ocultos para
desatar essa trama sombria que formou a experiência da atualidade.
Ele afirma que essa analítica da finitude deixou um vazio, que é como uma
fenda, denominada “impensado”, um espaço inerente ao próprio pensamento
moderno. É justamente nesse espaço vazio, na distância que separa a finitude e o
impensado, que enfim seria possível pensar novamente. Em MC, o impensado
aparece em dois sentidos, o primeiro é negativo, seria o esquecimento estratégico em
proveito da repetição do mesmo, e também um modo de ação que instala obstáculos
para um pensamento por vir. Por exemplo, esquece-se que a morte geminou no
pensamento moderno sobre a vida; ou se instala um domínio finito da vida, como se
a existência se repetisse ou como se o saber não fosse imprevisível. No segundo
sentido, o impensado é positivo, vem do ainda não-pensado, do não-conhecido, do
novo, explicado por Foucault, no extrato a seguir.
movimento rijo, essa figura dele mesmo que se lhe apresenta sob a
forma de uma exterioridade extraordinária? Como pode o homem ser
essa vida cuja rede, cujas pulsações, cuja força encoberta
transbordam indefinidamente a experiência que dela lhe é
imediatamente dada? Como pode ele ser esse trabalho, cujas
exigências e cujas leis se lhe impõem como um rigor estranho? Como
pode ele ser o sujeito de uma linguagem que, desde milênios, se
formou sem ele, cujo sistema lhe escapa, cujo sentido dorme um sono
quase invencível nas palavras que, por um instante, ele faz cintilar por
seu discurso, e no interior da qual ele é, desde o início, obrigado a
alojar sua fala e seu pensamento, como se estes nada mais fizessem
senão animar por algum tempo um segmento nessa trama de
possibilidades inumeráveis?165
165 MC, p.1387. Trad., p.445-6. No original : “La question n’est plus : comment peut-il se faire que
l’expérience de la nature donne lieu à des jugements nécessaires ? Mais : comment peut-il se faire
que l’homme pense ce qu’il ne pense pas, habite ce qui lui échappe sur le mode d’une occupation
muette, anime, d’une sorte de mouvement figé, cette figure de lui-même qui se présente á lui sous la
forme d’une extériorité têtue ? Comment l’homme peut-il être cette vie dont le réseau, dont les
pulsations, dont la force enfouie débordent indéfiniment l’expérience qui lui en est immédiatement
donnée ? Comment peut-il être ce travail dont les exigences et les lois s’imposent à lui comme une
rigueur étrangère ? Comment peut-il être sujet d’un langage que depuis des millénaires s’est formé
sans lui, dont le système lui échappe, dont le sens dort d’un sommeil presque invincible dans les mots
qu’il fait, un instant, scintiller par son discours, et á l’intérieur duquel il est, d’entrée de jeu, contraint de
loger sa parole et sa pensée, comme si elles ne faisaient rien plus qu’animer quelque temps un
segment sur cette trame de possibilités innombrables ?”
166 MC, p.1391. Trad., p.451. No original : “toute la pensée moderne est traversée par la loi de penser
l’impensé”.
95
167COLOMBEL, Jeannette. Michel Foucault, La clarté de la mort. Paris: Editions Odile Jacob,
1994.p.49. Leia-se : “Car l’incertitude est insurmontable : on n’a pas à vouloir la dépasser, elle ne
fonctionne pas sous le signe de l’alternative”.
97
p.50. Leia-se : [des énoncés, des pratiques, des espaces d’ordre] émergent toujours d’un
168 Ibid.,
désordre et d’une dispersion tels que les vérités auxquelles on parvient sont fragmentaires et en
suspens”.
98
Nas várias citações que Foucault faz dos decretos acerca dos hospitais –
fechamento, abertura, projetos, reformas, estatutos, etc. – ele usa o calendário
republicano francês, criado durante a Revolução.169 As numerosas propostas, por
conta do vai e vem das resoluções até que o hospital se tornasse a instituição como
se reconhece hoje, faz com que o leitor embaralhe as datas republicanas. É curioso
sentir esse incômodo da insistência em datas descompassadas da ordem habitual,
até se perceber que essas citações têm mesmo o intuito de demarcar o período da
intensa negociação das decisões acerca dos hospitais. E, ainda, que fora preciso o
deslocamento do olhar clínico, que aconteceria logo em seguida, para que as escolas
de medicina aí estabelecessem seu domínio. Isto porque, antes disso, o hospital
abrigava os pobres, os doentes sem família ou sem recursos, era somente um lugar
de caridade, de assistência ou de despejo
No capítulo III de NC, “O Campo Livre”, Foucault relata que se estabeleceu uma
oposição política entre a medicina clássica das espécies patológicas e a nova
medicina do espaço social. O motivo era que se tentava neutralizar tudo o que
169Os revolucionários franceses quiseram criar uma nova divisão cronológica dos anos, meses e
dias, que fosse laica e livre: o calendário republicano ou revolucionário. Esse calendário se iniciou em
22 de setembro de 1792 (1º dia do ano I) e se manteve até 31 de dezembro de 1805, quando o
calendário gregoriano foi reestabelecido por Napoleão I. Os meses do ano eram chamados de
Vendémiaire, Brumaire, Frimaire, Nivôse, Pluviôse, Ventôse, Germinal, Floréal, Prairial, Messidor,
Thermidor, Fructidor.
