Sei sulla pagina 1di 150

1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rosele Maria Branco

Michel Foucault e a medicina –

sobre o nascimento da clínica moderna

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2018
1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rosele Maria Branco

Michel Foucault e a medicina –

sobre o nascimento da clínica moderna

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutora em Filosofia sob orientação da Profª
Dra. Salma Tannus Muchail.

SÃO PAULO

2018
3

Banca Examinadora
4

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, Profª Salma Tannus Muchail, pela sua


companhia nesse caminho, nas leituras, nas vezes em que me ouviu pacientemente,
nas conversas, na proximidade que me concedeu, nas coincidências da jornada,
sempre com palavras de confiança e de rigor respeitoso pelos textos filosóficos.

Aos meus professores da PUC/SP, pelas horas de ensino e dedicação, Márcio


Alves da Fonseca, Yolanda Gloria Gamboa Muñoz, Peter Pál Pelbart, Jeanne Marie
Gagnebin, Dulce Mara Critelli, Ivo Assad Ibri, e também de outras instituições, Celso
Kraemer e Selvino José Assmann (in memoriam).

À Claude Imbert, que me recebeu na ENS com gentileza e me ajudou a chegar


à conclusão de tese, com seus comentários surpreendentes.

Aos amigos dessa trajetória, que me incentivaram por momentos duradouros


ou apenas breves, mas decisivos, Claudia, Maria Luiza, Edélcio, Fabrina, Larissa,
Kelson, Carla, Joyce, Lygia, Denise, Lucas.

Aos meus pais, irmãos e cunhadas, por me apoiarem.

À minha família, Renato, Thomas e Max, que sempre me compreenderam e


acreditaram no meu trabalho.
4

RESUMO

Título: Michel Foucault e a medicina – sobre o nascimento da clínica moderna

Autora: Rosele Maria Branco

Partiu-se das vivências da morte e do encontro com o pensamento de Michel


Foucault, para interrogar as práticas discursivas médicas sobre a pretensão da
construção de um saber totalizante e hegemônico sobre os indivíduos. A tese seguiu
dois trajetos paralelos: um buscando compreender as descrições do livro Naissance
de la clinique sobre a medicina moderna, denominada por Foucault de medicina
clínica; e o outro, preocupado em contribuir com a formação dos médicos. Apostou-
se em organizar o trabalho seguindo as demarcações de Foucault acerca do saber
médico que constam, principalmente, no livro L’archéologie du savoir, porque faziam
sentido para explicar a dispersão generalizada do saber médico na atualidade.
Incluíram-se referências aos estudos biopolíticos de Foucault, visto que esse
momento indica outro tema importante da reflexão acerca da medicina. Concluiu-se
que a força do saber médico está na forma como ele percebe, penetra e apreende o
corpo, a despeito de que suas verdades sejam parciais e provisórias. Propõem-se
duas direções de diálogo para uma nova arte médica mais flexível, crítica e justa: uma
na discussão de novas camadas que possam ser acrescentadas ao saber médico;
outra, na análise das vivências da prática médica.

Palavras-chave: arqueologia, discurso médico, medicina, biopolítica.


4

ABSTRACT

Títle: Michel Foucault and medicine – on the birth of the modern clinic

Author: Rosele Maria Branco

This work starts from the death experiences and the encounter with Michel
Foucault thoughts, to interrogate the medical discursive practices about the pretension
of the construction of a totalizing and hegemonic knowledge about the individuals. This
thesis followed two parallel projects: one seeking to understand the descriptions of the
book Naissance de la Clinique about modern medicine, denominated by Foucault as
clinical medicine; and the other, concerned to contribute with medical formation. It was
decided to organize the work following Foucault demarcations about the medical
knowledge that are, mainly, in the book L’archéologie du savoir, because they made
sense to explain the generalized dispersion of the medical knowledge in our days.
References to Foucault biopolitics studies were included, whereas this moment
indicates another important theme from the reflection about medicine. It was concluded
that the power of the medical knowledge is in the way that it perceives, penetrates and
approaches the body, even though its truths might be partial and provisory. Two
dialogue directions are proposed to a new medical art, more flexible, critical and fair:
one in the discussion of the new layers that can be added to the medical knowledge,
and another, in the analysis of the experiences of medical practices.

Key words: archeology, medical discourse, medicine, biopolitics.


7

ABREVIATURAS UTILIZADAS

HL Histoire de la folie à l’âge classique

NC Naissance de la clinique

RR Raymond Roussel

MC Les mots e les choses

AS L’archéologie du savoir

DE I Dits et écrits I

DE II Dits et écrits II

STP Sécurité, territoire, population


8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 9
1. Considerações iniciais: reflexões sobre os 30 anos da morte de Michel Foucault
(1926-1984) ................................................................................................................... 9
2. Considerações sobre a biografia de Michel Foucault .......................................... 13
3. Considerações sobre a tese ............................................................................... 20
CAPÍTULO I – ARQUEOLOGIA............................................................................................................ 22
1. Arqueologia vertical ........................................................................................... 23
2. Arqueologia horizontal foucaultiana ................................................................... 27
3. Conclusões sobre arqueologia ........................................................................... 32
CAPÍTULO II – SABER MÉDICO ............................................................................................................... 34
CAPÍTULO III – DISCURSOS DESCRITIVOS CIENTÍFICOS ..................................................................... 45
1. Medicina clássica do século XVIII ....................................................................... 45
2. Medicina clínica do século XIX ........................................................................... 47
3. Protoclínica, lógica da linguagem ....................................................................... 50
CAPÍTULO IV – OLHAR MÉDICO E SEUS DESLOCAMENTOS ......................................................... 72
1. Doença, corpo ............................................................................................................ 72
2. “Abram alguns cadáveres” ................................................................................. 74
3. Dissolução das febres ............................................................................................ 78
CAPÍTULO V - DISCURSO, MORTE, VIDA ......................................................................................... 81
1. Linguagem médica, literatura, distância ............................................................. 82
2. Morte, finitude, vida .................................................................................... 86
CAPÍTULO VI – RELAÇÕES DISCURSIVAS DO SABER MÉDICO ......................................................... 96
1. Hospitais, corporações médicas, faculdades ......................................................... 98
2. Medicina das epidemias .................................................................................. 115
3. Relações estratégicas ........................................................................................... 122
CAPÍTULO VII – DIREÇÕES DO DIÁLOGO ....................................................................................... 136
REFERÊNCIAS...........................................................................................................................................147
9

INTRODUÇÃO

1. Considerações iniciais: reflexões sobre os 30 anos da morte de Michel Foucault


(1926-1984)

Em 1984, eu era uma médica recém-formada e fazia minha residência em


Clínica Médica no Rio de Janeiro, cidade onde, por conta disso, morei durante alguns
anos. Foi a época em que vimos surgir uma doença desconhecida – a Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida (AIDS, sigla em inglês). Esse nome genérico designava
um conjunto de manifestações clínicas caracterizadas por: tendência a contrair
diversas infecções oportunísticas; presença de lesões cerebrais e de pele –
infecciosas ou tumorais, diarreia crônica, febre persistente e progressiva caquexia,
atingindo principalmente os homossexuais masculinos. A síndrome havia sido descrita
em 1981, os primeiros casos foram relatados em São Francisco e em Nova Iorque
(EUA); e o isolamento do vírus causador (HIV) aconteceu em 1983, simultaneamente
na França e nos EUA.

No Brasil e no mundo, sabia-se, em geral, nada mais que isso. Não havia um
teste laboratorial disponível para o diagnóstico da doença, tampouco qualquer tipo de
tratamento específico para o HIV. O primeiro tratamento aprovado nos EUA pelo FDA
(Food and Drug Administration) foi o AZT, em 1987.

O HIV tem suas peculiaridades. É um vírus perene e causa uma infecção


prolongada. Ele tem tropismo pelos linfócitos T e macrófagos, suas partículas virais
replicam-se no interior dessas células, levando-as à morte. Isto provoca o colapso e a
desregulação do sistema imunológico do hospedeiro, resultando na ocorrência de
diversos tipos de infecções chamadas oportunísticas – aquelas que se manifestam
quando há uma brecha nas defesas do corpo humano. Também surgem formas de
tumores raros, principalmente na pele e no sistema linfático. Um órgão especialmente
envolvido é o cérebro, onde o vírus causa uma encefalite subaguda, a qual se
10

manifesta em 80% dos casos em um ano e progride rapidamente para um complexo


demencial. Contribuindo para agravar o quadro, o vírus ativa a produção desregrada
de proteínas que provocam febre persistente e sintomas consuntivos, emagrecimento
e prostração.

Não era uma doença que passaria despercebida e, reunindo os achados


clínicos invulgares e os elementos da história do paciente, chegávamos à hipótese
diagnóstica, embora, no início, a AIDS parecesse uma epidemia distante do nosso
meio. O que podíamos fazer era tentar nutrir esses pacientes e tratar as infecções e
as neoplasias. Tudo em vão. Eles eram internados em quartos isolados, com medidas
para evitar o contágio, as famílias eram alertadas para possíveis outros casos.
Assistíamos a uma morte certa, dolorosa para o paciente e para todos ao seu redor.

Lembro-me especialmente de um caso, que ficou sob meus cuidados. Era uma
jovem mulher, cujo marido era marinheiro e havia sido contaminada provavelmente
por ele. Quando ela se internou, já estava num estágio avançado da doença. Para
visitá-la, lembro-me do longo trajeto: ter de atravessar dois pavilhões do hospital, subir
escadas de mármore, seguir pelo corredor, onde seu quarto era o último daquela ala.
Sempre a encontrava sozinha, deitada, silenciosa. Penso, agora, que talvez a luz
excessiva daquele quarto a incomodasse, porque havia grandes janelas. Não me
recordo do que ela se queixava ou do que eu falava para ela. Recordo-me, contudo,
de sentir a presença da doença como um peso moral naquele silêncio e na solidão
que parecia ainda mais vazia; e perceber uma desesperança quase palpável. Nem
todos os pacientes eram internados naquela ala distante das enfermarias da clínica
médica, mas havia um mal-estar comum aos casos de AIDS.

Poucos anos mais tarde, vi meus colegas hemoterapeutas praticamente se


transformarem em infectologistas. Seus pacientes hemofílicos foram infectados pelo
HIV nas transfusões de sangue, durante o tratamento das manifestações
hemorrágicas da doença. E os jovens hemofílicos passaram a apresentar várias
infecções graves, deterioração da saúde e foram sucumbindo. Foi uma época difícil
para todos.

Alguns anos se sucederam até que houve medidas de prevenção e de


tratamento para a AIDS. Atualmente, existem medicações antirretrovirais que podem
assegurar uma vida longa aos portadores do HIV, minimizando a carga viral no
11

organismo e obtendo um controle efetivo da infecção. Os médicos de hoje não


conhecerão aquele quadro penoso, embora haja médicos como eu, que vivenciaram
o período da doença rapidamente fatal pelo HIV.

Michel Foucault foi a primeira figura pública a morrer de AIDS na França.


Comove-me relembrar sua morte, ocorrida em 1984, momento em que a doença
emergia, e na lacuna de tempo em que nada podia ser feito. Procuro pensar que papel
a medicina teve em sua morte – talvez não tenha tido papel algum em sua agonia.
Qual poderia ter tido?

O que disseram as pessoas mais próximas dele?

Daniel Defert, seu companheiro durante muitos anos, sempre se recusou a


evocar a morte de Foucault. Contudo, em 2004, na rememoração de vinte anos
daquela data, ele autorizou a publicação no Libération de uma entrevista concedida
em 1996.1 Defert, naquela ocasião, lançara um livro sobre a luta contra a AIDS. Nesse
depoimento, ele deixa saber que Foucault tinha conhecimento do diagnóstico provável
da AIDS, vinha em tratamento médico e se esforçava por terminar dois livros. A equipe
médica compreendia que ele tinha pouco tempo de vida e mantinha silêncio, para
deixá-lo concluir a escrita. Em poucos meses, contudo, Foucault precisou ser
internado no Hospital Pitié-Salpêtrière, ali permanecendo por 3 semanas, até sua
morte. Nesse período hospitalar, Defert relata ter decodificado certo número de
coisas.

Primeiramente, surpreendeu-se com a forma como a equipe médica e a


administração do hospital gerenciaram as informações, tentando ocultar o diagnóstico
da AIDS. Relata que houve sonegação de informações mesmo aos mais próximos,
como ele, e proibição de visitas dos amigos. O temor do escândalo reforçava o
afastamento da imprensa. Ele afirma que houve “mentiras” e “hipocrisia”, porque o
diagnóstico da AIDS havia sido estabelecido no momento da internação, embora
continuasse sem formalização. Expõe a angústia do desconhecimento e de descobrir
por si mesmo informações escritas nos registros. Nessas circunstâncias, ele diz,
reconheceu a ocultação e o jogo das relações de poder. Defert reclama um “direito de

1 DEFERT, Daniel. Foucault. Les derniers jours. Interview avec Eric Favereau. Libération, Paris, 19
nov. 2004. Culture, Livres. Disponível em: http://www.liberation.fr/livres/2004/06/19/les -derniers-
jours_483626. Acesso em: 05 nov. 2014.
12

saber”, direito à verdade sobre a doença e, ainda, denuncia a invocação de razões


médicas para impor frustrações relacionais inadmissíveis.

A seguir, nos dias logo após a morte de Foucault, ele percebeu o horror que a
doença causava, fazendo-a parecer o “impensado social”, esse medo social que
levaria ao desejo de apagar a doença e ocultar toda relação de verdade, mesmo nas
respostas dos médicos. E, ao mesmo tempo, tornando-a objeto de voracidade, que
desnudava as relações homossexuais, transformando a AIDS em mais um modo de
discriminação social. Ao entender essas coisas, ele decidiu transformar seu luto em
um combate.

Um amigo próximo, Mathieu Lindon, confirma essas sequências de ocorrências


na internação de Foucault e comenta como o diagnóstico da AIDS foi revelado
somente nos papéis das formalidades, após a morte dele.2

Paul Veyne, no livro que escreveu sobre Foucault, trata a morte do amigo como
um evento inesperado, mal compreendido por aqueles mais próximos dele. Conta que,
numa conversa, chegou a perguntar a Foucault sobre a própria existência da AIDS, a
qual parecia uma realidade distante, ele respondeu que havia pesquisado sobre a
AIDS e procediam os relatos sobre ela. Veyne conclui que ele parecia ter
conhecimento da sua doença, e a enfrentava com certo sangue-frio.3 Em sua biografia
de Foucault, Didier Eribon relata esse clima de perplexidade com a morte dele,
fulminado por uma doença pouco esclarecida, mas cercada de boatos indiscretos. Os
jornais, nas manchetes, falavam das homenagens póstumas ao filósofo ilustre,
escritas por seus amigos do meio intelectual; e deixavam nos rodapés as linhas
crispadas do preconceito contra a nova doença.4

Será que, passados trinta anos, pode-se compreender melhor as circunstânci a s


da morte de Foucault e dos pacientes com AIDS? O que a medicina não soube tratar
e estava presente naquele mal-estar suspenso em cada quarto de hospital, mesmo
que se tivesse a convicção que nada poderia ser feito? Um mal-estar que importava

2 LINDON, Mathieu. O que amar quer dizer. Tradução de Marília Garcia. São Paulo: Cosac Naify,
2014. Ver em p.145-55.
3 VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques de Morais. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Ver em p.248-53.


4 ERIBON, Didier. Michel Foucault. 2.ed. Paris: Flammarion: 1991. Relato sobre a morte de Foucault

em p.350-5. Tradução em: ERIBON, Didier. Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p.304-11.
13

tanto quanto a doença. O que foi impensado, silenciado, desconsiderado? A medicina


nada fez? e, inversamente, o que mesmo ela fez? Nessas circunstâncias, em que um
saber objetivo sobre a doença não existia, o murmúrio de uma falta foi intensificado.
Essa falta parece ter duplo sentido, um existencial e outro estratégico.

É desta experiência inquietante que pretendo partir. Para isso é preciso


retornar.

É preciso retornar ao tema da morte, abordado por Foucault com certa


insistência nas suas primeiras publicações sobre a medicina e a literatura. Retornar a
Naissance de la clinique (NC) [1963], em que ele faz a investigação arqueológica da
medicina; à análise dos discursos, do início de sua trajetória filosófica. Essa volta, na
contramão dos estudos atuais que se detêm nas novas publicações disponíveis – os
últimos cursos de Foucault no Collège de France –, mas com o auxílio da recente
divulgação de seus manuscritos inéditos pela Bibliothèque Nationale de France (BNF),
cumpre um caminho deliberado e está relacionada ainda a outro retorno. É também
preciso voltar e tentar construir o que poderia ter sido dito para uma jovem médica
sobre a morte dos pacientes com AIDS, sobre a morte de Michel Foucault.

Há vários elementos nessas circunstâncias da morte dos pacientes com AIDS


que podem ser investigados: o hospital, o discurso médico, o silêncio, a exclusão e o
isolamento dos pacientes, o corpo e a doença, o sofrimento físico, a dor existencial, a
solidão. E é dentro desse conjunto de elementos que pretendo pesquisar sobre
Foucault e a medicina. Outros caminhos poderiam ter sido escolhidos: através da
analítica do poder médico ou, ainda, da história epistemológica das ciências. Esses
não são caminhos excludentes e poderão se entrecruzar no decorrer desse trabalho.

2. Considerações sobre a biografia de Michel Foucault

Para situar o tema, deve-se mencionar episódios da biografia de Foucault que


remetem ao livro NC, embora com o cuidado de não reduzir os escritos sobre a
medicina a aspectos pessoais, como ele nunca o fez. Certo ainda, porque Foucault
14

recusava uma identidade pessoal, conforme escreveu na conhecida passagem no


final da “Introdução” de Arqueologia do saber, “não me pergunte quem sou e não me
diga para permanecer o mesmo”. A primeira menção é sobre a sua herança vinda de
uma família de cirurgiões, a qual Foucault talvez possa invocar nas metáforas
médicas, ora cirúrgicas, “cortar o papel portando a caneta como um bisturi”; ora de um
“diagnosticador”, cuja utilização aparece várias vezes nos seus escritos, sendo
especialmente aludida em NC, quando ele escreve sobre o gesto do diagnosticador.5
Citando suas palavras, “o golpe de vista não sobrevoa um campo: atinge um ponto,
que tem o privilégio de ser o ponto central e decisivo; [...] vai direto: escolhe, e a linha
que traça sem interrupção opera, em um instante, a divisão do essencial”, atitude que
parece se aplicar a ele mesmo.6 Igualmente uma invocação, poderia ser a figura
central de Bichat em NC, como o anatomista que se destaca pela precisão e
minuciosidade em dissecar, pela capacidade de reunir fragmentos e de tornar visível
o invisível, qualidades que alguns podem comparar à própria operação filosófica das
pesquisas de Foucault.7

Outro episódio biográfico, citado por ele em várias entrevistas, é que os seus
trabalhos partiam de alguma experiência direta, nesse caso, deve-se lembrar que
Foucault trabalhou em hospitais psiquiátricos, como o Hospital Sainte-Anne, e
também no hospital prisional. Essa experiência no tratamento psiquiátrico hospitalar
e o contato com os médicos foi identificada por ele como um dos focos para, mais
tarde, escrever a Histoire de la folie (HF). 8

Sabe-se que Foucault compôs parte de HF no período em que morou em


Uppsala, na Suécia [1955-1958], essa cidade de longo inverno e língua estrangeira
deve ter favorecido a sua escritura, por certos motivos. Foi em Uppsala que Foucault

5 GROS, Frédéric et al. Foucault: a coragem da verdade. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo:
Parábola Editorial, 2004. p.27.
6 FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 6. ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2008. p.134. Leia-se em FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. 7e ed.
Paris: Quadrige/PUF, 2007. “Le coup d’œil, lui, ne survole pas un champ: il frappé en un point, qui a le
privilège d’être le point central ou décisif; [...] va droit: il choisit, et la ligne qu’il trace d’un trait opère,
en un instant le partage de l’essentiel”.
7 VANDEWALLE, Bernard. Michel Foucault – Savoir et pouvoir de la médecine. Paris: L’Harmattan,

2006. p.9-10.
8 Ver em ERIBON, Didier. Michel Foucault. 2.ed. Paris: Flammarion: 1991. p.68-9. Tradução em:

ERIBON, Didier. Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p.62. Passagem em que Foucault fala sobre seu trabalho no Hospital Sainte-Anne, quando
estudava psicologia.
15

conviveu com Georges Dumézil, quem foi talvez “um modelo para ele: modelo de rigor
e paciência no trabalho; modelo também pela diversidade de centro de interesses,
pela minuciosa atenção dedicada aos arquivos”; ensinando-lhe a forma de analisar os
discursos segundo suas transformações e relações com as instituições, como relata
Eribon.9 Ali estava, também, a grande Biblioteca Carolina Rediviva, cujo acervo
contava com uma coleção de livros de história da medicina, doados por um
colecionador, dr. Erik Waller. Nessa biblioteca Foucault passava muitos dias
estudando e fazendo anotações. Perto de Uppsala, havia ainda outro lugar que
Foucault gostava de visitar, a casa de Lineu.

Na cronologia estabelecida para Dits et écrits [1994], Daniel Defert diz que a
redação de NC fora concluída em 1961, e Foucault a apresentava como “remates de
História de Loucura”.10 Pode-se reconhecer que ele pesquisava para NC na mesma
época em que compunha HF [a apresentação da sua tese de doutorado na Sorbonne
foi em 1961].

Na publicação de 2015 de NC, pelas edições La Pléiade, Delaporte relata a sua


consulta aos manuscritos desse texto. No arquivo Foucault da BNF, encontram-se o
caderno das notas preparatórias, onde ele fez anotações das leituras, reflexões de
ordem histórica ou crítica e possíveis linhas de pesquisa; e o dossiê das notas de
leitura para NC, arquivadas em uma quarentena de pastas.11 Essas pastas estão
identificadas pela mão do próprio autor e remetem à distribuição dos capítulos de NC,
colocando a bibliografia consultada em relação ao conteúdo dos capítulos. Delaporte
reconhece nessa organização coerente da condução dos trabalhos, a escrita de NC
como “um projeto autônomo, simétrico e inverso à HF.”12 Além das leituras
relacionadas especificamente à medicina, há notas sobre as transformações da
medicina nos séculos XVIII e XIX, não relacionadas ao tema de HF, que seguem o

9 Ibid., p.97. Trad., p.87.


10 Como “des chutes d’Histoire de la Folie”, em: DEFERT, Daniel. Chronologie. In: FOUCAULT,
Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. p.29-30. Trad. em: FOUCAULT,
Michel. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Coleção Ditos e Escritos, vol.
I. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Organização de Manoel Barros da Motta. 2.ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.p.16.
11 DELAPORTE, François. Note sur le texte. In: FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique: une

archéologie du regard médical. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallima rd,
2015.p.1526-7. Ele informa “boîte XCI du fonds Foucault déposé à la Bibliothèque nationale de
France (NAF 28730)”.
12 Ibid., p.1527. Leia-se: “Alors, il apparaîtra clairement que la Naissance de la clinique est un projet à

la foi autonome, symétrique et inverse de l’Histoire de la folie.” (Tradução minha)


16

desenvolvimento de um projeto paralelo. E a bifurcação observada na trajetória dos


dois projetos pode ser avaliada nos capítulos de NC em que Foucault mostra como a
medicina clínica se descolou da percepção metafísica da doença de uma
contranatureza e a integrou epistemologicamente ao corpo vivo dos indivíduos,
enquanto a psiquiatria (em HF) permaneceu muito tempo vinculada ao espírito da
taxonomia.

NC apareceu na França em abril de 1963, e propunha descrever as condições


de surgimento da medicina clínica no século XIX, quais foram as possibilidades
históricas que levaram à constituição de um saber médico fundado na anatomia
patológica. A publicação foi seguida de silêncio. Delaporte atribui isso à
incompreensão dos historiadores da medicina, ao não reconhecerem a filiação de
Foucault à epistemologia histórica de Georges Canguilhem; ou mesmo por não
seguirem essa vertente da epistemologia francesa, o que tornaria o livro inacessível.

Inserindo-se na epistemologia francesa via Gaston Bachelard, Alexandre Koyré


e Georges Canguilhem, Foucault se apropriara de noções fundamentais. De
Bachelard, veio o conceito de “ruptura epistemológica”, a qual, para esse filósofo, dá-
se entre o pré-científico e o científico. O nível pré-científico é o da linguagem dos
“fantasmas”, que se opõe às descrições objetivas; do abstrato, ao concreto; da
experiência sensível, ao método racional; dos pensamentos falsos e monstruosos que
se opõem aos pensamentos verdadeiros.13 Para Foucault, contudo, a ruptura
epistemológica se dá entre a medicina da idade clássica e a medicina clínica, por isto
sua condução se afasta de Bachelard. Foucault diz que não realizará uma
“psicanálise” do conhecimento, nem encontra falta de objetividade, mas o que
percebeu foi a substituição de uma racionalidade médica por outra, cuja positi vidade
está determinada pelo aprofundamento no próprio corpo.

O pensamento de Alexandre Koyré permitiu a Foucault analisar a


reorganização da periodização da história da medicina. Koyré tinha uma abordagem
retrospectiva, e procurava esclarecer qual novo quadro de pensamento houvera que
ser construído, para que novas leis simples, conceitos, evidências, e até uma nova
concepção da ciência se tornassem possíveis e fossem compreendidas.14 Por

13 DELAPORTE, François. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique: une archéologie
du regard médical. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1514 -5.
14 Ibid., p.1515.
17

exemplo, Galileu e Descartes precisaram construí-lo, para transformar o pensamento


na física e suplantar a física aristotélica. Esse novo quadro geral do pensamento
científico delimita o seu interior como “no verdadeiro”, e outros quadros se tornam
“falsos”. Foucault também parte do presente e identifica o quadro geral da medicina
moderna: “a ancoragem da doença no corpo do doente e o ‘golpe de vista’ do
médico”.15 Sua pergunta é: o que tornou isso possível, o corpo doente e a invenção
do olhar médico? Foucault, então, descreve a racionalidade prática nas experiências
de Bichat e Broussais, como elementos que acabaram por constituir o novo horizonte
teórico verdadeiro da medicina, e assim, a medicina do antigo pensamento
classificador tornou-se falsa. Contudo, essa nova emergência da verdade fundamenta
a vida e a doença justamente no seu extremo oposto, porque é na morte que se
disseca o verdadeiro.

Delaporte continua, sobre a filiação filosófica de Foucault, e afirma que a leitura


de Canguilhem foi determinante.16 Relaciona-se à compreensão de que a história da
ciência deve ser abordada como um conjunto coerente, mas transformável, de
modelos teóricos e instrumentos conceituais. Esse campo coerente possuiria regras
internas de caráter normativo, as quais estabelecem o verdadeiro e o falso. Para
Foucault é, portanto, no interior do espaço epistemológico da medicina clínica que se
reconhecem as proposições verdadeiras ou falsas, as quais tornaram a medicina
classificatória, anterior a ela, incoerente, infundada, inatual, falsa, de ditos agora
monstruosos. Delaporte destaca o uso da metáfora da monstruosidade para se referir
às proposições falsas, que perpassavam a ciência; e mostra que, no pensamento de
Foucault, as monstruosidades serviram para pontuar o contraste e o limite entre o
verdadeiro e o falso. Esta distinção e exclusão se daria não somente em relação aos
dizeres anteriores, mas também ao estranho inserido no próprio saber da atualidade
– o que ele chama de “monstros verdadeiros”. Esses vêm a ser os dizeres verdadeiros
incongruentes aos campos epistemológicos vigentes. Aqui, Delaporte cita o exemplo
da técnica de percussão do tórax para inferir alterações nas suas camadas profundas,
que não fora compreendida por uma medicina do espaço classificatório, que é o da
superfície e da representação. Para deter-se na história arqueológica da medicina e
passar a examinar as propostas de Foucault, pretende-se adentrar mais adiante a NC.

15 Ibid., p.1515.
16 Ibid., p.1515.
18

Há outra menção interessante sobre a sua cronologia biográfica em Raymond


Roussel (RR). Este livro de Foucault sobre o poeta e escritor, fora publicado no mesmo
ano de NC (1963).17 O próprio Foucault fizera questão de que fossem lançados quase
no mesmo dia.18 Seria por que, de alguma forma, falavam da mesma coisa? pergunta
Eribon.

Philippe Sabot vasculhou os arquivos dos manuscritos de Foucault na BNF


acerca de RR, e constatou que as suas notas preparatórias estão arquivadas em
conjunto a NC, na boîte XCI, cashier n.1.19 RR é um livro peculiar na trajetória de
Foucault, porque é o único no estilo de ensaio e que dedica o título a um autor. Sabot
faz algumas reflexões que remetem à conferência de 1969, “Qu’est-ce qu’un auteur?”,
em que Foucault faz uma distinção entre “nome próprio” e “nome do autor”.20 O “nome
próprio” designaria o indivíduo real e o princípio que reúne o conjunto de uma obra e
seu autor. O “nome do autor” indicaria uma possibilidade de ruptura num campo de
discursos, um lugar de transformação discursiva. Raymond Roussel seria o nome do
autor de uma experiência radical e nova.

O estudo que Foucault faz da experiência de Roussel não é de caráter


biográfico, tampouco é uma análise arqueológica, como ele desenvolveu em NC, diz
Sabot. No entanto, há elementos comuns nos dois livros quando se observa, num
primeiro plano, a articulação do visível, do dizível e da morte. Em NC, esses elementos
são as condições arqueológicas para a reorganização do olhar médico; em RR,

17 FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Présentation de Pierre Macherey. Collection Folio / Essais.
Paris: Gallimard, 1963, pour le texte et 1992 pour la présentation. Tradução brasileira: FOUCAULT,
Michel. Raymond Roussel. Manoel Barros da Motta e Vera Lucia A vellar Ribeiro. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1999. (RR)
18 Ver em ERIBON, Didier. Michel Foucault. 2.ed. Paris: Flammarion: 1991, p.171: “Pourtant, Foucault

ne ménage pas sa peine. En, 1963, il publie deux ouvrages fort différents. Il s’agit de son étude sur
Raymond Roussel, qui paraît chez Gallimard, dans la collection ‘Le Chemin’ que dirige Georges
Lambrichs, et de Naissance de la Clinique. Il a pris soin de les faire paraître le même jour. Pour
manifester l’égale importance des deux centres d’intérêt qui mobilisent son attention? Ou plus
profondément pour montrer qu’il parle ici et là de la même chose?”. Tradução em: ERIBON, Didier.
Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.150. “No
entanto, Foucault trabalha muito. Em 1963, publica duas obras bem diferentes. Um estudo sobre
Raymond Roussel, lançado pela Gallimard na coleção ‘Le chemin’, que Georges Lambrichs dirige, e
Naissance de la clinique. Foucault cuidou para que as duas obras fossem lançadas no mesmo dia.
Para mostrar a importância igual dos dois centros de interesse que mobilizavam sua atenção? Ou,
mais profundamente, para mostrar que numa e na outra está falando da mesma coisa?”
19 SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome I.

Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1554-5.


20 FOUCAULT, Michel. Articles, préfaces, cenférences. Oeuvres. Tome II. Bibliothèque de la Pléiade.

Paris: Gallimard, 2015.p.1264-67. (Qu’est-ce qu’un auteur?)


19

formam a ontologia de uma experiência literária singular. 21 Observe-se que Foucault


articula o estudo sobre Roussel em três “ciclos”:22 1. Le regard et les choses (La Vue,
La Doublure); 2. La mort et les appareils (Locus Solus; Impressions d’Afrique); 3. Le
langage et les métaphores (Nouvelles impressions d’Afrique).

Ora, o olhar, a morte e a linguagem também são os eixos das análises em NC.

As distinções, contudo, vêm dos dois lugares diferentes em que esses livros
são desenvolvidos, diz Sabot, porque RR nasce no espaço heterotópico da biblioteca
e percorre uma experiência da linguagem no espaço da literatura; enquanto NC vem
dos arquivos e dos discursos na sua historicidade.23 Sabot conclui que RR substitui o
relato arqueológico por “uma reflexão de caráter ontológico sobre a literatura e o ser
da linguagem.”24

A compartilhamento das notas para NC e RR nos manuscritos e a


concomitância das publicações mostram os interesses que Foucault perseguia
naqueles anos. Pode-se começar a descrevê-los pelos campos da medicina e da
literatura; em seguida, pelos discursos científicos e pela linguagem; pela forma de
organização do pensamento na experiência médica e na literária; pelas práticas
discursivas complexas e normalizantes e pelas práticas do indivíduo fora das normas.
Percebe-se, além do mais, que Foucault procura aproximar os discursos,
desconsiderando demarcações rígidas, talvez testando novas perspectivas. O que
coincide nos dois casos são as linhas de condução que Foucault identifica: o olhar, a
morte e a linguagem. Pode-se pensar, simplificadamente, que sejam: o olhar do
diagnosticador ficcional que imagina e mostra o invisível do visível; a morte
considerada o desfecho fundador do discurso; e a linguagem, como o princípio

21 Ver em SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome I.
Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1554-5.
22 Sabot cita: Fonds Foucault, BNF, boîte XCI, cahier nº 1, note du 29 du mai 1962. 1. O olhar e as

coisas; 2. A morte e as máquinas; 3. A linguagem e as metáforas; tradução minha.


23 Ver em: SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome I.

Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1555: “Là où Naissance de la clinique s’écrit dans
une relation privilégiée à l’archive et à la sédimentation historique des choses dites, alliant la
systématicité des discours et leur historicité (c’est -à-dire le système de leur transformation), Raymond
Roussel s’écrit plutôt dans l’espace hétérotopique et heterochronique de la bibliothèque.” (Tradução
minha).
24 Ibid., p.1554-5. Leia-se: “Mais l’étude monographique de Foucault se développe en dehors de toute

trame ‘historique’ et substitue au récit archéologique une réflexion à caractère ontologique s ur la


littérature et l’être du langage.” (Tradução minha)
20

organizador, elementos esses que constituiriam o modo de pensar e de agir na


modernidade.

3. Considerações sobre a tese

O objetivo desse trabalho é compreender a racionalidade médica moderna tal


como descrita nos trabalhos de Michel Foucault, especialmente em Naissance de la
clinique (NC), como ela se constituiu e se materializou, e porque parecem existir
lacunas nas práticas médicas da atualidade. Esses momentos lacunares de silêncio e
do impensado podem ser percebidos quando surge certo mal-estar, como aquele
descrito no tratamento dos pacientes com AIDS.

A hipótese levantada de início é que (1) o discurso médico poderia ser


insuficiente para abordar aspectos da existência humana e excessivo em sua
autoridade estratégica; seguindo-se paralelamente mais duas questões, a saber, (2)
o tipo de relação do discurso médico com a morte, e (3) as novas direções para os
médicos em formação.

O saber médico sustenta que se pode chegar à verdade da doença e do corpo


pela formalização de um discurso construído por um raciocínio neutro e baseado em
observações e experiências. O discurso seria fundamentado na sua objetividade,
porque supõe uma relação direta entre o objeto a conhecer e o sujeito que conhece.
Contudo, essa fundamentação racionalista tem sido considerada demasiadamente
otimista e ingênua, desde que nessas relações de saber se introduziram gestos de
complexidades inusitadas e perigosas. E também se tornou claro que os saberes
mantêm relações com os interesses sociais, políticos e econômicos. Esse mesmo
saber científico que se mostra difuso e estrategicamente envolvido nas suas relações,
parece, ainda assim, excluir uma dimensão, esta que poderia ser definida como
existencial, e da qual ele teria se separado na sua emergência e constituição histórica.
A dimensão existencial é aquela dos medos, dos afetos, da confusão que surge
quando se está doente, mas também da condução de si mesmo.
21

Para desenvolver a hipótese principal desse trabalho, pretende-se pesquisar


os estudos de Michel Foucault sobre a medicina, seguindo o livro Naissance de la
clinique (NC), como mencionado, mas também outros textos correlacionados ao tema,
nas suas pesquisas arqueológicas.

Nos capítulos iniciais de I a III, o objetivo é reconstruir as condições de


possibilidade do discurso médico, conforme apontadas por Foucault, abordando o
significado da arqueologia, o saber médico e a lógica da linguagem. De início, para
entender os procedimentos da arqueologia foucaultiana, recorreu-se a seus
estudiosos. Em seguida, para desenvolver uma visão mais geral sobre o saber
médico, utilizou-se principalmente Arqueologia do saber (AS). Diferentemente, para
entender a sua constituição discursiva entre “o olhar” e “a linguagem”, foi realizada
uma leitura metódica de NC, para tornar mais compreensíveis as teses de Foucault
sobre o método clínico.

O capítulo IV é dedicado a perceber os deslocamentos do olhar médico e,


assim, a forma e as consequências da apreensão do corpo em sua profundidade,
seguindo a leitura metódica do livro NC.

O capítulo V centra-se na morte, e percorre as linhas desse tema que se


condensam no discurso médico.

O sexto capítulo versará sobre as relações decisivas com outras áreas


discursivas, os locais e instituições de exercício da função do médico, a dispersão e a
regularidade do saber clínico. E também abordará de forma sintética como a medicina
se entrelaçou aos trabalhos seguintes de Michel Foucault sobre o biopoder, apenas
indicando outras fontes de pesquisa para futuros trabalhos.

No sétimo, ao se permitir sugerir qual caminho seguir, talvez se possa encontrar


na filosofia de Michel Foucault certas direções para abrir diálogos sobre o discurso
médico.
22

CAPÍTULO I – ARQUEOLOGIA

Considerações iniciais

Ciência, política e práticas sociais não podem ser separadas, mesmo quando
se pretende estudar apenas um campo de saber. Isto se mostra no desenvolvimento
dos capítulos de Naissance de la clinique (NC).25 Esse livro trata da emergência da
“clínica médica” no fim século XVIII, a qual, para Foucault, é o tipo de racionalidade
prática que organizará a medicina moderna. No livro, há uma alternância interessante
entre capítulos que tratam das lutas e das conquistas políticas da época, reconhecidas
como o período da Revolução francesa, e outros, da busca das corporações médicas
da França para regulamentar a profissão médica e fundamentá-la como uma ciência.
Foucault mostra como a confluência de alguns acontecimentos políticos, sociais e
científicos, no fim do século XVIII, puderam formar o saber médico moderno. Além
das violentas reviravoltas políticas da sociedade, das epidemias, das novas técnicas
de investigação médica que passaram a ser adotadas, há um foco em algumas
personagens médicas, das quais Pinel, Tenon, Cabanis, Laennec, Bichat, Broussais
são os principais exemplos. São médicos que provavelmente ocuparam certo status,
pelo que puderam estabelecer relações e funções em diversas instituições, na sua
época.

NC é um livro árduo para ler ou retornar a ele, porque reúne eventos históricos,
termos médicos de antigo significado e interpretações desconcertantes. Várias
passagens sobre a Revolução Francesa, decretos feitos e desfeitos, idas e vindas das
datas embaralham-se em detalhes que aparentemente já não são importantes.
Acrescentem-se ainda as descrições dos achados físicos da tuberculose, das
inflamações e das febres como já não são compreendidos; e chega-se à morte como
um dos conceitos fundadores da medicina atual. Aparentemente, não é um livro
contínuo e encadeado. Essa é a primeira impressão. Para compreender melhor NC,

25FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. 7 e ed. Paris: Quadrige/PUF, 2007. FOUCAULT,


Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008. (NC)
23

é preciso conhecer o pensamento arqueológico de Foucault, e como foi seu uso no


desenvolvimento das pesquisas. É preciso, também, encontrar um ângulo de
afastamento para reconhecer determinados pontos-chave que possam esclarecer as
condições da emergência da racionalidade médica moderna, entre eles a formação
discursiva científica, os deslocamentos do olhar médico e as relações externas ao
campo médico.

Para melhor compreensão das propostas elaboradas por Foucault, decidiu-se


iniciar examinando o procedimento foucaultiano dos anos 60, década em que ele
publicou os livros: Histoire de la folie, descrito como uma “arqueologia do silêncio”26;
Naissance de la clinique, que possuía inicialmente o subtítulo “uma arqueologia do
olhar médico”; o reconhecido Les mots et les choses, “uma arqueologia das ciências
humanas”; e, finalmente, Arqueologia do saber (L’archéologie du savoir), publicado
em 1969.

1. Arqueologia vertical

Na publicação de Luca Paltrinieri, a qual será percorrida nas próximas páginas,


pretende-se reunir os pontos principais do uso da abordagem arqueológica por
Foucault e sua originalidade.27 A metáfora arqueológica já fora utilizada por outros
filósofos, cada um elaborando uma aproximação inserida em seu próprio método
filosófico. Archéologie [fr.1844] tem sua etimologia derivada do grego arché, que
significa início, princípio, origem. Na filosofia, a esse termo é metaforicamente
atribuído o significado de escavar o solo ou o subsolo, buscando os fundamentos de
um saber. Há também um significado temporal, porque o que se busca são ideias a
priori que persistem sob as ruínas e podem estar sedimentadas, ocultas, esquecidas.

26 No primeiro Prefácio de Histoire de la Folie à l’âge classique, 1961. Em FOUCAULT, Michel. Dits et
écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. p.188. (DEI)
27 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,

novembre 2015, p.15-30.


24

Portanto, Michel Foucault não foi o primeiro a utilizar o termo arqueologia, deve-
se isso a Kant. Para Kant, a arqueologia filosófica designava a história do que torna
necessária certa forma de pensamento.28 Era delimitada pela história das
racionalidades, ou das ideias como fatos da Razão, solo sobre o qual repousa o
conhecimento humano. Permitia reconstruir “o quadro histórico das ideias filosóficas”,
em que toda filosofia deve se situar temporalmente; e isto demostrava a relação
arqueológica da filosofia com a sua própria história, relação pela qual os eventos do
passado continuavam a ter efeitos no presente.29 Não tratava de uma cadeia de causa
e efeito ou do progresso das racionalidades, mas de l’arché filosófica donde provém
seu próprio fundamento constitutivo e justificativo.

Martial Guéroult segue a tarefa kantiana, ao recomendar a investigação da


estrutura dos textos filosóficos, tratando as obras filosóficas como “monumentos” que
resistem ao tempo em virtude de seu valor intrínseco.30 Isto se deve ao fato de que
ele definia a filosofia como a atividade racional que se dedica a propor novas soluções
para os problemas não resolvidos, requerendo assim uma aproximação histórica
própria. Adicionalmente, a arqueologia filosófica teria um caráter instrutivo porque
desenterra das ruínas a própria matéria filosófica ao investigar os sistemas de provas
e a estrutura objetiva dos textos filosóficos. A aproximação histórica da filosofia seria
um exercício propriamente filosófico, porque investiga soluções dadas a uma série de
problemas que continuam a se apresentar.

