Sei sulla pagina 1di 806

i

XI International Bakhtin Conference


Curitiba, Brasil
2003

Proceedings XI International Bakhtin Conference ii


Proceedings of the Eleventh
International Bakhtin Conference
Universidade Federal do Paraná
Curitiba, Paraná, Brasil, July, 21-25, 2003

Edited by
Editado por

Carlos Alberto Faraco


Universidade Federal do Paraná
Brasil

Gilberto de Castro
Universidade Federal do Paraná
Brasil

Luiz Ernesto Merkle


Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná
Brasil

Organization
Organização

Universidade Federal do Paraná


Setor de Educação
Setor de Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Letras

Sponsored by
Financiada por

Proceedings XI International Bakhtin Conference iii


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
BIBLIOTECA CENTRAL
COORD. DE PROCESSOS TÉCNICOS
FICHA CATALOGRÁFICA
International Bakhtin Conference(11.: 2003 : Curitiba, PR, Brazil).
I61 Proceedings of the / Eleventh International Bakhtin Conference =
XI Conferência Internacional sobre Bakhtin, Curitiba, July 21-25,
2003; edited by Carlos Alberto Faraco, Gilberto de Castro, Luiz
Ernesto Merkle; organization Universidade Federal do Paraná .—
Curitiba : [s.n.], 2004.
xiv, 806p.

Em CD-ROM
Inclui bibliografia e notas bibliográficas

1. Bakhtin, M.M.(Mikhail Mikhailovich), 1895-1975 – Crítica e Interpre-


tação. 2. Linguagem – Filosofia. 3. Literatura – Estética. 4. Educação.
I.Faraco, Carlos Alberto. II. Castro, Gilberto de. III. Merkle, Luiz
Ernesto. IV. Universidade Federal do Paraná. V. Centro Federal de Edu-
cação Tecnológica do Paraná. VI. Título. Conferência Internacional sobre
Bakhtin(11.: 2003 : Curitiba, PR).
CDD 20.ed. 801..95
CDU 1976 882.09
Samira Elias Simões CRB-9 / 755

Proceedings XI International Bakhtin Conference iv


Dedicated to

M.-Pierrette Malcuzynski
In memoriam

Proceedings XI International Bakhtin Conference v


Preface
Prefácio1

The International Bakhtin Conference has met every two years since 1983. Its main objective is the
presentation and discussion of advanced research works dealing with the ideas of the Bakhtin Circle.
The XI Conference - the first to take place in the Southern Hemisphere - was held in Curitiba (Brasil),
at the Colégio Estadual do Paraná, from July 21 to 25, 2003.
These Proceedings include the texts of the five plenary sessions of the XI Conference, as well as the
individual papers read at the XI Conference and sent to the Organizing Committee for publication.

The Editors

1
A Conferência Internacional sobre Bakhtin vem sendo realizada a cada dois anos desde 1983, sendo esta a primeira vez no Hemisfério Sul. Seu
principal objetivo é a divulgação e o debate de trabalhos de pesquisa inspirados nas obras do Círculo de Bakhtin. A XI Conferência foi realizada em Curitiba
(Brasil), no Colégio Estadual do Paraná, de 21 a 25 de julho de 2003. Estas Atas incluem os textos das cinco sessões plenárias e de comunicações individuais
apresentadas na XI Conferência e enviadas ao Comitê de Organização para publicação.

Proceedings XI International Bakhtin Conference vi


Contents
Sumário

Plenary Sessions
Sessões Plenárias

BEZERRA, Paulo (Univ. Federal Fluminense – Brasil)


Dialogismo e polifonia em Esaú e Jacó de Machado de Assis e O Duplo de
Dostoievski........................................................................................................ 2-9

BUBNOVA, Tatiana (Univ. Nacional Autónoma de México – México)


Bajtín y la antropología americana ....................................................................... 10-21

JOBIM E SOUZA, Solange (Pont. Univ. Católica do Rio de Janeiro – Brasil)


Dialogismo e alteridade na utilização da imagem técnica na pesquisa em ciências
humanas: questões éticas e metodológicas ........................................................... 22-27

PANKOV, Nikolai (St. Univ. M.V.Lomonosov Moscow – Russia)


The Kerch terra–cottas and the problem of antic realism: Mikhail Bakhtin´s
“Rabelais” in the context of Russian science of the late 19th & early 20th centuries
....................................................................................................................... 28-35

ПАНЬКОВ, Н.А.
Керченские терракоты и проблема античного реализма: «Рабле» М.М.Бахтина
в контексте русской науки конца XIX — первой половины ХХ вв. .......................... 36-48

TEZZA, Cristovão (Univ. Federal do Paraná – Brasil)


Sobre a autoridade poética .................................................................................. 49-57

Presentations
Comunicações

–A–

ALCÁZAR, Jorge (Univ. Nacional Autónoma de México – México)


El papel de la sátira menipea en la evolución de la novela ....................................... 59-64

ALEJOS GARCIA, José (Univ. Nacional Autónoma de México – México)


Bajtín en la cuestión antropológica de la identidad .................................................. 65-69

ALVARADO, Ramón (Univ. Autónoma Metropolitana, Xochimilco – México)


Relecturas de Bajtín: las culturas de los pueblos en un mundo unipolar ..................... 70-72

AMORIM, Marilia (Univ. de Paris 8 – France)


Ato versus objetivação e outras oposições fundamentais no pensamento
bakhtiniano ...................................................................................................... 73-76

AMORIM, Marilia (Univ. de Paris 8 – France)


Silêncio e voz – duas ocorrências de alteridade no texto de pesquisa em Ciências
Humanas e Sociais ............................................................................................ 77-80

ARAÚJO, Antonia Dilamar (Univ. Estadual do Ceará – Brasil)


Dialogismo e interação no texto acadêmico – investigando estratégias discursivas ...... 81-88

ATHAYDE JR., Mário Cândido de (Univ. Estadual do Oeste do Paraná –


Brasil)
Vozes em perguntas de professor ........................................................................ 89-98

Proceedings XI International Bakhtin Conference vii


–B–

BAREI, Silvia (Univ. Nacional de Córdoba – Argentina)


Bajtín y las metaforas de la vida cotidiana ............................................................. 99-105

BERNARDI, Rosse Marye (Univ. Federal do Paraná – Brasil)


Um olhar sobre a intemporalidade da tragédia ....................................................... 106-110

BETARESSI, Selma R. (Univ. Presbiteriana Mackenzie – Brasil) &


BUSQUETS, Vera Lúcia (Univ. Presbiteriana Mackenzie – Brasil)
Mídia: diálogo de vozes ...................................................................................... 111-113

BEVILAQUA, Ceres Helena Z. (Univ. Federal de Santa Maria – Brasil)


A polifonia e o dialogismo em “Perdidos e Achados” ................................................ 114-118

BEZERRA, Cláudio Roberto de A. (Univ. Católica de Pernambuco – Brasil)


Bakhtin e a estética audiovisual contemporânea ..................................................... 119-125

BORSTEL, Clarice Nadir von (Univ. Estadual do Oeste do Paraná– Brasil)


Situações enunciativas, gêneros e inferências lingüísticas ........................................ 126-133

BOTTEGA, Rita (Univ. Estadual do Oeste do Paraná – Brasil)


O aluno leitor em sala de aula ............................................................................. 134-137

BRAIT, Beth (LAEL – PUC/SP – USP – Brasil)


Estilo, dialogismo e autoria: identidade e alteridade ............................................... 138-144

BRANDIST, Craig (University of Sheffield – UK)


Bakhtin, Marrism and the Sociolinguistics of the Cultural Revolution ......................... 145-153

BROCKI, Marcin (Univ. of Wroclaw – Poland)


Dialog against dialogism in Anthropology .............................................................. 154-158

–C–

CASTRO, Gilberto de (Univ. Federal do Paraná – Brasil)


Discurso: Algumas aproximações entre o pensamento de Michel Foucault e o
Círculo de Bakhtin ............................................................................................. 159-164

CASTRO, Maria Lília Dias de (Univ. do Vale do Rio dos Sinos – Brasil)
Publicidade de humor: a confluência de vozes ........................................................ 165-171

CATTELAN, João Carlos (Univ. Estadual do Oeste do Paraná – Brasil)


O carnaval, o caos e a cultura: e o espelho prega uma das suas ............................... 172-180

CAZARIN, Ercilia Ana (Univ. de Ijuí – Brasil)


Da polifonia de Bakhtin à heterogeneidade discursiva na Análise do Discurso ............. 181-186

CELLA, Susana (Univ. de Buenos Aires – Argentina)


La concreción de la imagen ................................................................................. 187-190

COBIÁN FIGEROUX, Ricardo (Univ. de Puerto Rico – Puerto Rico)


La construcción de lo nacional–proletario como ficción literaria o la palavra como
espejo de uma poesia secuestrada ....................................................................... 191-196

CÔCO, Valdete (i) (Univ. Federal Fluminense – Brasil)


A aproximação do pensamento de Bakhtin na análise da dimensão formadora das
práticas em escrita de professores ....................................................................... 197-205

Proceedings XI International Bakhtin Conference viii


CÔCO, Valdete (ii) (Univ. Federal Fluminense – Brasil)
Uma possibilidade de diálogo entre Bakhtin, Castoriadis e Certeau a partir da
mediação da concepção de sujeito ....................................................................... 206-214

COITO, Roselene de Fátima (Univ. Estadual do Oeste do Paraná – Brasil)


Vozes da crítica: Clarice Lispector sob a égide da incompreensão ............................. 215-223

COSTA, Lígia Militz da (Univ. de Cruz Alta – Brasil)


O Clube do Picadinho feito picadinho: a paródia na ficção de Luís Fernando
Veríssimo ......................................................................................................... 224-228

CRUZ, Antonio Donizeti da (Univ. Estadual do Oeste do Paraná – Brasil)


Confluências de vozes na lírica de Helena Kolody e Lila Ripoll ................................... 229-238

CUNHA, Dóris de Arruda C. da (Univ. Federal de Pernambuco – Brasil)


O discurso de outrem nos estudos da linguagem pós–bakhtinianos ........................... 239-243

–D–

DISCINI, Norma (Univ. de São Paulo – Brasil)


Estilo: dialogismo mostrado ................................................................................ 244-250

–E–

EGÜEZ, Renata (Univ. of Maryland – USA)


El señor Presidente a la luz de la estética del grotesco: la ambivalencia del mundo
al revés o: a visão bakhtiniana da expressividade .................................................. 251-255

–F–

FANINI, Angela M. Rubel (Centro Federal de Ed. Tecnológica do Paraná –


Brasil)
O romance–folhetim de Aluisio Azevedo sob a perspectiva bakhtiniana ...................... 256-260

FARACO, Carlos Alberto (Univ. Federal do Paraná – Brasil)


Voloshinov – um coração humboldtiano? ............................................................... 261-264

FEITOSA, Rosane G. Alves (Univ. Estadual Paulista – UNESP/Assis –


Brasil)
Questões de tempo–espaço (cronotopo) em Eça de Queiroz ..................................... 265-271

FERREIRA–LIMA, Wagner (Univ. Estadual de Londrina – Brasil)


Bakhtin e construcionismo social: crítica e construção da subjetividade na era
pós–moderna .................................................................................................... 272-278

FORTES, Rita Felix (Univ. Estadual do Oeste do Paraná – Brasil)


A polifonia narrativa e o grotesco em Crônica da casa assassinada ........................... 279-285

FREITAS, Ana Paula de (Univ. Metodista de Piracicaba – Brasil) &


CAMARGO, Evani Amaral (Univ. Metodista de Piracicaba – Brasil) &
MONTEIRO, Maria Inês Bacellar (Univ. Metodista de Piracicaba – Brasil)
Relações dialógicas em um grupo de jovens com deficiência mental .......................... 286-290

FREITAS, Maria Teresa de Assunção (Univ. Federal de Juiz de Fora –


Brasil)
A pesquisa nas ciências humanas: um encontro entre sujeitos ................................. 291-298

FURTADO, Magda Medeiros (Colégio D. Pedro II – RJ – Brasil)


Teoria e prática dialógica da leitura por Mikhail Bakhtin ........................................... 299-304

Proceedings XI International Bakhtin Conference ix


–G–

GALEMBECK, Paulo de Tarso (Univ. Estadual de Londrina – Brasil)


Marcas de subjetividade e intersubjetividade na linguagem jornalística falada ............ 305-313

GALINDO, Caetano W. (Univ. Federal do Paraná – Brasil)


Stephen Dedalus relê o fim do Marxismo .............................................................. 314-322

GASPARINI, Pablo Fernando (Univ. de São Paulo – Brasil)


Dialogismo, autoficción y autenticidad: sobre Bakhtin y Gombrowicz ......................... 323-326

GOMES–SANTOS, Sandoval N. (Univ. Estadual de Campinas – Brasil)


O pensamento bakhtiniano no debate brasileiro sobre o conceito de gênero
discursivo ......................................................................................................... 327-343

GRIGOLETTO, Evandra (Universidade Federal do Rio Grande do Sul -


Brasil)
Da homogeneidade à heterogeneidade discursiva: reflexões sobre o
funcionamento do discurso outro. ......................................................................... 344-350

GRIJÓ, Andréa Antolini (Univ. Federal do Espírito Santo – Brasil)


Gêneros discursivos e livro didático: uma relação possível ....................................... 351-357

GRILLO, Sheila Vieira de C. (Univ. São Francisco – Brasil)


O dialogismo constitutivo da divulgação científica ................................................... 358-365

GRUENGLAS, Jeffrey (Brooklin College – CUNY – USA)


The irresolution of language: indetermination in the short stories of Raymond
Carver ............................................................................................................. 366-370

GUIMARÃES, Lealis Conceição (UNESP/Assis – UNOPAR/Londrina –


Brasil)
Jogo dialógico e carnavalização nas crônicas de Moacyr Scliar .................................. 371-376

–H–

HAJDUKOWSKI–AHMED, Maroussia (McMaster University – Canada)


Bakhtin as a journey´s unsuspecting companion to feminist critics: gender and
the Conference itinerary ..................................................................................... 377-386

HERRICK, Tim (Bakhtin Center – Univ. of Sheffield – UK)


Phenomenologies of language in Bakhtin and Merleau–Ponty ................................... 387-392

HIRSCHKOP, Ken (Univ. of Manchester – UK)


The sacred and the everyday: attitudes to language in Bakhtin, Benjamin, Buber
and Wittgenstein ............................................................................................... 393-399

HITCHCOCK, Peter (City University of New York – USA)


Dialogical dialetics: Bakhtin, Zizek and the concept of ideology ................................ 400-403

–I–

INDURSKY, Freda (Univ. Federal do Rio Grande do Sul – Brasil)


A ideologia em Bakhtin e Pêcheux ........................................................................ 404-409

Proceedings XI International Bakhtin Conference x


–J–

JACINSKI, Edson. (Centro Federal de Ed. Tecnológica do Paraná – Brasil)


Uma abordagem educacional dialógica das tecnologias da comunicação e da
informação ....................................................................................................... 410-420

JAVORNIK, Miha (Faculty of Arts – Ljubljana – Slovenia)


How to understand processes in 20th century culture (and which important facts
can we learn about it from the reflections of M. Bakhtin) ......................................... 421-427

JORGE, Marilei (Univ. Presbiteriana Mackenzie – Brasil)


A observação do dialogismo nos processos de tradução ........................................... 428-432

–K–

KARAGEORGOU–BASTEA, Christina (Vanderbilt Univ. – USA)


Cantando desde la entraña: Bakhtin, Zubini, Lorca (la estética lírica del antílogo) ....... 433-438

KENNEDY, Brian (Pasadena City College – USA)


Henry James´s The Spoils of Poynton and the language of the everyday ................... 439-443

KRAMER, Sonia (Pont. Univ. Católica do Rio de Janeiro – Brasil)


Sacode, desacomoda, puxa: o conceito de ambivalência dialética e as concepções
de mudança em educação ................................................................................... 444-453

–L–

LAFALCE, Luiz Camilo (Univ. Presbiteriana Mackenzie – Brasil)


Ironia e polifonia em “Sweet Home”, de Carlos Drummond de Andrade ..................... 454-457

LÄHTEENMÄKI, Mika (Univ.of Jyväskylä – Finland)


On Voloshinov´s critique of Saussure ................................................................... 458-465

LENZ, Vera Lúcia (Univ. Federal de Santa Maria – Brasil)


Entre a irreverência e a seriedade: o espaço sem fronteiras de As I Lay Dying ............ 466-469

LESSA, Giane da Silva M. (Univ. Federal do Rio de Janeiro – Brasil)


“Lá na América Latina...” – uma reflexão sobre as identidades culturais na sala de
aula de espanhol LE ........................................................................................... 470-480

LOTTERMANN, Clarice (Univ. Estadual do Oeste do Paraná – Brasil)


O realismo grotesco em Memórias póstumas de Brás Cubas ..................................... 481-488

–M–

MACIEL, Carmen Teresinha Baumgärtner (Univ. Estadual do Oeste do


Paraná – Brasil)
Identidade do professor PLM: uma profusão de vozes ............................................. 489-494

MELLO, Claudio José de A. (UNESP – Brasil)


O Catatau na tradição literária latino–americana .................................................... 495-499

MERKLE, Luiz Ernesto (Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná


– Brasil)
Computing in Circles: some issues concerning dialogism and informatics ................... 500-510

MUNGUIA ZATARAIN, Martha E. (Univ. Autónoma del Estado de Morelos –


México)
El burdel en la literatura latinoamericana .............................................................. 511-516

Proceedings XI International Bakhtin Conference xi


–N–

NIEDZIELUK, Luzinete Carpin (Univ. Federal de Santa Catarina – Brasil)


Um olhar sobre os gêneros do discurso em livro(s) didático(s) para o Ensino Médio
....................................................................................................................... 517-525

–O–

OLIVEIRA, Maria Bernadete Fernandes de (Univ. Federal do Rio Grande do


Norte – Brasil)
Dialogismo e pedagogia: um encontro com Bakhtin ................................................ 526-529

OLIVEIRA, Maria do Socorro (Univ. Federal do Rio Grande do Norte –


Brasil)
Escrita e autoria entre dois pontos: subjetividade e alteridade ................................. 530-534

–P–

PEEREN, Esther (Univ. of Amsterdam – The Netherlands)


Bakhtin´s excessive eyes: looking, gazing and seeing into “Real me” ........................ 535-542

PERFEITO, Alba (Univ. Estadual de Londrina – Brasil)


Dialogia, escrita e subjetividade .......................................................................... 543-551

PICANÇO, Deise C. de Lima (Univ. Federal do Paraná – Brasil)


As fronteiras do eu na construção da memória: uma extensão de O autor e o
herói, de M. Bakhtin, à teoria da história ............................................................... 552-557

PIRES, Vera Lúcia (Univ. Federal de Santa Maria – Brasil)


Bakhtin e Benveniste ......................................................................................... 558-562

PIRES, Vera Lúcia (Univ. Federal de Santa Maria – Brasil)


Dialogismo e enunciação em Bakhtin .................................................................... 563-566

Попова, И.Л. (POPOVA, Irina, IMLI – Institute of World Literature –


Russia)
«РАБЛЕ» В 1940-е ГОДЫ: НЕСОСТОЯВШИЕСЯ ИЗДАНИЯ В СССР И ФРАНЦИИ ........... 567-574

–Q–

QUELUZ, Gilson Leandro (Centro Federal de Ed. Tecnológica do Paraná –


Brasil)
Utopia e ironia em Menotti Del Picchia .................................................................. 575-581

QUELUZ, Marilda Lopes Pinheiro (Centro Federal de Ed. Tecnológica do


Paraná – Brasil)
Traços urbanos: o avesso da cidade nas charges de Herônio ..................................... 582-588

–R–

RADUNOVIC, Dusan (Institute of Serbian Culture – Serbia)


Bakhtin´s Prima Philosophia or, Paradise Regained ................................................. 589-593

RIBEIRO, Luiz Filipe M. de Souza (Univ. Federal Fluminense – Brasil)


Literatura, Discurso, Sociedade ........................................................................... 594-599

RODRIGUES, Rosângela Hammes (Univ. Federal de Santa Catarina –


Brasil)
A constituição e o funcionamento do gênero jornalístico artigo: cronotopo e
dialogismo ........................................................................................................ 600-625

Proceedings XI International Bakhtin Conference xii


ROJO, Roxane Helena R. (Pont. Univ. Católica de São Paulo – Brasil)
From heteroglossia and multilinguism to authoritative discourse: a discursive
approach to classroom interactions as speech genres .............................................. 626-632

–S–

SÁ, Maria da Piedade Moreira de (Univ. Federal de Pernambuco – Brasil)


Bakhtin vs Formalistas russos; contrastes e confrontos ........................................... 633-639

SALCEDO, Maria Teresa (Inst. Colombiano de Antropologia e Historia –


Colombia)
El cronotopo del encuentr y los espacios urbanos de la transgresión en Colombia:
uma perspectiva ética desde la obra de Bakhtin, Levinas y Benjamin ........................ 640-649

SALOMÃO, Simone Rocha (Univ. Federal Fluminense – Brasil) & SOUZA,


Maria Georgina. (Rede Municipal de Ensino – Macaé/RJ – Brasil)
Histórias de insetos: aproximações entre gêneros de fala ........................................ 650-656

SAMPAIO, Maria Cristina Hennes. (Univ. Federal de Pernambuco – Brasil)


Dialogismo e construção do sentido: práticas discursivas entre Estado e Sociedade
....................................................................................................................... 657-663

SOBRAL, Adail Ubirajara (LAEL – Pont. Univ. Católica de S. Paulo – Brasil)


Para uma aplicação do conceito de ato em Bakhtin ................................................. 664-666

SOURIS, Stephen (Texas Woman´s Univ. – USA)


From arid existencialism to spiritual affirmation: the dialogic dynamics of
repudiation in Flannery O´Connor´s Wise Blood ..................................................... 667-671

SOUZA, Geraldo Tadeu (Univ. de São Paulo – Brasil)


Por que não Metalingüística? ............................................................................... 672-682

STROPARO, Sandra (Univ. Federal do Paraná – Brasil)


De como um ouvidor virou o tartufo do governador Fanfarrão .................................. 683-689

–T–

TEIXEIRA, Terezinha Marlene Lopes (UNISINOS – Brasil)


O Outro no Um ................................................................................................. 690-794

TIHANOV, Galin (University of Lancaster – UK)


Hermeneutics and Sociology between Germany and Russia: implications for
understanding Bakhtin’s theory of culture and the novel .......................................... 695-703

TINOCO, Robson Coelho (Univ. de Brasilia – Brasil)


Literatura e ensino: proposta para uma leitura dialógica do mundo na (da) sala de
aula ................................................................................................................. 704-712

TONÁCIO, Glória de Melo (Colégio D. Pedro II – RJ – Brasil)


No discurso documental, a concepção dos gêneros discursivos como foco das
propostas curriculares de ensino da língua materna: os PCNs de Língua
Portuguesa e o Caderno Dois .............................................................................. 713-724

TORRES, Myriam (New México State University - Las Cruces)


Por que el dialogismo se opone radicalmente al positivismo: Las contribuciones de
Bajtin y Freire .................................................................................................... 725-728

TORRES, Myriam (New México State University - Las Cruces)


Why dialogism radically opposes positivism:Bakhtin's and Freire's contributions .......... 729-743

–U–

Proceedings XI International Bakhtin Conference xiii


–V–

ВАСИЛЬЕВ, Н.Л. (VASILIEV, Nikolai) (Saransky Gosudarstvenniy


Universitet g. Saransk – Rossia)
История вопроса об авторстве «спорных текстов» в российской бахтинистике
(М.М.Бахтин. и его соавторы) .......................................................................... 744-751

VENTURELLI, Paulo (Univ. Federal do Paraná – Brasil)


Literatura e homoerotismo: um diálogo produtivo – o caso Bom Crioulo .................. 752-759

VIEIRA, Marcos Moura (Univ. Federal de Mato Grosso – Brasil)


Reflexões sobre a esfera da atividade médica em consulta clínica ........................... 760-767

–W–

WALL, Anthony (University of Calgary – Canada)


For an aesthetic of Bakhtinian reception: evolution or permanent features? .............. 768-774

–X–

–Y–

YOKOTA–MURAKAMI, Takayuki (Osaka Univ. – Japan)


Bakhtin´s theory and dialogism and the problematic of identity politics ................... 775-777

–Z–

ZACCUR, Edwiges G. dos Santos (Univ. Federal Fluminense – Brasil)


A arché bakhtiniana: o dialogismo nas ciências humanas e sociais .......................... 778-784

ZANCHET, Maria Beatriz (Univ. Estadual do Oeste do Paraná – Brasil)


A sátira menipéia nos Casos de Romualdo ........................................................... 785-792

Proceedings XI International Bakhtin Conference xiv


Plenary Sessions
Sessões Plenárias
Dialogismo e polifonia em Esaú e Jacó

Paulo Bezerra

Universidade Federal Fluminense

O objetivo deste trabalho era desenvolver um estudo comparado da estrutura dialógica em Esaú e
Jacó de Machado de Assis e O duplo de Dostoiévski. Ao a adentrarmos a análise do primeiro sob a pers-
pectiva da teoria de Bakhtin, fomos percebendo que a análise comparada demandaria um espaço e um
tempo que iam além deste evento, e por isso nos concentramos no romance de Machado de Assis e nos
limitamos a alusões esporádicas a Dostoiévski quando assim o requeria a reflexão.
Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis, publicado pela primeira vez em 1904. Em-
bora a “Advertência” que precede à narrativa atribua sua autoria ao conselheiro Aires, este é referido em
terceira pessoa e em momento algum aparece como narrador, por maiores que sejam as semelhanças
entre o narrador e ele. Portanto, se Aires é apontado como autor e a narrativa se desenvolve em terceira
pessoa, como classificar Aires e o narrador do ponto de vista teórico?
Em Estética da criação verbal Bakhtin desenvolve as categorias estéticas de imagem de autor (óbraz
ávtora), autor primário (piervítchnii ávtor) e autor secundário (vtorítchnii ávtor). O autor como figura
real ou autor primário é aquele que cria a obra e cria também um autor secundário ou imagem de autor
(Bakhtin, 1979, p. 353). Esse autor primário não é uma individualidade propriamente dita, no sentido
comum do termo, que possamos apontar concretamente fora do que produziu; é um criador, dotado
de uma individualidade criadora “de ordem especial, não estética”, daquela “individualidade ativa” que
cria, vê e enforma; é diferente da “individualidade vista e enformada” que caracteriza o autor secundário
(Bakhtin, 1979, p. 180). Ele só se torna “individualidade propriamente dita” onde podemos atribuir-lhe o
mundo individual dos heróis por ele criado ou onde está parcialmente objetivado como narrador” (Bakhtin,
1979, p. 180), isto é, como natureza criada.
A imagem de autor é... uma imagem de tipo especial, diferente de outras imagens da obra,
mas é imagem, e tem o seu autor que a criou.

Portanto, em Esaú e Jacó Machado de Assis é o autor primário, aquela natureza criadora ou geradora
que cria outra natureza - a natureza criada ou gerada, isto é, o autor secundário ou imagem de autor.
Essa imagem de autor é representada por Aires, que por sua vez cria um narrador. Este, mesmo guar-
dando semelhanças com Aires, seu autor secundário, tem seu próprio estatuto estético de condutor da
narrativa e não pode ser visto senão como narrador. Conseqüentemente, a admissão de Aires como
autor secundário resolve, a nosso ver, o paradoxo de se atribuir a Aires a autoria do romance e vê-lo
referido em terceira pessoa.
A leitura que fazemos de Esaú e Jacó começa pela epígrafe de Dante, que antecede o título do primeiro
capítulo e, conseqüentemente, o início da própria narrativa.
Dico, Che quando l’anima mal nata...

Dante
As primeiras palavras registradas graficamente pelo narrador - a epígrafe de Dante - já nos colocam
diante de uma duplicidade discursivo- estrutural, quer pela presença de dois autores dialogicamente
intertextualizados - Dante, que inicia graficamente o texto, e o narrador, que narra segundo o espírito
dúplice da epígrafe do outro - quer pelo sentido que tal epígrafe encerra, ou seja, o da alma mal nascida,
aquela que, segundo a Bíblia, vem marcada pela desventura de haver transformado em mal o dom da
vida oferecido por Deus, aquela alma que fará conviverem em um mesmo ser os princípios do bem e do
mal e, assim, na qualidade de anjo caído, manter originariamente um pé no paraíso e outro no inferno.
Logo, o romance já começa introduzindo de fato o que eu chamo de liminaridade dialógica, isto é, uma
fronteira, um espaço quase-vazio a ser preenchido pelas diferentes vozes que aí se cruzam - Dante,
iniciando a narrativa, e o narrador introduzido por Aires que, por sua vez, é imagem de autor ou autor
secundário criado por Machado de Assis.
À epígrafe segue-se o primeiro capítulo - Cousas Futuras!, no qual passam a coexistir e dialogar as
fronteiras que separam os dois pólos opostos da estrutura social - o pólo de baixo, representado pela

Proceedings XI International Bakhtin Conference 2


Cabocla, e o pólo do alto, representado por Natividade e sua irmã Perpetua: estas são porta-vozes da
cultura e da ideologia oficial, enquanto a Cabocla, pela profissão de adivinha, é um modelo de lumpen
proletário, representa a cultura marginal e traz em sua constituição física a síntese do dualismo de ra-
ças, pois é mulher marcada pela ambigüidade racial - Cabocla, nem branca nem negra, logo, uma figura
liminar. Além desse dualismo racial, a Cabocla, por sua condição de oráculo, tem ainda a dualidade do
discurso, pois, como diz o narrador, “Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se”; dito
em termos bakhtinianos, todos os oráculos têm voz dupla, palavra bivocal, que pressupõe a presença do
outro. Logo, o falar “dobrado” da Cabocla pressupõe um “eu” falante, isto é, um “eu” para mim, e outro
“eu” para o outro, para o receptor, ou seja, para Natividade.
Se Natividade, dama burguesa, de formação religiosa católica, deixa o seu mundo definido e sério
e vai procurar resposta para as suas dúvidas no mundo de baixo, profano, assistemático, isto já nos
sugere que a cultura oficial, a despeito de toda a sua pretensão à auto-suficiência, não encontra em seu
próprio espaço a resposta para os seus problemas especificamente burgueses - a preocupação prema-
tura com o futuro dos filhos - e por essa razão vai procurar essa resposta na cultura popular, no outro.
Temos, pois, um cruzamento de vozes, de valores e pontos de vista de mundos diferentes que precisam
coexistir para resolver a expectativa de Natividade. Temos, ainda, a constatação de que a cultura bur-
guesa, ainda que envergonhada, tem de aceitar a existência e a presença do outro, do diferente, como
condição essencial de sua própria sobrevivência Essa vergonha, estribada num pretensioso complexo
de superioridade, numa resistência velada a aceitar o outro como uma espécie de duplo, faz Natividade
e Perpétua sentirem constrangimento e tentarem ocultar suas identidades reais ao subirem o morro,
escondendo-se do cocheiro e de eventuais conhecidos. Esse clima de constrangimento é, de fato, uma
situação de duplicidade, de ambivalência de atitudes e comportamento, de travestimento cultural e social,
propiciando, em suma, uma configuração de duplos na qual as personagens assumem a outra faceta que
faz delas duplos de universos culturais em relação de contigüidade. Como diz o narrador:
Tinham fé, mas tinham também vexame da opinião (grifo meu - P. B.) como um devoto que
se benze às escondidas (M. A., 1962, p.20).

Essa relação ambígua entre fé e vexame, que leva as personagens a se sentirem constrangidas por
estarem assumindo atitudes do universo do outro, mantém as duas no espaço da liminaridade dialógica
em que elas assumem o disfarce do “devoto que se benze às escondidas com vexame da opinião do
outro”. Como diz Bakhtin:
O homem não tem território interior soberano, ele está todo e sempre na fronteira, ao olhar
para dentro de si mesmo ele olha o outro nos olhos ou pelos olhos do outro (Bakhtin, 1979,
p. 312).

Numa primeira instância elas resistem à imagem do outro, temem situar-se nessa imagem e sofrer o
seu contágio, mas, numa segunda instância, o imperativo ideológico de antecipar o futuro dos filhos que,
em síntese, é o futuro da classe que elas ali representam, faz com que as duas aceitem a imagem e a
palavra do outro, apagando a fronteira que as separam provisoriamente e colocando-se na liminaridade
dialógica que aproxima os opostos, permitindo que eles se toquem, porque, com diz o narrador,
A verdade se ajusta à prioridade
e a prioridade é estabelecer que medidas tomar diante de uma eventual antecipação daquele futuro
e garantir que os filhos sejam os continuadores da tradição e do poder econômico e social da família. Mo-
vidas por essa prioridade que Natividade e Perpétua sobem o morro do Castelo e consultam a Cabocla.
Assim, o interesse de Natividade em descobrir o destino dos filhos se cruza com o interesse da
Cabocla em adivinhar, e esse cruzamento se dá no espaço da liminaridade em que se estabelece uma
relação dialógica de intercomplementaridade, na qual os opostos - o eu e o outro - não só se aproximam
e coexistem momentaneamente como são, ainda, indispensáveis um ao outro, uma vez que a existência
da adivinha está condicionada à existência de alguém que acredite na sua adivinhação.
Eis Natividade e a irmã na presença da Cabocla. Com a palavra o narrador.
Natividade não tirava os olhos dela, como se quisesse lê-la por dentro. E não foi sem grande
espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer.
- Brigado?
- Brigado, sim senhora.
- Antes de nascer?
- Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado no ventre de sua mãe; não se lembra?
Natividade, que não tivera a gestação sossegada, respondeu que efetivamente sentira movimentos
extraordinários, repetidos, e dores, e insônias... Mas então que era? Brigaram por quê? A Cabocla não
respondeu.
A pergunta da Cabocla coloca Natividade na liminaridade dialógica, e ela dá uma resposta vaga que
praticamente responde à pergunta da Cabocla: “não tivera uma gestão sossegada... sentira movimentos
extraordinários, repetidos”. A Cabocla se levanta, anda à volta da mesa, prolonga a ansiedade de Nati-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 3


vidade, e quando esta insiste na pergunta a Cabocla responde:
Cousas futuras!
À insistência de Natividade, que quer saber que tipo de “cousas futuras”, se bonitas, se feias, se os
filhos seriam grandes, a Cabocla pega na deixa, faz sua a palavra “grande” da outra e responde:
- Serão grandes, oh! Grandes!... Eles hão de subir, subir, subir... Brigaram no ventre de sua
mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo.
Quanto à qualidade da glória, cousas futuras!

Para Bakhtin, o processo dialógico é uma luta entre consciências, entre indivíduos, na qual a palavra
do outro abre uma fissura na consciência do ouvinte, penetra nela, entra em interação com ela e deixa
aí sua marca indelével. A Cabocla, com seu “falar dobrado”, lança três expressões - “brigaram no ventre
da mãe”, “serão grandes”, “cousas futuras” - que irão abrir essa fissura na consciência de Natividade e
uma delas lhe servirá de consolo sempre que os filhos brigarem de fato: “brigaram no ventre da mãe”.
Logo, as palavras da Cabocla não só marcarão toda a existência de Natividade após o diálogo com a
Cabocla como irão cruzar-se constantemente com as suas palavras nos momentos de dúvida e, através
delas, cruzar-se também com as palavras do seu mundo social e culturalmente elevado. Com as palavras
da Cabocla martelando em sua consciência, Natividade se torna uma correia de transmissão dessas pa-
lavras, a ponte entre o mundo socialmente baixo da Cabocla e Santos, seu marido, cujo comportamento
passam a determinar.
Santos, marido de Natividade, era espírita, além de burguês preconceituoso quando o assunto era
crendice ou religiosidade popular. Quando a mulher lhe comunica a intenção de consultar a Cabocla do
Castelo, famosa adivinha procurada por muita gente graúda do Rio de Janeiro da época, Santos argüiu
que isto seria “imitar as crendices da gente reles” (p.36). Ao voltar para casa depois de visitar a Cabocla,
Natividade lhe conta o resultado da visita e a predição de que os filhos “seriam grandes”. Santos gosta
da idéia de que venham a ser grandes, mas não vê lógica na afirmação de que seriam grandes porque
haviam brigado no ventre da mãe. “Natividade recorda os seus padecimentos do tempo de gestação”,
confessando que não falara mais deles ao marido para não afligi-lo; e era isso que a Cabocla havia adi-
vinhado como briga (44). Como se vê, Natividade invoca os tais “padecimentos do tempo da gestação”
para incorporar e justificar as palavras da Cabocla e assim confirmar que os filhos brigaram no ventre.
As palavras da Cabocla penetram na consciência de Natividade, abrem uma fissura nessa consciência
e passam a cruzar-se com suas próprias palavras, e assim Natividade satisfaz sua carência de saber o
futuro dos filhos e passa a acreditar piamente nele, isto é, incorpora como suas a palavra do outro, da
Cabocla. Santos considera as palavras da Cabocla opinião de “gente reles”, mas fica gostando da idéia
de que os filhos serão grandes, e seu interesse e envolvimento com as palavras da Cabocla aumentam à
medida que Natividade lhe narra o encontro e aquelas palavras. Ele está em dúvida e resolve consultar o
Dr. Plácido, seu amigo e mestre espírita. Antes, porém, Natividade o faz jurar que não pronunciará seu
nome na conversa com o Dr. Plácido nem dirá uma única palavra que possa insinuar que ela consultou
a Cabocla. Diz o narrador:
Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu, mas enfim cedeu e jurou. Entretan-
to, o pensamento não lhe saiu mais da briga uterina dos filhos. Jogou esta noite como de
costume; na seguinte, foi ao teatro; na outra a uma visita; e tornou ao voltarete de costume,
e a briga sempre com ele. Era um mistério. Talvez fosse um caso único... Único! Um caso
único! A singularidade do caso fê-lo agarrar-se mais à idéia, ou a idéia a ele; (45).

Portanto, as palavras da Cabocla cravam-se na consciência de Natividade, saem de sua boca e pene-
tram na consciência do marido, abrem nesta uma fissura e impelem Santos a desencadear um grande
diálogo com outros falantes, que incorporam ao diálogo outras instâncias discursivas. Aproveita uma
conversa com o Dr. Plácido e o conselheiro Aires para levantar a história da briga dos gêmeos no ventre
da mãe. Aires retruca que antes de nascer crianças não brigam. Santos volta à carga e usa um discurso
com fratura sintática típico do procedimento dialógico.
- Então nega que dois espíritos?... Essa cá me fica, conselheiro! Pois que impede que dous
espíritos?...

Nas reticências de Santos está lançada uma armadilha dialógica própria da polêmica aberta, que,
segundo Bakhtin, visa ao “discurso refutável do outro, que é seu objeto” (Bakhtin, 2002, p. 196). A per-
gunta de Santos tem o espírito do discurso duplamente orientado, que não só procura antecipar a réplica
do outro, Aires, como fazer com que essa réplica venha de encontro ao espírito da própria pergunta, que
já traz em si o germe da resposta. No espaço liminar que as reticências abrem para a palavra do outro,
Aires, como diz o narrador, “sente o abismo da controvérsia, entra no espírito duplamente orientado da
pergunta e acrescenta uma passagem do Gênesis:
Esaú e Jacó brigaram no seio materno, isso verdade. Conhece-se a causa do conflito.

Como se verifica, o exemplo aqui citado é um endosso à briga dos gêmeos e uma prova do envol-
vimento de Aires pela palavra do outro. O diálogo prossegue em torno da briga, isto é, da palavra da
Cabocla, vai envolvendo cada vez mais Aires, que passa da Bíblia ao alto saber filosófico para concluir

Proceedings XI International Bakhtin Conference 4


sua participação no diálogo com um endosso às palavras da Cabocla refratadas na consciência de Santos,
endosso esse que ele vai buscar em Empédocles: *
- Não importa; não esqueçamos o quer dizia um antigo, que “a guerra é a mãe de todas
as cousas”. Na minha opinião, Empédocles, referindo-se à guerra, não o fez só no sentido
técnico (1962, p. 50).

Aires se ausenta, Santos continua o diálogo com o Dr. Plácido, seu mestre em espiritismo, confessa-
lhe como fato real a briga dos filhos, diz que o fato seria raro, senão único, mas possível, e a escolha
dos nomes por Perpétua indicava alguma rivalidade porque esses dois apóstolos brigaram no ventre. O
Dr. Plácido abre a Bíblia e lê a Epístola de São Paulo aos Gálatas, na passagem do capítulo II, versículo
11, em que os apóstolos Pedro e Paulo brigam. Santos chama atenção para o número onze do versículo,
composto de dois algarismo iguais, 1 e 1, um número gêmeo, e o Dr. Plácido ainda acrescenta que se
trata do segundo capítulo, isto é, dois, que é o próprio número dos irmãos gêmeos.
Portanto, à medida que a narrativa avança novas vozes se incorporam à voz nuclear, em torno desse
núcleo vai-se criando uma tesssitura polifônica na qual a voz da Cabocla é a voz regente. A palavra da
Cabocla lança raízes, primeiro através de Natividade, depois de Santos, depois de Aires e do Dr. Plácido,
completando-se com a voz do alto discurso da Bíblia e do alto saber filosófico, tudo confluindo para um
ponto: a afirmação da voz da Cabocla, voz do submundo social, do outro, como voz dominante no templo
espírita e no salão da alta sociedade carioca. E o narrador sintetiza esse processo:
Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial, escondido, que ligava
tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de misté-
rio que eles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo;
não seriam os dois meninos os próprios espíritos de S. Pedro e S. Paulo, e ele, pai de dous
apóstolos?... Pai de apóstolos! E que apóstolos. Plácido esteve quase, quase a crer também,
achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se perdiam, mas
logo lhe acudia que S. Pedro e S. Paulo tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não
importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha
razão a Cabocla, sem saber o que dizia (M. A., 1960, p.53).

Como se vê, a palavra da Cabocla vai migrando de emissor para emissor, justapondo-se às suas pala-
vras, fundindo-se num só enunciado - brigaram no ventre e recebendo a sanção de uma multiplicidade de
vozes e formando um grande arranjo polifônico, que pode ser concluído com as palavras de Bakhtin:
O choque dialógico deslocou-se para o interior, para os mais sutis elementos estruturais do
discurso e ... para os elementos da consciência (Bakhtin, 2002, p.211).

As palavras da Cabocla criaram raízes tão fundas na consciência de Natividade que, no antepenúl-
timo capítulo, ela pronuncia suas últimas palavras no romance: “Cousas futuras!”, portanto, palavras da
Cabocla. No capítulo seguinte morre.
Em “Reformulação do livro sobre Dostoiévski”, um estudo notável escrito entre 1961 e 1962 e inte-
grante de Estética da criação verbal, Bakhtin rediscute Problemas da poética de Dostoiévski e aprofunda
uma série de questões deste livro, como o papel do autor e sua relação com as personagens no romance
polifônico, a representação da idéia em autodesenvolvimento, a configuração dialógica como forma espe-
cial de interação entre consciências isônomas e de igual significação. Entre outras coisas, chama atenção
seu enfoque do autor. Para Bakhtin o autor é como um Prometeu, “cria (ou melhor, recria) seres vivos
independentes de si mesmo, com os quais se coloca em relações de igualdade” (1979, p.309); o autor é
“um participante do diálogo (e seu organizador)” (1979, p. 322). E ele define sua concepção de autor:
O nosso ponto de vista não afirma, em hipótese alguma, uma certa passividade do autor,
que apenas montaria os pontos de vista alheios. A questão não está aí...mas na relação de
reciprocidade inteiramente nova e especial entre a minha verdade e a verdade do outro. O
autor é profundamente ativo, mas o seu ativismo tem um caráter dialógico especial. Uma
coisa é o ativismo (aktívnost) em relação a um objeto morto, a um material mudo, que se
pode modelar e formar ao bel-prazer, outra coisa é o ativismo em relação à consciência viva
e isônoma do outro. Esse ativismo que interroga, provoca, responde, concorda, discorda,
etc., ou seja, esse ativismo dialógico não é menos ativo que o ativismo que conclui, coisifica,
explica por via causal, torna inanimada e abafa a voz do outro com argumentos desprovidos
de sentido (1979, p.310).

No capítulo de Esaú e Jacó “A epígrafe”, o narrador trata essa questão de uma forma que nos permite
aproximá-lo de alguns aspectos da reflexão bakhtiniana. Vejamos.
Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu quisesse pôr alguma, e não me ocorresse
outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias

* Segundo nota da editora, Astrogildo Pereira corrige Machado de Assis, afirmando que a sentença “A guerra é
a mãe de todas as ciusas” não é de Empedocles, filósofo siciliano do V século a. C., mas de Heráclito, filósofo grego
(576-480 a. C).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 5


que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for
menos claro ou totalmente escuro.
Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela,
ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre
o enxadrista e os seus trebelhos. (M. A., 1962, p. 49).

Temos aí um narrador se assumindo como autor participante não só do diálogo interno da obra, mas
do grande dialogismo da literatura como sistema universal, pois trata especificamente da epígrafe de
Dante que inicia de fato o romance e a partir de cujo espírito dual se constrói a narrativa. Trata-se de
uma epígrafe de dupla função: uma ligada à construção, outra, à recepção e/ou interpretação. Ligada à
construção porque visa a “completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem”, isto é, com
as idéias do outro, de Dante, em quem eu, autor, me vejo, com cujas idéias interajo e dialogo; ligada à
interpretação por ser esse “par de lunetas” que permitirá ao leitor penetrar nos meandros da narrativa
e a ler da perspectiva da interação das vozes da epígrafe e do texto machadiano.
Por outro lado, esse autor-Prometeu, que cria “seres independentes” dele, autor, e “com os quais se
coloca em relações de igualdade”, esse autor “participante do diálogo” insere as personagens nessa dis-
tribuição machadiana do trabalho de construção da narrativa em colaboração com o autor, ajudando-o por
uma “lei de solidariedade”, interagindo com ele como seres independentes e em pé de igualdade nessa
“troca de serviços entre o enxadrista e seus trebelhos”. Ora, essa relação entre autor e personagens,
na qual as personagens não só dialogam, discutem com o autor, mas até resistem e inclusive podem
rebelar-se contra ele, pois bem, essa relação Bakhtin a situa no romance polifônico de Dostoiévski. No
entanto, encontramos algo muito semelhante nessa passagem do Esaú e Jacó. Mas as semelhanças no
processo compositivo entre os dois romancistas não se limitam ao que acabamos de expor.
Em Problemas da poética de Dostoievski Bakhtin define a polifonia como “multiplicidade de vozes e
consciências independentes e imiscíveis...” e reitera, referindo-se especificamente a Dostoiévski, que
essas personagens e suas vozes não são meros objetos do discurso do autor, mas “os próprios sujeitos
desse discurso” (Bakhtin, 2002, p.4), do qual participam mantendo cada uma a sua individualidade ca-
racterológica, a sua imiscibilidade. E reitera mais de uma vez essa imiscibilidade.
Depois de definir o processo compositivo como “troca de serviços entre o enxadrista e seus trebelhos”,
o narrador machadiano acrescente:
Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o
cavalo possa fazer de torre, nem a torre de peão. Há ainda a diferença da cor, bran-
ca e preta, mas esta não tira o poder da marcha de cada peça, e afinal umas e outras
podem ganhar a partida, e assim vai o mundo” (M. A., 1961, p. 49).

Estão aí características muito semelhantes àquelas que Bakhtin aponta no romance polifônico: as
personagens participam da história, interagem com o autor, que é um regente, não interfere nas vozes
nem as controla, deixa que elas se cruzem e interajam, que participem do diálogo em pé de igualdade
contanto que permaneçam imiscíveis; cada personagem mantém sua individualidade marcada pelo papel
que desempenha, o rei, a dama, o bispo, o cavalo e a torre participam do grande diálogo mas mantêm
cada um a sua “cor, branca ou preta”, lutando entre si pela prevalência da sua voz sem prejuízo para
o processo dialógico.
Outro bloco dialógico em Esaú e Jacó é constituído pela história de Batista e Dona Cláudia. Aí o
narrador machadiano coloca uma questão central da nossa história: o relativismo político que marca a
alternância entre liberais e conservadores no poder e a passagem do Império à República, servindo isso
como pano-de-fundo em que se dará o diálogo entre Batista e sua mulher Dona Cláudia. Batista é um
ex-presidente de província durante o governo conservador e membro do Partido Conservador. Tem uma
folha de serviços prestados aos conservadores que inclui cerco de igrejas, uso constante da polícia para
perseguir adversários políticos a pedido de amigos, processos infundados contra pessoas e prisões sem
processo, além de duas mortes. Os liberais sobem ao poder, e o Batista, conservador de ontem, fica
inicialmente deslocado, mas numa zona em que as vozes conservadoras e liberais irão cruzar-se e lhe
permitir atravessar o Rubicão. O narrador assim descreve a mudança política no capítulo São Mateus:
Se há muito riso quando um partido sobe, também há muita lágrima do outro que desce,
e do riso e da lágrima se faz o primeiro dia da situação, como no Gênesis... Os liberais fo-
ram chamados ao poder, que os conservadores tiveram de deixar. Não é mister dizer que o
abatimento de Batista foi enorme (M.A., 1962, p. 104).

Nessa síntese do ontem com o hoje, verifica-se um continuísmo travestido de novidade, no qual o
discurso de Dona Cláudia, com antecipação da réplica de Batista, ocorre como algo absolutamente natu-
ral, porque histórica, política e ideologicamente motivado. Na ausência de radicalismo político no plano
histórico real, seria irreal o radicalismo político no plano dos discursos, das vozes, dos diálogos. Daí o
andamento dos diálogos conduzir gradualmente para uma confluência de pontos de vista, a despeito de
toda a luta que se desenvolve entre as vozes de D. Cláudia e Batista. Como se estivesse se referindo à
própria história de sua época, o narrador descreve o casal como duplos entre si.
Este casal só não era igual na vontade: as idéias eram muitas vezes tais que, se aparecessem

Proceedings XI International Bakhtin Conference 6


cá fora, ninguém diria quais eram as dele, nem quais as dela, pareciam vir de um cérebro
único (1962, p. 105).

Dentro desse espaço de relativismo e liminaridade dialógica, trava-se o diálogo entre os dois, no qual
a voz de D. Cláudia irá penetrar na consciência de Batista e deixar aí marcas profundas. Constatando
que os conservadores tão cedo não voltarão ao poder, D. Cláudia pergunta a Batista o que ele ainda
espera dos conservadores:
- Espero que subam.
- Que subam? Espera oito ou dez anos, o fim do século, não é? E nessa ocasião você sabe
se será aproveitado? Quem se lembrará de você?
- Posso fundar um jornal.
- Deixe de jornais. E se morrer?
- Morro no meu posto de honra.
D. Cláudia olhou fixa para ele. E os seus olhos miúdos enterravam-se pelos dele abaixo,
como duas verrumas pacientes. Súbito, levantando as mãos abertas:
- Batista, você nunca foi conservador!
O marido empalideceu e recuou, como se ouvira a própria ingratidão de um partido. Nunca
fora conservador? Mas que era ele então, que podia ser neste mundo? Que é que lhe dava a
estima dos seus chefes? Não lhe faltava mais nada... D. Cláudia não atendeu a explicações;
repetiu-lhe as palavras, e acrescentou:
- Você estava com eles, como a gente está num baile, onde não é preciso ter as mesmas
idéias para dançar a mesma quadrilha...
- Sim, mas não se dança com idéias, dança com pernas.
- Dance com o que for, a verdade é que todas as suas idéias iam para os liberais; lembre-se
de que os dissidentes na província acusava você de apoiar os liberais...
- Era falso; o governo é que me recomendava moderação. Posso mostrar cartas.
- Qual moderação! Você é liberal.
- Eu, liberal?
- Um liberalão, nunca foi outra cousa.
- Pense no que diz, Cláudia. Se alguém ouvir é capaz de crer, e daí espalhar...
- Que tem que espalhe? Espalha a verdade, espalha a justiça, porque os seus verdadeiros
amigos não o hão de deixar na rua, agora que tudo se organiza. Você tem amigos pessoais
no ministério; porque é que não os procura?
Batista recuou com horror. Isto de subir as escadas do poder e dizer-lhe que estava às or-
dens não era concebível sequer. D. Cláudia admitiu que não, mas um amigo faria tudo, um
amigo íntimo do governo que dissesse ao Ouro Preto: “Visconde, por que é que não convida
o Batista? Foi sempre liberal nas idéias. Dê-lhe uma presidência, pequena que seja, e...”
Batista fez um sinal de ombros, outro de mão que se calasse. A mulher não se calou; foi
dizendo as mesmas coisas, agora mais graves pela insistência e pelo tom.

A palavra de D. Cláudia abre uma fissura na consciência de Batista, aí se enraíza, vai ganhando es-
paço, cruzando-se com as próprias palavras dele, dando-lhe um novo tom ao pensamento. A princípio
Batista tenta resistir à palavra dela, sai com evasivas, protesta; a palavra de D. Cláudia atua veladamen-
te, depois de forma aberta e franca sobre o discurso do outro. O discurso de D. Cláudia antecipa cada
réplica de Batista, e à medida que este vai sendo surpreendido por essa antecipação, seus argumentos
contrários vão-se tornando mais frouxos, mais débeis, mais tímidos, sua colocação vai-se esbatendo
até descolorir-se por completo. A antecipação da réplica do outro visa a “manter forçosamente para si
a última palavra” (Bakhtin, 2002, p. 232).
E Batista pensa na situação pessoal e política. “Apalpa-se moralmente”, como diz o narrador. Mas o
acento do discurso do outro cria sulcos em sua consciência, suscita embaraço, ressalvas. E ele admite que
Cláudia pode ter razão, e sai com essas ressalvas: “Que é que havia nele propriamente de conservador,
a não ser esse instinto de toda criatura, que ajuda a levar o mundo?” É conservador em política porque
o eram o pai, o tio, os amigos, o vigário da paróquia. E depois não era propriamente conservador, mas
saquerema, como os liberais eram luzias. (Cf. O tempo saquarema de Ilmar Rohloff de Matos). E lem-
brava-se do Visconde de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso não haver nada mais
parecido com um conservador que um liberal, e vice-versa. E evocava exemplos, o Partido Progressista,
Olinda, Nabuco, Zacarias, que foram eles senão conservadores que compreenderam os tempos novos
e tiraram às idéias liberais aquele sangue das revoluções para lhes pôs uma cor viva, sim, mas serena?
Nem o mundo era dos emperrados... (M. A., 1962, p.
Como se observa, a princípio Batista tenta resistir ao discurso duplamente orientado de D. Cláudia,
ignorar o poder que sobre ele exerce a consciência do outro, aparentemente não reconhece esse poder,
polemiza com ele, tenta manter um tom monológico-afirmativo no seu próprio discurso, não tem condição

Proceedings XI International Bakhtin Conference 7


de reconhecer o discurso do outro assim como não consegue rechaçá-lo. Entretanto, vai percebendo
cada vez mais a sua própria imagem na fala do outro, para acabar passando da rejeição inicial à plena
concordância final, recorrendo a arrazoados que confirmam plenamente as palavras do outro. A propósito
desse processo Bakhtin observa:
A atitude do herói face a si mesmo é inseparável da atitude do outro em relação a ele. A
consciência de si mesmo fá-lo sentir-se constantemente no fundo da consciência que o
outro tem dele, o “eu para si” no fundo do “eu para o outro”. Por isso o discurso do herói
sobre si mesmo se constrói sob a influência direta do discurso do outro sobre ele (2002, p.
208-209).

A palavra do outro se faz tão presente na consciência de Batista que, em pleno baile da Ilha Fiscal,
enquanto os outros ouvem a música e dançam, ele ouve outras vozes, vozes de umas feiticeiras cario-
cas que o saúdam: “Salve, Batista, ex-presidente de província!” - “Salve, Batista, próximo presidente
de província!” - “Salve, Batista, tu serás ministro um dia!” A linguagem dessas profecias é liberal, ele
se arrepende de as escutar, tenta traduzi-las no idioma conservador mas já lhe faltam dicionários, isto
é, a sua antiga linguagem conservadora já é um anacronismo , uma dissonância com o tom e a própria
palavra do outro. Sua autoconsciência já é a consciência que o outro tem dele, seu “eu para si” já é um
“eu para o outro”. Daí o salto definitivo, a aceitação definitiva da palavra do outro como sua própria pa-
lavra. Batista aproveita uma visita que Aires lhe faz e provoca um diálogo no qual usa um discurso com
mirada em torno, cujo fim é ouvir a anuência do outro às suas próprias palavras.
- Confesso-lhe que tenho um temperamento conservador.
- Também eu guardo presentes antigos (responde Aires).
- Não é isso: refiro-me ao temperamento político. Verdadeiramente há opiniões e tempera-
mentos. Um homem pode muito bem ter temperamento oposto às suas idéias. As minhas
idéias, se as cotejarmos com os programas políticos do mundo, são antes liberais e até
libérrimas.

Batista insiste na distinção do temperamento e das idéias. E acrescenta, em discurso indireto do


narrador, que alguns amigos velhos, que conheciam esta dualidade moral e mental, é que teimavam em
que ele aceitasse uma presidência; ele não queria. Francamente, que parecia ao conselheiro?
Batista se mira no outro, quer ouvir a voz do outro para que esta reforce e sirva de aval à sua voz e
sua decisão, que, pelo espírito do seu discurso, já está tomada embora ainda não tenha sido anunciada.
Ele insiste, mas Aires sai pela tangente, até que faz a pergunta definitiva:
- Mas não me disse que acha...
- Acho.
- ... Que posso aceitar uma presidência, se me oferecerem?
- Pode; uma presidência aceita-se.
- Pois então saiba tudo; é a única pessoa de sociedade com quem me abro assim franca-
mente. A presidência foi-me oferecida.
- Aceite, aceite.
- Está aceita.
- Já?
- O decreto assina-se sábado.

Fecha-se aí o círculo dialógico; Batista assume definitivamente o outro, aqui referendado por uma
terceira voz.
O dialogismo em Esaú e Jacó envolve todos os segmentos da narrativa, criando uma contigüidade e
uma interação entre universos sociais diferentes.O episódio do irmão das almas ilustra bem essa questão.
Natividade, representante do mundo social elevado, do sistema econômico e social dominante, ouve da
Cabocla que esse sistema terá continuidade em seus filhos gêmeos, que serão grandes, irão subir, subir,
subir... Feliz com essa notícia, ela dá uma esmola de dois mil réis ao irmão das almas, quantia fabulosa
em se tratando de esmola. Aturdido com o valor recebido, o irmão das almas chega à igreja indeciso
quanto ao que fazer com o dinheiro, como descreve o narrador no capítulo “A esmola da felicidade”:
Na igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão, ouviu uma voz débil como
de almas remotas que lhe perguntavam se os dois mil réis... Os dois mil réis, dizia outra
voz menos débil, eram naturalmente dele, que, em primeiro lugar, também tinha alma, e,
em segundo lugar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vai à igreja
ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas (M.A., 1962,
p. 26).

Temos aí um diálogo interior típico do romance polifônico, no qual ocorre uma luta de vozes imiscíveis,
na qual a voz débil faz, em nome das almas remotas, uma pergunta com mirada em torno e com fratura
sintática centrada na reticência, tenta abrir um sulco na consciência do outro, levá-lo a responder com

Proceedings XI International Bakhtin Conference 8


aquiescência “se os dois mil reis...” O discurso com mirada em torno visa a antecipar a réplica do outro
e inserir nesta alguma sombra da voz interrogativa, numa luta sub-reptícia pelo triunfo da sua voz. Mas
a voz menos débil, voz da consciência do irmão das almas, não cai na armadilha e responde com dois
arrazoados: 1) ele, irmão das almas, também tinha alma, e 2) não recebera nunca tão grande esmola. E
o período se fecha com uma evasiva cuja voz o leitor fica sem saber se é do irmão das almas ou produto
do discurso indireto livre do narrador: “Quem quer dar tanto vai à igreja ou compra uma vela, não põe
assim uma nota na bacia das esmolas pequenas”.
O parágrafo seguinte assume ares de polifonia, pois o narrador afirma que as vozes “todas faziam
uma zoeira aos ouvidos da consciência”, e essa luta entre vozes termina com a vitória da voz do irmão
das almas, que acabou ficando só: “não tirou a nota a ninguém... a dona é que a pôs na bacia por sua
mão... também ele era alma”... Note-se que na réplica do diálogo anterior a voz menos débil diz que o
irmão das almas “também tinha alma”; agora “também ele era alma”. Portanto, se pedia para as almas
e, sendo ele mesmo alma, pedia para si, logo, não estava embolsando dinheiro alheio. E o narrador
acrescenta:
À porta da sacristia que dava para a rua, ao deixar cair o reposteiro azul escuro debruado
de amarelo, não ouviu mais nada (M. A., 1962, p. 27).

De fato, não tinha mesmo que ouvir mais nada: despojado das vestes de irmão das almas, ele dá
seu primeiro passo na condição de outro. Vê um mendigo que lhe estende o chapéu roto e sebento e
põe neste uma moedinha de cobre, às escondidas, gesto semelhante ao de Natividade e Perpétua que
se benziam às escondidas: ao dar a esmola, coloca-se na condição de Natividade, que lhe dera a esmola
dos dois mil réis, assumindo uma condição oposta à de pedinte em que há pouco estivera e ensaiando a
nova condição de duplo, característica do romance polifônico. Ao término do romance vamos encontrar
o ex-irmão das almas como o rico e bom senhor Nóbrega disputando a mão de Flora em pé de igualdade
econômica e social com Pedro e Paulo.
Assim, ao ouvir da Cabocla que os filhos de Natividade seriam grandes, iriam subir, subir, subir, o
sistema, representado por Natividade, sente-se feliz com a sua continuidade, dá a esmola da felicidade
e promove o irmão das almas a um dos seus.
Bibliografia
Assis, Machado, 1962. Esaú e Jacó. Editora Cultrix, São Paulo.
Bakhtin, M., 1979. Estétika sloviésnovo tvórtchestva (Estética da criação verbal), ed. Iskusstvo, Moscou.
Bakhtin, M, 2002. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra, ed. Forense Universitária, 3ª
edição, Rio de Janeiro.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 9


Bajtín y la antropología americana

Tatiana Bubnova

UNAM

Bakhtin is distant from us, but not,


of course, irrelevant. Bakhtin can still
speak to us, but we have to ask him
the right questions.

Ken Hirschkop

Le planteamos a una cultura ajena preguntas


nuevas, que ella no se ha planteado a sí misma,
buscamos en ella respuestas a estas nuestras
interrogantes, y la cultura ajena nos responde
al develar ante nosotros sus aspectos
novedosos, sus profundidades del sentido.

Bajtín (ECV 335)

Para M.-Pierrette Malcuzynski

¿Hasta qué punto los conceptos de Bajtín están presentes en un supuesto “discurso americano” -un
discurso del “ser americano” acerca de sí mismo? Una hipótesis semejante podría ser generada en el
dominio que Bajtín relacionaba con la antropología filosófica. Este texto es un intento por mostrar cómo
funciona la “antropología filosófica” de Bajtín, “explicitando” (haciendo que cobren cuerpo exterior: ov-
neshvlenie) sus tópicos principales al proyectarlos hacia algunas realidades de la cultura1. Esta “exteriori-
zación”, “plasmación” del “cuerpo del sentido” (“cuerpo bicorporal”: double-bodied body) necesariamente
converge con la antropología como conjunto de disciplinas y prácticas del saber sobre lo humano en
este continente “bicorporal” llamado América.
Pero comenzaré a partir de la idea de la “palabra ajena” evocando el comentario de un conocido
bajtinista inglés (es la del epígrafe) -”Bajtín es distante de nosotros, pero desde luego no es irrelevante.
Bajtín todavía nos puede hablar, pero hemos de plantearle preguntas correctas”-, contrastándola con la
cita -una de las posibles, en realidad-, del propio Bajtín2. Asimismo, viene al caso que “la comprensión de
los contemporáneos no puede darnos respuestas a nuestras interrogantes [acerca de Rabelais], porque
para aquellos esas interrogantes no existían aún” (Bajtín Rabelais 70-71). “Cicatrices semiborradas de
enunciados ajenos” (Bajtín 1997, 286) son, de hecho, nuestras ingeniosas aserciones bajtinizantes. Tal
es la función heurística de Bajtín: nos hizo plantearnos preguntas que antes no se nos ocurrían. Nuestras
preguntas al volverse de veras “nuestras” al mismo tiempo ponen de manifiesto por qué este proceso

1 Al manifestarse al exterior, un fenómeno oculto o intrínseco cobra una forma externa, material; la forma es una frontera entre lo externo y lo interno, entre
el yo y el otro. Un sentido al tener una manifestación material adquiere un cuerpo fronterizo inacabado, pertenece a ti y a mí, es bicorporal, intertextual,
involucra responsabilizando, responde a algo anterior, provoca una respuesta a su vez, etc. Es un cuerpo del sentido, micromodelo dialógico.
2 Introduzco el juego de las citas con un guiño hacia los valiosos trabajos de Brian Poole, Galin Tihanov, Ken Hirschkop, Craig Brandist, David Shepherd y
otros que han contribuido a descubrir las diversas “fuentes” de Bajtín, algunas de estas situaciones de préstamo, rayanas en “plagio”, o que las comentaron
lúcidamente, así como hacia el debate ruso en torno a la autoría de los textos “deuterocanónicos” (p. e., Iu. Medvedev frente a N. Pankov).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 10


de la plasmación/corporización de o, si se quiere, de la “responsabilización” por el sentido está siendo
básicamente malogrado. El “cuerpo bicorporal” del enunciado3 no se percibe como tal, es decir, como
participativo e inconcluso, como propio y ajeno, como frontera y lugar de generación del sentido, sino
que sigue pretendiendo erigirse en una verdad “positiva”, pero para un uso privado en la que “todo lo
repetible y reconocido se disuelve por completo y se asimila por la conciencia del que comprende, que
en la ajena sólo es capaz de reconocer la suya propia. Nada le enriquece. En lo ajeno no reconoce sino
lo propio” (Bajtín ECV , 347).
Bajtín en cuanto nuestro “otro radical”, nuestro “tercero en la contienda”, es testigo y juez en el “gran
tiempo” de lo que estamos haciendo a partir de sus reflexiones y ante su presencia. Es una presencia
gracias a la cual no podemos ya ver a nosotros mismos, ni el mundo, de la misma manera que antes de
la aparición en nuestro horizonte, hace unos treinta años, de este “tercero”4. Desde entonces tomamos
tanto de él y creamos a partir de él tantos monstruos bicorporales del sentido5 que no tiene objeto hacer
aquí un recuento de sus aportaciones, ni hay lugar, tampoco, para ninguna clase de reclamo. No pre-
tendo cerrar la investigación ni el debate en torno a su obra desde una “bajtinología” purista; sólo creo
pertinente recordar que hasta aquí, nosotros somos sus deudores, no jueces6.
Literatura está ligada a antropología muy íntimamente, sobre todo en Latinoamérica7; antropología
a su vez se ha vuelto consciente acerca de cuánto le debe a literatura y a sus procedimientos. Los an-
tropólogos actuales han leído teoría literaria, e incluso algo de Bajtín. Al reclamar la paternidad de una
“antropología dialógica” como un ramo independiente con respecto al dialogismo de Bajtín, ponen en el
centro el diálogo como el método de investigación surgido de las mismas crisis de la disciplina, olvidando
que el dialogismo no es lo mismo que un diálogo, sea cotidiano o didáctico o cognoscitivo (cf. Hirschkop
1999, 3-4). Pero al mostrar las funciones de las formas dialogantes en las sociedades prehispánicas,
por contraste al uso tradicional de la forma dialogal como procedimiento aleccionador y dogmático,
los nuevos antropólogos actúan plenamente en el espíritu de Bajtín, lo mismo que cuando estudian la
infinita flexibilidad y las funciones sociales de las formas dialógicas colectivas en uso en las sociedades
indígenas actuales. En el diálogo, el “nosotros” indígena americano puede tener un valor diferente y
muy importante en comparación con los usos de las formas análogas en las lenguas indoeuropeas. El
análisis de estas formas dialogizantes propias de la gramática de las lenguas americanas muestra cómo
el enunciado funciona en cuanto acto.
La antropología filosófica bajtiniana es sobre el acto unido a la palabra. No es que hacer hubiese sido
lo mismo que hablar8. Pero la palabra está en todo y acompaña, pasiva o activamente, todo acto y se
vuelve acto. Así, la antropología filosófica es, al mismo tiempo, filosofía del lenguaje, ética, estética,
epistemología del diálogo.
Empecemos directamente desde esta “antropología filosófica”9, con su concepción del yo, para pasar
inmediatamente a los asuntos propiamente “americanos” (la misma posibilidad de una “antropología
americana” es polémica -dialógica- y sugiere confrontaciones ideológicas: bien, pólemos es guerra)10.
“Escuchar, oír voces es dar paso a lo discordante...” (Zavala 1996, 27).
El yo sólo es capaz de definirse a sí mismo por su relación con el otro: es fundamental, para entender
eso, el prisma yo-para-mi, yo-para-otro, otro-para-mí, mediante el cual establecemos nuestro vínculo
arquitectónico con el mundo y nos afirmamos en el acto (ético) pensado, dicho, actuado, sentido, creado.
Pero ante todo, “yo también soy”, porque el otro ya estuvo aquí cuando llegué. (Bajtín estuvo antes de
que “yo” llegara a su terreno, y yo voy a hablar de mí y de él utilizando sus palabras)11. Mi autoconciencia

3 La idea del cuerpo como enunciado aparece en Zavala 1991, 73.


4 “La palabra es un drama en que participan tres personajes (no es un duo, sino un trío” /Bajtín 1979, 301/), siendo que el tercero puede ser “Dios, la
verdad absoluta, el juicio de la conciencia humana desapasionada, el pueblo, el juicio de la historia, la ciencia, etc.” (Bajtín, ibid., 306). Quero rescatar
para el caso el papel de Bajtín como “alcahuete de la verdad”. Por otra parte, subrayar una vez más la trayectoria de Bajtín desde una virtual inaudibilidad
(neuslyshannost’, cf. Bajtín 1996, 338) hacia una a veces invisible, pero permanente presencia significativa en el horizonte epistemológico de las ciencias
humanas a partir de 1963; presencia cuyo impacto iba variando conforme aumentaba el grado de conocimiento e influencia de sus textos y conforme el tipo
de interacción que estos en cuanto enunciados suscitaban.
5 Bajtín y Derrida, Bajtín y Gadamer, Bajtín y Lévinas, Bajtín y Heidegger, Bajtín y Saussure, Bajtín y Wittgenstein, Bajtín y Valéry, Bajtín y el teatro ja-
ponés.., ¿sigo? Cf. A. Wall 1998, 198: “As a result the Bakhtins we are producing are growing further and further apart.” Y mas adelante: “I’m afraid that
we’ve created a monster” (207).
6 A algunos bajtinistas afectos a la verdad “positiva” hace falta recordarles las palabras del maestro: “El hombre confronta la verdad sobre sí mismo como
una fuerza asesina”. Y un poco antes: “El proceso creativo es siempre un proceso de violencia que la verdad ejerce sobre el alma” (Bajtín 1996, 67).
7 Me baso en buena medida en las concepciones de Roberto González Echevarría (especialmente Mito y archivo).
8 “La lengua, la palabra, lo es casi todo en la vida humana. Pero no hay que pensar que esta realidad omniabarcadora y polifacética puede ser objeto de una
sola ciencia, la lingüística, y puede ser comprendida tan sólo mediante la metodología de la lingüística. Es objeto de la lingüística puede ser únicamente el
material, los recursos de la comunicación discursiva, mas no la comunicación discursiva en sí, no los enunciados reales, ni tampoco las relaciones (dialógicas)
entre ellos, ni las formas de la comunicación discursiva o los géneros discursivos” (ECV 297).
9 C. A. Faraco propone considerar el dialogismo bajtiniano una Weltanschauung, una visión del mundo a partir de la cual se construye su antropología
filosófica, una filosofía globalizante del ser humano y de sus realidades, “y no tan sólo teorías y modelos formales de fragmentos de cosas”. (Faraco 117)
Esta peculiar filosofía bajtiniana de la vida y del hombre une al ser humano “del cuerpo a la palabra”, en un acto ético, con otro ser humano: “La vida es
dialógica por naturaleza. Vivir significa participar en un diálogo: interrogar, atender, responder, asentir, etc. El ser humano participa en este diálogo todo y
con toda su vida: con ojos, labios, manos, alma, espíritu, con todo su cuerpo y con todos sus actos. Invierte toda su persona en la palabra, y esta palabra
entra a formar parte del tejido dialógico de la vida humana, del simposium universal” (Bajtín 1979, 318).
10 En primer lugar, ¿de cuántas ‘antropologías americanas’ se puede hablar? La antropología en cuanto disciplina importada en Latinoamérica, solía proceder
desde un marco social y epistemológico en contradicción con los objetivos nacionales, desembocando en una especie de colonialismo interno. La autocon-
ciencia del sujeto latinoamericano podía construirse por medio de modelos colonialistas, sea tratando de negarlos, sea asumiendo inconscientemente sus
moldes. Carpentier, J. M. Arguedas, Luis de Lión, los autores “testimoniales”, los artistas “preformativos”, todos ellos de diferente manera actúan en presencia
de un potencial modelo colonialista para el conocimiento de sí mismos. (El caso de la conciencia poética que trato aquí es distinto, aunque homólogo a la
práctica del performance).
11 Proyectando esta primogenitura del otro hacia la realidad histórica y social americana, podemos decir que el europeo (y el mestizo) también son, pero
el indígena –objeto fundamental de la antropología— ya ha sido desde antes de la llegada o la aparición de aquellos.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 11


empieza desde el momento en que me percato de la mirada y la presencia del otro. La vida se concibe
en términos de una creación permanente del acto (ético). La autoría del acto es doble por definición;
sus participantes contraen responsabilidad, congénita, contextual y ontológica a la vez, por el otro y
por el acto, lo cual implica que “en el ser no hay coartada”: ser en el mundo compromete, nos guste o
no. El acto es también un cuerpo del sentido, porque ‘ser’ es un acontecer específico (sobytie bytia), un
aconteSer, un “ser-juntos-en-el-ser”, juntos el yo y el otro. La subjetividad es la manifestación de mi
hacer ante el otro, con el otro, para el otro. El acto es concreto, arraigado en la circunstancia personal
e histórica, pero tiene una proyección ontológica.
Bajtín es otro para nosotros tanto cultural como históricamente: es alguien que vino a hablarnos
del carnaval describiendo un contexto que nunca pudo haber presenciado por sí mismo, y jamás tuvo
la oportunidad de advertir la importancia del carnaval aquí, en esta parte del globo terráqueo, donde
permanece vivo bajo términos analizables con sus propias herramientas. Por otra parte, evocaré las
palabras del finado V. N. Turbín (amigo y seguidor ruso de Bajtín, crítico literario): una teoría formulada
hace treinta años y en un determinado contexto histórico, pero dada a conocer treinta años después en
otro contexto, no es la misma teoría. El carnaval bajtiniano se ha extraviado en el tiempo. Todo esto debe
tomarse en cuenta, y hay muchas investigaciones en torno a esta extrañeza y otredad, sobre todo en
los últimos diez años. Hemos de respetar la distancia, y más aun porque Bajtín para nosotros es, ante
todo, el resultado de varias etapas historiables de la recepción, más que un corpus de textos canónicos
cerrado y establecido de una vez para siempre. Bajtín es más lo que otros han dicho de él, que Bajtín
mismo. Y aquí sólo estoy apuntando hacia su propia filosofía del lenguaje que convierte la palabra ajena
en el objeto privilegiado de la reflexión; palabra asumida como propia o rechazada, callada u omitida,
tergiversada, malentendida o replanteada; palabra-acto, palabra-pensamiento, palabra-sentimiento.
Palabra lucha y palabra escándalo. Palabra esperanza. Palabra acto, arte y vida.
De todo esto quiero rescatar la presencia del pensamiento de Bajtín (la palabra ajena) -de por sí atra-
vesado por interferencias ajenas desde el año 1963-12, dialogizado, enriquecido, tergiversado, puesto al
día “con la exactitud de hasta al revés”13 pero, sobre todo re-acentuado14, en nuestras tareas cotidianas
de pensar y hablar de la cultura, de la literatura, en nuestra reflexión acerca de nosotros mismos y del
mundo en que actuamos. Más que nuestro interlocutor directo, es nuestro tercero, es decir, la escala
desde la cual valoramos las cosas y las entendemos: “La piedra sigue siendo piedra, y el sol es sol, pero
el (inconcluso) acontecimiento del ser se vuelve otro, porque en el escenario de la existencia terrestre
aparece un nuevo personaje protagónico: testigo y juez” (Bajtín 1979, 341).
Hay cierta solemnidad inherente al gesto de ubicarlo como “tercero en la contienda”. No olvidemos la
reversibilidad de los fenómenos que Bajtín mismo nos enseñó a percibir: las facetas del tonto de carnaval,
pícaro y bufón emergen, innombradas, de los discursos actuales de los “incrédulos hijos” (C. Emerson)
sobre nuestro Ser Ciappelletto (Clark/Holquist 1984, 4-5).
El reconocimiento de esta presencia (en particular en la antropología), que interpela desde el “gran
tiempo”, es francamente escaso y sobre todo escatimado, hecho que no es capaz de cancelar sus efec-
tos.
Pasemos a la “antropología americana”. Este dominio (cuya unidad puede ser puesta en duda, pero
que en mi opinión tiene mucho sentido)15, que ha recibido un cierto impacto del pensamiento de Bajtín
(impacto que no debe exagerarse), aun así no puede ser visto de la misma manera que antes de él. Es
un terreno fecundado por un diálogo propiciado por su presencia, tanto en el aspecto filosófico como en
el etnológico.
Este diálogo va orientado tanto atrás, hacia el pasado, como adelante, hacia una posible respuesta
futura. A veces podría parecer que en el continente americano las iluminaciones bajtinianas le preceden
en el tiempo al propio Bajtín: como si respondieran a una serie de interrogantes latinoamericanas. Así
como un escritor crea sus propios precursores (según Borges), lo mismo un pensador surge en medio
de un diálogo en el “gran tiempo”, y no sólo en el círculo cerrado del “microtiempo” de su vida personal,
sino que puede abarcar un cronotopo más universal. Fernando Ortiz, por ejemplo, concibió la génesis
de la cultura y de la identidad cubana en términos de “contrapunteo”. Es un contrapunto de oposiciones
binarias entre tabaco y azúcar, entre lo femenino y lo masculino, entre cubanidad y extranjería, entre
centripetismo y centrifugación, etc., mucho antes de que las nociones del filósofo ruso fuesen conoci-
das en este lado del mundo. Acuñó el concepto de la “transculturación”, para fundamentar su idea de

12 Año de la aparición de la segunda edición (considerablemente ampliada) de La poética de Dostoievski Es el comienzo de la marcha triunfal de sus
ideas.
13 Palabras de S. S. Averintsev, bajtinista ruso.
14 El cambio del sentido en el proceso de la historia es la condición primera del dialogismo: nuevos lectores, nuevos problemas, nuevas visiones, de que
modo dialogizamos a Bajtín, recordando la invitación lanzada hace algunos años por Iris M. Zavala (1996) a re-acentuar los fenómenos culturales del pasado
y del presente a partir de los nuevos contextos de interacción con las ideas de Bajtín. Iris M. Zavala tomaba a su vez ese concepto de re-acentuación del
arsenal sociodiscursivo del círculo de Bajtín. (V. Volóshinov, “La palabra en la vida y la palabra en la poesía” (1926), trad. T. Bubnova, en Zavala 1997). Y
para resumir esta posición, recurriré a la fórmula de un comentarista ruso (Panich 168): el hombre concebido por Bajtín es alguien que le responde a todo
el mundo y es en la misma medida responsable ante todos los demás. Cf. también: “La garantía de la superación del relativismo es justamente el hecho
de la co-responsabilidad (‘correspondencia’) cuando cada uno de los actos posteriores no pueden dejar de responder (en límite) a todos los actos cometidos
previamente (idem).
15 Me atengo a los modelos que elegí para este trabajo. Carpentier incorpora los tópicos de la antropología (más allá del costumbrismo o regionalismo
literario) bajo el ascendente de la antropología europea. Arguedas fue discípulo de antropólogos norteamericanos; la extrañeza de Luis de Lión, como
veremos, se debe a la práctica de una antropología filosófica invertida. Todos los autores que estoy analizando aquí se sitúan en la frontera –física, geo-
gráfica, cultural, etc.— que les permite definir su propia subjetividad mediante la relación liminar con el otro. La antropología americana es una y es doble
(o múltiple) en más de un sentido.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 12


los múltiples mestizajes culturales, que en la luz bajtinizante de los seguidores se emparentaría con la
hibridación (García Canclini, Pérus). La transculturación nos hace recordar la “translingüística” o, mejor,
la “metalingüística” bajtiniana, dirigida hacia un espacio -social y ontológico a la vez- en que se forman
sentidos bicorporales e híbridos que hacen posible la existencia, la comunicación, el acto. Las culturas
híbridas de García Canclini y los lenguajes híbridos en la experimentación literaria latinoamericana (J.
M. Arguedas, pero también Rulfo) aparecen como lo dado y lo creado en su múltiple interacción, entre
la mismidad y la otredad. Palabras y culturas todas son híbridas y mestizas por definición: esta es la
conclusión carnavalizante del gesto de reconocer en la generación del sentido un híbrido grotesco, bi-
corporal e imperfecto (dígase ‘inacabado’). “El cuerpo produce conversiones, en función de estrategias,
y oposiciones, subordinaciones y exclusiones. El cuerpo nos revela los diferentes y contradictorios sen-
tidos...” (Zavala 1996, 229)
La antropología como disciplina (“invento de hombre blanco”) estaba inicialmente orientada hacia
el estudio de las sociedades supuestamente “primitivas”, “exóticas”, “subdesarrolladas”, “ágrafas” y, en
el sentido más extenso, otras. La caracterizaba “la instancia documental y observacional propia de los
científicos naturales” (Clifford 1988, 147). Es decir, culturas y sociedades básicamente debían someterse
a un análisis semejante al que se aplica a los fenómenos naturales. En los últimos tiempos han apare-
cido estudios etnográficos de las sociedades “desarrolladas” contemporáneas (p. e. Michel de Certeau
y su escuela), pero el objeto preferencial de la antropología sigue siendo lo “exótico”, lo “primitivo”,
lo “subdesarrollado”, en resumen, lo “otro”. Decir lo “otro”, es un modo de neutralizar u ocultar, bajo
apariencia de objetividad, algo que no queremos poner de manifiesto: “En el contexto colonial, el ‘Otro’
es una categoría analítica ocupada por todos los sujetos menos el europeo” (Adorno, 19). Utilizando la
categorización que introdujo, a partir de Bajtín, mi colega el antropólogo José Alejos, diré que la an-
tropología enfocada desde la metrópolis hacia la colonia tradicionalmente se ha abocado a estudiar al
otro-que-yo-no-quiero-ser, marcado por un juicio valorativo no confesado ni teorizado específicamente.
Existen situaciones en que esta actitud implícita permanece vigente en los procedimientos, métodos y
objetivos de la nueva antropología americana de fuerte vocación social.
Bajtín diseña una arquitectónica relacional del yo sugiriendo su profunda dependencia constitutiva,
un tanto idílica, del otro. En realidad, la dependencia entre yo y otro que presenciamos ahora es tal que
incluso podría describirse en términos de una catástrofe ecológica: el interés científico por el otro-que-
yo-no-quiero-ser, una vez que se reformula desde la conciencia ética y sobre todo a la luz de los resulta-
dos de la actividad transformadora de la razón, es una empresa que muchos estudiosos con conciencia
“ecológica” ya no pueden continuar16 de la misma manera que antes17.
Después de este deslinde preliminar, podemos pasar a la controversial “antropología americana” cuyo
objeto preferente ha sido este “otro-para-mí-que-yo-no-quiero-ser” del continente llamado América. Y
es uno de los sentidos que puede atribuírsele a la “antropología americana”. Existe un país que se dice a
sí mismo América. Desde el yo-para-mí de esta América, todo lo americano fuera de sus fronteras pre-
cisa de una definición complementaria, y todos conocemos las polémicas, las justificaciones históricas,
geográficas, políticas, los ajustes léxicos que se han generado a partir del hecho de que la voz de esta
‘América’ sea hegemónica. En definitiva, ‘América’ en cuanto signo ideológico siempre ha sido una arena
de lucha (¿”de clases”?) de posiciones a veces irreconciliables. “Ese es el potencial dialógico del signo,
abierto siempre a la subversión y a estallar...” (Zavala 1996, 218). Volveré a este punto más adelante,
al introducir el concepto de frontera.
Desde el período colonial, por otra parte, los nuevos pobladores de la porción latina de este continente
trataron de definir a sí mismos desde su radical diferencia y novedad en comparación con los primeros
conquistadores y sobre todo con respecto a las respectivas metrópolis. Su perfil étnico, racial, social,
ideológico, cultural se iba transformando a través de la historia, pero su yo permanecía en oposición al
otro-para-mí-que-yo-no-quiero-ser, mientras que ni el yo, ni el otro podían ser los mismos.
La antropología filosófica es capaz de abarcar, en su totalidad, a la antropología como conjunto de
disciplinas que estudian las culturas, para integrarlas, en cuanto arquitectónicas específicas, en un solo
pensamiento acerca de lo humano desde la óptica de las relaciones complejas y controvertidas con
la otredad, en el contexto de la responsabilidad -congénita pero contextual, ontológica pero a la vez
concreta- y de la no coartada en el ser. De hecho, las hipótesis de R. González Echevarría acerca de la
importancia del mito y archivo en la generación del discurso literario latinoamericano -por cierto influidas
por Bajtín, y también por Foucault- permiten ubicar la antropología, como puesto de observación y como
discurso hegemónico, en la génesis de la novela latinoamericana del siglo XX18.
Cuando Julia Kristeva lanzaba, hace más treinta años, su propuesta lapidaria: “Pour la sémiotique,
la littérature n’existe pas”, pocos eran capaces de advertir que detrás de este extremismo semiótico
estaba también la posición más razonada y aun más omniabarcadora de Bajtín, la del “problema de los
géneros discursivos” y, más ampliamente, el “acto ético” total. Los géneros discursivos son modelos

16 Por eso el nuevo antropólogo americano, que puede ser reclutado de las filas de las poblaciones autóctonas, tiene otro perfil, mucho más participativo
respecto del “objeto” de observación científica, afín a la formulación de Darcy Ribeiro de la tarea antropológica como “la de buscar formas de devolver a los
indios y otras poblaciones que estudiamos aquella parte del conocimiento que de ellos alcanzamos, que pueda serles útil en sus esfuerzos para salir de la
situación dramática en que se encuentran” (Ribeiro 1992, 118).
17 Por supuesto, trato de utilizar ironía. Me refiero que, más que la toma de una conciencia altruista, la actitud “naturalista” tradicionalmente desarrollada
hacia el otro resulta a todas luces autodestructiva, y destructiva de todo en general.
18 Debo reconocer la deuda que he contraído con toda una serie de ideas de R. González Echevarría , cuyas lecturas incompletas de Bajtín no le han impedido
proponer, para entender la cultura y la literatura latinoamericana, algunas claves más bajtinianas de lo que él mismo quizás hubiese querido suponer.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 13


(muchas veces parodiados) para la elaboración de los discursos literarios y son unidades semánticas
que permiten analizar la comunicación social en el sentido más amplio. Al plantear la palabra desde la
perspectiva del acto (ético), desde la responsabilidad, el compromiso y la no coartada en el ser, cuando
la palabra se vuelve acción en más de un sentido, voy a poner de ejemplo textos y sujetos sociales sin
hacer distinción entre el discurso literario y discurso social, siendo que el primero encaja como parte en
un todo que es el segundo.
Ver los textos desde el punto de vista del acto, y no como objetos de examen especializado, es una
operación metodológicamente previa al estudio “científico” o “estético” o a cualquier otro tipo de análisis
específico. Por eso veremos que ‘novela’, ‘poesía’, ‘espectáculo’ y ‘testimonio’ como géneros culturalmente
definidos, que pueden plantear problemas teóricos en cuanto discursos semiótica y socialmente distintos,
pueden ser homologados en cuanto procesos de acto ético, como manifestaciones antropológicas.
El acto no puede realizarse sin la participación del otro (no tendría el sentido del acto). Luego, el acto
es una totalidad porque en él se combinan los aspectos ético, estético y pragmático-cognoscitivo, unidad
previa a cualquier especificación dentro de los campos correspondientes. Dicho en las palabras de Alfonso
Reyes, “[l]os fenómenos se estudian y se describen por partes, pero existen en manera de continuidad”
(Reyes 207). El acto holístico tiene un autor, y la autoría es una actividad dialógica, participativa, res-
ponsiva y responsable. De ahí, la literatura es vida en cuanto parte del acto ético global, además de ser
subproducto estético y pragmático de una actividad dialógica. “Arte y vida no son lo mismo, pero han
de convertirse en lo mismo en mí, en la unidad de mi responsabilidad” (Bajtín, ECV 6). ¿Remanentes del
pensamiento mágico de la mentalidad rusa? ¿Tradición romántica de la construcción de la vida propia?
La mejor muestra de la fusión de arte y vida podría resultar el happening y el performance de los artistas
de la frontera méxico-norteamericana. No obstante, también para Alfonso Reyes “[l]a literatura... no es
una actividad de adorno, sino la expresión más completa del hombre. Todas las demás expresiones se
refieren al hombre en cuanto es especialista en alguna actividad singular. Sólo la literatura expresa al
hombre en cuanto es hombre, sin distingo ni calificación alguna” (Reyes 127)19.
Autor y héroe se convierten en categorías filosóficas de análisis de la intersubjetividad en los textos
(literarios o no) que se plantean como actos una vez actualizados por las sucesivas lecturas de las nue-
vas generaciones.
La antropología como conjunto de saberes étnológicos o antropología como concepción del yo en
interacción con el otro de diferentes maneras se inscriben en el quehacer vital de Alejo Carpentier, es-
critor cubano; de José María Arguedas, novelista y antropólogo peruano; de Raúl Zurita, poeta chileno;
de Luis de Lión, escritor guatemalteco; de Rigoberta Menchú, guatemalteca también, defensora de los
derechos humanos de su pueblo indígena. Por otra parte, Guillermo Gómez Peña, “artista preformativo”
méxico-chicano, trata de poner en la práctica de su quehacer artístico la misma idea de que acto es vida,
y obra lo es también.
El autor como parte del proceso de su obra, cuyo “otro” es el héroe: en la “realidad” estéticamente
ordenada que interpela a su creador en un diálogo ontológico, no puede ser separado de su obra en
cuanto proceso de generación del sentido. Y no hablamos de los aspectos tradicionalmente biográficos de
la autoría, sin descartar su importancia. El escritor como autor de un enunciado responsable en el “gran
tiempo” nos interesa como potencialmente receptivo a nuestra interpelación desde nuevo horizonte de
la vida. Es por eso que el autor es rehén de su obra y de su propio héroe, siendo como sea una realidad
textual, mientras que el héroe, convertido en realidad textual por el autor, viene no obstante “desde
fuera” y en cuanto emanación de la realidad posee una determinada autonomía y hasta un margen de
libertad.
Carpentier: el “yo-para-otro” como mirada ajena sobre sí mismo
Alejo Carpentier, el “peregrino en su patria”, nacido en Cuba en 1904 de padres extranjeros -un
francés y una rusa- expresa como pocos el carácter fronterizo de una posición liminar en el mundo y al
mismo tiempo su cubanidad en cuanto insularidad: autopercepción de aislamiento y de no pertenencia.
Recorre el mundo europeo y americano en busca de una identidad propia, y al percatarse de que sólo
puede definirse a sí mismo en función de su americanidad, busca, como toda una serie de sus coetáneos
americanos más firmemente arraigados en su entorno “nacional” (Samuel Ramos, Alfonso Reyes, Fer-
nando González, Fernando Ortiz, Octavio Paz, entre otros) esta definición primero de lo cubano a través
del africanismo, luego en la óptica surrealista, para pasar luego a la universalidad americana mediante
los conceptos de lo real maravilloso americano, el neobarroco, la teoría de los contextos, etc. Pero lo
que persiste en los mejores ejemplos de su ficción, que pretende explicar lo americano desde el exterior
(otro-para-mí), y para el exterior (yo-para-otro), es la mirada de antropólogo, de coleccionista y de
museógrafo instalada en la racionalidad occidental. El modelo “otro-para-mí” prevalece en Ecué-Yamba-
O, novela cuasi etnográfica. El “estar ahí” como gesto antropológico integra su investigación preliminar
de Los pasos perdidos. Los tristes trópicos, de Lévy-Strauss, un texto de etnografía pleno de matices
líricos, pero con gran conciencia metodológica, parece ser un modelo para esta novela. La lavandera de
Carpentier, que vende su alma inmortal (dígase, sus canciones) por un artefacto eléctrico, en las deli-
19 “La principal particularidad de lo estético que lo distingue drásticamente de la cognición y del acto ético es su carácter receptivo, de aceptación positiva:
la realidad hallada por el acto estético, reconocida y evaluada por el acto ético, forma parte de la obra de arte (o más exactamente del objeto estético) y
se convierte en su necesario momento constitutivo. En este sentido podemos decir: es verdad, la vida no sólo se encuentra fuera del arte, sino también en
el arte, en la plenitud de su peso axiológico: social, político, cognoscitivo y otro. El arte es rico; el arte no es seco, no es especializado; el artista sólo se
especializa en cuanto maestro, es decir, sólo respecto del material” (Bajtín 1975, 29; la traducción es mía).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 14


beraciones del narrador de Los pasos perdidos, apunta el mero meollo de la discusión sobre la identidad
(latino)americana arrollada por el progreso. La de Carpentier es una utopía ubicada en el pasado, como
la de Arguedas, en cierta forma.
La contradictoria originalidad de Carpentier en parte procede de la búsqueda personal de una identi-
dad propia en alguien que siente su origen como frontera cultural y vivencial de muchos mundos, y de
la necesidad de la transcripción de esta identidad en términos universalmente reconocibles. Carpentier
alcanza ver Cuba, y Latinoamérica, desde fuera y desde dentro al mismo tiempo, como un nativo y como
extranjero que la descubre por primera vez, y se dirige a los que nunca lo han visto como cubano.20 Buscar
a sí mismo en el proceso del diálogo a la vez interno y externo -yo-para-mí, yo-para-otro- conforma su
cubanidad misma. Sus incursiones utópicas al futuro no aguantan la prueba del tiempo, en cambio su
papel, en el gran tiempo, como Curador y Guía del tiempo americano, permanece.
Arguedas: escritura como vida y muerte
En el caso de José María Arguedas, escritor que se considera bicultural, tenemos un yo-para-mí incapaz
de establecer una división drástica entre sí mismo y el otro-para-mí, debido a su ubicación conflictiva
en una frontera étnica, cultural, lingüística de un modo tan específico que lo hace invertir los valores
impuestos por la cultura oficial en la manera de calificar y tratar al otro por definición de la cultura pe-
ruana oficial: la mayoría indígena silenciada, sojuzgada y sobreexplotada. Formado dentro de la leyenda
de su pertenencia al mundo quechua, Arguedas vive una permanente interpelación interna a la que trata
de responder creando una expresión literaria del otro-para-mí mediante la adquisición un yo-para-otro
fantasmal y a su vez interpelado por los avatares de su profesión: la antropología, donde el debe estudiar
al otro-para-mí (como si fuera a sí mismo) “objetivamente” mientras concibe su yo-para-mí como cons-
truido por el otro desprestigiado, desplazado, privado de voz propia.21 Entonces, se aboca a reconstruir
esta voz mediante un lenguaje creado a partir de la interacción entre las lenguas dadas, el español y el
quechua, entendidas como un deber ser: lo planteado.22 Pero, como señala González Echevarría, “no es
posible [...] lograr un texto que lo englobe todo y que pretenda unir el conocimiento sobre los nativos
adquirido mediante la práctica antropológica y el conocimiento que ellos tienen de sí mismos” (González
Echevarría 222). Todo esto lleva a Arguedas, “indio blanco”, “demonio feliz” que se expresa alegremente
en quechua y en español, a ubicar el pasado en una dimensión utópica en que un ser desprotegido se
acoge en la matriz benigna y protectora del mundo indígena. Cuando el antagonismo entre el yo-para-mí
indígena y el yo-para-mí indigenista lo lleva a la esterilidad creadora, reniega de la antropología -medio
de supervivencia, como asegura- y exalta el carácter vivencial, “no profesional”, de la literatura, la integra
en su proceso existencial -que comienza con el nacimiento “para otros”, termina con la muerte que sólo
existe para otros, también (ver Bajtín 1979)-: “No es una desgracia luchar contra la muerte escribien-
do”, “porque si yo no escribo y publico, me pego un tiro”23, y construye su propia muerte, en cuanto un
elemento más en la construcción de la identidad, al proceso creativo. “Con un balazo como punto final,
El Zorro abandona el terreno de la literatura practicada como juego, y abre una interrogación sobre la
posibilidad de la escritura novelesca en un país como el Perú” (Lienhard 1981, 189).
José María Arguedas, lo mismo que Carpentier, es otro ejemplo distinto de habitar y de cobrar forma
“en-la-frontera” de un hombre que se percata tempranamente del gran desequilibrio social e histórico
entre lo americano nativo y lo americano emergente que se deslinda de su parte indígena como del
otro-para-mí-que-no-quiero-ser.
Sintetizando estos dos casos, se podría decir que Carpentier en Los pasos perdidos construye un yo
a expensas del otro-que-yo-no-quiero-ser al mantener la mirada objetivadora antropológica sobre un
ser que no tiene voz, ni discurso propio sobre sí mismo (para hacerle justicia al escritor cubano, este
yo reificador fracasa, y el otro se le escapa para siempre entre los pasos perdidos). Arguedas quiere
darle voz al otro, pero no como portavoz, sino que pretende ser este otro plenamente (en El zorro... se
acerca a una visión integradora).24 Desgraciadamente, esta postura entra en guerra (pólemos) con la
esencialmente opuesta de antropólogo, que siempre es el que habla, siempre se apropia de la voz ajena
desde la autoridad “científica”:
[l]a position du sujet énonciateur évoque une situation d’unilatéralité interprétative qui se manifeste
clairement à travers un discours rapporté; le chercheur interprète les résultats des informateurs. Par
exemple, Arguedas n’utilise jamais le style direct dans ses essais; en revanche, dans ses récits fictionnels,

20 Neruda en sus memorias se refiere a Carpentier (sin duda deliberadamente) como escritor francés.
21 “Si el indigenismo tradicional se agotaba en una representación exterior, ‘científica’ (naturalista) del mundo indígena y de sus choques con el mundo
occidental y capitalista –al que pertenecían tanto el lector como el autor—, el ‘indigenismo’ arguediano dejaba de ser una evocación desde fuera y al fin
colonialista del mundo serrano, porque devolvía a la cultura, a la cosmovisión, al pensamiento de los hombres andinos –quechuas— un papel estructural
en sus textos” (Lienhard 322).
22 “Era necesario encontrar los sutiles desordenamientos que haría del castellano el molde justo, el instrumento adecuado. Y como se trataba de un hallazgo
estético, él fue alcanzado como en los sueños, de manera imprecisa. Yo resolví el problema creándoles un lenguaje castellano especial, que después ha sido
empleado con horrible exageración en trabajos ajenos. Pero los indios no hablan este castellano ni con los de lengua española, ni mucho menos entre ellos.
Es una ficción. Toda la tierra del sur y del centro, con excepción de algunas ciudades, es de habla quechua total” (apud Cardoza 28-29). La descripción se
ajusta a lo que dice Bajtín sobre la novela como proceso de creación de imagen del lenguaje (“La palabra en la novela”, en problemas literarios y estéticos,
1975).
23 Cf. Arguedas, El zorro..., p. 341.
24 Respecto de Ríos profundos, Silvia Nagi señala: “Un fuerte sentimiento de empatía caracteriza la actitud del narrador con respecto a los personajes.
Aunque el flujo de conciencia del narrador se realice en registro culto, el narrador/personaje es bilingüe, y se dirige a los indígenas en su propio idioma, el
quechua. Arguedas hace una brillante maniobra lingüística y transplanta al castellano la sintaxis quechua, porque él mismo domina el quechua como idioma
materno.” (Ponencia en el congreso de LASA, 28-30 de septiembre de 1995, versión internet).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 15


losqu’il cherche à établir une fonction de la parole qui abolirait le concept de hiérarchie entre intervenants
(un échange égalitaire), il n’hésite pas à l’utiliser (De Grandis 346)..
En cierta forma, cae víctima de lo mismo de que había acusado a Carpentier en El zorro... -de con-
siderar “nuestras cosas indígenas como excelente elemento o material de trabajo” (El zorro... 12)-, por
lo que al final se ve obligado a reconocer: “ya no tengo energía e iluminación para seguir trabajando, es
decir, para justificar la vida” (ibid., 253). Esta tendencia hacia “[l]a muerte, —dice González Echevarría
(muy bajtinianamente)-, es una metáfora de la imposibilidad de que haya un discurso sobre el Otro que
no se base en potencial en un poder letal sobre él” (228). Una vez más, “[e]l proceso creador es siempre
un proceso de violencia que la verdad realiza sobre el alma” (Bajtín 1996, 67).
La arquitectónica bajtiniana ha sido menos comprendida en su relación con la poesía. Basándose en
una lectura parcial de ciertos pasajes de La palabra en la novela, los críticos por lo general asumen que
el “autoritarismo” de la poesía lírica que Bajtín postula es una especie de desvalorización y desprecio
por la lírica en general. La poesía lírica interpretada desde la filosofía del acto es una postura existencial
que manifiesta, igual que otros productos “dialógicos” de la actividad globalizante, una profunda relación
con el otro, que, ciertamente, se articula de una manera radicalmente opuesta a como se percibe en
la novela, pero se concibe igualmente desde el diálogo: diálogo con un “otro” distante o “tercero” (por
ejemplo Dios, o el juicio de la Historia); pero para atreverse a adoptar esta postura “autoritaria”, en su
modalidad de grito (“¡Yo sé la verdad!/ ¡Fuera las verdades antiguas!” dice la poeta rusa M. Tsvetáieva)
el poeta cuenta ante todo con el apoyo “coral” que, más que un auditorio pragmático, es un grupo social
que le permite decir: la poesía es la conciencia de tener razón (palabras del poeta ruso Mandelstam).
Por otra parte, la ecuación “arte es “vida”, teorizada en Bajtín mediante el aconteSer del acto ético,
puede ejemplificarse en las artes preformativas que, como sabemos, en la América Latina, con su perfil
vanguardista y neo-vanguardista, están ligadas en una mayor o menor medida a la acción política. La
poesía puede lo mismo partir del grito “autoritario” que de un silencio interpelativo; su arquitectónica se
articula dentro de la conciencia de tener razón y tener el derecho a la postura lírica, identificando arte y
vida en la totalidad del acto ético; de hecho “se postula la integración de arte y vida, lo cual implica una
práctica de transformación de los soportes sociales, corporales y espaciales de la escritura y supone un
intenso manejo de la alegoría” (Carrasco 1989, 69).
Zurita: interlocutor de un Dios ausente
En busca de una voz propia, Raúl Zurita, poeta chileno que empieza a escribir en serio, responsable-
mente, en el peor momento de la dictadura militar, debe replantear tanto qué es lo que se puede decir
y en que espacio se puede realizar la voz y/o la escritura, a partir del hecho de que alrededor de él reina
un silencio social absoluto25 y una inaudibilidad que Bajtín describió como imagen misma del infierno.26
En la búsqueda de la posibilidad de una voz propia se ve compelido a buscar un nuevo espacio de la es-
critura y, en términos más amplios, de la expresión artística e ideológica, donde la voz silenciada pueda
ser oída virtualmente. Estos artistas conciben “la vida de uno y de los otros como la única obra de arte
que vale la pena ser ejecutada” (Rivera 96).
“Del cuerpo a la palabra”: el cuerpo se convierte en un espacio de la escritura mediante su someti-
miento a una auto-tortura que está remedando la tortura de los cuerpos de los otros de su generación:
Zurita se corta la cara en público, trata de cegarse echándose ácido a los ojos: un modo de romper el
silencio, vencer la barrera de la inaudibilidad. Hay otras “acciones de arte” “que consisten básicamente
en actos de intervención de determinadas situaciones de la vida pública e institucional” (Carrasco 69),
en una circunstancia que involucra tales posturas “románticas” 27 en riesgos reales, cuando la muerte
fácilmente puede cobrar un significado de acto constitutivo de la vida y del arte. Buscando este nuevo
espacio de la escritura poética, escribe en el cielo de Nueva York con los escapes de aviones. Pregunto:
¿acaso este “autoritarismo” poético no está sustentado en el apoyo coral, incluso en el nivel más prag-
mático? Necesitaba no sólo lectores, sino cómplices, para efectuar esta escritura cuyo destinatario es
un Dios declarado ausente.28 Y la “conciencia de tener razón”, la esencia de la postura poética, está más
que legitimada por una vida que se apuesta a sí misma por la posibilidad de hacerse oír.
Luis de Lión: la mirada devuelta
Luis de Lión (1939-1980), escritor guatemalteco de etnia kakchikel, se se sitúa a sí mismo en el reto
de establecer un contacto con la cultura dominante, pero no desde las reglas que ésta tradicionalmente
le impone. Por ejemplo, si hablara como guatemalteco no sería problemático (la palabra Guatemala
nunca aparece en las páginas de su novela); él prefiere hablar como indígena, y es un rol para el cual
debe buscar lenguaje, punto de vista, historia diferentes. Se niega a retomar el prejuicio histórico y
antropológico implícito acerca de su cultura indígena, para llevar a cabo su propia autodefinición des-
de la relación hacia lo hegemónico, pero enfocada desde su propio lado. No será el subalterno ante la

25 “Se puede decir que a partir del golpe de estado toda la realidad es aquello que no se dice en la conversación, hablar es ya ejercer un acto que en sí mismo
es sospechoso, y en él que cada interlocutor o cada emisor asume una especie de castigo, ejercer la palabra pasa a ser castigo” Cf. Rivera 1987, 92.
26 Cf. Bajtín 1996, 338.
27 Me refiero a la construcción de la vida propia como si fuera una obra de arte, concepto de origen romántico, que desde la variante rusa del romanticismo
fue retomado por los intelectuales del llamado “siglo de plata” ruso.
28 “La condición básica de la entonación lírica es una confianza inquebrantable en la simpatía de los oyentes” (Volóshinov 1926, 83). Se trata de un “oyente”,
un destinatario que sólo puede ser un portador de las valoraciones de aquel grupo social al que el poeta, como sujeto consciente de sí mismo, pertenece.
Es el borde en que la voz lírica es capaz de convertirse en portavoz de discursos ideológicos.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 16


hegemonía, objeto sin voz descrito por un sujeto “de razón”, víctima al lado de su defensor, etc. 29 Es
como si un objeto tradicional de la antropología y una muestra de museo se rebelara y manifestara
una autoconciencia al margen de los clichés occidentales. Paradójicamente, lo tiene que hacer, para ser
comprendido, en el formato discursivo (novela), para él importado, y en una lengua que no es la propia,
sino adquirida, para poder ser escuchado. Pero su voz no será condescendiente ni armoniosa. Lejos de
adoptar el formato “antropológico” y/o indigenista trillado, y de mostrar una imagen del indígena que
sobre todo complace al ego del opresor30 -”gracias, inditos, por su buen corazón”, comenta sarcástica-
mente-, permite entrever un rencor largamente contenido hacia su propio “otro”, el ladino, cuestiona su
controvertida relación secular que en muchos aspectos puede generar, más allá del rechazo, cuestiona-
miento, odio, auto-odio y la capacidad todavía no suficientemente explorada del ressentiment que es,31
al fin y al cabo, como dijo el filósofo, el motor de la Historia. El patos de un bienpensante liberalismo
occidental puede ser mal entendido por parte de los supuestamente beneficiados de tal actitud objetos
de la descripción etnográfica. De hecho, en el mundo entero estamos presenciando un despertar del
“otro-para-mí-que-yo-no-quiero-ser” en el mundo entero.32
Lo verdaderamente original e innovador en Luis de Lión es su capacidad de evadir la mirada cosificadora
que proviene del discurso hegemónico (el de la novela) por el cual debe optar para entablar el diálogo
en que pueda ser oído. Objeto permanente de una atención etnográfica, el sujeto rebelado confronta la
palabra ajena sobre su persona, una palabra que es la violencia misma.
La palabra violencia presupone un objeto ausente y callado, un objeto que no oye ni responde; la
palabra no se dirige a su objeto ni exige su consentimiento; es palabra in absentia. Lo que la palabra
dice acerca de su objeto jamás coincide con lo que el objeto puede decir de sí mismo [...] La palabra
quiere influenciar desde el exterior, definir desde fuera (Bajtín 1996, 66).
Luis de Lión debe luchar con la violencia implícita de la mirada y del discurso del otro mediante los
cuales debe analizar también a sí mismo: “Yo no poseo un punto de vista externo sobre mi persona,
carezco de enfoque hacia mi propia imagen interior. Desde mis ojos me miran los ojos del otro” (Bajtín
1996, 71). Más aun, Luis de Lión logra devolverle al otro su mirada. ¿Cómo se ve la verdad positiva de
la ciencia occidental desde el paisaje desolado postcolonial?33 Las realidades ya no se definen en función
de la verdad (religiosa, científica) como forma de poder, sino por el poder mismo (si retomamos el caso
desde el “orientalismo”). Estamos ante una situación verdaderamente explosiva, como han mostrado
los acontecimientos recientes.
En relación con la autoría conflictiva, hay que mencionar el género fronterizo de testimonio, que está
a caballo entre lo literario, en cuanto la forma de su articulación, y lo documental, donde el problema de
representación asimismo se intersecciona con los problemas teórico-literarios. Antropología y literatura
se cruzan otra vez de la manera más sofisticada.
Judith Thorn replantea el papel de la literatura en función del género de testimonio, muy a contrapelo
con la teoría literaria actual, que trata de divorciar definitivamente la literatura y la vida:
The struggle to reconcile the world as reported by others and the world as personally ex-
perienced has been dynamically reflected in the life work of artists of color throughout the
twentieth century. This parallels the discrepancy that often existed between life and theory.
Literature/writing as lifework has provided a previously unresolved venue of expression. The
‘novel’ has become a sentient, non-linear history and testimonial of life events, not only a
tool for colonial discourse (Thorn 38).

Menchú: ¿ventriloquia o heteroglosia?


El texto de Me llamo Rigoberta Menchú, y así me nació la conciencia, es un territorio en que literatura
y antropología se tocan de muchas maneras, así como se intersectan los dominios de antropología filosó-
fica y etnología.34 Es un texto que por su naturaleza no imita, como puede hacerlo la novela, el discurso
de la antropología, ni adopta los puntos de vista de ésta, sino que plantea la adecuación de un texto a
la vida -problema de la veridicción, el que desde teoría literaria se define como “ventrilocución” (hablar

29 Incluso se niega a ser víctima; colonialismo al revés. Cf. Thorn, 122.


30 Que en última instancia se remonta a la idea del “buen salvaje”, generada no para analizar la realidad del otro “vencido”, sino para servir como clave
explicativa del funcionamiento de la sociedad propia.
31 El auto-odio puede ser el efecto de la autoconciencia en las relaciones con el otro, los cambios identitarios (lingüísticos, ideológicos, culturales) que la
cultura indígena ha sufrido en la interacción con la occidental, que puede ser percibido como una especie de traición hacia su propia cultura e identidad (cf.
Bubnova 2002); la conciencia de la pérdida o disminución de su propia historia y tradición, en gran medida por los genocidios históricos y la aniquilación
cultural, etcétera. En el caso de Luis de Lión (que de hecho se llamaba Luis de León Díaz), su propio seudónimo literario parece ser una especie de réplica
hacia la cultura hispánica hegemónica: como su gran antecesor, es un Luis de León, pero con acento indio: Lión.
32 “En Guatemala no se trata sólo de tomar en cuenta al indio; se trata de que mañana el indio nos tome en cuenta” (cf. Cardoza y Aragón, Miguel Ángel
Asturias. Casi novela, Era, México, 1991, p. 115).
33 El proyecto truncado de Luis de Lión no se ajusta plenamente a las especificaciones que propone Graham Pechey para describir la situación postcolonial:
“[I]f we were to regard as ‘postcolonial’ any project of literature or language which takes its distance both from the metropolitan standard and from any
nativist dogma of the purity of the vernacular, emphasising instead an ineluctable creolization…” (Pechey 352), y eso por dos motivos: la primera condición
contradice el mismo principio del mestizaje (“hibridización”, “intertextualidad”, etc.), por una parte; la segunda no toma en cuenta el carácter catastrófico
del propio mestizaje, que Luis de Lión muestra. Como observa Vargas Llosa (78), “el mestizaje no es una aleación pacífica, un benigno proceso de inter-
cambios; su estímulo ha sido muchas veces el odio”.
34 Judith Thorn sitúa a sus heroes -Rigoberta Menchú y Víctor Montejo-en el mismo tramo del gran tiempo que a Bajtín (Thorn 14-15), y los “pone a
dialogar” en su libro.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 17


por el otro)-,35 además de que un testimonio siempre puede ser rechazado o bien puesto en duda por
otro testimonio. En la etnografía actual se dan dos formatos para la “veridicción”: el realista, “que cuenta
lo que sabe”, y el confesional, “que describe cómo llegó a saberlo” (Sklodowska 1993, 82). El texto de
Menchú, ¿posee doble autoría, a modo de articulación de los textos “deuterocanónicos” de Bajtín? De
quién es la voz “autorial” en el texto, ¿de Rigoberta Menchú o de Elizabeth Burgos, la antropóloga que
realizó la transcripción de su vida? ¿Es el de Burgos un intento por practicar “la antropología dialógica”?36
¿O es, por el contrario, el reporte tradicional de algo que ella apropia? Y sobre todo la cuestión de la
verdad se cruza (hace una refracción) en el discurso. Las inflexiones discursivas de la voz ausente de
quien “redacta” el texto, ¿son analizables como alteradoras del sentido y de la verdad? Los problemas de
la palabra ajena, en este caso, pueden supuestamente resolverse en un intento por traducir la alteridad
mediante la escritura de la voz, “conforme al deseo de Occidente de leer estos productos” (Sklodowska
82). Los polemistas alegan que como resultado tenemos una “ficción de identidad” (ibid., 98). La ven-
triloquia nos enfrenta a la “indignidad de hablar por el otro”, pero en nuestro caso el problema es doble.
Burgos “habla” por Menchú. Todo esto podría derivar en un vulgar pleito por la autoría.37 Pero, dadas las
características de la mentalidad maya, que tiene su correspondiente correlato en la lengua,38 Menchú
de veras se concibe a sí misma como parte y portavoz de su gente. Porque su lengua materna, el qui-
ché, así recorta el mundo, y al parecer ella inconscientemente proyecta esta visión al español, de modo
que la hibridación se dé no sólo a nivel de la sintaxis o gramática, sino entre dos visiones del mundo.
La categoría de nosotros es extremadamente importante en las lenguas mayas, mientras que el sujeto
colectivo es algo que sólo pálidamente está presente en las lenguas indoeuropeas (el nosotros no es
sino el plural del yo). Se trata justamente de una visión del mundo codificada en la lengua:39 desde este
punto de vista, es Menchú la que habla por otros, transportando su cosmovisión al español en que habla
todavía con dificultad (en el momento en que Burgos graba sus entrevistas).
Por otra parte, casos de testimonios de signo opuesto (ver Zimmerman) presentan un contrapunto
social del mismo problema, al dar una interpretación distinta de supuestamente la misma experiencia.
En realidad, el problema que a primera vista plantea el texto de Menchú/Burgos es más característico
de la teoría antropológica que de la literaria. Es el de la relación entre palabra propia y palabra ajena,
formulado por Bajtín como fundamento del dialogismo. Actualmente, la antropología postmoderna y “dia-
lógica” se lo plantea a sí misma como problema principal del discurso de la disciplina (“an anthropology
that actively acknowledges the dialogical nature of its own production”, Mannheim & Tedlock 2). “The
fact [is] that any representation alters what it represented” (ibid., 7). La antropología se preocupa por
la objetividad y verdad científica. La literatura (objeto de estudio y la disciplina misma) reconoce (tras
Bajtín, aunque sea en forma de la intertextualidad) este fenómeno como elemento más importante del
arte de novelar, que no se preocupa por la verdad en la misma forma que la antropología. No obstante, el
problema de la veridicción y, más ampliamente, de la verdad, sí se encuentra en el horizonte bajtiniano,
justamente en el punto donde literatura y antropología tienen ambas valor de acto ético.
G.G.P.: antropología inversa de un “antropoloco” fronterizo
Y finalmente nos acercamos a la frontera donde supuestamente Latinoamérica termina, y empieza la
otra América, la que lo quiere ser por cuenta propia.
Entre la práctica del performance, que es una forma de proclamar urbi et orbi la identificación entre
vida y arte, me detendré en el idiosincrático “performero” mexicano-chicano Guillermo Gómez Peña,
porque se sitúa a sí mismo, en términos para-bajtinianos, en una zona de la frontera entre México y
Estados Unidos, y porque define paródicamente su arte como una antropología invertida. Por supuesto
se trata de prácticas festivas y carnavalizantes, y la mayoría de sus actos son farsas. No obstante, en lo
fársico hay un elemento serio: concibe el performance “como un ejercicio de libertad ciudadana y como
un experimento de sociología y antropología radicales” (Gómez Peña 43).
Además de sus actos preformativos, algunos de los cuales lo han puesto en riesgos serios (como
una crucifixión que realizó de sí mismo y de un compañero, que puso en peligro su vida, aunque con un
resultado cuasi cómico), es autor de algunos poemas y de textos teóricos que más son manifiestos que
reflexiones independientes: en realidad, por lo general son una compilación de los lugares comunes del
postcolonisalismo y multiculturalismo). El carácter lúdico de sus actos no permiten hacer paralelo serio
con la poesía o, más bien, con el posicionamiento teórico-performativo de Raúl Zurita. No obstante, usa
muchos conceptos y algunas ideas bajtinianas, captadas por ósmosis, que permean su obra cuestiona-
dora.