100
médicales depuis 1789 jusqu’à Thermidor an II, est celui de la souveraine liberté du vrai : la violence
majestueuse de la lumière, qui est à elle-même son propre règne, abolit le royaume obscur des savoir
privilégies et instaure l’empire sans cloison du regard.”
101
groupées par ordre, genres et espèces, en un domaine rationalisé qui restitue la distribution originaire
des essences.”
178 NC, p.42. Trad., p.45. Leia-se : “a maladie rencontre là son haut lieu, et comme la résidence forcée
de sa vérité.”
179 Cf. NC, p.42. Trad., p.45.
103
observação: um olhar que a toma junto das misérias sociais; e outro olhar que a “isola
para melhor circunscrevê-la em sua verdade de natureza.”180
Pelo lado das corporações médicas, desde 1707, a prática e a formação dos
médicos tinham sido regulamentadas pelos decretos de Marly, pois já existia uma
preocupação com os charlatãos, que exerciam a medicina irregularmente, e com a
devida reorganização das faculdades de medicina.181 Mas, ao final daquele século, na
época da Revolução, o ensino médico recebera várias críticas, porque os charlatãos
continuavam aparecendo e as faculdades não asseguravam um ensino satisfatório.
Não havia um ensino prático, apenas teórico, fazendo com que o doutor tivesse que
seguir um prático renomado para se formar e, muitas vezes, isto era custoso. Como
resume Foucault a seguir.
180 NC, p.42. Trad., p.45. Leia-se : “La maladie est prise ainsi dans un double système d’observation :
il y a un regard qui la confond et la résorbe dans l’ensemble des misères sociales à supprimer ; et un
regard qui l’isole pour la mieux cerner dans sa vérité de nature.”
181 Decreto real de 18 de março de 1707, que reservava às faculdades francesas o direito de formar
os médicos que poderiam exercer a profissão em todo o seu território e estabelecia a reorganização
do ensino médico.
182 NC, p.45. Trad., p.49. Leia-se : “La Révolution se trouve donc en présence de deux séries de
revendications : les unes en faveur d’une limitation plus stricte du droit d’exercer ; les autres en faveur
d’une organisation plus rigoureuse du cursus universitaire. Or, les unes e les autres vont á l’encontre
104
Ele lembra novamente que, para que a nova experiência de ensino teórico de
medicina fosse possível, foi preciso retornar à crença ingênua da luz iluminadora do
olhar como fundadora de um novo começo para a verdade, conforme as teorias dos
ideólogos iluministas. Porque antes, a pedagogia se baseava na teoria de
representação clássica e no encadeamento das ideias.
Desde esse período, uma figura emblemática era o charlatão, contra o qual a
medicina e a política deveriam se unir para combater. Ele aparece, como se viu, sendo
um dos motivos da reforma hospitalar, cujo objetivo seria proteger o povo da
proliferação e dos efeitos dos “charlatãos mistificadores”.185 Neste capítulo, essa
figura retorna, como um dos motivos da reforma e do controle do ensino da medicina.
186 NC, p.67. Trad., p.73. Foucault está citando A. Girbal, Essai sur l’esprit de la clinique médicale de
Montpellier, Montpellier, 1858, p.7-11. Leia-se : Montpellier offre un exemple, assez rare sans doute,
de rencontre entre ces diverses formes de réaction : on y voit apparaître à la fois la nécessité de
former des médecins pour l’armée, l’utilisation des compétences médicales consacrées par l’Ancien
Régime, l’intervention des assemblées populaires, celle aussi de l’administration et l’esquisse
spontanée d’une expérience clinique. Baumes, ancien professeur á l’université, avait été désigné, à la
fois à cause de son expérience et de ses opinions républicaines pour exercer à l’hôpital militaire de
Saint-Eloi. A ce titre, il devait faire un choix parmi les candidats aux fonctions d’officiers de santé ;
108
Nesse local exemplar de Montpellier, escola que formou clínicos como Pinel e
Bichat, vê-se o exemplo do entrecruzamento dos interesses sociais, institucionais,
técnicos e científicos que esboçavam o nascimento da medicina clínica. Foucault
explica que ali se formava um campo médico “misto” e “fundamental”. Misto porque
teoria e prática se encontram, e fundamental, porque não se tratava de um
conhecimento anterior demonstrado na prática hospitalar, mas de uma nova forma de
olhar o objeto do conhecimento médico e descobrir a verdade ao mesmo tempo em
que ensinava.
mais comme aucun enseignement n’était organisé, les élèves en médecine intervinrent auprès de la
société populaire ; et celle-ci, par une pétition, obtint de l’administration du district la création d’un
enseignement clinique à l’hôpital Saint-Eloi et celui-ci est attribué à Baumes. L’année suivante, en
1794, Baumes publie le résultat de ses observations et de son enseignement : ‘Méthode de guérir les
maladies suivantes qu’elles paraissent dans les cours de l’année médicinale.”