Paltrinieri lembra que Georges Canguilhem pensou justamente nesse conceito


de Guéroult ao definir a arqueologia foucaultiana como uma “ciência de monumentos”,
tendo afirmado: “a geologia conhece sedimentos, a arqueologia, monumentos”, ao
resenhar Les mots et les choses.31 Definida assim, ela não estaria reduzida a um

28 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,


novembre 2015, p.16. Este autor cita: “Dans ses Fortschritte der Metaphysik , contenus dans les Lose
Blätter, Kant avait en effet utilisé le mot pour désigner l’histoire de ce qui rend nécessaire une certaine
forme de pensée.’” O texto de Kant é Fortschritte der Metaphysik (redigido em 1793 e publicado em
1804), em Gesalmmelte Schriften, t. XX, Berlin, Walter de Gruyter, 1942, p.341. Traduzido para o
francês por L. Guillermit, Les progrès de la métaphysique en Allemagne depuis le temps de Leibniz et
de Wolff, Paris, Vrin, 1973.
29 Ibid, p.17.
30 Ibid, p.18. Citando M. Guéroult, Leçon inaugurale au Collège de France, 4 déc. 1951.
31 CANGUILHEM, Georges. Mort de l’homme ou épuisement du Cogito? Critique, nº 242, juillet, 1967.

p.599-618. Republié dans Les mots e les choses de Michel Foucault. Regards critiques 1966-1968,
Caen, Presses universitaires de Caen – IMEC, 2009. Leia-se na p.254: “La géologie connaît des
sédiments et l’archéologie des monuments.” (Tradução minha)
25

estudo do solo histórico (uma geologia), mas vem a ser uma investigação ampliada
das próprias condições de possibilidade da história. Canguilhem esclarece que
mesmo que Foucault se expresse num vocabulário da geologia quando se refere ao
solo silencioso e imóvel e às rupturas sobre as quais se caminha hoje, não é para
remeter às camadas ocultas e sedimentadas por fenômenos naturais; na verdade, o
que ele investiga são os “desníveis da cultura ocidental”, os “limiares” dos saberes.32
Note-se que naquele ponto, diferentemente de Guéroult, para Foucault os problemas
também mudam em cada época, acompanhando as modificações de organização do
sentido e da coerência dos diferentes saberes. Explicando melhor, a arqueologia é um
movimento histórico que conduz às próprias condições de possibilidade do
conhecimento; como afirma Foucault: “[...] as modificações que alteraram o próprio
saber, nesse nível arcaico que torna possíveis os conhecimentos e o modo de ser
daquilo que se presta ao saber.”33 Essas mutações se dão no nível mais profundo,
aquele de l’arché histórica, por isso representam rupturas, ou descontinuidades, que
impedem a reconstrução de uma lógica contínua de uma época para outra. Ora,
Paltrinieri indaga, então como investigar esse a priori histórico se ele muda? Por onde
começar? Ele mesmo prossegue: resta buscar nas condições que determinam o
próprio presente. Relendo-o: “a operação arqueológica consistirá então num trabalho
de escavação de nosso ‘solo’ à procura de uma evidência mais fundamental capaz de
revelar o senso do desenvolvimento histórico.”34

Resumidamente, até aqui se contam três pontos principais que dão uma visão
geral da pesquisa arqueológica foucaultiana. Primeiramente, ela investiga os saberes
e, desde o início, vincula-se a uma abertura kantiana para a história do pensamento

32 FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. Les mots
e les choses: une archéologie des sciences humaines , p.1045. Leia-se: “En essayant de remettre au
jour cette profonde dénivellation de la culture occidentale, c’est à notre sol silencieux et naïvement
immobile que nous rendons ses ruptures, son instabilité, ses failles; et c’est lui qui s’inquiète à
nouveau sous nos pas.” Tradução: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia
das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007.p.XXII.
33 FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. Les mots

e les choses: une archéologie des sciences humaines , p.1101. Leia-se: “[…] les modifications qui ont
altéré le savoir lui-même, à ce niveau archaïque qui rend possibles les connaissances et le mode
d’être de ce qui est à savoir.” Tradução: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma
arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.p.75.
34 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,

novembre 2015, p.21. Leia-se: “[…] l’opération archéologique consistera alors en un travail
d’excavation de notre “sol” à la recherche d’une évidence plus fondamentale capable de révéler le
sens du développement historique.” (Tradução minha)
26

racional e seu quadro de fundamentações. O segundo ponto, é que a arqueologia é a


busca dos sistemas ou das formas de pensamento que persistiram e influenciam o
presente em que se vive, pelo fato de organizarem o que se pensa. Por terceiro ponto,
tem-se onde buscar: é escavando historicamente o solo mesmo em que se apoiam as
convicções atuais, as quais são descontínuas das anteriores. Uma elaboração inicial
mostra, então, que a arqueologia foucaultiana é uma abordagem histórica própria que
busca o senso das racionalidades da atualidade.

Seguindo o artigo de Paltrinieri, para encontrar o significado e a originalidade


da arqueologia de Michel Foucault, ele diz que a fenomenologia husserliana também
se referiu à metáfora arqueológica. Husserl a definiu como a operação de escavar o
solo do mundo da experiência, em busca dos fundamentos ocultos ou dissimulados
das evidências do senso comum.35 Estas “arquievidências” que tornariam as
percepções e as experiências possíveis também são chamadas por ele de “a priori
histórico”. Diferentemente de Foucault, o a priori histórico de Husserl seria um
horizonte de historicidade universal e cultural, constante, invariavelmente presente e
encontrado sob os sedimentos das experiências. No mesmo sentido, para Merleau-
Ponty, o a priori experiencial remete a um primordial, que estaria enterrado sob os
sedimentos das coisas ditas e dos conhecimentos ulteriores. 36 Os fundamentos das
experiências da vida estariam num tempo histórico que antecede aos saberes, sendo
que poderiam ser revelados pela linguagem, e ao qual a arqueologia tem por objetivo
retornar.

Não é somente a fenomenologia que trata de desenterrar no passado as


“arquievidências”, “essas fundações esquecidas que habitam e influenciam nosso
presente”, também a psicanálise e a etnologia o fazem.37 Lévi-Strauss escrevera que
se pode realizar uma arqueologia das atitudes corporais e encontrar verdadeiros
sistemas de transmissão entre as gerações de um passado recuado da humanidade. 38
Portanto, diz Paltrinieri, a arqueologia pode ser estendida à pesquisa “de um arcaico

35 Ibid, p.21-2.
36 Ibid, p.23.
37 Ibid, p.23. Leia-se: “Mais les modèles de cette ‘fouille dans notre passé’ à la recherche des archi -

évidence – ces fondations oubliées qui habitent et influencent notre présent – sont innombrables et ne
se limitent pas au courant phénoménologique.” (Tradução minha)
38 Ibid, p.23-4.
27

psicológico e sociológico, fundação esquecida dos hábitos e dos modos de pensar


que continuam a influenciar as práticas quotidianas.”39

Foi “evidentemente Freud quem transferiu o imaginário arqueológico ao


domínio psicológico, ao pensar a consciência como uma série de camadas
justapostas, cujo acesso é permitido pelo exercício psicanalítico.”40 O núcleo arcaico
dela estaria localizado no inconsciente, formado por uma estrutura atávica
reconhecida como o princípio de prazer recalcado nos tempos históricos. Haveria
assim, para Freud, uma estrutura histórica arcaica e oculta que poderia dar sentido
aos desejos e aos sintomas do presente. Outros temas psicanalíticos, como o retorno
à infância e o ressurgimento do antigo, suscitam também o envio do sentido ao
passado histórico individual. Assim, segue Paltrineri, a interpretação psicanalítica é
um evidente exemplo de uma arqueologia, ao escavar o passado individual e cultural
em busca de uma “arché fora dos tempos, uma fundação imóvel cujos rastros ainda
são visíveis no horizonte comum da experiência histórica.”41

Após percorrer os vários sentidos e usos da noção de arqueologia, pretende -


se agora delimitar quais foram eles para Michel Foucault, por contraposição ou
comparação. Recolhendo a pequena síntese anteriormente apresentada aqui, isto é,
de que a arqueologia foucaultiana é uma investigação histórica das racionalidades da
atualidade, a seguir se deve caracterizá-la melhor.

2. Arqueologia horizontal foucaultiana

As ideias de escavar e de vasculhar fundamentos esquecidos e ainda atuantes,


no sentido fenomenológico ou psicanalítico, podem ser reconhecidas na arqueologia

39 Ibid, p.24. Segue: “En ce sens, l’archéologie n’est pas seulement une fouille dans notre passé, mais
aussi une recherche d’un archaïque psychologique et sociologique, fondation oubliée d’habitudes et
modes de pensées qui continuent d’influencer les pratiques quotidiennes.” (Tradução minha)
40 Ibid, p.24. Leia-se: “Bien évidemment, Freud lui-même qui avait transféré l’imaginaire archéologique

dans le domaine psychologique, en pensant la conscience comme une série de couches juxtaposées
auxquelles l’exercice psychanalytique doit permettre l’accès […].” (Tradução minha)
41 Ibid, p.24. Segue: “[...] l’arché hors du temps, une fondation immobile dont les traces sont encore

visibles dans l’horizon comum de l’expérience historique.” (Tradução minha)


28

foucaultiana. E Paltrinieri cita alguns exemplos, como no prefácio à edição inglesa de


MC, em que Foucault define o objeto da arqueologia como “o inconsciente positivo do
saber”; ou ainda em entrevistas sobre esse livro, descrevendo sua condução como
“trabalho de escavações sobre seus próprios pés” e “o subsolo de nosso
consciente”.42 Essas citações não deveriam indicar uma forma vertical de arqueologia,
esta que tende a dirigir-se a uma estrutura, significado ou causa originária subjacente;
porque houve também um movimento constante e progressivo de afastamento dessa
metáfora do “vasculhar vertical” em favor de uma “operação lateral”, que tenta evitar
toda valorização do sentido oculto.43 Esse direcionamento horizontal da arqueologia
é destacado por Paltrinieri, e reunirá as principais características do trabalho
arqueológico de Foucault, descritas a seguir.44

 Inversão do “documento” em “monumento”

Na “Introdução” de L’archéologie du savoir (AS), Foucault diz que seu método


histórico poderia ser “a descrição intrínseca do monumento”, ou a restituição histórica
dos “documentos” precedendo a sua transformação em “monumentos”.45 Isto implica
dizer que Foucault age diferentemente da historiografia clássica a qual considera os
monumentos do passado como documentos, ou seja, possuidores de traços ou
vestígios que precisam ser interpretados para que se encontrem os sentidos ocultos,
as verdades e o seu valor. Estendendo a remissão à AS, Foucault se refere a essa
nova forma de fazer história, na qual a arqueologia se integra, como aquela que trouxe
uma mudança de posição em relação ao “documento”: não usar o ponto de vista do
intérprete, e sim trabalhar do seu interior: “ela o organiza, recorta, distribui, ordena e
reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é,
identifica elementos, define unidades, descreve relações.”46 Trata-se de elaborar no

42 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001 (DEI),
respectivamente: “Je voudrais mettre au jour un inconscient positif du savoir”, p.877; “Une telle activité
de diagnostic comportait un travail d’excavation sous ses propres pieds [ ...]”, p.641; e “Et c’est le
sous-sol de notre conscience moderne de la folie que j’ai voulu interroger”, p.528. (Tradução minha)
43 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,

novembre 2015, p.25.


44 Ibid., p.25-9.
45 Leia-se: “la description intrinsèque du monument”, em: FOUCAULT, Michel. L’archéologie du

savoir. Paris: Gallimard, 1969, p.15 (AS). Tradução brasileira: FOUCAULT, Michel. A arqueologia do
saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária: 2009, p.8.
46 AS, p.14. No original: “[...] l’histoire a changé sa position à l’égard du document: ele se donne pour

tâche première [...] de le travailler de l’intérieur et de l’élaborer”: ele l’organise, le découpe, le


distribue, l’ordonne, le répartit en niveaux, établit de séries, distingue ce qui est pertinente de ce qui
ne l’est pas, repère des éléments, définit des unités, décrit des relations.” Tradução brasileira, p.7.
29

próprio “tecido documental mesmo” e buscar definir “unidades, conjuntos, séries,


relações”, em que se mapeia e elabora a “materialidade documental”.47 E Foucault
cita como exemplos de matéria de análise os “livros, textos, relatos, registros, atos,
edifícios, instituições, regras, técnicas, objetos, costumes, etc.”, que são encontrados
em todas as sociedades, de forma espontânea ou organizada.48

 Herança kantiana

Mantendo a mesma coerência, Foucault recusa terminantemente a arqueologia


freudiana e se aproxima da herança kantiana, na qual as metáforas de escavar e de
buscar vestígios estão ausentes.49 É interessante lembrar que Foucault não utiliza as
expressões que remetem à deposição de camadas sucessivas, nem procura redobrar
o nível das suas análises investigando algo oculto ou subjacente. 50 É preciso escutar
o que ele diz:

Ela não trata o discurso como documento, como signo de outra coisa,
como elemento que deveria ser transparente, mas cuja opacidade
importuna é preciso atravessar frequentemente para reencontrar,
enfim, aí onde se mantém à parte, a profundidade essencial; ela se
dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de
monumento. Não se trata de uma disciplina interpretativa: não busca
um “outro discurso” mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”. 51

Nessa passagem, fica claro que Foucault não crê numa essência profunda
discursiva a ser revelada, mas se atém ao que o discurso mesmo pode ser.

 Estudo comparativo e descritivo

Não se trata de encontrar as estruturas dos problemas eternos, como na


arquitetônica gueroultiana; mas de efetuar uma comparação entre os discursos das
diferentes épocas, e ver os que persistem, na superfície dos próprios discursos,

47 AS, p.14. Continuando: “[...] elle cherche à définir dans le tissu documentaire lui-même des unités,
des ensembles, des séries, des rapports.” Na tradução brasileira, p.7.
48 AS, p.14. Acrescentando: “[...] livres, textes, récits, registres, actes, édifices, institutions,

règlements, techniques, objets, coutumes, etc. [...].” Na tradução brasileira, p.7-8.


49 DE I, p.1089-90. Onde Foucault menciona a arqueologia kantiana, distinta da freudiana. E, ainda

em DE I, p.1107, onde cita em qual escrito kantiano surge a referência à arqueologia.


50 Ver em: PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque,

n. 48, novembre 2015, p.25.


51 AS, p.182, Leia-se: “L’histoire archéologique ne traite pas le discours comme document, comme

signe d’autre chose, comme élément qui devrait être transparent, mais dont il faut souvent traverser
l’opacité importune pour rejoindre enfin, là où elle est tenue en réserve, la profondeur de l’essentiel;
elle s’adresse au discours dans son volume propre, à titre de monument. Ce n’est pas une discipline
interprétative: elle ne cherche pas un “autre discours” mieux caché. Elle se refuse à être ‘allégorique’.”
Na tradução brasileira, p.157.
30

continua Paltrinieri.52 Isto é, estabelecendo as relações e os jogos de diferenças, as


aproximações e as distâncias, sendo comparáveis ou diferentes. E nisso se pode
captar porque a arqueologia foucaultiana é descritiva, e não interpretativa, porque ela
trata de construir um quadro, no modelo kantiano do quadro dos fatos da razão, o qual
descreve as diferentes etapas do seu desenvolvimento, sem os interpretar. Diz
respeito a descrever a ordenação dos discursos, como se agrupam ou se dispersam
e como podem formar séries históricas.

 Condições históricas de possibilidade dos saberes

Essa “análise serial e diferencial” não deixa de lembrar uma análise


estruturalista, como em Dumézil e Lévi-Strauss, diz Paltrinieri.53 Para Foucault, refere-
se a mapear as diferenças profundas que modificam os sistemas de pensamento, sem
buscar explicações ou causas, e sim tentando reconhecer as transformações
históricas dos saberes, no sentido de revelar suas condições de possibilidade no
campo da história. Para essa investigação importam mais as relações lógicas, e não
as causais, na ordem histórica das formas de pensar. Enfim, a arqueologia abandona
a ideia de escavar em busca das “causes premières”, e se define por outros termos,
como Foucault mesmo relata em uma entrevista:

Esse termo “arqueologia” me embaraça um pouco, porque ele recobre


dois temas que não são exatamente os meus. Inicialmente, o tema da
origem (archè, em grego, significa começo). [...] São sempre começos
relativos que procuro, antes instaurações ou transformações do que
fundamentos, fundações. E, depois, me incomoda da mesma forma a
ideia de escavações. [...] Tento, ao contrário, definir relações que
estão na própria superfície dos discursos; tento tornar visível o que só
é invisível por estar muito na superfície das coisas.54

É precisamente a investigação das relações horizontais entre os discursos que


pode mostrar o invisível na superfície das coisas de cada época.

52 Ver em: PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque,
n. 48, novembre 2015, p.26.
53 Ibid., p.26.
54 DE I, p. 800. Em “Michel Foucault explique son dernier livre” [1969]: “Ce mot “archéologie” me gene

un peu, parce qu’il recouvre deux thèmes qui ne sont pas exactement les miens. D’abord l e théme du
commencement (archè en grec signifie commencement). [...] Ce sont toujours des commencements
relatifs que je recherche, plus de instaurations ou des transformations que des fondements, des
fondations. Et puis me gêne également l’idée de fouilles. [...] J’essaie au contraire de définir des
relations qui sont à la surface même des discours; je tente de rendre visible ce qui n’est invisible que
d’être trop à la surface des choses.” Na tradução brasileira, em Ditos e escritos II, p.145-6.
31

 Diagnosticar

A arqueologia é um exercício de diagnosticar o presente. Paltrinieri cita o


manuscrito inédito de Foucault, datado de 1967, em que ele define a atividade
arqueológica como o diagnosticar, dentro do jogo entre o visível e o invisível: o
exercício arqueológico “não consiste justamente em ir além do visível, do audível, do
sentido, para revelar o significado oculto”, mas, ao contrário, é a “tarefa enigmática de
diagnosticar sem escutar uma palavra profunda, sem perseguir um mal invisível.”55
Paltrinieri acrescenta dois elementos interessantes relacionados a essa tarefa de
diagnosticar: o primeiro, se Foucault não pretende recuar verticalmente a l’arché,
conclui-se que a arqueologia se dedica justamente ao tempo presente. Em seguida,
se ela identifica mudanças profundas nas formas dos saberes entre as épocas, haverá
sempre um desnível, e hoje já não se pode pensar como se pensava antes, por isso,
é preciso reconstituir pacientemente o que foi dito.

 “Ciência do arquivo”

As formas de experiências possíveis também são diferentes a cada época, e


se pode chegar a elas através das descrições comparativas. No livro NC, encontra-se
a referência ao domínio no qual as análises comparativas podem ser feitas: no
“domínio das coisas ditas”, conforme Foucault, “estamos historicamente consagrados
à história, à paciente construção de discursos sobre os discursos, à tarefa de ouvir o
que já foi dito”.56 Esse é o sentido da arqueologia como “ciência do arquivo”; em que
o “arquivo” não se relaciona à massa do que foi conservado, mas ao princípio de
escolha “que recolhe e que rejeita” e que, por isso, “permite a análise de uma cultura
no sentido amplo.”57 Arquivo compõe o domínio em que as experiências arqueológicas
podem encontrar a constituição e as diferenças dos discursos, sua formação e sua

55 Paltrinieri cita o manuscrito inédito de Michel Foucault: Le discours philosophique, depositado no


arquivo Michel Foucault da BNF, caixa 58, pasta 1. “[...] l’exercice archéologique ‘ne consiste
justement pas à aller au-delà du visible, de l’audible, de sens, pour révéler la signification cachée’
mais se confronte à la ‘tâche énigmatique de diagnostiquer sans écouteur une parole plus profonde,
sans pourchasser un mal invisible.’” (Tradução minha).
56 NC, p.XII: “nous sommes voués historiquement à l’histoire, à la pat iente construction de discours

sur les discours, à la tâche d’entendre ce qui a été déjá dit.” Na Tradução brasileira, p.XIII.
57 Sobre “arquivo”, ver em DEI, p.527; em “Les mots et les choses”: “[...] il faut avoir à sa disposition

l’archive générale d’une époque à un moment donné.” E também, DEI p.623, em “Sur les façons
d’écrire l’histoire”: “[...] mon objet n’est pas le langage mais l’archive, c’est -à-dire, l’existence
accumulée des discours. L’archéologie, telle que je l’entends, n’est parente ni de la géologie (comme
analyse des sous-sols) ni de a généalogie (comme description des commencements et des suites),
c’est l’analyse du discours dans as modalité d’archive.”
32

regulação. Paltrinieri salienta que a própria definição de arquivo insere as condições


de possiblidade dos discursos no mesmo nível da sua aparição; ele configura o plano
horizontal da investigação comparativa arqueológica. O arquivo “é o sistema geral da
formação e da transformação dos enunciados”.58 Ou ainda,

[...] temos na densidade das práticas discursivas sistemas que


instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições
e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua
possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas
de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que
proponho chamar de arquivo.59

Considera-se que tanto as coisas ditas quanto o seu funcionamento estão


integrados nos enunciados e no domínio dos arquivos-discursos.

3. Conclusões sobre arqueologia

Uma exploração histórica e espacial dos discursos, conclui Paltrinieri.


Considerando-se as soluções kantiana e husserliana para a arché trans-histórica, as
quais mantêm o solo inalterável das ideias filosóficas e das “arquievidências”
fundadoras, a arqueologia foucaultiana é mais radical, diz ele, porque “assumiria a
ideia de uma transformação radical dos quadros do conhecimento e da experiência.”60
O a priori histórico para Foucault é um conjunto transformável e empírico, que não
escapa à historicidade, sendo um jogo de regras interiores às próprias práticas
discursivas.

A principal consequência dessa abordagem é que o empreendimento críti co


filosófico é transportado para o plano histórico, visto que as condições de possibilidade

58 AS, p.171: “c’est le système général de la formation et de la transformation des énoncés”. Na


tradução brasileira, p.148.
59 AS, p.169: “[...] on a, dans l’épaisseur des pratiques discursives, des systèmes qui instaurent les

énoncés comme des événements (ayant leurs conditions et leur domaine d’apparition) et des choses
(comportant leur possibilité et leur champ d’utilisation). Ce sont tous ces systèmes d’énonc és
(événements pour une part, et choses pour une autre) que je propose d’appeler archive.” Na tradução
brasileira, p.146:
60 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,

novembre 2015, p.28. Leia-se: “[…] l’archéologie foucaldienne assumait l’idée d’une transformation
radicale des cadres de la connaissance et de l’expérience.”
33

do conhecimento e das experiências são determinadas por recortes históricos.61 Outro


aspecto é que a condução arqueológica manifesta a limitação histórica humana: por
se viver na atualidade, somente se dispõe de “arquivos” limitados para recompor os
enunciados e seu sentido. E também o reverso, ao expor que a história é o produto
do empreendimento humano, que tenta conservar tudo em “discursos” no extenso
arquivo chamado cultura. Portanto, a arqueologia foucaultiana se direciona à
“exploração horizontal do espaço do discurso” nos arquivos de uma cultura, ela é
“eminentemente histórica e espacial ao mesmo tempo.”62

Em suma, para encontrar as condições de possibilidade históricas, a


arqueologia deve descrever o espaço onde se desdobram os pensamentos e os
saberes: as suas condições de emergência, a constituição, as transformações
possíveis. Ela é uma pesquisa histórica e comparativa nos espaços das possibilidades
discursivas presentes na atualidade.

Essa remissão à arqueologia foucaultiana foi importante porque fará


compreender melhor as pesquisas desenvolvidas em NC. Pode-se acompanhar com
mais discernimento as descrições detalhadas das práticas discursivas em seu espaço
histórico, as análises comparativas, igualmente perceber o enfoque no limiar de
transformação dos saberes e as condições de possibilidade do nascimento da clínica
médica. Especialmente em NC, pode-se reconhecer o trabalho arqueológico
foucaultiano ainda em sua fase inicial, próximo da epistemologia histórica e de HF,
mas já adentrando de forma original no estudo dos discursos da verdade científica
sobre os homens.

61Ver em: Ibid., p.29.


62 Ibid.,p.29. Leia-se no extrato: “Cette existence intégralement historicisée de notre culture impose
d’en finir avec l’enquête verticale sur les fondements et oriente l’archéologie vers l’exploration
horizontale de l’espace du discours. […] Foucault met l’accent sur sa nature éminemment hi storique
et spatiale en même temps.”
34

CAPÍTULO II – SABER MÉDICO

“Este livro trata do espaço, da linguagem e da morte; trata do olhar.”


Primeira linha de NC.

O desenvolvimento das reflexões sobre o discurso médico requer retomar três


noções relacionadas aos primeiros trabalhos de Foucault, sendo elas: acontecimento,
saber e arqueologia, esta última já tratada no item anterior.

O termo “acontecimento” [l’événement] aparece nos projetos de Michel


Foucault geralmente com o sentido daquilo que irrompe historicamente em sua
materialidade e singularidade. Na investigação dos saberes, ele tratará dos
“acontecimentos discursivos”, conforme pode ser apreendido na passagem
esclarecedora a seguir, na qual Foucault distingue a sua investigação da historiografia
tradicional do pensamento.

Vê-se igualmente que essa descrição do discurso se opõe à história


do pensamento. [...] A análise do pensamento é sempre alegórica em
relação ao discurso que utiliza. Sua questão, infalivelmente, é: o que
se dizia no que estava dito? A análise do campo discursivo é orientada
de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado
na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as
condições de sua existência, de fixar os seus limites da forma mais
justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a
que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação
exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-
silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia
ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros
e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. A
questão pertinente a uma tal análise poderia ser assim formulada: que
singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma
outra parte? 63

63 Leia-se: “On voit également que cette description du discours s’oppose à l’histoire de la pensée. [...]
L’analyse de la pensée est toujours allégorique par rapport au discours qu’elle utilise. Sa question est
infailliblement: qu’est-ce qui se disait donc dans ce qui était dit? L’analyse du champ discursif est
orientée tout autrement; il s’agit de saisir l’énoncé dans l’étroitesse et la singularité de son événement;
de déterminer les conditions de son existence, d’en fixer au plus juste limites, d’établir ses corrélation
aux autres énoncés qui peuvent lui être liés, de montrer quelles autres formes d’énonciation il exclut.
On ne cherche point, au-dessous de ce qui est manifeste, le bavardage à demi silencieux d’un autre
discours; on doit montrer pourquoi il ne pouvait être autre qu’il n’était, en quoi il est exclusif de tout
autre, comment il prend, au milieu des autres et par rapport à eux, une place que nul autre ne pourrait
35

Acima, compreende-se duas asserções interligadas que definem a abordagem


dos discursos como “acontecimentos”: a suspensão da função interpretativa sobre os
discursos, para considerá-los nos seus próprios enunciados; e a aceitação de um
recorte histórico para análise. Adiantando-se em explicitar outras afirmações de
Foucault, a interpretação teria por função unificar os discursos, sob tais formas que
devem ser suspendidas: a unidade do livro, da obra, do autor, da noção de influênci a,
evolução, ou tradição, unificação sob os temas da teleologia, do retorno à origem e da
repetição do mesmo. Ao tomar os discursos como acontecimentos e suspender a
aplicação dessas unidades aceitas, ele pretende tornar-se livre para descrever
relações entre grupos de enunciados, mesmo que não tenham o mesmo nível formal,
que pertençam a domínios vizinhos ou distintos, ou que sejam de diversos autores e
de ordens diferentes. Resumindo, o acontecimento discursivo é considerado em sua
singularidade desde a sua instauração, através dos conjuntos finitos que pode formar
no jogo da sua instância, e conforme se dispersa, transforma-se e acaba por se apagar
“na poeira dos livros”.64

A palavra “saber” [le savoir] é justamente o referencial da arqueologia. É


designado por Foucault como o campo das formações discursivas, constituindo-se por
um recorte histórico e pela escolha de um domínio, no qual se pode reconhecer leis
ou regras comuns aos diversos enunciados. O saber é um espaço histórico em que
se pode descrever os acontecimentos discursivos relacionados, desvencilhando-se
das “distinções dos grandes tipos ou gêneros de discursos, ciência, literatura, filosofia,
religião, história, ficção, etc.”; e desdobrando, assim, o campo das análises, embora,
para haver um ponto de partida, a “ciência” possa ser promissora como o principal
domínio escolhido.65 Fora preciso, também, estabelecer alguns critérios que
delimitassem as investigações e que pudessem funcionar, ainda que provisoriamente,
para relacionar as formações discursivas em conjuntos que teriam permanecido
invisíveis. Sob relações invisíveis, não porque fossem secretas, mas porque nunca
foram formuladas e analisadas dessa maneira, a partir da coexistência dos

occuper. La question propre à une telle analyse, on pourrait la formuler ainsi: quelle est donc cette
singulière existence, qui vient au jour dans ce qui se dit, – et nulle part ailleurs?, em FOUCAULT,
Michel. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.p.39-40 (AS). Tradução brasileira:
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária: 2009, em p.30-1.
64 Ver em Ibid., p.31-8. Trad., p.23-9.
65 FOUCAULT, Michel. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.p.33. Trad. brasileira, p.24.
36

enunciados, de seu funcionamento mútuo, das transformações, das diferenças e das


dispersões. Essas relações eram regidas por leis, regras ou jogos, aos quais ele
denomina de “positividades”. Foucault pontua quatro critérios de positividades nas
relações que poderiam constituir um campo de “saber”, sintetizados no extrato a
seguir.

Em resumo, estamos diante de quatro critérios que permitem


reconhecer unidades discursivas que não são absolutamente as
unidades tradicionais (sejam elas: o “texto”, a “obra”, a “ciência”; ou o
domínio ou a forma de discurso, os conceitos que ele utiliza ou as
escolhas que manifesta). Esses quatro critérios não somente não são
incompatíveis, mas eles se reclamam uns aos outros: o primeiro define
a unidade de um discurso pela regra de formação de todos os seus
objetos; o outro, pela regra de formação de todos os seus tipos
sintáticos; o terceiro, pela regra de formação de todos os seus
elementos semânticos; o quarto, pela regra de formação de todas as
suas eventualidades operatórias. 66

Esses quatro critérios delimitam os conjuntos discursivos que: (1) se


referenciam ao mesmo objeto; (2) tem a mesma forma sintática; (3) tem os mesmos
elementos conceituais ou (4) operam na mesma estratégia. Sabe-se que foram
critérios iniciais e que, no decorrer das pesquisas, foram amplificados para recobrir as
dispersões, as regularidades e as práticas de cada campo.

Em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”


[1968], Foucault responde a questões sobre seu trabalho, e inclui referências
retrospectivas à NC, entre os campos de saber descritos por ele. É exatamente ao
exemplificar o segundo critério de formações discursivas escolhido por ele, que se
deterá na ciência médica.67

O critério “sintático” para o discurso médico, como um campo de saber em NC,


organiza-se sob três elementos, abordados a seguir.

66 No original: “En résumé, nous voici en présence de quatre critère qui permettent de reconnaître des
unités discursives qui ne sont point les unités traditionnelles (que ce soit le “texte”, l’“oeuvre”, la
“science”; ou que ce soit le domaine ou la forme du discours, les concepts qu’il utilise ou les choix qu’il
manifeste). Non seulement ces quatre critères ne sont pas incompatibles, mais ils s’appellent les uns
les autres: le premier définit l’unité d’un discours par la règle de formation de tous ses objets; l’autre
par la règle de formation de tous ses types syntaxiques; le troisième par la règle de formation de tous
ses éléments sémantiques; le quatrième par la règle de formation de toutes ses éventualités
opératoires.”, em FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. (DE
I), em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.747. Trad. brasileira
Ditos e Escritos Vol II, p.106.
67 Ver DE I, em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.740-2 e

p.750-3. Trad. Vol II, p.99-101 e p.109-12.


37

 Enunciados descritivos

Foucault diz ter reconhecido na medicina, a partir do século XIX, um estilo de


enunciado descritivo, o que foi o ponto de partida para tentar analisá-la como uma
“ciência descritiva”. Parecera-lhe que, desde então, a medicina poderia ter-se formado
como uma ciência que supunha o mesmo olhar sobre as coisas. Na medicina clínica
o conhecimento se dava pela percepção e análise do fato patológico no espaço visível
do corpo, e pela sua transcrição usando um vocabulário próprio, ou seja, a
formalização do saber médico se daria pelos enunciados descritivos. Ele logo
reconheceu que essa primeira hipótese era insuficiente, porque além dessas
formulações descritivas, o campo do discurso médico compunha-se com grande
dispersão, e por dois motivos: a complexidade das relações discursivas e os
deslocamentos constantes do saber médico.

 Complexidade dos conjuntos discursivos

O grande discurso clínico também era formado por um “conjunto de prescrições


políticas, decisões econômicas, regulamentos institucionais, modelos de ensino”,
sendo que este não podia ser abstraído daquele conjunto das descrições.68 Não era
possível tratar a ciência médica como se fosse independente e soberana, ela, na
verdade, articulava-se e se dispersava em relações com sistemas exteriores a ela.

 Deslocamentos dos enunciados descritivos

Ele reconheceu que os discursos médicos descritivos não cessaram de se


alterar, deslocando seu ponto de vista ou o tipo análise. Vejam-se as alterações. (1)
Os referenciais mudaram, entre Bichat – que descrevia as alterações dos tecidos, e a
patologia celular. (2) Os Instrumentos e o sistema de informação mudaram, entre a
inspeção visual, palpação e ausculta e o uso do microscópio e dos exames adicionais.
(3) O léxico dos sinais e sua interpretação mudaram, entre a correlação
anatomoclínica simples e a análise mais fina dos processos fisiopatológicos. (4) A
posição do médico como sujeito que olha mudou, porque deixou de ser o lugar de
registro e interpretação da informação, para passar a usar o que foi constituído fora
dele, em forma de massa de registros, instrumentos de correlação e técnicas de
análise. Essas transformações fizeram com que na atualidade não se esteja mais na

68 Ibid., p.741. Trad. Vol.II, p.100.


38

medicina clínica como formulada no século XIX, por conta de que ela vem se
desfazendo desde o seu surgimento. Ou seja, ao olhar do médico em si, foram sendo
lentamente adicionados instrumentos, métodos de análise de registros, e outros
recursos descritos por Foucault numa redefinição do discurso clínico, reproduzida
abaixo.

De fato, a unidade do discurso clínico não é uma forma determinada


de enunciados, mas um conjunto de regras que, simultânea e
sucessivamente, tornou possível não somente descrições puramente
perceptivas, mas também observações mediatizadas por
instrumentos, protocolos de experiências de laboratórios, cálculos
estatísticos, constatações epidemiológicas ou demográficas,
69
regulamentos institucionais, decisões políticas.

Ao levar em consideração esses três elementos – descrições,


complexidade e deslocamento dos discursos, ele explica: a medicina clínica é
caracterizada justamente por esse conjunto heterogêneo de enunciados, pela maneira
como se repartem, se implicam, se excluem e se transformam. O estilo do enunciado
médico não tem papel central, é a própria heterogeneidade ou dispersão dos
enunciados que será a regra geral do saber médico. O discurso clínico é uma
formação complexa. Pode incluir ciências como a microbiologia, a fisiologia, a
bioquímica, mas não é todo ele uma unidade buscando em conjunto a condição
científica; pode englobar codificações de experiências, como a semiologia; pode
conter reflexões e determinações administrativas, políticas, econômicas, morais em
seu campo. Concluindo, diz Foucault, a clínica

é um conjunto enunciativo simultaneamente teórico e prático,


descritivo e institucional, analítico e prescritivo, composto tanto de
inferências como de decisões, tanto de afirmações como de
decretos.70

Em Arqueologia do saber (AS) [1969], novamente aparece a dispersão que


compõe o discurso médico, a partir do século XIX. Eis o que se pode encontrar, diz
ele: “descrições qualitativas, narrações biográficas, demarcação, interpretação e
recorte de signos, raciocínios por analogia, dedução, estimativas estatísticas,
verificações experimentais, e muitas outras formas de enunciados.”71 Foucault

69 DE I, em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.741. Trad. Vol II,
p.100-1.
70 DE I, em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.750. Trad. Vol II,

p.109.
71 AS, p.68. Trad., p.56.
39

acentua a maneira como a medicina clínica instaura um sistema de relações que não
estaria dado a priori, através das suas práticas discursivas. Ele reconhece que a
unidade do saber médico se dá por permitir a articulação dos diversos tipos de
discursos. As condições de possibilidade para isto estariam ligadas a elementos que
ele tentou identificar, pontuados abaixo.72

 Status do médico

É o médico quem ocupa o lugar reconhecido por competência e por direito para
proferir os discursos (segundo os critérios das normas pedagógicas ou das
regulamentações e limitações legais). Além disso, seu lugar compreende estar
inserido em um sistema de relações com outros indivíduos que têm status próprios
em diferentes instituições ou corpos profissionais – políticos, jurídicos e religiosos.
Nesse sistema de relações o médico cumpre “divisão das atribuições, subordinação
hierárquica, complementaridade funcional, demanda, transmissão e troca de
informações.”73 Seu status compreende também os papéis que deve desempenhar
quando requisitado por uma pessoa, profissionalmente, ou pela sociedade, em
funções reconhecidas pelo direito de decisão e de intervenção; porque ele deve ser o
responsável pela saúde dos indivíduos, da família, dos grupos ou da população.
Foucault conclui que o status do médico é bastante singular dentro da sociedade, não
sendo intercambiável com outros profissionais. Portanto, o discurso que ele profere é
indissociável da sua personagem, definida por seu status, o qual lhe dá o direito de
proferi-lo, e através dele “reivindicar para si o poder de conjurar o sofrimento e a
morte.”74

 Lugares institucionais

São as instituições em que o médico obtém legitimamente seu discurso e,


também, onde o aplica. Eles podem ser: o hospital, o laboratório, a prática privada e
o campo documentário. Os principais lugares foram sendo constituídos assim: (1) a
partir do século XIX, o hospital passou a ser o local de observação sistemática da
doença, não mais deixada em seu ambiente natural, mas nele submetida a uma
observação constante e codificada, por pessoal médico diferenciado; (2) passou-se a

72 AS, p.68-74. Trad., p.56-61.


73 AS, p.68. Trad., p.56.
74 AS, p.69. Trad., p.57.
40

adotar registros sobre a frequência das doenças e o seu processo de evolução, a fim
de analisar as oportunidades para uma forma homogênea de abordagem, portanto, a
estatística e a documentação tiveram crescente importância; (3) o laboratório foi
integrado à prática médica, adotando-se as normas experimentais da física, química
e biologia. Numa conclusão importante, na qual Foucault resume as modificações
ocorridas no século XIX, o hospital será: “o local de aparecimento da doença, não
mais como espécie singular que desdobra seus traços essenciais sob o olhar do
médico, mas como processo intermediário com seus marcos significativos, seus
limites, suas oportunidades de evolução.”75 É, portanto, através desses locais,
principalmente do hospital, que a doença se transforma em um meio para a atuação
das práticas discursivas.

 Situação ocupada pelo sujeito em relação aos objetos e aos diversos domínios.

Primeiramente, é o ponto de vista do “olhar médico” e como ele questiona,


escuta e observa, conforme um programa estabelecido, adotando uma distância
perceptiva ótima para delimitar as informações pertinentes, e depois anota
descritivamente. Ou quando adota instrumentos intermediários que deslocam o nível
perceptivo e aprofundam sua relação com o objeto, das manifestações dos sintomas
para os órgãos, dos órgãos para os tecidos, dos tecidos para as células. Uma segunda
situação é aquela que o médico ocupa em relação às redes de informações: no ensino
teórico ou na pedagogia hospitalar; como receptor e fornecedor de informações para
estatísticas, relatórios, proposição de teorias, projetos e participação em decisões. No
século XIX, houve uma reorganização dessas duas situações do sujeito do discurso
médico, a saber. (1) O campo perceptivo deslocou-se e também se aprofundou, pelo
uso de novos instrumentos, técnicas cirúrgicas e métodos de autópsia centrados no
foco da lesão; os novos registros tornaram-se mais descritivos e detalhados na
notação e na classificação, integrando-se às estatísticas. (2) Instituíram-se novas
formas de ensino, com mais circulação das informações e, também, houve a
integração a outros domínios teóricos, em que Foucault destaca as ciências e a
filosofia; e a integração a outras instituições (políticas, administrativas, econômicas).
A doença passou a ser reconhecida nos focos das lesões, ou seja, no próprio corpo

75AS, p.70-1. Trad., p.58. Leia-se: “{l’hôpital devient] le lieu d’apparition de la maladie, non plus
comme espèce singulière déployant ses traits essentiels sous le regard du médecin, mais comme
processus moyen avec ses repères significatifs, ses limites, ses chances d’évolution.”
41

do doente, sendo analisada inicialmente pelo olhar médico, e logo em seguida, com
auxílio de instrumentos ópticos, técnicas de exploração do corpo, análises estatísticas
e laboratoriais, experimentações e outros. A doença também se dispersou em uma
série de domínios, levada pelas situações relacionadas às funções do médico na
sociedade.

As condições de possibilidade do discurso clínico, no século XIX, foram


basicamente essas três: as posições adotadas pelo médico; as instituições,
principalmente o hospital; e as relações discursivas, estas que se articularam numa
rede de práticas e se integraram no saber médico. Contudo, essas condições de
possibilidades são históricas, ou seja, não são universais nem constantes e, para
Foucault esses elementos decorreram de escolhas e podem ser nomeadas como
“estratégias”. Os sistemas de estratégias podem ser reconhecidos quando se analisa
as regularidades, a formação de séries, as funções dos enunciados, as apropri ações
e as relações com as escolhas. As estratégias não devem ser tomadas como uma
visão de mundo ou como expressão hipócrita dos interesses; nos conjuntos
discursivos, as estratégias são as maneiras diferentes de tratar os objetos, os
conceitos, as coerências; “são maneiras reguladas (e descritíveis como tais) de utilizar
possibilidades de discursos.”76 Note-se, Foucault enfatiza que o ponto de análise em
NC fora a maneira pela qual o discurso médico mudou no fim do século XVIII e início
do século XIX; não se tratando mais de buscar escolhas conceituais ou teóricas, mas
de avaliar as modalidades enunciativas relacionadas ao status, ao lugar institucional
e à função do sujeito falante.

Para Foucault, o discurso médico moderno não é caracterizado por uma


formalização específica, um tipo de enunciado necessário, um horizonte de
racionalidade e de progressos contínuos, ou por modelos teóricos e experimentai s
influenciados ou liberados das tradições, nem pela unidade de um sujeito fundador do
conhecimento. Ele conclui, como segue.