35 Michael Holquist habló de los textos deuterocanónicos de Bajtín (los firmados por Volóshinov, Medvédev y Kanáev) en términos de ventrilocución. De la
‘ventriloquia’ de los textos llamados testimoniales habló E. Sklodowska. Por otra parte, Pedro Pitarch al hacer una antropología del alma tzeltal muestra la
palabra convertida en acción. El chamán es ventrílocuo, porque transmite las voces que provienen del ch’ul -la otra realidad paralela que complementa la
espiritualidad tzeltal-, y al mismo tiempo él antropólogo es ventrílocuo en segundo grado, cuando en su lengua, y con base en sus herramientas metodoló-
gicas ajenas a la cultura que describe, hace un esquema del alma tzeltal. Es una metáfora ad hoc para que veamos la situación bajtiniana: si todo discurso
es proceso de ventrilocución, todos nosotros somos ventrílocuos del pensamiento bajtiniano, esta es la condición pluri- e interdiscursiva del bajtinismo.
36 Cf. Tedlock y Mannheim, 1-32.
37 Aunque Menchú no accede a este; cf. Thorn 46. Thorn ve cierta analogía entre la situación autorial Bajtín/Volóshinov (y Medvédev) y Menchú/Burgos.
La analogía va más allá de los que ella sospecha: la bajtinología occidental es incapaz de comprender por qué Bajtín nunca se atribuyó los textos que otros
le atribuyeron (por ejemplo, el Marxismo y la filosofía del lenguaje y El Método formal en los estudios literarios). Para los occidentales, si Bajtín no se los
atribuyó, es porque no los escribió. Para los bajtinólogos rusos, es exactamente al revés: no los admitió como propios porque los dio -los escribió para otros-,
y no iba a quitar a los muertos lo que una vez les había dado. Cuestión de arquitectónica.
38 Y las lenguas, de acuerdo con Bajtín, son visiones del mundo.
39 Ver también Lenkersdorf y Volóshinov (sobre “experiencia-nosotros”).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 18


El proyecto de Guillermo Gómez Peña, “cruzador de fronteras”, “postmexica, prechicano, panlatino,
transterrado, arteamericano” (47) se sitúa en la frontera México-Estados Unidos, donde se ha creado
una cultura aparte, que se plantea y se cuestiona la identidad en presencia de las transformaciones pos-
modernas y de las prácticas artísticas multi- e interdisciplinarias trasgresoras, que pueden explicarse y
comentarse como in praesentia de las ideas de Bajtín, como una nueva carnavalización. La antropología
está en el centro de esta actitud transgresora, como institución, como técnica de investigación y como
disciplina. “La línea entre Tijuana y San Diego es un lugar de inmensos contrastes donde el Otro es una
presencia permanente, amenazadora, exótica, envidiada y rechazada al mismo tiempo. En las fronteras
los opuestos se diluyen, de ahí la insistencia por mostrar las diferencias. Cuando el contacto cultural se
da en los dos sentidos se produce la transculturación” (Gómez Peña 29). Lo notable es que es consciente
de la reversibilidad del concepto de otro. Sus dardos están dirigidos tanto a un lado de la frontera como
al otro. Así, practica la denigración carnavalesca de la “cultura oficial mexicana” (47), a la que sitúa en
“Estados Unidos de Aztlán, EUA).
En uno de sus “actos, “Los antropolocos Chicanos capturan a una pareja de salvajes anglosajones”.
Los papeles tradicionales entre objeto y sujeto de observación científica se invierten (132).
Juega ampliamente con palabras híbridas: Nuevo Border Mundial, Lost Angeles.
“Yo más bien opto por la ‘fronteridad’ y asumo mi coyuntura: vivo justo en la grieta de dos mundos,
en la herida infectada: a media cuadra del fin de la civilización occidental y a cuatro millas del principio
de la frontera México-americana, el punto más al norte de Latinoamérica. En mi multirrealidad fracturada,
pero realidad al fin, cohabitan dos historias, lenguajes, cosmogonías, tradiciones artísticas y sistemas
políticos drásticamente opuestos (la frontera es el enfrentamiento continuo de dos códigos referenciales”
(Gómez Peña 48).
“Nuestro producto artístico plantea realidades híbridas y visiones en coalición. Practicamos la episte-
mología de la multiplicidad y la semiótica fronteriza” (50).
“Y las juventudes fronterizas [...], hijos de la grieta que se abre entre el ‘primer’ y ‘el tercer’ mundos,
se convierten en los herederos indiscutibles de un nuevo mestizaje” (52).
Para Gómez Peña, conceptos como “identidad cultural” son espejismos (“ridiculeces y anacronismos”
52). “Cuando un artista ha sido ‘desterritorializado’, su identidad cultural inevitablemente adquiere re-
pertorios múltiples. El artista ‘monocultural’ está más interesado en proteger su frágil identidad” (52).
Busca “un diálogo futuro capaz de trascender los profundos resentimientos históricos que hay entre las
comunidades de ambos lados de la línea” (58).
Conclusión
Todas estas maneras de “hacer antropología” pueden analizarse, cada una de ellas, dentro de su campo
específico, literario, cultural, etnológico, etc., pero me ha interesado encontrar un denominador común
entre ellos y, como he dicho antes, el gesto metodológico es el de situar los fenómenos mencionados en
el terreno del acto ético, en un espacio anterior a su clasificación y desglose por géneros y dominios. El
sentido específico de la responsabilidad, la identificación de la obra con la vida, la ubicación “fronteriza”
del sujeto, en cada caso diferente a su modo, de todos los “portadores de la palabra” sobre sí mismos y
sobre el mundo que he revisado, permite verlos desde el punto universalmente humano. Y, para terminar
con las palabras de Alejo Carpentier, “...la grandeza del hombre está precisamente en querer mejorar
lo que es. En imponerse Tareas... Agobiado de penas y de Tareas, hermoso dentro de su miseria, capaz
de amar en medio de las plagas, el hombre sólo puede hallar su grandeza, su máxima medida en el
Reino de este mundo”. El acto concebido en el espíritu de Bajtín se articula en este mundo, para llegar
a permanecer, como un sentido, en el gran tiempo.
Bibliografía
ADORNO, Rolena, “El sujeto colonial y la construcción cultural de la alteridad”, Revista de Crítica Literaria Latinoa-
mericana, 28 (1988), 55-68.
ARGUEDAS, José María, El zorro de arriba y el zorro de abajo, edición crítica Eve-Marie Fell (coord.), ALLCA XX/Fondo
de Cultura Económica, 2ª ed., 1996.
ARGUEDAS, José María, Formación de una cultura nacional indoamericana, Siglo XXI, México, 1981.
BAJTÍN, Mijaíl, Estética de la creación verbal [1979], trad. T. Bubnova, Siglo XXI, México, 1982.
BAJTÍN, Mijaíl, Hacia una filosofía del acto ético y otros escritos [1986], trad. T. Bubnova, Anthropos, Barcelona,
1996.
BAJTÍN, Mijaíl, Obras, vol. 5 [en ruso], Russkie Slovari, Moscú, 1996.
BRANDIST, Craig, The Bakhtin Circle. Philosophy, Culture and Politics, Pluto Press, London - Sterling, VA, 2002.
BROTHERSTON, Gordon, “Tupac Amaru dismembered: José María Arguedas”, en su The Emergence of Latin American
Novel, Cambridge University Press, Cambridge, 1979, pp. 98-109.
BUBNOVA, Tatiana, “Palabra propia, palabra ajena”, en Tópicos del seminario (Universidad Autónoma de Puebla), 5
(2001), 115-134.
BUBNOVA, Tatiana, “Más allá de la ‘etnoficción’, o cuando el otro habla”, en Lecciones de extranjería. Una mirada a la
diferencia, ed. Esther Cohen y Ana María Martínez de la Escalera, Siglo XXI, México, 2002.
CLIFFORD, James, and George M. MARCUS (eds.), Writing Culture. The Poetics and Politics of Ethnography, University
of California Press, Berkeley - Los Angeles - London, 1986.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 19


CLIFFORD, James, “Sobre la autoridad etnográfica” [1988], en Reynoso, 1996, pp. 141-170.
CLIFFORD, James, Itinerarios transculturales, Gedisa, Barcelona, 1999.
CORNEJO POLAR, Antonio, “La novela indigenista: un género contradictorio”, Texto crítico, 14 (1979), 58-70.
DEHOUVE, Danièle, “Un dialogue de sourds: les Colloques de Sahagún”, en MONOD y ERICKSON, Les rituels du dia-
logue, pp. 199-234.
FARACO, Carlos Alberto, TEZZA, Cristovão, y Gilberto de CASTRO (compiladores), Diálogos com Bakhtin, Editora
UFPR, 3a ed., Curitiba, 2001.
FERRARI, Américo, “El concepto de indio y la cuestión racial en el Perú en los Siete ensayos de José Carlos Mariáte-
gui”, Revista Iberoamericana, 127 (1984), 395-409.
GARCÍA CANCLINI, Néstor, Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir de la modernidad Grijalbo, México,
1990.
GEERTZ, Clifford, El antropólogo como autor [1989], trad. Alberto Cardín, Paidós, Barcelona, 1989.
GEERTZ, Clifford, “La refiguración del pensamiento social”, en Reynoso, 1996, pp. 63-77.
GÓMEZ-MORIANA, Antonio, et Danièle TROTTIER (eds.), L’”Indien”, instance discoursive. Actes du Colloque de Montréal
1991, Les Éditions Balzac, Candiac, Québec, 1993.
GÓMEZ PEÑA, Guillermo, El MEXtermitator. Antropología inversa de un performancero postmexicano, introducción y
selección de Josefina Alcázar, Editorial Océano, México, 2002.
GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, Roberto, Mito y archivo. Una teoría de la narrativa latinoamericana [1990], trad. Virginia
Aguirre Muñoz, Fondo de Cultura Económica, 2ª ed., México, 2000.
GRANDIS de, Rita, “Le regard anthropologique d’Arguedas ou l’évaluation de l’”Indien” par le “Métis”, en GÓMEZ-
MORIANA et TROTTIER, L’”Indien” instance discoursive, pp. 337-350.
HIRSCHKOP, Ken, Mikhail Bakhtin: An Aesthetic for Democracy, Oxford University Press, Oxford, 1999.
HODGEN, Margaret, Early Anthropology in the Sixteenth and Seventeenth Centuries, University of Pennsylvania Press,
Philadelphia, 1971.
LENKERSDORF, Carlos, Filosofar en clave tojolabal, Miguel Ángel Porrúa, México, 2002.
LEÓN-PORTILLA, Miguel, “Trauma cultural, mestizaje e indigenismo en Mesoamérica”, Cuadernos Americanos, 201
(1975), 113-133.
LEÓN-PORTILLA, Miguel (coord.), Motivos de la antropología americanista. Indagaciones en la diferencia, FCE, México,
2002.
LÉVI-STRAUSS, Claude, Tristes Trópicos [1955], trad. Noelia Bastard, Eudeba, 2ª ed., Buenos Aires, 1973.
LIENHARD, Martin, La voz y su huella. Escritura y conflicto étnico-cultural en América Latina (1492-1988). Ediciones
del Norte, Hanover, N. H., 1988.
LIENHARD, Martin, “La ‘andinización’ del vanguardismo urbano”, en Arguedas, El zorro de arriba y el zorro de abajo,
ed. Eve-Marie-Fell, pp. 321-332.
LIENHARD, Martin (ed.), Ritualidades latinoamericanas. Un acercamiento interdisciplinario. Iberoamericana Ed. Ver-
vuert, Madrid, 2003.
MONOD BECQUELIN, Aurore, et Philippe ERIKSON (eds.), Les rituels du dialogue, Société d’Ethnologie, Nanterre,
2000.
ORTIZ, Fernando, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, Biblioteca Ayacucho, Caracas, 1978.
PANICH, O. L., “¿Es possible un ‘Diálogo con la metafísica’?” [en ruso], Dialog. Carnaval. Khronotop, 1 (1999), 159-
178.
PANTIGOSO, Edgardo J., La rebelión contra el indigenismo y la afirmación del pueblo en el mundo de J. M. Arguedas,
Juan Mejía Baca, Lima, 1981.
PASTOR, Beatriz, “Utopie et conquête”, en Gómez-Moriana et Trottier, L’”Indien”, instance discoursive, pp. 95-114.
PECHEY, Graham, “Bakhtin and the Postcolonial Condition”, en Critical Essays on Mikhail Bakhtin, ed. Caryl Emerson,
G. K. Hall & Co, New York, 1999, pp. 347-354.
PETRICH, Perla, “Diálogos entre el antropólogo y el informante”, en Monod y Erickson, Les rituels du dialogue, pp.
347-366.
PERUS, Françoise, “El dialogismo y la poética histórica bajtinianos en la perspectiva de la heterogeneidad cultural y
la transculturación narrativa”, Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, 42 (1995), 29-44.
PITARCH, Pedro, Ch’ulel: una etnografía de las almas tzeltales, México, Fondo de Cultura Económica, 1996.
RAMA, Ángel, Formación de una cultura nacional indoamericana, Siglo XXI, México, 1981.
RAMA, Ángel, Transculturación narrativa en América Latina, Siglo XXI, México, 1982.
REINHARDT, Mark, “Slavery, silence, and ventriloquism”, Critical Inquiry, 29:1, Autumn 2002, 81-119.
RENFREW, Alastair, “‘We Are the Real’: Bakhtin and representation of Speech”, en The Contexts of Bakhtin: Philosophy,
Authorship, Asthetics, ed. David Shepherd, pp. 121-138.
REYNOSO, Carlos (compilador), El surgimiento de la antropología posmoderna, trad. C. Reynoso, GEDISA, Barcelona,
1996.
REYES, Alfonso, Obras, vol. XIV, FCE, México, 1962.
RIBEIRO, Darcy, Indianidades y venutopías, trad. Osvaldo Pedroso, Ediciones del Sol - CEHASS, 2ª ed., Buenos Aires,
1992.
RIVERA, Héctor, “Chile: Salir de las catacumbas. Diálogo con Raúl Zurita” (entrevista), Casa de las Américas, 27
(1987), 90-104.
SAID, Edward, Orientalismo [1978], trad. María Luisa Fuentes, Libertarias/Prodhufi, S. A., Madrid, 1990.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 20


SHEPHERD, David (ed.), The Contexts of Bakhtin: Philosophy, Authorship, Aesthetics, Sudies in Russian and European
Literature, volume 2, Harwood Academic Publishers, 1998.
SKLODOWSKA, Elzbieta, “Miguel Barnet: hacia la poética de la novela testimonial”, Revista de Crítica Literaria Lati-
noamericana, 27 (1988), 139-149.
SKLODOWSKA, Elzbieta, “Testimonio mediatizado: ¿ventriloquia o heteroglosia? (Barnet/Montejo; Burgos/Menchú)”,
Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, 38 (1993), 81.90.
TEDLOCK, Dennis, y Bruce MANNHEIM (eds.), The Dialogic Emergence of Culture, The University of Illinois Press,
Urbana and Chicago, 1995.
TEDLOCK, Dennis, “El surgimiento de la antropología dialógica en las Américas”, en León-Portilla, Motivos de la an-
tropología americanista, pp. 460-500.
THORN, Judith, The Lived Horizon of My Being. The Substantiation of the Self & Discourse Od Resistance in Rigoberta
Menchú, M. M. Bakhtin and Víctor Montejo, Arizona State University, Special Studies 29, 1996.
VARGAS LLOSA, Mario, La utopía arcaica. José María Arguedas y las ficciones del indigenismo, Fondo de Cultura
Económica, México, 1996.
WALL, Anthony, “Chatter, Babble, and Dialogue”, en The Contexts of Bakhtin: hilosophy, Authorship, Aesthetics, ed
David Shepherd, pp. 197-209.
ZAVALA, Iris, La posmodernidad y Mijaíl Bajtín. Una poética dialógica, trad. Epicteto Díaz Navarro, Espasa-Calpe,
Madrid, 1991.
ZAVALA, Iris, Escuchar a Bajtín, Montesinos, Madrid, 1998.
ZIMMERMAN, Marc, “El otro de Rigoberta: los testimonios de Ignacio Bizaro Ujpán y la resistencia en Guatemala”,
Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, 18, 1992, 229-43.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 21


Dialogismo e alteridade na utilização da imagem técnica na pesquisa em
ciências humanas: questões éticas e metodológicas1

Solange Jobim e Souza2

Departamento de Psicologia - PUC-Rio

Faculdade de Educação - UERJ

soljobim@psi.puc-rio.br - www.gips.psi.puc-rio.br
O espelho
Um homem assustador entra e se olha no espelho.
“Por que está se olhando no espelho, se somente com
desagrado pode se ver?
O homem assustador me responde: “Senhor, de acordo
com os imortais princípios de 89, todos os homens
são iguais em direitos; tenho, portanto, o direito de
me olhar; com ou sem agrado, isso é com a minha
consciência.”
Em nome do bom senso, sem dúvida, eu estava com
a razão; mas do ponto de vista da lei, ele não estava
errado.
Charles Baudelaire

Estamos vivendo um momento em que a visibilidade está na ordem do dia. Com ou sem movimento, as
imagens que circulam na sociedade já possuem espaço cativo em nossas vidas. Aos outdoors, programas
de TV, cinema, fotografias não deixamos mais de dirigir nossos olhares. São imagens que já fazem parte
de nossos sonhos, ajudam a criar e sustentar nossos desejos e acompanham nossos pensamentos.
Com efeito, as imagens técnicas se estabeleceram no cotidiano anunciando os novos tempos. Filmamos
tudo: ultra-sonografias, partos, aniversários, casamentos, além de estarmos habituados a conviver com
câmaras em nossas atividades cotidianas em bancos, super-mercados, elevadores, lojas, restaurantes
etc. Até mesmo na rua, quando nos deslocamos de um lado para o outro, somos observados por câma-
ras que acompanham nosso trajeto. Não há como escapar deste olhar máquina que re-significa nossa
presença no mundo, criando comportamentos e experiências subjetivas inteiramente novas.
Refletir sobre as questões suscitadas pela imagem técnica é também procurar uma ampla e profun-
da compreensão sobre a nossa história, nossa cultura e nossos modos de subjetivação. O modo como
passamos a integrar as imagens técnicas na nossa experiência cotidiana nos remete a uma questão
fundamental, qual seja, ao invés de nos servirmos das imagens em função do mundo, passamos a viver
o mundo em função das imagens. Isto significa dizer que a abundância de imagens técnicas pode difi-
cultar o funcionamento pleno de nossa capacidade de decifrar as cenas que se apresentam na forma
de imagens como significados construídos. Isto acontece quando deixamos de compreender as imagens
técnicas como produções culturais e subjetivas, assumindo-as como revelações objetivas do próprio
mundo. Esta aparente objetividade das imagens técnicas é uma ilusão que precisa ser compreendida
como tal, pois as imagens técnicas são tão simbólicas como qualquer imagem. Melhor dizendo, a imagem
é signo, portanto linguagem. O mundo, cada vez mais, se revela por meio de narrativas figuradas, exi-
gindo a presença de um novo leitor. Portanto, a imagem técnica deve ser decifrada para que as diversas
camadas de significado nela contidas possam emergir no discurso em forma de texto. Compreender
uma imagem é poder percorrer, no sentido inverso, o caminho de seu processo de criação. Uma imagem
técnica esconde conceitos e sentidos que lhe deram origem, portanto, decifrá-la é procurar reconstituir

1 Este texto foi elaborado tendo por base as reflexões teóricas e metodológicas realizadas no âmbito do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa da Subjetividade
– GIPS, Departamento de Psicologia, PUC-Rio, contemplando as discussões com os membros da equipe. Cabe ressaltar um agradecimento especial aos alunos
da pós-graduação que desenvolveram a pesquisa de campo com recursos de videogravação e fotografia. São eles: Ana Elizabete Lopes, Cristiana Caldas,
Denise Gusmão, Luciana Sander, Luciana Lobo, Maria Florentina Camerini, Newton Gamba Junior, Raquel Salgado e Rita Ribes Pereira.
2 Departamento de Psicologia, PUC-Rio; Faculdade de Educação, UERJ. Consultora da Multirio – Empresa Municipal de Multimeios do Rio de Janeiro.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 22


o texto ou os textos que tal imagem contém. Estes textos são o modo como inventamos o mundo como
abstração conceitual, melhor dizendo, o mundo revelado a nós através de conceitos. Portanto, o que
vemos “ao contemplar uma imagem técnica não é o “mundo”, mas determinados conceitos relativos ao
mundo, a despeito da automaticidade da impressão do mundo sobre a superfície da imagem”. (Flusser,
1998, p .35).
Esta questão apresentada por Vilém Flusser nos remete a uma reflexão um tanto contemporânea,
presente, inclusive, em filmes de ficção científica3, que é a relação, atualmente experimentada, entre
o virtual e o real. Nossa intenção é mais afirmar o jogo que existe entre essas duas instâncias do que
reiterar a sua dualidade. Apostamos, assim, na articulação entre essas duas dimensões em torno da
produção de sentidos sobre o mundo. O virtual, mais do que sinônimo de ilusão ou falsidade, compreende
um outro espaço de experimentação da própria realidade, proporcionado pelo convívio cotidiano com a
imagem técnica. Pierre Lévy (1999) enfatiza a dimensão criativa do virtual, cujo movimento é indagar
sobre o que já existe, apontando novas questões que se atualizarão. Deste modo, o virtual, no contexto
de nossas indagações, refere-se a desestabilizações, porque suscita questões, ao invés de apontar solu-
ções, instaurando muito mais transformações de identidade do que um processo de desrealização.
As alterações subjetivas, marcadas pela gradativa experimentação virtual da realidade, têm provocado
novos perfis culturais. Quanto a isto, muitas questões estão sendo feitas, poucas respondidas, e outras
tantas estão por se fazer. No campo das ciências humanas e sociais, não podemos mais negligenciar as
mudanças na vida social desencadeadas pelo diálogo que as imagens travam conosco. Cabe destacar,
entretanto, dois aspectos fundamentais: o primeiro aspecto diz respeito ao fato de que esta experiência
está sendo incorporada como hábito, ou seja, o efeito da cultura da imagem se revela no comportamento
das pessoas e é assumido de modo natural, sem muitas indagações ou questionamentos; o segundo
aspecto é como criar estratégias que permitam o estranhamento desta postura e intervir neste processo
de modo consciente, construindo os conceitos necessários para desenvolvermos uma atitude crítica sobre
o modo como a cultura da imagem penetra e transforma nossa experiência subjetiva no mundo.
Em síntese, temos a própria experiência disseminada entre as pessoas como resultado da cultura de
uma época; entretanto, faz-se necessário buscar uma compreensão destas transformações, construindo
conceitos que nos permitam ter acesso a uma consciência mais elaborada dos acontecimentos contem-
porâneos. Este último aspecto se refere ao espaço que deve ser preenchido pelo trabalho da pesquisa
em ciências humanas que, através do uso da imagem técnica, pode abrir fronteiras para explorarmos
com mais profundidade a cultura da imagem e as novas experiências subjetivas. Pesquisar é um proces-
so de desencantamento e de encantamento simultâneos do mundo físico e social. Pesquisar é também
penetrar na intimidade das camadas de leitura que vão sendo construídas pelo pesquisador através da
sua interação simbólica no mundo. Os meios simbólicos não cessam de alimentar a compreensão que
construímos das experiências contemporâneas, criando sempre novas possibilidades de interpretação
de uma realidade em permanente mutação.
Neste sentido, apostamos que a pesquisa em ciências humanas pode se beneficiar do uso das imagens
técnicas como instrumentos mediadores e reveladores das intensas experiências culturais e subjetivas que
estamos vivendo no momento atual. Se, por um lado, podemos afirmar que os usos da vídeogravação, da
fotografia e da Internet vêm ganhando um espaço cada vez maior na vida social, consolidando práticas
culturais e criando novos hábitos, por outro, no campo da pesquisa, embora ganhando crescente credi-
bilidade, as discussões metodológicas sobre o uso destes aparatos técnicos são ainda muito insipientes4.
Vale sublinhar que os modos de produção de conhecimento não podem estar desvinculados das práticas
sociais e culturais cotidianas. De fato, o que se observa é que estas práticas começam a exigir a criação
de estratégias de investigação condizentes com a experiência do sujeito contemporâneo de ver e de ser
visto através da mediação de instrumentos técnicos.
O objetivo deste texto é encaminhar reflexões preliminares sobre questões éticas e metodológicas
relativas ao uso da imagem técnica na pesquisa em ciências humanas. Para tanto, encontramos em
Mikhail Bakhtin, dois conceitos fundamentais, dialogismo e alteridade, que, conjugados com uma deter-
minada visão de mundo, irão orientar nossas reflexões nesta direção. Embora Bakhtin tenha dedicado
grande parte de sua obra à análise de textos literários, suas reflexões, no campo da criação estética, nos
permitem estender suas considerações teóricas e metodológicas a enunciados que escapam da forma
oral e escrita, como é o caso das imagens técnicas. Neste sentido, admitimos ser possível ler as imagens
técnicas como enunciados que carregam, também, sentidos tensos, expressos sob a conjugação de sons,
falas, movimentos e imagens. Portanto, nossa proposta é analisar e discutir o uso da imagem técnica na
pesquisa acadêmica, abrindo o debate para as questões éticas e metodológicas que se apresentam na
atualidade, lançando novos desafios epistemológicos para as ciências humanas.
O olhar e a palavra na construção da consciência de si e o aparecimento
de uma nova mediação - a câmara
A compreensão que o sujeito tem de si se constitui através do olhar e da palavra do outro. Cada um
de nós ocupa um lugar determinado no espaço e deste lugar único revelamos o nosso modo de ver o
3 O filme “Matrix” é um dos gêneros recentes que tematiza a interpenetração do virtual no real.
4 Recentemente Cristiana Caldas Guimarães de Campos realizou um levantamento bibliográfico sobre o usos da videogravação na pesquisa no campo da
psicologia e da educação e constatou a insuficiência do debate metodológico nesta área. Ver dissertação de mestrado intitulada “Regras: conflito e trans-
gressão. Em busca da dimensão alteritária infância/adulto na relação família/escola, de Cristiana Caldas Guimarães de Campos, Departamento de Psicologia,
PUC-Rio, 2000.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 23


outro e o mundo físico que nos envolve. Nesta perspectiva de análise, a ênfase está no lugar ocupado
pelo olhar e pela palavra na constituição do sentido que conferimos à nossa experiência de estar no
mundo. Ao observarmos as interações sociais e os enunciados que emergem na vida cotidiana consta-
tamos a nossa necessidade absoluta do outro. Nossa individualidade não teria existência se o outro não
a criasse. O território interno de cada um não é soberano, como bem explicita Mikhail Bakhtin (1985),
pois ser significa ser para o outro e, por meio do outro, para si próprio. É com o olhar do outro que me
comunico com o meu interior. Tudo o que diz respeito a mim chega a minha consciência através do olhar
e da palavra do outro, ou seja, o despertar da minha consciência se realiza na interação com a cons-
ciência alheia. Bakhtin recorre ao conceito de exotopia5 para explicitar o fato de uma consciência estar
fora de outra, de uma consciência ver a outra como um todo, o que ela não pode fazer consigo própria.
Diz o autor que há uma limitação intransponível no meu olhar que só o outro pode preencher. Cada um
de nós se encontra na fronteira do mundo que vê. Aproximando os conceitos de exotopia e dialogismo,
ou seja, a experiência espacial do olhar com a experiência vivida na linguagem, Bakhtin dirá que do
mesmo modo que a minha visão precisa do outro para eu me ver e me completar, minha palavra precisa
do outro para significar.
Num primeiro momento podemos constatar que a visibilidade do sujeito, em relação ao seu lugar
espacial no mundo e a tomada de consciência em relação a si próprio, é determinada pelo olhar e pela
linguagem do outro. Uma dada pessoa, do seu ângulo de visão, pode mediar, com o seu olhar, aquilo que
em mim não pode ser visto por mim. Portanto, a construção da consciência de si é fruto do modo como
compartilhamos nosso olhar com o olhar do outro, criando, desta forma, uma linguagem que permite de-
cifrar mutuamente a consciência de si e do outro no contexto das relações sócio-culturais. Essa dimensão
alteritária vivida pelo sujeito no âmbito das interações sociais serve como um espelho daquilo que em
mim se esconde, e que só se revela a mim na relação com o outro. Nesta perspectiva, o outro ocupa o
lugar da revelação daquilo que desconheço em mim. Nosso propósito é deslocar as reflexões de Bakhtin,
extraídas do contexto da criação estética, para analisarmos a experiência que travamos cotidianamente
com as câmaras, ou melhor, com as máquinas de visão, como um modo de ampliarmos o campo de nossa
percepção, transformando a nossa experiência com o conhecimento e com a linguagem.
No mundo atual o olhar entre pessoas se expande e se beneficia com o uso da técnica, pois não
somos mais apenas olhados pelo outro, mas por objetos que se comunicam conosco de modo peculiar,
exigindo novas maneiras de interlocução e de revelação. Estamos falando das máquinas de visão criadas
a partir do século XIX (fotografia, cinema, vídeo, internet,...) e que vêm desencadeando novas maneiras
de tomarmos consciência do mundo e de nós mesmos. Ao analisarmos os relatos de pessoas que vive-
ram esta experiência no contexto da pesquisa acadêmica, destacamos alguns pontos interessantes para
debate, como veremos a seguir.
Estranhando o que é familiar
A sensação de estranhamento é um relato comum das pessoas que observam a sua própria imagem
reproduzida na tela. É como se estivéssemos diante de um eu que é, ao mesmo tempo, um outro. Diria
que neste momento a reprodução técnica da imagem de si proporciona uma tomada de consciência da
dimensão alteritária do sujeito consigo próprio. Ou melhor, a experiência da mediação da imagem pelo
instrumento técnico proporciona uma tal visibilidade do sujeito em relação a si próprio que desencadeia
uma sensação paradoxal, ou seja, o sentimento de estranharmos aquilo que nos é familiar - a nossa
própria imagem. O sujeito se dá conta daquilo que nele é diferente, não reconhecível como parte de si
próprio. Entretanto, posteriormente, pode assimilar esta nova visada de si como própria e incorporá-la
em sua consciência, assumindo-a como familiar. Neste momento constamos que houve uma transfor-
mação da consciência de si.6,7
Uma outra questão para analisarmos diz respeito ao vídeo como desencadeador de uma relação ambi-
valente entre o sujeito e as possibilidades oferecidas pela câmara, pois a sensação de perda de controle da
própria imagem e do seu discurso é um fenômeno que se inibe e ameaça, também seduz. Seduz porque
no centro da consciência de sermos sujeitos efêmeros existe o desejo de permanência da nossa imagem,
da nossa presença no mundo, experiência que agora é re-criada pela técnica. De fato, o sujeito que se
coloca disponível para uma câmara sabe que a sua imagem ao descolar-se de si ganha uma existência
própria e poderá, portanto, ser retomada por outras pessoas desencadeando interpretações infinitas.
Este mesmo efeito foi alcançado também quando se constituiu a escrita, mas de modo evidentemente
diverso deste que vivemos com a câmara. Cabe analisar a especificidade desta revelação desencadeada
no sujeito pela técnica que reproduz infinitamente sua imagem através do espaço e do tempo.
Da tensão entre o estranhamento e a ambivalência na relação com a imagem de si e do outro, sur-
ge, portanto, um outro estágio - aqui denominado estágio da dimensão lúdica, em que brincar com as
possibilidades geradas pela duplicação da própria imagem passa a ser um desafio para os processos de
criação estética e de produção de conhecimento. Recuperar a relação lúdica com o instrumento técnico
é reconhecê-lo como produto de nossa imaginação e, portanto, resultado de nosso esforço e desejo
histórico de continuar o processo de criação da própria existência, rejeitando o controle e a submissão
passivas ao mundo administrado pela técnica.
5 Este conceito é desenvolvido no texto intitulado Äutor y Personaje en la actividade estética” que consta da obra Estética de la creación verbal, Bajtin, M.,
México, Siglo Veintiuno Editores, 1985.
6 Na literatura podemos apreciar este tema no conto de Guimarães Rosa, “O espelho”.
7 Ver também “O estranho”, Freud.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 24


Assim sendo, vale destacar que o uso do vídeo na pesquisa em ciências humanas deve estar com-
promissado com a desmistificação da técnica, colocando-a a serviço dos processos de criação do co-
nhecimento e do próprio sujeito. O compromisso do pesquisador é criar estratégias metodológicas que
permitam a participação, tanto do pesquisador como do sujeito que colabora com a pesquisa, na cons-
trução de uma linguagem que incorpora a mediação dos instrumentos técnicos para conquistar uma
visibilidade mais profunda dos modos como a realidade (física, social, virtual e subjetiva) se constitui
na contemporaneidade.
A câmara como um terceiro “sujeito” que interfere no curso da entrevista
O uso do vídeo no trabalho de campo com entrevistas, com crianças, jovens ou adultos, desencadeia
uma série de questões que, por serem muito recentes no contexto da pesquisa, precisam ser cuidado-
samente analisadas. Trata-se, portanto, de compreender a presença da câmara como um terceiro inter-
locutor que necessariamente favorece ou dificulta o surgimento de uma infinidade de comportamentos,
expectativas, desejos que são incorporados na forma como o discurso vai sendo produzido naquele
contexto específico.
Algumas questões de natureza semelhante já foram exaustivamente colocadas quando o uso do
gravador começou a ser largamente difundido. Entretanto, a videogravação aponta para um novo con-
junto de indagações, posto que as possibilidades de anonimato do sujeito desaparecem por completo.
O discurso já nasce tendo como referência uma produção de linguagem compartilhada com pessoas e
com um objeto específico (a câmara), que se apresenta neste contexto como mediadora em destaque
das relações interpessoais. O sujeito participa ativamente e a produção de sentido pode ser negociada
em todas as etapas da entrevista, ao mesmo tempo em que a presença da câmara registra o próprio
processo em seus mínimos detalhes. Neste caso, tanto o pesquisador, como os sujeitos envolvidos na
pesquisa, estão juntos trabalhando acerca de um tema específico e a narrativa se desenvolve a partir
de um compromisso que supõe a presença da câmara e todas as conseqüências de sua influência nos
rumos que o discurso assume no contexto da entrevista. A câmara, mesmo que não ocupe um lugar de
destaque na arrumação do espaço em que a entrevista se dará, deixa a sua marca explícita, pois supõe
absorver, na forma como o discurso se constitui, os impactos que ela causa na subjetividade do pesqui-
sador e dos sujeitos pesquisados.
A câmara como mediação no processo de construção da consciência do espaço social e subjetivo.
A câmara pode também ser utilizada como forma de intervenção nas práticas sociais, como desenca-
deadora de trocas interpessoais, que vão sendo construídas pelo grupo e negociadas a cada momento. O
pesquisador neste espaço, embora conduza o processo de intervenção, encontra-se também como sujeito
que experimenta com o grupo as descobertas que estão sendo desencadeadas. Neste caso a câmara é
utilizada como instrumento que provoca uma discussão em grupo, tornando a experiência coletiva de
ver e de ser visto tema fundamental da própria investigação. Com este enfoque pretende-se utilizar a
videogração como meio para alcançarmos uma visibilidade maior do nosso lugar no mundo, nossos de-
sejos e intenções, incluindo a tomada de consciência de si causada pelo impacto que a própria imagem
e a imagem do outro provoca em nós, quando abordadas através desta mediação técnica.
Esta abordagem metodológica apresenta uma peculiaridade que deve ser destacada: a dimensão
processual do encontro entre o pesquisador e o grupo na produção do conhecimento individual e coletivo.
Trata-se portanto de uma produção de conhecimento que acontece em duas direções complementares.
Por um lado, o conhecimento que o grupo vai construindo sobre si mesmo e as particularidades que
se revelam a cada sujeito, de modo singular; por outro lado, o conhecimento que o pesquisador vai
construindo sobre a própria intervenção proposta por ele, através da utilização do vídeo, analisando as
conseqüências desencadeadas por este aparato técnico na dinâmica de funcionamento do grupo, ava-
liando, especialmente, os aspectos cognitivos, afetivos, sociais e político-culturais que vão se revelando
no grupo ao longo do processo de intervenção.
Podemos demarcar o processo de interação em grupo definindo o modo como se organiza a dinâmica
deste encontro, enfocando os seguintes deslocamentos espaço-temporais:
- o lugar ocupado pelo pesquisador através de suas intervenções e modos de aproximação e diálogo
com o grupo;
- o lugar ocupado por cada membro do grupo, com suas intervenções e modos de aproximação e
diálogo com o pesquisador e os outros membros do grupo;
- o lugar ocupado pela câmara que interfere na dinâmica de funcionamento do grupo como um objeto
que desencadeia sentimentos, atitudes e comportamentos;
Cabe destacar que em todos os momentos o pesquisador é um sujeito que participa, junto com o
grupo, da construção de sentidos de uma experiência comum. Isto significa que há uma negociação
permanente de produção de linguagem entre o grupo e o pesquisador, mediada pela câmara. Portanto,
o pesquisador assume um lugar necessariamente ambivalente, uma vez que ele é o autor do processo
de intervenção, mas, ao mesmo tempo, ele também é um sujeito que experimenta com o grupo um
acontecimento novo, propiciando possibilidades de produção de conhecimento inusitadas tanto para o
grupo como para ele (pesquisador). Esta ambivalência é, portanto, extremamente produtiva, pois esti-
mula a experiência simultânea do saber e do não saber, criando espaço para que o discurso do outro se

Proceedings XI International Bakhtin Conference 25


integre ao do pesquisador, revelando as possibilidades criativas e críticas do conhecimento construído
na interação com o outro. A proposta do pesquisador é, portanto, construir um conhecimento dialógico
e alteritário, ou seja, um conhecimento permanentemente compartilhado.
A ética das imagens na vida e na pesquisa acadêmica
A pesquisa acadêmica que assume como principal meta refletir com os sujeitos sobre os processos
de experimentação do real, do virtual e de si mesmo, assume um desafio fundamental como premissa,
ou seja, o de criar um espaço diferenciado de interlocução entre pesquisador e os sujeitos envolvidos.
Isto porque, nesta abordagem teórica e metodológica, os participantes da pesquisa não são apenas in-
formantes de dados que serão analisados pelo pesquisador de maneira descolada do contexto em que
a intervenção e o diálogo aconteceram. A compreensão dos fenômenos abordados é compartilhada por
todos os sujeitos envolvidos no processo de pesquisa, mesmo reconhecendo que o pesquisador deverá
enfrentar, posteriormente, a tarefa de escrever o texto que irá dar conta do relato do processo construído
por todos os sujeitos envolvidos, como uma espécie de porta voz do grupo. Portanto, nossa intenção
é ressaltar que o uso da videogravação em pesquisa acadêmica não se caracteriza somente como um
rico instrumento de coleta de dados, mas operacionaliza a condição na qual pesquisador e sujeitos en-
volvidos poderão ter possibilidades efetivas de construir conhecimentos sobre as práticas sociais e as
representações, tecidas nas interações com o cotidiano, expressas na linguagem audiovisual. Podemos
com isto refletir sobre o estranhamento que o uso do vídeo permite; um estranhamento que se refere
ao distanciamento em relação ao que, na esfera do cotidiano, se torna hábito, uma conduta que não é
julgada pelo pensamento reflexivo. Walter Benjamin, citando Goethe, diz:
“A primeira de todas as qualidades é a atenção - afirma Goethe. No entanto ela divide a
primazia com o hábito que luta com ela desde o primeiro momento. Toda a atenção deve
desembocar no hábito se não pretende desmantelar o homem; todo o hábito deve ser es-
torvado pela atenção se não pretende paralisar o homem”. (1993, p.247)

Este olhar dialético, proposto por Benjamin, entre a atenção e o hábito no que diz respeito à expe-
riência contemporânea com as imagens técnicas, caracteriza de modo exemplar nosso investimento na
pesquisa acadêmica como um modo de intervenção social.
Toda a pesquisa, especialmente quando realiza um trabalho de campo, visa à troca com o outro, busca
interlocutores para a produção de conhecimento. O modo como a pesquisa assimila ou nega a relação
com o outro permite definir o tipo de conhecimento gerado. Isto quer dizer que ao re-significar o lugar
do pesquisador e do sujeito pesquisado, permitindo a alternância de suas concepções de mundo no di-
álogo que se estabelece entre eles, estamos, deste modo, definindo que a produção do conhecimento
acontece dialógicamente e inclui a dimensão alteritária dos sujeitos envolvidos. A pesquisa entendida
a partir destes pressupostos apresenta uma postura que questiona o enfoque da ciência experimental
que busca leis ou explicações totalizantes, adotando em contrapartida uma concepção de ciência como
interpretação, como procura de significados. Portanto, a condição da verdade na pesquisa em ciências
humanas e sociais está em uma construção permanente de sentidos que são produzidos, em conjunto,
pelo pesquisador e pelos sujeitos pesquisados, numa tentativa de elucidar questões relativas à experi-
ência contemporânea.
Parafraseando Mikhail Bakhtin, podemos admitir que a verdade não se encontra no interior de uma
única pessoa, mas está na interação dialógica entre pessoas que a procuram coletivamente. O mundo
em que vivemos fala de diversas maneiras, e essas vozes formam o cenário onde contracenam a am-
bigüidade e a contradição. É possível perceber a unidade do mundo no particular, no efêmero, ou seja,
a totalidade, a expressão de uma experiência mais universal, pode estar presente nas múltiplas vozes
que participam do diálogo da vida. A unidade da experiência e da verdade do homem é polifônica. Dia-
logismo e alteridade constituem as características, essenciais e necessárias, a partir das quais o mundo
pode ser compreendido e interpretado de muitas e diferentes maneiras, tendo em vista seu estado de
permanente mutação e inacabamento.
Através destes recortes metodológicos preliminares, nossa intenção foi compreender e intervir nas
formas contemporâneas de experimentação do real, do virtual e de si mesmo. Portanto, consideramos
que a pesquisa em ciências humanas pode encontrar na imagem técnica uma forte aliada metodológica
para a construção de um olhar sobre o humano que escape do enquadre das mediações massificadas.
Para além de captar as minúcias das condutas humanas, e aí incluímos os gestos, os movimentos e os
olhares, que compõem o rol dos discursos não-verbais, o uso da imagem técnica nas ciências humanas
justifica-se pela possibilidade de emergência de discussões em torno do processo de produção da imagem
no mundo contemporâneo.
Da recepção de uma imagem naturalizada, recortada do real e posta na condição de realidade única à
compreensão e construção de imagens que se remetem a maneiras de ver, sentir e interpretar a realidade,
temos um longo caminho a percorrer. Trata-se, sem dúvida, de um desafio para a pesquisa cuja intenção
extrapola a detecção dos efeitos da videoesfera nas subjetividades, por comprometer-se com a proposição
de espaços para que os sujeitos possam experimentar-se, não apenas como sujeitos captados pela lente
da câmara, mas também como participantes da construção de suas próprias imagens. Essa proposta de
pesquisa tem em suas mãos um imperativo ético com as questões, antes assinaladas, porque se lança
na enxurrada da virtualização, sem deixar de lado os cuidados para nela não se afogar, esforçando-se

Proceedings XI International Bakhtin Conference 26


por buscar formas de manter viva a sensibilidade do olhar perante a própria vida e o mundo.
Nosso propósito, portanto, foi enfatizar o compromisso político com a perspectiva ética da pesquisa
em Ciências Humanas, apresentando estratégias metodológicas de investigação que visam consolidar
experiências voltadas para a liberdade de expressão e o permanente estímulo aos processos de criação
da condição humana.
Bibliografia
Bakhtin, M. Estética de la creación verbal. México: Siglo Vicinticeno editores, 1985.
Benjamin, W. Obras Escolhidas vol II. Rua de Mão Única. Brasiliense, 1987.
Carvalho, A.; Bergamasco, H.; Lyra, M.; Pedrosa, M.; Rubiano, M.; Rosseti-Ferreira, M., Oliveira, Z.; Vasconcellos, V.
Registro em vídeo na pesquisa em Psicologia: reflexões a partir de relatos de experiência. Psicologia: teoria e Pesquisa,
volume 12, número 3, 1996, p. 261-267.
Dessen, M. A. Tecnologia de vídeo: registro de interações sociais e cálculos de fidedignidade em estudos observacio-
nais. Teoria e Pesquisa, volume 11, número 3, set-dez, p. 223-227.
Flusser, V. Ensaio sobre a fotografia. Para uma filosofia da técnica. Lisboa, Relógio D´ Água, 1998.
Jobim e Souza & Rabello de Castro - Pesquisando com crianças: subjetividade infantil, dialogismo e gênero discursivo.
Psicologia Clínica. Volume 9 - Departamento de Psicologia - PUC-Rio, Rio de Janeiro, 1997/8, p. 83-116.
Lèvy, Pierre. O que é virtual? Rio de Janeiro, Editora 34, 1999.
Parente, André (org.) Imagem e máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro, Editora 34, 1999.
Peixoto, C. Caleidoscópio de imagens: o uso do vídeo e a sua importância à análise das relações sociais. In: Feldman-
Bianco, B. & Leite, M. M. (ogs.) Desafios da Imgem: Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais, Campinas:
Papirus, 1998.
Sarlo, Beatriz - Paisagens Imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo, EDUSP, 1997.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 27


The Kerch terra-cottas and antique realism problem: M.Bakhtin’s
“Rabelais” in the context of Russian scholarship of the late 19th - the first
half of the 20th century

Nikolai Pan’kov

The statuettes of pregnant old women kept in the Hermitage Museum in St.Petersburg among other
Kerch terra-cottas (that is, figurines of burnt color clay) are mentioned twice in the introduction to the
book on F.Rabelais and, for M.Bakhtin, are a rather important illustration of the specific features and
the very essence of the grotesque concept of the body. After a description of the statuettes, the author
says: “It’s a highly characteristic and expressive grotesque. It’s ambivalent, it’s a pregnant death, it’s
a death giving birth. <...> There’s nothing ready-made here, it’s incompleteness itself. And that’s right
what the grotesque concept of the body is like”1. Anyway, the role and sense of the image is clear, as
well as its source which is pointed out by Bakhtin himself: he refers to H.Reich’s book called “Der Mimus.
Ein literar-entwicklungsgeschichtlicher Versuch”2. However, for the sake of deepening out idea of carnival
theory and its beginnings, it would be highly essential to consider the motive of “pregnant old age” in a
broader context than just the context of the introductory chapter to the book on Rabelais.
Let’s for the beginning read the first passage telling about the Kerch terra-cottas, deciphering the
contents of the footnote accompanying it. Bakhtin writes: “The Kerch terra-cottas include, among other
things, peculiar figurines of pregnant old women, whose ugly old age and pregnancy are emphasized in a
grotesque way. Besides, the pregnant women are laughing”3. Then the auth?r gives reference to pp.507-
508 of H.Reich’s book. However, if we read those pages, a little discovery expects us as it becomes clear
that Reich himself writes next to nothing about “those terra-cotta images of pregnant old women”, but
he quotes on the pages mentioned two works of Ludolf Stefani (1816-1887), a Russian scholar, a full
Member of Russian Emperor’s Academy of Sciences. Those works were published as a supplement to the
“Reports of the Emperor’s Archeological Committee” for 1868 and 18694. I’ll give both of those extensive
quotations later, but now I’d like to give some clarifications.
As we know, the Black sea coast was being actively colonized by the Greek in the 7th to the 3rd
century B.C. In the 19th century A.D., archaeological excavations began in a number of places in the
South of Russia, the purpose of those excavations being to research the remainder of the ancient Greek
settlements. In 1864, Russian archaeologists examined a part of a vigorous burial mound situated in the
Taman Peninsula (in the neighborhood of Kerch, the ancient Pantikapei) and called Bolshaya Bliznitsa.
In 1865 and 1868, the excavations were continued, and according to Stefani’s words, “new rich mate-
rial” was got “which could be helpful for the understanding of the religious and artistic life of the earlier
inhabitants of that place”5. The Bolshaya Bliznitsa burial mound, according to Stefani’s hypothesis, was
a “common cemetery of one of the noblest and richest families that lived in the 4th century B.C.”6.
There were two tombs that drew the scholars’ special attention. One was discovered in 1864, and,
judging by the type of the things it contained, Stefani supposed it to be a tomb of a woman who was
supposedly Demeter’s priestess, as well as a priestess of “other Eleusinian divinities”. That represented
nothing odd to Stefani as there were “different facts leaving no doubt that this cult was greatly favored
also in other Greek colonies in the South of Russia”7.
The things found in the second tomb (it was discovered in 1868) made it possible to suppose that it
was a tomb of a woman who was “almost in the same position in the society that the priestess mentioned
above was”, but she “gave priority, to a striking extent, mainly to the luxurious, Bacchic and sensuous

1 M.Bakhtin. F.Rabelais’s works and the popular culture of Middle Ages and Renaissance. 2nd edition. M., 1990, p. 33.
2 H.Reich. Der Mimus. Ein literar-entwicklungsgeschichtlicher Versuch. Berlin, 1903, S.507-508.
3 M.Bakhtin. F.Rabelais’s works and the popular culture of Middle Ages and Renaissance..., p. 33.
4 L.Stefani. Explanations of several antiquities found in 1867 in the South of Russia // Report of the Emperor’s Archeological Committee for 1868. Saint-
Petersburg, 1870, pp.3-125; L.Stefani. Explanations of several antiquities found in 1868 in the South of Russia // Report of the Emperor’s Archeological
Committee for 1869. Saint-Petersburg, 1871, pp.3-216.
5 L.Stefani. Explanations of several antiquities found in 1864 in the South of Russia // Report of the Emperor’s Archeological Committee for 1865. Saint-
Petersburg, 1866, p.5.
6 Ibidem.
7 L.Stefani. Explanations of several antiquities found in 1864 in the South of Russia..., p.19. Stefani refers here to his own article published as a supplement
to the “Report of the Emperor’s Archeological Committee for 1859”. (Saint-Petersburg, 1862, p.34), as well as to Herodotos’s words about Demeter’s shrine
in Olvia and the palace built by the Scyphian king Skiles to celebrate Bacchic misteries.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 28


side” of the Eleusinian cult8. It’s in that very tomb that the collection of 28 “ludicrous” terra-cottas (in-
cluding the statuettes of pregnant old women) were found that Stefani considered to be very strange
this time “for a female person from one of the noblest families of that time”. And a later researcher,
A.Peredolskaya, called it unprecedented not only for Black Sea coast necropolis but also for all antique
ones in general9.
Stefani wrote several works on the results of the excavations. Those works, as was noted before, were
published as supplements to the “Reports of the Emperor’s archaeological committee” during several
years and were named as “Explanations”, for instance: “Explanations of several antiquities found in 1864
in the South of Russia”, “Explanations of some things found in 1868 in the south of Russia” etc. That very
works are the ones that Reich quotes. Let us read (in an abridged version) the quotations he gives:
1. “The terra-cotta figurine pictured in table 1, No.15, seems to be a begging pregnant old woman
<...>. The woman is wearing a frontlet, tunic and a raincoat raised up to her head. She looks up aside
and both her hands which, to tell the truth, lack one, are stretched forward, as if she were asking for
something. <...>”10.
2. “There are two other old women, looking very much alike <...>. The main thing here is obviously
the repulsive ugliness of the face which, judging by other statuettes found in the tomb, were greatly
appreciated by the woman mentioned above. Both women’s features resemble monkey’s faces indeed.
Another parts of their bodies represent no peculiarities. <...>
3. Another figurine is remarkable for an even more cynical character <...>. The pregnant old woman
wearing outer clothing and underwear, laughs herself at her state pulling her clothes to the lower part
of her face, so that her features could be clearly seen. <...>
The spiritual trends of the woman whose belongings are the point of our research are even more
clearly identified by another three female figurines that depict drunk women, in accordance with several
male figurines.
One of them (table III, No.12), though without wrinkles, must be a rather old woman, judging by
the loppy stomach and baggy breasts. She’s wearing red boots and blue clothes she’s slipped on her
shoulders, so that her stomach and breasts are bare. She’s clasping the deep vessel with her left hand
and pressing it to her breast looks up with pleasure aroused in her by the wine she has drunk, and she’s
raising her right hand praising the drink”11.
Let’s briefly sum up the information from these lengthy quotations. Strictly speaking, Bakhtin was
not fully precise when writing that “the pregnant old women are laughing” as there is only one statuette
of a laughing pregnant woman mentioned in Stefani’s works (and then in Reich’s one)12, though there
are several figurines depicting grotesquely ugly pregnant old women. Even this laughter is a little bit
doubtful as the old woman pulls up her clothes “to the lower part of her face” and her lips are not to be
seen quite clearly13. It seems to me that in this case, it would be better to set up hypothesis and surmi-
ses, rather than to claim that the woman is laughing (we’ll see as we go further that some researchers
tend to interpret her half-concealed mimicry differently). And finally, it’s to be noted that the motive of
“pregnant old age” in the quotations given is combined with another grotesque motive of a “drunk old
woman”. It will also prove to be essential for our further thinking.
* * *
In his introduction to the book on Rabelais, Bakhtin mentioned the Kerch terra-cottas one more time.
Referring the beginnings of the grotesque imagination to the archaic times (including the time of “pre-
classical art of the ancient Greek and Romans”), he insisted that “the grotesque type does not die even
in the classic epoch, but being forced outside the great official art, it lingers on and develops <...> in the
field of comic ?oroplastics, mainly small or petty one. The Kerch terra-cotta statuettes mentioned above
may be drawn as an example, as well as comic masques, silens, figurines of fertility demons <...>; in
the field of comic vase painting, images of comic doubles of famous people (a comic Heracles, a comic
Odyssey) can be mentioned, <...>; <...> in the broad field of comic culture associated with carnival-type
festivals we can mention satyr’s dramas, ancient attic comedy, mimes, etc.”14.
Two facts are of a special interest for us in this passage. First is that only statuettes of the grotesque
old women are meant by the words “the Kerch terra-cottas”, though a lot of diverse examples of coro-
plastics were found in the nearby of Kerch, including the above mentioned comic masques, depictions
of silens, fertility demons, etc.
8 L.Stefani. Explanations of several antiquities found in 1868 in the South of Russia..., p.12.
9 A.Peredolskaya. The terra-cottas from the Bolshaya Bliznitsa burial mound and Homer’s hymn to Demetra // Works of the State Hermitage, Vol.VII. Culture
and Art of the Antiquity. Leningrad, 1962, p.46.
10 L.Stefani. Explanations of several antiquities found in 1867 in the South of Russia..., p.56.
11 L.Stefani. Explanations of several antiquities found in 1868 in the South of Russia..., pp.164-165.
12 To tell the truth, Stefani refers to one more article in his work quoted by Reich. This article describes another statuette from the Bolshaya Bliznitsa de-
picting a “simple pregnant woman smiling shamelessly and showing off her state with an arrogant gesture” (Stefani L. Explanations of several antiquities
found in 1864 in the South of Russia..., p.193). However, there’s no indication here that it’s an old woman. On the other hand, according to Peredolskaya,
“this type is widely known in numerous repetitions and variants found in different centers of the antique world” (see: A. Peredolskaya. The terra-cottas from
the Bolshaya Bliznitsa burial mound and Homer’s hymn to Demetra..., p.61. There are definite indications to those variants given in the footnote).
13 M.Kobylina calls that figurine “a statuette of an old woman with a half-closed face and swollen stomach” (M. Kobylina. A statue of a drunk old woman.
To the issue of Myron and the Hellenistic realism // “Iskusstvo”, 1937, #1, p.77).
14 M.Bakhtin. F.Rabelais’s works and the popular culture of Middle Ages and Renaissance..., pp.38-39. On page 164, Bakhtin also mentions a “figure of a
comic Heracles <...> on antique vases”, and on page 112, he states that there was an influence of Euripides’s satyr’s drama “Cyclopus” on Rabelais.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 29


The second fact to be noted here is the mentioning of the Kerch terra-cottas (and the comic plastics in
general) in a row with the comic vase painting and comic culture characteristic of carnival-type festivals.
Terra-cottas were closely connected with other fields of antiquity, and that is why they were conside-
red in the works of Russian scholars who lived in the second half of the 19th century to the early 20th
century. For instance, you may find the example with vase painting given in Bakhtin’s book (depiction
of the comic Heracles) many times in many works, and moreover, it will sometimes appear in a rather
complicated and paradoxical combination with terra-cotta figurines, as well as with serious vase painting.
In his article which was quoted by Reich, Stefani marks some notional conformity of the subjects found
in the tombs of Demeter’s priestess and her younger and more extravagant kinswoman: “...in this case,
the differences in characters of both women are clearly seen as the vase drawing depicts Heracles as
women protector and the statuette portrays him as Dionysus’s drunk companion”15.
As we know, Bakhtin lived in Odessa, where a highly rich collection of Greek terra-cottas were kept
in the Emperor’s Odessa History Society Museum (the better half of those were handicraft goods found
in Kerch). According to such Russian historians as A.Derevitsky, A.Pavlovsky, and E.R. von Stern, the
Kerch (panticapean) statuettes were in the museum “a rare rich type collection as all kinds of pottery
production are represented here starting from the first archaic attempts and ending with repulsive Bar-
barian imitations”16. In the 1920s, fate gave Bakhtin one more opportunity to get acquainted with Greek
terra-cottas closer (though found mainly in Beotia, and not on the Black Sea Coast). On June 1st, 1922,
the re-built Section of the Greek and Roman antiquities, including a hall exhibiting terra-cottas, was
opened for public after a long break17. Bakhtin still lived in Vitebsk at the time but he visited Petrograd
(as St.Petersburg was then called) and it wasn’t before he moved to Petersburg at all in 1923. In the
mid-1920s, he often visited his friend he got to know in the town of Nevel, Maria Yudina, a piano player
who lived in a house situated in the Dvortsovaya (Palace) Quay, very near to the Hermitage Museum
(Dvortsovaya Quay, Nr. 7, flat 30). It would be very pleasant to think that Bakhtin dropped in the museum
some day to watch the exposition of the Section of Greek and Roman antiquities, but we can’t tell for
sure about this event. Frankly speaking, the structure of Bakhtin’s phrase describing the grotesque old
women in his Ph.D. thesis “F.Rabelais in the History of Realism” is rather suspicious: “There are, among
other things, peculiar figurines of pregnant old women on the well-known Kerch terra-cottas, whose ugly
old age and pregnancy are emphasized in a grotesque way”18. It seems that the author of the thesis
thinks terra-cottas to be a flat picture (something like fresco). Anyway, it could be a stylistic negligence
or a scientific clichè19. But did he know anything about terra-cottas (beside the half-forgotten Stefani’s
quotations from Reich’s book)? We may suppose different variants here.
According to S.Bocharov, “carnival aspects of the antique culture were of great interest for M.Bakhtin
as early as when he was a student of Petrograd University”. In one of his conversations with Bocharov,
Bakhtin “enumerated Latin comic characters of one of his university works: “I gathered a vast material
and returned to it later, in the 1930s””20. Several rather interesting stories relating to the problem of an-
tiquity interpretation were associated with the grotesque terra-cotta figurines in the Russian scholarship
on the turn of the 19th and 20th centuries and in the Soviet scholarship in the 1920s and 1930s. Taking
into account young Bakhtin’s interest towards carnival aspects of the antique culture, we can suppose
that he knew some of the information on that stories. However, even if Bakhtin knew nothing about
them, debates on grotesque and terra-cottas must have left a trace on him. He wrote in one of his latest
works (“The Final remarks” to “Forms of Time and Chronotope in the Novel”) that “cultural and literary
traditions <...> are kept and linger on <...> in the objective forms of the culture itself” appearing in
works of art (as well as in scholarly works) and “sometimes escaping altogether the creators’ subjective
individual memory”21.
* * *
Thus, it was already in the first description of the “ludicrous” statuettes written by Stefani that “the
predominance of features was revealed in them which are hard to be associated with the usual idea of
Greek classical art where the beauty of form was always of paramount importance”22. Even admitting the
connection of the statuettes with the orgiastic Eleusinian cult23, the honored Member of the Academy of

15 Stefani L. Explanations of several antiquities found in 1868 in the South of Russia..., p.159.
16 See: Museum of the Emperor’s Odessa Society of History and Antiquities. Vol.2. Terra-cottas. Published by A.Derevitsky, A.Pavlovsky, and E.R. von Stern.
Odessa, 1898, pp.47-48
17 See: The State Hermitage. Guide-book of the Antiquities Department. Compiled by O.Waldhauer. Petersburg, 1922, pp.52-54. Judging by that guide-
book, there were statuettes exhibited in the terra-cottas hall found in the Central Greece - in Attica and Beotia. The South of Russia was represented only
by Greek terra-cotta vases.
18 M.Bakhtin. F.Rabelais in the history of realism. Doctoral thesis // Manuscripts department of the Institute of World Literature (Moscow). Stock 427, in-
ventory 1, file 19, p.23. The italics are made by me. - N.P.
19 For instance, the phrase about Greek terra-cottas is constructed in a very similar way in B.Bogaevsky’s work, and he was an assured expert in the antic
coroplastics: “Demeter and Cora are depicted as sitting in shawls and in long clothes open on their bellies on some terra-cottas” (Bogaevsky B.L. The agri-
cultural religion of Athens. Vol.1. Saint-Petersburg, 1916, p.61. Italics also by me. - N.P.)
20 S.Bocharov. Commentary to Bakhtin’s work “To the type history (History of genre variety) of Dostoevsky’s novel” // M.Bakhtin. Collection of works. Vol.5.
Moscow, 1996, p.419.
21 M.Bakhtin. Problems of literature and aesthetics. Moscow, 1975, p.397.
22 A. Peredolskaya. The terra-cottas from the Bolshaya Bliznitsa burial mound and Homer’s hymn to Demetra..., p.46.
23 The “scabrous” trend of many Eleusinian customs was the subject of works of Russian scholars contemporary to Stefani. See, for instance, B.Bogaevsky.
The agricultural religion of Athens..., pp.57-68; N.Novosadsky. Eleusinian mysteries. Saint-Petersburg, 1887, pp.125-132, 179-181. See also the Russian
translation of one of the works on this subject written in German: D.Lauenstein. Eleusinian mysteries. Moscow, 1996.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 30


Sciences was anyway shocked by their ugliness and coarseness. The grotesque concept of the body, which
was not formulated yet but was already materialized in the terra-cotta figurines, required to be solved,
and the fact also was to be realized that the antiquity is not necessarily classical and full of harmony.
This mental work has its own rich history, but we have only some separate pages available from it.
Soon after the publication of Stefani’s works quoted by Reich, in 1879, Nikodim Kondakov (1844-
1925), also a full Member of the Emperor’s Academy of Sciences, considered the terra-cottas “in their
relationship to art, religion, and way of life” of the ancient Greeks. The work was published in Volume
11 of the “Proceedings of the Odessa Society of History and Antiquities”. It’s unknown whether this work
was a part of the “vast material” on the antique comic culture Bakhtin claimed to have gathered while
studying at the University. However, firstly, Kondakov pursued his own researcher’s course anticipating
some ideas expressed later in the book on Rabelais, and secondly, his article drew some attention in its
time as the first “generalizing work on Bosphoral terra-cottas”24.
Kondakov agreed with Stefani’s opinion about the obvious connection between the Kerch terra-cottas
and the Eleusinian cult as well as with funeral rites: “...the artistic mythology of the terra-cottas <...>
represents a certain and characteristic predominance of the very khtonic divinities. Dionysus, Demeter
and Cora-Persephone, Hermes and Aphrodite, Kibela-Astarte and the mythological cycle of those divini-
ties - Satyrs, Eroses, etc. - are the predominant types in the terra-cottas. The Greek Olympus itself is
quite rare to appear <...>”25. In the Eleusinian festivals and funeral rites, he stressed the presence of
“the comic and the ugly” in different ways. It was realized through “disguises, masking, mimic scenes
with mythological and everyday-life contents, buffoonery and obscene presentations <...> with improper
choral songs <...>” (pp.145, 146). According to Kondakov, those festivals and rites gradually gave “the
contents and types to the Greek, and then to the Roman folk comedy”, which “was transferred to the
terra-cottas” (p.146). Along with the comic, the mocking was also accentuated in those festivals: for
instance, “the mimicking of the gods, mythological scenes, etc.”.
It’s quite natural that Kondakov interpreted the collection of statuettes from the tomb of the extra-
vagant Panticapean woman in the same way: “...all real stories, the idlers and drunkards we met here,
as well as warriors, mimes and comic actors are the retinue of the Bacchial Eleusinian cycle divinities
<...>” (p.147). Besides, unlike Stefani, Kondakov did not tend to consider that woman’s way of thinking
strange in any way, explaining the peculiarity of the Kerch collection by the fact that it “consists of diffe-
rent parodies of the Bacchial cult” (pp.148, 147).
Among illustrations to his reflections, Kondakov mentioned an “old woman tired with drinking”, as well
as a “drunk Heracles”, about whom he explained that “this figurine depicts not Heracles himself but his
mime, as well as another one is a parody depicting a stout man with a cudgel in his hand and an amphora
on his shoulder” (p.148). The figurines of the grotesque old women were also mentioned by Kondakov,
but there were no words about whether they are laughing or not: “The women also include three old
ones standing in similar poses as if trying to draw somebody’s special attention. Bungling themselves
up in their outer clothes, they look forward glaringly; two of them shows off the ugliness of their faces
resembling monkey’s <...>, and the third, the pregnant one, raising her clothes up to her face, shows
off her pregnancy” (148).
That third old woman was interpreted by Kondakov as Baubo, a woman who got naked and made an
improper gesture, and in such a way she managed to cheer up Demeter grieving at the loss of Perse-
phone. However, the woman’s pregnancy escaped the researcher’s attention in such an interpretation,
and drunkenness, nudity, and pointing “at her body” is understood as the features characteristic of her
(p.149).
The way Kondakov explained the beginnings of the “ludicrous” statuettes from the Bolshaya Bliznitsa
is also very interesting. Admitting the existence of grotesque elements “among genuine Greek works”,
he drew a distinction at the same time between those “elegant grotesques” (that’s quite paradoxical
definition!) and the ugly depictions created, from his point of view, in Panticapei in he latest epoch26: “Of
course, the predominance of a Barbarian tribe in the town made some influence, the tribe that adopted
Greek plots and exaggerated them in a rude and naïve way <...>” (p.109).
By the way, Bakhtin reproduced this associative logics in the first edition of his book on Rabelais -
most likely, he did it independently without any Kondakov’s influence, going his own way. He called the
grotesque images system the “gothic realism” (it’s a central and fundamental notion of the earlier text
of the book). It’s also characteristic that “gothic realism” was in Bakhtin’s theory a continuation and
development to “folklore realism”27: Kondakov also noted that “Barbarian folk art undoubtedly repeated
the plots found in the ancient Phoenicia and Syria as if showing by this that there is its own basic type
in any folk creative process, a single task that lives on through thousands of years <...>” (p.109).
Taking into account the issue we deal with, the fact is rather important that a great interest towards
the terra-cottas was shown by Boris Varneke (1874-1944), Novorossiysk University Professor. Bakhtin’s

24 See: M.Kobylina. Terra-cotta statuettes from Panticapei and Phanagoria. Moscow, 1961, p.21.
25 N.Kondakov. Greek terra-cotta statuettes in their relation to art, religion, and everyday life // Proceedings of the Emperor’s Odessa Society of History
and Antiquities. Vol.11. Odessa, 1879, p.120. The numbers of pages quoted are given further in the text.
26 A.Peredolskaya was confirmed in the attic origins of the statuettes brought to the Black Sea coast (A. Peredolskaya. The terra-cottas from the Bolshaya
Bliznitsa burial mound and Homer’s hymn to Demetra..., pp.50-51).
27 N.Pan’kov. M.Bakhtin’s book on Rabelais: the logic and the dynamic of the conception // “Dialog. Karnaval. Khronotop”, 2001, #4, pp.116-128.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 31


brother Nikolai attended his course on Tybullus, an ancient Roman lyric poet28. In his speech at a peda-
gogical conference of workers of man’s grammar schools (gymnasia) and natural sciences schools of the
Odessa region (in January 1916), Varneke claimed himself to be an enthusiast of “getting the pupils to
know the memorials of antiquity and ancient depositories”, in particular, “memorials of classic archaeo-
logy: Olvia, Kerch”29.
He wrote a number of works on terra-cottas. In 1906, when he was still a Professor at the Kazan
University, Varneke published an article called “Greek terra-cottas”, and in 1915, in Odessa already, he
wrote an article called “New Antiquities from Kerch”30, where he described three terra-cotta figurines
that were received at the Museum of the Emperor’s Odessa Society of History and Antiquities (as we
remember, Bakhtin was also most likely in Odessa during this time).
We don’t know exactly whether Mikhail Bakhtin listened to Varneke’s lectures, anyway, Bakhtin himself
never mentioned it to anybody. However, the objects of some Varneke’s scholarly research could be of
interest to the future author of the book on Rabelais as Varneke and Bakhtin walked along similar paths
in the labyrinths of ancient civilizations.
Varneke wrote on a great number of subjects, he was marked by an incredible prolificacy31. One of his
basic subjects is the history of the antique comic theatre. His doctoral thesis defended in 1905 in Kazan
was called “Study of the ancient Roman comedy”32. Although Bakhtin later arrived at the conclusion that
“comedy writers - Aristophanus, Plautus, Terencius - didn’t make any great influence <on Rabelais>”33,
before he got this “negative result” he must have had some thoughts about that. Varneke closely watched
the appearance of works on comical manifestation of the antique culture and made reviews of them.
We can mention such his works as “Recent works on Mimes”34 (here the author speaks mainly on
Reich’s book we already know called “Der Mimus. Ein literar-entwicklungsgeschichtlicher Versuch”, and
he’s very critical), “New collection of documents on the history of the attic theatre”35 (it’s a review of a
new work by Adolf Wilhelm, a well-known German expert in Greek inscriptions), “New conjectures about
the origins of the Greek comedy”36 (a review of Heinrich Schnabel’s booklet), etc.
Varneke was interested in some other things associated, directly or indirectly, with the phenomenon
of the Rabelaisian carnival and wrote, during different periods of his life, a lot of “my beloved 2 or 3-
page trifles on the antique drama”37. As we remember, in his book on Rabelais, Bakhtin mentioned the
“grotesque type” of art which, even being forced outside the great official art, develops “in the field of
comic coroplastics, mainly small or petty one <...>; in the field of comic vase painting, images of comic
doubles of famous people <...>; <...> in the broad field of comic culture associated with carnival-type
festivals we can mention satyr’s dramas, ancient attic comedy, mimes, etc.”
It looks like all this being a consolidated catalogue of the subjects Varneke was interested in, befo-
re, during, and after the Bakhtins lived in Odessa. For example, in 1925, Varneke published an article
called “To the interpretation of “satyr’s drama””38 where he reflected on “the very manner of the ancient
Greek, contradicting the modern artistic perception, to combine satyr’s drama full of ardor and joy with
tragedies into one presentation”. To fully understand the essence of satyr’s drama, Varneke suggested
“not coming closer to the phenomena of musical composition” (as it was mainly accepted at the time),
but “coming closer to the fine arts of the Greek”39: “One picture on the black-figured amphora from the
Madrid collection depicts Heracles in a strictly heroic style fighting Euritis because of Iola <...>. Another
picture on that very vessel shows that very Heracles at a joyful feast with a bearded satyr <...>”40.
The conclusion made by Varneke is of a special attention: “The style of tragedy developed the motive
bringing it high over the everyday level of life, and the style of satyr’s drama brought it down to the half-
animal world of silens and satyrs”41. If we use Bakhtin’s famous terms, it comes out that orientation was
characteristic of Varneke to studying the “ambivalence”, the “double aspect of perception of the world
and human life”, “the bringing everything elevated, spiritual, ideal, and abstract, down to the material
and bodily aspect”.
***

28 N.Pan’kov. Enigmas of the early period (Some more strokes to “Bakhtin’s biography”) // “Dialog. Karnaval. Khronotop”, 1993, #1, p.87.
29 See the heads of Varneke’s speech in “Works of the pedagogical conference of workers of man’s grammar schools (gymnasia) and natural sciences schools
of the Odessa region”. (January 2-7, 1916). Odessa, 1916, pp.18-19.
30 B.Varneke. Antique Terra-Cottas // “Proceedings of the Society of archeology, history and ethnography”, 1906. Vol.XXII, #4, pp.231-248; B.Varneke.
New antiquities from Kerch // “Proceedings of the Emperor’s Odessa society of History and Antiquities”, 1915. Vol.XXXII, pp.128-137.
31 See, for instance: Bibliographic list of scholarly works of Professor B.Varneke. 1889-1924. Odessa, 1925.
32 Ibidem, p.6.
33 M.Bakhtin. F.Rabelais’s works and the popular culture of Middle Ages and Renaissance..., p.112. Compare, however: “In Rabelais’s work, Aristophanus’s
direct influence is combined with a deep internal affinity (meaning pre-class folk-lore)” // M.Bakhtin. Problems of Literature and aesthetics. Moscow, 1975,
p.369. However, Bakhtin seems not to have written anything on the influence of ancient Roman comedy writers on Rabelais.
34 B.Varneke. Recent works on mimes. Kazan, 1907.
35 B.Varneke. New collection of documents on the history of attic theatre // “Transactions of the Kazan University”, 1908, ?1, pp.1-32. Kazan.
36 B.Varneke. New conjectures about the origins of the Greek comedy. Odessa, 1912.
37 Varneke’s letter to L.Grossman of May 15, 1927: Russian State Archive of Literature and Art (Moscow). Stock 1386, inventory 2, file 210, p.12.
38 B.Varneke. To the interpretation of “satyr’s drama” // “Reports of the USSR Academy of Sciences”, 1925, pp.67-69.
39 Ibidem, pp.67, 68. Varneke mentions F.Winter, a German scholar, as his forerunner who was the first to note “the parallelism between many features of
the antique drama and Greek fine arts”.
40 Ibidem, p.68.
41 Ibidem, p.69.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 32


The terra-cottas from the Bolshaja Bliznitsa burial mound (and, above all, 28 “ludicrous” figurines)
continued to be an object of scholars’ attention for some decades, almost to the time when Bakhtin’s book
on Rabelais was published in the 1960s. There was also a parallel discussion of the problem of “antique
realism” closely connected with the research of the Kerch grotesques. It would be interesting to throw
light on some moments of that discussion in the context of Bakhtin’s works.
In his thesis, Bakhtin defined realism as “bringing the material and bodily basis to the foreground”42
(this wording so uncharacteristic for Soviet literary criticism later disappeared when the book was pu-
blished). This “bringing the material and bodily basis to the foreground” clearly opposed to the “literary
and artistic canons of the “classic” antiquity” (p.27), as well as to the “aesthetics of the beautiful which
appeared in the modern epoch under the direct influence of the antique classics understood lopsidedly”
(p.29).
Bakhtin formulated the “grotesque concept of the body” arguing against two works of N.Berkovsky
published in the 1930s, namely against the preface to the “Early bourgeois realism” collection of works, and
the article “Realism of the bourgeois society and problems of the history of literature”43. Both Berkovsky’s
articles claimed the beginning of realism to coincide in time with the beginning of the bourgeois society.
Bakhtin wrote objecting to his opponent that “excessive bodiliness”, “physiological exaggerations” and
other related things were far from having been discovered by the early bourgeois, or Renaissance art ?
“on the contrary, they were a traditional feature inherited from the gothic realism or taken directly from
the folklore”44 (p.9).
“Rabelais is a successor of one thousand years of the gothic realism development and many thousand
years of the folk-lore realism development, and it would be an obvious nonsense to squeeze him into
the narrow limits of the conception starting the history of realism with the beginning of the bourgeois
society” (p.14). Thus the conceptual “enemy” was seen clearly enough. The allies (there were some)
were for an unknown reason left “off-screen”. It is most likely that Bakhtin who was first in exile and
then went from place to place seeking for a shelter just didn’t know that there were also other fighters
against the “aesthetics of the beautiful understood lopsidedly”. However, it was not only that the idea
of the “antique realism” (fully corresponding with Bakhtin’s theory of the grotesque and carnival) was
in the air, but it was also often expressed in the Russian scholarship ? the difference is that it was not
among literary critics but among experts in fine art.
In the early 1920s, in his “Sketches on the history of the antique portrait”, Oskar Waldhauer (1883-
1934), head of the Greek and Roman antiquities department of the Hermitage, set out a hypothesis that
there was a realistic (or naturalistic) trend in the antique culture of the classic period (5th to 4th century
A.D.), along with the relative art based upon stylization and idealization45. The main argument in the
favor of this hypothesis was a statue of a drunk old woman two copies of which are kept in the Munich
Sculpture Museum and in the Capitol Museum. This statue was traditionally referred to the Hellenistic
period (3rd to 1st c. A.D.) but Waldhauer argued that its author is Myron from Eleuphers, a well-known
sculptor who lived in the 5th century A.D.46
This statement, as well as Waldhauer’s argumentation aroused polemics. A.Peredolskaya readily su-
pported him in her works47. M.Kobylina expressed an opposite opinion in her article written specially on
this subject: “The genre character of the portrayal, the pitiless depiction of the ugly old body ? the flabby
breast, the wrinkled skin on the withered body, the remainder of a tooth seen in the open mouth, salient
bones ? all this excludes the statue out of the line of typical examples of not only Myron’s sculpture but
of the monumental sculpture of the 5th century in general”48. Marking the “comic feature” characteristic
of the statue (“the old woman’s drunk delight, the look on her face”), Kobylina, among other things,
mentioned the Kerch terra-cottas which she referred to the 5th century A.D. ? particularly a “statuette
of an old woman with half-closed face and swollen stomach” (“...we can see comic depictions only in
statuettes, on vases and we never see them in the monumental art”)49.

42 M.Bakhtin. F.Rabelais in the history of realism. Doctoral thesis..., p.12. Then the numbers of pages quoted will be given in the text.
43 N.Berkovsky. Evolution and the forms of early bourgeois realism in the West // Early bourgeois realism. Leningrad, 1936, pp.7-104; N.Berkovsky. Realism
of the bourgeois society and problems of the history of literature // The Western collection. Vol.1. Leningrad, 1937, pp.53-86.
44 Here’s the very Berkovsky’s passage Bakhtin quotes, and argues with: “The art of the 15th - 17th centuries is hypnotized, as if by an extraordinary no-
velty, by all kinds of the “physiological state” of the society. Whatever you may take - schwanks, fabliaus, Italian story-writers, or Rabelais with his especial
manner of gigantic physiological exaggerations, or Servantes consciously cultivating coarse, natural, “brutal” strokes in his style - the material substance
of life is stressed and made to a grandiose sight seen for the first time. Perhaps those features of the Renaissance art reach their peak in Flemish painting”.
(N.Berkovsky. Realism of the bourgeois society and issues of the history of literature..., p.55).
45 O.Waldhauer. Sketches on the history of the antique portrait. Vol.1. Petersburg, 1921, pp.2, 69, 70.
46 Ibidem, pp.71-72
47 A.Peredolskaya. To the issue of realism in the Greek Art of the 5th century A.D. // “Iskusstvo”, 1936, #1, pp.155-156; A.Peredolskaya. Oscar Fernando-
vich Waldhauer // O.Waldhauer. Sketches on the history of the antique portrait. Leningrad, 1938, pp.19-21. In the second work out of those given above,
A.Peredolskaya gives some curious information to the subject Waldhauer was after in the 1930s: “Waldhauer’s extremely important and very interesting
observations concerned the so-called “Barbarian” elements in the Roman art which he considered so important to study. He spoke on that subject at the
Institute of Arts History. His lecture aroused a great interest in the scholarly circles. Those “Barbarian” elements <...> get immensely developed in the
3rd century and initially create the medieval art” (p.39). Bearing in mind the crucial role of the term “gothic realism” in Bakhtin’s doctoral thesis, we can
suppose that the author of the book on Rabelais (who himself visited the Institute of Arts History, and spoke there) could be to some extent influenced by
that Waldhauer’s famous lecture.
48 M.Kobylina. A statue of a drunk old woman. To the issue of Myron and the Hellenistic realism // “Iskusstvo”, 1937, #1, p.76. Unlike Kobylina who tended
to bring the statue apart from the Kerch terra-cottas, Peredolskaya tries to associate them with each other this way or other: “Artistic methods of characte-
rizing a face, as we see on the head of Myron’s “Drunk old woman”, fully coincide with “ludicrous” terra-cotta figurines of the 5th century” (A.Peredolskaya.
Oscar Ferdinandovich Waldhauer..., p.20).
49 M.Kobylina. A statue of a drunk old woman. To the issue of Myron and the Hellenistic realism..., p.77. Virtually, Kobylina does not deny the existence
of “antic realism” but restricts it by terra-cottas.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 33


A.Peredolskaya expressed an interpretation of the “antique realism” problem which was closest to
Bakhtin’s one. Like Bakhtin, she defined the main “parameters” of the classic canon as “generalization,
idealization, typization”, “well-thought-over, abstract and beautiful athletes’ figures <...>”50. Like Bakhtin,
she opposed a lopsided understanding of the antique classics51, thus declaring within its limits the exis-
tence of the unofficial folk culture distinguished by a grotesque (comic) character: “...the usual idea of
the similarity and integrity of the 5th century antique art is totally wrong. There was a realistic trend in
the 5th century art, along with the official one. There was a crowd in the streets and squares of Athens
consisting of foreign merchants, big and smaller traders, craftsmen, peasants, and slaves. It’s right that
diversified crowd that we see in Aristophanus’s comedies <...>” (p.155).
Peredolskaya considers Aristophanus’s works to be a “consequence of a long-term development of
the ancient comedy in the 5th century as a certain theatrical genre deeply rooted in the folk-lore and
in the ancient custom of agricultural carnival festivals”, and it’s not only Aristophanus who represented
that unofficial realistic art. “The artistic industry of that period gives us a vast material to study realism
in the 5th century, they were mainly drawings on vases and terra-cottas. Drawings on vases made in
the early 5th century can be called sketches for studying the human body” (p. 156).
Then different illustration of that hypothesis are given in the article such as a picture on a red-figured
vase depicting a fight of drunk Athenian citizens on their way home from a party, a drawing on a cup
depicting an old slave, terra-cotta statuettes of old women, a mask found in Kerch which is an almost
individualized portrait of an old man, Beotian ludicrous statuettes...
But the central point in the author’s argumentation is the scholarly material we already know: “The
brightest example of that realistic trend in the art of the third quarter of the 5th century is a collection
of ludicrous figurines found in 1868 in a women’s cemetery in the Bolshaya Bliznitsa burial mound that
is situated in the Taman Peninsula” (p.163). The grotesque character of the Kerch collection of figurines
was not to be doubted for Peredolskaya, she even tried to define its originality that she saw in the para-
doxical combination of the “general scheme of idealized forms borrowed from the official art of that time”
and “exaggerated, almost clearly ludicrous features such as, for instance, big stomach as if carved with
wrinkles, or women’s flabby breasts, or faces which were too vulgar” (pp.164-165).
The unofficial grotesque art was interpreted by Peredolskaya (right in Bakhtin’s way) as that expressing
the ideals and aspirations of the masses. It’s to be noted that the “antique realism”, as she sees it, is not
simply an ordinary stage of the artistic development of the antiquity but one of fundamental elements
of the antique culture. The “real” and “ideal” trends, Peredolskaya writes, fight with each other in the
ancient Greek art, each side winning a victory by turns. Thus the “classical”, “official” canon was deprived
of any privileged situation and was equalized in rights with the “antique realism” depicting the diversity
of life going outside the principles of the absolute beauty. The following hypothesis one half of which is
understandably italicized may be called the distillation of Peredolskaya’s article: “Realism which expressed
the ideology of the democratic layers of the Greek people in that early epoch was in no case an accidental
phenomenon as we can not consider numerous drawings on vases and grotesque terra-cotta figurines to
be rare attempts of some artists to go outside the limits of the official style. Realism as a certain artistic
worldview existed during the whole development of the antique art. The very appearance of the “classic”
art would be impossible without the bloom of the realism during the earlier periods”52 (p.167).
A.Peredolskaya wrote a small collection of articles on terra-cottas from the Bolshaya Bliznitsa burial
mound. The articles were published in the 1950s and 1960s53. All the articles are interesting, each in
their own way. They strike some aspects of interpretation of the ludicrous statuettes, describe different
groups of figurines the collection includes. A review and analysis of those articles can be a separate
subject to write on, but we are interested only in the last article directly concerning, among other Kerch
terra-cottas, the statuette of a pregnant old woman mentioned by Bakhtin in his book on Rabelais.
Here Peredolskaya tries to consider the terra-cottas found in the tomb of an extravagant Pantica-
pean woman as a whole collection where separate figurines are closely connected with one another by
a common plot. According to Peredolskaya’s hypothesis, all the statuettes were made in one and the
same studio, by the same artist, and at the same order, and they were intended to illustrate the hymn
to Demeter created supposedly in the 7th century A.D. and traditionally ascribed to Homer. Besides,
according to Peredolskaya, both Homerian hymn and the collection of figurines reflected some secret
rituals of Eleusinian mysteries54.

50 A.Peredolskaya. To the issue of realism in the Greek Art of the 5th century A.D. ..., p.155. Then the numbers of the pages quoted are given in the text.
51 As an example of such “lopsided understanding” of the classics, Peredolskaya mentions “decree of Ludwig the 1st Bavarian to remove the well-known
statue of a drunk old woman to the basements of the Munich glyptographic library, for it was claimed not to correspond with the ideals of the antique beauty
<...>” (p.156). Let’s remember Stefani’s reaction to the grotesque figurines from the Bolshaya Bliznitsa.
52 It is to be noted that E.Querfeldt expressed his protest against the domination of the “classic canons” in the 1930s in a booklet “Features of Realism in
the Chinese Art” published by the Hermitage (Leningrad, 1937): “We percept the forms of nature unconsciously in the light of the antique attitude towards
the absolute beauty. Willingly or intendedly, we change and correct it according to the established canon of the ideal beauty. The sense of symmetry enslaves
our fantasy to such an extent that the diversity of life forms seems “accidental” to us, and we completely forget that there’s no absolute symmetry in the
world” (p.10. See also p.28). Querfeldt set out a hypothesis that there were features of realism in the Chinese art from the ancient times, especially when
“depicting demons, temple warders, or theatrical heroes and warriors”. Those features, by Querfeldt, reflected the artist’s observations of the nature and
living reality and “seem ludicrous from the classical point of view” (p.11).
53 A.Peredolskaya. On the plots of three terra-cotta statuettes found in the Bolshaya Bliznitsa burial mound // “Soviet Archaeology”. Vol.XII. Moscow-Le-
ningrad, pp.255-271; A.Peredolskaya. To the issue of the terra-cottas from the Bolshaya Bliznitsa burial mound // “Soviet Archaeology”. Vol.XXIV. Moscow,
pp.54-73; A.Peredolskaya. The terra-cottas from the Bolshaya Bliznitsa burial mound and Homer’s hymn to Demetra...
54 D.Lauenstein also considers Homer’s hymn to Demetra as a “detailed verbal evidence of the Eleusinians” (see: D.Lauenstein. Eleusinian Mysteries...,
pp.276-180).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 34


The statuette of a girl picking flowers depicted Cora (Persephone) kidnapped by Aid. Demeter rushed
to look for her daughter, in anger and despair. Peredolskaya quotes Homer’s hymn which says that De-
meter “wandered for a long time having changed her look”. According to this hypothesis, the ugly old
women symbolized the heroine struck with sadness: “The usual explanation of these terra-cottas as
“comic old women” associates them with images of the ancient comedy. They are traditionally called the
wrong name - caricatures”55. The author claims that their faces are simply distorted with a wrath and
an unbearable suffering.
The figurine of the third old woman (who was considered to be grotesque and comic one by Stefani,
Kondakov, Bakhtin, and Western scholars) has also in fact another meaning, as Peredolskaya supposes:
“The distinctive features of this figurine such as the elderly age and big stomach symbolizing fertility
are marked by all researchers. The clothes covering the whole figurine, including her head, points at the
woman’s wish to hide herself from others with sadness, pain, and mourning” (p.61). The following lines
in the Homerian hymn match the description of this old woman:
The virgins lead her to their father’s hall <...>
<...> the goddess followed the virgins
Pulling her shawl from her head down to her face.
(ibidem)
Then the author of the article correlates other terra-cotta statuettes with some motives of Homer’s
hymn and with some well-known features of the orgiastic and esoteric Eleusinian mysteries (for instance,
the obscene statuette of a naked woman with a basket between her legs and an artificial phallus in her
hand is considered as a possible illustration to the character of Iamba (Baubo, as a variant) who made
the suffering Demeter laugh with her jokes and gestures). But above all, we are after the interpretation
of the statuette of a “pregnant old woman” given in the article.
The situation is in some way paradoxical: if Peredolskaya is right, then Stefani, Reich, and Bakhtin all
made an odd mistake. They became offers of some misunderstanding taking desperate grief for cynical
(or grotesque and carnival) laughter. However, on the other hand, everything’s far from being so simple
anyway. Peredolskaya’s hypothesis is not in its essence contrary to the grotesque concept of the body
actualizing it and putting one of its not very obvious aspects in the focus of attention.
First, a big stomach, from the classical point of view, is an ambivalent and rather strange attribute of
a mourning goddess (it’s characteristic that Peredolskaya finds no parallel for this detail in the Homerian
hymn). Even if it’s not a ludicrous statuette of a pregnant old woman but a figurine depicting Demeter,
some emblematic features of Demeter’s as a patroness of agriculture and custodian of fertility are un-
doubtedly present in it, along with sorrow and grief (which Peredolskaya does not deny). The gesture the
statuette shows is also clearly ambivalent: bungling herself in her cloak, the old woman (or Demeter?)
seems to be baring that big stomach of hers at the same time. It’s to be mentioned here that, according
to some Russian scholars (for instance, B.Bogaevsky), Demeter was frequently depicted by the ancient
Greek with a gesture of denudation, which was to contribute to an increase in harvest56.
Second, uniting the statuettes in a common plot (and that’s the very point of that hypothesis), Peredol-
skaya associates tragedy with comicality all the same: this way or other, according to that plot, Demeter’s
unimaginable desperation is combined with obscenity and revelry. But Bakhtin himself, answering his
opponents at the defence of his doctoral thesis, said in his concluding remarks: “I didn’t mean carnival
as something cheerful. Not at all. Death is present in every carnival character. Using your term, we may
call it a tragedy. But it’s not tragedy that is the final word”57.
* * *
In the book called “Problems of Medieval popular culture” by A.Gurevich, a well-known Russian me-
dievalist, there is a chapter entitled “The “Divine Comedy” Before Dante”58. The tradition of medieval
sepulchral vision is set out in the chapter as an independent object of research. As we know, it’s this
tradition that was a guiding line and a basis for the great Florentine’s poem. I think a work called “”Ra-
belais and His World” before Bakhtin” can, and even must be written to show the gradual development
of the carnival theory in so many minds. There is not a single idea or turn of thought in Bakhtin’s book
on Rabelais that wasn’t (separately, one by one) expressed by this or that Russian or Western scholar.
Bakhtin’s merit is that he managed to catch those impulses vibrating in the air, to bring them together
into one integral picture, and to formulate a conception associated now mainly with his name.

55 A.Peredolskaya. The terra-cottas from the Bolshaya Bliznitsa burial mound and Homer’s hymn to Demetra... Then the numbers of the pages quoted are
given in the text.
56 B.Bogaevsky. The Agricultural Religion of Athens. Vol.1..., p.61.
57 See: The defence of M.Bakhtin’s thesis “F.Rabelaise in the history of realism”. Verbatim record // “Dialog. Karnaval. Khronotop”, 1993, #2-3, p.98.
58 A.Gurevich. Problems of Medieval popular culture. Moscow: “Iskusstvo”, 1981, pp.176-239.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 35


Керченские терракоты и проблема античного реализма:
«Рабле» М.М.Бахтина в контексте русской науки
конца XIX — первой половины ХХ вв.

Н.А.Паньков
Статуэтки беременных старух, хранящиеся в Эрмитаже среди других
керченских терракот (т.е. фигурок из обожжённой цветной глины), дважды
упоминаются во введении к книге о Ф.Рабле и являются довольно важной для
М.М.Бахтина иллюстрацией специфики и сути гротескной концепции тела. После
описания статуэток в книге говорится: «Это очень характерный и выразительный
гротеск. Он амбивалентен; это беременная смерть, рождающая смерть. <…> Здесь нет
ничего готового; это сама незавершённость. И именно такова гротескная концепция
тела»1. В принципе, роль и смысл этого образа ясны, так же как и его источник, на
который указывает сам Бахтин, отсылая читателя к книге Г.Рейха «Мим. Опыт
исторического исследования литературного развития»2. Однако для углубления наших
представлений о теории карнавала и её истоках весьма существенно было бы
рассмотреть мотив «беременной старости» в более широком контексте, нежели просто
контекст вводной главы к «Рабле».
Для начала прочитаем первый пассаж, посвящённый керченским терракотам,
раскрыв содержание сопровождающей его сноски. Бахтин пишет: «Среди керченских
терракот <...> есть, между прочим, своеобразные фигуры б е р е м е н н ы х с т а р у х ,
безобразная старость и беременность которых гротескно подчёркнуты. Беременные
старухи при этом с м е ю т с я »3. Далее идёт ссылка на с.507–508 книги Генриха Рейха.
Однако если мы ознакомимся с указанными страницами, то здесь нас сразу ожидает
маленькое открытие: выясняется, что сам Рейх «об этих терракотовых изображениях
беременных старух» практически ничего не пишет, а цитирует на указанных страницах
две работы российского учёного, действительного члена Императорской академии наук
Лудольф Эдуардович Стефани (1816–1887), опубликованные в качестве приложений к
«Отчётам Императорской археологической комиссии» за 1868 и 1869 гг.4 Обе эти
обширные цитаты я приведу чуть позже, а пока — несколько пояснений.
Как известно, Причерноморье довольно активно колонизировалось греками в
VII–III вв. до н.э. В XIX веке н.э. в ряде мест Южной России начались археологические
раскопки, целью которых было изучение остатков древнегреческих поселений. В 1864
году российские археологи исследовали часть огромного кургана, расположенного на
Таманском полуострове (в окрестностях Керчи, древнего Пантикапея) и имевшего
название Большая Близнúца. В 1865 и 1868 гг. раскопки продолжились, и в результате,
по словам академика Стефани, были получены «новые богатые материалы для
уразумения религиозной и художественной жизни прежних обитателей этого края»5.
Курган Большая Близнúца, согласно гипотезе Стефани, представлял собой «общее

1
Бахтин М.М. Творчество Ф.Рабле и народная культура средневековья и Ренессанса. 2 изд. М.,
1990, с.33.
2
Reich H. Der Mimus. Ein literar-entwicklungsgeschichtlicher Versuch. Berlin, 1903, S.507–508.
3
Бахтин М.М. Творчество Ф.Рабле и народная культура средневековья и Ренессанса..., с.32–33.
(Разрядка М.М.Бахтина). В книге форма родительного падежа множественного числа слова
«терракота» употреблена неправильно: «терракотов». Нужно — «терракот» (см. Зализняк А.А.
Грамматический словарь русского языка. М.: «Русский язык», 1977, с.211, 45). Явный
недосмотр редактора и корректора издательства при подготовке книги к печати.
4
Стефани Л. Объяснения некоторых древностей, найденных в 1867 году в Южной России //
Отчёт Императорской археологической комиссии за 1868 год. СПб., 1870, с.3–125; Стефани Л.
Объяснения некоторых вещей, найденных в 1868 году в Южной России // Отчёт Императорской
археологической комиссии за 1869 год. СПб., 1871, с.3–216.
5
Стефани Л. Объяснения нескольких древностей, найденных в 1864 году в Южной России //
Отчёт Императорской археологической комиссии за 1865 год. СПб., 1866, с.5.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 36


кладбище одного из знатнейших и богатейших семейств четвёртого века до
Р<ождества> Х<ристова>»6.
Особенное внимание привлекли к себе две гробницы. Одна была открыта в
1864 году, и, по характеру найденных в ней вещей, Стефани предположил, что это
гробница женщины, которая являлась жрицей богини Деметры «и прочих элевсинских
божеств», в чём он не увидел ничего странного, поскольку существовали «различные
факты, не позволяющие сомневаться, что культ этот пользовался большим почётом и в
других греческих колониях Южной России»7. Вещи, найденные во второй гробнице (её
открыли в 1868 году), позволяли предположить, что это захоронение женщины,
которая «занимала в жизни почти такое же положение, как означенная жрица», однако
«в весьма поразительной степени отдавала преимущество роскошной, вакхическо-
чувственной стороне» элевсинского культа8. Именно в этой гробнице оказался набор из
28 «карикатурных» терракот (включающий в себя статуэтки беременных старух),
который Стефани на этот раз счёл уже весьма странным «для женского лица из среды
одного из знатнейших семейств того времени», а более поздняя исследовательница
(А.А.Передольская) назвала беспрецедентным не только для причерноморских, но и
вообще для всех античных некрополей9.
Академик Стефани посвятил итогам раскопок несколько работ, которые, как
отмечалось выше, публиковались в качестве приложений к «Отчётам Императорской
археологической комиссии» за различные годы и именовались «Объяснениями»:
«Объяснения нескольких древностей, найденных в 1864 году в Южной России»,
«Объяснения некоторых вещей, найденных в 1868 году в Южной России» и т.д. Как раз
эти-то работы и цитирует Рейх. Давайте прочитаем (в сокращённом виде) приведённые
им цитаты:
1) «Терракотовая фигура, изображённая на таблице I-ой, под №15,
представляет, кажется, просящую милостыню беременную старуху <...>. Старуха
изображена с головной повязкой, в хитоне и гиматии, который приподнят до самой
головы. Она глядит в сторону вверх и обе руки, из которых, впрочем, одной недостаёт,
протягивает вперёд, как будто просит о чём-то. <...>»10.
2) «Другие две, очень похожие одна на другую пожилые женщины <...>.
Очевидно, что тут дело главным образом заключается в страшном безобразии
физиономии, которое, судя по другим, найденным в той же гробнице, статуэткам,
особенно нравилось означенной женщине. Черты лица у обеих старух в самом деле
похожи на физиономии обезьян. Остальные же части не представляют резких
особенностей. <…>
Другая фигура отличается ещё более циническим характером <...>. Беременная
старуха, в нижней и верхней одежде, сама смеётся над своим положением, стянув
правою рукою одежду свою на нижнюю часть своего лица таким образом, что формы
тела её очень ясно выступают наружу. <...>

6
Там же.
7
Стефани Л. Объяснения нескольких древностей, найденных в 1864 году в Южной России…,
с.19. Стефани ссылается при этом на свою статью, опубликованную в качестве приложения к
«Отчёту Императорской археологической комиссии за 1859 год» (СПб., 1862, с.34), а также на
известия Геродота о святилище Деметры в Ольвии и о дворце, построенном скифским царём
Скилесом для празднования вакхических мистерий.
8
Стефани Л. Объяснения некоторых вещей, найденных в 1868 году в Южной России…, с.12.
9
Передольская А.А. Терракоты из кургана Большая Близница и гомеровский гимн Деметре //
Труды Государственного Эрмитажа. Т.VII. Культура и искусство античного мира. Л.:
Издательство Государственного Эрмитажа, 1962, с.46.
10
Стефани Л. Объяснения некоторых древностей, найденных в 1867 году в Южной России…,
с.56.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 37


О духовном направлении женщины, вещам которой посвящены наши
разыскания, ещё яснее свидетельствуют остальные три женские фигуры, которые, в
соответствие нескольким мужским фигурам, изображают пьяных женщин.
Одна из них (табл.III, №12), хотя и без морщин, но, судя по губчатому животу и
отвислым грудям, должна быть уже довольно пожилая женщина. На ней красные
башмаки и голубая верхняя одежда, которую она, сидя на небольшом возвышении,
накинула на плечи в таком виде, что весь живот и груди её обнажены. Левою рукою
она охватила глубокий сосуд и, прижав его к груди, закинула назад голову от
удовольствия, возбуждённого в ней выпитым уже вином, а правую руку, хваля
напиток, приподняла вверх»11.
Кратко резюмируем сказанное в этих пространных извлечениях. Строго говоря,
Бахтин был не вполне точен, когда писал, что «беременные старухи смеются»:
статуэтка смеющейся беременной старухи у Стефани (а вслед за ним и у Рейха)
упоминается лишь одна12, хотя фигурок гротескно безобразных и беременных старух
— несколько. Причём этот смех немного сомнителен: поскольку старуха стягивает
одежду «на нижнюю часть своего лица», то, получается, губы её в основном скрыты13.
Думается, здесь лучше выдвигать догадки и гипотезы, нежели определённо утверждать,
что старуха смеётся (в дальнейшем мы увидим, что некоторые исследователи будут
истолковывать её полускрытую мимику иначе). И, наконец, необходимо отметить, что
мотив «беременной старости» в приведённых цитатах сочетается с другим характерно
гротескным мотивом «пьяной старухи». Далее это также окажется существенным для
наших размышлений.
***

В том же введении к «Рабле» Бахтин ещё раз упомянул о керченских


терракотах. Относя возникновение гротескной образности к архаическим временам (в
том числе и к временам «доклассического искусства древних греков и римлян»), он
настаивал: «И в классическую эпоху гротескный тип не умирает, но, вытесненный за
пределы большого официального искусства, продолжает жить и развиваться <…> в
области смеховой пластики, преимущественно мелкой, — таковы, например,
упомянутые нами керченские терракоты, комические маски, силены, фигурки демонов
плодородия <…>; в области смеховой вазовой живописи — например, образы
смеховых дублёров (комического Геракла, комического Одиссея), <…>; <…> в
обширных областях смеховой культуры, связанной с празднествами карнавального
типа — сатировы драмы, древняя аттическая комедия, мимы и др.»14.
В данном пассаже для нас интересны прежде всего два момента. Во-первых,
под «керченскими терракотами» здесь явно подразумеваются конкретно и только

11
Стефани Л. Объяснения некоторых вещей, найденных в 1868 году в Южной России…, с.164–
165.
12
Правда, Стефани в приводимой Рейхом цитате ссылается на ещё одну свою публикацию, где
описывается другая статуэтка из Большой Близницы, изображающая «простую беременную
женщину, которая бесстыдно усмехается и наглым жестом старается выставить на вид своё
положение» (Стефани Л. Объяснения некоторых древностей, найденных в 1864 году в Южной
России…, с.193). Однако всё же здесь не указывается, что это — старуха. С другой стороны, по
словам А.А.Передольской, «тип этот широко известен в многочисленных повторениях и
вариантах, найденных в разных центрах античного мира» (см.: Передольская А.А. Терракоты из
кургана Большая Близница и гомеровский гимн Деметре..., с.61. В сноске приводятся
конкретные указания этих вариантов).
13
М.М.Кобылина называет эту фигурку «статуэткой старухи с полузакрытым лицом и вздутым
животом» (Кобылина М.М. Статуя пьяной старухи. К вопросу о Мироне и эллинистическом
реализме // «Искусство», 1937, №1, с.77).
14
Бахтин М.М. Творчество Ф.Рабле и народная культура средневековья..., с.38–39. На
с.164 Бахтин также пишет о «фигуре комического Геракла <…> на античных вазах», а на с.112
констатирует влияние на Рабле сатировой драмы «Циклоп» Еврипида.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 38


статуэтки гротескных старух, хотя в окрестностях Керчи было найдено большое
количество различнейших образцов коропластики, включая те же самые комические
маски, изображения силенов, демонов плодородия и т.п.
Второй момент, который должен быть здесь отмечен, это упоминание
керченских терракот (и вообще смеховой пластики) в одном ряду со смеховой вазовой
живописью и со смеховой культурой, присущей празднествам карнавального типа.
Терракоты были тесно связаны с другими сферами античности и именно в соотнесении
с ними рассматривались в работах русских учёных второй половины XIX – начала ХХ
вв. Скажем, присутствующий у Бахтина пример из смеховой вазовой живописи —
изображение комического Геракла — встретится нам неоднократно, причём иногда в
достаточно сложных и парадоксальных сочетаниях как с терракотами, так и с
серьёзной вазовой живописью. В той же статье Стефани, которую цитировал Рейх,
автор замечает некую смысловую перекличку предметов, найденных в гробницах
Деметриной жрицы и её, по-видимому, более молодой и более экстравагантной
родственницы: «...в настоящем случае резко высказывается различие в характере обеих
женщин: вазовый рисунок изображает Геракла благородным защитником женщин, а
статуэтка — пьяным спутником Диониса»15.
Как известно, Бахтин жил в Одессе, где в Музее Императорского Одесского
общества истории и древностей хранилось богатейшее собрание греческих терракот
(бóльшую половину которых составляли ремесленные изделия, найденные в Керчи).
По словам российских историков А.А.Деревицкого, А.А.Павловского и Э.Р. фон
Штерна, керченские (пантикапейские) статуэтки образовали в этом музее «редкую по
своему богатству коллекцию типов: начиная с первых архаических попыток <…> и
кончая чудовищно-варварскими подражаниями, все известные до сих пор виды
гончарного производства имеют здесь своих представителей»16. В 1920-е гг. судьба
вновь предоставила Бахтину возможность поближе познакомиться с греческими (хотя и
в основном найденными в Беотии, а не в Причерноморье) терракотами: 1 июня 1922
года в петроградском Эрмитаже после длительного перерыва открылось для публики
перестроенное Отделение греческих и римских древностей, включающее в себя зал
терракот17. Бахтин в это время ещё находился в Витебске, но ездил в Петроград, а
вскоре, в 1923 году, вообще туда переехал. В середине 1920-х годов он постоянно
навещал своего невельского друга — пианистку М.В.Юдину, которая жила в доме на
Дворцовой набережной, буквально рядом с Эрмитажем (Дворцовая набережная, д.7
кв.30). Очень соблазнительно было бы думать, что Бахтин когда-либо завернул в
Эрмитаж посмотреть экспозицию Отделения греческих и римских древностей, однако
об этом (как и о посещении Бахтиным Музея Одесского общества истории и
древностей) ничего не известно. Честно говоря, построение фразы о гротескных
старухах в бахтинской диссертации «Ф.Рабле в истории реализма» выглядит несколько
подозрительно: «На знаменитых керченских терракотах есть<,> между прочим<,>
своеобразные фигуры беременных старух, безобразная старость и беременность
которых гротескно подчёркнуты»18. Уж не считал ли автор диссертации терракоты
неким плоскостным изображением (вроде фрески)? Впрочем, не исключено, что это
просто стилевая небрежность или научный штамп19. А знал ли Бахтин что-либо о

15
Стефани Л. Объяснения некоторых вещей, найденных в 1868 году в Южной России…, с.159.
16
См.: Музей Императорского Одесского общества истории и древностей. Вып.2. Терракоты.
Издано А.В.Деревицким, А.А.Павловским и Э.Р. фон Штерном. Одесса, 1898, с.47–48.
17
См.: Государственный Эрмитаж. Путеводитель по отделу древностей. Составил О.Вальдгауер.
Пб., 1922, с.52–54. Судя по этому путеводителю, в зале терракот демонстрировались статуэтки,
найденные в Центральной Греции — Аттике и Беотии; Южная Россия была представлена
только греческими терракотовыми вазами.
18
Бахтин М.М. Ф.Рабле в истории реализма. Диссертация // Отдел рукописей Института
мировой литературы РАН, ф.427, оп.1, д.19, л.23. Курсив мой — Н.П.
19
Например, очень похоже строится и фраза о греческих терракотах в работе Б.Л.Богаевского,
который уж точно знал толк в античной коропластике: «Деметра и Кора на некоторых

Proceedings XI International Bakhtin Conference 39


терракотах (кроме, может быть, полузабытых цитат из Стефани в книге Рейха)? Тут
возможны разные предположения.
По свидетельству С.Г.Бочарова, «карнавальные аспекты античной культуры
интересовали М.М.Бахтина ещё в пору его пребывания в петроградском университете»;
в одном из разговоров с Бочаровым Бахтин «называл латинские комические персоны
одной из своих студенческих тем: “Собрал большой материал, вернулся потом — в 30-
е годы”»20. Вокруг гротескных терракотовых фигурок из Большой Близницы и в
некоторой связи с ними в русской науке рубежа XIX—ХХ вв. и советской науке 1920–
1930-х гг. сложилось несколько любопытных сюжетов, относящихся к проблеме
трактовки античности. Памятуя об интересе молодого Бахтина к карнавальным
аспектам античной культуры, мы вправе предположить, что какая-то информация об
этих сюжетах была ему знакома. Но даже если Бахтин ничего о них не знал, дискуссии
о гротесках и терракотах скорее всего не прошли для него бесследно: как он писал в
одной из наиболее поздних своих работ (в «Заключительных замечаниях» к «Формам
времени и хронотопа в романе»), «культурные и литературные традиции <…>
сохраняются и живут <…> в объективных формах самой культуры», приходя в
произведения [в том числе и в научные работы], «иногда почти вовсе минуя
субъективную индивидуальную память творцов»21.

***
Итак, уже в процессе первого описания «карикатурных» статуэток из Большой
Близницы, предпринятого Стефани, выявилось «преобладание в них черт, трудно
увязываемых с обычными представлениями о греческом классическом искусстве, в
котором первостепенное значение всегда имела красота формы»22. Почтенный
академик, даже признав связь статуэток с оргиастическим элевсинским культом23, был
всё же шокирован их безобразием и грубостью. Гротескная концепция тела, пока ещё
никем не сформулированная, но материализованная в терракотовых фигурках,
требовала своей разгадки, так же как требовал какого-то осмысления тот факт, что
античность отнюдь не всегда классична и полна гармонии. Эта умственная работа
имеет свою большую историю, в которой нам пока стали доступны лишь некоторые
разрозненные страницы.
Вскоре после публикации процитированных Рейхом работ Стефани, в 1879
году, в 11 томе «Записок Императорского Одесского общества истории и древностей»
Никодим Павлович Кондаков (1844–1925), тоже действительный член Императорской
академии наук, рассмотрел терракоты «в их отношении к искусству, религии и быту»
древних греков24. Неизвестно, вошла ли эта работа в тот «большой материал» по
античной комике, который Бахтин, по его словам, собрал в студенческие годы, но, во-

терракотовых изображениях представлены сидящими в покрывале и в длинной одежде,


раскрытой на животе» (Богаевский Б.Л. Земледельческая религия Афин. Т.1..., с.61. Курсив тоже
мой — Н.П.).
20
Бочаров С.Г. Комментарии к работе Бахтина «К истории типа (жанровой разновидности)
романа Достоевского» // Бахтин М.М. Собрание сочинений. Т.5. М., 1996, с.419.
21
Бахтин М.М. Вопросы литературы и эстетики. М.: «Художественная литература», 1975, с.397.
22
Передольская А.А. Терракоты из кургана Большая Близница и гомеровский гимн Деметре...,
с.46.
23
О «скабрёзном направлении» многих элевсинских обрядов писали современные Стефани
российские учёные, см., к примеру: Богаевский Б.Л. Земледельческая религия Афин. Т.1. СПб.,
1916, с.57–68; Новосадский Н.И. Елевсинские мистерии. СПб., 1887, с.125–132, 179–181; см.
также перевод на русский язык одной из немецких работ на эту тему: Лауэнштайн Д.
Элевсинские мистерии. М.: «Энигма», 1996.
24
Кондаков Н. Греческие терракотовые статуэтки в их отношении к искусству, религии и быту //
«Записки Императорского Одесского общества истории и древностей». Т.XI. Одесса, 1879.
Номера цитируемых страниц указываются далее в тексте.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 40


первых, Кондаков двигался в своём исследовании курсом, предвосхищавшим
некоторые идеи «Рабле», а во-вторых, его статья в своё время привлекла к себе
внимание как первая «обобщающая работа о боспорских терракотах»25.
Кондаков присоединился к мнению Стефани об очевидной связи керченских
терракот с элевсинским культом и погребальными обрядами: «...художественная
мифология терракот <...> представляет положительное и характерное преобладание
именно хтонических божеств. Дионис, Деметра и Кора-Персефона, Гермес и Афродита,
Кибела-Астарта и мифологический цикл этих божеств: Сатиры, Эроты и т.д. — вот
преобладающие типы в терракотах. Собственно греческий Олимп является крайне
редко <...>» (с.120). В элевсинских празднествах и погребальных обычаях он всячески
подчеркивал наличие «комического и безобразного» — «переодеваний, ряжений,
мимических сцен мифологического и бытового содержания, шутовских и
непристойных представлений <...> с неприличными хоровыми песнями <...>» (с.145,
146). Эти празднества и обряды, по словам Кондакова, постепенно дали «содержание и
типы греческой, а впоследствии и римской народной комедии», которая «была
перенесена в терракоты» (с.146). Наряду с комедийным в празднествах
акцентировалось и пародийное начало («передразнивание богов, мифологических сцен
и пр.»).
Соответственно и коллекцию статуэток из гробницы экстравагантной
пантикапейской особы Кондаков трактовал в том же духе: «...все реальные сюжеты,
здесь встречающиеся: все гуляки и пьяницы, бойцы, мимы и комические актёры явно
составляют свиту божеств вакхо-элевзинского цикла <...>» (с.147). Причём, в отличие
от Стефани, он нисколько не считал направление ума этой дамы странным, объясняя
своеобразие керченской коллекции тем, что она составлена «из разнообразных пародий
вакхического культа» (с.148, 147).
Среди иллюстраций к своим рассуждениям Кондаков упоминал «утомлённую
пьянством старуху», а также «упившегося Геракла», по поводу которого пояснял, что
«эта фигура не изображает самого Геракла, а только его мима, как и другая подобная
представляет пародию в виде брюхана с палицею в руке и амфорою на плече» (с.148).
Фигурки гротескных старух Кондаков тоже упоминал, причём в его описании об их
смехе речи вообще не идёт: «Между женщинами также три старухи в сходных позах
как бы стараются обратить на себя особенное внимание: стоя и закутавшись с головою
в верхнюю одежду, они вызывающим образом смотрят вперёд; две выставляют на вид
безобразие своего лица, напоминающее обезьяну <...>, а третья, беременная, приподняв
к лицу верхнюю одежду, старается выставить на вид свою беременность» (с.148).
Эта, третья, старуха истолковывалась Кондаковым как Баубо — женщина,
которая сумела развеселить горюющую из-за потери Персефоны Деметру,
обнажившись и сделав неприличный жест. При этом, правда, беременность старухи
мгновенно ускользала от внимания исследователя, а в качестве существенных её
свойств и поступков воспринимались опьянение, обнажение и непристойное указание
«на своё тело» (с.149).
Очень любопытно то, как Кондаков объяснял возникновение «карикатурных»
статуэток из Большой Близницы. Признавая наличие гротесков «в области чисто
греческих изделий», он в то же время проводил различие между этими «изящными
гротесками» (крайне парадоксальное определение!) и уродливыми изображениями,
созданными, на его взгляд, в Пантикапее26 в позднейшую эпоху: «Конечно, известное
влияние оказало здесь преобладание варварского племени в этом городе, которое,

25
См.: Кобылина М.М. Терракотовые статуэтки Пантикапея и Фанагории. М.: Издательство АН
СССР, 1961, с.21.
26
А.А.Передольская была убеждена в аттическом происхождении статуэток, завезённых в
Причерноморье (см.: Передольская А.А. Терракоты из кургана Большая Близница и гомеровский
гимн Деметре..., с.50–51).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 41


усвоив себе греческие сюжеты, утрировало их грубо и наивно <...>» (с.109). Между
прочим, Бахтин в первой редакции «Рабле» отчасти воспроизвёл — скорее всего
независимо от Кондакова, т.е. идя своим путём, — эту ассоциативную логику, когда
назвал гротескную систему образов «готическим реализмом» (центральное,
фундаментальное понятие раннего текста книги). Характерно и то, что «готический
реализм» выступал у Бахтина как продолжение и развитие «фольклорного реализма»27:
Кондаков тоже замечал, что «народное искусство варваров явно повторило здесь
сюжеты, нами найденные в древней Финикии и Сирии, как бы свидетельствуя тем, что
во всяком народном художественном производстве есть основной тип, единая задача,
которая переживает тысячелетия <...>» (с.109).
В контексте рассматриваемой темы заслуживает внимания тот факт, что весьма
интересовался терракотами профессор Новороссийского университета Борис
Васильевич Варнеке (1874–1944), чей курс о древнеримском лирике Тибулле слушал
старший брат Бахтина Николай28. Делая доклад на педагогическом съезде деятелей
мужских гимназий и реальных училищ Одесского округа (в январе 1916 года), Варнеке
заявил о себе как о большом энтузиасте «ознакомления учащихся с памятниками
старины и древнехранилищами», в частности, с «памятниками археологии
классической: Ольвия, Керчь»29. Он посвятил греческим терракотам несколько своих
публикаций. В 1906 году, ещё будучи профессором Казанского университета, Варнеке
выпустил в Казани статью «Греческие терракоты», а в 1915 году, уже в Одессе, —
статью «Новые древности из Керчи»30, в которой описывались три терракотовые
фигурки, поступившие в Музей Императорского Одесского общества истории и
древностей (Бахтин в это время, как мы помним, тоже скорее всего находился в
столице Новороссийского края).
Слушал ли Варнеке Михаил Бахтин, мы точно не знаем; по крайней мере
Бахтин нигде и никогда об этом не упоминал. Однако предметы некоторых научных
разысканий Варнеке могли быть любопытны будущему автору книги о Рабле: Варнеке
и Бахтин бродили сходными тропками по «дебрям» древних цивилизаций.
Варнеке писал на многие темы, отличался большой плодовитостью31. Одна из
его основных тем — это история античного комического театра. Его докторская
диссертация, защищённая в 1905 году в Казани, называлась «Наблюдения над
древнеримской комедией»32. Правда, Бахтин позднее пришёл к выводу, что
«комедиографы — Аристофан, Плавт, Теренций — большого влияния [на Рабле] не
имели»33, но до получения «отрицательного результата» должны были быть раздумья
по этому поводу. Варнеке следил за литературой о комических проявлениях античной
культуры и создавал обзоры по ней. Можно упомянуть его работы «Новейшая

27
См. об этом: Паньков Н.А. Книга М.М.Бахтина о Рабле: Научная логика и динамика замысла //
«Диалог. Карнавал. Хронотоп», 2001, №4, с.116–128.
28
Паньков Н.А. Загадки раннего периода (Ещё несколько штрихов к «Биографии Бахтина») //
«Диалог. Карнавал. Хронотоп», 1993, №1, с.87.
29
См. тезисы доклада Варнеке под названием: Труды педагогического съезда деятелей мужских
гимназий и реальных училищ Одесского округа. (2—7 января 1916 года). Одесса, 1916, с.18–19.
30
Варнеке Б.В. Античные терракоты // «Известия Общества археологии, истории и этнографии».
Т.XXII. Вып.4. Казань, 1906, с.231–248; Варнеке Б.В. Новые древности из Керчи // «Записки
Императорского Одесского общества истории и древностей». Т.XXXII. Одесса, 1915, с.128–137.
31
См., к примеру: Библиографический список научных трудов профессора Б.В.Варнеке. 1889–
1924. Одесса, 1925.
32
Там же, с.6.
33
Бахтин М.М. Творчество Ф.Рабле и народная культура средневековья…, с.112. Ср., впрочем:
«В произведении Рабле прямое влияние Аристофана сочетается с глубоким внутренним
сродством (по линии доклассового фольклора)» // Бахтин М.М. Вопросы литературы и
эстетики. М.: «Художественная литература», 1975, с.369. Но о влиянии древнеримских
комедиографов на Рабле Бахтин вроде бы не писал.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 42


литература о мимах»34 (здесь в основном говорилось, причём весьма критически, об
уже знакомой нам книге Г.Рейха «Мим. Опыт исторического исследования
литературного развития»), «Новый сборник документов по истории аттического
театра»35 (здесь рассматривался только что вышедший труд известного немецкого
специалиста по изучению греческих надписей Адольфа Вильгельма), «Новые домыслы
о происхождении греческой комедии»36 (обзор брошюры Генриха Шнабеля) и т.д.
Варнеке интересовался и другими «вещами», прямо или косвенно связанными с
феноменом раблезианского карнавала, сочинив — в разные годы — множество, как он
их называл, «любимых мною пустячков в 2–3 страницы по античной драме»37. Как мы
помним, Бахтин писал в «Рабле» о «гротескном типе» искусства, который, будучи
вытеснен за пределы большого официального искусства, продолжает развиваться «в
области смеховой пластики, преимущественно мелкой <…>; в области смеховой
вазовой живописи <…>; <…> в обширных областях смеховой культуры, связанной с
празднествами карнавального типа — сатировы драмы, древняя аттическая комедия,
мимы и др.»
Всё это — словно сводный каталог излюбленных тем Варнеке, которыми он
занимался и до, и во время и после пребывания Бахтиных в Одессе. Например, в 1925
году Варнеке напечатал статью «К истолкованию “драмы сатиров”»38, размышляя о
противоречащей «природе современного художественного наслаждения самой манере
греков соединять полную весёлого задора драму сатиров с трагедиями в состав одного
и того же представления». Чтобы уяснить сущность драмы сатиров, Варнеке
предложил пользоваться «не сближениями с явлениями из области музыкальной
композиции» (как это было в основном тогда принято), а «сближениями с
изобразительными искусствами греков»39: «На чернофигурной амфоре Мадридского
собрания одна картина изображает в строго героическом стиле Геракла в борьбе с
Эвритом из-за Иолы <…>. Другая картина на том же сосуде изображает того же
Геракла за весёлой пирушкой с бородатым сатиром <…>»40.
Особенно примечателен вывод, сделанный Варнеке: «Стиль трагедии развивал
мотив, подняв его над обыденным уровнем жизни, стиль “драмы сатиров” опускал его
в полузвериную среду силенов и сатиров»41. Если воспользоваться знаменитыми
бахтинскими терминами, то, получается, для Варнеке была очень характерна установка
на изучение «амбивалентности», «двойного аспекта восприятия мира и человеческой
жизни», снижающего «перевода всего высокого, духовного, идеального, отвлечённого
в материально-телесный план».
***

Терракоты из кургана Большая Близница (и прежде всего 28 «карикатурных»


фигурок) останутся в сфере внимания учёных ещё несколько десятилетий — почти до
момента публикации «Рабле» в 1960-е гг. А параллельно и в тесной связи с
исследованием керченских гротесков в науке обсуждалась проблема «античного
реализма». Некоторые моменты этой дискуссии было бы любопытно осветить в
«бахтинском контексте».

34
Варнеке Б.В. Новейшая литература о мимах. Казань, 1907.
35
Варнеке Б.В. Новый сборник документов по истории аттического театра // «Учёные записки
Казанского университета», 1908, №1, с.1–32.
36
Варнеке Б.В. Новые домыслы о происхождении греческой комедии. Одесса, 1912.
37
Письмо Варнеке к Л.П.Гроссману от 15 мая 1927 года: РГАЛИ. Ф.1386, оп.2, д.210, л.12.
38
Варнеке Б.В. К истолкованию «драмы сатиров» // «Доклады АН СССР», 1925, с.67–69.
39
Там же, с.67, 68. В качестве своего предшественника, первым указавшего «на параллелизм
между многими явлениями античной драмы и изобразительных искусств у греков», Варнеке
называет немецкого исследователя Ф.Винтера.
40
Там же, с.68.
41
Там же, с.69.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 43


В диссертации Бахтин определял реализм как «выдвижение на первый план
материально-телесного начала»42 (в книге эта явно неканоническая для советского
литературоведения формулировка исчезла). «Выдвижение на первый план
материально-телесного начала» явно противопоставлялось «литературному и
изобразительному канону “классической” античности» (л.27), а также узкой «“эстетике
прекрасного”, сложившейся в новое время под непосредственным влиянием
односторонне понятой античной классики» (л.29).
«Гротескную концепцию тела» Бахтин формулировал, полемизируя с двумя
работами Н.Я.Берковского, изданными в 1930-е годы: предисловием к сборнику
«Ранний буржуазный реализм» и статьёй «Реализм буржуазного общества и вопросы
истории литературы»43. Обе статьи Берковского провозглашали возникновение
реализма совпадающим по времени с зарождением буржуазного общества. Возражая
своему оппоненту, Бахтин заявил, что «чрезмерная телесность», «физиологические
преувеличения» и т.п. черты вовсе не были открыты раннебуржуазным, или
ренессансным, искусством, — «напротив, они были традиционным моментом,
унаследованным от готического реализма или непосредственно почерпнутым из
фольклора»44 (л.9).
«Рабле — наследник одного тысячелетия развития готического реализма и
многих тысячелетий развития фольклорного реализма, и втиснуть его в узкие рамки
концепции, начинающей историю реализма с рождения буржуазного общества,
представилось бы очевидной нелепостью» (л.14). Концептуальный «противник», таким
образом, обозначался достаточно отчётливо. Союзники (тоже имевшиеся) почему-то
остались «за кадром». Скорее всего Бахтин, сначала отбывавший ссылку, а потом
скитавшийся в поисках пристанища, просто не знал о том, что существуют и другие
борцы против односторонне понятой «эстетики прекрасного». Однако идея «античного
реализма» (вполне согласующаяся с бахтинской теорией гротеска и карнавала) не
просто витала в воздухе, но и даже не раз высказывалась в русской науке, — правда, в
искусствознании, а не среди литературоведов.
В начале 1920-х гг. в своих «Этюдах по истории античного портрета»
заведующий Отделением греческих и римских древностей Эрмитажа Оскар
Фердинандович Вальдгауэр (1883–1934) выдвинул гипотезу, что в античной культуре
классического периода — V–IV вв. до н.э. — параллельно с условным, построенным на
стилизации и идеализации искусством существовало реалистическое (или
натуралистическое) направление45. Основным аргументом в пользу этой гипотезы стала
статуя пьяной старухи, две копии которой хранятся в Мюнхенской глиптотеке и
Капитолийском музее. Эту статую традиционно относили к эллинистическому периоду

42
Бахтин М.М. Ф.Рабле в истории реализма. Диссертация..., л.12. Далее номера цитируемых
листов будут указываться в тексте
43
Берковский Н.Я. Эволюция и формы раннего буржуазного реализма на Западе // Ранний
буржуазный реализм. Л., 1936, с.7–104; Берковский Н.Я. Реализм буржуазного общества и
вопросы истории литературы // Западный сборник. Вып.1. Л., 1937, с. с.53–86.
44
Вот конкретный пассаж Берковского, который Бахтин цитирует и с которым спорит:
«Искусство XV–XVII вв. загипнотизировано как необычайной новинкой всеми видами
“физиологического состояния” общества, — идет ли дело о шванках, фабльо, итальянских
новеллистах или же о Рабле с его специальной манерой гигантских физиологических
преувеличений, или же о Сервантесе, сознательно культивирующем в своем письме штрих
грубый, натуральный, “животный” — всюду материальное содержание жизни подчеркнуто,
возведено в степень грандиозного и впервые увиденного зрелища. Быть может, в живописи, в
фламандизме с его чрезмерной телесностью, все эти особенности ренессансного искусства
достигают настоящей концентрации» (Берковский Н.Я. Реализм буржуазного общества и
вопросы истории литературы..., с.55).
45
Вальдгауэр О.Ф. Этюды по истории античного портрета. Ч.1. Пб., 1921, с.2, 69, 70.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 44


(III–I вв. до н.э.), однако Вальдгауэр доказывал, что её автор — знаменитый скульптор
V в. Мирон из Элевфер46.
И само это утверждение, и аргументация Вальдгауэра вызвали полемику.
А.А.Передольская энергично его поддержала в своих публикациях47. М.М.Кобылина в
специально посвящённой этому вопросу статье высказала противоположное мнение:
«Жанровый характер изображения, беспощадная характеристика старческого
некрасивого тела — обвисшая грудь, морщинистая кожа на иссохшем теле, остаток
зуба, видный в открытом рту, выступающие кости — всё это выключает статую из ряда
типических образцов монументальной скульптуры не только Мирона, но и V века
вообще»48. Отметив присущий статуе «комический момент» («пьяный восторг старухи,
выражение её лица»), Кобылина, между прочим, упомянула о керченских терракотах,
отнесённых ею к V веку до н.э., — в частности о «статуэтке старухи с полузакрытым
лицом и вздутым животом» («...комические изображения мы имеем только в
статуэтках, на вазах и совершенно не встречаем в монументальном искусстве»)49.
Наиболее близкую к бахтинской трактовку проблемы «античного реализма»
продемонстрировала А.А.Передольская. Подобно Бахтину, она определила основные
«параметры» классического канона как «обобщение, идеализацию, типизацию»,
«строго продуманные, отвлечённо-прекрасные фигуры атлетов <...>»50. Подобно
Бахтину, выступила против одностороннего понимания античной классики51,
фактически продекларировав существование в её рамках неофициальной народной
культуры, отличающейся гротескным (смеховым) характером: «...обычное
представление об однородности и целостности античного искусства V века в корне
неверно. Наряду с официальным направлением в искусстве V века существовало
течение реалистическое. Улицы и площади Афин были наполнены пёстрой толпой,
состоявшей из иностранных купцов, крупных и мелких торговцев, ремесленников,

46
Там же, с.71–72.
47
Передольская А.А. К проблеме реализма в греческом искусстве V века до н.э. // «Искусство»,
1936, №1, с.155–156; Передольская А.А. Оскар Фердинандович Вальдгауэр // Вальдгауэр О.Ф.
Этюды по истории античного портрета. Л.: Огиз–Изогиз, 1938, с.19–21. Во второй из указанных
работ А.А.Передольская приводит любопытную информацию о теме, волновавшей Вальдгауэра
в начале 1930-х гг.: «Очень важные и чрезвычайно интересные наблюдения Вальдгауэра
касались т.н. “варварских” элементов в римском искусстве, изучению которых он придавал
большое значение. Об этом он прочёл доклад в Институте истории искусств, вызвавший
необычайный интерес в научной среде. Эти “варварские” элементы <...> получают интенсивное
развитие в III веке и создают в конечном итоге средневековое искусство» (с.39). Помня о
ключевой роли термина «готический реализм» в диссертации Бахтина, можно предположить,
что автор «Рабле» (сам бывавший и выступавший в Институте истории искусств) мог в какой-то
степени испытать влияние прогремевшего доклада Вальдгауэра.
48
Кобылина М.М. Статуя пьяной старухи. К вопросу о Мироне и эллинистическом реализме //
«Искусство», 1937, №1, с.76. В отличие от Кобылиной, всячески отделяющей эту статую от
керченских терракот, Передольская старается так или иначе связать её с ними: «На голове
“Пьяной старухи” Мирона <...> художественные приёмы характеристики лица совершенно
совпадают с терракотовыми фигурками “карикатурного” типа V века» (Передольская А.А. Оскар
Фердинандович Вальдгауэр..., с.20).
49
Кобылина М.М. Статуя пьяной старухи. К вопросу о Мироне и эллинистическом реализме...,
с.77. В сущности, Кобылина даже не столько отрицает существование «античного реализма»,
сколько ограничивает сферу его бытования терракотами.
50
Передольская А.А. К проблеме реализма в греческом искусстве V века до н.э. ..., с.155. Далее
номера цитируемых страниц указываются в тексте.
51
В качестве примера такого «одностороннего понимания» классики Передольская называет
«распоряжение Людвига I Баварского убрать в подвалы Мюнхенской глиптотеки, как
несоответствующую идеалам античной красоты, известную статую пьяной старухи <...>»
(с.156). Вспомним реакцию Стефани на гротескные фигурки из Большой Близницы.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 45


крестьян и рабов. Именно эту разношёрстную толпу рисуют нам комедии Аристофана
<...>» (с.155).
Но не только Аристофан (творчество которого Передольская считает «следствием
длительного развития на протяжении всего V в. древней комедии как определённого
театрального жанра, уходящего корнями своими в глубь фольклора, к древнему обряду
земледельческих карнавальных празднеств») представлял это неофициальное
реалистическое искусство: «Для изучения проблемы реализма в V в. богатейший
материал даёт нам художественная промышленность этого периода — рисунки на
вазах и терракоты по преимуществу. Рисунки на вазах начала V в. можно назвать
этюдами по изучению человеческого тела» (с.156).
Далее в статье приводились разнообразные иллюстрации данного тезиса: рисунок
на краснофигурной вазе, изображающий драку идущих после вечеринки подвыпивших
афинских граждан, рисунок на чаше, изображающий старика-раба, терракотовые
статуэтки старух, найденная в Керчи фрагментированная маска, дающая почти
индивидуализированный портрет старика, беотийские карикатурные статуэтки...
Но центральным пунктом в аргументации автора являлся уже знакомый нам
научный материал: «Наиболее ярким образцом этого реалистического течения в
искусстве третьей четверти V в. может служить знаменитый комплекс карикатурных
фигурок, найденных в 1868 г. в женском погребении в кургане Большая Близница на
Таманском полуострове» (с.163). Гротескный характер керченского собрания фигурок
был несомненен для Передольской, и она даже попыталась определить его своеобразие,
которое увидела в парадоксальном сочетании «общей схемы идеализированных форм,
заимствованных из официального искусства этого времени», с «преувеличенными,
почти явно карикатурными отдельными чертами, как, например, большой живот,
перерезанный жировыми складками кожи, или отвислые груди у женщин, или слишком
вульгарный тип лица» (с.164–165).
Неофициальное гротескное искусство вполне по-бахтински толковалось
Передольской как выражающее идеалы и чаяния широких народных масс. Причём
«античный реализм» в её восприятии — это не просто рядовой этап художественного
развития античности, но один из фундаментальных элементов античной культуры.
«Реальное» и «идеальное» направления, писала Передольская, борются в
древнегреческом искусстве, попеременно одерживая верх. «Классический»,
«официальный» канон, таким образом, лишался привилегированного положения,
уравнивался в правах с «античным реализмом», отражающим всё многообразие жизни,
перехлёстывающим через принципы абсолютной красоты. Квинтэссенцией статьи
Передольской можно назвать следующий тезис, половина которого закономерно
выделена разрядкой: «Реализм, являющийся в эти ранние эпохи выразителем
идеологии демократических слоёв греческого населения, вовсе не был случайным
явлением: многочисленные рисунки на вазах и гротескные терракотовые фигурки
отнюдь нельзя считать единичными попытками отдельных художников выйти за
пределы официального стиля. Реализм, как определённое
художественное мировоззрение, существовал на всём
протяжении античного искусства. Само появление
“классического” искусства было бы немыслимо без расцвета
р е а л и з м а в п р е д ы д у щ и е п е р и о д ы »52 (с.167).