109
187 NC, p.68. Trad., p.74. Leia-se: “Il ne faut pas s’étonner si brusquement, à la fin de la Convention, le
thème d’une médecine tout entière organisée autour de la clinique, déborde celui, dominant jusqu’en
1793, d’une médecine restituée à la liberté. Il ne s’agit à vrai dire ni d’une réaction (bien que les
conséquences sociales en aient été généralement ‘réactionnaires’, ni d’un progrès (bien que le
médecine, comme pratique et comme science, en ait à plus d’un titre bénéficié) ; il s’agit de la
restructuration, dans un contexte historique précis, du thème de la ‘médecine en liberté’ : dans un
domaine libéré, la nécessité du vrai qui s’impose au regard va définir les structures institutionnelles et
scientifiques qui lui sont propres.”
188 NC, p.70. Trad., p.76. Leia-se: “La clinique devient donc un moment essentiel à la cohérence
scientifique, mais aussi à l’utilité sociale et à la pureté politique de la nouvelle organisation médicale ”.
110
189 NC, p.71. Trad., p.77. Leia-se: “A Paris, la ‘classe des commençants ’ étudie au premier semestre
l’anatomie, la physiologie, la chimie médicale, au second, la matière médicale, la botanique, la
physique : tout au cours de l’année, les élèves devront fréquenter les hôpitaux ‘pour y prendre
l’habitude de voir les malades, et la manière générale de les soigner’. Dans ‘la classe des
commencés’, on étudie d’abord l’anatomie, la physiologie, la chimie, la pharmacie, la médecine
opératoire, puis la matière médicale, la pathologie interne et externe ; au cours de cette seconde
année, les étudiants pourront, dans les hôpitaux, ‘être employés au service des malades’. Enfin, au
cours de la dernière année, on reprend les cours précédents, et, profitant de l’expérience hospitalière
déjà acquise, on commence les cliniques proprement dites. Les élèves sont répartis dans trois
hôpitaux où ils resteront quatre mois puis changeront. La clinique comprend deux parts : ‘Au lit de
chaque malade, le professeur s’arrêtera le temps nécessaire pour le bien interroger, pour l’examiner
convenablement ; il fera remarquer aux élèves les signes diagnostiques et les sympt ômes importants
de la maladie’; puis, à l’amphithéâtre, le professeur reprendra l’histoire générale des maladies
observées dans les salles de l’hôpital : il en indiquera les cause ‘connues, probables e caché es ’, il
énoncera le pronostics, et donnera les indications ‘vitales ’, ‘curatives’ ou ‘palliatives’. ”
111
Foucault percebe que o que estava em jogo implicitamente nesses debates era
o próprio exercício da medicina, tratava-se de um impasse político, mas também
conceitual, para definição da especificidade da profissão médica.191 Por exemplo, Vitet
propõe diante do Conselho dos Quinhentos, em linhas gerais, a necessidade de cinco
escolas de medicina, um conselho de saúde para se ocupar das epidemias e da saúde
da população, da seleção de professores e do exame prático de admissão.
“Encontram-se assim reunidos, pela primeira vez, em um quadro institucional único ,
os critérios do saber teórico e os de uma prática que só pode estar ligada à experiência
e ao hábito.”192
190 NC, p.74. Trad., p.80. Leia-se: “La même année, le 5 messidor, une autre société tient sa séance
inaugurale à Paris avec Alibert, Bichat, Bretonneau, Cabanis, Desgenettes, Dupuytren, Fourcroy,
Larrey e Pinel.”
191 Ver em NC, p.78. Trad., p.85.
192 NC, p.78. Trad., p.84. Leia-se: “Ainsi se trouvent réunis, pour la première fois, dans un cadre
institutionnel unique les critères du savoir théorique et ceux d’une pratique qui ne peut être liée qu’à
l’expérience et l’habitude. ”
112
193 Cabanis (1757-1808) desempenhou um papel central na medicina do fim do século XVIII na
França, por ter atuado nas instituições de ensino e nos hospitais, ter participado das resoluções sobre
a profissão médica, e integrado o círculo filosófico e político da época. Ele foi um exemplo de
personagem médica requisitada a exercer funções em domínios exteriores à medicina, pela
legitimidade dada ao seu discurso. Cabanis, no início da sua vida médica, ingressou no “Salão dos
Ideólogos”, na residência da viúva Helvétius, onde conviveu com pensadores da “Ideologia”, que
significava um conjunto de preceitos prestigiosos no período da Revolução e do Império franceses, e
pregava a Análise das ideias, pela observação cuidadosa dos fenômenos. Através desse círculo,
Cabanis entrou em contato com Condillac, Diderot, d’Alembert, Condorcet, Laplace, Mirabeau e Pinel,
entre outros. Por conta da sua publicação Observations sur les hôpitaux (1790), foi nomeado membro
da Comissão de Reforma dos Hospitais (1791-1793). Quando a Convenção organizou as Escolas
Centrais, em 1794, Cabanis foi nomeado professor de higiene. Em 1795, ele foi eleito membro do
Instituto Nacional da França, para as sessões de ciências morais. Na criação das Escolas de Saúde,
que sucederam ao fechamento temporário das Faculdades de Medicina em Paris, Montpellier e
Strasbourg, Cabanis tornou-se professor assistente da École Perfectionnement; em seguida,
assistente de Corvisart na cadeira de medicina interna, e depois professor titular da cadeira de
história da medicina e medicina legal. Em 1797, Cabanis foi eleito deputado para o Conselho dos
Quinhentos, instância legislativa da França revolucionária. Tendo aprovado o golpe de 18 Brumário,
com a dissolução do Diretório, foi então nomeado senador do Império. Mas acabou se afastando do
Senado, por deterioração da sua relação com Bonaparte. Ver em: CANGUILHEM, Georges. Cabanis,
Pierre-Jean-Georges. In: Complete Dictionary of Scientific Biography. 2008. Consultado em:
encyclopedia.com. 14 oct 2014.