Na análise proposta, as diversas modalidades de enunciação, em


lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito,
manifestam sua dispersão [Foucault coloca essa nota: por isso, a
expressão “olhar médico” empregada em Naissance de la clinique não
era muito feliz]: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas

76AS, p.93, lê-se: “Ces options [les stratégies] […] ce sont des manières réglées (et descriptibles
comme telles) de mettre en œuvre des possibilités de discours. ” Trad., p.77.
42

posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na


descontinuidade dos planos de onde fala. Se esses planos estão
ligados por um sistema de relações, este não é estabelecido pela
atividade sintética de uma consciência idêntica a si, muda e anterior a
qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva.
[...] antes um campo de regularidade para diversas posições de
subjetividade.77

A manifestação do discurso clínico não se deveu a um sujeito transcendental,


nem a uma subjetividade psicológica, mas se deu num “espaço de exterioridade e se
desenvolveu numa rede de lugares distintos.”78 A “síntese” dessa dispersão foi
estabelecida pelas práticas discursivas, num sistema de relações exteriores ao que
se poderia chamar de “sujeito do conhecimento médico”.

Então, a forma de pensar e de agir da medicina moderna foi constituída por


escolhas que se fizeram no ambiente anônimo das formações discursivas,
relacionadas ao papel que foi designado ao médico, aos espaços em que se moveu e
às funções que ocupou? Não se trata de perguntar quais discursos os médicos
proferiram, mas sim quais discursos constituíram os médicos na modernidade? Sim,
essa é a proposta de Foucault, é inverter o problema tradicional.

Na conferência “Qu’est-ce qu’un auteur?” [1969] Foucault analisa a “função


autor” na literatura moderna, e talvez se possa tentar pensar a “função médico” na
medicina clínica, com certa analogia às afirmações de Foucault transcritas abaixo.

Trata-se de inverter o problema tradicional. Não mais colocar a


questão: como a liberdade de um sujeito pode se inserir na
consistência das coisas e lhes dar sentido, como ela pode animar, do
interior, as regras de uma linguagem e manifestar assim as pretensões
que lhes são próprias? Mas antes colocar essas questões: como,
segundo que condições e sob que formas alguma coisa como um
sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar ele pode
ocupar em cada tipo de discurso, que funções exercer, e obedecendo
que regras? Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do seu

77 Em AS, p.74, lê-se: “Dans l’analyse proposé, les diverses modalités d’énonciation au lieu de
renvoyer à la synthèse ou à la fonction unifiante d’un sujet, manifestent sa dispersion. [Note. A ce
titre, l’expression de “regard médical” employée dans Naissance de la Clinique n’était pas très
heureuse.] Aux divers statuts, aux divers emplacements, aux diverses positions qu’il peut occuper ou
recevoir quand il tient un discours. A la discontinuité des plans d’où il parle. Et si ces plans sont reliés
par un système de rapports, celui-ci n’est pas établi par l’activité synthétique d’une conscience
identique à soi, muette et préalable à toute parole mais par la spécificité d’une pratique discursive. [...]
plutôt un champ de régularité pour diverses positions de subjectivité.” Trad., p.61
78 AS, p.74. Trad., p.61. Lê-se: “Il est un espace d’extériorité où se déploie un réseau d’emplacements

distincts”
43

substituto) seu papel de fundamento originário, e de analisá-lo como


uma função variável e complexa do discurso.79

Sob o impacto dessa proposta foucaultiana, a leitura de NC desenvolvida neste


trabalho, será organizada sob os três elementos que operariam no discurso médico
moderno, conforme destacados por Foucault em AS. Sabe-se que AS pode ser
considerado uma revisão do projeto arqueológico, na qual, contudo, os livros
anteriores não podem ser inteiramente assimilados, porque Foucault procurou
reformular e dar novas bases à sua história arqueológica.80 Mas, especialmente, em
se tratando da medicina, a revisão realizada em AS parece fazer sentido para
diagnosticar a medicina da atualidade. Igualmente, para se propor uma articulação
dos capítulos de NC, por exemplo, ao abordar a dispersão e as relações discursivas
que constituíram a medicina clínica. Por isto, a aposta em organizar os capítulos
seguintes deste trabalho, conforme os três itens abaixo.

(1) Discursos descritivos científicos: trata-se inicialmente do olhar e da linguagem;


trata-se de como se constitui o sujeito que sabe e age, a partir de que posição e de
quais regras. Esses aspectos serão desenvolvidos no capítulo III.

(2) Olhar médico e seus deslocamentos: trata-se também das práticas discursivas e
do seu funcionamento, das escolhas, das decisões, das regularidades, das novas
racionalidades práticas sobre o corpo. A serem abordadas no capítulo IV.

(3) Dispersão das práticas discursivas: quais são as relações discursivas, quais são
as relações sociais em que o médico participa? Quais são as funções preparadas para
os médicos, quais instituições o reclamam? E também, o que bloqueia, anula, reduz
o discurso médico? São questões investigadas no capítulo VI.

79 FOUCAULT, Michel. Articles, préfaces, conférences. Oeuvres. Tome II. Bibliothèque de la Pléiade.
Paris: Gallimard, 2015.p.1279 (Qu’est-ce qu’un auteur?) (QA ?). Tradução brasileira, FOUCAULT,
Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e Escritos, vol. III. Tradução de
Inês Autran Dourado Barbosa. Organização de Manoel Barros da Motta. 2.ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006.p.287. No original: “Il s’agit de retourner le problème traditionnel. Ne plus
poser la question : comment la liberté d’un sujet peut-elle s’insérer dans l’épaisseur des choses et lui
donner sens, comment peut-elle animer, de l’intérieur, les règles d’un langage et faire jour ainsi aux
visées qui lui sont propres ? Mais poser plutôt ces questions : comment, selon quelles conditions et
sous quelles formes quelque chose comme un sujet peut -il apparaître dans l’ordre des discours ?
Quelle place peut-il occuper dans chaque type de discours, quelles fonctions exercer, et en obéissant
à quelles règles ? Bref, il s’agit d’ôter au sujet (ou à son substitut) son rôle de fondement originaire, et
de l’analyser comme une fonction variable et complexe du discours. ”
80 Ver em MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

2009.p.156-62.
44

Inserido entre eles, encontra-se o capítulo V – “Discurso, morte, vida”, porque


é o coração da tese. Como também, o discurso da morte e da finitude se constitui o
coração do saber médico moderno, e igualmente, o fulcro central do livro de Foucault,
exposto no capítulo VIII – “Abram alguns cadáveres”.

O capítulo VII é o prolongamento das reflexões sobre as relações discursivas


da medicina, contudo, nele se busca o desfecho deste trabalho.
45

CAPÍTULO III – DISCURSOS DESCRITIVOS CIENTÍFICOS

É nas transformações do saber médico entre os séculos XVIII e XIX que


Foucault delimita seus estudos para mostrar como a medicina clínica moderna
nasceu. NC descreve as condições históricas que possibilitaram um novo discurso
médico, que se distinguirá daquele da idade clássica.

1. Medicina clássica do século XVIII

Para Foucault, a compreensão da doença era inteiramente diferente no século


XVIII em relação à medicina clínica do século XIX, a forma emergente da racionalidade
médica moderna.

Compreender como era a medicina antes do fim do século XVIII exige um


trabalho persistente, pela dificuldade de reconstituir como se pensava anteriormente.
Por isto, é preciso se deter e acompanhar os pontos principais da configuração da
medicina clássica levantados nos escritos de Foucault, para perceber as
transformações do saber médico. Também se propõe aqui inserir, alternadamente,
como exemplo ilustrativo, os escritos sobre a tuberculose, essa doença que é um dos
males que atravessam os séculos.

A medicina clássica também foi chamada de medicina classificatória por


Foucault, porque ela seguia o modelo da História Natural, conforme proposto por
Lineu, em que todos os seres vivos deveriam ser classificados em nome, teoria,
gênero, espécie e atributos. Assim como nos mostruários de animais ou nos jardins
de plantas para organização da taxinomia, as doenças eram representadas em
quadros naturais de distribuição nos gabinetes médicos. Interessante observar que as
doenças eram compreendidas como entidades ideais, com suas características
naturais próprias, entidades que poderiam se inserir no organismo vivo e produzir as
morbidades. Diagnosticar era, portanto, decifrar e classificar a doença e localizá-la no
46

quadro das espécies, sendo que esse quadro nosológico era o meio de formalizar um
diagnóstico. Era preciso articular os achados concomitantes e encontrar homologias
para concluir a classificação. Quais eram as configurações primárias das doenças?
No primeiro capítulo de NC, “Espaços e Classes”, Foucault identifica quatro: (1) pelo
desenrolar dos fenômenos mórbidos, que eram fundados historicamente, e não por
causa e efeito; (2) por analogia ou parentesco das sensibilidades e dos movimentos
que se estreitam e se repetem levando a uma identidade; (3) pela ordem racional
segundo as leis naturais; (4) pelas espécies naturais e ideais. O paciente ou o médico,
contudo, poderiam perturbar a experiência ideal da doença. O paciente devia ser
abstraído, como um acidente na expressão da doença a ser decifrada; e o médico
dirigia sua atenção não ao corpo concreto do doente, mas à rede de combinações que
ficava diante dele e ao seu histórico, para reconhecer a configuração essencial da
doença e saber a hora certa de agir, nem cedo, nem tarde.

A febre héctica era uma doença reconhecida pela oscilação de temperatura do


corpo durante períodos longos de meses ou anos, acompanhada de emagrecimento ,
e levando progressivamente à caquexia. A febre héctica, quando seus traços
essenciais iam emergindo no doente, levava a essa sequência e combinação de
fenômenos. O curso natural da febre era o que permitia o seu diagnóstico, por esse
motivo é que o doente devia ser mantido no seu ambiente natural até o
desenvolvimento claro da doença. Era melhor que ele permanecesse em casa, com
sua família, livre de influências que pudessem mascarar o seu curso próprio. As febres
tinham parentesco, mas o que decifrava a variante héctica era seu histórico, suas
frequências, suas combinações, suas qualidades, e o médico devia ter uma conduta
expectante para diagnosticar pacientemente. As qualidades que deviam ser
percebidas eram certas faltas ou excessos, secura ou umidade, tipo de movimentos,
temperatura, coloração. A febre héctica, ou tísica, era reconhecida pela inflamação
seca dos pulmões, pela tosse e finalmente pela hemoptise, que é a eliminação de
sangue pela boca provinda dos pulmões. As classes das qualidades da tísica eram,
portanto, a secura, o esgotamento e a hemorragia. Tais qualidades podiam sofrer
deslocamentos no espaço do organismo, e vir a atacar diversos órgãos, baixar ao
abdômen, ou subir à cabeça, mantendo suas qualidades.

Foucault tenta mostrar que o plano da doença não é exatamente o corpo, mas
um espaço ideal em que estavam representadas as afecções e onde se desenrolava
47

o raciocínio médico. O quadro nosológico era o espaço primário da doença. O corpo


do doente era o espaço secundário onde a doença se singularizava. Os sofrimentos
do doente seriam traços das morbidades, percebê-los e combatê-los quase se dá num
espaço exterior aos seus padecimentos. Vê-se que a medicina clássica, cujos
fundamentos pareciam demasiadamente abstratos, levava à dissociação entre a
doença e o doente. Mas, adentrando no século XIX, o vínculo entre a doença e o corpo
do doente foi sendo constituído.

2. Medicina clínica do século XIX

É dessa data a percepção de que a tuberculose escava o corpo. Tendo o olhar


médico passado a reconhecer a doença no próprio corpo, isso permitiu relacionar os
sintomas da doença aos achados clínicos das novas técnicas de exame físico. Por
exemplo, as lesões pulmonares tuberculosas passaram a ser pesquisadas,
reconhecidas e depois confirmadas pelo exame anatomopatológico. Os próprios
sintomas e os achados físicos passaram a significar a doença e, após a morte, o signo
tecidual a confirmava.

A tuberculose era uma doença muito antiga, de evolução crônica e incurável,


sendo que a partir do século XVIII tornou-se epidêmica e devastadora na
concentração das populações das cidades. Embora existissem várias descrições das
lesões teciduais, foi Laënnec, em 1819, quem estabeleceu a lesão cavitária pulmonar
como inequivocamente diagnóstica da tuberculose. Outros marcos cronológicos
mostram que a cura em sanatório foi descrita em 1854, o seu caráter contagioso foi
estabelecido em 1865, e foi somente em 1882, que Robert Koch divulgou o isolamento
do bacilo da tuberculose e o reconheceu como causador da doença. Lembre-se que
desde 1857, Pasteur havia aberto o caminho da microbiologia.

Nos seguintes extratos de NC, selecionados em vários momentos do livro, e


enumerados aqui em itens de 1) a 5), pode-se acompanhar como o saber médico em
sua percepção sobre a tuberculose foi se aprofundando no corpo. Inicialmente, a
tuberculose era uma reunião de sintomas, o seu significado estava nas próprias
48

palavras. No extrato 1), vemos um médico como Cabanis diagnosticar a pleurisia, mas
bem poderia ser a tuberculose, utilizando o método dos signos sintomáticos. Em
seguida, nos extratos 2) e 3), para o estabelecimento do diagnóstico, fora preciso
encontrar um sinal patognomônico ao examinar o doente, qual era perceber um som
distinto na ausculta do tórax, de Bayle a Laënnec. Enfim, nos extratos 4) e 5), com
Bichat, as próprias lesões mórbidas características é que significaram a doença, assim
entrelaçando a vida e a morte num mesmo ato de percepção.

1) Um homem tosse; cospe sangue; respira com dificuldade; seu pulso


é rápido e forte; sua temperatura se eleva: tantas impressões
imediatas, tantas letras, por assim dizer. Todas reunidas, formam uma
doença, a pleurisia: “Mas o que é, portanto, uma pleurisia?...É o
concurso desses acidentes que a constituem. A palavra pleurisia nada
faz além de retraçá-los de maneira mais abreviada.” A “pleurisia” não
leva consigo mais ser do que a própria palavra; “exprime uma
abstração do espírito”; mas, como a palavra, é uma estrutura bem
definida, uma figura múltipla “na qual todos ou quase todos os
acidentes se encontram combinados. Se falta um, ou vários, não é a
pleurisia, pelo menos a verdadeira pleurisia.”81

2) Foi aplicando esse princípio [da tipologia das alterações dos tecidos
de Dupuytren] que Bayle pode seguir totalmente a evolução da tísica,
reconhecer a unidade de seus processos, especificar suas formas e
distingui-la de afecções, cuja sintomatologia pode ser semelhante,
mas que respondem a um tipo absolutamente diferente de alteração.
A tísica se caracteriza por uma “desorganização progressiva” do
pulmão, que pode tomar uma forma tuberculosa, ulcerosa, calculosa,
granulosa com melanose, ou cancerosa; e não se deve confundi-la
com a irritação das mucosas (catarro), nem com a alteração das
secreções serosas (pleurisia), nem sobretudo com uma modificação
que também ataca o pulmão, mas sob a forma de inflamação: a
peripneumonia crônica.82

81 NC, p.120. Trad., p.131. Leia-se : “Un homme tousse ; il crache du sang ; il respire avec difficulté ;
son pouls est rapide et dur ; sa température s’élève : autant d’impressions immédiates, autant de
lettres, pour ainsi dire. Toutes réunies, elles forment une maladie, la pleurésie : ‘Mais qu’est-ce donc
qu’une pleurésie ?... C’est le concours de ces accidents qui la constituent. Le mot pleurésie ne fait
que les retracer d’une manière plus abrégée. La ‘pleurésie’ n’emporte pas avec soi plus d’être que le
mot lui-même ; elle ‘exprime une abstraction de l’esprit’ ; mais, comme le mot, elle est une structure
bien définie, une figure multiple ‘ dans laquelle tous ou presque tous les accidents se trouvent
combinés. S’il en manque un ou plusieurs, ce n’est point la pleurésie, du moins la vraie pleurésie.’”
Foucault está citando Cabanis, Du degré de certitude, 3ª ed., Paris, 1819, p.86.
82 NC, p.154. Trad., p.166. Leia-se: “C’est en appliquant ce principe que Bayle a pu suivre de bout en

bout l’évolution de la phtisie, reconnaître l’unité de ses processus, spécifier ses formes, et la
distinguer d’affections dont la symptomatologie peut être semblable, mais qui répondent à un type
d’altération absolument différent. La phtisie est caractérisée par une ‘désorganisation progressive’ du
poumon, qui peut prendre une forme tuberculeuse, ulcéreuse, calculeuse, granuleuse, avec
mélanose, ou cancéreuse ; et on ne doit la confondre ni avec l’irritation des muqueuses (catarrhe) ni
avec l’altération de sécrétions séreuses (pleurésie), no surtout avec une modification qui attaque elle
aussi le poumon lui-même, mais sur le mode de l’inflammation : la péripneumonie chronique.”
Foucault está citando G.L. Bayle, Recherches sur la phtisie pulmonaire, 1810, p.12.
49

3) Bayle, em 1810, foi obrigado a recusar sucessivamente todas as


indicações semiológicas da tísica: nenhuma era evidente ou certa.
Nove anos mais tarde, Laënnec, auscultando uma doente que ele
acreditava atacada de um catarro pulmonar acrescido de uma febre
biliosa, tem a impressão de ouvir a voz sair diretamente do peito, e isto
em uma pequena superfície de cerca de uma polegada quadrada.
Talvez isso fosse o efeito de uma lesão pulmonar, de uma espécie de
abertura no corpo do pulmão. Ele encontra o mesmo fenômeno em
uma vintena de tísicos; distingue-o, em seguida, de um fenômeno
bastante próximo, que se pode constatar nos pleuríticos: a voz parece
igualmente sair do peito, mas é mais aguda que a natural; parece
argêntea e trêmula. Laënnec postula assim a “pectorilóquia” como o
único signo patognomônico certo da tísica pulmonar e a “egofonia”
como signo de derrame pleurítico.83

4) O curso sintomático da tísica pulmonar apresenta: tosse, dificuldade


de respirar, marasmo, febre héctica e, às vezes, expectorações
purulentas; mas nenhuma dessas modificações visíveis é
absolutamente indispensável (existem tuberculosos que não tossem);
e a ordem de entrada em cena não é rigorosa (a febre pode aparecer
logo ou só se desencadear no término da evolução). Um único
fenômeno é constante, condição necessária e suficiente para que haja
tísica: a lesão do parênquima pulmonar que, na autópsia, “se revela
mais ou menos coberto de focos purulentos. Em certos casos, eles
são tão numerosos que o pulmão não parece ser nada mais do que
um tecido alveolar que os contém. Esses focos são atravessados por
grande número de bridas; nas partes vizinhas se encontra um
endurecimento mais ou menos grande.”84

5) O Mórbido autoriza uma sutil percepção do modo como a vida


encontra na morte sua diferenciada figura. O mórbido é a forma
rarefeita da vida, no sentido em que a existência se esgota, se extenua
no vazio da morte; mas igualmente no sentido em que ela ganha nele
seu estranho volume, irredutível às conformidades e aos hábitos, às
necessidades recebidas; um volume singular que define sua absoluta

83 NC, p.163. Trad., p.176. Leia-se: “Bayle en 1810 avait été contraint de récuser successivement
toutes les indications séméiologiques de la phtisie: aucune n’était évidente ni certaine. Neuf ans plus
tard Laënnec auscultant une malade qu’il croyant atteinte d’un catarrhe pulmonaire doublé d’une
fièvre bilieuse a l’impression d’entendre la voix sortir directement de la poitrine, et ceci sur une petite
surface d’un pouce carré environ. Peut-être était-ce là l’effet d’une lésion pulmonaire, d’une sorte
d’ouverture dans le corps du poumon. Il retrouve le même phénomène chez uns vingtaine de
phtisique ; puis il le distingue d’un phénomène assez voisin qu’on peut constatez chez les
pleurétiques : la voix semble également sortir de la poitrine, mais elle est plus aiguë qu’au naturel :
elle semble argentine et chevrotante. Laënnec pose ainsi la ‘pectoriloquie’ comme seul signe
pathognomonique certain de la phtisie pulmonaire, et ‘l’égophonie’, comme signe de l’épanchement
pleurétique.” Foucault está citando Laënnec, Traité de l’auscultation médiate, Paris, 1819, t I.
84 NC, p.140. Trad., p.152-3. Leia-se: “Le cours symptomatique de la phtisie pulmonaire donne : la

toux, la difficulté de respirer, le marasme, la fièvre hectique, et parfois des expectorations purulentes ;
mais aucune de ces modifications visibles n’est absolument indispensable (il y a des tuberculeux qui n
toussent pas) ; et leur ordre d’entrée en scène n’est pas rigoureux (la fièvre peut apparaître tôt ou ne
déclencher qu’au terme de l’évolution). Un seul phénomène constant, condition nécessaire et
suffisante pour qu’il y ait phtisie : la lésion du parenchyme pulmonaire qui, à l’autopsie, ‘se révèle
parsemé de plus ou moins de foyers purulents. Dans certains cas, ils sont si nombreux que le p oumon
ne semble plus être qu’un tissu alvéolaire qui les contient. Ces foyers sont traversés par un grand
nombre de brides ; dans les parties voisines on trouve un endurcissement plus ou moins grand.’”
Foucault está citando X. Bichat, Anatomie pathologique, 1825, p.174.
50

raridade. Privilégio do tísico: outrora se contraía a lepra tendo como


pano de fundo grandes castigos coletivos; o homem do século XIX
torna-se pulmonar, realizando seu incomunicável segredo nessa febre
que apressa as coisas e as atrai. Por isso, as doenças do peito são
exatamente da mesma natureza que as do amor: são a paixão, vida a
quem a morte confere uma fisionomia que não muda. A morte
abandonou seu velho céu trágico e tornou-se o núcleo lírico do
homem: sua invisível verdade, seu visível segredo.85

No item a seguir sobre a protoclínica, vai-se acompanhar mais detalhadamente


as transformações semânticas e sintáticas iniciais das práticas discursivas da clínica
médica no século XIX.

3. Protoclínica, lógica da linguagem

No momento inicial da medicina clínica, o qual Foucault denominou


“protoclínica”, a doença deixou de ser considerada uma abstração essencial e passou
a ser abordada no nível dos sinais e sintomas que os doentes apresentavam. As
doenças seriam os próprios signos delas mesmas. A tosse era um sintoma, mas
também era a própria doença. Diagnosticar significava, então, compilar os sinais e
sintomas, compor e decompor os signos da doença, analisá-los na sua forma e
frequência, para redigir a doença numa palavra. A tuberculose, na protoclínica,
poderia ser reconhecida como tosse.

Nesse momento, Foucault seleciona vários escritos de Cabanis. Esse médico


propunha a ordenação lógica de dados obtidos das observações e dos experimentos ,
para constituir a ciência clínica. O método clinico deveria observar, descrever,
colecionar, decompor, recompor, e comparar as impressões obtidas ao examinar os

85 NC, p.176. Trad., p.190. Leia-se: “Le Morbide autorise une perception subtile de la manière dont la
vie trouve dans la mort sa figure la plus différenciée. Le morbide, c’est na forme raréfiée de la vie ; en
ce sens que l’existence s’épuise, s’exténue dans le vide de la mort ; mais en cet autre sens
également, qu’elle y prend son volume étrange, irréductible aux conformités et aux habitudes, aux
nécessités reçues ; un volume singulier, que définit son absolue rareté. Privilège du pht isique : jadis
on contractait la lèpre sur fond des grands châtiments collectifs ; l’homme du XIXe siècle devient
pulmonaire en accomplissant, dans cette fièvre qui hâte les choses et les trahit, son incommunicable
secret. C’est pourquoi les maladies de poitrine sont de même nature exactement que celles de
l’amour : elles sont la passion, vie à qui la morte donne un visage qui ne s’échange pas. La mort a
quitté son vieux ciel tragique ; la voilà devenue le noyau lyrique de l’homme : son invisible vérité, son
visible secret.”
51

doentes nas escolas médicas e nos hospitais. Com isso, sua prática clínica
permanecia no nível teórico da análise das ideias, herdada de Condillac, e na
superfície dos sinais e sintomas. Cabanis não se aprofundou em buscar as causas
das doenças, nem se interessou pelas probabilidades matemáticas, diferentemente
de outros médicos, como Pinel, Corvisart e Bichat. Na sua coleção Rapports du
physique et du moral de l’homme, Cabanis criou ainda uma doutrina que procurava
desfazer a dualidade entre corpo e alma, detalhando as ligações nervosas entre os
órgãos e o cérebro, e descrevendo as influências recíprocas das sensibilidades e dos
pensamentos, do organismo e do ambiente exterior.86 A sua doutrina não foi adiante,
mas ele acabou sendo reconhecido como reformador da saúde pública e da
pedagogia médica.

No longo excerto de NC abaixo, vê-se Foucault descrever os métodos


semiológicos da protoclínica, citando as recomendações de Tissot, outro médico da
época (1785), para se observar com surpresa que os passos do exame clínico vêm
persistindo praticamente os mesmos até hoje. Justifica-se, portanto, investigar as
práticas da medicina do fim do século XVIII, mesmo que pareçam distantes ou
ultrapassadas em relação à medicina atual, porque, como Foucault insiste e sustenta,
é daquela época a herança da atualidade.

A clínica não é um instrumento para descobrir uma verdade ainda


desconhecida: é uma determinada maneira de dispor a verdade já
adquirida e de apresentá-la para que ela se desvele sistematicamente.
A clínica é uma espécie de teatro nosológico de que o aluno
desconhece, de início, o desfecho. Tissot prescreve que se faça com
que ele procure durante muito tempo. Aconselha que se confie cada
doente da clínica a dois estudantes; são eles e apenas eles, que
examinarão “com decência, com doçura e com esta bondade que é
tão consoladora para estes pobres desafortunados”. Começarão por
interrogá-lo sobre sua pátria e as constituições reinantes, sobre sua
profissão e suas doenças anteriores; a maneira como a atual começou
e os remédios tomados. Farão a investigação de suas funções vitais
(respiração, pulso, temperatura), de suas funções naturais (sede,
apetite, excreções) e de suas funções animais (sentidos, faculdades,
sono, dor). Deverão também lhe “apalpar o baixo ventre para constatar
o estado de suas vísceras”. Mas o que procuram, assim, e que
princípio hermenêutico deve guiar o seu exame? Quais são as
relações estabelecidas entre os fenômenos constatados, os
antecedentes conhecidos, os distúrbios e os deficits observados?
Nada mais do que aquilo que permite pronunciar um nome, o da
doença. Uma vez designada, serão facilmente deduzidos suas

86Consultado em CABANIS, P. J. G. Rapports du physique et du moral de l’homme. Tome premier.


Paris: Charpentier, 1855. p.I-IX. (Notice sur Cabanis)
52

causas, o prognóstico e as indicações, “perguntando-se: O que falta


ao doente? O que se deve então mudar?” Em relação aos métodos
posteriores de exame, o recomendado por Tissot não é menos
meticuloso, excetuando-se alguns detalhes. A diferença entre esse
inquérito e o “exame clínico” reside em que nisto não se faz o
inventário de um organismo doente; assinalam-se os elementos que
permitirão encontrar uma chave ideal – chave que desempenha quatro
funções, pois é um modo de designação, um princípio de coerência,
uma lei de evolução e um corpo de preceitos.87

No capítulo VI de NC, “Signos e Casos”, Foucault explica a transformação


teórica da medicina, no final do século XVIII, possibilitada pela articulação do saber
médico à analítica da linguagem de Condillac (1715-1780) e, também, ao cálculo das
probabilidades de Laplace (1749-1827). Estes dois modelos teóricos, que foram
utilizados pelas práticas médicas, determinaram o papel da percepção na aquisição
do conhecimento e na experiência médica.

Já no início desse capítulo VI, Foucault reproduz um ensaio datado de 1858


sobre a clínica médica de Montpellier, para nele encontrar a descrição das pretensões
da prática médica daquela instituição. Montpellier é a faculdade de medicina antiga e
prestigiosa citada várias vezes por Foucault, possivelmente porque formou médicos
atuantes em vários campos da medicina da época, na clínica, no exército e nos
hospitais, entre eles Pinel e Bichat. A escola atravessou as pressões e exigências

87 NC, p.59-60. Trad., p.64-5. Foucault está citando Tissot, Mémoire pour la construction d’un hôpital
clinique, in Essai sur les études médicales, Lausanne, 1785.p.120-4. “La clinique n’est pas un
instrument pour découvrir une vérité encore inconnue ; c’est une certaine manière de disposer na
vérité déjà acquise et de la présenter pour qu’elle se dévoile systématiquement. La clinique est une
sorte de théâtre nosologique dont l’élève ne connaît pas, d’entrée de jeu, la chef. Tissot prescrit de la
lui faire longtemps chercher. Il conseille de confier chaque malade de la clinique á deux étudiants ; ce
sont eux, et eux seuls, qui l’examineront ‘avec décence, avec douceur, avec cette bonté qui est si
consolante pour ces pauvres infortunés.’ Ils commenceront par l’interroger sur sa patrie, et les
constitutions qui y règnent, sur son métier, ses maladies antérieures ; la manière dont celle-ci a
commencé, les remèdes pris ; ils feront l’investigation de ses fonctions vitales (respiration, pouls,
température), de ses fonctions naturelles (soif, appétit, excrétions), et de ses fonctions animales
(sens, facultés, sommeil, douleur) ; ils devront aussi lui ‘palper le bas-ventre pour constater l’état de
ses viscères’. Mais que cherchent-ils ainsi, et quel principe herméneutique doit guider leur examen ?
Quels sont les rapports établis entre les phénomènes cons tatés, les antécédences apprises, les
troubles et les déficits remarqués ? Rien d’autre que ce qui permet de prononcer un nom, celui de la
maladie. La désignation une fois faite, on en déduira aisément les causes, le pronostic, les indications
‘en se demandant : qu’est-ce qui pèche dans ce malade ? Qu’y a-t-il par là même à changer ?’. Par
rapport aux méthodes ultérieures d’examen, celle recommandée par Tissot n’est guère moins
méticuleuse, á quelques détails près. La différence de cette enquête avec ‘l’examen clinique’ est en
ceci qu’on n’y fait pas l’inventaire d’un organisme malade ; on y relève les éléments qui permettront de
mettre la main sur une clef idéale – chef qui a quatre fonctions puisqu’elle est un mode de
désignation, un principe de cohérence, une loi d’évolution et un corps de préceptes.”
53

sociais e foi um dos cenários da emergência da medicina clínica. No século XVIII, a


faculdade de Montpellier também esteve ligada à teoria biológica do vitalismo.

Foucault considera as pretensões em Montpellier de uma extensão desmedida,


porque tentava abarcar por inteiro o domínio da doença, desde seu reconhecimento,
o diagnóstico, as previsões, a escolha do tratamento, até a forma de dirigir o doente.88
Através da “ciência ocular” e de tantos poderes de esclarecimentos, leituras, cálculos
e possibilidades, dirigindo emoções e decisões, a clínica pretendia instaurar a
“soberania do olhar”: “olho que sabe e que decide, olho que rege.”89

Seguindo adiante, ele lembra que o modelo de ciência que se baseava na


construção de uma ordem pelo olhar já existia na História Natural, desde a segunda
metade do século XVII. Nele era proposto analisar e classificar os seres naturais,
segundo suas características visíveis, e localizar o indivíduo nas chaves
classificatórias. Este modelo naturalista fora adotado pela medicina, mas no século
XIX ele se organizou de modo novo. Primeiramente, porque o médico passou a ter
apoio e justificação de uma instituição (a clínica hospitalar), dando-lhe poder de
decisão e intervenção. Em seguida, porque a observação médica se tornou mais
minuciosa, buscando nuances de desvios da normalidade, e, finalmente, por não
somente constatar as alterações, mas ter passado a calcular riscos e produzi r
prognósticos.

Esse olhar intervencionista, minucioso e calculador produziu o surgimento de


novos objetos, reorganizou o sujeito cognoscente, e a medicina passou a funcionar
de uma forma nova. Para Foucault, todo o conjunto do saber médico mudou no século
XIX, desde mais profundamente, a relação da doença com a percepção médica
mudou, os “códigos de saber” mudaram, “sob suas duas formas principais: a estrutura
linguística do signo e a aleatória do caso”.90 É preciso deter-se na explicação de
Foucault, para compreender melhor essa transformação do saber médico, como o

88 NC, p.87. Trad., p.95-6, Foucault cita I.C.-L., Dumas, Éloge de Henri Fouquet, Montpellier, 1807,
apud A. Girbal, Essai sur l’spirit de la clinique médicale de Montpellier, Montpellier, 1858.p.18.
89 NC, p.88. Trad., p.96. Leia-se : “Tant de pouvoir, depuis le lent éclaircissement des obscurités, la

lecture toujours prudente de l’essentiel, le calcul de temps e des chances, jusqu’à la maîtrise du c oeur
et la confiscation des prestiges paternels, sont aut ant de formes à travers lesquelles s’instaure la
souveraineté du regard. Oeil qui sait et qui décide, oeil qui régit. ”
90 NC, p.89. Trad., p.97. Leia-se : “A ces niveaux, pas de partage à faire entre théorie et expérience,

ou méthodes et résultats ; il faut lire les structures profondes de la visibilité où le champ et le regard
son liés l’un à l’autre par des codes de savoir ; nous les étudierons dans ce chapitre sous leurs deux
formes majeures : la structure linguistique du signe, et celle, aléatoire, du cas.”
54

golpe de vista (“coup d’oeil”) do médico pretendeu esclarecer os problemas insolúvei s


e obscuros do corpo. Ele divide a explicação em duas partes: “signos” e “casos”.

Referente a “estrutura linguística dos signos”, Foucault inicia afirmando que “a


formação do método clínico está ligada à emergência do olhar do médico no campo
dos signos e dos sintomas.”91 Não foi um retorno a um olhar mais puro e livre dos
falsos conhecimentos; foram decisivamente os direitos e os poderes do olhar clínico
que levaram ao desaparecimento da distinção entre signo e sintoma, ao fundi-los num
mesmo significado, falando da doença. Desta forma, compor, dizer, descrever a
sintaxe dos sintomas era revelar diretamente a doença.

Foucault propõe três itens para explicar essa parte da nova ciência médica que se
baseia na sintaxe inteligível, na lógica da linguagem, enumerados a seguir.

1) “Os sintomas constituem uma camada primária indissoluvelmente significante


e significada”92

Não existe mais uma essência patológica, a doença passou a ser a coleção de
sintomas que a compõem no corpo do doente. A doença é o todo, os sintomas são os
fenômenos ou signos que a constituem, os signos ingênuos de uma verdade exposta.
Portanto, reconstituir e analisar a linguagem dos signos patológicos é reconhecer a
natureza da doença; e realizar essa semiótica da doença é enunciar sua verdade.

O sintoma é o fenômeno de uma lei de aparição no nível da natureza, com uma


distinção que o torna significação do patológico: ele designa o que se opõe às formas
da saúde. Na divisão entre saúde e doença, entre fisiológico (normal) e patológico, ele
pertence à doença. É importante salientar como Foucault explica o valor do sintoma:
por essa simples oposição às formas de saúde, o sintoma abandona sua passividade
de fenômeno natural e se torna significante da doença, isto é, dele mesmo tomado em
sua totalidade, “visto que a doença nada mais é do que a coleção de sintomas”.93

91 NC, p.90. Trad., p.99. Leia-se : “La formation de la méthode clinique est liée à l’émergence du
regard du médecin dans le champ des signes et des symptômes”
92 NC, p.90.Trad., p.99. Leia-se : “Les symptômes constituent une couche primaire indissociablement

signifiante et signifiée”.
93 NC, p.91.Trad., p.100. Leia-se : “Par cette simple opposition aux formes de la santé, le symptôme

quitte se passivité de phénomène naturelle devient signifiant de la maladie, c’est -à-dire de lui-même
pris en sa totalité, puisque la maladie n’est que la collection des symptômes. ”
55

O sintoma significa, portanto, o vínculo com o todo e a diferença do que não é.


E, numa espécie de tautologia, ele é significante e significado, e duplamente, porque
significa a si próprio e à doença. Mas, diz Foucault, o ato que o transformou em signo,
foi um ato mais antigo, um ato prévio – e ele está se referindo ao pensamento clínico.

O que o pensamento clínico fez foi se utilizar da teoria conceitual de Condillac,


para que o sintoma apresentasse quase o mesmo papel que a linguagem de ação.
Para Condillac, existia uma ordem natural entre as necessidades do organismo e as
relações estabelecidas com as coisas exteriores. Para conhecer, seria preciso
observar as coisas e as sensações que elas causavam no organismo, e, então, essas
experiências se expressariam naturalmente numa linguagem inata, porém
inicialmente confusa. Para apreender o conhecimento, seria preciso decompor essa
linguagem natural, também chamada por ele de linguagem de ação, analisá-la e
recompor em ideias e juízos. Somente ao retornar às ideias em sua origem singela
nas primeiras sensações e se esforçar para empregar a “arte de raciocinar”,
construindo uma “linguagem bem-feita” é que se poderia chegar às ideias verdadeiras.
Nesse método analítico de Condillac havia uma identificação entre a verdade
interiormente apreendida e a forma exterior das coisas, que poderia ser expressada
como uma linguagem inteligível. Sendo que somente se acederia à verdade através
da observação das coisas, do contrário, pela imaginação ou por suposições se poderia
recair no erro, nas ideias falsas, em superstições, em polêmicas.

2) “É a intervenção de uma consciência que transforma o sintoma em signo”94

O suporte material e morfológico do signo é o sintoma. Foucault coloca a


questão: “como se faz a operação que transforma o sintoma em elemento significante
e que significa precisamente a doença como verdade imediata do sintoma?”95 Como
o signo se torna signo? E a resposta: por uma atividade exterior a ele, “por uma
operação que torna visível a totalidade do campo da experiência em cada um de seus

94 NC, p.92. Trad., p.101. Leia-se no original: “C’est l’intervention d’une conscience qui transforme le
symptôme en signe”.
95 NC, p.93. Trad., p.101. Leia-se: “Comment se fait cette opération qui transforme le symptôme en

élément signifiant, et que signifie précisément la maladie comme vérité immédiate du symptôme ? ”.
56

momentos e dissipa todas as estruturas de opacidade.” 96 Operação e seus momentos


sintetizados em quatro itens a seguir.97

 Totaliza e compara organismos: dor, calor, rubor e tumor significam fleimão


(inflamação), ao se comparar as duas mãos ou dois indivíduos.
 Rememora o funcionamento normal: a debilitação dos sinais vitais significa a
morte iminente.
 Registra as frequências da simultaneidade ou da sucessão: língua pesada,
tremores no lábio inferior, prenunciam os vômitos.
 Operação, finalmente, que examina o corpo e descobre na autópsia um
invisível visível: a confirmação das alterações nos órgãos.

Foucault conclui: “o que significa que, no fundo, ele [o sintoma-signo] não é


mais do que a Análise de Condillac posta em prática na percepção médica.”98 Isto
porque, o que os dois métodos analíticos – filosófico e clínico, têm em comum seria a
revelação da ordem natural e originária das coisas, através da leitura clara e exaustiva,
expressando-a na linguagem científica bem construída.

3) “O ser da doença é inteiramente enunciável”99

No pensamento médico, “a doença deve ser considerada como um todo


indivisível, desde seu início até seu término, um conjunto regular de sintomas
característicos e uma sucessão de períodos.”100 Trata-se, diz ele, “de restituir, no nível
das palavras, uma história que recobre seu ser total.”101 Há uma transparência, um
isomorfismo entre a estrutura da doença e a forma verbal que a circunscreve. O ato
descritivo é uma apreensão do ser da doença.

96 NC, p.93. Trad., p.101. Leia-se: “Par une opération qui se rend visible la totalité du champ de
l’expérience en chacun de ses moments, et en dissipe toutes les structures d’opacité”.
97 Ver em NC, p.93. Trad., p.102.
98 NC, p.93. Trad., p.102. No original: “En quoi il [le symptôme] n’est, au fond, que l’Analyse de

Condillac mise en pratique dans la perception médicale. ”


99 NC, p.94. Trad., p.103. Leia-se no original: “L’être de la maladie est entièrement énonçable en sa

vérité”.
100 NC, p.94. Trad., p.103. Leia-se: “[...] La maladie doit être considérée comme un tout indivisible

depuis son début jusqu’à sa terminaison, un ensemble régulier de symptômes caractéristiques et une
succession de périodes”. Foucault está citando Ph. Pinel, Le médecine clinique (3ª ed., Paris, 1815),
introd. P.VII.
101 NC, p.94. Trad., p.103. Leia-se: “Il ne s’agit plus de donner de quoi reconnaitre la maladie, mais de

restituer, au niveau des mots, une histoire qui en couvre l’être total”.
57

Atente-se que na medicina das espécies, a natureza da doença e sua descrição


não podiam corresponder sem um momento intermediário que era, com suas duas
dimensões, o “quadro”; na clínica, ser visto e ser falado se comunicam de imediato na
verdade manifesta da doença, de que é precisamente todo o ser. Só existe doença no
elemento visível e, consequentemente, enunciável, afirma Foucault.

A clínica usa, portanto, a relação do ato perceptivo com o elemento da


linguagem, fundamental em Condillac, para descrever a verdade científica: “a
descrição do clínico como a análise do filósofo, diz o que é dado pela relação natural
entre a operação de consciência e o signo”; sendo que a ordem da verdade é a mesma
da linguagem (discursiva e temporal), assim, a dimensão cronológica desempenhará
o mesmo papel do espaço plano do quadro nosológico da medicina classificatória.102

Para definir, nas palavras de Foucault, essa forma de saber que ele mesmo
denominou “olhar médico” (e sobre o qual não se pode deixar de pensar que tenha
sido um modelo de saber nominalista e redutor), veja-se a seguir.

O olhar do clínico e a reflexão do filósofo detêm poderes análogos,


porque ambos pressupõem uma idêntica estrutura de objetividade: em
que a totalidade do ser se esgota em manifestações que são seu
significante-significado; em que o visível e o manifesto se unem em
uma identidade pelo menos virtual; em que percebido e o perceptível
podem ser integralmente restituídos em uma linguagem cuja forma
rigorosa enuncia sua origem. Percepção discursiva e refletida do
médico e reflexão discursiva do filósofo sobre a percepção vêm se unir
em uma exata superposição, visto que o mundo é para eles o análogo
da linguagem.103

Assim, Foucault supõe o condicionamento da experiência clínica à lógica de


Condillac, como outro domínio de aplicação da Ideologia, a doutrina iluminista do
círculo filosófico do século XIX, que seguia Condillac. Portanto, não que a doença
tenha deixado de ser longínqua e invisível e a medicina se tornado finalmente
empírica; mas que, tanto na clínica médica como na análise filosófica, a existência

102 NC, p.95. Trad., p.104. Leia-se: “La description du clinicien, comme l’Analyse du philosophe,
profère ce qui est donné par la relation naturelle entre l’opération de conscience et le signe”.
103 NC, p.96. Trad., p.105. Leia-se: “Le regard du clinicien et la réflexion du philosophe détiennent des

pouvoirs analogues, parce qu’ils présupposent tous deux une structure d’objectivité identique : où la
totalité de l’être s’épuise dans les manifestations qui en sont le signifiant-signifié ; où le visible et le
manifeste se rejoignent en une identité au moins virtuelle ; où le perçu et le perceptible peuvent être
tout entiers restitués dans un langage dont la forme rigoureus e en énonce l’origine. Perception
discursive et réfléchie du médecin, et réflexion discursive du philosophe sur la perception viennent se
rejoindre en une exacte superposition, puisque le monde est pour eux l’analogon du langage”.
58

fora delineada segundo o modelo da linguagem, em que o visível e o dizível


manifestariam a objetividade total das coisas.