52
Между прочим, в середине 1930-х гг. свой протест против засилья «классического канона»
выразил и Э.К.Кверфельдт в изданной Эрмитажем брошюре «Черты реализма в китайском
искусстве» (Л., 1937): «Формы природы мы бессознательно воспринимаем сквозь призму
античных воззрений на абсолютную красоту. Мы невольно или намеренно переправляем или
исправляем их по установленному канону идеальной красоты. Чувство симметрии порабощает
нашу фантазию до такой степени, что разнообразие жизненных форм нам кажется “случайным”,
и мы совершенно забываем, что абсолютной симметрии в природе нет» (с.10. См. также с.28).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 46


А.А.Передольская посвятила терракотам из кургана Большая Близница ещё целый
небольшой цикл специальных статей, вышедших в 1950–60-е гг.53. Каждая из статей
по-своему интересна и затрагивает тот или иной аспект интерпретации знаменитой
коллекции карикатурных статуэток, описывает различные группы фигурок, входящие в состав
коллекции. Обзор и анализ этих статей может быть самостоятельной отдельной темой, а нас пока будет
занимать только последняя из них, непосредственно затрагивающая — среди других керченских терракот
— статуэтку беременной старухи, которая была упомянута Бахтиным в его «Рабле».

Передольская здесь пытается рассмотреть терракоты из захоронения


экстравагантной пантикапейской особы как единый комплекс, в котором отдельные
фигурки тесно связаны общим сюжетом. Согласно её гипотезе, статуэтки были
изготовлены в одной мастерской одним мастером по одному заказу и предназначены
для того, чтобы проиллюстрировать гимн Деметре, созданный предположительно в VII
веке до н.э. и приписываемый традицией Гомеру. При этом и Гомеровский гимн, и
комплекс фигурок, по мнению Передольской, отражали какие-то тайные ритуалы
элевсинских мистерий54.
Статуэтка девушки, собирающей цветы, обозначала Кору (Персефону), которую
похитил Аид. Деметра в гневе и отчаянии бросилась искать дочь. Передольская
цитирует Гомеровский гимн, в котором говорится, что Деметра долго «блуждала, свой
вид изменив». Безобразные старухи, по этой трактовке, символизировали убитую горем
богиню: «Обычное объяснение этих терракот как “комических старух” связывает их с
образами древней комедии. Их принято неправильно называть карикатурами»55. На
самом деле, утверждает автор статьи, их лица просто искажены гневом и невыносимым
страданием.
Фигурка третьей старухи (которую и Стефани, и Кондаков, и западные
исследователи56, и Бахтин считали гротескно-комической) тоже, в действительности,
как полагает Передольская, имеет совсем другой смысл: «Отличительные черты этой
фигуры: пожилой возраст и большой живот, служащий символом плодородия, —
отмечаются всеми исследователями. Плащ, скрывающий всю фигуру с головой,
указывает на желание женщины укрыться от глаз других в знак печали, горя и траура»
(с.61). В Гомеровском гимне к описанию этой статуэтки применимы следующие
строки:
К чертогам отца повели её девы <...>
<...> богиня за девами следом
Шла, с головы на лицо опустив покрывало <...>
(там же).

Далее автор статьи соотносит другие терракотовые статуэтки с мотивами


Гомеровского гимна и известными деталями оргиастически-эзотерических элевсинских
мистерий (например, непристойную статуэтку нагой женщины с корзиной между ног и
искусственным фаллом в руке рассматривает как возможную иллюстрацию к образу

Кверфельдт выдвинул тезис о том, что в китайском искусстве, особенно в «изображениях


демонов, храмовых стражей или театральных героев-воинов», с древних времён существовали
черты реализма, отражающие наблюдения художника над природой и живой
действительностью и «кажущиеся карикатурными с точки зрения классицизма» (с.11).
53
Передольская А.А. О сюжетах трёх терракотовых статуэток, найденных в кургане Большая
Близница // «Советская археология». Вып.XIII. М.–Л., с.255–271; Передольская А.А. К вопросу о
терракотах из кургана Большая Близница // «Советская археология». Вып.XXIV. М., с.54–73;
Передольская А.А. Терракоты из кургана Большая Близница и гомеровский гимн Деметре...
54
Как «детальнейшее вербальное свидетельство Элевсиний» рассматривает Гомеровский гимн
Деметре и Д.Лауэнштайн (см.: Лауэнштайн Д. Элевсинские мистерии..., с.276–280).
55
Передольская А.А. Терракоты из кургана Большая Близница и гомеровский гимн Деметре...,
с.60. Далее номера цитируемых страниц указываются в тексте.
56
Их называет в своей статье Передольская (с.61), упоминая также другие комические
интерпретации этой фигурки.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 47


Ямбы (вариант Баубо), которая рассмешила горюющую Деметру своими шутками и
жестами). Но для нас интересна прежде всего высказанная в статье трактовка статуэтки
«беременной старухи».
Ситуация несколько парадоксальна: если Передольская права, то и Стефани, и
— с его «подачи» — Рейх и Бахтин совершили нелепую ошибку, стали жертвой
недоразумения, приняв гримасу отчаянного горя за циничный (или гротескно-
карнавальный) смех. Но, с другой стороны, даже в этом случае всё не так уж просто.
По своей сути гипотеза Передольской отнюдь не противоречит гротескной концепции
тела, а проблематизирует и ставит в центр внимания один из её, может быть, не самых
очевидных аспектов.
Во-первых, большой живот является амбивалентным и довольно странным, с
классической точки зрения, атрибутом скорбящей богини (характерно, что
Передольская не находит для этой детали параллелей в Гомеровском гимне). Даже если
это не карикатурная статуэтка беременной старухи, а фигурка, изображающая Деметру,
то в ней наряду с муками скорби несомненно обозначены (чего Передольская и не
отрицает) эмблематические свойства Деметры как покровительницы землепашества и
охранительницы плодородия. Явно амбивалентен и жест, зафиксированный статуэткой:
закутываясь в плащ, старуха-Деметра в то же время как будто бы обнажает этот
большой живот. Здесь следует вспомнить, что, по данным некоторых российских
учёных (Б.Л.Богаевский), Деметра нередко изображалась древними греками с жестом
заголения, что должно было магически способствовать увеличению урожая57.
***
В книге известного российского медиевиста А.Я.Гуревича «Проблемы
средневековой народной культуры» есть глава, которая называется «“Божественная
Комедия” до Данте»58. В качестве самостоятельного объекта исследования в этой главе
выдвинута традиция средневекового загробного видения, послужившая, как известно,
ориентиром и основой для поэмы великого флорентийца. Думается, можно (и даже
нужно) написать работу «“Творчество Рабле и народная культура” до Бахтина», чтобы
показать, как теория карнавала постепенно вызревала во многих головах. В бахтинской
книге о Рабле нет, наверное, ни одной идеи, ни одного поворота мысли, которые не
высказывались бы (по отдельности!) теми или иными русскими или западными
учёными. Заслугой Бахтина оказалось то, что он сумел уловить эти вибрирующие в
воздухе импульсы, свести их в единую интегральную картину и сформулировать
концепцию, ассоциирующуюся теперь преимущественно с его именем.

57
Богаевский Б.Л. Земледельческая религия Афин. Т.1..., с.61.
58
См.: Гуревич А.Я. Проблемы средневековой народной культуры. М.: «Искусство», 1981,
с.176–239.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 48


Sobre a autoridade poética

Cristovão Tezza

www.cristovaotezza.com.br

O presente texto tentará descrever o que chamo de “hipótese de Bakhtin” na definição da linguagem
do discurso poético. É fato que a prosa foi o grande tema de Bakhtin - mas ele também teorizou sobre
a poesia, se não extensivamente, pelo menos intensivamente em alguns momentos. Além disso, toda a
concepção de linguagem e de literatura de Bakhtin pressupõe, sempre, um lugar da poesia e um lugar da
prosa, não no quadro tradicional dos gêneros composicionais, quadro esse que nunca interessou Bakhtin,
mas como formas substancialmente diferenciadas de “apropriação da linguagem”. Assim, antes de entrar
na questão específica da poesia, é preciso rever o conceito de prosa romanesca segundo Bakhtin - é
apenas com relação a esse conceito que sua visão de poesia fará sentido.
O grande centro temático de todas as ramificações do pensamento bakhtiniano está na prosa artística,
mais especificamente no romance. Em sua obra mais famosa, Problemas da poética de Dostoiévski, em-
bora o tema central seja a literatura de Dostoiévski, a discussão sobre o romance como gênero aparece
em vários momentos, sempre relacionada à discussão sobre a natureza da linguagem, literária ou não,
como, aliás, foi a marca de todo o trabalho de Bakhtin. Parte substancial de suas categorias se encontra
neste livro, em particular o conceito de “polifonia”, que ficaria célebre pelo mundo inteiro como uma das
marcas maiores do pensamento bakhtiniano.
Para Bakhtin, Dostoiévski foi o criador de um novo gênero literário, o romance polifônico, cuja carac-
terística marcante (entre outras exigências) estaria no fato de que na obra do romancista russo as vozes
que ressoam no texto não se sujeitam a um narrador centralizante (como em geral acontece no romance
considerado tradicional); elas relacionam-se umas às outras em “condições de igualdade”. Bakhtin dá
vários passos surpreendentes com a criação desta categoria, que tem componentes ideológicos muito
atraentes para o nosso tempo, como veremos. O primeiro é uma nova definição da originalidade de Dos-
toiévski: o que poderia parecer um “defeito formal” em Dostoiévski, o seu suposto “mal-acabamento”, era
de fato a expressão de uma literatura cujo centro estava exatamente na idéia do “não-acabamento” do
homem, um conceito bastante produtivo na visão bakhtiniana do romance - para ele, este gênero é por
excelência o gênero do “homem não acabado”, que foi amadurecendo ao longo da história em oposição
aos gêneros épicos, expressões justamente do “homem finalizado”, no tempo e no espaço. Além disso
- sempre acompanhando Bakhtin - Dostoiévski não pode ser reduzido a um ideólogo, a um mensageiro
de verdades filosóficas ou mesmo religiosas (e nesse sentido não se deve confundir o romancista com o
jornalista Dostoiévski que publicava artigos sobre questões de seu tempo). Em Dostoiévski, o romancis-
ta, nenhuma palavra é uma última palavra; e toda palavra é potencial e necessariamente carregada de
diálogo, parte integrante e inseparável de todas as outras vozes. Para resumir a idéia central que emana
do conceito de polifonia, podemos dizer que, segundo Bakhtin, Dostoiévski inaugura uma dimensão de-
mocrática da estrutura romanesca (embora ele não use essa palavra); inaugura, ou talvez leve a cabo o
que já existiria de modo latente em todas as manifestações literárias marcadas pelo que ele chama de
“linguagem romanesca”, desde o embrião do diálogo socrático. O que é um modo, também, de dar a ele
o seu traço mais moderno e mais contemporâneo - e também o mais positivo, já que a idéia genérica
de democracia tem sido para nós (e, é claro, felizmente, embora nem sempre tenha sido ou seja assim)
uma espécie de “absoluto positivo” no campo político.
Assim, o conceito de polifonia acabou por ir muito além da descrição técnica de uma forma literária.
Aliás, entendê-la como a manifestação de um gênero fechado, passível de uma classificação composicional
aplicável em toda parte como uma moldura teórica implica várias dificuldades. A principal delas é que
acabamos cometendo a heresia de fazer de Bakhtin uma espécie de estruturalista, criador de um modelo
reiterável do que seria o romance moderno. O próprio Bakhtin acabaria por confessar que só Dostoiévski
foi de fato, nos termos por ele definidos, “polifônico”: em suas anotações dos anos 1970, lembrava o
“único polifonista”, assinalando que o conjunto das obras de um tempo, e não apenas de um autor, pode
ser polifônico, o que é um outro modo, muito mais amplo, de entender a idéia de polifonia.1
O fato marcante, entretanto, é que a obra sobre Dostoiévski fez escola e universalizou o conceito de

1 Cf. “From Notes Made in 1970-71”, p. 151 “Mas os próprios escritores não criam romances polifônicos. (...) Somente um polifonista como Dostoiévski
pode sentir na luta de opiniões e ideologias (de várias épocas) um diálogo incompleto sobre questões últimas (no quadro da grande temporalidade). Outros
tratam de questões que forma resolvidas dentro de sua época.” Em: Speech Genres & Other Late Essays. Austin: University of Texas Press, 1999.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 49


polifonia como uma espécie de “positivo literário”, como algo intrinsecamente “bom”. Aconteceu uma
interessante fusão entre dois planos do conhecimento: o que era, por princípio, a definição técnica de
um gênero passou discretamente a ser entendido como um valor desejável na vida: nós devemos ser
polifônicos. Essa fusão, ou confusão, dependendo do ponto de vista, é responsabilidade também de
Bakhtin: nas últimas páginas do seu livro, contrariando mesmo o tom em geral bastante técnico que
marca sua linguagem, de certa forma propõe a idéia de polifonia com um valor a ser defendido: “De-
vemos”, diz ele, “renunciar aos nossos hábitos monológicos”2. Para uma vida misteriosa como a dele,
essa invocação polifônica em plena União Soviética é um convite irresistível a especulações. Até a de
que seus textos, mesmos os mais técnicos, seriam ganchos para ele enviar mensagens cifradas à falta
de liberdade vigente.
Mas, felizmente, a sua obra tem se mostrado sólida o suficiente para sobreviver ao seu tempo ime-
diato. Nos anos 1930, quando já exilado no Casaquistão, em vários textos Bakhtin voltaria a teorizar
sobre o romance - agora especificamente sobre o romance, num olhar que privilegia substancialmente
a questão da linguagem. O mais importante deles é O discurso no romance3, que aqui nos interessa de
perto: nele está o único texto mais longo em que Bakhtin teorizou sobre poesia, ou sobre o discurso
poético em sentido estrito. Trata-se do segundo capítulo, O discurso na poesia e o discurso no romance,
em que ele compara a constituição da prosa romanesca com a constituição dos gêneros poéticos. Esse
capítulo é talvez o momento bakhtiniano que chamou a si a mais ostensiva oposição crítica4. Sintetizando
em uma expressão o que Bakhtin parece dizer e que tanta reação provoca: para ele, a prosa romanesca
teria uma natureza dialógica, enquanto a poesia, em sentido estrito, seria monológica.
Resumida assim a questão, tratava-se de uma flagrante injustiça contra o universo da poesia e con-
tra todos os poetas. Ora, a palavra “dialógico”, que no mundo de Bakhtin por princípio define um traço
constitutivo da linguagem ela-mesma, em todas as suas realizações, confundiu-se mais ou menos au-
tomaticamente com “polifônico”, que, como vimos, enquadrava um novo gênero literário historicamente
delimitado, e nessa mistura acrescentava-se o positivo absoluto, que no imaginário contemporâneo
contempla todas as manifestações de natureza, digamos, democrática; a polifonia dostoievskiana pas-
saria a ser a marca de toda a prosa romanesca, e daí o não-acabamento formal, a recusa de uma última
palavra, seria também o gesto político de aceitar todas as vozes como vozes equivalentes.
Assim, deu-se uma extensão filosófica e política ao que, pelo menos em tese, seria apenas uma peça
de teoria literária fundamentada numa concepção da linguagem de substância dialógica. Mas estou con-
vencido de que muito da popularidade de Bakhtin decorreu menos da apreensão estritamente técnica
de seu arsenal teórico, e mais de uma percepção quase intuitiva de que categorias como “polifonia”,
“carnavalização” e “dialogismo”, pela poderosa sugestão que continham, davam respostas muito ricas
para questões que, nascidas no terreno da especialização literária, transcendiam largamente os seus
limites. A prova dessa transcendência bakhtiniana está no mero fato de que cada vez mais discutimos a
dimensão filosófica de Bakhtin, a relevância de sua visão de mundo, enquanto o seu instrumental teórico
de análise literária corre o risco de, suprema heresia, mecanizar-se numa moldura reiterável, congelado
numa espécie de neo-formalismo, encontrando polifonia e carnavalização em qualquer manifestação
avulsa e desenraizada à disposição do crítico. Mas não importa: como costuma acontecer com as mu-
danças de paradigma, as categorias de Bakhtin já não são mais dele; fundiram-se com outros quadros
teóricos no grande diálogo contemporâneo e, no mundo da teoria literária, serão parte integrante dos
grandes conceitos que nos servem de referência.
Voltando ao ponto central: se a prosa teria sido marcada, neste Bakhtin popular, como o terreno
“positivo” da linguagem, a poesia, na outra margem, estigmatizou-se como o gênero centralizado da
linguagem, o gênero “monológico”, o gênero cujo discurso, repetindo Bakhtin, “satisfaz a si mesmo e
não admite enunciações de outros fora de seus limites”5.
A “reação” a esse ponto de vista faz sentido: no imaginário político e cultural contemporâneo, nada
poderia ser mais desgraçado para um gênero literário do que receber a acusação de “monologia”, de “um
único ponto de vista”, de uma “linguagem única”, de um “apagamento da dimensão dialógica da palavra”.
Mais do que isso: num momento, Bakhtin chega a dizer que, no seu limite estilístico, a linguagem poética
é freqüentemente “autoritária, dogmática e conservadora”. Não satisfeito, ele tira daí um paralelo com
os próprios movimentos poéticos de vanguarda do século XX, assinalando que, pela própria natureza da
linguagem poética, por exigência mesmo de sua constituição, é possível a idéia de uma linguagem poé-
tica especial, distante de todas as outras, de uma linguagem dos deuses, de uma linguagem sacerdotal,
etc. Observe-se que, por mais que Bakhtin envolva esses adjetivos numa definição técnica, e por mais
que eles de fato dêem a idéia, pelo menos metaforicamente, de muitos movimentos poéticos, a simples
referência a alguma “linguagem dos deuses” ou “linguagem sacerdotal” já parece carregar a definição
de uma acusação. Para as elites letradas ocidentais, nada pode ser mais negativo do que “linguagem dos
deuses” e dos “sacerdotes”, pela implicação política, freqüentemente explosiva, que essa mistura evoca
no cidadão comum do mundo urbanizado.

2 BAKHTIN, M. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999. p. 272.
3 Publicado no Brasil em Questões de literatura e de estética. São Paulo: UNESP/HUCITEC, 1988.
4 Uma exceção notável – e pioneira – a essa reação se encontra em “Em defensa del autoritarismo em la poesía”, de Tatiana Bubnova (Em: Acta Poetica,
número 18/19, 1997-1998. Universidad Nacional Autónoma de México). Depois de assinalar que em Bakhtin, de fato, “lo poético se opone a la prosa, como lo
monológico se opone a lo dialógico”, Bubnova defende, ao final (“provisional”) do texto que “el monologismo de la poesía es la forma legítima dele dialogismo
primordial de la palabra: actitud ante al mundo y ante sí mismo, acto sin coartada, ‘voz del pueblo, lengua de los escogidos, palabra del solitario’”.
5 Para essa e próximas referências, cf. Questões de literatura e estética, pp. 85-106.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 50


Ou seja, Bakhtin descarrega na linguagem poética tudo aquilo que, para uma certa consciência comum
do homem crescentemente literatado, elitizado e urbanizado que avançou pelo século XX até os nossos
dias, seria profundamente negativo. Não se trata aqui de uma questão “técnica” - o peso de palavras
como “dogmático”, “conservador” ou “autoritário” parece que nos afasta imediatamente de qualquer
reflexão posterior: não estamos interessados no mundo desses valores que são a expressão daquilo
que de pior nos aconteceu e tem acontecido no mundo. E, mais grave ainda, esse rosário de qualidades
negativas que Bakhtin vai levantando página a página naquele capítulo curto mais denso, diz respeito
justamente ao gênero que talvez agregue a mais alta imagem que a literatura pode ter para a nossa
cultura: poesia.
Quem pode ser contra a poesia? Talvez nenhuma outra palavra concentre sobre si tão intensa qua-
lidade positiva, no imaginário de milhões de pessoas, independentemente de sua classe social, de sua
condição econômica e mesmo cultural: a idéia de poesia reserva como que o espaço de transcendência
do homem, por mais disparatadas, diferentes, erráticas ou incertas sejam as realizações poéticas que
se façam (e se fazem de fato aos milhões, todos os dias, pelo mundo afora).
Mas em que base Bakhtin decide que a prosa teria uma natureza dialógica, portanto “boa”, e a poesia
uma natureza monológica, e portanto “má”? (Ficando, é claro, o “bom” e o “mau” por nossa conta.) Em
que sentido o discurso poético, segundo Bakhtin, seria mais “autoritário” que o discurso prosaico? Ou,
vendo de outro modo, um pouco mais suave, em que sentido o discurso poético tem mais autoridade
que o discurso prosaico? Talvez essa seja a palavra que deva reter nossa atenção: autoridade, não no
sentido de autoria, mas no sentido hierárquico mesmo, como define prosaicamente o dicionário Houaiss:
superioridade derivada de um status que faz com que alguém ou algo tenha esse direito ou poder.
Afinal, de onde provém a autoridade poética? Quem dá ao poeta o direito de ele cantar a sua poesia?
De onde ele extrai a legitimidade de sua autoridade?
Para responder a essas questões aparentemente absurdas - afinal, o poeta tem o mesmo direito
de falar que os outros cidadãos - é preciso relembrar o pressuposto lingüístico do chamado Círculo de
Bakhtin, porque a questão que se levanta não é “temática” (o texto x é mais ou é menos autoritário que
o texto y), mas de constituição mesma da linguagem, de seus modos de apropriação. Bakhtin, Voloshi-
nov e Medvedev, com algumas distinções de método ou de terminologia, separavam o conceito de signo
- sinal reiterável que já é clássico na lingüística desde Saussure e que entre nós se tornou senso comum
- do conceito de evento, isto é, daquele momento em que o signo sai da abstração e entra, digamos,
na “vida real” e concreta. Para o Círculo de Bakhtin, no terreno da lingüística, e para o próprio Bakhtin
em toda a sua produção de filosofia e teoria literária, o signo, como sinal, é incapaz de fundar qualquer
significado cultural; ele tem apenas um sentido reiterável.6
Para Bakhtin, nada que diga respeito ao mundo da cultura pode ser extraído da abstração primeira
do signo. Na vida real, todo signo é inelutavelmente duplo, não como expressão de duas referências
abstratas, mas como expressão de dois sujeitos e de duas visões de mundo. Nosso olhar sobre o mun-
do só é nosso porque há um outro olhar com relação ao qual o nosso ganha sentido. Pois bem, esse
“dialogismo interior”, isto é, o traço duplo inelutável, insuperável e inseparável da vida da linguagem
em todas as suas instâncias é constituinte, para Bakhtin, da linguagem ela-mesma. O traço dialógico é
parte constitutiva de todas as realizações vivas da linguagem, daquilo que Bakhtin chamou, no seu pri-
meiro livro, Para uma filosofia do ato, de “ser-evento”, e não se confunde simplesmente com o aspecto
composicional do diálogo, o diálogo no teatro ou na fala cotidiana. O dialogismo interior significa que,
havendo linguagem concreta, viva, no evento do ser, haverá necessariamente e pelo menos dois pontos
de vista ideologicamente entranhados em ação. Esse é o nosso equilíbrio - e é nosso justamente porque
há uma outra ponta dando a medida do nosso passo.
Assim (sempre seguindo Bakhtin), toda a discussão sobre a natureza da linguagem literária teria de
se fundamentar, primeiro, sobre a natureza da linguagem em geral em sua vida concreta; e o mundo da
estética, pertencendo ao mundo social da cultura, e não da biologia ou das puras formas, terá necessa-
riamente muito mais elementos constituintes do que apenas um sistema lingüístico de formas reiteráveis,
como sonharam e têm sonhado em maior ou menor grau os formalismos do século XX, de Chklóvski a
Jakobson. Para Bakhtin, todo evento da linguagem - mesmo aquilo que sonhamos, na última solidão do
ser - é a atualização de uma relação entre sujeitos históricos e sociais.
Voltando ao seu Discurso sobre o romance dos anos 1930, justamente aquele em que a poesia entra
na sua alça de mira, é interessante lembrar que o termo “polifonia” sai de circulação. Bakhtin agora se
concentra no fenômeno que ele chama de plurilingüismo, ou heteroglossia. Com essa nova categoria,
de um modo às vezes mais lingüístico e menos temático do que ocorria em seu livro sobre Dostoiévski,
Bakhtin quer provar como a constituição dialógica da linguagem se realiza concretamente, ou “palpavel-
mente”, mesmo quando temos um único enunciador gramatical. Isto é, sobre cada enunciação da lingua-
gem concreta, além de seu dialogismo intrínseco, constituidor do sujeito que fala, incidem igualmente
outras linguagens, outros discursos, outras intenções, numa rede que engloba não só os interlocutores
mas também os objetos, todos eles se apresentando a nós já saturados previamente de linguagem e de
valor. A idéia de uma “linguagem única”, tão cara historicamente ao nosso imaginário, será portanto, para
Bakhtin, uma ficção teórica sistematizada abstratamente; é preciso que nos afastemos da vida concreta

6 Para uma discussão aprofundada da perspectiva lingüística do Círculo de Bakhtin, cf. FARACO, Carlos Alberto, Linguagem & Diálogo – as idéias lingüísticas
do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 51


da linguagem para que possamos vê-la como uma abstração reiterável. No evento do ser, na urgência
irrecorrível da palavra cotidiana, a linguagem jamais é única, neutra, desinteressada ou repetível.
Dessa natureza plurilíngüe da linguagem Bakhtin extrai duas forças sociais e históricas, que ele chama
de “forças centrífugas” e “forças centrípetas”. As primeiras seriam aquelas que jogam permanentemen-
te a favor da divisão, estratificação, variação e multiplicação da linguagem, em todas as suas esferas;
as segundas, centrípetas, seriam as forças que trabalham a favor da unificação e da centralização da
linguagem. Por princípio, a linguagem não é um fenômeno único; ela se torna única objetivamente em
oposição às forças, digamos “naturais”, da diversificação. Isto é, a unidade lingüística é, para Bakhtin,
uma construção histórica e social e não um dado natural da linguagem.
Nesse ponto, a noção de “autoridade” que Bakhtin evoca ao lembrar a linguagem poética começa
a fazer sentido. Relembremos que a teoria literária de Bakhtin desloca o eixo de estudo do campo das
“formas” (podemos acrescentar: do tranqüilo e fechado mundo das formas e dos gêneros eternos, clas-
sificados em construções simétricas com a mesma lógica e ciência que divide o mundo em planetas e
estrelas) para o campo do evento da linguagem, mais difuso e confuso, de uma linguagem entendida
necessariamente como o ponto de encontro e de choque de muitas linguagens e visões de mundo. Para
Bakhtin, cada palavra é no mínimo duas palavras; e cada evento da linguagem é a atualização de uma
relação de forças entre sujeitos históricos distintos. Não só como diálogo externo; num único e mesmo
enunciado, do mesmo sujeito, atuam vozes distintas numa relação de força. Em cada curva entonacional,
a palavra trai a gradação hierárquica em que se encontra e na qual faz sentido. Bakhtin situa a noção de
“estilo” exatamente aí: o que tradicionalmente se vê como a expressão individual e unilateral do artis-
ta, Bakhtin vai entender como a forma pela qual a guerra das linguagens se realiza na enunciação; ou,
talvez mais precisamente, a forma pela qual um sujeito histórico e social toma forma diante da guerra
das linguagens.
Aqui começamos a nos aproximar, finalmente, do nosso objeto: a natureza da autoridade poética.
Veja-se que na teoria da prosa de Bakhtin o romance aparece como a expressão histórica da idéia de um
homem inacabado; e, na linguagem, a prosa romanesca seria justamente aquela que se constrói sobre
o homem que fala e a sua linguagem, um homem representado esteticamente como um sujeito mais
ou menos autônomo. Em outras palavras: na prosa, no discurso romanesco em geral, o autor abdica
de sua autoridade pessoal, ou de parte substancial dela. A noção de “autoridade” aqui é extremamente
importante, e um dos aspectos mais originais da definição de gênero segundo Bakhtin.
Mas em que sentido podemos dizer que um prosador “abdica” de sua autoridade? Em primeiro lugar,
observemos que no quadro bakhtiniano o ato de escrever é a atualização de uma relação entre sujeitos
ou imagens de sujeitos - que em momento anterior ele chamou de relação entre o autor e o herói. Esse
princípio fundador dialógico não é característica simplesmente da literatura, mas traço indissociável da
linguagem. Assim, falar ou escrever é instaurar, antes mesmo de um diálogo externo, um diálogo inter-
no. No caso da literatura, ou, para ficar no que discutimos aqui, do romance, o que garante a dimensão
estética é o acabamento, o fato de que aquele que escreve está “do lado de fora” daquele que é escrito,
e sabe mais, no tempo e no espaço, do que ele. O todo espacial e temporal do herói está ao alcance
apenas do autor, não do herói. No evento da vida, não temos esse poder; estamos permanentemente à
beira do abismo do momento presente.
Na linguagem romanesca, esta relação entre o autor e o herói não é uma relação fixa, única e reite-
rável. Há uma imensa gradação entonacional nesta relação. Para ficar em dois extremos: o autor pode
amar profundamente o seu herói, e em cada linha marcar este amor. Este tipo de relação pode resultar
em muitos estilos literários, desde o realismo socialista mais panfletário, em que o herói será o positivo
absoluto da vida política, até a hagiografia mais lírica, em que o herói será o positivo absoluto da vida
religiosa, por exemplo. Ou o autor pode detestar o seu herói e construir um romance inteiro sobre alguém
detestável. Também aqui o potencial estilístico é imenso, desde a sátira demolidora até o romance policial
escrito, digamos, do ponto de vista de um assassino sádico ou de um pedófilo, etc.
A noção de gradação aqui é importante: ela expressa o fato de a linguagem não se marcar, em ne-
nhum de suas instâncias, por relações qualitativas estanques, mas por relações quantitativas, marcadas
pelo infinito potencial entonativo do traço dialógico da linguagem. Assim, a distinção que Bakhtin faz
entre discurso poético e discurso romanesco é uma distinção quantitativa; ele nos fala de um espectro
que vai, idealmente, da “pura poesia” à “pura prosa”.
Na prosa, que se nutre inteira da relação entre autor e herói, a renúncia do autor a sua própria autori-
dade passa a ser um pressuposto indispensável. Pensemos na figura do “narrador negativo”, por exemplo.
A literatura apresenta milhares de exemplos de figuras negativas que são elas inteiras a expressão de
um romance, desde o clássico Raskolnikoff até o Humbert Humbert de Nabokov, que nos narra detalha-
damente como casou com a mãe para ficar perto da filha de 13 anos, a célebre Lolita.
Em todos esses casos, a significação maior do texto, a sua inteira realização literária se faz, funda-
mentalmente, pelo fato de que a linguagem se apresenta ao leitor relativizada, desprovida de autori-
dade. O discurso romanesco como que toma emprestado da vida cotidiana a incerteza do discurso, o
seu traço necessariamente falível, a sua precariedade primeira, não como “tema”, não como “assunto”
(isto é, o narrador vai nos dizer como as coisas são relativas, como não podemos ter certeza de nada,
etc.), mas como constituição interna. O ponto de partida da prosa romanesca está no fato de que ela
depende, umbilicalmente, da imensa estratificação da linguagem cotidiana, não como marcas formais,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 52


mas como pontos de vista autônomos com relação aos quais a minha linguagem mantém uma relação
viva, contra, a favor, indiferente, em mil tons e gradações, mas sempre viva; são os outros que po-
voam a prosa romanesca, e eles estarão presentes o tempo todo mesmo que eu, o autor, os deteste.
Para Bakhtin, na imagem do homem que fala que o romance constrói o ponto de vista alheio é parte
inseparável - o prosador é aquele que “passa a palavra”. Na constituição de significados, na atualização
literária do texto, o prosador não tem autoridade. No máximo - como ocorre em Dostoiévski segundo o
quadro bakhtiniano - o narrador é uma autoridade entre outras. Toda a apreensão da prosa romanesca
se dá sobre uma duplicidade de consciências - diante do romance, o leitor é sempre um desconfiado. Só
a leitura ingênua, infantil, desprovida da convenção literária, lerá o que diz Humbert Humbert de Lolita
ou o Mersault de O estrangeiro ao pé da letra, como a expressão integral e unilateral de alguém. Entre
a palavra desses supostos autores ou mesmo de qualquer narrador convencional e a minha apreensão
há um mar de desconfiança, de sutis gradações de empatia e antipatia, uma imensa gradação de con-
cordâncias e discordâncias - e é absolutamente necessário que haja esse mar de desconfiança para que
a prosa se realize como tal.
A imagem do homem que fala no romance é construída à imagem do homem que fala na vida con-
creta; é nesse sentido que o romance tem uma profunda tradição “realista” (no sentido mais simples
da palavra realismo, o da intenção fotográfica, digamos assim), porque ele fundamenta o poder da sua
palavra na palavra alheia, na palavra dos outros, que obrigatoriamente têm de ter alguma face autônoma,
devem conservar parte de sua visão de mundo original; na relação romanesca entre a minha palavra e
a palavra do outro, nenhuma dessas duas palavras pode desaparecer completamente na enunciação; se
uma delas desaparece, desaparece também a prosa romanesca.
A prosa romanesca fundamenta-se exatamente sobre esse ponto: o narrador abdica de sua autori-
dade; ele confessa, em cada linha, que não tem, que não pode ter, a palavra final sobre o seu herói, em
cada um de seus gestos. Pode-se dizer que entre o prosador e sua linguagem há a necessidade absoluta
de distância - esse seria, para Bakhtin, o pressuposto indispensável da linguagem romanesca. É claro
que, se compreendemos a linguagem de um outro modo, a linguagem como expressão unitária e única
de um falante unilateral, esta afirmação pode soar absurda, na medida em que cada palavra de Lolita
ou de Crime e Castigo foi escrita pelos seus respectivos autores, Nabokov e Dostoiévski. Aliás, como
Bakhtin lembra, a estilística tradicional pensa assim, e dessa idéia decorre também toda a classificação
histórica dos gêneros literários. Bakhtin coloca o problema em outros trilhos. A constituição da lingua-
gem romanesca está não no mundo das formas composicionais, mas no mundo das relações internas
da linguagem concreta.
Claro que o significado da “abdicação à autoridade” pressuposta pelo romance, tomado ao pé da
letra, pode soar absurdo: seria transformar o romancista num mero copista ou então naqueles autores
que costumam psicografar obras alheias, segundo defendem algumas concepções religiosas. O que essa
renúncia significa é diferente: o autor coloca o centro significante de sua linguagem na perspectiva do
outro; é a perspectiva do outro que lhe interessa. Mas, é claro, essa voz alheia não lhe vem intacta, a
pura voz do outro se consubstanciando na minha mão. Ela chega até mim refratada, comentada, amada
ou vilipendiada pelo meu olhar e pela minha intenção - mas, por mais forte que seja essa intenção, por
mais pressão que eu exerça sobre a voz alheia, por mais monumental que seja minha presença diante
do universo do outro, essa voz, esse ponto de vista, esse olhar alheio sobre o mundo está lá, necessaria-
mente presente, com o seu grau de autonomia. Claro, eu abdico da autoridade direta da minha palavra,
mas eu prossigo vivo no texto, na sombra de cada frase e na arquitetura do texto. Eu sei mais que o meu
herói, mas apesar de toda essa imensa superioridade - a partir do fato óbvio de que eu existo concre-
tamente e o meu herói é um ser de fumaça, uma pura imagem -, o meu herói mantém teimosamente a
sua autonomia. De certa forma, ele é a prova viva da natureza dialógica da linguagem, em cada um de
seus estratos - autor e herói não vivem um sem o outro.
A palavra escrita - a escrita em geral - tem sido ao longo dos séculos a expressão mais acabada da
autoridade, a sua consolidação histórica. A história da escrita é também a história da dominação, do con-
trole religioso e jurídico sobre os homens, de todas as formas de sacramento do poder político. A escrita
tem um prestígio que nem remotamente o mundo da oralidade sonha ter. A escrita, a partir do próprio
sentido de unificação da linguagem que ela exige, tem sido por excelência o espaço da “centralização da
linguagem” de que nos fala Bakhtin. As forças centrípetas da linguagem giram todas em torno da escrita
e de suas formas de manutenção unitária, dos bancos escolares à letra da lei. O texto escrito parece
que carrega consigo, por osmose, por memória milenar, o peso da verdade. A idéia de permanência, de
eternidade e de transcendência que a escrita evoca lembra também a gravidade de suas formas; mais
que isso, a evocação da autoridade.
Pois bem, o discurso romanesco é o único gênero que nasceu e se desenvolveu pela escrita; é um
gênero posterior a todos os outros, filhos da oralidade que se perdem na memória do tempo. O romance,
desde o seu embrião nos diálogos socráticos, é filho do mundo da escrita. E é exatamente neste espaço
centralizador, nessa forma perene de autoridade, que ele fará sua viagem histórica em direção à descen-
tralização da linguagem. Como para Bakhtin os gêneros literários não caem do céu nem são estabelecidos
pelos deuses, é evidente que a prosa romanesca, ao longo dos séculos, vai refratar e atualizar a relação
do homem com a autoridade, com todas as formas de autoridade da vida cotidiana.
A visão bakhtiniana da linguagem como atualização de uma relação hierárquica de forças necessaria-
mente presente em todas as formas composicionais abre caminho para perceber a linguagem da prosa e

Proceedings XI International Bakhtin Conference 53


a linguagem da poesia em outros trilhos, que não os estritamente formais. Assim, não foi exatamente o
“narrador onisciente” que teria entrado em crise nos últimos duzentos anos, entendido como uma “for-
ma gramatical” - por mais onisciente que seja, o narrador romanesco será sempre obrigado a passar a
sua palavra adiante e abdicar de sua autoridade completa sobre o mundo -, mas a própria idéia de uma
palavra autoritária e centralizadora sobre o mundo. Enquanto no mundo moderno da leitura o romance
conquista terreno pelo entretenimento, pela reificação no mundo das trocas burguesas, pela indústria
do livro, pelo crescente espaço leigo da palavra escrita como “espelho” do mundo, pela idéia da intimi-
dade como algo atraente e merecedor da dignidade da escrita, pela proliferação dos diários, cartas, pelo
império crescente do indivíduo, ao mesmo tempo cresce com ele a crise da autoridade. Quanto mais o
indivíduo passa a ser um valor social inalienável - a ponto de sua intimidade, como lembrou Bakhtin,
lentamente passar a ter o direito de se tornar objeto do texto escrito, o que era impensável no mundo
antigo - mais a noção de autoridade, em todas as suas instâncias, se relativiza; desfaz-se o manto sa-
grado da autoridade. Nos nossos tempos, cada vez mais a autoridade desembarca da esfera sagrada e
se transforma numa escolha contingente da esfera política.
E quanto à autoridade poética? Bakhtin dirá que, ao contrário do que acontece na prosa, na poesia,
no discurso poético em sentido estrito (no máximo do espectro poético, lembrando a relação quantitativa
dessas forças), o autor coloca todo o peso de sua autoridade sobre cada uma de suas palavras. É evidente
que no mundo dialógico da linguagem também o poeta vive imerso no plurilingüismo, nas mil linguagens
sociais que nos rodeiam e que estão presentes em toda enunciação. Mas a palavra alheia, quando entra
no discurso poético estrito, perde a sua autonomia vital, perde os traços capazes de fazer dela uma voz
outra que se contraponha à voz do poeta. Quando o poeta fala, só o poeta fala - é exatamente dessa
autoridade primeira que a poesia conquista o seu terreno. Todos os recursos técnicos do discurso poético
reforçam essa centralização absoluta do discurso, descolam a palavra da sua vida cotidiana, promovem
um corte radical entre a palavra do poeta e a palavra dos outros, isolam a linguagem num casulo único.
O metro, a rima, a música, o ritmo, a quebra visual da leitura padronizada, o uso do espaço em branco,
a fragmentação, a negação da linguagem prosaica em cada um de seus estratos, o cruzamento de códi-
gos, a singularização máxima dos sentidos e dos significados, da sintaxe e do léxico, todo esse arsenal
é usado a serviço da absoluta centralização da linguagem.
O poeta tira a linguagem do mundo corrente e congela-a num objeto verbal que concentra em si um
máximo de autoridade. Todo poema é a atualização de uma espécie de púlpito da linguagem. No próprio
impacto visual que ele celebra, do clássico soneto, com seus alexandrinos, seus quartetos e tercetos,
suas rimas ricas de variada alternância, da melodia de Camões à terra devastada de Eliot, até as reali-
zações verbográficas das vanguardas, como o rico movimento concretista brasileiro, em toda parte em
tudo o poema se faz púlpito, expressão de uma autoridade poética que chama a si a responsabilidade
total de cada uma de suas palavras.
O poeta pode fazer o que quiser da linguagem; ele é proprietário absoluto dela; ele coloca todo o
mundo da linguagem a serviço de sua voz. O poeta é alguém que outorga a si mesmo o direito de falar
com toda a autoridade possível de sua voz. Em outra ponta, vemos o prosador, uma figura tímida: ele
não pode fazer isso; a constituição da prosa romanesca, e da voz prosaica em geral, mesmo na vida
cotidiana, fundamenta-se exatamente sobre a desconfiança da autoridade. O prosador é alguém que
se apresenta, no mundo da linguagem, como uma não-autoridade. Há uma espécie de covardia, de re-
ticência, de ocultação, de disfarce no discurso prosaico. O discurso poético pode ter, do ponto de vista
temático, todo isso e mais um pouco - mas ele se faz sempre com o peso unilateral da autoridade do
poeta. Repetindo Bakhtin, “na poesia, o discurso sobre a dúvida deve ser um discurso indubitável”.
De passagem, lembremos que estamos falando dos limites, o limite da prosa e o limite da poesia,
mas é preciso frisar que a literatura se faz em todo o espectro que há entre uma coisa e outra. E, nestes
últimos cem anos - e aqui entramos em outro aspecto do tema, o da crise da autoridade - houve de
forma muito acentuada tanto a contaminação da poesia pela prosa (uma contaminação fortíssima no
caso brasileiro desde o nosso movimento modernista, cujo ideário estava muito longe das vanguardas
formais, mais estritamente “poéticas”, que surgiam na Europa) quanto o movimento contrário, a prosa
contaminada de poesia, ou cristalizada pela intenção poética, quando o prosador vai fechando as portas
que o ligam à vitalidade da linguagem dos outros e se concentra em suas próprias formas, depositando
nelas uma dose maior de autoridade.
Essa prosa cristalizada pela intenção poética, às vezes um tênue verniz isolante - marcado pela simples
quebra de linha no espaço da página ou de algum inesperado duplo sentido em alguma curva sintática,
ou alguma aliteração transcendente aqui e ali no meio de um texto prosaico - tem sido muito freqüente
entre nós, do porquinho da índia de Manuel Bandeira aos silogismos elípticos de Francisco Alvim; e às
vezes o próprio verniz poético está embebido de sátira, como se a autoridade poética só pudesse mesmo
se realizar como paródia, o que se encontra em algumas linhas lancinantes de Dalton Trevisan. Aliás, no
Dalton Trevisan da última fase, a dos mini-contos, vê-se exatamente a expressão de uma crise poética:
todas as formas de fechamento e do isolamento formal poético estão embebidas de ironia - em cada linha
há um olhar ridente, prosaico, que contamina de forma irremediável a autoridade daquele que fala.
Mas será mesmo aceitável a idéia de que a poesia, como linguagem, é a expressão - mais que isso,
tem de ser ou não será poesia - de uma autoridade centralizadora? Para reforçar esse princípio bakhti-
niano bastará lembrar que a idéia da voz poética como a voz de uma autoridade indiscutível, embora
pareça estranha ou mesmo inaceitável para os nosso dias, pelo valor que damos a tudo que nos leve

Proceedings XI International Bakhtin Conference 54


a desconfiar das autoridades, não é tão estranha assim para os próprios poetas, quando eles falam
da linguagem poética. Ou pelo menos a concepção de natureza poética que emerge das palavras de
grandes poetas, quando se referem à poesia, lembra bastante a noção de autoridade poética que aqui
defendemos. Se fizermos um levantamento do que importantes poetas disseram sobre poesia ao longo
do século XX, veremos que as imagens recorrentes girarão em torno justamente da idéia de autoridade
intrínseca do discurso poético.
A primeira imagem que transparece, pela boca do próprio poetas, talvez a imagem mais popular, define
poesia como o “indizível” - Jorge L. Borges, por exemplo, e nesse caso aparentemente sem ironia, diz
que não podemos definir a poesia como não podemos definir o pôr-do-sol, o amor, o ódio, etc. A poesia
está “entranhada em nós”7. T. S. Eliot se refere ao poeta como alguém “mais velho” do que os outros
seres humanos, o que é uma forma profunda - talvez a mais profunda e inacessível - de autoridade8.
Mais que isso: há uma dimensão sagrada nessa autoridade. Aliás, a idéia de antiguidade como expressão
da poesia também é bastante recorrente; Octavio Paz diz que o ritmo, parte inseparável da poesia, é o
elemento mais antigo e permanente da linguagem - talvez, é Paz que diz, seja anterior à própria fala9.
Em Lezama Lima, a idéia, ou a sugestão (o que seria mais apropriado no caso dele) do poético como o
indizível está praticamente em cada linha. A poesia é o irreal, o não-ser10. Para Octavio Paz, “a poesia é
a forma natural de expressão dos homens”, o que é um modo de tirá-la do mundo da cultura e colocá-la
no mundo da natureza. Em outro momento, o próprio Paz diz que “o poema transcende a linguagem”11.
Para Paul Valèry, a poesia se identifica com a expressão de Deus12. O que também é a visão do nosso
Manoel de Barros, ao seu modo falsamente corriqueiro: “Arte há de ser para sempre uma comunhão da
Natureza de Deus com a nossa naturezinha particular”13.
Enfim, por essas imagens recorrentes que saltarão aos olhos de quem quer que se detenha sobre o
que dizem os poetas sobre o próprio trabalho, parece que, em se tratando de poesia, há um território da
inteligência que, de fato, chama a si a máxima autoridade possível - a identificação da poesia com Deus,
por exemplo, passa talvez por metáfora, mas está ali, escrita com todas as letras para quem quiser ler.
A própria idéia - profundamente enraizada na nossa cultura literária - da superioridade da poesia sobre
a prosa, por sua antiguidade, por seu poder evocativo, pela sua beleza, pelo poder de supostamente
transcender a pobreza da linguagem cotidiana, pela sua universalidade, etc., já é por si mesma a expres-
são de uma autoridade implícita. Os poetas - e me refiro aqui aos grandes poetas do século XX - falam
da superioridade da poesia sobre a prosa como um fato absolutamente óbvio. Joseph Brodsky diz, com
todas as letras: “A poesia é a mais alta forma de locução”; e, em seguida: ela é, para dizer claramente,
“o objetivo da nossa espécie”14.
E, é claro, não ocorrerá a ninguém dizer o contrário, sob pena de apedrejamento crítico - salvo a
provocadores como Witold Gombrowicz, para quem “quase ninguém gosta de versos e o mundo dos
versos é fictício e falso”. E, num outro instante, acrescenta: “A poesia é um dos raros ofícios religiosos
que ainda nos restam”15. O que pode ser uma pista da autoridade poética, porque, de fato, a poesia, em
todas as circunstâncias, ritualiza a linguagem; a poesia, mais que merece, exige respeito, e um respeito
que se extravasa em cada gesto daquele que canta seus versos. Uma declamação poética é sempre um
ato de isolamento da linguagem; os próprios gestos de quem declama, por mais tímidos que sejam,
denunciam aos ouvintes que eles estão entrando em outra esfera das palavras.
Então por que se reclama tanto de Bakhtin quando ele diz que a poesia é uma expressão monológica
e, no seu limite maior, autoritária da linguagem; quando ele diz que a linguagem, para se tornar poesia,
precisa necessariamente cortar os elos com as intenções alheias e se concentrar inteira na própria voz;
se os próprios poetas, quando descrevem seu ofício, recorrem a imagens que podem ser entendidas
como o absoluto autoritário - Deus, a Natureza, a Antiguidade, a Revelação? O que parece comprovar o
fato de que esta queixa contra o espaço que Bakhtin reserva à poesia decorre menos de uma avaliação
teórica da natureza da linguagem e muito mais do imaginário político do nosso tempo, que, parece, se
impregnou de uma ojeriza a tudo que estabeleça um centro de valor.
A construção histórica do respeito à diferença como um princípio político, estritamente político, es-
colhido pelos homens para transformar a sociedade e a própria idéia de humanidade em alguma utopia
possível fundada não pelos deuses, por uma revelação extraterrena, mas pelos homens, parece que
vem se transformando na idéia de eliminação das diferenças, ou na idéia de que não há diferenças no
mundo. Se num momento histórico passamos a recusar uma autoridade imanente que, por revelação,
tivesse mais que o direito, o dever de dirigir nossa vida, parece que agora estamos recusando também
a idéia da autoridade política, porque ela de fato pressupõe uma hierarquia entre os papéis do mundo.
O que nos leva paradoxalmente de volta à idéia de uma autoridade imanente, com todos os perigos
que ela representa - pelo simples fato de que ela nem nos pertence, nem depende de nós. Ela, digamos

7 BORGES, J. L. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 26-27.
8 ELIOT, T. S. The use of Poetry and the Use of Criticism. London: Faber & Faber, 1967. p. 156.
9 PAZ, O. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 11.
10 LIMA, J. L. A dignidade da poesia. São Paulo: Ática, 1996. p. 126.
11 PAZ, O. Op. cit., p. 12.
12 VALÈRY, P. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999. p. 170.
13 Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar. Porto Alegre: Zero Hora, Caderno Cultura, 21 de junho de 2003.
14 BRODSKY, J. On Grief and Reason. New York: The Noonday Press, 1995. p. 100.
15 PERÉT, B.; GOMBROWICZ, W. Contra os poetas. Lisboa: Edições Antígona, 1989. p.69.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 55


poeticamente, se revela. Daí o risco de fundir os planos em que nos movemos, de pensar a natureza
da linguagem com a mesma lógica e com o mesmo imaginário com que pensamos a vida política e os
valores cotidianos.
Toda literatura se funda sobre um eixo de valor. Para Bakhtin, mesmo a prosa romanesca, ao abdicar
de sua autoridade última, terá sempre um eixo de valor a partir do qual o mundo que se organiza em
torno do autor ganha sentido; o eixo de valor prosaico é o binóculo através do qual os outros eixos de
valores ganham sentido próprio e se refratam no olhar do autor. Na linguagem poética, o eixo de valor
é ao mesmo tempo a autoridade última da palavra - a poesia, em cada entonação, se articula como a
expressão simultânea de um eixo de valor e de uma autoridade. Ela não nos pede retorno - ela simples-
mente nos encanta.
A pergunta pertinente aqui é: como esse encantamento não se faz, é claro, por meio de bruxarias,
varas de condão, mágicas ou hipnose, mas por meio de palavras, e as palavras vivas são todas históricas
e sociais, é preciso investigar que pano de fundo comum, no universo dos sentidos, dos significados, dos
valores, da cultura, é preciso haver para que, de fato, alguém, hoje, se deixe encantar pela palavra, ou
mais precisamente, pela autoridade poética de alguém. Falando prosaicamente: que poderosas cartas na
manga o poeta deverá ter para que realmente nos leve a ouvi-lo, a aceitar o direito que ele tem de exer-
cer sua autoridade? Num mundo brutalmente descentralizado como o nosso, desconfiado das hierarquias
até a alma, num mundo essencialmente paródico como esse que vivemos, num mundo de substância
prosaica (repetindo Bakhtin) como o nosso, de que malabarismos dispõe o poeta - e nos referimos aqui
àquela faixa da produção artística genericamente entendida pela inteligência contemporânea como alta
literatura - para se fazer ouvir?
E não falamos apenas das formas composicionais. Nesse terreno, a autoridade poética nos últimos
150 anos avançou implodindo todos os modelos que, pelo esclerosamento ideológico que representavam,
já eram incapazes de sustentar a autoridade da poesia. A poética moderna foi literalmente detonando
todas as velhas formas composicionais - a convenção que as sustentava não tinha mais o poder de lhes
dar autoridade. Um soneto, hoje, é ao mesmo tempo um soneto e a sua paródia - há uma fissão ines-
capável entre a forma do soneto e o ritual da autoridade poética; há um excesso de história no soneto
para que ele realmente nos encante. Duas das idéias centrais do ideário do formalismo russo para a
definição poética ilustram de fato a busca urgente, verdadeiramente desesperada, nos inícios do século
XX, de uma autoridade perdida pela invasão brutal das formas prosaicas não exatamente como “for-
mas”, mas como concepções descentralizadas da linguagem, pela quebra das hierarquias, pela invasão
irrefreável de outras vozes exigindo espaço. A primeira dessas idéias é a de que o discurso poético se
faz pela negação da “língua prática” (ou língua cotidiana, linguagem do dia-a-dia, prosaísmos, etc.). O
horror à chamada “língua prática” é, de fato, a luta por preservar o espaço da autoridade poética. O se-
gundo conceito, extraordinário, decorre dessa primeira premissa: o estranhamento como uma categoria
essencial do discurso poético.
Não cabe aqui discutir a epistemologia desses conceitos formalistas, que de resto já pertencem à
melhor história da teoria poética do século XX. Mas pensemos neles como sinais bastante evidentes de
uma luta por manter, no plano da linguagem, os privilégios (no bom sentido!) da autoridade poética
ameaçada pela invasão de um mundo novo de essência prosaica. A idéia mesma de estranhamento de-
nuncia o esforço de isolamento da linguagem, a busca de sua dessocialização, o corte radical da língua
cotidiana (toda ela fundada na empatia e na identificação da comunicação diária) para criar o casulo
poético, o púlpito em que a pura linguagem poética encontra ressonância. Nesse sentido, é interessante
o fato de os formalistas russos reservarem exclusivamente a essa área específica da atividade poética -
marcada pelo corte da língua cotidiana e pelo princípio do estranhamento - o estatuto do valor estético e
literário. A “literaturidade” do texto, para eles, só existia de fato onde houvesse a presença da autoridade
poética como fator isolante da linguagem. Assim, empreendeu-se grande esforço heurístico para buscar
nos prosadores clássicos, como Gogol ou Dostoiévski, não exatamente o que eles tinham de prosadores,
mas o que eles tinham de poetas. Isto é, a prosa só era realmente artística para os formalistas quando
ela supostamente se transformava em poesia.
Assim, curiosamente, o movimento teórico que se construiu sob a égide da ciência literária seria visto,
pela perspectiva bakhtiniana, como um movimento conservador, incapaz de reconhecer na prosa roma-
nesca - no que ela tinha de fato de prosa e de romance, no lado oposto do discurso poético - o elemento
revolucionário e transformador da linguagem artística como expressão da autoridade. O “homem novo”,
o ser polifônico com que sonhou Bakhtin não era o criador de estranhamentos poéticos, mas o homem
capaz de descentralizar o poder de sua própria linguagem, fazendo-a mergulhar empaticamente, com
um grau significativo de identificação, no mundo das linguagens alheias.
Voltando ao ponto: neste tempo de substância prosaica, a autoridade poética está em crise. E não é
só uma questão de crise dos modelos composicionais - à medida em que o próprio meio verbal parecia
insuficiente para sustentar a autoridade poética, ela começa a invadir outras áreas, como vemos hoje
nos gêneros da poesia visual, do vídeo-poema, poemas na internet e em mil outros sub-gêneros em
que a palavra poética, sempre ameaçada de um prosaísmo que nos cerca de todos os lados, vai buscar
refúgio em outros códigos e sistemas onde possa sustentar a sua autoridade isolada e isolante. E sem
falar num tema que por si só permite uma infinita cadeia de especulações, que é o fenômeno da música
popular como veículo insuperável de divulgação poética. A música leva o princípio do ritmo, que parece
ser um dos elementos fundamentais da definição poética qualquer quer seja a escola teórica, às últimas

Proceedings XI International Bakhtin Conference 56


conseqüências - a música realiza de uma vez por todas o sonho de estranhamento, de corte da língua
cotidiana imaginada pelos formalistas, reproduzindo não só o potencial rítmico implícito em cada verso
do poema, mas realizando-o, fixando-o e reproduzindo-o para todo o sempre.
A questão central é: como a poesia stricto senso pode recuperar sua autoridade? Se a hipótese de
Bakhtin está certa, esta não é uma questão formal. Essa é uma questão que transcende o objeto estético
convencionalmente entendido - lembremos que, para Bakhtin, a audiência é parte integrante do evento
estético. O poeta funda sua autoridade em duas pontas: na audiência concreta e social que crê, aceita
e outorga ao poeta o seu direito de dizer, e no imaginário do seu tempo que reserva a quem escreve
um quadro de valores dentro do qual a literatura, ou a poesia, fará sentido. É grande a tentação aqui de
fazer um discurso edificante sobre a eternidade da poesia, mas ela não precisa disso - ela já é eterna
o suficiente (mais que isso: a própria noção de eternidade é parte integrante de sua linguagem) para
que precise de nossa ajuda.
Na vida real, entretanto, parece que muito dos pressupostos que sustentam e ao longo da história
sustentaram a autoridade poética estão sendo minados. A própria invasão da prosa sobre o discurso
poético - um traço de boa parte da produção poética brasileira contemporânea que vem desde a gêne-
se dos primeiros modernistas - pode nos fazer pensar sobre a hegemonia cultural possível em que um
discurso centralizado e sacralizado (mesmo que leigo) faça sentido. O prosaísmo da poética brasileira,
que vai implícito de boa parte do ideário modernista até a sua cristalização maior na obra de Drummond
seria, de fato, a expressão não de pouca ciência poética (como diriam os formalistas russos, e, talvez, os
nossos concretistas), mas de uma profunda resistência, de uma corrosão digamos congênita da idéia de
uma autoridade poética maior - ou mesmo, se não exagero por excesso de zelo argumentativo, de uma
autoridade qualquer. O nosso clássico “jeitinho”, que tanto nos deforma como imagem de civilização, teria
encontrado também na poesia o seu modo de recusar o poder sacralizante da autoridade. A oposição já
clássica entre nós, das correntes concretistas que, sem dúvida, modernizaram a discussão poética entre
nós, colocando em outro patamar a natureza e a relevância das questões teóricas, e as não-concretistas
que se sucederam e existem até hoje, pode encontrar na questão bakhtiniana um terreno fértil de dis-
cussão. O problema não estaria nas formas, mas no espaço da autoridade poética em crise.
A hipótese de Bakhtin sobre o discurso poético, aqui apresentada mais ou menos esquematicamen-
te, abre talvez uma vereda nova para investigar a questão na natureza do discurso literário e de suas
variáveis. Se Bakhtin está certo, a questão do discurso poético stricto senso começaria, quem sabe, a
ser colocada em trilhos novos. E faltando-me autoridade, prosador que sou, para encerrar esta questão
como gostaria, invoco a autoridade poética de nosso maior escritor, ponto de encontro de todas as nossas
vertentes, para perguntar a sua pergunta a um tempo metafísica e prosaica, e duvidar definitivamente
com ele: E agora, José?

Texto apresentado na abertura da XI Conferência Internacional sobre


Bakhtin

Cristovão Tezza é escritor, autor do ensaio Entre a prosa e a poesia:


Bakhtin e o formalismo russo e dos romances Breve espaço entre cor
e sombra e A suavidade do vento, entre outros, todos publicados pela
Editora Rocco.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 57


Presentations
Comunicações
El papel de la sátira menipea y el diálogo Socrático
en la evolución de la novela

Jorge Alcázar

Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM)

Amado Nervo 50-18

CP 06400

México, D. F.

MÉXICO

RESUMEN
Bajtín, en su libro sobre Dostoievski, ha postulado que los géneros cómico-serios (en especial el
diálogo socrático y la sátira menipea) desempeñan un papel primordial en la conformación de la novela
como género. En este artículo se sondea la interrelación de ambos en varias obras narrativas. Aquí se
verá cómo quedan residuos del diálogo socrático, y su ulterior transformación lucianesca como es el
caso de El gallo, en la Utopía de More, The Nun’s Priest’s Tale de Chaucer, El coloquio de los perros de
Cervantes o la sección central de La batalla de los libros de Swift. Asimismo estas obras, en tanto que
manifestaciones de la menipea, ponen a prueba y parodian los paradigmas que sustentan aquello que
se ostenta o se asume como verdad. Aquí entran en juego varios tipos de carnavalización paródica que
ponen en entredicho la noción misma de verdad y que en modalidades más sofisticadas reaparecerán
en algunos textos ejemplares de la novela moderna.
ABSTRACT
In Problems of Dostoevky’s Poetics Bakhtin claims that the comic-serious genres, especially the So-
cratic dialogue and Menippean satire, have played a paramount role in the development of the novel as
a literary genre. This article explores the interelation of both in several canonic texts, such as Lucian’s
The Cock, More’s Utopia, Chaucer’s The Nun’s Priest’s Tale, El coloquio de los perros by Cervantes or the
dispute between the spider and the bee in Swift’s The Battle of the Books. These works not only put to
the test different versions of what is held or assumed as representing truth but resort to carnavalesque
parodical strategies of composition that question the very notion of truth. In so doing they point forward
to what other exemplary texts will do in the future.
En la actualidad la obra de Mijaíl Bajtín cuenta con un prestigio considerable en el ámbito del queha-
cer teórico en lo general, y en el campo de los estudios literarios en lo particular. Se han producido
múltiples estudios en torno a su obra, que van desde el recuento biográfico hasta interpretaciones de
índole lingüística, filosófica e incluso religiosa. Sin embargo, una de las aportaciones mayores de este
pensador ruso tal vez no haya recibido toda la atención que merece. Me refiero a su concepción de la
novela, articulada desde una poética histórica. Esta preocupación por el cambio y la evolución de las
formas artísticas la podemos apreciar desde los años veinte. Por ejemplo, en 1928, P. N. Medvedev,
miembro del círculo bajtinino, sacó a la luz El método formal en los estudios literarios (Bajtín 1994). Allí
se cuestiona por igual el enfoque marxista que prevalecía en ese momento, como al modelo mucho más
sofisticado de los formalistas rusos. Así vemos cómo se identifican sus vínculos con la poética de los
futuristas; el carácter negativo, apofático de sus planteamientos; la poca solidez de la oposición entre
lengua poética y lenguaje cotidiano, el descuido por las cuestiones de evolución histórica de los géneros
literarios, etc. Aunque el subtítulo de la obra dice ser una Introducción crítica a una poética sociológi-
ca, en realidad nos encontramos ante el esbozo de una poética histórica que—a diferencia de la crítica
marxista del momento habituada a priori a descalificar y satanizar cualquier planteamiento que tuviera
visos de formalista—toma en serio y cuestiona en el terreno teórico los conceptos acuñados por gente
como Víctor Shklovski o Boris Einjenbaum. El término “sociológico” no guarda migas con la disciplina
de la sociología como se entiende en la actualidad sino con una concepción social del habla, tal como se
expone en otra obra deuterocanónica como El marxismo y la filosofía del lenguaje de 1929.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 59


Las implicaciones de ello difiere sustancialmente del esquema totalizante con el cual, a principios de
los años noventa, los académicos norteamericanos Morson y Emerson trataron de convencernos. Según
ellos la postura de Bajtín representaba una prosaica, en marcada oposición a la poética de los formalistas
rusos. Como apunta Tatiana Bubnova desde la misma etimología se puede ver las limitaciones de esta
propuesta: “la poiesis en general concierne a la creación, y se opone a techné como habilidad práctica, no
a prosa, puesto que es tan aplicable a la poesía lírica como a la totalidad de los géneros literarios” (382).
Y de hecho el propio Bajtín mantuvo el término en la versión corregida de su estudio sobre Dostoievski,
que desde mi óptica particular representa una suerte de summa bajtiniana. La pareja norteamericana
ve asimismo en este libro una obra distinta de la primera versión, en especial por el capítulo IV, donde
encontramos un excursus histórico sobre el papel de los géneros cómico-serios (spoudogXloion) en la
formación de la novela (Morson & Emerson, 84-89). Aquí Bajtín considera dos géneros en especial el
diálogo socrático y la sátira menipea.
En contraste con géneros canónicos como la épica y la tragedia, que guardan un distanciamiento
tanto temporal como temático con los objetos representados, basados en héroes mitológicos y figuras
históricas, los géneros cómico-serios entran en contacto directo con lo actual y lo cotidiano, proporcio-
nando, por primera vez, una imagen artística de lo familiar, que a veces raya en lo burdo y lo grosero. El
segundo rasgo, que se desprende del primero, es la poca dependencia de los géneros cómico-serios con
la tradición consagrada, y en vez de ésta se le da más peso a la experiencia individual y la libre invención.
“La tercera particularidad es una deliberada heterogeneidad de estilos y de voces que caracteriza todos
estos géneros” (Bajtín 1986, 151-153).
Si el diálogo socrático, que tiene sus raíces en el folklore y el carnaval, nos presenta el problema de
la verdad, y cómo indagamos en torno a ella, la sátira menipea se caracteriza por ser un género diná-
mico y protéico, el cual exhibe una marcada exploración de las posibilidades indagatorias y analíticas
de aquello que mueve a la risa. El podernos reír de algo—ya sea una imagen sacrosanta o un concepto
abstracto—nos permite acercarnos y escrutarlo detenidamente, examinándolo y aun experimentando
con él (Bakhtin 1981, 23).
A diferencia del diálogo socrático, en el que todavía se mantiene un tratamiento académico y una
argumentación compleja y extensa, la “menipea es el género de las ‘últimas cuestiones’ y en ella se
ponen a prueba las últimas posiciones filosóficas” (Bajtín 1986, 163). Muestra además una “excepcional
libertad de la invención temática y filosófíca”, del “amplio uso de géneros intercalados”, de la imitación
y la parodia, así como de una tópica de lo inmediato que a veces alcanza una dimensión utópica, por
lo que las obras que pertenecen a este género entablan un diálogo con las verdades aceptadas y las
cuestiones palpitantes de su momento.
Todo esto podría parecer novedoso para la edición de 1963, pero ya desde fines de los años treinta
Bajtín había mostrado interés por este género. En 1937 se había instalado en Savelovo, población situ-
ada a más de cien kilómetros de Moscú, como se estipulaba para la residencia de aquellas personas con
antecedentes políticos. Allí tuvo la oportunidad de agenciarse los libros que necesitaba. De esto años de
trabajo fructífero nacieron ensayos como “De la prehistoria de la palabra novelesca” de 1940 y “Épica
y novela” de 1941 (Clark y Holquist, 260-263). En este último hay varias páginas dedicadas a la sátira
menipea que prefiguran el tratamiento más amplio que recibió en el estudio sobre Dostoievski (Bakhtin
1981, 21-28).
Los planteamientos bajtinianos han sido retomados y reelaborados en varias monografías que se han
concentrado en aspectos muy particulares, como el rol de la menipea en la antigüedad clásica (tanto en
la tradición griega como la latina, llegando hasta los albores del cristianismo), como se puede apreciar
en el estudio de Joel Relihan: Ancient Menippean Satire (1993); o la tesis de Ingrid de Smet, Menippean
Satire and the Republic of Letters 1581-1655 (1996), donde examina el uso neolatino que le dieron los
humanistas renacentistas a esta forma literaria en las contiendas religiosas de la época; e incluso, se ha
propuesto una cierta continuidad en la narrativa irlandesa de la primera mitad del siglo XX en Unautho-
rized Versions: Irish Menippean Satire 1919-1952 de José Lanters. En un estudio dedicado a Chaucer,
Anne Payne sostiene que en la sátira menipea hay dos aspectos que destacan en especial: su forma
dialogada y la parodia de ciertos textos (12), lo cual nos remitiría al modelo de los diálogos de Luciano
de Samosata, figura clave en la tradición que tratamos de bosquejar.
De lo anterior se desprende que, en la base del modelo bajtiniano de la menipea, encontramos una
mezcla de diálogo socrático y debate estilo simposio, por un lado, y la narración propiamente dicha, por
el otro. Un ejemplo primitivo de esta doble articulación lo constituye la Utopía de Thomas More. Desde
su nítida separación en dos partes, la obra parece haber asimilado ambos elementos. La primera sección
está formada por un diálogo renacentista reproducido de memoria, al igual que el resto de la obra, por
el propio More; la segunda la conforma el relato de Raphael Hythlodaeus sobre la isla de Utopía. En la
conversación participan More, Raphael y el anfitrión Peter Gilles (Aegidius). Raphael es un portugués
que ha formado parte de la tripulación de Américo Vespucio, ha visto el mundo y tiene todo tipo de ideas
para mejorarlo, pero se niega a ser el esclavo de un monarca.
En esta primera sección, buena parte de lo que relata Raphael tiene que ver con una reunión en In-
glaterra con John Morton—miembro del gobierno y Arzobispo de Canterbury—y otros de sus invitados.
Raphael ofrece un punto de vista fuereño sobre los males y las injusticias que aquejan a Inglaterra: los
soldados que se transforman en ladrones; los campos de labranza convertidos en pastizales para promover

Proceedings XI International Bakhtin Conference 60


la producción de lana y la subsecuente pauperización del campesino desempleado; la pena de muerte
que no resuelve nada; el círculo vicioso de la carestía de los alimentos, la mendicación y el robo. Raphael
aboga por medidas que desorbitarían los ojos de cualquier monarca, como preocuparse del bienestar de
su pueblo más que del suyo propio o la necesidad imperativa de abolir la propiedad privada. Al final de
esta primera parte, los tres interlocutores concuerdan, en alusión directa a Platón, en que no hay lugar
en las cortes europeas para un filósofo que quiera reivindicar las injusticias que dominan el mundo. El
único nolugar verdadero es el que describirá Raphael en la segunda parte.
En la obra hay una doble mediación: la reconstrucción por parte de More—quien es a la vez autor y
personaje—de la conversación que tuvo lugar en Amberes en casa de Gilles; en la cual Raphael, a su
vez, relata lo que vio en las latitudes de Utopía. Sin embargo, desde el principio encontramos indicios
que parecen negar la veracidad de lo que se presenta. Estos indicios nos traen de nuevo a la mente a
Luciano, y en especial su Historia verdadera, cuyo narrador nos dice explicitamente:
Una sola verdad diré: que digo mentiras. Así creo poder escapar al reproche de mis lectores, al re-
conocer yo mismo que no digo la verdad. Por lo tanto, escribo sobre los hechos que nunca vi, ni nunca
me ocurrieron, ni los sé por otros, y además acerca de sucesos que nunca existieron ni pueden llegar a
suceder. Por lo tanto mis lectores no deben otorgarme el menor crédito. (Luciano, 25)
Hay varios guiños de mendacidad en la obra de More, en especial en la serie de textos preliminares.
La obra abre con un espécimen de la poesía utopiana, seguida de una serie de misivas. En las ediciones
modernas estos textos por lo general han sido suprimidos, pero Carlo Ginzburg ha clarificado su papel
festivo, afirmando que estos paratextos cumplen una doble función: por un lado nos ofrecen todo tipo
de detalles que buscan autentificar el material presentado y, por el otro, sugieren que toda la obra es
ficticia (25). En una de ellas More le pide a Gilles la distancia exacta de un puente sobre el supuesto río
Anhidro, añadiendo: “Pues como tengo empeño en que no haya en mi libro nada falso, si hay alguna
cosa dudosa prefiero poner un error que mentir a propósito ya que prefiero ser honesto que artificioso”
(More, 71). Indicios de este tipo los encontraremos en Rabelais, en el prólogo de Gargantúa, donde se
habla de silenos y cajas que guardan sentidos misteriosos o en la supuesta veracidad del narrador de
Los viajes de Gulliver.
Ahora quisiera referirme a un diálogo de Luciano de Samosata, El sueño o El gallo. Antes de entrar
en ella, cabría aclarar que Eugene Kirk, en su catálogo bibliográfico, coloca este diálogo (con el número
136 de su inventario) entre las obras de Luciano en que no cabría duda de que pertenecen al género de
la menipea (16). En esta obrita, el canto prematuro del gallo interrumpe un grato sueño, en que Micilo
se veía rodeado de riquezas. El pobre hombre quisiera ahorcar al animal, pero se detiene cuando éste
le dirige la palabra. Para asombro del zapatero, no sólo le habla sino además le da razones, algunas de
tipo práctico, otras de índole literaria y orden filosófico o libresco. Micilo se pregunta si es que todavía
estará soñando. Y como sorpresa mayor, el gallo admite ser ni más ni menos que la reencarnación del
mismísimo Pitágoras. Ante semejante revelación el pobre operario no puede sino admitir que se encuentra
ante un gallo filósofo ( ).
Como es de imaginarse, el ave es capaz de disertar, de forma metaonírica, sobre la naturaleza y fun-
ción de los sueños, ya sea aludiendo a Homero o algún otro escritor (Harmon, 171-239).
Situación semejante se encuentra en un relato de Geoffey Chaucer, proveniente de The Canterbury
Tales. A veces The Nun’s Priest’s Tale (Benson, 252-261) es considerada tan sólo como una fábula en
la que un gallo, Chauntecleer, ha tenido un sueño terrible que raya en la pesadilla. Allí ve a una bestia,
semejante a un perro de caza, que amenaza con quitarle la vida. Al contarle el sueño a su consorte,
Pertelote, ésta ve desmoronarse la idea que hasta ese momento tenía de su compañero. Ahora le pare-
ce un cobarde, falto de agallas. Chauntecleer interpreta el sueño como un mal augurio; para Pertelote
es nada más el efecto de la mala digestión, por lo que prescribe un laxante que ponga fin al problema.
Chauntecleer trata de convencerla—con una erudición asombrosa para un ave—de que el sueño vaticina
algo malo. Sin embargo, después de tanta palabrería termina por ceder ante los encantos de la dama,
con lo cual se va preparando el terreno para el encuentro final con la zorra.
En el universo de la menipea, según lo concibe Bajtín, los personajes se convierten en ideólogos, es
decir, se vuelven portavoces de una postura ideológica o filosófica o encarnan en sí mismos una idea. Al
entablarse un debate entre dos o más interlocutores, se espera que cada uno induzca al otro a la expre-
sión cabal de su postura. En la obra de Chaucer, encontramos algo semejante cuando Chauntecleer y su
gallina preferida se enfrascan en una contienda verbal sobre el alcance del sueño antes referido. Para
Chauntecleer el evento onírico presagia algo que podría sucederle. Cuando lo contradice su amada, se
vale de una erudición bufonesca que raya en la miopía y el monologismo. Lo que parecer estar en el fondo
de esta síncrisis o confrontación de puntos de vista diversos es una parodia de las diversas disquisiciones
filosóficas—vigentes en la Edad Media—sobre la predestinación y el libre albedrío (Payne, 159-180).
Otro caso de animales que se hayan agenciado el don de la palabra lo encontramos en la última de
las Novelas ejemplares de Cervantes (1985 2, 299-359). En El coloquio de los perros, una noche Cipión
y Berganza caen en la cuenta de que no sólo hablan, lo cual rebasa los término fijados por la natura-
leza (como es el caso del gallo precedente), sino que hablan asimismo con discurso razonado. Si en la
obra de Chaucer hay una parodia de la docta disquisición sobre la interpretación de los sueños—como
igualmente ocurre con el diálogo lucianesco—también en la novela de Cervantes nos encontramos con
un reacomodo dialógico y polivocal que juega e ironiza los géneros intercalados. Éstos abarcan desde

Proceedings XI International Bakhtin Conference 61


aquellos provenientes del saber gnómico (el conocimiento de un hombre educado de la época, ya sea
en la vertiente del diálogo erasmiano o diversas disertaciones sobre el mundo de las brujas, los mate-
máticos o los arbitristas) hasta la confesión y la novela picaresca, ya que el discurso de vida que nos
ofrece Berganza—con su disposición amorfa y episódica—alude intertextualmente al género picaresco,
habiendo incluso lugar para manipular lúdicamente las convenciones de otros géneros como el pastoril
y el entremés. Mientras que en el caso del segundo personaje, Cipión, tenemos a un individuo bastante
versado en los sentidos alegóricos que un texto puede implicar, lo cual es una invitación tácita a leer la
obra a varios niveles. Así esta novela ejemplar cervantina se mueve entre los polos activos de “mur-
murar”—eufemismo que sirve para significar la sátira de las costumbres del momento—y “filosofar”, el
propósito edificante implícito en cualquier texto literario, polos naturales de los géneros cómico-serios
como los ha definido Bajtín.
Otra instancia de animales que hablan y se muestran como especímines ideológicos se puede observar
en el pasaje central La batalla de los libros de Jonathan Swift. Esta obra representa un capítulo más de
la querella entre los antiguos y los modernos, cuando la araña y la abeja discuten sobre la precedencia y
las bondades de cada uno. Se nos presenta a la araña con una actitud de arrogancia: “swollen up to the
first magnitude by the destruction of infinite numbers of flies”, por lo que la asociamos desde el principio
con las matemáticas, uno de los logros modernos. Al enredarse y cimbrar los cimientos de su telaraña,
la abeja provoca la ira del arácnido, quien se enfurece como un loco a punto de reventar: “stormed and
swore like a madman, and swelled till he was ready to burst”. Su primera reacción verbal se manifiesta
a través del insulto: “‘A plague split you’ said he, ‘for a giddy son of a whore. [...] Could you not look
before, and be d—d? Do you think I have nothing else to do (in the devil’s name) but to mend and repair
after yours arse?’” La abeja trata de apaciguarlo inútilmente, y se entabla el debate.
La araña adopta la postura de un orador en una disputa intelectual o filosófica, dispuesto a imponer
su punto de vista. Por lo que uno de los participantes opta de antemano por la vía monológica, negan-
do de entrada y reduciendo a cero el peso argumental de su oponente. El arácnido se presenta—como
buen moderno—con credenciales de autosuficiencia: “I am a domestic animal, furnished with a native
stock within myself. This large castle (to shew my improvements in the mathematics) is all built with
my own hands, and the materials extracted from my own person”. Resulta obvio que la araña está más
que ufana de su valía, ya que como indica la abeja más adelante es simplemente falsa su pretensión de
no depender de nadie, al demostrarle que recibe “a little foreign assistence” de los múltiples insectos
de los que se alimenta. Al igual que los yahoos gulliverianos, la araña se regodea en la suciedad y en la
destrucción, rasgo que se asocia con el género por excelencia de los modernos, la sátira: “you possess
a good plentiful of dirt and poison in your breast”.
La abeja, como vehículo y vocero simbólico de la tradición clásica, aduce que no destruye las flores
en que se posa, sino que lo que recoge lo enriquece sin perjuicio de su olor y belleza: “whatever I col-
lect from thence enriches myself without the least injury to their beauty, their smell, or their taste”. Sus
facultades para la música y el vuelo sirven para los más nobles fines: endulzar y alimentar, así como
alumbrar la vida humana. El meollo de la disputa se reduce a:
Whether is the nobler being of the two, that which, by a lazy contemplation of four inches
round, by an overweening pride, which feeding and engendering on itself, turns all into ex-
crement and venom, produces nothing at last but flybane and a cobweb; or that which, by
an universal range, with long search, much study, true judgement, and distinction of things,
brings home honey and wax. (Ross and Woolley, 9)

Y un autor clásico, Esopo, es el encargado de hacer la relación del suceso en la ventana a sus homólo-
gos de la biblioteca real. Pero no está de más tener presente que el Esopo que habla no es un personaje
que aparente ser el fabulista de carne y hueso sino un libro, como nos instruye el ficticio Bookseller al
principio de la obra:
I must warn the reader to beware of applying to persons what is here meant only of books,
in the most literal sense. So, when Virgil is mentioned, we are not to understand the person
of a famous poet called by that name, but only certain sheets of paper, bound up in leather,
containing in print the works of the said poet; and so of the rest. (Ross and Woolley, 1)

Seguramente a Swift no le hubiera sorprendido en los más mínimo saber que un crítico estructura-
lista, como Roland Barthes en los años sesenta del siglo pasado, escribiría que tanto el narrador como
los personajes de un relato son “seres de papel” (26). Y tal vez interpretaría esto como una fase más
de la eterna querella que él hizo memorable de nuevo, cuando los modernos se convierten en clásicos
y esperan la arremetida de los recién llegados que demandan un lugar, por pequeño que sea, en las
faldas del Parnaso.
Este alto grado de metatextualidad que ironiza el vehículo literario de que se dispone está presente
en los textos que hemos comentado. En el cuento de Chaucer, que guarda migas con la fábula, Chaun-
tecleer—para darle peso a sus temores—apela a todo tipo de autoridades y nos endilga un rosario de
exempla. Y en el ars predicandi a veces se echa mano de la fábula como exemplum. Sin embargo, el
gallo se enfrasca en discutir la posible interpretación de su sueño, que dentro del esquema de Macrobio
cae bajo el sueño enigmático o somnium, mismo que “esconde con formas extrañas y envuelve en la
ambigüedad el sentido verdadero de la información ofrecida, y que requiere de una interpretación para

Proceedings XI International Bakhtin Conference 62


comprenderlo” (87-90). En el caso de El coloquio de los perros, nos encontramos todo tipo de discursos
cruzados en el relato de la vida de Berganza, que según señala Rey Hazas, se acerca a “la novela-pulpo,
henchida de digresiones impertinentes e interpolaciones innecesarias que la hacen más semejante a un
sermón de predicadores que a una verdadera narración” (142), lo cual convierte a sus protagonistas en
cínicos perros murmuradores. Por lo que toca a Swift, encontramos de nuevo a un autor hipertextual
que no ceja de recordarnos que él ejerce la sátira venenosa con todas sus implicaciones escatológicas,
ya que los deshechos excretorios en su mano se esgrimen como una poderosa arma ideológica que logra
que dejemos atrás cualquiera de nuestras verdades aparentes, ya sea a través de una síncrisis en el más
allá como sucede en el viaje a la isla de Laputa o en el debate entre la araña y la abeja que muestra la
materialidad corporal de la escritura.
La mayoría de los textos aquí tratados no se podrían catalogar como novelas propiamente dicho,
pero el tipo de debate que hemos comentado (heredero de la tradición del diálogo socrático según ha
postulado Bajtín) prepara el camino y ayuda a contextualizar otras manifestaciones semejantes en la
formación y desarrollo del género novelesco. Se pueden traer a colación varios ejemplos. Entre otros,
se podrían mencionar las disquisiciones sesudas y a la vez cómicas entre los hermanos Shandy, sobre
temas tan diversos y extraños como la natureleza de las mujeres, algún oscuro tratado sobre las narices
o todo lo que encierra el nombre de una persona en la antinovela diciochesca de Laurence Sterne Tristram
Shandy. Otro caso interesante lo encontramos en la inversión del diálogo filosófico que tiene lugar en El
sobrino de Rameau, obra de Diderot a la que Robert Jauss sitúa dentro de las coordenadas discursivas
de la sátira menipea (118-147). E incluso podríamos acercarnos a manifestaciones modernas, en que
la relación dialógica interpersonal queda desprovista de toda traza de enunciación humana, dejando al
desnudo el alcance del procedimiento retórico-tipográfico como sucede en algunas partes del Ulysses de
James Joyce. Aquí tengo en mente capítulos como Aeolus, donde se emplean encabezados o titulares
periodísticos que ejemplifican el uso de diversas figuras retóricas. Y más afín con nuestro tema es el
formato de pregunta-respuesta que observamos en el capítulo denominado Ithaca, al cual Joyce—con su
educación jesuita—le adjudicó una estrategia narrativa que se amolda a la forma pedagógica-discursiva
del catecismo.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bajtín, Mijaíl M. 1986. Problemas de la poética de Dostoievski. México, Fondo de Cultura Económica.
Mijail Bajtin (Pavel N. Medvedev). 1994. El método formal en los estudios literarios, Madrid, Alianza.
Bakhtin, M. M. 1981. The Dialogic Imagination, Austin, University of Texas Press.
Barthes, Roland et al. 1982. Análisis estructural del relato, México, Premiá.
Benson, Larry D. (ed.) 1987. The Riverside Chaucer, Boston, Houghton Mifflin.
Bubnova, Tatiana. 1997-1998. “En defensa del autoritarismo de la poesía”, Acta poetica Vol. 18-19, pp. 381-415.
Cervantes, Miguel de. 1985. Novelas ejemplares, 2 Vol., ed. de Harry Sieber, Madrid, Cátedra.
Clark, Katerina y Holquist, Michael. 1984. Mikhail Bakhtin, Cambridge, Mass., Belknap/Harvard.
Ginzburg, Carlo. 2000. No Island Is an Island, New York, Columbia University Press.
Harmon, A. M. (ed.) 1953. Lucian, Vol. II. London, Heinemann, (The Loeb Classical Library).
Jauss, Hans Robert. 1989. Question and Answer: Forms of Dialogic Understanding, Minneapolis, University of Min-
nesota Press.
Kirk, Eugene P. 1980. Menippean Satire: An Annotated Catalogue of Texts and Criticism, New York, Garland.
Luciano de Samosata. s. d. Historia verdadera, Prometeo o el Cáucaso, Timón o el misántropo, Diálogos de las he-
tairas, edición de Eulalia Vintró, Barcelona, Labor.
Macrobius, 1952. Commentary on the Dream of Scipio, ed. de William Harris Stahl, New York, Columbia University
Press.
More, Thomas. 1999. Utopía, Barcelona, Folio.
Morson, Gary Saul & Emerson, Caryl. 1990. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics, Stanford, Standford University
Press.
Payne, Anne F. 1981. Chaucer and Menippean Satire. Madison, Wis., University of Wisconsin Press.
Rey Hazas, Antonio. 1983. “Género y estructura de “El coloquio de los perros”, o cómo se hace una novela”, en José
Jesús de Bustos Tovar, (ed.) Lenguaje, ideología y organización textual en la Novelas ejemplares. Madrid, Universidad
Complutense de Madrid, pp. 118-143.
Ross, Angus and Woolley, David (eds.) Jonathan Swift (The Oxford Authors), Oxford, Oxford University Press, 1984.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 63


Key Texts: Problemas de la poética de Dostoievski, El método formal en los
estudios literarios, “Épica y novela”. The Cock, Utopia, The Nun’s Priest’s Tale, El
coloquio de los perros, The Battle of the Books.
Key Names: Bajtín, Luciano de Samosata, Thomas More, Chaucer, Cervantes,
Jonathan Swift.
Key Words: Sátira menipea, diálogo socrático, géneros cómico-serios, evolu-
ción de la novela, carnavalización, parodia, puesta a prueba de la verdad, géneros
intercalados.
Nota biográfica: Jorge Alcázar es profesor de tiempo completo en la Facultad de
Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma de México. Imparte cursos
en el Posgrado en Letras en el área de Literatura Comparada. Se ha especializado
en la producción literaria inglesa de los siglos XVIII y XX, así como en enfoques
comparatistas relacionados con la emblemática, el esoterismo y la música, con varias
publicaciones en esos campos. Miembro del Sistema Nacional de Investigadores,
en 1999 recibió el primer lugar en el Concurso Nacional de Ensayo Literario: Sor
Juana Inés de la Cruz: Mujer de Todos los Tiempos.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 64


Bajtín en la Cuestión Antropológica de la Identidad

José Alejos García

UNAM, México

Resumen
La antropología filosófica de M. Bajtín encuentra un campo de especial interés en la discusión de la
antropología contemporánea, sobre todo en el tema de la identidad. Los movimientos étnicos y nacionales
se intensifican en todo el mundo y tienen como trasfondo una búsqueda de identidad. Estos fenómenos
sociales exigen perspectivas teóricas adecuadas, herramientas conceptuales precisas que permitan dar
cuenta de los mismos, y nuestras disciplinas sociales no siempre se encuentran preparadas para esos
nuevos retos. En esta ponencia se discuten críticamente posturas antropológicas sobre el concepto de
identidad y se avanza una propuesta de antropología dialógica fundamentada en el pensamiento teórico
bajtiniano.
“La conciencia del hombre despierta envuelta en la conciencia ajena” ( Bajtín 1982:360)

“Yo me conozco y llego a ser yo mismo sólo al manifestarme para el otro, a través del otro
y con la ayuda del otro. Los actos más importantes que constituyen la autoconciencia se
determinan por la relación a la otra conciencia (al tú)” (Bajtín 1982:327)

Positivismo y antropología. La identidad como tema antropológico


La identidad ha sido un concepto fundamental en la antropología, misma que desde sus inicios tuvo
como objetivo del conocimiento de las culturas y sociedades distintas a Occidente. Si bien el empleo
del término “identidad” en la disciplina es más bien reciente, es claro que una parte importante de su
programa de investigación giró en torno a las especificidades, a los rasgos constitutivos de esa otredad
objeto de sus estudios. En particular, la etnografía como subdisciplina dedicada a la investigación básica,
generadora de información primaria, tuvo hasta tiempos recientes la tarea de describir, de la manera más
completa posible -holística-, la totalidad de los aspectos propios de la cultura y sociedad investigadas.
En otras palabras, se trataba de efectuar una descripción científica que diera cuenta de la identidad de
aquellas.
Cabe señalar que esas etnografías “tradicionales”, en contraste con la modalidad posmoderna, se
efectuaron teniendo presente el deterioro acelerado de las culturas investigadas debido al contacto con
el mundo occidental. Era una tarea de “rescate etnográfico” frente a la inminencia de una desaparición
definitiva. En el caso de culturas contemporáneas herederas de las altas civilizaciones antiguas, como
las mesoamericanas, los antropólogos también tuvieron como objetivo el registro de rasgos culturales
que permitieran, a manera de una etnoarqueología, el rescate de elementos arcaicos mediante los cuales
poder dar cuenta de las sociedades antiguas, previas al contacto con Occidente, en especial aquellas del
llamado período clásico. Imperaban, pues, las ideas de autoctonía, pureza, originalidad, y en el fondo
también la del exotismo, y en donde las influencias externas eran vistas como “préstamos”, imposiciones
o degradaciones sufridas por la cultura nos detenemos a reflexionar sobre el punto, descubriremos que
al interior de esa perspectiva antropológica descansa un concepto de identidad derivado de la doctrina
positivista, que en el plano lógico se representa mediante la ecuación A=A. Esta fórmula expresa una
ontología, una manera de entender el ser, en donde la identidad de éste es la de sí mismo. Este postu-
lado tiene como corolario la existencia de elementos propios constitutivos de ese ser, una esencia, un
“nucleo duro”. En ese marco conceptual, el ser está constituido por elementos característicos, propios
de sí, todo aquello que conforma la mismidad, y que lo distinguen absolutamente de otros seres, de “la
otredad”. En efecto, otro corolario es un principio de exclusión en donde lo propio y lo ajeno, lo mismo y
lo otro, se postulan como categorías contrapuestas, binarias, que permiten definir a una por oposición
a la otra. Así, yo es igual a sí mismo y el otro es el no-yo.
Este paradigma de identidad ha tenido implicaciones muy importantes y diversas en el pensamiento
antropológico, cuyo epicentro ha sido por supuesto la cultura europea occidental. Una de estas implica-
ciones, evidente en la investigación efectuada en América, ha sido un interés centrado en las culturas
indígenas y la poca o nula atención a las culturas otras, a las “no indígenas”, así como a la interacción

Proceedings XI International Bakhtin Conference 65


entre ambas. El efecto ha sido la producción de etnografías sobre una cultura o comunidad en particular,
con un marcado desinterés por el entorno sociocultural más amplio, particularmente en el plano nacional.
Los estudios de comunidad, propios de la etnografía tradicional, hicieron sin duda aportes importantes al
conocimiento de las culturas indígenas, pero crearon también imágenes muy parciales y hasta ficticias
acerca de las mismas, al aislarlas sistemáticamente de la realidad sociocultural circundante. Otra ten-
dencia, igualmente sesgada, fue aquella interesada en el cambio cultural, en donde el concepto operativo
fue el de aculturación. Aquí lo importante fue el registro del proceso mediante el cual la cultura indígena
original se transformaba en la medida en que perdía su cultura propia para adoptar la cultura dominan-
te, es decir, la cultura occidental en cualquiera de sus variantes regionales. En el fondo, el cambio se
planteaba en forma unidireccional e inevitable, y en todo caso la intervención de las ciencias sociales
se entendía como una manera de hacer de ese proceso algo menos doloroso y traumático. Las políticas
indigenistas y de “integración nacional” dan buena cuenta de esta orientación.
Filosofía y antropología
Esa manera de entender la identidad en términos de la mismidad, del ser en sí mismo, se ha vuelto
un asunto de sentido común, una especie de verdad lógica, universal, incuestionable. Yo soy yo y el otro
es el otro. En parte esto se debe, por un lado, a la sensación individual de que el ser es el centro de
todo (la percepción interna del mundo) lo cual crea una imagen autocentrada de identidad, aunque en
realidad el otro siempre participa en la construcción personal de la identidad. Por otro lado, existe en el
plano sociológico un fenómeno cultural generalizado de etnocentrismo, según el cual se valora positiva-
mente la cultura propia y se menosprecia o descalifica a la cultura ajena. (Todorov....). La discriminación
y el racismo son buenos ejemplos de ello. El problema aquí ha sido que el antropólogo ha tomado esta
opinión de “los nativos” en términos absolutos, como un enunciado en donde se define el concepto de
identidad de aquellos, y no como una postura ideológica parcial respecto a la realidad.
Esta manera de entender las culturas otras también se ha aplicado para la construcción la identidad
de la cultura occidental, como fundamentalmente distinta a las demás. En este sentido, considero que
la antropología ha contribuido a inventar lo que Latour ha llamado La Gran División entre “ellos –todas
las otras culturas- y nosotros –los occidentales” (1993:12). De hecho, en la expresión anglófona “The
West and the Rest” (Occidente y el resto) se reproduce en un tono despectivo esta misma visión etno-
céntrica. Asimismo, Latour señala actitudes de superioridad y franca prepotencia contenidos en esa idea
de la Gran División:
“¡Nosotros los occidentales somos absolutamente diferentes de los otros!” –tal es el grito
de victoria de los modernos, o su prolongado lamento ... A los ojos de los occidentales,
Occidente, tan sólo Occidente, no es una cultura, no meramente una cultura ... “nosotros
también movilizamos a la naturaleza ... inventamos la ciencia” (Latour 1993:97).

Volveremos sobre este punto más adelante. Ahora me interesa señalar que un factor de orden cultu-
ral que ha contribuido significativamente en la construcción epistemológica del concepto antropológico
de identidad ha sido, como señalé al inicio, la filosofía occidental, o más bien, un pensamiento filosófi-
co predominante en Occidente. En efecto, existe una ontología con pretensiones de universalidad que
sostiene un discurso centrado en la mismidad, es decir un discurso egocéntrico que a su vez alimenta
discursos científico-sociales que enfatizan el valor del individuo sobre lo colectivo, de lo privado sobre
lo público, del ego sobre el alter, del logos sobre el espíritu. Históricamente, puede ubicarse el auge de
este pensamiento en el desarrollo del capitalismo europeo y norteamericano, y con la ideología liberal,
cuya versión contemporánea la experimenta el mundo entero bajo el modelo de la globalización.
Retomando la crítica a aquella antropología vinculada a este capitalismo liberal, podemos señalar
cómo, lejos de haber logrado una comprensión justa del otro y de propiciar una comunicación real y si-
métrica entre nosostros y ellos, la antropología occidental ha tendido a anular al otro al percibirlo desde
la visión totalizante de su cultura, lo ha conceptualizado y explicado para su propia sociedad; hablar del
otro ha sido un ejercicio discursivo monológico, en donde la voz del sujeto investigado ha quedado su-
bordinada a la voz autoral del antropólogo. De esa manera, la alteridad ha quedado anulada, asimilada
a un Yo cognoscente. Esa paradoja en el pensamiento de Occidente de distinguirse del otro, pero, al
hacerlo, incorporarlo a su logos y apropiárselo, asimilarlo, se manifiesta tanto en su antropología como
en su filosofía. Levinas lo ha expresado claramente al afirmar que “la filosofía occidental ha sido muy a
menudo una ontología: una reducción de lo Otro al Mismo, por mediación de un término medio y neutro
que asegura la inteligencia del ser” (1977:67). Levinas la considera una ontología egoista, fundamento
de una filosofía del poder, de la injusticia, de la tiranía (ibid, p. 70). Pero el filósofo plantea también la
posibilidad de superar ese egocentrismo occidental a partir de una metafísica que rompa con la totalidad,
reconociendo la exterioridad del otro, del absolutamente otro:
No es la insuficiencia de Yo la que impide la totalidad, sino lo infinito del Otro ... Las relaciones del
Mismo y el Otro no se producen sobre el fondo de la totalidad, ni se cristalizan en sistema ... El frente-
a-frente es una conjunción irreductible a la totalidad (1977:103s)
Así pues, resulta un imperativo para la antropología contemporánea el reconocer su propia raigambre
cultural, así como los sesgos derivados de las influencias recibidas del pensamiento filosófico predomi-
nante. Es necesario reconocer la relación entre identidad y alteridad, como lo indicara tempranamente la
perspectiva teórica de Barth (1976) respecto a la identidad étnica en su aspecto relacional y en el énfasis

Proceedings XI International Bakhtin Conference 66


dado a la frontera interétnica como el espacio de la construcción de la identidad étnica. Es igualmente
importante el reconocimiento del carácter relacional y relativo del fenómeno de la identidad1.
Identidad en Bajtín

En la vida yo participo en lo cotidiano, en las costumbres, en la nación, el estado, la humani-


dad, el mundo de Dios; es allí donde yo vivo valorativamente en el otro y para otros, donde
estoy revestido valorativamente de la carne del otro. (Bajtín 1982:109)

La antropología filosófica de Bajtín contrasta marcadamente con los planteamientos arriba expuestos,
cuestionándolos y ofreciendo una visión novedosa y propositiva para la actual discusión sobre identidad.
De entrada debemos aclarar que el término identidad está prácticamente ausente en su obra, aunque
considero que el concepto mismo sí está presente, tanto en su concepción dialógica global, en su onto-
logía, como en su tratamiento de la intersubjetividad, donde aparece íntimamente vinculado al concepto
de alteridad. Allí, identidad y alteridad son copartícipes en la construcción del sujeto social.
Bajtín examina la intersubjetividad desde el plano fenomenológico partiendo de la relación yo-otro2,
pareja fundamental de su filosofía del lenguaje y de sus teorías ética y estética. A diferencia de la visión
egocéntrica, en su pensamiento se introduce de lleno la categoría del otro, de manera tal que el ser
humano es entendido en términos del complejo de relaciones yo-otro, donde ambas categorías, lejos
de plantearse como ajenas, opuestas o desvinculadas, son por el contrario, complementarias una de la
otra, existiendo un íntimo nexo de relación entre ambas. Así en la medida en que el yo no puede com-
prenderse íntegramente sin la presencia del otro, en Bajtín el concepto de identidad no se cierra en sí
mismo, pues incorpora absolutamente al de alteridad, y por lo mismo, se nos presenta como un concepto
de carácter relacional y relativo, muy cercano a planteamientos novedosos de antropología sobre el tema
(cf. Bourdieu 1992, Eriksen 1993, Pitarch 1996).
El dialogismo es sin duda el concepto rector del pensamiento de Bajtín, es el principio filosófico fun-
damental de su concepción del lenguaje. El enunciado, el discurso, propio y ajeno, la heteroglosia, la
interdiscursividad, son todos conceptos derivados del principio dialógico, el cual se sostiene en la fundante
relación yo-otro. Desde la temprana adquisición del lenguaje hasta el final de la vida, el hombre inicia
como ser social y se desarrolla como tal en la medida en que construye su individualidad a partir del otro,
del discurso ajeno, para continuar con éste una íntima y compleja relación (1982:51). La formación de la
conciencia se da a partir del discurso ajeno: “la conciencia del hombre despierta envuelta en la conciencia
ajena” (1982:360). El sujeto social se construye discursivamente, en el proceso de interacción discursiva
de yo con el otro. Vemos pues, cómo en Bajtín el ser presenta un carácter dialógico. “Ser es ser para
otro y a través del otro para mí” (2000:161-163). De allí se desprende la idea de la unidad abierta del
ser, el de la no coincidencia consigo mismo.
Es imposible que uno viva sabiéndose concluido a sí mismo y al acontecimiento; para vivir,
es necesario ser inconcluso, abierto a sus posibilidades (al menos, así es en todos los ins-
tantes esenciales de la vida); valorativamente, hay que ir delante de sí mismo y no coincidir
totalmente con aquello de lo que dispone uno realmente (1982:20).

Otro concepto de especial importancia para nuestra discusión es la extraposición, que Bajtín lo
desarrolló en el plano estético, orientándolo al análisis literario, como un elemento fundamental de la
creación estética: el autor de una obra literaria debe ejercer activamente su capacidad de observar a
sus personajes desde dentro, como un momento empático, pero también desde fuera, exotópicamente,
con su mirada externa, con su excedente de visión, pues de esa manera es posible completar la vida,
carácter, identidad de sus personajes, y con ello, producir la vivencia estética en el lector. Ahora bien,
sus reflexiones teóricas sobre la extraposición las ilustra con ejemplos de la vida real y cotidiana, y es
allí donde encontramos reflexiones importantes para el entendimiento del fenómeno sociológico de la
identidad. Veamos algunos de estos ejemplos:
Por cierto, en la vida real lo hacemos a cada paso, nos valoramos desde el punto de vista
de otros, a través del otro tratamos de comprender y de tomar en cuenta los momentos
extrapuestos a nuestra propia conciencia ... de una manera constante e intensa acechamos
y captamos los reflejos de nuestra vida en la conciencia de otras personas, hablando tanto
de momentos parciales de nuestra vida como de su totalidad (1982:22s).
“Cuando observo a un hombre íntegro, que se encuentra afuera y frente a mi persona, nues-
tros horizontes concretos y realmente vividos no coinciden. Es que en cada momento dado,
por mas cerca que se ubique frente a mí el otro, que es contemplado por mí, siempre voy
a ver y a saber algo que él, desde su lugar y frente a mí, no puede ver ...Este excedente
de mi visión que siempre existe con respecto a cualquier otra persona, este sobrante de
conocimiento, de posesión, está determinado por la unicidad y la insustituibilidad de mi lugar
en el mundo ... aquello que yo veo en el otro, en mí mismo lo puede distinguir únicamente

1 Al respecto, son interesantes los planteamientos que sobre el concepto de identidad encontramos en Bourdieu (1992), así como en la síntesis del estado
de la cuestión publicado por Eriksen (1993).
2 Debe notarse que se trata de categorías abstractas, que en sus aplicaciones concretas se desdoblan, para incorporar variantes de número (singular o
plural), de género. Tambien debe observarse que no son categorías fijas, sino que son, al igual que el fenómeno de la identidad, relacionales y relativas a
las relaciones sociales concretas.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 67


el otro (1982:28s).
“El sobrante de mi visión con respecto al otro determina cierta esfera de mi actividad excep-
cional, o sea el conjunto de aquellos actos internos y externos que tan sólo yo puedo realizar
con respecto al otro y que son absolutamente inaccesibles al otro desde su lugar: son actos
que completan al otro en los aspectos donde él mismo no puede completarse” (1982:29).
El excedente de la visión es un retoño en el cual duerme la forma y desde la cual ésta se
abre como una flor. Pero, para que el retoño realmente se convierta en la flor de la forma
conclusiva, es indispensable que el excedente de mi visión complete el horizonte del otro
contemplado sin perder su carácter propio. Yo debo llegar a sentir a ese otro, debo ver
su mundo desde dentro, evaluándolo tal como él lo hace, debo colocarme en su lugar y
luego, regresando a mi propio lugar, completar su horizonte mediante aquel excedente de
visión que se abre desde mi lugar, que está fuera del suyo; debo enmarcarlo, debo crearle
un fondo conclusivodel excedente de mi visión, mi conocimiento, mi deseo y sentimiento”
(1982:30).

Vemos pues cómo estas referencias vivenciales concretas sobre la extraposición revelan aspectos
importantes sobre la cuestión de la identidad. Valoramos nuestro propio ser desde el otro, buscamos
conocernos a través del otro, vemos nuestra exterioridad con los ojos del otro, orientamos nuestra con-
ducta en relación con el otro. Y de la misma manera, por nuestra situación de exterioridad respecto al
otro, poseemos una parte de éste que lo completa, un “sobrante de posesión”, que es accesible sólo a
nosotros en virtud de nuestra ubicación relativa respecto a aquel. De allí se deriva una arquitectónica
de la vida real consistente en una triada de relaciones básicas: yo-para-mí, yo-para-otro, y otro-para
mí3. Puede plantearse que se trata de una arquitectónica de la identidad en el plano fenomenológico,
compuesta por la relación de yo consigo mismo, es decir, la percepción interna del yo, su autoimagen,
pero también la imagen que el yo tiene del otro, y la imagen que el otro tiene del yo. Ese complejo de
relaciones comprendería la identidad –relacional y relativa- del sujeto social en cuestión.
Por último, cabe señalar que este complejo de relaciones dialógicas de yo y el otro examinados por
Bajtín en el plano fenomenológico entre individuos, pueden ser proyectados a planos sociológicos y
culturales más amplios4. De hecho, en sus consideraciones sobre la exotopía, Bajtín llega a considerar
a este concepto como el instrumento más poderoso para la concepción de la cultura, proyectando así
sus observaciones del plano intersubjetivo al de las relaciones interculturales y al ámbito de los estudios
culturales. Y es que así como ocurre en el plano del sujeto, tampoco la cultura puede verse a sí misma
desde su exterioridad, necesita de la mirada de las otras culturas para enriquecer su propio entendimiento,
para completar su imagen de identidad:
Existe una idea unilateral y por eso incorrecta, pero muy viable, acerca de que para una
mejor comprensión de la cultura ajena hay que de alguna manera trasladarse a ella y, olvi-
dando la propia, ver el mundo con los ojos de la cultura ajena. Esta idea, como ya se dijo,
es unilateral. Por supuesto, la compenetración con la cultura ajena, la posibilidad de ver el
mundo a través de ella es el momento necesario en el proceso de su comprensión; pero si
la comprensión se redujese a este único momento, hubiera sido un simple doblete sin poder
comportar nada enriquecedor. Una comprensión creativa no se niega a sí misma, a su lugar
en el tiempo, a su cultura, y no olvida nada. Algo muy importante para la comprensión es
la extraposición del que comprende en el tiempo, en la cultura...
En la cultura, la extraposición viene a ser el instrumento más poderoso de la comprensión.
La cultura ajena se manifiesta más completa y profundamente sólo a los ojos de otra cultura
(pero aún no en toda su plenitud, porque aparecerán otras culturas que verán y compren-
derán aún más). Un sentido descubre sus profundidades al encontrarse y al tocarse con
otro sentido, un sentido ajeno: entre ellos se establece una suerte de diálogo que supera el
carácter cerrado y unilateral de estos sentidos, de estas culturas. Planteamos a la cultura
ajena nuevas preguntas que ella no se habia planteado, buscamos su respuesta a nuestras
preguntas, y la cultura ajena nos responde descubriendo ante nosotros sus nuevos aspec-
tos, sus nuevas posibilidades de sentido... En un encuentro dialógico, las dos culturas no se
funden ni se mezclan, cada una conserva su unidad y su totalidad abierta, pero ambas se
enriquecen mutuamente (Bajtín 1982:351-2).

Conclusiones
Mediante este somero acercamiento al pensamiento filosófico y a conceptos teóricos de Bajtín nos es
posible replantear el concepto antropológico de identidad y formular una nueva manera de entenderlo
en su intrínseca vinculación con la alteridad. El principio dialógico, los ejes yo-otro, su arquitectónica, la
exotopía, así como el análisis del discurso social para la comprensión intersubjetiva e intercultural son

3 Véase el tratamiento de esta arquitectónica en la teoría ética de Bajtín en Bubnova (1994).


4 En este sentido, es interesante el ensayo de Ponzio sobre la alteridad en Bajtín y el problema de la búsquedad de identidad en Europa, pues hace una
aplicación interesante de las categorías de análisis aquí discutidas. “The other imposes his irreducible alterity upon the self ... it is the self that constructs
itself and that must make a space already belonging to others. .... A social group is recognized as such through a complex process of differentiation with
respect to that which is other. Before being the result of a choice, decision, or conscious act, group identity is the passively experienced result of relations
with other groups, it is a determination that ensues from others, from their behaviours and orientations (1990:222s).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 68


claves bajtinianas para la comprensión de la cultura y en particular del fenómeno de las identidades co-
lectivas (étnicas, nacionales, globales). De hecho, es posible plantear que la identidad es un fenómeno
social, resultado del complejo de relaciones yo-otro, una estetización del ser, en la medida en que es
resultado de una puesta en juego de al menos dos visiones, dos percepciones, la propia y la ajena5.
Bajtín nos permite pensar en una perspectiva novedosa en antropología, una antropología dialógica,
en donde el antropólogo sea consciente de su lugar autoral, de su relación exotópica con los personajes
de su obra científico-literaria, de las relaciones interculturales que se accionan a través de su particular
actividad intelectual y de investigación. De hecho, observamos hoy en día propuestas novedosas en este
campo, tanto en el plano general de la disciplina como en la investigación etnográfica, inspiradas en el
pensamiento bajtiniano6. Asimismo, encuentro en su teoría estética un rico acervo conceptual para el
estudio del arte de la oralidad, de la literatura oral en especial (Alejos García 2001).
El cuestionamiento al discurso egocéntrico e individualista de Occidente abre un campo de contestación
para las culturas dominadas, un espacio para su liberación ideológica, pues en ese afán universalista,
o mejor dicho totalitario, la cultura occidental ha producido en aquellas una nociva sobrevaloración de
la cultura ajena en perjuicio de la propia, como lo ilustra dramáticamente el caso afroamericano exa-
minado por Fanon (1973), y el de las culturas indígenas americanas en general. En otras palabras, me
parece de fundamental importancia reflexionar acerca de las implicaciones éticas y políticas de la teoría
bajtiniana. La inclusión en vez de la exclusión, el reconocimiento de la alteridad como factor constitutivo
de la identidad.
Bibliografía
Alejos García, José, “Mayas, ladinos y Occidente. Antropología e identidad en perspectiva dialógica”, Acta Poética.
Homenaje a Bajtín, México, Nos. 18/19, 1997-1998, pp. 303-317.
_____, “Tradición y literatura oral en Mesoamérica. Hacia una crítica teórica”, en B. Clark y F. Curiel (coordinadores)
Filología Mexicana, México, UNAM, 2001, pp. 293-320).
Bajtín, Mijaíl, Estética de la creación verbal, México, Siglo XXI Editores, 1982.
______, Hacia una filosofía del acto ético. De los borradores y otros escritos, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997.
Barsky, Robert y Michael Holquist (editores), Bakhtin and Otherness, Discours social/Social Discourse, vol. III, Nos.
1 y 2, 1990.
Barth, Fredrik (editor) Los grupos étnicos y sus fronteras, México, Fondo de Cultura Económica, 1976.
Bonfil Batalla, Guillermo, “La teoría del control cultural en el estudio de los procesos étnicos”, en Acta Sociológica.
Nación e identidad, México, Unam, o. 18, 1996, pp. 1-54.
Bourdieu, Pierre (entrevista con L. Wacquant) Repónses. Pour une anthropologie réflexive, Paris, Editions du Seuil,
1992.
Bubnova, Tatiana, “EL lugar de la filosofía del acto ético en la filosofía del lenguaje de Bajtín”, en Gimate-Welsh (editor)
Escritos. Semiótica de la cultura, Oaxaca, México, Universidad Autónoma Benito Juárez, 1994, pp. 173-184.
Clifford, James y George Marcus (editores), Writing Culture. The Poetics and Politics of Ethnography, California, Uni-
versity of California Press, 1986.
Cuentos y relatos indígenas (varios autores), 5 volúmenes, México, UNAM, 1994.
Eriksen, Thomas, Ethnicity and Nationalism. Anthropological Perspectives, Londres y Boulder Colorado, Pluto Press,
1993.
Fanon, Frantz, Piel negra máscaras blancas, Argentina, Editorias Abraxas, 1973.
Geertz, Clifford, El antropólogo como autor, Barcelona, Ediciones Paidos, 1989.
Latour, Bruno, We Have Never Been Modern, Cambridge, Harvard University Press, 1993.
Levinas, Emmanuel, Totalidad e infinito. Ensayo sobre la exterioridad, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1977.
Pitarch, Pedro, Ch’ulel. Una etnografía de las almas tzeltales, México, Fondo de Cultura Económica, 1996.
Ponzio, Augusto, “Bakhtinian Alterity and the Search for Identity in Europe Today”, en Barsky y Holquist (1990), pp.
217-228.
Taylor, Charles, El multiculturalismo y “La política del reconocimiento”, México, Fondo de Cultura Económica, 2001.
Tedlock, Dennis y Bruce Mannheim, The Dialogic Emergence of Culture, Urbana y Chicago, University of Ilinois Press,
1995.
Voloshinov, Valentín, El marxismo y la filosofía del lenguaje, Madrid, Alianza Editorial, 1992.

5 “Cuando existe un solo participante único y total, no hay lugar para un acontecer estético; la conciencia absoluta que no dispone de nada que le fuese
extrapuesto, que no cuenta con nada que la limite desde afuera, no puede ser estetizada ... Un acontecer estético puede darse únicamente cuando hay dos
participantes, presupone la existencia de dos conciencias que no coinciden” (Bajtín 1982:28).
6 Véase en especial las propuestas de etnografía posmoderna recogidas en la seminal antología de Clifford y Marcus (1986) y en publicaciones recientes
de Tedlock (1995).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 69


Los pueblos indígenas de México en un mundo unipolar
Relecturas de M. Bajtín

Ramón Alvarado

UAM-Xochimilco

México

Centro y periferia, metrópolis y colonias, primer y tercer mundo, desarrollo y subdesarrollo son al-
gunas de las polaridades que rigieron el pulso social y político del siglo XX. El precario equilibrio que se
estableció en el escenario internacional al término de la II Guerra Mundial, estaba sustentado en un jue-
go de estrategias y alianzas de dos polos ideológicos, opuestos entre sí, que buscaban denodadamente
ampliar sus campos de influencia particularmente entre los países en vías de desarrollo.
En los albores de un nuevo siglo, una ola de vertiginosos acontecimientos sacudió y socavó en sus
propios fundamentos uno de los polos fundamentales de ese tenso “equilibrio” político-militar: la URSS.
La “cortina de hierro” se desmoronó como un castillo de naipes. En 1989, el fin de una Era se cristalizó
con el simbólico derribamiento del muro de Berlín. A dos siglos de la Revolución Francesa, este parteaguas
señala el inicio de un proceso de gran inestabilidad, marcado por la rápida expansión de un mercado que
no reconoce fronteras y por la “apertura democrática” de aquellos países que estuvieron sometidos al
control de un partido único. Pienso desde luego en aquellas naciones inscritas en el orbe soviético pero
también en la historia política de mi propio país, México.
A medida que se aproximaba el fin de milenio, las comunidades intelectivas parecían estar someti-
das a los temores finiseculares que dominaron otras épocas de incertidumbre. La “nueva escatología”
anticipó el fin de los grandes paradigmas de la modernidad: se habló de una crisis de la civilización del
progreso, del fin de la Historia.
En este ejercicio de “futurología” sin freno, se ha llegado a afirmar que nos encontramos en la fase
terminal del modelo de Estado-Nación: en las sociedades contemporáneas se puede constatar un des-
gaste pronunciado de su “papel estructurante”.
Para algunos estudiosos, el horizonte emergente de una Era Postnacional es visto con cierto optimismo
ya que permitiría, por primera vez en la historia, la discusión de modalidades de desarrollo económico
y social, por encima de los particularismos e intereses nacionales; cumpliendo así, la gran promesa
universalista de la modernidad.
Pero hay quien sostiene la tesis contraria y afirma que las formaciones nacionales no sólo gozan de
buena salud sino que están llamadas a desempeñar un papel protagónico en el escenario mundial del
III milenio. En esta visión de las cosas, las ideologías nacionalistas ya no representan un riesgo para la
estabilidad regional. La fuente de posibles conflictos en un mundo globalizado se ha desplazado a las
“diferencias culturales”.
Hace 10 años, durante el verano de 1993, Samuel Huntington publicó en Foreign Affaires un artículo
bajo el mismo título de su libro polémico: The Clash of Civilizations. Ahí se formula la hipótesis de una
inevitable colisión entre modelos civilizatorios dando por un hecho, la existencia de diferencias irreductibles
entre el Islam y la Cristiandad, esto es la recíproca negación de la alteridad. Un escenario narrativo que
recuerda los acontecimientos que convulsionaron a la Europa de los siglos XI al XIII: las expediciones
militares contra los infieles.
Estas hipótesis y estos escenarios catastrofistas has sido un fermento ideal para la “puesta en escena
mediática” de los acontecimientos del 11 de septiembre 2001. El eje constitutivo de las ideologías: la
oposición Ellos vs. Nosotros parece probar, una vez más su eficacia.
A partir de esta fecha, lo sabemos bien, en el ámbito de la “política global” todos los vectores simbó-
licos y discursivos se han orientado al endurecimiento del discurso monológico.
La reciente incursión militar en Irak es particularmente ilustrativa al respecto: ha puesto al descubierto
la voluntad del actual gobierno estadounidense que busca por todos los medios imponer su propia ley en
el escenario internacional. George W. Bush, y sus principales voceros, han enviado reiteradamente a la
comunidad internacional un discurso con fuertes acentos monológicos: en el nuevo orden internacional,
dominado por una superpotencia hegemónica, sólo hay cabida para las decisiones unilaterales.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 70


El curso que ha tomado este gobierno, que se presenta como la única salvaguarda posible para el
equilibrio internacional, “globocop”, se opone decididamente a la onda expansiva propiciada por el cese
de hostilidades de la Guerra Fría en el campo ideológico-político, esto es, a la creciente intensificación
de los intercambios culturales y a una relativa apertura económica.
La hegemonía económica de los Estados Unidos, afirmada desde el último tercio del siglo veinte, el
actual polo dominante en el escenario mundial, tiende a una “militarización” como el único medio a su
alcance para limitar y controlar el proceso de globalización que ha sido alentado, paradójicamente, por
esta misma superpotencia. Un proceso que lo llevará finalmente, a constituirse como un país entre otros.
Este es, en resumen, el argumento central del brillante ensayo de Tom Nairn, publicado a principios de
este año en el portal de Internet OpenDemocracy.
Voces de la alteridad: el otro en nosotros

“El ver y comprender al autor de una obra literaria


significa ver y comprender la otra consciencia,
la consciencia ajena con todo su mundo,
es decir, comprender al otro sujeto”.
M. BAJTÍN, “El problema del texto”.

Natalio Hernández, uno de los escritores indígenas del México contemporáneo, escribió estas líneas
con motivo de la recepción del Premio Nezahualcóyotl de Literatura en lenguas indígenas (diciembre
1997).
“...Hoy al igual que en la Colonia, se vuelve a intentar el diálogo donde nuevamente están
presentes dos visiones del mundo, dos sistemas de valores, dos conceptos de sociedad;
donde nuevamente el diálogo se rompe porque el sistema dominante no ha sido capaz de
reconocer la cultura diferenciada de los pueblos originarios y el derecho que les asiste para
mantenerla y desarrollarla.
“Seguir negando esta realidad diversa en lenguas y culturas puede llevarnos a mayores
confrontaciones. Los pueblos indígenas exigen hoy, con mayor fuerza, lo que históricamente
les pertenece: su identidad, su patrimonio lingüístico y cultural y sobre todo, su autonomía
para decidir su futuro su proyecto de vida en armonía con toda la nación...
“La palabra, la fuerza de la palabra o , mejor aún, el arte de la palabra debe ser el instru-
mento fundamental para la construcción del diálogo entre los pueblos indígenas,e estado
y sociedad.”

El texto que he citado in extenso lleva un título por demás significativo: “En busca del diálogo” y
forma parte del volumen In tlahtoli, in ohtli; la palabra, el camino . la voluntad dialógica expesada en
estas líneas –y en otros escritos de autores indígenas- que examinaremos someramente, se cifra en
una interrogante que a la vez define un programa de los pueblos indios de México ¿Cómo propiciar una
comprensión activa de las alteridades culturales?
Es una pregunta que subyace como un limo fertilizador en un proceso cultural que ha adquirido
fuerza en los últimos años, y que se ha descrito como “ el nuevo despertar “de las lenguas y literaturas
indígenas en México.
Al paso de los siglos, los viejos saberes depositados en la palabra de los tlamatinime (hombres sabios),
se eclipsaron deliberadamente en espera de los “nuevos tiempos”.
Voces invisibles, rostros inaudibles, la palabra silenciada de los pueblos indios vuelve a tomar cuerpo
en la poesía o en ensayos dedicados a fundamentar los legítimos reclamos de derechos de los pueblos
indios de México.
Se trata de un proceso en plena conformidad con otra dimensión del tiempo, con las creencias tra-
dicionales en torno al re-nacimiento y la re-creación del mundo, con una cosmovisión que es ante todo
ambivalente: en esta perspectiva, la vida y la muerte son indisociables.
Nos encontramos en la actualidad, según las inscripciones del calendario azteca, en el quinto sol: es
la Era del sacrificio ritual de los dioses y su renacimiento.
De la periferia al centro: de lo local a lo global
El fuego nuevo, los tiempos renovados se anunciaban ya en los primeros años de la década pasada.
En un año emblemático, 1992, El Movimiento 500 años de resistencia indígena acuñó un lema que tuvo
gan penetración entre diversos sectores de la sociedad mexicana:
“Nunca más un México sin nosotros.”

Un enunciado que cristaliza la memoria de un pasado de resistencia, de luchas asimétricas de los


pueblos indios. En ese año de celebraciones oficiales por los 500 años del “Encuentro de dos mundos”,
diversos grupos indígenas del sur de México decidieron emprender una lucha frontal contra el gobierno

Proceedings XI International Bakhtin Conference 71


opresor. Sabedores de la profunda desigualdad de fuerzas y recursos en el plano militar, prepararon un
levantamiento marcado por la incertidumbre. Disponían de un pequeño grupo armado cuyo núcleo po-
lítico-militar se originó entre la intelligentsia universitaria de origen urbano pero que al implantarse en
las cañadas de Chiapas, fue permeado progresivamente por campesinos indígenas que habían pasado
por una segunda evangelización: la versión mexicana de la Teología de la liberación.
A menudo se olvida que atrás de las figuras carismáticas de los dirigentes del EZLN, se encuentra una
verdadera convergencia de voces y voluntades de los pueblos indios de México.
El primer día del año de 1994, al mismo tiempo que entraban en vigor los acuerdos de libre comer-
cio entre los países de Norteamérica, México, Estados Unidos y Canadá, “la memoria se hizo aliento de
fuego” iniciando otro episodio en la “guerra contra el olvido”.
Muy pronto se cumplirá el décimo aniversario de la última rebelión indígena en la Historia de México:
“El diálogo que la sociedad civil y las organizaciones indígenas propusieron jamás se realizó. El poder
escuchó pero no dialogó, se mantuvo en el monólogo: continuó elaborando y escuchando su propio dis-
curso...” (N. Hernández, 1998:73).
En estas reflexiones de un escritor indígena, esta especie de diálogo interno, resuenan las voces,
las ideas y conceptos del pensador ruso Mijaíl Bajtín. Aún más, en el coro emergente de nuevas voces,
integrado por indígenas aculturados, bilingües, dotados de competencias escriturarias, se percibe con
toda claridad el “hilo rojo del dialogismo”.
Hombres y mujeres de culturas ancestrales, pueblos indios de las regiones de Oaxaca, Veracruz o
Chiapas, han tomado la pluma y escriben en español; se muestran decididos a habitar la palabra ajena
para impregnarla con otras voces: de los acentos enraizados en una solidaridad comunitaria, de una visión
propia de la relación del hombre con la naturaleza; en fin, de un sentido de pertenencia profundamente
arraigado al “color de la tierra”, al terruño, al ecosistema que les nutre, que les da vida.
Estos discursos liminales, estos textos fronterizos marcados por puntos de encuentro y tensión dialó-
gicos entre el español de México y las lenguas indígenas, circulan ahora libremente entre las manos de
lectores interesados. Las casas editoriales mexicanas han revalorado también este “nuevo despertar”
de lenguas y literaturas al que aludíamos anteriormente e incluyen en sus catálogos, algunos textos
bilingües.
Como expresión de una voluntad dialógica, estas voces están al alcance de quien quiera escuchar-
las:
“Ha llegado el momento de compartir el acervo cultrual milenario de nuestros pueblos con
las sociedades nacionales y con la Aldea Global. El diálogo cultural y las relaciones intercul-
turales pueden ser los caminos para construir y recorrer juntos la experiencia del siglo XXI,
que deseamos aporte la realización de muchas de nuestras esperanzas: ...la convivencia
plural y democrática, la unidad en la diversidad.” (Hernández 1998: 55).