194NC, p.79. Trad., p.86. Leia-se: “Toute personne qui exercera la médecine sans avoir les examens
des écoles ou sans être passée devant les jurys spéciaux sera condamnée à une amende et à la
prison en cas de récidive ”. Foucault está citando Cabanis, Rapport du Conseil des Cinq-Cents sur un
mode provisoire de police médicale, 4 de messidor, ano VI, p.12-18.
113
Foucault assinala que essa nova consciência coletiva foi um acontecimento que
mudou a percepção médica e, assim, tornou-se uma das condições de possibilidade
do saber médico moderno. Foi a medicina das epidemias que possibilitou o
fortalecimento deste espaço que vai da percepção do doente às medidas do Estado.
Neste momento, fica clara a emergência dessa consciência política, que aliás, dá
nome ao capítulo.
196 NC, p.26. Trad., p.27. Leia-se: “Et pourtant, au bout du compte, lorsqu’il s’agit de ces figures
tertiaires qui doivent distribuer la maladie, l’expérience médicale et la contrôle du médecin sur les
structures sociales, la pathologie des épidémies et celle des espèces se trouvent devant les mêmes
exigences: le définition d’un statut politique de la médecine, et la constitution, `’ l’échelle d’un état,
d’une conscience médicale, chargé d’une tâche constante d’information, de contrôle et de contrainte;
toutes choses qui ‘comprennent autant d’objets relatifs à la police qu’il y en a qui son proprement du
ressort de la médecine’ ”. Foucault está citando Le Brun, Traité historique sur les maladies
épidémiques, Paris, 1776, p.126.
197 NC, p.27-8. Trad., p.29. Leia-se: “La Société ne groupe plus seulement des médecins qui se
consacrent à l’étude des phénomènes pathologiques collectifs ; elle est devenue l’organe officiel d’
une conscience collective des phénomènes pathologiques ; conscience qui se déploie au niveau de
l’expérience comme au niveau du savoir, dans la forme cosmopolitique comme dans l’espace de la
nation. ”
118
200 NC, p.29-30. Trad., p.32. Leia-se: “Ce qui définit l’acte de la connaissance médicale dans sa forme
concrète, ce n’est donc pas la rencontre du médecin et du malade, ni la confrontation d’un savoir à
une perception ; c’est le croisement systématique de plusieurs séries s’informations homogènes les
unes et les autres, mais étrangères les unes aux autres – plusieurs séries que enveloppent un
ensemble infini d’événements séparés, mais dont le recoupement fait surgir, dans sa dépendance
isolable, le fait individuel. ”
201 NC, p.31. Trad., p.33. Leia-se: “On pose le problème de l’implantation des médecins dans les
campagnes; on souhaite un contrôle statistique de la santé grâce au registre des naissances et des
décès (qui devrait porter mention des maladies, du genre de vie, et de la cause de la mort, devenant
ainsi un état civil de la pathologie); on demande que les raisons de réforme s oient indiquées en détail
par le conseil de révision; enfin qu’on établisse une topographie médicale de chacun des
départements ‘avec des aperçus soignés sur la région, les habitations, les gens, les passions
dominantes, l’habillement, la constitutions du sol, le temps de leur maturité parfaite et le récolte, ainsi
que l’éducation physique et morale des habitants de la contrée’. ” Foucault está citando J.-B.
Demangeon, Des moyens de perfectionner la médecine, Paris, ano VII, p.5-9 ; cf. Audin Rouvière,
Essai sur la topographie physique et médicale de Paris . Paris, ano II.
120
202 NC, p.31. Trad., p.33. Leia-se: “Et comme s’il ne suffisait pas de l’implantation de médecin, on
demande que la conscience de chaque individu soit médicalement alertée ; il faudra que chaque
citoyen soit informé de ce qu’il est nécessaire et possible de savoir en médecine ”.
121
203 NC, p.36. Trad., p.39. Leia-se: “Si les sciences de l’homme sont apparues dans le prolongement
des sciences de la vie, c’est peut-être parce qu’elles étaient biologiquement sous-tendues, mais c’est
aussi qu’elles l’étaient médicalement: sans doute par transfert, importation et souvent métaphore, les
sciences de l’homme ont utilisé des concepts formés par les biologistes; mais l’objet même qu’elles se
donnaient (l’homme, ses conduites, ses réalisations individuelles et sociales) se donnait donc un
champ partagé selon le principe su normal et du pathologique. D’où le caractère singulier des
sciences de l’homme, impossibles à détacher de la négativité où elles sont apparues, mais liées aussi
à la positivité qu’elles situent, implicitement, comme norme. ”
204 Cf. DELAPORTE, François. Foucault, l’histoire et l’épistémologie. In: L’Herne – Foucault. Cahier
dirigé par Philippe Artières, Jean-François Bert, Frédéric Gros, Judith Revel. Paris: L’Herne, 2011.
p.335.