Esse olhar objetivo sobre o corpo e o modelo descritivo do discurso médico


propiciaram um estímulo ao olhar do diagnosticador e possibilitaram a comparação
entre as séries de pacientes tratados, pela sistematização e pelo registro cada vez
maior dos sinais e sintomas.

Para explicar as transformações da medicina abordando a “estrutura aleatória


dos casos”, Foucault relata que a medicina era considerada um conhecimento incerto
que se ocupava de um objeto muito complicado. A falta de fundamentos e de recursos
para enfrentar a complexidade dos sintomas, dava à medicina um caráter conjuntura l.
Foi por essa incerteza e o excessivo número de dados variados e as imensas
combinações, que no século XVIII, inseriu-se um elemento positivo. Era época de
Laplace, e “a medicina descobre que a incerteza pode ser tratada analiticamente como
a soma dos graus de certeza isoláveis e suscetíveis de um cálculo rigoroso”, diz
Foucault.104 A penetração do conhecimento matemático é que trará esse conceito
positivo para o saber médico.

Através dessa mudança conceitual decisiva introduzida pelas teorias de


Laplace, abriu-se na clínica uma forma de investigação em que cada fato isolado
poderia ser comparado a uma série de casos para acompanhar o curso das
convergências ou divergências. Disto evoluíram os procedimentos do registro de
casos, da formação de séries e dos cálculos mensurativos. O que passou a ser posto
em questão nos cálculos não era mais o indivíduo doente, mas nele, o fato patológico;
o conhecimento virá da análise da convergência progressiva das séries de fatos,
teoricamente indefinidos de início, em que o curso do tempo será uma dimensão
integrada aos elementos para análise dos graus de certeza. Foucault diz:

Com a importação do saber probabilístico, a medicina renovava


inteiramente os valores perceptivos de seu domínio: o espaço onde
devia se exercer a atenção do médico tornava-se um espaço ilimitado,
constituído por elementos isoláveis, cuja forma de solidariedade era
da ordem da série. [...] A medicina não tem mais que ver o verdadeiro
essencial sob a individualidade sensível; está diante da tarefa de

104NC, p.97. Trad., p.106. Leia-se: “A l’époque de Laplace, soit sous son influence, soit à l’intérieur
d’un mouvement de pensée du même type, la médecine découvre que l’incertitude peut être traitée,
analytiquement, comme la somme d’un certain nombre de degré de certitude isolables et susceptibles
d’un calcul rigoureux”.
59

perceber, e infinitamente, os acontecimentos de um domínio aberto. A


clínica é isso.105

Contudo, o domínio hospitalar ainda não estava organizado, o que não


permitira a aplicação mais coerente da teoria matemática das probabilidades. Por
exemplo, a forma como Cabanis tentou abordar o grau de certeza dos diagnósticos
em seu livro Du degré de certitude de la medicine (1819), ainda era confuso, visto que
ele se apegou a invocar os movimentos variados da natureza para justificar os
instrumentos técnicos e teóricos da prática médica.

Mas foi mesmo aí, num vazio de compreensão dos movimentos imprecisos da
natureza, que foi se estabelecendo uma nova técnica da percepção dos casos,
constituída para tentar dar uma armadura científica ao discurso médico. Seus
princípios são enumerados por Foucault em quatro itens.

1) “A complexidade de combinação”106

O dado mais simples adotado será o fato básico inicial, é sobre os elementos
simples que se repetem que serão realizados os cálculos combinatórios. Se antes se
partia das diversas formas de ser, para ascender à unidade mais simples e essencial,
na clínica dá-se o inverso. O curso de acompanhamento no tempo, será dos sintomas
simples à complexidade das combinações possíveis; e conhecer as doenças será
restituir o movimento pelo qual a natureza associa as variáveis. Foucault afirma que o
progresso do conhecimento passa a ter a mesma origem e se identifica igualmente
com a progressão da vida.

2) “O princípio da analogia”107

Saber será reconhecer os isomorfismos e as relações entre os elementos, seu


funcionamento ou sua disfunção, atendo-se às semelhanças que poderão identificar
as doenças em uma série de doentes. A coexistência da mesma constelação de
sintomas forma um conjunto de elementos patológicos que pode diagnosticar a

105 NC, p.97. Trad., p.106. Leia-se: “Par l’importation de la pensée probabilitaire, la médecine
renouvelait entièrement les valeurs perceptives de son domaine : l’espace dans lesquels devait
s’exercer l’attention du médecin devenait un espace illimité, constitué d’événements isolables dont la
forme de solidarité était de l’ordre de la série. […] La médecine ne se donne plus à voir le vrai
essentiel sous l’individualité sensible ; elle est devant la tâche de percevoir, et à l’infini, les
événements d’un domaint ouvert. C’est cela la clinique”.
106 NC, p.98. Trad., p.108. Leia-se: “La complexité de combinaison”.
107 NC, p.99. Trad., p.109. Leia-se: “Le principe de l’analogie”.
60

doença em uma série de casos. A complexidade da doença se repete na forma de


uma unidade coerente.

3) “A percepção das frequências”108

Por um raciocínio indutivo, deve-se encontrar o grau de certeza ao observar um


número suficiente de casos. As variações individuais se apagam na multiplicidade e
forma-se uma relação essencial: é no estudo dos fenômenos mais frequentes que se
encontram as leis gerais da natureza. Encontrar as regularidades do normal e do
anormal é utilizar como observador normativo a totalidade dos observadores – repartir
os conjuntos e indicar o perfil das identidades. É que, “na sombra, e sob vocabulári o
aproximado, circulam noções em que se podem reconhecer o cálculo de erro, o
desvio, os limites, o valor da média.”109 A visibilidade do campo médico adquire uma
estrutura estatística, não um jardim das espécies, mas um domínio de
acontecimentos.

4) “O cálculo dos graus de certeza”110

No final do século XVIII, tentou-se usar o cálculo probabilístico para indicar o


grau de certeza de um diagnóstico, frente à complexidade dos sintomas. Para
Foucault, contudo, na época o cálculo fora confundido com uma análise dos sintomas,
porque era através da presença desses signos (os sinais e sintomas) somados ou
subtraídos que a probabilidade aumentava ou diminuía, existindo uma confusão entre
a decomposição do conjunto dos sintomas e a aritmética. Sob a aparência do cálculo
matemático, tentava-se construir a estabilidade da figura de uma doença. Perceba-se
na citação abaixo.

Trata-se de um cálculo que, desde o início, tem valor no interior do


domínio das ideias, sendo ao mesmo tempo princípio de sua análise
em elementos constituintes e método de indução a partir das
frequências; ele se dá, de maneira ambígua, como decomposição
lógica e aritmética da aproximação.111

108 NC, p.101. Trad., p.111. Leia-se: “Le perception des fréquences”.
109 NC, p.102. Trad., p.112. Leia-se: “Dans, l’ombre, et sous un vocabulaire approché, des notions
circulent, où on peut reconnaître le calcul d’erreur, l’écart, les limites, la valeur de la moyenne. ”
110 NC, p.103. Trad., p.113. Leia-se: “Le calcul des degrés de certitude”.
111 NC, p.103. Trad., p.113. Leia-se: “Il s’agit d’un calcul qui, d’entrée de jeu, vaut à l’intérieur du

domaine des idées, étant á la fois principe de leur analyse en éléments constituants, et méthode
d’induction à partir des fréquences ; il se donne d’une façon ambiguë, comme décomposition logique
et arithmétique de l’approximation ”.
61

Esse raciocínio valia tanto para os signos diagnósticos quanto para as


indicações terapêuticas, contudo, essa matematização inicial de medicina não
funcionou porque era uma aritmética simples, mas serviu para dar um verniz formal à
aplicação da lógica da linguagem.

Foucault conclui que a clínica foi uma das primeiras aplicações da lógica da
análise na vida concreta, através dos modelos gramaticais e probabilísticos. Abriu-se
na medicina um campo de visibilidade matemático, formalizado e invocado, através
de uma “contribuição dos temas da formalização”; enquanto o modelo gramatical
permanecia implícito, na sombra, como uma “transferência das formas de
inteligibilidade”.112

No capítulo VII de NC, “Ver, Saber”, ele continua a delinear sua tese sobre a
percepção médica, abordando o método clínico nas práticas médicas, e também
mostrando suas fragilidades, as quais ele denomina “mitos epistemológicos”.

Na protoclínica, o olhar médico deixava de ter a atitude hipocrática da medicina


expectante tradicional e passava a ter um olhar diferente. Foucault volta a insistir em
dois fundamentos para essa nova percepção médica, o primeiro seria a “pureza do
olhar”, o segundo era a sua “armadura lógica”. Pela pureza, entende-se um olhar que
pretendia perceber no corpo os sinais da doença de forma límpida e fiel na própria
origem dos fenômenos, sem qualquer interposição e, portanto, ao descrevê-los, diria
a verdade dos signos naturais patológicos, sendo que o correlato no doente nunca era
o invisível, mas sempre o sinal imediatamente visível. O olhar era fundamentado
também pela armadura lógica do raciocínio analítico, cuja adoção pretendia afastar
qualquer empirismo ingênuo e estabelecer a nova medicina objetiva. A pureza desse
olhar tinha outra característica marcante, ela estava ligada ao silêncio, acrescenta
Foucault. O médico observava o paciente silenciosamente à beira do leito, deveria
ouvir apenas a linguagem dos signos e afastar imaginações, ilusões, ou intromissões
teóricas de qualquer tipo. A clínica pretendia extrair uma verdade originária pelo

112NC, p.105. Trad., p.115-6. Leia-se: “Le modèle grammatical, acclimaté dans l’analyse des signes,
reste implicite et enveloppé sans formalisation au fond du mouvement conceptuel : il s’agit d’un
transfert des formes de l’intelligibilité. Le modèle mathématique est toujours explicite et invoqué ; il est
présent comme principe de cohérence d’un processus conceptuel qui s’est accompl i hors de lui : il
s’agit de l’apport de thèmes de formalisation.”
62

exercício da observação e compor uma verdade sintática, pela lógica das suas
operações analíticas.

O olhar médico era, portanto, “analítico” pois devia restituir como verdade o que
foi produzido segundo uma gênese, reproduzindo o que lhe foi dado como elemento
visível de composição. Por isso, Foucault afirma que a lógica era a base da arte de
observar; “seria a arte de estar em relação com as circunstâncias que interessam,
receber as impressões dos objetos como nos são oferecidas, e delas tirar as induções
que são suas justas consequências”.113 Foucault define-o, então, noutra aproximação
ao olhar clínico, como um ato perceptivo e analítico, que pretendia ser neutro e isento.

Na experiência médica, onde e como essa nova racionalidade médica operava?


Foucault a relaciona ao domínio hospitalar e à constituição do método clínico. Embora
citada aqui, a reorganização dos hospitais será abordada mais detalhadamente por
Foucault num capítulo à parte. Em “Ver, Saber”, ele vai descrever o método clínico,
tomando principalmente o exemplo dos ensinamentos de Pinel.114

Na clínica, é no domínio hospitalar que o ensino se realiza pois é justamente


ali que o fato patológico aparece como singularidade e na série que o cerca. Se antes,

113 NC, p.109. Trad., p.119. No original: “En un mot, [l’art d’observer] serait l’art d’être en rapport avec
les circonstances qui intéressent, de recevoir les impressions des objets comme el les s’offrent à nous,
et d’en tirer les inductions qui en sont les justes conséquences.”
114 Philippe Pinel (1745-1826) era de uma família de médicos, mesmo tendo estudado teologia e

matemáticas, decidiu-se pela medicina e realizou sua formação em Toulouse e Montpellier. Pinel
fixou-se em Paris em 1778, e participou do movimento revolucionário. Tornou-se amigo de Cabanis,
com quem frequentava o salão dos Ideólogos, e partilhou com ele o pensamento científico da época,
baseado na experimentação e na análise filosófica. Pinel foi nomeado médico em Bicêtre, e depois
médico-chefe do Hospital Salpêtrière, em 1795. Ele publicou seu Tratado médico filosófico sobre a
alienação mental ou a mania em 1800. Esse livro teve várias traduções e exerceu grande influência
na psiquiatria, que estava se formando como especialidade médica. A terapêutica proposta por Pinel
para os doentes mentais era baseada no confinamento, no isolamento e na correção moral. O
confinamento em hospícios afastados visava, além de dar segurança à soc iedade, levar o louco a
ambientes onde pudesse ser observado e tratado. Esse local deveria ser calmo e ordenado, sem os
tumultos e os estímulos da vida cotidiana. O isolamento completo era indicado temporariamente para
aqueles excessivamente agitados e coléricos, ou como parte da terapia. Esperava-se a recuperação
da razão pela disciplina e pela repressão medida. O médico alienista deveria conduzir o tratamento
sob “cuja autoridade fosse inquestionável, devido à sua alta estatura moral, e que mesclasse
sabedoria, bondade e firmeza”. Uma personagem fundamental era o seu auxiliar, representado no
livro pelo vigilante-chefe de Bicêtre, Pussin, descrito como “firme, forte, sensato, criativo e
compassivo”. Somente a obtenção da permanente submissão a essas duas autoridades poderia levar
a quebrar das ideias viciosas do louco, conduzindo ao objetivo do tratamento, qual era corrigir os
erros da razão. Pinel também teve influência nos métodos da clínica médica por ter publicado obras
reconhecidas de nosografia e semiologia médica. Ele faleceu aos 81 anos, em Paris. Ver
“Apresentação” por Ana Maria Galdini Raimundo Oda e Paulo Dalgalarrondo em: PINEL, Philippe.
Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania. Tradução de Joice Armani Galli. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2007.
63

acreditava-se que a família era o local ideal para deixar que a doença seguisse seu
curso natural e se manifestasse em toda a sua verdade, agora se acreditava que em
casa ela possa estar mascarada pelos cuidados que cercam o doente. Ainda que a
casa constitua um “meio natural” onde se desenvolve a doença, a necessidade de
comparação entre os casos demanda um “meio neutro” como o hospital, uma vez que
agora o conhecimento médico se define em termos de frequência. As doenças
similares são agrupadas em enfermarias e podem ser observadas em todas as suas
variações de febres e flegmasias.

Ao se integrar ao hospital, a medicina pode exercer uma observação constante


dos fenômenos patológicos e estabelecer um ambiente homogêneo apropriado para
as comparações. Será através do conhecimento dos fenômenos repetidos e
constantes que as conjunções fundamentais se estabeleceriam e indicariam a
verdade. A gênese da verdade se daria ao mesmo tempo da gênese de sua
manifestação, mais ainda, ela seria partilhada como pedagogia, diz Foucault. Na
experiência médica, o ato de reconhecer e o esforço de conhecer passa a ser de um
sujeito coletivo, do médico que descobre e dos seus alunos.

É interessante notar, como a experiência médica vai se tornando consequênci a


de uma coleção de pacientes e de um conjunto de repetições, bem como da ação
coletiva do olhar médico. Nisso se observa o reforço que o coletivo pode dar para a
verdade. Em contraste, e apesar dos conjuntos, a experiência médica se estabeleceu
sobre um recorte: deu-se por suficiente em seus limites, fechou-se no ambiente
hospitalar, onde os olhares e as doenças se entrecruzam, nas questões que ali
suscitavam.

Era necessário, no entanto, fixar um método clínico pois o conjunto do que pode
ser observado, descrito, questionado e a conjunção destes poderia ser infinito. Pinel,
por exemplo, criticou dois métodos, o da Clínica de Edimburgo e o de Montpellier, que
sugeriam que se levantasse um número grande de sintomas e questões, tornando a
análise ilimitada e impossível. Quando permanecia simplesmente aberto aos domínios
da linguagem e do olhar, o domínio da clínica poderia não ter fim. Por isto, o método
clínico de Pinel procurava delimitar o lugar de encontro entre o médico e o paciente,
64

mediante três meios de articular a interrogação e o exame, como descreve Foucault,


em seguida.115

1) “A alternância dos momentos falados e dos momentos percebidos em uma


observação”.116 Pinel define o seguinte esquema: primeiro momento, visual, anotam-
se os sintomas visíveis e se inquire o doente sobre manifestações ligadas a estes; no
segundo momento, linguístico, faz-se a rememoração das incidências e depois sobre
os hábitos e características da vida passada do doente. O terceiro momento é de novo
de percepção, quando se verifica no decorrer do tempo, a evolução dos sintomas. Por
fim, no quarto momento, novamente linguístico, prescreve-se algum tratamento. Em
caso de óbito, ainda uma última instância era reservada ao olhar: sobre a anatomia
do corpo. O exame físico e a escuta, o questionário, se complementavam para que a
doença pronunciasse sua verdade.

2) “O esforço para definir uma forma estatutária de correlação entre o olhar e a


linguagem”.117 Um dos desafios técnicos enfrentados pelo pensamento médico foi a
elaboração do “quadro clínico”. O desafio era elaborar uma representação legível e
conceitualmente coerente que espelhasse, através do quadro, o que foi percebido
pelos olhos e ouvidos clínicos. Pinel propõe um quadro cartesiano em que no eixo das
ordenadas aparecessem os sintomas perceptivos da doença, e no eixo das abscissas,
os valores significativos diagnósticos que os sintomas podiam tomar. Foucault pontua
que a distinção funcional entre visível e enunciável e, depois, a sua correlação na
geometria analítica foram tentativas ineficazes de estabelecer uma análise para o
trabalho do clínico. Mais que ineficazes, elas foram infundadas, porque a estrutura
analítica não era revelada pelo próprio quadro, mas era anterior a este, mediante o
estabelecimento prévio dos conceitos adotados. Nas suas próprias palavras, no
extrato a seguir.

O trabalho não é, portanto, de correlacionamento, mas de pura e


simples redistribuição do que estava dado por uma extensão

115 NC, p.112. Trad., p.122-7. Foucault se refere ao método delineado por Philippe Pinel em Medicine
clinique, Paris, 1802.
116 NC, p.112. Trad., p.122. No original: “L’alternance des moments parlés et des moments perçus

dans une observation.”


117 NC, p.113. Trad., p.123. No original: “L’effort pour définir une forme statuaire de corrélation entre le

regard e le langage. ”
65

perceptível em um espaço conceitual previamente definido. Não faz


conhecer; permite, quando muito, reconhecer.118

3) “O ideal de uma descrição exaustiva”.119 A própria maneira até arbitrária e


tautológica de formar o quadro clínico fez com que se buscasse compensar na
demonstração de rigor e de precisão dos enunciados. Nas descrições do método
clínico não podia haver lacunas nem ambiguidades. A linguagem, então, adquiriu mais
uma função na correlação fiel entre visível e o enunciável: além da descrição exata
em relação do objeto, ela deveria ser rigorosa, precisa e regular. Pinel recomendara
que a linguagem médica com rigor descritivo e regularidade denominadora fosse
instaurada no método clinico, como era para a história natural.120 Essa função
denominadora da linguagem se fez pelo uso de um vocabulário constante e fixo, o que
autorizaria a comparação, a generalização e a formação de conjuntos de sintomas
para os médicos. De modo que o rigor do vocabulário da descrição pode ser invocado
como fundamento da prática clínica, para chegar a uma verdade objetiva.

Vê-se, então, que a geometria analítica aplicada à medicina não chegou a


assegurar a análise significativa do percebido. Foi a descrição, o trabalho da
linguagem, que transformou o sintoma em signo, “a passagem do doente à doença,
acesso do individual ao conceitual”.121 Inspirando-se em Condillac, que via na “língua
bem-feita” o ideal do conhecimento científico, o sonho da linguagem aritmética do
quadro é substituído pela pesquisa da linguagem descritiva fiel, firme, rigorosa, uma
linguagem que fosse a abertura primeira e absoluta sobre as coisas e a pesquisa de
seus valores semânticos. Ver e enunciar, se torna a arte da medicina clínica, como
esclarece Foucault.

Descrever é seguir a ordenação das manifestações, mas é seguir


também a sequência inteligível de sua gênese; é ver e saber ao
mesmo tempo, porque dizendo o que se vê o integramos

118 NC, p.113. Trad., p.124. No original: “Le travail n’est donc pas de mise en corrélation, mais de pure
et simple redistribution de ce qui était donné par une étendue perceptible dans un espace conceptuel
défini à l’avance. Il ne fait rien connaître ; il permet tout au plus de reconnaître. NC, p.114. Trad.,
p.125.
119 NC, p.114. Trad., p.125. No original: “L’ideal d’une description exhaustive”.
120 NC, p.114. Trad., p.125. Foucault se refere aos escritos de Philippe Pinel em Nosographie

philosophique, Paris, ano VI.


121 NC, p.115. Trad., p.125. No original: “C’est la description, ou plutôt le labeur implicite du langage

dans la description qui autorise la transformation du symptôme en signe, le passage du malade à


maladie, l’accès de l’individuel au conceptuel. ”
66

espontaneamente ao saber; é também ensinar a ver, na medida em


que é dar a chave de uma linguagem que domina o visível.122

Consequentemente, forma-se neste contexto uma espécie de novo esoterismo


médico, no seio do qual o domínio de uma certa gramática é guardado. Esta gramática
constitui um domínio operatório sobre as coisas. A arte de descrição contém um justo
uso sintático e uma familiaridade semântica destinada a fazer falar apenas os
iniciados na verdadeira palavra. Foucault situa esta fase no cerne da experiência
clínica, fase em que a clínica é a “manifestação das coisas em sua verdade, forma de
iniciação na verdade das coisas”.123 A experiência clínica representava esse momento
de equilíbrio reversível entre a palavra e o espetáculo.

No entanto, Foucault alerta que era um equilíbrio instável e precário, uma vez
que se apoiava no ilusório postulado de que: “todo o visível é enunciável e que é
inteiramente visível porque é integralmente enunciável”.124 Mesmo o modelo lógico
gramatical de Condillac não aceitava o estabelecimento de uma adequação total entre
o visível e o dizível, a filosofia dele ia muito mais na direção de uma lógica dos signos,
num procedimento de compor e decompor as noções geradas para calcular as
descobertas mais favoráveis.

Foucault conclui que a transposição da lógica de Condillac ao pensamento


clínico, como método, se deu com um deslocamento: da gênese e do cálculo
gramatical que se revertem para a exigência de um primado da gênese. Explicando
melhor, o primado da descritibilidade total, numa operação de transcrição sintática.

Ele [o método clínico] desce novamente da exigência do cálculo ao


primado da gênese, quer dizer, após ter procurado definir o postulado
de adequação do visível ao enunciável por uma calculabilidade
universal e rigorosa [quadros], lhe dá o sentido de uma descritibilidade
total e exaustiva. A operação essencial não é mais da ordem da
combinatória, mas da transcrição sintática.125

122 NC, p.115. Trad., p.125-6. No original: “Décrire, c’est suivre l’ordonnance des manifestations, mais
c’est suivre aussi la séquence intelligible de leur genèse ; c’est voir et savoir en même temps, parce
qu’en disant ce qu’on voit, on l’intègre spontanément au savoir ; c’est aussi apprendre à voir puisque
c’est donner la clef d’un langage qui maîtrise le visible. ”
123 NC, p.116. Trad., p.127. No original: “[…] nous sommes au cœur de l’expérience clinique – forme

de manifestation des choses dans leur vérité, forme d’initiation à la vérité des choses. ”
124 NC, p. 116. Trad., p.128. No original: “Equilibre précaire [de l’expérience clinique], car il repose sur

un formidable postulat : que tout le visible est énonçable et qu’il est tout entier visible parce que tout
entier énonçable.“
125 NC, p. 117. Trad., p.128. No original: “Elle [la méthode clinique] redescend de l’exigence du calcul

au primat de la genèse, c’est-à-dire qu’après avoir cherché à définir le postulat d’adéquation du visible
à l’énonçable par une calculabilité universelle et rigoureuse, elle lui donne le sens d’une descriptibilité
67

Ele continua suas conclusões dizendo que, no período inicial da clíni ca


moderna, a experiência médica parecia ter encontrado o equilíbrio para instalar um
procedimento científico, justamente seguindo a forma de composição do visível e as
regras sintáticas do enunciável, em que ver, dizer, conhecer e aprender se
comunicavam em uma transparência imediata. Mas esse equilíbrio era precário, fora
apenas um sonho dizer a verdade ao exercer o olhar soberano, no qual “o olhar
retomava em seu exercício soberano as estruturas da visibilidade que ele próprio
depositara em seu campo de percepção”.126 Porque havia uma carência científica
nesse procedimento e uma opacidade volumosa impenetrável, sobre a qual o olhar
médico continuaria a se chocar: o próprio corpo. Foucault trata, então, de explicar qual
era a carência epistemológica do método clínico, relacionada ao estatuto da
linguagem, que era o fundamento e justificativa do método, embora sutilmente
mascarado.

Os “mitos epistemológicos” do método clínico foram descritos por Foucault em


quatro itens, destacados abaixo.

1) “A estrutura alfabética da doença”127

No final do século XVIII, os gramáticos postulavam que a melhor maneira de


conhecer e aprender uma língua era pelo seu alfabeto, pois esse método refletia o
esquema ideal da análise e da composição. Este esquema foi transposto para a clínica
na constituição do olhar clínico. Análogo às letras e às sílabas, a menor parte
observável da doença era de um sintoma em um doente, esclarece Foucault. O
sintoma isolado nada significa em si mesmo, somente sua combinação com os outros
lhe daria um sentido, assim como a combinação das sílabas forma a palavra. Foucault
afirma que a medicina clínica, mediante o método da estrutura alfabética da doença,
pretendia remontar o processo patológico à sua origem, à identificação da sua parte
menor, os sintomas. E também, assim como se dá na língua em que o número das
letras é finito, mas a combinação é infinita, o número de sintomas será restrito, ao

totale et exhaustive. L’opération essentielle n’est plus de l’ordre de la combinatoire, mais de l’ordre de
la transcription syntactique. “
126 NC, p. 118. Trad., p.129. No original: “Le regard reprenait en son exercice souverain les structures

de visibilité qu´il avait lui-même déposées dans son champ de perception.“


127 NC, p. 119. Trad., p.130. No original: “1. Le premier de ces mythes épistémologiques concerne la

structure alphabétique de la maladie. “


68

passo que o número de combinações possíveis dos sintomas será infinito, mesmo no
interior de uma mesma doença.

2) “O olhar clínico opera sobre o ser da doença uma redução nominalista”128

Assim como as palavras, as doenças não teriam outra realidade além da ordem
de sua composição. A doença é um nome. Nome, em dois sentidos, acrescenta
Foucault, “no sentido em que usam os nominalistas quando criticam a realidade
substancial dos seres abstratos e gerais”; e, noutro sentido que se aproxima da
filosofia da linguagem, “desde que a forma de composição do ser da doença é de tipo
linguístico”.129 Na redução nominalista, a doença não tem um ser, ela tem uma
configuração, por isso Cabanis afirmava que perguntar sobre a natureza da essência
de uma doença é tão incabível quanto perguntar sobre a natureza da essência de uma
palavra.

3) “O olhar clínico opera sobre os fenômenos patológicos uma redução de tipo


químico”130

Ao contrário do olhar do jardineiro que buscava as essências na variedade das


aparências das plantas (e da medicina clássica do século XVIII), o modelo de
operação química do século XIX queria isolar os elementos que dão origem às
composições, tal como o químico tem por objeto isolar os elementos puros e classificar
as combinações. Havia, ainda, mais um elo que permitia outra analogia entre a
química e a clínica: o fogo das combustões. Para Foucault, o fogo depurador da clínica
seria o agente que separa as verdades, o olhar que queima as coisas até sua extrema
verdade.

4) “A experiência clínica se identifica com uma bela sensibilidade”131

128 NC, p. 119. Trad., p.131. No original: “2. Le regard clinique opère sur l’être de la maladie une
réduction nominaliste. “
129 NC, p. 119-20. Trad., p.131. No original: “Et nom en un double sens: au sens dont usent les

nominalistes quand ils critiquent la réalité substantielle des êtres abstraits et généraux ; et en un autre
sens, plus proche d’une philosophie du langage, puisque la forme de composition de l’être de la
maladie est de type linguistique.“
130 NC, p. 120. Trad., p.132. No original: “3. Le regard clinique opère sur les phénomènes

pathologiques une réduction de typo chimique.“


131 NC, p. 121. Trad., p.133. No original: “4. L’expérience clinique s’identifie à une belle sensibilité. “
69

O exercício metódico dos sentidos no ato da observação e na prática do justo


relato culminará no desenvolvimento da noção de “golpe de vista do médico”,
indicando a segurança do julgamento. Este ato único acabaria por demonstrar todo o
talento e a experiência do médico clínico, expressando-o em “bela sensibilidade”, em
“rapidez prestigiosa de uma arte”. A arte médica é relacionada à metáfora do golpe de
vista, do olhar que fulgura e decompõe o corpo, resume sinais, calcula relações,
cronologias e diz a doença.

Na emergência do método clínico, parece que Foucault mostra a operação de


quatro tipos de reduções que se integrarão à nova percepção da doença. A primeira,
é a redução da doença à sua menor parte, o sintoma; a segunda, é a redução a um
nome patológico; a terceira, é como se doença pudesse ser reduzida à sua pureza,
por um olhar fulgurante; e toda arte se reduzirá, enfim, à técnica de um olhar que
pretende abarcar tudo e dizer a doença.

O nascimento da medicina clínica esteve relacionado ao pensamento iluminista


do fim do século XVIII, como também todo otimismo científico depositado numa
racionalidade idealizada, objetiva e neutra, cujo desenvolvimento deveria levar ao
bem-estar social.132 O método e as práticas institucionais da clínica também se
constituíram pelos discursos da época, ou seja, as condições materiais de
funcionamento da medicina foram estabelecidas de acordo aos códigos do saber
racionalista.

Conforme afirma Foucault em NC, a noção de objetividade científica advinha


da reorganização da relação entre o visível e o invisível. Ainda no século XVII, a luz
da verdade era anterior a todo olhar, ela se identificava com a idealidade e a essência
das coisas, assim, os corpos deveriam se tornar transparentes para o exercício d o
espírito na direção luminosa. Já no fim do século XVIII, a verdade passou a se localizar
na própria espessura dos objetos, e o olhar deveria permanecer nos limites materiais

132Ver em PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro:


Editora Fiocruz, 2009, p.33.
70

que ele deveria esquadrinhar, descrever, dominar. O olhar seria o feixe de luz q ue
despertaria a objetividade das coisas, a visibilidade seria a fundadora das qualidades
dos objetos a conhecer e da linguagem descritiva. Essa reorganização formal do
pensamento científico fundada na percepção dos objetos é que tornou a experiência
clínica possível.

No mesmo modelo de racionalidade que fundava as ciências modernas, nos


mesmos princípios empíricos das novas ciências, a medicina tentou fundamentar-se
para buscar a sua própria positividade. Nas descrições de Foucault, a lógica da
linguagem de Condillac principalmente, mas também as probabilísticas de Laplace,
os princípios da Química, foram integrantes desse projeto da medicina clínica. Nessa
relação com as ciências da época, o método objetivo clínico elegeu o olhar como
instrumento principal para iluminar diretamente as lesões das doenças nas superfícies
do corpo, e a linguagem era conformada para descrever rigorosamente as
características encontradas. As novas bases para o empirismo científico médico se
propunham a ser um retorno à simples positividade do percebido, tomando os sinais
e sintomas da doença como se fossem uma verdade ingênua e espontânea ao olhar.
O sofrimento do doente, suas dores e as obscuras tensões internas também seriam
deslocados inteiramente para uma avaliação objetiva do corpo, sendo vistos como
objetos a conhecer. Quanto à linguagem, para que pertencesse ao novo discurso
científico racional, ela deveria se articular com o objeto, descrevendo o percebido e
se construindo no espaço vazio, neutro e indiferente onde se desenrolava o encontro
do olhar com as coisas. Na medicina clínica, a doença (o doente) se tornou o objeto
de um discurso, com a mesma geometria de objetividade das novas ciências que se
positivavam nos limites e nas formas de articular o visível ao dizível.

Foucault relata que essa nova racionalidade médica se esforçava por ser livre
das falsas interpretações, mantendo-se na estrita materialidade dos achados físicos,
baseando-se na observação e na lógica de uma linguagem descritiva e formal. De
fato, o método clínico organizou novas possibilidades para o saber médico através
dos registros dos casos e das séries, das comparações e do conhecimento indutivo
que isso permitiu, para verificar as hipóteses sobre as doenças. Contudo, Foucault
mostra que o método clínico também trouxe outras duas consequências.133

133 Ver no Prefácio de NC, p.V-XV. Trad., V-XVI.


71

Primeiramente, ele menciona que esse novo discurso parecia redutor e surdo,
entende-se por isso que todas as dimensões da doença se reduziram à da visibilidade,
e a linguagem não era uma resposta ao que o doente falava, mas nascia da percepção
do médico. Essa nova racionalidade clínica seria uma fórmula empobrecida e pálida,
uma compreensão unilateral, talvez também desumana e impiedosa da doença e do
doente. Pode-se realçar como essa condição histórica de possibilidade do discurso
médico foi limitadora e presa ao espaço da visibilidade, um espaço finito, sem
mistérios. Percebe-se a construção de um saber positivista, fundamentado na
objetividade sobre o corpo. E não importa quão profundamente o olhar médico se dirija
às camadas corporais ou que ele o decomponha até suas partes mínimas, o princípio
de tal objetividade permanecerá o cerne da experiência médica. Esse
condicionamento limitou o que poderia ser dito a uma experiência limpa,
excessivamente luminosa e racional, talvez sem críticas, sem ficção, sem imaginação.
E desconsiderou outros tipos de experiências do corpo, aquelas que não seriam
visíveis ou dizíveis, talvez entre elas a solidão, o sofrimento, o isolamento, a
perplexidade e a incompreensão diante da doença e da morte.

E, numa segunda consequência, pode-se dizer que foi a primeira vez na história
do ocidente que um saber ligou o indivíduo concreto ao discurso da racionalidade. No
início dessa experiência nova, esteve o encontro entre um golpe de vista e um corpo
mudo, numa relação desequilibrada, não recíproca, que pretendia formar uma
observação científica. O método clínico se fundamentava na percepção clara e
deveria ser rigoroso, minucioso, descritivo, exaustivo e incessante. Compreende-se,
pela condução de Foucault, que a visibilidade se tornou o princípio científico que
funcionava nas pesquisas clínicas, e que os enunciados adquiriram a força de uma
verdade operatória sobre a doença. A fraqueza do método clínico foi a lógica da
linguagem, a sua força foi a apreensão do corpo.
72

CAPÍTULO IV – OLHAR MÉDICO E SEUS DESLOCAMENTOS

1. Doença, corpo

No início do século XIX, Foucault identifica um deslocamento do discurso


médico, porque o olhar passará a se aprofundar nos órgãos no volume interno do
corpo. O método clínico buscará, a partir de então, analisar as doenças e o organismo,
tomando o próprio corpo como objeto de conhecimento - objeto empírico, concreto,
finito.

No nível arqueológico, o século XIX representou a emergência da medicina


moderna. Embora a historiografia clássica tenha reconstituído os passos da clínica,
para justificar retrospectivamente o novo apelo da anatomia patológica, Foucault o
considera como um marco da ruptura histórica com a medicina da idade clássica.
Foucault mostra, no capítulo “Abram Alguns Cadáveres”, quais foram as condições
fundamentais de aparecimento da medicina moderna, denominada por ele de
“anatomoclínica”. Para Foucault, quando se admitiu que as lesões é que justificavam
os sintomas das doenças, a anatomia patológica passou a ser fundamental para a
investigação da geografia do corpo e, também por isto, a clínica passou a adotar um
novo modo de ler o tempo, do final para diante, da morte para vida.

Foucault esclarece que as dissecções já eram realizadas há muito tempo, e


que existiram no século XVIII anatomistas consagrados como Morgagni, com livros
que datam de 1760 e 1767, mas foi nas análises de Bichat que a nova percepção
médica pode ser reconhecida. Na medicina clássica, a doença era uma condição
abstrata e a referência aos órgãos era um dos princípios classificatórios; mesmo
inicialmente na clínica, a localização dos sintomas se prestava para as análises de
suas ordens, sucessões, coincidências e analogias. Mas na anatomoclínica, a
dissecção dos órgãos passou a ser realizada como “um princípio de decifração do
73

espaço corporal”, em que Bichat levava em conta cada tecido como o elemento
primário para a análise do funcionamento e das alterações patológicas.134

Apesar de não usar o microscópio, Bichat descrevia os órgãos em camadas:


membranas serosas, fáscias fibrosas, membranas internas mucosas e glandulares,
tecidos celular, muscular, nervoso, arterial e venoso, ósseo, cartilaginoso, sinovial,
medular, dérmico e epidérmico. As diversas combinações desses tecidos é que
formavam os órgãos, constituíam os sistemas e atravessavam o corpo. A unidade
fundamental tecidual e o princípio do isomorfismo nos diversos órgãos é que
explicavam as propriedades vitais, as funções orgânicas e suas alterações. Foucault
afirma que essa forma de fazer uma leitura diagonal, analisando, decompondo e
recompondo os tecidos em sistemas interligados, nada mais era do que o princípio da
análise filosófica posto em prática no volume do corpo. Nas palavras dele:

Trata-se de um modo de percepção idêntico ao que a clínica foi buscar


na filosofia de Condillac: a descoberta de um elementar que é, ao
mesmo tempo, um universal, e uma leitura metódica que, percorrendo
as formas de decomposição, descreve as leis da composição. Bichat
é estritamente um analista: a redução de volume orgânico ao espaço
tissular é, provavelmente, de todas as aplicações da Análise, a mais
próxima de seu modelo matemático. O olho de Bichat é um olho
clínico, porque concede um absoluto privilégio epistemológico ao olhar
de superfície.135

Tratava-se da mesma racionalidade analítica dos Ideólogos, que buscavam


aproximar a medicina das ciências empíricas para trazer um conhecimento objetivo
sobre a doença, da mesma vontade de saber que passou, então, a se inserir no
volume impenetrável do corpo. A analítica de Bichat provoca a redução de um órgão
complexo aos elementos simples, os quais se repetem em outros segmentos, e nas
repetições e relações pode-se dar um sentido ao todo. Simplificar, interpretar e
significar. Deve-se adentrar a esse capítulo de NC, para seguir os objetivos de
compreender o discurso médico.

134 NC, p. 128. Trad., p.140. No original: “La découverte majeure du Traité des membrane,
systématisée ensuite dans l’Anatomie générale, c´est un principe de déchiffrement de l’espace
corporel qui est à la fois intra-organique, interorganique et trans-organique.“
135 NC, p. 130. Trad., p.141-2. No original: “Il s’agit bien du même mode de perception que celui

emprunté par la clinique à la philosophie de Condillac : la mise à jour d’un élémentaire qui est en
même temps un universel, et une lecture méthodique qui, en parcourant les formes de la
décomposition, décrit les loi de la composition. Bichat est, au sens strict, un analyste : la réduction du
volume organique à l’espace tissulaire est probablement, de toutes les applications de l’Analyse, la
plus proche du modèle mathématique qu’elle s’était donnée. L’œil de Bichat est un œil de clinicien
parce qu’il donne un privilège épistémologique absolu au regard de surface.“
74

2. “Abram alguns cadáveres”

Figura 1 – Tronc et bras disséqué et injecté

Auteur de l'ouvrage: GAUTIER D' AGOTY, Jacques


Ouvrage: Anatomie générale des viscères et de la névrologie, angéologie et ostéologie du corps
humain
Edition: Paris: Gautier d'Agoty et Delaguette, 1754
Technique: Gravure - Manière noire

Adresse permanente de cette image :


http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/image?01716
75

O imperativo de Xavier Bichat dá nome ao capítulo central de NC, em que


Foucault trata da nova utilização da anatomia patológica no discurso médico.136 Desde
o seu Tratado das membranas (1799), os métodos de Bichat foram adquirindo
prestígio rapidamente, e foi justamente sua nova forma de análise do corpo e da
doença que trouxe uma experiência diferente para a medicina clínica.

Ao dissecar o cadáver, Bichat manteve a sua percepção na superfície dos


tecidos que se destacavam nos órgãos doentes, e observava que cada camada de
tecido tinha uma forma distinta de adoecer, a qual poderia se repetir em outros órgãos
que contivessem o tecido similar (princípio de homogeneidade tecidual). Essa forma
de condução da anatomoclínica mostrava um deslocamento da percepção médica,
identificado por Foucault inicialmente em dois sentidos.

No primeiro, as etapas da análise foram incorporadas nos próprios tecidos, elas


passaram a acontecer nas superfícies reais dos órgãos. Essa análise tissular traria ao
método clínico um “fundamento objetivo, real e indubitável de descrição das doenças”,
no qual poderia ser encontrado o “positivismo” da medicina, porque parecia haver uma
lógica na configuração patológica conforme ela acontecia no corpo.137 E, como tal,
esse fundamento lógico mórbido poderia ser decifrado pelo procedimento de dissecar
os órgãos e examinar os tecidos, o que tornava as doenças analisáveis pelo médico.

Foucault cita o caso das inflamações, doenças que provocam espessamento


dos tecidos. Pelo método de Bichat, os princípios lógicos de sua diferenciação podem
ser estabelecidos pela frequência de acometimento dos tecidos e pelo aspecto das
lesões. Por exemplo, na inflamação das membranas serosas – a pleura é acometida
com mais frequência que outras membranas similares e de forma diferente que as
outras camadas do pulmão; e na inflamação da meninge – as lesões das camadas
que compõem essa membrana cerebral se diferenciam pelos aspectos característicos
da inflamação que sofrem.

No segundo sentido do deslocamento, a doença deixava de ser interpretada


num nominalismo estrito, resultado da transcrição da linguagem; e passava ao suporte

136 NC, p.125. Trad., p.136. No original: “Ouvrez quelques cadavres”, citando X. Bichat, Anatomie
générale, Prefácio, p.XCIX, Paris.
137 NC, p.130. Trad., p.142. No original: “D’où l’allure que prit à son départ l’anatomie pathologique :

celle d’un fondement enfin objectif, réel et indubitable d’une description des maladies ”.
76

material dos tecidos, passava a ser o estado real das lesões nas superfícies
perceptíveis dos órgãos.

A partir disso, Bichat fundamentou sua nosografia, ordenando e classificando


as doenças segundo as alterações comuns e gerais, ou as regionais e particulares
dos tecidos, dando importância à geografia dos órgãos.