En esta urdimbre de voces se perciben sin duda los acentos de un “Humanismo de la alteridad”.
Bibliografía
A.A.V.V. VI Jornadas Lascasianas: La problemática del racismo en los umbrales del siglo XXI. México: Cuadernos del
Instituto de Investigaciones Jurídicas, UNAM, 1997
A.A.V.V. VII Jornadas Lascasianas: Pueblos indígenas y derechos étnicos. J.E. Ordóñez Cifuentes (Coord.) México:
Cuadernos del Instituto de Investigaciones Jurídicas, UNAM, 1997
Florescano, Enrique Etnia, Estado y Nación. México: Taurus, 2000
Hernández, Natalio El despertar de nuestras lenguas. México: Diana, 2002
Hernández, Natalio In tlahtoli, in ohtli. Memoria y destino de los pueblos indígenas. México: Plaza y Valdés Editores,
1998
López Bárcenas, Francisco et al. Los derechos indígenas y la reforma Constitucional en México,México: Centro de
Orientación y Asesoría a pueblos Indígenas A.C., Ce-Acatl, A.C.,Ediciones Casa Vieja, Redes. 2001
López Bárcenas, Francisco Autonomía y derechos indígenas en México
México: Serie derechos indígenas 4, CONACULTA y Centro de Orientación y Asesoría a Pueblos Indígenas A.C.,
2002
Montemayor, Carlos Los pueblos indios de México hoy. México: Editorial Planeta, 2001
Montemayor, Carlos Arte y plegaria en las lenguas indígenas de México. México: F.C.E., 1999
Montemayor, Carlos Arte y trama en el cuento indígena. México: F.C.E., 1998
Montemayor, Carlos Chiapas, la rebelión indígena de México. México: Joaquín Mortiz, 1997, (n.e. 1998)
Montemayor, Carlos La literatura actual en las lenguas indígenas de México. UIA: 2001
Sartori, Giovanni La sociedad multiétnica. Pluralismo, multiculturalismo y extranjeros. Madrid: Taurus, 2001
Villoro, Luis Estado plural, pluralidad de culturas. México: Paidós / UNAM 1998 (edición 2002)
Voloshinov, Valentin N. El marxismo y la filosofía del lenguaje. Madrid: Alianza editorial, 1992

Proceedings XI International Bakhtin Conference 72


Ato versus objetivação e outras oposições fundamentais
no pensamento bakhtiniano1

Marilia Amorim*

Introdução
Esse trabalho se inscreve no eixo proposto pela organização do congresso como “Leituras interpreta-
tivas de ‘Para uma filosofia do ato’”. Não é um trabalho plenamente elaborado, mas antes um exercício
de leitura, um exercício conceitual. Leio “Para uma Filososfia do Ato” com uma emoção particular: a de
ver nesse texto o projeto de uma obra que se cumpriu quase integralmente.
Esse texto é como um último presente que a generosidade da obra de Bakhtin nos deixa. E que che-
ga na hora certa. Num tempo de idéias pós-modernas, Bakhtin revela-se fundamentalmente moderno.
Primeiro, porque convoca um pensamento não-indiferente, valorado e assinado: a responsabilidade por
aquilo que pensamos, num dado momento histórico. Idéia totalmente fora de moda no mundo atual.
Segundo, porque critica, explícita e repetidamente, o relativismo, outro emblema do pensamento con-
temporâneo. Para ele, a afirmação da singularidade e do valor, em nada diminui a importância da idéia
de verdade teórica e universal. Terceiro, porque, ao lado da dimensão dialógica explícita na qual Bakhtin
dialoga com outros pensadores, esse texto apresenta uma dimensão monológica forte, através de pro-
posições categóricas e universalizantes. O monologismo desse texto é aquele que é próprio de todo
pensamento inaugural, seja ele filosófico ou poético. E é nessa força inaugural que se revela o vigor e
o entusiasmo do jovem pensador.
Esse texto tem um estatuto particular. Difere de todos os outros por ser inteiramente filosófico e
dedicado a uma questão puramente filosófica que é a questão da ética. Meu trabalho de interpretação
segue então os seguintes passos: 1) partir da especificidade desse texto, tentando identificar as prin-
cipais oposições que Bakhtin constrói, para melhor discernir seu argumento; 2) identificar em que me-
dida essas oposições encontram equivalência no trabalho futuro; 3) identificar linhas de evolução e de
transformação nessa equivalência. Trata-se de um trabalho esquemático, ainda não desenvolvido e que
pretende apenas apontar, a título de hipótese, vias possíveis de aprofundamento.
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que as oposições bakhtinianas não são nunca oposições
binárias e disjuntas. Constituem antes princípios ou planos que uma vez devidamente diferenciados
sempre acabam se encontrando. Ou melhor, parece que o pensamento de Bakhtin procede assim: pri-
meiro, distingue minuciosamente os planos, princípios ou categorias, para depois construir aquilo que
os articula.
Primeira parte
Nesse texto, a oposição entre mundo da cultura e mundo da vida, como diz Bocharov, constrói-se
através de uma série de outras oposições que, como camadas que progressivamente se sobrepõem, vão
dando espessura à argumentação. A série está assim constituída: oposição entre o possível e o real;
entre o abstrato e o concreto; entre o universal e o singular; entre o repetível e o irrepetível; entre a
unidade e a unicidade; entre a lei e o evento; entre o eterno e o instante; entre o fora e o dentro; entre
o indiferente e o valorado. A essas oposições corresponde uma série de imagens também contrapostas:
pleno versus vazio; carne e sangue versus desencarnado; pesado versus leve; enraizado versus sem
raizes; cego versus iluminado.
Resumidamente, o argumento que se tece nessas séries é o seguinte: o conhecimento filosófico e
científico, assim como a criação estética, são modos de objetivação e como tais, constituem apenas um
momento da cognição do mundo. Ocupam um lugar fundamental mas limitado e não devem ser toma-
dos como a totalidade do real. O mundo conhecido teoricamente não é o mundo inteiro. É um mundo
autônomo que tem leis próprias pois refere-se ao universo do possível e do universal; na medida em
que ele permaneça dentro de seus limites, a autonomia do mundo abstratamente teórico é justificável
e inviolável. Dentro dele, não há lugar para mim: ele é um mundo indiferente a minha singularidade.
Enquanto objetivações, a visão estética e o conhecimento filosófico e científico, são incapazes de apre-
ender a eventicidade e o devir. O argumento avança então, para colocar o problema da ética. O dever

1
Trabalho apresentado na XI Conferência Internacional sobre Bakhtin, Curitiba, julho de 2003.
*
Psicóloga, professora da Universidade de Paris-8. Autora de O pesquisador e seu outro – Bakhtin nas Ciências Humanas, Ed. Musa, São Paulo, 2001.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 73


do pensamento é a veridicidade. “Não há sentido em falar de dever teórico: enquanto estou pensando,
eu devo pensar veridicamente, veridicidade ou ser-verdadeiro é o dever do pensar. (...) O pensamento
teórico não tem de conhecer nenhuma norma, seja ela qual for.” Mas porque devo pensar veridicamente?
A questão do dever remete a uma outra verdade que é a da situação daquele que pensa. Para tratar das
duas verdades, a teórica e a da situação, Bakhtin utiliza duas palavras em russo: istina, composta de
momentos universais e pravda, de momentos singulares . A primeira logicamente idêntica e repetível,
a segunda irrepetível e em permanente devir, portanto não idêntica. Istina tem uma dimensão episte-
mológica e pravda, uma dimensão moral.
A última parte do argumento central é a articulação entre as duas verdades. O que torna o pensar
verdadeiro um dever ético é a correlação da verdade com o ato real de pensar: a responsabilidade por
aquilo que penso num dado momento, a assinatura do meu ato de pensar. A assinatura é o que me
obriga; a proposição teórica não me obriga a nada. O ato realizado concentra e correlaciona, dentro
de um contexto único, o universal e o individual, o real e o ideal. A verdade da situação está na sua
singularidade, no que é absolutamente novo, nunca existiu antes e jamais pode ser repetido. Mas uma
ação responsável não deve se opor à teoria e ao pensamento, mas incorporá-los em si como momentos
necessários que são totalmente responsáveis.
Segunda parte

2.1. Sobre o espaço e o tempo


Uma vez colocado o contexto inicial em que as oposições aparecem, vou tentar agora indicar equiva-
lências e linhas de evolução dessas oposições na obra de Bakhtin. Uma primeira linha concerne à relação
espaço /tempo. Aqui, em Para uma Filosofia do Ato, aparecem dois modos de distinção: primeiramen-
te, a distinção entre abstrato e concreto: espaço e tempo concretos e únicos do evento versus espaço
e tempo abstratos e unitários da teoria. O segundo modo, bem menos explícito, é aquele que cria uma
tensão entre espaço e tempo. O tempo aparece como elemento móvel, o que flui como devir, enquanto
que o espaço é o elemento fixo, o elemento que dá forma. O tempo é dimensão alteritária por excelência
pois é nele que, incessantemente, deixo de coincidir comigo mesmo. Sabemos que é no espaço que se
mede o tempo e que, sem a espacialização, o tempo é totalmente impalpável. Essa tensão aparece no
conceito de exotopia tal como ele será desenvolvido no texto sobre o Autor e o Herói. O termo mesmo de
exotopia, acentua o caráter espacial do lugar de autor: lugar exterior. Essa tensão entre espaço e tempo
é sutil e de modo algum absoluta. Há tempo na visão do autor e há espaço do ponto de vista do herói
posto que ele se situa face a um horizonte. Mas se compararmos o espaço do herói com o espaço que
lhe confere o autor, podemos dizer que o primeiro, o horizonte, é um espaço em movimento, um espaço
dotado de tempo, o tempo do que está por vir. Já o espaço constituído pela visão estética, o ambiente,
é predominantemente um espaço que fixa e ordena, que cria um quadro no qual o herói é situado. E
se compararmos a temporalidade criada esteticamente com aquela em que se inscreve o sujeito-herói,
veremos que esta última é a temporalidade do devir incessante enquanto que a primeira constrói um
acabamento. A temporalidade criada tem começo e fim, nascimento e morte; a temporalidade vivida
não tem começo nem fim. É justamente o caráter de acabamento e de totalização que dá a exotopia
uma ênfase espacial: como sendo o lugar de onde é possível fixar algo do devir e dar-lhe a forma de
um todo. Como já disse, trata-se apenas de uma ênfase pois é possível falar de exotopia temporal do
mesmo modo que é possível falar de exotopia cultural.
Um outro momento de evolução da relação espaço-tempo na obra de Bakhtin é a criação do conceito
de cronotopos. Aqui, a tensão espaço-tempo desaparece pois, inspirado na Física contemporânea, o termo
designa uma unidade: lugar de fusão dos índices espácio-temporais em um todo inteligível e concreto.
O conceito de cronotopos porém, não substitui o conceito de exotopia. Ambos permanecem na obra de
Bakhtin como duas referências distintas à relação espaço-tempo. Embora o conceito de exotopia tenha
sido formulado mais cedo e seja anterior ao trabalho com a linguagem, ele permanece central até o
fim porque mantém, entre os termos espaço e tempo, uma tensão e essa idéia é necessária a todo o
pensamento de Bakhtin. Porque essa tensão corresponde a uma outra, igualmente central e que já vem
indicada em Para uma Filosofia do Ato: a tensão entre eu e o outro. Voltarei a ela mais adiante.
Finalmente, uma outra evolução da dimensão temporal no pensamento de Bakhtin é aquela que se
elabora no conceito de carnaval. O carnaval é a forma da cultura em que o princípio de alteridade é mais
radical: o jogo de diferenças se torna aqui infindável metamorfose. Ora, justamente o herói do carnaval,
no dizer do próprio Bakhtin é o tempo. Tempo histórico e tempo cósmico, mas, principalmente, é com
o carnaval que melhor se define a idéia de grande temporalidade. E a grande temporalidade vai se con-
trapor à temporalidade contextual. Então, pode-se dizer que, na evolução do pensamento bakhtiniano,
a questão do tempo se desdobra e se complexifica. O instante ético de confronto entre a singularidade
do eu e do outro de Para uma Filosofia do Ato será completado e superado por uma nova abertura do
sentido: aquela que se dá na utopia de um tempo onde não estou mais e onde outras gerações poderão
advir. Do mesmo modo, podemos dizer que o espaço da praça pública, o espaço da festa e do carnaval,
é um espaço utópico onde as singularidades ou individualidades se anulam para que advenha um su-
jeito coletivo. Seria essa uma via para pensarmos a articulação entre ética e política que aparece como
projeto em Para uma Filosofia do Ato?

Proceedings XI International Bakhtin Conference 74


2.2. Sobre o significado
Vejamos agora uma outra linha de oposições. No final de Para uma Filosofia do Ato, aparece uma
curiosa conclusão. Bakhtin diz que a forma da proposição, norma ou lei geral é incapaz de expressar
a contraposição eu/outro. Logo em seguida, termina dizendo que essa contraposição não encontrou
ainda uma expressão científica adequada e nem tem sido pensada plena e essencialmente. A busca de
uma expressão científica parece entrar em contradição com o que ele acaba de afirmar a respeito da
proposição teórica. Acredito porém, que essa aparente contradição vai se resolver futuramente em dois
campos. Primeiramente, ao privilegiar o discurso e o enunciado como objeto de uma nova lingüística,
Bakhtin encontrará a justa maneira de tratar cientificamente da contraposição eu/outro. Depois, ao final
da vida, na reflexão sobre as Ciências Humanas, uma nova resposta à contradição vai aparecer. Tanto
num caso como em outro, encontro aqui uma segunda linha de evolução das oposições iniciais e que se
tece agora em torno da idéia de significado.
Comecemos pela linguagem. Em A Filosofia do Ato, quase se pode pressentir que Bakhtin irá, ine-
vitavelmente, trabalhar sobre a linguagem. E é fascinante descobrir que a base dessa reflexão já está
posta ali, sem que, explicitamente, ela estivesse nos seus planos. Aqui, já aparece a oposição entre o
significado eterno e a realidade e a consciência transitórias. A eternidade do significado, diz o texto, não
é senão uma eternidade possível, não valorativa. Somente associado ao ato, esse significado se torna
válido, adquire a luz do valor. O tom e o valor elevam a unidade de significado à condição de evento
único. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, aparece a oposição entre a significação estável da palavra
e seu tema valorado; em Estética da Criação Verbal, essa mesma oposição aparece nomeada como sig-
nificação versus sentido. Tal distinção, como sabemos, corresponde à distinção entre frase (proposição)
e enunciado, e está na base de toda a concepção dialógica de linguagem. Aqui, em Para uma Filosofia
do Ato, aparecem em torno da palavra Itália, dois centros de valor, mais tarde, o dialogismo será a con-
traposição desses centros de valor. E os centros de valor, se tornarão as vozes do texto.
O próprio princípio dialógico já está parcialmente enunciado em Para uma Filosofia do Ato: o princípio
da não coincidência consigo mesmo. Bakhtin diz: “Afirmar minha participação única e insubstituível no
Ser é entrar no Ser precisamente onde ele não coincide com ele mesmo – entrar no evento em processo
do Ser.”
Também já está ali, a idéia segundo a qual a linguagem cotidiana e a estética serão lugares de ex-
pressão da contraposição entre eu e o outro e portanto, lugares fundamentalmente dialógicos. O que
aliás introduz uma nuance no caráter objetivador da estética. Mais tarde, Bakhtin dirá: o acontecimento
estético é irredutível ao um. A oposição abstrato versus concreto se fará então entre a língua enquanto
sistema e o discurso ou enunciado enquanto ato realizado.
Já temos também aí, o valor como aquilo que produz entonação e que é sempre marca de um con-
texto, de um lugar único. O texto diz: “ A entonação é um movimento que transforma a possibilidade na
atualidade.” Mais tarde, teremos a idéia de movimento do sentido; o discurso ,e portanto a entonação,
vão por a língua e a significação estável em movimento.
Mas além das continuidades e equivalências, o que se transforma no decorrer da obra de Bakhtin?
Talvez se possa dizer que há pelo menos dois aspectos novos na evolução posterior das oposições em
torno do significado, e que isto decorre exatamente do trabalho sobre a linguagem. Primeiramente, essa
oposição deixa de ser apenas entre o concreto/real e o abstrato/possível, quando Bakhtin concebe o
enunciado monológico em contraposição ao enunciado dialógico. O enunciado monológico é real e con-
creto, não é uma frase, mas tende à univocidade na medida em que tende a eliminar a arena. A oposição
se complexifica pois embora concreto, na medida em que tende a estabilizar o significado, aproxima-se
da eternidade e da abstração.
O segundo aspecto da evolução que percebo é que a arena se internaliza e se radicaliza . Em Para uma
Filosofia do Ato, Bakhtin ainda concebe um eu que “vem do interior de mim mesmo” e que se contrapõe
externamente ao outro. Com o conceito de dialogismo, esse eu passa a ser intrinsecamente alterado.
Talvez se possa dizer que em Para uma Filosofia do Ato já existe a idéia de diálogo, mas ainda não há
a idéia completa de dialogismo. Com ela, a não coincidência consigo mesmo não será apenas efeito do
devir, mas presença do outro em mim. A bivocalidade presente num mesmo enunciado e portanto num
mesmo enunciador, vai conferir às idéias de Bakhtin, uma radicalidade que o distinguirá dos pensadores
interacionistas.
Outro ponto a se observar é que, ao colocar em A Filosofia do Ato a idéia de centro, ele vai chegar
inevitavelmente, no final do mesmo texto, à idéia de dois centros e de um confronto entre eles. Faço a
hipótese de que essa idéia vai conduzi-lo, mais tarde, à idéia de polifonia enquanto pluralidade de cen-
tros que vai resultar, em última instância, em ausência de centro. A polifonia aparece então como uma
espécie de solução estética para o confronto de valores ali prenunciado.
De fato, os dois centros de valores colocados no início vão se tornar múltiplas vozes, múltiplas instâncias
internas ao texto, e não mais puramente contrapostas. E entre elas, novas oposições e tensões vão se
colocar. O peso do centro, tal como aparece aqui, com seu enraizamento, sua carne e seu sangue, será
dialetizado não apenas pelo conceito de polifonia como também pelo de sobredestinatário. Instância ideal
e desencarnada, o sobredestinatário vai indicar para o texto uma projeção para além de seu contexto. É
como se o contexto, lugar singular de onde um pensamento se pensa e é entendido pelo outro, pudesse
vir a produzir um aprisionamento do sentido. Será necessário então, formular uma instância terceira

Proceedings XI International Bakhtin Conference 75


que venha desenraizar, desencarnar, para recolocar o movimento do sentido. Ou seja, ao mesmo tempo
em que o contexto e a singularidade abrem na língua o inacabamento e a multiplicidade, num segundo
momento também podem vir a constituir o seu fechamento.
2.3. Sobre as Ciências Humanas
No final de sua obra, veremos que as proposições de Bakhtin sobre as Ciências Humanas contém
implícitas as mesmas oposições em torno da questão do significado. Quando as define como ciências do
discurso, inscreve-as no interior de uma polaridade que é a mesma do Jano bifronte de Para uma Filosofia
do Ato. Tecidas entre explicação e interpretação, as Ciências Humanas se constroem entre pravda e istina,
entre univocidade e multiplicidade. Quando conceitualiza, inscreve-se no eixo do unívoco e do repetível,
quando interpreta, responde ao discurso do outro de um lugar único e irrepetível. Estamos diante da
oposição entre a língua reprodutivel e o enunciado como acontecimento. O que me parece fascinante é a
idéia de que, no final de sua vida, falando das Ciências Humanas, Bakhtin continua respondendo a uma
questão que já estava posta lá no início: como articular o universal e o singular, a teoria e o ato?
O que articula e que perpassa todas as oposições, é o que dá coerência aos diferentes aspectos de sua
obra: a questão da alteridade. A responsabilidade se torna responsividade, mas é sempre da relação com
o outro que se está tratando. Enquanto princípio estético e epistemológico, a alteridade é constitutiva da
arte e do conhecimento tal como expressa no conceito de exotopia. Tanto a explicação quanto a inter-
pretação somente podem se dar de um lugar exterior ao lugar do outro. Enquanto principio ético, é na
idéia de ato aqui nesse texto, e na idéia de valor e entonação ao longo de toda sua obra, que a alteridade
está posta. Ora, ter como eixo de toda sua reflexão a questão da alteridade significa estar instalado, por
princípio, em um lugar de tensão e instabilidade. E aqui concluo com uma hipótese que já desenvolvi em
outra oportunidade2: a de que Bakthin é fundamentalmente um pensador das tensões. O que nos levaria
a deduzir que o “Jano bifronte” que aparece em Para uma Filosofia do Ato é o próprio Bakhtin.
Gostaria de terminar com uma palavra de agradecimento a Tezza e a Faraco pelo trabalho minucioso
na tradução de Para uma Filosofia do Ato e pelo fato de terem-na tornado disponível mesmo sem estar
publicada. Foi com essa tradução que pude realizar a presente leitura.

2 Op. Cit. O pesquisador e seu outro - Bakhtin nas Ciências Humanas.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 76


Um certo silêncio e uma certa voz: duas ocorrências de
alteridade no texto de pesquisa em Ciências Humanas e Sociais

Marilia Amorim*

Introdução
Trabalho com o texto de pesquisa como um lugar de produção e de circulação de conhecimentos.
Meu interesse em analisá-lo não é portanto de ordem literária ou lingüística mas epistemológica. A tese
sobre a qual venho trabalhando já há muitos anos é de que na passagem da situação de campo para
a situação de escrita, não há apenas transcrição de resultados, mas também descoberta e invenção. A
escrita configura uma nova cena enunciativa onde o que muda fundamentalmente é a relação com o
outro, ou melhor, com todos os outros que atravessam o caminho de um pesquisador em Ciências Hu-
manas e Sociais. A utilização de um enfoque polifônico, de inspiração bakhtiniana, permite justamente
analisar essa relação de alteridade, naquilo que ela é indicadora dos limites e das possibilidades de um
texto de pesquisa. A riqueza de um pensamento assim como seus impasses produzem-se sempre numa
complexa arquitetônica de múltiplas vozes que nos instiga a perscrutar. Preocupação epistemológica mas
também ético-politica na medida em que alguns textos de pesquisa nos dão a perceber a relação entre
o pesquisador e o seu outro num contexto cuja dimensão política se impõe a qualquer reflexão.
A questão das múltiplas vozes que habitam um objeto de pesquisa é anterior à escrita. Trata-se na
verdade de uma questão que está na própria gênese do objeto. Todo objeto a ser falado por um pesqui-
sador é um objeto já falado por outros e é no interior dessa arena que o constitui que o pesquisador vai
tentar se posicionar . Esse é um aspecto fundamental que aparece, por exemplo, quando se trabalha na
formação de novos pesquisadores. Com meus alunos de pós-graduação, por exemplo, tenho observado
que, na maioria das vezes, eles chegam com uma imensa dificuldade em formular um objeto de pesquisa
e que essa dificuldade se deve ao fato de estarem como que “colados” a suas próprias interrogações
sem se darem conta de que o objeto não é virgem e não lhes pertence: ele é lugar de circulação de uma
história e de um saber coletivos.
Na minha experiência, a primeira coisa a ensinar para um aprendiz pesquisador tem sido aquilo que
chamo de “convocar a arena”: instalar a cena coletiva em que certas interrogações têm sido postas por
diferentes autores pois, somente ali, elas podem fazer sentido. Somente após ter feito falar e discutir
entre si os diferentes autores que atravessam um objeto é que o pesquisador pode tentar ouvir sua
própria voz : uma voz que pouco a pouco vai abrindo um lugar na arena.
Entretanto, quando se leva em conta a afirmação fundamental de Bakhtin de que o próprio objeto
das Ciências Humanas é ele mesmo discurso, tem-se aí, não apenas um objeto já falado e a ser falado,
mas também um objeto falante.
O texto de pesquisa vai assim se constituindo como verdadeira polifonia, com muitos outros habitando
o pensamento e a escrita e dando margem a que se leia ou que se ouça aquilo que chamo de ocorrências
de alteridade. Dentre as múltiplas ocorrências, gostaria de me deter em duas delas que são, ao mesmo
tempo, menos aparentes e mais radicais: de um lado, uma certa voz, e, de outro, um certo silêncio.
Primeira parte
A voz que gostaria de examinar é a voz do autor/pesquisador que, segundo Bakhtin, se pode distinguir
da voz do locutor ou narrador de um texto. A do locutor é aquela que diz eu ou, como é frequente no
texto de pesquisa, aquela que diz nós ou que emprega a terceira pessoa. Ela se distingue da voz do autor
mesmo nos textos autobiográficos e Bakhtin o sublinha com humor: “A identidade absoluta de meu eu
com o eu de que falo é tão impossível quanto suspender-se pelos próprios cabelos!”1 Isto não quer dizer
que não se possa ouvir a voz do autor no texto; simplesmente ela não está lá onde se acredita. Ela não
está naquilo que relata ou argumenta o locutor, por mais sincero que ele possa ser. O locutor é sempre
um personagem, criatura criada, enquanto que a voz do autor está em todo lugar e em nenhum lugar
em particular. Mais precisamente, ela pode ser ouvida ali onde está o ponto crucial de encontro entre a
forma e o conteúdo do texto. Quando se lê um texto e que se consegue identificar a relação necessária
entre o que é dito e o como se diz, pode-se dizer que se encontrou a voz do autor.

*
Psicóloga, professora da Universidade de Paris-8. Autora do livro O Pesquisador e seu Outro, Ed. Musa, São Paulo, 2001.
1 BAKHTIN, M. Esthétique et théorie du roman, Ed. Gallimard, Paris, 1978, p.396.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 77


Estou falando da voz do autor e não de sua pessoa. A voz do autor concerne um lugar enunciativo
e como tal ela é portadora de um olhar, de um ponto de vista que atravessa o texto do início ao fim.
Mais do que isso, trabalho com a hipótese de que na voz do autor se diz algo de totalmente singular e
que remete a um acontecimento: o acontecimento do encontro entre o pesquisador e seu objeto. No
enunciado e na voz do locutor, ouvimos aquilo que diz respeito à resultados objetivados cuja pretensão
é de serem repetiveis e generalizáveis. Na voz do autor e na enunciação ou, para simplificar, no estilo do
texto, ouvimos algo de singular e irrepetível que diz respeito às condições de descoberta e de invenção.
Muitas vezes, é na relação forma/conteúdo que a novidade radical daquilo que foi descoberto melhor
se revela.
Ora, o texto de pesquisa, de um modo geral, obedece ao gênero de escrita científica que é onde,
justamente, a singularidade de um conteúdo não deve quase nada à forma pois esta forma contém
um padrão que deve ser mais ou menos o mesmo para qualquer conteúdo. Sem querer desprezar as
exigências do gênero que atendem a critérios epistemológicos, considero que uma certa liberdade em
relação ao gênero permite um trabalho de escrita que em nada compromete a exigência epistemológica
e que, ao contrário, a enriquece. O enriquecimento vem do fato de que esse trabalho com a relação
forma-conteúdo dá à escrita uma dimensão de acontecimento que restitui aquilo que de outro modo
não pode se dar no texto: a singularidade do encontro pesquisador-objeto. O que articula o enunciado
de tipo proposicional e universalizante à enunciação singular do autor é o que nela se marca: ali, de
“seu único lugar”, para usar a expressão de Bakhtin, o pesquisador assim defrontou-se com o outro ou
os outros de sua pesquisa. Pode-se assim dizer que a voz do autor é o que entona, ou melhor, que faz
seu pensamento entonar.
A relação entre trabalho de escrita e invenção de pensamento já foi há muito identificada. Ela está
presente desde o início da filosofia, quando na Grécia antiga se começa a interrogar a relação entre
linguagem e conhecimento. A retórica, antes de ser um simples instrumento persuasivo, aparece, por
exemplo, em Aristóteles, como técnica inventiva de conceitos. Em Plebe e Emanuele2, a retórica se situa
no domínio da poética, como articulação profunda entre o aspecto composicional e a formulação do pensa-
mento filosófico. Mas aqui, o trabalho se dá no plano abstrato das idéias e das técnicas para desenvolvê-
las e explicá-las. Entretanto, para além da técnica, é preciso pensar a escrita como acontecimento. Essa
dimensão evenemencial se acentua no caso das Ciências Humanas porque elas tratam de um encontro
concreto, com um outro que fala. O encontro de discursos concretos e singulares convoca um trabalho
de interpretação e a presentificação desse encontro produz-se na relação forma-conteúdo.
A reflexão sobre a questão do estilo e da voz do autor/pesquisador começa a ser explorada também
na psicanálise, a propósito da escrita de Freud. No livro de Inês Loureiro3, vários aspectos são analisados,
mas eu gostaria de sublinhar apenas um deles. No texto “Recomendações aos médicos que exercem
a Psicanálise”, Freud fala da dificuldade em escrever sobre a clínica. Diz ele: “Os relatórios precisos de
históricos de casos analíticos têm menos valor do que se poderia esperar. (...) Eles são, via de regra,
cansativos para o leitor e, além do mais, não conseguem ser um substituto para sua presença real numa
análise.”4 Nota-se que aqui ele está à procura de uma escrita que restitua “o corpo na linguagem”, como
diria Michel de Certeau5. Nos termos em que trabalho, eu diria que ele está à procura de uma escrita
que presentifique e não apenas que represente. A tese com a qual venho trabalhando é de que o que
presentifica e dá corpo ao texto, é a relação forma/conteúdo. As descrições e relatos de uma situação de
campo, por mais minuciosos que sejam e por mais importantes que sejam, não ultrapassam o domínio
da representação.
Em outro texto, “Estudos sobre a histeria”, Freud escreve: “... a mim mesmo causa singular impressão
comprovar que meus historiais clínicos carecem, por assim dizer, do severo selo científico e apresentam
antes um aspecto literário. Mas me consolo pensando que este resultado depende por completo da natu-
reza do objeto e não de minhas preferências pessoais.”6 Esse trecho é particularmente importante porque
sublinha a idéia de que o que estou chamando de estilo, ou de voz do autor, não é efeito de idiossincrasias
psicológicas ou subjetivas, mas antes de uma relação de alteridade. A alteridade do objeto tal como ela
se apresentou a mim de um lugar único e singular de pesquisador.
Segunda parte
Gostaria agora de examinar uma outra ocorrência de alteridade no texto de pesquisa que, por defini-
ção, é ainda menos aparente, ou, se preferirmos, completamente invisível já que se dá ali onde o texto
se cala, isto é, no seu silêncio. Pode-se dizer que o silêncio é a ocorrência mais radical de alteridade pois
representa aquilo que do outro é tão outro que suspende toda escrita. Embora seja por excelência um
pensador das vozes, Bakhtin também pensou o silêncio. Não de modo explícito e sistemático, mas impli-
citamente, o silêncio é dedutível de algumas de suas formulações. Por exemplo, é em torno do silêncio
que se engendra o enunciado monológico. Mas em todas as suas ocorrências, o silêncio bakhtiniano é um
silêncio de vozes caladas. Calam-se umas para que falem outras ou apenas uma, mas há sempre voz.

2 PLEBE, A. e EMANUELE, P., Manual de Retorica, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1989.
3 LOUREIRO, I., O carvalho e o pinheiro – Freud e o estilo romântico, Ed. Escuta/Fapesp, São Paulo, 2002.
4 Citado por LOUREIRO e sublinhado por mim.
5 CERTEAU, M., L’invention du quotidien. Arts de faire, Ed Gallimard, Paris, 1990.
6 Citado por LOUREIRO.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 78


O que não se encontra em Bakhtin, é o silêncio daquilo que nunca foi dito nem subentendido e que
não consegue se dizer. O silêncio que permanece mesmo para o leitor como uma ausência que ele não
consegue preencher ou como uma interrogação a qual, baseado no texto, ele não pode responder. Ora,
parece-me que este silêncio é fundamental para a problemática do texto nas Ciências Humanas. De um
lado, porque pode ser que ele seja o único signo do outro, quando este outro se apresenta como alteri-
dade radical. Esse outro, ou ainda, essa dimensão do outro da qual não sei ou não posso falar.
Por outro lado, esse silêncio radical que não remete a nenhuma voz é também signo de que, em nosso
trabalho de análise de um texto, estamos em presença de um regime discursivo dominante que merece
ser identificado em seus constrangimentos. Todo regime discursivo está organizado segundo uma série
de constrangimentos que permitem que uma série de coisas sejam ditas, mas que, para isto, impede
que outras tantas o sejam. Remeto aqui ao conceito de Jean-François Lyotard7 de regime discursivo tal
como ele o desenvolve em seu trabalho sobre o diferendo. O diferendo é justamente esse resto que não
se deixa dizer no interior de um regime discursivo, que permanece em sofrimento de não poder se dizer
e que demanda então a mudança e às vezes até, a invenção de um regime discursivo.
Lyotard utiliza os dois termos, gênero discursivo e regime discursivo, sem nenhuma distinção. Mas
prefiro utilizar o termo regime para poder distingui-lo do conceito bakhtiniano de gênero. Antes de mais
nada é preciso dizer que essas duas noções têm muito em comum. O gênero bakhtiniano é um modo de
dizer que tem suas regras e finalidades engendradas socialmente o que confere a todo discurso o caráter
de prática social. Aprender a falar não consiste apenas em aprender uma língua, mas também a falar
em diferentes gêneros. As regras e finalidades dos gêneros não são nunca inteiramente explícitas e sua
aprendizagem exige a mesma competência que exige uma língua, isto é, a de poder deduzir as regras
a partir do uso que fazem os outros em enunciados concretos.
Até aqui, a noção bakhtiniana é perfeitamente equivalente a de Lyotard. Ambas supõem um engen-
dramento social o que permite analisar as relações de força que atravessam um discurso e, em alguns
casos, pode-se até identificar a relação com o contexto político mais amplo que ultrapassa o texto.
Algumas diferenças podem porém ser identificadas e gostaria de me deter em uma delas: o que existe
entre um gênero e outro? Em Bakhtin, há uma passagem permanente entre um gênero e outro o que
dá origem a gêneros híbridos e complexos. Eu diria que entre os gêneros bakhtinanos não há nenhum
espaço, nenhum vazio.
Para Lytotard, as hibridações também são possíveis em determinadas circunstâncias, mas entre os
regimes o que há é o vazio. Um vazio que não é absoluto pois pode vir a se preencher uma vez que
mudem as relações de força. Isto que está de fora de um regime discursivo, essa exterioridade que
sofre por não poder se dizer no regime em vigor, se marca pelo silêncio. Silêncio do diferendo: termo
que designa algo mais do que um simples diferente. Designa não um outro abstrato ou metafisico, mas
uma alteridade histórica. Num dado contexto histórico, algo fica de fora do regime em vigor. O silêncio
do diferendo é um acontecimento no discurso: marca-se entre os discursos, entre as palavras, entre os
regimes. Mas para falar dele, é preciso já estar do outro lado do entre: já estar num outro momento,
já ter passado para um outro regime discursivo, para poder dali, nomear o silêncio. Não posso analisar
o próprio lugar de onde falo; será sempre um outro, que virá depois de mim, que poderá apontar os
silêncios naquilo que digo.
O diálogo aqui proposto entre Bakhtin e Lyotard não se reduz à necessidade de complementariedade.
Parece-me que esses autores se encontram, antes de mais nada, na perspectiva geral de seus textos
que buscam, nos dois casos, o ponto de junção entre ética e estética . Além disso, ambos deixaram
indicações, pontuais porém preciosas, para a questão epistemológica.
Para Lyotard, o trabalho do pensador é o de “dar voz ao diferendo”, isto é, prescrutar o silêncio nos
discursos e buscar formas de exprimi-lo. O trabalho da escrita é de transgredir com os gêneros para
reencontrar a dimensão de acontecimento. Lyotard chega a utilizar a expressão “acontecimento do en-
contro” em seus trabalhos. Gostaria então de reiterar minha tese de que o trabalho de escrita na pesquisa
pode ter uma importância decisiva para a produção de conhecimento. Mas é bom lembrar que para poder
transgredir, é preciso saber usar o gênero e suas regras. É necessário compreender o que está em jogo
nas regras de produção discursiva de conhecimento para identificar os pontos onde a transgressão pode
tocar precisamente algo que demanda ser conhecido, mas que esbarra em constrangimentos.
Conclusão
O trabalho de elaboração da escrita, nas relações entre forma e conteúdo, pode assim ser um modo
de fazer falar o outro nas suas ocorrências mais radicais. De um lado, pela potência da voz do autor,
as marcas de singularidade no texto restituem a dimensão de acontecimento do encontro com o outro:
singularidade do lugar único de onde fala o pesquisador e singularidade do objeto encontrado. Por outro
lado, na impotência de uma escrita constrangida pelo regime discursivo em vigor, o silêncio será a marca
desse outro que escapa ao discurso numa determinada conjuntura histórica. É esse silêncio que vai con-
vocar, para outros pesquisadores, ou para o mesmo pesquisador num outro momento de sua trajetória,
o trabalho de reinvenção da escrita.
Nos dois casos, potência ou impotência, será a dimensão de alteridade que convocará a criação. Freud
dizia que era o material do qual tratava que lhe impunha a maneira de escrever. Segundo ele, em vários
7 LYOTARD, J-F, Le différend, Ed. de Minuit, Paris, 1983.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 79


textos que escreveu, começara sem saber como iria terminar um só parágrafo; era o material que lhe
guiava. Para Freud, essa ação do objeto sobre o autor explica-se pelo conceito de inconsciente. Mas em
Bakhtin, essa mesma idéia está presente: o personagem se impõe ao autor mesmo que tenha sempre
um estatuto de criatura face ao seu criador. Aqui, não é o conceito de inconsciente que dá conta dessa
posição de autor, mas é o próprio conceito de dialogismo. A criação não é efeito de um gênio individual
e solitário, mas sim efeito de encontro: ela é bivocal por natureza. Portanto, valorizar o trabalho de
escrita na pesquisa não tem aqui nenhum sentido subjetivista que visaria a exprimir os “estados de
alma” daquele que escreve. Trata-se antes de um instrumento a mais de pesquisa: dar a ver, no e pelo
estilo, determinados aspectos do objeto que se pretende conhecer e que, pelas vias usuais da pesquisa,
resiste a se mostrar.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 80


Dialogismo e interação no texto acadêmico:
investigando estratégias discursivas

Antonia Dilamar Araújo

Universidade Estadual do Ceará

dilamar@fortalnet.com.br

RESUMO
A concepção interacional ou dialógica da linguagem considera os sujeitos atores sociais, no qual o
texto passa a ser lugar de interação.O dialogismo é percebido no texto escrito por meio de estratégias
discursivas que assumem funções interpessoais. O objetivo deste trabalho é discutir a concepção dialó-
gica de Bakhtin ao analisar estratégias discursivas interpessoais utilizadas pelo produtor na construção
do texto acadêmico para sinalizar a interação com o leitor. As análises foram realizadas em oito teses de
doutorado na área de análise do discurso escritas em inglês e português. O estudo revelou que o texto
acadêmico na área de ciências humanas é interativo em diferentes graus e formas e que a interação é
sinalizada pelo produtor através de várias estratégias discursivas.
ABSTRACT
The interactional or dialogic conception of language regards subjects as social actors, in which the text
is the site of interaction. The dialogism is perceived in the written text by means of discursive strategies
which fulfill interpersonal functions. The aim of this paper is to discuss Bakhtin’s dialogic conception by
analysing discursive interpersonal strategies used by the writer in the writing of academic text to signal
the interaction with the reader. The analyses were done in eight doctoral dissertations in the area of
discourse analysis in English and Portuguese. The study revealed that academic text in the area of hu-
man sciences in both languages is interactive in different degrees and forms and that the interaction is
signaled by the producer by means of several discursive strategies.
0. Introdução
A concepção interacional ou dialógica da linguagem (Bakhtin 1992) considera os sujeitos como atores
sociais, no qual o texto passa a ser lugar de interação. Tais atores (interlocutores) aqui denominados
produtor e receptor são sujeitos ativos, que dialogicamente se constroem e são construídos no texto.
Nessa perspectiva, a interação é definida como um fenômeno intersubjetivo, que envolve a produção e a
interpretação da linguagem por indivíduos que ocupam lugares ou posições em um contexto social especí-
fico. Para Bakhtin (1992), o texto define-se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diálogo com outros
textos (da situação, da enunciação) e só dessa forma, dialogicamente, a significação é construída.
A escrita acadêmica pode ser uma evidência visível de dialogismo entre um produtor acadêmico com
os seus leitores (alunos ou colegas especialistas da área), no qual o produtor controla essa interação e
tenta demonstrar o estado de conhecimento em uma disciplina particular a fim de que seu leitor possa
ter uma visão coerente dessa disciplina, como também de persuadi-lo da verdade das informações e
alegações apresentadas.
Para que o diálogo ou interação se realize, o produtor do texto utiliza-se de estratégias discursivas
para orientar o leitor de como interpretar as relações entre os segmentos do texto e de como perceber as
intenções e posicionamentos do produtor (Bakhtin, 1992, Hoey, 2001; Halliday, 1985; Hyland, 1999).
Este artigo tem por objetivo investigar como se realiza a interação verbal através das estratégias in-
terpessoais que o produtor, enquanto autor, se utiliza na construção de significados do texto acadêmico,
especialmente produzido no contexto universitário, ao analisar teses de doutorado escritas por nativos
de inglês e português na área de análise do discurso.
1. Pressupostos teóricos
No final da década de 20, a linguagem passa a ser estudada como processo de interação verbal (Bakhtin,
1953/1992) e não mais na dualidade língua/fala dicotômica apregoada por Saussure. Nessa visão, a
língua é considerada um fato social que se apóia nas necessidades de comunicação entre os humanos.
Para o autor, a língua é uma atividade, um processo criativo que se materializa pelas enunciações e cuja

Proceedings XI International Bakhtin Conference 81


realidade essencial é seu caráter dialógico. Para Bakhtin, o texto como objeto das Ciências Humanas
é constitutivamente dialógico, pois se define pelo diálogo entre seus interlocutores e pelo diálogo com
outros textos (da situação, da enunciação) e dessa forma dialogicamente constrói sua significação. O
texto é também produto da criação ideológica ou de uma enunciação incluindo o contexto social, históri-
co, cultural, etc. Nesse sentido, o texto não pode ser reduzido a materialidade lingüística, considerando
que ele só existe na sociedade.
O dialogismo na concepção de linguagem, segundo Bakhtin, é a interação verbal. O conceito de inte-
ração é constitutivo dos sujeitos e da própria linguagem, dado que toda prática de linguagem tem como
referência o outro, um interlocutor. Nessa perspectiva, fala-se ou escreve-se sempre para um interlocutor,
real ou virtual, presente ou ausente, mas da mesma forma que o locutor situado historicamente. No caso
da escrita acadêmica, o dialogismo é virtual uma vez que o texto se insere numa situação de interlocução,
tendo o alocutário instituído, mesmo que não haja indícios explícitos dessa condição (Cardoso, 1999:99).
A interação entre locutores é o princípio fundador da linguagem, portanto, o sentido depende da relação
entre sujeitos. Os falantes do diálogo se constroem e constroem juntos o texto e seus sentidos.
Considerando que a interação é um fenômeno intersubjetivo, que envolve a produção e a interpre-
tação de linguagem por indivíduos que ocupam lugares ou posições em um contexto social específico,
a escrita de textos acadêmicos como processo social é percebida como uma forma de os pesquisadores
agirem no mundo, dos escritores representarem a realidade e as situações sociais das quais participam e
vivenciam (Fairclough, 1992). Ou seja, os escritores se engajam na escrita não somente para expressar,
representar e compartilhar idéias e posicionamentos, mas também para estabelecer relacionamentos e
posições sociais. A produção do texto acadêmico escrito tem uma função social na comunidade discur-
siva (aqueles que participam na elaboração e circulação do texto, Swales 1990), que é o de informar e
persuadir os leitores das alegações feitas sobre uma pesquisa relatada, além de serem formas particu-
lares de responder às necessidades retóricas de uma comunidade acadêmica. Segundo Hyland (1999),
a escrita acadêmica é, portanto, um engajamento em um processo social, onde a produção de textos
reflete metodologia, argumentos e estratégias retóricas elaboradas para engajar colegas e persuadi-los
das afirmações feitas e de posições assumidas.
Em uma teoria social da linguagem, entender o texto acadêmico é entender o papel da linguagem e
como esta está sendo utilizada pelos produtores em situações específicas a fim de construir significados
particulares (Kress, 1993). O ato de linguagem, enquanto atividade comunicativa, envolve sujeitos (pro-
fissionais ou não) socialmente organizados que se manifestam dentro de um quadro de regularidades
sócio-comunicativas convencionalmente determinadas e através de estratégias discursivas de cunho pes-
soal (Lysardo-Dias, 1998:17). Dessa forma, o saber-fazer comunicativo pressupõe não só o conhecimento
da língua, mas também da dimensão sócio-cultural da linguagem que ligam objetivos comunicativos
a comportamentos de linguagem específicos. Daí concluir-se que quem faz parte de uma comunidade
científica/acadêmica ou produzindo ou compreendendo o texto acadêmico, deve ser possuidor do saber
fazer comunicativo, saber que é geralmente partilhado entre seus pares.
O aspecto convencionalizado de uma interação escrita é reconhecido como fazendo parte de um gê-
nero particular. Assim, ao interagir no texto, os produtores devem ter não só conhecimento das normas e
convenções desse texto (gênero textual), estabelecido pela comunidade discursiva, mas também, dentre
outras coisas, sobre a consciência da audiência a quem o texto se destina e uma habilidade para refletir
e explorar essa consciência sobre como o texto deve ser escrito (Grabe & Kaplan, 1996; Johns, 1997).
Uma das maneiras de revelar a consciência da audiência é a forma como o texto é organizado e como
a organização é sinalizada. Segundo Thompson (2001:59), há dois tipos de interação no texto escrito. O
primeiro tipo denominado interativo, diz respeito aos recursos que se referem à consciência das reações
e necessidades da audiência, envolvem o controle do fluxo de informação e servem para guiar os leitores
através do conteúdo do texto (Hoey, 2001, Widdowson, 1984). O segundo tipo, denominado interacio-
nal, refere-se àqueles aspectos que objetivam envolver os leitores na argumentação do texto. Este tipo
é evidenciado por meio do uso de recursos que permitem o produtor conduzir uma interação mais ou
menos aberta com sua audiência, ao comentar e avaliar o conteúdo através da linguagem atitudinal e
da modalização (Hunston 1989, 1994).
Coracini (1991) defende, com base em pesquisa sobre artigos científicos, que o discurso científico
não é tão objetivo e impessoal quanto aparenta, mas é subjetivo, evidenciado nas mais diferentes ex-
pressões lingüísticas usadas pelo produtor. O produtor do texto acadêmico científico ao dialogar com o
receptor faz uso de procedimentos de elaboração discursiva e de procedimentos de argumentação com
a “intenção de provocar no interlocutor uma reação, ou seja, convencer da validade da pesquisa relatada
e do rigor da mesma” (p. 42).
A autora afirma, ainda, que o produtor de textos científicos, situando-se num espaço que transcende
ao da sua individualidade, dirige-se a um interlocutor idealizado: o grupo de especialistas ou interessados
na área (comunidade discursiva), que pressupõe conhecer a matéria, os métodos utilizados normalmente
na área e estarem interessados na pesquisa a ser relatada. Na produção desses textos, por mais que o
produtor-pesquisador tente parecer imparcial, dedutivo, lógico, a intuição e imaginação estão presentes
no processo criativo dos mesmos e, por conseqüência, são subjetivos.
Ao interagir com o receptor no texto acadêmico, o produtor emprega várias estratégias discursivas de
natureza interpessoal expressa por meio de formas léxico-gramaticais, que representam o envolvimento

Proceedings XI International Bakhtin Conference 82


deste com o tópico e a adequação dos escritores às necessidades dos leitores. Por estratégia discursiva,
entende-se “a articulação entre o fazer-coletivo e o fazer individual que faz do discurso não um lugar
de mera reprodução, mas um espaço de interação entre elementos sociais convencionalmente pré-de-
terminados e mecanismos lingüísticos individuais” (Lysardo-Dias, 1998:22). Meu interesse particular
neste trabalho é investigar, analisar e comparar estratégias de construção do texto, como formas de
estabelecer o diálogo e interação do discurso científico, tendo em vista que o ato de linguagem possibilita
os sujeitos/escritores fazerem escolhas pessoais adequadas aos efeitos que desejam produzir no leitor.
Por estratégias interacionais, quero me referir às estratégias sócio-culturais determinadas que visam a
estabelecer, manter e levar a bom termo uma interação verbal entre os interlocutores.
O texto acadêmico é, dessa forma, o resultado de configuração da linguagem em torno dos objetivos
sócio-culturais e da multiplicidade de formas lingüísticas usadas pelos pesquisadores para realizar o
objetivo a que se propõe, ou seja, o de convencer o interlocutor da verdade que enunciam.
Acreditando que o dialogismo deva ser a preocupação do estudioso e produtor do texto e do discurso,
este trabalho analisa os mecanismos lingüísticos que caracterizam o dialogismo e a interação na elabo-
ração de teses de doutorado.
2. Metodologia
A presente pesquisa, que se caracteriza como uma investigação descritiva, analisou oito teses de
doutorado, sendo quatro escritas em Inglês por nativos dessa língua e quatro escritas em português na
área de análise do discurso e lingüística de texto e defendidas no período de 1990 a 2001 na Inglaterra
e Brasil respectivamente. As teses foram coletadas nas bibliotecas das universidades inglesas e brasilei-
ras. A escolha da tese de doutorado, como objeto de análise, justifica-se por esse tipo de texto ser um
exemplo típico de texto acadêmico científico, expositivo-argumentativo e por ser escrita por profissionais
com experiência em desenvolver pesquisas.
Na análise foram levantadas todas as estratégias discursivas de natureza interpessoal e que reve-
lassem as formas de interação do escritor no texto acadêmico. Para identificar tais estratégias, adotei a
concepção de Bakhtin (1992) sobre dialogismo, Halliday (1985) sobre função interpessoal, e nos trabalhos
de Hyland (1999), Bronckart (1999) e Bunton (1999) sobre estratégias discursivas e interacionais que,
dentre outras, apontam como estratégias interpessoais: o uso de pronomes de 1a. pessoa do singular,
o uso do pronome pessoal de 2a. pessoa, formas modais, formas imperativas, modificadores avaliativos
e dêiticos, o uso de metáforas, que serão apresentadas e ilustradas na próxima seção deste trabalho.
Para facilitar as análises, cada tese foi numerada e codificada como TLI (tese em língua inglesa) e TLP
(tese em língua portuguesa). Os exemplos usados para ilustrar cada estratégia são então identificados
por esse código e pelo número da página onde o exemplo se apresenta no texto original.
3. Resultados e discussão
A análise dos dados foi realizada através do levantamento das marcas lingüísticas léxico-gramati-
cais que possibilitou a identificação das estratégias interacionais e suas funções no texto acadêmico.
As estratégias identificadas que, no meu entender, caracterizam o dialogismo e ajudam a estabelecer a
interação entre produtor /receptor ou leitor/texto foram: posicionamentos enunciativos, modalizações,
marcadores de referência ao leitor, modificadores avaliativos, indicadores de relações espaço-temporais
e metáforas conceituais. Analisemos cada estratégia separadamente:
3.1-Posicionamentos enunciativos: são as estratégias, segundo Bronckart (1999), em que o autor
assume ou se posiciona em relação ao que é enunciado ou atribui explicitamente essa responsabilida-
de a terceiros. Nos dados analisados, os posicionamentos dos locutores com relação aos enunciados
são marcados pelo pronome pessoal “I/we” nas teses escritas em inglês e “eu/nós” em português. Os
enunciados atribuídos a terceiros são sinalizados por expressões tais como: Segundo X, De acordo com
X, Para X, seguidos de data de publicação e verbos de relato na 3a pessoa do singular ou plural. Em
Inglês, expressões similares marcam os posicionamentos do escritor, According to..., Widdowson (1984)
considers... Exemplos:
1.1 This proposes that the language we speak imposes upon us a particular way of viewing
the world and hence the way in which we think about the world. (TLI 2, Ch 1, p. 14)
1.2 Our prime interest is in the relation between logic and language factors in those.. (TLI
2, Ch 4, p.57).
1.3 Report verbs, I would argue, give two pieces of information regarding writer certanity.
(TLI 1, Ch.4, p.135)
1.4 Essa focalização nos levou a reflexões sobre conceitos ainda um pouco nebulosos para
a lingüística... (TLP 3, Cáp. 1, p. 1)
1.5 A nosso ver, ambos os exemplos indicam exclusivamente de resumos produzidos origi-
nalmente em língua portuguesa (TLP 1, Cáp. 3, p. 56)
1.6 Segundo Meurer (1997b: 62), a organização retórica de um texto diz respeito “ao con-
junto de recursos que o escritor....” (TLP1, Cáp. 2, p. 11)

Como se pode perceber, os exemplos acima revelam que a constituição do discurso científico-acadê-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 83


mico se dá por meio da intertextualidade explícita (citações com indicação da fonte), constituindo uma
autoridade que protege o discurso do locutor que cita. Tais citações não são um recurso totalmente livre,
estando sujeita às determinações impostas pela academia.O uso das citações contribui para imprimir um
valor de verdade ao que se afirma e defende, além de passar a imagem de autenticidade e fidelidade com
a palavra citada. Deve-se ainda observar que a presença do locutor responsável pelas suas enunciações
se revela por intermédio do uso de formas pronominais tanto no sentido imperial denotando autoridade
do produtor na apresentação dos argumentos, quanto no sentido inclusivo indicando uma forma de salvar
a face diante de seus pares. No texto acadêmico de língua inglesa, a presença do produtor é percebida
em duas teses pelo uso do I, uma terceira, pelo uso do we e, em uma quarta, há mistura das duas for-
mas. Na língua portuguesa predomina o uso de nós/nos/nosso revelando a subjetividade do produtor
do texto e marcando sua forma de interagir com o leitor.
3.2– Marcas de referência ao leitor: são estratégias expressas através de formas pronominais que
se referem ao leitor envolvendo-o na discussão dos argumentos apresentados (Hyland, 1999). Nos dados
analisados, percebeu-se o uso de formas imperativas (verbos performativos) tanto na língua inglesa
quanto na língua portuguesa como formas de engajamento do produtor com o interlocutor. Exemplos:
2.1 Taking the set of truth values of the compound proposition p * q as the definition... (TLI
2, Ch. 3, p. 33)
2.2 Compare, for instance, examples 4.11 and 4.12 (CERTAIN) with example 4.29 (PROBA-
BLE), repeated here for convenience. (TLI 1, Ch. 4, p. 128)
2.3 Veja, a seguir, alguns dos exemplos das orações finais de abertura nas emissoras sele-
cionadas para este trabalho... (TLP 3, Cáp. 3, p. 104)
2.4 Vejamos, abaixo, um quadro comparativo das duas imagens construídas com os dois
textos... (TLP 3, Cáp. 2, p. 92)

3.3- Modificadores avaliativos: Uma forma de o locutor interagir com o leitor no texto acadêmico é
por meio do uso de modificadores avaliativos que se refere ao julgamento ou apreciação mais subjetiva
que este faz do enunciado, apresentando-os como bons, ruins, estranhos, excelentes, interessantes,
na visão da instância que avalia. Este tipo de avaliação tem a função de mostrar o valor e relevância do
processo de pesquisa e de construção de conhecimento (Hunston, 1989, 1994). Nesta perspectiva, o
pesquisador avalia tudo que faz parte do processo de pesquisa e elaboração do texto acadêmico-cien-
tífico: suposições, hipóteses, teoria e resultados ao interpretar os dados. Ao analisar os dados, perce-
beu-se que a interação nas duas línguas é marcada predominantemente pelo uso de adjetivos, às vezes
modificados por advérbios, no qual o julgamento de valor e relevância por parte do produtor ocorre de
maneira explícita ou implícita nos enunciados. Vale a pena ressaltar que a estratégia avaliativa ocorre em
todas as seções dos capítulos das teses, revelando que a natureza do texto acadêmico é essencialmente
avaliativa. Por exemplo:
3.1 The problem is particularly acute for various African countries… (TLI 2, Ch. 2., p.32)
3.2 An important contribution to an understanding of how the ideology of objective science
is maintained is made by the essential unity of status and value as sub-categories of eva-
luation. (TLI 1, Ch.8, p.379)
3.3 Constatamos, assim o quanto é insuficiente e insatisfatório aceitar a referência como uma
relação direta entre “as unidades do léxico e as coisas do mundo.” (TLP 2, Cáp. 2, p. 73)
3.4 De qualquer forma, é importante e imprescindível registrar que não foi uma tarefa fácil,
muito pelo contrário, eliminar todos os pontos de interrogação que foram ficando pelo ca-
minho no decorrer dos primeiros exercícios de análise. (TLP 1, Cáp. 5, p. 115)
3.5 As expressões anafóricas são, na verdade, incompletas,... (TLP 2, Cáp.2, p. 73)

Dentre os modificadores avaliativos mais usados na língua inglesa citamos:


important, essential, efficient, surprising, appealing, reasonable, significant, interesting,
appropriate, useful, logical, striking, remarkable (avaliação positiva)

problematic, difficult, inconclusive, contradictory, irrelevant, negative, imprecise, impolite,


neglected, ambiguous (avaliação negativa)

Alguns substantivos foram também usados: facility, attention, success, performance, interest (posi-
tivo) e problem, difficulty, criticism, discrepancy (negativo).
Advérbios modificadores de adjetivos: most, well, clearly, specific, perfectly, potentially, slight, ge-
nerally, greatly, largely, significantly, poorly, consistently.
Na língua portuguesa, os adjetivos mais usados nas teses para avaliar os enunciados foram:
útil, importante,essencial, bom, óbvio, difícil, imprescindível, fundamental, justo, sensato,
coerente, viável, relevante (avaliação positiva)

insuficiente, insatisfatório, incompleta, difícil, nebuloso (avaliação negativa)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 84


Os substantivos mais freqüentes foram: discrepância, problema, dificuldade (aval. negativa)
3.4–Modalizações epistêmicas: são formas de avaliações (julgamentos, sentimentos, opiniões)
formuladas sobre aspectos do conteúdo do texto. Assinalam o grau de comprometimento/ engajamento
do produtor com relação ao seu enunciado, o grau de certeza e incerteza com relação aos fatos enun-
ciados (Koch, 2002:136). Hunston (1989, 1994) denomina este tipo de avaliação de status e afirma
que esta é identificada pela atividade realizada pelo pesquisador-escritor como fazer afirmações, narrar
eventos, interpretar resultados, hipotetizar, descrever quadros e tabelas, recomendar e pelo uso de uma
linguagem modalizada que serve para amenizar as alegações feitas pelo pesquisador e salvar sua face
diante de seu interlocutor. Realizadas nas duas línguas, por unidades lingüísticas de níveis diferentes
como: verbos modais (can, may, must, poder, caber, dever), advérbios modais (probably, perhaps, pro-
vavelmente, talvez), verbos de ligação (appear, seem, parecer) e frases impessoais (It is possible, it is
evident, it is clear that..., é possível que, é evidente que...). Exemplos:
4.1 This condition may seem somewhat arbitrary and therefore requires some justification.
(TLI 2, Ch. 7, p.141)
4.2 It appears, therefore, that some of the functions of evaluation can be represented in
terms of system networks. (TLI 1, Ch. 8, p. 369)
4.3 It is evident that languages differ greatly in the aspects in the physical world (TLI 2,
Ch. 1, p. 15)
4.4 …this is probably a universal feature of all languages. (TLI 2, Ch 3, p. 45)
4.5 A partir do ponto zero da enunciação, é possível criar... (TLP 2, Cáp. 2, p. 44)
4.6 Tendo em vista apenas a dimensão referencial do signo, dêiticos e anafóricos poderiam
caber perfeitamente num único grupo semântico... (TLP 2, Cáp. 2, p. 35)
4.7 Além disso, parece que os resumos cumprem o papel de uma introdução reduzida, pois
muitos incluem uma descrição da organização estrutural do texto da dissertação em capítulos
que no... (TLP 1, Cáp. 4, p. 76)

3.5 -Indicadores de relações espaço-temporais (dêiticos): são os marcadores de tempo e espaço


(here and now) que agem como referências para a situação extralingüística do produtor no texto (this
place, at this time, presently, and today), como também para se referir à passagem interna de tempo
no texto – uma referência para ambas a produção do texto e sua recepção, são consideradas como
exercendo uma função interativa do texto (Smith Jr., 1985). Este tipo de interação envolve o produtor e
o receptor na situação extralingüística. Exemplos:
5.1 I shall here discuss the choices represented by the network by articulating the question
which motivates each node. (TLI 1, Ch. 4, p. 124)
5.2 It is now possible to use the terminology presented in Figure 4.3 to express the rela-
tionship between the different parameters that… (TLI 1, Ch. 7, p. 304)
5.3 As pesquisas que apresentamos nesta seção privilegiam o processo cognitivo de resumir
como habilidade de compreensão e resumo como um dado revelador de... (TLP1, Cap. 2,
p. 20)
5.4 Abaixo, na figura 8, pode ser visualizada a nossa proposta de organização retórica de
resumos... (TLP1, Cap. 5, p. 120)

3.6-Metáforas conceituais: na elaboração do texto acadêmico, o produtor também dialoga com o


interlocutor através das metáforas conceituais, nas quais expressam as maneiras de compreender suas
experiências e de dar sentido ao que acontece em torno de si próprio. Ao interagir através de metáforas,
o produtor mostra que os conceitos são definidos primariamente em termos de propriedades interacionais
baseadas na percepção humana – como concepções de forma, dimensão, espaço, função, movimento
– e não em termos de propriedades inerentes das coisas (Lakoff e Johnson, 1980). O sistema conceitual
do homem emerge de sua experiência com o próprio corpo e ambiente físico e cultural em que vive. Tal
sistema compartilhado pelos membros de uma comunidade lingüística contém metáforas conceituais,
sistemáticas, geralmente inconscientes e altamente convencionais na língua. Exemplos:
6.1 The 1930’s witnessed a movement intended to establish the word as the basis unit for
pedagogic description..[TLI 4, Ch 2, p. 52]
6.2 The methodology proposed in this chapter has as its basis precisely tis notion, that the
genesis of discourse and the onset of grammaticization lie partly in the manipulation of
lexical items in relation to context. [TLI4, Ch 4, p. 242]
6.3 Trata-se de um conjunto de 156 resumos, representativo de uma área científica em
crescente projeção entre alunos, professores e pesquisadores que vem ampliando seu es-
paço, pela estocagem informatizada do conhecimento que produz e, conseqüentemente,
seu público leitor [TLP1, Introd, p. 4]
6.4 Em função dos novos gêneros, decorrentes da ampla variedade de atividades comunica-
tivas, os conceitos de retórica e de gênero vêm sofrendo reformulações para explicar essa

Proceedings XI International Bakhtin Conference 85


realidade. [TLP1, Cap. 1, p. 10]
6.5 As implicações didático-pedagógicas apontam para a necessidade de se trabalhar mais
a flexibilidade dos recursos retóricos visando à realização dos diversos propósitos comuni-
cativos dos ofícios, e não as formas fixas que levam ao “engessamento” do gênero. (TLP 4,
Cap. 2, p. 21)
6.6 Obviamente, outras tendências da análise do discurso frutificaram com bases teóricas
diversas, ... (TLP 4, Cap. 2, p. 25)

Nos exemplos, percebe-se que através das metáforas, o produtor do texto acadêmico transfere cons-
ciente ou inconscientemente um conceito apreendido por meio de experiência de vida para outra esfera
ou área de conhecimento. Assim, ao afirmar que os conceitos da retórica sofrem reformulações, que os
ofícios não são formas engessadas de gênero textual, que as tendências frutificam, que uma determinada
década testemunhou um movimento e que o discurso tem uma gênese revelam o processo de interação
entre o termo metafórico e as demais palavras presentes no enunciado. Kuhn (1993) reconhece o papel
da metáfora na ciência como sendo um processo interativo de criação, no qual o produtor faz uma jus-
taposição ou dos termos ou de exemplos concretos a uma rede de similaridades que ajuda a determinar
a maneira na qual a língua vincula-se ao mundo. Em outras palavras, a metáfora representa um papel
essencial ao estabelecer ligações entre linguagem científica e o mundo, e dessa forma, constitui-se em
uma estratégia argumentativa para convencer o interlocutor através de representações de conceitos e
experiências do mundo.
Uma análise dos dados deixa claro que as evidências lingüísticas usadas pelos produtores-pesquisa-
dores têm duas funções principais no texto: a de relatar e explicar um outro discurso e a de avaliar ou
apreciar o conteúdo temático investigado revelando a natureza do discurso acadêmico.
No caso específico das estratégias interacionais apresentadas neste trabalho, percebe-se que elas têm
a função de avaliar ou apreciar e revelam que o diálogo e a interação entre produtor e receptor podem se
dar em diferentes formas e graus que representam aspectos menos interativos ao mais interativos para
realizar o componente interpessoal. Nas passagens em que os produtores usam explicitamente marcas de
referências pessoais, através dos pronomes e verbos de 1a pessoa e 2a. pessoa, reconhece-se a presença
de ambos o produtor e o receptor no texto. Para Smith Jr. (1985:243), é necessário fazer distinção entre
os usos de pronomes de 1a. pessoa do singular e plural (I/we ou eu/nós). Para o autor, quando “we”
é usado em sentido ‘imperial’ para criar autoridade por parte do escritor, a técnica de distanciamento
está sendo usada para produzir o efeito de maior formalidade na interação escritor-leitor. Quando, por
outro lado, “we” é usado no sentido ‘inclusivo’ no qual o leitor é envolvido, a forma pronominal pode ser
considerada mais interativa do que a forma do singular “I/eu”, uma vez que o leitor se percebe fazendo
parte do diálogo estabelecido no texto.
No entanto, a forma mais interativa é a inclusão da 2a. pessoa junto com a 1a e 3a. pessoas, pois a
2 . pessoa é considerada mais interativa desde que este uso sinaliza a presença explícita do leitor no
a

texto. O uso do “you/você” pressupõe o uso do I, estabelecendo uma relação de alteridade, de diálogo
(Bakhtin, 1992). Nos dados analisados, predominou o uso do “we”, ora no sentido imperial ora no sentido
inclusivo. Apenas duas teses escritas em inglês, o escritor marcou sua presença através do pronome
“I”, especialmente na introdução, nos capítulos teóricos e discussão, estabelecendo a interação com o
interlocutor.
A interação é também percebida pelo uso dos modificadores avaliativos (adjetivos e advérbios), mo-
dalizações (verbos e advérbios modais e frases impessoais) e metáforas lingüísticas, os quais, mesmo
não marcando a presença explicita do produtor pela forma do pronome pessoal de 1a. pessoa do singular
e plural, seu julgamento e posicionamento no texto é revelado através das formas lingüísticas indicando
conceitos, experiências, valor, status e relevância das proposições apresentadas nas teses.
Vale a pena ressaltar que a voz do verbo também realiza o componente interpessoal. A voz passiva
é usada para focalizar no objeto da atividade de pesquisa e apagar o seu agente. Isto é explicado pela
busca da objetividade do texto, que o torna menos interativo, no qual o que é importante é “o que foi
feito”, não “quem fez o quê”. Com relação a este aspecto, houve uma predominância pela voz ativa nos
capítulos teóricos e de discussão e no capítulo de metodologia nas duas línguas em foco, o qual tem a
função de descrever os procedimentos de realização da pesquisa.
4. Considerações finais
Tendo em vista os resultados apresentados, verifiquei que através das marcas lingüísticas, pode-se
identificar várias estratégias interacionais usadas pelos escritores nas teses analisadas nas duas línguas
– inglês e português. Essas marcas léxico-gramaticais que facilitam a interação escritor/leitor no texto
acadêmico variam em um continuum de estratégias mais interativas às menos interativas. Como mais
interativas, destaco aquelas que envolvem a presença do leitor (pronomes de 2a pessoa e imperativos)
e a presença do escritor (pronomes de 1a pessoa do singular e plural, modificadores avaliativos, modali-
zações e dêiticos) e menos interativos, o uso de construções na voz passiva, que indicam o apagamento
da presença do escritor no texto. Ficou também evidente que a maioria dessas estratégias são usadas
pelo produtor para apresentar sua avaliação e apreciação do conteúdo temático das teses, o que revela
um certo grau de subjetividade no texto acadêmico.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 86


Uma reflexão acerca da variedade de estratégias que contribuem para estabelecer a interação nas
teses de doutorado revela a importância das escolhas lingüísticas que o produtor faz para mostrar com-
prometimento ou distanciamento das informações no seu texto. Parece, portanto, válido concluir que as
escolhas léxico-gramaticais que realizam a interatividade estão diretamente relacionadas com o gênero e
a função global do texto, isto é, textos acadêmicos cujos objetivos são persuadir ou instruir seus leitores
tendem a ser mais interativos do que textos que objetivam apenas narrar ou informar. Cabe-nos, então,
professores e estudiosos da linguagem a tarefa de conscientizar os estudantes das várias maneiras de se
construir significados e estabelecer a interação no texto acadêmico, como também conscientizá-los que
as escolhas lingüísticas são marcas importantes para o produtor sinalizar explicitamente sua presença no
texto e expressar envolvimento/distanciamento do leitor. Dessa forma, os estudantes podem perceber
a natureza e função do discurso científico/acadêmico, cujo conhecimento é elaborado pelo indivíduo e
cuja interação entre escritor e leitor facilita a compreensão das idéias no texto.
5. Referências Bibliográficas
ARAÚJO, A. D. Interaction in Written Discourse. Autonomy in Language Learning. Vilson Leffa (ed.). Porto Alegre: Ed.
da UFRGS. 1983 p. 196-203.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. [1953], 1992.
BARROS, D. L. P. Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do discurso. Diálogos com Bakhtin. FARACO, C.A &
TEZZA, C. & CASTRO, G. de (orgs.). Curitiba: Ed. da UFPR, 2001, 21-42.
BARROS, D. L. P. Dialogismo, polifonia e enunciação. Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade em torno de Bakhtin.
BARROS, D. L. P & FIORIN, J. L. (0rgs). São Paulo: EDUSP, 1999, 1-9.
BUNTON, D. The use of higher level metatext in Ph.D theses. English for Specific Purposes. 18 Pergamon Press, 41-
56, 1999.
BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos – por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo:
EDUC, 1999, p. 137-216.
CARDOSO, S. H. B. Discurso e Ensino. Belo Horizonte: Autêntica. 1999.
CORACINI, M. J. Um fazer persuasivo – o discurso subjetivo da ciência. Campinas, S. P. : Pontes/EDUC, 1991.
GRABE, W. & KAPLAN, R. B. Theory and Practice of Writing. London & New York: Longman, 1996.
HALLIDAY, M. Introduction to functional grammar. London: Edward Arnold. 1985.
HYLAND, K. (ed.) Writing: texts, processes and practices. London: Longman. 1999.
HOEY, M. Textual interaction – an introduction to written discourse analysis. London/New York: Routledge, 2001.
HUNSTON, S. Evaluation in Experimental Research Articles. Ph.D Thesis. University of Birmingham, 1989.
HUNSTON, S. Evaluation and organization in a sample of written academic discourse. Advances in Written Text Analy-
sis. Malcolm Coulthard (ed.) London: Routledge. 1994.
JOHNS, A. M. Text, Role and Context: Developing Academic Literacies. Cambridge:CUP, 1997.
KRESS, G. Genre as Social Process. The Powers of Literacy: a genre approach to teaching writing. Bill Cope & Mary
Kalantzis (eds.). London: University of Pittsburg Press. 1993, p. 22-37.
KOCH, I. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez Editora. 2002.
KUHN, T. S. Metaphor in science. Metaphor and thought. A Ortony (ed.) 2.ed. Cambridge:CUP, 1993, 202-251.
LAKOFF, G & JOHNSON, M. Metaphors we live by. London: The University of Chicago Press, 1980.
LYSARDO-DIAS, D. O saber-fazer comunicativo. Teorias e práticas discursivas – estudo em Análise do Discurso. Ida
L. Machado, A. R. Cruz & Dylia Lysardo –Dias (eds.) Belo Horizonte: UFMG/Carol Borges, 1998, p. 17-24.
SMITH JR., E. L. Functional types of scientific prose. Systemic Perspectives on Discourse. Vol. 2 James D. Benson &
William S. Greaves (eds.) New Jersey: ABLEX Publishing Corporation. 1985. p. 241-257.
SWALES, J. Genre Analysis – English in academic research settings. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
THOMPSON, G. Interaction in academic writing: learning to argue with the reader. Applied Linguistics, Vol. 22/1, 58-
78, 2001.
WIDDOWSON, H. G. Explorations in applied linguistics 2. Oxford:Oxford University Press. 1984.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 87


Palavras-chave: dialogismo – interação - texto acadêmico - estratégias
interacionais
Key words: dialogism – interaction - academic text – interpersonal strate-
gies
Biografia resumida: ANTONIA DILAMAR ARAÚJO (dilamar@fortalnet.com.br)
é atualmente Professora Titular de Lingüística Aplicada na Universidade Estadual
do Ceará. Doutora em Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina (1996).
Co-autora de Inglês Instrumental – estratégias de leitura (1996), contribuiu com
capítulos nos livros Parâmetros de Textualização (1997) e Gêneros textuais e prá-
ticas discursivas (2002), organizados por José Luiz Meurer e Désirée Motta-Roth.,
Aspectos de Lingüística Aplicada, organizado por Mailce Fortkamp e Lêda Tomitch
(2000), além de artigos em periódicos nacionais e internacionais. Sua pesquisa
envolve Análise de Gênero, Discurso Acadêmico, Leitura, Novas Tecnologias e En-
sino de língua inglesa.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 88


Vozes em perguntas de professores

Mário Cândido de Athayde Júnior

Unioeste/Campus de Cascavel

Endereço Residencial: Av. Água Verde, 2.469 – Ap. 502 – Vila Izabel

80.240-070 – Curitiba – Paraná - Brasil

“Time present and time past


Are both perhaps present in time future,
And time future contained in time past.
If all time is eternally present
All time is unredeemable.
What might have been is an abstraction
Remaining a perpetual possibility
Only in a world of speculation.
What might have been and what has been
Point to one end, which is always present.
Footfalls echo in the memory…”

T.S. Elliot, Burnt Norton (Collected Poems, 1936)

RESUMO
A partir de conceitos e procedimentos da corrente francesa da Análise do Discurso, o artigo apresenta
resultados preliminares de pesquisa que busca identificar as fontes do dizer dos sujeitos-professores, em
momentos em que estes estão envolvidos com o processo de “discursivização” de sua prática docente:
durante cursos de formação-em-serviço. As análises das perguntas dos professores cursistas levam em
consideração a natureza polifônica dos enunciados que, como tal, “não podem deixar de tocar os milhares
de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência sócio-ideológica em torno de um dado objeto de
enunciação” (Bakthin, 1975), no caso, as considerações em torno do “ensinar língua portuguesa”.
ABSTRACT
With concepts and procedures from the French Discourse Analysis, this article shows preliminary re-
sults from a research which aims to identify the sources of the teachers-as-subjects´ voices, in moments
when they are involved in the discursive process of their educational practice: during formation-in-service
courses. By the analyses of the professors’ questions, it is taken in consideration the polyphonic nature
of the utterance, which “cannot fail to brush up against thousands of living dialogic threads, woven by
socio-ideological consciousness around the given object of an utterance” (Bakthin), in this case, the
considerations about “teaching Portuguese language”.
INTRODUÇÃO
CORTE/CENA 1:
Ano 2000.
Região Oeste do Paraná.
Curso de formação-em-serviço para professores de língua portuguesa.
A pedido do grupo de 30 participantes, o docente organiza os conteúdos de forma a contemplar
o trabalho com textos na sala de aula. Para encaminhar as discussões, são tratadas questões relativas a

Proceedings XI International Bakhtin Conference 89


diferentes (e divergentes) concepções de linguagem, conceitos e tipologias de texto, práticas de leitura,
produção e reestruturação textual.
Em determinado momento, a Professora M.A., 15 anos de magistério, formada pelo antigo Curso
Normal, e atuando em sala de 4ª série do ensino fundamental, na zona rural, pergunta:
- Mas, professor, como eu trabalho a gramática no texto?

CORTE/CENA 2:
Mesmo curso.
Outro momento de discussão.
A Professora G.P., 7 anos de atuação no ensino fundamental na zona urbana, formada em Licenciatura
Plena em Letras há 6 anos, questiona:
- Agora, com os PCNs, todo mundo tem que dizer que trabalha com texto. Eu já trabalho
faz tempo! Mas, acho que se perdeu muita qualidade no ensino da Língua Portuguesa. Hoje,
os alunos estão piores do que quando comecei! Por que eles continuam a falar e a escrever
errado?
(... )1

Os (re)cortes poderiam se suceder em inúmeros exemplos retirados do cotidiano de cursos, encon-


tros e momentos de estudo de professores de língua materna, atuantes em salas de aula de diferentes
níveis e graus de ensino.
Do muito que os momentos de formação – também chamados “cursos de atualização” – revelam,
interessa-me, para efeito desta análise, o movimento de circulação e emergência de discursos que se
constituem em fragmentos de um processo mais amplo de constituição (discursiva) de um objeto – no
caso analisado – um objeto para o ensino de língua materna.
A partir de perguntas formuladas por professores do interior do Estado do Paraná (Região Oeste), es-
pera-se poder investigar quais as fontes constitutivas das vozes que emergem quando o professor
toma a palavra e pergunta. Trata-se de tentar identificar as fontes do dizer dos sujeitos-professores,
historicamente envolvidos no processo de “discursivização” de sua prática docente, em momentos em
que exatamente esta prática é tematizada: durante cursos de formação-em-serviço.
Ressalta-se que não se coloca o objetivo de dar respostas de caráter teórico ou metodológico para
supostas dúvidas de “encaminhamento escolar” dos professores no ensino de língua materna. Pretende-
se focalizar, especificamente, o discurso dos professores e nele tentar encontrar os ecos de outros
discursos, a memória, as contra-palavras, os atravessamentos que o compõem. E, neste movimento,
tentar averiguar os efeitos de sentido que se conservam e os que se modificam, no diálogo entre o Um
(discurso) e o Outro (discurso), na tensão da emergência da memória no acontecimento.
A opção por tomar especificamente perguntas de sujeitos-professores como indício do movi-
mento interdiscursivo em que se dá a constituição de um objeto deve-se a algumas razões, das quais
destaco:
- o fato de minha trajetória acadêmica e profissional estar determinantemente vinculada ao “universo
de discurso” em torno do “ensinar língua materna”, fazendo-me, portanto, um sujeito implicado/afetado
por este processo; e, nesta condição, por considerar que do “lugar de analista do discurso” pode-se
estar ao mesmo tempo implicado e distante para trazer contribuições pertinentes à compreensão deste
movimento, pois acredito que uma análise discursiva sobre este processo pode ajudar a “iluminar” alguns
aspectos do movimento de construção dos discursos em circulação sobre o ensino de língua materna,
nas condições objetivas e históricas em que se dá, sendo os professores o que são, no Brasil que é o
Brasil que é...;
- o lugar central ocupado pelo sujeito-professor neste processo discursivo, visto que múltiplas vozes,
direta ou indiretamente, acabam sendo a ele destinadas, ou a ele chegam por diferentes meios. Ao tomar
a sua palavra, num momento em que está refletindo e verbalizando sua prática (sem a consideração
maniqueísta de imputá-lo a “missão de salvar o ensino” ou a pecha de “maior culpado pelo fracasso
escolar”) considero a hipótese de que as interpretações dos professores – de uma região específica,
com uma história específica, efetivamente atuantes em salas de aula dos níveis fundamental e médio,
em zona urbana e rural – sejam elas quais forem, não são “deturpações”, “má-leitura” ou, ainda, “falso
entendimento” de pressupostos teóricos de alguma Ciência, de indicações metodológicas e/ou determi-
nações de documentos oficiais; mas sim, a interpretação produzida por sujeitos situados (tanto a pro-
dução, quanto os sujeitos) no tempo e no espaço, e que guarda a memória de outros discursos – que se
confirmam, se contrapõem, são re-textualizados e re-significados. Diferentes vozes, diferentes sujeitos
que, na sua singularidade, apropriam-se de um discurso “x” de forma diferente da dos outros sujeitos;
que o re-significam. Assim, suponho ser possível uma análise que, tomando perguntas dos próprios
sujeitos-professores, nas interações e espaços de que participam, os mostre como sujeitos que, também,

1 Exemplos obtidos a partir de reconstituição de curso de formação para professores do ensino fundamental de municípios da região oeste do Paraná,
ministrado pelo autor e promovido pela Associação Educacional do Oeste do Paraná - ASSOESTE, em março de 2.000, na cidade de Cascavel/Pr.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 90


produzem significado(s), modificam as vozes da academia, das propostas oficias, do docente do curso
de formação...;
- enfim, por considerar que a análise da configuração do discurso desses sujeitos pode ser relevante
por articular aspectos ideológicos e discursivos importantes para a compreensão das alterações ocorridas
nas diferentes instâncias de circulação dos discursos em torno do objeto “ensinar língua materna”.
Assim é que será necessário buscar na Análise do Discurso (AD), dentre outros, os conceitos de Sujei-
to, Formação Discursiva, Interdiscurso (Memória), Heterogeneidade, Condições de Produção e
Jogo de Imagens, que aqui retomo – ainda que sucintamente – junto a algumas considerações em torno
do movimento discursivo que toma o objeto científico “língua” e o desloca como objeto de ensino,
questões que, a meu ver, serão relevantes para a análise de aspectos relativos ao tema proposto.
Este artigo limita-se a apresentar algumas possibilidades iniciais de análise para a questão acima
delineada.
MOBILIZANDO CONCEITOS
Tentar captar, a partir de fragmentos, o movimento dos processos discursivos e tentar estabelecer a
dominância de um ou outro efeito de sentido é a pretensão da proposta ora explicitada. E isto implica em
assumir o desafio de lidar com um objeto (o discurso) cuja natureza é múltipla, fugaz; cujos sentidos são
estabelecidos entre sujeitos que dizem e compreendem a partir da dinâmica de interação que estabelecem
na ordem social em que vivem – e que podem ocupar posições diferentes, e mesmo polêmicas, dentro
de formações discursivas distintas. Que jogam com a paráfrase e a polissemia2, enquanto processos de
constituição dos discursos que – em constante tensão – se limitam reciprocamente (cf. Orlandi, 1987:
135 e ss.). E, para tal, faz-se necessário tomar a teoria do discurso como “uma teoria da determinação
histórica dos processos semânticos” – conforme a proposição de Pêcheux (1975) – e nela mobilizar con-
ceitos que contemplem a natureza do material discursivo a ser analisado3.
Para a teoria do discurso, a questão da constituição do sentido junta-se à questão da constituição do
sujeito através da interpelação: assim como a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos, com o mesmo
efeito ideológico elementar com que dá como evidente a existência deste sujeito como “sempre-já-sujei-
to”, fornece também evidências para que uma palavra “designe uma coisa” ou “possua um significado”
(donde decorre a ilusão da transparência da linguagem). Este efeito de ocultamento mascara o caráter
material do sentido das palavras e dos enunciados, qual seja, que as palavras, expressões, proposições,
etc., não têm um “sentido próprio”, “literal”, mas mudam de sentido segundo as posições sustentadas por
aqueles que as empregam; adquirem seu sentido em referência a essas posições, ou seja, às formações
ideológicas nas quais essas posições se inserem. Daí o conceito de formação discursiva como
...aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa
conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve
ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de uma exposição, de um programa, etc.)
(Pêcheux, 1975: 160).

Uma de minhas hipóteses iniciais é a de que, nos cursos de formação-em-serviço, ecoam múltiplas
vozes, como um saber discursivo que torna possível todo dizer e que aí retorna, sob a forma do pré-
construído, do já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. Ou seja, estaria
aí o interdiscurso (Pêcheux, 1975), disponibilizando dizeres que, por sua vez, vão afetar o modo como
o sujeito – através de seus dizeres – significa, em uma situação dada.
Durante os debates do Colóquio de Paris, em 1983 (cf. Achard, 1999), Pêcheux destaca que,
no que concerne à estruturação da materialidade lingüística complexa, estendida em uma dialética da
repetição e da regularização, a memória discursiva seria aquilo que
face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer
dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio
legível (op.cit., p. 52),

aproximando-a, portanto, ao conceito de interdiscurso da AD. Ainda para Pêcheux, a questão estaria
em saber onde residem esses implícitos, que estão “ausentes por sua presença” na leitura da seqüência:
estariam eles disponíveis na memória discursiva como em um fundo de gaveta, um registro do oculto?
Lembra ele que, para Achard, sob uma forma estável e sedimentada haveria, sob a repetição, a formação
de um efeito de série pelo qual uma “regularização” se iniciaria, e seria nessa própria regularização que
residiriam os implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase. Acontece que
(alerta Achard), essa regularização do legível é sempre suscetível de ruir sob o peso do acontecimento
discursivo novo, que vem perturbar a memória. De tal sorte que Pêcheux propõe haver sempre um “jogo
de força” na memória, sob o choque do acontecimento: uma força que visa a regularização (estabilização
parafrástica), mas também uma força de “desregularização”, que perturba a rede dos implícitos.
Assim, aponto aqui a hipótese (a ser melhor definida e estudada ao longo da pesquisa) de que os

2 Aqui referidas enquanto movimentos que permitem, respectivamente, o “fechamento” e a “abertura” de novos efeitos de sentido.
3 Dada a interdependência com que, no campo teórico da AD, estão relacionados os conceitos que preliminarmente relaciono como pertinentes à questão,
a seguir apresento-os a partir de uma tentativa de articulação entre eles, ao invés de conceituá-los isoladamente.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 91


enunciados que permitem a leitura não são um conjunto fechado e estável, mas estão numa espécie de
“baú da memória” e são mobilizados de formas distintas por leitores distintos. Suspeito que, na seqüência
linear dos textos/perguntas que tomarei para análise, haverá algum elemento (nem sempre controlá-
vel), que poderá dar início à busca dos enunciados da memória, conservando e/ou rompendo efeitos de
sentido.
Ainda, como a explicitação das condições de produção em que ocorre determinado ato de linguagem
constitui-se como fundamental – uma vez que ajudam a explicar a ocorrência de determinados discursos (e
não outros) e participam, de forma decisiva, da explicitação dos seus sentidos – para melhor caracterizar
as condições de produção dos enunciados que pretendo tomar como objeto para a presente proposta de
pesquisa, será necessário compreender não só as características da situação imediata de enunciação (os
cursos de formação em que emergem as perguntas), como também os fatores sócio-históricos e ideo-
lógicos em que esta se inscreve e que constituem o seu contexto (cf. Orlandi, 1987: 12 e 108). Além
disso, como os efeitos de sentido produzidos dependem também dos lugares que os sujeitos vão ocupar
na cena enunciativa (neste caso, docente do curso – de um lado – e os professores-cursistas – de outro),
tomados não como elementos empíricos, mas como formações imaginárias (cf. Pêcheux, 1969: 16 e ss.)
– e que estes lugares são representados nos processos discursivos e podem ser identificados, fará parte
da análise levar em conta que, a cada instante, os sujeitos do discurso estarão se representando pelo
jogo de imagens, “série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada
um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” e da imagem
que fazem do referente ou objeto imaginado de que tratam (Pêcheux, 1969:82), bem como do que A
(locutor) pretende de B (interlocutor) falando da forma como fala (Osakabe, 1979:49).
A questão da complexidade enunciativa - com que se depara qualquer abordagem lingüística que as-
suma a polifonia como constitutiva do discurso - merece também um tratamento privilegiado no terreno
da Análise do Discurso.
Como ressalta Maingueneau (1987), não se pode conceber uma formação discursiva como um bloco
compacto e fechado, mas como uma realidade “heterogênea por si mesma”:
O fechamento de uma formação discursiva é fundamentalmente instável, não se constituindo
em um limite que, por ser traçado de modo definitivo, separa um interior e um exterior, mas
inscrevendo-se entre diversas formações discursivas, como uma fronteira que se desloca
em função dos embates da luta ideológica.[grifo no original] (op.cit., p. 112)

Trata-se aqui de marcar a relação com o interdiscurso como definidora da chamada heterogeneidade
constitutiva do discurso. Assim, a formação discursiva é o lugar de um trabalho no interdiscurso, um
processo de reconfiguração incessante, pelo qual uma formação discursiva incorpora elementos pré-cons-
truídos, produzidos fora dela, estabelecendo com eles, a partir de seus próprios elementos, um processo
que pode incluir repetição, redefinição, redimensionamento e, também, eventualmente, apagamento de
determinados elementos. Nos termos de Maingueneau, um discurso não nasce do retorno às próprias
coisas ou ao bom senso, mas de um trabalho sobre outros discursos.
Assim, quando uma formação discursiva faz penetrar seu Outro (i.e., o discurso-outro, da outra
formação discursiva) em seu próprio interior, ela está como que “traduzindo” o enunciado deste Outro,
interpretando-o através de suas próprias categorias. Há, aí, um processo de polêmica entre formações dis-
cursivas, no qual cada uma só pode relacionar-se com o Outro através do simulacro que dele constrói:
Cada uma das formações discursivas do espaço discursivo só pode traduzir como ‘negativas’,
inaceitáveis, as unidades de sentido construídas por seu Outro, pois é através desta rejeição
que cada uma define sua identidade (op. cit., p.122)

É necessário destacar ainda que esta natureza heterogênea é ignorada pelo sujeito. Ela está ligada à
ilusão subjetiva da fala, que interpela os indivíduos em sujeitos-falantes, fontes do seu dizer.
As considerações acima em torno da heterogeneidade constitutiva do discurso implicam em que o
objeto do analista não é uma formação discursiva única, exclusiva e fechada, mas o interdiscurso, a
interação dialógica entre formações discursivas. Não se pode distinguir as formações discursivas de um
lado e suas relações por outro, pois
... toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita em uma relação
essencial com uma outra, aquela do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de
que ela deriva define sua identidade. (op. cit., p.120)

Outro nível de manifestação da natureza heterogênea do discurso é aquele da heterogeneidade


mostrada, definida por Authier-Revuz (1990) como “formas lingüísticas de representação de diferentes
modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso.” (p. 26)
Diferentemente da heterogeneidade constitutiva, esta faz aparecer o Outro inscrito na cadeia discur-
siva (segundo modalidades diferentes, com marcas explícitas de ancoragem ou não).
Para a autora, circunscrever um ponto de heterogeneidade é opô-lo, por diferença do resto da cadeia do
discurso, à homogeneidade ou à unicidade da língua, do discurso, do sentido, etc. O fragmento marcado
remete a um exterior explicitamente especificado ou dado a especificar, determina automaticamente pela
diferença um interior, aquele do discurso, ou seja, a designação de um exterior específico é, através de

Proceedings XI International Bakhtin Conference 92


cada marca de distância, uma operação de constituição de identidade para o discurso, de modo que em
relação a esta identidade, pode-se dizer (a despeito do jogo de palavras) que é o exterior que define o
interior, de dentro do interior.
O discurso nasce, assim, como fruto de uma tensão permanente: em face de uma heterogeneidade
radical, desconhecida, não localizável e não representável (aquela do Outro do discurso), opõe-se a
representação da enunciação no discurso (através das diferenciações, disjunções, fronteiras interior/
exterior de alguma forma marcadas) pela qual o um se delimita na pluralidade dos outros.
De imediato, parece-me, a heterogeneidade constitutiva da linguagem pode ser uma das formas de
explicar o fato da construção de um “discurso novo” para o ensino de língua materna se dar no contraponto
ao que se pode chamar “o discurso tradicional” do ensino de língua. O novo não deixa de dialogar com
a tradição. Até porque, é nela que vai inserir-se e, com ela, travar um embate pela leitura/significação
de termos, conceitos, valores. Assim, enunciados do discurso da tradição vão compor a formação dis-
cursiva do novo, ora sendo negados, ora re-significados. De tal sorte que as mais diversas e, por vezes,
divergentes vozes são ouvidas nos diferentes momentos de construção da mudança.
Outra possibilidade a ser estudada é a de levar em conta Bakthin (1975:86-9), para quem o objeto
do discurso de um locutor, seja ele qual for, não é objeto de discurso pela primeira vez neste enunciado,
e este locutor não é o primeiro a falar dele: o objeto já foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de
diversas maneiras. Assim, o discurso deste locutor não pode deixar de relacionar-se dialogicamente com
as opiniões de interlocutores imediatos, com as visões de mundo, as tendências ou teorias já lançadas
sobre este objeto de discurso. E que (Bakthin, 1977), nesta relação, os enunciados, quando re-ditos, o
são em novas condições, o que os conduz a novas enunciações e novos efeitos de sentido, sendo, por-
tanto, as enunciações únicas e irrepetíveis.
Língua: de objeto teórico revisto a objeto de ensino renovado
Este esboço de análise pressupõe que se pode identificar, especialmente ao longo das duas últimas
décadas, um “discurso novo” em relação ao ensino de língua portuguesa no Brasil. Grosso modo, a cons-
trução de novos paradigmas para o ensino de língua é, em certo sentido, decorrência dos estudos que, no
interior da ciência lingüística, reviram o corte epistemológico inaugural de Saussure (1974), que produziu
um objeto teórico (‘langue’) higienizado pela exclusão do sujeito e de suas marcas espaço-temporais, bem
como das marcas do trabalho discursivo desse sujeito: os processos de significação e os deslizamentos
de sentido. Penso, aqui, no que significaram – e nos desdobramentos que provocaram – os trabalhos de
Benveniste (1966 e 1970), com a proposta de inclusão, no objeto de estudo da lingüística, do aparelho
formal da enunciação como marca de subjetividade na linguagem; Jakobson (1960) com o destaque para
as funções da linguagem, aprofundando tema enfrentado por Bühler, a partir da relação com as teorias
da comunicação; Austin (1965) e Searle (1969), demonstrando as ações que se fazem com a linguagem,
na teoria dos atos de fala; Ducrot (1972), com sucessivas formulações para uma teoria lingüística da
polifonia; Bakhtin (1977) e seus trabalhos fundantes em torno do princípio dialógico, e Pêcheux (1975),
com a construção de uma teoria do discurso – dentre outros – que, de lugares distintos, cada um a seu
modo, contribuíram para romper os limites sistêmicos propostos por Saussure, instalando os estudos da
linguagem como fenômeno fundamentalmente interacional e, portanto, histórico.
Assim, a partir de autores e de teorias lingüísticas relativamente recentes – vozes autorizadas da
Academia – começam a ser propostos novos encaminhamentos para o ensino de língua materna nos
níveis fundamental e médio, num discurso (aqui cunhado de “novo”) que vai se constituir no contraponto
ao discurso da tradição do ensino de língua materna centrado nos estudos metalingüísticos da gramática
normativa do padrão dito culto – e que remonta a Comenius e sua Didacta Magna, de 1692, passando
pelo ensino jesuítico do Brasil de cerca de 500 anos, chegando aos nossos dias com as campanhas e
projetos de lei para preservar o “inculto e belo idioma pátrio” e nos espaços da mídia impressa e televi-
siva (afinal, “cultural”) dedicada aos “guardiões do idioma”.
Mesmo não sendo a única corrente entre as propostas renovadoras no que diz respeito a uma concep-
ção de linguagem e as decorrências metodológicas de seu ensino, podem ser citados como significativos
neste processo os autores que, conforme Britto (1997:153), compõem uma “escola da Unicamp”, que
incluiria Franchi (1977, 1987), Osakabe (1978, 1979), Ilari (1985), Pécora (1980), Geraldi (1984, 1991,
1996), Possenti (1984, 1988, 1996), Silva et alii (1986) e Coudry (1988). Suponho ser plausível afirmar
que a abordagem das relações entre língua-objeto científico e língua-objeto de ensino decorrente dos
trabalhos destes autores pode ser resumida (porque guarda estreita relação) a duas suspeições levan-
tadas por Geraldi (1991: 227). São elas:
1. imaginar-se que a aprendizagem da língua pode se dar pela aprendizagem dos resultados
do trabalho científico e 2. que esta aprendizagem é “apropriação” de um sistema fechado,
porque considero a língua uma “sistematização aberta”, o que demandaria, na construção
do objeto da lingüística, tomar este aspecto como pertinente. (op. cit., p. 227).

Por outro lado, em âmbito nacional e em diferentes estados, surgem propostas pedagógicas que vão
assumindo (e re-significando) esse “discurso novo” – as vozes estatais/oficiais5. Por sua vez, cursos de
formação inicial (magistério/licenciaturas) – em certo sentido, no entremeio destas vozes – reproduzem e
“repassam” esses discursos. E, como instâncias “tomadoras da palavra”, contribuem para o fechamento
e abertura de sentidos.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 93


E, neste sentido, ao analisar a constituição das vozes presentes nas perguntas de professores, con-
sidero necessário levar em conta, também, algumas das implicações decorrentes deste movimento que
toma um objeto teórico e o transforma em objeto de ensino.
No tópico a seguir, faço um esboço preliminar de apresentação de alguns exemplos retirados de
situações já vividas, a partir de uma análise da emergência de perguntas de professores em curso de
formação, procurando levar em conta diferentes implicações que condicionam suas ocorrências.
O ACONTECIMENTO “CURSO DE FORMAÇÃO-EM-SERVIÇO” NO OESTE
PARANAENSE – UMA ANÁLISE PRELIMINAR
i) sujeito-professor, em curso de formação:
Na rede institucional de circulação de discursos instalada no campo educacional, as agências for-
madoras, tais como as universidades, órgãos públicos responsáveis pela educação e outras entidades
– dentre suas estratégias de divulgação, doutrinação e/ou convencimento – valem-se de cursos dirigi-
dos a professores de sala de aula para veicular diferentes teorias, projetos, programas e propostas que
preconizam a implementação de mudanças nas práticas do ensinar.
Para Geraldi (1991: XX), o fato de o mesmo sistema escolar, que dá o professor como formado, pro-
mover constantemente cursos “de treinamento, reciclagem ou de atualização” funciona afetando a auto-
imagem do professor, nele reforçando a inculcação da ideologia da incompetência: dar o professor por
formado poderia significar que está pronto para exercer seu trabalho, com autonomia e competência. A
um sistema que reproduz também pela inculcação da ideologia da incompetência é mais importante que
seus próprios agentes se tenham por incompetentes para melhor cumprirem seu papel de inculcação da
ideologia da incompetência. Assim, os chamados “cursos de atualização” o fazem ver, a todo instante, o
quanto lhe falta para constituir-se como profissional competente.
Além disso, nestes “espaços de formação”, há um imbricamento de dois tipos de discursos: o discurso
ensino-aprendizagem e o discurso de sala de aula (cf. Ehlich, 1986). Entre eles, há pontos em comum:
a) entre os participantes, há uma distribuição desigual de conhecimentos e, portanto, uma assimetria
no que tange ao conteúdo ou tópico do diálogo; b) há o reconhecimento desta diferença e a vontade de
superá-la, isto é, entra-se no processo discursivo com a pretensão de superar as diferenças; c) estas
condições organizam as ações lingüísticas praticadas no diálogo.
O discurso ocorrido em uma típica sala de aula – que se pretende um discurso de ensino-aprendiza-
gem – na verdade, distribui de forma totalmente diferenciada os papéis dos participantes e as funções
dos atos praticados. De tal sorte que, por exemplo, pergunta não “quem quer saber”, mas “quem já
sabe” (o professor).
Analisando o acontecimento “curso de formação”, a partir de perguntas feitas não pelo docente, mas
pelos professores-cursistas, suponho que, assim como nem sempre o aluno entra no processo dialógico
para superar a diferença de conhecimentos, nem sempre as perguntas dos professores-cursistas visam
a aproximá-los dos conhecimentos do docente. Esta aproximação vai se dar muito mais tendo em vista
a obtenção de alguma “receita” metodológica que atenda a necessidades práticas imediatas; e as per-
guntas vão exercer funções as mais diversas, desde questionar aspectos específicos do conteúdo-objeto
do curso, servir para a manutenção de uma imagem pretendida, ou ainda, de indício de que seu locutor
é um sujeito em constituição, na medida em que interage nos movimentos discursivos que aciona ao
perguntar (cf. análises nos tópicos a seguir).
ii)sujeito-professor, em curso de formação-em-serviço, promovido pela ASSOESTE, no oeste
paranaense:
Considerando a abrangência geográfica da presente proposta, é necessário contextualizar que, no caso
da região oeste do Estado do Paraná, o que aqui se está denominando de “discurso novo” é historicamente
marcado pela atuação de uma entidade voltada para o acompanhamento da educação dos 51 municípios
da região – a ASSOESTE – que, no início da década de 80, desencadeou um processo de discussão em
torno de novos postulados para o ensino. Como marcos desta atuação, tem-se, no início da década de
80, a assessoria de professores da UNIJUÍ/FIDENE, que desenvolveu um trabalho de resgate da história
da população da região e, a partir de 1984, o desencadeamento de cursos de atualização de professores
na área de língua portuguesa, em conjunto com um grupo de professores do IEL/UNICAMP, que resultou
na publicação do volume “O texto na sala de aula”, coletânea de textos organizada por Geraldi (1984).
Em torno desta obra (e de seus autores) vai iniciar-se um movimento de busca de novas perspectivas
de ensino, que movimentam não só o oeste do Paraná, mas diferentes regiões do país.
E este processo de formação, promovido por uma entidade não-estatal e calcado na continuidade,
instala-se na contra-mão do discurso da “incompetência” do professor de sala de aula: propõe a for-
mação continuada, com múltiplas formas: módulos de cursos, oficinas, reuniões, grupos de estudos,
relatos de experiências, elaboração de material didático a partir das necessidades e práticas reais dos
professores da região, etc., com vistas a destacar a natureza, a um só tempo, teórico-prática do trabalho
do professor.
Com esta perspectiva, desde sua criação, a ASSOESTE tem ocupado um espaço de atuação junto às
secretarias municipais de educação que os órgãos da administração estadual historicamente têm pouco
atendido (o que não impede de, na ótica destes, a atuação da ASSOESTE ser considerada concorrente
e, por vezes, indesejada, porque não atrelada às estritas determinações oficiais). Ao longo de seus

Proceedings XI International Bakhtin Conference 94


vinte anos de existência, a partir de um referencial teórico que incorpora os postulados da corrente
histórico-crítica da educação5, vem desenvolvendo um trabalho pedagógico junto aos municípios com
vistas a garantir um mínimo de continuidade para as propostas educacionais ao longo das mudanças de
administração dos municípios.
A vinculação da ASSOESTE a estes grupos (e conseqüentemente às correntes teóricas por eles assu-
midas, que tinham por base o materialismo histórico) marcou definitivamente a imagem da entidade na
região. Por um lado, tensionou ainda mais sua relação com os órgãos oficiais de ensino, que na época,
em decorrência da mudança de Governo no Estado do Paraná, ainda ensaiavam a mudança no “discurso
oficial” da educação. Por outro, rendeu-lhe, junto aos profissionais de educação da região, a imagem de
uma entidade progressista, isto é, de orientação política supostamente “crítica”, ou “de esquerda”.
Esta mesma imagem vai afetar e controlar a circulação de discursos mais ou menos permitidos
durante cursos promovidos pela entidade. Assim, mesmo não se caracterizando como “oficial/estatal”,
acaba também funcionando como uma instituição que regula, interpela e cerceia os sujeitos (no caso,
professores-cursistas e docente), cobrando deles o pertencimento a determinada formação discursiva.
iii)sujeito-professor, em curso de formação-em-serviço, promovido pela ASSOESTE, no oeste pa-
ranaense, que toma a palavra e pergunta:
Uma síntese da construção social e histórica das diferentes identidades do professor proposta por
Geraldi (1991:85 e ss.), a partir de Manacorda (1989), mostra três grandes momentos: da figura do
mestre, produtor de um saber que, também, ensina; para a do instrutor/professor, transmissor de um
conhecimento produzido alhures; e, finalmente, para a figura do professor/capataz de uma parafer-
nália tecnológica, com espaço de ação circunscrito e estipulado pela obrigação de seguir uma rotina
de procedimentos burocráticos na escola. Cada uma destas identidades guarda estreita relação com
os diferentes interesses da sociedade na educação e com as diferentes condições técnicas com que se
concretiza a atividade de ensino. Some-se a isto as precariedades que sucessivas décadas de políticas
econômicas excludentes das chamadas “áreas sociais” impuseram não só, mas de maneira especial, ao
sistema educacional brasileiro e estarão postas as condições para a crescente proletarização do trabalho
do professor na sociedade contemporânea.
Forjada em seus percursos particulares de vida (formação acadêmica menos ou mais qualificada, acesso
a teorias menos ou mais “atualizadas”, condições de trabalho menos ou mais precárias), a imagem do
que seja “ser professor” incorporada pelos sujeitos-professores do oeste do Paraná é, inevitavelmente,
afetada pela contextualização acima indicada. E aí, a despeito das condições materiais objetivas (ou exa-
tamente por causa delas), a memória daquelas imagens históricas da figura do professor permanecem.
Permanecem e convivem no imaginário de professores, alunos, supervisores, orientadores, diretores,
pais de alunos...
Se o próprio “evento” do curso se institui como uma instância por onde circulam vozes/discursos;
instância esta submetida a regras controladoras do dizer (note-se que o professor/cursista dirige-se ao
docente/autoridade do curso, sobre um conteúdo que este, supostamente, domina mais do que ele), na
emergência da palavra dos professores pode-se captar os movimentos discursivos que afetam a cons-
trução do novo, pistas da memória, indícios da própria compreensão, como
um processo ativo, produtivo, em que significados anteriores, resultantes de processos
interlocutivos prévios, se modificam por um processo contínuo em que, quanto maiores
as diversidades de interações, maiores as construções de significados com que os alunos
[no caso, professores-cursistas] vão construindo suas interpretações da realidade (Geraldi,
1996:39).

E este processo
é sempre particular, singular e orientado por duas fontes fundamentais: a fala do locutor,
isto é, seus enunciados, e as categorias prévias e historicamente incorporadas pelo
interlocutor (suas palavras) com as quais constrói a compreensão [grifos meus]
(op. cit., p. 44).

Nas perguntas, suponho poder encontrar, a partir (não só, mas também) das marcas da heteroge-
neidade mostrada (ironia, paráfrases, uso de operadores argumentativos, modalizadores, marcadores
de pressuposição, etc,) – em meio à emergência das diferentes vozes que conformam identidades do
sujeito-professor, das imagens do objeto que ensina – as vozes que, enfim, participam da constituição
do discurso novo.
De volta às cenas iniciais – Um esboço de análise
De imediato (e retomando as cenas apresentadas no início deste texto), lanço algumas hipóteses
que indicam que as perguntas dos professores ecoam diferentes discursos em torno do ensino de língua
materna:

4 Mesmo não pretendendo ater-me longamente aos movimentos internos à construção destas propostas (o que fugiria ao tema específico ora proposto)
são considerados e tomados como representantes exemplares da “voz oficial” o “Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná” (1990) e os “Parâmetros
Curriculares Nacionais” (1998).
5 Concepção pedagógica proposta por Saviani (1983).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 95


(1) O fato de o docente organizar os conteúdos de acordo com a solicitação (de, pelo menos, a
maioria) dos cursistas, significa mais do que uma atitude recomendada por alguma teoria pedagógica
moderna: é já um mecanismo de controle, verificação do foco de preocupação dos professores em rela-
ção aos discursos possíveis em torno de um objeto. Em contrapartida, no exemplo em análise, o fato de
o pedido ter recaído sobre “o trabalho com textos na sala de aula” indica a “vontade de pertencimento”
ao discurso novo. Aqui, cabe a questão: Até que ponto, o movimento da “oficialização do novo” (não só
em documentos oficiais, mas em práticas e discursos hegemônicos de agências formadoras) produz/re-
significa esse “novo” em “prescrição”? Até que ponto, o discurso novo, em movimento, não passa a ser
controlador de discursos sobre práticas pedagógicas? (“...todo mundo tem que dizer que trabalha
com texto”); além de induzir à necessidade do sujeito se mostrar “conforme” (“Eu já trabalho faz
tempo!”)?
(2) “Mas, professor, como eu trabalho a gramática no texto?”:
Esta pergunta, enunciada por uma professora, durante um curso no local e nas condições até aqui
explicitadas, é exemplar de um momento de emergência de algumas vozes. Nela, pode-se especular
que a memória faz ecoar alguma(s) das diferentes significações do termo “gramática”6, nos discursos
em torno do ensino de língua materna de que participa:
(a) O “velho” que dialoga com o “novo”: apesar do pertencimento a um discurso novo, no interior
deste mesmo discurso, re-interpretando seus enunciados fundantes, a preocupação com “trabalhar
a gramática” se mantém na pergunta do sujeito-professor. Neste sentido, o “mas” que a introduz
é um operador argumentativo que não está meramente estabelecendo oposição ao(s) conteúdo(s)
proposicional(is) que o antecede(m): está opondo posições discursivas antagônicas. Portanto, pode estar
aí uma marca da forte presença do discurso da tradição do que seja ensinar língua materna – um ensino
gramatical/metalingüístico hegemônico ao longo de gerações, gerador das identidades “ensinar língua
= ensinar gramática” e “professor de língua = professor de gramática”.
(b) Ainda, nesta mesma ocorrência, é possível verificar a outra face da memória do velho no novo:
sua re-interpretação pela formação discursiva do novo. No caso do ensino de língua materna, dada a
forte tradição do ensino gramaticalista (e que volta concentrada/carregada pelo emprego do termo “gra-
mática”), o discurso novo, ao se constituir vai revisitar conceitos e termos da tradição, re-significando-os
de acordo com a formação discursiva em construção. Nesta hipótese, poderia estar aí a presença do
conceito numa de suas re-significações dadas pelo discurso novo.
(c) A associação “gramática no[+] texto” presente no enunciado, a partir das considerações acima,
está a aproximar ou a opor dois termos centrais de formações discursivas antagônicas. Em qualquer
das alternativas, ecoa a memória dos diferentes lugares que os termos trazem de seus percursos
por diferentes formações discursivas. Aí, pode-se apontar o funcionamento de um implícito (o de
que se possa trabalhar a “gramática no texto”). Conforme as hipóteses aqui trabalhadas, este implí-
cito pode remeter tanto à memória como à situação. No primeiro caso (ao fazer ecoar a memória dos
sentidos já estabelecidos para o termo “gramática” no discurso da tradição), ao surgir no aqui-agora
desta enunciação, estaria provocando a aproximação e o confronto entre formações discursivas antagô-
nicas, o que não deixa de provocar uma dupla ruptura: (1) aquela que se processa no próprio discurso
rememorado pelo surgimento do termo revisitado do discurso da tradição, agora afetado pelo discurso
novo (no segmento, representado pelo termo “texto”), e que, portanto já não é mais o “mesmo” e (2)
na contra-mão deste percurso, sua presença como memória da tradição afeta (abalando) a construção
dos sentidos do discurso novo. A memória viria ligada à situação, se fosse possível admitir que o termo
“gramática” estivesse sendo evocado a partir de uma re-interpretação sua do/no interior do discurso novo
(ou seja, se estivesse suficientemente “controlado” pelos sentidos permitidos na formação discursiva do
novo).
(d) “... como eu trabalho a gramática no texto?”: Aí, um indício de que uma interpretação para o
conjunto de vozes que ocorrem durante o curso seja a de que o sujeito-professor quer um “saber-fazer”.
Não a língua como objeto científico, que exige uma abordagem reflexiva, de pesquisador. Não a língua-
objeto de ensino (disciplina escolar) que – na perspectiva do discurso novo para o ensino de língua
materna – exige um professor condutor do processo. Ele não se coloca como produtor, mas capataz à
espera de uma resposta (=ordem respaldada na autoridade do conhecimento do docente) que determine
os “passos a seguir”.
(3) “Agora, com os PCNs, todo mundo tem que dizer que trabalha com texto. Eu já trabalho
faz tempo! Mas, acho que se perdeu muita qualidade no ensino da Língua Portuguesa. Hoje,
os alunos estão piores do que quando comecei! Por que eles continuam a falar e a escrever
errado?”
De cara, um verdadeiro interdito para a formação discursiva do novo: a persistência do discurso do
preconceito em relação às variedades lingüísticas (“... falar e escrever errado...”). A emergência deste
“discurso que não deveria ser dito” é preparada pelo sujeito:

6 Quanto à ocorrência de um item lexical específico nas “práticas linguageiras”, reporto-me a Achard (1999), que o considera não só como uma “unidade
em si mesma”, com uma identidade que o permite ser reconhecido nos diferentes contextos em que surge, mas também como “uma unidade simbólica cujo
reconhecimento a identificação permite definir em termos de repetição. Cada nova co-ocorrência dessa unidade formal fornece então novos contextos, que
vêm contribuir à construção do sentido de que essa unidade é o suporte”.[grifos meus] (op. cit., p. 14). A meu ver, a co-ocorrência do termo “gramática”,
aqui tematizada, pode ser tomada como exemplo deste processo.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 96


(a) De início, o “Agora” – marcador temporal, remete ao conjunto de discursos de um determinado
momento anterior, conflitantes ao momento discursivo presente (discursos sobre a língua, sobre o “ser
professor”, que mobilizam saberes);
(b) A seguir, o efeito de pertencimento e a criação de uma imagem positiva se dá por uma crítica à
admissão passiva da autoridade/discurso oficial (PCNs determinam; professor acata), uma posição prevista
no (=e prescrita pelo(?)) discurso novo: “...com os PCNs, todo mundo tem que dizer que...”;
(c) “Eu já trabalho faz tempo”: mais uma vez, criação de imagem (positiva) de pertencimento ao
discurso novo. O argumento temporal reforça ainda mais o pertencimento. Este não é “de agora”, quando
(ou só porque) “alguma autoridade (PCN ou o docente do curso) manda”;
(d) “Mas, acho que se perdeu muita qualidade no ensino da Língua Portuguesa”: o operador
argumentativo inicia a introdução do interdito. Este é aqui precedido de um modalizador com o qual o
enunciador indica não falar de um “lugar de autoridade” (“acho que”). A seguir, uma estratégia discur-
siva de duplo ocultamento: no “se perdeu”, o coletivo evocado pelo índice de indeterminação do sujeito
(ON genérico, em francês), ao mesmo tempo em que dilui o sujeito-professor dentre os demais agentes
da crítica apresentada, ao não determinar qual o agente da perda, não o compromete de todo: esta
crítica – cujo critério (“qualidade”) faz emergir o discurso da eficácia/eficiência - pode sim ser dirigida
ao conjunto de postulados do discurso novo, mas não só a ele.
(e) A crítica vem, então, justificada pela emergência de um certo discurso saudosista, baseado na
comparação/valoração descontextualizada entre “épocas” do ensino de língua materna (“os alunos
estão piores do que quando comecei”); mais uma vez medida em termos da “prática de (seus) re-
sultados”: “Por que eles continuam a falar e a escrever errado?”. Além de instaurar o pressuposto
que desqualifica épocas (e discursos) anteriores, a interpelação direta do “Por quê?” afeta o discurso
novo, cobrando-lhe respostas práticas, o que pode indicar que este sujeito-professor está criando uma
imagem de que o novo deveria dar conta de tudo. Como leu as propostas? Fetichizou o objeto-língua.
(f) Ainda, tomando o movimento interno do conjunto dos enunciados desta pergunta, o “já traba-
lhar com texto” (acima apontado como marca de “intenção de pertencimento”) é re-significado pelos
enunciados que o antecedem e precedem de tal forma que o distancia – e muito – dos sentidos conti-
dos/pretendidos pela formação discursiva do novo: esta pretende “x” e é re-interpretada como “y”.
(g) Uma última especulação a partir desta cena: poder-se-ia postular aí a emergência de um sujeito
clivado/interditado que, pelas frinchas do espaço discursivo, faz surgir discursos que foram silenciados
pela própria instância do curso?
OS PRÓXIMOS PASSOS
Conforme indicado ao longo deste artigo, aqui tratou-se de delimitar um problema e apontar-lhe a
pertinência para o terreno de preocupações da Análise do Discurso, indicando possibilidades de análises.
Estas estão sendo retomadas no desenvolvimento de pesquisa a partir do aprofundamento de estudos e
da coleta de dados durante cursos ministrados a professores de língua portuguesa atuantes em sala de
aula do ensino fundamental e médio.
A análise qualitativa dos dados coletados e a especificação da situação em que são proferidas as
perguntas dos professores, por sua vez, determinarão a retomada dos conceitos aqui apontados e cer-
tamente irão exigir que sejam mobilizados outros, tais como, por exemplo, interação, oralidade em sala
de aula, modalidade oral em situação semi-formal (o curso) etc.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACHARD, P. et alii.(1999), Papel da memória. Trad. de José Horta Nunes. Campinas, Pontes.
AUSTIN, J. L. (1965), How to do things with words. New York, Oxford University Press.
AUTHIER-REVUZ, J. (1990), “Heterogeneidade(s) enunciativa(s)”. Trad. de Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi.
In: Cadernos de estudos lingüísticos 19: 25-42, IEL/UNICAMP, Campinas.
BAKHTIN, M. (1975), Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. 2. ed. Trad. de Aurora Fornoni et.
alii., São Paulo, Hucitec/EDUNESP, 1990
______ (1977), Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, São Paulo, Hucitec,
2a. ed., 1981 (original de 1929).
BENVENISTE, E. (1966), “Da subjetividade na linguagem” in: Problemas de lingüística geral, vol. I. Trad. de Maria da
Glória Novak e Luiza Néri, São Paulo, Cia. Ed. Nacional e Ed. da USP (original de 1958).
_______(1970), “O aparelho formal da enunciação” in: Problemas de lingüística geral, vol. II. Trad. de Marco Antônio
Escobar, Campinas, Pontes, 1989.
BRITTO, L. P. L. (1997), A sombra do caos – ensino de língua x tradição gramatical. Campinas, Mercado de Letras,
Associação de Leitura do Brasil (Coleção Leituras no Brasil).
COUDRY, M. I. H. (1988), Diário de Narciso – discurso e afasia. São Paulo, Martins Fontes.
DUCROT, O. (1972), Princípios de semântica lingüística – dizer e não dizer. Trad. de Carlos Vogt et. alii. São Paulo,
Cultrix, 1977.
EHLICH, K. (1986), “Discurso escolar: diálogo?” In: Cadernos de estudos lingüísticos 11: 145-172. Campinas, IEL/
UNICAMP.
FRANCHI, C. (1977), “Linguagem – atividade constitutiva”. In: Almanaque (5). São Paulo, Brasiliense, pp. 9 a 26.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 97


______. (1987), “Criatividade e gramática”. In: Trabalhos de lingüística aplicada 9 : 5-45. Campinas, IEL/UNI-
CAMP.
GERALDI, J. W. (1984), “Concepções de linguagem e ensino de português”. In: GERALDI, J. W. (org.) O texto na sala
de aula. Cascavel, Assoeste, 1984.
______. (1991), Portos de passagem. São Paulo, Martins Fontes.
______. (1996), Linguagem e ensino – exercícios de militância e divulgação. Campinas, Mercado de Letras, Associação
de Leitura do Brasil (Coleção Leituras no Brasil).
ILARI, R. (1985), A lingüística e o ensino da língua portuguesa. São Paulo, Martins Fontes.
JAKOBSON, R. (1960), Lingüística e comunicação. São Paulo, Cultrix.
MAINGUENEAU, D. (1987), Novas tendências em análise do discurso. Trad.de Freda Indursky. Campinas, Pontes/Edi-
tora da UNICAMP, 1989.
MANACORDA, M. A. (1989), História da educação – da Antiguidade aos nossos dias. Trad. de Gaetano Lo Mônaco.
São Paulo, Cortez/Autores Associados.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (1998), Parâmetros curriculares nacionais – língua portuguesa. Brasília,
DF.
ORLANDI, E. P. (1987), A linguagem e seu funcionamento – as formas do discurso. 2a. ed. rev. e aum. Campinas,
Pontes.
OSAKABE, H. (1978), “O mundo da escrita”. In: ABREU, M. (org.) Leituras no Brasil. ALB/Mercado de Letras, Cam-
pinas, 1995.
OSAKABE, H. (1979), Argumentação e discurso político. São Paulo, Kairós.
PÊCHEUX, M. (1969), “Análise automática do discurso (AAD-69)” In: GADET, F & HAK, T (orgs.) Por uma análise auto-
mática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, Pontes/Editora da UNICAMP, pp. 61-161.
______. (1975), Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni Orlandi et. alii., Campinas,
Editora da UNICAMP, 1988.
PÊCHEUX, M. e FUCHS, C. (1975), “A propósito da análise automática do discurso: atualizações e perspectivas” In:
GADET, F & HAK, T (orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Cam-
pinas, Pontes/Editora da UNICAMP, pp. 163-252.
PÉCORA, A. A. (1980), Problemas de redação. São Paulo, Martins Fontes.
POSSENTI, S. (1983), “Gramática e política”. In: GERALDI, J. W. (org.) O texto na sala de aula. Cascavel, Assoeste,
1984.
______. (1988), Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo, Martins Fontes.
______. (1996), Por que (não) ensinar gramática. Campinas. ALB/Mercado de Letras.
SAUSSURE, F. (1974), Curso de lingüística geral.São Paulo, Cultrix/Edusp (original de 1916).
SAVIANI, D. (1983), Escola e democracia. São Paulo, Cortez/Autores Associados.
SEARLE, J. (1969), Speech acts. Cambridge, Cambridge University Press.
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO/ DEPARTAMENTO DO ENSINO DE PRIMEIRO GRAU (1990), Currículo básico
para a escola pública do Paraná. Curitiba, Pr.
SILVA, L. L. M. et alii (1986), O ensino de língua portuguesa no primeiro grau. São Paulo, Contexto.

Palavras-chave: Discurso e Ensino; Memória Discursiva; Polifonia; Heteroge-


neidade.
Mário Cândido de Athayde Júnior, pesquisador e professor do Curso de Letras
na UNIOESTE/Campus de Cascavel-Pr. Mestre em Lingüística/Análise do Discurso,
integra o Grupo de Pesquisa “Linguagem, Discurso e Ensino”. Publicou “Planejando
o ensino de língua portuguesa de pré a 4a. série”, pela Assoeste Editora Educativa
(1993) e “Outras mesmas palavras: paráfrase discursiva em redações de concurso”,
pela Edunioeste Editora (2001), além de artigos em revistas especializadas nas
áreas de Letras, Lingüística e Ensino de Língua Materna. Atualmente desenvolve
pesquisa de doutoramento na área de Análise do Discurso no Instituto de Estudos
da Linguagem – IEL/UNICAMP-SP. (e-mail: mathayde@certto.com.br)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 98


Bajtín y las metáforas de la vida cotidiana

Dra. Silvia N. Barei

Univ. Nac. de Córdoba

Rep. Argentina

Proponemos una breve reflexión sobre el pensamiento bajtiniano a partir del estudio de las metáforas
de la vida cotidiana, entendidas como formas de construcción de la memoria y de la creación cultural.
Desde Bajtín podemos señalar que usamos a diario las metáforas como “palabra ajena”, palabras car-
gadas de evaluaciones y de historia. Palabras que repetimos, transcribimos, interpretamos, combinamos
en distintos contextos y situaciones, y que sin embargo, no pierden su fortaleza polifónica aún alejadas
de un texto primario o ausente.
Entendemos que la metáfora establece una relación dialógica dentro de la cultura, ya que por una
parte nos trae las voces de la vida cotidiana (los ecos, las entonaciones, los sentidos) y por la otra, intro-
duce de manera estilizada estas voces en otros textos de la cultura (literarios, mediáticos, publicitarios,
humorísticos, etc).
Se trata de la dispersión de un enunciado, de autoría desconocida muchas veces -pensemos en los
refranes, proverbios, dichos, comparaciones, apodos, etc.-, que ubicado en otro lugar, produce resul-
tados heterogéneos y diferente jerarquía de valores, aún cuando la reproducción tenga una estructura
linguística idéntica.
La tensión entre lo previo y el hallazgo, entre estatismo y dinamicidad, conjuga una doble operación
que muestra claramente que el lenguaje es cultural, objeto engendrado, sujeto a cambios y devenires,
que no se basta a sí mismo y que no tiene una forma única ni un solo sentido.
Las imágenes plásticas del mundo o las indagaciones concepuales -por más banales que sean en
nuestro pensamiento cotidiano- adquieren por ello la forma de metáforas.
En esta comunicación nos detenemos en las metáforas sobre el espacio, el cuerpo y la otredad como
parte de un universo de signos cultuales, plurilingues, que marcan la variedad axiológica con que cada
grupo define lo propio y lo ajeno, lo nuestro y lo de otros, el yo y el otro o el yo como otro.
Ancladas en una experiencia del mundo, las metáforas de la vida cotidiana buscan una razón para
decirlo -una explicación a lo que no puede expresarse con un lenguaje más limitado- y constituyen un
modo intersubjetivo de expresar la construcción ideológica de la historia y de lo social.
1- Acerca de vida cotidiana y uso metafórico del lenguaje
Sabemos que Bajtín y su grupo, en su discusión con el marxismo y el rechazo de la interpretación
mecánica del lenguaje y de la ideología, anticipan los estudios actuales de la función de los sistemas
semióticos de la cultura (Lotman, Uspenski y otros), entendiendio que el lenguaje verbal no es solo
medio de transmisión de significados, sino instrumento de constitución de la conciencia social, es decir,
de la intersubjetividad.
El signo verbal constituye para el Círculo de Bajtín, el material del que están hechas las relaciones
sociales, ya sean relaciones en la esfera de lo estético, como las relaciones del trabajo o de la vida co-
tidiana.
En su estudio de los enunciados, Voloshinov-Bajtin (1992), hablan del “contexto extraverbal de la
vida” en la que la palabra circula a nivel social, contexto que implica un “horizonte espacial” y un modo de
comprender las situaciones, que podemos entender como una forma de definir la vida cotidiana, el “labo-
ratorio social” donde las ideas se forman y constituyen por lo tanto, un nexo innegable con la praxis.
“La peculiaridad de los enunciados de la vida cotidiana consiste en que ellos mediante mi-
les de hilos se entretejen con el contexto extraverbal de la vida y, al ser aislados de éste,
pierden casi por completo su sentido” (1992:116).