205 DELAPORTE, François. Foucault, l’histoire et l’épistémologie. In: L’Herne – Foucault. Cahier dirigé
par Philippe Artières, Jean-François Bert, Frédéric Gros, Judith Revel. Paris: L’Herne, 2011. p.338.
Leia-se: “On sait, par ailleurs, que Foucault trouve un des éléments constitutifs de la clinique dans la
politique. Pour être précis, il faudrait parler d’une conscience politique qui prend la forme d’une
conscience médicale généralisée. Apparaît le thème d’une médicalisation militante de la société,
puisqu’il est question de lier la médecine au destin des États. ” Tradução minha.
122
3. Relações estratégicas
206 Ibid.,p.339. Leia-se : “La politique n’a pas imposé à la médecine de nouveaux objets comme ceux
de lésions tissulaires ou de corrélations anatomo -physiologiques. Elle a seulement ouvert de
nouveaux champs de repérage des objets médicaux. A titre d’exemples : la population,
l’enregistrement statistique, le contrôle médical dans les armées ou les institutions d’assistance
hospitalière.” Tradução minha.
207 DE I, p.717-8. Trad. em FOUCAULT, Michel. Repensar a política. Coleção Ditos e Escritos, vol. VI.
Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Organização de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro:
123
Forense Universitária, 2010, p.18-9. Leia-se : (“Réponse à une question”, Esprit, no 371, mai 1968,
pp. 850-874), “S’il y a bien en effet un lien entre la pratique politique et le discours médical […] c’est
d’une manière beaucoup plus directe : la pratique politique a transformé non le sens ni la forme du
discours, mais ses conditions d’émergence, d’insertion et de fonctionnement ; elle a transformé le
mode d’existence du discours médical. Et cela par un certain nombre d’opérations décrites ailleurs,
que je résume ici : nouveaux critères pour désigner ceux qui reçoivent, statutairement, le droit de tenir
un discours médical; nouvelle découpe de l’objet médical par application d’une autre échelle
d’observation, qui se superpose à la première sans effacer (la maladie observée statistiquement au
niveau d’une population: nouveau statut de l’assistance qui crée un espace hospitalier d’observation
et d’intervention médicales (espace qui est organisé d’ailleurs selon un principe économique, puisque
le malade, bénéficiaire des soins, doit les rétribuer par la leçon médicale qu’il donne: il paie le droit
d’être secouru par l’obligation d’être regardé et cela jusqu’à la mort incluse); nouveau mode
d’enregistrement, e conservation, de cumul, de diffusion et d’enseignement du discours médical (qui
ne doit plus manifester l’expérience du médecin, mais constituer d’abord un document sur la
maladie) ; nouveau fonctionnement du discours médical dans le système de contrôle administratif et
politique de la population (la société, entant que telle, est considérée et ‘traitée’, selon les catégories
de la santé e du pathologique).”
208 NC, p.201. Trad., p.219 Leia-se: “La santé remplace le salut, disait Guardia ”.
124
política da saúde no século XVIII”.209 Nesse texto, observa-se que ele acrescenta uma
camada às análises das reformas da medicina no século XVIII, porque surgem em
relevo as estratégias de poder. Os médicos deixam de ter o protagonismo das
reformas políticas e as análises passam a se dar no nível global e anônimo das
racionalidades que procuram sistematizar a saúde coletiva, as quais Foucault
chamará de “política de saúde”.210 Enfatiza que a questão importante para ele fora
como, num momento dado e em uma sociedade definida, a interação individual entre
o médico e o paciente pode se articular com uma intervenção coletiva sobre a doença.
E diz que a profissão médica, ou melhor, as “formas de profissionalização do médico”
foram um bom ponto de partida.211 Ele afirma que o século XVIII foi um momento
importante para a medicina, pelas exigências quantitativas e qualitativas na formação
dos médicos, pois fora preciso multiplicar o número de médicos e padronizar os cursos
de medicina, vinculando os conhecimentos teóricos e os práticos. Os médicos também
adquiriram mais prestígio e a medicina se destacou de outras formas de cuidado com
os doentes.
209 FOUCAULT, Michel. La politique de la santé au XVIII e siècle. In: Les machines à guérir, aux
origines de l´hôpital moderne. 2.ed. Bruxelles: Pierre Mardaga ed., 1979. Tradução parcial em
FOUCAULT, Michel. A política da saúde no século XVIII. In: Microfísica do poder. Tradução de José
Thomaz Brum Duarte. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 26.ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2008. Contudo remeterei sempre ao texto original, com tradução minha.
210 Ibid.,.p.7. Leia-se: “une politique de santé”.
211 Ibid., p.7. Leia-se: “L’histoire de la ‘profession’ médicale ou plus exactement des différentes formes
de ‘professionnalisation’ du médecin s’est révélée, pour analyser ces apport, un bon angle d’attaque ”.