Foucault lembra que, na nomenclatura médica, houve quem tentou seguir o


modelo químico, para fixar um vocabulário meticuloso, inspirando-se nas descobertas
de Lavoisier dos compostos químicos. Daí resultava que “as terminações em ose
designavam formas gerais de alteração (gastroses, leucoses, enteroses); as em ite
designavam irritações dos tecidos; as em rea, os derrames etc.”138 Embora não
seguissem explicitamente a nosologia da anatomia patológica, essa nomenclatura
também permaneceu.

Mas como os sintomas puderam ser vinculados às lesões teciduais? Como


diferenciar no cadáver o que seria da doença em curso e o que fora resultado do
iminente esgotamento da vida, ou da morte e decorrente da circulação que parou, da
respiração que cessou, dos tecidos inertes? Bichat contornou essas objeções
aplicando o princípio fundamental do método clínico de que só existe fato patológico
comparado (princípio comparativo diacrítico). Para identificar os achados patológicos
é preciso compará-los aos achados na dissecção de corpos sadios, ou em outros
doentes com a mesmo diagnóstico e ainda aos achados durante a evolução da
doença.

Essa regra da comparação das lesões para sua caracterização foi levada ainda
mais longe, diz Foucault, foi dessa investigação que a lesão tecidual passou a ser
buscada para diagnosticar a doença. Esse foi um passo fundamental para
estabelecer a direção do diagnóstico: via vertical do sintoma para a lesão tecidual e
vice-versa, da superfície dos sintomas para a superfície dos tecidos, percepção que
penetrava no volume do corpo e estabelecia os vínculos significativos. É importante
reler o extrato abaixo:

138NC, p.134. Trad., p.146. No original: “A l’époque de Laënnec, Alibert, sur le modèle des chimistes,
tente d’établir une nomenclature médicale : les terminaisons en ose désignent les formes générales
de l’altération (gastroses, leucoses, entéroses), celles en ite désignent les irritations des tissus, celle
en rhée, les épanchements, etc. ”
77

Na experiência anatomoclínica, o olho médico deve ver o mal se expor


e dispor diante dele à medida que penetra no corpo, avança por dentre
seus volumes, contorna ou levanta as massas e desce em sua
profundidade. A doença não é mais o feixe de características
disseminadas pela superfície do corpo e ligadas entre si por
concomitâncias e sucessões estatísticas observáveis; é um conjunto
de formas e deformações, figuras, acidentes, elementos deslocados,
destruídos ou modificados que se encadeiam uns aos outros, segundo
uma geografia que se pode seguir passo a passo. Não é mais uma
espécie patológica inserindo-se no corpo, onde é possível; é o próprio
corpo tornando-se doente.139

No nível arqueológico, foi nessa transformação do gesto do médico sobre seu


objeto que a experiência médica adquiriu seu caráter moderno: o olhar estaria
autorizado a se aprofundar, decifrar, apreender o corpo, e a medicina rompia com as
abstrações e se fundamentaria cientificamente no corpo real. Isso também modificava
o tipo de exame físico e seus instrumentos de investigação, as formas de registro, os
conceitos do saber médico. Desde então, a doença não seria mais seus sintomas,
nem a reunião de probabilidades, o fato patológico teria localização espacial no corpo,
ela era a lesão tecidual, tinha um foco visível, uma sede, a partir da qual poderia se
ramificar e se intensificar.

A essa noção geográfica de sede, irá se sobrepor o deslocamento final da


percepção médica moderna, que foi dado pela noção de causa. O fisiologista
Broussais, desde seu Examen de la Doctrine généralement admise (1816), iria se
contrapor à interpretação das lesões como signos das doenças, como designava a
nosografia de Pinel, para situar os achados patológicos teciduais como sendo as
causas dos sintomas. O exemplo emblemático, Foucault afirma, é o curso das febres,
que eram classificadas como essências patológicas, com ou sem localização, sendo
que nas interpretações de Broussais, as febres terão um vínculo de causa com as
lesões inflamatórias orgânicas específicas.

139NC, p.138. Trad., p.151. No original: “Dans l’expérience anatomoclinique, l’œil médical doit voir le
mal s’étaler et s’étager devant lui à mesure qu’il pénètre lui-même dans le corps, qu’il s’avance parmi
ses volumes, qu’il en contourne ou qu’il en soulève les masses, qu’il descend dans ses profondeurs.
La maladie n’est plus un faisceau de caractères disséminés ici et là à surface du corps et liés entre
eux par des concomitances et des successions statistiquement observables ; elle est un ensemble e
formes et de déformations, de figures, d’accidents, d’éléments déplacés, détruits ou modifiés qui
s’enchaînent les uns aux autres selon une géographie qu’on peut suivre pas à pas. Ce n’est plus une
espèce pathologique s’insérant dans les corps, là où c’est possible ; c’est le corps lui-même devenant
malade.”
78

3. Dissolução das febres

A lucidez e a sistematização das teorias de Broussais sobre as formas de febre


se deveram aos diversos campos de experiência médica que ele atravessou.
Broussais teve formação como cirurgião na marinha, prosseguiu na escola dos
clínicos e nas práticas dos anatomopatologistas, tendo retornado à profissão militar
para se reunir ao exército, onde pode praticar a nosografia médica comparada e o
método das autópsias. Foucault avalia, “Broussais é apenas o ponto de convergênci a
de todas essas experiências, a forma individualmente modelada de sua configuração
de conjunto.”140

Em 1808, ele publicou sua Histoire des phlegmasies chroniques, em que fez
um retorno à ideia pré-clínica de que a febre e a inflamação dependiam do mesmo
processo patológico, contudo seguiu também o princípio tissular de Bichat, de que
havia a necessidade de encontrar a superfície do ataque orgânico. Sua teoria
simplificou a análise das febres, explicando as alterações inflamatórias próprias de
cada tecido, as formas de evolução e de transmissão local ou mais geral, às quais se
correlacionavam a sintomatologia. Para Foucault, nisso residiu a grande conversão
conceitual, que o método de Bichat tinha autorizado, mas ainda não esclarecido: é a
doença local que, generalizando-se, apresenta os sintomas particulares de cada
espécie, e quando tomada em sua forma geográfica primeira, a febre nada mais é do
que um fenômeno localmente individualizado com uma estrutura patológica geral.

Os estudos de Broussais mostravam que a inflamação devia ser compreendida


como um processo de ataque funcional e tecidual. Era preciso uma medicina
fisiológica que observasse a vida, que compreendesse as funções e as simpatias dos
órgãos. A anatomia patológica encontrava nos corpos sem vida seu próprio limite, a
fisiologia poderia transpor esses limites, ao reconhecer os distúrbios funcionai s
relacionados aos sintomas, e as vias simpáticas com que as doenças se
manifestavam, com ou sem lesões visíveis.

140NC, p.188-9. Trad., p.204. Leia-se : “Broussais n’est que le point de convergence de toutes ces
expériences, la forme individuellement modelée de leur configuration d’ensemble.”
79

Foucault afirma que houve uma reorganização do olhar médico porque desde
Bichat e a partir de Traité des membranes (1799), o princípio de visibilidade era a
regra absoluta e a localização constituía apenas sua consequência; mas com
Broussais, a ordem se inverteu: porque a doença é local, ela é, de maneira
secundária, visível.

A importância da lesão não se dá por ser perceptível, mas porque determina o


lugar em que a doença se desenvolve. Com a reformulação daqueles dois grandes
princípios da nosologia presentes em Bichat – o do distúrbio essencial e o da
visibilidade, Broussais pode abrir a experiência médica para um novo campo, que era
inteiramente o dos valores locais – da espacialização, e isto se deu,
interessantemente, pelo esforço de reconhecer a fisiologia do fenômeno mórbido.

Em seguida, Foucault estuda a questão da causa da inflamação, ao que


Broussais respondera com a noção de irritabilidade local a um agente externo ou a
uma modificação interna. Dessa forma, Broussais aborda o que não havia sido
alcançado por nenhum nosologista, a causa das lesões. O espaço local da doença é,
ao mesmo tempo, um espaço causal. Assim, indo mais longe, Broussais atribuiu aos
agentes irritantes internos ou externos a capacidade de provocar a inflamação dos
tecidos e os sintomas correlacionados. Veja-se a passagem abaixo, na qual Foucault
conclui a percepção moderna da doença.

Então – e aí está a grande descoberta de 1816 [do Examen de la


Doctrine généralement admise] – desaparece o ser da doença.
Reação orgânica a um agente irritante, o fenômeno patológico não
pode mais pertencer a um mundo em que a doença, em sua estrutura
particular, existiria de acordo com um tipo imperioso, que lhe seria
prévio, e em que ela se recolheria, uma vez afastadas as variações
individuais e todos os acidentes sem essência; insere-se em uma
trama orgânica em que as estruturas são espaciais, as determinações,
causais, os fenômenos, anatômicos e fisiológicos. A doença nada
mais é do que um movimento complexo dos tecidos em reação a uma
causa irritante: aí está toda a essência do patológico, pois não mais
existem nem doenças essenciais nem essências das doenças.141

141 NC, p.194. Trad., p.209. No original: “Alors – et c’est là la grande découverte de 1816 – disparaît
l’être de la maladie. Réaction organique à un agent irritant, le phénomène pathologique ne peut plus
appartenir à un monde où la maladie, dans sa structure particulière, existerait conformément à un type
impérieux, qui lui serait préalable, et en qui elle se recueillerait, une fois écartés les variations
individuelles et tous les accidents sans essence ; il est pris dans une trame organique où les
structures sont spatiales, les déterminations causales, les phénomènes anatomiques et
physiologiques. La maladie n’est plus qu’un certain mouvement complexe des tissus en réaction à
80

A importância das análises de Broussais foi promover a “dissolução da


ontologia febril”, porque tornavam necessário localizar e conhecer o órgão sofredor,
relacionar os sintomas, em seguida identificar e tratar as causas, para suprimir os
seus efeitos.142 A noção de sofrimento dos órgãos fixou ainda mais o olhar médico no
espaço do corpo, por se dirigir apenas e diretamente à composição dos órgãos e seu
funcionamento. Perceber o mórbido era uma maneira de perceber o corpo.

Enfim, essa percepção da doença como reação patológica do corpo, dominará


a experiência médica até certo ponto do século XX, afirma Foucault, quando o
reconhecimento dos agentes patogênicos virá trazer novos deslocamentos
metodológicos.

A história da emergência do método clínico, da formação e da transformação


de uma experiência perceptiva, poderia ter sido percorrida até a conclusão do livro ,
caso não existisse outro ponto construído por Michel Foucault no coração de NC, e
que está vinculado à própria questão deste trabalho: qual a relação do discurso
médico com a morte?

une cause irritante : c’est là toute l’essence du pathologique, car il n’y a plus ni maladies essentielles,
ni essences des maladies”.
142 NC, p.125. Trad., p.211. No original: “Cette dissolution de l’ontologie fébrile, avec les erreurs

qu’elle a comportées (à une époque où la différence entre méningite et typhus commençait à être
perçue clairement), est l’élément le plus connu de l’analyse”.
81

CAPÍTULO V - DISCURSO, MORTE, VIDA

No nível arqueológico, a morte representou uma disposição geral que


atravessava o início do século XIX e formava o duplo gêmeo com a vida. Porque as
populações nas cidades morriam, porque os trabalhadores morriam, porque os
soldados morriam nas guerras, porque se morria nas epidemias, porque se morria nos
hospitais, porque muitos morriam de tuberculose, porque os poetas morriam cedo,
fora preciso estudar a morte, para fazer viver.

Foucault, em As palavras e as coisas (MC, Les mots e les choses), afirma que
existe em cada época um solo geral do pensamento que torna possível os
conhecimentos e o modo de ser daquilo que se sabe.143 É um espaço comum, em que
os saberes existem em dispersão, em jogos simultâneos, em redes de elementos
confluentes ou contraditórios. Foucault denomina esse espaço de episteme. As
epistemes são formadas pela singularidade e pelo acaso da convergência dos
acontecimentos históricos de cada época. O nível da episteme moderna é constituído
pelas positividades, que são campos de formações discursivas mais ou menos
delimitados em torno das regularidades formais, das relações temáticas, dos
conceitos ou das opiniões no interior dos temas. É, por exemplo, a positividade do
discurso médico, que o caracteriza como uma área de saber, conforme já foi abordado
neste trabalho no capítulo II.

Enfim, a episteme moderna teria suas próprias disposições gerais, condições


de possibilidade que organizam os saberes, entre elas a historicidade e o pensamento
das ciências empíricas. Para Foucault, foi a modernidade que introduziu a figura do
homem, na posição ambígua de objeto e de sujeito que conhece, através da rede de
saberes que analisam o seu papel na vida, no trabalho e na linguagem.

No capítulo IX de MC, “O homem e seus duplos”, Foucault examina as


características das ciências que constituíram o homem como duplo empírico-
transcendental, denominadas por ele de “analíticas de finitude”. Nesse mesmo

143 FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. (Les
mots et les choses) (MC)
82

capítulo, Foucault expia essa figura do homem, porque pressente que ela está se
dissolvendo, pois é apenas um reflexo pálido dos seres humanos, e que vem sendo
colocado em cheque pelo “impensado”. Para acessar o que seria o “impensado”, é
preciso rever que, na investigação de Foucault, aparecem dois tipos de duplos do
homem: um, da representação externa que se faz do objeto-sujeito homem pelas
positividades; e o outro tipo, o duplo gêmeo de si mesmo, que se manifesta fraterno,
obscuro, ora confuso, ora ridente, e insiste no que deixou de ser pensado no discurso
das ciências do homem. Embora Foucault também tenha procurado investigar certos
“saberes do impensado”, supostas “contraciências”, que pareciam se opor aos da
finitude, porque elas se dirigiam a estruturas inconscientes que provinham do desejo,
da palavra e da ação – os casos da psicanálise, da linguística e da etnologia, essa
aposta não prosperou.

Neste trabalho, contudo, para abordar o tema da morte em NC, talvez seja
preciso se remeter aos significados da finitude e do impensado em MC. Deve-se
perguntar: NC traria, nos capítulos centrais, a descrição exemplar dessa analítica da
finitude? Quais estatutos da morte se condensam em NC? Parecem ser os
significados epistemológicos e as experiências poéticas. Então, vai-se tentar seguir
entrelaçando as descrições de Foucault nos dois livros.

1. Linguagem médica, literatura, distância

Viu-se neste trabalho (capítulo III.3) que Foucault desenvolve em NC dois


capítulos que tratam da linguagem como cerne da medicina moderna, “Signos e
Casos” e “Ver, Saber”. A linguagem médica compôs a lógica interna do discurso
médico, em que ver e descrever seria enunciar a verdade científica, com momentos
intercalados de percepção, análise, comparação dos achados e das frequências e
significação. O modelo descritivo da linguagem médica deveria ser bastante
minucioso e exaustivo, neutro e indiferente e, para que pudesse atingir sua exigência
formal, deveria se expressar com regularidade polida, quase numa língua esotérica.
Contudo, Foucault mostra que esse modelo científico da linguagem médica
83

representou uma lógica frágil, uma espécie de discurso redutor, imobilizado,


autorreferente. A força da ciência médica moderna veio do deslocamento da
experiência que a fez se aprofundar no corpo.

Em sentido próximo, “No retorno da linguagem” em Les mots et les choses


(MC), Foucault descreve o uso da linguagem na modernidade sob duas formas: a da
interpretação, que seria a exegese, a descoberta de sentidos ocultos, o fazer falar da
linguagem; e a da formalização dos discursos, da busca dos universais, de controlar
pela lei o que é possível dizer. 144 Mas, ele cita ainda um terceiro domínio da linguagem
no século XIX, o da literatura. Para Foucault, a modalidade propriamente denominada
literária surgiu recentemente, como uma experiência independente da linguagem.
Para Foucault, a literatura seria a linguagem que nasce simplesmente do ato de
escrever, remete à própria escrita, seu compromisso é somente com as palavras, e,
nesses termos, ela se afastaria das ciências, da qual, contudo, é a “figura gêmea”.145

Em Raymond Roussel (RR), Foucault mostra, através do método do escritor,


que a linguagem em si não remete a uma verdade, a linguagem apenas expressa os
jogos meticulosos que a caneta-olhar do escritor decidiu seguir. No método ficcional
de Roussel contam as analogias, os avessos, as pequenas mudanças de letras que
deslizam os sentidos, os duplos, os pares, as repetições, as imitações, as listas, os
diversos parênteses classificatórios, as chaves de enigmas, etc. Roussel reagrupa as
palavras e desdobra a linguagem, fazendo emergir uma proliferação de fluxos. Ele
segue a lógica rigorosa da sua técnica da linguagem, cujo enigma deveria ser revelado
somente no texto publicado após a sua morte, chamado Como escrevi alguns de meus
livros. Foucault acredita, contudo, que o segredo póstumo era que não havia enigma,
o procedimento de Roussel já estava à vista nos livros dele, apenas esperando a
morte anunciá-lo.

Tomando diretamente de RR, na citação abaixo.

Todos os aparelhos de Roussel, maquinarias, figuras de teatro,


reconstituições históricas, acrobacias, truques de prestidigitação,
adestramentos, artifícios – são de uma maneira mais ou menos clara,
com mais ou menos densidade, não apenas uma repetição de sílabas

144 Ver em FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.
(Les mots et les choses) (MC), chapitre “L’homme et ses doublés”, I. Le retour du langage, p.1365-9.
Trad., p.417-23.
145 Ver em MC, p.1364 Trad., p.415.
84

ocultas, não apenas a figuração de uma história a descobrir, mas uma


imagem do próprio procedimento. Imagem invisivelmente visível,
perceptível, presente numa irradiação que rechaça o olhar. É claro que
as máquinas de Roussel são identificáveis ao procedimento, e, no
entanto, esta clareza não fala por si mesma; ela, apenas, só tem a
oferecer ao olhar o mutismo de uma página branca. Para que neste
vazio apareçam os signos do procedimento, foi necessário o texto
póstumo, que não acrescenta uma explicação às figuras visíveis, mas
que lhe dá a ver o que nelas já irradiava, atravessando soberanamente
a percepção, e tornando-a cega. O texto após a morte (que por
instantes tem o ar de ser efeito de uma espera frustrada e como um
despeito feito ao leitor que não vira o que estava lá) era
necessariamente prescrito desde o nascimento destas máquinas e
destas cenas fantásticas, já que elas não podiam ser lidas sem ele e
que Roussel jamais quis ocultar nada.146

Para Foucault, a literatura abriria, como em Roussel, um espaço selvagem, de


existência abrupta, pura manifestação da linguagem. Contudo, é significativo observar
que se percebem semelhanças com as análises de NC, em que o olhar, a linguagem
e a morte também eram os eixos principais. Entende-se, portanto, que o conhecimento
das coisas não estaria na própria linguagem, mas nas escolhas que se faz antes de
dizer: quais conceitos empregar, quais métodos adotar, quais objetos olhar, e o
enunciado seria uma verdade científica, ou não. Depende de quem fala. Nesse
sentido, NC e RR são livros gêmeos, são duplos, da linguagem científica e da
literatura, seu par e seu reflexo.

A distância que separa o discurso médico e a literatura, entre o sujeito que diz
a verdade sobre o doente e o discurso sem sujeito, seria possível superá-la para
construir uma nova experiência? Para Foucault, em MC, essa questão vem sendo
formulada, mas ele não saberia respondê-la. O reencontro desses dois jogos de

146FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Présentation de Pierre Macherey. Collection Folio /


Essais. Paris: Gallimard, 1963, p.75-6. Trad., p.48. No original: “Tous les appareils de Roussel –
machineries, figures de théâtre, reconstitutions historiques, acrobaties, tours de prest idigitation,
dressages, artifices – son d’une façon plus ou moins claire, avec plus ou moins de densité, non
seulement une répétition de syllabes cachées, non seulement la figuration d’une histoire à découvrir,
mais une image du procédé lui-même. Image invisiblement visible, perceptible mais non déchiffrable,
donnée en un éclair et sans lecture possible, présente dans un rayonnement qui repousse le regard. Il
est clair que les machines de Roussel sont identifiables au procédé, et pourtant cette clarté ne pa rle
pas d’elle-même ; seule, elle n’a à offrir au regard que le mutisme d’une page blanche. Pour qu’en ce
vide apparaissent les signes du procédé, il a fallu le texte posthume, qui n’ajoute pas une explication
aux figures visibles, mais qui donne à voir ce qui en elles déjà rayonnait, traversant souverainement la
perception, et la rendant aveugle. Le texte d’après la mort (qui par instants a l’air d’être l’effet d’une
attente déçue, et comme d’un dépit que le lecteur n’ait pas vu ce qui était là) était nécessairement
prescrit dès la naissance de ces machines et de ces scènes fantastiques, puisqu’elles ne pouvaient
pas être lues sans lui et que Roussel n’a jamais rien voulu cacher. ”
85

linguagem seria uma questão da atualidade, cujos desfechos talvez possam ser um
novo pensamento ou um fechamento sobre o mesmo anterior. 147

O dizer do sofrimento e da morte na literatura poderia ressoar num espaço


único com a medicina, seria possível?

Percebe-se aqui, que a experiência de Roussel mostra, num clarão perceptível


apenas por um instante, os mesmos procedimentos de toda a linguagem na
modernidade. As repetições dos discursos ou a sua imprevisibilidade, conforme quem
fala. E ainda, a morte sendo o único fim, talvez seja também o princípio que significa
tudo o que veio antes. Procedimentos gêmeos, no discurso das ciências do homem e
no princípio da linguagem ambígua, invisível no discurso médico, mas no discurso
poético de Roussel, cintilando a verdade sobre a linguagem moderna. Foucault não
opõe a linguagem médica à literatura de Roussel, o que ele faz é tornar visível a
ambiguidade de todo discurso sobre o homem. Ele aborda as imagens poéticas de
Roussel como um arquivo do pensamento da atualidade.

O que se teria a aprender? Talvez fosse possível ampliar o discurso da


medicina, desviando-se para uma experiência de viver sem se pautar na morte. Seria
uma forma de contornar o que reduz a medicina aos discursos mortos. Essa
experiência poderia nascer da lucidez de perceber a repetição dos conceitos ou a
ambiguidade das proposições que, usando as mesmas palavras, constroem sentidos
sucessivos. Ampliar o discurso médico seria tentar pensar o que não foi pensado,
renovar, criar possibilidades simultaneamente às vivências.

Ainda, é preciso compreender o que a morte significa na medicina, para poder


expiá-la.

147 Ver em MC, p.1368-9. Trad., p.421-3.


86

2. Morte, finitude, vida

Figura 2 – Ouvrage : A series of engravings explaining the course of the nerves


Mots-clés : Anatomie. Dissection. 19e siècle
Auteur de l'ouvrage : BELL, Charles
Edition : Londres: T. N. Longman, 1803
Cote : 006493
Dessinateur : Bell
Graveur : Grant, J.
Empl. de l'image : Plate II
Technique: Gravure

Adresse permanente de cette image :


http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/image?01892
87

Nas conclusões do capítulo VIII de NC, “Abram alguns cadáveres”, Foucault


descreve como a morte pode dar os fundamentos da medicina moderna. Sempre
confrontando as diferenças da medicina clássica do século XVIII, ele relata que a
morte antes era o evento limítrofe, que destacava o fim da vida e da possibilidade de
ouvir a doença falar. Anteriormente, procurava-se analisar os próprios sinais e
sintomas, muitas vezes sem conseguir estabelecer um fio condutor que levasse ao
diagnóstico ou ao curso da doença.

Já com as técnicas da medicina anatomoclínica, o exame dos cadáveres


passou a ter um estatuto decisivo. Primeiramente, devido à melhor organização das
clínicas, o que trouxe a possibilidade de realizar dissecções mais cedo, evitando os
efeitos da decomposição orgânica. Assim, a morte passava a ser uma linha vertical
mais fina, que aproximava os sintomas das lesões. Em segundo lugar, Foucault
descreve também como Bichat se aplicou em reconhecer o processo da mortificação,
detalhando os efeitos da progressão da morte em cada órgão, para distingui-los do
processo contemporâneo da doença. Isto resultou numa análise múltipla, dispersa,
repartida no tempo e no espaço do corpo (morte fragmentada), que fez pulular
aspectos relacionados à morte no discurso médico da época.

As análises post mortem levaram Bichat a reconhecer a cronologia da morte


natural, relacionada à “vida animal”: “[...] extinção sensorial, em primeiro lugar,
entorpecimento do cérebro, enfraquecimento da locomoção, rigidez dos músculos,
diminuição de sua contratilidade, quase-paralisia dos intestinos e, finalmente,
imobilização do coração”.148

Essas análises também o levaram a estabelecer as interações espaciais entre


as falências dos órgãos, havendo três centros de transmissão principais: coração,
pulmão e cérebro. A morte do coração leva à do cérebro pela via vascular; a morte do
pulmão leva à do coração por obstrução mecânica ou por alteração das reações
químicas; as lesões cerebrais não causam danos ao coração, a não ser que ocorra a
paralisia muscular e parada respiratória.

148NC, p.145. Trad., p.157. No original: “Dans la mort naturelle, la vie animale s’éteint la première :
extinction sensorielle d’abord, assoupissement du cerveau, affaiblissement de la locomotion, rigidité
de muscles, diminution de leur contractilité, quasi-paralysie des intestins et finalement immobilisation
du cœur. ” Foucault está citando X. Bichat em Recherches physiologiques sur la vie et la mort, Paris,
an. VIII, p.242.
88

Foucault conclui que “os processos da morte, que não se identificam nem com
os da vida nem com os da doença, servem, no entanto, para esclarecer os fenômenos
orgânicos e seus distúrbios.”149 É na morte natural e na cronologia natural de
desprendimento de cada órgão da vida, que “o sistema das dependências funcionai s
e das interações normais ou patológicas se esclarece, [...] a morte pode servir de
ponto de vista sobre o patológico e permitir fixar suas formas ou suas etapas.”150

Foucault retorna ao exemplo da tuberculose, em mais um momento, além dos


que já tinham sido enumerados aqui (no capítulo III.2), para descrever como os
anatomopatologistas puderem então estabelecer, através dos achados post mortem,
o conjunto e a cronologia das lesões pulmonares: desde os tubérculos firmes iniciais
até os últimos estádios da doença, em que as lesões se tornam escavadas e
destrutivas. Portanto, além de ser um ponto de vista, a morte se tornou o elemento
que permitiu integrar as etapas de evolução da doença ao espaço imóvel do corpo.
Talvez, ainda por isto, se perdeu o medo da morte, sua presença constante, sua
proximidade foi se integrando aos discursos da medicina, na percepção
anatomoclínica.

É preciso reler o parágrafo de NC destacado abaixo.

A vida, a doença e a morte constituem agora uma trindade


técnica e conceitual. A velha continuidade das obsessões milenares
que colocava, na vida, a ameaça da doença e, na doença, a presença
aproximada da morte é rompida: em seu lugar se articula uma figura
triangular, de que o cume superior é definido pela morte. [...] Em lugar
de permanecer o que tinha sido durante tanto tempo, noite em que a
vida se apaga e em que a própria doença se confunde, ela é dotada,
de agora em diante, do grande poder de iluminação que domina e
desvela tanto o espaço do organismo quanto o tempo da doença...” 151

149 NC, p.145. Trad., p.158. No original : “Les processus de la mort que ne s’identifient ni à ceux de la
vie ni à ceux de la maladie sont de nature pourtant à éclairer les phénomènes organiques e leurs
perturbations.”
150 NC, p.145. Trad., p.158. No original : “Le système des dépendances fonctionnelles e des

interactions normales ou pathologiques s’éclaire aussi de l’analyse de ces morts en détail […] elle
peut servir de point de vue sur le pathologique et permettre d’en fixer les formes ou les étapes. ”
151 NC, p.146. Trad., p.159. No original : “La vie, la maladie et la mort constituent maintenant une

trinité technique et conceptuelle. La vieille continuité des hantises millénaires qui plaçaient dans la vie
la menace de la maladie, e dans la maladie la présence approchée de la mort est rompue : a la place,
une figure triangulaire s’articule, dont le sommet supérieur es définit par la mort. […] Au lieu d’être ce
qu’elle avait été si longtemps, cette nuit où la vie s’efface, où la maladie même se brouille, elle est
douée désormais de ce grand pouvoir d’éclairement qui domine et met à jour à la fois l’espace et le
temps de la maladie… ”
89

É interessante notar como Foucault fala de que foi a atemporalidade da morte,


em suas imobilidade e frieza, que constituiu o princípio para a apreensão da verdade
sobre a vida.

Foucault apenas cita o vitalismo de Bichat e sua célebre frase de que a vida é
aquilo que se opõe à morte. Embora, de fato, Bichat tenha estabelecido uma
especificidade da vida fora do domínio inorgânico e dos fenômenos simplesmente da
física, ele, ainda assim, definiu a vida na experiência da morte. Parece que Foucault
prefere crer que Bichat desenvolveu um “mortalismo”.152 O vitalismo apenas invocaria
a distância que separa o discurso clínico e a morte, esta que é o duplo impensado da
vida, porque o saber da verdade sempre fora do domínio da vida, e transpor o limite
da morte “é uma tarefa difícil e paradoxal para o olhar médico”.153 Se antes a morte
era o temor sombrio às costas do médico, o olhar precisava agora girar sobre si
mesmo e pedir que a morte esclarecesse sobre a vida e a doença. No imaginário, a
vida se tornaria noite e a morte, claridade.

“A noite viva se dissipa na claridade da morte”, Foucault conclui, ao final do


capitulo VIII de NC.154 Nessa mesma frase em que mostra o fundamento
epistemológico subliminar e paradoxal que a morte constituiu para a nova experiência
médica, Foucault insere um traço poético. Certo, porque o impensado ressurgira
visível no peito dos poetas, no coração dos modernos existira a invisível verdade.

É com outro paradoxo relacionado que Foucault define novamente o estatuto


epistemológico do método clínico: “a estrutura perceptiva e epistemológica que
fundamenta a anatomia clínica, e toda a medicina que dela deriva, é a da invisível
visibilidade”.155 A visibilidade se dá porque persistirá o signo dominante do visível nas
novas técnicas de exame clínico, mesmo no uso do estetoscópio e da percussão do
tórax. Isto, porque a investigação era sobre os dados espaciais e as alterações das
estruturas do corpo em vida, que posteriormente seriam confirmadas pela necropsia.
A invisibilidade se dá porque o corpo vivo deveria se tornar transparente ao olhar que
examina, ser como um véu que deixe a descoberto os conjuntos e as relações

152 NC, p.148. Trad., p.161. No original : “Le vitalisme apparaît sur le fond de ce ‘mortalisme’. ”
153 NC, p.148. Trad., p.162. No original : “Sans doute était-ce une tâcha bien difficile et paradoxale
pour le regard médical que d’opérer une telle conversion.”
154 NC, p.149. Trad., p.162. No original : “La nuit vivante se dissipe à la clarté de la mort. ”
155 NC, p.169. Trad., p.183. No original : “La structure à la fois perceptive et épistémologique qui

commande l’anatomie clinique et toute la médicine dérivant d’elle, c’est celle de l’invisible visibilité. ”
90

internas. Enfim, porque a individualidade dos casos, antes invisível, se tornava visível,
pois a abertura do cadáver explicava as verdadeiras particularidades das lesões de
cada um. Outra vez, Foucault utiliza o exemplo da tuberculose, citando Laënnec e o
caso de uma mulher com tísica pulmonar em forma de lesões pleurais fibrosas que
provocaram alterações circulatórias simulando um quadro cardíaco, mas cujo
diagnóstico específico pode ser esclarecido após a morte.156

Foucault define o olhar médico tal “um olhar local e circunscrito”, “olhar limítrofe
do tato e audição”, “olhar absoluto e integrador”, “olho que se põe sobre a fundamental
visibilidade das coisas”, “olho absoluto do saber”.157 O olhar que domina o campo do
saber possível e se associa ao poder da morte.

Neste momento também, a linguagem médica sofreria nova inflexão, as


palavras tiveram que adquirir mais refinamento descritivo para traduzir inteiramente a
percepção científica das lesões patológicas.158 A importância da cor, da consistência,
do tamanho, das comparações, das referências, etc. tudo o que pudesse apreender a
singularidade dos casos deveria ser detalhado. Um trabalho da linguagem que fazia
ver, fazia descobrir as percepções individualizadas da doença. Nas palavras de
Foucault, a seguir.

A linguagem e a morte atuaram, em cada nível dessa experiência e


segundo toda a sua espessura, para finalmente oferecer a uma
percepção científica o que durante muito tempo tinha permanecido
como o invisível visível – proibição e iminente segredo: o saber sobre
o indivíduo.159

É importante concluir que, para ele, a individualização passou a ser dada pelo
modo de adoecer, pelo patológico, ao se colocar a vida em referência ao mórbido, ao
ter a morte como a disposição subliminar. Explica-se, então, o privilégio do tísico na
modernidade: ele era a vida a quem a doença e a morte transmitiam uma fisionomia,
porque elas estavam visíveis em seu núcleo lírico. O entrelaçamento epistemológico
e poético em NC mostra o que existia nos arquivos médicos e nas imagens poéticas,

156 Ver em NC, p.172. Trad., p.186.


157 NC, p.169-70. Trad., p.183-4. No original : “un regard local et circonscrit”, “le regard limitrophe du
toucher et de l’audition”, “un regard absolu, absolument intégrant”, “quand le médecin observe, tous
ses sens ouverts, un autre œil est posé sur le fondamentale visibilité des choses ”, “l’œil absolu du
savoir”.
158 Ver em NC, p.173. Trad., p.187.
159 NC, p.174. Trad., p.188-9. No original : “Le langage et le mort ont joué à chaque niveau de cette

expérience, et selon toute son épaisseur, pour offrir enfin à une perception scientifique ce qui pour elle
était resté si longtemps l’invisible visible – interdit et imminent secret : le savoir de l’individu.”
91

nas lesões escavadas pulmonares e no lirismo poético: o semblante do tísico, sua


individualidade mórbida moderna.

O exemplo da medicina é decisivo porque foi o primeiro discurso científico


sobre o indivíduo. É que o homem ocidental só pode se constituir aos seus próprios
olhos como objeto da ciência, numa experiência discursiva, cuja relação obstinada
com a morte prescrevia sua singularidade, afirma Foucault.160 O princípio da
visibilidade e a nova objetividade levaram a linguagem médica à correlação estrita
entre o visível e o enunciável, e para que isso pudesse ocorrer, fora preciso o instante
de estabilidade visível do cadáver. O aprofundamento no corpo, então, cerrou a
experiência perceptiva à verdade científica. Deve-se reconhecer que foram as
mesmas condições de possibilidade que constituíram o médico como sujeito que
conhece, duplo objeto-sujeito que profere o discurso da medicina. O pensamento
científico que se formou no fim do século XVIII é que trouxe os poderes positivistas
para o médico, organizou seus métodos empíricos, tomou o papel da filosofia nas suas
reflexões, tranquilizou-o na presença da morte e o limitou ao saber da finitude. O
pensamento da finitude foi a condição que transformou os saberes na modernidade,
sendo a medicina o exemplo central das novas ciências do homem, embora existam
outros, como a psicologia e a sociologia.

Em MC, retomando as condições históricas de possibilidade da biologia, pode-


se também reconhecer as transformações no nível arqueológico que permitiram os
saberes da modernidade. Foucault descreve como as investigações de Cuvier, no
início do século XIX, diferiam das teorias taxonômicas da História Natural, e
mostravam outros princípios.161 Principalmente, por se dirigirem à organização interna
dos seres vivos e levarem em conta as funções (de respiração, digestão, circulação,
locomoção, reprodução, etc.) para formar outro plano geral classificatório dos seres
vivos, conforme as identidades funcionais dos seus órgãos. Na prática, esse princípio
reforçou a anatomia comparada, para a análise do espaço interior dos corpos, pois
era preciso recortar, retalhar, fracionar os espaços para fazer aparecerem as
semelhanças que poderiam passar invisíveis. Ainda, esteve interligado ao
estabelecimento da hierarquia dos órgãos, porque os mais visíveis e superficiais se
mostravam menos significativos do que os mais profundos e ocultos. Na teoria, foi se

160 Ver em NC, p.200-1. Trad., p.217.


161 Ver em MC, p.1322. Trad., p.362.
92

formando uma série de oposições entre o visível e o invisível, explicadas


resumidamente a seguir.162

O visível se manifestava nos órgãos secundários superficiais do corpo, mas


também nos órgãos sólidos em geral, por serem visíveis direta ou indiretamente; e era
o espaço da proliferação das diferenças. O invisível advinha dos órgãos primários, os
quais eram ocultos, essenciais, centrais e atingidos somente pela dissecção; pela
disposição da identidade que não se percebia na forma do órgão, mas na função por
debaixo que a prescrevia; e provinha da unidade focal, grande, misteriosa, profunda,
que aproximava e tramava segundo um plano vital invisível, todas as ramificações
possíveis de seres vivos. Assim, surge a noção de vida. A partir de Cuvier, é a vida, e
não mais a natureza, que se manifesta no enigma do ser vivo. No nível da arqueologia,
é o momento em que se instaura o saber da biologia.

Esse fundamento epistemológico da biologia introduziu um deslocamento


importante, porque a abordagem dos seres vivos passa a ser feita a partir da
historicidade e da finitude. O ser vivo deveria ser descrito na sua historicidade própria,
nas suas condições de existência – dependentes da água, do ar, do alimento, e de
outros elementos exteriores para a manutenção da vida, sem os quais a ameaça da
morte irrompia. A vida seria a força e a lei fundamental dos seres, a morte, o limite
inerente a ela.

Passando a palavra a Foucault.

A experiência da vida apresenta-se, pois, como a lei geral dos


seres, aclaramento dessa força primitiva a partir da qual eles são; [...].
Em relação à vida, os seres não passam de figuras transitórias e o ser
que eles mantêm, durante o episódio de sua existência, nada mais é
que sua presunção, sua vontade de subsistir. De sorte que, para o
conhecimento, o ser das coisas é ilusão, véu que se deve rasgar, para
se reencontrar a violência muda e invisível que os devora na noite.163

Pode-se reconhecer que a vida é o domínio epistemológico produzido nas


ciências modernas, invisível e exterior aos seres que, contudo, se manifestaria no

162 Ver em MC, p.1328-9. Trad., p.370-1.


163 MC, p.1339-40. Trad., p.384. No original : “L’expérience de la vie se donne donc comme la loi la
plus générale des êtres, la mise à jour de cette force primitive à partir de quoi ils sont ; […]. Par
rapport à la vie, les êtres ne sont que des figures transitoires et l’être qu’ils maintiennent, pendant
l’épisode de leur existence, n’est rien de plus que leur présomption, leur volonté de subsister. Si bien
que, pour la connaissance, l’être des choses est illusion, voile qu’il faut déchirer pour retrouver la
violence muette et invisible qui les dévore dans la nuit ”.
93

espaço obscuro dos seus corpos. E a morte é o limite inerente à vida, é a finitude
essencial dos seres vivos. Vida e morte estão interligadas.

Desta forma, entende-se porque Foucault suspeita dessa noção de vida, ela é
um ponto de articulação obscuro, inacessível, indefinido, e que se expressa no limite
que impõe aos seres, na sua finitude mortal. Foucault adverte, o pensamento
contemporâneo deve redescobrir o que foi esquecido, deve puxar os fios ocultos para
desatar essa trama sombria que formou a experiência da atualidade.

Ainda em MC, a analítica da finitude na modernidade é referida por Foucault


aos saberes que delimitam o homem na biologia, na economia política e na filologia.
Sinteticamente, as características dos saberes da finitude reunidas por ele seriam: (1)
sua anterioridade, pois são sempre prévios aos homens; (2) sua positividade, que
impõe limites materiais concretos; (3) sua indefinição, porque lhes escapa as
instabilidades do desejo, do corpo e da linguagem; (4) seu retorno sobre si, pois
respondem sempre à própria finitude; (4) e a repetição do mesmo.164 Esses saberes
não foram capazes de criar uma “metafísica da vida”, porém construíram a figura do
homem como ser finito empírico e transcendental, tipo positivista da redução e da
promessa não-cumprida, que estaria se dissolvendo.

Ele afirma que essa analítica da finitude deixou um vazio, que é como uma
fenda, denominada “impensado”, um espaço inerente ao próprio pensamento
moderno. É justamente nesse espaço vazio, na distância que separa a finitude e o
impensado, que enfim seria possível pensar novamente. Em MC, o impensado
aparece em dois sentidos, o primeiro é negativo, seria o esquecimento estratégico em
proveito da repetição do mesmo, e também um modo de ação que instala obstáculos
para um pensamento por vir. Por exemplo, esquece-se que a morte geminou no
pensamento moderno sobre a vida; ou se instala um domínio finito da vida, como se
a existência se repetisse ou como se o saber não fosse imprevisível. No segundo
sentido, o impensado é positivo, vem do ainda não-pensado, do não-conhecido, do
novo, explicado por Foucault, no extrato a seguir.

A questão não é mais: como pode ocorrer que a experiência da


natureza dê lugar a juízos necessários? Mas sim: como pode ocorrer
que o homem pense o que ele não pensa, habite o que lhe escapa sob
a forma de uma ocupação muda, anime, por uma espécie de

164 Ver em MC, p.1375-81. Trad., p.430-9.


94

movimento rijo, essa figura dele mesmo que se lhe apresenta sob a
forma de uma exterioridade extraordinária? Como pode o homem ser
essa vida cuja rede, cujas pulsações, cuja força encoberta
transbordam indefinidamente a experiência que dela lhe é
imediatamente dada? Como pode ele ser esse trabalho, cujas
exigências e cujas leis se lhe impõem como um rigor estranho? Como
pode ele ser o sujeito de uma linguagem que, desde milênios, se
formou sem ele, cujo sistema lhe escapa, cujo sentido dorme um sono
quase invencível nas palavras que, por um instante, ele faz cintilar por
seu discurso, e no interior da qual ele é, desde o início, obrigado a
alojar sua fala e seu pensamento, como se estes nada mais fizessem
senão animar por algum tempo um segmento nessa trama de
possibilidades inumeráveis?165

Para o saber médico, o que seria “pensar o impensado”166? É preciso refletir


nos dois sentidos em que ele se apresenta, negativo e positivo, estratégico e
existencial.

Retorna-se, assim, à questão inicial deste trabalho: a lacuna do impensado que


murmura quando a morte expõe um saber científico ausente, e, nessas circunstâncias,
o que seria possível pensar, saber, dizer?

Em MC, Foucault faz um diagnóstico do pensamento da modernidade e


percebe um movimento histórico de transbordamento da analítica da finitude. Por isto,
ele tenta fazer descontrair os discursos do trabalho, da vida, da linguagem,
primeiramente, mostrando seus duplos impensados – o desejo, a morte, a lei –, e a
correspondente instabilidade da economia, da biologia e da filologia. Em seguida,
dizendo do impensado interno, o gêmeo, o outro, fraterno, inesgotável, insistente, sem
certezas, que tenta pensar por si mesmo.