Las metáforas de la vida cotidiana implican entonces “valoraciones sobreentendidas”, es decir, que
no están sometidas a discusión, aunque cuando migran, Voloshinov-Bajtín observan que “con toda se-
guridad se va preparando una reevaluación”. En términos bajtinianos, todo signo se caracteriza por su

Proceedings XI International Bakhtin Conference 99


indeterminación y ductilidad semántica, lo que le permite adaptarse a contextos cambiantes y permite
explicar formas de decir ligadas a avatares históricos.
Cuando escuchamos decir en el contexto argentino:
“me clonó la idea”, podemos ver claramente la transformación de la metáfora clásica: “me
copió la idea”, o más acá en el tiempo, “me plagió la idea”. El enunciado que hablaba de
“copia” o de “plagio” ha devenido, por divulgación de hallazgos científicos en el contexto
cultural, en “clonación”, dándole a la expresión metafórica un “tono” entre serio y jocoso.

Una recopilación de metáforas de uso cotidiano nos permiten leer el horizonte real en el que se produ-
cen estos enunciados y ver además que la metáfora semántica, se completa con la metáfora entonacional
y la metáfora gestual. Tal como señalan Bajtín-Voloshinov, éstas “muestran una actitud viva y enérgica
hacia el mundo exterior y hacia el medio social” (1992:121)
Decir: “Mi padre era muy recto” -como lo hace una de las entrevistadas en nuestra investigación1 y
simultáneamente enderezar la espalda contra el respaldo de la silla, refuerza el sentido de la metáfora
utilizada mostrando usos perceptivo-linguístico-gestuales, reglas de comporatamiento intersubjetivos y
construcciones ideológicas del mundo.
Una pregunta importante para nuestra investigación la formula Voloshinov de la siguiente manera:
“En qué se diferencia un enunciado verbal artístico de un enunciado cotidiano?”.
Ateniéndonos al pensamiento bajtiniano, la respuesta es que el enunciado artístico no tiene una
dependencia tan estrecha del contexto, como el cotidiano, aunque, como en toda manifestación de la
palabra, importan también los valores sobreentendidos.
De todos modos, hay una estrategia común en esta migración de la metáfora de la cotidianeidad a otros
textos: el autor escoge procedimientos de la creatividad cotidiana, que se muestran, como dice Micel De
Certeau, en la “construcción de frases propias con un vocabulario y una sintaxis recibidos” (1996:XLIV).
Más radicalmente, sabemos que Bajtín sostiene que todo discurso es discurso citado, recoge discursos
ajenos, palabras ya dichas y reelaboradas.
En los modos de expresión metafórica de los discursos diarios, en los que podemos leer rituales,
usos y funcionamiento de la memoria, formas de representación de normas y valores sociales, sucesos
y relaciones con las prácticas cotidianas, las metáforas, “tejido oral, sin propietarios individuales”, (De
Certeau, 1997) muestran claramente formas ideológicas de constitución de una cultura.
Por ello, y más allá de su labor de comunicación cotidiana, de información o de construcción estéti-
ca, creemos que las metáforas operan del siguiente modo: en primer lugar, muestran el trabajo de una
producción silenciosa; en segundo lugar, constituyen una forma de registro de la memoria colectiva;
en tercer lugar confirman los modos de reapropiación del lenguaje plural, polifónico, de una cultura; y
en cuarto lugar proponen formas de creación de mundos diferentes -”textos habitables” les llama De
Certeau- que arrastran modos sociales de interacción y contextos “vividos”.
La trayectoria, los desplazamientos de las metáforas de un lugar a otro, diseñan «figuras» diferentes,
en lugares casi sincrónicos, espacios en los que la “huella de lo real” se inscribe, el lugar en el que lo
ideológico se hace audible.
Las metáforas de uso diario organizan así, un conjunto de posibilidades y crean otras, es decir, des-
plazan formas conocidas sobrepasando los límites que las determinaciones sociales del lenguaje fijan a
su utilización.
Por lo tanto, no hay solución de continuidad, sino más bien un sistema de discontinuidades que crea
una retórica propia y que podríamos denominar en el orden teórico, como un “sistema de deslizamientos”
que podrían ser estudiados tanto por una Prosaica (Mandoki, 1994), como por la Estética.
Veamos un ejemplo en el que se condensan formas del tiempo que remiten a experiencias de vida:
Dece alguien a quien entrevistamos en su vida diaria: “Cómo se nota que viene el invierno. Los árboles
están casi desnudos. Se me ha puesto la vereda amarilla, vio?”2
Y un poema de Alfonsina Storni dice: “Arboles desnudos/corren una carrera/por el rectángulo de la
plaza...” (“Plaza en invierno”, en Antología Poética, CEAL, Buenos Aires,1980:81)
Se ve en el ejemplo, que la metáfora usada a diario puede ser entendida unívocamente por diferentes
receptores porque traen el recuerdo de un hecho temporal conocido, al menos en las culturas que com-
parten contextos similares (en nuestro ejemplo, climas donde la diferencia entre el verano y el invierno
es notable; no podría decirse lo mismo en el trópico); en cambio, modelos textuales complejos como los
artísticos, si bien parten de la misma metáfora (“Los árboles están desnudos”), admiten mayores casos
de ambigüedad y operan más fuertemente en las dinámicas culturales.
El segundo texto, se comporta de una manera no previsible. Se rompe la ley del discurso cotidiano
y se traspone a un espacio donde la metafora opera doblemente. Por una parte, rememora un hecho
natural; por otra se transforma y se carga de significaciones culturales: los árboles corren evocando el

1 Este trabajo resume alguna de las investigaciones realizadas por el equipo que, bajo mi dirección estudia “Lenguaje y cultura. Las metáforas de la vida
cotidiana, su transposiciÇón al arte y los medios” Facultad de Lenguas. Universidad Nacional de Córdoba.
2 El trabajo de campo con entrevistas y encuestas a sujetos pertenecientes a diferentes situaciones culturales y etarias, fue realizado por Laura Mottura y
María Eugenia Buteler.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 100


juego de los niños en una plaza, por lo tanto el poema trae a la memoria resonancias multívocas.
2- Espacio, cuerpo y otredad
A los fines de recorte del corpus hemos destacado tres sistemas de relaciones metafóricas a observar
en los discursos cotidianos: 1-sujeto-espacio; 2-sujeto-cuerpo; 3-sujeto-otredad.
Son justamente las relaciones entre el sujeto, en tanto sujeto-cognoscente, las que dan lugar a una
recepctividad del mundo que puede ser experimentada como esteroreceptividad -sujeto-espacio-,
propiorecepctividad -sujeto-cuerpo- o intereceptividad -sujeto-otros sujetos-.
Cabe señalar que no hay límites entre estos tres aspectos en las formas de cognición de la vida co-
tidiana, es decir, no hay fronteras entre los modos de percepción y comprensión del mundo desde las
tres categorías que proponemos a los fines del análisis: el sujeto se percibe a sí mismo en relación con
otros y en coordenadas témporo-espaciales.
Lo que es interesante ver y que se distingue por razones analíticas, es de qué modo el lenguaje, con
sus marcas culturales, conlleva “las estructuras del sentir” -para decirlo en términos de Williams (1980)-
del espacio, del propio cuerpo y de los sujetos con quienes nos vinculamos.
El uso de metáforas en el lenguaje diario implica un modo de aprhensión de determinadas esferas
de la realidad -materia, objetos, acciones-, que hace del mundo percibido el equivalente de un discurso
enunciado.
Como principio cognitivo, el orden de lo sensible vuelve las cosas inteligibles, construyendo un modo
de relacionarse con el espacio, con las zonas de lo privado y lo público, que muestra “la manera misma
en que el sujeto vive su propio modo de presencia en el mundo” (Landowski,1997: 273)
Sujeto y mundo forman parte de un mismo núcleo ideológico del cual da cuenta acertadamente, el
uso metafórico del lenguaje.
Cuando decimos a diario: “Está (o estoy) tan deprimido que no puede (o puedo) salir del pozo” nos
encontramos con una forma de percibir a los sujetos y al espacio, que asigna un valor disfórico, a lo in-
ferior: depresión-pozo-no salida. Por el contrario, cuando decimos: “Le fue tan bien que salta de alegría”,
asignamos un valor eufórico, a lo alto. Metáforas cuyo sistema de relaciones es indudablemente cultural,
y asignan a la caída -lo bajo- un valor negativo y al salto -lo alto-, un valor positivo.
2.1. Las metáforas del cuerpo
Pensar las metáforas del cuerpo supone entender a éste, como lo hizo Bajtín en La cultura popular en
la Edad Media y el Renacimiento (1987), como un vasto canon semiótico de referencia y simbolización.
Hemos visto ya que en la múltiple actividad semiótica, las metáforas reproganizan su significación
a partir de circunstancias de la vida ordinaria. El cuerpo es indudablemente, elemento central para la
construcción de metáforas, tanto porque es el mediador entre el hombre y el mundo (subjetividad) como
porque ocupa un lugar en el mundo (espacialidad)
Cuerpo y espacio están íntimamente vinculados, ya que el cuerpo es un espacio en sí mismo, al
tiempo que está contenido, o se inscribe en el espacio físico y cultural en que nos movemos los seres
humanos, por ello Bajtín pudo hablar de la “configuración espacial del personaje” como uno de los as-
pectos a considerar en la novela.
Como señala Dorra (2002), el cuerpo “hace figura” en el espacio y a su vez las figuras, son extensiones
del cuerpo -la voz, el tacto, la mirada- en el lenguaje.
Es decir, que el discurso modela muchas veces sobre las metáforas del cuerpo su modo de señalar
los acontecimientos del mundo. No hace otra cosa el texto de Mario Wainfield por ejemplo, publicado en
el diario argentino “Página 12” (20/12/2002) cuando, para hablar de la caída del gobierno de De La Rua
en la Argentina del 2001, dice:
“...la percepción de que todo lo que cambió, ya venía cambiando, de que todo lo que cesó
venía caducando, de que -si se me permite una metáfora banal- el cuerpo que se estrelló
contra el piso venía cayendo del piso 30”.

Y para referirse al imaginario colectivo de la década menemista, en que se quiso hacer creer a los
argentinos que realemnte habíamos pasado a formar parte del llamado “Primer Mundo”, el mismo artí-
culo señala:
“Compraron espejitos de colores y se miraron en ellos por años, viéndose, durante un lapso,
rubios, altos y de ojos celestes.”

Cualesquiera de estas metáforas, hasta aquella que Wainfield llama “banal” -para nosotros, de uso
cotidiano- remite indudablemente a cuestiones culturales, y posee por lo tanto una actualidad que sería
difícil de comprender si no se conoce el contexto histórico de referencia.
De este modo, podría pensarse en una arqueología de las relaciones entre cuerpo y lenguaje -trabajo
interesante que excede largamente esta investigación-, y en la que cuenta tanto la historia individual
como social, lo que cada época ha cifrado en el cuerpo, y aquello que desde el cuerpo habla o es hablado.
No es desdeñable pensar formas culturales inscriptas en los cuerpos, que pueden leerse como señas,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 101


trazas o marcas de pertenecia espacial e histórica (la circuncisión, la deformación de los labios, el cráneo
o los pies, el modelado de las formas femeninas, los tatuajes, el body-pearcing, etc)
En este sentido es interesante la propuesta que hace Claudio Díaz (2001) acerca del “canon del cuerpo”,
entendiendo que solo es posible reflexionar acerca de él si se lo inscribe en circunstancias epocales.
Señala Díaz:
“Un modo de pensar un canon del cuerpo es una operación del mismo tipo que pensar un
canon linguístico (es decir un lenguaje percibido como correcto y legítimo) o un canon cog-
noscitivo (es decir, un conjunto de saberes válidos, legitimados y verdaderos). Un canon del
cuerpo, entonces, concebido como el conjunto de reglas que establecen el cuerpo legítimo
que se aspira a tener, pero también lo permitido y lo prohibido, los usos legales y subversivos,
las formas correctas o incorrectas de la alimentación, las formas de contacto aceptables o
inaceptables y las marcas distintivas obligatorias que remiten al lugar social de cada uno”

La contemporaneidad de los textos que trabajamos en esta investigación3, nos permite situar en un
“estado dado del lenguaje”, aquellas metáforas que, centradas en el cuerpo, son de uso cotidiano, ya que
es justamente este uso el que permite leer el canon del cuerpo vigente en la actualidad y sobre todo,
las formas de prohibición, sujeción y normativización a la que éste es sometido.
Por ello señalamos modos posibles de pensar las formas culturales de “hacer figura” desde las metáforas
del cuerpo, asociando a éste con objetos que implican marcas sociales reconocibles para los sujetos.
Podemos señalar así, metáforas corporales que remiten a características personales -físicas pero
que aluden a lo psíquico- de los sujetos: “cabeza dura” o “abriboca”; metáforas corporales que exlican
condiciones sociales,
-básicamente del orden económico y su sanción moral-, y modos de vincularse con el mundo: “tener
las manos sucias”, “no tener dónde caerse muerto”, “andar con pie de plomo”; metáforas corporales que
remiten a experiencias subjetivas y/o colectivas de diferentes tipos, básicamente aquellas metáforas
a las que Dorra alude como de “la percepción sensible”: “partirse el corazón”, “derramar lágrimas de
cocodrilo”, “tener un nudo en la garganta/el estómago”, etc.
Acá podríamos hablar también de metáforas mucho más escatológicas, aquellas que en el lenguaje
“familiar y grosero” -como diría Bajtín-, tienen que ver con la alimentación, con los órganos sexuales,
con los orificios del cuerpo y sus funciones excretorias y con lo bajo corporal en general y que se expresa
siempre con un lenguaje transgresivo.
Además, metáforas que señalan las huellas del cuerpo en el espacio, la escritura del cuerpo en el
mundo, entendiendo a éste como un lugar en el que se dejan huellas: huellas digitales, huellas de pi-
sadas, rastros en los que se leen signos de los cuerpos: desechos, roturas, quemaduras, incisiones (en
árboles o muros), inscripciones, rastros de sangre, etc.
Lo señala una metáfora como la que utiliza Umberto eco en El nombre de la rosa: “La nieve es un
admirable pergamino en el que los cuerpos de los hombres escriben con gran claridad” (1992: 133)
La naturaleza metafórica de estas expresiones muestra claramente que la metáfora es siempre cultural,
puesto que quien lee la naturaleza es el hombre, codifica un saber y estructura la sucesión de los hechos;
más aún, lee en la naturaleza -la realidad, los acontecimientos del mundo- sus propias inscripciones.
Podemos citar también como ejemplos metáforas que usamos a diario: “el cuerpo del delito”, “la marca
de la piel”, “miradas que matan”, etc.
Son interesantes también el tipo de metáforas que tienen que ver con las formas de la es-
critura y de la lectura. Estas se asocian con las marcas (como inscripción, huella o traza) del
cuerpo y la palabra, estableciendo un paralelo entre el dominio corporal y el del lenguaje:
“me leyó el pensamiento”, “lo dicen sus ojos”, “lo lleva escrito en la frente”, “se le dibujó
una sonrisa”, “su discurso me marcó”, “su cara es un libro abierto”, etc.

Por último, sin que esta lista sea exhaustiva, metáforas asociadas a otras formas retóricas como la
personificación, la antropomorfización, las inversiones, las aliteraciones o los juegos de palabras que
otorgan cualidades del cuerpo a objetos inanimados o entes abstractos, lo cual muestra claramente de
qué manera construimos el mundo tomando como referencia el canon del cuerpo. Decimos “a boca de
jarro”, “el brazo de la justicia”, “el cuerpo de la ley”, “a ojo de buen cubero”, “los dientes del serrucho”,
“el pie de la lámpara”, “el pulmón del planeta”, “ciudad cabecera”, “el ojo del huracán”, “a pie de página”,
“el brazo del río”, etc.
2.2.Las metáforas de la otredad
En Bajtín siempre es el hombre, como sujeto dialógico, el que está en el centro de sus reflexiones.
Para Bajtín la alteridad se encuentra dentro del sujeto, él mismo es diálogo. Sabemos que la articu-
lación que realiza Bajtín es la de conciencia-lenguaje: el lenguaje es siempre ajeno, así que antes de
que la palabra se convierta en “propia” y se identifique con la conciencia individual, ya ha pertenecido

(3) Trabajamos novelas argentinas publicadas recientemente como Los planetas de Sergio Cheifec, Los años 90 de Daniel Link, Bajo otro cielo de Mó-
nica... y textos periodísticos referidos a la guerra contra Irak.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 102


a otros.
La palabra, de procedencia siempre exterior, muestra la factura plurilingue y social de la conciencia.
El yo es entonces, inseparable del otro, lo necesita para construir su mundo y construirse a sí mismo.
El concepto de no clausura de la palabra conduce, en el plano ético a la responsabilidad, categoría que
aparece en el ler. ensayo de Bajtín (“Arte y responsabilidad” de 1919) en el doble sentido de colocarse
en la posición de “respuesta” y de sujeto “responsable” de su respuesta4.
El tema central de la filosofía primera bajtiniana y que luego se proyecta hacia una filosofía del len-
guaje, parte del otro en relación simétrica o asimétrica con el yo (empatía y exotopía) para pensar las
formas de constitución del sujeto.
Como señala Tatiana Bubnova, el sistema de relaciones bajtiniano “yo-para-mí”, “yo-para-otro”;
“otro-para-mí”, se sostiene sobre la arquitectónica
“... de la interacción cotidiana de un sujeto cualquiera con los otros hombres, privados y
particulares, excluyendo o posoponiendo hasta el límite cualquier generalización.” (Prólogo
a Bajtín, 2000:16)

En “El problema del texto en la Linguística, la Filología y en otras Ciencias Humanas”, en la Estética
de la creación verbal (1998), hace hincapié en el problema de las fronteras entre las conciencias de los
sujetos productores de textos y entre los textos mismos y aborda las formas diferentes de relación del
hablante con el mundo, con los otros y con su propio lenguaje.
Su propuesta va a señalar la necesidad de estudio de los enunciados no solo en relación con el autor
sino en sus “nexos” con otros enunciados relacionados con él (eslabones anteriores y posteriores) y con
otros hablantes. Le preocupan especialmente las “interrelaciones entre el discurso ajeno introducido y
el resto del discurso propio” (1998:282).
Entonces, la presencia previa de la otredad -lo ajeno- es siempre la condición para el yo, y por lo
tanto, la condición de todo acto de enunciación.
Tanto en Bajtín como en otros teóricos contemporáneos (Derrida, Barthes), el elogio de la escritura
será en definitiva el elogio de la plurivocidad, de la ambigüedad, de las contradicciones y de las inquie-
tudes del lenguaje.
Una relación fuera del poder y fuera del yo autoritario que puede leerse en la palabra «otra», es decir
no solo en la palabra del otro, sino en mi palabra desdoblada en otra, impensable en la clausura.
El universo de signos que componen una cultura -textos con voz para Bajtín, textos-huellas para
Levinas o Derrida, textos plurilingües para Lotman-, marca la variedad axiológica con que cada grupo
define lo propio y lo ajeno, lo nuestro y lo de otros, el yo y el otro o el yo como otro.
Ello se debe a que los papeles valorativos de lo propio y lo ajeno están sujetos a cambios históricos
y en situaciones diferentes, yo y el otro, lo propio y lo de los otros cambian de posición. Más aún, en una
misma época, distintos estratos culturales construyen el mundo de manera diferente. Pensemos en la
idealización o la demonización de la metáfora del “hombre nuevo” como slogan de la Revolución Cubana,
en las décadas del 60 y 70 en los otros países de América Latina.
O sea que, hay dos cuestiones -una especie de doble fondo- implicado en la construcción de las
metáforas en relación con la problemática de la otredad: por una parte, la metáfora misma es ya una
“otredad”: está sostenida sobre otras voces (que puede haber borrado, estigmatizado o idealizado) y se
incorpora al discurso de los hablantes en la vida cotidiana como “palabra ajena”.
Por otra parte, las metáforas acerca del “otro” están cargadas de fuertes evaluaciones sociales y
culturales: el otro puede ser mi igual, puede ser diferente dentro de mi propia cultura, puede ser una
“alteridad radical” (Baudrillard, 1991) con valoraciones negativas o positivas.
En la vida cotidiana, usamos constantemente metáforas que hablan del otro y del cuerpo del otro, ya
sea que éste se entienda como complemento o en una relación de fuerzas hostiles y amenazantes. En
el primer caso, podemos citar metáforas tales como: “dar una mano”, “ser carne y uña”, “ser parte de
la sangre”, etc. En el segundo: “me enferma”, “es un gordo bruto”, “flaco hilacha”, “caí en sus manos”,
etc.
Notamos acá que la diferencia se marca como formas de la identidad -el otro íntimo, el “yo para mí”-
o como lo diferente -la alteridad radical-.
El lenguaje metafórico muestra claramente sus propias ambivalencias, pero por sobre todo apunta
a las ideologías sociales. No es solo posibilidad de encuentro con el otro, sino también uso del poder,
imposición, ley, remarca de las diferencias.
En vinculación con las metáforas anteriores, podemos señalar aquellas que hablan de políticas del
cuerpo o de inscripciones de lo político en el cuerpo: “agachar la cabeza”, “ponerse de rodillas”, “pensar
como mujer”, “ser bien macho”, “estar con los zurdos”, “actuar a cara descubierta”, etc.
También en el plano político podemos inscribir a muchos insultos, es decir, aquellas expresiones que
tienen que ver con actividades o usos del cuerpo condenados socialmente: “hijo de puta”, “maricón”,

4 Es por ello que en la versión inglesa, la palabra originaria rusa (otvietstviennost‘) ha sido traducida como “answerability”, es decir “responsividad”.
(Michael Holkist, Mikhail Bakhtin, Harvard University Press, 1984)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 103


“cornudo”. Aquí la ley social y su correspondiente sanción moral se leen desde el cuerpo y en el cuerpo
(del otro) y por lo tanto, el insulto, que es en sí mismo una transgresión al “buen decir”, permite leer la
transgresión al “buen obrar”, es decir, la transgresión a los comportamientos socialmente permitidos o
valorados (la mayoría de ellos, en relación con la sexualidad).
Edward Said (Orientalism, 1978) ha señalado que la cultura produce sus propias representaciones a
través de los modos en que articula los datos de la realidad y las relaciones entre sus elementos cons-
tituyentes, por ello no es posible estudiarlas fuera de sus configuraciones de poder.
La idea del “otro” es diferente entonces, si se la piensa desde el aparto ideológico democrático de la
Francia revolucionaria, que desde el aparato ideológico colonial (la aparente contradicción de que uno se
asentaba sobre el otro en la Europa del siglo XVIII, sería motivo de otro estudio por demás interesante).
En este último, el otro está afuera de las fronteras organizadas de la cultura, de la “semiosfera culta”,
(Lotman, 1995) es decir del núcleo del poder. El lenguaje del otro se borra -cultura de la oralidad, de
la fiesta, de los rituales y las religiones no oficiales, de los saberes y las prácticas “bárbaras”- y solo
pueden leerse sus modos de representación en el discurso hegemónico.
Breve epílogo
La metáfora puede captar matices de las cosas que en los conceptos definidos doxásticamente se
pierden, por ello siempre es un lenguaje “otro” y muestra en sí misma, los límites del lenguaje norma-
lizado.
Saliéndose de éste, puede echar mano a todo tipo de discursos en circulación y proponer las combi-
naciones más insólitas en su negativa a asumir un solo punto de vista o un solo sentido, mostrando la
verdad relativa de las cosas que nombra.
¿Por qué decimos “está sacado”, “está fuera de control”, “está de la nuca”, etc. para expresar las
reacciones de ciertos sujetos en algún momento de fuerte conmoción ?
¿Por qué nos sentimos “en el ojo de la tormenta”, “en medio de un huracán” o “en el fondo de un
pozo” para hablar de momentos difíciles en relación con una vivencia subjetiva de una situación personal
o social?
Porque la metáfora expresa básicamente la insuficiencia del lenguaje de la doxa. Es el lugar en el que
el discurso se quiebra, se desembaraza de las convenciones y se mira a sí mismo en una estrategia más
propia de la poesía o de un sistema de notaciones musicales en donde encontramos que la combinación
y la interrelación llevan la lógica discursiva más allá (meta) de sí misma.
Bajtín nos ha hecho pensar que la dificultad de decir, muestra que la metáfora no acepta lo que el
lenguaje cotidiano es, sino que lo pone en movimiento hacia otro lugar. Se erige así en el reino de lo
posible, de la promesa que el pensamiento le hace al decir y al saber en una vuelta hacia lo que todavía
no está dicho o puede decirse de otro modo.
La tensión entre lo previo y el hallazgo, entre estatismo y dinamicidad, conjuga una doble operación
que muestra claramente que el lenguaje es cultural, objeto engendrado, sujeto a cambios y devenires,
que no se basta a sí mismo y que no tiene una forma única ni un solo sentido.
Las imágenes plásticas del mundo (“estar en el fondo de un pozo”) o las evaluaciones subjetivas
(“está de la nuca”) -por más banales que sean en nuestro pensamiento cotidiano- adquieren por ello la
forma de metáforas.
Vemos que la metáfora, aún en sus usos más convencionales, porta una autonomía de expresión
que es una especie de mandato de emancipación, de libertad frente al objeto, aunando razón y pasión.
Ancladas en una experiencia del mundo, las metáforas de la vida cotidiana buscan una razón para decirlo
-una explicación a lo que no puede expresarse con un lenguaje más limitado- y constituyen un modo
intersubjetivo de decir la experiencia ideológica-dialógica de la historia y de lo social.
Bibliografía
ARAN, P., BAREI, S y otros; (1996) Diccionario léxico de la teoría de Mijail Bajtín. Ed. Universidad Nac. de Córdoba,
Argentina.
ARISTOTELES y HORACIO; (1972) Artes poèticas. Ed. Gredos, Madrid.
AUGE, Marc; (1993) Los «no lugares». Espacios del anonimato. Ed. Gedisa, Barcelona.
BAJTIN, Mijail; (l987) La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento. El contexto de Francois Rabelais.
Ed. Seix-Barral, Barcelona.
———————;(l998) Estètica de la creaciòn verbal. Ed. Siglo XXI. Mèxico.
———————: (2002) Yo también soy. (Fragmentos sobre el otro). Ed, Taurus, Madrid. Selección, traducción y Pró-
logo de Tatiana Bubnova.
BAJTIN,M y VOLOSHINOV. V. (1992) El marxismo y la filosofía del lenguaje. Ed. Alianaza, Madrid.
BAUDRILLARD, Jean; (1991)La transparencia del mal. Ensayos sobre los fenómenos extremos. Ed. Anagrama, Bar-
celona.
BUBNOVA, Tatiana; (2001) «Palabra propia, palabra ajena» en Revista Tópicos del seminario. No. 5, Univ. de Puebla,
México.
DE CERTEAU, Michel;(1987)La invención de lo cotidianao. Ed. Universidad Iberoamericana de México.
DIAZ, Claudio; (2001) «Cuerpo, ritual y sentido» en La estética del rock nacional. UNC. Inédito.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 104


LAKOFF, G. Y JOHNSON, M.; (1998) Metáforas de la vida cotidiana. Ed. Cátedra, Madrid.
LOTMAN, Iuri M.; (1979) Semiótica de la cultura. Ed. Cátedra, Madrid.
—————————; (1995) La semiosfera I Ed. Frónesis, Valencia
MANDOKI, Katia (1994) Prosaica. Introducción a la estética de lo cotidiano. Ed. Grijalbo, México.
SARDUY, Severo; (1969) Escrito sobre un cuerpo. Ed. Sudamericana, Buenos Aires.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 105


Um olhar sobre a intemporalidade da tragédia

Rosse Marye Bernardi

Este trabalho procura estabelecer um diálogo entre a trilogia Oréstia, de Ésquilo, o romance Abril
despedaçado, de Ismail Kadaré e a sua adaptação cinematográfica, que resultou na obra homônima,
dirigida pelo cineasta brasileiro Walter Salles. Para realizá-lo, pautei-me pela teoria da linguagem de
Bakhtin, enquanto fundamento epistemológico e, principalmente, pela utilização de seu método, que
implica numa análise totalizadora, envolvendo a história, os aspectos sociais e culturais e tudo o mais
que nos permita ver o mundo e consequentemente os textos que fazem a leitura deste mundo como um
acontecimento e não como algo já concluído. Nas palavras do próprio teórico: O texto só vive em contato
com outro texto (contexto). Somente em seu ponto de contato é que surge a luz que aclara para trás e
para a frente, fazendo que o texto participe de um diálogo. (Estética da criação verbal, p.404).
Esclareço que minha atenção para a relação entre as obras foi despertada pelo próprio Kadaré que na
obra Eschyle ou le grand perdant (ed. revue et augmentée, Fayard, 1995), faz uma espécie de ponte
entre Abril despedaçado e a obra de Ésquilo, ao mesmo tempo em que elabora algumas reflexões
sobre a tragédia e seus temas.
Como sabemos, a tragédia surgiu no século VI AC e depois de atingir um brilhante apogeu e adquirir
forma normativa, agonizou antes do fim do século V AC. Provavelmente desapareceu quando desapare-
ceram as condições espirituais e sócio-culturais que haviam propiciado o seu florescimento. Considere-se
que no século IV AC, a produção intelectual ateniense seguia novos rumos, pondo em crise os valores até
então vigentes. É a época dos sofistas e dos seus discursos filosóficos que dão nova direção aos ideais
de educação do povo ateniense. É ainda o momento de Platão e principalmente de Aristóteles que, no
Liceu, reelabora o passado e seus valores a partir de um pensamento sistemático. Assim, ao escrever
sua Poética – a primeira das grandes poéticas classícas – nos meados do século, Aristóteles já dispunha
de distanciamento histórico suficiente para ver a tragédia sob uma perspectiva especificamente literária,
definindo-a como um gênero canônico e, por outro lado, estava ainda bastante próximo para informar
com provável segurança que o gênero se formara a partir dos improvisos dos solistas dos ditirambos
que acompanhavam os rituais dionisíacos. (Poética, pg.41). Tais fatores deram indiscutível credibili-
dade ao discurso do filósofo. Bakhtin, por exemplo, em seu estudo “Epos e romance”, considera-o um
fundamento inquestionável e portanto um excelente ponto de partida inclusive para a reflexão teórica
sobre o romance. (100).
No entanto, ao longo dos séculos, a teoria aristotélica da tragédia tornou-se objeto de um ininterrupto
diálogo que lhe foi acrescentando inúmeros adendos e questionamentos, tendo o gênero servido de mote
para especulações filosóficas, fenomenológicas, estruturais, antropológicas, literárias e outras mais entre
as quais podemos colocar o discurso de Kadaré.
Ismail Kadaré é um escritor albanês que se radicou em Paris, em 1990, pouco antes da queda do
comunismo em seu país., transformando o exílio num lugar privilegiado de onde continuou a observar
e analisar o passado e o presente de sua terra. Suas obras, realistas ou metafóricas, têm sempre como
objeto a configuração da identidade albanesa. É o que se vê, por exemplo, em Dossiê H, Concerto no
Fim do Inverno, A Pirâmide, Os Tambores da Chuva e, talvez, com mais ênfase, em Abril despe-
daçado, publicado pela primeira vez em 1982.
Nesta última obra, Kadaré desenvolve uma história que se passa na região norte do país, na divisa
com o Kosovo, e que se caracteriza pela geografia especialíssima dos Alpes albaneses, íngremes e prati-
camente intransponíveis, condição que manteve sua população num isolamento tal que a fez conservar,
independente dos muitos conquistadores do território, uma cultura praticamente intocada, com hábitos
e leis próprias, que se diferenciam do restante do país. Seus personagens são os montanheses, às voltas
com um código de honra - o Kanun - que orienta as ações de toda a comunidade e movimenta o jovem
Gjorg na concretização de um destino em que nem a vontade nem o desejo têm qualquer papel. O Ka-
nun, segundo nota de apresentação ao romance é uma espécie de código de direito consuetudinário,
uma verdadeira constituição da morte, de origens medievais. Ele impera neste universo que rejeitou a
justiça estatal em prol de uma justiça moral e em que sangue se cobra com sangue. Todas as ações são
previstas no Kanun e se algo foge à codificação, deverá ser resolvido pelo juiz de sangue, herdeiro de
um conhecimento ancestral.
Numa atividade um tanto bissexta de ensaísta, as preocupações de Kadaré também se voltaram para

Proceedings XI International Bakhtin Conference 106


a busca da identidade cultural albanesa. Em Eschyle ou le grand perdant., ele aponta entre os tópicos
mais marcantes desta identidade a permanência dos mitos da hospitalidade e da cobrança do sangue.
Mais ainda, a obra, escrita ainda em Tirana, em 1985, é também uma tentativa de explicação a Abril
despedaçado, que o próprio autor coloca em relação à tradição da tragédia, ao comentar a Oréstia e
o desenvolvimento de seus temas principais.
A Oréstia é a única trilogia conservada entre as várias produzidas para participar dos concursos nas
Grandes Dionísias, realizadas anualmente no mês de março, em Atenas, à época em que o vinho já es-
tava pronto para ser bebido. É composta pelas tragédias Agamemnon, As portadoras de oferendas
e Eumênides. A coesão entre as obras se dá pela temática, ligada ao mito dos Atridas e sua história
cheia de maldições e assassinatos. Como os festivais dionisíacos e as apresentações das tragédias eram
responsabilidade do Estado, podemos imaginar que a estréia da trilogia, no ano de 458 AC, foi antece-
dida, como era costume, por um verdadeiro ritual, dirigido pelo arconte-epônimo que tinha responsabi-
lidade política e religiosa naquele ano. Era ele que após uma rigorosa seleção que por certo se ligava à
conveniência educativa das obras, escolhia entre as muitas concorrentes, as três que teriam direito ao
coro e à participação no festival. Era também o arconte que designava o cidadão que exerceria o cargo
de corego, responsável pelo dever cívico e religioso de manter, organizar e ensaiar o coro, bem como da
encenação da tragédia, honra que o próprio Péricles exerceu na juventude. A recepção às tragédias, o
entusiasmo com que os cidadãos recebiam as obras concorrentes, a emoção, os aplausos, a atmosfera
de alta espiritualidade que a todos envolvia e que era também impulsionada pelo vinho, não tem possi-
bilidade comparativa com nenhum espetáculo de qualquer outra época histórica.
Esta incursão sobre a história da tragédia é importante porque nos faz perceber o papel do gênero
trágico no seu momento histórico e também as condições que influenciaram o seu próprio desenvolvi-
mento. Por outro lado, há que se salientar que a tragédia não nasce como uma forma canônica, fechada.
Ela vai aos poucos evoluindo e organizando-se até atingir o status de um dos gêneros elevados, como se
constata pelas informações sobre os textos primitivos e principalmente pela evolução ocorrida no interior
das obras de seus maiores poetas: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. No seu estudo dos gêneros literários,
Bakhtin reservou um espaço especial para o gênero épico, salientando o fato de que este por sua vez se
harmoniza com outros gêneros elevados. Portanto, um excelente ponto de partida para ver a tragédia
em sua especificidade, é relacioná-la com a epopéia.
Em primeiro lugar, é necessário lembrar que o universo épico se baseia na lenda nacional, coletada
no arsenal das histórias anônimas que durante séculos foram cantadas pelos aedos, de uma maneira
que não poderá jamais ser recuperada. Num determinado momento estas histórias canonizaram-se num
gênero definido, enformado por uma linguagem que se transforma em autoridade absoluta e foi aceita
pela comunidade como a representação sagrada do mundo das origens onde vivem para sempre os
grandes heróis nacionais, com as suas ações acabadas e perfeitas e por isso o conteúdo do poema épico
não pode sofrer qualquer questionamento. Quanto à tragédia, um dos seus elementos diferenciadores é
que ela trabalha com a lenda numa relação de segundo grau. A sua matéria é preferencialmente o mito,
mas como este não mais pode ser tomado diretamente das fontes populares, por uma impossibilidade
temporal, no dizer do próprio Ésquilo, se reduz às migalhas colhidas do banquete homérico . Assim, a
lenda, embora escolhida seletivamente e referindo-se ao passado dos ancestrais, é submetida na tragédia
a uma criação individual, vinculada por sua vez a uma espécie de censura política e/ou religiosa, o que a
distancia da epopéia. Lembremos aqui a discussão que teria ocorrido entre Tespis e Solon, preocupado
este com os efeitos no público do tratamento dado pelo poeta à matéria épica. Também é interessante
considerar que a tragédia não se voltou para o passado épico de forma exclusiva. Há também incursões
por acontecimentos históricos mais ou menos contemporâneos e os mais citados exemplos são A Tomada
de Mileto, de Fríneco e Os Persas, de Ésquilo. Devemos lembrar ainda que a tragédia é um produto da
época clássica. Como tal, todo o material tematizado por ela é submetido a uma ideologia que, embora
reverencie o passado dos ancestrais, é produto de um mundo em plena expansão, com suas novas ins-
tituições democráticas. É esta dicotomia que vale a pena considerar. Neste ponto, inclusive, parece-me
conveniente abrir um espaço de questionamento em relação a Bakhtin. Em “Epos e romance” ele coloca
que “na base de todos os gêneros nobres e acabados repousa aquela mesma avaliação do tempo, o
mesmo papel da lenda, uma distância hierárquica análoga”, passando por cima, portanto, de diferenças
visiveis entre a épica e a tragédia, diferenças estas, aliás, muito importantes para o surgimento de uma
ideologia trágica. Chamamos a atenção para o fato de que na tragédia o mito não pode mais ser visto
apenas como uma história fechada, ocorrida num passado lendário, mas como uma lenda que, ao ser
reelaborada, inclui em si mesma novos julgamentos de valor, provavelmente comuns ao poeta trágico e
seu público. Com isso queremos dizer que os heróis, embora realizando as mesmas ações do passado, e
convencionalmente no mesmo passado, é colocado agora, diferentemente da situação épica, diante de
um espaço de ambiguidade, onde são apreciados tanto quanto personagens míticos quanto como cons-
ciências individualizadas. Tanto Agamemnon quanto Clitemnestra, por exemplo, estão no limiar de uma
ação que não poderá ser vista mais apenas como perfeita e acabada. Na tragédia, a cobrança de sangue
pode propiciar uma apreensão dúbia. Assim pergunta-se: o herói age por necessidade (cumprindo uma
decisão divina) ou movido por íntimos desejos? Cada resposta implicará evidentemente em diferente
responsabilidade. Mas é em Eumênides que o autor explicita a angústia da responsabilidade, impen-
sável na consciência épica, e que só pode ser propiciada pela tensa relação entre o mito e o contexto
onde a angústia diante deste impasse também se faz presente. Podemos dizer, pois, que a Tragédia e a
consciência trágica surgem exatamente no momento em que o homem do século V AC, ao olhar para o

Proceedings XI International Bakhtin Conference 107


mito com os olhos de sua época, consegue, através dele, perceber os valores tanto do passado quanto
do presente.
Por outro lado, é importante considerar ainda a maneira com que a linguagem é elaborada na tragé-
dia. Abrindo mão de toda riqueza lingüística existente a sua época, isto é, desprezando o plurilingüísmo
que se manifestava na presença dos inúmeros dialetos que conviviam em Atenas, para onde convergiam
cidadãos de todos os demais estados gregos, o poeta opta, por uma linguagem única e centralizadora, e
por isso extremamente autoritária. E isto ele o faz não apenas para trabalhar de forma conveniente com
os mitos do passado, mas principalmente para concretizar a função de autoridade que lhe era outorgada.
Para isto converge o uso da linguagem poética e seus ritmos. Mesmo no caso da utilização de elementos
da linguagem cotidiana, como o vocabulário do direito, por exemplo, comum a muitos trágicos, o poeta
se apossa dele, usando-o para seus próprios fins.
Ao arcabouço mítico da Oréstia, matéria da Ilíada e da Odisséia e conhecido de todos os gregos da
época clássica, Ésquilo deu especificidade e carnadura. Ao lembrar ou presentificar na sua continuidade
os vários crimes do clã dos Atridas : o assassinato das crianças por Tiestes/ as crianças devoradas por
Atreu/ o sacrifício de Ifigênia/ o assassinato de Agamemnon/o assassinato de Clitemnestra/o assassinato
de Egisto/a perseguição das Fúrias – enfatiza um código de honra ancestral em que, cobrar o sangue
derramado com uma nova morte é um direito e um dever, não acarretando portanto qualquer culpa ao
sujeito da ação. Kadaré faz da trilogia uma leitura particular, e é esta leitura que orienta as relações que
podem ser apreendidas entre Abril despedaçado e Oréstia. Segundo sua visão, Ésquilo ao compor sua
trilogia, não estaria lidando com um mito perdido no passado, mas teria condensado um comportamen-
to sócio-cultural, a cobrança de sangue, ainda sobrevivente à sua época, servindo a obra, em relação
aos cidadãos da Atenas clássica, como uma espécie de exorcismo ou de liberação psicológica coletiva.
Considera portanto que o desaparecimento do mito, ou melhor, que a supressão dos rituais que reatu-
alizavam o mito, já na antiga Grécia, ocorreu em decorrência do papel do poeta. Por outro lado, para o
escritor, a proximidade geográfica entre os países da Península dos Balcãs e as várias conquistas a que
foram submetidos, fez com que, ao lado de outros elementos culturais, uma série de mitos migrassem e
se tornassem comuns entre eles. Assim, a permanência de alguns mitos, ainda hoje, na Albania, estaria
vinculado não só a condições específicas, mas também à ausência de uma grande poesia em seu pas-
sado, capaz de propiciar o mesmo papel A hipótese é interessante, mas não há nenhuma possibilidade
de ser comprovada.
O próprio Bakhtin, ao falar sobre o surgimento de certos poemas épicos que heroificam os seus con-
temporâneos (podemos exemplificar com exemplares surgidos no Kosovo durante o período medieval,
e que exaltavam os sérvios na sua luta medieval contra os conquistadores otomanos), critica qualquer
tentativa de considerá-los análogos às epopéias, ou a eles ligados pela origem, pois estes exemplares
teriam sido construídos já dentro do terreno fértil das influências, na antiga e poderosa tradição épica,
sendo portanto alheios ao território das origens.
O filme Abril despedaçado nasceu do interesse de Walter Salles pela obra de Kadaré. Segundo
Pedro Butcher e Ana Luiza Tomé, autores de História de um filme, Salles de imediato percebeu as re-
lações entre alguns acontecimentos sócio-culturais ocorridos ainda recentemente no nordeste brasileiro
e aqueles narrados na obra albanesa. No Brasil tais fatos pertencem à memória relativamente recente e
estão devidamente registrados em algumas obras de interesse sociológico, como Lutas de família no
Brasil, de Luiz Aguiar da Costa Pinto. Temos ainda narrados pela imprensa jornalística, casos de comu-
nidades distantes, alheias aos apelos de soluções institucionais, em que famílias inteiras se dizimaram
mutuamente, pleiteando uma justiça em que o sangue só pode ser cobrado com sangue. Percebendo
a universalidade do tema e o seu caráter trágico, Salles produziu um roteiro cinematográfico em que,
respeitando as características da obra de Kadaré, e suas relações com temas e motivos presentes na
Oréstia, conseguiu criar uma obra com marcas bastante pessoais.
Na trilogia trágica a lenda dos Atridas está ligada a um cânon divino e às maldições que a família
carrega como uma sina, dentro de uma antiga visão mítica/religiosa em que os filhos devem pagar pelos
erros dos pais e que está presente ainda no legislador Solon. Como seus antepassados, Orestes é herdeito
desta maldição. Todos os elementos da paidéia o preparam para a cobrança do sangue, que se vincula
ao respeito à familia, aos mortos e aos deuses. O próprio oráculo de Apolo o impele ao matricídio para
vingar a morte de Agamemnon.
No romance Abril despedaçado somos colocados diante de um novo herói da tragédia. O príncipe
Orestes transformou-se num camponês de uma região perdida no norte da Albânia que, num dia de
abril da década de 1930, realiza a cobrança de sangue que lhe cabe. Gjorg Berisha atira em Zef Krye-
qyq, vingando a morte do irmão, acrescentando mais uma morte à seqüência de mortes que constrói
a história das duas famílias. Ao contrário de Orestes, Gjorg só sente que fez o que devia ser feito, sem
remorsos, com a certeza de ter cumprido um dever, sabendo que será a próxima vítima, continuando
um ciclo de quarenta e três outras mortes, iniciadas num tempo longínqüo, quando duas famílias aldeãs,
tornaram-se inimigas. Sua morte virá segundo um ritual minucioso de que toda a aldeia participa. A vida
que lhe resta não passa de concessões do inimigo, tudo realizado segundo as normas do Kânun. Primeiro
a bessa de 24 horas para participar das cerimônias fúnebres. Depois a bessa de 30 dias. E a tudo Gjorg
submete-se sem qualquer questionamento, porque o Kanun é muito maior do que ele. É a certeza de
que a vida de um homem pertence à fatalidade ou ao cumprimento de leis que lhe são impostas que dá
ao livro características trágicas, sem torná-lo uma tragédia.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 108


O mito da hospitalidade, que torna o hospedeiro guardião e vingador de seu hóspede, ganha na obra
características de história exemplar, capaz de orientar ou criar hábitos e costumes, da mesma forma
que outras histórias já o haviam feito antes dela. Um homem batera à porta dos Berisha. Quando partia,
ainda sob a proteção dos Berisha, o hóspede foi morto por um homem do clâ dos Kryeqyq, dando início
à vendeta. Kadaré descobre neste mito um paralelo com um dos mitos cultuados pelos antigos gregos.
Para estes, um dos valores transmitidos pela educação, pela paidéia, é a lei da hospitalidade, patrocinada
por Zeus. Qualquer desconhecido, qualquer estrangeiro tem direito a ser bem recebido. Muitas vezes os
próprios deuses, travestindo-se de humanos, hospedam-se entre estes. Mas o mais famoso e nefasto de
todos os hóspedes foi Páris que, traindo as leis da hospitalidade, raptou Helena, mulher de Menelau. O
seu crime levou toda a Hélade a uma guerra sem trégua contra Tróia, cuja destruição, por sua vez, foi
cobrada pelos deuses num rastro de desastres e mortes. Exatamente como se configura no Kanun, que
ainda hoje rege a vida e a morte de grande parte dos cidadãos do norte da Albânia.
Assim, ao matar Zef, Gorg não faz mais do que “fazer o que devia ser feito”.
Já o filme concentra-se na história da família Breves que, em relação ao romance, se amplia com o
surgimento de um irmão Pacu, que terá uma papel decisivo na trama. O núcleo dramático se desenvolve
em relação a duas famílias - os Ferreira e os Breves que desde há muito se desentenderam por proble-
mas de demarcação de terra, dando inicio a um ciclo de vingança, onde como nas obras anteriormente
citadas, uma morte é cobrada por outra morte. Na adaptação cinematográfica movida por uma outra
ideologia, há uma série de modificações que implicam num andamento e em soluções diferentes para
a obra. O filme centra-se inicialmente numa série de recursos que vão enfatizar, no interior da própria
família, a importância da ação de Tonho, o filho que deve cobrar a morte do irmão, cena que ocorre
com a mesma dramaticidade das outras obras. A partir deste momento, Tonho prepara-se para viver a
vida que lhe resta. No entanto, rompendo com o fatalismo trágico, o filme procura abre-se para outras
possibilidades, saídas e caminhos.
Uma das características das tragédias é organizar-se em torno de uma dualidade que se manifesta
como elementos opositivos entre a esfera dos heróis e a do coro. Os heróis pertencem a uma outra época.
São chefes ou reis que realizaram grandes façanhas, viveram terríveis guerras ou fantásticas aventuras.
Homero os acolheu na Ilíada e na Odisséia e os tornou exemplares, cantando através deles as glórias
do passado grego, dos ancestrais. Nas tragédias eles aparecem representados por atores homens, com
máscaras e túnicas suntuosas. Já o coro é composto por um grupo de cidadãos comuns e vem apenas
disfarçado. A sua tarefa teatral é dançar e cantar, criando um efeito estético e emocional que a arte
perdeu no momento em que a música foi separada da poesia. Sua função em qualquer condição , quer
seja cantando coletivamente ou estabelecendo diálogo com o corifeu é esclarecer as ações, refletindo
sobre elas ou preenchendo espaços narrativos. Em todas as obras existe uma oposição estrutural entre
o coro e os demais personagens e que se manifesta inclusive na linguagem e no ritmo. O discurso do
coro é muito mais lírico, enquanto o discurso dos heróis aproxima-se da prosa.
Esta dualidade estrutural Ismail Kadaré procurou manter em Abril despedaçado, fugindo, pela
própria estrurura da obra ao cânone da tragédia. Assim o coro desaparece, e a solução encontrada foi,
como já apontamos, criar paralela à narrativa do herói, uma outra narrativa, que apontasse a primeira,
chamando a atenção para a sua exemplaridade, para seu caráter trágico. Na realidade o autor mostra
no seu romance um mundo enclausurado dentro de outro mundo: Ao entrar no universo do Rrafsh, o
personagem Bessian pontua para Diana:
“você vai sair do mundo das coisas comuns para o das fábulas, um mundo épico como é
difícil encontrar hoje em dia na face da terra.” (62)

Este tom do discurso se repete ao longo da narrativa. Bessian, estilizado enquanto um escritor, utiliza
uma linguagem que é a do especialista no mundo épico e trágico. Didaticamente ele vai apontando para
sua jovem esposa a semelhança entre estes e a região que percorrem, ao norte da Albânia, fazendo
uma espécie de contraponto explicativo para a primeira narrativa. Como são ambos originários da capi-
tal Tirana, as observações e os comentários são inicialmente, doutorais, de fora para dentro. À medida
porém em que ambos vão penetrando naquele “reino da morte”, dominado pelo Kanun, e deparam-se
com vários signos da morte, os seus sentimentos transformam-se. A morte pouco a pouco vai ganhando
espaço e a narrativa ganha um tom trágico que atinge seu clímax no momento em a carruagem de am-
bos – vista pelos camponeses como um estranho carro fúnebre – se cruza com Gjorg, na sua caminhada
para a morte. O encontro tem um efeito devastador para a sensibilidade de Diana e também para Gjorg.
Aos poucos, ela passa a sentir também, como o camponês, que “a vida não é mais do que uma licença
para a morte”. Para o homem condenado à morte, o olhar de Diana é uma luz que ele quer rever antes
do fim. Este elemento, de características românticas, pode ser apreendido enquanto romancização da
tragédia.
Na adaptação cinematográfica, Salles abriu mão da duplicidade narrativa. O filme é linear, no entanto,
houve um aproveitamento bastante criativo dos personagens Bessian e Diana, que se transformavam
nos brincantes Clara e Salustiano. Ao contrário da função daqueles, estes dois personagens vão trazer,
com o que eles representam de liberdade, toda uma nova possibilidade à trama narrativa e seu desfecho.
Assim, ao contrário da visão inexorável do tragédia e do romance onde a morte é o único fim possível,
Walter Salles vê uma outra saída possível, que se realiza através do amor. Não só pelo amor entre Tonho
e Clara, mas, principalmente pelo amor de Pacu – o bode expiatório - cuja morte em substituição à de

Proceedings XI International Bakhtin Conference 109


Tonho, encerra o ciclo de mortes, sugerindo o despertar de uma nova vida.
Ao fim desta exposição resta-nos ainda refletir sobre a maneira com a qual estruturalmente se reali-
zou a relação entre as obras. Na realidade, espero que tenha ficado evidente que em nenhum momento
Kadaré desejou fazer uma obra seguindo o cânone da tragédia, pois se o fizesse estaria produzindo uma
obra artificial, esclerosada. Ou ainda dependendo do tipo de trabalho com a linguagem poderíamos ter ou
uma paródia ou pastiche. Na realidade, não é este o caso, pois o que ele fez foi submeter os elementos da
tragédia a uma romancização. O romance enquanto gênero da contemporaneidade, devorou e continua
devorando todos os outros gêneros. No presente caso, ao trazer para dentro da sua esfera caracteríscas
e elementos próprios do gênero trágico, ele permite que este se renove e se transforme.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 110


Mídia: Diálogo de vozes

Selma Rizério Betaressi e Vera Lúcia Consoni Busquets

Pretendemos, neste estudo, analisar a construção da imagem feminina apresentada na seção “Veja
essa”, das edições 1775, de 30 de outubro de 2002, e 1776, de 6 de novembro do mesmo ano, da Re-
vista Veja. Tal construção chamou-nos a atenção, a princípio, pelo modo aparentemente pejorativo com
que o discurso apresenta a mulher, colocando o feminino como um objeto duplamente disforizado pelo
texto sincrético¹ que a revista estampa: imagem e texto verbal convergindo para uma mesma ideologia.
Essa disforização se aprofunda, se a figura feminina é comparada às figuras masculinas que a cercam,
perpetuando uma ideologia machista que coloca a mulher no patamar dos produtos feitos para consu-
mo, exposta em uma vitrine onde apenas a aparência conta e onde deve ser exibida, em detrimento de
sua essência. Buscamos observar a ideologia implícita nos textos analisados, pensando no diálogo de
vozes que constitui todo e qualquer enunciado concreto em que não há espaço para a neutralidade (Cf.
SOUZA, 1999, p. 119), e considerando que essa ideologia tem sido reforçada pelas próprias mulheres
que com ela pactuam.
Na seção “Veja essa” da revista do dia 30 de outubro, há a fotografia de Luciana Gimenez ocupando
o espaço quase total da primeira coluna da página 112. Luciana Gimenez é mostrada em trajes exíguos,
que mal cobrem os bustos fartos, e numa saia vermelha bastante ajustada terminando em linha diagonal
na barra. A frase em negrito que identifica a figura da fotografia é: “Estado civil: encalhada”, e o nome
da autora, Luciana Gimenez, aparece em negrito e itálico, seguido do aposto em itálico “apresentadora
de TV, na revista Boa Forma, de novembro”.
Na página 113 há, com equivalência de espaço visual, outra figura feminina identificada na legenda,
em negrito e em itálico, como Sheila Carvalho, seguida do aposto em itálico “A morena do grupo É o
Tchan!” A frase em negrito e entre aspas indica que a fala da própria figura é: “Estou namorando. Tam-
bém sou filha de Deus”. A fotografia apresentada privilegia o corpo semidesnudo da cantora e bailarina
do Grupo “É o Tchan”, usando calcinha e sutiã de renda branca, sendo o sutiã com alça de silicone e a
calcinha com sustentáculos de silicone. Fora isso, vale apenas e tão-somente a plástica exibida de Sheila
Carvalho que, tal como Luciana Gimenez, ostenta formas apolíneas, o ideal da figura de Apolo articulado
por aquilo que a mídia tem construído nos últimos tempos: a mulher de formas fartas, um corpo artifi-
cialmente emagrecido, turbinado, siliconado.
Por sua vez, na Veja de 6 de novembro temos, em equivalência de espaço visual, ou seja, mais da
metade da página, outra fotografia, desta vez de Ellen Rocche, também identificada pela legenda em
negrito e itálico, de onde emerge o aposto “modelo”. Sua fala, em negrito e entre aspas, é: “Meu corpo
é uma dádiva de Deus”, fala que perpetua a ideologia do corpo de formas perfeitas como a imagem ideal
para a mulher. Ellen Rocche veste uma saia que mal cobre as partes genitais e seu busto explode atrás
(ou na frente) de um sutiã que tem dificuldade de sustentar a fartura dos seios.
Por sua vez, na mesma edição, à página 35, temos a fotografia que recorta a atriz Winona Ryder, com
a sua fala reproduzida entre aspas: “Meu diretor me orientou a roubar lojas para fazer o papel”, e logo
em seguida a identificação Winona Ryder, em negrito e itálico, seguida do aposto “atriz americana”, em
itálico, explicando que o roubo de 5.500 dólares em roupas que praticou na loja Saks era “laboratório
para compor uma personagem de seu próximo filme”. A atriz americana, diferentemente das três figuras
femininas fotografadas nos outros exemplos citados, veste uma roupa de noite, um vestido longo reco-
berto de pedras, sobre o qual supostamente ela joga um xale que, no momento da fotografia, cai sobre
seus braços, de um dos quais pende uma bolsinha de noite, compondo um traje de gala. Winona ocupa,
em termos de extensão de página, espaço menor do que aquele reservado para as mulheres brasileiras
que esbanjam o apelo erótico.
Considerando que nada é gratuito no texto, considerando o olhar sincrético, ou seja, o leitor lê o ver-
bal articulado ao visual, considerando que a mídia fabrica mundos, observamos, nesses dois exemplares
de Veja e nessas quatro figuras femininas recortadas, um modo próprio de construir o mundo, em que
a figura da mulher ocupa um lugar na cena enunciada, lugar este que se enquadra numa topologia de
inferioridade dada por aquele narrador implícito da página da seção “Veja essa”, da Revista Veja, narrador
que é o delegado direto do sujeito da enunciação (Cf. FIORIN, 1996, p. 63-65).

1 Entende-se por texto sincrético o enunciado que, pressupondo apenas uma única enunciação, expressa idéias por meio de convergência do verbal e do
visual.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 111


Destaquemos, como primeiro exemplo, a página 112 (edição 1775) e a imagem de Luciana Gimenez.
Notamos que o narrador que construiu a página deixou de lado muitas observações e, refletindo sobre
aquilo que ele omitiu, pensando naquilo que está ausente como a grande presença, percebemos uma
formação ideológica segundo a qual a mulher vale não apenas pela competência de desencadear o apelo
erótico por meio da exposição do próprio corpo, mas também por estar acompanhada ou desacompa-
nhada do outro. Portanto, a expressão “estado civil: encalhada”, recortada da “revista BOA FORMA de
novembro”, como consta da legenda, remete à avaliação pejorativa pressuposta, já que advinda da
enunciação. O vocábulo “encalhada”, com os semas de “embaraçada, parada presa”, apresenta, aqui,
valor semântico desfavorável, para firmar como ideal a subalternidade do eu ao outro. Ao lado dessa
avaliação realizada por meio da depreciação verbo-visual, consolida-se a aparente exuberância da figura
feminina enquanto corpo, enquanto apelo erótico, enquanto oferecimento ao outro, ou seja, “estou en-
calhada, estou disponível, quem vai encarar?”, o que é confirmado pelo sorriso largo, pela postura das
pernas semi-abertas, pelo posicionamento da mão que ameaça abaixar a canga, no desenho da imagem
que constrói o simulacro da mulher, objeto fácil.
Essa maneira de ver e fabricar o mundo é dialógica, como sempre é o olhar que organiza discursiva-
mente o que parece que há, respondendo convergentemente para a mídia sensacionalista, para a mídia de
amenidades, como a Revista Caras, a Revista Contigo e a Revista Playboy, que usam o erotismo feminino
para vender: vender a si mesmas e vender as mulheres que, despojadas da própria identidade, fortalecem
a ética da submissão ao outro. Firma-se, assim, uma voz que converge para esse tipo de mídia, e uma
voz que diverge de um modo crítico, insatisfeito, verdadeiramente angustiado com os limites, querendo
sobrepujá-los e superar-se por outros meios que não apenas o corpo, não apenas a forma física como
instrumento de superação. Esse modo de presença constrói um ethos, constrói uma ética confrontante
com a ética do encontro do eu consigo mesmo, um eu sujeito faltante e em falta sempre assumida. Não.
Luciana Gimenez constrói, no enunciado, a imagem do sujeito realizado, jamais em falta.
Na página 113 (mesma edição), esse modo de presença é retomado com Sheila Carvalho, figura
réplica de Luciana Gimenez. Texto também sincrético, pois estamos observando o verbal mais o visual,
na fala de Sheila Carvalho só apresenta recortado o mundo pelo ângulo de estar ou não namorando. A
Sheila Carvalho com ou sem namorado é que interessa, a Sheila Carvalho como indivíduo solitário, como
sujeito que busca e que se assume na própria e eterna busca não existe.
Para efeito de comparação da construção discursiva, tomemos um soneto de Florbela Espanca:

EU
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

(ESPANCA, 1989, p. 39)

Depreendemos, desse soneto, a angústia pela falta do sujeito enamorado. O modo de construção
dessa angústia remete ao “eu” lírico que assume a própria falta, o que o torna trágico, portanto mítico.
Em “Veja essa”, tal modo de presença não acontece. A tragicidade do mito da falta desaparece por trás
das expressões de Luciana Gimenez, de Sheila Carvalho e de Ellen Rocche, dadas no visual, expressões
que aparecem estáticas em sorrisos idênticos: a estaticidade do preenchimento da falta em uma ima-
gem que, para ter sucesso, não se constitui como sujeito da dor, nem na aparência, nem na imanência.
Simulacros.
Considerando com Bakhtin que o signo é a arena de conflito de classes sociais (cf. BAKHTIN, 2002,
p. 46), podemos depreender que, entre Luciana Gimenez, Sheila Carvalho e Ellen Rocche, foi recortado
o mesmo modo de presença, o mesmo ethos: essas três figuras não são individualidades, são apenas
uma entidade midiática.O texto de Florbela Espanca, por outro lado, remete ao mundo que se confronta
a este, midiático, da revista em pauta.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 112


O conflito está, ainda, nas estratégias para que se construa esse ethos de mármore que está estam-
pado na revista. A arena de conflito está, portanto, naquilo cuja ocultação ajuda a perpetuar as formas
apolíneas, firmando simulacro falso de que a realização está no quilate dessas formas e na disponibili-
dade desses corpos perfeitos. A arena de conflito está no diálogo divergente de vozes, silenciado para
que se construa esse mundo midiático homogêneo: formas perfeitas, identidade esvaziada dos atores
desses enunciados da Revista Veja. O sujeito se apresenta, assim, na imagem e no modo de exposição
dessa imagem na mídia.
Observar a imagem do leitor da Revista Veja, publicação dita séria, enquanto se observam as estra-
tégias de persuasão, enquanto se depreende um ethos como modo de presença, é um desafio aberto
pelo nosso trabalho, desafio cujas possibilidades não pretendemos esgotar. Importa que, recortando por
determinado viés a figura feminina, essa revista constrói um dever-ser, um dever-fazer segundo o outro,
como imagem ideal a ser seguida pelos leitores, já que o olhar machista, perpetuado pelas próprias
mulheres, fica subentendido. Pensando no diálogo de vozes, encontra-se aqui a representação de uma
ideologia que se desdobra e que se expande: a ideologia da aparência (como se não houvesse mais nada
além dela) e o silenciamento da imanência, o silenciamento do ser; tudo em função do outro, que é o
vencedor na oposição identidade versus alteridade, depreensível desse discurso midiático.
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2002.
BARROS, Diana Luz Pessoa de Barros. “Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do discurso” IN FARACO, Carlos
Alberto et al. (orgs). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: UFPR, 1996.
————————————— “Dialogismo, polifonia e enunciação” IN BARROS, Diana Luz Pessoa de, e FIORIN, José Luiz
(orgs.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade em torno de Bakhtin. São Paulo: EDUSP, 1994.
BRAIT, Beth. “Alteridade, dialogismo, heterogeneidade: nem sempre o outro é o mesmo” IN BRAIT, Beth (org.) Estudos
Enunciativos no Brasil. Histórias e Perspectivas. Campinas: Pontes, 2001.
ESPANCA, Florbela. Sonetos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1996.
MAINGUENEAU, Dominique. Os termos-chave da análise do discurso. Lisboa: Gradiva, 1997.
———————————— “Enunciado e contexto” IN MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação.
São Paulo: Cortez, 2002.
SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. São
Paulo: Humanitas, 1999.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 113


A polifonia e o dialogismo em “Perdidos e Achados”

Ceres Helena Ziegler Bevilaqua

Rua Silva Jardim, 140. Bairro Centro.

CEP: 97010490. Santa Maria, RS

Resumo I
O discurso em primeira pessoa das personagens do conto “Perdidos e Achados”, de Osman Lins, a
representação simbólica de suas identidades, a autonomia das histórias por elas narradas configuram-nas
como personagens-narradoras, sujeitos-consciências inter-relacionados no espaço físico-geográfico e no
espaço social da linguagem, mas independentes na expressão de sua visão de mundo e trajetória parti-
cular. Cada uma dessas personagens passa a narrar sua história.. São essas várias vozes apresentadas
que caracterizam o polifonismo nesse texto, mas apenas as vozes e consciências são múltiplas, não os
destinos, que estão em igualdade pelos problemas enfrentados. Mesmo nessa igualdade, as consciên-
cias continuam independentes, autônomas, sem perderam sua individualidade. A polifonia faz com que
a narrativa se volte para a coletividade, ou seja, não é apenas a voz de um indivíduo, mas várias vozes
que se impõem à medida que lhes é oportunizado o direito de expor suas idéias. Esse recurso técnico
utilizado por Osman Lins possibilita a uma multiplicidade de personagens terem acesso à voz narrativa;
é a literatura que se volta para o coletivo, deixando de dar aquele enfoque psicológico e minucioso à
personagem principal.
Resumo II
Poliphony and Dialogism in “Perdidos e Achados”: The narrators’ first person point of view in “Perdidos
e Achados”, a short-story by Osman Lins, as well as the symbolic representation of their identities and
the autonomous traits displayed by the stories each narrator tells, make them function both as charac-
ters and narrators. Such aspects allow one to perceive each narrator as an interrelated consciousness,
not only within the phisico-geograpical space, but also, within the language’s social space.The narrators’
worldview remains independent, but their fates are similar in terms of the obstacles they have to over-
come. Because of the narrators’ own discourse, narrative becomes democratized.The emergence of those
independent and plural voices characterize Osman Lins’s Poliphony in “Perdidos e Achados”. The devices
employed by the Brazilian writer allow for a multiplicity of voices to be heard; it is Literature turning its
eyes to the collective, instead of providing a detailed, psychological focus on one, single character.

Procedendo a uma leitura prévia, geral e crítica das nove narrativas que compõem Nove, Novena, ve-
rificou-se a identidade que existe entre todas elas, do ponto de vista da composição estrutural narrativa,
da utilização de recursos experimentais de linguagem e, também, da linha temática desenvolvida. Em
vista dessa constatação, optou-se por concentrar a análise crítica do conto de Osman Lins em somente
uma das narrativas de Nove, Novena, buscando alcançar, através desse corpus básico de estudo, a den-
sidade, o aprofundamento e a precisão crítica. “Perdidos e Achados” é última das narrativas da obra e
foi a selecionada para representá-la.
Do nosso ponto de vista, é o texto mais representativo da obra, tanto por suas qualidades de discurso,
como por sua temática. Sua posição na obra, fechando as narrativas, não parece ser gratuita, pois esse
texto engloba, fazendo convergir, as várias situações existenciais e sociais tematizadas anteriormente,
nas outras oito narrativas. A angústia do homem frente à realidade que o cerca e a consciência de sua
solidão ante a imensidão do universo correspondem à síntese temática de “Perdidos e Achados” e de
todas as narrativas de Nove, Novena. Mais que em qualquer outro conto da obra, neste, o ser humano
encontra-se em pleno estado aflitivo, mimetizando o homem comum, com suas angústias e impotência
diante da grandeza do universo. O próprio título “Perdidos e Achados” é globalizante, pois remete a
perdidos de si mesmos e do mundo, aniquilados ante perdas irreparáveis.
Com Nove, Novena, Osman Lins inaugura uma fase de maturidade em sua produção literária, na qual
consegue construir uma expressão pessoal. O próprio autor observa que seu discurso é, muitas vezes,
ornamental e isso se deve à desconfiança que tinha com a literatura despojada de sua época.
Na primeira leitura de “Perdidos e achados”, já se constata que o toque ornamental fica a cargo das

Proceedings XI International Bakhtin Conference 114


constantes alusões aos períodos de formação da terra, presentes na narrativa desde o início até o final,
recuperando aspectos da geologia, com a intenção de mostrar a imensidão do universo, bem como a
idade milenar terrena. Com isso é evidenciada a importância dos oceanos e mares para a formação do
planeta.
O início do texto se caracteriza por localizar o leitor no espaço físico, visualizando-lhe a cena plástica
(praia e bichos) e emocional (até mesmo cruel), onde deverão realizar-se as ações. Esse espaço físico
é mostrado como o limiar entre mar e terra, sendo os animais que habitam essa orla marítima, vítimas
da violência dos elementos da água e da terra, como se evidencia no texto quando o narrador alude à
praia como um lugar “de ninguém”, sem regras ou leis que exerçam um controle:
... a praia é uma terra de ninguém que as águas perdem e reconquistam. Regidos pelo
ciclo das marés, os bichos que povoam esta fronteira e que na origem foram habitantes do
mar, desde muito aceitam a ingrata condição de seres disputados pelos mundos talássico
e terreno. (LINS, 1987, p.205)

A violência mostrada na parte introdutória contextualiza a violência presente no restante da narrativa,


na qual mortes são provocadas pelo mar, como nos primórdios da formação da terra, sendo que nada
pode ser feito, pois contra a natureza não há como lutar; contra as marés não há como resistir. E isso
é transmitido no texto.
Nesse momento inicial referido, de circunscrição do espaço físico, o discurso é apresentado de forma
indireta, através de um narrador onisciente. Poderia, entretanto, ser também a voz da personagem-nar-
radora que, em seguida, através de um discurso direto pergunta: “Onde está meu filho?” Essa pergunta,
como as outras três interlocuções que se seguem, ainda que em discurso direto, apresenta-se de forma
ambígua quanto à procedência do narrador, pois é introduzida apenas por travessão, sem nomeação ou
indicação do emissor.
O diálogo objetivo, travado em função da pergunta sobre o desaparecimento de um menino, introduz
o caráter angustiante que permeará a narrativa:
— Onde está meu filho?
— Não sei.
— Quantos anos?
— Sete e pouco, louro, calção verde.
— Não vi.
— Há dez minutos ele estava aqui, jogando bola. (LINS, 1987, p.205-06)

Partindo dessa breve interlocução direta, procedimento que irá repetir-se no desenvolver do texto mais
cinco vezes somente, o conto “Perdidos e Achados” passa a estruturar sua seqüência na arbitrariedade
de um discurso orientado por símbolos matemáticos. Assim, ao invés de dois pontos e travessão, a fala
da personagem será anunciada por representações gráficas simbólicas.
Ao se analisar uma narrativa com recursos semióticos empregados no lugar do tradicional travessão,
questiona-se a validade desses recursos e os objetivos de seu emprego.
Em “Perdidos e Achados”, nota-se que os sinais gráficos que anunciam a fala das personagens podem
ser tratados como signos, tendo a interpretação do leitor como ponto de partida para sua compreensão.
Esses sinais, predominantes no campo da matemática, numa leitura semiótica classificar-se-iam como
símbolos.
Pode-se notar que os símbolos gráficos utilizados no texto não têm semelhança com as pessoas que
representamos, logo, não têm dependência, foram estipulados arbitrariamente para designar as várias
personagens que têm voz ativa nesse conto de Nove, Novena.
Esses símbolos gráficos utilizados em “Perdidos e Achados” são:

∧ ∅ ∇
As únicas personagens identificadas por seus nomes são Renato e Albano, sendo as outras anônimas,
com seus discursos antecipados pelo sinal gráfico que lhes é atribuído desde o início da narrativa. Esses
símbolos, mesmo sem uma aparente semelhança com as personagens que representam, mantêm com
elas uma relação conotativa, ou seja, o símbolo remete à situação existencial de cada personagem, su-
gerindo seus problemas, angústias e frustrações.
Assim, o símbolo ∧ pode representar uma figura sem base, com um vértice apenas; no conto, esse
símbolo anuncia a fala de Renato, personagem-narradora, protagonista da história em torno do desapa-
recimento do menino na praia. Renato apresenta-se como que mimetizado pelo símbolo que precede seu
discurso, sem base, descontrolado ante a procura do filho perdido na praia. Com um vértice apenas, foge
à figura do triângulo completo, já que, na narrativa, em momento algum é citada a mãe do menino, o
que leva à situação de desmembramento familiar, como o símbolo gráfico. Mas ∧ também poderá indicar
“relação” entre as partes; no caso de Renato, seria a relação dele com o restante dos acontecimentos,
ou seja, seu problema é que desencadeia o restante da narrativa.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 115


O símbolo ∅ , em matemática, representa um conjunto vazio; no conto, representa a fala de Alba-
no, personagem que perdeu a mulher e filhas (abandonado por elas), é companheiro de Renato e está
presente no momento do desaparecimento do menino na praia:

“ ∅ Ali, sentado na areia, em roupa de banho, junto à grande barraca de lona azul que nós
próprios, do clube, armamos há duas horas e meia, vejo quando Renato, a três metros de
mim, diz a última frase” (LINS, 1987, p.206).

A vida de Albano conota o próprio significado do símbolo matemático que antecede sua fala (∅ =
vazio): sua vida se tornou vazia, sem sentido, apenas a solidão é sua companheira.
O símbolo matemático indica “que contém”, ou seja, que algo contém alguma coisa. Na narrativa,
anuncia o discurso de um homem solitário na praia, ignorado por todos, que aparece somente uma vez,
como um “zumbido” que passa pelas pessoas sem ser notado:
“ Assim como um zumbido ... surgirei em minha bicicleta, lentamente cruzarei a praia
... sem que ninguém me lance o mínimo olhar, desaparecerei como termina um zumbido,
para nunca mais ser recordado”. (LINS, 1987, p.207).

É o homem comum numa praia: despercebido. Seria a metáfora da própria existência que contém
em si o conhecimento da insignificância do ser na violência do processo existencial.
O símbolo matemático é equivalente a infinito, a algo sem limite. Na narrativa, esse símbolo anun-
cia o discurso feito por uma primeira pessoa do plural, representativa da voz coletiva, infinita, que não
conseguiria explicitar todos os que já perderam algo ou alguém muito querido: “ Choremos de mãos
dadas, em redor do morto. — em quem nos vemos”. (LINS, 1987, p.237).
O símbolo seguinte que aparece na narrativa, ∇, em matemática, seria considerado um triângulo
invertido, isto é, com a base para cima. Em “Perdidos e Achados”, representa a fala de uma personagem
feminina que perdeu o pai no mar e agora presencia, na praia, a angústia de Renato ao não encontrar
seu filho: “ ∇ Estendida na areia, também eu cor de areia, sob o guarda-sol de gomos amarelos, observo
o homem à sombra da barraca” (LINS, 1987, p.206). Essa personagem feminina (conclusão feita pelos
adjetivos que aparecem no feminino) encontra-se emocionalmente ainda abalada pela perda do pai. A
morte e, após, a frustrada tentativa de resgatar a imagem do pai (sustentáculo da família) desestruturam-
na, fazendo-a sentir-se insegura e angustiada. Sua relação com o símbolo matemático que a representa
estaria na falta de estrutura, na falta de suporte para apoiá-la; uma pessoa sem base sócio-familiar.
Entre as histórias das personagens dessa narrativa, um ponto pode ser visto como comum, além da
angústia existencial: é a relação familiar presente e as seqüelas que sua ausência pode provocar.
Nota-se que a personagem feminina participa com um discurso direto, no qual tudo é narrado por ela
em primeira pessoa. Toda a narrativa assim se desenvolve: são personagens que não se apresentam,
não são nomeadas, apenas seus discursos são antecipados por símbolo gráfico que desde o início da
narrativa lhes é atribuído. São falantes representados por signos de natureza não-verbal, mas igualmente
significativos.
Pelo emprego desses signos, o leitor é persuadido a participar da construção narrativa, através do
deciframento de “quem é quem”; essa tarefa indispensável conduz, inevitavelmente, o leitor para dentro
do texto ficcional e o insere numa situação dialógica que o tornará conivente com o texto. Tal técnica
narrativa metaforiza a técnica do mosaico ou vitral, no qual peça a peça é montada, formando, por fim,
um todo. O tom de esfacelamento, percebido no início do conto, mostrar-se-á dissipado no final, em
função da visão de conjunto que o sistema do texto acabará por oferecer.
A turbulência semiótica constatada em “Perdidos e Achados” funciona como recurso essencial da
polifonia do texto. Os símbolos gráficos atribuídos às personagens, em lugar de seus nomes, colocam-
nas numa posição de igual importância dentro da malha narrativa, ao lado do fato de que a presença de
cada símbolo introduz sempre um discurso em primeira pessoa, autônomo, correspondente à história
individual da personagem que fala. Com isso, todas as personagens são narradoras nesse conto, todas
as vozes ocupam um espaço “social”, simétrico e semelhante. O recurso semiótico utilizado por Osman
Lins, junto ao modo de construção polifônica do discurso, promovem um elevado teor democrático no
seu texto. Rompendo a forma tradicional (e gramatical) da prosa literária, essa arbitrariedade do discurso
leva, portanto, à valorização das personagens-narradoras como sujeitos no espaço social, pois, sendo
anônimas, essas personagens não carregam um comprometimento social-discriminatório. Indiretamente,
cada uma delas estará representando o coletivo — o grande número de pessoas angustiadas ante seus
problemas sociais e existenciais.
Pode-se notar que o caráter social do discurso, em “Perdidos e Achados”, apresenta-se como uma
constante, pois é abrindo espaços a várias vozes que se chegará ao coletivo, ao social.
O discurso em primeira pessoa das personagens do conto “Perdidos e Achados”, a representação sim-
bólica de suas identidades, a autonomia das histórias por elas narradas configuram-nas como persona-
gens-narradoras, sujeitos-consciências inter-relacionados no espaço físico-geográfico e no espaço social
da linguagem, mas independentes na expressão de sua visão de mundo e trajetória particular. Cada uma
dessas personagens passa a narrar sua história, tornando a narrativa o mais democrática possível.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 116


São essas várias vozes apresentadas que caracterizam o polifonismo em “Perdidos e Achados”, mas
apenas as vozes e consciências são múltiplas, não os destinos, que estão em igualdade pelos problemas
enfrentados (situação existencial aflitiva). Mesmo em igualdade de destinos, as consciências continuam
independentes, autônomas, sem perderem sua individualidade.
Assim, a polifonia em “Perdidos e Achados” se apresenta através das consciências dessas personagens,
e não de suas características objetivo-individuais, que não são, em momento algum, apresentadas, muito
menos avaliadas. O conto não inicia apresentando as características físicas de suas personagens, mas,
com uma introdução do cenário dos fatos: a praia, o oceano e suas profundezas; para logo em seguida
apresentar a indagação: “— Onde está meu filho?”(LINS, 1987, p.205)
A polifonia faz com que a narrativa se volte para a coletividade, ou seja, não é apenas a voz de um
indivíduo em monólogo ou diálogo. São várias vozes, a voz da coletividade, várias consciências que se
impõem à medida que lhes é oportunizado o direito de expor suas idéias dentro de um processo narrati-
vo. Esse recurso técnico utilizado por Osman Lins possibilita a uma multiplicidade de personagens terem
o acesso à voz narrativa; é a literatura que se volta para o coletivo, deixando de dar aquele enfoque
psicológico e minucioso à personagem principal.
Daí o polifonismo levar a uma literatura social, voltada para a coletividade, com seus problemas,
angústias e frustrações. E isso as narrativas de Nove, Novena (1986) trazem: homens angustiados e
problemas existenciais. Mais especificamente, em “Perdidos e Achados” é transmitida a angústia humana
ante a realidade, com as perdas irreparáveis que acontecem.
Em “Perdidos e Achados”, o dialogismo entre as personagens se dá através da situação inicial, a per-
da do menino. As três personagens-narradoras têm entre si um ponto em comum: a perda de pessoas
queridas. Até mesmo a coletividade, representada por um sinal gráfico está na mesma situação de perda,
que leva, conseqüentemente, a problemas existenciais.
Essas personagens estão em um mesmo nível, suas histórias encontram-se num mesmo plano, pois
relatam, de forma diferente, um problema comum a todas. Assim, o desaparecimento do menino na praia,
enunciado no início da narrativa, surge como o fator desencadeador das outras histórias e elo entre os
relatos das personagens-narradoras. Esse elo, relacionado às insuportáveis perdas humanas, provoca a
situação dialógica entre as diferentes histórias das personagens.
Considerando a idéia de Bakhtin que carnavalização é “a transposição do carnaval para a linguagem
literária” (BAKHTIN, 1981, p.105), é necessário associar essa carnavalização ao aspecto ideológico e
social da linguagem. A carnavalização da linguagem se apresenta como elemento fundamental, a partir
do momento que inverte papéis e funciona como foco de denúncia social e existencial.
A “ação carnavalesca” se apresenta de forma biunívoca, sendo que o ritual de coroação-bufa e con-
seqüente destronamento abrem caminho para outras ambivalências na narrativa literária. Em “Perdidos
e Achados”, o próprio título já remete a esse caráter ambivalente: “Perdidos” (negação) pressupõe
“Achados” (riso de júbilo, na linguagem carnavalesca).
O início do conto também revela ambivalência ao constatar “que as águas perdem e reconquistam”:
subindo, a maré invade galerias, para depois se afastar, levando tudo: peixes, moluscos, mas deixando
também a morte aos miúdos moluscos e crustáceos que não conseguiram acompanhar as águas que
se foram.
Conforme Bakhtin “Tudo tem a sua paródia, vale dizer, um aspecto cômico, pois tudo renasce e se
renova através da morte”. (BAKHTIN, 1981, p.109). Em “Perdidos e Achados”, ao colocar no texto narrativo
alusões à formação da terra com sua origem no mar, numa referência ao ciclo nascer/morrer, Osman Lins
recupera este pensamento de Bakhtin, referente à paródia na Antigüidade, que também estava ligada à
cosmovisão carnavalesca. Logo, o que serve de base a esse conto, vida/morte, apresenta-se como uma
forma de carnavalização, enquanto trabalha elementos ambivalentes.
No que se refere ao discurso narrativo há paródia quando há inversão. Nesse conto, a estrutura do
discurso inverte a estrutura do discurso do conto tradicional. Há um corte na seqüência linear da narra-
tiva, na fala das personagens quando anunciadas por sinais gráficos matemáticos ao invés dos recursos
tradicionais. Toda a inovação em Osman Lins se apresenta como uma inversão aos padrões tradicionais
do conto.
O tom burlesco da narrativa também está na construção, na subversão que há no texto ao se mistu-
rarem vozes das personagens- narradoras. O fato de ser atribuído um símbolo a cada personagem que
expõe seu discurso já é uma subversão ao tradicional. Uma violação ao comum. É a carnavalização da
linguagem literária.
O esquema de misturar discurso direto de vários narradores, numa composição que não comporta
parágrafos tradicionais, preenchendo a página do início ao fim, auxilia para a carnavalização da lingua-
gem e da estrutura narrativa de “Perdidos e Achados”, enquanto ruptura com a estrutura tradicional do
conto.
Assim, essa estrutura narrativa que rompe com a tradicional pode ser vista como uma forma de ri-
dicularizar a própria estrutura literária. É uma agressão ao tradicional, uma maneira de romper com o
oficial e vigente. Enquanto a temática desse conto mostra revolta contra a ordem existencial e social, a
estrutura narrativa implode a ordem convencional da literatura em prosa.
A carnavalização também se apresenta na mistura do sério com o banal (“perderam filhos ou relógios

Proceedings XI International Bakhtin Conference 117


... a coragem ou os dentes, os pais ou o dinheiro...”)(LINS, 1987, p.212) numa dessacralização do que
as pessoas têm de mais sagrado: a família (filhos, pais e a própria vida). Dessa forma, a carnavalização
rompe com a ideologia moralizante, ou seja, “traveste” a moral dominante. Carnavalizar é ver o mundo
ao contrário.
O “le monde à l’envers” que Bakhtin coloca, pode ser notado em “Perdidos e Achados”; o texto mos-
tra e denuncia: é o mundo dito “normal”, com milhões de estágios evolutivos, mas submisso à miséria
social e à morte arbitrária (até crianças são tragadas pelas águas). É o mundo de discriminação social,
de autoritarismo e miséria.
Osman Lins, ao mostrar os habitantes das margens dos rios de Pernambuco, mais precisamente do
Recife, com paciência e resignação está mostrando a “vida às avessas”; normal seria a contestação, o
levante que faz parte da natureza humana. Os recifenses, ao aceitarem suas misérias, estão invertendo
o jogo da vida, da própria natureza (colocando o absurdo em evidência; é a carnavalização).
A leitura de “Perdidos e Achados”, sob a perspectiva da teoria polifônica de Mikhail Bakhtin, permitiu
constatar uma turbulência de narradores, além da presença da carnavalização, tumultuando o proces-
so narrativo usual e expurgando o monologismo autoritário. Com isso, Osman Lins acaba gerando não
apenas um produto insólito, como também uma ordem social-literária renovadora em seu próprio fazer
literário.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro:Forense, 1981.
———— Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1977.
LINS, Osman. Nove, Novena. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

Palavras-chave: polifonia, dialogismo, carnavalização.


Biografia resumida: Ceres Helena Ziegler Bevilaqua é professora do Departa-
mento de Letras Vernáculas do Curso de Letras da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM), Rio Grande do Sul e do Programa de Pós-graduação em Letras da
mesma Instituição, na linha de pesquisa “Literatura, história e identidade”. O artigo
apresentado, sobre Nove, Novena de Osman Lins, é fragmento da dissertação de
Mestrado a qual impulsionou a continuação da pesquisa sobre a obra do autor,
culminando na tese de doutoramento pela PUC–RS na área de Teoria da Literatura.
Atualmente, coordena o Curso de Graduação em Letras da UFSM.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 118


Bakhtin e a estética audiovisual contemporânea

Cláudio Bezerra

Universidade Católica de Pernambuco

Rua Francisco Lacerda, 56, Várzea, CEP: 50741-150, Recife, PE

claudiobezerra@uol.com.br

Resumo
O presente trabalho defende a expansão do princípio do dialogismo de Mikhail Bakhtin para o estudo
das complexas narrativas audiovisuais contemporâneas, em geral estruturadas a partir de uma combinação
de diferentes gêneros, linguagens e suportes tecnológicos. A partir da análise dos trabalhos do roteirista
e diretor pernambucano Guel Arraes, na televisão e no cinema, pretende-se mostrar que o audiovisual
tem operado um diálogo criativo com diferentes matrizes culturais. Parodiando formatos consolidados,
abolindo fronteiras entre ficção e realidade e operando um processo de hibridização tecnológica tendo
como eixo central o humor, Guel Arraes é um caso prototípico da estética audiovisual contemporânea. A
citação sistemática que faz a certos gêneros estáveis para trabalhá-los numa outra perspectiva narrativa
pode apontar para a formação de novos gêneros audiovisuais baseados no princípio dialógico do hibri-
dismo, pois como observa Bakhtin o gênero vive do presente, mas sempre recorda o passado.
Abstract
This work postulates the expansion of Mikhail Bakhtin’s principle of dialogism in order to study con-
temporaneous complex audiovisual narratives, usually structured from a combination of different genres,
languages and technological supports. From the analysis of the television and film works of Brazilian
(Pernambuco state) director Guel Arraes, this work shows how audiovisual has developed into a creative
dialog with diverse cultural matrices. Echoing established formats, abolishing frontiers between fiction
and reality and working through a process of technological hybridization having humor as its axis, Guel
Arraes is considered as a prototypical example of contemporaneous audiovisual esthetics. His use of
consolidated genres, working them in another narrative perspective, may point to the emergence of
new audiovisual genres based on the dialogic principle of hybridism, since, as Bakhtin observes, genre
lives on the present but always recalls the past.

Em seus primórdios o cinema em nada se parecia com o que conhecemos hoje. Era tão somente uma
atração a mais, nunca exclusiva, nem a principal, para os freqüentadores dos espetáculos populares.
Os filmes, de alguns segundos a não mais que dez minutos de duração, eram exibidos como curiosida-
des nos intervalos das apresentações em circos, feiras ou carroças mambembes. Nos grandes centros
urbanos dos países industrializados essas projeções foram-se concentrando em casas de espetáculos
de variedades, onde se podia também comer, beber e dançar, como as music-halls na Inglaterra, os
café-concerts na França, e vaudevilles nos Estados Unidos. E foi nesses lugares inóspitos e populares,
mal-afamados pela atmosfera de “baixo nível” dos espetáculos burlescos, freqüentados por um público
proletário, predominantemente masculino, onde a diversão misturava-se com prostituição e marginali-
dade, que o cinema nasceu e cresceu em seus primeiros anos.
Naquela época, os catálogos dos produtores classificavam os filmes como “paisagens”, “notícias”, “to-
madas de vaudeville”, “incidentes”, “quadros mágicos”, teasers (um eufemismo para pornografias), entre
outros. Um sistema classificatório derivado não tanto das artes eruditas dos séculos XVIII e XIX, mas
principalmente da cultura popular da Idade Média ou de épocas imediatamente posteriores. A iconografia
de um dos grandes nomes do cinema dessa época, o ilusionista francês Méliès, por exemplo, provém
da tradição pictória da Idade Média que despreza as convenções da perspectiva artificialis renascentista
e as regras do naturalismo clássico1.
O ponto de mutação na história da cinematografia deu-se em meados da primeira década do século
XX, quando os empresários e a pequena burguesia que realizava os filmes perceberam que a condição

1 A esse respeito ver MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 119


necessária para o pleno desenvolvimento comercial do cinema estava na formação de um novo público
que incorporasse, sobretudo, a classe média e alguns segmentos da burguesia. Foram então adotadas
uma série de medidas para conquistar um público mais familiar e sofisticado, especialmente nos Esta-
dos Unidos. Além de restrições legais, como a censura de filmes considerados pornográficos ou exces-
sivamente violentos, e a proibição da venda de bebidas alcoólicas nos locais de projeção, houve todo
um investimento no sentido de inserir o cinema como uma esfera autônoma no campo das artes, e o
modelo de organização da narrativa adotado pela maioria dos realizadores foi o do romance e do teatro
naturalista do século XVIII.
Em outras palavras, o cinema teve que apreender a contar uma história com começo, meio e fim,
armar um conflito e desdobrá-lo em acontecimentos contínuos e lineares, com personagens dotados de
densidade psicológica. O cineasta David Wark Griffith, por exemplo, foi um dos mais criativos realizado-
res da época. Ao adaptar obras de escritores como Shakespare, Tólstoi, Charles Dickens, entre tantos
outros, Griffith foi percebendo que a aparência naturalista no filme dependia da habilidade do realizador
em dissimular a descontinuidade e a fragmentação das histórias geradas pelo corte na montagem. Ainda
que a narrativa dos seus filmes não seja inteiramente homogênea e unitária, para muitos estudiosos
Griffith é considerado o pai do cinema naturalista por ter conseguido organizar os fragmentos das ce-
nas, os planos2, com tanta habilidade a ponto deles parecem coerentes para a experiência perceptiva
do espectador da primeira década do século XX. Atribui-se a essa coerência organizativa dos planos o
estabelecimento da noção de narrador3 na obra de Griffith.
No entanto, a evolução dessas regras de continuidade, denominadas genericamente de raccord, será
plenamente estabelecida somente nos anos 20. No período que vai do fim da Primeira Guerra Mundial
até a crise de 1929, o cinema viveu sua primeira grande fase de desenvolvimento como indústria do
espetáculo e da linguagem, em diferentes partes do mundo. É nessa época, considerada do “apogeu do
cinema mudo”, em que os Estados Unidos conquistam a supremacia na cinematografia mundial, em grande
parte como conseqüência do seu êxito na Primeira Guerra, mas também por uma política de produção
baseada em enormes investimentos de capital e o desenvolvimento de formas de controle monopolizado
dos três setores da indústria cinematográfica: produção, distribuição e exibição.
A ascensão de Hollywood no mercado mundial do cinema baseou-se, principalmente, em dois fatores:
o studio system e o star system. Além de desencadear uma forma peculiar de integração dos diferentes
setores da indústria, o studio system representava também um método de trabalho destinado a maxi-
mizar os lucros, otimizando os investimentos. Na prática isto significava uma rígida divisão do trabalho
e uma total subordinação de todos os setores (diretores, atores, roteiristas, etc) à figura do produtor.
Já o star system, por um lado tinha o “estrelismo” como forma peculiar de promoção do produto cine-
matográfico, e por outro a política de gêneros como instrumento eficaz de diferenciação na oferta de
produtos cinematográficos para o público.
Portanto, já nos anos 20 a questão dos gêneros narrativos no cinema está bem definida a partir dos
modelos do teatro e da literatura naturalista, evidentemente não como uma transposição literal, mas como
uma readaptação a partir das especificidades narrativas propriamente cinematográficas, bem como dos
interesses circunstanciais da indústria. Tem-se assim como principais gêneros: a comédia sentimental,
o melodrama, o drama épico-histórico, o western, o filme de gângster e a comédia. Mesmo que inúme-
ras outras experiências de interação entre cinema e vanguardas artísticas e literárias anti-naturalistas
tenham ocorrido ao longo de toda a década de 20 na Europa4, no contexto da indústria cinematográfica
mundial prevaleceu as formas narrativas hollywoodianas.
O advento do cinema sonoro nos anos 30 veio consolidar ainda mais a hegemonia de Hollywood. A
junção sincronizada da imagem com a palavra e a música desencadeou uma nova revolução na esté-
tica do filme, ampliando as possibilidades narrativas em gêneros realistas e potencializando o caráter
fantástico e imaginário do cinema com o desenvolvimento de outros gêneros. Além da comédia, que se
serve das possibilidades do diálogo, e do melodrama, que adquire maior realismo na apresentação dos
conflitos, surge um novo gênero que iria marcar época na estética e na ideologia do cinema dos Estados
Unidos, o musical. O som também contribuiu para o êxito crescente do desenho animado e do filme de
ficção científica.
Entre 1932 e 1946, período considerado como “idade de ouro” de Hollywood, os filmes produzidos
nos Estados Unidos praticamente dominaram o circuito exibidor mundial. E mesmo havendo pelo menos
duas outras cinematografias nacionais fortes nessa época, a do cinema francês onde se firma a cor-
rente do “realismo poético”, e a escola inglesa de documentários, especialmente com os filmes de John
Grierson, para grande parte do público o cinema continua sendo identificado, sobretudo, com o cinema
norte-americano.
Do cinema moderno ao pós-moderno: tempo e espaço de transgressões
O cinema clássico hollywoodiano baseado em regras rígidas de continuidade para produzir a impres-
2 Tecnicamente um plano se constitui como um certo enquadramento da imagem que depende da distância da lente em relação ao objeto. Teoricamente,
no entanto, diz respeito a um certo corte no tempo e no espaço.
3 A noção de narrador no cinema diz respeito aqui a mediação entre a representação inscrita nos diferentes planos (quando se fragmenta a narrativa) e
o público. O narrador seria, portanto, o que Machado (op.cit.) chama de uma “entidade invisível”, que organiza a matéria fílmica e lhe dá uma forma de
apresentação para o espectador.
4 A exemplo do expressionismo alemão e das experiências dos cineastas russos, como Eisenstein e Vertov, entre outros. A esse respeito ver COSTA, Antonio.
Compreender o cinema. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1989.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 120


são de realidade e deflagrar o mecanismo da identificação no público, a partir da encenação de estórias
provenientes de gêneros narrativos bastante estratificados de leitura fácil e de popularidade comprovada,
e de todo um sistema de representação que procurava anular a sua presença como trabalho de repre-
sentação, reinou absoluto até o final dos anos 50, período em que se constitui o que os historiadores
chamam de “cinema moderno”, com novas linguagens e propostas estéticas e narrativas.
O marco inicial dessa nova etapa na história da instituição cinematográfica foi o surgimento de uma
geração de realizadores franceses originários da crítica especializada em cinema, especialmente dos
Cahiers du Cinéma, revista fundada em 1951 por André Bazin para se contrapor ao studio system e
ao star system assimilados pelo cinema francês, e que apresentava uma nova maneira de analisar os
filmes valorizando o estilo do diretor como autor. Esses jovens defendiam um tipo de cinema pessoal,
espontâneo e de baixo custo, que evitasse os procedimentos complicados dos estúdios e o artificialismo
formal da produção francesa; um cinema, enfim, onde a câmera pudesse ser utilizada pelo diretor com
a mesma liberdade que o romancista ou o ensaísta usa a caneta.
Partindo desses pressupostos teóricos os cineastas franceses experimentaram novas formas expressivas
realizando filmes sobre temas banais ou de atualidade, com equipamentos leves e um estilo fotográfico
despojado em produções de baixo custo. Jean Luc Godard, um dos mais inventivos diretores de sua ge-
ração, usou em seus filmes técnicas de recitação e da filmagem baseadas no improviso, da montagem
descontínua e da mixagem polifônica de diálogos, ruídos e trilha sonora, no intuito de desestruturar a
continuidade fílmica e romper o fluxo narrativo, tão caros ao cinema clássico hollywoodiano.
Essa atitude transgressiva para com o modelo naturalista do cinema clássico ganhou adeptos no mun-
do inteiro, no bojo de toda a contestação política e cultural dos agitados anos 60, com o surgimento de
inúmeras cinematografias nacionais5. Nos EUA, por exemplo, o movimento conhecido como novo cinema
americano, ou simplesmente cinema underground, procurou romper com todos os valores de mercado
em prol da liberdade e da autonomia expressiva, autoral. Um dos expoentes desse movimento, o pintor
Andy Warhol, como forma de negar o cinema narrativo realizou filmes com um único enquadramento
fixo e uma única situação, como Sleep (1964), que mostra um homem dormindo durante seis horas
ininterruptas. O cinema underground também inovou ao radicalizar o uso da metalinguagem com alusões
e referências explícitas, de forma irônica ou dessacralizante, a cenas e mitos hollywoodianos.
Muitas outras cinematografias procuraram romper com as narrativas clássicas e exploraram com com-
petência novas modalidades expressivas, utilizando-se das facilidades de equipamentos portáteis e das
bitolas menores, em 16mm e 18mm, tal como o cinema novo no Brasil, cujo bordão era “uma câmera
na mão e uma idéia na cabeça”. Outro momento rico dessas experiências inovadoras da década de 60
ocorreu no âmbito do gênero documentário, revigorado pelo avanço tecnológico que viabilizou a filma-
gem sincronizada de imagens e som com boa qualidade técnica. Utilizando-se de equipamentos leves e
adotando formas expressivas da reportagem da televisão ou baseadas no improviso, os documentaris-
tas, especialmente da Inglaterra, do Canadá e da França, deram um novo impulso ao documentário de
caráter etnológico e sociológico.
De um modo geral, essas inúmeras experiências alternativas que ocorreram no cinema a partir do
final dos anos 50 podem ser vistas como reelaborações de formas expressivas que já tinham ocorrido,
em caráter excepcional, com as vanguardas artísticas dos anos 20, que foram ofuscadas e domesticadas
pela máquina de fazer cinema de Hollywood. No entanto, não se pode esquecer o papel decisivo que
a tecnologia de captação e reprodução de imagem e som teve no experimentalismo cinematográfico a
partir da década de 60 do século XX. Além disso, a pesquisa do novo e a recusa da tradição no chamado
“cinema moderno”, que pressupunha uma vitalidade e um desenvolvimento ilimitado da instituição cine-
matográfica, estava em perfeita sintonia com o que vinha acontecendo em outras formas de expressão
artística de sua época, levando o cinema a reforçar tendências paralelas na literatura e nas artes plásticas
e figurativas.
Essa idéia de superação do modelo de produção e das formas narrativas do “cinema clássico”, ao me-
nos em suas manifestações mais radicais, traz em seu bojo o germe do que poderia ser apontado como
um cinema “pós-moderno”, num sentido análogo ao que este termo é utilizado para definir o campo das
artes figurativas, da literatura, da ciência, da cultura e da própria vida contemporânea, a partir de um
novo tipo de relação com a história e a tradição: uma relação que pode ser de nostalgia, ironia, relei-
tura, repensamento e de regressão. No âmbito específico do cinema essa atitude tem provocado, entre
outras coisas, uma certa recorrência à prática do remake de filmes clássicos e a incorporação de modos
de expressão considerados específicos da TV, como a estética fragmentada do videoclipe6.
Para Antonio Costa (1989), a pós-modernidade no cinema inicia na década de 70, época em que a
instituição cinematográfica vive uma crise estrutural profunda com a perda de público para a televisão.
O fenômeno, até então inédito, teve efeitos catastróficos e contraditórios. Por um lado a redução de
espectadores provocou uma diminuição do número de filmes produzidos e fechou muitas salas de exibi-
ção, levando os mais céticos a pensarem na “morte do cinema”. Por outro fez crescer vertiginosamente
o consumo de filmes pela televisão, o que, num primeiro momento, provocou tensão e estranhamento,
mas paulatinamente gerou uma interação crescente entre os dois meios com repercussões profundas
nos modos de produção, distribuição e veiculação dos filmes. Transformado pelas novas tecnologias

5 Para conhecer os diferentes movimentos cinematográficos dos anos 60 ver HENNEBELLE (1978).
6 Muitos autores já se debruçaram sobre a influência da linguagem do videoclipe no cinema. Entre outros, ver CONNOR (1993) e JAMESON (1997)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 121


eletrônicas, o cinema passou a ser visto dentro de um universo mais amplo e articulado do audiovisual,
e absorveu muitas modalidades expressivas da televisão e do vídeo.
Ao renovar suas estruturas de produção, os conteúdos e as formas expressivas dos seus filmes, o
cinema norte-americano foi dos primeiros a explorar essa nova conjuntura. E dentre as principais ini-
ciativas que contribuíram para a retomada da supremacia das majors de Hollywood no cenário mundial,
a partir dos 80, estão a revisão ideológica dos gêneros clássicos, a exemplo do western, onde os índios
deixam de ser bandidos e passam a ser vistos como vítimas de genocídio; a mistura de gêneros narrati-
vos; e a integração das tecnologias fotoquímica (cinema), eletrônica (televisão e vídeo) e computacional
(informática). A nova ficção científica, por exemplo, situa bem essas transformações, pois tanto conver-
ge para si muito dos gêneros clássicos do cinema (western, aventura, suspense, desenhos animados,
melodrama, comédia, etc), como também faz uso sistemático e progressivo do que há de mais moderno
em termos de tecnologia7.
Na prática essas novas instâncias tecnológicas de produção e transmissão de mensagens revitali-
zaram o cinema como um todo, tanto em termos técnicos como estéticos, pois ao dialogar com outros
suportes eletrônicos sua materialidade expressiva passou a se constituir a partir de uma encruzilhada
de linguagens. Como fruto dessa “transfusão sígnica”8, a imagem cinematográfica torna-se múltipla e
bem mais maleável, a ponto de poder operar com o tempo presente, o da imediatez televisiva. Bastante
emblemático nesse sentido é o documentário brasileiro de José Padilha, Ônibus 174 (2002), que aborda
o seqüestro de um ônibus no Rio de Janeiro em plena luz do dia, o filme é construído com imagens gra-
vadas e transmitidas ao vivo pelas emissoras de televisão que acompanharam o desenrolar do caso que
culminou com a morte do seqüestrador pela polícia diante das câmeras. O filme, inclusive, usa e abusa
de recursos muito próprios da transmissão televisiva, como o slow motion e o replay.
A influência da mídia eletrônica também alterou o ritmo narrativo da montagem cinematográfica,
tornando-a bem mais musical. Os planos de detalhes e os primeiros planos tão comuns na televisão e no
vídeo, por força da baixa profundidade de campo da imagem eletrônica, são cada vez mais freqüentes em
narrativas fílmicas cada vez mais fragmentadas. Por outro lado, ao assimilar as inúmeras possibilidades
operativas da computação gráfica, como a construção de cenários artificiais, a recriação de imagens cap-
tadas do mundo real, ou oriundas de outros suportes, a animação tridimensional, a coloração de filmes
antigos, entre outros recursos, o cinema expandiu a sua visualidade plana para uma dimensão alargada
e mais sensível. Em suma, com o suporte eletrônico digital o cinema pode intensificar o diálogo com
outras modalidades artísticas como a pintura, a escultura, a dança, o teatro e até mesmo com ativida-
des cotidianas como o lazer, o trabalho, a educação, entre outros. Cabe ainda ressaltar que, do ponto
de vista narrativo, os novos suportes tecnológicos digitais têm permitido cada vez mais a exploração
do recurso da metalinguagem, tanto no cinema como na televisão e também no teatro, à medida que
recupera e coloca em circulação em vídeo e DVD todo um acervo da memória audiovisual construído ao
longo de mais de cem anos.
Como então entender e classificar esse audiovisual contemporâneo? É possível encontrar qualidade
artística nesses produtos híbridos, cada vez mais formatados a partir da “colagem” com diferentes supor-
tes e tecnologias? Mais ainda: ainda é possível falar em gênero e estilo no audiovisual contemporâneo?
A nosso ver as respostas a essas perguntas podem estar em Bakhtin.
O hibridismo como regeneração dos gêneros e das linguagens
Ao estudar o romance como signo cultural produzido ao longo de vários estágios da vida humana,
Bakhtin (1988) formulou a hipótese de que, mesmo sendo expressão da língua culta oficial e da própria
sociedade burguesa que o consagrou, o romance esconde outras linguagens em conflito, é um gênero
literário em prosa marcado pela multiplicidade e interação discursiva das línguas e das linguagens, da
escrita e da oralidade. Tem, portanto, raízes antigas e populares, e se constitui a partir de outros gêneros
discursivos oriundos dos usos da linguagem. Para dar conta dessa complexa combinação discursiva que
é o romance Bakhtin formulou uma categoria teórica que se tornou o eixo de toda sua investigação, o
dialogismo.
No campo específico da literatura o dialogismo diz respeito à relação entre o texto e os seus outros,
entre o dito e o não-dito, o que está no contexto social onde o texto se inscreve, porque todo enunciado
só existe em relação a muitos outros enunciados, sendo mesmo essa interação diálogica que produz
o sentido. Numa perspectiva mais ampla o dialogismo bakhtiniano, como já demonstrou Robert Stam
(1992), se refere às possibilidades abertas e infinitas das práticas discursivas e está na gênese de todos os
enunciados da comunicação humana ou de qualquer produção cultural, seja letrada ou analfabeta, verbal
ou não-verbal, elitista, massiva ou popular. De acordo com essa linha de raciocínio, é possível transpor o
conceito do dialogismo para o campo do audiovisual porque ele oferece a chave para o entendimento dos
processos de contaminação entre gêneros, linguagens e suportes tecnológicos nas narrativas audiovisuais
contemporâneas, fundadas no diálogo entre diferentes matrizes histórico-culturais.
Ao contrário do que pensam os críticos do hibridismo das narrativas contemporâneas como sendo um

7 Basta ver as filmografias, entre outros, de Steven Spielberg, a partir de Contatos imediatos do 3o grau (1977) e George Lucas, a partir de Guerra nas
estrelas (1977).
8 Expressão usada por NUNES (1996) para definir as contaminações entre imagens fotoquímicas e eletrônicas no cinema contemporâneo.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 122


sintoma da falta de estilo e de criatividade9, é possível sim encontrar qualidade estética em alguns pro-
dutos artísticos atuais, inclusive naqueles que são produzidos e circulam na chamada indústria cultural.
E mais uma vez Bakhtin (1997) se mostra eficaz para esse entendimento, especialmente sua concepção
de gênero. Para o pensador russo o gênero não se define como uma classificação hierarquizante da lin-
guagem, mas como um fenômeno vivo e dinâmico que se constitui a partir da interação com diferentes
matrizes de natureza histórica e cultural. Em outras palavras, o gênero se define na dinâmica da repetição
e da inovação, da continuidade e da transgressão, do passado e do presente, renasce e se renova a cada
nova etapa do desenvolvimento da linguagem e em cada obra individual de cada gênero.
Mesmo que a noção de gênero em Bakhtin tenha sido elaborada para análise literária, ela mostra-se
também aberta e adequada para o entendimento de outras obras artísticas de nosso tempo, especial-
mente no campo do audiovisual, pois diz respeito a um certo modo de organizar idéias, meios e recur-
sos expressivos consolidados numa determinada cultura para garantir a comunicabilidade dos produtos
e a continuidade de suas formas junto a comunidades futuras. Ora, se a materialidade expressiva do
audiovisual contemporâneo se constitui a partir do hibridismo de diferentes suportes tecnológicos de
base fotoquímica, eletrônica e computacional, e de diferentes linguagens herdadas do cinema, da litera-
tura, do teatro, da televisão, do vídeo, do teatro popular, do jornalismo, entre tantas outras formas de
expressão suficientemente estratificadas na sociedade por várias gerações de enunciadores, nada mais
coerente que estudá-lo como gênero na perspectiva de Bakhtin. De certo que a maior parte da intensa
produção audiovisual contemporânea é de qualidade duvidosa, mas não se pode generalizar, pois existem
autores que realizam obras criativas a partir da combinação com diferentes materialidades expressivas,
evoluindo na direção de novas e distintas possibilidades enunciativas. E se o gênero, como diz Bakhtin,
é o representante da memória criativa no processo de desenvolvimento da linguagem, é perfeitamente
possível falar em qualidade artística na estética audiovisual contemporânea.
O hibridismo na obra de Guel Arraes
O roteirista e diretor de cinema e televisão Guel Arraes é um exemplo eloqüente do hibridismo no
audiovisual brasileiro. Operando com diferentes gêneros discursivos e suportes tecnológicos, Guel tem
realizado trabalhos criativos e de reconhecida qualidade10. Para entender melhor a obra deste autor é
importante conhecer um pouco de sua trajetória. Apesar de ter construído sua carreira na televisão, Guel
Arraes teve uma formação voltada para o cinema. Embora não tenha feito um curso específico na área,
freqüentou cinematecas onde cultivou uma admiração pelos cineastas russos, o cinema dos primeiros
tempos de Meliés, o cinema de arte francês, a nouvelle vague e o cinema novo brasileiro. Como muitos
jovens de sua época, Guel também se interessou pelo filme em Super 8 que abriu caminho para o expe-
rimentalismo e fomentou produções que flertavam com as artes plásticas e a cultura pop.
No período em que esteve exilado11 na França cursou Antropologia na Universidade de Paris VII e teve
contato com os filmes de Jean Rouch, um dos responsáveis pelo cinema verdade, uma das correntes do
cinema documentário do início dos anos 60, que defendia a intervenção do cineasta no filme e a intera-
ção da equipe de filmagem com os atores sociais. Guel acabou trabalhando por sete anos no Comitê do
Filme Etnográfico dirigido por Rouch e foi lá onde começou a montar e a fazer os seus primeiros filmes.
De volta ao Brasil, no início dos anos 70, trouxe na bagagem a formação cinematográfica do cinema
verdade e uma paixão pelo anti-ilusionismo. E antes de trabalhar como assistente de câmera em Beijo
no Asfalto (1980), de Bruno Barreto, realizou alguns filmes em Super 8. Em 1981, Guel Arraes entrou na
Rede Globo e foi trabalhar em telenovelas com Jorge Fernando e Sílvio de Abreu, este último um profundo
conhecedor da chanchada brasileira por ter sido assistente de direção de Carlos Manga na era de ouro
dos estúdios da Atlântida, nos anos 40/50. Guel redescobre o cinema popular brasileiro e junto com Sílvio
Abreu e Jorge Fernando retoma a tradição das chanchadas em novelas como Jogo da Vida (1981/1982)
e Guerra dos Sexos (1983/1984), entre outras. Além da paródia o trio leva para a telenovela o estilo da
comédia maluca dos anos 30, recursos até então impensáveis nas novelas televisivas.
Depois Guel Arraes realizou Armação Ilimitada (1985-1988), um seriado voltado para o público
jovem que abordava conflitos e situações vividas por dois surfistas e uma jornalista “cabeça”, objeto
de desejo de ambos. Armação era um programa ousado e criativo que mesclava elementos narrativos
das histórias em quadrinhos, dos desenhos animados, dos filmes burlescos, do videoclipe, dos seriados
televisivos norte-americanos e da própria telenovela, apontando o caminho que seria trilhado por Guel
nos trabalhos subseqüentes. Na seqüência vieram TV Pirata (1988-1990), que parodiava os principais
formatos da programação da TV; Programa Legal (1991-1992), que mesclava jornalismo e dramaturgia
para abordar de maneira bem-humorada aspectos da realidade sociocultural brasileira; e tantos outros
programas oriundos de um hibridismo de gêneros e linguagens que contribuíram para a configuração de
novas matrizes organizativas da linguagem televisual12.
Mas é na realização das minisséries O Auto da Compadecida (1999) e A invenção do Brasil (2000),
onde Guel Arraes opera um processo de radicalização do hibridismo entre gêneros narrativos, lingua-

9 Uma crítica generalizante que se volta sobretudo contra a tecnologia e a reprodução técnica, numa leitura equivocada das questões suscitadas por Benjamin
num texto clássico. Entre outros, ver SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. São Paulo: Nobel, 1991.
10 Ver MACHADO (2000).
11 Guel Arraes é filho do ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes. Cassado pelo Golpe Militar de 1964, Arraes viveu exilado na Argélia até retornar
para o Brasil com a Anistia para os presos políticos.
12 Para saber de toda a produção de Guel Arraes ver Documento de Trabalho do Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Contemporânea (2003).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 123


gens e suportes tecnológicos. Veja-se, por exemplo, O Auto, adaptação de um dos grandes textos da
dramaturgia brasileira de autoria do escritor paraibano Ariano Suassuna que, filmado em película de
35mm apenas para viabilizar um programa com qualidade cinematográfica na televisão, acabou sendo
desdobrado em dois produtos: a minissérie de 2h40 e uma versão condensada para o cinema de 1h44.
Posteriormente, ambos foram comercializados também em vídeo e DVD.
Não é apenas o trânsito entre suportes que chama atenção nas versões do Auto da Compadecida,
feitas por Guel Arraes, mas também a maneira peculiar como ele opera com diferentes matrizes cultu-
rais na adaptação do texto original da peça, suprimindo personagens e acrescentando outros oriundos
das farsas medievais e renascentistas, assim como de outros textos do próprio Ariano como Rosinha,
filha do major Antonio Moraes13, extraída das peças A pena e Lei e Torturas de um Coração. É possível
encontrar ainda referências ao cinema burlesco, a comédia maluca e ao teatro popular nordestino, por
exemplo, na composição dos espertos Chicó e João Grilo, interpretados respectivamente por Selton
Mello e Matheus Nachtergaele; e aos esquetes e bordões dos programas de humor da televisão, como
na seqüência em que a infiel mulher do padeiro, Dora, tira e coloca a roupa para os amantes repetindo
o mesmo mote: “só doida por um homem forte”. No Auto de Guel Arraes também não faltam referências
ao desenho animado e à computação gráfica na encenação das estórias fantásticas contadas por Chicó
e em toda a seqüência final do julgamento, assim como ao ritmo frenético da narrativa televisiva com
seus planos fechados.
Em A invenção do Brasil (2000) Guel aprofunda ainda mais o diálogo entre suportes, gêneros e
linguagens. Gravada com equipamento eletrônico de alta definição, HDTV14, a minissérie foi transfor-
mada em um filme e mais dois produtos: um livro e um DVD15. Independente do suporte tecnológico,
o texto procura “recontar” a história do Brasil de maneira divertida, a partir da lenda de Caramuru, um
degradado europeu que se tornou dono das terras brasileiras e se casou com a índia Paraguaçu, filha
do cacique Taparica da tribo dos Tupinambás que habitava o litoral sul da Bahia. Mas o filme Caramuru
- A invenção do Brasil (2001) não é uma simples condensação da minissérie, em termos narrativos as
duas versões são diferentes, embora algumas seqüências estejam presentes em ambas. A minissérie
da TV, feita para ser exibida na semana de comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil, mistura
ficção e realidade, intercalando romance e aventura com informações históricas e muitas curiosidades.
Já o filme é todo ficcionado e centra-se mais na estória de amor entre Caramuru e Paraguaçu, o desco-
brimento fica em segundo plano.
Os dois roteiros, no entanto, dialogam explicitamente com o poema-épico Caramuru do Frei José de
Santa Rita Durão e a sua versão romanceada em As mais belas histórias da História do Brasil, de Viriato
Corrêa. Mas é na minissérie onde ocorre uma intensificação dialógica com uma série de outros textos
provenientes da literatura, da poesia, da historiografia, do cinema, da televisão, das artes plásticas, do
teatro, da história em quadrinhos, do jornalismo, da publicidade, e de tantas outras linguagens e gêneros
narrativos que em geral são parodiados. A discussão sobre as grandes expedições de descobrimento, por
exemplo, é antecedida pela paródia de uma antiga propaganda das Forças Armadas Brasileiras convocando
os jovens para o alistamento militar obrigatório. Na minissérie a “propaganda” abre dizendo: “jovem, se
você gosta de aventura venha se inscrever nas expedições ultramarinas portuguesas”, e encerra com a
frase de um poema de Fernando Pessoa: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Num outro momento o
surgimento das caravelas como um modelo de barco que revolucionou a navegação é apresentado como
um produto à venda num programa do tipo teleshopping, onde um apresentador descreve as qualidades
da embarcação enquanto duas dançarinas sorridentes apontam para a novidade. A seqüência usa muitos
recursos de computação gráfica em 3D para mostrar as vantagens da ágil caravela.
Cabe destacar que em termos visuais, tanto em relação aos cenários quanto a efeitos aplicados sobre
a imagem, percebe-se na minissérie e no filme o uso freqüente de técnicas sofisticadas de pós-produção
com computação gráfica. Outro recurso recorrente é o da metalingüística, cuja presença torna-se mais
eloqüente na seqüência final da versão cinematográfica, Caramuru - a invenção do Brasil, quando o
filme comenta de si mesmo, reporta-se a sua história, faz citação de citação. Uma voz em off apresen-
ta uma retrospectiva da estória de Caramuru e Paraguaçu, mas encerra deixando dúvidas se as coisas
aconteceram exatamente do jeito como foi narrado, porque “talvez” o romance entre os dois não tenha
acontecido de verdade. E assim o filme dialoga consigo mesmo sobre a sua própria capacidade de re-
velar a história, e assim deixa evidente o anti-ilusionismo comum às narrativas híbridas do audiovisual
contemporâneo.
Considerações finais
Para os mais conservadores o trânsito entre gêneros, linguagens e suportes característico ao audiovi-
sual contemporâneo pode parecer falta de estilo e mera bricolagem. No entanto, um olhar mais acurado,
sem preconceito, irá perceber que essa generalização é reducionista e equivocada, pois não aceita o
dado concreto das novas tecnologias e as inúmeras possibilidades enunciativas que elas oferecem, a
depender da capacidade criativa dos realizadores. É precisamente da combinação das formas expres-
sivas do passado e do presente que o hibridismo da estética audiovisual contemporânea se alimenta
13 No texto original da peça Antonio Moraes tem um filho que adoece e é apenas citado quando o major vai pedir que o padre benze-lo, ou seja, em nenhum
momento ele aparece.
14 HDTV é um sistema de televisão de alta definição e a minissérie A invenção do Brasil foi a primeira experiência desse tipo no Brasil.
15 O DVD apresenta a versão completa do filme Caramuru, a invenção do Brasil e uma versão interativa do mesmo filme com trechos documentais da
minissérie exibida na televisão, ou seja, um novo produto adequado ao suporte digital multimídia.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 124


apontando as tendências mais estáveis para o futuro, e Guel Arraes é um caso prototípico no campo do
audiovisual brasileiro. A meu ver, a maneira mais eficaz de entender os seus trabalhos é via o dialogismo
bakhtiniano. Claro que isso demandaria um estudo mais aprofundado para identificar os procedimentos
gerais através dos quais as diferentes matrizes culturais presentes nos filmes e nos programas de Guel
Arraes são postas em relação.
No entanto, dentro do que foi exposto aqui já é possível postular a existência de alguns elementos
recorrentes em seus trabalhos, como a citação de cenas da memória cinematográfica e televisiva, a
quebra das fronteiras entre ficção e realidade, e o humor como eixo articulatório das diferentes matrizes.
Tais configurações podem caracterizar um estilo e, talvez, apontar para a formatação de novos gêneros
híbridos na obra de Guel Arraes, pois como observa Bakhtin, os gêneros se definem numa dinâmica de
repetição e renovação de formas, vivem do presente, mas sempre recordam o passado. Nos programas
e filmes de Guel Arraes as influências mais do que lembradas são assumidas e colocadas em relação.
Evidentemente que uma provável classificação de tais gêneros teria que ser aberta e compósita a partir
de um repertório de tendências mais ou menos estáveis de organização dos conteúdos. Diferente da
classificação rígida dos gêneros do cinema clássico hollywoodiano.
Referências Bibliográficas
ARRAES, Guel, FURTADO, Jorge. A invenção do Brasil. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance (Trad. Aurora F. Bernardini e outros) São
Paulo: Hucitec/Unesp, 1988.
_________ Problemas da poética de Dostoievski (trad. Paulo Bezerra). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993.
COSTA, Antonio. Compreender o cinema. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1989.
Documento de Trabalho do Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Contemporânea. Recife: Unicap, 2003.
HENNEBELLE, Guy. Os cinemas nacionais contra Hollywood. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.
LA FERLA, Jorge. Contaminaciones: del videoarte al multimedia. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1997.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
__________Televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000.
MORIN, Edgar. As estrelas: mito e sedução no cinema (Trad. Luciano Trigo). Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
NUNES, Pedro. As relações estéticas no cinema eletrônico. João Pessoa, Natal e Maceió: UFPB, UFRN e UFAl, 1996.
ROSENTHAL, Alan. New challenges for documentary. Berkeley and Los Angeles: University of California Press,
1988.
STAM, Robert. Bakhtin, da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. São Paulo: Nobel, 1991.

Palavras-chave: Audiovisual; Dialogismo; Gêneros.


Cláudio Bezerra tem 38 anos, é jornalista, mestre em comunicação, professor
da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e documentarista. Realizou, entre
outros, o curta-metragem em 35mm Tejucupapo – um filme sobre mulheres guer-
reiras (2001). Integra o Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Contemporânea da
UNICAP, onde desenvolve pesquisa sobre o humor nos trabalhos de Guel Arraes.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 125


Situações enunciativas, gêneros e interferências lingüísticas1

Clarice Nadir von BORSTEL

Unioeste

RESUMO
Este estudo insere-se sob a ótica baktiniana no qual a textualidade se caracteriza pelo enunciado e
pelos gêneros discursivo que o constitui. Tratar-se-á a noção de enunciado e de texto em estudos volta-
dos para as complexas relações, entre oralidade e letramento escrito quando da transferência lingüística
psico-sócio-cultural do usuário em textos escritos de vestibular, em comunidades de minorias étnicas.
Segundo Bakhtin, a fala é modulada pelos gêneros do discurso, ou seja, pelos gêneros secundários (ins-
titucionalizados) e pelos gêneros primários (linguagem familiar, cotidiana, entre outras). Os discursos,
enquanto textos escritos não surgem in vácuo, mas são produzidos e lidos pelos usuários em situações
específicas que neles constroem uma representação não só do texto pelos elementos lingüísticos, mas
também de um contexto pragmático-social na produção escrita. Ao escrever um texto, o escritor se
empenha em apresentar um ato social, em um ato de narração, ato de afirmar ou prevenir o leitor so-
bre um determinado fato ou coisa. A forma e a interpretação do fato escrito podem ser uma função de
ato de gênero pretendido pelo ato de enunciação. Com base nestas colocações, analisar-se-á textos de
produções escritas do vestibular/2002, do campus da Unioeste/Marechal Cândido Rondon, sobre situa-
ções enunciativas, fatores sociolingüísticos/pragmáticos e alternância fônica da diversidade lingüística e
cultural nos gêneros secundários.
ABSTRACT
This search is about a bakhtinian point of view in which one the textual part characterizes itself by
the enunciation and the discoursive genres that constitute it. The notion of enunciation and text in stu-
dies directed to the complex relations between spoken and spelling writing are what will be analyzed
here, when from the linguistic psyco-socio-cultural transference by the user in writing vestibular texts
in communities where there are ethnic minorities. According to Bakhtin, spoken is built by discoursive
genres, in other words, by secondary genres (institutionalized) and by primary genres (familiar langua-
ge, everyday language, and so on). The discourses as written texts don´t happen “in vacue” but, they
are produced and read by the users in specific situations where they build a representation not just
from the text of linguistic elements but also from a pragmatic-social context in writing production. While
writing a text, the writer tries hard to present a social act in a narration act and this is an affirmative
or preventive act for the reader about a determined fact or thing. The way or the interpretation of this
writing fact can be a function act from an intended genre by the enunciation act. Thus, texs of written
production from Vestibular/2002, from Unioeste University (placed in Marechal Cândido Rondon), about
enunciated situations, sociolinguistic/pracmatics factures and phonics changes of linguistic and cultural
diversity on secondary genres.