212 Ver em Ibid., p.7-8.
125
Nesse texto, Foucault afirma que os cálculos do poder político para gestão da
população, da atividade dos indivíduos e da circulação das coisas e das pessoas
visavam, além do bem-estar, a utilidade para o trabalho. Tratavam-se de intervenções
refletidas, baseadas em saberes específicos que apoiavam as técnicas de gestão
política e administrativa, ele enfatiza, por exemplo, as ações da polícia da saúde sobre
o corpo social. Nesse mesmo texto, ele destaca três itens sobre os temas principais
que se desenvolveram na política da saúde do século XVIII, são eles: (1) o privilégio
da infância e a medicalização da família; (2) a importância da higiene e o
funcionamento da medicina como instância de controle social; (3) perigos e utilidade
do hospital.213 Os médicos participaram desses três temas, seja no suporte às famílias
ou atuando na saúde em geral e nos hospitais, ainda no campo das pesquisas de
saúde, sendo subordinados ou fornecendo suporte e informações técnicas.
Adicionalmente, participaram de forma cada vez mais numerosa em diferentes
instâncias de poder, assumindo responsabilidades administrativas ou diretamente nos
órgãos políticos. Foucault afirma que os médicos se beneficiaram dessa intensificação
do poder médico na sociedade. Citando a seguir.
p.14. Leia-se: “De cette interpénétration du politique e du médical par le relais de l’hygiène, le
214 Ibid.,
‘plus de pouvoir’ dont bénéficie le médecin, porte témoignage depuis le XVIII e siècle […]. Le médecin
devient le grand conseiller et le grand expert sinon dans l’art de gouverner, du moins dans celu i
d’observer, de corriger, d’améliorer le ‘corps’ social et de maintenir dans un état permanent de santé.
Et c’est sa fonction d’hygiéniste, plus que ses prestiges de thérapeute qui lui assure cette position
politiquement privilégiée au XVIIIe siècle et début du XIX e siècle.”
215 Ver em DE II, p.190-207. Tradução em FOUCAULT, Michel. O olho do poder. In: Microfísica do
poder. Tradução de Angela Loureiro de Souza. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto
Machado. 26.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.p.209-27.
127
216 FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France (1977-1978).
Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessandro Fontana, par Michel Senellart.
Paris : Seuil/Gallimard, 2004. (STP) Tradução em FOUCAULT, Michel. Segurança, território,
população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
128
Foucault afirma que essas análises das epidemias de varíola fazem emergir
certas noções importantes sobre os mecanismos da biopolítica, como pontuados a
seguir.217
Para Foucault, o fato transformador foi que a questão do natural ingressou nas
técnicas de poder através do conjunto de elementos da população. Ele salienta que
doravante o objeto do poder será a população considerada como espécie humana, e
também como público – sua interface opinativa e que pode ser educada. A população
será como uma corte na realidade sobre o qual incidirão as técnicas de poder, as
técnicas de governo.
218STP, p.65.Trad., p.83. Leia-se: “[Dans les dispositifs de sécurité] C’est le normal qui est premier et
c’est la norme qui s’en déduit, ou c’est à partir de cette étude des normalités que la norma se fixe et
joue son rôle opératoire.”
130
Retornando a uma das questões principais desse trabalho, qual teria sido o
papel da medicina nas mortes dos pacientes com AIDS, no momento em que a doença
emergia? O que a ausência de um saber positivo intensificou? Qual falta não soube
tratar o mal-estar da doença que, desde o início, parecia se expressar num silêncio
sobre as dimensões existencial e estratégica?
instrumentos, porque a relação com o doente não é mais o suporte do seu discurso,
é a rede lógica e exterior a ela, no cruzamento biológico, histórico e geográfico das
informações, que diagnostica ou antecipa a doença.
Todo o esforço de Foucault em NC, como ele explica no capítulo IV, “A Velhice
da Clínica”, foi o de tentar se contrapor a essa narrativa ideal que traz tanto uma noção
de “historicidade contínua”, quanto a de que a história da medicina esteve sempre
apoiada no desenvolvimento das verdades de um saber cuja origem era o encontro
do médico com o sofrimento do doente.220 Foi preciso redescobrir o nascimento da
clínica, com suas rupturas e transformações, e reencontrar a medicina moderna.
221 Michel Foucault et la médecine, lecture et usages. Sous la direction de Philipe Artières et
Emmanuel da Silva. Paris : Éditions Kimé, 2001. Tradução do título é minha.
222 CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho
Barrocas. Revisão técnica de Manoel Barros da Motta. 6.ed.rev. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.p.175-6.
223 Ibid., p.176.
224 Ver em GOLSE, Anne. De la médecine de la maladie a la médecine de la santé. In : Michel
Convém lembrar, contudo, que nas análises dos biopoderes, Foucault propõe
o poder não como uma essência ou um bem de que se toma posse, o poder seria
“relações de poder” compreendidas como relações de forças, em que a resistência
sempre está presente, de diversas formas e no contexto do funcionamento dos
poderes. Portanto, sempre existirá a possibilidade das resistências.
Convém lembrar, ainda, que Foucault explicou em AS, que a medicina clíni ca
não é mais como no século XIX, pois vem ocorrendo o deslocamento constante da
percepção médica, a mudança dos instrumentos de acesso ao corpo e a expansão
Network modeling of Crohn’s disease incidence. J.M. Victor, G. Debret, A. Lesne, L. Pascoe,
P. Carrivain, G. Wainrib, J.P. Hugot. PLoS One11, e0156138 (2016). Acesso em:
https://doi.org/10.1371/journal.pone.0156138. 22 fev. 18
229 “Um modelo em rede da doença com módulos funcionais” [tradução minha], proposto pelos
estudos biomoleculares, como um novo modelo virtual de compreensão da fisiopatologia da doença.