O caminho buscado aqui talvez seja o de, nessa lacuna do impensado, na


vivência do momento, fazer constar a possibilidade dos novos pensamentos, dos

165 MC, p.1387. Trad., p.445-6. No original : “La question n’est plus : comment peut-il se faire que
l’expérience de la nature donne lieu à des jugements nécessaires ? Mais : comment peut-il se faire
que l’homme pense ce qu’il ne pense pas, habite ce qui lui échappe sur le mode d’une occupation
muette, anime, d’une sorte de mouvement figé, cette figure de lui-même qui se présente á lui sous la
forme d’une extériorité têtue ? Comment l’homme peut-il être cette vie dont le réseau, dont les
pulsations, dont la force enfouie débordent indéfiniment l’expérience qui lui en est immédiatement
donnée ? Comment peut-il être ce travail dont les exigences et les lois s’imposent à lui comme une
rigueur étrangère ? Comment peut-il être sujet d’un langage que depuis des millénaires s’est formé
sans lui, dont le système lui échappe, dont le sens dort d’un sommeil presque invincible dans les mots
qu’il fait, un instant, scintiller par son discours, et á l’intérieur duquel il est, d’entrée de jeu, contraint de
loger sa parole et sa pensée, comme si elles ne faisaient rien plus qu’animer quelque temps un
segment sur cette trame de possibilités innombrables ?”
166 MC, p.1391. Trad., p.451. No original : “toute la pensée moderne est traversée par la loi de penser

l’impensé”.
95

novos gestos descontraídos. Esses novos pensamentos não seriam irresponsáveis,


porque deveriam ter estratégias para se haverem com os outros saberes
historicamente constituídos; os novos gestos poderiam ser dos indivíduos que
procuram se conduzir por si mesmos nas duras tramas da existência, criando uma
experiência tolerável, fraterna, flexível.

Deve ser preciso mostrar a ambiguidade e a insuficiência da “claridade da


morte” das ciências do homem; e dizer do espaço para outros discursos, gestos
descontraídos, parte da arte médica, frente à dolorosa angústia da morte.
96

CAPÍTULO VI – RELAÇÕES DISCURSIVAS DO SABER MÉDICO

Deve-se retomar os três itens conjeturados a partir das reflexões sobre o


discurso médico desenvolvidas por Foucault em AS, e propostos para organização
deste trabalho no capítulo II: (1) discursos descritivos científicos; (2) olhar médico e
seus deslocamentos; (3) complexidade e dispersão das práticas discursivas. Trata-se,
a partir de agora, de elaborar o terceiro item, em que constam as interrogações sobre
as relações discursivas do saber médico; as funções sociais dos médicos e as
instituições que os reclamam; e o que bloquearia ou reduziria o discurso médico. A
ênfase será sobre os capítulos de NC que remetem a conteúdos, cujos momentos
podem servir de entrada para que esses objetivos sejam examinados, por exemplo:
os hospitais, as faculdades, as corporações médicas, a medicina das epidemias e as
reflexões sobre as relações discursivas.

Isto é importante porque é preciso situar a medicina em contexto com outros


saberes, ela não é desconectada de outros campos que dão significado à existência
e às condutas. Ainda, há outro motivo. Se já foi visto que os saberes sobre o homem
podem ser epistemologicamente ambíguos, é preciso ainda desafiar as certezas do
discurso médico relativamente à dispersão de suas práticas.

Jeannette Colombel, em seu livro escrito sobre o pensamento do amigo, Michel


Foucault, La clarté de la mort, afirma que ele contribuiu para ensinar uma experiência
crítica difícil e para levar ao desprendimento das certezas políticas e filosóficas da sua
época. Foucault fez irromper uma “incerteza intransponível”, mas fértil e exigente,
porque descomprime, multiplica, relativiza e complexifica a realidade.167

Colombel explica que a incerteza, para Foucault, nasce do acaso e do vazi o


sobre o qual se formam os discursos, as práticas e os espaços de ordem, sempre
emergindo da desordem e da dispersão, e por isto mesmo, produzindo “verdades

167COLOMBEL, Jeannette. Michel Foucault, La clarté de la mort. Paris: Editions Odile Jacob,
1994.p.49. Leia-se : “Car l’incertitude est insurmontable : on n’a pas à vouloir la dépasser, elle ne
fonctionne pas sous le signe de l’alternative”.
97

fragmentárias e em suspenso”.168 Assim, os enunciados singulares se agrupam e se


cruzam para formar os discursos, se articulam com práticas e procedem aos jogos da
verdade. Ainda mais, quando a arqueologia estabelece as condições de possibilidade
das aparições e dos funcionamentos dos discursos, pode-se então perceber os vários
níveis de análise possíveis nos espaços históricos. No pensamento de Foucault, a
simultaneidade passa a fazer parte do tempo histórico, como uma dimensão em que
os discursos se relacionam e, mesmo nas suas contradições, refletem o mesmo solo
de pensamento de uma época. Em cada espaço comum, é possível identificar noções
que puderam ser pensadas e o funcionamento da ordem dos discursos.

Portanto, nesse capítulo, pretende-se percorrer as reflexões de Foucault sobre


as práticas discursivas da medicina e suas relações, conforme delineadas em NC.

p.50. Leia-se : [des énoncés, des pratiques, des espaces d’ordre] émergent toujours d’un
168 Ibid.,

désordre et d’une dispersion tels que les vérités auxquelles on parvient sont fragmentaires et en
suspens”.
98

1. Hospitais, corporações médicas, faculdades

Figura 3 – Plan détaillé du premier étage du nouvel Hôtel-Dieu

Auteur de l'ouvrage : POYET, Bernard


Ouvrage : Mémoire sur la nécessité de transférer et reconstruire l'Hôtel-Dieu de Paris, suivi d'un projet de
translation de cet hôpital
Edition : Paris, 1785
Technique: Gravure-Burin

Adresse permanente de cette image :


http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/image?09587
99

O hospital foi o principal espaço relacionado ao novo saber clínico. Foucault


observa isso nos registros dos estudos e dos decretos para reforma dos hospitais e
das escolas de medicina. A recente história do hospital esteve ligada ao saber
científico, mas também aos acontecimentos políticos, visto que a virada nas funções
dessa instituição aconteceu durante o tempo turbulento da Revolução Francesa. O
hospital foi o lugar do desenvolvimento do método clínico, do ensino da medicina, do
cuidado dos doentes e, também, dos objetivos políticos da época.

Nas várias citações que Foucault faz dos decretos acerca dos hospitais –
fechamento, abertura, projetos, reformas, estatutos, etc. – ele usa o calendário
republicano francês, criado durante a Revolução.169 As numerosas propostas, por
conta do vai e vem das resoluções até que o hospital se tornasse a instituição como
se reconhece hoje, faz com que o leitor embaralhe as datas republicanas. É curioso
sentir esse incômodo da insistência em datas descompassadas da ordem habitual,
até se perceber que essas citações têm mesmo o intuito de demarcar o período da
intensa negociação das decisões acerca dos hospitais. E, ainda, que fora preciso o
deslocamento do olhar clínico, que aconteceria logo em seguida, para que as escolas
de medicina aí estabelecessem seu domínio. Isto porque, antes disso, o hospital
abrigava os pobres, os doentes sem família ou sem recursos, era somente um lugar
de caridade, de assistência ou de despejo

Identifica-se, portanto, a inter-relação política, econômica, revolucionária e


médica, em que convergem estrategicamente os diversos discursos para a
constituição de uma nova ordem geral. É interessante perceber que nos fundamentos
da medicina moderna aparecem os médicos, os doentes e as doenças, mas também
as leis, as decisões políticas, a racionalidade iluminista, a violência revolucionária –
todo esse conjunto articulado no tema do hospital.

No capítulo III de NC, “O Campo Livre”, Foucault relata que se estabeleceu uma
oposição política entre a medicina clássica das espécies patológicas e a nova
medicina do espaço social. O motivo era que se tentava neutralizar tudo o que

169Os revolucionários franceses quiseram criar uma nova divisão cronológica dos anos, meses e
dias, que fosse laica e livre: o calendário republicano ou revolucionário. Esse calendário se iniciou em
22 de setembro de 1792 (1º dia do ano I) e se manteve até 31 de dezembro de 1805, quando o
calendário gregoriano foi reestabelecido por Napoleão I. Os meses do ano eram chamados de
Vendémiaire, Brumaire, Frimaire, Nivôse, Pluviôse, Ventôse, Germinal, Floréal, Prairial, Messidor,
Thermidor, Fructidor.
100

pudesse se opor à constituição de um campo de experiência médica inteiramente


aberto e homogêneo ao olhar médico, e também a um conhecimento fiel, exaustivo e
permanente da saúde de uma população, semelhante ao campo livre para o saber
com que sonhara a Revolução.170

Foucault conclui que “existe, portanto, um fenômeno de convergência entre as


exigências da ideologia política e as da tecnologia médica.”171 Políticos e médicos
usavam quase o mesmo vocabulário, embora por motivos diferentes, para se oporem
ao que pudesse impedir a criação de um novo espaço livre. Opunham-se às crenças
antigas do hospital como modificador das leis naturais da doença, às diferenças das
relações entre riqueza e pobreza, ou às corporações médicas que propunham um
saber centralizado e autossuficiente, e às faculdades que detinham a teoria e faziam
disto um privilégio social. No plano geral, políticos e médicos defendiam que a
liberdade deveria dar passagem à força viva da verdade, ao olhar livre de todo
obstáculo, sob a lei do imediato acesso ao verdadeiro em seu soberano domínio. Leia-
se:

O tema ideológico que orienta todas as reformas de estruturas


médicas, de 1789 até termidor, ano II [1795, queda de Robespierre], é
o da soberana liberdade do verdadeiro: a violência majestosa da luz,
que é seu próprio reino, abole o reinado obscuro dos saberes
privilegiados e instaura o império sem limites do olhar.172

Instalou-se, por isto, um questionamento sobre o funcionamento dos hospitais.


Foucault relata que essa exigência da reorganização das edificações hospitalares se
desenvolvia em várias propostas que levavam em conta os pontos de vista da
consciência livre da doença, dos problemas práticos envolvidos e dos princípios a
serem adotados.

De início, nessa consciência social de livre acesso, foi proposta uma


centralização médica e econômica, que destinava às fundações hospitalares um papel
de assistência à pobreza, deixando os outros doentes aos cuidados domiciliares de

170 Ver em NC, p.37. Trad., p.40.


171 NC, p.37. Trad., p.41. Leia-se : “Il y a donc un phénomène de convergence entre les exigences de
l’idéologie politique et celles de la technologie médicale.”
172 NC, p.38. Trad., p.41. Leia-se : “Le thème idéologique, qui oriente toutes les réformes de structures

médicales depuis 1789 jusqu’à Thermidor an II, est celui de la souveraine liberté du vrai : la violence
majestueuse de la lumière, qui est à elle-même son propre règne, abolit le royaume obscur des savoir
privilégies et instaure l’empire sans cloison du regard.”
101

sua própria família. Contudo, enfrentaram-se dois problemas. Um problema de


natureza política e econômica, e outro, de natureza médica, envolvendo as doenças
complexas e contagiosas.

Da parte política e econômica, aconteceu que a Assembleia Legislativa não


decide por nacionalização dos bens hospitalares para compor a assistência comum à
saúde, em vez disto, prefere destinar verbas a um fundo de assistência. Não confia
também numa administração central única, mas entende que a consciência da doença
e da miséria deve ser geográfica e localmente especificada. A Assembleia decide por
um sistema aberto, com administrações locais, centros de transmissão essenciais,
para avaliar as necessidades e a distribuição da renda, formando uma rede múltipla
de vigilância. Na “comunalização”, descentralizada e confiada às instâncias locais, foi
preciso dissociar o problema da assistência e da repressão, os hospitais e as casas
de detenção deviam ser desvinculados. A consciência da assistência à doença se
tornava, então, descentralizada e autônoma, porque se dirigia a apenas um tipo de
miséria.173

Essa nova descentralização dos meios de assistência exigia a presença do


médico para organização dos auxílios, o que autorizava a “medicalização” dos
procedimentos. Foucault reconhece nas ideias de Cabanis (1819), a presença desse
“médico-magistrado”, descrevendo seus três papéis de vigilante na política da saúde
– técnico, econômico e moral, pois

é a ele que a cidade deve confiar a “vida dos homens” em lugar de


“deixá-la à mercê dos astuciosos e das comadres”; é ele quem deve
julgar se “a vida do poderoso e do rico não é mais preciosa que a do
fraco e do indigente”, é ele, finalmente, que saberá recusar assistência
“aos malfeitores públicos”. Além do papel de técnico de medicina, ele
desempenha um papel econômico na repartição dos auxílios, um
papel moral e quase judiciário em sua atribuição: ei-lo convertido no
“vigilante da moral e da saúde pública”174

173 Cf. NC, p.40. Trad., p.44.


174 NC, p.40-1. Trad., p.44. Foucault está citando Cabanis, Du degré de certitude de la médecine, 3ª
ed. Paris, 1819, p.135 e 154. Leia-se : “On reconnaît là une familière à Cabanis, celle du médecin-
magistrat ; c’est à lui que la cité doit confier ‘la vie des hommes’ au lieu de ‘la laisser à la merci des
jongleurs et des commères’ ; c’est lui qui doit juger que ‘la vie du puissant et du riche n’est pas plus
précieuse que celle du faible et de l’indigent’ ; c’est lui enfin qui saura refuser les secours ‘aux
malfaiteurs publics’. Outre son rôle de technicien de la médecine, il joue un rôle moral économique
dans la répartition des secours, un rôle moral et quasi judiciaire dans leur attribution ; le voilà devenu
le ‘surveillant de la morale, comme de la santé publique’
102

Da parte do problema das doenças complexas e contagiosas é que o hospital


entrava nessa configuração das instâncias médicas para ser o local que assegurasse
a vigilância contínua.175 Foucault reconhece a influência das ideias dos médicos
Tenon e Cabanis, nas quais o hospital aparece como uma medida indispensável para
proteção das pessoas.176 Cabanis (1819) propunha, através da internação hospitalar,
a proteção das pessoas sadias contra a doença, o afastamento das práticas
ignorantes e a proteção dos doentes uns em relação aos outros. Tenon (1788)
projetava um espaço hospitalar para abrigar os doentes, conforme dois princípios: o
da “formação”, em que para cada hospital caberia uma categoria de doenças; e o da
“distribuição”, que definia a ordem nosológica a ser seguida no interior do hospital.
Portanto, o hospital, sendo um lugar complementar à família, deveria reproduzir a
configuração do mundo patológico natural. “Sob o olhar do médico de hospital, as
doenças serão agrupadas por ordens, gêneros e espécies, em um domíni o
racionalizado que restitui a distribuição originária das essências.”177 Dessa forma, o
hospital permitiria classificar os doentes para que cada um ocupasse o leito que
conviesse ao seu estado, sem difundir o contágio no hospital ou fora dele. “A doença
aí encontra seu elevado lugar e como que a residência forçada de sua verdade.”178

Foucault conclui que, nos projetos do Comitê de assistência, duas instâncias


estariam justapostas, constituídas por espaços e olhares complementares: a instância
ordinária (médico-social), na qual a distribuição da ajuda implicava na vigilância
contínua do espaço social e na formação de um sistema que interligasse postos
regionais medicalizados; e a instância extraordinária (médico-hospitalar), formada por
espaços hospitalares descontínuos, porque exclusivamente médicos, e estruturados
segundo o modelo do saber científico.179 A doença seria alvo de um duplo sistema de

175 Cf. NC, p.41. Trad., p.44.


176 Cf. NC, p.41. Trad., p.45.
177 NC, p.41. Trad., p.45. Leia-se : “Là, sous le regard du médecin d’hôpital, les maladies seront

groupées par ordre, genres et espèces, en un domaine rationalisé qui restitue la distribution originaire
des essences.”
178 NC, p.42. Trad., p.45. Leia-se : “a maladie rencontre là son haut lieu, et comme la résidence forcée

de sa vérité.”
179 Cf. NC, p.42. Trad., p.45.
103

observação: um olhar que a toma junto das misérias sociais; e outro olhar que a “isola
para melhor circunscrevê-la em sua verdade de natureza.”180

Seguindo as reviravoltas da Revolução Francesa, Foucault relata que os


hospitais continuavam a representar o estigma da miséria e do sofrimento e, por isso,
a Assembleia Legislativa (1792) pensava, ainda naquele momento, principalmente em
maneiras de suprimi-los. E assim, apesar dos diversos debates e propostas, ela levará
adiante uma organização da assistência pública direcionada ao sonho revolucionári o
de uma desospitalização completa, porque se acreditava que o hospital não resolvia
as necessidades da pobreza, apenas institucionalizava a miséria.

Pelo lado das corporações médicas, desde 1707, a prática e a formação dos
médicos tinham sido regulamentadas pelos decretos de Marly, pois já existia uma
preocupação com os charlatãos, que exerciam a medicina irregularmente, e com a
devida reorganização das faculdades de medicina.181 Mas, ao final daquele século, na
época da Revolução, o ensino médico recebera várias críticas, porque os charlatãos
continuavam aparecendo e as faculdades não asseguravam um ensino satisfatório.
Não havia um ensino prático, apenas teórico, fazendo com que o doutor tivesse que
seguir um prático renomado para se formar e, muitas vezes, isto era custoso. Como
resume Foucault a seguir.

A Revolução se encontra, portanto, diante de duas séries de


reivindicações: uma, por uma limitação mais estrita do direito de
exercer; a outra, por uma organização mais rigorosa do cursus
universitário. Ora, as duas se opõem a todo esse movimento de
reformas que tem por resultado a supressão das confrarias e
corporações e o fechamento das universidades.

Daí uma tensão entre as exigências de uma reorganização do


saber, a abolição dos privilégios e de uma vigilância eficaz da saúde
da nação.182

180 NC, p.42. Trad., p.45. Leia-se : “La maladie est prise ainsi dans un double système d’observation :
il y a un regard qui la confond et la résorbe dans l’ensemble des misères sociales à supprimer ; et un
regard qui l’isole pour la mieux cerner dans sa vérité de nature.”
181 Decreto real de 18 de março de 1707, que reservava às faculdades francesas o direito de formar

os médicos que poderiam exercer a profissão em todo o seu território e estabelecia a reorganização
do ensino médico.
182 NC, p.45. Trad., p.49. Leia-se : “La Révolution se trouve donc en présence de deux séries de

revendications : les unes en faveur d’une limitation plus stricte du droit d’exercer ; les autres en faveur
d’une organisation plus rigoureuse du cursus universitaire. Or, les unes e les autres vont á l’encontre
104

Os revolucionários perguntavam por um possível livre exercício da medicina,


sem proteção de leis corporativas, sem proibições de seu exercício ou privilégios de
competência, por uma consciência médica que pudesse ser espontânea como a
consciência cívica ou moral.

Por outro lado, os médicos defendiam seus direitos corporativos, argumentando


que estes não representavam um privilégio, mas uma colaboração. O corpo médico
se distinguiria do corpo político, porque ele não tratava de limitar a liberdade ou impor
leis aos cidadãos, as regulamentações da medicina se impunham apenas ao seu
próprio exercício. Ainda, porque o objetivo do corpo dos médicos era a crítica e a
transmissão do saber, sem o qual a experiência adquirida poderia ser apagada. Se
médicos e cirurgiões unidos formavam um corpo necessário à sociedade, exigia-se
uma atenção da autoridade legislativa para prevenir os abusos e não autorizar o
exercício livre da medicina, assim preservando os cidadãos dos erros que isso
acarretaria.

Nesta época, Foucault lembra, existia ligação entre o problema do exercício da


medicina e os anseios políticos da Revolução, a saber, “o problema do exercício da
medicina estava ligado a outros três: supressão geral das corporações, o
desaparecimento da sociedade de medicina e, sobretudo, o fechamento das
universidades.”183 Por isso, Foucault continua, existiam vários projetos de
reorganização das escolas de medicina, que podiam ser agrupados em dois polos:
uns com persistência das estruturas universitárias; e outros, propondo seu
fechamento, conforme o decreto de 17 de agosto de 1792.

No primeiro grupo, o dos “reformistas”, surgem as ideias de manter poucas


faculdades, com cadeiras de qualidade e sob controle do Estado. Sobretudo, seria
necessário adicionar um ensino prático, em que os médicos seriam enviados aos
hospitais ou ao campo para visitar os doentes e conhecer as doenças de cada clima
e se informar sobre os métodos e seus resultados.

de tout ce mouvement de réformes qui aboutit à la suppression des jurandes et corporations, et à la


fermeture des universités. De là, une tension entre les exigences d’une réorganisation de savoir,
celles de l’abolition des privilèges, celles enfin d’une surveillance efficace de la santé de la nation .”
183 NC, p.46. Trad., p.50. Leia-se : “Mais le problème de l’exercice de la médecine était lié à trois

autres : la suppression générale des corporations, la disparition de la société de médecine, et surtout


la fermeture des universités.”
105

Foucault observa uma dissociação entre o ensino prático e o ensino teórico


universitário, e embora a medicina já possuísse conceitos para unificação do ensino,
a unidade da clínica no hospital ainda não fora proposta, nem pelos reformadores. A
formação prática não era a aplicação do saber abstrato da medicina das espécies,
não era confiada aos professores, ela só poderia ser adquirida por outros meios de
atuação do médico na sociedade. A medicina prática era vinculada à utilidade social,
e deixada quase por conta da iniciativa privada, enquanto o Estado controlava o
ensino teórico. Foucault percebe que os reformadores pretendiam deixar a assistência
individual à iniciativa privada e manter os hospitais para as doenças mais complexas;
e sobre o ensino, pensavam de forma inversa, tornar o ensino na universidade
obrigatório e público; e no hospital, privado e competitivo. Ele conclui que as regras
do saber e da percepção médica ainda não estavam sobrepostas, por isso os espaços
não convergiam. A prática médica se dividia entre o campo livre do exercício em
domicílio e o campo fechado e limitado pelas verdades das espécies. O ensino se
dividia entre o domínio fechado do saber transmitido e o campo aberto, em que a
verdade falava por si mesma. O hospital também refletia essa dupla função: de lugar
das verdades sistemáticas para o olhar classificatório do médico e das experiências
livres do ensino prático.

No segundo grupo, estão projetos dos que desejavam o fechamento das


instituições. Alguns, os girondinos, pediam um liberalismo no ensino das ciências e
das artes, em que a iniciativa individual sobrepujaria as corporações. Outros, nos
desdobramentos posteriores, os da Montanha e os próximos a Robespierre,
propunham o ensino centralizado e controlado pelo Estado. Ainda, Bouquier,
ofereceria um plano misto. Contudo, após agosto de 1792 e a dissolução da
Assembleia Legislativa, nada fora concluído e, com a nacionalização dos hospitais, a
proibição das corporações e o fechamento das universidades, acabaram assim se
desfazendo essas dualidades entre teorias e práticas. Foucault afirma que essa
dificuldade de encontrar as soluções é surpreendente, porque havia uma consciência
teórica dos problemas, o que seria redescoberto depois na medicina clínica.

Para Foucault, na reorganização do ensino e da técnica da medicina havia uma


lacuna: a falta de um modelo novo, unitário, coerente, para a formação dos objetos,
das percepções e dos conceitos médicos. Seria necessária uma mutação em
profundidade, para que ocorresse a unidade política e científica da instituição médica.
106

Os temas da luz e da liberdade do olhar, o grande mito do olhar livre que


descobre e dissipa as sombras continuava presente, mas se tornara, na verdade, um
obstáculo a essa unidade exigida do conhecimento e da prática médica. Não foi pela
suposta liberação das ciências e evolução das práticas, foi nos discursos que esta
unidade efetivamente nasceu, na transformação dos saberes. Foucault reflete que em
proveito de uma história que liga a fecundidade clínica a um liberalismo científico,
político e econômico, esquece-se que ele foi, durante anos, o tema ideológico que
serviu de obstáculo à organização da medicina clínica.184

Hospitais, corporações médicas e faculdades são temas interligados na


história. No capítulo V, “A lição dos hospitais”, Foucault descreve as transformações
da pedagogia médica no século XVIII. Elas vão desde os escritos de Vicq d’Azyr, do
início daquele século, que conclamava para que as experiências nos hospitais com os
doentes fossem usadas para o ensino, até a ampla reorganização posterior do
conhecimento médico se instaurar na clínica, na qual Cabanis teve importância como
reformador.

Ele lembra novamente que, para que a nova experiência de ensino teórico de
medicina fosse possível, foi preciso retornar à crença ingênua da luz iluminadora do
olhar como fundadora de um novo começo para a verdade, conforme as teorias dos
ideólogos iluministas. Porque antes, a pedagogia se baseava na teoria de
representação clássica e no encadeamento das ideias.

Desde esse período, uma figura emblemática era o charlatão, contra o qual a
medicina e a política deveriam se unir para combater. Ele aparece, como se viu, sendo
um dos motivos da reforma hospitalar, cujo objetivo seria proteger o povo da
proliferação e dos efeitos dos “charlatãos mistificadores”.185 Neste capítulo, essa
figura retorna, como um dos motivos da reforma e do controle do ensino da medicina.

Com a nacionalização dos hospitais e a abolição das faculdades, pelos motivos


revolucionários, a população acabou ficando desassistida, as doenças e os problemas

184Cf. NC, p.52. Trad., p.56.


185NC, p.45-6. Trad., p.49. Leia-se : “Le corps de médecins se critique lui-même plus qu’il ne se
protège, et il est, de ce fait, indispensable pour protéger le peuple contre ses propres illusions et les
charlatans mystificateurs.”
107

se multiplicaram, porque os doentes foram enviados para casa e os recursos


confiscados. Além disso, muitos médicos foram recrutados para o exército e partiram
para a guerra, o que trouxe liberdade para que os empíricos pudessem agir com
resultados desastrosos, conforme relatos da época. A formação dos oficiais de saúde,
para atuar entre os militares ou para a população civil, era apressada e insuficiente e
também existiam várias denúncias de estragos e mortes causadas pelos seus erros.
Aconteceu então, que se voltou a reivindicar o controle e uma nova legislação para a
formação dos médicos e o combate aos charlatãos.

Surgiram de todos os lados várias reclamações e reações que exigiam novas


medidas para a criação de hospitais e o retorno das faculdades. Foucault mostra uma
certa divisão nesse momento, porque, ao hospital, continuava-se a pedir uma função
de assistência aos doentes pobres; e sobre as faculdades, eram as classes
esclarecidas e os círculos de intelectuais que propunham a volta da sua legalidade e
o controle daqueles que desejavam exercer a medicina. Paralelamente, antigos
professores continuavam a reunir interessados e realizar o ensino nas visitas ao leito,
em caráter privado, emitindo um diploma não-oficial. Numa passagem esclarecedora
de NC a seguir:

Montpellier oferece um exemplo, bastante raro sem dúvida, de


encontro dessas diversas formas de reação: vê-se aparecer, ao
mesmo tempo, a necessidade de formar médicos para o Exército, a
utilização das competências médicas consagradas pelo Antigo
Regime, a intervenção das assembleias populares e da administração
e o esboço espontâneo de uma experiência clínica. Baumes, antigo
professor da universidade, foi designado, tanto por causa da sua
experiência, quanto por suas opiniões republicanas, para exercer a
medicina no hospital militar de Saint-Eloi. Devia por essa razão, fazer
uma escolha entre os candidatos às funções de oficiais de saúde; mas,
como nenhum ensino estava organizado, os alunos de medicina
intervieram junto à sociedade popular e esta, por uma petição, obteve
da administração do distrito a criação de um ensino clínico no Hospital
Saint-Eloi, atribuído a Baumes. No ano seguinte, 1794, Baumes
publica o resultado de suas observações e de seu ensino: “método de
curar doenças segundo seu aparecimento durante o ano medicinal.” 186

186 NC, p.67. Trad., p.73. Foucault está citando A. Girbal, Essai sur l’esprit de la clinique médicale de
Montpellier, Montpellier, 1858, p.7-11. Leia-se : Montpellier offre un exemple, assez rare sans doute,
de rencontre entre ces diverses formes de réaction : on y voit apparaître à la fois la nécessité de
former des médecins pour l’armée, l’utilisation des compétences médicales consacrées par l’Ancien
Régime, l’intervention des assemblées populaires, celle aussi de l’administration et l’esquisse
spontanée d’une expérience clinique. Baumes, ancien professeur á l’université, avait été désigné, à la
fois à cause de son expérience et de ses opinions républicaines pour exercer à l’hôpital militaire de
Saint-Eloi. A ce titre, il devait faire un choix parmi les candidats aux fonctions d’officiers de santé ;
108

Nesse local exemplar de Montpellier, escola que formou clínicos como Pinel e
Bichat, vê-se o exemplo do entrecruzamento dos interesses sociais, institucionais,
técnicos e científicos que esboçavam o nascimento da medicina clínica. Foucault
explica que ali se formava um campo médico “misto” e “fundamental”. Misto porque
teoria e prática se encontram, e fundamental, porque não se tratava de um
conhecimento anterior demonstrado na prática hospitalar, mas de uma nova forma de
olhar o objeto do conhecimento médico e descobrir a verdade ao mesmo tempo em
que ensinava.

Portanto, paradoxalmente, foi a abolição do velho hospital e das universidades


que permitiu o novo campo concreto da experiência médica, onde se estabeleceu o
modo de ensinar dizendo e de aprender vendo, através do qual o olhar médico passou
a descobrir a verdade da doença na forma de ser da medicina clínica moderna. O
método pedagógico passa a ser também o método de pesquisa e do conhecimento.

Noutra passagem esclarecedora abaixo, observa-se como Foucault explica a


ruptura final que houve, ao término da Convenção (1794), nas propostas de
reestruturação do hospital e do ensino médico. Diz que não se tratou de uma reação
às causas sociais ou de um progresso científico, mas de um momento muito preciso,
no final do século XVIII, em que as coerências históricas levaram ao nascimento da
clínica moderna. A vontade de saber no “campo livre”, tal a necessidade do verdadeiro
no domínio aberto ao olhar, é que irá criar as práticas e os novos modos de
funcionamento das instituições e dos saberes da época.

Não há razão para espanto se, bruscamente, no final da


Convenção, o tema de uma medicina inteiramente organizada em
torno da clínica ultrapassa o de uma medicina, dominante até 1793,
restituída à liberdade. Não se trata, para dizer a verdade, nem de uma
reação (se bem que as consequências sociais tenham sido geralmente
“reacionárias”), nem de um progresso (se bem que a medicina, como
prática e como ciência, dele se tenha, por mais de uma razão,
beneficiado); trata-se da reestruturação, em um contexto histórico
preciso, do tema da “medicina em liberdade”: em um domínio liberto,

mais comme aucun enseignement n’était organisé, les élèves en médecine intervinrent auprès de la
société populaire ; et celle-ci, par une pétition, obtint de l’administration du district la création d’un
enseignement clinique à l’hôpital Saint-Eloi et celui-ci est attribué à Baumes. L’année suivante, en
1794, Baumes publie le résultat de ses observations et de son enseignement : ‘Méthode de guérir les
maladies suivantes qu’elles paraissent dans les cours de l’année médicinale.”
109

a necessidade do verdadeiro que se impõe ao olhar vai definir as


estruturas institucionais e científicas que lhe são próprias.187

Por exemplo, as propostas iniciais de Fourcroy, que fora encarregado de


apresentar à Convenção um relatório sobre a criação de uma nova Escola de Saúde
em Paris, tinham o objetivo de formar oficiais de saúde para os hospitais e o exército,
e de evitar a atuação dos charlatãos. Ele propunha o novo “saber aberto”, identificado
com a natureza, ramificado para todo o corpo social, em que todos poderiam ser
admitidos para aprender a arte de curar, principalmente nas práticas das experiências
químicas, nas dissecções e nas cirurgias, e em que todo o povo seria beneficiado por
sua utilidade. Foucault diz: “a clínica se torna, portanto, um momento essencial da
coerência científica, mas também da utilidade social e da pureza política da nova
organização médica”.188 Vê-se, então, que a clínica moderna é o saber que foi se
constituindo nos hospitais-escola, sob o domínio do olhar médico, e inter-relacionado
às leis sociais e políticas.

No longo excerto de NC abaixo, vê-se Foucault descrever o programa do curso


de medicina na Escola de Paris, uma das três que foram criadas no decreto de 14 de
frimário do ano III (1795) – Paris, Montpellier e Estrasburgo, retomado das propostas
de Fourcroy. Se no capítulo III.3 deste trabalho, ao se abordar a protoclínica, citando
as recomendações de Tissot (1785), observa-se com certa surpresa que o exame
clínico persiste praticamente o mesmo até hoje, na citação a seguir, continua a
surpresa, ao se notar que o programa dos cursos de medicina persiste igualmente
quase o mesmo.

Em Paris, a “classe dos iniciantes” estuda no primeiro semestre


anatomia, fisiologia e química médica; no segundo, matéria médica,
botânica e física; durante todo este ano, os alunos deverão frequentar
os hospitais “para adquirir o hábito de ver os doentes e a maneira geral
de tratá-los”. Na “classe dos iniciados”, estuda-se, primeiramente,
anatomia, fisiologia, química, farmácia, e medicina operatória; em
seguida, matéria médica e patologia interna e externa; durante este

187 NC, p.68. Trad., p.74. Leia-se: “Il ne faut pas s’étonner si brusquement, à la fin de la Convention, le
thème d’une médecine tout entière organisée autour de la clinique, déborde celui, dominant jusqu’en
1793, d’une médecine restituée à la liberté. Il ne s’agit à vrai dire ni d’une réaction (bien que les
conséquences sociales en aient été généralement ‘réactionnaires’, ni d’un progrès (bien que le
médecine, comme pratique et comme science, en ait à plus d’un titre bénéficié) ; il s’agit de la
restructuration, dans un contexte historique précis, du thème de la ‘médecine en liberté’ : dans un
domaine libéré, la nécessité du vrai qui s’impose au regard va définir les structures institutionnelles et
scientifiques qui lui sont propres.”
188 NC, p.70. Trad., p.76. Leia-se: “La clinique devient donc un moment essentiel à la cohérence

scientifique, mais aussi à l’utilité sociale et à la pureté politique de la nouvelle organisation médicale ”.
110

segundo ano, os estudantes poderão “ser empregados no serviço dos


doentes” nos hospitais. Finalmente, durante o último ano, os cursos
precedentes são retomados e, aproveitando a experiência hospitalar
já adquirida, iniciam-se as clínicas propriamente ditas. Os alunos se
revezam em três hospitais, ficando quatro meses em cada um. A
clínica compreende duas partes: “no leito de cada doente o professor
deter-se-á o tempo necessário para interrogá-lo de modo satisfatório,
para examiná-lo convenientemente; fará os alunos observarem os
signos diagnósticos e os sintomas importantes da doença”; em
seguida, o professor retomará no anfiteatro a história geral das
doenças observadas nas salas do hospital: indicará as causas
“conhecidas, prováveis e ocultas”, enunciará o prognóstico e dará as
indicações “vitais”, “curativas” ou “paliativas”.189

A clínica, na sua forma inicial, buscava um equilíbrio entre o ensino prático e


teórico e já passara a incorporar as aspirações sociais, mesmo que ainda estivesse
vinculada ao conhecimento geral da natureza. Contudo, as escolas que foram criadas
não resolveram os problemas, porque não se conseguia formar médicos qualificados,
por falta de adesão e de exames de seleção. A Assembleia recebia reclamações dos
problemas causados pela pouca formação dos práticos, pela atuação livre na
medicina e da falta de legislação eficaz. Portanto, ainda havia duas questões: controle
do exercício da medicina e formação de mais e melhores técnicos.

Neste momento, as sociedades médicas tiveram novo impulso e assumiram a


tarefa de divulgar as queixas por melhor assistência médica, e assim poder
argumentar para exigir a proteção legal da profissão médica e suas competências.
Foucault diz que a primeira sociedade que voltou a se formar, postulava ser uma
entidade liberal e neutra, destinada somente a reunir e prestar informações gerais
sobre as observações e experiências da arte de curar, dentro do espírito social da
época. Contudo, ele afirma que a preocupação verdadeira era reagrupar os médicos

189 NC, p.71. Trad., p.77. Leia-se: “A Paris, la ‘classe des commençants ’ étudie au premier semestre
l’anatomie, la physiologie, la chimie médicale, au second, la matière médicale, la botanique, la
physique : tout au cours de l’année, les élèves devront fréquenter les hôpitaux ‘pour y prendre
l’habitude de voir les malades, et la manière générale de les soigner’. Dans ‘la classe des
commencés’, on étudie d’abord l’anatomie, la physiologie, la chimie, la pharmacie, la médecine
opératoire, puis la matière médicale, la pathologie interne et externe ; au cours de cette seconde
année, les étudiants pourront, dans les hôpitaux, ‘être employés au service des malades’. Enfin, au
cours de la dernière année, on reprend les cours précédents, et, profitant de l’expérience hospitalière
déjà acquise, on commence les cliniques proprement dites. Les élèves sont répartis dans trois
hôpitaux où ils resteront quatre mois puis changeront. La clinique comprend deux parts : ‘Au lit de
chaque malade, le professeur s’arrêtera le temps nécessaire pour le bien interroger, pour l’examiner
convenablement ; il fera remarquer aux élèves les signes diagnostiques et les sympt ômes importants
de la maladie’; puis, à l’amphithéâtre, le professeur reprendra l’histoire générale des maladies
observées dans les salles de l’hôpital : il en indiquera les cause ‘connues, probables e caché es ’, il
énoncera le pronostics, et donnera les indications ‘vitales ’, ‘curatives’ ou ‘palliatives’. ”
111

com competência validada e restabelecer limites para o exercício da medicina. Outras


sociedades vão se formando, e logo foi fundada uma que bem representava essas
aspirações: “no mesmo ano [1795], em 5 de messidor, outra sociedade realiza sua
sessão inaugural em Paris, com Alibert, Bichat, Bretonneau, Cabanis, Desgenettes,
Dupuytren, Fourcroy, Larrey e Pinel.”190

Houve um intenso debate sobre a regulamentação da medicina, por conta do


art. 356 da Constituição do Diretório (1795-1799), o qual previa que todas as
profissões que interessavam à saúde dos cidadãos deviam ser vigiadas. Era preciso
saber como reorganizar o ensino e estabelecer as condições de acesso ao exercíci o
da medicina. De um lado do debate político, estavam os mais próximos do espírito da
Convenção (1792-1794), esses desejavam um modelo aberto de ensino e o livre
acesso; e, de outro, em torno de Cabanis e Pastoret, os que defendiam um corpo
médico fechado. Alguns projetos foram redigidos, seguindo a linha daquele de
Fourcroy, por exemplo os de Daunou, Calès, Pastoret, Vitet, mas não se conseguia
chegar a um acordo quanto ao número de escolas e quanto à instituição de um exame.
Alguns argumentavam que numerosas escolas poderiam não preservar a qualidade
do ensino, e que os candidatos deveriam apresentar aptidão para exercer a medicina.

Foucault percebe que o que estava em jogo implicitamente nesses debates era
o próprio exercício da medicina, tratava-se de um impasse político, mas também
conceitual, para definição da especificidade da profissão médica.191 Por exemplo, Vitet
propõe diante do Conselho dos Quinhentos, em linhas gerais, a necessidade de cinco
escolas de medicina, um conselho de saúde para se ocupar das epidemias e da saúde
da população, da seleção de professores e do exame prático de admissão.
“Encontram-se assim reunidos, pela primeira vez, em um quadro institucional único ,
os critérios do saber teórico e os de uma prática que só pode estar ligada à experiência
e ao hábito.”192

190 NC, p.74. Trad., p.80. Leia-se: “La même année, le 5 messidor, une autre société tient sa séance
inaugurale à Paris avec Alibert, Bichat, Bretonneau, Cabanis, Desgenettes, Dupuytren, Fourcroy,
Larrey e Pinel.”
191 Ver em NC, p.78. Trad., p.85.
192 NC, p.78. Trad., p.84. Leia-se: “Ainsi se trouvent réunis, pour la première fois, dans un cadre

institutionnel unique les critères du savoir théorique et ceux d’une pratique qui ne peut être liée qu’à
l’expérience et l’habitude. ”
112

É com a intervenção dos Ideólogos que a reorganização tem andamento em


1802, após Termidor (queda de Robespierre) e o 18 Brumário (no império
napoleônico), retomando principalmente um relatório de Cabanis sobre a polícia
médica.193 Cabanis procurou formular uma “teoria da profissão médica”, abordando
aspectos da prática, da natureza da profissão e de sua fiscalização. Foucault a
considera importante, porque ditará o estatuto que a medicina moderna conservou,
como uma profissão liberal e protegida.

No texto de Cabanis, o acesso à prática médica se dava por critérios de aptidão,


o candidato teria de passar por prova escrita, prova oral e exames de anatomia,
técnica operatória e medicina clínica. “Toda pessoa que exerça a medicina sem haver
feito os exames das escolas, ou sem ter passado perante júris especiais, será
condenada a uma multa e à prisão, em caso de reincidência.”194 A medicina se
tornaria, então, uma profissão fechada. Mas, a questão principal desse texto,
conforme Foucault, era configurar a natureza da profissão médica. Cabanis enfrentava
o problema de tornar a medicina um domínio fechado e reservado, mas sem adotar
as formas corporativas do Antigo Regime, nem permitir o controle estatal, como existiu
na Convenção revolucionária. Ele constrói seus argumentos baseando-se nos

193 Cabanis (1757-1808) desempenhou um papel central na medicina do fim do século XVIII na
França, por ter atuado nas instituições de ensino e nos hospitais, ter participado das resoluções sobre
a profissão médica, e integrado o círculo filosófico e político da época. Ele foi um exemplo de
personagem médica requisitada a exercer funções em domínios exteriores à medicina, pela
legitimidade dada ao seu discurso. Cabanis, no início da sua vida médica, ingressou no “Salão dos
Ideólogos”, na residência da viúva Helvétius, onde conviveu com pensadores da “Ideologia”, que
significava um conjunto de preceitos prestigiosos no período da Revolução e do Império franceses, e
pregava a Análise das ideias, pela observação cuidadosa dos fenômenos. Através desse círculo,
Cabanis entrou em contato com Condillac, Diderot, d’Alembert, Condorcet, Laplace, Mirabeau e Pinel,
entre outros. Por conta da sua publicação Observations sur les hôpitaux (1790), foi nomeado membro
da Comissão de Reforma dos Hospitais (1791-1793). Quando a Convenção organizou as Escolas
Centrais, em 1794, Cabanis foi nomeado professor de higiene. Em 1795, ele foi eleito membro do
Instituto Nacional da França, para as sessões de ciências morais. Na criação das Escolas de Saúde,
que sucederam ao fechamento temporário das Faculdades de Medicina em Paris, Montpellier e
Strasbourg, Cabanis tornou-se professor assistente da École Perfectionnement; em seguida,
assistente de Corvisart na cadeira de medicina interna, e depois professor titular da cadeira de
história da medicina e medicina legal. Em 1797, Cabanis foi eleito deputado para o Conselho dos
Quinhentos, instância legislativa da França revolucionária. Tendo aprovado o golpe de 18 Brumário,
com a dissolução do Diretório, foi então nomeado senador do Império. Mas acabou se afastando do
Senado, por deterioração da sua relação com Bonaparte. Ver em: CANGUILHEM, Georges. Cabanis,
Pierre-Jean-Georges. In: Complete Dictionary of Scientific Biography. 2008. Consultado em:
encyclopedia.com. 14 oct 2014.