Situações sociolingüística/pragmáticas e enunciativas


Valendo-se das concepções bakhtinianas, pretende-se olhar para os dados da linguagem do ponto de
vista sociolingüístico/pragmático, quanto ao gênero comunicativo do uso da heterogeneidade lingüística
e a posição enunciativa nas produções escritas do vestibular de usuários de comunidades multilíngües.
As situações enunciativas e a heterogeneidade lingüística, aqui referenciadas, têm como base os
estudos de Bakhtin (1998), sabe-se que em seus estudos o autor trata da
“filosofia da linguagem, a lingüística e a estilística que postulam uma relação simples e es-
pontânea do locutor em relação à sua própria linguagem única e singular, e uma realização
simples dessa linguagem na enunciação monológica do indivíduo. Elas conhecem apenas
dois pólos da vida do discurso entre os quais se situam todos os seus fenômenos lingüísticos
e estilísticos que lhe são acessíveis, ou seja, o sistema da língua e o sujeito que fala nesta
língua (p. 80).
1 Este estudo se vincula ao grupo de pesquisa “Linguagem, Discurso e Ensino (Liden), formado por docentes de Letras da Unioeste. O grupo está certificado
por esta IES e cadastrado junto ao CNPq.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 126


As diferentes correntes da filosofia da linguagem, da lingüística e da estilística nas mais diversas
épocas e períodos da história introduziram diversos conceitos e concepções sobre “sistema de língua”,
“enunciação monológica” e “fala do indivíduo”. Mas os estudos sobre as variações e a heterogeneidade
lingüísticas em uma determinada língua comum ou em comunidades multilíngües, as interações verbais
vão, sempre, muito além dos condicionamentos gramáticas e, essas, ainda são marginalizadas e, ou
discriminadas quando se trata do sistema de língua comum de uma sociedade.
Na colocação do autor, a enunciação monológica é situada, do ponto de vista, da pessoa que fala
para um determinado interlocutor, ou seja, a expressão do seu ato de fala na interação comunicativa
com outrem.
As variantes lingüísticas com relação ao discurso de outrem, essas muitas vezes se cristalizam no
uso de línguas. Para Bakhtin (1988, p. 155), “as variantes se encontram na fronteira da gramática e da
estilística”. Para muitos as variantes são reconhecidas como uma simples variante estilística. Do ponto
de vista do autor,
“é impossível estabelecer uma fronteira estrita entre a gramática e a estilística, entre os
esquemas gramaticais e sua variante estilística. Essa fronteira é instável na própria vida da
língua, onde algumas formas se encontram num processo de gramaticalização, enquanto
outras estão em vias de desgramaticalização, e essas formas ambíguas, esses casos limítro-
fes, é que apresentam maior interesse para o lingüista, é justamente neles que se podem
captar as tendências da evolução da língua” (p.155-156)

Nos estudos da heterogeneidade lingüística de uma determinada língua ou em comunidades que


fazem uso situacional de dois códigos lingüísticos as inter-relações entre língua, cultura e sociedade
são muito complexas e, na maioria das vezes, estar frente a frente com uma co-variação de fenômenos
lingüísticos sociais e/ou multiculturais, faz com que tais fenômenos lingüísticos de desgramaticalização
não sejam aceitos tão facilmente pela sociedade como um todo. Estes fenômenos, somente tiveram uma
maior aceitação pelos estudiosos, a partir dos estudos que se preocupa com a língua como fenômeno
social, cultural e histórico.
A situação enunciativa é o produto da interação de dois ou mais sujeitos socialmente organizados.
Segundo Bakhtin (1988), “a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e os estilos
ocasionais da enunciação. Os estratos mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões
sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor” (p.114).
Isto pode ser observado em pessoas socialmente organizadas, em que a situação e os participantes
da interação comunicativa determinam a forma e os estilos situacionais da enunciação, como nas co-
munidades de Marechal Cândido Rondon com línguas português/alemã e na de Palotina com falantes de
português/italiano, no Paraná, conforme os estudos de Borstel (1992;1999) e Borstel e Dotto (2002),
caracterizando todas as formas de influência interlingüística de interferência, alternância lingüística e
mistura de línguas, nas interlocuções dos usuários, como conseqüência de contatos lingüísticos com
mais de uma língua.
Nestas duas comunidades multilíngües, sobre o falar alemão e o italiano, observaram-se o uso regular
de uma variante para finalidades mais públicas ou formais (igreja, escola) e, outra, para situações mais
informais (familiar e grupo de amigos). A comunidade de Marechal Cândido Rondon é mais conserva-
dora com relação à língua e a cultura alemã, o poder público incentivou a reconstruir o imaginário da
germanidade, através de estratégias de legitimação simbólica e política, retificando a identidade teuto-
rondonense, projetando-a no contexto social da comunidade, criando uma imagem identitária para este
município no âmbito regional, estadual e nacional (QUEIRÓS, 1999, p. 168). Porém, é preciso frisar que
a política educacional não levou em conta à pluralidade lingüística das comunidades de imigrantes e
seus descendentes contribuindo, dessa forma, para a descaracterização progressiva da língua materna.
Na comunidade de Palotina, as iniciativas surgiram espontaneamente através de grupos organizados,
no intuito de resgatar as tradições culturais. Os sentimentos de etnicidade e a tradição cultural são
elementos ainda presentes, em pequenos grupos, nesta comunidade de imigrantes e descendentes de
italianos. Esse sentimento foi reforçado, recentemente, por intermédio do surgimento da multimídia,
como a linguagem verbal oral (emissoras de rádio locais) e as formas de linguagem visual (televisão e
cinema), valorizando a cultura e a sua língua. A heteroglossia pode ou não ocorrer nas duas comunidades
de imigrantes e seus descendentes.
Como observa Bhabha (2001), sobre as conseqüências culturais do colonialismo e dos fenômenos
migratórios, o autor cita Bakhtin (1986), que diz que este “designa o sujeito enunciativo da heteroglossia
e do dialogismo nos gêneros da fala”. Segundo o autor, embora Bakhtin tenha feito essas colocações
quando trata da ideologia do cotidiano, ele desloca o problema conceitual quando diz respeito ao ato de
fala, suas modalidades enunciativas de tempo e espaço, para um reconhecimento empírico da “área da
atividade humana e da vida cotidiana às quais se relaciona a elocução” (BAKHTIN, 1986, apud BHABHA,
2001, p. 262).
A ideologia do cotidiano para Bahktin (1988, p. 118-119), “constitui o domínio da palavra interior e
exterior desordenada e não fixada num sistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e
cada um dos nossos estados de consciência considerando a natureza sociológica da estrutura da expressão
e da atividade mental, ou seja, corresponde, no essencial, designado por Marx de ‘psicologia social’”.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 127


A língua, no seu aspecto social e, ou multicultural, é o elemento indispensável para a comunicação
e a interação do sujeito dentro de seu grupo. Enfatizando esta visão social, Bakhtin considera que a
linguagem nasce da necessidade de interação entre os homens, pois onde há relação, há a linguagem.
No campo das relações sociais, as pessoas usam os signos, a partir dos quais, a consciência adquire
forma e existência. A palavra é um signo verbal oral, escrito e semiótico, e, é através dela que serão
traduzidas todas as transformações sociais. Para Bakhtin (1988, p. 41) “a palavra penetra literalmente
em todas as relações entre indivíduos, nas relações de encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações
de caráter político,... As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de
trama a todas as relações sociais em todos os domínios”.
Diante disso, pode-se dizer que a língua de um determinado grupo bilíngüe, e, ou multilíngüe é con-
cebido como um conjunto heterogêneo que está sempre se transformando, até porque, pelas variedades
lingüísticas passam impressões culturais, sociais, econômicas, étnicas que, numa concepção sócio-in-
teracionista de linguagem, interferem na constituição ideológica e lingüística do sujeito. Características
estas, aliás, que marcarão e acentuarão sociolingüística e pragmaticamente o falar dos membros de um
grupo de formação bilíngüe de uso de línguas situacionais com suas próprias idiossincrasias.
Segundo colocações de Bakhtin (1988, p. 123), “a verdadeira substância da língua não é constituída
por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da
enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua”,
pois a verdadeira substância concreta da linguagem se dá nos domínios de uma dada sociedade multi-
cultural.
Para Bahktin (1998), o diálogo com os outros é essencial na construção do processo cognitivo de
cada indivíduo que se produz na interação comunicativa com o seu grupo. Em seus estudos, apresenta
conceitos que tratam das forças centrípetas (necessidade de se ligar ao outro) da vida lingüística, en-
carnadas numa língua ‘comum’, que atuam no meio do plurilingüismo real. E, em cada momento da sua
formação, a linguagem diferencia-se não apenas em dialetos e, ou variante normativa (com indícios de
alternâncias fonológicas), mas, o que é essencial, em línguas sócio-ideológicas: sócio-grupais, profis-
sionais, de gêneros, de etnias entre outras. Este plurilingüismo real se dá na interação lingüística entre
um falante e outro, entre um contexto e outro, entre uma geração e outra, entre uma etnia e outra, ou
seja, em contextos concretos multiculturais em que esta linguagem está inserida. Por outro lado, o au-
tor trata também das forças centrífugas (necessidade de diferenciação do outro), ou seja, na forma de
enunciação lingüística e cultural destes imigrantes e seus descendentes, de serem diferentes das outras
pessoas da sociedade brasileira, utilizando a sua variação lingüística étnica e regional, mesmo que esta
seja estigmatizada em outras regiões do país.
As variações sociolingüísticas, em comunidades de línguas em contato, e, ou étnicas, normalmente,
estão condicionadas aos fatores sócio-históricos das línguas, pelos destinos do discurso ideológico e por
problemas históricos particulares dos quais o discurso ideológico trata em certas esferas sociais e em
etapas definidas de sua evolução histórica e nas práticas sociais e culturais. Esses fatores e problemas
determinam algumas variedades de gênero do discurso ideológico, como caracterizam também a hete-
rogeneidade lingüística em certas situações enunciativas e ideológicas de determinados grupos sociais.
Comunidades brasileiras, no sul do país, colonizadas por imigrantes e seus descendentes europeus,
refere-se às comunidades estudadas, colonizadas por alemães e italianos que ainda conservam, através
das redes familiares, a sua língua, costumes e suas práticas culturais de uma utopia de memória mítica
e simbólica (da ilusão, do fetiche, da legitimidade de que se revestem de suas origens étnicas de um
passado distante, e, ao mesmo tempo presente) cultuada de geração a geração.
Com base em estudos etnográficos em Marechal Cândido Rondon e Palotina observaram-se, nestas
duas comunidades uma forte diferença e diversidade lingüísticas e cultural latente e conflitante. Bhabha
(2001, p. 63), nos dá uma noção de diferença cultural e diversidade cultural. “A diversidade cultural é um
objeto epistemológico, a cultura como objeto do conhecimento empírico, enquanto a diferença cultural é
o processo da enunciação da cultural como ‘conhecível’, legítimo, adequado à construção de sistema de
identificação cultural”. Para o autor, é na diversidade cultural que se reconhecem os costumes culturais
em um determinado tempo que dá origem ao multiculturalismo, de intercâmbio cultural. E também é “a
representação de uma retórica radical da separação que existe intocada pela intertextualidade de seus
locais históricos, protegidos na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única” (p. 65).
Para Bhabha (2001, p. 65), “nenhuma cultura é unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na
relação eu com o outro. (...)” ou seja, todos pertencem à cultura da humanidade; tampouco é devido
a um relativismo ético que sugere que, na capacidade cultural de falar sobre os outros e de julgar, é
necessário ‘se colocar na posição deles’, sem nenhum tipo de relativismo à distância.
É crucial lembrar como tudo começou com a vinda destes imigrantes para o Brasil. A partir do início
do século dezenove o país recebeu um vasto contingente de imigrantes da Europa e do Oriente. Este
movimento populacional teve uma dupla motivação. De um lado, as crises políticas, sociais e econômicas
dos países de origem, da fome, da pobreza, da falta de possibilidades econômicas, a busca de novas
terras impulsionou à emigração à procura de melhoria econômica. De outro lado, havia os governantes
latino-americanos (não apenas brasileiros) interessados em receber mão-de-obra relativamente barata,
capaz, portanto, de substituir os escravos, e capaz também de “branquear” países onde indígenas e
negros tinham forte presença.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 128


No sul do Brasil, os imigrantes foram elementos decisivos para o desenvolvimento econômico, princi-
palmente na agricultura minifundiária. Quando começaram a escassear os recursos e as áreas produtivas
no Rio Grande do Sul, os imigrantes e seus descendentes foram para Santa Catarina, a fim de adquirirem
novas áreas cultiváveis com melhor produtividade e uma boa topografia geográfica. A esperança de um
futuro próspero para os imigrantes e seus filhos, através de incentivo dado pelo governo federal para a
ocupação de terras no oeste paranaense, que até então tinha se prestado unicamente ao extrativismo
descontrolado de erva-mate e madeira por parte de argentinos e paraguaios. Fez com que eles se aven-
turassem dando então, início à colonização dos migrantes do Rio Grande do Sul e Santa Catarina para
esta região do Paraná, por volta de 1950.
Nas investigações na área urbana de Borstel (1992, p. 97), em Marechal Cândido Rondon, sobre os
imigrantes e seus descendentes alemães, 67% dos informantes eram trabalhadores rurais não classificados
profissionalmente, ou seja, com menos de quatro anos de escolaridade. Na pesquisa de Borstel e Dotto
(2002), na comunidade de Palotina, sobre os imigrantes e descendentes italianos, 64% dos informantes
eram agricultores e não tinham completado o Ensino Fundamental.
Por um lado, percebe-se, nesta região de minorias étnicas, uma tradição cultural agrícola, e, ou rural
com a qual estes se acham fortemente identificados. Isso significa, em primeiro lugar, o sentimento
de ser da área rural, ou como se diz nesta região “da colônia”. O imigrante foi, freqüentemente, uma
figura menosprezada. A palavra “colono” teve, e ainda tem, um sentido pejorativo, isto é, alguém que
é ingênuo que acredita no trabalho braçal, e, em suas interações comunicativas há um forte hibridismo
cultural e lingüístico. Ser da área rural, por conseguinte, não é tanto estar sujeito a uma tarefa específica
e sim participar, e isto é o fundamental, de uma cultura popular, rural, na qual predominam valores de
identificação, essenciais, que girem, principalmente, em torno de “práticas sociais e, ou de solidarieda-
de” (CERTEAU, 2000, p. 81). A cultura rural tem por fundamento uma prática de relações familiares, de
vizinhanças e de amizades muito fortes, principalmente nesta região.
Por outro lado, estes informantes têm um baixo índice de escolaridade. O que acontece é um hibri-
dismo lingüístico e multicultural (ru)urbano, migração da área rural para urbana, ocorrendo variações
lingüísticas no interior de um enunciado, isto é, o reencontro, na arena deste enunciado, de duas cons-
ciências lingüística e cultural, uma a nacional e a outra de minorias étnicas.
Para Bakhtin (1998, p. 156), “uma hibridização involuntária, inconsciente, é uma das modalidades
mais importante da existência histórica e das transformações das linguagens”. Sabe-se que as línguas se
transformam historicamente por meio da hibridização, da mistura, interferência e alternância lingüística
de diversas línguas e estas coexistem no seio de uma mesma variação lingüística, de uma mesma língua
nacional ou com outras línguas.
No Brasil, há, recentemente, um grande número de trabalhos escritos: dissertações, teses e obras
literárias; assim como filmes, novelas e programas jornalísticos na televisão sobre os imigrantes: suas
culturas e suas línguas. Resgatar a figura do imigrante faz parte do mergulho na história que caracteriza
o cenário cultural do país e uma abertura democrática para dar voz a grupos até então discriminados.
Este sentimento de pertencer a um grupo étnico, vem a ser a identificação étnica, repassada de gera-
ção a geração, cimentada por uma língua comum entre os membros de um mesmo grupo cultural, mas
diferente do nacional. Isso quer dizer, que um sotaque regional ou a pronúncia estrangeira sempre será
marcada, notada e comentada e, principalmente em ocasiões especiais e formais. É neste momento de
interação comunicativa que o falar diferente será usado contra o falante, a variante (ru)urbana mesclada
com o Brasildeutsch (o falar alemão padrão e os seus vários dialetos trazidos para o Brasil misturados
com o português) e o talian (o falar italiano e os seus dialetos mesclados com o português), como
ocorre nesta região de comunidades multilíngües do extremo oeste paranaense.
Considerando-se a vinculação com os descendentes germânicos e italianos na região, aliada ao fato
da experiência profissional na área do magistério, vem-se investigando, desde 1990, os vários aspectos
e fatores em situação de línguas em contato que caracterizam as influências interlingüísticas de situa-
ções funcionais de uso de dois códigos lingüísticos distintos, utilizados em comunidades multilíngües.
Pois, para Bakhtin (1998, p. 153), em dada situação de quase todo enunciado ocorre uma interação e
um conflito entre sua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou de esclarecimento dialógico
mútuo, tanto na comunicação oral como na escrita.
Gêneros discursivos e redações de vestibular
Os enunciados, em um texto, se caracterizam pelos gêneros discursivos em uso na língua nos mais
variados momentos de comunicação verbal (oral e escrita) pelo usuário. Bakhtin distingue-os em dois
conjuntos: os gêneros primários e secundários. Os gêneros primários correspondem a um espectro
diversificado da atividade lingüística humana quando esta é relacionada com os discursos da oralidade
em seus mais variados níveis (do diálogo cotidiano ao discurso filosófico ou sócio-político). Os gêneros
secundários (da literatura, da ciência da filosofia, da política), embora elaborados pela comunicação
cultural mais complexa, principalmente escrita, correspondem a uma interface dos gêneros primários.
Para Bakhtin (1986; apud BAKHTIN, 2000, p. 239), “os gêneros primários, ao integrarem os gêneros
secundários, transformam-se e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata
com a realidade dos enunciados alheios”.
Foi nesse processo de uso de língua e não de sistema de língua em estudos sociolingüísticos/prag-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 129


máticos, que se observou os gêneros primários adquiridos do falar cotidiano e familiar, ao se integrarem
os gêneros secundários (institucionalizados), transformam-se e adquirem uma característica particular,
que vem a ser estigmatizada por outros grupos da sociedade.
Sob esta perspectiva, nas possíveis análises sobre as produções escritas em vestibular, o olhar es-
tará atento à observação de um aspecto em especial: como se caracterizam as marcas dos indícios de
transferências lingüísticas orais. A alternância fonológica e, conseqüentemente a variação de falantes
específicos de comunidades multilíngües e de base (ru)urbana usam determinados traços lingüísticos
afim de atingir certos objetivos sociais, tais como solidariedade do grupo, semelhança de identidade ou
para que sua identidade não seja ameaçada nas interlocuções pretendidas.
Buscar-se-á detectar, a partir deste estudo, os traços de alternâncias fonológicas multiculturais que
se encontram na prática social de produções escritas em comunidades multilíngües em contextos insti-
tucionalizados. Com base nos estudos de Borstel (1999, p.156-159), há uma forte alternância vocálica e
consonantal no falar dos grupos entrevistados, pois segundo Ruoff (1967; apud RUSS, 1990, p. 348) este
fenômeno é, ainda, muito comum em cidades pequenas, na Alemanha. Conforme a pesquisa, há falantes
imigrantes e descendentes, vindo de Stuttgart, Suábia Central para Marechal Cândido Rondon.
Nas colocações de Signorini (2001, p. 98), a escrita mostra um hibridismo não previsto pelos padrões
de teorização e do uso formal da escrita institucionalizada. Portanto, neste estudo, as marcas caracteri-
zadas nas produções escritas são a presença de fortes traços lingüísticos, associados à língua falada, ou
seja, a transferência e, ou o princípio de saliência fônica nas produções escritas de alunos de vestibular,
sobretudo, quando a língua falada em questão, não é socialmente prestigiada, não é atuante em nenhum
contexto comunicativo, a não ser em determinadas comunidades de minorias étnicas e de base rural. Para
Bortoni-Ricardo (1984, p. 10) “a variedade ‘rurbana’ conserva traços dos dialetos rurais, principalmente
no que concerne à simplificação do sistema flexional da língua portuguesa”. Mesmo que estes traços de
transferências do oral para o escrito estejam presentes, não podem ser vistos como intrínsecos ao texto
enquanto artefato lingüístico, isto é, como uma evidência possível de ser identificada por qualquer leitor,
em qualquer situação, mas como um efeito que se verifica, ou não, na leitura, em função do conjunto
das práticas de letramento em que se dá a interlocução mediada pela escrita.
A base empírica desta discussão é constituída de textos escritos, produzidos por vestibulando de
2002, na Unioeste campus de Marechal Cândido Rondon, na comunicação escrita institucionalizada.
Cabe mencionar, que três propostas textuais foram ofertadas pela Unioeste: dissertação, carta oficial e
narração. Nesta análise serão mostrados três gêneros textuais de produções escritas institucionalizadas
de usuários da região.
Na constituição e sustentação das práticas institucionais, sabe-se que a escola exclui o uso da oralidade
em textos de gênero cartas oficiais, e alguns tipos textuais como no caso da dissertação, nos exemplos
do texto nº 1 e nº 2.. Mas, não é isso que está presente nas produções escritas do vestibular, o que se
pode verificar a seguir:
Texto nº 1

Palotina, 28 de janeiro de 2002

Prezadíssimo Senhor Sílvio Santos

Eu, como telespectadora, em meu nome, e em nome de todos os brasileiros e palotinenses,


da cidade de Palotina, no Paraná. Gostaríamos de colocar nessas linhas os nossos votos a seu
favor, por ser apresentador e animador que consegue competir (...) e ganhar de qualquer
adversário com gara, e é claro sem muito esforço.
Estamos todos cientes de que a sua rede de televisão é a melhor, e te apoiamos em todas
as circunstâncias.A verdade é que estamos todos impacientes para a volta da programação
“A casa dos artistas”.(...)
O Sistema Brasileiro de Televisão é uma rede brasileira que se destaca como a segunda
melhor, mas para mim, uma grande burada brasileira, o SBT se destaca em primeiro lugar,
sempre. Quero que o mundo volte a assistir ao grande programa que é a SBT.
Atenciosamente

O texto acima transcrito é uma carta escrita à mão em letra cursiva. Trata-se de um texto que, no
contexto institucional para o qual foi escrito vincula-se ao gênero textual: carta oficial, ocorrendo usos de
expressões formulaicas da escrita epistolar formal, e a mistura do gênero epistolar oficial com o familiar
e, ou mais íntimo quando o autor se dirige ao seu interlocutor de forma mais informal. Ocorre também
a transferência da oralidade do falar situacional bilíngüe, no caso da troca do traço da oralidade materna
para a escrita, caracterizando a emoção, o sentimento e a exaltação no texto escrito (..com gara ... e
uma grande burada ...). Conforme dados levantados, o autor desta redação de vestibular é descendente
de italianos, residente na cidade de Palotina, Paraná. No seu texto ocorre a troca da consoante vibrante
múltipla pela vibrante simples. Nesta produção escrita, verificou-se a variação de gênero, bem como a

Proceedings XI International Bakhtin Conference 130


variação sociolingüística e a complexidade cognitiva, envolvida nas marcas lingüísticas, produzidas pelo
autor. Este enunciado foi adquirido mediante enunciados concretos que ouviu e reproduziu durante a in-
teração comunicativa com as pessoas que o rodeiam, com base nas investigações etnográficas de Borstel.
Segundo Bakhtin (2000, p. 301-302), “as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os
gêneros do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem
que sua estreita correlação seja rompida”, isso também, é possível observar nos textos abaixo.
Texto nº 2

A qualificação da água

As manchetes de jornais, rádio, televição deste os anos setenta dizem duto. A


condaminação do meio ambiente, dos rios, mares. Com isso os prejudicados é a população,
como também, com os castos públicos.
Empora classificação das águas hoje é preocupante. Como nos grandes centros
rios poluidos de lixos hospitalares e com esgodo nos rios e no mar. Empora (...) as
companhias têm um custo bem elevado com as impurezas e com o desperdício da água
nas grandes cidades, os castos do governo público são bastante elevados. Por isso somos
obricados a pagar o que bebemos (...).

No texto nº 2, a forma de escrita é o tipo textual: dissertação, Nesta produção escrita, constatou-se
também a variação sociolingüística dialetal do falar materno e de um continuum rural-urbano. O autor
deste texto é descendente de alemães, mas é residente no município de Quatro Pontes, Paraná. Em
seu texto há fortes traços de alternância fonológica na produção escrita da consoante fricativa alveolar
vozeada pela desvozeada [z] > [s]: (televisão por televição); da consoante oclusiva alveolar vozeada
pela desvozeada [d] > [t]: (desde por deste; tudo por duto) ou vice-versa [t] > [d]: (contaminação por
condaminação; esgoto por esgodo); da consoante oclusiva bilabial vozeada para desvozeada [b] > [p]:
( embora por empora); da consoante oclusiva velar vozeada para a desvozeada [g] > [k}: ( gastos por
castos; obrigados por obricados). Nestes casos de variação lingüística nas condições de uso situacional
de emprego das unidades distintivas na fonética/fonologia acontece um processo de transferência do
falar da língua materna alemã na escrita deste usuário.
Apresenta-se também um texto narrativo:
Texto nº 3

Coisas de Dona Ema

Aos domingos à noite todos os vizinhos do Conjunto Habitacional Colorado se reuniam para
uma conversa sobre o conjunto, o que se devia mudar e reformar, entre estes assuntos
sempre ocoriam algumas discusões.
No último domingo, dia quinze, Dona Ema como sempre com suas idéias modernas, queria
que mudasse a entrada do conjunto, pois estava sem visão de grande aparência, mas
Andréia e Carla estavam pedindo a reforma do parquinho das crianças, pois o verão estava
chegando e as crianças não podiam freqüentar o parque, os balanços estavão sem algumas
corentes, a gangôra estava quebrada, somente utilizavam o escoregador.
Antônio como sempre concordava com a esposa, logo foi falando: - Não é tão necessário
a reforma do parquinho, pois as crianças na maioria das vezes estão sempre brincando na
areia.
Carla não perdeu tempo e fez o seguinte comentário: - Lógico, o senhor não tem crianças
para brincar, precisa mesmo agradar sua esposa, pois é a única que decide por aqui.
Em meio as discusões Carla e Andréia ficaram em silêncio e acabaram concordando, pois
somente elas duas tinham filhos. E seu Antônio era espoço e sempre precisava aceitar tudo
que Dona Ema falava e pedia. Pois ela era a pessoa que ele amava e a mais importante do
mundo.
Neste exemplo, nomeia-se o texto como gênero narrativo. Na organização textual deste, há a uma
seqüência de tempo, lugar e personagens. Por estas referências de tempo, local e personagens, este
enunciado é designado como enunciado indicativo de ação. Segundo Mendes (2002, p. 521), “ a narrativa
refigura o tempo e, partindo da memória construída na continuidade da vida, procura dar-lhe a forma de
uma experiência humana”, ou seja, quando a narrativa pessoal passa para a personagem que faz a ação
na narrativa, esta muitas vezes se torna conflitante para o próprio narrador. As situações enunciativas,
apresentadas no texto, caracterizam fatos que evidenciam acontecimentos culturais e sociais, identifi-
cados com o autor e o personagem-narrador. O autor deste gênero textual é descendente de alemães,
residente em Marechal Cândido Rondon, PR. Verificou-se, neste gênero textual narrativo, a transferência
fônica da língua materna alemã na produção escrita institucionalizada, com a troca da vibrante múltipla
pela simples (ocorriam por ocoriam; correntes por corentes; gangorra por gangôra, escorregador
por escoregador), da consoante fricativa alveolar desvozeada pela vozeada [s] > [z]: (discussões
por discusões) ou vice-versa [z] > [s]: (esposo por espoço); a transferência nasal do Brasildeutsch

Proceedings XI International Bakhtin Conference 131


para a escrita (estavam por estavão). Sabe-se que a forma estilística e irônica do falar cotidiano e, ou
multilíngües podem estar inseridas em forma de diálogo em gêneros textuais narrativos, mas não nesta
forma de interferência lingüística na produção escrita institucionalizada. Houve, sim, a forma de influência
interlingüística da língua materna e (ru)urbana realizada através de suas enunciações lingüísticas orais
nas produções escritas institucionalizadas. Assim, cabe aqui refletir sobre o papel da escola nos processo
de letramento e práticas sociais de comunidades multilíngües na construção dos gêneros secundários.
Considerações finais
O que pode ser observado neste estudo de textos escritos de comunidades de línguas em contato,
é a ocorrência de fortes marcas por indícios de transferências orais no que diz respeito aos fatores do
cotidiano, internalizado no processo cognitivo e sociopsicológico dos autores nos gêneros secundários.
Tratando disso, Pêcheux (1988) ressalta a importância da formação discursiva na constituição do sujeito.
Não diferente é o processo que “molda” o falar, principalmente dos descendentes de alemães e italianos.
Existe um processo de hibridismo da linguagem nesta região, o que não deixa de ser resultado de um
processo constitutivo da própria comunidade de fala, que faz com que este mantenha, diante da trans-
ferência de uso situacional de dois códigos lingüísticos, uma relação de parceria. Enquanto a fomenta,
esta, por sua vez, surge como um fator de identidade do próprio falante. Seu assujeitamento também o
torna sujeito de seu meio societal. Por isso, a língua materna das minorias étnicas no Brasil e a variação
de base rural devem ser trabalhadas na prática de ensino aprendizagem de língua em sala de aula. No
caso específico da escrita, considera-se necessário trabalhar com o paradigma indiciário que permite lidar
com as diferenças mais do que com as semelhanças, com os fenômenos diferentes mais do que com a
norma lingüística, com a possibilidade de irem em busca de práticas de ensino para tentar solucionar as
dificuldades existentes nas produções orais e escritas.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M.(Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem. (Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira). 4ª ed. São Paulo:
HUCITEC, 1988.
______. Questões de literatura e de estética – (A teoria do romance). (Trad. Aurora F. Bernadini et.al.). 4ª ed. São
Paulo: Ed. Unesp, 1998.
______. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. (Trad. Maria E. Galvão e revisão por Marina Appen-
zeller) 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 275-326.
BHABHA, H. K. O local da cultura. (Trad. Myriam Ávila et al.). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
BORSTEL, C. N. von. Contato lingüístico e variação em duas comunidades bilíngües do Paraná. Rio de Janeiro: UFRJ,
1999. (Tese de Doutorado)
BORSTEL, C. N. von. e DOTTO, V. L. A . Variação lingüística em línguas em contato. In: Relatório de projeto de pes-
quisa da Unioeste/Campus de Mal. CândidoRondon. Cascavel, PR : Digitado - Unioeste/ PRPPG, 2002.
BORTONI-RICARDO, S. M. Problemas de comunicação interdialetal. Revista Tempo Brasileiro, 78/79, 1984, p. 9-32.
CERTEAU, M. de. Et al. A invenção do cotidiano 2. morar, cozinhar.(Trad. De Ephraim F. Alves e Lúcia E. Ortht). 3ª
ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000.
MENDES, J. M. O. O desafio das identidades. In: SANTOS, B. de S. (org.) A globalização e as ciências sociais. 2ª.ed.
São Paulo: Cortez, 2002, p. 503-540.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. (Trad. Eni P. Orlandi, et. al.) Campinas, SP:
Ed. UNICAMP, 1988.
QUEIRÓS, I. L. von Borstel G. de. A Oktoberfest de Marechal Cândido Rondon, Paraná: um estudo sobre o significado
do lazer entre descendentes de alemães. Campinas, SP: UNICAMP, 1999. (Dissertação de Mestrado).
RUSS, C. Swabian. In; The dialects of modern german: a linguistic survey. London: Routledge, 1990, p. 337-63.
SIGNORINI, Inês. Construindo com a escrita “outras cenas de fala” In: MARCUSCHI, Luiz A. et al. (org.). Investigando
a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001, p. 97-134.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 132


Textos chave: Marxismo e filosofia da Linguagem; Os gêneros do discurso;
Questões de literatura e estética; Modelos sociolingüísticos; Línguas em contato e
variação em duas comunidades bilíngües.
Nomes chave: Bahktin; Bhabha; Labov; Borstel.
Palavras chave: Enunciação; Multilingüismo; Diferença e diversidade cultural;
Gêneros textuais; Transferências lingüísticas.
Biografia resumida: Professora adjunta do Curso de Letras da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon, PR. Mestrado
em Letras – Lingüística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 1992),
com a dissertação “Aspectos do bilingüismo: alemão/português em Marechal Cân-
dido Rondon, Paraná, Brasil”. Doutorado em Lingüística pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ, 1999), com a tese “Contato lingüístico e variação em
duas comunidades bilíngües do Paraná”. O Pós-doutorado (UNICAMP, 2003-2004),
com o projeto de pesquisa “A variação lingüística em línguas em contato/conflito:
atividade de letramento nas séries iniciais do Ensino Fundamental”. Publicou vários
artigos em periódicos nacionais de Lingüística.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 133


O aluno leitor em sala de aula

Rita Maria Decarli Bottega

Unioeste – Campus de Marechal Cândido Rondon

(trabalho vinculado ao grupo de pesquisa em Linguagem, Discurso e Ensino)

RESUMO I
Objetiva-se, a partir do exposto por Bakhtin (1997), Ketzer (1999 ), Magnani (1989), Bordini (1989)
e Zilberman (1988), analisar os encaminhamentos dados às aulas de leitura, cujo objetivo básico é o
desenvolvimento do gosto pela leitura, no 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental, procurando verificar a
forma de encaminhamento das aulas e a relação leitor/texto.
RESUMO II
It’s aimed, from what was exposed by Bakhtin (1997), Ketzer (1999), Magnani (1989), Bordini (1989)
and Zilberman (1988), to analyze the guiding given to the reading classes, which basic objective is the
reading pleasure development, at the Elementary School 3rd and 4th cycles, searching to verify the classes
guiding way and the reader/ text relation.

1. INTRODUÇÃO
Formar um aluno leitor tem sido uma das preocupações dos professores da área de Língua portuguesa
do Ensino Fundamental. Perseguindo esse objetivo, muitas escolas implementam as chamadas atividades
de leitura-fruição ou leitura prazer, procurando ampliar o contato do aluno com o texto escrito, na maioria
das vezes, com textos literários. Tal contato não tem o objetivo de promover atividades de leitura para
buscar informações ou para estudar o texto, mas o de propiciar um encaminhamento que aproxime o
aluno da vontade de ler por prazer, por iniciativa própria, de “desenvolver o hábito pela leitura”. Por essa
razão, não nos deteremos às outras atividades de leitura que são realizadas pela escola, com outros
propósitos, como a leitura busca de informações, à leitura pretexto, à leitura estudo do texto (Cf. cate-
gorização apresentada por Geraldi, 1991; 1997). Cada uma dessas atividades são realizadas junto aos
alunos e atendem a diferentes propósitos, de acordo com o momento, com a forma de encaminhamento
e objetivos do professor.
O discurso da necessidade de se desenvolver na escola atividades que possam contribuir para a for-
mação de um aluno leitor encontra suporte também a partir de posições “denunciativas” sobre a questão,
que ora apontam para as dificuldades materiais e físicas das bibliotecas escolares, ora para o professor
(não) leitor e ora para a falta de iniciativas sólidas e organizadas para a realização de atividades de leitura
fruição em sala de aula. Tais posições ressaltam, por um lado, a importância de um trabalho efetivo de
leitura junto aos alunos e, por outro, a necessidade de se discutir cada vez mais sobre a questão.
Apesar das inúmeras publicações sobre o tema, do esforço dos professores, da organização escolar
em delimitar um horário específico para a leitura de texto, da distribuição de inúmeros materiais paradi-
dáticos e da implementação de programas de leitura pelos órgãos oficiais, percebemos que, na maioria
das vezes, os resultados não são animadores, já que os alunos adolescentes em sua grande maioria,
lêem pouco e afirmam que não gostam de ler. São poucos os estudantes que, por iniciativa própria lêem,
sem que o professor exija.
Tais questões são alarmantes quando sabemos que
Estudos recentes sobre a relação entre leitura e educação escolarizada mostram com grande
parcela das nossas escolas públicas, ao invés de desenvolver e consolidar o gosto pela leitura
nos alunos de 1º grau, consegue exatamente o oposto, ou seja, uma aversão das crianças
por qualquer tipo de material impresso (SILVA, 1989, p. 46).

A mesma denúncia pode ser observada quando a escola, manifestando uma tendência utilitarista
para com o uso da linguagem em sala de aula, transforma a experiência de contato com o texto poético
em mero exercício de habilidades de leitura, o que empobrece o trabalho que é realizado com o texto
literário (Cf. Bordini, 1989).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 134


Uma das queixas constantes de pais e professores é de que o aluno adolescente do 3º e 4º ciclos do
Ensino Fundamental praticamente não lê, salvo raras exceções, ou o que este aluno lê não é considerada
“boa” leitura pelos professores (assunto que deve motivar novas discussões). Portanto, a despeito das
inúmeras tentativas para o desenvolvimento de alunos leitores, os resultados não apontam para sucesso
na formação de um público-leitor infanto-juvenil. É inegável que há um consenso sobre a necessidade
de que a escola pode favorecer atividades que incentivem a relação aluno-texto, ou que cabe à escola
promover a leitura-fruição e que escrever auxilia, em contrapartida, no processo de elaboração textual,
embora não seja esta uma relação mecânica e nem espontânea, como demonstra Rösing (1997).
As críticas são incisivas e afirmam que a leitura, conforme vem sendo encarada, não cumpre suas
funções lúdicas, já que a leitura imposta para a nota com objetivos previamente traçados mata qual-
quer tipo de prazer que o desvelamento do texto escrito possa causar (Cf. Suassuna, 1995). Dentre as
críticas, destaca-se que
Há uma questão que me parece básica quando se analisam os fatores responsáveis pelo
insucesso da escola no ensino de leitura – a falta de um projeto que, do ponto de vista
formal, preveja não só o aprendizado inicial, mas também o desenvolvimento do desejo, do
prazer e da necessidade de ler. Esse projeto, a ser elaborado pelos professores das escolas,
estaria inserido em uma política de formação de professores que contemplasse o desenvol-
vimento de práticas leitoras, na medida em que não se pode ensinar a ler se não se gosta
de ler (Gurgel, 2000).

As posições “alternativas” (não que sejam contrárias às anteriores, já que, na maior parte das vezes,
as alternativas advém de denúncias e críticas já traçadas anteriormente), por sua vez, apontam para
a possibilidade de um trabalho com a leitura em sala de aula, apostando nas possibilidades oferecidas
pelas bibliotecas escolares e no trabalho/mediação do professor.
Visualizando alternativas e tendo como referência o panorama denunciativo construído, muitas escolas
do Ensino Fundamental – 3º e 4º ciclos – implantam as “aulas de leitura”, que contam como uma carga
horária semanal, inserida na disciplina de Língua Portuguesa, destinada a atividades voltadas à “formação
do hábito da leitura”. As aulas de leitura contam, então, com horários delimitados na disciplina e com
materiais específicos, havendo uma organização interna da escola que mobiliza alunos, professores de
língua materna, bibliotecas e diferentes acervos em função da realização destas aulas de leitura.
É relevante, portanto, observar o funcionamento destas aulas, especificamente neste trabalho,
observando, na forma de realização das mesmas e em que medida elas buscam e proporcionam uma
interação aluno/professor/texto.
2. PRÁTICAS & PRÁTICAS
Interessa-nos, tendo em vista o panorama traçado, observar de que forma o aluno e o professor se
configuram como leitores “responsivos ativos” frente ao que lêem nas aulas de leitura e de que forma
estas respostas são dadas.
Como coleta de dados, foram acompanhadas as aulas de leitura, desenvolvidas durante o segundo
bimestre/2003, realizadas em uma 5ª e uma 6ª série de uma escola pública do município de Palotina/
Oeste do Paraná e uma 5ª série de uma escola particular da mesma cidade. As referidas aulas são desen-
volvidas semanalmente, no espaço de tempo de uma hora-aula e estão vinculadas à disciplina de Língua
Portuguesa. Os dados foram anotados em um diário de campo, o qual apresenta a descrição da aula, o
depoimento/comentário do professor sobre o trabalho realizado e as impressões sobre a turma.
Do grande número de informações anotadas no diário de campo, selecionamos, para o presente
trabalho, apenas os dados que se referem às atividades realizadas em sala de aula que objetivam a
interação, a interlocução aluno/professor/texto lido. Para a escola pública, denominaremos Escola A, e
para a particular, escola B.
Normalmente, para a aula de leitura (cujo dia e horário é de conhecimento dos alunos) os alunos das
três turmas trazem de casa o seu material de leitura de casa ou já retiraram com antecedência o livro
na biblioteca. Para os que não trouxeram, a professora da Escola A traz o “sacolão” de livros, para que
os alunos utilizem os livros durante a aula.
Ao final da aula, normalmente, a professora da Escola A, na 6ª série, pergunta aos alunos: Quem
está lendo um livro bem lindo? Os alunos que levantam a mão vão à frente e apresentam o livro lido: o
título, autor e dizem por que gostaram do livro. A seguir, a professora pergunta aos demais quem já leu
e quem está lendo o livro nominado.
Na quinta série, os alunos anotam os livros lidos em uma ficha, que deverá ser preenchida com o
nome do livro, autor e número de páginas lidas, para conferência da professora, já que os alunos devem
ler 200 páginas por bimestre. Em uma das aulas, os alunos foram à biblioteca da escola ler revistas (o
bibliotecário já havia separado 23 exemplares da Revista Superinteressante) e, quando retornam à sala
de aula, a professora solicitou que apresentassem o nome ou o tema da reportagem que leram.
Na escola B, as aulas de leitura que eram semanais, passaram a ser quinzenais. Nestas, algumas
vezes, os alunos escrevem o nome do livro e o título e o colam na parede da sala, na “árvore de suges-
tões”, que deve servir para estimular os colegas a lerem o mesmo livro. Além disso, lêem e preenchem
uma ficha na qual, além dos dados sobre o livro, devem caracterizar o personagem que mais gostaram,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 135


apresentar um fato que mais lhes chamou a atenção e sua opinião sobre o livro. Depois de preenchida,
a ficha é entregue ao professor.
Pelo exposto, percebe-se que nas aulas de leitura o professor manifesta uma certa preocupação com
o que o aluno irá ler, porém não possibilita espaço significativo (já que muitas vezes, apenas se faz o
registro do que foi lido, para aferição), para o que pode ser realizado após a leitura, a partir do que foi
lido naquela aula.
3. E A INTERAÇAO?
Se admitirmos que a linguagem é uma forma de interação social, então ela é entendida como prenhe
de perguntas e respostas, ou como Bakhtin ressalta (1997, p.95) que “Na realidade, não são palavras o
que pronunciamos ou escutamos, nas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais,
agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido
ideológico ou vivencial” (grifos do autor). Ora, quando os alunos, nas aulas de leitura, lêem algo sobre
o que não falam, não discutem, não manifestam sua posição sobre o que foi lido, acabam por reiterar a
sacralização do texto escrito, já que o texto que foi lido não é encarado como parte de um diálogo, como
palavras ditas, posições apresentadas e defendidas por alguém em um outro tempo e em um outro lu-
gar; parece, pelos dados levantados, que se lê por ler, porque a aula é destinada para isso. O conteúdo
vivencial do texto fica excluído.
Se o enunciado é uma forma de contato entre os interlocutores, essa forma de contato, em decorrência
da concepção de linguagem assumida, pressupõe o diálogo, que é entendido por Bakhtin (1997, p.132)
“(...) num sentido amplo, isto é, na apenas como comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a
face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” e pressupõe também uma determinada
atitude do sujeito ouvinte/leitor, já que “A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre
acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável);
toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte
torna-se locutor (...) ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se
para executar, etc.” (1997, p.290).
Tais pressupostos aplicados à questão da leitura – especificamente à prática das aulas de leitura – pro-
piciam uma reflexão sobre de que forma os textos utilizados nas aulas de leitura levam em consideração
a relação aluno/leitor/texto, inseridos em um processo dialógico e em que medida se tem, nas atividades
anteriores, posteriores à aula de leitura e no momento da leitura, inclusive, a atitude responsiva ativa
do aluno e do professor sobre o que foi lido.
Pelo exposto nos dados, após a leitura, são encaminhadas outras atividades, sem que o texto lido
volte à baila para sobre ele se falar, sobre ele se discutir, se discordar ou mesmo trocar idéias. Se toda a
compreensão é prenhe de resposta, parece-nos que as respostas, aqui, são vinculadas a uma atividade
de registro do que foi lido, registro que não possibilita o que Bakhtin chama de “atitude responsiva”, no
sentido de que atribui respostas ao lido, e “ativa” no sentido de que o leitor/aluno e o leitor/professor
podem concordar ou discordar do que foi lido.
Então, diante de tais críticas, o que, pedagogicamente é possível realizar em sala de aula, em se
tratando das atividades de leitura? Primeiramente, não nos interessa a mera “culpabilização” dos pro-
fessores, como se a mera constatação dos “culpados” por uma situação resolvesse os problemas acima
apontados. Em segundo lugar, interessa-nos buscar alternativas que sejam viáveis para que as atividades
de leitura sejam tomadas como caminhos que propiciem que, em sala de aula, a palavra (neste caso,
a escrita) seja percebida como “ponte lançada entre mim e os outros” (Bakhtin, 1997, p.113). Nestas
alternativas, interessa reafirmarmos a mediação do professor, inclusive no trabalho que pode ser rea-
lizado por ele nas aulas de leitura, oportunidade em que o contato do aluno com o texto literário pode
ser intensa. Como destaca Zanchet,
Relacionar, a priori, como ato gratuito, literatura e prazer é, no mínimo falacioso. Literatura
não é chocolate. Se o fosse, a escola, em geral não teria função. É arte, é conhecimento,
é disciplina, é sensibilidade. Mas, quem disse que tais elementos não se apreendem? O
prazer advém da descoberta do conhecer, do sabor do saber. Quem sabe disso, com maior
clareza, pode levar seus alunos à descoberta dessa arte, desse conhecimento. O caráter de
prazer gratuito, típico da literatura trivial, não carece de mestre. A literatura deve auxiliar
o aluno a ler o mundo, caso contrário, vazia de função, perder-se-á no rol dos manuais
(1998, p.55).

Parece-nos que o compromisso do professor fica bem explícito nas questões atinentes à leitura-fruição
em sala de aula: num país carente de acesso à leitura e de leitores, a aula de leitura pode ser um espaço
de atuação do professor e um momento em que os dois níveis de leitura – o individual e o coletivo – se
entrecruzam, mostram-se.
Nesse sentido, de acordo com Carvalho (1988), a literatura infantil não deve possuir em sala de aula
um caráter utilitário (privilégio do pedagógico em detrimento do estético, imposição de verdades e mo-
delos de comportamento), mas um caráter de ser “útil”. Tal noção, a da literatura ser útil, é entendida
a partir do fato de que os conflitos das personagens são verossímeis e, “transpostos para o plano ficcio-
nal, resultam em situações imaginárias possibilitando ao leitor, pela identificação, vivenciar os próprios

Proceedings XI International Bakhtin Conference 136


problemas e, como a personagem, encontrar uma saída para eles.” (p.5). É possível, então, apostar
na possibilidade do trabalho com o texto literário, já que ele, pelo trabalho estético que realiza com a
linguagem, propõe formas de “diálogo” diferenciadas, ao mesmo tempo em que aborda temas e dramas
humanos (Cf. KETRZER, 1999). Nesse sentido, a aula de leitura apresenta-se como um grande espaço
para a realização de leituras das leituras dos textos literários efetuadas pelo professor e pelos alunos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, observamos que os espaços de leitura na escola são reveladores da concepção de lin-
guagem assumida. Nesse sentido, é importante que, cada vez mais, explicitem-se os pressupostos que
norteiam o trabalho do professor. O texto literário oferece-se como uma possibilidade de trabalho com
a leitura fruição, que deve contar com a mediação do professor, já que apostamos na interferência do
professor e na formação do gosto pela leitura. Nesse sentido, reiteramos a possibilidade de atuação e
mediação do professor no desenvolvimento das atividades de leitura (MAGNANI, 1989).
Tal atuação, no entanto, não se restringe tão somente a levar ao domínio dos códigos que permitem
a mecânica da leitura, mas ainda “é tarefa sua o emergir do deciframento e compreensão do texto,
através do estímulo à verbalização da leitura precedida, auxiliando o aluno na percepção dos temas e
seres humanos que afloram em meio à trama ficcional. É a partir daí que se pode falar em leitor crítico.
(...) A literatura infantil é levada a realizar sua função formadora, que não se confunde com uma missão
pedagógica” (ZILBERMAN, 1994, p.25).
Pelo exposto, é interessante apostar na possibilidade de trabalho com o texto literário, já que ele,
pelo trabalho estético que realiza com a linguagem, propõe formas de “diálogo” diferenciadas ao mesmo
tempo em que aborda temas e dramas humanos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
BORDINI, Maria da Glória. “Poesia e consciência lingüística na infância”. In: SMOLKA, Ana Luiza; Et. Al. Leitura e
desenvolvimento da linguagem. São Paulo: Mercado Aberto, 1989.
GERALDI, João W. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
_____. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.
GURGEL, Maria Cristina Lírio. “Leitura: representações e ensino”. In: VALENTE, André (org.). Aulas de Português:
perspectivas inovadoras. 2. ed. São Paulo: Vozes, 2000. p.208-16.
KETZER, Solange Medina. A literatura e a metodologia do ensino da literatura para crianças e jovens. In: Revista da
II Jornada de Estudos Lingüísticos e Literários. Marechal Cândido Rondon: Edunioeste, 1999. p.11-16.
SILVA, Ezequiel Teodoro. Leitura na escola e na biblioteca. 5. ed. São Paulo: Papirus, 1995.
SUASSUNA, Lívia. Ensino de Língua Portuguesa: uma abordagem pragmática. São Paulo: Papirus, 1995.
ZILBERMAN, Regina. Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. São Paulo: Mercado Aberto, 1988.
ZANCHET, Maria Beatriz. Literatura e subjetividade: a mediação do professor. In: Revista da 1ª Jornada de Estudos
Lingüísticos e Literários. Marechal Cândido Rondon/PR: Gráfica Escala, 1998. p.52-56.

Textos chave: Marxismo e filosofia da linguagem; Leitura em crise na escola:


as alternativas do professor; Portos de Passagem
Nomes chave: MIKHAIL BAKHTIN; JOÃO WANDERLEY GERALDI; REGINA
ZILBERMAN
Biografia resumida: Rita Maria Decarli Bottega - Graduação em Letras-Portu-
guês – Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Especialização em Literatura Brasileira - Universidade Estadual do Oeste do
Paraná
Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa – UNESP/Araraquara
Coordenadora do Colegiado do Curso de Letras-Português
Líder do Grupo de Pesquisa em Linguagem, Discurso e Ensino, cadastrado no
CNPQ.
Docente do Curso de Letras-Português, ministrando as disciplinas de Estudos
Lingüísticos I e Prática de Ensino em Língua Portuguesa e Literatura I, orientadora
de Estágio Supervisionado.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 137


Estilo, dialogismo e autoria: identidade e alteridade*

Beth Brait

PUC-SP/USP/CNPq – Brasil

RESUMO 1
Estilo é um tema que, embora ainda pouco explorado do ponto de vista de sua constituição e papel
no conjunto da produção de Bakhtin e seu círculo, relaciona-se de maneira intrínseca e coerente com a
perspectiva dialógica da linguagem e com as diferentes noções teórico-epistemológicas aí implicadas.
Tratar da concepção bakhtiniana de estilo significa, dentre outras coisas, percorrer os escritos, concebidos
e publicados em diferentes épocas e, a partir daí, delinear a noção de autor/autoria e suas conseqüências
para os estudos dos discursos artísticos e não artísticos.
Neste trabalho, a tentativa é a de pontuar alguns aspectos referentes à maneira como o conceito de
estilo vai se construindo no pensamento bakhtiniano e, ao mesmo tempo, instaurando uma fértil polêmica
com vertentes clássicas da lingüística e da estilística, quer em afirmações teóricas, quer em análises de
diferentes autores, gêneros e particularidades das relações inter e intra discursos.
Palavras-chave: estilo, dialogismo, autor, autoria.
RESUMO 2/ABSTRACT
Although not much explored to this day from the point of view of its constitution and its role in Bakhtin
and his Circle’s general theoretical and practical work, style is a subject which presents an intrinsic and
cogent link with the dialogical approach of language as well as with the different theoretical-epistemo-
logical concepts related to it.
Approaching the bakhtinian perspective on style means among other things to make a survey of wri-
tings created and published in different times and, on this basis, sketch the concept of author/authorship
and the consequences they have as regards studies of both artistic discourses and not artistic ones.
This work aims to point out some aspects related to the way the concept of style comes to progressively
take shape in Bakhtin’s though, at the same time as it inscribes within it a fertile polemical argument with
classical trends of linguistics and stylistics, both in theoretical utterances and in practical analyses of many
different authors, genres and specificities of both inter-discourse and intra-discourse relationships.
Keywords: style, dialogism, authorship, alterity.

Considerar a dimensão estilística da produção verbal, visual ou mesmo verbo-visual, parece, ao menos
para os lingüistas e analistas de discurso, uma maneira de lidar com o discurso, com a enunciação, dentro
do domínio dos estudos literários ou artísticos, na medida em que o tema, de longa data, é proprieda-
de das vertentes diretamente interessadas nas particularidades expressivas de determinados autores,
poetas, artistas em geral, ou nos conjuntos de características que definem determinados movimentos
artísticos, também denominados estilos de época, caso do romantismo, do impressionismo, do cubismo
etc. Ainda que o termo não se restrinja necessariamente às artes, ele quase que invariavelmente diz res-
peito às idiossincrasias, à maneira de se expressar de uma determinada pessoa, sugerindo uma estreita
e exclusiva relação entre estilo e personalidade, estilo e individualidade. Na melhor das hipóteses, e de
um ponto de vista dos estudos lingüísticos, enunciativos e discursivos mais recentes, o estilo pode estar
pensado em função do texto e de suas formas de organização em relação às possibilidades oferecidas
pela língua, estendo-se a textos não necessariamente literários ou poéticos.
A consulta a determinadas obras especializadas confirma essa a idéia de que, por um lado, o termo
estilo está diretamente associado a produções individuais ou conjunto de produções de determinados
momentos, vinculadas às artes em geral ou exclusivamente à personalidade de alguém. Por outro, pode
ser pensado, de maneira aparentemente mais ousada, poderíamos dizer, como conjunto de diferentes
instâncias textuais que implicam escolhas em relação às diferentes possibilidades oferecidas pelo sistema
lingüístico.
Observe-se, por exemplo, primeiramente, a transcrição da definição de estilo apresentada por Harry
Shaw no seu Dicionário de Termos Literários (1982: 187-188) e que não difere muito de outros dicio-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 138


nários de termos literários e teoria literária. Em seguida, a que aparece no Dicionário Enciclopédico das
Ciências da Linguagem, de Ducrot e Todorov (1977: 287-288), já mais próximo da realidade dos estudos
lingüísticos atuais.
No primeiro, vemos a seguinte afirmação a respeito de estilo:
(1) A maneira de traduzir os pensamentos em palavras; modo característico de construção e de
expressão na linguagem escrita e oral; característica de uma obra literária, mais no que respeita a sua
forma de expressão do que às suas idéias.
A palavra estilo, derivada dum termo latino que significa um “instrumento de escrita”, não pode
definir-se satisfatoriamente, embora centenas de peritos já o tenham tentado Lord Chesterfield.definiu
estilo como “o traje do pensamento”. Alfred North Whitehead, filósofo e matemático, disse: “O estilo
é a moralidade mais elevada do espírito”. O cardeal Newman escreveu: “Estilo é o pensamento em
linguagem”. Jonathan Swift sugeriu: “As palavras próprias nos lugares próprios constituem a definição
de estilo”. Buffon, escritor e naturalista francês do século XVIII, afirmou: “O estilo é o homem” (grifo
nosso, para posterior retomada).
Se considerarmos estilo significando os maneirismos e processos característicos dum determinado
escritor, então poderemos falar do estilo pomposo do Dr. Johnson, do estilo caprichoso de Charles Lamb,
do estilo alusivo de T.S. Eliot, do estilo sóbrio de Ernest Hemingway, etc. A maioria dos críticos está, no
entanto, de acordo em que “aquilo que alguém diz”, “a maneira como o diz” são elementos básicos do
estilo. Podemos então considerar o estilo como sendo a marca (influência) da personalidade do escritor
na matéria por ele versada. (Shaw, Harry. Dicionário de Termos Literários. Lisboa. Publicações Dom
Quixote, 1982. pp. 287-288).
No segundo, entre outras coisas, a abertura para o texto, mas sem muitos detalhes que ajudem a
inovar os estudos a respeito de estilo:
(2) Definiremos o estilo de preferência como a escolha que todo texto deve operar entre um certo
número de disponibilidades contidas na língua O estilo assim compreendido é equivalente aos registros
de língua, a seus subcódigos; é a que se referem expressões como “estilo figurado”, “discurso emotivo”
etc. e a descrição estilística de um enunciado é apenas a descrição de todas as suas propriedades verbais.
(Ducrot e Todorov, 1977: 287-288).
O primeiro exemplo confirma a idéia de estilo ligado à “expressão individual”, à maneira caracte-
rística de um autor se expressar em verso ou em prosa. Conseqüentemente a estilística, o estudo do
estilo, dissociando num certo sentido forma e conteúdo, é tomada como uma vertente que cuida dos
aspectos expressivos da linguagem, considerada nos níveis fonológico, prosódico, morfológico, sintático
e lexicológico.
O segundo, voltando-se para o texto e não para seu autor, persegue o que há de particular na or-
ganização textual, no sentido quase que sociolingüístico e retórico que o termo pode sugerir, ou seja,
de registros, subcódigos, figuras de linguagem etc. Essa afirmação não propicia, como dissemos, um
estudo mais ligado à enunciação, ao discurso, ao estilo pensado numa concepção social e histórica da
linguagem.
Dentro desse panorama, os interessados nos estudos da linguagem, quer literária ou não, poderiam
perguntar: em que as questões relacionadas a estilo em Bakhtin e seu círculo diferem das posturas tanto
da estilística clássica quanto de uma certa lingüística que dimensiona o termo principalmente a partir da
perspectiva da variação lingüística e da retórica?
Para responder a esta pergunta, temos de perseguir mais uma via no labirinto dos conceitos, categorias
e noções que implicam o pensamento bakhtiniano e a forma como esse arcabouço vai se mostrando, se
materializando, a partir da articulação com estudos de aspectos mais estabilizados e conhecidos, caso
das concepções de interação, enunciação, gêneros, plurilingüismo, dialogismo.
Nesse sentido, há um aspecto que deve ser previamente colocado para que se entenda a existência e
a importância das questões sobre o estilo, enquanto postura geral e fundante no quadro do pensamento
bakhtiniano como um todo. Os leitores de Marxismo e filosofia da linguagem, certamente o livro mais co-
nhecido e citado pelos lingüistas, estão inteiramente convictos da forma como a lingüística, especialmente
a lingüística estrutural, foi enfrentada pelos estudos bakhtinianos, gerando conseqüências essenciais para
os estudos lingüísticos e para uma concepção histórica e social da linguagem. Entretanto, sempre que
as duas orientações do pensamento filosófico-lingüístico, tomadas na obra como interlocução polêmica,
são retomadas, o objetivismo abstrato, isto é, a vertente que trata a língua como sistema autônomo,
é o focalizado, é o escolhido como centro da discussão. O subjetivismo idealista, quando mencionado,
aparece apenas para compor a dupla, servindo no máximo para indicar que, se os estudos da linguagem
não podem ser pensados a partir de uma idéia positivista e estruturalmente assujeitada de sistema
autônomo, segundo os preceitos do objetivismo abstrato, também não podem restringir-se à idéia de
linguagem como criatividade individual, preconizada pelo subjetivismo idealista. Mais ou menos como se
os lingüistas deixassem essa parte para os estudiosos da literatura e das teorias literárias e esses, estan-
do mais interessados em obras nomeadamente voltadas para questões literárias, caso de Questões de
Literatura e Estética – A Teoria do Romance, nem sequer notassem a referência a estilo e estilística.
A partir dessa constatação, o subjetivismo idealista permanece literalmente abandonado enquanto
foco de discussão para o compreensão da teoria bakhtiniana, embora represente, juntamente com o

Proceedings XI International Bakhtin Conference 139


objetivismo abstrato, um dos paradigmas escolhidos para impulsionar o movimento de recolocação de
importantes questões da linguagem, de seu estudo, aí incluída a dimensão individual da expressão e a
maneira como deve ser enfrentada por uma teoria dialógica da linguagem. Deixar de lado o subjetivismo
idealista, a forma como é tratado em Marxismo e filosofia da linguagem, é deixar passar justamente a
discussão sobre as relações entretecidas entre estilística e gramática, entre estilo, gênero e uso, entre
discurso e autoria, entre estética e cultura., por exemplo. Com o objetivo de levantar alguns aspectos
e algumas das conseqüências metodológicas e epistemológicas que essa reflexão acarreta, chamo a
atenção para o fato de que estilo e estilística não são aspectos acessórios no conjunto do pensamento
bakhtiniano. São elementos diretamente ligados à discussão da linguagem em uso e às formas de tratá-la
na perspectiva das ciências humanas, da estética e da ética, da relação evento/atividade/gênero/discur-
so/texto, da interdiscursividade, do dialogismo e, particularmente, do plurilingüismo.
Nesse sentido, podemos afirmar que estilo é um tema que, embora ainda pouco explorado do ponto
de vista de sua constituição e do papel que exerce no conjunto da produção bakhtiniana, do pensamento
bakhtiniano, relaciona-se de maneira intrínseca e coerente com a perspectiva dialógica da linguagem,
aí apresentada sob diferentes assinaturas, bem como com as diversas noções teórico-epistemológicas
aí implicadas. Tratar da concepção bakhtiniana de estilo significa, dentre outras coisas, percorrer os
escritos, concebidos e publicados em diferentes épocas e, a partir daí, tentar delinear suas fronteiras, o
que inclui a noção de autor/autoria, conceito forte dentro do que poderíamos denominar “análise e/ou
teoria dialógica da linguagem”, e que ainda está à espera de um trabalho mais alentado. Isso, certa-
mente, com conseqüências significativas para os estudos das manifestações artísticas e especialmente
das não artísticas. Essas últimas, quase que inteiramente desprezadas no que diz respeito aos estudos
a respeito de estilo.
É importante frisar, ainda, que essa perseguição deve ser realizada, necessariamente, com um olhar
desprovido de preconceitos lingüísticos ou literários, isto é, assumindo mais uma vez, a evidência de
que os discursos verbais, estudados efetivamente por Bakhtin e seu círculo, são geralmente de natureza
literária (refiro-me aqui aos estudos sobre Dostoievski, Rabelais, a obra sobre teoria do romance e os
estudos esparsos sobre a poética), mas que, para chegar a essas análises, os trabalhos dão preciosas
indicações sobre o discurso cotidiano, não literário, incluindo-se aí a dimensão não verbal, extraverbal,
que podemos entender também como visual, verbo-visual, implicada de diferentes maneiras, no cinema,
na pintura, na fotografia, no jornalismo, e também na linguagem oral, cotidiana, do dia-a-dia.
Aqui, a tentativa é a de pontuar, de forma resumida e inicial, alguns aspectos referentes à maneira
como o conceito de estilo vai se construindo no pensamento bakhtiniano e, ao mesmo tempo, instaurando
uma fértil polêmica com vertentes clássicas da lingüística e da estilística, bem como com as filosofias
que as fundamentam, quer em afirmações teóricas, quer em análises de diferentes autores, gêneros e
particularidades das relações inter e intradiscursos. O ponto de partida, aqui, é o texto Discurso na vida
e discurso na arte (sobre a poética sociológica)1, assinado Bakhtin/Voloshinov e produzido na segunda
metade dos anos 20 do século passado (1926), em que se surpreende a reinstalação de uma perspectiva
estilística inovadora e condizente com a concepção dialógica da linguagem. Tomando como interlocutor
o mais clássico dos ditos sobre estilo, e, portanto, disparando o confronto com ninguém menos que
Buffon, em sua clássica obra Discours sur le style, de 1753, o autor faz a seguinte afirmação: “O estilo
é o homem”, dizem; mas poderíamos dizer: o estilo é pelo menos duas pessoas ou, mais precisamente,
uma pessoa mais seu grupo social na forma do seu representante autorizado, o ouvinte – o participante
constante na fala interior e exterior de uma pessoa” (p.16).
Esse ponto de partida, ainda que aqui estejamos omitindo a seqüência completa em que a construção
da idéia de estilo vai aparecendo, deixa claro que a concepção dialógica de linguagem, a concepção de
dialogismo como aspecto constitutivo dos processos que envolvem a linguagem está na base também da
concepção de estilo. Essa relação constitutiva entre interlocutores e entre os discursos que atravessam os
enunciados pronunciados ou não por esses interlocutores, já está gênese da concepção de estilo, reite-
rando mais uma vez a coerência desse pensamento. Da mesma forma, e como conseqüência lógica, estilo
implica interação e o que é mais significativo: está necessariamente implicado em qualquer interação, em
qualquer atividade de linguagem e não apenas na atividade literária. Essa me parece ser a conseqüência
mais importante para os estudos da linguagem, na sua perspectiva enunciativo-discursiva.
Fica evidente, portanto, que a questão do estilo vai deixar de ser pensada a partir de uma produção
tomada na sua individualidade, na sua autonomia, enquanto idiossincrasia de um enunciador ou enquanto
produto do engendramento exclusivo de um texto auto-suficiente, para ser tratada a partir de aspectos
que um pouco mais tarde o pensamento bakhtiniano vai trabalhar em detalhes, ou seja, a linguagem
pensada como atividade, dentro de atividades específicas e concretas, o que vai motivar a inclusão do
conceito de esfera de produção, e conseqüentemente, de circulação e recepção e, ainda, a relação entre
enunciação e interação, gênero e uso, temas, forma arquitetônica e composicional.
Destaco aqui dois trechos para sinalizar que a obra em questão, Discurso na vida e discurso na arte
(sobre a poética sociológica), coloca o discurso artístico como foco, mas, para isso e em função disso,
vai tratando a questão do estilo como sendo de natureza social, envolvendo o autor, o herói (no caso o
“assunto”) e o ouvinte como fatores constitutivos de uma obra, determinando-lhe a forma/conteúdo, aí
implicado o estilo.
(1) No que se segue, tentaremos fornecer um quadro breve e preliminar dos fatores essenciais nas

Proceedings XI International Bakhtin Conference 140


interrelações dos participantes de um evento artístico – aqueles fatores que determinam as linhas gerais
e básicas do estilo poético como um fenômeno social.(p.13).
(2) “O autor, herói e ouvinte de que estamos falando todo esse tempo devem ser compreendidos não
como entidades fora da própria percepção de uma obra artística, mas entidades que são fatores cons-
titutivos essenciais da obra. Eles são a força viva que determina a forma e o estilo e são distintamente
detectáveis por qualquer contemplador competente. Isto significa que todas aquelas definições que um
historiador da literatura e da sociedade poderia aplicar ao autor e seus heróis – a biografia do autor, as
qualificações precisas dos heróis em termos cronológicos e sociológicos, etc. – estão excluídas aqui: elas
não entram diretamente na estrutura da obra, mas permanecem do lado de fora. O ouvinte, também,
é entendido aqui como o ouvinte que o próprio autor leva em conta, aquele a quem a obra é orientada
e que, por conseqüência, intrinsecamente determina a estrutura da obra. Portanto, de modo algum nós
nos referimos às pessoas reais que de fato formam o público leitor do autor em questão.” (13).
Nesse sentido é que a questão da autoria aparece. Um determinado tema, por exemplo, vai ganhar
corpo e estilo em diferentes gêneros e atividades de linguagem, dependo necessariamente da esfera de
produção, circulação e recepção que o acolhe, dimensiona, transforma e o constrói como sentido e efeito
de sentido. Ao apropriar-se de um tema, um autor vai trabalhá-lo de acordo com a sua atividade, com
a esfera de produção em que está inserido, dialogando com outros autores, atividades e discursos, da
mesma época ou de tempos e espaços diferentes. Isso serve para qualquer tipo de produção. Se alguém
conta a vida da pintora Tarsila do Amaral, como é o caso da peça Tarsila, de Maria Adelaide Amaral,
com base em biografias feitas anteriormente, contando com trabalhos acadêmicos que reuniram cartas
trocadas entre a pintora e escritores, tendo o texto vivenciado por atores que dão concretude e espes-
sura às personagens, poderíamos perguntar: é possível falar em um único autor? E o estilo? É possível
reparti-lo por várias instâncias? As fontes deixam marcas no novo texto?
Essa concepção seminal de estilo e autor/autoria, flagrada aqui inicialmente no texto de 1926, assi-
nado Bakhtin/Voloshinov [ou Valentin Voloshinov (M.M.Bajtin) conforme a versão espanhola], e que vai
proliferar ao longo do pensamento bakhtiniano, pode também ser recuperada, para efeito deste trabalho,
em Questões de Literatura e Estética (A teoria do Romance), assinadas Bakhtin (ele mesmo), cuja tra-
dução para o português é de 1988, mas que inclui textos das décadas de 20 e 30 e do século passado,
que auxiliam a compreensão do conceito de estilo, pela via da discussão da participação da arte na
unidade da cultura. Estão nesse caso os textos “O problema do conteúdo, do material e da forma na
criação literária”, escrito em 1924 e “O discurso no romance”, escrito entre 1934 e 1935.
Os conceitos de estilo/estilística/autoria aparecem tendo com baliza dois pólos: os caminhos para
a compreensão do objeto estético e o embate dessa perspectiva com a estilística clássica, tradicional,
não necessariamente nesta ordem. Nesse sentido, a primeira afirmação que pode ser destacada, por
servir de alicerce às demais, é a seguinte: “O conceito de estético não pode ser extraído da obra de arte
pela via intuitiva ou empírica; ele será ingênuo, subjetivo e instável; para se definir de forma precisa e
segura esse conceito, há necessidade de uma definição recíproca com os outros domínios, na unidade
da cultura humana” (Bakhtin, Questões de Literatura e Estética (A teoria do Romance, 1988: 16). A
partir daí, dentre outras afirmções fundamentais, podemos destacar a que define: “O autor-criador é
um momento constitutivo da forma artística” (58); ou ainda: “A forma do romance que regula o mate-
rial verbal, depois de se tornar a expressão da atitude do autor, cria a forma arquitetônica que ordena
e acaba o acontecimento, independentemente do acontecimento único e sempre aberto da existência
(68). ‘O objeto estético é uma criação que inclui em si o criador”(p.69).
No que diz respeito ao embate com a estilística, no início do texto “O discurso no romance”, Bakhtin
afirma que vai dar ênfase à estilística do gênero e aponta os principais problemas da concepção tradicio-
nal de estilo: “A distinção entre estilo e linguagem, de um lado, e o gênero, de outro, levou em medida
significativa a estudar-se de preferência tão somente as harmônicas individuais e orientadoras do estilo,
ignorando-se o seu tom social básico. Os grandes destinos históricos do discurso literário, ligados aos
destino dos gêneros, foram encobertos pelos pequenos destinos anônimos do discurso literário, por trás
dos desvios individuais ou das tendências. Na maioria dos casos a estilística apresenta-se como arte
caseira que ignora a vida social do discurso fora do atelier do artista, das vastidões das praças, ruas,
cidades e aldeias, grupos sociais gerações e épocas” (p. 71).
Para desenvolver sua proposta, vai apoiar-se no gênero romance, que ele afirma ter sido desprezado
quase que inteiramente pela estilística tradicional e que será sua pièce de resistance. Segundo o autor,
em sua teoria do romance, e como demonstram seus estudos sobre Dostoiéviski e Rabelais, essa arte
vai buscar na variedade dos temas e linguagens que dominam uma sociedade, uma cultura, os motivos
para sua produção, trazendo para dentro de suas construções, de forma crítica e criativa, a diversidade
das visões de mundo que constituem uma comunidade lingüística e cultural, bem como suas relações
com outros povos e culturas. A prosa literária tem, como característica principal, absorver essa variedade
lingüística e simular, enquanto narrativa ficcional, as identidades que estão construídas na pluralidade do
conjunto. Se os usos sociais da língua e das linguagens implicam uma multiplicidade de vozes, orquestra-
das com harmonias e dissonâncias, mas sempre reveladoras das particularidades de uma sociedade, de
uma cultura, a idéia de plurilingüismo, de múltiplas línguas e linguagens convivendo ao mesmo tempo,
é o termômetro tanto para se definir uma língua, quanto para se identificar a prosa literária. Tudo cabe
no conto e no romance, no sentido de que o autor vai buscar no ambiente extraliterário, nos inúmeros
discursos produzidos no dia-a-dia, o que pode variar do científico ao coloquial, do histórico ao artístico, a

Proceedings XI International Bakhtin Conference 141


matéria prima para sua obra. É importante compreender que não se trata unicamente de trabalhar com
registros lingüísticos específicos, mas de representar, de simular as identidades e as visões de mundo
que esses registros implicam.
Além disso, essa prosa está sempre em diálogo, amistoso ou polêmico, com a ficção que a antecedeu,
quer do ponto de vista temático quer formal. E isso reitera a idéia de que a língua não é uma unidade
homogênea, única, mas heterogênea, múltipla, formada pela variedade dos usos que a constituem, que
conferem identidade a seus usuários, aos diferentes grupos que a utilizam das mais diversas formas,
colocando a prosa literária como uma das muitas manifestações que constituem a unidade de uma lín-
gua. Portanto, não se trata de incluir apenas as variedades regionais, comumente exploradas pela ficção
regionalista. A gama é muito mais ampla, contando com as mais diversas “línguas” que dão forma a
uma sociedade e a uma cultura. Cada uma expressa visões de mundo, incluindo (ou excluindo) os que
podem fazer uso dela e dando a medida das inúmeras vozes, individuais e coletivas, que são ouvidas
ou abafadas socialmente.
A questão do estilo, associada à questão do gênero e da forma de composição, vem sendo trabalhada
por mim em textos do NURC denominados “Elocuções Formais” que, diferentemente das “Entrevistas” e
dos “Diálogos entre Informantes”, são gravações de aulas e conferências. Essa particularidade permitiu
que eu trabalhasse, até o momento, dois textos de conferencistas que também produziram textos es-
critos a respeito do mesmo tema das conferências (Brait, 1998 e 2003). Além do contraste linguagem
falada/ linguagem escrita, e da complexidade que envolve essa frágil diferença, especialmente quando
se trata de palestra ou conferência, a questão do estilo pôde ser trabalhada não como um privilégio dos
gêneros literários, mas especialmente como um dado de enunciação estreitamente ligado à interação,
à situação em que o evento de linguagem acontece, ao gênero implicado, ao embate existente entre
o “eu” e o “outro”, especialmente quando se considera o próprio objeto de pesquisa como a alteridade
com a qual se defronta o pesquisador2. Nesse sentido, a questão da autoria apareceu, ainda, ligada às
especificidades do gênero e da interação em que se dá o texto e seus entrecruzamentos discursivos.
Também a partir dessas posturas inovadoras a respeito de estilo/autoria, enunciadas nas décadas de
20 e 30 do século XX, e da idéia de que a transposição do texto literário para o cinema constitui um acon-
tecimento de linguagem, um evento artístico-cultural propício à investigação das noções aqui mobilizadas
– especialmente plurilingüismo, estilo e autoria – que a observação recai, nesta etapa do estudo, sobre
o filme Outras histórias (Pedro Bial, 1999). Considerando-se que Pedro Bial é um jornalista, conhecido
especialmente por sua atuação na tevê, e Guimarães Rosa um escritor cuja produção tem nível poético,
imagético, verbal, metafísico, aparentemente difícil de ser transposto para imagens cinematográficas,
a primeira reação à idéia de um filme feito a partir de textos do autor de Grande Sertão: Veredas é a
de torcer o nariz para a ousadia de um reles jornalista. Independente do filme ser bom ou ruim, essa
atitude revela um preconceito que está apoiado na idéia de estilo como expressão individual, privada,
que não pode ser mobilizado, reaproveitado, por outros planos de expressão, sem perder sua qualidade.
E é precisamente aí que o conceito bakhtiniano de estilo, de estética, de produção artística, definida a
partir da interlocução recíproca com outros domínios da cultura permite avaliar o filme.
Tendo como ponto de partida Primeiras Estórias (Guimarães Rosa, 1962), o autor recria cinemato-
graficamente parte do universo rosiano no que ele tem, ao mesmo tempo, de brasileiro e de universal,
construindo o que denominou “Outras Histórias”. Para dar conta, por assim dizer, de algumas das formas
como Guimarães Rosa e o conjunto de contos apresentam o ser humano no que ele tem de atemporal
e ao mesmo tempo de regional e específico, um primeiro e significativo recorte é feito na coletânea
Primeiras Estórias, ou seja, apenas cinco textos participam da narrativa fílmica: “Famigerado”, “Soroco,
sua mãe e sua filha”, “Os irmãos Dagobé”, “Nada e a nossa condição” e “Substância”.
Essas cinco histórias não são escolhidas ao acaso. Elas recuperam eixos fundamentais do universo
roseano, no sentido de que mobilizam, no espaço ambíguo e complexo definido como sertão, paisagens,
personagens, histórias e linguagens que transitam, sem fronteiras definidas, entre o “faz de conta”
dos contos de fada e a dura realidade sertaneja, povoada pelo trabalho, pela loucura, pelo medo, pela
violência, pela morte, pelo amor e pela surpreendente maneira de ser desses homens que, mesmo na
pele de bravos cangaceiros, ou ricos fazendeiros, deixam ver um lado imprevisível, desmedidamente
humano. A explícita exploração do plurilingüismo estético, literário, social e cultural, que caracteriza a
produção de Guimarães Rosa vai ser, portanto, visual, verbal e musicalmente recriada pelos recursos
possibilitados pelo plano de expressão cinematográfico. Unindo num mesmo espaço, narrativo e geográ-
fico, personagens e falas que vem de Rosa e que no final se juntam numa simbólica procissão, o filme
se faz de buritis, casa de farinha, canavial, descampado, mesa de bar, ambiente de velório, movimento
formado por planos interiores e exteriores, pés, rostos, tropel de cavalos, muitas portas, janelas, ruas,
encruzilhadas, casas simples e casas avarandadas, um intenso e apropriado jogo entre luzes e sombras,
que deixa ver, no “faz de conta”, vozes que povoam e animam o sertão.
A figura do cangaceiro/jagunço que, estando presente de forma significativa na formação social bra-
sileira protagoniza a obra de muitos escritores, como é o caso de Franklin Távora, Rodolfo Teófilo, José
Lins do Rego e Jorge Amado, para citar apenas alguns, aparece tanto em Primeiras Estórias quanto na
transposição feita para o cinema pelo jornalista Pedro Bial. O que se observa é que a ambigüidade as-
sumida no imaginário cultural é trabalhada pelas duas narrativas. Se os irmãos Dagobé, facínoras prati-
cantes, aparecem no texto literário separados do aposentado Famigerado, que habita outra narrativa, a
junção no filme é possibilitada justamente pela dimensão ambígua: os protagonistas não estão reduzidos

Proceedings XI International Bakhtin Conference 142


unicamente ao signo da maldade, ao medo que provocam, mas deixam ver outras faces, motivadas pela
existência de domínios e forças sociais e existenciais tão inusitadas quanto a linguagem e a valentia de
um pacato, pacífico e honesto cidadão, caso da personagem Liojorge que “enviara Damastor Dagobé
para o sem-fim dos mortos”. Ao se fundirem cinematograficamente, as figuras constroem um ponto
significativo para as leituras possíveis de tipos culturais em diferentes dimensões da comunicação social
e, ainda, para as implicações dialogismo/estilo/autoria aí engrendradas.
Diante desse evento cultural e estético, como poderíamos responder perguntas do tipo: “A autoria
pode ser pensada como “repartida” entre o escritor e o cineasta? Em que medida o estilo roseano, fun-
dado exclusivamente no plano de expressão verbal, contamina a linguagem cinematográfica? Que formas
de dialogismo podem ser consideradas a partir dessas duas produções e dos estilos aí implicados? Que
elementos do plurilingüismo cultural brasileiro e universal foram recuperados pelas duas obras? A tenta-
tiva de responder a essas e a outras questões passa, necessariamente, pela forma como o pensamento
bakhtiniano concebe estilo, ou seja, O estilo é o homem”, dizem; mas poderíamos dizer: o estilo é pelo
menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma do seu repre-
sentante autorizado, o ouvinte – o participante constante na fala interior e exterior de uma pessoa.
Tomando como objeto a organização dos dois planos de expressão, o literário e o cinematográfico, e
a recriação de personagens advindas diretamente de uma dada cultura, de sua constituição social, dos
diferentes aspectos, aí incluído o imaginário, que contribuem para sua identidade/diversidade, diríamos,
para iniciar a discussão, que tanto Guimarães Rosa, o grande escritor, quanto o Bial, o iniciante cineasta,
constituem seu estilo a partir da relação como o outro, cultural e/ou esteticamente constituído. E, aí sim,
sem preconceito, poderemos estabelecer as proximidades e as distâncias que podem ser reconhecidas
entre o gênero romance, a prosa literária, conforme nos ensina Bakhtin, e a ficção cinematográfica, bem
como a dimensão da autoria implicada no discurso poético de Gumimarães Rosa e a dimensão de autoria
de um filme cujo outro tomado como interlocutor, como motivo de diálogo, é uma obra literária.
A questão essencial da passagem de um plano de expressão constituído e reconhecido, já circulante
na cultura, como acontece com a obra de Rosa, para um outro, é um fator que sem dúvida deixa uma
larga margem de autoria para o autor do texto de partida. Entretanto, o deslocamento inicial da autoria
para um segundo plano, assombrada pela forte imagem de Guimarães Rosa e sua forma particular de
lidar com a cultura e com a linguagem, não elidem o manejo visual, estético e cultural constituído cine-
matograficamente pelo diálogo que o cineasta estabeleceu com seu objeto de conhecimento, prazer e
desejo. Ainda que o espectador, leitor de Guimarães Rosa, procure no na narrativa fílmica unicamente
a obra literária, “o filme diz”, como diriam Gilberto Gil e Caetano Veloso em “Cinema Novo”3, “eu quero
ser poema”, e traz, pela via das imagens e da voz matricial do autor de Grande Sertão: Veredas, “outras
histórias”, “outras conversas sobre os jeitos do Brasil”.
Referências Bibliográficas
AMORIN, Marilia (1996) Dialogisme et altérité dans les sciences humaines. Paris : Harmattan.
AMORIN, Marilia (2001) O pesquisador e seu outro. Bakhtin nas ciencias humanas. São Paulo: Musa.
BAJTIN, Mijail M. “La palabra em la vida y la palabra em la poesia: Hacia uma poética sociológica” In: (1997) Hacia
uma filosofia Del acto ético. De los borradores Y otros escritos. Trad. Tatiana Bubnova. Rubi (Barcelona): Anthropos;
San Juan: Universidad de Puerto Rico
BAKHTIN/VOLOSHINOV (1926) “Discourse in life and discourse in art”. In: Freudism. New York: Academic Press,
1976. A tradução utilizada para este trabalho foi feita por Cistovão Tezza e Carlos Alberto Faraco, versão produzida
para o uso acadêmico restrito.
BAKHTIN, M. (1988) Questões de Literatura e Estética (A teoria do Romance). Trad. Aurora F. Bernardini et alii. São
Paulo: Hucitec.
BRAIT, B. (1998) “Elocução formal: o dinamismo da oralidade e as formalidades da escrita”. In: PRETI, Dino (org.)
Estudos de língua falada. São Paulo, Humanitas, pp. 87-108.
BRAIT, B. (2003 no prelo) “Dialogismo, estilo e práticas discursivas acadêmicas”. In: MOURA, D. Língua Falada e
Língua Escrita. Maceió. UFAL - Universidade Federal de Alagoas.
Ducrot e Todorov (1977) Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem. Trad. Alice Kyoko Miyashiro et alii. São
Paulo, Perspectiva. pp. 287-288.
ROSA, João Guimarães (1969) 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio.
Shaw, Harry (1982). Dicionário de Termos Literários. Lisboa. Publicações Dom Quixote. pp. 187-188.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 143


Biografia: Beth Brait: crítica, ensaísta, docente, orientadora e coordenadora do
LAEL - Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem,
da PUC/SP, e docente e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Semiótica
e Lingüística Geral da FFLCH/USP. Doutorado e Livre-docência na USP; pós-douto-
rado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris/França. Pesquisadora
nível 1 do CNPq. Autora, dentre outras, das obras A personagem (Ática), Ferreira
Gullar (Abril), Guimarães Rosa (Abril), Gonçalves Dias (Abril), Ironia em perspectiva
polifônica (Ed. da Unicamp); organizadora dos livros Bakhtin, dialogismo e cons-
trução do sentido (Ed. da Unicamp), O sertão e os sertões (Editora Arte e Ciência)
e Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas (Pontes/FAPESP).
Endereço: bbrait@uol.com.br
Rua Dr. Gabriel dos Santos, 652 apto 202 São Paulo SP CEP 01231-010

Proceedings XI International Bakhtin Conference 144


Mikhail Bakhtin and early Soviet Sociolinguistics1

Craig S. Brandist

Sheffield University

Mikhail Bakhtin’s essays on the novel of the 1930s are perhaps his most original, influential and valuable
contributions to the study of European language and literature. The terms and limits of that originality
have, however, seldom been systematically analysed, with most commentators content to admire the
bold interweaving of sociolinguistic and literary themes which we find in these essays. The sources of
Bakhtin’s ideas about the novel have been gradually coming into focus since the 1980s, but the sources
of the sociolinguistic ideas embedded in these works have remained unexplored,2 perhaps because it is
generally assumed the ideas follow on from those delineated in Valentin Voloshinov’s 1929 book Marxism
and the Philosophy of Language, which has often been ascribed to Bakhtin himself.3 There is, however,
a qualitative difference between the linguistic ideas in Voloshinov’s texts and those in Bakhtin’s essays
of the 1930s, not least the discussion of the historical development of language and discursive relations
within society and the modelling of these features in the novel as a genre. While Voloshinov’s work
facilitated the transformation of Bakhtin’s early phenomenology of intersubjectivity into the account of
discursive relations we find in the latter’s 1929 Dostoevskii book, both works present largely synchronic
analyses quite distinct from that found the 1934 essay. Voloshinov succeeded in transforming Bakhtin’s
early ‘philosophy of the act’ and aesthetic activity into discursive terms largely through his adoption of
Karl Bühler’s ‘organon model’ of the ‘speech event’ or ‘speech act’, but this left the static phenomenology
of the earlier work intact.4 Similarly, Voloshinov and Medvedev managed to recast Bakhtin’s early account
of worldview into discursive terms by adopting and sociologising the notion of style found in works by
Leo Spitzer and Oskar Walzel, but again the systematic transformations of the discursive environment
remained beyond the purview of the Bakhtin Circle. Where, then, did Bakhtin, from 1929 exiled in a
small Kazakh town where there was very limited access to books and little contact with his erstwhile
colleagues, derive the historical and sociolinguistic ideas that pervade these works?
Characteristic of Bakhtin’s work from this point is an increasing reliance on current Soviet scholarship.
The sources already identified include the work of such important thinkers as the folklorists and literary
scholars Viktor Zhirmunskii and Ol´ga Freidenberg, and the Hungarian theorist of the novel who had re-
cently moved to Russia, Georg Lukács. What has not been fully appreciated, however, is that Soviet work
on language and society was no less influential, and here we must highlight the role of two students of
the Polish-Russian linguist Jan Baudouin de Courtenay, Lev Iakubinskii and Boris Larin. Along with Zhir-
munskii and Lev Shcherba, these scholars were based at the Gosudarstvennyi institut rechevoi kul´tury
(GIRK, State Institute for Discursive Culture; formerly Institut sravnitel´nogo izucheniia literatur i iazykov
Zapada i Vostoka [ILIaZV, Institute for the Comparative Study of Literatures and Languages of the West
and East]) in Leningrad, where both Voloshinov and Pavel Medvedev had been based in the late 1920s.5
At this time the ILIaZV scholars shifted their focus of attention away from the literary studies that had
occupied them in the early years after the Revolution and towards the language question that domina-
ted early Soviet cultural policy. The establishment of standard languages for the national minorities of
the former Russian Empire to facilitate their achievement of a formally equal status with Russian was a
priority, as was the spread of literacy among the masses of all national groups. The relationship between

1 My attendance at the XI International Bakhtin Conference in Curitiba was made possible by an Overseas Conference Grant from the British Academy. This
financial support is gratefully acknowledged.
2 Perhaps the first person to begin the analysis of the sources of Bakhtin’s ideas on the novel was Tzvetan Todorov in The Dialogical Principle, trans W.
Godzich (Manchester: Manchester University Press, 1984) 86-93. Other notable works include N.D. Tamarchenko, ‘M.M. Bakhtin i A.N. Veselovskii (meto-
dologiia istoricheskoi poetiki)’, Dialog Karnaval Khronotop 4, 1998,33-44, Galin Tihanov, The Master and the Slave: Lukács, Bakhtin, and the Ideas of their
Time (Oxford: Oxford University Press, 2000) and Craig Brandist, The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics (London: Pluto Press, 2002). One
conditional exception from the dearth of analyses on Bakhtin’s linguistic thought at this time is V.M. Alpatov, ‘Problemy lingvistiki v tekstakh M.M. Bakhtina
1930-kh godov’, Dialog Karnaval Khronotop 1, 2002, 4-20. Unfortunately the sociolinguistic sources here remain unexplored.
3 V.N. Voloshinov, Marksizm i filosofiia iazyka. In Valentin N. Voloshinov, Filosofiia i sotsiologiia gumanitarnykh nauk (St. Petersburg: Asta Press, 1995) 216-
380; Marxism and the Philosophy of Language, Trans. Ladislav Matejka and I.R. Titunik (Cambridge Mass.: Harvard University Press, 1973). For a survey of
recent work on the authorship dispute see Ken Hirschkop, Mikhail Bakhtin: An Aesthetic For Democracy (Oxford: Oxford University Press, 1999) 126-40.
4 Craig Brandist, ‘Voloshinov’s Dilemma: On the Philosopical Sources of the Dialogic Theory of the Utterance’ in Craig Brandist et al (eds.) The Bakhtin Circle:
In the Masters Absence (Manchester: Manchester University Press, forthcoming).
5 The students of Baudouin de Courtenay dominated linguistic studies in Leningrad and included Shcherba, Larin, Iakubinskii, and Evgenyi Polivanov, who
Bakhtin regarded as a ‘very significant figure’ (M.M. Bakhtin, Besedy s V.D. Duvakinym (Moscow: Soglasie, 2002)). Zhirmunskii had also attended Baudouin’s
lectures and regarded himself as his student.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 145


national languages, between a national language and its regional dialects, and the social stratification of
national languages thus forced themselves to the top of the research agenda for most Soviet linguists at
this time.6 Two research projects at ILIaZV were directly related to these questions: Larin’s examination
of the pluralistic linguistic composition [mnogoiazychie] of the major cities and Zhirmunskii’s research
into the language of the German colonies within the USSR.
Pre-revolutionary linguists had written much of relevance for these issues and Baudouin, who Bakhtin
regarded as a ‘very great scholar’,7 had even been imprisoned for writing a pamphlet advocating a demo-
cratisation of language policy. Baudouin and Iakubinskii’s other teacher Aleksei Shakhmatov respectively
had written extensively on the formation of the Polish and Russian national languages from scattered
Slavonic dialects in the pre-Revolutionary period, but their focus had been primarily psychological.8 Bau-
douin had argued that sociological factors must be considered, but he found both linguistics and sociology
to be at too rudimentary a level of development to explore this beyond programmatic statements.9 The
ILIaZV scholars were able to make these developments, however, and sought to thoroughly sociologise
the dialectology of pre-revolutionary linguists such as Baudouin and Shakhmatov, through the application
of ideas found in the historical works of Marx, Engels and especially Lenin. Most important in this regard
was Lenin’s detailed 1899 (second edition 1908) study The Development of Capitalism in Russia and his
1914 The Right of Nations to Self-Determination in which Russia’s partial transition from a feudal to a
capitalist society and the relationship between national language and national identity were discussed.
What Zhirmunskii called the ‘classical formulation of the formation of the common-national language
of bourgeois society from the dialects of the feudal epoch’ on the basis of the ‘Marxist understanding of
the social-historical process’ was published by Iakubinskii as a series of articles in Gor´kii’s prominent
journal Literaturnaia Ucheba in 1930 and 1931 which were given the collective title ‘Klassovyi sostav
sovremennogo russkogo iazyka’ (The Class Structure of Contemporary Russian Language), and a year
later was published in book form as Ocherki po iazyku.10 It is this series of articles that constitutes the
main source of Bakhtin’s sociological and historical account of language in his essays of the 1930s.11
It is not difficult to explain why Bakhtin was so well disposed towards Iakubinskii’s articles at this time.
Firstly, Literaturnaia ucheba was widely available at a time when few other publications were accessible
to Bakhtin, and the apparent official sanction of the ideas presented there appeared to show a way for a
recently arrested and vulnerable scholar to work and publish legitimately. Iakubinskii was by this point no
longer regarded as a Formalist but as a fellow-traveller of Nikolai Marr, whose ideas had by now achieved
canonical status in the USSR. While the Bakhtin Circle had shown Marr considerable respect from the early
1920s, and Bakhtin continued to do so even in the late 1950s, the extreme dogmatism that emerged in
the 1930s could hardly have been to Bakhtin’s taste.12 Iakubinskii’s continued allegiance to the ideas of
Baudouin and his conditional acceptance of certain Marrist tenets, opened a space for a more construc-
tive approach to the social stratification of language than Marr’s own mechanical correlation between
language and class. Moreover, Bakhtin was well aware that Iakubinskii’s 1923 essay ‘O dialogicheskoi
rechi’ had been an important influence on Voloshinov when he managed to translate intersubjectivity
into discursive forms: dialogic relations. Bakhtin would also have found Voloshinov’s final articles alon-
gside those of Iakubinskii in the journal. Finally, Iakubinskii’s prolonged association with Zhirmunskii,
for whom he and Medvedev are known to have had considerable respect,13 would have further affirmed
Iakubinskii’s image in Bakhtin’s eyes.
Bakhtin was to adopt Iakubinskii’s account of the formation of the Russian national language and
detach it from its historical coordinates. Unhitched from all specific institutional moorings and linked with
Cassirer’s account of the dialectical unfolding of symbolic forms,14 Iakubinskii’s account of the formation
of a Russian national language that is stratified according to class and ideology became an ideal narrative
of the ‘single glottogonic process’ through which all languages develop. In accordance with both Marr’s
stadial theory of language development and Cassirer’s stadial theory of the rise of critical culture, all
languages and cultures pass through the same stages, though at different speeds. This process underlies

6 See, especially Michael Smith, Language and Power in the Creation of the USSR, 1917-1953 (Berlin: Mouton de Gruyter, 1998). While in many respects
an exemplary study, Smith here oversimplifies the relationship between the ILIaZV scholars and the Marrists and ends up presenting the Bakhtin Circle as
mere clients of Marrism.
7 Bakhtin, Besedy s V.D. Duvakinym, 66.
8 The influence of Steindhal’s and Wundt’s Volkerpsychologie was especially significant on these thinkers. On this see Arleta Adamska-Salaciak, ‘Jan Baudouin
de Courtenay’s Contribution to Linguistic Theory’, Historiographia Linguistica XXV (1/2) 1998, 25-60, 33-4.
9 On Baudouin’s incipient sociolinguistic thought see D.L. Olmsted, ‘Baudouin, Structuralism and Society’ and R.L. Lencek, ‘Language-Society Nexus in
Baudouin’s Theory of Language Evolution: Language Change in Progress’ in J.M. Rieger et al (eds.) Jan Niecislaw Baudouin de Courtenay a lingwistyka
swiatowa (Wroclaw: Zaklad Narodowy im. Ossolinskich, 1989) 26-34, 73-81.
10 Viktor M. Zhirmunskii, ‘Marksizm i sotsial´naia lingvistika’ in A.V. Desnitskaia, L.S. Kovtun and V. M. Zhirmunskii (eds.) Voprosy sotsial´noi lingvistiki.
(Leningrad: Nauka, 1969) 5-25. Iakubinskii’s articles, some of which were co-authored with his student A.M. Ivanov, were published in Literaturnaia ucheba
(hereafter LU) 1 pp. 31-43; 2 pp.32-47; 3 pp.49-64; 4 pp.80-96; 6 pp.51-66 (1930) and 7 pp.22-33; 9 pp.66-76 and 1 (new series) 82-106 (1931). The
book, credited to Ivanov and Iakubinskii, was published as Ocherki po iazyku (Moscow and Leningrad: Khudozhestvennaia literatura, 1932). On the historical
significance of this work see A.V. Desnitskaia, ‘Kak sozdavalas teoriia natsional´nogo iazyka’ in N.F. Belchikova (ed.) Sovremennye problemy literaturovedeniia
i iazykoznaniia (Moscow: Nauka, 1974) 398-415.
11 The fact that the published articles bear no direct references to Iakubinskii is no obstacle here, since references to all the well-established sources of
Bakhtin’s work at this time, such as Lukács, Veselovskii and Cassirer, are similarly absent. Until the manuscripts have been made available to researchers
we are unlikely to know whether such references were posthumously removed by ideologically motivated editors.
12 On Bakhtin’s complex relationship to Marrism see Brandist, The Bakhtin Circle, 109-15 and passim.
13 See especially P.N. Medvedev, ‘Uchenyi Sal´erizm (O formal´nom (morfologicheskom) metode’, Zvezda, 3, 1925, 264-76, translated as by Ann Shukman
as ‘The Formal (Morphological) Method or Scholarly Salieri-ism’ in Bakhtin School Papers, Russian Poetics in Translation 10, 1983, 51-65.
14 On Bakhtin’s debt to Cassirer’s neo-Hegelian dialectic see Craig Brandist, ‘Bakhtin, Cassirer and Symbolic Forms’, Radical Philosophy, 85, 1997, 20-27.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 146


the rise of the novel, which ultimately becomes the organ through which the stratified language becomes
conscious of itself as its own object. The neo-Hegelian nature of this ideal narrative is clear to see but,
crucially, unlike Marr and like Cassirer, Bakhtin does not argue for the final merging of all languages and
perspectives when culture becomes self-conscious. The ‘autonomous and independent value’ of ‘various
cultural forms’ are maintained rather than subsumed into a single and all encompassing meta-form,15
and it is the novel that allows this to happen.
What follows is a short overview of the salient points made in Iakubinskii’s articles and an analysis of
how Bakhtin incorporated these features into his work of the 1930s.
Language as form and as ideology
The starting point for Iakubinskii is the contention that language has two fundamental functions from
which all subsequent functions arise: ‘1) language as a medium of intercourse and 2) language as ideo-
logy’. While this distinction must not be erased, ‘in no cases must these fundamental functions be sepa-
rated from one another: in all its phenomena language fulfils both these functions at once’. Iakubinskii
argues that the application of Marxism to language science reveals that ‘a language is a unity of these
functions’, and allows the linguist to show how, at various stages of a society’s development, these two
aspects ‘enter into contradiction’. This contradiction is determined by socio-economic circumstances and
acts as the ‘inner motor’ of a language’s development.16
Bakhtin adopts Iakubinskii’s methodological premise language as the unity but not identity of form
of communication and ideological content, opening his 1934-5 essay on the novel with an assertion that
his fundamental aim is to overcome the separation between ‘abstract “formalism” and abstract “ideolo-
gism” in the study of the artistic word. Form and content are united in the word, understood as a social
phenomenon, social in all spheres of its life and in all its moments – from the sound image to the most
abstract semantic strata’. This idea is said to define his whole emphasis on the ‘stylistics of genre’ in
which stylistic phenomena are to be linked to the ‘social modes in which the word lives’ and the ‘great
historical destinies of genres’.17
Centrifugal and centripetal forces
Bakhtin is particularly well known for describing the unitary language as an ‘expression of the historical
process of linguistic unification and centralisation, an expression of the centripetal forces of language’ but
that alongside this process ‘uninterrupted processes of decentralisation and disunification proceed’.18 The
idea of contradictory forces at work within a national language and culture were fairly commonplace by
the end of the 1920s in several disciplines. Both of Iakubinskii’s most influential teachers, Baudouin de
Courtenay and Shakhmatov, discussed the struggle between centripetal and centrifugal forces as crucial
factors in the history of a language. Baudouin discussed this in his inaugural lecture at St. Petersburg
University as early as 1870, and Shakhmatov revived the idea in 1915.19 In his Ethics of 1892 Wilhelm
Wundt celebrated the triumph of the centralisation of language, literature, world-view and social life
within a nation over the ‘centrifugal’ forces of different classes and associations.20 In a 1929 article on
the methodology of Soviet folklore, the veteran orientalist and folklorist Sergei Ol´denburg argued that
‘interactions between different social milieux are phenomena no less important than those between races
or peoples’ and that ‘to the tendencies toward differentiation are always opposed the tendencies toward
unification’. Furthermore, Ol´denburg argued that awareness of this was leading to a breaking down of
the ‘artificial distinction between popular and non-popular’ literature.21
Bakhtin linked these contradictory forces to a sociology of language so that:
At any given moment of its formation [stanovlenie], a language is stratified not only into
linguistic dialects in the strict sense of the word (according to formal linguistic markers,
especially phonetic), but, and this is fundamental for us, into socio-ideological languages:
languages of social groups, ‘professional’ languages, ‘generic’ languages, languages of ge-
nerations and so on.22

The crucial point here is that within a national language there are co-present linguistic dialects and
social discourses, that he terms raznoiazychie and raznorechie respectively. The latter are not dialects
in the exact (linguistic) sense but are related to social function (professional, class etc). The significance
of this distinction has unfortunately been obscured by the translation of both raznoiazychie and razno-

15 Ernst Cassirer, quoted in Charles Hendel, ‘Introduction’ in Ernst Cassirer, The Philosophy of Symbolic Forms Vol. 1: Language, trans R. Mannheim, New
Haven CT and London: Yale University Press, 1955) 1-65, 34.
16 Ivanov and Iakubinskii, Ocherki po iazyku, 62. Original emphasis.
17 ‘Discourse in the Novel’ (hereafter DN) in M.M. Bakhtin, The Dialogic Imagination (trans. M. Holquist and C. Emerson, Austin: University of Texas Press,
1981) 259-422, 259; ‘Slovo v romane’ (hereafter SR) in Voprosy literatury i estetiki (Moscow: Khudozhestvennaia literatura, 1975) 72-233, 72-3.
18 DN 271-2; SR 85.
19 I.A. Boduen de Kurtene (Baudouin de Courtenay), ‘Nekotorye obshchie zamechniia o iazykovedenii i iazyke’ in Izbrannye trudy po obshchemu iazykoz-
naniiu (Moscow: Izd. Akademii nauk SSSR) 47-77, 58-60; A.A. Shakhmatov, Ocherk drevneishego perioda istorii russkogo iazyka (Petrograd: Imeratorskaia
akademia nauk, 1915) xlvii-xlviii.
20 W. Wundt, Ethics in 3 Volumes (trans. M.F. Washburn, London: Swan Sonnenschein, 1907-8) I, 262-3; III, 269-72.
21 S.F. Ol´denburg, ‘Le conte dit populaire, problèmes et methodes’, Revue des “etudes slaves, 9, 1929, 221-36, 234-5, quoted in Dana P. Howell, The
Development of Soviet Folkloristics (New York and London: Garland, 1992) 173.
22 DN 271-2; SR 85. The English translation renders the first ‘iazyk’ in this quotation as ‘language’ rather than ‘a language’. Since Bakhtin is speaking about
the formation of a national language it seems to me important to stress he is speaking about language as a social fact.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 147


rechie as ‘heteroglossia’. For example, he argues that ‘discursive diversity [raznorechivost´] … does not
go beyond the limits of linguistic unity (according to abstract linguistic features) of a literary language,
does not turn into a genuine raznoiazychie’ that would require ‘knowledge of different dialects or lan-
guages’.23 The centralising and decentralising forces thus simultaneously operate on a language in the
process of formation but along different axes, as it were: linguistic [iazykovoi] homogenisation takes
place at the same time as discursive [rechevoi] differentiation. The ‘authentic medium of an utterance,
in which it lives and is formulated’ is therefore ‘dialogised raznorechie’. The various discourses become
‘dialogised’ only because they interact within the shared medium of a single language, which was not
possible when there was no common language (raznoiazychie) and social functions remained in isolation
[zamknutyi]. Various utterances occur within a single language, thus being ‘anonymous and social as
language’, but in differentiated discourses that are ‘concrete, content-filled and accentuated’.24 In the
process of a language’s formation, therefore, we do not have mechanically opposed tendencies but a dia-
lectical contradiction in which the same historical changes that bring about the unification of the medium
of communication (iazyk) also bring about social-functional or ideological differentiation (raznorechie),
which the unified language must struggle to contain. Language, understood as ‘ideologically saturated,
language as worldview, and even as concrete opinion, insuring a maximum of mutual understanding in
all spheres of ideological life’,25 thus develops in a spiral rather than in a straight line.
Confusion about the nature of Bakhtin’s argument is aggravated by his very imprecise use of termino-
logy here. This is undoubtedly the mark of a philosopher still unfamiliar with the finer points of linguistic
theory. His employment of this terminology was much more assured by the early 1950s, by which time
Bakhtin had clearly made a much more systematic study of contemporary linguistics.26 Another problem
in the essays from the 1930s is the lack of concrete historical reference, and Bakhtin’s tendency to recast
material from historical sources as part of a neo-Hegelian ‘ideal history’ of modes of thought in which
the ‘essence’ of a form (particularly the novel) necessarily appears at the end of course of development.
These problems lead Bakhtin’s English language translators to fail to distinguish those instances when he
is clearly writing about a language from those when he is concerned with language in general. There are,
however many grey areas. In severing the account of the development of a language from its historical
moorings Bakhtin is frequently led to present the social stratification of language and the co-presence
of contradictory tendencies as an eternal principle.
Bakhtin’s argument becomes considerably clearer when we recognise that Iakubinskii’s articles are
the most probable source of his formulations. Iakubinskii treats the historical vicissitudes of the national
language and ideological differentiation as two sides of a single problem. Form of communication and
ideological content are to be understood as united (but not fused) in language. It is this feature that
fundamentally distinguishes Iakubinskii’s argument from the class reductionism of Marr. The ‘widening
of the sphere of a language as a means of intercourse’, argues Iakubinskii, ‘is accompanied by another
process (better – they are two sides of one and the same process)’. The verso of linguistic unification is
the ‘class differentiation of a language as ideology’:
The same capitalism that maximally differentiates language as ideology strives to transform
it into an all-national inter-class means of intercourse. In this way language, having taken
shape in capitalist society, is characterised by the intensification of that internal contradiction
that we mentioned above. This contradiction may be formulated as the contradiction between
the commonality of language as a means of intercourse (form), and the class differentiation
of language as ideology (content).27

This dialectic of ‘form’ and ‘content’, so understood, is the methodological premise of Iakubinskii’s
detailed and sophisticated account of the formation of the Russian national language.
For Iakubinskii, language-as-ideology in a capitalist society bears features characteristic of all stages
of its development. On the one hand, language-as-ideology is the realm of what the neo-Kantians called
‘objective validity’, that is, ‘the inescapable form of our cognition’, but developed ‘according to the level of
the formation [obrazovanie] and differentiation of the superstructural world’. Iakubinskii explicitly points
to Marr at this point, arguing that at the beginning of its existence as an ‘independent form of ideology’
language was ‘one of the forms of existence for the majority of other ideologies (religious, juridical,
scientific, political and so on)’. On the other hand, language-as-ideology is also the embodiment the socio-
specific worldviews of different social groups. The history of class society is therefore the history of class
ideologies engaged in a struggle that reaches a peak under capitalism, when a common language-as-me-
dium-of-intercourse becomes ‘the form of existence of different class consciousnesses (psychologies)’.28
This process is elaborated in a history of the formation of the Russian national language.

23 DN 308; SR 121. The published translation is particularly confusing here: ‘speech diversity does not exceed the boundaries of literary language concei-
ved as a linguistic whole (that is, language defined by abstract linguistic markers), does not pass into an authentic heteroglossia’. However, and even more
confusingly, the conflation of raznorechie and raznoiaychie is itself not consistent in the translation, since there are passages, e.g. DN 298; SR 111 where
‘raznoiazychie i raznorechie’ has been translated as ‘the hetroglossia and language diversity’. I am indebted to Mika Lähteenmäki for pointing this out.
24 DN 272; SR 86.
25 DN 271; SR 84. Bakhtin’s use of ‘language… as ideologically saturated’ here to mean ‘discourse’ is very misleading. In the essay of discursive genres
from the early 1950s his distinction between language and discourse is much clearer.
26 Some of Bakhtin’s notes from his study of linguistics in the early 1950s have been published as ‘Iz arkhivnykh zapisei k rabote “Problemy rechevykh
zhanrov”’, Sobranie Sochinenii 5, 207-86. This has very recently been supplemented by some published notes from 1957 where Bakhtin systematically
addressed the difference between discourse and language: M.M. Bakhtin, ‘Iazyk i rech´’, Dialog Karnaval Khronotop, 1, 2001, 23-31.
27 Ocherki po iazyku, 62-3.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 148


The formation of the Russian national language
Iakubinskii’s historical account begins with an examination of the language of the peasantry under
feudalism, where society was divided into a ‘series of linguistic regions corresponding to feudal estates
[pomest´e]’. These regional dialects were not monolithic, however, because ‘the population of a feudal
estate could include within its structure a series of primordial economic groups’. The resultant variations
within feudal dialects were, and here Iakubinskii follows Marr closely, ‘relics of the preceding stage of
society’. In general, however, feudal linguistic relations were characterized by regional ‘boundedness’ and
‘enclosure’. In feudal society ‘peasants spoke differently in different regions, and within a region common
characteristics naturally emerged, although they could also retain distinct characteristics inherited from
preceding epochs’.29
With the uneven development of capitalist relations within the framework of a feudal society, linguistic
relations began to change. These new relations were first apparent within a growing town, where from
its inception the population is to some extent a mixture of people from various feudal estates. A certain
‘common conversational language’ arose as a result, ‘reflecting the characteristics of the varied dialects
of settlers’. The language of each separate town was, however, formed in the grasp of intensifying in-
ter-urban relations, on the basis of the conversational language of the largest centre(s) of the society.
This forms the nucleus of the common-national [obshchenatsional´nyi] language, which develops as the
bourgeoisie concentrated wealth in fewer and fewer hands, centralised production and thus the popu-
lation, and brought about political centralisation. Paraphrasing Marx, Iakubinskii argues that ‘linguistic
sociality becomes ever less like that sack of dialects that it was under feudalism’. Giving earlier schematic
accounts of centrifugal and centripetal forces within language some sociological concreteness, Iakubinskii
argues that the formation of the national language is a ‘tendency [tendentsiia] (striving [stremlenie]) to
commonality’, the progress of which depends on factors such as the arrival of new peasants with their
own dialects, the stage of capitalist development, and the size of the capitalist centre. More importantly,
however, the urban population is divided into classes and a stratum of ‘professional intellectuals’: ‘the
degree of commonality of the language of various social classes … is different. Different classes genera-
lise their language to various degrees depending on the extent to which they are compelled to do so by
their objective class interests and on how much this generalisation is permitted by the objective political
conditions in which the given social class develops’. The proletariat has an interest in generalising its
language, but being politically subordinate, exploited and oppressed, it is unable to become a ‘class for
itself’. The contradictions of capitalism thus both drive and limit the development of a common national
language.30
Public discourse and its genres
Iakubinskii argues that the ‘capitalisation’ of linguistic relations is crucially tied to the development of
‘public discourse’ [publichnaia rech´], which is to be distinguished from conversational language in terms
of possible numbers of participants and length of utterance. Reiterating a point from his 1923 article on
dialogic discourse, Iakubinskii argues that ‘conversation is the exchange of short rejoinders (dialogue)’
while the utterances of ‘public discourse’ are ‘extended, lengthy, monologic’.31 Public discourse is also
more likely to be written. Platforms for public discourse only really arise as a result of the ‘capitalisation’ of
linguistic relations, for ‘public discourse begins to “flourish” in parliament and at court, in higher education
institutes and at public lectures, at rallies and congresses; even the square becomes its platform’:32
Parliamentary discourse, a diplomat’s address to a conference, a statement in a dispute
or at a rally, a political speech, the discourse of a lawyer or prosecutor, agitational speech
on the street etc. etc. These are genres of public discourse characteristic of capitalism as
opposed to feudalism, regardless of the fact that we find their embryos under feudalism.
Capitalism speaks publicly incalculably more and in a different way than feudalism. Public
speaking under feudalism is narrowly specialised, limited by the narrow domains of sociality;
public speaking under capitalism pretends to universality; it wants to be as universal a form
as conversational language… In accumulating the various genres of oral public discourse,
capitalist sociality also accumulates corresponding written genres.

While capitalism develops a wide variety of genres of public discourse, it simultaneously restricts
the access of much of the population to those genres. ‘Inherent to capitalism’ is, therefore, ‘a tendency
(striving) to transform public discourse into as universal a form of discursive intercourse as conversa-
28 Ocherki po iazyku, 62. The reference is to Marr’s correlation of stages of language development with forms of social differentiation, on which see Lawrence
Thomas, The Linguistic Theories of N.Ja. Marr (University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1957) 117-34. This also corresponds to Bukharin’s
definition of ideology as ‘certain unified systems of forms, thoughts, rules of conduct etc.’ such as ‘science and art, law and morality, etc.’, which was adopted
by Voloshinov and Medvedev. See Nikolai Bukharin, Historical Materialism: A System of Sociology (London: Allen & Unwin, 1926) 208. Voloshinov and Med-
vedev both regard the philosophy of language and literary scholarship as branches of a ‘science of ideologies’. See, for example, P.N. Medvedev, Formal´nyi
metod v literaturovedenii (Moscow: Labirint, 1993) 45; P.N. Medvedev/ M.M. Bakhtin, The Formal Method in Literary Scholarship, trans. Albert J.Wehrle,
(Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1978) 37. On Voloshinov’s debt to Bukharin see Tihanov, Master and Slave, 85-95.
29 L.P. Iakubinskii, ‘Klassovyi sostav sovremennogo russkogo iazyka: iazyk krest´ianstva. Stat´ia chetvertaia’, Lu 4, 1930, 80-92, 85.
30 ‘Klassovyi sostav’ Lu 4, 86-8.
31 ‘O dialogicheskoi rechi’ in Iazyk i ego funktsionirovanie, 17–58, § 4. Iakubinskii’s colleague at ILIaZV Lev Shcherba had already made the same point as
early as 1915: ‘Every monologue is in essence a rudimentary form of the “common”, normalised, widespread language; language “lives” and changes by
and large in dialogue’ L.V. Shcherba, ‘Nekotorye vybody iz moikh dialektologicheskikh luzhitskikh nabliudenii’ in Izbrannye raboty po iazykoznaniiu i fonetike
(Leningrad: Izd. Leningradskogo universiteta, 1958) 35-9, 36. See also Shcherba, ‘sovremennyi russkii literaturnyi iazyk’, Izbrannye raboty po russkomu
iazyku (Moscow: uchpedgiz, 1957) 113-130.
32 ‘Klassovyi sostav’ Lu 4, 89-90. Original emphasis.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 149


tional language’, but due to capitalism’s essential ‘limits and contradictions’, ‘the universality of public
discourse remains just as much a myth in a capitalist world as liberty, equality and fraternity and so
many other good things’.33
This is almost certainly the most immediate source of Bakhtin writing on ‘discursive genres’. In these
articles Iakubinskii uses the term ‘discursive genre’ extensively in precisely the way Bakhtin was to in
the essays of the 1930s and then in the early 1950s. What Iakubinskii integrated into a substantive
socio-historical account of the revolution brought about within discursive relations by the development
of capitalism in Russia, however Bakhtin integrated into an ‘ideal’ literary history. Although Voloshinov
had used the term sparingly in 1929,34 Bakhtin treated the question historically his articles of the 1930s.
His concern with this category reaches a peak in 1951-3, in the essay ‘Problemy rechevykh zhanrov’
(Problems of Discursive Genres), which was written in response to Stalin’s attack on Marr in June 1950.35
Here we learn that Bakhtin regards discursive genres as typical forms of utterance. While Bakhtin un-
doubtedly developed the idea by drawing on his knowledge of the theory of genre in artistic literature,
it retained the sociological force that it was given by Iakubinskii in his work of the 1930s. Thus, in the
1951-3 essay he argues that discursive genres are ‘drive belts [privodnye remni] from the history of
society to the history of language’, a metaphor used about language by Marr but here transferred to
Iakubinskii’s category.36
Linguistic unification and discursive differentiation
In his 1940 article on the ‘Prehistory of Novelistic Discourse’, Bakhtin describes the significance of
the breaking-down of the Athenian city-state’s linguistic isolation as a precondition for the rise of the
significant parodic genres that are the precursors of the modern novel. Only with the coming of ‘mno-
goiazychie’, a pluri-lingual environment (polyglossia), can ‘consciousness be completely freed from the
power [vlast´] of its own language and linguistic myth. Parodic-travestying forms flourish in conditions
of mnogoiazychie, and only under such conditions can they be elevated to completely new ideological
heights’.37 This account is a clear example of how Bakhtin integrated the sociology of language developed
in Russia in the 1920s and 1930s into an ideal history of literary form.
While the term itself is considerably older, ‘mnogoiazychie’ was used to refer to the co-presence of
different national languages within a single city by Iakubinskii’s colleague Boris Larin in a paper delivered
at ILIaZV in 1926 and published in 1928.38 Two years later appeared Iakubinskii’s analysis of how the
‘common-urban language’ penetrated the ranks of the peasantry and led to a self-conscious approach
to language. Iakubinskii also argued there that linguistic parody was a key form in the struggle of lan-
guages that resulted from the breakdown of ‘feudal fixity’. Iakubinskii investigates ‘1) how the peasantry
accommodates itself to the conversational language arising in capitalist society and 2) how the peasantry
joins the process of the transformation of public discourse into the universal form of intercourse on the
basis of its new genres (that are alien to feudalism)’.39 This dual problem leads to three theses: a) The
peasantry’s assimilation of the common-urban language is an uneven process depending on the variety
of social groups in a given village, the distribution and character of capitalist centres and the penetration
of market forces into villages generally; b) the process of assimilation is not linear as a result of peasant
resistance to the common-urban language and consequently c) assimilation is to a large degree a conscious
process on the part of the peasantry. It is thesis c) that we are most concerned with here. According to
Iakubinskii, the peasantry’s move towards the common-urban language is a ‘conscious act’:
By counterposing the common-urban language to local way of speaking [govor], capitalism
introduces linguistic facts into the peasantry’s consciousness, forcing them to notice, recognise
and evaluate these facts. It [capitalism] transforms unconscious language, language-in-it-
self into language-for-itself. Destroying feudal fixity, the traditionalism of peasant linguistic
intercourse, through the class stratification of the village and the complex counterposition
of the city to the village, capitalism forces the peasantry to choose between its own, old,
local and the new urban, ‘national’ [language]. On this soil arises a struggle, and one of its
weapons is mockery, linguistic parody of the speech of the backward or the innovators. 40

Bakhtin once more severed Iakubinskii’s argument from its historical moorings, and incorporated it into
an account of literary history with different origins and historical coordinates. Like Iakubinskii, Bakhtin
links the rise of parodic genres to the breakdown of linguistic isolaion, but he transposes the formula-
tion, shifting it from the penetration of capitalist relations into the backward Russian countryside and to
an account of the literature of late antiquity. The framework into which Bakhtin inserted the Leningrad
33‘Klassovyi sostav’ Lu 4, 91-2. Original emphasis.
34 Voloshinov briefly uses the term ‘discursive genre’ in Marxism and the Philosophy of Language, but it there remains relatively undeveloped and certainly
not linked to historical considerations (Marksizm, 314-5; MPL, 96-7).
35 In their detailed commentary on the essay, the editors of the scholarly edition of Bakhtin’s work fail to identify this source, claiming only that Bakhtin was
probably influenced by Iakubinskii’s 1923 essay on dialogue, from which he derived the term ‘rechevoe obschenie’ [discursive intercourse]. M.M. Bakhtin,
Sobranie sochinenii t.5 (Moscow: Russkie slovari, 1996) 543.
36M.M. Bakhtin, ‘Problema rechevykh zhanrov’, Sobranie sochinenii t.5, 159-206, 165; ‘The Problem of Speech Genres’, Speech Genres and Other Late
Essays, trans. Vern W. McGee, (Austin, University of Texas Press, 1986) 60-102, 65. Marr argued that ‘language acts as a drive belt [privodnoi remen] in
the region of the superstructural categories of society’, quoted in Alpatov, Istoriia, 35.
37 M.M. Bakhtin, ‘From the Prehistory of Novelistic Discourse’ (hereafter PND), The Dialogic Imagination, 41-83, 61; ‘Iz predystorii romannogo slova’,
(hereafter PRS) Voprosy literatury i estetiki, 408-46, 426.
38 Larin, ‘O lingvisticheskom izuchenii goroda’ § 4.
39 ‘Klassovyi sostav sovremennogo russkogo iazyka: iazyk krest´ianstva. Stat´ia chetvertaia’ , Lu 6, 51-66, 51.
40 ‘Klassovyi sostav’, Lu 6, 58-62. Original emphasis.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 150


linguists’ ideas had already been established by Aleksandr Veselovskii and Georg Misch. Veselovskii had
described the rise of the novel as the product of the interaction of cultures, while Misch had described
the ‘discovery of individuality’ in autobiography during Hellenic expansion as a ‘sudden consequence of
the extension of the field of view to previously unknown peoples, with different ways of living’.41 The
achievement of linguistic self-consciousness was thus generalised and then linked to literary practice in
conditions of mnogoiazychie. The result is that ‘in the process of literary creation inter-illumination with
an alien language illuminates precisely the “world-view” side of one’s own (and the alien) language, its
inner form, the axiological-accentuated system inherent in it’.42
From raznoiazychie to raznorechie
For Iakubinskii it is the advent of capitalism that brings about the reordering of linguistic relations.
Where the peasantry comprised a collection of geographically dispersed and socially isolated communities,
the urban proletariat constitutes a collective of social groups that arise from the division of labour. The
linguistic specificities of such social groups are now subsets of an overarching proletarian standard:
These intra-class groupings do not contradict the working class’s objective interests as long
as the specialised professional vocabulary is used within the narrow sphere of a given form
of production and does not permeate the whole language of the worker, does not completely
detach him, in linguistic relations, from the worker of another professional group.