[O que, numa análise crítica, poderia representar um retorno à classificação essencialista e à
dissociação entre a doença e o corpo doente.]
137
O ponto de partida para as questões desse trabalho foi a vivência da morte dos
pacientes com AIDS, e a suposição das insuficiências do discurso médico para assistir
aos pacientes e aos jovens médicos que os acompanhavam. Existiu ainda outra
vivência formadora da proposta inicial desse trabalho, que foi o encontro, anos mais
tarde, com o pensamento de Michel Foucault. Esse encontro trouxe à consciência as
estratégias de poder naquele espaço hospitalar e o desejo de as confrontar.
Justamente nesse ponto de partida, pode-se identificar duas questões importantes da
medicina da atualidade, que devem ser problematizadas: a assistência do indivíduo
na morte e a interrogação sobre a biopolítica.
Mas não parece ser somente nesse trabalho que essas questões sobre a
medicina se sobressaem logo de início, então, para resumir outras referências
semelhantes, remete-se ao artigo de Paltrinieri, “L’équivoque biopolitique”.230 Nesse
artigo, ele propõe três relatos que assinalam problemas atuais envolvendo a
biopolítica: um centro de detenção de imigrantes na Europa, o dispositivo de
segurança da obrigatoriedade do uso de cinto de segurança nos veículos e o relato
sobre uma paciente em seu leito de morte no hospital. Após uma revisão das
abordagens filosóficas atuais da biopolítica, ele salienta alguns equívocos. Esses se
resumem principalmente ao fato de que outros teóricos dos poderes criam quadros
desesperantes em que a vida é apreendida de uma forma geral e opressiva. Paltrinieri ,
então, procura apresentar dois caminhos em que o pensamento da atualidade poderia
sair para enfrentar a biopolítica. O primeiro, é lembrar que Foucault definiu os poderes
como relações dinâmicas, em que a resistência sempre tem um ponto de apoio para
se contrapor às abrangências biopolíticas, ou para exercer a crítica sobre as técnicas
de normalização da vida. O segundo caminho de saída seria trazer ao conhecimento
dos indivíduos as estratégias de poder, trazer à luz as inter-relações numerosas e
complexas entre os saberes e os poderes, para se contrapor ao imaginário da
neutralidade e da pureza das ciências, esse que serve somente para impor uma
distância à ambiguidade dos seus propósitos.
centros médicos que estão próximos de desenvolver a cura dessa síndrome viral. As
críticas, portanto, não levam a desacreditar a medicina, mas a propor uma experiência
médica mais flexível, mais justa, talvez mais leve, enfim, diferente.
Nos seus estudos, Foucault fez recortes justamente nas épocas de rupturas
dos saberes, nas quais as racionalidades teóricas e práticas sofreram transformações
mais profundas. São escolhas que deixam perceber melhor as fragilidades das
continuidades que uma história monumental pretenderia construir, como um
progresso contínuo, dando reverência ao encadeamento das certezas. Para Foucault,
a história é feita de escolhas e de contingências.
Foucault foi levado a reconhecer, nos seus estudos sobre a medicina, que o
saber médico é formado por vários discursos, por uma rede de enunciados científicos,
matemáticos, econômicos, políticos, sociais, estratégicos. O discurso médico é
heterogêneo, disperso. Por que não se poderia acrescentar um estrato da percepção
existencial do doente? Pode-se pensar em estratégias de saber para novas
experiências dessa relação entre o médico e o paciente, novas linguagens e
enunciados que possam ser acrescentados ao que doravante se poderia chamar de
arte da medicina. As novas estratégias envolveriam reconhecer a fala do paciente
como constitutiva dessa relação, levar em consideração seus sofrimentos, suas
dúvidas, seus desejos, seus valores, seus conhecimentos, suas escolhas, suas
decisões. Isto dependeria da maneira como os médicos são formados. É preciso que
os jovens médicos tenham uma formação em que possam ter contato com outros
campos que promovam a percepção de outras linguagens sobre a existência humana,
para que tenham palavras espontâneas de diálogo e ainda assim fundadas numa
reflexão prévia. É preciso também que os jovens médicos tenham lucidez sobre as
estratégias de poder que usam a medicina como instrumento, é preciso estar alertas
para os excessos de poder. Existem experiências sendo desenvolvidas para colaborar
com a introdução do pensamento crítico nos cursos de medicina através do ensino da
filosofia. Isto parece ser um caminho, para que os médicos não se tornem apenas
especialistas, mas desenvolvam uma atitude crítica em geral.231
231Ver em BOSCH, Gundula. Train PhD students to be think ers not just specialists . Nature 554, 277
(2018). Disponível em: doi: 10.1038/d41586-018-01853-1. Acesso em: 22 fev. 18.
141
ele. Essas arqueologias servem para mostrar que a positividade clínica se baseia
sobretudo em hipóteses matemáticas, e não em uma verdade definitiva sobre o
enigma e a imprevisibilidade individual. A percepção desses fundamentos hipotéticos
faz com que a flexibilidade na arte médica se torne possível, desejável.