194NC, p.79. Trad., p.86. Leia-se: “Toute personne qui exercera la médecine sans avoir les examens
des écoles ou sans être passée devant les jurys spéciaux sera condamnée à une amende et à la
prison en cas de récidive ”. Foucault está citando Cabanis, Rapport du Conseil des Cinq-Cents sur un
mode provisoire de police médicale, 4 de messidor, ano VI, p.12-18.
113

princípios da liberdade da economia. Cabanis descreve que existem dois tipos de


“indústrias”, aquelas em que o próprio consenso pode determinar seu valor, pois ele
é exterior e está aparente para os consumidores; e há outras, as do mercado do ouro
e da medicina, em que é preciso fixar um valor, pois ele é intrínseco, não visível,
sujeito a erro, e esta tarefa deveria ser delegada ao Estado. No caso do ouro, seria
fixado um valor mercantil, mas no caso da medicina é diferente, porque ela assiste ao
indivíduo humano, sobre quem os erros são funestos. A avaliação da medicina recairia
na fiscalização dos próprios médicos, atribuindo-se um valor pela competência. A lei
de 19 de ventoso do ano XI (1802), enfim regulamenta a profissão médica adotando
a linha das propostas de Cabanis e dos Ideólogos.

Foucault conclui em quatro pontos.195 (1) Para definir o caráter fechado da


profissão médica, dentro de um liberalismo econômico, o princípio e o valor será de
quem realiza o ato médico, em que contará a competência, a experiência e a
“probidade reconhecida”. (2) Introduziu-se uma diferença, de um lado os doutores e,
do outro, os oficiais de saúde, por grau de experiência e pela formação. (3) Isto levaria
à outra divisão, pois enquanto os doutores se dedicariam às doenças mais complexas,
os oficiais poderiam se dedicar às doenças mais simples do povo. (4) Por fim, somente
os médicos terão acesso à formação clínica, os oficiais serão o equivalente a um
prático com atividade controlada.

Concomitantemente, o impasse sobre o retorno dos hospitais também se


resolve. A lei de nacionalização dos bens hospitalares fora revogada em favor da
“comunalização” da assistência, deixada por conta dos municípios. Nesta época,
Foucault chama atenção, a miséria era generalizada e cada municipalidade deveria
dar conta de proteger os pobres e de se proteger. Os hospitais tomam parte nessa
dupla tarefa de proteção e, nesse momento, Foucault diz, surge um pacto estranho e
subliminar. Passa a haver interesse em ajudar aos hospitais, para que ali se
desenvolvam os tratamentos e as curas das doenças, e os mais pobres, que se
internam em busca de auxílio, acabam se submetendo ao ensino e às experiências
médicas. Portanto, diz Foucault, o domínio do hospital se tornou ambíguo moralmente,
porque teoricamente é livre para a relação entre o médico e seu paciente, mas há um

195 Ver em NC, p.81. Trad., p.88.


114

vínculo de utilidade ao qual o pobre se submete, enquanto se torna objeto de instrução


e de observação clínica.

O hospital foi um espaço que deu as condições de possibilidade ao nascimento


da clínica, porque nele o olhar médico se tornou absoluto sobre a doença e
estabeleceu o seu domínio nos aspectos práticos, teóricos e técnicos. Além disso, em
torno do tema do hospital se articularam discursos políticos e sociais relevantes para
a constituição da medicina clínica moderna.

Existiram personagens, abordados por Foucault, que possibilitaram


concretamente o novo saber médico, na constituição das suas práticas, teorias e
discursos. Foi uma convergência de médicos que ocuparam posições políticas
decisivas, principalmente entre os Ideólogos. Por exemplo, Cabanis estava ligado à
teoria da profissão medica e à nova proposta de sua regulamentação. Pinel fora
reconhecido por se dedicar ao método clínico. Mas também, Tenon que trabalhou nos
estudos higienistas e projetos hospitalares, especialmente do Hôtel-Dieu de Paris, no
qual a planta privilegiava a distribuição e a vigilância dos doentes. Bichat e a anatomia
patológica. Broussais e os princípios da fisiologia normal ou patológica. Todos são
personagens da constituição da medicina clínica, no final do século XVIII e início do
século XIX, vindos desse momento muito preciso da história carregado de
transformações políticas e sociais. Esse conjunto material discursivo parece que se
continua na medicina da atualidade, como se vê na persistência da mesma maneira
de funcionamento do exame clínico, dos cursos de medicina, dos hospitais, e das
mesmas questões sobre a profissão médica.

Os debates políticos acerca dos hospitais levantaram certas questões que


acompanham a medicina desde o fim século XVIII, e que podem ser resumidas como
sendo: o corporativismo e as sociedades médicas na defesa dos seus interesses e da
pedagogia médica, com os charlatãos no polo oposto; o individualismo da profissão
médica pelo valor de competência do seu exercício; a atribuição à medicina de um
valor não mercantil; a existência de certa oposição entre o Estado e a medicina,
levando mesmo à interferência das leis de interesse do Estado para controlar o
exercício da medicina e, enfim, a emergência da medicina social. Deve valer a pena
115

analisar melhor as dualidades presentes nesse momento histórico, para compreender


porque faz cerca de trezentos anos que se vem repetindo os mesmos argumentos.

Vai-se encaminhando à compreensão de que a medicina se tornou uma


espécie de “elo passivo” que articulava as diversas práticas discursivas políticas aos
corpos dos doentes e às populações. Mas, talvez, desde que as sociedades
profissionais e os espaços hospitalares fechados foram mantidos sob o domínio dos
médicos, justificou-se aceitar que o controle pelo Estado fosse incorporado às práticas
médicas no campo social. Então, a medicina clínica tornou-se mais do que um elo
passivo que possibilitava os mecanismos de controle sobre os indivíduos, porque a
mentalidade política da época passou a fazer parte das condições de emergência do
novo discurso médico. No discurso médico moderno, além do vital, entrou em jogo o
social.

2. Medicina das epidemias

Esquematicamente, conforme o pensamento de Foucault em NC, o saber


médico moderno se constituiu através de certa geometria discursiva dos corpos e de
uma geografia da doença.

 Na geometria dos corpos, a analítica de Condillac fora a inspiração para o


estabelecimento de uma lógica orgânica descritiva que se fundava em ver e
dizer a doença, sendo que a anatomia patológica estabeleceu as relações de
geometrização no interior dos corpos. Esses modelos ligavam o saber do
indivíduo à sua própria finitude, e foram inicialmente os principais fundamentos
para o positivismo da medicina.

 Na geografia da doença, pode-se acompanhar a experiência médica em três


espaços privilegiados: (1) no corpo anatômico; (2) no hospital e, agora, (3) no
espaço social. Com a expansão do campo de ação do discurso médico, novas
formas de relações discursivas se estabeleceram e outros fundamentos foram
adicionados à positividade da medicina, é o que se verá em seguida.
116

No capítulo II de NC, “Uma Consciência Política”, Foucault analisa como o


acontecimento das epidemias fez com que a medicina do século XVIII voltasse
definitivamente o seu olhar para os fenômenos gerais da população e redobrasse o
seu espaço de atuação para regiões geográficas mais extensas do que o hospital. Era
a cidade inteira que deveria ser o objeto do saber, não somente o indivíduo doente.
Embora não se reconhecesse muito bem como os “miasmas” e os “fermentos”
poderiam transmitir a febre maligna, a varíola, a disenteria, entre outras, essa não era
uma questão fundamental para a medicina da época, porque a epidemia era tida como
a ação de uma causa geral e singular que se abatia acidentalmente uma vez em um
local, por exemplo, Marselha em 1721, Bicêtre em 1780, Rouen em 1769, Paris em
1785. Então, foi a problematização das epidemias que fez com que as análises
populacionais e os fenômenos climáticos, topográficos, físicos, higiênicos, de
distribuição local devessem ser observados, descritos, controlados, regulamentados.

Foucault afirma que no final do século XVIII outra forma de experiência da


medicina estava em vias de se institucionalizar e de se constituir, porque a observação
das epidemias exigia o treinamento de um olhar múltiplo de vigilância, novos conceitos
e novas abrangências.

Aparecem instituições, no nível do Estado, que irão regulamentar o exercíci o


social da medicina: a polícia sanitária e a Sociedade Real de Medicina. A polícia
sanitária tinha funções ambientais de fiscalização da salubridade das instalações, do
comércio, dos cemitérios, etc., em todo o território da província; também funções
educacionais, porque deveria orientar as pessoas desde o modo de se vestir, de se
alimentar, como agir para evitar e curar as doenças; e, por fim, tinha como tarefa
controlar o trabalho dos médicos. A Sociedade Real de Medicina, criada por um
decreto de 1776, e composta por médicos, cujo principal mentor fora Vicq d’Azyr, tinha
o papel de estudo amplo das epidemias, elaboração dos fatos, controle e prescrição
das medidas indicadas aos médicos e à população. Ela acabou se tornando o órgão
oficial, com recursos e poder político, para fazer emergir uma nova consciência social
da medicina.

Pelo lado da constituição do saber, a medicina das epidemias se oporia,


portanto, à medicina classificatória anterior, que era baseada na percepção individual
de uma essência mórbida, porque, agora se trata de analisar uma série de casos,
117

integrá-los no tempo e no espaço, comparar, decifrar, buscar analogias e coerências


que possam determinar a causa. Trata-se também de distribuir e educar as pessoas,
e ainda controlar os médicos para prestar assistência e informações. Nas palavras de
Foucault, contudo, ambas partilhavam o novo aspecto político e social da medicina,
como se lê a seguir.

E, no entanto, no final das contas, quando se trata das figuras


terciárias, que devem distribuir a doença, a experiência médica e o
controle do médico nas estruturas sociais, a patologia das epidemias
e a das espécies se encontram diante das mesmas exigências: a
definição de um estatuto político da medicina e a constituição, no nível
de um estado, de uma consciência médica encarregada de uma tarefa
constante de informação, controle e coação; exigências que
“compreendem objetos tanto relativos à polícia quanto propriamente
da competência da medicina”.196

E a seguir, ele continua.

A Sociedade [Real de Medicina] não agrupa mais apenas os médicos


que se consagram ao estudo dos fenômenos patológicos coletivos;
tornou-se o órgão oficial de uma consciência coletiva dos fenômenos
patológicos; consciência que se manifesta, no nível da experiência
como no nível do saber, tanto de forma cosmopolita quanto ao espaço
da nação.197

Foucault assinala que essa nova consciência coletiva foi um acontecimento que
mudou a percepção médica e, assim, tornou-se uma das condições de possibilidade
do saber médico moderno. Foi a medicina das epidemias que possibilitou o
fortalecimento deste espaço que vai da percepção do doente às medidas do Estado.
Neste momento, fica clara a emergência dessa consciência política, que aliás, dá
nome ao capítulo.

196 NC, p.26. Trad., p.27. Leia-se: “Et pourtant, au bout du compte, lorsqu’il s’agit de ces figures
tertiaires qui doivent distribuer la maladie, l’expérience médicale et la contrôle du médecin sur les
structures sociales, la pathologie des épidémies et celle des espèces se trouvent devant les mêmes
exigences: le définition d’un statut politique de la médecine, et la constitution, `’ l’échelle d’un état,
d’une conscience médicale, chargé d’une tâche constante d’information, de contrôle et de contrainte;
toutes choses qui ‘comprennent autant d’objets relatifs à la police qu’il y en a qui son proprement du
ressort de la médecine’ ”. Foucault está citando Le Brun, Traité historique sur les maladies
épidémiques, Paris, 1776, p.126.
197 NC, p.27-8. Trad., p.29. Leia-se: “La Société ne groupe plus seulement des médecins qui se

consacrent à l’étude des phénomènes pathologiques collectifs ; elle est devenue l’organe officiel d’
une conscience collective des phénomènes pathologiques ; conscience qui se déploie au niveau de
l’expérience comme au niveau du savoir, dans la forme cosmopolitique comme dans l’espace de la
nation. ”
118

Ele resume as características desse exercício médico político e social, como


um ”novo estilo de totalização”.198 O movimento de totalização descrito por Foucault,
inclui vários pontos importantes, conforme os itens a seguir.

 O modelo de saber torna-se um quadro aberto e indefinidamente prolongável.


Um trabalho coletivo de vários olhares que introduzem numerosas séries
paralelas sobre temas indefinidos. Observações sobre as doenças, o clima, a
água, o ar, o terreno, descrição de casos, etc. são motivo de observação e de
descrição. Não se trata mais de uma reorganização exaustiva em um quadro
fechado.

 As informações devem ser constantes e sempre atualizadas em direção a uma


percepção geral infinita, não mais um conhecimento enciclopédico em busca
de uma sistematização final.

 Na trama complexa das séries que se entrecruzam é que o conhecimento se


dá, onde o médico pode reconhecer o caso individual. Deve-se acompanhar as
reflexões de Foucault no extrato a seguir.

O que constitui agora a unidade do olhar médico não é o círculo do


saber em que ele se completa, mas esta totalização aberta, infinita,
móvel, sem cessar, deslocada e enriquecida pelo tempo, que ele
percorre sem nunca poder detê-lo: uma espécie de registro clínico da
série infinita e variável dos acontecimentos. Mas seu suporte não é a
percepção do doente em sua singularidade, é uma consciência
coletiva de todas as informações que se cruzam, crescendo em uma
ramagem complexa e sempre abundante, ampliada finalmente até as
dimensões de uma história, de uma geografia, de um Estado.199

Quando se coloca em destaque esses fatores, observa-se que o encontro do


médico com o doente está intermediado por um olhar médico que procura
circunscrever a patologia individual dentro de uma rede de informações. Veja-se
ainda.

198 NC, p.28. Trad., p.30. Leia-se: “Style nouveau de la totalisation. ”


199 NC, p.29. Trad., p.31. Leia-se: “Ce qui constitue maintenant l’unité du regard médical, ce n’est pas
le cercle du savoir das lequel il s’achève, mais cette totalisation ouverte, infinie, mouvante, sans cesse
déplacée et enrichie par le temps, dont il commence le parcours sans pouvoir l’arrêter jamais : déjà,
une sorte d’enregistrement clinique de la série infinie e variable des événements. Mais son support
n’est pas la perception du malade en sa singularité, c’est une conscience collective de toutes les
informations qui se croisent, poussant en une ramure complexe et toujours foisonnante, agrandie
enfin aux dimensions d’une histoire, d’une géographie, d’un Etat. ”
119

O que define o ato do conhecimento médico em sua forma concreta


não é, portanto, o encontro do médico com o doente, nem o confronto
de um saber com uma percepção; é o cruzamento sistem ático de
várias séries de informações homogêneas […] mas cuja interligação
faz surgir, em sua dependência isolável, o fato individual.200

 O olhar médico deverá estar presente generalizadamente no espaço social, ele


será, ao mesmo tempo, o ponto de convergência de uma rede múltipla de
vigilância e o ponto de difusão do saber adquirido. Os médicos serão
implantados em todos os lugares do departamento, para recolher, prestar
informações e conduzir a saúde da população.

 Entra em jogo o conhecimento estatístico da saúde e da doença, reforçando a


matematização do saber médico. A estatística emerge porque é preciso
controlar os fatos populacionais e os ataques mórbidos. Pede-se o registro dos
nascimentos, das mortes, das razões de reformas, etc. Deve-se, enfim,
estabelecer uma “topografia médica” completa de cada região. Acompanhe-se
a seguir.

Coloca-se o problema da implantação dos médicos no campo, deseja-


se um controle estatístico da saúde, graças ao registro dos
nascimentos e das mortes (que deveria mencionar as doenças, o
gênero de vida e a causa da morte, tornando-se assim um estado civil
da patologia); pede-se que as razões de reforma sejam indicadas em
detalhe pelo conselho de revisão; finalmente, que se estabeleça uma
topografia médica de cada departamento “com cuidadosos sumários
sobre a região, as habitações, as pessoas, as paixões dominantes, o
vestuário, a constituição atmosférica, as produções do solo, o tempo
de sua maturidade perfeita e de sua colheita, assim como a educação
física e moral dos habitantes da região.”201

200 NC, p.29-30. Trad., p.32. Leia-se: “Ce qui définit l’acte de la connaissance médicale dans sa forme
concrète, ce n’est donc pas la rencontre du médecin et du malade, ni la confrontation d’un savoir à
une perception ; c’est le croisement systématique de plusieurs séries s’informations homogènes les
unes et les autres, mais étrangères les unes aux autres – plusieurs séries que enveloppent un
ensemble infini d’événements séparés, mais dont le recoupement fait surgir, dans sa dépendance
isolable, le fait individuel. ”
201 NC, p.31. Trad., p.33. Leia-se: “On pose le problème de l’implantation des médecins dans les

campagnes; on souhaite un contrôle statistique de la santé grâce au registre des naissances et des
décès (qui devrait porter mention des maladies, du genre de vie, et de la cause de la mort, devenant
ainsi un état civil de la pathologie); on demande que les raisons de réforme s oient indiquées en détail
par le conseil de révision; enfin qu’on établisse une topographie médicale de chacun des
départements ‘avec des aperçus soignés sur la région, les habitations, les gens, les passions
dominantes, l’habillement, la constitutions du sol, le temps de leur maturité parfaite et le récolte, ainsi
que l’éducation physique et morale des habitants de la contrée’. ” Foucault está citando J.-B.
Demangeon, Des moyens de perfectionner la médecine, Paris, ano VII, p.5-9 ; cf. Audin Rouvière,
Essai sur la topographie physique et médicale de Paris . Paris, ano II.
120

E novamente o conhecimento parece tender para um espaço essencial e


exterior ao indivíduo, localizado no cruzamento dos registros, nas séries
estatísticas. Não mais no nível dos sinais e dos sintomas e de seu tratamento,
mas no nível das análises das informações numéricas, biológicas, seriais,
reticulares, globais, que tentam diagnosticar e antecipar o futuro.

 O médico será o conselheiro higienista, chamado para opinar na vida das


pessoas. A educação e o ensino devem ser reforçados para que cada indivíduo
aprenda a vigiar a sua saúde. Mais uma vez, é importante reler abaixo.

E como se não bastasse a implantação dos médicos, pede-se que a


consciência de cada indivíduo esteja medicamente alerta; será preciso
que cada cidadão esteja informado do que é necessário e possível
saber em medicina.202

Portanto, o espaço do exercício médico se constituiu de uma consciência


política na medida em que sua ação não se restringe ao indivíduo, mas se conforma
à vida coletiva da nação.

E, no entanto, essa nova totalização controladora da saúde se estabeleceu


sobre os mitos de um “campo livre” do sonho revolucionário. A medicina viu-se
revestida de dois mitos, Foucault explica, o da profissão médica institucionalizada,
militante e dogmática, que atacaria a doença em todos os lugares e, por outro lado, o
mito de um desaparecimento total da doença, em que a sociedade se veria livre de
todos os males, vícios e paixões, sendo que a saúde seria a consequência de um
retorno à vida simples e natural. Foi apenas um sonho, contudo, isto levou a uma
inflexão no saber médico e também nos mecanismos políticos para controlar a saúde
da população. Como outra consequência, novos parâmetros surgiram para o
conhecimento médico, especialmente a preocupação em manter os indivíduos
saudáveis e a preocupação com o homem normal. Este quadro manter-se-ia até o
século XIX quando, do conceito regulador de “saúde”, passa-se à noção de
“normalidade”, pois o conhecimento passará a se pautar no tipo de funcionamento da
estrutura orgânica normal. E então, as ciências do homem se desenvolverão no
caminho das ciências da vida, porque permanecerão apoiadas na biologia, mas

202 NC, p.31. Trad., p.33. Leia-se: “Et comme s’il ne suffisait pas de l’implantation de médecin, on
demande que la conscience de chaque individu soit médicalement alertée ; il faudra que chaque
citoyen soit informé de ce qu’il est nécessaire et possible de savoir en médecine ”.
121

também na medicina, e assim trarão a polaridade do normal e do patológico em seu


interior. Veja-se uma conclusão importante de Foucault.

Se as ciências do homem apareceram no prolongamento das ciências


da vida, é talvez porque estavam biologicamente fundadas, mas é
também porque o estavam medicamente: sem dúvida por
transferência, importação e, muitas vezes, metáfora, as ciências do
homem utilizaram conceitos formados pelos biólogos; mas o objeto
que elas se davam (o homem, suas condutas, suas realizações
individuais e sociais) constituía, portanto, um campo dividido segundo
o princípio do normal e do patológico. Daí o caráter singular das
ciências do homem, impossíveis de separar da negatividade em que
apareceram, mas também ligadas à possibilidade que situam,
implicitamente, como norma.203

Delaporte explica que, para Foucault, a medicina clínica emergiu de um


contexto cultural e do seu meio socioeconômico, sendo que fazer a sua história
requereu uma análise sincrônica das coerências e das noções da época.204 A
Revolução Francesa foi um acontecimento exterior, mas que partilhou com o discurso
médico a mesma mentalidade e o mesmo ambiente cultural, inclusive os mesmos
paradoxos. Um dos elementos constitutivos da clínica foi uma “consciência política
que toma a forma de uma consciência médica generalizada”, levando ao surgimento
de “uma medicalização militante da sociedade” que “liga as questões da medicina ao
destino dos Estados”.205 A medicina não será mais somente um conjunto de técnicas
e conhecimentos que buscam a cura das doenças, ela passará a se preocupar
também com a saúde dos indivíduos. A preocupação com uma concepção de saúde
requeria o estabelecimento dos critérios de normalidade e, também, a investigação
dos modelos fisiológicos normais. Portanto, o projeto de uma medicina de Estado

203 NC, p.36. Trad., p.39. Leia-se: “Si les sciences de l’homme sont apparues dans le prolongement
des sciences de la vie, c’est peut-être parce qu’elles étaient biologiquement sous-tendues, mais c’est
aussi qu’elles l’étaient médicalement: sans doute par transfert, importation et souvent métaphore, les
sciences de l’homme ont utilisé des concepts formés par les biologistes; mais l’objet même qu’elles se
donnaient (l’homme, ses conduites, ses réalisations individuelles et sociales) se donnait donc un
champ partagé selon le principe su normal et du pathologique. D’où le caractère singulier des
sciences de l’homme, impossibles à détacher de la négativité où elles sont apparues, mais liées aussi
à la positivité qu’elles situent, implicitement, comme norme. ”
204 Cf. DELAPORTE, François. Foucault, l’histoire et l’épistémologie. In: L’Herne – Foucault. Cahier

dirigé par Philippe Artières, Jean-François Bert, Frédéric Gros, Judith Revel. Paris: L’Herne, 2011.
p.335.
205 DELAPORTE, François. Foucault, l’histoire et l’épistémologie. In: L’Herne – Foucault. Cahier dirigé

par Philippe Artières, Jean-François Bert, Frédéric Gros, Judith Revel. Paris: L’Herne, 2011. p.338.
Leia-se: “On sait, par ailleurs, que Foucault trouve un des éléments constitutifs de la clinique dans la
politique. Pour être précis, il faudrait parler d’une conscience politique qui prend la forme d’une
conscience médicale généralisée. Apparaît le thème d’une médicalisation militante de la société,
puisqu’il est question de lier la médecine au destin des États. ” Tradução minha.
122

levou a uma organização do saber médico em torno da normalidade, mais do que em


torno dos critérios de conhecimentos verdadeiros ou falsos. Delaporte conclui que a
política não impôs, mas sim abriu “novos campos de referência para os objetos da
medicina, por exemplo: a população, os registros estatísticos, o controle médico no
exército ou as instituições de assistência hospitalar.”206

3. Relações estratégicas

Mais tarde (1968), Foucault resume as condições de possibilidade das


transformações em direção à medicina moderna nos séculos XVIII e XIX dessa forma,
no extrato a seguir.

Se há, com efeito, uma ligação entre a prática política e o discurso


médico [...] é de uma maneira bem mais direta: a prática polític a
transformou não o sentido nem a forma do discurso, mas suas
condições de emergência, de inserção e de funcionamento; ela
transformou o modo de existência do discurso médico. E isso por um
certo número de operações descritas em outros lugares, que resumo
aqui: novos critérios para designar aqueles que recebem,
estatutariamente, o direito de ter um discurso médico; novo recorte do
objeto médico pela aplicação de uma outra escala de observação, que
se superpõe à primeira sem apagá-la (a doença observada
estatisticamente no nível da população); novo estatuto da assistência,
que cria um espaço hospitalar de observação e de intervenções
médicas (espaço que é organizado, aliás, segundo um princípio
econômico, visto que o doente, beneficiário dos cuidados, deve
retribuí-los pela lição médica que dá: ela paga o direito de ser socorrida
pela obrigação de ser olhada, e isso incluída a morte até); novo modo
de registro, de conservação, de acumulação, de difusão e de ensino
do discurso médico (que não deve mais manifestar a experiência do
médico, mas constituir, primeiramente, um documento sobre a
doença); novo funcionamento do discurso médico no sistema de
controle administrativo e político da população (a sociedade, como tal,
é considerada e “tratada” segundo categorias da saúde e do
patológico). 207

206 Ibid.,p.339. Leia-se : “La politique n’a pas imposé à la médecine de nouveaux objets comme ceux
de lésions tissulaires ou de corrélations anatomo -physiologiques. Elle a seulement ouvert de
nouveaux champs de repérage des objets médicaux. A titre d’exemples : la population,
l’enregistrement statistique, le contrôle médical dans les armées ou les institutions d’assistance
hospitalière.” Tradução minha.
207 DE I, p.717-8. Trad. em FOUCAULT, Michel. Repensar a política. Coleção Ditos e Escritos, vol. VI.

Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Organização de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro:
123

No nível arqueológico, pode-se reconhecer que as transformações da medicina


fizeram parte de contingências e rupturas no próprio solo do conhecimento e do
funcionamento das práticas discursivas. No contexto, as condições de possibilidade
do saber médico moderno abrangeram as relações discursivas com outros campos
institucionais, políticos, sociais, científicos, como foi descrito nesse capítulo do
presente trabalho. Essas relações fizeram com que o saber médico se dispersasse e
passasse a exercer a sua positividade em toda a sociedade. Porque há também um
sentido de positividade que se refere aos conteúdos positivos, aqueles que têm o
poder de afirmação sobre as coisas e devem ser compartilhados. “A saúde substitui a
salvação”, Foucault cita essa afirmação do médico e historiador da ciência José
Miguel Guardia, na “Conclusão” de NC, para resumir o poder que a medicina terá na
sociedade moderna.208

Cabe ainda reconhecer outro movimento presente nesse capítulo II de NC,


“Uma Consciência Política”, que é a forma como o texto se vincula a trabalhos
posteriores de Michel Foucault. Se o capítulo VIII, “Abram Alguns Cadáveres”, é o
coração do livro, porque descreve, na materialidade das práticas da anatomia
patológica, a finitude fundadora das ciências do homem, “Uma Consciência Política”
é o momento indicativo do caminho adiante, o das análises de Foucault acerca da
genealogia dos poderes.

No livro coletivo publicado em 1976, As máquinas de curar, às origens do


hospital moderno, sobre o mesmo tema dos hospitais e das transformações políticas
e econômicas do final do século XVIII, Foucault escreve um capítulo cujo título é “A

Forense Universitária, 2010, p.18-9. Leia-se : (“Réponse à une question”, Esprit, no 371, mai 1968,
pp. 850-874), “S’il y a bien en effet un lien entre la pratique politique et le discours médical […] c’est
d’une manière beaucoup plus directe : la pratique politique a transformé non le sens ni la forme du
discours, mais ses conditions d’émergence, d’insertion et de fonctionnement ; elle a transformé le
mode d’existence du discours médical. Et cela par un certain nombre d’opérations décrites ailleurs,
que je résume ici : nouveaux critères pour désigner ceux qui reçoivent, statutairement, le droit de tenir
un discours médical; nouvelle découpe de l’objet médical par application d’une autre échelle
d’observation, qui se superpose à la première sans effacer (la maladie observée statistiquement au
niveau d’une population: nouveau statut de l’assistance qui crée un espace hospitalier d’observation
et d’intervention médicales (espace qui est organisé d’ailleurs selon un principe économique, puisque
le malade, bénéficiaire des soins, doit les rétribuer par la leçon médicale qu’il donne: il paie le droit
d’être secouru par l’obligation d’être regardé et cela jusqu’à la mort incluse); nouveau mode
d’enregistrement, e conservation, de cumul, de diffusion et d’enseignement du discours médical (qui
ne doit plus manifester l’expérience du médecin, mais constituer d’abord un document sur la
maladie) ; nouveau fonctionnement du discours médical dans le système de contrôle administratif et
politique de la population (la société, entant que telle, est considérée et ‘traitée’, selon les catégories
de la santé e du pathologique).”
208 NC, p.201. Trad., p.219 Leia-se: “La santé remplace le salut, disait Guardia ”.
124

política da saúde no século XVIII”.209 Nesse texto, observa-se que ele acrescenta uma
camada às análises das reformas da medicina no século XVIII, porque surgem em
relevo as estratégias de poder. Os médicos deixam de ter o protagonismo das
reformas políticas e as análises passam a se dar no nível global e anônimo das
racionalidades que procuram sistematizar a saúde coletiva, as quais Foucault
chamará de “política de saúde”.210 Enfatiza que a questão importante para ele fora
como, num momento dado e em uma sociedade definida, a interação individual entre
o médico e o paciente pode se articular com uma intervenção coletiva sobre a doença.
E diz que a profissão médica, ou melhor, as “formas de profissionalização do médico”
foram um bom ponto de partida.211 Ele afirma que o século XVIII foi um momento
importante para a medicina, pelas exigências quantitativas e qualitativas na formação
dos médicos, pois fora preciso multiplicar o número de médicos e padronizar os cursos
de medicina, vinculando os conhecimentos teóricos e os práticos. Os médicos também
adquiriram mais prestígio e a medicina se destacou de outras formas de cuidado com
os doentes.

Foucault passa, então, a descrever a política de saúde do século XVIII, cujos


discursos formariam os médicos a partir de então. Observa-se que ele a resume em
consonância à consciência política da medicina em NC, e pontua as suas principais
características, como reproduzidas abaixo.212

 Uma expansão do objetivo projetado para abranger a prevenção de todas as


doenças.

 Um desdobramento da noção de saúde em dois sentidos: tanto normativo, por


se colocar em oposição à doença; quanto num significado descritivo, pois torna
a saúde o resultado observável de um conjunto de dados (frequência das
doenças, gravidade, duração, riscos).

209 FOUCAULT, Michel. La politique de la santé au XVIII e siècle. In: Les machines à guérir, aux
origines de l´hôpital moderne. 2.ed. Bruxelles: Pierre Mardaga ed., 1979. Tradução parcial em
FOUCAULT, Michel. A política da saúde no século XVIII. In: Microfísica do poder. Tradução de José
Thomaz Brum Duarte. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 26.ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2008. Contudo remeterei sempre ao texto original, com tradução minha.
210 Ibid.,.p.7. Leia-se: “une politique de santé”.
211 Ibid., p.7. Leia-se: “L’histoire de la ‘profession’ médicale ou plus exactement des différentes formes

de ‘professionnalisation’ du médecin s’est révélée, pour analyser ces apport, un bon angle d’attaque ”.
212 Ver em Ibid., p.7-8.
125

 As variáveis determinantes são caracteristicamente de um grupo ou de uma


coletividade: taxas de mortalidade, vida média, expectativa de vida, doenças
epidêmicas ou endêmicas que atingem uma população.

 O desenvolvimento de intervenções que não são propriamente terapêuticas ou


médicas, mas que interferem nas condições e nos modos de vida, na
alimentação, no habitat, no meio, na forma de educar as crianças, etc.

 Enfim, uma integração de certas práticas da medicina à gestão econômica e


política, visando racionalizar a sociedade. A medicina não é mais simplesmente
uma técnica importante na vida e na morte dos indivíduos, ela passou a se
integrar às decisões de conjunto, como um elemento essencial para manter e
desenvolver a coletividade.

Nesse texto, Foucault afirma que os cálculos do poder político para gestão da
população, da atividade dos indivíduos e da circulação das coisas e das pessoas
visavam, além do bem-estar, a utilidade para o trabalho. Tratavam-se de intervenções
refletidas, baseadas em saberes específicos que apoiavam as técnicas de gestão
política e administrativa, ele enfatiza, por exemplo, as ações da polícia da saúde sobre
o corpo social. Nesse mesmo texto, ele destaca três itens sobre os temas principais
que se desenvolveram na política da saúde do século XVIII, são eles: (1) o privilégio
da infância e a medicalização da família; (2) a importância da higiene e o
funcionamento da medicina como instância de controle social; (3) perigos e utilidade
do hospital.213 Os médicos participaram desses três temas, seja no suporte às famílias
ou atuando na saúde em geral e nos hospitais, ainda no campo das pesquisas de
saúde, sendo subordinados ou fornecendo suporte e informações técnicas.
Adicionalmente, participaram de forma cada vez mais numerosa em diferentes
instâncias de poder, assumindo responsabilidades administrativas ou diretamente nos
órgãos políticos. Foucault afirma que os médicos se beneficiaram dessa intensificação
do poder médico na sociedade. Citando a seguir.

Dessa interpenetração do político e do médico para a transmissão da


higiene, o “excesso de poder” de que se beneficia o médico,
comprova-se desde o século XVIII [...]. O médico torna-se o grande

p.11, 13 e 14. Leia-se: “1. Le privilège de l’enfance et la médicalisation de la famille” ; “2.


213 Ibid.,

L’importance de l’hygiène et le fonctionnement de la médecine comme instance de contrôle social ” ;


“3. Dangers et utilité de l’hôpital ”.
126

conselheiro e o grande expert senão na arte de governar, ao menos


naquela de observar, de corrigir, de melhorar o “corpo” social e de
mantê-lo em um estado de permanente saúde. E é sua função de
higienista, mais do que seu prestígio de terapeuta que lhe assegura
essa posição politicamente privilegiada no século XVIII e início do
século XIX.214

Em um outro texto, uma entrevista, “O olho do poder” (1977), Foucault relata


que descobrira o Panopticon através dos estudos dos projetos arquitetônicos
hospitalares, na segunda metade do século XVIII, especialmente aqueles após o
incêndio do Hôtel-Dieu, em 1772.215 Ele descreve o Panopticon como uma tecnologia
de poder inventada por Bentham para assegurar a visibilidade e o controle do maior
número possível de indivíduos, com o menor custo. O princípio vem do projeto
arquitetural que reúne uma construção com disposição em anel e uma torre de
vigilância central. As celas periféricas no anel são transparentes, tornando os seus
ocupantes constantemente visíveis, enquanto a torre central não permite visão da sua
parte interna, sendo impossível verificar a presença ou a ausência do vigilante. Isto
colocaria os ocupantes das celas sob vigilância constante, sem mesmo saber se estão
sendo vigiados ou não, o que até acabaria por levar a um controle interiorizado do
comportamento. Esse mecanismo poderia servir para vigiar um louco, um doente, um
condenado, um operário ou um escolar.

Portanto, o tema do hospital e da medicina das epidemias se vincula às análises


que Foucault realiza sobre o que ele denominará o “biopoder” e a “normalização da
sociedade”. Isto foi mapeado aqui, para que se possa perceber melhor a relação da
medicina com as tecnologias de poder. Não está no escopo do presente trabalho se
estender às análises do poder, e sim se ater às pesquisas arqueológicas de Michel
Foucault, na época de NC, porém é preciso indicar o papel crucial da medicina nas
análises “biopolíticas”.

p.14. Leia-se: “De cette interpénétration du politique e du médical par le relais de l’hygiène, le
214 Ibid.,

‘plus de pouvoir’ dont bénéficie le médecin, porte témoignage depuis le XVIII e siècle […]. Le médecin
devient le grand conseiller et le grand expert sinon dans l’art de gouverner, du moins dans celu i
d’observer, de corriger, d’améliorer le ‘corps’ social et de maintenir dans un état permanent de santé.
Et c’est sa fonction d’hygiéniste, plus que ses prestiges de thérapeute qui lui assure cette position
politiquement privilégiée au XVIIIe siècle et début du XIX e siècle.”
215 Ver em DE II, p.190-207. Tradução em FOUCAULT, Michel. O olho do poder. In: Microfísica do

poder. Tradução de Angela Loureiro de Souza. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto
Machado. 26.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.p.209-27.
127

No curso de 1978 no Collège de France, Sécurité, territoire, population (STP),


Michel Foucault realiza uma análise extensa das estratégias da “biopolítica”.216 Na
aula de 25 de janeiro, ele aborda a forma de atuação dos “biopoderes” em relação à
normalização. Foucault esclarece que existiriam duas formas de aplicação da noção
do “normal”, uma que incide sobre o indivíduo, utilizada pelas técnicas disciplinares, e
outra, vinculada aos dispositivos de segurança da biopolítica, os quais agem sobre a
população.

A normalização “disciplinar” é uma forma de gestão dos indivíduos que procura


demarcar uma linha invisível entre o normal e o anormal. Em primeiro lugar vem a
“norma”, isso quer dizer, parte-se de um modelo ótimo em função do resultado a ser
alcançado. O indivíduo normal é aquele capaz de se conformar ao modelo, e o
anormal seria o incapaz. O poder disciplinar decompõe os indivíduos, os lugares, os
tempos, os gestos, os atos, as operações nos elementos mínimos para percepção e
modificação; classifica esses elementos para melhor função e resultado; estabelece
as sequências e as coordenações ótimas; enfim, aplica os procedimentos de
adestramento progressivo e de controle permanente.

Na segunda forma, a normalização dos “dispositivos de segurança”, aquela que


age sobre um grupo de pessoas, Foucault explica através das ações na epidemia de
varíola. Ele cita como motivos para ter escolhido esse exemplo o fato de que a varíola
era uma doença amplamente endêmico-epidêmica no século XVIII, atingia
praticamente toda a população e provocava surtos intensos. E também, porque a
técnica utilizada para combatê-la possuía características singulares das práticas
médicas da época: eram medidas preventivas, cujos resultados podiam ser
generalizáveis para a população, mas não provinham da teoria médica da época, a
qual desconhecia o princípio de funcionamento da vacinação. O fato de que a
vacinação ou a inoculação puderam constituir práticas sobre a população ou práticas
de gestão, revelam que os métodos utilizados se baseavam no cálculo das
probabilidades e nas estatísticas, e também em práticas que se integravam ao curso
natural da doença para combatê-la ou anulá-la. É o uso do cálculo para estabelecer

216 FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France (1977-1978).
Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessandro Fontana, par Michel Senellart.
Paris : Seuil/Gallimard, 2004. (STP) Tradução em FOUCAULT, Michel. Segurança, território,
população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
128

uma racionalidade sobre o elemento a ser governado e a atuação artificial sobre o


curso natural do mesmo, que caracterizam os “dispositivos de segurança”.

Foucault afirma que essas análises das epidemias de varíola fazem emergir
certas noções importantes sobre os mecanismos da biopolítica, como pontuados a
seguir.217

 Noção de caso. Através dos cálculos probabilísticos de acometimento da


doença e de sucesso da vacinação foi possível pensar a doença não como um
mal que se espalha, mas racionalizar a doença como uma série coletiva de
casos.

 Noção de risco. Conforme a estratificação pela idade, o local e a possibilidade


de vacinação, estabeleceu-se o risco de morbidade e de mortalidade de cada
indivíduo ou de cada grupo.

 Noção de perigo. Quando os grupos de maior risco de mortalidade foram


identificados, houve condições de indicar os fatores de perigo.

 Noção de crise. Através do cômputo dos casos foi possível analisar


probabilisticamente uma tendência de acumulação que sinalizava uma crise
iminente, uma ascensão perigosa na curva estatística de casos.

Essas novas noções assinalam os diferentes objetivos das técnicas de governo


das epidemias, enquanto os mecanismos disciplinares atuavam principalmente no
isolamento dos indivíduos doentes em relação aos não doentes, os dispositivos de
segurança atuavam com medidas direcionadas para toda a população, utilizando-se
das estatísticas para sua intervenção. Os cálculos probabilísticos tinham dois
objetivos principais que eram estabelecer qual a mortalidade normal esperada para a
população em geral, e estratificar a população em grupos de risco de acordo com
idade, região, profissão, construindo uma curva de distribuição da mortalidade,
identificando as curvas mais desfavoráveis e tomando medidas para trazê-las para a
normalidade mais geral, mas aceitável. Portanto, o método de normalização
securitária tem sentido inverso ao disciplinar, na medida em que parte do “normal”,
primeiro estabelece uma curva de normalidade e, depois, aplica um procedimento de

217 Ver em STP, p.61-4. Trad., p.78-82.


129

normalização para as distribuições mais desfavoráveis. “O normal é que é primeiro, e


a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se
fixa e desempenha seu papel operatório.”218

Para Foucault, o fato transformador foi que a questão do natural ingressou nas
técnicas de poder através do conjunto de elementos da população. Ele salienta que
doravante o objeto do poder será a população considerada como espécie humana, e
também como público – sua interface opinativa e que pode ser educada. A população
será como uma corte na realidade sobre o qual incidirão as técnicas de poder, as
técnicas de governo.

Foi importante mencionar anteriormente neste trabalho, como vem ocorrendo


a formação dos médicos há cerca de trezentos anos, desde o século XVIII, em que se
percebe que várias coisas permanecem as mesmas, em contraste às transformações
das práticas da medicina social ou populacional. No item III.3 deste trabalho foram
mencionados o método clínico de Pinel (1802) e o exame clínico de Tissot (1785) , os
quais mantêm semelhanças com os métodos atuais de abordagem do doente, e ainda,
no capítulo VI.1, as propostas de Fourcroy para os cursos de medicina (1793) indicam
quase as mesmas regras mantidas até hoje. Pode ser que a formação médica atual
esteja em descompasso com uma atitude crítica que os médicos deveriam ter para se
interrogar e se dar conta dos dispositivos de incitação e de coação na política de saúde
em geral. Seria preciso prestar atenção, porque, como afirma Foucault, as estratégias
de poder são invisíveis e subliminares, enquanto a visibilidade e o enquadramento
são justificados como medidas de segurança e de controle. Pode ser que as
negociações no interior das instâncias de poder tenham trazido benefícios de
autoridade para a medicina e também certa reserva de domínios fechados – como os
hospitais e as faculdades, fazendo parte de uma estratégia para equilibrar o jogo entre
as corporações médicas e as intervenções políticas em seu domínio. Pode ser ainda
que as políticas de saúde, por trazerem benefícios gerais para a população, esses

218STP, p.65.Trad., p.83. Leia-se: “[Dans les dispositifs de sécurité] C’est le normal qui est premier et
c’est la norme qui s’en déduit, ou c’est à partir de cette étude des normalités que la norma se fixe et
joue son rôle opératoire.”
130

tenham se tornado o motivo da ocultação da sua ambiguidade, relacionada aos


mecanismos que levam aos excessos perigosos de poder.