The linguistic relations between professional linguistic groups in capitalist society are therefore shar-
ply distinguished from those between the professional groups of feudalism, where ‘secluded’ groups
developed their own mutually incomprehensible languages. The professional stratification of language
within the proletariat is thus quite different from the ‘raznoiazychie’ that the proletariat inherits from the
peasantry. This latter contradicts the objective interests of the working class and must be ‘liquidated’ in
the formation of an independent proletarian language.43
In its transformation from a ‘class in itself’ to a ‘class for itself’, the proletariat must develop its own
language in contradistinction to the language of the bourgeoisie. The manifestation of this distinction
is not, and here Iakubinskii shows considerable distance from Marr, in the proletariat’s pronunciation,
grammar or vocabulary, but in the proletariat’s ‘discursive method’. This is ‘the mode of usage of the
material of the common-national language’, the ‘treatment [obrashchenie]’ of this material, ‘the mode
of selection from it of facts necessary for concrete purposes’, the ‘attitude toward these facts and their
evaluation’. This ‘proletarian discursive method’ is formed spontaneously during the proletariat’s struggle
with the bourgeoisie ‘in the order of everyday conversational intercourse and is organised by the most
advanced linguistic workers, the ideologues of the proletariat (writers and orators) in the various genres
of oral and written public discourse’. This method is at first mainly formed in the ‘political, philosophical
and scientific genres of public discourse’, but after the proletariat’s seizure of political power the process
acquires a ‘mass character’ and spreads to ‘all discursive genres’.44
The social stratification of language is now understood as stratification at the level of discourse and it
is argued that workers become conscious of this stratification in and through the democratisation of dis-
cursive genres by a political leadership. Here we have the germ of Bakhtin’s idea that the democratisation
of culture is synonymous with its ‘novelisation’. The political leader is replaced by the novelist. Rather
than ‘political, philosophical and scientific genres of public discourse,’ proving the locus for democratisa-
tion, it is in and through the novel that adopts this role. Just as Bakhtin detaches Iakubinskii’s concrete
historical narrative from its institutional coordinates and absorbed into an ideal narrative, so he severs
literature from its institutional moorings and subsumes politics into ethics and aesthetics.
Iakubinskii’s series of articles end with a characterisation of the current state of ‘linguistic politics’. He
argues that all unnecessarily technical vocabulary associated with ‘bourgeois specialists’ must be shunned
in favour of a truly ‘popular-scientific language’ [nauchno-populiarnyi iazyk].45 Under the dictatorship of
the proletariat the common-national language must be ‘common in its tendency towards all the genres
of discourse’. It will be ‘more democratic the more it is accessible to the masses, and the less it is diffe-
rentiated according to genre’ overcoming the enormous differentiations of the ‘assimilation of actuality
in discursive genres’ introduced by capitalism.46 The development of a common-national language, and
thus the overcoming of ‘raznoiazychie’, can reach fruition. This is because capitalism’s contradiction
between town and countryside can be overcome and the subordination of previously oppressed classes
can cease. Since the proletariat is a universal class, it aims to destroy the class structure once and for
all, and so the national language can now become ‘common to all classes of society’.47

41 A.N. Veselovskii, ‘Grecheskii roman’ in Izbrannye stat´i (Leningrad: Khudozhestvennaia literatura, 1939) 23-69; A.N Veselovskii, Istoriheskaia poetika
(Leningrad: Khudozhestvennaia. literatura, 1940). It may be significant that Veselovskii was an important and acknowledged source for Marr’s work and that
Zhirmunskii was the editor and wrote the introduction to these editions. Georg Misch, A History of Autobiography in Antiquity (2 vols.; trans E.W. Dickes;
London: Routledge & Kegan Paul, 1950) vol. 1, 69. See also Tihanov, Master and Slave 149-50; N. Tamarchenko, ‘M.M. Bakhtin i A.N. Veselovskii’; Craig
Brandist, ‘Bakhtin’s Grand Narrative: The Significance of the Renaissance’, Dialogism 3 (1999) 11-30,19-24.
42 PND 62; PRS 427.
43 ‘Klassovyi sostav sovremennogo russkogo iazyka: iazyk proletariata. Stat´ia piataia’, LU 7, 1931, 22-33, 24-5.
44 ‘Klassovyi sostav’ LU 7, 32-3.
45 Iakubinskii, ‘O nauchno-populiarnom iazyke’, LU 1, 1931, 49-64.
46 L.P. Iakubinskii, ‘Russkii iazyk v epokhu diktatury proletariata’ LU 9, 1931, 66-76 74.
47 ‘Russkii iazyk’ LU 9, 71.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 151


Where Iakubinskii saw the final democratisation of linguistic relations to lie in the future, Bakhtin appe-
ars to endorse the present time as fully ‘novelised’. Where for Iakubinskii the 1917 revolution provided
the final precondition for true linguistic democracy, Bakhtin located this back in the Renaissance:
We live, write and talk in a world of free and democratised language: the old complex and multi-levelled
hierarchies of words, forms, images, styles that permeated the whole system of the official language and
linguistic consciousness was swept away by the linguistic revolutions of the Renaissance.48
It is difficult to know how to take this passage, which was written at the height of the Stalin terror and
the encodement of ‘socialist realism’. One this is certain, however. Such a judgement could be possible
only if the institutions within which language culture is articulated were removed from view. Such are
the consequences of Bakhtin’s neo-Kantian heritage, which compelled him to view culture as an ethical
concern with all questions of determination from without consigned to the realm of the natural sciences.
An awareness of Iakubinskii’s articles which constituted a major source for these works can assist in
restoring these factors.
The novel
It is crucial to recognise that in the 1930s Bakhtin was not a linguist, but a theorist of the novel.
For him, the novel embodies an image of society, but this is a verbal image of the verbal structure of
society. The novel is ‘a microcosm of raznorechie’.49 Iakubinskii provided Bakhtin with a coherent model
of the socio-linguistic relations that are both a precondition of the novel as a meta-genre and an object
of its artistic imaging. Bakhtin essentially abstracted from Iakubinskii’s account of the recent history of
the Russian language, treating it as a general account of European linguistic history from antiquity to
the Renaissance. Such a strategy fits in with the Marrist contention that all languages undergo a ‘single
glottogonic process’, passing through the same stages of development, but not necessarily at the same
tempo.50 It also reminds one of the Bakhtin Circle’s early adherence to the idea of the impending ‘Third
Renaissance’ which would begin in Russia and sweep through Europe.51 This abstract use of historical
categories, along with Bakhtin’s own philosophical idealism, leads to a definite ambivalence over whether
the novel is a historically specific phenomenon or an eternal principle.
Bakhtin’s originality in these essays lies not in his description of discursive diversity of a national
language but in his characterisation of how the novelist exploits that diversity. Thus, ‘the novel begins
to make use of all languages, manners, genres, it compels all the lived-out and decrepit, all socially and
ideologically alien and distant worlds to speak about themselves in their own language and their own
style’. The novelist plays a crucial role in the democratisation of linguistic relations by providing an image
of the struggle between discourses that occurs within the ‘various genres of oral and written discourse’.
The nature of this engagement in the novel is, however, not simply polemical but, rather, artistic and
creative. The author’s and hero’s words fuse together and are transformed into an artistic image within
which an unresolved ‘mutual interaction between worlds, points of view, accents’ is captured.52 If the
mnogoiazychie of the period of Hellenic expansion was a precondition for the flowering of parodic genres,
with language use becoming a conscious act, the raznorechie of the Renaissance, the point of transition
between feudalism and capitalism, provides the conditions for a flowering of parodic genres at a higher
level. At this point it is no longer only languages as such that become self-conscious, but also socio-
specific discourses. The parodic genre par excellence is the novel. It is not only language as such, but
‘raznorechie in itself’ that ‘becomes in the novel and thanks to the novel, raznorechie for itself’. Novels
of the most advanced kind ‘rise from the depths of raznorechie to the highest spheres of the literary
language and overwhelm it’.53
Conclusion
An examination of Bakhtin’s debt to Iakubinskii’s articles of 1930-31 shows the extent to which in the
1930s Bakhtin was attempting to integrate his work into the Soviet scholarship of the day. The attempt
continued for a considerable time, with Bakhtin’s work following the twists and turns of contemporary
scholarship closely. This was certainly not limited to sociolinguistic ideas, but extends throughout his work
and requires further research. As we have seen in the case of Iakubinskii, however, Bakhtin’s idealism
sapped some of the radical potential of the ideas he incorporated, even though it ultimately insulated him
from some of the cruder corruptions of scholarship in the Stalin period. This suggests that many more
of these forgotten sources probably deserve to be re-examined in their own rights rather than being
dismissed as Stalinist hack-work.
Bakhtin’s most original and, I think, valuable ideas are to be found in his work on the novel from the

48 PND 71; PRS 435.


49 DN 411; SR 222.
50 Bakhtin may have been following Zhirmunskii in the later 1930s, for the latter had attempted to establish a methodology for ‘comparative literary studies’
on the basis of Marr’s notion of the ‘single glottogonic process’ in an important and influential article ‘Sravnitel´noe literaturovedenie i problema literaturnykh
vliianii’ Izvestiia academia nauk SSSR, otdelenie obshchestvennykh nauk 3, 1936, 383-403, 383-4. On the significance of this article see A.V. Desnitskaia,
‘Na putiiakh k sozdaniiu istoriko-tipologicheskoi teorii eposa: stranitsy nauchnoi biografii V.M. Zhirmunskogo’ in D.S. Likhachev (ed.) Iazyk, literatura, epos
(k 100-letiiu so dnia rozhdeniia akademika V.M. Zhirmunskogo (St. Petersburg: Nauka, 2001) 377-401, 380-85.
51 N.I. Nikolaev , ‘Sud´ba idei tret´ego vozrozhdeniia’, MOYSEION: Professoru Aleksandru Iosifovichu Zaitsevu ko dniu semidesiatiletiia, (St. Petersburg,
1997) 343-50.
52 DN 409; SR 220-1.
53 DN 400; SR 211.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 152


1930s, but that originality is not to be found in any of the specific bricks from which he builds his the-
oretical edifice. It is, rather, in the structure of the edifice itself. We have seen here that the sociology
of language that is central to his account of the novel was largely derived from Iakubinskii, but Bakhtin
then integrated this into an account of the novel that drew on many other sources, including the Russian
Formalists, Veselovskii, Cassirer, Zhirmunskii, Lukács, Hegel and the German Romantics. The way that
Bakhtin’s theory develops in this period is closely tied in with the debates within Soviet scholarship at
the time, and this became ever closer with rising nationalism in the later 1930s. Thus, while Bakhtin’s
work continued to be shaped by the German idealist tradition that formed the foundation of his philoso-
phical outlook, the way in which he adapted this tradition in specific works was shaped by the distinctly
Soviet context in which he operated. Furthermore, the under-researched Soviet scholars with whom
Bakhtin was engaging, such as Marr, Freidenberg, Iakubinskii, Zhirmunskii and Larin, were themselves
reworking German ideas in the Soviet context. If we are to understand the nature of Bakhtin’s articles
of the 1930s, and to appreciate fully the extent to which he made an original contribution, we therefore
need to be aware of both the German and specifically Soviet dimensions of his intellectual environment.
But if we are more concerned to understand the phenomena discussed in these works, and to appreciate
the contribution of Soviet scholarship, along with its historical contours, we should be less content to
single Bakhtin out for special attention. His work should be treated as but a valuable contribution to a
dialogic process, the significance of which dwarfs that of his own writings.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 153


Dialog against dialogism in anthropology

Dr Marcin Brocki

Dept. of Ethnology and Cultural Anthropology

University of Wroclaw

Poland

ABSTRACT
Contemporary anthropology had to face with its own professional culture as a practice of textualising
the “other”. In the result realist modes of representation were rejected as no longer valid and convin-
cing, as they do not convey complex reality and multi-vocal fieldwork situation properly. Anthropology
sought the solution in the Bachtin`s concept of “dialogism”, much more square with real problems of
contemporary anthropology, as it was perceived.
In the first move toward dialogism the key issue was to reduce researcher-researched distinction.
Highly personal tales from the fieldwork (“confessions”) were supposed to play that part but soon they
were substituted by the idea of polyphonic fieldwork and its multi-vocal representation. Anthropologist`s
authority was “dispersed among interlocutors”. “Dialog” became the main figure (metaphor) of the
change. But in practice, dialog was treated literally, what finally led to overemphasising the role of “the
informant’s word”, to naive faith that the researched “knows better”, to realist notion that there is a
truth to be represented outside of the dialog - and that all was combined with the will for symmetry of
multi-vocal representation of multi-vocal reality, so the dialog become hostage of the modernist will to
better represent reality.
In case of anthropology, the idea of “dialog” had just hidden the practical dillemmas of fieldwork. Taken
into practice the idea became its opposite – it was discovered that “dialog” is only masking monologue
inscribed in the process of representing and translating “life experience”. Anthropological attempts to
abandoning representation (by evocation) and translation (by engagement) are in fact dialogs with and
within professional culture, but far from understanding the anthropological Other.
For over thirty years, the development of theory in anthropological research has been under heavy
influence from literary theory, serving mostly as an inspiration in solving certain problems in the research
practice of ethnography. This influence first started with the assimilation of structuralism and semiotics,
with their concept of culture as a collection of texts interacting with one another, into anthropology. The
real interdisciplinary dialogue, however, originated with the discovery, received in the field of ethnogra-
phy with a lot of suspicion and astonishment, that the practice of anthropology is not only collecting and
analyzing data, but also “producing texts”, and that the textualisation of the reality examined is part of
that process, too.
“Ethnography as a textual practice” means, first of all, transforming the examined reality into text
(understood at least in the researcher’s professional culture, but also reflecting, as precisely as possible,
the meanings from the examined culture), next, the interpretation of this text, and finally transforming
both these processes into a final, written text, which organizes ethnographic data and evidence into a
satisfying composition.
Ethnographers came to the conclusion that „[...] it might be difficult to defend the view that ethnogra-
phic texts convince, insofar as they do convince, through the sheer power of their factual substantiality”,
or sophisticated theoretical argument [Geertz 1988, p. 3]. So as Clifford Geertz wrote: „The ability of
anthropologists to get us to take what they say seriously has less to do with either a factual look or an
air of conceptual elegance than it has with their capacity to convince us that what they say is a result
of their having actually penetrated another form of life, of having, one way or another, truly <<been
there>>. And that, persuading us that this offstage miracle has occurred, is where the writing comes
in” [Geertz 1988, p. 4-5].
Before those significant discoveries were made, the ethnographers believed their texts were only
presenting and recording facts. Now, however, they agree that ethnographical texts remain in a dialogue
relationship (interplay) with the reality they refer to. It is worth noting at once, that the reality ethnogra-
phers describe, is already somebody’s interpretation, a social vision of situation (which allows the comfort

Proceedings XI International Bakhtin Conference 154


of overlooking any ontological considerations). Paul Rabinow, a prominent figure in contemporary critical
anthropology and a pioneer of “dialogism” in ethnography, points out that field data (as well as any other
sort of data in human studies) are not Ding an sich (“things in themselves”), but a result of the process
of gaining them [Rabinow 1977, p. xi]. Hence, both the experience, and the interpretative activity of a
researcher, are not a “matrix tool” for reality. In them, we always encounter translation, which can be
defined as a negotiation, involving at least two, and often more subjects1, often, one might add, aware
of their role. Dialogue and polyphony characterize the process of translation better than analysis or
interpretation, which presume the hierarchical relationship between the researcher and the researched
[see: Fabian 2001, p. 25], and that hierarchy disturbs the rules of “negotiation”, changing the process of
knowing into “colonizing the Other”, and consolidating the obviousness of the researcher’s thinking. The
“dialogue”, on the other hand, reminds us that what the ethnographer should find out, does not exist in a
final shape and is not clearly given, but rather an effect of a dialectical process of producing knowledge.
In this process any hierarchy may only be a final effect, and not a presupposed starting point.
A larger piece from Paul Rabinow’s own field research best explains this dialectics:
“As I began to question Ali about the curing, my scientific categories were modified—I
understood more about curing, its tacit assumptions, modes of action, and limits—but my
common-sense world was also changed. I knew no curers in New York. Thus the first time
I witnessed activities like this one they required greatly heightened attention on my part;
they focussed and dominated my consciousness. But as the field work progressed and I wit-
nessed such performances a number of times, I began to take them largely for granted. They
increasingly became part of my stock of knowledge, part of my world. Ali’s curing activity
no longer jolted my consciousness, and I was free to focus elsewhere.
This highlighting, identification, and analysis also disturbed Ali’s usual patterns of experience.
He was constantly being forced to reflect on his own activities and objectify them. Because
he was a good informant, he seemed to enjoy this process and soon began to develop an art
of presenting his world to me. The better he became at it, the more we shared together. But
the more we engaged in such activity, the more he experienced aspects of his own life in new
ways. Under my systematic questioning, Ali was taking realms of his own world and interpre-
ting them for an outsider. This meant that he, too, was spending more time in this liminal,
self-conscious world between cultures. This is a difficult and trying experience—one could
almost say it is “unnatural”—and not everyone will tolerate its ambiguities and strains.
This was the beginning of the dialectic process of fieldwork. I say dialectic because neither
the subject nor the object remain static. With Richard or Ibrahim, there had been only minor
movement on either side. But with Ali there began to emerge a mutually constructed ground
of experience and understanding, a realm of tenuous common sense which was constantly
breaking down, being patched-up, and re-examined, first here, then there.
This examination, although grounded in and constantly mediated by everyday experience of
this new sort, is governed for the anthropologist by his professional concerns. Ultimately this
constitutes his commitment; this is why he is there. For the informant, it is a more practical
affair, both in the sense that we can assume that his motivations are primarily pragmatic
and in the sense that he is developing a practical art of response and presentation.
As time wears on, anthropologist and informant share a stock of experiences upon which
they hope to rely with less self-reflection in the future. The common understanding they
construct is fragile and thin, but it is upon this shaky ground that anthropological inquiry
proceeds” [Rabinow 1977, p. 38-39].

According to Rabinow, field research is a complex dialogue between ethnographer, his professional
culture, the reader, and the “native”; a dialogue in which all meaning is a result of negotiation. Rabinow
showed clearly that the view of a culture emerging from field research is not merely a sum of actions
and concepts of persons involved in the research. Neither can it be simply translated into “familiar and
orderly categories” of anthropological meta-language, as it is “polyphonic” [see i.e.: Mannheim, Tedlock
1995, p. 2].2
Although the term “polyphony”, borrowed by anthropology from Bakhtin’s writings, has been broade-
ned compared to the way it was originally used by its author, in the research practice of ethnography, it
relates both to the reality being examined (then, however, ethnology becomes entangled into conside-
ration of the nature of cultural phenomena), the dialectics of field research, and “multiple” authorship
of ethnographic texts. The texts involve the author-anthropologist, as the narrator of the story (who
describes, analyses, and interprets the facts; he always has the fullest knowledge); there is also a reader,
who is not directly present in the text, yet the text presumes his presence, and thus, in a way, adjusts

1 After all, it is not just the interlocutors that take part in the negotiation, but also certain important contexts, constituting together the examined event,
and the process of making the examined culture into a text is initiated by confrontation and participation (a type of involvement, which enables dialogue),
which in turn become part of constructive negotiation.
2 Once it has been realized that culture (as a derivative of research practice, and not an entity in itself) emerges from such dialogical background, the
result of ethnographic research appeared as a created, re-created, and reproduced cultural (or cross-cultural) practice; That meant that culture itself could
become an object of ethnographic consideration, which opened new perspectives for research in modern anthropology, and strengthened its bonds with
literary theory and critique.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 155


to it; finally, there are the protagonists of the story, and the researcher’s sources of knowledge – the
informers (usually underrepresented). Yet, contemporary anthropology does not agree as to the range
and way of understanding (in case multiple authorship is considered a diagnosis of research practice),
or realization, of the postulate of multiple authorship. The doubts regarding possibilities and ways of
representing the complex dialectics of ethnographic research in an ethnographic text are even stronger
[see i.e.: Crapanzano 1980; Dwyer 1982; Rabinow 1977; Tedlock 1979, 1983]. How can the dialectic
of reflection and improvised interpretations be transformed into a concise picture, which is supposed to
result from ethnographic research?
Marcus and Fischer, for instance, define dialogicality as a practical effort to present multiple voices within
a text3, which should encourage for the text to be considered from multiple perspectives [Marcus, Fisher
1986, p. 68; see also: Ortner 1978, p. 1; Koczanowicz, Fisher 1995]. Dywer, on the other hand, puts the
emphasis on exactly quoting expressions, as well as publicizing own doubts of moral, professional, and
political nature [Geertz 1998, p. 86]4. In that case, as Marcus and Fisher warn us: “[…] it is possible for
this sort of inquiry to slide into simple confessionals of field experience, or into atomistic nihilism where
it becomes impossible to gereralize from a single ethnographer’s experience. The danger in both cases
is allowing the anthropologist-informant dialogue to become the exclusive or primary interest. Insofar
as texts do this, they are of no particular ethnographic interest” [Marcus, Fisher 1986, p. 68].
Sometimes dialogicality is presented as a desire to reproduce as best as possible, or at least to
better reflect the truth of examined cultural reality. It can be perceived in two cases. First, when we
consider that contemporary culture is characterized by multiple meanings and multiple voices, and that
we live in the era of enhanced communication activity and cross-cultural interactions, in the world of
Bakhtin’s “polyphony”, where we have a number of tools available to interpret ourselves and others, we
may conclude that dialogue and polyphony are closer to reflecting the nature of anthropological know-
ledge, as they are closer to the nature of things they refer to. After all, it is really difficult to describe
this polyphonic shape of contemporary culture, full of internal contradictions, as closed in some limited
and independent cultural systems, especially if we use our own, disciplinary conventions of description
and interpretation. Although the scientific meta-language cannot avoid certain oversimplifications or
falsifications, it may attempt to avoid too many of them, being self-conscious of the influence it has on
objects it is attempting to define. The dialogical approach would thus be forced by the nature of reality
the researcher encounters. Paradoxically, thus sketched approach (method) is directed at a symmetry of
description and reality: dialogical, poly-phonic reality, correspondent to dialogical representation (evo-
cation) and polyphony in field research. Such symmetry clearly opposes dialogical ideal of knowledge,
while perfectly supplementing ethnographic realism, rejected by dialogical anthropology.
Second of all, the desire for symmetry of description and interpretation, and their object, is present
already in considering the issue of whether the dialogue on the field is translatable into the dialogue within
the text, and what form should it take to best render the situation of authentic contact, and approach
the symmetrical reflection [see i.e.: Vrhel 1993, p. 15; Reed-Danahay 1997, p. 3-4; Saradan de 1999, p.
249]. This creates a very dangerous situation for the dialogical anthropology, since it denies the declared
postmodern ideals – in particular, it stands in clear opposition to deconstructive critique of logocentricism
(although this really is not a strange or unexpected case, since, as Derrida claims, hermeneutics, the
basic method supporting dialogicality, is in itself logocentric).
What comes as a paradox, is that the diagnosis of research practice in ethnology, transformed into
methodological directive of a dialogue (which privileges spoken word), in some cases has been turned
against it, and began appearing as “expected to speak” for the researcher – not representing him, but
rather functioning in spite of his presence5. George Marcus [1998, p. 36-37] calls this strategy, “saying
more by letting other say it”. It is worth noting that it includes an assumption that there is truth (in this
case, “more”) outside the dialogue, which obviously links the strategy with the pure form of realism,
promptly hidden in the terminology of dialogism.
One best known defender of this type of method is Stephen Tyler. Although Tyler privileges word of the
examined subject, or, more generally, speech altogether (phonocentricism), he is aware of the impossibility
of fully rendering in a text the live context of experience and meaning [see: Tyler 1987, p. 96]. Yet for
the sake of opposing ethnography’s visualism/observationism, he resolved to encounter this impossibility,
to start research on common experience and speech, to come back to “common, polyphonic world of the
speaking subject” [Tyler 1987, p. 172]. For Tyler, there is a clear border between a written word (which
he believes to be unauthentic, using instrumental logic, time order, precision), and a spoken one, which
is a live negotiation of meanings between interlocutors, where all the elements of discourse are as fluent
as the dialogue taking place. According to Tyler, authenticity exists only in a live discourse, spoken word;
to access it, the live discourse has to be reproduced by combining the “reflectiveness of the emerging
dialogue with the simultaneously emerging method” [see: Tyler 1987, p. 190-191]. This somehow brings
back, clearly contrary to the postmodernist anthropology, and especially deconstruction, the modernist
desire to overcome the anthropologist’s presence, so that the privileged word of an examined subject may

3 Therefore, what they have in mind is ”recognizing the concept of substituting the representation of facts by the ability to recreate, or ‘evoke’, the experience
of reality, both of our own, and other worlds” [Kempny 1994, p. 182].
4 This is one of the reasons why, according to Gellner [1997, p. 42-43], dialogicality and heteroglossy of ethnological texts are nothing more than a symp-
tom of “subjectivism hysteria”.
5 Hence the objection that interpretative anthropology, which opposed realism – though only according to its critics – is itself the purest form of realism.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 156


speak for him or her [see i.e.: Saradan de 1999, p. 252]. Such attitude, according to D’Andrade [1995,
p. 400], is characteristic for “morally oversensitive anthropology”. In this research paradigm (although
describing it D’Andrade allows many simplifications), the anthropologist acts morally when he lets the
examined subject speak. But this ethically correct situation instantly changes when the dialogue is to be
substituted by a written text (especially as we consider the “productivity” of writing [see i.e.: Battaglia
1999, p. 120-121]), which already is a process of translating one semiotic system onto another. “It is the
ethnographer, who writes”. Abu-Lughod adds on postmodern anthropologist (advocates of dialogism in
ethnography) that “despite a sensitivity to questions of otherness and power, and the relevance of textu-
ality to these issues they use a discourse even more exclusive, and thus more reinforcing of hierarchical
distinctions between themselves and anthropological others, than that of the ordinary anthropology they
criticize” [Abu-Lughod 1991, p. 152]. Hence, it seems correct that, in the case of ethnography, dialogue
and dialogism are but a curtain for a monologue, which ultimately cannot be avoided.
Besides, the dialogue understood as a participant-changing confrontation of one’s “own truths” with
“foreign” ones, with full awareness and control of the goal (self knowledge of the “Other”, and unders-
tanding the process of creating the “Other”), is unachievable, or not authentic. Neither can we ever
be sure of the intentions of the other side in confrontation. The “diagnosis”, stating the inevitability of
“dialogue”, becomes a mere postulate.
Moreover, Rabinow states that, although Clifford writes much about the inevitability of dialogue, his
texts are not dialogical themselves [Rabinow 1986, p. 244]. Fabian makes an important comment on
dialogicality, which helps understand Clifford’s viewpoint, when he writes that Dwyer’s and Tedlock’s critics
touch upon the most external and tangible part of a complex, epistemological debate, namely, a dialo-
gical form of ethnographical writing. Having found a weak point (the question whether the dialogue as it
appears in field work should, or perhaps could be represented in written dialogue), they quickly rejected
dialogical ethnography as utopian, even though with good intentions [Fabian 1996, p. 216-217]. Yet
Clifford himself agrees that dialogicality is merely some perfect form of a text, a utopian ideal (“multiple
authorship is a utopia”) which has to be pursued to reduce negative effects of monological approach.
To summarize now main ideas of the text I must stress that, for many reasons, contemporary an-
thropology had to face with its own professional culture as a practice of textualising the “other”. In the
result realist modes of representation were rejected as no longer valid and convincing, as they do not
convey complex reality and multi-vocal fieldwork situation properly. Anthropology sought the solution in
the Bachtin`s concept of “dialogism”, much more square with real problems of contemporary anthropo-
logy, as it was perceived.
In the first move toward dialogism the key issue was to reduce researcher-researched distinction.
Highly personal tales from the fieldwork (“confessions”) were supposed to play that part but soon they
were substituted by the idea of polyphonic fieldwork and its multi-vocal representation. Anthropologist`s
authority was “dispersed among interlocutors”. “Dialog” became the main figure (metaphor) of the
change. But in practice, dialog was treated literally, what finally led to overemphasising the role of “the
informant’s word”, to naive faith that the researched “knows better”, to realist notion that there is a
truth to be represented outside of the dialog - and that all was combined with the will for symmetry of
multi-vocal representation of multi-vocal reality, so the dialog become hostage of the modernist will to
better represent reality.
In case of anthropology, the idea of “dialog” had just hidden the practical dillemmas of fieldwork. Taken
into practice the idea became its opposite – it was discovered that “dialog” is only masking monologue
inscribed in the process of representing and translating “life experience”. Anthropological attempts to
abandoning representation (by evocation) and translation (by engagement) are in fact dialogs with and
within professional culture, but far from understanding the anthropological Other.
References
Abu-Lughod L., 1991 Writing Against Culture, [w:] Recapturing Anthropology, R. G. Fox (red.), Santa Fe, s. 137-
162.
Battaglia D., 1999, Toward an Ethics of the Open Subject: Writing Culture in Good Conscience, [w:] Anthropological
Theory Today, H. L. Moore (ed.), Cambridge.
Clifford J., 1988, The Predicament of Culture. Twentieth-Century Ethnography, Literature, and Art, Cambridge.
Crapanzano V., 1980, Tuhami. Portrait of a Moroccan, Chicago.
D‘Andrade R., 1995, Moral Models in Anthropology, „Current Anthropology”, vol. 36, no 3, s. 399-408.
Dwyer K., 1982, Moroccan Dialogues. Anthropology in Question, Baltimore.
Fabian J., 1995, Time and Work of Anthropology. Critical Essays 1971-1991, Amsterdam.
_______, 2001, Anthropology with an Attitude. Critical Essays, Stanford.
Geertz C., 1988, Works and Lives. The Anthropologist as Author, Cambridge.
_______,1998, Zaœwiadczaj¹ce Ja. Dzieci Malinowskiego, „Konteksty. Polska Sztuka Ludowa”, nr 1, s. 81-90.
Gellner E., 1997, Postmodernizm, rozum i religia, Warszawa.
Kempny M., 1994, Antropologia bez dogmatów - teoria spo³eczna bez iluzji, Warszawa.
Koczanowicz L., Fisher M. J., 1995, Rozmowa z Michaelem M. J. Fisherem, Konteksty. Polska Sztuka Ludowa, nr 1,
s. 8-12.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 157


Mannheim B., Tedlock D. (eds.), 1995, Dialogic Emergence of Culture, Chicago.
Marcus G., 1998, Ethnography Through Thick and Thin, Princeton.
Marcuse G. E., Fischer M. M. J., 1986, Anthropology as Cultural Critique. An Experimental Moment in the human
Sciences, Chicago.
Ortner S., 1978, Sherpas Through Their Rituals, Cambridge.
Rabinow P., 1977, Reflection on Fieldwork in Morocco. Berkeley.
_______, 1986, Representations are Social Facts: Modernity and Post-Modernity in Anthropology, [w:] Writing Culture.
The Poetics and Politics of Ethnography, J. Clifford, G. E. Marcuse (eds.), Berkeley, s. 234-261.
Reed-Danahay D. E., 1995, Introduction, [w:] Auto/Ethnography. Rewriting the Self and the Social, Reed-Danahay
D. E. (ed.), Oxford, s. 1-20.
Saradan de J.-P. O., 1998, Okultyzm i etnograficzne „ja”. Magia czyli uegzotyczniona nadzwyczajnoœæ od Durkhei-
ma po antropologiê postmodernistyczn¹, [w:] Amerykañska Antropologia Postmodernistyczna, M. Buchowski (red.),
Warszawa, s. 247-267.
Tedlock D., 11979, The Analogical Tradition and the Emergence of a Dialogical Anthropology, Journal of Anthropological
Research, vo. 35, s. 387-400.
_______, 1983 The Spoken Word and the Work of Interpretation, Philadelphia.
Tyler S., 1987, The Unspeakable: Discourse, Dialogue and Rhetoric in the Postmodern World, Wisconsin.
Vrhel F., 1993, Bachtinowskie inspiracje w postmodernistycznej etnografii, „Zeszyty Naukowe Uniwersytetu Jagielloñskie-
go. Prace Etnograficzne”, z. 32, s. 7-22.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 158


Discurso: algumas aproximações entre o pensamento de
Michel Foucault e o Círculo de Bakhtin

Gilberto de Castro

Universidade Federal do Paraná

R. Alm. Tamandaré, 800 – ap. 403 – Alto da XV

Curitiba – Paraná – CEP 80040-110

Resumo
O texto a seguir, na busca de uma perspectiva discursiva nas idéias do Círculo de Bakhtin, estabelece
um contraponto entre o conceito de enunciado de Voloshinov e Bakhtin e aquele formulado por Michel
Foucault, quando desenvolve as suas idéias teóricas sobre a arqueologia do discurso e do saber. Nessa
comparação, o que se pretende explorar é que, apesar das diferenças nos objetivos dos autores e no
percurso diferenciado que empreenderam em relação ao temas da linguagem e do discurso, é possível
perceber importantes pontos de contato entre suas idéias, já que também é possível inferir dos debates
sobre linguagem e enunciado do Círculo uma dimensão discursiva.
Resumen
Este texto, en la búsqueda de una perspectiva discursiva en las ideas del Círculo de Bajtín, establece un
contrapunto entre el concepto de enunciado de Voloshinov y Bajtín y aquél formulado por Michel Foucault,
mientras desarrolla sus ideas teóricas acerca de la arqueología del discurso y del saber. En ese parangón
teórico, lo que se pretende explotar es que, a pesar de las diferencias en los objetivos de los autores y
en el percurso distinto que ellos emprendieron en relación con los temas del lenguaje y del discurso, es
posible percibir importantes puntos de contacto entre sus ideas, puesto que también es posible inferir
de los debates acerca del lenguaje y el enunciado del Círculo una dimensión discursiva.

De todos os temas a que se dedicaram os integrantes do Círculo de Bakhtin, não há dúvida que o
tema da linguagem emerge como um dos principais, uma vez que ele está presente tanto nos debates
teóricos específicos a respeito da linguagem quanto nas discussões em torno das questões culturais e
literárias. E hoje, depois dos já mais de 30 anos de convivência com os principais autores desse Círculo,
e da existência de alguma exegese, creio que vão ficando cada vez mais pontuais algumas de nossas
apreensões em relação às utilizações que podemos fazer a partir do que disseram. Quanto mais cresce
o tempo de convívio com as formas novas de pensar que o Círculo propôs, mais vamos nos dando conta
de que, diferentemente dos estágios iniciais de aproximação, mais fortemente embebidos em formalis-
mos diversos, hoje cresce cada vez mais a responsabilidade que temos diante do que disseram aqueles
autores. Porque hoje, ao menos em termos de projeto geral, não há mais como ignorar que as idéias
desenvolvidas pelos autores do Círculo de Bakhtin, mesmo considerando as suas diferentes origens e
vinculações filosóficas e conceituais, inauguraram um modo bastante inovador de pensar as questões da
linguagem, da literatura e da cultura de uma maneira geral. No tocante à linguagem, especificamente,
não seria exagero dizer que o Círculo, com seus debates, ajudou a inaugurar um novo paradigma.
Se é assim, se o Círculo realmente, de um outro mirante, conseguiu enxergar na linguagem qua-
lidades não reificantes; ou, de outro modo, se ajudou a desfocá-la da mira milenar da estrutura e da
forma, percebendo-a como articuladora das experiências e das relações humanas, que novos temas e
fenômenos podemos estudar a partir desse novo olhar? Estando agora no eixo da interação verbal, que
objetos podemos selecionar para nosso estudo e reflexão?
São bastante freqüentes, talvez mesmo já inevitáveis, as relações entre o que o Círculo disse sobre
a linguagem e as preocupações em torno do estudo do discurso. Muitos de nós perguntamos, qual seria
a contribuição que as discussões do Círculo de Bakhtin têm para uma análise discursiva? Ou seja, em
que medida o conceitual formulado em torno das questões de linguagem, principalmente por Voloshinov
e Bakhtin, nos autorizam a integrá-los ao debate sobre o discurso?
Imagino que a melhor maneira de verificar isso seja através de um contraponto com aqueles auto-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 159


res que desenvolveram trabalhos sistemáticos em torno do tema do discurso. Creio que num encontro
como esse, seja possível dimensionar melhor as contribuições e os limites do Círculo em relação a essa
discussão. É com esse objetivo que fomos buscar em Michel Foucault esse diálogo. Mais precisamente,
estabelecendo uma conversa particular com as idéias presentes em seu livro A Arqueologia do Saber.
Justifico a escolha do autor pela importante contribuição que Foucault tem dado ao debate sobre as
questões do discurso. Conforme atesta Willians, em trabalho recente sobre a história da Análise do Dis-
curso Francesa, “(...) Foucault’s influence on FDA has been greater than any other (...) it is Foucault’s
work more than that of any other post-struturalistic which has been of paramount importance for FDA.”
(WILLIANS, 1999, p.76)
Embora o próprio Foucault afirme que a Arqueologia “não é nem uma teoria nem uma metodologia
(...) [mas sim]...alguma coisa como a designação de um objeto(...)” (ROUANET, 1995, p.18), ou ainda
que, o que ele queria mesmo era apenas “precisar o lugar exato de onde (...)falava” (ROUANET, 1995,
p.19), é inegável o fato de que esse autor conseguiu dar contornos muito nítidos ao seu pensamento dis-
cursivo, conferindo ao texto um bom acabamento teórico. Ou, para dizer de outra forma, acompanhando
a afirmação de ARAÚJO “Hoje, A arqueologia do saber tem mais a dizer do que teve na década de 60.
Sua capacidade heurística não se esgotou.” (ARAÚJO, 2000, p.55)
Desse texto, entre tantos outros conceitos formulados, talvez o mais importante, o mais nuclear,
tanto para a articulação do seu pensamento, como para o objetivo a que estou me propondo aqui, seja
o de enunciado. Isso porque é sobre esse conceito, na condição de unidade de análise preferencial, que
se apóia a sua idéia de discurso. Segundo Foucault, portanto, “ o discurso é constituído por um conjunto
de seqüências de signos, enquanto enunciados, (...) [cujo conjunto] se apóia em um mesmo sistema de
formação: é assim que poderei falar do discurso clínico, do discurso econômico, do discurso da história
natural, do discurso psiquiátrico.” (FOUCAULT,1995, p124).
Mas o que seriam essas seqüências de signos de que nos fala Foucault? O que pode compor tais seqüên-
cias? Que tipo de signos seriam esses? Qual a correspondência desses signos com a linguagem verbal?
Para dar conta dessas questões, o primeiro passo dado por Foucault, o leva a dissociá-lo da idéia
corriqueira de que um enunciado corresponderia única e exclusivamente a formas verbais seqüenciadas
e estruturadas, tal como normalmente estamos acostumados a pensar. Seu esforço vai no sentido de
mostrar que o enunciado não é necessariamente uma unidade estrutural-gramatical; uma unidade formal,
portanto. Embora, num determinado contexto de análise, uma estrutura gramatical possa ser percebida
como um enunciado, dependendo do objeto pesquisado e do campo de análise em que se encontre o
analista, isso não é suficiente para transformar as estruturas verbais, em si, seja através da materialização
de formas lógicas, seja através de frases ou proposições, incondicionalmente em enunciados. Assim, o
enunciado para Foucault, em hipótese alguma, pode ser interpretado como a expressão direta de uma
forma gramatical pura e simples.
Creio que nesse ponto exatamente, seja possível traçar algum paralelo com as discussões empreen-
didas pelo Círculo a respeito do mesmo tema. Pode-se dizer que, grande parte do esforço empreendido
por Voloshinov, em Marxismo..., se move numa direção parecida: a de uma diferenciação radical entre
o enunciado, percebido como unidade da interação verbal, e a frase/oração/período, que seriam as uni-
dades preferenciais das análises gramático-estruturais tão ao gosto dos estudos lingüísticos comuns ao
mundo ocidental. É para isso que ele aponta quando afirma que os signos verbais são unidades reais
da cadeia da comunicação porque expressam conteúdos e avaliações que têm relação intrínseca com as
realidades interacionais.
Bakhtin, por sua vez, também empreende esforço semelhante quando, discutindo as características dos
enunciados (gêneros do discurso), tenta organizar nosso olhar sobre o mundo heterogêneo das interações
verbais, mostrando-nos a ampla variedade de enunciados existentes na realidade social, amalgamados
que estão às múltiplas e infindáveis experiências de interação que as sociedades acumulam ao longo
do tempo. À semelhança de Voloshinov, com exemplificações muitas vezes bastante parecidas, Bakhtin
também vai se contrapor à Saussure e aos lingüistas de maneira geral, gastando várias páginas para
discutir o tema dos gêneros discursivos, a fim de conceber um estatuto próprio ao enunciado, estatuto
esse que o distanciasse das referências puramente formais/gramaticais.
Mas as semelhanças entre as formas de conceber o que seja um enunciado, em Foucault e no Círcu-
lo, se complicam um pouco, quando prestamos atenção em mais alguns atributos que o autor francês
percebe no seu enunciado. Ele vai dizer, por exemplo, num claro movimento de expansão para além do
verbal, que o enunciado “não é, pois, uma estrutura (...); é uma função de existência que pertence,
exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição,
se eles ‘fazem sentido’ ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e
que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita).” (FOUCAULT,1995, p.99)
Importa, pois, saber aqui, a que tipo de signos Foucault se refere. Na formulação de alguns exemplos
de enunciados, ainda com o objetivo de diferenciá-los das seqüências formais, é possível compreender
melhor a que signos provavelmente ele está se referindo, o que também ajuda a tornar mais claro o
seu conceito de enunciado. Assim, para o autor, é perfeitamente normal que “um quadro classificatório
das espécies botânicas [seja] constituído de enunciados, não de frases; uma árvore genealógica, um
livro contábil, as estimativas de um balanço comercial, são enunciados: onde estão as frases? Poder-
se-ia ir mais longe: uma equação de enésimo grau ou a fórmula algébrica da lei da refração devem ser

Proceedings XI International Bakhtin Conference 160


considerados como enunciados; e se possuem uma gramaticalidade muito rigorosa(...)não se trata dos
mesmos critérios que permitem, em uma língua natural, definir uma frase aceitável ou interpretável.
Finalmente, um gráfico, uma curva de crescimento, uma pirâmide de idades, um esboço de repartição,
formam enunciados: quanto às frases de que podem estar acompanhados, elas são sua interpretação ou
comentário; não são o equivalente deles: a prova é que, em muitos casos, apenas um número infinito
de frases poderia equivaler a todos os elementos que estão explicitamente formulados nessa espécie de
enunciados. Não parece possível, assim, definir um enunciado pelos caracteres gramaticais da frase.”
(FOUCAULT, 1995, p.93)
Parece claro que o que Foucault quer dizer é que um enunciado se caracteriza na verdade por ser
uma materialidade simbólica passível de ser analisada e interpretada, seja ela de que natureza for. Nesse
caso, fica evidente a sua recusa em compatibilizar enunciado de forma necessária com signos verbais e
textuais apenas. Seria sobre essa materialidade diversa, portanto, que deveria recair o olhar do analista
do discurso. Dada a natureza desse material simbólico, e de outros potencialmente parecidos, creio não
ser difícil perceber que esse material, como afirma o autor, se apresenta sempre de maneira desordena-
da e irregular para o analista. Parece sempre haver um caos numa formação discursiva a ser analisada.
Ela é sempre uma coisa espalhada, uma interpretação a ser construída sobre pontos dispersos (signos
diversos!) que precisam se aproximar.
Em face disso, seria correto afirmar aqui que, neste particular, os dois conceitos de enunciados se
bifurcam, não têm mesmo nada mais em comum? Estaria correto dizer que Foucault fala de elementos
que integram o seu enunciado que não aparecem em nenhum lugar nas discussões do Círculo? Uma
resposta rápida a essa questão deveria ser uma afirmativa. No entanto, se vasculharmos um pouco al-
gumas discussões de Voloshinov e Bakhtin, vamos perceber que é possível inferir do conjunto da obra
dos autores russos coisas parecidas, embora esparsas e colocadas de maneira apenas implícitas em
algumas passagens.
Creio que um primeiro indício disso se encontra nas discussões que Voloshinov, no mesmo Marxis-
mo..., faz sobre a relação entre o mundo simbólico e as ideologias. Em que pese o fato de o autor falar
na relação entre semiótica e ideologia com vistas a um aproveitamento marxista para a sua discussão e,
ainda, mesmo considerando que toda a sua discussão sobre os signos tem como objetivo principal chegar
às características da palavra enquanto signo especial, mostrando como ela se comporta no mundo dos
valores sociais, vale a pena observar o ponto de partida de sua discussão. Até chegar à palavra, Voloshinov
faz toda uma digressão sobre o que poderia, a rigor, no espaço social, adentrar ao mundo do universo
simbólico. Para falar disso, ele vai exemplificar dizendo que de certa maneira quase tudo é passível de
se transformar em signo, passando, a partir dessa possibilidade e nascimento, a representar e cumprir
determinados papéis de valor e conteúdo no meio social. Ele lembra, nesse sentido, que podem passar a
ter valor de signo – aqui se referindo não necessariamente a signos verbais -,toda uma sorte de outros
objetos, exemplificando com produtos de consumo e instrumentos de uma maneira geral. Seguindo esse
raciocínio, não vejo porque não possamos considerar que ali havia, implicitamente, uma certa previsão
de que enunciados de uma maneira geral não precisam estar necessariamente materializados apenas em
palavras, principalmente se eu levar às últimas conseqüências que a regência do atos interacionais reais
está no contexto geral da produção, que pode agregar um número vasto de modalidades de signos, que
não necessariamente - ou apenas - aqueles materializados na palavra. Creio que está ainda por merecer
uma reflexão mais apurada sobre a idéia de contexto nos trabalhos do Círculo.
Além dessas passagens presentes no Marxismo..., vale a pena seguir também, com essa mesma
intenção interpretativa, algumas exemplificações sobre enunciado que Voloshinov e Bakhtin formulam.
Além das exemplificações serem muito parecidas e de falarem quase sempre sobre coisas rápidas do
dia a dia (exemplos sobre o clima e o tempo são recorrentes), é curioso perceber que elas são também
sempre muito curtas: normalmente são expressas por uma pequena frase ou apenas por uma palavra.
Dos exemplos com apenas uma palavra, talvez o mais célebre seja aquele do diálogo entre os dois amigos
que esperam ansiosamente a primavera frente à janela, enquanto lá fora a neve não pára de cair. Utilizado
por Voloshinov para falar da relação entre o discurso na vida e o discurso na arte, através dele, o autor
mostra a interdependência inevitável entre material verbal e contexto de interação. Quem leu este texto,
deve lembrar da variedade de elementos situacionais que a palavra (o signo) bem, utilizado por um dos
interlocutores condensou. Como o autor deixa claro, naquele momento, a razão de escolher um exemplo
verbal tão diminuto – porque queria dizer de novo que categorias gramaticais não expressam o que é
um enunciado –, é quase impossível não imaginar o apagamento total daquela palavra, substituindo-a
por um outro signo qualquer. Me parece perfeitamente razoável pensar que no lugar de bem, depois de
olhada a neve e o mau tempo pela janela, aparecesse apenas um muxoxo entre os dois interlocutores,
ou então que um deles apenas fizesse um gesto de impaciência (uma careta, ou quem sabe um chutinho
de desconforto e impaciência no pé da mesa); ou ainda, que aparecesse, no lugar do signo bem, um
desenho infantil de sol na janela úmida, ou no tampa da mesa, invocando o anseio e as saudades do
verão; ou ainda, levando ao extremo, que houvesse, depois do olhar para a janela, apenas um período
relativamente duradouro de silêncio de ambos os interlocutores. O silêncio, enfim, diria tudo.
Em suma, é difícil crer que autores tão ligados aos temas do cotidiano e da cultura, que formularam
um olhar tão distintivo para a arte e para o grande e ininterrupto diálogo humano, deixassem fechadas,
nos seus escritos, as portas para a inclusão de outros processos simbólicos e interacionais diferentes da
palavra – mesmo que eu considere que isso não esteja posto de forma assim tão explícita. Mas, pensando

Proceedings XI International Bakhtin Conference 161


de forma extendida, creio que até aqui, o conceito de enunciado do Círculo, ainda pode acompanhar o
de Foucault.
A partir desse ponto, no entanto, as semelhanças parecem que vão ficando mais difíceis. Será mesmo
que elas ainda serão possíveis? Vejamos, por exemplo, o que Foucault vai dizer a respeito da vida de um
enunciado, de sua de permanência, da sua possibilidade de repetição. A citação é bem interessante. Para
ele, “o enunciado não deve ser tratado como um acontecimento que se teria produzido em um tempo
e lugar determinados, e que poderia ser inteiramente lembrado – e celebrado de longe – em um ato de
memória. Mas vê-se que não é, tampouco, uma forma ideal que se pode sempre atualizar em um corpo
qualquer, em um conjunto indiferente e sob condições materiais que não importam. Demasiado repe-
tível para ser inteiramente solidário com as coordenadas espaço-temporais de seu nascimento (é algo
diverso da data e do local de seu aparecimento), demasiado ligado ao que o envolve e o suporta para
ser tão livre quanto uma pura forma (é algo diferente de uma lei de construção referente a um conjunto
de elementos), ele é dotado de uma certa lentidão modificável, de um peso relativo ao campo em que
está colocado, de uma constância que permite utilizações diversas, de uma permanência temporal que
não tem a inércia de um simples traço, e que não dorme sobre o seu próprio passado(...) [em suma], o
enunciado tem a particularidade de poder ser repetido (...).” (FOUCAULT, 1995, p.121)
Bem, parece claro que o enunciado para Foucault, para poder se repetir, não tem necessidade de re-
encontrar suas origens, de buscar o espaço onde foi pronunciado pela primeira vez, de reencontrar seus
autores e atores primeiros. Resumindo, o ato inaugural que trás à tona um enunciado pela primeira vez,
não importa para o autor. Assim, o seu enunciado é transcendente ao tempo do ato de enunciação; isto
é, ele precisa se despreender de sua sincronia geradora para, afastando-se dela, surgir como um enun-
ciado. É essa renúncia ao ato ilocucional em si, que é capaz de gerar a permanência dos enunciados que
poderão enfim espalhar-se e repetir-se. Mas desprezar essa sincronia não significa dizer que o enunciado
é estranho à história, mas apenas que a análise discursiva deve buscar algo além dos atos particulares,
originais e subjetivos. Nesse sentido, vale recuperar aqui algumas palavras de Rouanet, ao comentar a
relação entre a diacronia e a morte do sujeito em Foucault. Ele vai dizer que “ A especificidade de Fou-
cault em relação aos outros teóricos da morte do homem está em sua escolha da dimensão diacrônica
para articular sua obra. Desafia o adversário em seu próprio terreno: nega o homem no eixo da história,
até êsse momento considerado o refúgio da consciência antropológica. “ (ROUANET, 1996, P.111)
E o que diz o Círculo de Bakhtin sobre o enunciado ser ou não repetível?
Creio que a resposta mais rápida a essa questão pode tender à uma explicação de que o enunciado
no Círculo tende a se identificar apenas com a sincronia do contexto de sua geração. Afinal, a posição
de que um enunciado jamais poderá ser repetido tal qual o momento de sua realização, está espalhada
na grande maioria dos textos conhecidos dos componentes do Círculo quando, de uma forma ou de ou-
tra, eles tentam nos mostrar a distância que separa uma apreensão formal da linguagem de um olhar
sócio-interacional.
Mas essa leitura de superfície, meio imediata, e autorizada pelos textos, digamos, não esgota as
possibilidades heurísticas da concepção de enunciado do Círculo. Em muitos outros momentos de suas
discussões, vamos encontrar suporte para uma visão mais generosa e ampla desse conceito. Um des-
ses momentos estaria novamente nas comparações entre o discurso na vida e o discurso na arte, nas
afirmações de Voloshinov em torno de tudo aquilo que pode estar presente num enunciado sem que
seja de fato enunciado (no sentido de falado ou escrito; de um registro simbólico explícito, enfim). O
que ele nos mostra nesse texto, de nítidas inspirações bakhtinianas, é que os enunciados contêm ecos,
permanências indissolúveis que avançam pelas culturas afora e não se dissolvem no tempo, amalgama-
das que estão nas nossas experiências e costumes; e que, ainda, o que é mais curioso e interessante,
não precisam, para o seu registro, (para as suas positividades, no dizer de Foucault) do signo verbal,
pelo menos não da forma como estamos acostumados a percebê-lo. Ele chama a isso de presumidos
culturais que, apesar de atuarem em silêncio diante de nós, nos constituem, nos tornam parecidos e
identificados culturalmente, e nos fazem falar e repetir coisas sobre as quais temos pouco ou, às vezes,
nenhum controle consciente.
O que quero dizer a respeito desse texto, especificamente, é que, enfocado dessa perspectiva sócio-
cultural, o enunciado que aqui é apresentado por Voloshinov, é mais do que algo apenas sincrônico e
não repetível. O que não é repetível, e que se esgota numa sincronia, é um acontecimento intersubjetivo
que não pode se repetir de fato, nunca vai acontecer de novo, uma vez que é único do ponto de vista
do tempo e dos sujeitos que estão presentes. Mas aquilo que é repetível, que está no bojo da cultura,
que é maior que nós, que nos antecipa e nos transcende, excede o tempo e as presenças, para a frente
e para trás, para o passado e para o futuro.
Isso tudo de que nos fala Voloshinov, que aparentemente não conseguimos ver nos enunciados,
absorvidos que estamos pela ilusão das sincronias nas linguagens humanas, conforme ele nos diz em
Marxismo... ao falar da relação entre a consciência individual e a língua, também está expresso na
perspectiva dialógica de linguagem e de mundo de Bakhtin. Na perspectiva bakhtiniana, a interação
humana é um não cessar constante, é um estado de latência, de inacabamento. Nesse sentido, dizer
que um enunciado, apesar de parcialmente justificado na bibliografia dos autores, é apenas um acon-
tecimento diluído numa sincronia, que se esgota em si mesmo num ato, e por isso nunca se repete, é
uma interpretação por demais reducionista do pensamento do Círculo de Bakhtin. Talvez uma citação

Proceedings XI International Bakhtin Conference 162


do próprio Bakhtin possa esclarecer melhor o que estou querendo dizer. Segundo ele, “ O autor nunca
pode entregar-se totalmente e entregar toda a sua produção verbal unicamente à vontade absoluta e
definitiva de destinatários atuais ou próximos (...) e sempre pressupõe (...) alguma instância de com-
preensão responsiva que pode estar situada em diversas direções. Todo diálogo se desenrola como se
fosse presenciado por um terceiro, invisível, dotado de uma compreensão responsiva, e que se situa
acima de todos os participantes do diálogo(...)
O terceiro em questão não tem nada de místico ou de metafísico(...) ele é movimento constitutivo do
todo do enunciado e, numa análise mais profunda, pode ser descoberto. O fato decorre da natureza da
palavra que sempre quer ser ouvida, busca a compreensão responsiva, não se detém numa compreensão
que se efetua no imediato e impele sempre mais adiante (...).“ (Bakhtin, 1992,356)
É nítida nesta citação, a interseção entre o enunciado e a história. E se há um terceiro interlocutor
potencial como nos diz Bakhtin, projetado pela dialogia da linguagem, participando de forma invisível,
mas ativamente dos nossos atos enunciativos, e esperando sempre o futuro; e se esse ato é, em si,
irrecuperável enquanto evento real no tempo e no espaço, então me parece não ser inapropriado dizer
que dentro do conjunto de novos sentidos possíveis de aparecer numa análise futura - nas projeções
históricas, portanto - dos enunciados humanos, estão potencialmente incluídos sentidos novos, e neles, a
possibilidade de análises estritamente discursivas. Mas, como as sincronias são possibilidades puramente
teóricas no entendimento dos autores do Círculo, então também, todo enunciado no presente, por ser
sempre um acontecendo do qual participam interlocutores com posições existenciais, culturais e espaciais
diversas, inevitavelmente contém excedentes relacionais (interacionais) num mesmo ato enunciativo,
num mesmo presente. E se essa exotopia do ato é capaz de mostrar coisas e elementos que transcendem
aquilo que poderíamos chamar de, exclusivamente o conteúdo de um momento dado de interlocução,
então, também talvez seja possível dizer, mesmo que seja mais difícil de ser percebida por se tratar de
um presente acontecendo, que no evento enunciativo repetível do Círculo há uma dimensão discursiva
latente e passível de ser percebida pela alteridade e pelo deslocamento ininterrupto do tempo.
Depois de todo esse percurso comparativo, creio ser possível afirmar que nas idéias do Círculo, há
sim uma grande dimensão discursiva potencial e apreensível, que muito pode contribuir para educação
de nossos sentidos discursivos. O Círculo, evidentemente, não olha para a linguagem, aqui representa-
do pelo filtro do conceito de enunciado, do mesmo ponto de observação onde se situa Foucault, mas é
possível reconhecer interessantes pontos de contato nas discussões desses autores.
Nesse sentido, já que escolhi Foucault como o outro para este confronto amigável, gostaria de termi-
nar dizendo que, apesar das diferentes motivações e interlocuções que levaram esse autor e os autores
do Círculo a elaborar e dizer o que disseram, eles talvez estejam unidos, no dizer do pensador francês,
numa mesma espécie de episteme. Uma episteme que precisou esperar o século 20 para trazer os seus
sinais mais visíveis, e que ainda busca um espaço disciplinar mais nítido no mundo do pensamento aca-
dêmico mais aceito e formalizado.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,1992.
_____, Questões de estética e literatura – a teoria no romance. São Paulo: Unesp e Editora Hucitec, 1988.
_____, Problemas da poética de Dostoievski. São Paulo: Forense-Universitária, 1981.
_____, Hacia a filosofía del acto ético. De los borradores Y otros escritos. Rubi (Barcelona): Anthropos; San Juan:
Universidad de Puerto Rico, 1997.
_____, Speech genres & other late essays. Austin: University of Texas Press, 1996.
_____, M. (VOLOSHINOV). Marxismo e Filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1986.
ARAÚJO, Inês L. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Editora da UFPR, 2000.
FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1995.
_____, A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
GARDINER, Michael. The dialogics of critique – M. M. Bakhtin & the theory of ideology. London: Routledge, 1992.
MORSON, G.S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin – creation of a prosaics. Stanford: Stanford University Press, 1990.
ROUANET, Sergio (et. al.) O homem e o discurso – a arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-
leiro, 1996.
WILLIAMS, Glyn. French discourse analysis – the method of post-structuralism. London: Routledge, 1999.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 163


Palavras chaves: Bakhtin, Voloshinov, Foucault, enunciado, discurso
Biografia resumida: Gilberto de Castro é professor do Departamento de Teoria
e Prática de Ensino e do Programa de Pós-graduação em História da Educação da
Universidade Federal do Paraná . Tem trabalhos publicados na área de ensino de
língua materna e sobre as idéias do Círculo de Bakhtin e ajudou a organizar, com
Cristovão Tezza e Carlos Alberto Faraco, o livro Diálogos com Bakhtin – edição
comemorativa aos 100 anos de Mikhail Bakhtin (Curitiba: Ed. da UFPR, 1996)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 164


Publicidade de humor: a confluência de vozes

Maria Lília Dias de Castro

UNISINOS

Resumo
A afirmação bakhtiniana de que a efetiva realidade da linguagem é o evento social de interação verbal
pressupõe de imediato entender o sentido numa outra ótica. Isso implica toda uma atenção às questões
espaço-temporais, ao processo interativo da comunicação e aos recursos expressivos utilizados na pro-
dução de determinada mensagem. Sendo assim, o discurso, situado no jogo de forças da sociedade de
mercado, viabiliza a relação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Ele é, simultane-
amente, interação e modo de produção social, lugar de troca e de negociação entre instituições, meios
e atores. A publicidade, mais do que nunca, vai refletir esses aspectos, pois ela é o resultado de todo
um percurso de negociação com o público, em busca de uma meta primordial: despertar o desejo de
consumo de seu sujeito receptor.
Sendo assim, resta ao estudioso de linguagem perseguir, nesse tipo de produção midiática, os me-
canismos de construção do sentido social. De forma prática, trata-se de examinar desde a situação
comunicativa, ou quadro de referência, até a instância discursiva que atualiza os papéis atribuídos aos
sujeitos. O eixo mais amplo implica domínio pontual da realidade política, social, econômica, cultural;
conhecimento do mercado; decisão quanto ao tipo de inserção do produto; natureza do público a que se
destina; conhecimento acerca de desejos e interesses desse público; decisão sobre tipo de mídia e tom
de uma campanha: informativo, apelativo, poético, humorístico; interesses em jogo; formato da campa-
nha. O eixo discursivo envolve as escolhas feitas: definição dos dados culturais e sociais; configuração
dos sujeitos; explicitação dos papéis enunciador / destinatário; forma de composição; tom empregado;
escolha de imagens e movimentos; uso de linguagem verbal e visual; efeitos sonoros e musicais; con-
teúdo e efeitos de sentidos.
Nessa direção, o estudo do humor adquire uma complexidade muito maior. Centrado no princípio do
jogo, o humor mistura representações contraditórias e emoções dinâmicas: são vozes que se fazem pre-
sentes em ângulos distintos. O primeiro, denominado intelectual, evidencia o humor como um processo
de inversão da lógica social; de choque entre dois códigos de regras: o de um mundo cotidiano, previsível
e seu oposto; de ruptura com padrões vigentes, de quebra com regras estabelecidas. O outro, emocio-
nal, entende o humor como liberação do sentimento de opressão; alívio de tensões, produção de prazer
e, em conseqüência, o riso. Se o tratamento regular de eventos e de objetos acarreta previsibilidade,
a ruptura provoca uma conexão inabitual. Isso gera diferença, novidade, transgressão, mudança e, em
conseqüência, magnetiza o receptor. Pode-se dizer que o receptor tende a não esquecer uma campanha
impregnada de ludicidade, de brincadeira. Há quem diga, inclusive, que o humor é uma forma de o ho-
mem se adaptar ao irreversível, de tornar a vida mais leve e agradável.
Reconhecer essas vozes na publicidade é o desafio desta comunicação. Para tanto, usa como base
uma campanha publicitária (oito peças), criada pela agência gaúcha Fischer América Dez, gentilmente
cedida para a realização da pesquisa.
Palavras-chave: humor; representação contraditória/liberação; vozes discursivas; dialogismo
Abstract
Bakhtin’s statement that the effective reality of language is the social event of verbal interaction
demands an understanding of meaning through another perspective. It implies special attention to spa-
ce-time matters, to the interactive process of communication and the expressive resources employed
on the production of a message. Thus, discourse, as part of the system of power relations in capitalist
society, allows the necessary relation between man and reality, both natural and social. Discourse is, at
once, interaction and mode of social production, the place for exchange and negotiation between insti-
tutions, media and actors. Advertising, more than ever, reflects these aspects, as the result of a process
of negotiation with the audience, seeking a main goal: to raise the will of consumption in the members
of the target.
So, regarding this sort of media production, the language student should investigate the mechanisms
of construction of social meanings. In short, it means to examine from the communicative situation or

Proceedings XI International Bakhtin Conference 165


framework to the discursive instance that attributes roles to the subjects. The wider axis implies awareness
of political, social, cultural and economic context, knowledge on the market, on the sort of participation
the merchandise has in it, on the nature of the target, along with deciding which sort of mass-media is
to be employed and the interests, shape and general mood of the advertising campaign: if informative,
demanding, poetic or humorous. The discursive axis deals with the choices regarding: the definition of
cultural and social data, the configuration of the subjects, the definition of the roles of emitter/receptor,
the composition, the style, the choices of images and movements, the use of verbal and visual languages,
the music and sound effects, as well as the contents and meanings.
In this sense, the study of humour acquires an even greater complexity. Based on the play principles,
humour mixes up contradictory representations and dynamic feelings: voices that appear in different
frameworks. The first, called ‘intelectual’, presents humour as a process of inversion of the social logic,
deriving from the conflict between two sets of rules: those of the everyday, predictable world and a diffe-
rent one; the breaking of expected patterns, of established rules. The other, called ‘emotional’, presents
humour as a liberation from oppression feelings, release of stress; pleasure, thus, laugh.
If the regular treatment of objects and events leads to predictability, a breaching in it leads to unexpec-
ted connections. That brings difference, novelty, transgression, change, thus attracts the receptors. One
can say that the receptors tend not to forget a playful, humorous advertising campaign. Some say that
humour is a human way of adaptation to what is irreversible, to turn life lighter and more pleasant.
To recognise these voices on advertising is the challenge taken by this communication. To do so, I
analyse an advertising campaign (made of eight advertising pieces) released by “Fischer América Dez”, an
advertising agency from Rio Grande do Sul, Brazil, kindly conceded for the purposes of this research.
Key-words: Humour; contradictory representation/ liberation; voices; discourse; dialogism

Introdução
Os aportes bakhtinianos têm subsidiado estudos no campo da lingüística, da literatura, da educação,
da psicologia, entre outros. Há relativamente poucas articulações entre Bakhtin e a comunicação, a
produção midiática, como é o caso da publicidade. Associar um tipo de produção voltado para a venda
do produto, a satisfação do cliente e o fortalecimento do mercado com os fundamentos bakhtinianos é o
desafio desta comunicação. Se o sentido se constrói no processo de interação social, que relações podem
ser feitas com a produção publicitária? E como o humor se insere nessa relação?
Que tipo de movimentos essa publicidade de humor desencadeia?
Como a noção de polifonia, de vozes está relacionada à publicidade de humor?
E mais, como a publicidade de humor, tão usada comumente, se insere nessa relação?
O trabalho com a publicidade de humor é, ao mesmo tempo, apaixonante e complexo. É apaixonan-
te, porque o texto publicitário atinge as pessoas, provoca-lhes reações e, sobretudo, atua em torno da
subjetividade. É complexo, porque essa investigação implica o envolvimento dos sujeitos no processo
interativo e, também, o estudo do discurso numa ótica que permita o exame dessa ordem emocional. A
noção de processo interativo é uma pista de duas mãos em que o produtor do discurso faz a provocação,
e o receptor envolve-se com o que lhe é sugerido. E, sobretudo, esse envolvimento vai repercutir no
campo das emoções. A publicidade de humor se completa na reação do receptor, no prazer despertado,
no riso obtido.
No fundo, consubstancia-se a orientação bakhtiniana de ver o discurso como a base para a construção
do sentido social. Cabe ao estudioso da linguagem perseguir e desvelar os mecanismos articulatórios de
construção desse sentido e reconhecer os diálogos possíveis que se estabelecem com a sociedade, com
a cultura e com os valores da época.
Para estudar essa relação tão complexa, o trabalho busca, num primeiro momento, situar a publi-
cidade como uma produção midiática que atua na sociedade, e o humor como um recurso discursivo,
que impulsiona o fazer publicitário visto que promove e fortalece a interação entre as pessoas. Por isso
a reflexão em torno do fenômeno publicitário e seu recurso humorístico.
Num segundo momento, propõe-se a reconhecer esses movimentos tomando por foco uma campanha
publicitária veiculada no Rio Grande do Sul, e gentilmente cedida pela então Agência Fischer América Dez,
para a realização desta pesquisa. A campanha, composta de oito peças de trinta segundos cada uma, foi
veiculada na televisão gaúcha, no final dos anos noventa, e teve bastante aceitação junto ao público.
Publicidade: implicações e especificidades
A investigação no campo da produção midiática, segundo Ford, exige um olhar atento aos fenôme-
nos da realidade socioeconômica e cultural. É difícil falar da mídia, de seus gêneros, de suas formas de
construção de sentido, de sua produção ou recepção, da crescente segmentação da demanda e da oferta,
ou dos processos de globalização simbólica, de seus efeitos e usos, isolando-os da sua complexa trama
com as transformações socioculturais e econômicas (1999, p.169),
Qualquer estudo que pretenda debruçar-se sobre os objetos e/ou processos midiáticos deve neces-
sariamente voltar-se para o conjunto de acontecimentos que cercam o fazer e que condicionam esse

Proceedings XI International Bakhtin Conference 166


dizer. Trata-se, em primeiro lugar, de ver a sociedade, em todas as suas dimensões sistêmicas, como um
conjunto de modificações pontuais que envolvem questões de ordem econômica, social, cultural. Não
há como negar que o mundo hoje, vivendo a centralização das economias, a concentração de capital e
de poder, visa à supremacia do mercado e à maximização dos lucros. Há um predomínio acentuado de
novos padrões de investimento e produção, de serviços, de mercado de trabalho.
A sociedade, estruturada nessa totalidade econômica, define novas fronteiras sociais, mediadas pela
aquisição de mercadorias. Isso acarreta uma constante renovação das mercadorias e a ilusão da com-
pleta trocabilidade de bens. A ordem da aquisição transforma-se em bem cultural. Dentro desse quadro
econômico, social e cultural, soma-se o desenvolvimento tecnológico que favorece o fluxo constante
das informações e o poder da mídia. Todas essas transformações, responsáveis por novas formas de
organização e de produção econômica, por novas práticas e hábitos sociais e culturais, geram, também,
mudanças nas experiências diárias e, em conseqüência, na vida das pessoas: o consumo passa a ocu-
par uma posição de destaque. Entenda-se por consumo o conjunto de processos socioculturais em que
as pessoas se apropriam de bens/produtos, envolvendo tanto as necessidades básicas – alimentação,
habitação, vestimenta, locomoção e lazer – como aquelas consideradas complementares à vida do ser
humano. É um processo extremamente complexo de comunicação e de recepção de bens simbólicos,
que se renova e expande de forma incessante.
O mercado estimula o consumo que, por sua vez, reestimula o mercado, em verdadeiro círculo vicioso. O
mercado unifica, seleciona e, além disso, produz a ilusão da diferença através dos sentidos extramercantis
que abarcam os objetos adquiridos por meio do intercâmbio mercantil (Sarlo, 1997, p.26). É como se a
cidadania fosse praticada no mercado, que se transforma em nova linguagem, em novo cenário onde as
pessoas depositam seus sonhos (Canclini, 1999, p.39). As pessoas sonham com as coisas do mercado.
O indivíduo passa àquilo que Sarlo identifica como colecionador às avessas: em vez de colecionar
objetos, coleciona atos de aquisição às avessas, mas, paradoxalmente, assim que os produtos são ad-
quiridos, eles perdem seu valor, as mercadorias perdem sua alma (1997, p. 27). Há, em síntese, uma
profunda transformação coletiva, um redesenho do sistema, uma nova forma de organização e de pro-
dução econômica, claramente imbricada com sociedade e com cultura. Configuram-se outras práticas e
hábitos sociais e mentais, reembaralham-se valores e sentimentos.
É natural que, nessa configuração mercadológica e consumista, a publicidade ganhe projeção e adquira
espaço nos meios. Atravessada pelas tensões do mundo atual, ela tem disputado o cliente, lançando mão
de linguagens inovadoras. É sua maneira de se fazer notar, de provocar, de ousar. Nesse caminho, ela
precisa não apenas apreender os valores da sociedade, perceber seus movimentos, como saber refletir
os gostos e os interesses do público alvo.
Na definição desses movimentos, concorrem diretamente fatores de ordem sociocultural, porque a
publicidade reflete os interesses e dialoga com os valores aceitos na sociedade; econômica, porque a
produção está voltada para a oferta, a venda e o lucro; mercadológica, porque implica papel do seg-
mento e posição no mercado; simbólica, porque trabalha a linguagem nas diferentes potencialidades de
sentido; e tecnológica, na medida em que ela se apropria dos recursos tecnológicos para se tornar mais
contundente. Com essa base, ela busca agir sobre as atitudes e o comportamento daqueles a quem ela
se dirige, incitando-os a querer certos bens e serviços ou a aderir a determinados valores e idéias. En-
tão, mais do que vender, ela trabalha no movimento de manipular, de despertar no outro o desejo pela
compra, ou aquilo que Luhmann chama de dotar de gosto alguém que não o tem (2000, p.69).
Nesse cruzamento, a publicidade também se revela como uma operação de deslocamento, pois sua
pretensão é levar o consumidor a não pensar, com vistas a dele conseguir adesão. De forma rápida, ela
busca romper com o conhecimento ponderado, racional e faz um convite ao encantamento, à dimensão
emocional. Predominantemente explora a fantasia, o espetacular, a situação idealizada.. Tal qual a moda,
ela se alimenta da frivolidade, do superficial. Para Lipovetsky, a publicidade se dirige principalmente
ao olho, é promessa de beleza, sedução das aparências, ambiência idealizada antes de ser informação
(1989, p.189). Também como a moda, ela é rapidamente esquecida, como uma espécie de objeto des-
cartável.
Daí resulta, sobretudo nos últimos tempos, a peculiaridade tensional entre objetividade e subjetivi-
dade. Da natural objetividade, relativamente à informação acerca dos produtos, a publicidade passou a
explorar subjetividades, a buscar efeitos, a valorizar dados impressionistas. O imperativo tem sido menos
a excelência dos produtos e mais a ressonância estética, existencial. O resultado é uma comunicação
menos rígida para eliminar a solenidade e o peso dos discursos, para promover a ordem frívola dos signos
(Lipovetsky, 1989, p.190). Nesse movimento, ela se situa no limite entre a esfera do conhecimento e a
instância psicológica, relativa ao desejo, à vontade do outro. No fundo o que a publicidade pretende é o
movimento manipulatório para aplacar a tendência crítica da esfera cognitiva.
Por fim há que se destacar uma condição bastante peculiar, marcada por ações intrincadas e, num
certo sentido, até paradoxais, na medida em que a publicidade tenta trazer o novo sem abdicar do
mesmo. Se a criação nova é sua meta permanente, ela também precisa permanecer fiel à tradição de
mercado. Daí, no dizer de Luhmann, a inserção da publicidade como uma forma de comunicação que
procura estabilizar a relação entre redundância e variedade na cultura cotidiana (2000, p.74). A publici-
dade cria uma tensão constante entre aquilo que é inédito, diferente, novo, e aquilo que dela se espera,
o procedimento previsível. Isso ocorre tanto na mediação do conhecimento, em que se confrontam dados

Proceedings XI International Bakhtin Conference 167


novos com dados já sabidos, banais; como na mediação estrutural, relativamente ao jogo previsibilidade
– imprevisibilidade na forma de trazer a informação. No caso de um mesmo produto a ser anunciado, a
publicidade vai tentar descobrir uma nova angulação, uma nova maneira de criar ilusão. O consumidor
precisa encontrar no mesmo produto uma outra motivação. Esse jogo permanente entre o mesmo e o
novo é talvez, em publicidade, uma das facetas mais instigantes.
Essas especificidades, ou lógicas, do fazer publicitário consubstanciam pontualmente o conceito
bakhtiniano de interação social: todos os movimentos desenvolvidos mostram que o sentido se constrói
em interação, e essa interação é sempre social. Ela se dá no contexto social, por um produtor que tem
horizonte social e voltada para um público bem definido.
Sob essa ótica, pode-se dizer que a publicidade hoje constitui um fenômeno de linguagem concreto e
vivo, um evento que interage com a sociedade como um todo. Na noção de integração, leva-se em conta
não apenas a situação concreta do ato comunicativo, a relação do homem com a sociedade, mas também
as relações lógicas e concreto-semânticas existentes no discurso. É assim pela linguagem que se define
a relação entre o homem e a realidade natural e social. Aí já se fala em discurso como objeto histórico
e social que, através da linguagem, marca a atividade transformadora e o trabalho simbólico exercido
pelo homem. Discurso é simultaneamente interação e modo de produção social. Como conseqüência,
ele precisa estar voltado para as práticas cotidianas e para as condições externas de comunicação. O
produto dessa interação socialmente organizada é a enunciação. A enunciação enquanto tal é um puro
produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo
contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade
(Bakhtin, 1981, p.121).
O estudo da linguagem, que é de natureza social, consolida-se pela sua natureza relacional, dialó-
gica. Cada enunciado refuta, confirma, complementa e depende dos outros, pressupõe os que já são
conhecidos e, de alguma forma, os leva em conta. Nessa ótica, o dialogismo diz respeito, na dimensão
ampla, às possibilidades abertas e infinitas geradas por todas as práticas de uma cultura; na dimensão
pontual, é a presença no texto de séries verbais e não-verbais que remetem a outros textos. Explici-
tam-se assim as possibilidades de diálogo interpostas no discurso. É precisamente essa comunicação
dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. (Bakhtin, 1981, p.146). O dialogismo
centra-se assim na lógica interativa que tensiona as palavras, e que leva o discurso a esperar resposta,
a sugerir algo em contrapartida.
Publicidade de humor
Nos últimos empos, preocupada com a manipulação de desejos e gostos, a publicidade, no dizer de
Lipovetsky, tem provocado uma verdadeira mudança de registro: ela hoje busca menos convencer do
que fazer sorrir, surpreender, divertir. (1989, p.187). Daí talvez a presença tão significativa do humor.
No ato de surpreender, a publicidade de humor parece seguir as regras de um jogo, e um jogo que
opera em duas dimensões: a intelectual e a emocional. A primeira é responsável pela mistura de repre-
sentações contraditórias. É a tentativa de quebrar a rigidez da sociedade, de co-romper os padrões ou
de repetir fórmulas consagradas. É interessante observar o fenômeno no plano da linguagem: assim
como a negação se faz em cima de uma afirmação e, portanto, na concomitância de dois valores, tam-
bém aqui ocorre essa duplicidade. A ruptura interposta pelo humor implica sempre a presença de seu
oposto. Na realidade, sua proposta é romper com algo que está presente, com algo que existe e que é
do conhecimento de todos, e isso faz com que os dois valores se tensionem. Esse conhecimento anterior
muitas vezes é puro automatismo, espécie de um conhecimento cristalizado que a vida em sociedade
impõe a cada indivíduo. Sendo assim, palavras e imagens são exploradas numa perspectiva de inversão
deliberada de um mundo demasiado cotidiano. Esses valores concomitantes aparecem no discurso como
vozes divergentes que dialogam e que surpreendem.
Ao lado da dimensão intecletual, está a outra, responsável pelo apelo emocional, de certa forma
relacionada à idéia de liberação. No movimento de romper, de surpreender, o humor exime o outro do
sentimento de opressão e funciona, então, como alívio de tensões. Diante das pressões sociais e pessoais
a que todos estão submetidos, ele funciona como uma espécie de álibi, provocando emoções dinâmicas,
o que parece ser o segredo do efeito do prazer. O humor exige a presença do interlocutor para com ele
dialogar; e só na convocação e presença desse outro é que ele se viabiliza.
Para conseguir esses efeitos a publicidade de humor lança mão de um conjunto de estratégias e de
recursos discursivos que exploram representações contraditórias, inversões desestabilizadoras, além de
jogos de palavras, duplos sentidos, superposição de pontos de vista. São sobretudo vozes dissonantes
e/ou convergentes, que marcam o choque entre dois códigos de regras ou de contextos. Nesse choque,
normalmente ocorre uma inversão de lógica a evidenciar que a lógica normal não coexiste com seu
reverso. É como se o mundo fosse visto de cabeça para baixo. O resultado, naturalmente, é o alívio de
tensões, a sensação de liberação associada ao prazer que tal publicidade desencadeia. A eficácia dessa
publicidade reside justamente na superficialidade lúdica, no coquetel de imagens, de sons e de sentidos
que oferece sem preocupação com as coações de princípio de realidade e da seriedade da verdade (Li-
povetsky, 1989, p.189) Trata-se, acima de tudo, de imprimir leveza e diversão ao receptor que só assim
se sente mobilizado.
Mais do que tudo, o humor, ao instalar a possibilidade de uma outra angulação, resiste a qualquer

Proceedings XI International Bakhtin Conference 168


processo de visão unilateral. O diálogo instalado pelo humor traduz a concepção bakhtiniana de uma
dialogização infinda, o que revela, nessa perspectiva, uma espécie de resistência a qualquer processo
monologizador que possa existir na sociedade. O diálogo funciona assim como uma forma possível de
preservação da liberdade do ser humano. Nessa medida, a publicidade de humor é aquela que, preo-
cupada em selar um pacto de cumplicidade com o outro, volta-se para ações que, de um lado, rompam
com a expectativa do receptor e, de outro, provoquem-lhes sensações de prazer e de diversão. Sua
preocupação maior é a brincadeira, a futilidade do sentido, o que a leva a dirigir sua criatividade para
essa espécie de superficial, secundário, mas que, na realidade, representa o eixo tensional, o efeito
duplo e surpreendente.
Análise: campanha do Universitário
A reflexão pontual acerca do humor em publicidade centra-se em uma campanha (com oito peças) no
segmento educacional (curso pré-vestibular), caracterizado como um segmento consolidado no mercado,
com público alvo bastante amplo em termos de camada social.
O objetivo aqui, conforme apontado, é articular a análise semiológica do humor com o conjunto de
ações à sua volta. Até porque, seguindo de perto as posições de Ford, acredita-se que o estudo da mí-
dia, no caso a publicidade, no que tange à construção do sentido, a seus efeitos e usos deve contemplar
também um exame do entorno em que essa publicidade se insere. O receptor/consumidor que a publi-
cidade visa atingir é, antes de tudo, um cidadão comum e, como tal, sofre as pressões e as restrições
do mundo que o cerca.
a) inserção do segmento educacional
No que concerne às questões socioculturais, o produto cursinho pré-vestibular, no mundo de hoje,
desempenha uma função pontual: ele representa de certa forma a condição para o candidato ingressar
na universidade. Esse ingresso é questão primordial a todo jovem, pois significa o acesso a uma forma-
ção profissional, a possibilidade de ascensão pessoal, o reconhecimento da sociedade, da família, dos
pares. No contexto nacional, esse acesso está restrito a bem poucos. Só no Rio Grande do Sul, segundo
dados do MEC/INEP*, na relação entre inscrições e ingressos no ano de 2001, houve 92.834 inscrições
e 8.818 ingressos (10,52 candidatos por vaga) nas federais; ao lado de 149.405 inscrições e 65.434
ingressos (2.28 candidatos por vaga) nas privadas. Há estimativas de que, no Brasil, para cada vaga
em universidade, existam, em média, quinze candidatos excedentes. São informações que evidenciam
a grande procura pela formação superior. Praticamente todas as universidades brasileiras, no período
de dezembro a fevereiro (algumas inclusive repetem o processo no meio do ano), realizam o exame de
seleção de seus candidatos através do vestibular. Os cursos mais procurados, dependendo da região e
da universidade, chegam a ter vinte a trinta candidatos por vaga.
Por esse motivo, a preparação adequada, incluindo, naturalmente, a freqüência a um curso pré-
vestibular, mobiliza grande parte dos candidatos, e gera, no segmento, competitividade e muita oferta.
A cada ano, os cursinhos existentes, preocupados em consolidar sua ação, não se cansam de divulgar
os resultados obtidos, traduzidos em índices de aprovação. São gráficos, percentuais, indicação das
primeiras colocações mostrados à exaustão. Esses dados são disponibilizados das mais variadas ma-
neiras: seja diretamente na distribuição estratégica de outdoors pela cidade e na divulgação em mídia
impressa e televisiva, seja indiretamente no patrocínio de shows musicais e até na promoção de festas
aos aprovados.
Sendo assim, é natural a competitividade entre os concorrentes e, como decorrência, o investimento
substancial em publicidade. A disputa gera também ações criativas e inovadoras, em termos publicitários,
para a captação de novos clientes.
b) caracterização das peças
A campanha em estudo constitui-se de oito peças produzidas para televisão, de trinta segundos cada,
que exploram, em forma de histórias curtas, episódios envolvendo dois ou mais jovens em situações
típicas do seu cotidiano: uma casal de namorados aos beijos e abraços; um outro casal diante da situ-
ação de gravidez; um rapaz no banheiro lendo revistas pornográficas; uma jovem que beija o amigo do
namorado; um grupo de jovens fumando maconha; um rapaz com a namorada no motel; um rapaz que
declara ao amigo sua preferência homossexual; uma moça que leva o namorado para dormir em sua
casa. Todos os atores aparecem em cenas curtas, sempre flagrados em momentos constrangedores:
ou porque cometeram algum deslize, de acordo com os padrões da sociedade, ou porque tiveram sua
intimidade vasculhada.
No caso dessa campanha, cujo objetivo explícito é atingir o público jovem, há uma série de especifi-
cidades muito significativas, a começar pela estratégia, até certo ponto incomum, de deslocamento. Há
uma espécie de ruptura com o fazer publicitário, na medida em que o produto é relegado a uma posição
secundária (só aparece rapidamente nos últimos segundos), e a ênfase, em todas as peças, passam a
ser as situações embaraçosas vividas em cada episódio. Nesse deslocamento de foco, a centralidade da
campanha é a intimidade do jovem, o desvelamento de seus segredos mais fundos, o que indiscutivel-
mente surpreende o potencial receptor.
Além dos temas polêmicos, as peças também retomam atitudes que rompem com o conjunto dos

*
Dados obtidos em consulta ao site www.inep.gov.br

Proceedings XI International Bakhtin Conference 169


gestos sociais normatizados. Os episódios traduzem-se em ações que fogem completamente à expecta-
tiva criada em sociedade para todas as pessoas: a moça refere o nome de outro jovem na relação com o
namorado; o rapaz fica paralisado diante da gravidez inesperada; o rapaz, no banheiro, é surpreendido
pela entrada da mãe; a namorada é surpreendida pelo namorado quando beija outro jovem; o grupo de
jovens, fumando maconha, é supreendido por supostos policiais; o rapaz, no motel, não consegue de-
sempenho sexual com a companheira; o rapaz declara sua opção homossexual ao amigo, quando ambos
encontram-se no vestiário, logo após uma partida de futebol; a moça, no quarto com o namorado, é
supreendida pela entrada do pai. Em todas as peças, há sempre esse caráter de imprevisibilidade e de
surpresa. Nesse caso, a explicitação da intimidade e a exploração de temas tabus não apenas rompem
o esperado, como, de certa forma, banalizam os comportamentos e os padrões vigentes na sociedade,
provocando algum tipo de reação no receptor.
Também há efeito transgressor na forma de tratar a questão: a publicidade parece desmistificar o
impacto vestibular. Ao mostrar situações compactantes, estas sim de difícil solução, a publicidade, por um
recurso metonímico, associa vida e vestibular, com a diferença de, em relação a esse último, ter o auxílio
do Universitário. Assim, se a vida tem situações difíceis, o vestibular deixa de ser problema quando ligado
ao produto anunciado. A própria estrutura narrativa da peça rompe com o padrão comum: há suspensão
da história, semicongelamento da imagem (apenas pequenos movimentos, trejeitos, expressões faciais)
e sobreposição de alternativas como forma de solucionar o impasse criado. As peças inovam na forma
de contar e, também, promovem a mistura de universos: o episódio representado (cenas da vida) com
as alternativas sobrepostas à imagem (referência ao vestibular).
Na construção formal, há uma preocupação com a caracterização dos personagens, dos cenários, dos
figurinos, para que as cenas reproduzam, com o máximo de fidelidade, os ambientes projetados, e tam-
bém com as questões de filmagem: a movimentação da câmera, o jogo de planos, o direcionamento do
foco, a proximidade / distância da imagem, a distorção intencional da imagem, a velocidade da câmera,
o recurso sonoro, o efeito cromático.
Todas as peças trabalham em cima do efeito transgressor, da tentativa de ruptura com o padrão com
vistas a surpreender o receptor, atrair sua atenção, diverti-lo e, com isso, conseguir sua adesão. O humor
tem exatamente esta função: romper com o comportamento previsível e sensibilizar o receptor, através
da diversão, da liberação do prazer. Importante ressaltar que esse efeito decorre sempre do pacto com
o receptor, do conhecimento comum que ambos partilham e que lhes permite dimensionar o âmbito da
ruptura e da transgressão. O humor sempre se completa na compreensão do outro, caso contrário deixa
de ser percebido. E sempre acontece nas duas dimensões – de um lado, ruptura, trangressão; de outro,
emoção, liberação – que, juntas, constituem essa outra forma de anunciar o produto.
Conclusão
A vida em sociedade exige cidadãos mais ativos e participantes. Se o jovem é tradicionalmente re-
conhecido pelo lado introspectivo, fechado em seu próprio mundo, a campanha do Universitário invade
esse mundo, explicita e, até certo ponto, expõe as fragilidades desse jovem. Nessa ação de flagrar, ela
desmistifica, desconcerta e banaliza na tentativa de atingir seu público potencial. No caso, é a forma
segura, ao que parece, de garantir a aceitação do produto, de consolidar a marca e de ocupar fatia im-
portante de mercado. Nesse desafio, o humor, conforme se procurou demonstrar, explora ludicidades,
celebra fantasias. Com isso, torna-se ingrediente valioso da fantasia, da originalidade e do espetáculo
que, sem sombra de dúvida, representam recursos inestimáveis de ação publicitária.
Este trabalho buscou mostrar o nível de comprometimento da ação estratégica dentro do fazer pu-
blicitário. Nas peças examinadas, fica clara a idéia de que a publicidade de humor, para a conquista de
seu público, investe fortemente no efeito trangressor. Pelo fato de trabalhar com o desvio e de provocar
o riso, ela aproveita o disfarce para fazer dialogar diferentes valores. Assim quando ela, com base nos
princípios da sociedade, expõe outras leis ou traz à tona seus contrários, na realidade está sugerindo
outras verdades. Essa noção de interposição de vozes se reconhece no jogo de ruptura, na emergência
de valores sociais, no efeito lúdico.
A possibilidade de emergência de outros valores sociais revela uma outra angulação para a campa-
nha. Jogando com a surpresa, o inesperado, as peças parecem conjugar dois tipos de elementos apa-
rentemente incompatíveis: de um lado, subversão e ruptura (inversão de evidências estabelecidas); de
outro, sedimentação e cristalização (consolidação de comportamentos e de valores). A publicidade não
apenas privilegia a subversão, pois inverte seu fazer natural e invade a privacidade do jovem; como
também aposta na sedimentação de determinadas evidências sociais. Isso significa que, por mais que
ela subverta princípios cristalizados ou questione convenções, supostamente ignorando a sabedoria
constituída, ela também consolida verdades. É como se, no campo social, ela propusesse um novo olhar
sobre o fazer do jovem; mas, no eixo familiar, a previsibilidade comportamental fosse absolutamente
esperada. Nesse caso, o humor, levado à últimas conseqüências, chega a funcionar como uma forma
de afrontar, sem desestabilizar; de inquietar, sem mudar radicalmente. Ele auxilia a não quebrar o pacto
social. Se é verdade que a publicidade de humor liberta de sua pressão social e, simultaneamente, libera
o sujeito de sua tensão, também é importante perceber que caminho é esse que se abre diante dele.
Definitivamente o humor traz uma outra forma de olhar o mundo, de olhar para ver, para ver o que há
de fato nas coisas.
Como bem assinala Ziraldo, o humor tem sempre uma verdade dentro, um processo de transposição

Proceedings XI International Bakhtin Conference 170


do ideal para o real. É preciso atenção para que, nos meandros do divertido, não se perca a consciência
de fatos e de valores. A eficiência do humor está, justamente, em saber aliar a hipérbole, a graça à reali-
dade dos fatos, proporcionando ao público um outro ângulo de reflexão. Sempre é interessante enfatizar
que o humor não mente: ele pode exagerar, mas sua criação não se dá a partir do nada.
Para finalizar, fica a afirmação pontual de que o humor é, com efeito, uma forma de desvelar o óbvio
que estava ali mas ninguém percebia, de assinalar não o que está evidente, mas o detalhe que, de tanto
ver, passa despercebido.
Bibliografia
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.
________. Problemas da poética de Dostoiévski. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BERGSON, H. O riso; ensaio sobre a significação do cômico. 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
CANCLINI, N.G. Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização. 4.ed. Rio de Janeiro: UFRJ,
1999.
CASETTI, F. & DI CHIO, F. Análisis de la televisión; instrumentos, métodos y prácticas de investigación. Barcelona:
Paidós, 1999.
CASTRO, M.L.D. Publicidade: o humor a serviço do mercado. Lumina. Juiz de Fora: Editora UFJF, 3(2):107-116,
jul/dez 2000.
CHARAUDEAU, P. Le discours d’information médiatique; la construction du miroir social. Paris: Nathan, 1997.
DEELY, J. Semiótica básica. São Paulo: Ática, 1990.
ECO, U. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2000.
ESCARPIT, R. L’humour. Paris: PUF, 1967.
FABBRI, P. Tacticas de los signos. Buenos Aires: Gedisa, 1995.
FARACO, C.A. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar, 2003.
FLOCH, J.M. Semiótica, marketing y comunicación. Barcelona: Paidós, 1993.
FORD. A. Navegações; comunicação, cultura e crise. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.
FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1977 (Ed. Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 8).
KELLNER, D. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001.
LIPOVETSKY, G. O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989
LUHMANN, N. La realidad de los medios de masas. México: Universidad Iberoamericana, Anthropos Editorial,
2000.
MATTELART, A. La publicidad. Barcelona: Paidós, 1991.
RODRIGUES, A. Estratégias da comunicação. 2.ed. Lisboa: Ed. Presença, 1997.
SABORIT, J. La imagen publicitaria em television. 3.ed. Madrid: Catedra, 1994.
SARLO, B. Cenas da vida pós-moderna; intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: UFRJ,
1997.
SCHULTZ, D.E & BARNES, B.E. Campanhas estratégicas de comunicação de marca. Rio de Janeiro: Qualitymark,
2001.
VERÓN, E. Semiosis social. Barcelona: Gedisa, 1996.
ZIRALDO. Ninguém entende de humor. Revista de Cultura Vozes, Rio de Janeiro: Vozes, 1970

Proceedings XI International Bakhtin Conference 171


O carnaval e o caos: o espelho prega uma das suas

João Carlos Cattelan

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe:


eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que
dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o
feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da
tristeza! Quero os todos pastos demarcados... (Gui-
marães Rosa, 1986, p. 206)

RESUMO I
Nos estudos realizados por Mikhail Bakhtin (1993) sobre Rabelais, o teórico russo afirma que o mérito
do autor francês está em perceber o valor das festas populares para o homem medieval, para quem o
carnaval desempenhava, juntamente com as festas que o compunham, um elemento de renovação da
vida e da cultura. A partir da análise de uma charge veiculada pela revista Época, este artigo se propõe
a detectar que forma de compreensão é proposta pela mídia em relação a festas populares como essa,
buscando estabelecer um contraponto entre a concepção carnavalesca bakhtiniana e rabelaisiana e aquela
que caracteriza a mentalidade da sociedade brasileira atual.
RESUMO II
At the studies made by Mikhail Bakhtin (1993) about Rabelais, the russian theoretician asserts that
the merit of the french author is to discern the value of the popular parties for the medieval man, for
who the carnival was, together with the parties that compose him, an element of the life and the culture
renovation. From the analyse of a shown charge by Época magazine, this paper has the aim to detecte
what is the media comprehension shape about popular parties as that, trying to establish a comparison
between the bakhtinian and rabelaisian conception about the carnival and that what seems to identify
the present brazilian society mentality.

1 INTRODUÇÃO
A partir do estudo da estética que caracteriza a produção romanesca de François Rabelais, Bakhtin
(1993) afirma que a “principal qualidade (do romancista francês) é estar ligado mais profunda e es-
treitamente que os outros às fontes populares” (p. 2). Dentre as festas populares usadas por Rabelais,
estariam o carnaval, a “festa do asno”, as “festas dos tolos”, o “riso pascal”, as “festas do templo” e as
“festas agrícolas”. Cruciais para o homem medieval, estas festas “pareciam ter construído, ao lado do
mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida”, criando uma espécie de “dualidade do mundo”
(p. 3) (grifos do autor) e instituindo, ao lado do mundo oficial, um mundo cômico que permitia “uma
fuga provisória dos moldes da vida ordinária” (p. 6). Festa por excelência, o carnaval “é a própria vida
que representa e interpreta uma outra forma livre de sua realização, isto é, o seu próprio renascimento
e renovação sobre melhores princípios” (p. 7).
Como se vê, as festas populares, e o carnaval, sobremaneira, têm, para Rabelais (e para Bakhtin),
um traço fortemente renovador, capaz de engendrar novas formas de relações humanas: um elemento
positivo, porque produz outras relações a partir da crítica daquelas desgastadas: dogmáticas. Não pa-
rece ser este o mirante da mídia, quando se consideram os discursos que ela veicula. Embora afirme
nas materialidades que o carnaval é uma festa democrática, popular e crítica, tomando tais traços como
positivos, na transversalidade de que se vale para articular o seu discurso, ela deixa transparecer o que
pensa da festa: ele seria uma festa caótica, que desorganiza o mundo, fazendo ruir os valores da so-
ciedade, trazendo o caos e a degradação do status desejável. Esta é a hipótese que se buscará testar e
levar à confirmação ou refutação.
Usando o conceito bakhtiniano de carnaval e a noção de transversalidade discursiva, este artigo se

Proceedings XI International Bakhtin Conference 172


coloca como meta, portanto, analisar uma charge veiculada pela revista Época, buscando detectar se o
lastro de crença que sustenta o discurso da mídia sobre o carnaval é o que ela produz enquanto afirmação
explícita ou se há um outro, aparentemente contraditório, com relação àquele, onde se pode detectar
aquilo em que ela realmente acredita.
2 O CARNAVAL EM RABELAIS
Nos estudos que realiza sobre François Rabelais, Bakhtin (1993) afirma que a chave de decifração
da estética do autor francês está na compreensão do papel que a cultura popular, calcada no riso da
praça pública e na comicidade do mundo, desempenha em sua criação romanesca. Cada imagem, cada
símbolo, cada elemento lingüístico, cada festa, cada signo, em Rabelais, teria que ser lido a partir do
diapasão da cultura cômica do carnaval, com seu acento e intencionalidade. Ou seja, para além de cada
imagem ou alegoria, para além de cada festa em particular, para além de cada recurso linguageiro, o
processo de criação seria comandado pela unidade profunda e indivisível do carnaval. Ler Rabelais sem
ter consciência disso, para Bakhtin, deturparia a compreensão profunda da obra, sendo o riso remetido,
então, ou ao puro prazer sem viés contestatório, gratuito, ou para a paródia puramente negativa, sem
que aquele que ri pudesse ser inserido como objeto risível. Para dar conta do problema de investigação
com que está às voltas, Bakhtin alinhava uma série de idéias sobre o carnaval. Aquelas julgadas rele-
vantes para este estudo são apresentadas a seguir.
Bakhtin afirma que as tentativas de compreensão da obra rabelaisiana atribuíram diferentes chaves
de decifração ao riso característico da obra do autor. Em alguns estudos, o riso seria explicado como
“um produto das condições e finalidades práticas do trabalho coletivo” (p. 7), ou seja, enformado por
um viés marxista de leitura de mundo, ele apareceria como uma forma de relaxamento frente ao mundo
opressivo e cansativo do trabalho: frente ao cansaço, à opressão e à exaustão, ele surgiria como uma
válvula de alívio e descompressão. Em outros estudos, “interpretação mais vulgar ainda” (p. 7), o riso
surgiria “da necessidade biológica (fisiológica) do descanso periódico” (p. 7), ou seja, aqui, ele teria sua
razão de ser comandada pela necessidade, humana e natural, de ter que haver um período de descanso
após a realização de uma atividade produtora de fadiga. Para Bakhtin, em nenhuma das explicações se
encontra a chave para compreender o sentido humano do riso, já que “a sua sanção deve emanar não
do mundo dos meios e condições indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana,
isto é, do mundo dos ideais” (p. 8) (grifos do autor). Para o autor, a chave de decifração do riso estaria,
portanto, na remissão aos desejos e sonhos do ser humano e às propostas de uma outra sociedade,
estando atrelado sempre a concepções de mundo que o orientam e lhe dão sua razão de ser. Esta seria
a sua gênese. O riso apareceria na sociedade humana como forma de questionamento face ao mundo
existente e como forma de indicar uma outra sociedade e uma outra forma de relações humanas.
O riso e a festa carnavalesca, portanto, estariam relacionados, não a algum imperativo ditado por
condições ligadas ao trabalho, mas sim ao desejo humano de buscar aquele que seria o mundo ideal
para o seu momento histórico. Neles, estaria o meio de projetar um mundo ideal, o país do sonho, a
sociedade desejada, “a vida (na) sua forma ideal ressuscitada” (p. 7). Mas, mais do que isso, para o
homem medieval, o carnaval não seria apenas uma festa idêntica a uma celebração litúrgica: à distância;
simulação de um suposto desejo. O cotidiano seria reformulado e a vida prática passaria a experimentar
de forma concreta a possibilidade de superação dos limites do que, no cotidiano, mantém-se rigorosa-
mente separado. Ou seja, as razões da celebração carnavalesca: a liberdade, a igualdade, a superação
das diferenças hierárquicas, a abundância e a fuga aos moldes da vida ordinária seriam postas em
exercício pleno: o carnaval não seria apenas o meio de reivindicar uma certa sociedade, mas de vivê-la
efetivamente, fazendo com que, mesmo que por um curto lapso de tempo, a vida pudesse ser vivida na
plenitude do desejo, com as fronteiras estabelecidas sendo superadas, celebrando-se a possibilidade de
convivência com o que é mantido à distância: um ideal de fraternidade. Então, todos os limites, relações
hierárquicas, regras de etiqueta, usos lingüísticos, rituais religiosos, festas oficiais, produções artísticas,
privilégios, regras e tabus são abolidos. O mundo se organiza sobre outra forma de compreensão: o oficial
e estabelecido é submetido a um trabalho corrosivo e reformulador, buscando exercitar na experiência
cotidiana aquilo que se deseja como o mundo da normalidade, estabelecendo “relações novas: verda-
deiramente humanas” (p. 9): “O princípio cômico que preside os ritos do .carnaval liberta-os totalmente
de qualquer dogmatismo religioso ou eclesiástico” (p. 6).
O carnaval será, pois, para o homem medieval, a experiência concreta da renovação, reformulação,
reconstrução, abolição e redenção do ser humano. Todas as fronteiras e limites sociais estabelecidos
pelos poderes religiosos (sabe-se do poder da igreja durante a Idade Média e a ameaça que ela re-
presentava com os tribunais inquisitoriais) e seculares (sabe-se dos poderes, tanto políticos quantos
econômicos, detidos pelos senhores feudais com seus exércitos e posses territoriais) terão, no carna-
val, ocasião para serem submetidos à corrosão, ao questionamento e ao riso cômico, que relativiza e
submete à refacção aquilo que se julga peremptório, natural e estabelecido. Todas as figuras do poder
político, eclesiástico e secular, todos os rituais religiosos e políticos, todos os usos lingüísticos oficiais,
toda “a verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a aparência de uma verdade eterna,
imutável e peremptória” (p. 80) eram corroídos pela relativização implacável a que eram submetidos pelo
riso cômico da praça pública. O carnaval era, portanto, uma festa do tempo futuro, da celebração “das
alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação,
apontava para um futuro ainda incompleto” (p. 9). Riso delicioso e insidioso, porque não só submete ao

Proceedings XI International Bakhtin Conference 173


questionamento o que a sociedade propõe como modelo a ser seguido, mas ele próprio é fonte de um
outro riso que o questiona, sendo que “o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no
seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo” (p. 10). Aquele que ri não está excluído de ser submetido
ao riso: “o povo não se exclui do mundo em evolução” (p. 10). Enfim, o carnaval medieval seria o lugar
da celebração, da renovação, do renascimento, da mudança: da fuga a qualquer forma de acabamento
ou perfeição: a ressurreição.
Contrariamente, portanto, ao tom impresso sobre as festas oficiais, sempre voltadas para a denega-
ção das crises, para a consagração da ordem social presente, para a ratificação da estabilidade, para a
perenidade das regras, para o olhar lançado para trás, o carnaval estabelecia uma relação “com os fins
superiores da existência humana, a ressurreição e a renovação” (p. 8), convertendo-se na segunda vida
do povo e penetrando “no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância” (p. 8).
Enquanto a festa oficial buscava “sancionar o regime em vigor, para fortificá-lo” (p. 8), no carnaval, “a
alienação desaparecia provisoriamente” (p. 9). Então, “todos eram iguais e reinava uma forma especial
de contato livre e familiar entre indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras
intransponíveis da sua condição, sua fortuna, seu emprego, idade e situação familiar” (p. 9).
Pode-se afirmar que, para o homem medieval, as festas populares, calcadas no humor da praça pública,
com o riso cômico dando o tom e submetendo à relativização toda tentativa de dogmatismo, eram o es-
paço onde se celebrava a liberdade e a possibilidade de apontar para outra concepção de mundo e outras
propostas de sociedade, mas onde qualquer novo valor não lograria tornar-se sacro ou vir a ser um ritual
definitivo, porque empedernido pela repetição, já que o riso faria dele um objeto de comicidade. O traço
que une o carnaval e todas as festas, alegorias e símbolos que o compõem – “as festas públicas carna-
valescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de
diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme” (p. 3 e 4) – diz respeito à unidade
de estilo que constitui cada uma das parcelas da cultura cômica popular, caracterizada pela concepção
carnavalesca de mundo: ou seja, todas têm como princípio de organização a crença na superação do
dogmatismo, a relativização da seriedade oficial e a defesa de uma transitoriedade essencial do mundo.
No mesmo instante em que uma organização do mundo é projetada, já se anuncia a sua corrosão: nada
estável, nada peremptório, nada dogmático. Só a liberdade de poder se movimentar e projetar mundos
e sociedades. Vida plena para o homem, livre de leis, ordens e princípios atemporais. A ele, a liberdade
de sonhar, de superar barreiras sociais, de sonhar e se deliciar com a aventura de estar vivo.
Seriam estes os principais traços carnavalescos e todos eles seriam retomados por Rabelais, carac-
terizando a sua obra e a sua estética especial. Para Bakhtin,
As imagens de Rabelais se distinguem por uma espécie de caráter ‘não-oficial’, indestrutível
e categórico, de tal modo que não há dogmatismo, autoridade, nem formalidade unilateral
que possa harmonizar-se com as imagens rabelaisianas, decididamente hostis a toda per-
feição definitiva, a toda estabilidade, a toda formalidade limitada, a toda operação e decisão
circunscritas ao domínio do pensamento e à concepção do mundo (p. 2).

É importante que se frise que, para o homem medieval, para Rabelais e também para Bakhtin, o
carnaval, com suas festas e ritos, suas licenças e ultrapassagens, sua liberdade em relação às normas
correntes da etiqueta e da decência, antes de pressupor uma defesa da deterioração do mundo e um
caos desregrado, é constituído pelo traço positivo de relativizar qualquer forma de criação cultural que
ambicione a cristalização e o despotismo, permitindo ao homem, não orientado teleologicamente para
um destino já traçado, a mobilidade de sonhar, propor mundos e rejuvenescer sempre: o carnaval, assim
como ele foi vivido pelo homem medieval, caracteriza-se ambiguamente pelo mundo que ternamente se
gasta e volta a nascer de si próprio, num mesmo e único movimento: onde há morte, há ressurreição;
onde há envelhecimento, há rejuvenescimento; onde há coroação, há destronamento. Tudo cheira a
renovação, renascimento, ressurreição e transitoriedade. A estabilidade, a imutabilidade e a perenida-
de não seriam mais do que as rédeas destinadas à captura e à manutenção, por meio da força, de um
conjunto de privilégios dos quais alguém se apropriou. Frise-se uma vez mais que a força corrosiva do
carnaval medieval é tomada como um elemento altamente positivo, que permite que os costumes não
se petrifiquem, tornando-se estereótipos modelares.
3 TRANSVERSALIDADE E PANO DE FUNDO
Dados os traços gerais do carnaval medieval que servirão como balizas para a análise a ser feita
adiante, trata-se de buscar delinear o segundo conceito importante para este estudo: o de transversali-
dade discursiva. Falar de discurso obriga o analista a levar em consideração, pelos menos, duas ordens
de problemas: os protagonistas do ato comunicativo, com tudo que decorre de sua inserção, devem ser
considerados no momento de precisar o efeito de sentido de um texto, caracterizado por uma incomple-
tude fundante; por isso, a relação existente entre o texto (o plano da expressão e do conteúdo: a forma)
e o contexto (em sentido lato: a situação comunicativa; em sentido estrito: as condições de produção)
deve ser vista como constitutiva, não se podendo lidar de maneira efetiva com o sentido, a não ser por
meio da consideração da dupla (ou tripla) face do discurso, simultaneamente, lingüístico e histórico.
Esse caminho de mão dupla que se tece entre o texto e o contexto permite, por um lado, desvendar
as razões de a materialidade discursiva ter sido produzida com uma forma e não outra e, por outro,
alcançar o lastro cultural que sustenta os enunciados realizados pelo enunciador: ou seja, se a materia-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 174


lidade discursiva é tomada em consideração (como deve ser), ela dá acesso à formatação imposta sobre
o mundo, ao mesmo tempo em que permite o acesso às razões sociais de tal forma de compreensão.
Considerar o texto como discurso permite que se vejam que formas de concepção de mundo são cons-
truídas, quais as razões de elas serem essas e não outras, que segmento social as produz e o que ele
ganha com isso.
Com relação ao conceito específico de transversalidade, um exemplo pode ajudar a precisar o efeito
de sentido que se pretende estipular para ele. Numa das tantas eleições municipais existentes, uma
candidata a vereadora dizia, seguidamente, quase que como em forma de slogan, em sua propaganda
radiofônica: Sou candidata a vereadora, sou mulher, mas pretendo fazer um bom trabalho: nada (e tudo)
a recriminar. Numa conversa com a candidata, em que se perguntava o que ela achava de as mulheres
participarem da vida política da cidade, ela afirmava, enfaticamente, que as mulheres reúnem as con-
dições necessárias para fazerem parte da administração pública das cidades. Contradição? Incoerência?
O que a teria levado ao uso do mas, causador do “problema”?
Como se disse, tudo a recriminar, afinal a candidata informa que quer ser vereadora (o que não era
necessário, já que ela falava num programa destinado a apresentar os candidatos a vereadores, mas
esse é apenas um pequeno deslize pragmático), que é mulher (o que não era necessário, já que a sua
voz identificava o seu gênero, mas esse também é apenas mais um deslize pragmático) e que pretende
fazer um bom trabalho, o que não deixa de ser elogiável (talvez ela também não devesse dizer isso, já
que se pressupõe que candidatos à vida pública devam buscar fazer um bom trabalho: é para isso que
são pagos): mas também, se isso não deveria ser dito, porque era irrelevante, o que deveria ser dito
então? Situação problemática.
No entanto, como se disse, nada a recriminar. Por quê? É evidente que a candidata sabe que o seu
interlocutor sabe que ela é candidata a vereadora, que é mulher e que, em tese, deverá buscar atender
à exigência de fazer um bom trabalho: estes são saberes óbvios. Então, para que dizer o que diz? Se
ela sabe que o seu interlocutor conhece as informações que está dando, por que, mesmo assim, julga
necessário explicitá-las? É aqui que o conceito de transversalidade, como se pretende que ele seja com-
preendido, pode ser demonstrado.
Se, pragmaticamente, a candidata tem tudo para ser recriminada, já que transgride a principal lei
conversacional (ser relevante), preenchendo lacunas do texto que seu interlocutor faria por si mesmo,
discursivamente, o seu enunciado é extremamente bem comportado (ambiguamente). Bem comportado,
antes, porque, não rompe com o imaginário do grupo social que sancionou os saberes de que os políticos
nem sempre têm feito um bom trabalho (havendo, pois, a necessidade de o candidato se comprometer
explicitamente com isso) e que mulheres, geralmente, são tidas como incompetentes para a adminis-
tração pública (crença que o enunciado ratifica, mas visa a apresentar a candidata como uma exceção).
Ironicamente, a candidata se elegeu e a maioria dos seus votos foram de mulheres.
Uma das maneiras de o enunciado da candidata ser analisado poderia ser a que vem a seguir: a) a
candidata julga que deve dizer que pretende ser vereadora; b) ao dizer que é candidata, ela possui um
saber que diz que a sociedade não vê com bons olhos candidatos a cargos públicos; c) então, ela conclui
que sua pretensão será passível de crítica; d) dizendo que pretende fazer um bom trabalho, por um
lado, ela ratifica o senso comum e a crença social existente e, por outro, com o uso do mas, ela nega
que o princípio seja aplicável a ela; e) a candidata julga que deve dizer que é mulher; f) ao afirmar isso,
ela possui um saber que diz que a sociedade pensa que mulher não é competente para ocupar cargos
públicos; g) ela conclui, então, que sua pretensão será passível de crítica; d) dizendo que pretende fazer
um bom trabalho, por um lado, ela ratifica a crença social sobre a mulher e, por outro, com o uso do
mas, ela nega que o princípio seja imputável a ela. Multivalente, o mas desempenha um papel múltiplo:
a) contradiz a conclusão lógica que se poderia tirar da primeira parte do enunciado: sou candidata a ve-
readora; b) nega a conclusão lógica que se poderia inferir da segunda parte do enunciado: sou mulher;
c) ratifica as crenças existentes sobre os políticos e a mulher na administração pública; d) nega que
essas crenças sejam aplicáveis à candidata específica que pretende ser vereadora. Talvez se pudesse
recriminar a candidata por ratificar o senso comum existente, mas, como afirma Bourdieu (1999), esse
conjunto de pressupostos imperativos “se alicerça num inconsciente ao mesmo tempo coletivo e indi-
vidual, traço incorporado de uma história coletiva e de uma história individual que (se) impõe a todos
os agentes, homens ou mulheres”, os quais, raramente, apercebem-se das crenças que, como pano de
fundo, comandam seus discursos.
Onde situar, na análise efetuada, o conceito de transversalidade? Pode-se perceber que só se faz possível
chegar a saber que os políticos em geral e as mulheres candidatas a cargos públicos são representados
de forma negativa (princípio geral ratificado pelo enunciado da candidata), quando se cruzam a parte a
do enunciado (sou candidata a vereadora) e a parte b (sou mulher) com a parte c (mas pretendo fazer
um bom trabalho). O pano de fundo que sustenta os discursos, via de regra, não é explicitado: ele é
tomado como sabido, como dominado pelos interlocutores. É isso que permite que os textos não tenham
que dizer tudo explicitamente, deixando em suspenso as informações que são de domínio comum. Por
outro lado, muitas vezes, a via de acesso para esse pano de fundo ou lastro cultural que sustenta os
discursos é possibilitado pelo cruzamento de partes do enunciado umas com as outras, como se fez acima
entre a parte a e b com a c. É a essa atividade de cruzamento entre as partes de um enunciado que se
está chamando de tranversalidade discursiva. Não são as proposições totalmente explícitas que levam

Proceedings XI International Bakhtin Conference 175


a, eventualmente, recriminar o comportamento machista da candidata, mas sim o cruzamento entre as
suas afirmações, já que esse trabalho permite alcançar o sistema de pressupostos imperativos daquilo
que ela diz. Está-se chamando de pano de fundo esse sistema de pressupostos; e se está chamando de
transversalidade o cruzamento de partes do enunciado entre si para alcançar os implícitos do discurso.
4 MALUF, PITTA: um jogo de espelhos
A charge ao lado, de autoria de Erthal, foi publicada na revista Época. Ela foi veiculada no momento
em que inúmeros escândalos eram constatados na administração da prefeitura do município de São Paulo,
especialmente relacionados ao prefeito anterior, Paulo Salim Maluf, e ao seu sucessor e apadrinhado,
Celso Pitta. De acordo com a esposa do prefeito atual, Nicéia Pitta, vários desmandos financeiros e ad-
ministrativos ocorriam na prefeitura. A charge se liga, pois, a essa temática e, para discursivizá-la, ela se
vale de expedientes discursivos que se buscará investigar a seguir, visando atender a um duplo objetivo:
a) fazer uma análise geral do texto, buscando elucidá-lo quanto a alguns de seus possíveis efeitos de
sentido; b) tendo por base a análise efetuada e, considerando a noção de transversalidade, determinar
que concepção orienta a revista em apreço, a mídia em geral, por decorrência, e, quem sabe, a cultura
brasileira com relação às festas populares.
Pode-se determinar, pelo menos, sete ocasiões em que o articulista se vale da citação de outros
discursos para produzir a charge, cujo efeito de sentido, em linhas gerais, é uma crítica mordaz e con-
tundente às atitudes político-administrativas dos prefeitos em foco. Uma delas aparece indicada no uso
que o articulista faz da capa, da coroa, do espelho, da imagem de Pitta e do enunciado Existe alguém
mais Maluf do que eu? Os cinco indícios empurram o leitor para um texto anterior em que todos eles se
fazem presentes: a história infantil A Branca de Neve e os Sete Anões. Assuma-se, para a análise, que
a grande maioria dos leitores têm conhecimento da história e que, por isso, não é necessário recontá-
la. Sabe-se que o enunciado Existe alguém mais bela do que eu (ao qual remete o enunciado verbal
da charge) era dito pela rainha malvada, madrasta da Branca de Neve, cuja pergunta, insistente, tinha
como objetivo verificar se havia alguém que a superava em beleza, ao que o espelho costumeiramente
respondia: Branca de Neve. Ao acionar a história infantil e colocar na boca do ex-prefeito a pergunta feita
pela rainha, as características dela passam a ser aplicadas a Maluf, que deve passar a ser visto como
vaidoso, invejoso, egocêntrico, mau, ganancioso e tirano (traços atribuídos na história a ela): alguém
que não hesita em matar, se for preciso, para poder se mirar no espelho e sentir-se único e insuperável.
Contrariamente, porém, ao motivo que levava a rainha madrasta a invejar e querer a morte da Branca
de Neve (a beleza), no caso de Maluf, o desejo de ser o único, porque insuperável, refere-se a outros
motivos, nesse caso, todos aqueles que podem ser associados à figura da rainha malvada. Deve-se aten-
tar para o fato de que deve haver alguma razão para o mais usado pelo ex-prefeito em seu enunciado:
Como Mais Maluf deve ser traduzido? Quais os enunciados lhe são equivalentes? A resposta parece óbvia:
todos aqueles que permitam a retirada de Maluf do enunciado e coloquem em seu lugar um dos traços
aplicáveis à madrasta de Branca de Neve. A pergunta poderia equivaler a algo como existe alguém mais
malvado (invejoso, ganancioso, corrupto, tirano) do que eu, cuja resposta seria Celso Pitta é mais x do
que você. Importa, também, considerar que, se, no conto, a resposta mostra a imagem da Branca de
Neve, na charge, ela apresenta a de Celso Pitta, assim como Maluf, afetado por inúmeras denúncias de
corrupção e falcatruas. Portanto, qualquer característica da rainha malvada que pode ser associada ao
ex-prefeito deve ser, com mais propriedade, aplicada ao prefeito Pitta.
A segunda ocorrência de citação de voz pode ser inferida a partir do elemento indicial materializado
pela capa de Maluf. Ela, se, por um lado, remete à rainha malvada da história infantil, por outro, faz
referência às capas usadas por vampiros, em especial, pelo conde Drácula, donde o leitor deverá de-
duzir que os traços atribuídos a esse mito também devem ser impostos sobre o personagem em foco.
Da mesma forma que aqueles seres míticos alimentar-se-iam de sangue, neste caso, entendido como
o líquido vital que percorre as veias e artérias dos animais, levando oxigênio e alimento para cada uma
das células componentes do corpo, Maluf o faria, mas, no seu caso, sangue deve ser lido sob o viés da
corrupção e do mau uso do dinheiro público: ele seria uma sanguessuga, que se alimenta do trabalho e
da renda alheia, dos impostos pagos pelos que nada mais esperam que o dinheiro arrecadado seja apli-
cado em obras que atendam ao bem comum desejado por uma sociedade. A morte, a desumanidade, a
degradação, a deterioração e a amoralidade geralmente características destes seres noturnos, parasitas,
sanguessugas e exploradores, deveriam ser, de acordo com a charge, imputáveis a Maluf, um vampiro da
sociedade, um parasita que se alimenta do suor e do sangue alheios. Saliente-se que, ao mostrar Pitta
como mais Maluf do que o próprio Maluf, o espelho afirma que qualquer traço negativo pertencente aos
vampiros deve ser atribuído, ainda com mais ênfase, ao sucessor de Maluf.
A terceira voz detectável na charge se refere ao uso do espelho, neste caso, remetendo ao mito
de Narciso. Narciso, pastor muito belo, julgava-se acima de todas as ninfas, não achando que alguma
pudesse merecê-lo. Uma das deusas do Olimpo, ao ver a sua ninfa protegida ser recusada, lançou um
castigo sobre Narciso. Ele, ao ir à fonte beber água, enamorou-se de sua imagem, ficando prostrado
junto ao poço e definhou até morrer. No poço, encontra-se o efeito de sentido do espelho que permite
ao homem ver a si mesmo, obtendo uma complementação que o seu interlocutor não conseguiria, ver-
balmente, dar, permitindo-lhe uma medida comparativa que pode levá-lo a se julgar melhor que outros.
Em Narciso, está materializado o efeito de sentido da vaidade, da arrogância e do desprezo para com os
outros. Ele, envaidecido pela beleza que possuía, arrogantemente imaginava que ninguém estivesse à

Proceedings XI International Bakhtin Conference 176


sua altura, desprezando as ninfas que o buscavam. Valendo-se para a construção da charge do indício
do espelho e ao remeter, intertextualmente, em decorrência, o seu leitor para o mito de Narciso, o autor
do texto estabelece uma terceira forma de tornar inteligível o termo Maluf do enunciado verbal, neste
caso, abrindo as possibilidades de o mesmo ser traduzido por arrogante, vaidoso e egocêntrico. Maluf
seria uma pessoa que, mesmo que por motivos não-ortodoxos, não abriria mão de pretender ser melhor
do que qualquer outro, ou seja, mesmo se o critério de comparação for o de quem mais fez falcatruas,
a vaidade do ex-prefeito seria tanta, que, mesmo aí, pretenderia não ter alguém que pudesse competir
com ele. Ironicamente, enquanto os motivos de disputa entre as pessoas são, em geral, mais éticos,
a disputa entre Maluf e Pitta seria construída em torno de saber qual deles teria sido mais corrupto e
produtor de desmandos com os recursos públicos. E, novamente, como a resposta do espelho vem por
meio da apresentação de Pitta vestido como Branca de Neve, deve-se inferir que todos os traços atri-
buíveis a Narciso, de natureza disfórica, devem ser atribuídos em medida superior a Pitta, quando ele
é comparado a Maluf.
A quarta voz que se pode detectar no fio discursivo da charge se relaciona com o fato de Celso Pitta
aparecer vestido com as roupas de Branca de Neve. Se, por um lado, este fato empurra o leitor para uma
relação intertextual com a história infantil estudada acima, por outro, ele busca ativar o conhecimento
enciclopédico do leitor, relativo a uma outra narrativa infantil: O Lobo e o Cordeiro. De acordo com a
narrativa, um lobo, tendo fracassado em inúmeras tentativas de capturar um cordeiro para a sua refeição,
encontrou uma pele deste tipo de animal e a usou como disfarce, para poder passar desapercebido e se
aproximar do bicho esperto que resistia aos seus ataques. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à rainha
malvada da história da Branca de Neve (muito bonita, embora, sob a sua aparência se escondesse alguém
muito invejoso e malvado), ao ex-prefeito Paulo Maluf, que se dizia muito preocupado com os destinos de
São Paulo, mas se valia de seu cargo para enriquecer ilicitamente, e ao prefeito Celso Pitta, que, a partir
de negociatas espúrias com os financiadores de sua campanha, tinha dívidas que não poderia pagar e
bens que não poderia ter acumulado. O traço principal que parece dever ser atribuído ao lobo da fábula é
o fato de ele ser traiçoeiro, mostrando uma imagem, quando, na verdade, possui outra: traição, ludíbrio,
falsidade, enganação seriam os traços imputáveis, portanto, ao lobo, e, por decorrência, a Maluf e Pitta
(“o homem é o lobo do próprio homem”, diz o ditado), ambos querendo se mostrar publicamente como
homens de bem, preocupados com os destinos de uma cidade, com a situação geral de uma população,
quando nada mais faziam do que se locupletar com os recursos pagos pela população para serem usados
em saúde, educação, segurança, dentre outras finalidades coletivas. Aqui, o enunciado verbal proferido
por Maluf e a resposta do espelho devem ser lidos no diapasão deste processo de citação, atribuindo a
ele e a Pitta os traços que possam ser aplicados ao lobo vestido em pele de cordeiro para enganar a sua
presa, que se valeu da estratégia de fazer se confundirem o ser e o parecer.
A quinta citação detectável na materialidade da charge, também relacionado com a coroa, tem a ver
com as Histórias das Mil e Uma Noites, de Sherazade para o príncipe que a tinha tomado por esposa. Uma
das suas histórias relatava os eventos acontecidos com um personagem chamado Ali Babá, na história de
Ali Babá e os quarenta ladrões. Estes ladrões, por meio de assaltos, roubos e saques, tinham acumulado
enorme quantidade de riquezas numa gruta, cuja forma de abrir era dizendo Abre-te sésamo. Sabendo
disso, Ali Babá apossa-se das riquezas e se livra dos ladrões, queimando-os em barris de óleo fervente.
Os ladrões tinham um chefe, chamado o Rei dos Ladrões. Neste caso, a tradução para o enunciado ver-
bal da charge parece óbvia: para a pergunta, que seria existe alguém mais ladrão do que eu, o espelho
responderia: Sim, existe, Celso Pitta é mais ladrão. Contrariamente, portanto, ao motivo da disputa
entre a rainha malvada e a Branca de Neve, um motivo até bastante prosaico frente ao que envolve os
dois homens públicos, neles, trata-se de saber qual dos dois é o mais corrupto e produtor de desvios de
recursos públicos. Trata-se de saber qual deles é o mais ladrão. Dado o motivo geral dos escândalos que
envolveram os dois políticos, o efeito de sentido decorrente dessa ocorrência de intertextualidade parece
ser o que mais se aproxima do que seria, aparentemente, a intencionalidade principal da charge.
A estas alturas, pode-se concluir que, qualquer traço, negativo, que possa ser atribuído à madrasta de
Branca de Neve, a Narciso, a vampiros, a lobos e a ladrões poderá ser visto como substituto para o termo
Maluf do enunciado verbal, devendo sempre a pergunta receber como resposta que Pitta é, em relação a
cada um deles, mais do que Maluf, ratificação do velho chavão popular que o discípulo supera o mestre
(mais uma ocorrência intertextual, que parece poder ser deixada de lado, sem maiores comentários).
5 ESSE ESPELHO
A sexta ocorrência de voz citada (aqui, já se pode começar a pensar numa transição entre a análise
do texto e a determinação da concepção existente com relação às festas populares como o carnaval)
pode ser inferida a partir do uso que a charge faz dos indícios da coroa e da máscara (esta, consistente
com a leitura do “lobo em pele de cordeiro”). Um dos muitos lugares onde a coroa e a máscara são
encontradas participando de um projeto de significação é a maior festa popular brasileira: o carnaval.
Seja na figura do Rei Momo, representação do rei bufo, mera peça decorativa, totalmente alienado ao
seu mundo e sem conhecimento do que acontece na vida prática ao seu redor (deve-se perceber que
este sentido medieval se perdeu e que o rei Momo de hoje não representa as cerimônias medievais de
coroação e destronamento: se, naquele momento, o rei bufo era visto como a estabilidade e a estagna-
ção, devendo ser deposto para que o mundo pudesse renascer, hoje é o rei Momo que se tornou inútil,
figura decorativa, sem poder de despertar o humor da praça pública e o riso cômico rejuvenescedor),
ou da máscara, recurso para a representação de uma personagem não coincidente com os traços fisio-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 177


nômicos gerais do ator, esses símbolos foram, para o homem medieval, duas das principais formas de
questionamento dos poderes instituídos. Na coroa e nas cerimônias de destronamento do rei bufão, o
homem medieval encontrava o meio de se posicionar contra o poder econômico e político representado
pelo rei, que, muitas vezes, limitava-se a criar impostos para fazer frente aos gastos de uma corte frívola
que tinha como única finalidade gastar os recursos para os quais em nada tinha contribuído. No uso da
máscara e no fato de ela permitir que o usuário não possa ser identificado (e, por decorrência, punido),
o homem medieval achava as brechas para que o humor corrosivo e questionador pudesse submeter
um tema à apreciação da praça pública e ao riso cômico. Por meio dela, todas as figuras poderiam ser
submetidas à sátira, inclusive as religiosas, que, por estarem do lado do poder feudal, em muito contri-
buíam para a sua espoliação.
Faz-se possível pleitear que esta última voz funciona de uma maneira diferente do que as anteriores:
enquanto aquelas visavam a circunscrever os prováveis efeitos de sentido que o leitor deveria atribuir
ao enunciado verbal (e aos personagens que o usam, por decorrência), neste caso, ela tem a finalidade
de caracterizar tais atitudes, comportamentos e gestos, bem como aos políticos postos em foco, qualifi-
cando a ambos. Se as citações iniciais buscavam sobredeterminar os personagens e suas atitudes com
determinados efeitos de sentido e não outros, a sexta funciona como uma forma de qualificar essas
atitudes e os personagens que as põem em prática. No primeiro caso, a citação visa a caracterizar os
personagens; no segundo, tem por meta qualificar tais traços: qualificação da tradução; apreciação do
efeito de sentido; juízo de valor sobre atitudes e gestos: citação tomada como parâmetro de avaliação
para efeitos de sentido produzidos por citações. Na máscara que remete ao carnaval, pode-se ouvir uma
voz que, representante da posição do autor da charge, afirma que os atos praticados e as formas pessoais
de comportamento dos dois políticos são carnavalescos: nela, pode-se ouvir uma voz que diz: o que Maluf
e Pitta praticaram é como o carnaval: a bagunça, o caos, a desorganização, a destruição do mundo.
Aplique-se o conceito de transversalidade desenvolvido acima. De um lado, poder-se-ia colocar o
enunciado Existe alguém mais vaidoso do que eu? (onde se pode substituir vaidoso, por qualquer qualifi-
cativo (egocêntrico, ganancioso, malvado, tirano, vaidoso, sanguessuga, explorador, parasita, traiçoeiro)
atribuível aos personagens com que Maluf é comparado) e a resposta do espelho, complementando-o e
afirmando que Pitta é (em relação a qualquer um desses qualificativos) mais do que Maluf; do outro lado,
ter-se-ia o enunciado avaliativo do espelho, qualificando a tradução do enunciado inicial e a sua própria
resposta como carnaval. Chamar algo de carnaval não é necessariamente desqualificá-lo, pelo menos,
não enquanto aquilo que é um dos efeitos de sentido do termo: nome de uma festa popular nacional.
Dizer que algo é carnaval não obriga a lhe atribuir traços positivos ou negativos: isso só se faz possível,
a partir do momento em que se cruzam (como se fez acima) partes do enunciado entre si, fazendo-se
possível deduzir, por um exercício de lógica, o que se pensa sobre esta festa. O raciocínio, então, deveria
ser feito como segue: se Maluf é traiçoeiro e isso é qualificado como carnaval, para o locutor, essa festa
deve ter como um de seus ingredientes a traição, e assim para todos os efeitos de sentido.
De acordo com Ducrot (1987), nos raciocínios conclusivos, o enunciador produz B e dele conclui C,
amparado num enunciado implícito A, que lhe dá a sustentação para tirar as conseqüências que apresenta.
Se o enunciador diz Maluf é vaidoso (B) e conclui isso é um verdadeiro carnaval (C), há que se buscar,
por meio da transversalidade ou do cruzamento desses enunciados, um outro, sustentáculo, que permita
que essa forma de dedução possa ser realizada, encontrando-se, então, o carnaval é uma festa com
espaço para a vaidade (A). Acaba-se, como se vê, por ter acesso ao silogismo que sustenta a “reflexão”
efetuada pelo produtor do texto que poderia, esquematicamente, ser apresentada como segue:
A – premissa maior – O carnaval é uma festa com espaço para a vaidade;
B – premissa menor – Maluf é vaidoso;
C – conclusão – a atitude de Maluf pode ser caracterizada como carnavalesca;
D – segunda premissa menor – Pitta é mais vaidoso do que Maluf;
E – segunda conclusão – a atitude de Pita também pode ser caracterizada como carnavalesca.
Mudando-se apenas o qualificativo atribuído ao personagem de acordo com a citação de voz realiza-
da, o raciocínio silogístico ensaiado pode ser aplicado recorrentemente, sem maiores problemas. Se a
vaidade, a corrupção, a traição, o logro, o roubo, a falcatrua, a bagunça e a desorganização de Maluf (e
de Pitta) podem ser qualificados como carnavalescos, deve-se poder concluir que tudo isso tenha a ver
com o carnaval, ou seja, pode-se deduzir que o carnaval combina com cada uma dessas atitudes: logo,
ele é, para o autor da charge, um espaço para a traição, o logro e a vaidade, dentre outros.
Sabe-se que o senso comum afirma que o carnaval é uma festa caracterizada pela indecência, libertina-
gem, liberação das paixões, sensualidade e erotismo: enfim, pela degradação dos valores morais de uma
sociedade (a novidade, na charge, é a qualificação do roubo como algo carnavalesco, já que este traço
parece não fazer parte normalmente dos qualificativos que se atribuem à festa). É de se imaginar que,
se o autor da charge tivesse que se pronunciar sobre os festejos momescos, possivelmente, ele, até para
ser politicamente correto, diria que o carnaval é uma festa popular, uma forma de congraçamento entre
diferentes segmentos sociais, um lugar onde se celebra a superação das barreiras sociais, uma ocasião
para que o que na vida se mantém separado possa, democraticamente, aproximar-se, num esforço para
a superação das diferenças. No entanto, ao qualificar, na transversalidade discursiva utilizada, as atitu-
des administrativas de Maluf e Pitta como carnavalescas, o autor da charge se denuncia (e à mídia, e à
cultura brasileira), mostrando que o seu texto (tal qual ato falho, desconcertante e infalível), mais do que

Proceedings XI International Bakhtin Conference 178


falar sobre o objeto que está sendo discursivizado, fala sobre o sujeito que o produz, permitindo acesso
ao universo cultural que o circunda e açambarca em seu conjunto de valores, crenças e concepções de
mundo. O espelho, que pretensamente diz a verdade mostrando a realidade sem deformações, irônica
e ladinamente, apesar da possível tentativa de controle por parte do autor do texto, parece ter voltado
sua face em direção ao autor da charge e ao horizonte que o açambarca, realizando um trabalho de au-
toria que, como quer Bakhtin (1992), é constituído por um excedente exotópico de visão, mostrando o
que o objeto discursivizado não conseguiria ver por si mesmo. O espelho, destinado a ser um meio para
que o autor de pronunciasse sobre uma certa problemática, cumpriu satisfatoriamente sua função, mas
acresceu a ela uma outra, inesperada e denunciativa: gratificante: para o autor do texto (para a mídia,
já que a revista não censurou a charge, e para a cultura brasileira em geral, que, possivelmente lerá a
charge sem estranhá-la), o carnaval, embora nos enunciados explícitos que o discursivizam seja dado
como uma festa eufórica, quando usado como parâmetro transversal de valorização, aparece pintado
com cores negativas e desvalorizadoras.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo pôs-se como razão de ser dois objetivos: apresentar uma análise possível para a charge
veiculada pela revista Época (o que se espera ter conseguido) com relação aos desmandos administrativos
de Paulo Maluf e Celso Pitta no município de São Paulo e inferir, a partir daí, a forma de compreensão
que caracteriza a sociedade brasileira no tocante a festas populares como o carnaval. Pensa-se, mesmo
correndo o risco de generalizações apressadas, perigo sobre o qual Bachelard (1996) não se cansa de
alertar, que seja possível ampliar a área de abrangência da reflexão sobre os festejos momescos efe-
tuada pela charge para a revista que a veiculou, para o seu autor e para a forma de compreensão que
caracteriza a sociedade brasileira. Por outro lado, pretende-se produzir ainda uma outra generalização,
que se faz, porém, em outro sentido: se há uma forma depreciativa de compreensão com relação ao
carnaval, deve-se poder pensar que isso se aplica às demais festas populares. Como já se frisou, todas
elas podem ser generalizações apressadas; em todo caso, ficam como hipóteses que podem ser devi-
damente testadas e ratificadas.
Paralelamente aos objetivos acima, um outro, inconfesso, era perseguido: a busca de clareza com
relação ao conceito de transversalidade, de percepção do seu funcionamento e de verificação do poder
de explanação que ele possui. Imagina-se que isso tenha podido ser realizado a contento. Espera-se
que isso tenha sido alcançado. Ele é um conceito que surge como um instrumento de um relativo poder
explanatório em face de certos objetos empíricos.
Por fim, e para concluir, mencione-se rapidamente a sétima, e última, citação sobre o qual a charge,
de forma crucial, parece estar ancorada: a sempiterna fábula A Cigarra e a Formiga. Seja porque Paulo
Maluf e Celso Pitta se apropriaram indevidamente de recursos gerados por outros, quando deviam, se
quisessem enriquecer, fazerem-no por conta própria, individualmente, seja porque a charge se coloca
positivamente contra o carnaval (e, por que não dizer, contra as festas em geral), porque ele seria carac-
terizado como o espaço destinado ao lazer e à “perda de tempo”, a argumentação é construída no sentido
de chamar a cada um para a sua obrigação de trabalhar e fazer frente, por si mesmo, às necessidades
práticas e concretas da sua vida cotidiana: um imaginário que chama para o trabalho, para o acúmulo
de bens e para a iniciativa individual: uma mentalidade capitalista, portanto. Nada a estranhar.
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. (Trad.
Estela S. Abreu). 2.ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, 314p.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. (Trad. Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira). São Paulo: Martins
Fontes, 1992, 421p.
_____.A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. (Trad. Yara Frateschi
Vieira). 2.ed. São Paulo: Hucitec; Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1993, 419p.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. (Trad. Maria Helena Kühner). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999,
158p.
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. (Rev. Trad. Eduardo Guimarães). Campinas: Pontes, 1987, 222p.
ECO, Umberto. Lector in fabula. (Trad. Attílio Cancian). São Paulo: Perspectiva, 1986, 219p.
_____. O signo de três. (Trad. Silvana Garcia). São Paulo: Perspectiva, 1991, 263p.
_____. A obra aberta. (Trad. Giovanni Cutolo). 8.ed. São Paulo: Perspectiva, 1997, 284p.
_____. Interpretação e superinterpretação. (Trad. MF). 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 184p.
FARACO, Carlos Alberto, TEZZA, Cristóvão & CASTRO, Gilberto. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR,
1996, 365p.
_____ (et.al.). Uma introdução a Bakhtin. Curitiba: Haitier, 1988, 105p.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. (Trad. Luiz Felipe Baeta Neves). Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1986, 239p.
FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana. (Trad. Álvaro Cabral). 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966,
205p.
POSSENTI, Sirio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993, 218p.
_____. Sobre as noções de efeito de sentido. In: Cadernos da FFC. nº. 2. v.6. p. 1 a 11, Marília: Editora da UNESP,
1997.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 179


TEXTOS-CHAVE: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. (Trad. Maria
Ermantina Galvão Gomes Pereira). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
NOMES-CHAVE: Mikhail Bakhtin, François Rabelais.
PALAVRAS-CHAVE: Carnaval, Mídia, Transversalidade, Discurso, Lastro Cul-
tural.
BIOGRAFIA RESUMIDA: O autor do texto nasceu em Luzerna, Santa Catarina,
em 04 de novembro de 1957. Cursou Letras, na Unioeste (Universidade Estadual
do Oeste do Paraná), no campus de Marechal Cândido Rondon. Cursou o mestrado
na UFPR (Universidade Federal do Paraná), no período de 1994 a 1996, analisando
o discurso da Teologia da Libertação. Cursou o doutorado na Unesp (Universidade
Estadual Paulista), campus de Araraquara, no período de 03/1999 a 02/2003, pes-
quisando aspectos ligados à subjetividade discursiva e à história do cotidiano.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 180


Da polifonia de Bakhtin à heterogeneidade discursiva
na Análise do Discurso

Ercília Ana Cazarin1

RESUMO
Neste texto, a partir da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), examino como Bakhtin, ao
tratar do discurso citado, aborda a questão da polifonia e do descentramento do sujeito. Segundo o autor,
esse discurso é um fenômeno lingüístico capaz de explicitar a transmissão das enunciações de outrem
e aponta para a integração dessas enunciações, num contexto monológico coerente. Em um segundo
movimento textual, tendo como aporte teórico a Escola francesa da Análise de Discurso, desloco a no-
ção de polifonia de Bakhtin para a de heterogeneidade discursiva. O corpus em análise é formado por
seqüências discursivas de referência (sdr(s)) do discurso de Lula (DL), marcadas por diferentes formas
de dizer o discurso citado (relatado). Na análise do funcionamento discursivo dessas sdr(s), é possível
evidenciar enunciados polifônicos, entendidos como discursivamente heterogêneos. Mais especificamente,
trato do discurso relatado (segundo Bakhtin: discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre),
procurando demonstrar que, para além da polifonia do discurso e do descentramento do sujeito, no
funcionamento discursivo dessas sdr(s), está posto um discurso que estabelece o confronto entre duas
formações discursivas (FDs) politicamente antagônicas. Desloca-se, portanto, a noção de polifonia para
a de heterogeneidade discursiva - discurso polifônico passa a ser tratado como discurso heterogêneo,
no qual diferentes posições de sujeito estabelecem uma interlocução capaz de demonstrar que discursos
se constroem sobre discursos, num jogo polifônico de vozes marcadas pela historicidade, uma vez que
o dizer não acontece separado de lugares sociais.