Outro aspecto da positividade tem a ver com o fato de que a medicina, como
um saber, se organizou, se institucionalizou e se deu uma linguagem própria para
alcançar uma forma científica. Fundamentou-se num objetivismo antropológico, que
reflete sobre o homem a partir de sua finitude. Um tipo de saber analítico e biológico
que decompõe o corpo, busca focos, sedes, causalidades, diferentemente de
considerar o indivíduo como um todo. Essa redução da existência ao princípio
biológico da vida – que também é reduzida aos mecanismos materiais, anatômicos,
fisiológicos, patológicos, é uma racionalidade que limita o corpo, o toma definido pela
morte, circunscrito em uma finitude material. Esquecem-se vários outros aspectos da
existência humana: as atitudes políticas, éticas e filosóficas, os diferentes modos de
ser, de agir e de pensar, os aspectos que foram historicamente herdados e os que
serão legados na transformação do mundo. Pensar sobre isso contribuirá para que a
medicina possa acrescentar outras camadas à sua percepção do indivíduo.
232 FOUCAULT, Michel. Le beau danger, entretien avec Claude Bonnefoy. Édition établie et présentée
par Philippe Artières. Paris: Éditions EHESS, 2011.
233 Ibid., p.37. Leia-se: “Je ne les condamne pas à mort [les choses dites]. Je suppose simplement
guardam o tratamento moral que Pinel ali instituiu e defendeu: o isolamento, o silêncio,
os castigos para quebrar as ideias dos loucos). Em NC, ele diz que tomou diretamente
como objeto de estudo o conhecimento médico, certamente para questionar a sua
herança médica. Já em RR, ele se interrogou como uma obra como aquela, escrita
por um indivíduo desconsiderado pela sociedade, pode ser aceita e funcionar dentro
de uma cultura. Como esse processo de exclusão e inclusão pode acontecer? Para
ele, isso teve a ver com a inclusão da linguagem de Roussel no universo da
modernidade, porque ela funcionou de uma maneira positiva dentro das regras de
possibilidade dos discursos e, assim, pode figurar na literatura.235 Ele concluiu que o
que configura um discurso louco, ou não, é a sua posição e o seu funcionamento no
interior da normatividade de uma cultura.
235 Ibid., p.51. Leia-se: “Je ne me pose pas le problème du rapport oeuvre-maladie, mais du rapport
exclusion-inclusion : exclusion do individu, de ses gestes, de son comportement, de son caractère, de
ce qu’il est, inclusion très rapide et finalement assez facile de son langage”.
236 Ibid., p.59. Leia-se: “Certes, j’ai eu parfois l’envie d’écrire des nouvelles au sens presque
Michel Foucault está morto. O que poderia ter sido dito no seu leito de morte ,
quais palavras falharam? O que os médicos poderiam ter dito para Foucault ou para
Defert? Novamente, ainda agora, elas falham. Porque parece ser uma questão
amplíssima que interroga todos os saberes da modernidade. E somente seria possível
propor, com modéstia, tentar a invenção de novos diálogos sobre a existência
humana.
Ao final, não se pode deixar de supor que talvez sejam soluções ingênuas,
porque o que move a atualidade são os problemas e a força das contingências e dos
novos acontecimentos. Talvez, a medicina seja mesmo obrigada a enfrentar os seus
excessos de poder nas relações desequilibradas entre o médico e o paciente, porque
o próprio paciente está se fazendo ouvir, está produzindo outros espaços.
Certamente, a medicina terá de se abrir para novas experiências em que não será o
saber hegemônico sobre a existência das pessoas. Estão surgindo outros domínios
técnicos, robóticos, cibernéticos, sociais, coletivos, corporais que estão colocando a
medicina em cheque. Se a atualidade demanda notavelmente que a medicina se
transforme, por que o retorno à NC, ao século XVIII? Acontece que, seguindo o
pensamento de Foucault, é preciso fazer a arqueologia da medicina moderna para
redescobrir as condições de possibilidade e a emergência do método clínico, cujos
traços ainda chegam à atualidade; é preciso mostrar sua historicidade, suas relações,
as circunstâncias que o produziram, suas fragilidades e limitações; é preciso mostrar
como os médicos vem sendo formados, quais discursos os constituem. E depois, na
vertigem da aceleração dos conhecimentos e da circulação brusca das informações,
é bom esperar que tudo se transforme, é bom perguntar o que se quer introduzir de
valioso para as pessoas nessa rede de saberes da atualidade.
147
REFERÊNCIAS
De Foucault
FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Manoel Barros da Motta e Vera Lucia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
FOUCAULT, Michel. Le beau danger, entretien avec Claude Bonnefoy. Édition établie
et présentée par Philippe Artières. Paris: Éditions EHESS, 2011.
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II, 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Repensar a política. Coleção Ditos e Escritos, vol. VI. Tradução
de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Organização de Manoel Barros da Motta. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
Sobre Foucault
DEFERT, Daniel. Foucault. Les derniers jours. Interview avec Eric Favereau.
Libération, Paris, 19 nov. 2004. Culture, Livres. Disponível em:
149
LINDON, Mathieu. O que amar quer dizer. Tradução de Marília Garcia. São Paulo:
Cosac Naify, 2014.
MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2009.
SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome
I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1552-62.
VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques
de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
Outros autores
BOSCH, Gundula. Train PhD students to be thinkers not just specialists. Nature 554,
277 (2018). Disponível em: doi: 10.1038/d41586-018-01853-1. Acesso em: 22 fev. 18.