Como se vê, as análises detalhadas de Foucault sobre a medicina dos séculos


XVIII e XIX na França não se circunscrevem àquele período, mas se desdobram,
suscitando questões importantes mais gerais e atuais. O estudo da medicina, em NC,
mostra como o estatuto dado ao discurso médico nas práticas políticas levaram a uma
análise da sociedade em termos biológicos, e como se produziu a extensão desse
campo de positividade na modernidade. Ele diz que a articulação entre o discurso
científico e a prática política é complexa e poderia ficar mascarada se as análises
fossem apressadas e não baseadas em descrições muito precisas do nível em que
acontecem.219 As análises em NC mostram igualmente, desde o início, como os
princípios da objetividade da percepção do saber médico, levados adiante na
anatomia patológica e na fisiologia, definiram a doença em termos do “normal” e da
“função”, como ainda se apresenta hoje, embora talvez possam existir outras
perspectivas. É interessante observar como essa objetividade excessiva pode ser
percebida nas descrições de Foucault através das metáforas da “luz que cega” ou do
“olhar soberano”, e simultaneamente surge a luz própria do discurso que “cintila” por
breve instante, daqueles que tomam a palavra, ou se trabalha na crítica difícil que “traz
à luz” a distância das verdades esquecidas. São metáforas das ambiguidades
luminosas dos discursos sobre os indivíduos modernos.

Retornando a uma das questões principais desse trabalho, qual teria sido o
papel da medicina nas mortes dos pacientes com AIDS, no momento em que a doença
emergia? O que a ausência de um saber positivo intensificou? Qual falta não soube
tratar o mal-estar da doença que, desde o início, parecia se expressar num silêncio
sobre as dimensões existencial e estratégica?

Existencialmente, as palavras sobre a morte já não são possíveis. Seria um


salto para trás impossível para o saber médico moderno pronunciar palavras na
dimensão existencial do indivíduo, pois a medicina se afastou da filosofia no século
XVIII e se funda no positivismo dos cálculos. E, no entanto, a cada dia, o momento da
morte acontece inumeravelmente, e os médicos fazem silêncio. Eles não têm outros

219Ver em DE I, p.719-20. Trad. em FOUCAULT, Michel. Repensar a política. Coleção Ditos e


Escritos, vol. VI. Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Organização de Manoel Barros da Motta.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p.19-21.
131

instrumentos, porque a relação com o doente não é mais o suporte do seu discurso,
é a rede lógica e exterior a ela, no cruzamento biológico, histórico e geográfico das
informações, que diagnostica ou antecipa a doença.

Estrategicamente, é preciso notar que as ordens médicas se desenvolvem no


espaço da lei da norma. Por isso, a medicina mantém um outro silêncio, aquele que
procura apagar os conflitos morais e os comportamentos não desejados dos pacientes
com AIDS, por exemplo. A medicina não é neutra, ela escolhe o lado da normalização .

Numa história oficial da medicina, estivera presente a tentativa de estabelecer


dois aspectos, o primeiro, que a clínica seria o saber médico que tem origem no leito
do doente e, o segundo, que esse fora o lugar constante nessa história, enquanto as
teorias é que sempre mudavam. Como se a clínica tivesse sempre preservado a sua
pureza em face das mais variadas revoluções teóricas da história médica.
Contrapondo-se a isso, Foucault afirma que embora as narrativas tradicionais da
história da medicina tentem assumir uma continuidade desde o início deste saber, na
verdade, a experiência clínica data apenas do final do século XVIII.

Todo o esforço de Foucault em NC, como ele explica no capítulo IV, “A Velhice
da Clínica”, foi o de tentar se contrapor a essa narrativa ideal que traz tanto uma noção
de “historicidade contínua”, quanto a de que a história da medicina esteve sempre
apoiada no desenvolvimento das verdades de um saber cuja origem era o encontro
do médico com o sofrimento do doente.220 Foi preciso redescobrir o nascimento da
clínica, com suas rupturas e transformações, e reencontrar a medicina moderna.

A conclusão mais simples a que se pode chegar, inicialmente, é que se a


medicina clínica tem uma história recente, se existiu outra antes dela, também poderá
existir outra depois dela. E ainda, ao lembrar que, para Foucault, nosso campo de
reflexão é a atualidade, as transformações podem acontecer apenas nas demandas
dos problemas do tempo presente, o tempo de existência da atualidade. Decorre daí
também que reflexões e ações sobre nós mesmos sempre terão a chance de provocar
transformações nos saberes e nos poderes.

Quais são as questões médicas da atualidade? Quais caminhos seguir?

220 Ver em NC, p.53. Trad., p.58. Leia-se: “Vieillesse de la clinique”.


132

No Colóquio “Michel Foucault e a Medicina, Leituras e Usos”, pesquisadores


de vários países, diferentes áreas e culturas se reuniram para debater esse tema.221
Sob o eixo “Estratégia e sistema da saúde hoje”, Anne Golse proferiu a conferênci a
“Da medicina da doença à medicina da saúde”, a qual desenvolve parte das questões
suscitadas aqui, como será visto a seguir.

Um esclarecimento inicial é necessário acerca do fato de que, para Foucault, a


norma é uma medida que instaura uma lei arbitrária de separação no interior da
população, como visto anteriormente. Mas, existe um outro ponto de vista para a
norma, aquele de Georges Canguilhem, em que ela é inserida na capacidade
normativa da vida. Para Canguilhem (1943), o estado normal ou patológico do
organismo se regula pela normatividade do organismo em alcançar novo equilíbri o
com o meio em que vive, sendo a faculdade de adaptação uma de suas
características.222 Isto se baseia também na sua concepção de biologia como a teoria
geral das relações entre os organismos e seu meio. Para ele, a medicina é uma
técnica que se utiliza de todas as ciências para colaborar com esta atividade
propulsora das normas da vida.223 As diferenças entre o normal e o patológico são
sobretudo do valor atribuído pela clínica, pelas práticas médicas, ao que se considera
um e outro em relação aos fenômenos biológicos, não podendo ser reduzido apenas
aos critérios objetivos quantitativos.

No texto de Golse, em que a estudiosa analisa a medicina da atualidade, ela


afirma que a noção de saúde expressada pela OMS (1948), como o equilíbrio bio-
psico-social, parece advir dessa nova norma que é da ordem da adaptação. 224 Essa
vertente da biologia que toma as relações dos indivíduos com o meio, e que pode ser
reconhecida nas concepções apresentadas por Canguilhem, trará várias
consequências para o discurso médico. A principal seria o fato de que a medicina se
tornará mais “adaptativa” do que “curativa”, dirigindo-se aos estudos capazes de
indicar a melhor forma de adaptação do indivíduo ao meio, e de procurar reconhecer

221 Michel Foucault et la médecine, lecture et usages. Sous la direction de Philipe Artières et
Emmanuel da Silva. Paris : Éditions Kimé, 2001. Tradução do título é minha.
222 CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho

Barrocas. Revisão técnica de Manoel Barros da Motta. 6.ed.rev. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.p.175-6.
223 Ibid., p.176.
224 Ver em GOLSE, Anne. De la médecine de la maladie a la médecine de la santé. In : Michel

Foucault et la médecine, lecture et usages. Sous la direction de Philipe Artières et Emmanuel da


Silva. Paris : Éditions Kimé, 2001.p.275.
133

as causas e os grupos não-adaptados, para instituir medidas de correção ou de


prevenção.225 Isto se dará também em relação às doenças crônicas e degenerativas,
em que a medicina atuará para manutenção de uma adaptação possível à doença.

Outra questão relacionada é a transformação etiológica das causas da doença,


porque passarão a se constituir nos estudos dos dados epidemiológicos, em busca de
traços e correlações que indiquem os fatores multicausais das doenças, incluindo os
vários fatores relacionados aos comportamentos e ao meio, os chamados “fatores de
risco”. Sem desejar se estender demais, são importantes algumas palavras sobre
esse assunto.

A medicina adaptativa desloca cada vez mais os cuidados médicos individuais


curativos para aqueles outros que tomam os indivíduos através dos dados
populacionais e da avaliação dos riscos, a chamada medicina preditiva. Uma
produção contínua e redundante de fatores de risco gera o fato de que não existem
mais indivíduos sem riscos, e também de colocar todos os aspectos da vida sob alvo
de recomendações, medidas de moderação, controle, restrições, etc. os quais ainda
podem ser incessantemente modificados. Ocorre que os achados dos riscos
reinserem continuamente os indivíduos nos sistemas de saúde, decorrendo daí a
ineficiência e a sobrecarga financeira que acabam resultando. Cabe ressaltar que o
risco é uma medida abstrata ou virtual, e que pode dar falsas impressões tanto de
segurança quanto de perigo. A avaliação dos riscos pode levar a excessos de
diagnósticos e de tratamentos.

A medicina participa diretamente dessa totalização das existências nas suas


relações discursivas econômicas, políticas e sociais. Por outro lado, como
consequência, Golse lembra que várias críticas foram endereçadas às instituições
médicas quanto “à insuficiência de seus fundamentos, à insuficiência de seus
resultados e à sua iatrogenia global”.226 Os sistemas de saúde submeteram a
medicina e os indivíduos a esse modelo de saúde coletiva, a partir daí os novos
conceitos se integraram ao exercício da medicina. Mas, ao mesmo tempo, o sistema

225 Ver Ibid., p.276-7.


226 Ibid., p.285. Leia-se : ”Mais parallèlement, à cette transformation d’une partie de l’activité médicale,
il y a émergence d’un nouveau discours, qui cherche à impulser l’idée désormais centrale de santé
populationnelle. Pour asseoir sa légitimité comme dispositif global de santé, la Santé publique va
remettre en cause l’institution médicale en reprenant à son compte une série de critiques quant à
l’insuffisante de ses fondements, à l’insuffisance de ses résultats et à sa iatrogénie globale.”
134

de saúde se viu sobrecarregado pelas exigências incessantes dos indivíduos, o que


deu origem a essas críticas à instituição médica, requerendo transformações. Foi esse
caminho que levou a medicina a centrar as ações de prevenção no individuo, na
medicalização dos comportamentos para que produzam sua própria saúde, com sua
carga de ilusão e culpabilidade.227

Golse acompanha como, aos fatores de risco, se sucederam os “fatores de


saúde” e os “fatores de produção”, para constituir indivíduos continuamente
preocupados em se manterem saudáveis e produtivos.228 Isso acaba provocando uma
fadiga, ao contrário de bem-estar, pelas restrições permanentes, mutantes e
crescentes, pelas exigências de autorregulação do comportamento, enfim, pela
excessiva apreensão da existência. A autorregulação da saúde seria desejável, na
verdade, para prevenir ou controlar as doenças, e assim reduzir a sobrecarga a que
os sistemas de saúde estão submetidos.

Então, na verdade, somaram-se dois níveis de gestão normativa da saúde da


população, um nível geral da “ciência das informações sobre os indivíduos”, embora
cada vez mais individualizante, que pretende a sua gestão adaptativa; e outro, que
incita ao enviar mensagens constantes para que os indivíduos fabriquem sua própria
saúde, interiorizando as normas comportamentais de uma saúde ideal. Cedo ou tarde,
os indivíduos caem nas malhas da gestão das anomalias.

Convém lembrar, contudo, que nas análises dos biopoderes, Foucault propõe
o poder não como uma essência ou um bem de que se toma posse, o poder seria
“relações de poder” compreendidas como relações de forças, em que a resistência
sempre está presente, de diversas formas e no contexto do funcionamento dos
poderes. Portanto, sempre existirá a possibilidade das resistências.

Convém lembrar, ainda, que Foucault explicou em AS, que a medicina clíni ca
não é mais como no século XIX, pois vem ocorrendo o deslocamento constante da
percepção médica, a mudança dos instrumentos de acesso ao corpo e a expansão

227Ver em Ibid., p.290.


228Ver em GOLSE, Anne. De la médecine de la maladie a la médecine de la santé. In : Michel
Foucault et la médecine, lecture et usages. Sous la direction de Philipe Artières et Emmanuel da
Silva. Paris: Éditions Kimé, 2001.p.278 e 290.
135

dos registros acessíveis, virtuais, midiáticos de informações para a análise médica,


estabelecidos na exterioridade da posição do próprio médico.

No último capítulo deste trabalho, vai-se delinear as questões suscitadas aqui


para a medicina da atualidade e tentar indicar direções a seguir.
136

CAPÍTULO VII – DIREÇÕES DO DIÁLOGO

Fig. 4 – A disease network model with functional modules229

Network modeling of Crohn’s disease incidence. J.M. Victor, G. Debret, A. Lesne, L. Pascoe,
P. Carrivain, G. Wainrib, J.P. Hugot. PLoS One11, e0156138 (2016). Acesso em:
https://doi.org/10.1371/journal.pone.0156138. 22 fev. 18

229 “Um modelo em rede da doença com módulos funcionais” [tradução minha], proposto pelos
estudos biomoleculares, como um novo modelo virtual de compreensão da fisiopatologia da doença.
[O que, numa análise crítica, poderia representar um retorno à classificação essencialista e à
dissociação entre a doença e o corpo doente.]
137

O ponto de partida para as questões desse trabalho foi a vivência da morte dos
pacientes com AIDS, e a suposição das insuficiências do discurso médico para assistir
aos pacientes e aos jovens médicos que os acompanhavam. Existiu ainda outra
vivência formadora da proposta inicial desse trabalho, que foi o encontro, anos mais
tarde, com o pensamento de Michel Foucault. Esse encontro trouxe à consciência as
estratégias de poder naquele espaço hospitalar e o desejo de as confrontar.
Justamente nesse ponto de partida, pode-se identificar duas questões importantes da
medicina da atualidade, que devem ser problematizadas: a assistência do indivíduo
na morte e a interrogação sobre a biopolítica.

Mas não parece ser somente nesse trabalho que essas questões sobre a
medicina se sobressaem logo de início, então, para resumir outras referências
semelhantes, remete-se ao artigo de Paltrinieri, “L’équivoque biopolitique”.230 Nesse
artigo, ele propõe três relatos que assinalam problemas atuais envolvendo a
biopolítica: um centro de detenção de imigrantes na Europa, o dispositivo de
segurança da obrigatoriedade do uso de cinto de segurança nos veículos e o relato
sobre uma paciente em seu leito de morte no hospital. Após uma revisão das
abordagens filosóficas atuais da biopolítica, ele salienta alguns equívocos. Esses se
resumem principalmente ao fato de que outros teóricos dos poderes criam quadros
desesperantes em que a vida é apreendida de uma forma geral e opressiva. Paltrinieri ,
então, procura apresentar dois caminhos em que o pensamento da atualidade poderia
sair para enfrentar a biopolítica. O primeiro, é lembrar que Foucault definiu os poderes
como relações dinâmicas, em que a resistência sempre tem um ponto de apoio para
se contrapor às abrangências biopolíticas, ou para exercer a crítica sobre as técnicas
de normalização da vida. O segundo caminho de saída seria trazer ao conhecimento
dos indivíduos as estratégias de poder, trazer à luz as inter-relações numerosas e
complexas entre os saberes e os poderes, para se contrapor ao imaginário da
neutralidade e da pureza das ciências, esse que serve somente para impor uma
distância à ambiguidade dos seus propósitos.

No presente trabalho, para compreensão das possíveis insuficiências do


discurso médico, decidiu-se retornar à leitura de O nascimento da clínica. A escolha
desse livro para centrar as reflexões teve certos motivos, o principal foi que nele

230PALTRINIERI, Luca. L’équivoque biopolitique. Chimères 2010/3, nº 74.p.153-166. Disponível em:


doi: 10.3917/chime.074.0153. Acesso em: 28 fev. 18.
138

Foucault faz uma história arqueológica da medicina e se aproxima do tema da morte


no conhecimento médico. Outro motivo poderia ser que, para um médico, surge a
curiosidade e a apreensão em saber como um filósofo descreve a medicina clínica,
quais certezas podem ser abaladas num discurso que pretende ser científi co e
positivo. E ainda, comparando-o à História da loucura, que teve impacto considerável
na psiquiatria, O nascimento da clínica é um livro pouco estudado pelos médicos,
portanto, realizar essa pesquisa poderia ser um esforço para ressuscitar a sua leitura.

A tese seguiu dois percursos paralelos, um, acompanhando os capítulos de


NC, relacionando-os entre si e nem sempre seguindo a ordem numérica, em busca
da compreensão da arqueologia crítica da medicina; o outro, seguiu a preocupação
com a medicina atual, especialmente com a formação dos médicos, procurando trazer
à luz a constituição do discurso médico, suas regras, seu funcionamento, suas
consequências, suas responsabilidades e, talvez, encontrar direções para o diálogo.
Em mais de um sentido, porque se trata do diálogo sobre a medicina e também do
diálogo entre o médico e o paciente.

Pensando bem, durante a condução desse trabalho também foram


identificados equívocos, eles têm a ver com a racionalidade usada de início para
pensar a medicina, talvez fundamentada a partir do positivismo científico e da
biopolítica, porque enfim, esses modelos vêm constituindo os médicos. O primeiro
deles é desfeito ao se reconhecer que a medicina não pode ser pensada como um
campo exterior às decisões políticas, econômicas, institucionais, a medicina participa
intrinsicamente da biopolítica. O segundo equívoco fora não considerar a linguagem
do paciente como parte efetivamente constituinte da relação que se estabelece no
encontro com o médico, não perceber uma verdade nas palavras do paciente, sem
isso não se poderia propor um diálogo. O terceiro, fora tentar pensar novamente a
medicina como um saber totalizante sobre a vida e a morte, sem compreender que a
morte talvez tenha um significado existencial individual e não deva ser apreendida nas
técnicas da medicina. Deve-se expressar que o reconhecimento desses equívocos,
alcançado através de uma crítica difícil à medicina, produziu um sentimento de lucidez
amarga, porque parece que se passou tempo demais até que fossem trazidos à luz.
Por outro lado, a medicina vem pesquisando, trabalhando continuamente e
encontrando soluções notáveis para o tratamento das doenças, por exemplo, 30 anos
após a morte de Michel Foucault, a AIDS tem um tratamento adequado e existem
139

centros médicos que estão próximos de desenvolver a cura dessa síndrome viral. As
críticas, portanto, não levam a desacreditar a medicina, mas a propor uma experiência
médica mais flexível, mais justa, talvez mais leve, enfim, diferente.

Na sua trajetória, Foucault procurou fazer uma análise dos problemas da


atualidade, para ele, a tarefa da filosofia é sobre o tempo presente. Suas abordagens
arqueológica e genealógica buscaram realizar uma história investigativa de como
chegamos a ser o que somos e do que reatualiza as racionalidades do passado em
nosso presente. Nesse caminho, ele nos diz que mesmo nos tendo tornando sujeitos
e objetos das ciências, essa dupla ascendência não pode definir nossa existência.
Então, cabe perguntar, se não somos sujeitos transcendentais nem objetos do
conhecimento, qual é a nossa ontologia? Ela é histórica, afirma Foucault. A ontologia
de nós mesmos é a ontologia do presente, das práticas discursivas que nos formam
e nos constituem, da história inscrita em nossos corpos, em nosso ser histórico. Num
outro nível de compreensão dessa conclusão, percebemos que, no fundo, nossa
existência é um enigma, porque sendo seres históricos, todo conhecimento sobre nós
mesmos será parcial, provisório, imprevisto. Melhor ainda, estamos nos constituindo
continuamente, nos determinando, nos produzindo.

Nos seus estudos, Foucault fez recortes justamente nas épocas de rupturas
dos saberes, nas quais as racionalidades teóricas e práticas sofreram transformações
mais profundas. São escolhas que deixam perceber melhor as fragilidades das
continuidades que uma história monumental pretenderia construir, como um
progresso contínuo, dando reverência ao encadeamento das certezas. Para Foucault,
a história é feita de escolhas e de contingências.

É na própria contingência histórica dos discursos que constituem a medicina


moderna que se poderá ou deverá encontrar novas direções para tornar o saber
médico mais próximo de um diálogo sobre a existência humana, porque isso parece
desejável. Para tanto é preciso identificar os problemas atuais percebidos nas
vivências do encontro entre o médico e o paciente, analisar criticamente, criar novas
linguagens, novos sentidos, novos enunciados que possam levar a um encontro mais
satisfatório. Os problemas identificados nesse trabalho foram as determinações
positivistas e biopolíticas, e a ausência de um verdadeiro diálogo com o paciente,
140

porque o médico fala sobre a doença e o diagnóstico, usando uma linguagem


científica, num encontro em que a fala do paciente não tem espaço e nem tempo.

Foucault foi levado a reconhecer, nos seus estudos sobre a medicina, que o
saber médico é formado por vários discursos, por uma rede de enunciados científicos,
matemáticos, econômicos, políticos, sociais, estratégicos. O discurso médico é
heterogêneo, disperso. Por que não se poderia acrescentar um estrato da percepção
existencial do doente? Pode-se pensar em estratégias de saber para novas
experiências dessa relação entre o médico e o paciente, novas linguagens e
enunciados que possam ser acrescentados ao que doravante se poderia chamar de
arte da medicina. As novas estratégias envolveriam reconhecer a fala do paciente
como constitutiva dessa relação, levar em consideração seus sofrimentos, suas
dúvidas, seus desejos, seus valores, seus conhecimentos, suas escolhas, suas
decisões. Isto dependeria da maneira como os médicos são formados. É preciso que
os jovens médicos tenham uma formação em que possam ter contato com outros
campos que promovam a percepção de outras linguagens sobre a existência humana,
para que tenham palavras espontâneas de diálogo e ainda assim fundadas numa
reflexão prévia. É preciso também que os jovens médicos tenham lucidez sobre as
estratégias de poder que usam a medicina como instrumento, é preciso estar alertas
para os excessos de poder. Existem experiências sendo desenvolvidas para colaborar
com a introdução do pensamento crítico nos cursos de medicina através do ensino da
filosofia. Isto parece ser um caminho, para que os médicos não se tornem apenas
especialistas, mas desenvolvam uma atitude crítica em geral.231

Laplace (1749-1827) elaborou a teoria analítica das probabilidades, ele era um


pensador determinista, seu sistema matemático de raciocínio indutivo era baseado
nas probabilidades, na regra de sucessão e na predição. Seu método aplicado à
medicina estimava a proporção do número de casos favoráveis comparados ao
número total de casos possíveis. Havia a referência a uma variável e à distribuição
normal das probabilidades, que seriam determinantes e validáveis. Em “Signos e
Casos”, Foucault indica como a lógica da probabilidade entrou na questão da verdade
científica da medicina, e depois em “Uma Consciência Política”, como a
matematização estatística situou o indivíduo numa rede de informações exteriores a

231Ver em BOSCH, Gundula. Train PhD students to be think ers not just specialists . Nature 554, 277
(2018). Disponível em: doi: 10.1038/d41586-018-01853-1. Acesso em: 22 fev. 18.
141

ele. Essas arqueologias servem para mostrar que a positividade clínica se baseia
sobretudo em hipóteses matemáticas, e não em uma verdade definitiva sobre o
enigma e a imprevisibilidade individual. A percepção desses fundamentos hipotéticos
faz com que a flexibilidade na arte médica se torne possível, desejável.

Outro aspecto da positividade tem a ver com o fato de que a medicina, como
um saber, se organizou, se institucionalizou e se deu uma linguagem própria para
alcançar uma forma científica. Fundamentou-se num objetivismo antropológico, que
reflete sobre o homem a partir de sua finitude. Um tipo de saber analítico e biológico
que decompõe o corpo, busca focos, sedes, causalidades, diferentemente de
considerar o indivíduo como um todo. Essa redução da existência ao princípio
biológico da vida – que também é reduzida aos mecanismos materiais, anatômicos,
fisiológicos, patológicos, é uma racionalidade que limita o corpo, o toma definido pela
morte, circunscrito em uma finitude material. Esquecem-se vários outros aspectos da
existência humana: as atitudes políticas, éticas e filosóficas, os diferentes modos de
ser, de agir e de pensar, os aspectos que foram historicamente herdados e os que
serão legados na transformação do mundo. Pensar sobre isso contribuirá para que a
medicina possa acrescentar outras camadas à sua percepção do indivíduo.

A questão da individualidade do corpo também tem sido percebida apenas


através do patológico, dos modos de adoecer anatômico e fisiológico. Seria possível
pensar diferentemente? Pensar o impensado, o que seria o impensado dentro da
medicina? O reverso existencial e estratégico da racionalidade da medicina clínica?
Qual outra relação entre o homem e a morte que não aquela da finitude? Seria uma
relação estabelecida pelo próprio paciente, pelos próprios indivíduos? Talvez não seja
desejável que a medicina realize uma totalização sobre existência, que apreenda
inteiramente o modo de viver e de morrer dos indivíduos. Essas são todas questões
postas para a medicina da atualidade.

Em NC, Foucault mostra o significado epistemológico e a experiência poética


da morte. Não há propriamente a descrição de uma epistemologia da medicina em
NC, porque o discurso médico como um todo não é uma ciência, são práticas
discursivas, relações discursivas, em campos que incluem as ciências como a
fisiologia e a biologia, e também vários outros conhecimentos. A medicina seria um
campo de relações e, sobretudo, uma arte. A arte médica é esse conjunto de
142

discursos, experiências, práticas, regras, técnicas, vivências, linguagens e momentos


que se organizam num saber. Essa compreensão leva a crer que o saber médico
poderia ter mais estratos ou se organizar diferentemente. A organização de um saber
ou de um campo discursivo tem correspondências nos escritos de Foucault, ela é o
espaço epistêmico em que cada época organiza a desordem dos conhecimentos das
coisas. A imagem do aleatório e da desordem primordial das coisas estão descritos
em MC sobre a mesa de Borges; em NC, na mesa do cirurgião; e em RR, na mesa de
bilhar. Foi o discurso científico, econômico e político datado do fim do século XVIII que
organizou as coisas na modernidade. Outros espaços, outros discursos e outras
organizações estariam surgindo.

Três espaços concretos formaram as condições de possibilidade da medicina


moderna, eles foram o corpo, o hospital e o espaço social. Não é do lado de fora dos
outros discursos sobre o corpo que a medicina se situa, é mesmo no interior dos
mecanismos biopolíticos que a constituem. A medicina é também política, econômica
e social. Ainda mais que ela parece ter sido o vínculo entre os saberes clássicos e os
saberes sobre o homem da modernidade, e também o vínculo que articula as práticas
discursivas biopolíticas e os corpos dos indivíduos e da população. Através da
medicina, as práticas de vigilância, de controle, de correção produzem e disseminam
seus efeitos, talvez sem crítica, sem maior reflexão sobre o que isso pode significar
na existência dos indivíduos. Por que essa passividade do saber médico? Por que não
é justamente o foco de resistência e de crítica sobre a constituição empobrecedora
dos indivíduos modernos? Porque não se opõe à violência adestradora dos corpos?
Dois ou três fatores puderam contribuir para isso: a ruptura no fim do século XVIII, na
qual a medicina se separou da filosofia, e os discursos científicos da época que
passaram a constituir os médicos, como foram descritos desse trabalho; os outros
fatores seriam o hospital e as faculdades – os domínios em que as corporações
médicas mantiveram suas regras. Não se deve esquecer que a aparição da biopolítica
aconteceu nos debates públicos que colocaram em cena a dinâmica de interesses e
de aspirações no mercado e nas práticas de governo. Talvez se atualize certa
passividade do saber médico no espaço social, desde que se mantenha o seu domíni o
nesses espaços fechados.

Contudo, não se pode deixar de notar as características comuns ao discurso


médico e à arqueologia foucaultiana. Ambos são analíticos, descritivos, exploram o
143

invisível do visível na superfície das coisas e buscam diagnosticar. Ambas se atêm ao


conteúdo do que foi visto e dito para tentar estabelecer relações, semelhanças,
diferenças, séries, cronologias, transformações e rupturas. O fato é que ambas são
uma análise dos espaços e dos enunciados, das coisas e dos corpos. Quais as
diferenças? Parece ser que a clínica se denomina um saber científico, se coloca
dentro dos limites da finitude do corpo, e se tornou um saber individualizante,
vinculado aos cálculos e aos perigos dos discursos; por outro lado, a arqueologia,
denominando-se histórica e contingente, é aberta no tempo e no espaço, livre para
analisar e atravessar os campos discursivos. Por sua condição de semelhança com o
pensamento crítico foucaultiano, a medicina teria intrinsecamente a capacidade de
formar um diagnóstico sobre a atualidade, de ultrapassar a finitude e se tornar mais
aberta e valiosa.

Uma entrevista concedida em 1968 é um dos raros momentos em que Foucault


fala de si mesmo e da sua herança vinda de uma família de médicos cirurgiões.232 Ele
explica que, embora procure o encadeamento suave na escolha das palavras, sua
escrita é percebida pelos outros por um caráter cortante e mordaz. Ele compreendeu
que isso se dá pelas análises que faz da aparição e do funcionamento dos discursos,
como se estivesse fazendo uma autópsia, usando o bisturi para cortar o papel, ou
melhor, para cortar o corpo dos discursos dos outros. É porque ele supõe que “os
discursos já estão mortos” quando os disseca, e põe sua organização interna e seus
focos de verdade à mostra.233 Portanto, para ele, há uma relação entre a escritura e a
morte, porque as coisas ditas pertencem ao passado e não é possível revivê-las,
sendo assim, podem ser analisadas anatomicamente, com serenidade, como se fosse
uma análise médica.

Foucault diz que escreve para diagnosticar as verdades interiores dos


discursos mortos, talvez onde elas estejam reduzidas ao silêncio ou mantidas à
distância.234 Por exemplo, em HL, ele fez a história sobre como a loucura e a
psiquiatria foram se constituindo paralelamente, em que uma é reduzida ao silêncio e
a outra se desenvolve como um saber (deve-se lembrar que as paredes do Salpêtrière

232 FOUCAULT, Michel. Le beau danger, entretien avec Claude Bonnefoy. Édition établie et présentée
par Philippe Artières. Paris: Éditions EHESS, 2011.
233 Ibid., p.37. Leia-se: “Je ne les condamne pas à mort [les choses dites]. Je suppose simplement

qu’ils sont déjà morts”.


234 Ver em Ibid., p.40-1.
144

guardam o tratamento moral que Pinel ali instituiu e defendeu: o isolamento, o silêncio,
os castigos para quebrar as ideias dos loucos). Em NC, ele diz que tomou diretamente
como objeto de estudo o conhecimento médico, certamente para questionar a sua
herança médica. Já em RR, ele se interrogou como uma obra como aquela, escrita
por um indivíduo desconsiderado pela sociedade, pode ser aceita e funcionar dentro
de uma cultura. Como esse processo de exclusão e inclusão pode acontecer? Para
ele, isso teve a ver com a inclusão da linguagem de Roussel no universo da
modernidade, porque ela funcionou de uma maneira positiva dentro das regras de
possibilidade dos discursos e, assim, pode figurar na literatura.235 Ele concluiu que o
que configura um discurso louco, ou não, é a sua posição e o seu funcionamento no
interior da normatividade de uma cultura.

Respondendo sobre sua própria prática de escritura, Foucault di sse que


escrever tinha se tornado para ele uma obrigação diária, para que depois pudesse
retornar a outras coisas. Ele pensava também que escrever era tentar esgotar um
discurso, era tentar apagar-se ao depositar as palavras no papel. Ele sabia, contudo,
que isso nunca seria alcançado, porque a vida fora do papel continua, ela sempre
prolifera e jamais poderá ser fixada na linearidade e nas duas dimensões de um
discurso. Assim, escrever é uma obrigação infinita, no momento em que as linhas são
fixadas e se tornam legíveis, ocorre uma mortificação. Ao menos, a cada dia, essa
obrigação o livrava da angústia, da inquietude, e era assim que resultava um prazer
de escrever. Ele não se considerava um escritor, mas reconhecia que às vezes fazia
relatos de “micro-acontecimentos”, por exemplo, da vida de alguém, num estilo
jornalístico, para mostrar o que poderia permanecer oculto.236 Ele respondeu ainda
que seu projeto era dizer as coisas, mostrar as coisas invisíveis, que estão muito
próximas para que o olhar possa ver. Ele desejava dar densidade a essa atmosfera
em que se situam os saberes. É isso que importa. Ele desejava fazer aparecer a
distância que separa os indivíduos das coisas.237

235 Ibid., p.51. Leia-se: “Je ne me pose pas le problème du rapport oeuvre-maladie, mais du rapport
exclusion-inclusion : exclusion do individu, de ses gestes, de son comportement, de son caractère, de
ce qu’il est, inclusion très rapide et finalement assez facile de son langage”.
236 Ibid., p.59. Leia-se: “Certes, j’ai eu parfois l’envie d’écrire des nouvelles au sens presque

journalistiques du terme : de raconter des micro-événements, de raconter par exemple la vie de


quelqu’un, […]”.
237 Ibid., p.66. Leia-se: “Je vous l’ai dit, j’essaie de faire apparaître la distance que j’ai, que nous avons

à ces choses, mon écriture est la découverte même de cette distance”.


145

Michel Foucault está morto. O que poderia ter sido dito no seu leito de morte ,
quais palavras falharam? O que os médicos poderiam ter dito para Foucault ou para
Defert? Novamente, ainda agora, elas falham. Porque parece ser uma questão
amplíssima que interroga todos os saberes da modernidade. E somente seria possível
propor, com modéstia, tentar a invenção de novos diálogos sobre a existência
humana.

Duas direções de diálogos poderiam ser propostas, uma relacionada à


discussão sobre o saber médico e a outra, ao diálogo entre o médico e o paciente;
uma abrangendo a formação dos médicos e a outra, as vivências da experiência
médica. A discussão sobre o saber médico requer que se provoque um movimento,
partindo da lucidez crítica sobre a constituição da medicina clínica e do ímpeto para
as transformações discursivas desejáveis na formação dos médicos. A outra direção
se daria nas próprias vivências do encontro entre o médico e paciente, nos discursos
cotidianos, nos jogos de qualificação e desqualificação dos discursos, no
enfrentamento dos perigos do incontestável e da coerção, em que se poderia perceber
as dificuldades do discurso médico e o trabalho necessário para um diálogo mais
equilibrado, flexível, justo. Porque as incongruências percebidas poderiam revelar,
advertir, inspirar, abrir possibilidades de alguma dissidência, de ampliação dos limites
do que seria possível. Fazer o diagnóstico da própria medicina do presente, nessa
experiência, encontrar alguma espontaneidade, pistas e possibilidades de produção
de práticas novas, talvez uma nova propedêutica ampliada para hoje. Isto seria mais
interessante, mais animador. Porque a medicina tem produzido tantos corpos tristes
em busca da saúde e dos procedimentos de normalização: anormais, monstros,
masturbadores, delinquentes, histéricas, pervertidos, loucos, doentes, tuberculosos,
aidéticos. É preciso encontrar outras linguagens. É preciso criar tempo e espaço para
ouvir o outro. Porque continuar na repetição da ordem do mesmo, é como se se
olhasse para trás para caminhar adiante, repetindo o passado para planejar o mesmo
futuro. É também apagar, silenciar, esquecer, não pensar sobre o outro, aquilo que
deixa de ser pensado e falado a cada vez que o inesperado ou o indesejado se impõe.
Porque a distância das afirmações incontestáveis só serve para apagar o sussurro,
aquele murmúrio que não está somente no outro indivíduo, mas que murmura também
dentro de si, é o outro de si, que insiste em pensar.
146

Ao final, não se pode deixar de supor que talvez sejam soluções ingênuas,
porque o que move a atualidade são os problemas e a força das contingências e dos
novos acontecimentos. Talvez, a medicina seja mesmo obrigada a enfrentar os seus
excessos de poder nas relações desequilibradas entre o médico e o paciente, porque
o próprio paciente está se fazendo ouvir, está produzindo outros espaços.
Certamente, a medicina terá de se abrir para novas experiências em que não será o
saber hegemônico sobre a existência das pessoas. Estão surgindo outros domínios
técnicos, robóticos, cibernéticos, sociais, coletivos, corporais que estão colocando a
medicina em cheque. Se a atualidade demanda notavelmente que a medicina se
transforme, por que o retorno à NC, ao século XVIII? Acontece que, seguindo o
pensamento de Foucault, é preciso fazer a arqueologia da medicina moderna para
redescobrir as condições de possibilidade e a emergência do método clínico, cujos
traços ainda chegam à atualidade; é preciso mostrar sua historicidade, suas relações,
as circunstâncias que o produziram, suas fragilidades e limitações; é preciso mostrar
como os médicos vem sendo formados, quais discursos os constituem. E depois, na
vertigem da aceleração dos conhecimentos e da circulação brusca das informações,
é bom esperar que tudo se transforme, é bom perguntar o que se quer introduzir de
valioso para as pessoas nessa rede de saberes da atualidade.
147

REFERÊNCIAS

De Foucault

FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. 7e ed. Paris: Quadrige/PUF, 2007.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 6. ed.


Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Présentation de Pierre Macherey. Collection


Folio / Essais. Paris: Gallimard, 1963, pour le texte et 1992 pour la présentation.

FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Manoel Barros da Motta e Vera Lucia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.


Tradução de Salma Tannus Muchail. 9.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FOUCAULT, Michel. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves.


7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

FOUCAULT, Michel. La politique de la santé au XVIIIe siècle. In: Les machines à


guérir, aux origines de l´hôpital moderne. 2.ed. Bruxelles: Pierre Mardaga ed., 1979.

FOUCAULT, Michel. A política da saúde no século XVIII. In: Microfísica do poder.


Tradução de José Thomaz Brum Duarte. Organização, introdução e revisão técnica
de Roberto Machado. 26.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.

FOUCAULT, Michel. Le beau danger, entretien avec Claude Bonnefoy. Édition établie
et présentée par Philippe Artières. Paris: Éditions EHESS, 2011.

FOUCAULT, Michel. O olho do poder. In: Microfísica do poder. Tradução de Angela


Loureiro de Souza. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado.
26.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.

FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France


(1977-1978). Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessandro
Fontana, par Michel Senellart. Paris : Seuil/Gallimard, 2004.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de


France (1977-1978). Edição estabelecida por Michel Senellart sob a direção de
François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
148

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001.

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II, 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001.

FOUCAULT, Michel. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise.


Coleção Ditos e Escritos, vol. I. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Organização
de Manoel Barros da Motta. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FOUCAULT, Michel. Repensar a política. Coleção Ditos e Escritos, vol. VI. Tradução
de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Organização de Manoel Barros da Motta. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento.


Coleção Ditos e Escritos, vol. II. Tradução de Elisa Monteiro. Organização de Manoel
Barros da Motta. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e


Escritos, vol. III. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Organização de Manoel
Barros da Motta. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard,


2015. (Les mots et les choses)

FOUCAULT, Michel. Articles, préfaces, conférences. Oeuvres. Tome II. Bibliothèque


de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1258-80. (Qu’est-ce qu’un auteur?)

Sobre Foucault

CANGUILHEM, Georges. Mort de l’homme ou épuisement du Cogito? Critique, nº 242,


juillet, 1967. p.599-618. Republié dans Les mots e les choses de Michel Foucault.
Regards critiques 1966-1968, Caen, Presses universitaires de Caen – IMEC, 2009.
p.247-274.

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – um percurso sobre seus temas,


conceitos e autores. Tradução de Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2009.

COLOMBEL, Jeannette. Michel Foucault, la clarté de la mort. Paris: Editions Odile


Jacob, 1994.

DEFERT, Daniel. Chronologie. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975.


Paris: Quarto Gallimard, 2001.

DEFERT, Daniel. Foucault. Les derniers jours. Interview avec Eric Favereau.
Libération, Paris, 19 nov. 2004. Culture, Livres. Disponível em:
149

http://www.liberation.fr/li vres/2004/06/19/les-derniers-jours_483626. Acesso em: 05


nov. 2014.

DELAPORTE, François. Foucault, l’histoire et l’épistémologie. In: L’Herne – Foucault.


Cahier dirigé par Philippe Artières, Jean-François Bert, Frédéric Gros, Judith Revel.
Paris: L’Herne, 2011. p.335-41.
DELAPORTE, François. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique: une
archéologie du regard médical. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris:
Gallimard, 2015.p.1513-25.

DELAPORTE, François. Note sur le texte. In: FOUCAULT, Michel. Naissance de la


clinique: une archéologie du regard médical. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la
Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1526-8.

ERIBON, Didier. Michel Foucault. 2.ed. Paris: Flammarion: 1991.

ERIBON, Didier. Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo:


Companhia das Letras, 1990.

GOLSE, Anne. De la médecine de la maladie a la médecine de la santé. In : Michel


Foucault et la médecine, lectures et usages. Sous la direction de Philipe Artières et
Emmanuel da Silva. Paris: Éditions Kimé, 2001.

GROS, Frédéric et al. Foucault: a coragem da verdade. Tradução de Marcos


Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

LECOURT, Dominique. Marxism and epistemology, Bachelard, Canguilhem and


Foucault. Translated from French by Ben Brewster. London: NLB, 1975.

LINDON, Mathieu. O que amar quer dizer. Tradução de Marília Garcia. São Paulo:
Cosac Naify, 2014.

MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2009.

PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le


Télémaque, n. 48, novembre 2015, p.15-30.

PALTRINIERI, Luca. L’équivoque biopolitique. Chimères 2010/3, nº 74.p.153-166.


Disponível em: doi: 10.3917/chime.074.0153. Acesso em: 28 fev. 18.

PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de


Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.

SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome
I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1552-62.

VANDEWALLE, Bernard. Michel Foucault – Savoir et pouvoir de la médecine. Paris:


L’Harmattan, 2006.
150

VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques
de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

Outros autores

BOSCH, Gundula. Train PhD students to be thinkers not just specialists. Nature 554,
277 (2018). Disponível em: doi: 10.1038/d41586-018-01853-1. Acesso em: 22 fev. 18.

CABANIS, P. J. G. Rapports du physique et du moral de l’homme. Tome premier.


Paris: Charpentier, 1855.

CANGUILHEM, Georges. Cabanis, Pierre-Jean-Georges. In: Complete Dictionary of


Scientific Biography. 2008. Consultado em: encyclopedia.com. 14 oct 2014.

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Tradução de Maria Thereza Redig


de Carvalho Barrocas. Revisão técnica de Manoel Barros da Motta. 6.ed.rev. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.

GILLISPIE, Charles C. et al., Laplace, Pierre-Simon. In: Dicionário de biografias


científicas. Edição brasileira por César Benjamin. Tradução de Armando Celso
Fabriani et al. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007. v.2, p.1431-1535.

PINEL, Philippe. Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania.


Tradução de Joice Armani Galli. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

Potrebbero piacerti anche