A partir da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1990)2, procuro demonstrar como Bakhtin trata
a questão da polifonia e do descentramento do sujeito e em um segundo movimento textual, tendo como
aporte teórico a Escola francesa da Análise de Discurso, desloco a noção de polifonia para a de hetero-
geneidade discursiva. Embora a idéia de polifonia apareça mais fortemente nos estudos sobre a criação
poética de Dostoiévski (1929)3, ligados à criação literária, meu interesse é refletir sobre essa questão a
partir do tratamento que lhe dá Bakhtin quando trata da enunciação, em especial, quando trata do discurso
citado; acredito que aí a questão da polifonia, descentrando o sujeito é igualmente posta. A preocupação
de meu texto é, portanto, com uma perspectiva que recai sobre os estudos da linguagem.
No centro das reflexões de Bakhtin estão a enunciação, o dialogismo e a polifonia. O autor, ao tratar
da enunciação (1990:109-123), critica a reflexão lingüística até então realizada pelo fato de a mesma não
ousar ir além dos problemas constitutivos da “enunciação monológica”. Defende o estudo da linguagem
a partir da enunciação, para que nela se incorpore sua realidade concreta de acontecimento histórico,
intersubjetivo e, portanto, dialógico. A enunciação é apresentada como um produto de natureza social,
determinada pelas condições sociais reais mais imediatas e entendida como resultado da interação entre
indivíduos socialmente organizados. Nesta perspectiva, a fala não é um fato individual, pois o conteúdo
de sua significação é determinado por condições “extraorgânicas” e, acima de tudo, pelos participantes
da interlocução.
Na concepção de dialogia como constitutiva da linguagem, a comunicação ultrapassa a simples
transmissão de mensagens, assumindo, então, o sentido antropológico de processo pelo qual o homem
se constitui enquanto consciência no auto-reconhecimento, pelo reconhecimento do outro, numa rela-
ção de alteridade - o eu se constitui pelo reconhecimento do tu. A comunicação, enquanto relação de
alteridade, é o núcleo básico da teoria do dialogismo que concebe um sujeito constituído numa relação
de intersubjetividade. Nesta concepção o “outro” desempenha um papel fundamental, pois a palavra

1 Professora do DELAC / UNIJUI. Mestre em Estudos da Linguagem – Área: Teorias do Texto e do Discurso – UFRGS; doutoranda na mesma área e Uni-
versidade.
2 O livro “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (marxizm i filosofia iazyka. Osnovnye problemy v nauke o iazyke) foi publicado em Leningrado pela Ed. Res-
saca, em 1929, figurando como autor VOLOSHINOV, Valentin Nikolaevitch, amigo e colega de Bakhtin.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 181


não é monológica, mas plurivalente e o dialogismo é uma condição constitutiva do sentido. Assim, em
Bakhtin, a intersubjetividade precede a subjetividade, pois, o sujeito se constitui, enquanto consciência,
no reconhecimento do outro (diferente do eu).
Bakhtin (1990:140-41), ao refletir sobre a enunciação e os problemas sintáticos, afirmava que os
lingüistas, de então, sentiam-se mais à vontade tratando apenas de problemas relacionados ao interior
da enunciação, quer fossem os morfológicos, quer fossem os sintáticos; os lingüistas deixavam, portanto,
de lado os problemas relacionados com o todo da enunciação. No entanto, escreve ele, o discurso de
“um” é impregnado pela palavra do “outro” que naturalmente é alterada em seu sentido pelos efeitos da
compreensão e da avaliação que assumem. As palavras do “outro” são tratadas de maneiras diversas:
fundem-se as vozes; ignora-se a origem; servem para reforçar idéias do “um”; servem para contrapor
ou refutar idéias e, assim por diante. Nessa passagem, acredito ser possível ler para além da polifonia,
também o descentramento do sujeito.
O autor aponta para o discurso citado como um fenômeno lingüístico capaz de explicitar a transmissão
das enunciações de outrem e proporcionar a integração dessas enunciações, enquanto enunciações de
outrem, num contexto monológico coerente (1990:143). Três são as formas de discurso citado: discurso
direto; discurso indireto; discurso indireto livre4(1990:155-196). Segundo Bakhtin, o discurso citado é
visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, independente na origem, dotada de uma
construção completa, e situada fora do contexto narrativo; no entanto, esse discurso é trazido para o
contexto narrativo no todo ou em parte.
Segundo ele, a sociedade escolhe e gramaticaliza apenas os elementos da apreensão ativa, aprecia-
tiva da enunciação de outrem. Para além disso, na enunciação, são levados em conta os interlocutores
aos quais estão sendo transmitidas as enunciações citadas, pois aquele que apreende a enunciação de
outrem também é um ser carregado de palavras interiores - a palavra vai à palavra.
Diante do até aqui posto, entendo que a polifonia e o descentramento do sujeito, na obra de Bakhtin,
não se restringem ao campo dos estudos literários, pois podem ser compreendidas desde o estudo da
enunciação e de seus desdobramentos. A história da palavra na palavra - é a perspectiva que evidencia
que toda a atividade verbal consiste em distribuir a palavra de outrem. Parafraseando o autor: a palavra
não é um objeto, mas um meio constantemente ativo e mutável da comunicação dialógica. Sua vida
acontece na passagem de boca em boca, de um contexto para outro. As relações dialógicas pertencem
ao campo do discurso e são irredutíveis aos elementos do sistema da língua. O discurso é a língua em
sua integridade concreta e viva, e não a língua como objeto específico da lingüística. Um membro de
um grupo falante nunca encontra previamente a palavra como uma palavra neutra da língua, isenta de
aspirações e avaliações de outros, ou despovoada de vozes de outros - a palavra ele a recebe da voz
de outro e repleta da voz do outro. A concepção de um discurso monológico é uma ilusão, pois mascara
o dialogismo subjacente - o discurso é sempre um discurso citado e o texto se constrói como um “mo-
saico” de citações, repleto de vozes sociais e recoberto de valores, estabelecendo um jogo polifônico de
vozes.
A partir do afirmado, reitero o entendimento de que, na teoria bakhtiniana, estão presentes a polifonia
e descentramento do sujeito, mas que também nela se pode compreender um embate entre relações de
força que se estabelecem e podem ser apreendidas no funcionamento do discurso. Essas contribuições
teóricas são importantes para os estudos contemporâneos da linguagem, em especial, para os da área
do texto e do discurso5.
Bakhtin contribuiu com a teoria da Escola francesa da Análise do Discurso, em especial, para a con-
3 Boukharaeva (1997) salienta que, em 1929, a obra publicada foi “Os problemas da criação de Dostoiévski” e que, em 1963, ocorreu a publicação de sua
2ª ed. sob o título “Os problemas da poética de Dostoiévski”. Foi, então, segundo ela, em 1929, que Bakhtin formulou a noção de polifonia.
4 O discurso direto é aquele geralmente utilizado como sendo a citação textual de um discurso de outrem; o indireto, ao contrário, faz um tipo de paráfrase
do discurso de outrem - passa da forma de discurso a conteúdo ou então é transposto na proposição principal como um comentário do verbo dicendi (op.cit.
p.159); no primeiro caso, estão presentes as marcas formais e os verbos dicendi - é duplamente marcado. Seu efeito é que, ao reiterar o discurso do outro, o
mantenho à distância ou nele me amparo, independente de manter ou não fidelidade a esse discurso; no segundo, ao parafrasear o discurso do outro, realizo
um recorte interpretativo que também não necessariamente assegura a fidelidade do discurso outro. Neste tipo de discurso, também, aparecem marcas
formais: verbo dicendi ou conjunção integrante - também é formalmente marcado. Bakhtin salienta que as palavras e expressões de outrem, integradas no
discurso indireto e percebidas na sua especificidade, em especial quando postas em aspas, sofrem um estranhamento que se dá na direção que convém às
necessidades do autor. Já, o discurso indireto livre, é resultado da inter-relação completamente nova entre o discurso narrativo e o discurso citado. Não há
marcas formais que atestem o discurso outro; para tornar evidente essa presença de muitas vozes, é preciso desdobrar o enunciado. Desprovido de marcas
lingüísticas claras, apresenta-se como pertencendo apenas ao locutor, mas, na verdade, sua construção é formada por dois enunciados que se juntam sem
deixar marcas lingüísticas, no dizer de (Authier,1982:115) - sem nenhuma fronteira formal a separá-los.
5 É, por exemplo, nele que Ducrot “busca” fundamentos para a Teoria Polifônica da Enunciação, ainda que silenciando os estudos de Bakhtin sobre a linguagem
ordinária, em especial, no que se refere ao discurso citado. Em termos da significação da linguagem ordinária, Ducrot teve o mérito de introduzir a teoria
de Bakhtin nos estudos lingüísticos, de forma efetiva e sistemática, mas baseou-se, no meu modo de interpretar, apenas nos estudos que Bakhtin realizou
sobre a obra de Dostoiévski. Silenciou sobre os estudos realizados em Marxismo e Filosofia da Linguagem, obra em que, como já registrado, Bakhtin trata
da enunciação e do discurso de outrem e contempla a teoria da polifonia, aplicada à linguagem ordinária, através do estudo do discurso direto, indireto e
indireto livre, concomitante ao trabalho de análise de textos literários. Não foi este, no entanto, o entendimento de Ducrot que salienta o fato de que na
polifonia de Bakhtin, há toda uma categoria de textos e, notadamente de textos literários, nos quais é necessário reconhecer que várias vozes falam, simul-
taneamente, sem que uma dentre elas seja preponderante e julgue as outras, mas que a referida polifonia apenas dá conta da análise de textos literários,
não questionando, portanto, a unicidade do sujeito quanto a enunciados lingüísticos, como se pode ler a seguir: ...esta teoria de Bakhtin, segundo meu
conhecimento, sempre foi aplicada a textos, ou seja, a seqüências de enunciados, jamais aos enunciados de que estes textos são constituídos. De modo que
ela não chegou a colocar em dúvida o postulado segundo o qual um enunciado isolado faz ouvir uma única voz (1987:161). Ao criticar a teoria da unicidade
do sujeito da enunciação - um enunciado - um sujeito, Ducrot afirma que a mesma entende que há um ser único autor do enunciado e responsável pelo
que é dito no mesmo, tendo como principais propriedades: ser dotado de toda a atividade psico-fisiológica necessária à produção do enunciado; ser o autor
e a origem dos atos ilocutórios realizados na produção do enunciado; ser designado em um enunciado pelas marcas da 1ª pessoa. São justamente essas
propriedades de sujeito único que Ducrot quer evidenciar que não se sustentam. Para tanto, afirma que a tese da unicidade, em enunciados, mesmo simples,
empregados na linguagem ordinária, apresenta dificuldade. Inaugura sua concepção de polifonia, afirmando que quando definiu a noção de enunciação tal
como a utiliza enquanto lingüista que descreve a linguagem, recusou-se explicitamente, de aí introduzir a idéia de um produtor da fala, dizendo-se neutro
em relação a tal idéia. Mas, escreve ele, que não se dá o mesmo com esta descrição da enunciação que é constitutiva do sentido dos enunciados - a que é
constitutiva do que o enunciado quer dizer e não mais do que o lingüista diz. Ela contém ou pode conter, a atribuição à enunciação de um ou vários sujeitos
que seriam a sua origem (1987:181-82).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 182


cepção da noção de heterogeneidade discursiva. Na verdade, os estudos desse autor incorporaram-se
à própria epistemologia da AD através do trabalho de Authier-Revuz. Interessa, então, marcar como a
heterogeneidade discursiva é entendida por essa autora e de que forma seus estudos marcam a noção
de heterogeneidade discursiva própria da AD.
Authier-Revuz (1981/1982) defende a tese de que as diferentes formas de heterogeneidade mostrada
(marcada ou não-marcada), no discurso, são manifestações de diversos tipos de “negociação” do sujeito
falante com o que ela denomina de heterogeneidade constitutiva.
A heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso apóia-se, de um lado, na problemática do
dialogismo bakhtiniano que toma o discurso como produto da intersubjetividade e, de outro, na releitura
que Lacan faz da obra de Freud, em especial, na abordagem do sujeito em sua relação com a linguagem.
Segundo Authier-Revuz, o sujeito não é uma entidade homogênea, exterior à língua, que lhe serviria para
‘traduzir’ em palavras um sentido do qual seria a fonte consciente (1982:136). Em texto distinto, essa
autora (1990:28 e 29) recorre a Freud para escrever que no sujeito dividido não há centro fora da ilusão
e do fantasmagórico - não há um centro de onde emanaria, em particular, o sentido da fala. Salienta,
todavia, que é função deste sujeito (que é o eu) ser portador desta ilusão necessária (no imaginário do
sujeito dividido reconstrói-se a imagem do sujeito autônomo).
A idéia central da heterogeneidade constitutiva é a de que todo o discurso apresenta-se consti-
tutivamente atravessado por “outros discursos” - pelo discurso do “outro”. O “outro”, escreve a autora
(op. cit. p.141), não é um objeto exterior do qual se fala, mas uma condição constitutiva do discurso
de um falante que não é a fonte primeira desse discurso. Isso permite entender que a heterogeneidade
constitutiva, devido à essência de sua própria constituição, é não analisável.
Por outro lado, a heterogeneidade mostrada é aquela pela qual a unidade aparente do discurso é
alterada, pois ela, ao contrário da heterogeneidade constitutiva, inscreve visivelmente o “outro” na se-
qüência do discurso. Apresenta-se sob formas lingüísticas ou não de representação de diferentes modos
de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do discurso. Através desse tipo de
heterogeneidade, altera-se a unicidade aparente da cadeia discursiva, pois aí se inscreve o “outro”, com
ou sem marcas de ancoragem.
Embora na perspectiva da AD, a heterogeneidade discursiva não se limite ao apontado pela polifonia
de Bakhtin, nem ao formulado por Authier, há que se reconhecer a importância de suas contribuições.
A AD, ao preocupar-se com a heterogeneidade discursiva, desloca essa noção para fora da enunciação,
não podendo, portanto, restringir seu trabalho de análise apenas à heterogeneidade mostrada-marcada.
Por isso, seu compromisso é também com a heterogeneidade mostrada não-marcada, característica da
constituição de todo discurso.
Pêcheux (1980:195) escreve que a heterogeneidade discursiva é entendida como elemento constitutivo
de práticas discursivas que se dominam, se aliam ou se afrontam num certo estado da luta ideológica
e política, no seio de uma formação social e numa conjuntura histórica determinada. Trata-se do efeito
do interdiscurso6 no interior mesmo de uma série de formulações, constituindo o saber “próprio” a uma
FD dada, a partir de elementos do saber que lhe são exteriores - o saber homogêneo de uma FD se
apaga sob a pluralidade nominalista dos “objetos do mundo”, marcando a heterogeneidade constitutiva
de uma FD como modalidade particular de contato entre FDs. Esse mesmo autor, em 1981, ao prefaciar
a tese de Courtine, criticava a idéia de um sujeito pleno, escrevendo sobre a necessária deslocalização
tendencial do sujeito enunciador. Segundo ele, o sujeito enunciador não está no centro dos processos de
legitimidade, e sim em outro lugar, lá onde apenas as descrições locais podem recuperá-lo e categorizá-
lo. Ao se conceber um sujeito não-homogêneo e socialmente constituído não se pode aceitar um sujeito
centralizado em um eu monolítico – o que se tem é um sujeito relativizado, com a forte “presença” do
outro, com quem divide o seu espaço discursivo7.
Assim, em AD, a noção de heterogeneidade discursiva se faz presente na própria constituição do su-
jeito e liga-se estreitamente à noção de FD – foi justamente a reflexão teórica sobre FD que possibilitou
a abertura necessária para o entendimento da heterogeneidade discursiva no seio da AD. Um discurso
é heterogêneo porque sempre comporta, constitutivamente, em seu interior, outros discursos. Segundo
Indursky (1992), em AD, o que importa é romper analiticamente a aparente homogeneidade discursi-
va para fazer vir à tona sua heterogeneidade fundante. Para tanto, é preciso mobilizar a categoria de
“memória discursiva”. É esta que permite relacionar seqüências formuladas no intradiscurso com sua
exterioridade (op. cit. 285-302).
Pode-se dizer, então, que esta relação (intradiscurso / interdiscurso), conforme Courtine (1981),
coloca em movimento “zonas discursivamente heterogêneas”, isto é, processos discursivos inerentes à
FDs antagônicas8.
É esse antagonismo entre FDs que procuro demonstrar através da análise de seqüências discursivas

6 Interdiscurso, segundo Pêcheux (1988:162 e 163) é o todo complexo com dominante das formações discursivas, imbricado no complexo da formações
ideológicas, que toda a FD dissimula, na ilusão da transparência do sentido que nela se forma. É o lugar onde se constituem os enunciados.
7 Orlandi (1990:29) explica o descentramento do sujeito na AD, afirmando que o mesmo não é fonte e responsável pelo sentido que produz – é parte
desse processo. O sujeito é ele mais a complementação do “outro”, mais o inconsciente. Nesse “outro”, inclui-se não só o destinatário, mas também a voz
de outros discursos historicamente já constituídos, presentes no interdiscurso. Os processos discursivos não têm origem no sujeito, e sim na formação
discursiva com a qual o sujeito se identifica.
8 Quando se trata de analisar as relações internas a uma mesma FD, colocam-se em movimento posições de sujeito que aí se apresentam divergentes.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 183


de referência9, lingüisticamente marcadas pelo discurso citado, pertencentes ao discurso de Lula (DL)10. A
partir delas, tendo presente que, em AD, o sentido não é apreendido de forma direta porque são levadas
em conta as condições histórico-sociais que o determinam, procuro compreender os efeitos de sentido
possíveis de serem produzidos no funcionamento desse discurso.
A análise da heterogeneidade através do discurso relatado permite compreender enunciados poli-
fônicos, tratados como discursivamente heterogêneos. Analiso o discurso relatado, segundo Bakhtin,
discurso citado (direto, indireto e indireto livre), procurando demonstrar que, para além da polifonia,
no funcionamento discursivo dessas sdr(s), está posto um discurso que estabelece o confronto entre
duas FDs politicamente antagônicas, denominadas, para efeitos metodológicos, de FD dos trabalhadores
brasileiros e FD patronal brasileira, respectivamente.
O discurso relatado marcado (DRM) corresponde ao discurso direto de Bakhtin, através do qual ocorre
uma espécie de citação textual de um discurso de outrem. Em seu funcionamento, a heterogeneidade
discursiva é explícita, ou seja, o discurso-outro aparece através do uso da citação, marcada por aspas
ou por dois pontos introdutórios. Segundo Authier (1990:29-32), no DRM, o locutor, ao marcar explici-
tamente em seu discurso ponto(s) de heterogeneidade, delimita o lugar do “outro”, aí o circunscrevendo
ilusoriamente, como se o “outro” não estivesse em todos os lugares. O sujeito enunciador do discurso,
assim procedendo, opõe o discurso- outro11 ao resto da cadeia discursiva. Seu gesto, desta forma, indica
com clareza de que “outro” é preciso se defender, ou a que “outro” é preciso recorrer para constituir seu
discurso. Ainda segundo a autora, o DRM apresenta-se como um discurso que reproduz textualmente o
discurso-outro; no entanto, nada garante que esse discurso seja preservado sem distorções.
Observe-se a sdr a seguir:
... É muito importante que vocês escutem esta frase: “Assembléia de trabalhadores é
como um fruto podre, ele cai sozinho”. Esta frase é do ministro Murilo Macedo. Uma
pena, mas uma pena mesmo, que sua Excelência, o ministro, não esteja aqui. É uma pena
que, hoje, os helicópteros não passem aqui em cima. É uma pena, é uma pena que as pes-
soas que duvidam da capacidade da classe trabalhadora não estejam aqui para ver que,
se o Ministro considerou a assembléia como fruto podre, é necessário dizer também que
nós tivemos o remédio, e esse fruto hoje está mais sadio do que estava quando a árvore
foi plantada... (Fragmentos de pronunciamento proferido em 07/04/80 – Estádio da Vila
Euclides. In “Lula - entrevistas e discursos”, p.366).

Através desta sdr, é possível observar que o discurso-outro emerge no discurso de Lula como forma
de denúncia e possibilidade de contra-argumentação desse discurso, ou seja, é incorporado ao discurso
do sujeito enunciador para marcar que dele a posição-sujeito em que o DL está inscrito, se afasta e/ou
se defende. A interlocução produz, assim, o efeito de denúncia do discurso antagônico. Note-se:
... Esta frase é do ministro Murilo Macedo: Assembléia de trabalhadores é como um fruto
podre, ele cai sozinho.

Além da denúncia, outros efeitos de sentido podem ser produzidos. A inserção do discurso-outro
serve como conclamação à classe trabalhadora para a continuidade da luta. Observe-se isso a partir
da reorientação do DL para aquilo que é próprio da FD dos trabalhadores brasileiros na qual o sujeito
enunciador do discurso está inscrito:
...é necessário dizer também que nós tivemos o remédio, e esse fruto hoje está mais sadio
do que quando a árvore foi plantada.

Na sdr em análise, o sujeito enunciador do discurso, ao denunciar, rejeita; e, ao contra-argumentar,


reorienta o discurso-outro para o que é próprio da FD dos trabalhadores brasileiros. Busca, assim, a
desqualificação do discurso da FD patronal brasileira. Daí, se poder afirmar que o DRM, no confronto com
a FD politicamente antagônica, funciona, no DL, como forma de denúncia e de busca de desqualificação
do discurso-outro. No confronto, o sujeito enunciador do discurso marca explicitamente qual outro é
preciso denunciar, ou seja, “de que outro é preciso se defender” (Authier, 1990:29-32).
O discurso relatado indireto formal (DRIF) que corresponde ao discurso indireto de Bakhtin (1990:155-
73), ou seja, que se apresenta como um processo de parafrasagem do discurso-outro, não mantém com-
promisso com a originalidade do discurso-outro, apenas a ele se refere. Por isso, o sujeito enunciador do
discurso tanto pode relatar parcialmente o discurso do outro como dar ao mesmo outra versão, isto é, a
sua versão. Segundo Indursky (1992: 294-95), essa modalidade de discurso tem uma sintaxe passível
de formalização - SN dizer X - na qual, dizer pode ser substituído por afirmar, fazer crer, alegar, desejar,
pretender, espalhar, propagar, dentre outros.
Na seqüência discursiva que se segue, o DRIF marca a inserção do discurso-outro oriundo da FD

9 A noção de seqüência discursiva de referência está em Courtine (1981) e será também representada por sdr(s).
10 Minha pesquisa abarca um arquivo que tem como efeito de início o ano de 1978, ano da eclosão do ciclo das greves do ABC paulista, e como término o
ano de 1998, ano em que o sujeito enunciador do DL concorreu pela terceira vez à Presidência da República.
11 Neste texto, desloco o “discurso de outrem” de Bakhtin, para “discurso-outro” que, em minha pesquisa, está sendo tomado como um discurso oriundo
de uma outra formação discursiva, de um outro domínio de saber, ou, quando for o caso, de uma outra posição–sujeito, inscrita no interior de uma mesma
formação discursiva (FD).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 184


patronal brasileira e estabelece o confronto entre as duas FDs. Observe-se:
...e eu lembro de 1985, quando o Sarney tomou posse e disse que ia fazer a Reforma
Agrária e eu fui chamado de sectário porque disse que ele não ia fazer. Eu tinha certeza
que ele não ia fazer porque ele estava junto com os latifundiários. Em 1990, o Collor disse
que ia fazer a reforma Agrária, eu disse que ele não ia fazer e, outra vez, fui chamado
de sectário. E ele não fez porque estava junto com os latifundiários... (Horário eleitoral
gratuito, 21/08/94).

Nessa sdr, através do DRIF, o sujeito enunciador do discurso insere no DL o discurso-outro, próprio
da FD politicamente antagônica, estabelecendo o confronto entre discursos e demarcando “fronteiras”
entre as diferentes FDs. Pelo fato de o discurso relatado indireto formal (DRIF) não manter compromisso
com a fidelidade ao discurso-outro, é possível, ao sujeito enunciador, inseri-lo em seu discurso a seu
modo, pois esse funcionamento discursivo não reproduz o discurso-outro, limita-se a referir sobre ele.
É isso que possibilita uma interpretação própria do sujeito enunciador do discurso, fazendo “a leitura”
que convém à FD em que está inscrito. Esta é uma característica própria do discurso relatado indireto
formal (DRIF) - o sujeito enunciador pode, até mesmo, distorcer o discurso que está sendo incorporado
ao intradiscurso.
Note-se como funciona a negação:
...não ia fazer a reforma agrária ...não fez a reforma agrária ...

Essa forma de funcionamento discursivo da negação permite a reorientação do discurso-outro para


o que é próprio da FD dos trabalhadores brasileiros, na qual o DL está inscrito. Observe-se como isso
ocorre:
...não fizeram a reforma agrária porque estavam junto com os latifundiários...

O sujeito enunciador do discurso, ao rejeitar o discurso-outro, aponta para a tensão e para o con-
fronto existentes entre as FDs e, ao reorientar para a FD em que o DL está inscrito, busca desqualificar
o discurso proveniente da FD politicamente antagônica.
Por sua vez, o discurso relatado indireto informal corresponde ao discurso indireto livre de Bakhtin.
Segundo Indursky (1992:294), esta modalidade de discurso relatado também não tem compromisso
de fidelidade com o discurso-outro e, ao contrário do que ocorre no DRIF, não apresenta uma sintaxe
previsível. Assim, o sujeito enunciador do discurso pode relatá-lo parcialmente ou, até mesmo, traduzir
e/ou trair as idéias nele vinculadas.
Observe-se a sdr a seguir:
... O que há, na verdade, é uma pressa enorme de se vender para a sociedade a idéia de
que olha não aconteceu nada. Eu até vi um candidato, hoje, no jornal, dizer: Olha, o que
o Ricupero disse não é nada demais. Eu fico pensando, o dia em que uma nação perder o
direito de se indignar com a aberração que disse o Ministro, eu acho que nós deixaremos de
ser Nação, portanto eu acho que nós não temos que ter pressa...(Fragmentos de entrevista
coletiva à TV Bandeirantes, 12/09/94).

Na sdr acima, a ausência de uma sintaxe previsível possibilita uma certa “tradução” do discurso-outro,
ou seja, nada garante a fidelidade desse discurso. A não previsibilidade sintática também permite que o
sujeito enunciador apresente o responsável pelo discurso-outro como sendo lingüisticamente indefinido.
Observe-se:
... O que há, na verdade, é uma pressa enorme de se vender para a sociedade a idéia de
que...

O discurso, assim estruturado, produz o que Indursky (1992:297) denomina como sendo o efeito
de indeterminação referencial dos agentes, isto é, o “outro” é apresentado como lingüisticamente inde-
terminado. Entretanto, essa indeterminação referencial pode ser interpretada a partir da categoria de
análise da memória discursiva a qual permite a reconstrução das condições histórico-sociais do discurso
e, conseqüentemente, de enunciados similares aos que possam ter circulado no âmbito da FD politica-
mente antagônica, tais como:
...O ministro Ricupero não fez nada de mais. É o PT que quer derrubá-lo...

A análise permite compreender que o discurso da FD politicamente antagônica à dos trabalhadores


brasileiros está sendo rejeitado. E essa rejeição abre espaço para a reorientação do discurso-outro. Isto
pode ser observado através do funcionamento discursivo da sdr, o qual permite ao sujeito enunciador do
DL, a apresentação de um outro ponto de vista, isto é, de um outro discurso, próprio da FD representa-
tiva dos interesses e demandas dos trabalhadores - esse sujeito não só enuncia afetado pela ideologia
e pelo inconsciente, como também por uma memória interdiscursiva.
Encerrando a análise, acredito ser possível afirmar que a heterogeneidade discursiva pode ser apre-
endida através do jogo de vozes presentes no enunciado, mas que não é suficiente entender o conjunto

Proceedings XI International Bakhtin Conference 185


de vozes enquanto efeito de enunciação - é necessário compreender como essas vozes funcionam no
discurso, que efeitos de sentido produzem, pois vozes diferentes representam distintas posições de su-
jeito e/ou distintas FDs que se relacionam no discurso, produzindo efeitos de sentido que sempre podem
ser outros.
As três sdr(s) analisadas marcam diferentes formas de dizer o discurso relatado (DRM, DRIF, DRII).
Em qualquer uma dessas formas, o discurso-outro é rejeitado e reorientado para aquilo que pode, deve
ou convém ser dito na FD representativa dos saberes e demandas dos trabalhadores brasileiros, sempre
na busca da desqualificação do discurso da FD politicamente antagônica àquela em que está inscrito o
DL.
Na análise tentei deslocar a noção de polifonia para a de heterogeneidade discursiva - discurso
polifônico no qual diferentes vozes se fazem ouvir, passei a tratar, sob a ótica da AD, como discurso
heterogêneo no qual diferentes posições de sujeito estabelecem uma interlocução capaz de demonstrar
que discursos se constroem sobre discursos, num jogo polifônico de vozes que, mais do que conviverem
e/ou somarem-se entre si, marcam-se pela historicidade e pela ideologia, pois os “lugares enunciativos”
não são indiferentes aos lugares sociais que os interlocutores ocupam na cena discursiva. O discurso
em análise institui-se, assim, a partir da crítica e reveste-se, nos diferentes funcionamentos discursivos
analisados, de características estritamente polêmicas que apontam para a tensão e para o confronto
entre as duas FDs em pauta.
BIBLIOGRAFIA
AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Hétérogénéité Montrée et Hétérogénéité Constitutive: elements pour une approche de
l’autre dans le discours. DRLAV (26): 91-151, 1982.
_________________________. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos (19):25-41.
Campinas: UNICAMP, IEL, jul.-dez.,1990.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 5ª ed.São Paulo: Hucitec, 1990.
______________. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense, Universitária, 1981.
BOUKHARAEVA, Louiza Mansurovna. Começando o diálogo com Mikhail Mikhailovitch Bakhtin. Ijuí, RS., Ed. UNIJUI,
1997 (Coleção Livros de Bolsa).
CAZARIN, Ercília Ana. Bakhtin: o dialogismo e a polifonia. In Humanidades em Revista, Ijuí, RS, Ed. UNIJUI, v.3, nº4,
dez.1997, p.75-81.
_________________. Heterogeneidade Discursiva: relações e efeitos de sentido instaurados pela inserção do discur-
so-outro no discurso político de L.I. Lula da Silva. Ijuí, RS: Ed. UNIJUI, 1998.
COURTINE, Jean Jacques. Quelques problèmes theoriques et methodologiques en analyse du discours; à propos du
discours communiste adressé aux chrétiens. Langages (62): 9-127, juin, 1981.
DUCROT, Oswald. O Dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.
INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e outras vozes. Tese de Doutoramento, Campinas, 1992.
ORLANDI, Eni. P. Terra à Vista! discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez, 1990.
PÊCHEUX, Michel. Remontémonos de Foucault a Spinoza. In: EL discurso político. Universidad Nacional Autonoma de
México & Editorial Nueva Imagen, México, 1980.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 186


La concreción de la imagen

Susana Cella

Universidad de Buenos Aires

En el epílogo al capítulo dedicado al cronotopos en Teoría y Estética de la Novela señala Bajtín: “Sean
cuales sean esas significaciones -se refiere a los elementos semánticos, las formaciones abstracto con-
ceptuales científica y artística, la valoración, la forma de existencia de esa esfera y el carácter y forma
de las valoraciones interpretativas”- dice, “habrán de adquirir, para incorporarse a nuestra experiencia
(además experiencia social), algún tipo de expresión espacio-temporal, es decir una forma semiótica
que sea oída y vista por nosotros (jeroglífico, fórmula matemática, expresión lingüístico-verbal, dibu-
jo, etc.1). Sin esa expresión espacio-temporal ni siquiera es posible el más abstracto pensamiento. Por
consiguiente, la entrada completa en la esfera de los sentidos sólo se efectúa a través de la puerta de
los cronotopos”. (p. 408).
Desde luego, esto nos remite a las formas a priori de la sensibilidad de Kant, cosa que Bajtín advierte,
pero marcando una diferencia, se diría sustancial, no considera a esas formas como “trascendentales”,
como conocimiento que no se ocupa tanto de los objetos como del modo de conocerlos sino de “formas
de la realidad más auténtica”. Cuando en La poética de Dostoievski, Bajtín analiza los procedimientos
fundamentales del diálogo socrático: sinkrisis y anakrisis, caracteriza al primero por presentar distintos
puntos de vista sobre un objeto, mientras que el segundo indica los procedimientos para hacer hablar
al otro, por medio de la palabra, no por una situación del argumento, lo que me parece una distinción
importante, cierta función apelativa está allí aludida, como un valor agregado, a una mecánica propia de
un diálogo. El modo de conocer los objetos aparece entonces en la dinámica del diálogo, en la palabra
en acción. Los personajes buscan una verdad y tratan de poner a prueba esta verdad, no se trata de una
especulación desde fuera acerca del conocimiento, en tal sentido podemos entender la no adscripción
bajtiniana a lo trascendental kantiano, sino en la sucesión de una estructura dialógica, interpelativa,
dialéctica.
Pero además, la idea sostenida por cada uno de los participantes del diálogo se conjuga con la ima-
gen del sujeto que enuncia comprometido en la puesta a prueba de su enunciado. Es aquí donde Bajtín
señala “el germen de una imagen de la idea”. (p. 158) Me interesa entonces destacar esta expresión en
tanto la concreción de la imagen es fundamental en el discurso, no sería la idea ligada a lo abstracto,
relacionada con el concepto, a la representación de las ideas por medio de las palabras en la tradición
filosófica, sino una configuración -de palabras- que liga al sujeto con el objeto de su discurso, lo posicio-
na en un lugar y lo define tanto como al objeto mismo. Es “oído y visto”, para retomar la cita anterior,
dicho y presentado, podríamos agregar. Y, también que esto acontece tanto en el nivel del texto como
en la incorporación del destinatario externo de la enunciación. La presencia en el enunciado del emisor
del discurso (el autor), del enunciador (el protagonista o personaje/ narrador) y del destinatario, remite
asimismo al nivel de la enunciación y es la condición de posibilidad del encuentro de una multiplicidad
de voces que están espacio-temporalmente situadas a su vez en una multiplicidad de espacio-tiempos.
La compleja estructura involucra al cronotopo vinculado con el dialogismo y el híbrido novelesco, en la
conformación y recepción del texto artístico.
En palabras de Bajtín:
El híbrido novelesco2 es un sistema de combinaciones de lenguajes organizado desde el punto
de vista artístico; un sistema que tiene como objetivo iluminar un lenguaje con la ayuda de
otro lenguaje, modelar la imagen viva del otro lenguaje.

La hibridación intencional, orientada artísticamente, es uno de los procedimientos básicos


de construcción de la imagen de un lenguaje. Es necesario apuntar que, en el caso de la
hibridación, el lenguaje que ilumina (generalmente, es el sistema de la lengua literaria con-
temporanea), se objetiviza el mísmo, en cierta medida, convirtiéndose en imagen. (p.177)
Lenguaje como iluminador, no en tanto develador de una verdad trascendente sino en tanto capaz de
1 Esta enumeración bajtiniana excedería el campo de la palabra, sin embargo, si pensamos en el aspecto gráfico, en la letra, tal equiparación es posible.
Ver nota 3.
2 Bajtín denomina híbrido semântico intencional al proceso por el cual se conforma la imagen del lenguaje. Lo contrapone con el híbrido orgânico pues en
este caso no se mezclan dos puntos de vista sino que se yuxtaponen dialógicamente. TyEN, p. 176.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 187


hacer visible los otros discursos y de hacerse visible.
En lo relativo a la postulación del cronotopo, Bajtín menciona la teoría de la relatividad, pero aclara
que toma libremente esa noción que sobre todo le sirve para pensar un universo tetradimensional por
el cual adquieren significación tanto las cualidades espaciales (sean estas extensión, homogeneidad o
heterogeneidad, isotropía o no isotropía, etc.) como las temporales (duración, tiempo como dimensión
existencial, ciclicidad, irreversibilidad y reversibilidad). Si ligamos esto con la importancia acordada a
la imagen, podría decirse que aquí, menos que una especulación filosófica o física del espacio-tiempo
hallamos la constitución de una categoría para el análisis de imaginarios sociales fuertemente vinculados
con distintos momentos históricos. La idea de imagen se puede enlazar entonces con la de imaginario,
en un sentido amplio del término: conjunto de representaciones que se hacen los sujetos acerca de la
experiencia individual y social. No tomamos aquí estrictamente la noción de registro imaginario de La-
can, en cuanto a su carácter más restrictivo y connotado por cierto rasgo de ilusorio en relación con el
registro de lo simbólico, que en tal sentido, parece cotejable con el de la ideología tomada como falsa
conciencia, mientras que en la postulación de Cornelius Castoriadis3, «el imaginario no es imagen de.
Es creación incesante y esencialmente indeterminada (social-histórica y psíquica) de figuras/ formas/
imágenes, y sólo a partir de éstas puede tratarse de “algo”. Lo que llamamos “realidad” y “racionalidad”
son obras de esta creación” (p. 29), Obviamente estas afirmaciones no coinciden estrictamente con las
de Bajtín, sin embargo, la idea de un imaginario en tanto acervo de imágenes y representaciones nos
permite un mejor acercamiento a las constelaciones figurativas.
Bajtín, habla de “realidad”, seguramente en favor de su afincamiento en la historia y la sociedad, y
alejamiento de la metafísica, pero también aparece en la expresión la palabra “formas” y esto induce
a referirlo a modos de conformación o configuración de las realidades que operan como contexto de
donde surgen los distintos cronotopos. De modo que podemos hablar de figuraciones del espacio tiem-
po que ingresan en la literatura. En tanto figuras, poseen un carácter plástico (Auerbach) que las hace
susceptibles de permanecer más allá del contexto del que surgieron, el cronotopos del viaje me parece
paradigmático en este sentido, pero también, por esa misma plasticidad, son capaces de adquirir nuevos
sentidos. Como formas fijas, los cronotopos parecerían reacios a la idea de transformación. Sin embargo,
la misma configuración de un cronotopo, las posibilidades combinatorias con los motivos y sobre todo,
la concepción espacio-temporal que subyace en ellos, no sólo posibilitan esta transformación sino que
la hacen ineludible.
El tiempo de la narración es por excelencia el pasado, tiempo de la memoria, y parecería esto vincu-
larse con la preminencia que da a la narrativa Bajtín en tanto su capacidad dialógica, de representación
de la palabra y si vinculamos ese pasado a memoria, en tanto tradición literaria.
Por otra parte, cuando Bajtín desarrolla los cronotopos aparece la idea temporal ligada a las relaciones
causales, así, por ejemplo, el suceso en el tiempo de la aventura, lo que no sólo acerca las propiedades
topológicas a las temporales reafirmando la categoría cronotópica sino que también ratifica la no “indife-
rencia” del espacio tiempo a los procesos reales, en extremo el espacio-tiempo posibilita tales procesos
en sus características específicas. La relación, el carácter relacional que estructura el trabajo de Bajtín
no nos remite al espacio-tiempo como receptáculo vacío, más bien por el contrario. El cronotopos en su
condición de “categoría de la forma y el contenido” (238) en la obra literaria remite a ensayos como “El
problema del contenido, el material y la forma en la creación literaria” de 1924, donde Bajtín aborda
nada menos que un tema que ha recorrido (aludido o eludido) y podría decirse, sigue recorriendo, las
reflexiones acerca de la literatura: forma y contenido. Ni la reducción lingüística ni el contenido como
algo susceptible de integrar la obra sin estar mediado por una forma discursiva, por un ideologema
como significante metafórico, condensado ideológico. Y dialógico, en tanto la estética bajtiniana es en su
fundamento dialógica -vale tener en cuenta sus consideraciones acerca del diálogo socrático y la sátira
menipea-, preocupada por la representación artística de la palabra del otro (cosa que sólo ve posible
en la prosa literaria) y de la incidencia de la cultura popular en la conformación de los procedimientos
literarios y su significación, sobre todo en las época de ruptura o transición en que estos se hallan más
visibles. Tal vez esa atención a los momentos de ruptura puede vincularlo con las preocupaciones de
los formalistas rusos. Y en el sentido de visibilidad asociado a la productividad de la cultura popular, lo
atinente al carnaval y los procesos de carnavalización discursiva irían en el mismo sentido.
Como condensado de un conjunto de ideas y representaciones propias del sujeto, sus prácticas so-
ciales, experiencias, etc., de una ideología adscribible a la idea de imaginario, el ideologema entonces
es capaz de suscitar las imágenes que conllevan simultáneamente lo que atañe a los aspectos sociales
e históricos como a lo artístico. Si el material de la literatura es el lenguaje, esto no quiere decir que el
estudio lingüístico strictu sensu pueda dar cuenta de la significación de la obra literaria, es necesario
incorporar lo que también lenguaje, es discurso y discurso social. 4

3 Castoriadis, Cornelius, La institución imaginaria de la sociedad, Tusquets, Barcelona, 1983.


4 Aun teniendo en cuenta, o precisamente por eso, las discusiones surgidas en torno de la participación de Bajtín en la redacción y escritura de Freudismo,
un bosquejo crítico, firmado por Valentin Voloshinov, creo que es pertinente recordar algunas de las afirmaciones que ahí aparecen relacionadas con esta
cuestión: “Una obra poŽtica es un condensador poderoso de evaluaciones sociales no articuladas; cada palabra está saturada de ellas. Son estas evaluacio-
nes sociales las que organizan la forma como su expresión directa” (Voloshinov, 187). Asimismo: “La recepción artística en la lectura de una obra política
parte por supuesto del grafema (la imagen visual de las palabras escritas o impresas), pero en el momento mismo de la percepción esta imagen visual da
paso a los otros factores verbales (la articulación, la imagen sonora, la entonación, el significado), y es casi obliterada por ellos; estos factores finalmente
nos llevan más allá del límite de lo verbal. Puede entonces decirse que el factor puramente lingüístico de una obra es al todo artístico lo que el grafema es
al todo verbal.” (Voloshinov 190-1)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 188


La palabra no es simplemente la representación del objeto sino la representación del discurso en la
obra de arte. Creo que esta cuestión de la representación del discurso, de la imagen de la palabra, es
central en la teorización bajtiniana y posibilita revisitar ciertos conceptos como el de representación,
habida cuenta de que en formulaciones reacias a la referencialidad, extremadamente inmanentistas, el
concepto de representación llegó a negarse, por ejemplo, en un sintagma como “la literatura no repre-
senta”. El hecho de que la literatura hable siempre de sí misma no evicciona la relación con el referente,
así este sea un referente textual, ya que a su vez se trataría de una cadena de referencialidades desde
luego virtualmente infinita, pero de todos modos no autónoma de los contextos en que surgen esos
textos, incluidos los llamados “autorreferenciales”. Cabe reiterar que todo texto es autorreferencial y no
solamente aquellos en los que la autorreferencialidad se halla subrayada o colocada como “tema” de la
obra. Y más, podríamos decir que tales textos encierran una polémica encubierta o manifiesta con una
postura contraria: referencialista, para llamarla de algún modo.
Y eso nuevamente nos devuelve a otra consideración acerca del cronotopo, en tanto, según Bajtín,
“determina también (en una medida considerable) la imagen del hombre en la literatura; esta imagen
es siempre esencialmente cronotópica”. (238). Esa imagen del hombre en la literatura tiene que ver
con la concepción del hombre y de la realidad en los distintos momentos históricos, si se quiere, con el
paradigma dominante o tal vez en contra de éste. El conjunto de ideas, representaciones, el imaginario
históricamente variable -y aun de duratividad transhistórica- conlleva una idea de la literatura, más es-
pecíficamente, una o más poéticas, de modo que esa imagen del hombre surge aun en los textos donde
la elección se vuelque a formas más impersonales, y según la concepción de sujeto que opere como
paradigma cognitivo en el momento de la conformación del texto, tanto como de lo que este pueda sus-
citar al ser iluminado desde otra perspectiva u otro paradigma, tal vez.
El cronotopo es presentado desde el comienzo como una categoría literaria pero asimismo Bajtín postula
un cronotopo histórico real. Y nombra uno por excelencia: la plaza pública. No sólo es la reafirmación de
lo visible/ audible/ significante, del espesor temporal en un espacio, sino también, de la imagen histórica.
Tiempo-espacio de circulación de discursos, mezclas de niveles discursivos, conglomerado de prácticas
sociales, lugar de inversión, subversión, fiesta, etc., la plaza pública mienta determinado tiempo histórico
según una funcionalidad específica: ágora o plaza pública medieval renacentista. Este cronotopo real
tiene una funcionalidad y una significación vinculada con un tiempo: la plaza como imagen o condensado
de sentidos y discursos que alimentan la literatura. El paso del cronotopos real al cronotopos literario
tiene relación con los procedimientos de representación de discursos, con los modos de la presencia de
los discursos sociales en el discurso literario.
El trabajo sobre Rabelais da cuenta de la incidencia de este cronotopo real. La persistencia de los
cronotopos es en este caso particularmente importante en lo que puede ser una reflexión sobre la crí-
tica. Me refiero a los abordajes hechos en gran cantidad a textos en los cuales se representa la plaza.
Además de la persistencia de los cronotopos es imprescindible tener en cuenta la variabilidad operada
desde la decisiva categoría de tiempo-espacio. En tal sentido, la hiperextensión del concepto aplicado
muchas veces a la representación, en tanto representación no discursivizada sino del referente, podría
considerarse en detrimento del sentido en que precisamente se define la importancia del cronotopo:
esa indisoluble ligazón de tiempo espacio que constituye el significante, varía epocal y geográficamente,
de modo tal que la categoría no queda fija y es necesario entonces destacar la variación -como lo hace
Bajtin cuando señala por ejemplo el viaje- en sentido diacrónico. Rabelais y Gógol pueden cotejarse y
pueden señalarse analogías, pero no son homólogos.
La señalada hiperextensión se asocia también a la idea de carnavalización. Del mismo modo, el dis-
curso carnavalizado no equivale a la representación de algún tipo de fiesta, carnavalesca o no, que pueda
aparecer representada en una obra literaria.
La productividad del uso de esta categoría de análisis se manifiesta cuando se toman en cuenta todas
las coordenadas, por llamarlas de algún modo, que Bajtín utiliza para armar esta categoría cuatridi-
mensional: contexto histórico (que implica una concepción de la historia, del mundo, del hombre, de lo
público, lo privado, del tiempo, del espacio, de la palabra literaria, etc.); espacio tiempo en su concretez
y en sus complejas relaciones cuando consideramos la co-presencia del emisor/ protagonista/ receptor
en el texto; imagen emergente producto de todas estas relaciones y determinaciones, combinatorias de
motivos y cronotopos, primacía de unos u otros.
Es innecesario señalar en Bajtín el privilegio de la narrativa como forma de la palabra dialógica. La
lírica estaría marcada por una voz poética dominante que sustrae la posibilidad de la palabra dialógica.
Tal vez pueda hipotetizarse que la lírica atañe más específicamente que a la representación de palabra
a la representación de cosa, en el sentido freudiano del término, vuelvo luego sobre esto.
Cuando Bajtín destaca el carácter prevalentemente narrativo del Eugenio Onieguin, aun cuando se trata
de una obra en verso, y apunta la diferencia de la voz poética de la lírica pushkiniana, podría pensarse que
Bajtín sitúa el privilegio de la narrativa en relación con una concepción poética adscribible al romanticismo
en tanto expresión de un yo poético singular (además desde luego de lo que la tradición literaria aporta
en tanto propuesta del propio Pushkin de su obra como «novela en verso»). En resumen el dialogismo
exclusivo de la narrativa es definitorio en Bajtín ya que al considerar posibles expresiones dialógicas en
la poesía tiene a subsumirlas en formas narrativas. No sería entonces tanto si se trata del uso de versos
o no, sino más bien de la narratividad, el narrar sólo haría posible el dialogismo. Lo argumentativo en

Proceedings XI International Bakhtin Conference 189


la poesía quedaría más bien del lado de un monologismo que sostenga la posible contraposición de vo-
ces. Y sin embargo... creo que podría pensarse como una cuestión abierta. La condensación que puede
operar una metáfora puede resultar el punto de encuentro de enunciados desde distintos lugares. Las
formas paródicas o estilizadas en la poesía también podrían nombrarse como posibilidad dialógica en la
poesía. Tal vez sea que Bajtín en su concepción de la lírica subrayó la función expresiva. Sin embargo,
es posible pensar en el contexto de sus teorías de la representación e imagen de la palabra que para la
poesía quedaría reservado un máximo acercamiento a la representación cosa.5
Corinne Enaudeau6 al abordar la cuestión de repressentación palabra y representación cosa señala:
Comprender un enunciado inédito, sea cual fuere su naturaleza, apropárselo y convertirlo en
convicción propia significa llegar a una nueva “representación de las palabras”. La expresión
de Freud adquieriría aquí todo su sentido: se trataría de figurarse las palabras, de formarse
una representación de ellas... de trazar el mapa de los espacios semánticos supuestos por
el enunciado, de sus oposiciones y sus imbricaciones. (P. 140)

A lo que se puede agregar, no sólo podría tratarse de “convertirlo en convicción propia” en tanto ads-
cribir a ese «enunciado inédito», sino en convicción de que es lo propio del material con que se tiene que
trabajar, un enunciado objetivado, susceptible de contrastarse con otros, medible con el que soporta la
enunciación, objetivable también. Los procedimientos narrativos hacen más viable esta posibilidad. Por
su parte, la imagen poética, en sentido restringido y en las variaciones que experimenta en las distintas
poéticas, tendería a buscar aquello que ha quedado indefinidamente inscripto en las huellas mnémicas,
en busca de las percepciones primarias, que no están fijadas a un sólo tipo de representación. Sólo que
siempre tal intento no se da sino en y entre las palabras.
Si Bajtín menciona “en otros géneros” el cronotopo bucólico-pastoril, edílico, que podría vincularse con
ciertas formas de la lírica, también sería posible, teniendo en cuenta no sólo la singularidad de un lugar
particular desde donde se emite el discurso (la voz del poeta) sino también esa profunda inmersión en
los estratos de la lengua y preverbales, la idea de lugar natal que Bajtín señala en la novela geográfica
(p. 256). Ambiguamente, esto podría ir tanto en favor de una expresión monológica como dialógica.
El lugar propio, espacio tiempo único, la lengua materna como matriz, apuntarían a ese lugar natal, a
la patria del idioma empleado en la obra literaria. Al mismo tiempo, el otro, los otros, tiempo-espacio
podrían entrar en la dimensión de una extrañeza del lenguaje, incluido el propio.
La importancia dada a la diferenciación de los géneros obviamente abona las diversas caracterizacio-
nes, sin embargo, todo aquello que involucra el concepto de cronotopo, puede vincularse con la lírica,
y más, con la escritura literaria concebida como un conjunto cuyas variaciones genéricas pueden ser
menos rígidas, más lábiles y aun estar intersectadas.
Bibliografía
Auerbach, Eric, Figura (Berna, 1944), Paris, Editions Belin, 1993
Bajtín M. M., Problemas de la poética de Dostoievski, México, Fondo de Cultura Económica, 1986. Trad. De Tatiana
Bubnóva.
Bajtín, M. M., Teoría y estética de la novela, Madrid, Taurus, 1989. Trad. Dde Helena S. Kriúkova y Vicente Cazcar-
ra.
Bajtín, Mijail, La cultura popular en la Edad Media y el Renacimiento, Barcelona, Barral, 1971. Trad. De Julio Forcat
y César Conroy.
Enaudeau, Corine, La paradoja de la representación, Argentina, Paidós, 1999.
Laplanche, Jean- Pontalis, J.B., Vocabulaire de la Psychanalyse, Paris, PUF, 1868.
Voloshinov, Valentin, N., Freudismo, Un bosquejo crítico, Argentina, Paidós, 1999. Trad. De Jorge Piatigorsky.

5 Me refiero a los conceptos freudianos de representación palabra y representación cosa. Terminos que Freud utiliza para distinguir la representación -se-
sencialmente visual- que deriva de la cosa- y esencialmente acœstica, que deriva a la palabra. La ligazón de la representación de cosa a la representación
de palabra correspondinte caracteriza al sistema preconsciente-conciente, mientras que en el inconsciente está la representación de cosa.
7La representación de cosa consiste en la investidura, si no de las imágenes mnômicas directs de la cosa, al menos de huellas mnômicas más alejadas que
derivan de las anteriores (“Lo inconsciente”).
6 En La paradoja de la representación, op. cit.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 190


Lo nacional-proletario como ficción literaria o la palabra
como espejo de una poesía secuestrada.

Ricardo Cobián Figeroux

Universidad de Puerto Rico

Recinto de Río Piedras

Facultad de Estudios Generales

El presente trabajo se propone reflexionar sobre uma de las maneras como se construye el yo lírico
em tanto agente de cambio político; atendiendo el proceso metapoético como uno de los aspectos en
que dicha conciencia se articula dentro de un discurso ético-moral en torno a lo que he llamado lo na-
cional-proletario1. La finalidad de este estudio, por consiguiente, va dirigida a situar y problematizar
ambos paradigmas: el del valor de la poesía como agente de cambio social, y el de la identidad de
lo nacional-proletario, ambos como discursos retóricos que se asumen susceptibles de transformar la
conciencia ideológica del receptor2.
Esta relación, digamos, de índole metafísico-estética,3 propone de entrada un discurso ideologizante
sobre el proceso mismo de la creación artística toda vez que tanto la escritura poética como la ideología
que la encumbra terminan por mitificar no sólo el discurso que éstas pronuncian, sino el que se pronuncia
en ellas4. Este hecho, presente en un corpus significativo de la producción poética del grupo Guajana
–revuelve alrededor de lo que Julia Kristeva llamó “la vigilancia de un metadiscurso”5.
En este sentido, vemos cómo se va construyendo dicho paradigma de lo nacional-proletario por
vía de una poética de intención “salvadora” a partir de una doble articulación: la operación de índole
metadiscursiva (metapoética) en tanto conciencia de una literaturidad que se subsume, por así decirlo,
a un mensaje “necesario” sobre el valor trascendente de la poesía. Y segundo, la identificación que se
produce al interior del texto, entre una de las voces del autor imaginario: el yo lírico6 con el poeta,
como personaje actuante, es decir, como sujeto políticamente comprometido7.
La operación metadiscursiva la estoy enfocando a partir de la recurrencia de vocablos y de ex-
presiones idiomáticas que a la relación, un tanto especular, entre el enunciado y la enunciación. Vocablos
como por ejemplo: palabra, voz, grito, nombre, decir, cantar, contar, llamar, anunciar , y sus múltiples
adjetivaciones y designaciones verbales y adverbiales que, de manera más general, apuntan hacia una
particular postura respecto al lenguaje poético en el proceso de su enunciación.
Dicha conciencia enunciativa reduplica el yo lírico en una especie de diálogo autoral. El ámbito con-
textual (referencial) de carácter ideológico en el que se inscribe esta relación, modeliza- en el sentido
que le da Yuri Lotman- la particular visión de mundo que refleja el grupo generacional del 60 agrupado
alrededor de la revista Guajana como escenario editorial.

1 En la edición del 20 Aniversario de la Revista Guajana (Época final, núm. 1, sept, 1982), se plantea el modelo de la poesía como agente estético al ser-
vicio de la justicia social: “...inequívoco compromiso con la lucha por la liberación...” Y más adelante afirma que “El ideal del artista que aspiramos: el del
intelectual militante” En lo sucesivo nos referiremos a lo “nacional-proletario” (el término es mío) como postura ideológica asumida por la dirección editorial
de la revista Guajana en la que se combinan los postulados de la lucha independentista, el radicalismo del nacionalismo albizuísta, y el internacionalismo
proletario de corte marxista-leninista; lo cual, unido a la misión política de la poesía, configuran una particular visión de mundo ético-estético de dicho
grupo generacional.
2 Nos referimos, en general, al concepto de ideología no como “falsa conciencia” en el sentido marxista ortodoxo, sino como “ideologema”, según planteado
por Bakhtin (1970 y 1978). Es decir, la ideología como visión de mundo reflejada a través de prácticas y formaciones discursivas tanto estilísticas (palabras
y expresiones ideomáticas) como contextuales (histórico-políticas) que remiten a un particular esquema de valores vinculado por medio de imágenes,
símbolos y mitos, a una idea o concepción de la realidad.
3 Tomamos el término del ensayo de Emir Rodríguez Monegal “Tradición y renovación”, (América Latina en su literatura, México, S.XXI, 1976, p. 139) al
referirse a “la visión metafísico-estética” de los años en que se popularizaron los existencialismos en la poesía vanguardista hispanoamericana de la década
de 1950.
4 Ver de Julia Kristeva, “Ideología del discurso sobre la literatura”, en Literatura e ideología, traducción de Socorro Thomas, Madrid, Plaza Mayor, 1972.
5 Julia Kristeva, ibid, p.121.
6 “La figura del autor imaginario- señala Rafael Núñez Ramos- es resultado de un juego complejo de relaciones entre los distintos personajes; el yo lírico no
es más que uno de ellos. El autor imaginario, entonces, puede definirse como la figura que surge como emisor postulado del acto comunicativo y se perfila,
se llena de contenido, se personaliza a través de las relaciones que mantiene, necesariamente, y en un nivel implícito, con el mundo y los seres de la obra,
desde el mismo momento que se manifiesta como hablante, como enunciador de un mensaje de ficción”. Rafael Núñez Ramos, “ La comunicación poética”.
En: La Poesía, Madrid, Editorial Síntesis, 1992, p.96.
7 Extrapolamos a la discusión literaria lo que Thomas Herbert plantea sobre la psicología social y la constitución de lo que él llama “La ilusión subjetiva”.
Nos dice: “ (...) el sujeto que actúa y habla está sumergido en sistemas fraseológicos-institucionales que él no ve porque está conscientemente centrado
sobre sus propios gestos y palabras”. En “La práctica teórica de las ciencias sociales”, El proceso ideológico, Buenos Aires, Editorial. Tiempo Contemporáneo,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 191


La naturaleza ficcional del texto poético es, pues, desplazada al ámbito imaginado de la acción polí-
tica, pretendiendo, así, convertir la voz poética en una acción patriótica. En este sentido, opera lo que
Paul De Man, refiriéndose a la crítica llamó “disyunción reflexiva”, toda vez que “sustrae al yo del mundo
empírico para trasladarlo a un mundo constituido de lenguaje y dentro del lenguaje”8.
La operación de tipo metalinguístico trenza, por así decirlo, el yo político con un yo lírico testimonial
que habla retóricamente consigo mismo. Procedimiento que resulta en un intento de construirse como
yo político dentro de su propia ficción poética, y que a mi juicio, permite que la poesía sentimentalmente
militante de estos autores, mantenga un frágil equilibrio entre una lírica de corte didáctico-moralista más
a tono con el pensamiento de la segunda mitad del S.XIX9. Y una poesía cuya ruptura e innovación –si
se me permiten estos apelativos– radicó esencialmente en una mirada consciente al proceso mismo de
la creación poética.
Y, en este aspecto, podría afirmar que se instaló dentro de una corriente más moderna dentro de
la lírica hispanoamericana: aquella que reflexiona sobre la palabra como razón u objeto de la creación
artística. Ruptura, al propio tiempo, conservadora, toda vez que dicha militancia dura de índole estético-
política, reprodujo la idealización de una visión de mundo basada en una genealogía de tropos de corte
heroico-históricos como Ho Chi Minh, Che Guevara, Fidel Castro, Vladimir Ilich Lenin, Salvador Allende,
Pedro Albizu Campos, entre otros. Todos, hombres de acción política considerados popularmente “hé-
roes” de las luchas emancipadoras. Idealización que si bien construyó la otredad del héroe a través de
la representación verbal -“rescatados y redimidos mediante la expiación estética”-le llamaría Bakhtin,
termina por fundirse con su personaje-héroe, por convertirse él mismo en su héroe; relegando, muchas
veces, a un segundo plano, el valor estético y artístico de la obra como tal. “¿Y quién es entonces el
héroe?”10, nos preguntamos con Bahktin.
Este hecho, llamémosle, de la heroificación, permitió transmutar el sentido de lo épico en una
especie de jerarquización de tipo “realista” que, paradójicamente, mitificó lo histórico al situarlo dentro
del presente del yo poético y que, siguiendo a Bakhtín, “tanto el autor y sus oyentes, como el mundo y
sus héroes representados aparecen en un mismo plano valorativo-temporal”11. De ahí que la construc-
ción de lo que he llamado lo nacional-proletario se percibe desde el presente de ese yo lírico como uno
de carácter épico-histórico que resultó en una especie de alegoría utópica de la rebeldía. Aquí conviene
destacar el concepto de “metáfora antropomórfica” que César Graña define como “una concepción de las
sociedades como personajes, y de los hechos históricos como actos biográficos producidos por un conjunto
de motivos”, lo que sugiere que dicha ficción antropológica es inseparable de las ficciones estéticas (y
que) “la percepción de las culturas como estructuras terminadas se transforma en una vasta simplificación
artística que las presenta como composiciones, como espectáculos de valor coreográfico(...)de elemen-
tos simétricamente ordenados”.12 Es dentro de este contexto, que podríamos entender las asunciones
extraliterarias con las formas expresivas (literarias) que modelizaron la poética de muchos poetas del
60 y del 70.
La llamada “sincronización continental” de la poesía hispanoamericana que se inventó Saúl Yurkiévich13
resultaba cónsona con la agenda político- literaria de los poetas de Guajana pero, y quizás en esa misma
medida, hizo de toda una promoción de poetas puertorriqueños, fieles servidores de una estética social
en boga. Y, dado el vínculo inextricable que establecieron entre la militancia ideológica y lo poético, re-
sultó en una poesía secuestrada. Este hecho, irónicamente, desplazó y, hasta cierto punto, confundió,
la postura estéticamente contestataria y transgresora de las vanguardias, con una institucionalización
del discurso poético que terminó por domesticar el espíritu mismo de la irreverencia que les había dado
sentido. El discurso poético de la militancia política, influido, en gran medida, por la estética del llamado
“realismo social”, promulgó la idea de la solidaridad en tanto modelo para una conciencia única o unifi-
cadora del ser. Concepción filosófica que hacía tábula rasa de la individualidad en aras de la colectividad.
De ahí que podríamos acercar la crítica de Bakhtin al gnoseologismo científico que hace de la ética y de
la estética una teoría del conocimiento de una actividad ética o estética ya realizada, es decir:
“...no convierte directamente en su objeto el acto mismo del quehacer estético, sino su
posible transcripción teórica, su conceptualización.....y el sujeto, en cuanto participante
del acontecer, se convierte en sujeto de una cognición indiferente y puramente teórica del
acontecimiento”14

Esta concepción ideológica de la estética de la época, apuntaba hacia otra de las reflexiones de Bakhtin
sobre lo que él llamó “La crisis de la autoría”, cuando reduce la singularidad de la estética a la ética “Los
8 “El lenguaje divide al sujeto en dos: en el yo empírico, inmerso en el mundo, y en otro yo que, en su intento por diferenciarse y autodefinirse, llega a ser
como un signo”, Paul De Man, “Retórica de la temporalidad”, Visión y ceguera, Ensayos sobre la retórica de la crítica contemporánea, Traducción de Hugo
Rodríguez Vecchini y Jacques Lezra, San Juan, Editorial de la Universidad de Puerto Rico, 1996.p236.
9 Ver de Harold Bloom, Poesía y creencia, Madrid, Ediciones Cátedra, 1991, p. 103. Ver, también, sobre este punto lo planteado por M. Bakhtin sobre la
“estética de la empatía” o “estética expresiva” en Yo también soy (Fragmentos sobre el otro), Méjico, Taurus, Col. La huella del otro, p.85-86, 2000. (tra-
ducción de Tatiana Bubnova).
10 M. Bakhtin, “Héroe es una categoría literaria para la fracción de la realidad que puede ser abordada por el arte, y es metáfora cuando en pareja con el
autor resulta capaz de describir las realidades extra-estéticas” ibid, p.21.
11 Ver Mijael Bakhtin, en Problemas literarios y estéticos, La Habana, Ediciones Arte y Literatura, 1986.
12 César Graña, La identidad cultural como invento intelectual (algunos ejemplos hispanoamericanos), traducción de María Luz Romero, California, Editorial
de la Universidad de California.
13 Saúl Yurkevich, Poesía hispanoamericana 1960-1970, México, S.XXI, 1972.
14 M.Bakhtin, op., cit., p.101-102.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 192


humillados y ofendidos se convierten en héroes de una visión ya no del todo artística”15
Los poetas de la militancia desarrollaron, en términos generales, una literatura política que pretendió
interpelar a un lector-oyente capaz de ser concientizado por virtud de una especie de praxis revolucio-
naria del verbo poético. Discurso que en teoría rechazaba la burguesía ilustrada, pues iba dirigida al
pueblo, a las “masas”. Pero que, en la práctica , la burguesía fue, habidas cuentas, su principal lector e
irónicamente, su principal promotor.16.
II
Veamos a modo de muestra, por razones de tiempo, cómo se va construyendo el discurso de lo na-
cional-proletario en los versos que he privilegiado al interior de tres poemas que aparecen publicados
en la antología Hasta el final del fuego17 . Los versos que he aislado han sido deconstruidos18 del texto
poético para construirlo alrededor de otra unidad de sentido y, de esta manera, aproximar una lectura
del conjunto en las que se expresan dichas recurrencias dentro del tejido conceptual del poema. En
estos poemas:
Lo importante Ho Chi Minh es la victoria (p. 79. G.2.9)

Argelia (p.84.G.4.1)

Canto desesperado a América (p.86.G.)

aparece un intento del yo lírico por afirmar su voz historiada en otra voz que aquí se asume como la
voz de la colectividad:
He aislado los versos que proponen la toma de la palabra como una hiperbolización del acto de
afirmación del poder personificante de la poesía. Veamos:
Lo importante Ho Chi Minh es la victoria.

“usted..... nos ha dejado dicho


cómo un pueblo puede hacer su propia historia,
(....)
Le digo....
(.... )
y que más he de decirle
... y cómo decirle...” (...)

Diálogo con el sujeto lírico en el que la figura patriarcal de Ho Chi Minh es mitificada a través de sus
palabras, de “lo que nos ha dejado dicho” como acción transformadora de la Historia. La idealización
poético-biográfica que aquí se da sobre la figura del líder se construye a partir de una “humilde” simu-
lación de la impostación de la voz lírica que, no obstante, se asume también como entidad actuante,
toda vez que se reconoce –a través de ese legado de la palabra hecha acción– como parte del proceso
mismo de la construcción de esa historia.
La veneración hacia el líder de masas se revela, pues, en ese anhelo retórico de poder adecuar el
cómo y el qué se dice con la figura “inconmensurable” del héroe. De esta manera, el yo lírico intenta
reconstruir la figura heroico-histórica de Ho Chi Minh en una especie de tropo19 cuya imagen épica resulta
emblemática de una cosmología dominada por el legado del Maestro heroico.
Argelia.
II.
y estar en el coro de los pueblos del mundo
(....)
III.

15 M. Bakhtin, ibid, p. 126. Apunta, también, hacia el problema bakhtiano sobre la relación de un “deber ser”, con el acontecer temporal y con la acción
asumida ésta como forma artística. Dice:“...cuando las características plásticas y pictóricas de la acción están presentes en la conciencia del sujeto de la
acción, ésta pierde de inmediato la seriedad demandante (perteneciente a la espera del deber ser) de su propósito, de la necesidad y productividad reales
de lo que se lleva a cabo, para convertirse en un juego, degenerando en una gesticulación.... el futuro real aparece para nosotros sustituido por un futuro
artístico, y este futuro artístico siempre es predeterminado artísticamente” . M Bakhtin, ibid, p.63-64.
16 Una de las paradojas de las vanguardias de corte socialista fue que el llamado “arte para las masas” fue asumido y cooptado como expresión de la
cultura burguesa en los países industrializados, incluyendo a Puerto Rico. Ver lo planteado sobre este asunto por Renato Poggioli en “Teoría del arte de
vanguardia” Madrid, Revista de Occidente, 1964.
17 Hasta el final del fuego. Treinta años de poesía (1962-1992). Prólogo de Marcos Reyes Dávila, San Juan, Editorial Guajana, 1992. Para no hacer prolija la
lista bibliográfica de los poetas me he concentrado en la poesía de Andrés Castro Ríos, uno de los principales y más prolífico exponente del grupo Guajana.
Para facilitar la referencia al texto, sigo la clasificación cronológica que establece la propia antología. A estos efectos coloco entre paréntesis el número de
la página e inmediatamente, el título del poema, seguido de la abreviatura del número de la revista en que fue publicado: (G.2.9, G.4.1.,G.1.3 ).
18 Este término que adquiere su nombre, principalmente, en las obras de Jacques Derridá, y en algunos trabajos de Roland Barthes, aunque no constituye el
marco conceptual per se de mi trabajo, me sirve como punto de referencia para ejercer una manera de leer estos textos líricos. En este sentido, el proceso
de la escritura en tanto palabras (signos) me remiten a otros signos (palabras). De manera que el análisis que aquí hago se propone como uno abierto, cuya
intención descansa en una aproximación crítica en la línea decontructivista, que en un intento de reducir el texto a su significado final y cerrado.
19 Sobre la figura heroica (histórica) como tropo ver lo planteado por Harold Bloom en Poesía y creencia, op. cit, p.108.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 193


A estos no se puede despachar con un verso
decir que son grandes y llenarse la boca
con palabras inútiles preciosas
(...)
saber que Argelia es un taco en la garganta
(....)
...y la alegría de Fanón
escrita cientos de veces en el mundo.”

Insistencia del poeta en la acción política armada pero, hay que subrayar, como rechazo a una poesía
de corte preciosista. El contraste que se establece aquí entre la acción de “ese coro” cuya partitura no
es para ser cantada, sino actuada a fuego de cañón, y las palabras “inútiles, preciosas”, ésas que no
hieren al enemigo, desemboca, paradójicamente, en un claro rechazo a la retórica utilizando el artificio
de la retórica misma. Se propone, en este sentido, no sólo una poesía cuyo lenguaje tenga una función
extra-estética, sino que, indirectamente, se emplaza al escritor-lector para que, como Fanon y como el
propio sujeto lírico, asuma su papel dentro de ese “coro de los pueblos del mundo” y ponga la palabra
al servicio de la acción.
Canto desesperado a América.
I.
(....)
Oyendo el nombre en el oído duro,
el nombre doloroso de una isla
(....)
IV.
(....)
háblanos de tu lucha ...; “

La palabra, convertida en canto doloroso por América, se erige a sí misma en aquello que nombra lo
que ya se escucha o se está escuchado “ en el oído duro”. El objeto que se designa con la palabra, que
se nombra, en este caso, “una isla” aparece como la cosa en sí. Y, en esa medida, el nombre, al tratar
de salirse, por así decirlo, de su existencia retórica, aparece como entidad propia que puede hablar “cara
a cara” de su propia lucha.
Esta conciencia del signo, en tanto palabra que se nombra, nombrándose, se posiciona como una voz
plural que pretende actuar, sobre un hecho trascendente al poema mismo. Pero, a diferencia de dicho
influjo romántico20, aquí la voz lírica se proyecta como una voz impostada, teatralizada a la manera de
un corifeo que (re)presenta un clamor coral en donde todas esas voces que he glosado: la que grita, la
que denuncia, la voz que se asume como una conciencia colectiva; se convierten en voces ejemplari-
zantes de la lucha política. Son éstas, pues, voces hiperbolizadas de un sujeto que busca legitimarse
históricamente o para la historia a través de una acción política que se efectúa desde las trincheras de
la acción poética. Es éste el punto nodal de un Ars que se articula a modo de una cosmología de lo
nacional-proletario.
Sin embargo, estas voces, dentro del tejido textual, no se problematizan, ni se confrontan dialógi-
camente sino que tienden a reducirse a partir de un telos en el que prima el referente extraliterario. En
este sentido, el elemento dialógico21 en la poesía militante de los 60 y 70 se ve reducida a una intencio-
nalidad ideológica; toda vez que esta operación se nos muestra como una especie de conciencia vigilante
del sujeto lírico en tanto sujeto histórico. La voz de ese hablante es, pues, la de un “yo” idealizado, no
necesariamente, en la alteridad del otro, sino, más bien, en una “conciencia normativa”22 que afirma la
unidad del uno en el todo, “en el coro de los pueblos”. De ahí que todas esas voces se constituyen como
una sola voz que formula una visión dramática de un mundo sublime -en el sentido que le da Bloom- y
a la vez en crisis. La palabra poética se convierte em causa, vehículo, utilidad que sirve para comunicar
un mensaje moral basado en la autoridad del discurso del Maestro23.
El hablante lírico, por consiguiente, se erige como identidad dura, sin las fisuras de la alteridad. La
multiplicidad de voces alusivas a la palabra, se ven, pues, subsumidas a la especificidad práctica del
mensaje poético, borrando así, las disonancias dialógicas. La multiplicidad de esas “voces” están más
bien dirigidas, orquestadas por un director que a su vez se autocensura para poder seguir una partitura
preestablecida que, en este caso, tiene mucho del programa de la acción política de la izquierda latino-

20 Me refiero a la tendencia en la poesía romántica en el que el yo poético, al crear el yo interior con el que habla, se erige a sí como centralidad, como
universo del sentido mismo del texto. Ver sobre este asunto a Harold Bloom, Poesía y creencia, op. cit.,p116.
21 Me refiero al concepto de “dialogismo” según formulado por Mijael Bakhtín en “La palabra en la novela”, Teoría y estética de la novela, traducción de
H.S. Kriúkova y V. Cazcarra, Madrid, Taurus, 1989.
22 Primeras comillas responden a conceptos de M. Bakhtin, en Yo también soy, op. cit., p 149.
23 Retomo aquí lo planteado sobre la presencia de los modelos de la tradición poética hispanoamericana, como de los líderes carismáticos de los proceso
políticos internacionales.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 194


americana de la época que, desde luego, incluye la idea de un nacionalismo de corte proletario24.
En efecto, el yo lírico se propone, entonces, como colectividad personificada que manda hablar y, al
propio tiempo, es el objeto hablado de lo que aquél ordena, y denuncia, por lo que supone un yo obe-
diente que lucha por acatar y cumplir su mandato, literalmente, al pie de la letra. Lucha sublime25que
compromete al poeta a ser fiel a la palabra-acción que ya no le pertenece como individuo, sino como
colectividad. En este sentido, el yo lírico tiende a proyectarse como depositario de un patrimonio histó-
rico de dimensiones cosmológicas, como voz proteica que, a modo de portavoz o medium, pretende dar
a esa colectividad, lo que ésta necesita para su emancipación. El hablante se erige, entonces, como una
idealización de la colectividad, tanto por ser ejemplo de lo que predica (palabra/ acción), como también,
en ejemplo de lo predicado, a través de aquellos modelos que emula.
El yo lírico, por consiguiente, se (re)presenta como una “conciencia” que interpreta la sociedad como
un sujeto homogéneo. Las oposiciones entre la palabra y la acción revelan esa lucha por lo sublime que
se entabla entre los intersticios del texto poético. Oposiciones que se ven desplazadas constantemente
hacia valoraciones de índole extraliterarios en los que se privilegia la afirmación por alcanzar un nuevo
orden social.
El imaginario lírico del aparece como el campo básico de la identificación de la imagen de sí en tanto
figura del escritor. Este hecho permite dar cuenta del carácter simbólico que une a dicho imaginario con
un ethos trascendental precisamente, por la autorepresentación de su propio decir. De manera que el
referirse a la palabra nombrándola, podría ser también una manera enmascarada, de autobiografiarse
y, por consiguiente, de trasvasar como sujeto histórico el ámbito impuesto por la ficción poética del yo
lírico. Es por ello que el discurso poético cuando asume el tono magisterial aparece siempre como una
visión totalizadora. El imaginario lírico y lo simbólico-autobiográfico, que de éste deviene se convierten,
así, en un efecto de ficción que se proyecta sobre ese imaginario social (colectivo) como lo moralmente
correcto y políticamente “verdadero” y que, en este aspecto, debe ser válida y validada por la repre-
sentación autorizada del “pueblo”.
Es, en este sentido, que la forma que asume la idea de la “marginalidad” autoproclamada por el grupo
Guajana26 pretendió construir una imagen propia a base de una concepción estético-política trascen-
dental que pugnaba por constituirse como centralidad.27 Ese intento de toma del poder a través de la
poesía fue, desde luego, un simulacro, a veces cínico toda vez que el deseo sublime de la toma del poder
por virtud del acto poético, descansaba, esencialmente y, más aún, conscientemente, en reconocer la
máscara de su propia retórica. 28.
III
A modo de recapitulación y conclusión.
La recurrencia de vocablos que aluden al signo lingüístico de la palabra me permite -siguiendo los
planteamientos de Bakhtín sobre el “valor temporal”-poner sobre la mesa la forma en que el poeta
construye una representación semántica de un mundo que se proyecta hacia un futuro de resonancias
épicas, digo épicas ya que éste futuro permanece, por así decirlo, anclado a un pasado nacional de es-
píritu heroico. De ahí que la construcción de lo nacional-proletario se asuma como verdad “objetiva” del
mundo, como “la realidad”. Por eso la voz disidente (política) en los planos extratextuales y contextuales
del poema se torna en voz incidente en el nivel de la práctica social, y completamente convencional, en
el tejido significante del texto lírico.
La operación metadiscursiva hilvanada al texto corresponde a un posicionamiento o pose autoral que
el yo lírico asume a modo de personaje de su propia imagen29 y, de esta manera, puede afirmar su mi-
sión de sujeto (prot)agónico. Es por esta razón que muchos de los motivos y temas recurrentes de esta
poesía giran alrededor de la representación de un yo lírico que alude constantemente a su yo histórico.
Este hecho le permite, digamos, contemporanizar con figuras como Ho Chi Minh, o Fidel Castro, comba-
tir a sus enemigos políticos o defender a sus pares ideológicos.30. De ahí la presencia de ese elemento
autobiográfico duro que se mueve dentro de un escenario construido por la ficción poética a base de
pedazos o retazos de diversos aspectos sociales.
El yo lírico se proyecta, por lo tanto, como una especie de exteriorización que imagina verse a sí
mismo, “hablar” en voz alta. Visualización que se lleva a veces hasta el paroxismo, por ejemplo en las
reiteradas alusiones al “grito”. De ahí que “la palabra representadora– en el decir de Bahktin– descansa

24 Para César Graña “la búsqueda de un instrumento colectivo de redención social y espiritual, al mismo tiempo, masivo y legítimo ha sido el rasgo carac-
terístico de muchos movimientos intelectuales....Para los marxistas fue el proletariado, para los paneslavistas el pueblo ruso, para el nacionalismo franco-
canadiense la restauración de la Francia prerrevolucionaria en el Nuevo Mundo...” C. Graña, op.,cit., p.60.
25 En el sentido agonístico de una moral del sentimiento y de la acción heroica. “Lo sublime-dice Bloom- dota al poeta de una cosmología” “Angus Fletcher,
Alegoría”, 1964. En Poesía y creencia, op., cit., p104.
26 Me refiero a la imagen que este grupo proyectó como poetas radicales, antiburgueses y contestatarios del orden establecido.
27 Para Renato Poggioli el llamado “arte para las masas” es una de las formas que asume la cultura burguesa en los países desarrollados. “El arte genuino
de una sociedad burguesa sólo puede ser antiburguesa” op., cit., p.119.
28 Se trata al fin y a la postre de un intento de legitimación, no sólo en términos poéticos, sino y sobre todo, político y metafísico. Hecho que en general,
aplica tanto a los intelectuales como a los artistas. “Los intelectuales-dice Graña- confieren a la cultura a través del descubrimiento de su dramática dig-
nidad, o de la interpretación de su “significado” la virtud...de consagrar el status social que demandan los intelectuales mismos. Una de las convenciones
de nuestra civilización es que los intelectuales son no sólo los intérpretes, sino también, los portadores del repertorio espiritual, moral y simbólico de la
sociedad”. Op., cit.,p60.
29 Mijaíl Bakhtín, Problemas Literarios y Estéticos, La Habana, Editorial Arte y Literatura, 1986,p539.
30 ibid, p.537-539.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 195


en un mismo plano con la palabra representada”31. Pero, tanto una como la otra tienden a situarse más
allá de lo literario, es decir, en la frontera de lo extra-artístico, cuyo terreno de representación está de-
limitado por una práctica ideológica que corresponde al campo de la prédica moral y política.
Esto explica el hecho, no menos importante, de que la manera como se estructura la imagen poética
del yo responde a una particular visión del tiempo histórico32. El presente es un tiempo en crisis, o más
bien, el tiempo de la crisis y, como tal, se mueve hacia el futuro para completarse como realización
utópica. Lo interesante es que dicho movimiento adopta valores que pertenecen a un pasado absoluto,
que se apoya esencialmente en ese tono órfico que escuchamos entre denuncias, gritos, y lamentos. El
recuerdo ejemplarizante de una tradición combativa (nacional y proletaria) se entrelaza, por consiguiente,
con la contemporaneidad del yo lírico en un proceso de reapropiación de un pasado de espíritu épico,
que se renueva en una visión también heroica del futuro.
Esta ideologización del tiempo presupone una actitud ante la poesía y, consecuentemente, ante el
lenguaje poético, como si éstos fuesen el espacio para comunicar verdades “dignas” que trascienden
ese devenir inconcluso y en crisis de la cotidianidad. De ahí que el presente, aunque importante, sirve
como plataforma de lanzamiento hacia un futuro marcado por las señas de identidad de un pasado
ejemplar33.
Esto podría explicar el tono severo, imprecatorio y duro que tuvo gran parte de la poesía militante
de los 60. Una poética del manifiesto que dejó muy poco espacio para la distancia de la otredad y de
la autoironía y, en este sentido, es en extremo seria, en extremo cerrada y obligatoria, toda vez que
predomina en ella un punto de vista lírico que revuelve alrededor de una imagen de sí como documen-
to.34 Lo épico y lo utópico aparecen, de esta manera, como parte de un devenir que se entrelaza, por
así decirlo, con un yo lírico que se construye como sujeto histórico por vía de una operación de tipo
metadiscursivo. Pero, la palabra aquí se articula, no en las ambiguas fronteras de la ficción poética, sino
como el telos de una metafísica de lo urgente. Se reduce, por ende, a un texto para la acción política
y, en esa medida, también, en una manera de autobiografiarse bajo la máscara de un sujeto lírico que
(con)versa, en un mismo espacio temporal-valorativo, con los “padres fundadores a quienes le rinde
homenaje para homenajearse. De modo que el sujeto histórico termina por autoglorificarse por virtud
de la pose que asume su propia voz autoral.
Este hecho permite, por consiguiente, que confluyan tanto la idea romántica de la nación estado
como la idea marxista-leninista de la lucha del proletariado en un mismo nivel y dentro de una misma
visión ideológico-estética, asumida como verdad absoluta, pero construida, precisamente, a partir de la
ficción literaria.

31 Ibid, p.539.
32 Ibid, p.538-539 y 542.
33 Ibid, p.542.
34 A modo de contraste a esta poesía seria, cito del manifiesto de los Noístas el sentido de humor satírico y de auto ironía que los caracterizó en su primer
momento. “ Nosotros mismos no sabemos lo que es el Noísmo. El Noísmo no resuelve ningún problema estético, ni moral, ni social, ni político, ni económi-
co....Desde cualquier punto de vista el Noísmo no significa nada. Noísmo es una palabra como otra cualquiera. Pero usada por nosotros, y para dar nombre a
nuestro grupo, ya cobra una significación propia. De ella hemos extraído, como el huevo de un mago, ideas, pautas, estéticas...gestos espejuelos, carcajadas,
egolatría, sueño, mentiras, Noísmo....” Vicente Geigel Polanco, Los ismos en la década del veinte, op. cit., p.19.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 196


A apropriação do pensamento de Bakhtin na análise da dimensão
formadora das práticas em escrita de professores

Valdete Côco

Rua Catune, nº 20, Jardim Marilândia

Vila Velha, Espírito Santo. CEP 29112-140

Resumo I
Esse trabalho objetiva, considerando a linguagem, especialmente no seu desdobramento relativo à
escrita, problematizar três conjuntos de ações (as possibilidades de expressão, as formas de interação e
as práticas escolares instituintes) relativas à atividade do sujeito professor a partir de algumas mediações
captadas no pensamento bakhtiniano. Essa problematização recupera o itinerário histórico da relação entre
a linguagem e a formação de professores, assinala diferenciadas potencialidades de pesquisa da prática
educativa e constitui um esforço de utilização do olhar baktiniano em áreas que não foram propriamen-
te seus temas a partir do entrelaçamento da concepção de linguagem com as questões da alteridade,
da subjetividade, da ética, da estética e da cultura. Sendo assim, busca, a partir dos fios que tecem o
pensamento baktiniano, problematizar as condições sociais e culturais da escrita na contemporaneidade
tendo como foco o trabalho docente.
Resumo II
This work targets, considering the language especially in its spreading related to the writing, problemize
three (3) sets of actions (the possibilities of expression, the interaction forms and the institution school
praxis) linked to the activity of the subject Teacher from the bakhtiniano thought. This problematization
recovers the historical etinerary from the relation between the language and the teacher’s formation,
underlines different potentialities from the research of the educational praxis and constitutes an effort
of usage of the bakhtiano’s look in areas which weren’t properly its themes from the interchanging of
the conception of language with the questions of alterances, subjectivity, ethic, stetics and culture. Mo-
reover it searches from the interlacing of the Baktianiano thought, problematizes the social and cultural
conditions of writing in the comteporaneity having as focus the teacher’s work.

1. Introdução
Esse trabalho objetiva, considerando a linguagem, especialmente no seu desdobramento relativo à
escrita, problematizar três conjuntos de ações (as possibilidades de expressão, as formas de interação e
as práticas escolares instituintes) relativas à atividade do sujeito professor a partir de algumas mediações
captadas no pensamento bakhtiniano. Essa problematização recupera o itinerário histórico da relação entre
a linguagem e a formação de professores, assinala diferenciadas potencialidades de pesquisa da prática
educativa e constitui um esforço de utilização do olhar baktiniano em áreas que não foram propriamente
seus temas1 a partir do entrelaçamento da concepção de linguagem com as questões da alteridade,
da subjetividade, da ética, da estética e da cultura. Sendo assim, busca, a partir dos fios que tecem o
pensamento baktiniano, problematizar as condições sociais e culturais da escrita na contemporaneidade
tendo como foco o trabalho docente.
Considerando a complexidade da realidade humana, em sua pluralidade dinâmica e histórica, conforme
evidenciado no pensamento baktiniano, ao centrar esse trabalho na dimensão formadora das práticas
em escrita de professores não estou sugerindo que toda ação docente proceda exclusivamente dessa
prática, uma vez que a escrita pode ser considerada uma das dimensões da cultura presente no cotidiano
escolar, mas estou afirmando – a partir de uma relação embrionária entre escola e escrita que faz com
que essa relação tome a dimensão de naturalidade, num processo de exclusão da reflexão crítica sobre
o desenvolvimento dessa parceria – que seu conceito é transformado, cada vez mais intensamente, num
símbolo chave para a finalidade da escola e do encontro pedagógico numa “tensão” que marca os sig-
nificados gerados, face às exigências sociais. Assim, a dimensão docente e a escrita se entrecruzam na
1 No entanto, as formulações propostas por Bakhtin não se desvinculam do processo educativo e de formação. Como, por exemplo, em seu ensaio “O Ro-
mance de Educação na História do Realismo (1992, p. 221-276) aborda a relação entre a literatura e a educação desenvolvendo a concepção de romance
de aprendizagem.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 197


arena social constituindo um processo formativo que é efetivado quotidianamente no embate das forças
sociais, delimitando, de algum modo, as possibilidades de expansão do letramento.
Esse trabalho se justifica a partir do fato de que a delimitação das possibilidades de letramento, para
um segmento responsável pela formação do conjunto maior da sociedade, constitui um importante espaço
de estudo e de pesquisa no contexto atual de sofisticação das demandas de letramento na sociedade
escriturística (Certeau, 1994). Integrando-se na dinâmica que associa as demandas de letramento às
possibilidades formadoras na busca pela distribuição do saber letrado, concebe a formação como “rea-
propriação da experiência e articulação com novas situações” (BOLÍVAR, 2002, p. 102) e observa não só
as práticas de escrita dos professores integradas na dinâmica do letramento desenvolvido na sociedade,
mas também as condições de produção da escrita dos professores integradas na dinâmica do letramento
desenvolvida no percurso histórico da sociedade.
2. Encontros, desencontros e reencontros das atividades de linguagem com o trabalho docente2
Considerando que “a palavra penetra literalmente em todas as relações entre os indivíduos” e que
é “o indicador mais sensível de todas as transformações sociais” (BAKHTIN, 1997, p. 41), a história
da relação embrionária entre a formação de professores e a linguagem, e mais particularmente, entre
a formação e a escrita, constitui um campo em pleno desenvolvimento que tem passado por grandes
transformações. Tendo suas especificidades próprias e desenvolvendo-se no interior de seus campos
conceituais, a formação de professores e a escrita se encontraram, como possibilidade de um projeto
intencional de formação, só muito recentemente. Por isso, para explorar essa parceria é necessário con-
siderar, por um lado, que a história da docência não pode ser tomada isolada de sua herança histórica
e, obviamente, das transformações que requiseram (e requerem) esse tipo de trabalho e que, portanto,
criaram e transformaram os trabalhadores que o executam. Sendo assim, a relação entre a docência e a
escrita constitui uma referência de longa data, em que as condições materiais tanto da docência quanto
do desenvolvimento do letramento, assim como da sociedade, constituíram os sentidos para essas ações,
suas relações e intervenções no contexto. Por outro, considerar a relação embrionária entre a escrita e a
docência implica também observar o desenvolvimento particular dos campos, as aproximações e distan-
ciamentos no contexto do desenvolvimento de estratégias e mecanismos que permitiram ou dificultaram
um repensar tanto das atividades de linguagem quanto da formação dos docentes.
No desenvolvimento do campo da linguagem e sua aproximação com a formação de professores é
possível observar um itinerário que sofreu grandes alterações e que, iniciando na preocupação com a
formação do leitor, passou a abordar diferenciadas dimensões da relação entre a linguagem e o processo
formativo de alunos e professores.
Numa perspectiva psicológica e pedagógica, as principais pesquisas envolvendo a relação entre a
linguagem e a formação de professores no Brasil concentraram-se, inicialmente, nos processos de aqui-
sição e na metodologia de ensino tendo como sujeitos privilegiados os alunos em processo inicial de
escolarização. No contexto de uma abordagem de ensino academicista e tecnicista e de uma concepção
de linguagem enquanto sistema de decodificação, e por conseguinte, focado nos alunos em seu processo
de aquisição/repetição de conhecimentos, parecia haver um “consenso” de que não havia problemas
nem características específicas de leitura para os professores, ou seja, “o professor como leitor era
visto como qualquer leitor adulto que, tendo passado por um processo mais longo de escolarização, ne-
cessariamente seria um ‘bom’ leitor”3 (FRADE e SILVA,1998, p. 93). Restava a este o aprendizado das
técnicas mais eficazes para a formação dos novos leitores (alunos). Numa perspectiva mais sociológica,
aparecem também pesquisas relacionando a temática à questão do fracasso escolar. Mais recentemente,
aparecem pesquisas de tendência histórica e antropológica propiciando um alargamento da temática da
linguagem abarcando questões tais como a formação do leitor, os processos de recepção dos textos, a
história das práticas e dos objetos de leitura.
Timidamente, o professor vem sendo envolvido nos estudos e pesquisas, principalmente nos estudos
relativos às “práticas de leitura de professores”. Partindo do conhecimento da prática social de leitura
desse grupo profissional, de uma “sociologia da leitura de professores”, começaram a surgir questiona-
mentos sobre a formação em linguagem do professor numa dinâmica de integração entre a vida pessoal
e a vida profissional4. A partir desses estudos e do desenvolvimento do conceito de letramento (SOARES,
1998), a preocupação com a dimensão da escrita veio integrar consistentemente esse campo de estudos
ratificando, por um lado, a indivisibilidade do par leitura e escrita e, por outro, as especificidades de cada
ação com seus requisitos próprios. Assim, ocorre uma expansão dos focos de pesquisa em diversificadas

2 Esse itinerário histórico constitui síntese de parte dos estudos do projeto de pesquisa “A dimensão formadora das práticas em escrita de professores” que
venho realizando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.
3 Acredito que esse “consenso” se relaciona a uma visão psicológica de “modelo terminal” de desenvolvimento. Esse modelo consiste em tomar o adulto
como a fase final do desenvolvimento estabelecendo-o como parâmetro de avaliação para a análise do desenvolvimento infantil. Como conseqüência desse
modelo, por um lado, as análises do desenvolvimento registram uma criança cheia de “carências” até se tornar adulta (ser o modelo) ou como adulto em
miniatura não possibilitando compreendê-la em sua constituição temporal, ou seja, com suas capacidades em determinado tempo histórico. Por outro lado,
os adultos “como formados” não necessitam de indagações quanto ao seu processo formativo. Esse modelo psicológico exerceu grande influência no campo
pedagógico tendo como uma de suas implicações o não questionamento do professor que, como um adulto formado e escolarizado, não poderia apresentar
lacunas ou espaços ainda em desenvolvimento em seu processo formativo. Essa visão restringiu o campo de estudos pedagógicos à aprendizagem infantil
e a investigações metodológicas.
4 Centrados principalmente no pólo da leitura foram realizados estudos de grande impacto (tais como MOURA, 1994; BATISTA, 1996; KRAMER, 1998;
FREITAS, 1998; BRITTO, 1998; EVANGELISTA, 1998; entre outros) buscando investigar as leituras de professores “enfocando o que lê, quando lê e como
lê esse sujeito sociocultural que foi construído como leitor no decorrer de sua vida pessoal e profissional” (FRADE e SILVA, 1998, p. 94).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 198


perspectivas, muitas em andamento5.
A especificidade relativa à escrita e formação de professores, foco desse trabalho, encontra-se
em fase inicial de realização de estudos e pesquisas (FIORENTINI e MIORIM, 2001; LETA, 2002 e outros)
demandando a realização de investigações que possam subsidiar uma temática de efervescência social
na dinâmica contemporânea de novas demandas de letramento em relação direta com a organização
social. O contexto de inserção dessa especificidade no âmbito da pesquisa se origina nos últimos anos
no reencontro (uma vez que essas atividades sempre constituíram uma parceria) entre os campos da
formação de professores, e seu grande desenvolvimento a partir dos anos oitenta com os estudos sobre
os processos de inovação e mudança, suas implicações organizacionais, curriculares e didáticas, com as
atividades de linguagem, especialmente as atividades de escrita. Esse reencontro fortaleceu-se no avanço
na área da linguagem com uma nova epistemologia que fez “emergir uma nova maneira de ver a língua
apreendendo-a no seu funcionamento concreto” em que a palavra é concebida como signo (BRANDÃO,
1997, p. 284). Teve como pressuposto a concepção de linguagem enquanto ação entre interlocutores,
dialogicidade.
O crescimento da área de formação de professores no conflito em suas perspectivas6 e na expansão
da preocupação restrita com formação inicial para o envolvimento da formação continuada obrigou a
uma reformulação do campo avançando do paradigma do “aprender a ensinar” na direção “da indaga-
ção sobre os processos pelos quais os professores geram conhecimentos, além de sobre quais tipos de
conhecimentos adquirem” (MARCELO,1998). Ao admitir que os professores geram conhecimentos, ao
colocá-los num papel ativo superando a visão de transmissão de conhecimentos, se apresenta, então,
um redimensionamento das atividades de linguagem. O professor não mais “copia” para transmitir, mas
elabora e reelabora para e na apropriação/transmissão. Nesse caso, o professor, além de “consumidor”,
atingiu o papel de “produtor” de conhecimentos demandando não só uma formação enquanto leitor/con-
sumidor mas também uma formação que possibilitasse condições de escrita.
O contexto determinante para a inserção do questionamento e da valorização dos processos de escrita
dos docentes se relaciona, na expansão dos estudos sobre a formação de professores, ao desenvolvi-
mento da concepção do professor como um profissional reflexivo (no interior da concepção do professor
como prático)7. No percurso de desenvolvimento da concepção reflexiva, em que esse conceito não se
materializa de forma unívoca e suas distinções originaram práticas diversas e até contraditórias, Schön
(1995 e 2000) destaca três conceitos que incluem no termo mais amplo: a) o conhecimento na ação,
b) a reflexão na ação e c) a reflexão sobre a ação e sobre a reflexão na ação. Na integração desses
processos, a reflexão se constitui como reconstrução da experiência8 de modo a praticar a crítica com o
objetivo de provocar a emancipação das pessoas.
Esse desenvolvimento do campo da formação implicou a necessidade de que os professores descrevam
e justifiquem a sua ação. As demandas de desenvolvimento do processo reflexivo e da necessidade de
captar o pensamento e os dilemas da atividade docente fortaleceram a valorização da linguagem, através
das narrativas, no contexto do trabalho docente9. Os registros escritos, em suas diferentes modalidades
(registro biográfico de experiências pessoais dos professores como estudantes, registro de experiências
em cursos de formação, diários de acontecimentos significativos, planejamentos de trabalhos etc.) consti-
tuíram uma das estratégias formativas para desenvolver a capacidade reflexiva dos professores facilitando
a auto-análise e a comparação e um importante recurso para a implementação de pesquisas.
Bullough (1993, p. 394) analisando dossiês produzidos por professores em formação destaca que o
processo de elaboração de textos permite o contato com o processo pessoal de desenvolvimento, au-
menta a auto-confiança, uma vez que o sujeito se vê como produtor de conhecimento legitimado, ajuda
na consideração dos valores pessoais e facilita a reflexão dos professores. Os registros permitem, dentre

5 Vale ressaltar a implementação de experiências ligadas às áreas do conhecimento, ou seja, às áreas de Matemática, Historia, Ciências, Língua Portu-
guesa etc. (BELLINI, 1997; NASCIMENTO e KREBS, 1997; NEVES et al., 1999; e outros) demonstrando que o campo de estudo constitui, por um lado,
um campo consistente de experiências que ratificam sua validade e, por outro, que muitas demandas ainda estão postas, justificando a implementação de
novas pesquisas.
6 Pérez Gomez (1998) fazendo referências a vários autores afirma que as perspectivas tradicional (concebe o ensino como uma atividade artesanal, e o
professor/a, como um artesão), técnica (concebe o ensino como uma ciência aplicada, e o docente, como um técnico) e radical (concebe o ensino como
uma atividade crítica e o docente, como um profissional autônomo que investiga refletindo sobre sua prática) estiveram em conflito ao longo da história na
maioria dos programas formalizados de formação do professorado. O autor propõe como sua síntese quatro perspectivas básicas: a acadêmica, a técnica,
a prática e a de reconstrução social.
7 Pérez Gomez (1998, p. 363) destaca que a orientação prática sofreu uma grande evolução diferenciando-se em duas correntes bem distintas: o enfoque
tradicional (apoiado quase que exclusivamente na experiência prática) e o enfoque que enfatiza a prática reflexiva. No que se refere ao enfoque reflexivo sobre
a prática, Gomez (1998, p. 365) afirma que “com a crítica generalizada à racionalidade técnica pelas mais diversas frentes teóricas e distintas comunidades
acadêmicas, aparecem metáforas alternativas para representar o novo papel que o professor/a deve desempenhar como profissional confrontado com situações
complexas, mutantes, incertas e conflitantes. O docente como investigador na aula (STENHOUSE, 1984), o ensino como arte (EISNER, 1985), o ensino como
uma arte moral (TOM, 1984), o ensino como uma profissão de planejamento (YINGER, 1986), o professor/a como profissional clínico (GRIFFIN, 1982 a e b),
o ensino como processo de planejamento e tomada de decisões (CLARK e PETERSON, 1986), o ensino como processo interativo (HOLMES GROUP, 1986),
o professor/a como profissional prático reflexivo (SCHÖN, 1983, 1987), etc.” O autor destaca ainda que embora cada uma destas imagens e metáforas do
docente e do ensino ofereça matizes distintos e ênfases diferentes, em todas elas está subjacente o “desejo de superar a relação linear e mecânica entre o
conhecimento científico-técnico e a prática na aula” que, convergindo “num vivo movimento teórico-prático em permanente reconstrução” e pretendendo o
desenvolvimento de um conhecimento reflexivo, se propõe a evitar o caráter reprodutor, acrítico e conservador do enfoque tradicional sobre a prática.
8 Pérez Gomez (1998, p. 372) fazendo referência a Grimmett (1989) afirma que na reflexão como reconstrução da experiência, a reflexão é um processo
de reconstrução da própria experiência mediante três fenômenos paralelos: reconstruir as situações nas quais se produz a ação, reconstruir-se a si como
professores/as e reconstruir os pressupostas aceitos como básicos sobre o ensino.
9 Bolívar (2002) apresenta as metodologias biográfico-narrativas (história de vida, auto-informações, relatos de vida) com seus diferentes modos de coletar
informações (o questionário biográfico, a demanda formal de que se escreva uma autobiografia ou auto-informação, a obtenção de uma autobiografia por
conversação ou o apelo à entrevista biográfica, notas de campo, memórias etc.) como uma possibilidade de formação, tendo como idéia central a definição
de uma política de (re)construção da identidade dos professores.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 199


outros aspectos, uma forma particular de diálogo com o outro através da leitura, o reconhecimento de
si e de suas contradições na complexidade da ação docente, uma vez que permite o confronto entre o
que se pensava fazer e o que realmente aconteceu e favorece o uso da razão no desenvolvimento da
escrita objetiva sobre a experiência vivida (ZABALZA, 1994). No entanto, Marcelo (1989) destaca que as
análises de registros efetuados em diários indicam que “por si sós, as reflexões escritas não conduzem
necessariamente a um pensamento mais analítico” demandando a associação com outras vivências.
Na integração do eu pessoal e profissional (NÓVOA,1991, 1992, 1995 e 1998) é reconhecida a neces-
sidade de estudar o processo de aprendizagem dos professores como pessoas adultas (PETERSON, CLARK
E DICKSON, 1990), observando a integração das orientações internas (aprender por si mesmo) com as
orientações externas e/ou colaborativas (aprender mediante um supervisor, um livro, um relatório, um
grupo de discussão etc.) (KORTHAGEN, 1998), nas diferentes etapas do desenvolvimento profissional ou
fases do ciclo de vida (SIKES, 1985; HUBERMAN, 1989; ERIKSON, 1980) na elaboração de planejamen-
tos de processos de formação que visam tanto ao levantamento das necessidades formativas quanto à
implementação de atividades de desenvolvimento profissional que envolvam a identidade docente.
Nesse desenvolvimento do campo com vistas à conquista da reflexão como reconstrução da experi-
ência em que o conhecimento é concebido como um processo dialético, que os professores constroem
seu próprio conhecimento quando submergem num diálogo com a situação e com os pressupostos que
orientam sua ação no cenário concreto do fazer docente, a dimensão política do trabalho docente se in-
tegra ao desenvolvimento da dimensão reflexiva. Nesse contexto (pedagogia crítica)10 que visa provocar
ao mesmo tempo o desenvolvimento do currículo, a melhora da qualidade do ensino e o desenvolvimento
profissional, Pérez Gomez (1998, p. 379) destaca que a prática do docente,
é considerada como uma prática intelectual e autônoma, não meramente técnica. É um
processo de ação e de reflexão cooperativa, de indagação e de experimentação, no qual o
professor/a aprende a ensinar e ensina porque aprende, intervém para facilitar, e não para
impor nem substituir a compreensão dos alunos/as, a reconstrução de seu conhecimento
experiencial; e ao refletir sobre sua intervenção exerce e desenvolve sua própria compre-
ensão.

Nessa dinâmica de concepção do trabalho docente relacionado à compreensão, aproximando-se ao


pensamento baktiniano ao enfatizá-la “como uma atitude ativa e responsiva” (BAKHTIN,1997, p. 131-
132) frente a dinâmica do fazer pedagógico, as escolas são vistas como “centros de desenvolvimento
profissional do docente” (PÉREZ GOMEZ, 1998, p. 379). Sendo assim, no desenvolvimento do campo
da formação procurando “dar voz ao professor”, tomá-lo como protagonista principal cujo pressuposto
é de que “nunca se acaba de aprender” em que o desenvolvimento profissional é um contínuo em evo-
lução e desenvolvimento constante, o conceito de professor reflexivo se expandiu para a concepção de
escola reflexiva (ALARCÃO, 2001) envolvendo a dimensão pessoal da mudança em relação aos aspectos
institucionais e sociais. Nesse sentido, a formação (e deformação) não envolvem somente os atores do
processo de ensino e de aprendizagem, mas a própria instituição, que, no decorrer do processo, também
sofre alterações (muda de “personalidade”).
Sob a perspectiva da complexidade do pensamento humano e da formação como um processo cons-
tante se aposta na capacidade dos professores de tomarem decisões com base nos seus conhecimentos,
na sua experiência e na interação com a “situação” a partir do investimento na formação de profissionais
visando à constituição da escola como uma organização aprendente que qualifica não só os que nela
aprendem, mas também os que nela ensinam, além de todos os que apóiam professores e alunos.
Nesse contexto que acredita na “produção” de conhecimentos pelo professor, a formação pela pes-
quisa vem sendo valorizada como um importante instrumento de formação. Se por um lado, a temática
da pesquisa ainda não obteve uma grande penetração na área educacional e as condições concretas de
trabalho docente no Brasil dificultam a inserção da pesquisa no perfil dos professores da escola básica,
por outro, a concepção de pesquisa como uma práxis dialógica, reflexiva, crítica e transformadora vem,
cada vez mais, sendo fortalecida como uma demanda do processo pedagógico e da prática formativa
(LÜDKE et al., 2001)11. Essa perspectiva demanda diretamente atividades de linguagem e, principalmen-
te, atividades de escrita na elaboração, desenvolvimento e síntese das possíveis pesquisas realizadas
problematizando, assim, os encontros e desencontros entre as atividades de linguagem e a formação
de professores..
Dessa forma, no itinerário do campo da formação ocorre um reencontro decisivo com as atividades
de linguagem, não mais como atividades de ensino, mas no âmbito das atividades formadoras. Esse
reencontro, tanto gera novas demandas de atividades de linguagem tais como os registros e elaboração

10 Gomez (1998, p. 373) destaca que os trabalhos de Shön, ao colocar a reconstrução dialética da atividade docente “penetrando nas condições políticas,
sociais e econômicas que afetam seu pensamento e sua ação, assim como o cenário no qual se intervém”, podem ser situados para além da concepção do
professor como um prático, mas na “perspectiva de reflexão na prática para reconstrução social” que integra o desenvolvimento do pensamento reflexivo
e a ação de reconstrução (pedagogia crítica).
11 Com relação à produção acadêmica acerca do professor pesquisador, Lüdke et al. (2001, p. 27) afirma que “O tema da pesquisa do professor da escola
básica aparece, em levantamento recente (André et alii 1999b), em apenas três artigos dos periódicos analisados, o que demonstra ainda sua precária
penetração na área, a despeito de não serem recentes nem desprezíveis as publicações sobre esse tema no âmbito internacional. Citamos ainda os traba-
lhos de Pedro Demo (1991 e 1994), Marli André (1992, 1994, 1995 e 1997), Ivani Fazenda (1997), Corinta Geraldi (1996 e 1998) e Menga Lüdke (1993 e
1994), todos em alguma medida defensores da relação entre o professor e a pesquisa”. A autora afirma ainda que, no movimento do prático reflexivo e do
professor pesquisador, Tardif, advogando em favor dos saberes docentes, abriu “caminho para a emergência de novas problemáticas nas ciências sociais
ao longo dos anos 70 e 80” (p. 29).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 200


de projetos de pesquisa, como desvela as dificuldades dos profissionais de ensino com essas atividades
e as interdições ao desenvolvimento de práticas de letramento derivadas das condições de existência do
espaço educacional e da organização social em “bases desiguais”. Nesse sentido, o pensamento bakhti-
niano oferece grande contribuição na análise da dimensão formadora da linguagem em suas diferentes
possibilidades.
3. Nesse reencontro, uma possibilidade de utilização do olhar baktiniano
A dimensão docente e a escrita se entrecruzam na arena social constituindo um processo formativo
efetivado no embate das forças sociais, delimitando as possibilidades de expansão do letramento. Tomar
a escrita numa perspectiva dialógica da linguagem, pressuposto desse trabalho, implica observá-la do
interior de nossa sociedade letrada sob duas perspectivas: como instância guardiã da tradição devido
ao seu papel documental e como instância instauradora de diálogos, uma vez que é fundamentalmente
através da palavra que a humanidade tem preservado e repassado sua história, servindo-se de adjetivos
tanto para acentuar suas conquistas quanto para atenuar suas tragédias. Portanto, é necessário compre-
ender que as palavras são agenciadoras a partir de determinadas concepções, são práticas instituintes
e não receptáculos passivos.
A escrita se apresenta como prática social de alcance político porque se materializa como atividade
constitutiva de sujeitos capazes de inteligir no mundo e nele atuar (BRANDÃO, 1997). Essa perspectiva
demanda conceber as diferenças de desempenho bem como as diferentes questões a ela relacionadas
– tais como a estratificação de acesso e a produção cultural em relação às liberdades e controles de
mercado – como elementos que se relacionam ao contexto social (no caso atual, de um contexto de
instauração de desigualdades). A perspectiva dialógica da linguagem, em sua implicação com o contexto,
permite observar, numa dimensão histórica, o estabelecimento de uma economia escriturística em que
o desenvolvimento de nossa sociedade se organizou de modo que “a escritura se torna poder nas mãos
de uma burguesia que coloca a instrumentalidade da letra no lugar do privilégio de nascimentos que
originariamente determinava a condição de classe” (CERTEAU, 1994, p. 236).
A partir desses pressupostos, torna-se importante indagar o processo de construção do letramento
na sociedade brasileira observando o método para as ciências sociais proposto por Bakhtin, ou seja,
observando o sujeito como “produtor de textos” em que o conhecimento que se obtém dele é dialógico
(BAKHTIN, 1992, p. 403). Esse trabalho se propõe a problematizar três conjuntos de ações relacionadas
à linguagem, particularmente à linguagem escrita, e à formação docente e que tem implicações no
desenvolvimento do letramento tomando como referência o pensamento bakhtiniano.
A primeira delas refere-se à importância de explicitar no processo formativo e na atuação docente a
relação entre a linguagem e a vida quotidiana. O autor ressalta a dimensão lingüística do embate social
em que seres humanos são formados pela língua e, concomitantemente, ajudam a formá-la. Sendo
assim, as possibilidades de expressão, particularmente na forma escrita, tão evidenciadas numa
sociedade grafocêntrica, os espaços dos interlocutores, a construção das contrapalavras e as
atitudes responsivas constituem um primeiro conjunto de elementos de análise importante no pro-
cesso formativo, uma vez que “nosso mundo interior se adapta às possibilidades de nossa expressão”
(BAKHTIN, 1997, p. 118).
Considerando a linguagem como produto do trabalho coletivo e histórico, estando imersa numa rede
de valores discursivos de vários níveis de modo que todo o universo lingüístico constrói-se, existe e fun-
ciona num universo social, coletivo, se torna possível advogar que o uso da linguagem, real e concreto,
depende de aprendizagem. Analisar, nos processos de aprendizagens, as formas de gerenciamento dos
espaços de constituição da “experiência verbal” (BAKHTIN, 1992, p. 313) se apresenta como um im-
portante recurso para compreender o confronto entre as variedades funcionais dentro de uma língua, o
desenvolvimento de competências de adequação lingüísticas e os elementos de valoração do contexto.
Compreender a competência lingüística, particularmente com a linguagem escrita, tão demandada na
nossa sociedade grafocêntrica, como integrante da experiência social, permite observar a aquisição da
língua como um processo ininterrupto relacionado a necessidades e motivações num círculo infinito
que demanda a renovação das experiências (GARCEZ, 1998, p. 47-50). A língua, no contexto de sua
produção, possibilita analisar o desempenho de alunos e professores frente às demandas de linguagem
relacionado aos processos de constituição da experiência verbal. Implica repensar os processos forma-
tivos e o estabelecimento de uma política de distribuição dos saberes letrados.
Sendo assim, uma primeira síntese se materializa na idéia de que a apropriação da linguagem se
constitui por processos de aprendizagem. Deriva-se daí que a aprendizagem se realiza nas interações
sociais e culturais. Então, as formas de interação nos processos que envolvem atividades de escrita
constituem outro conjunto de elementos importantes para observar os “acentos apreciativos” e os “juízos
de valores” que se constituem em torno dessa atividade. As palavras, como um fenômeno ideológico por
excelência, podem preencher qualquer função ideológica, seja estética, científica, moral, religiosa etc. A
linguagem, numa concepção dialógica (BAKHTIN, 1992 e 1997), destaca-se como produto da interação
viva das forças sociais, como fenômeno histórico e como fenômeno associado ao ato consciente que tem
implicações na comunicação humana, pois penetra todas as relações dos indivíduos.
Bakhtin (1997, p. 123) enfatiza que a realidade fundamental da língua é a interação verbal. Desse
modo a construção do discurso, aqui enfatizado o discurso escrito, está relacionada às condições de sua
produção e às direções proposicionais engendradas num determinado contexto. Sendo assim, o exterior

Proceedings XI International Bakhtin Conference 201


tem um papel primordial na organização da atividade mental. O autor (1997, p. 112) destaca que
Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que
organiza a atividade mental, que a modela e determina a sua orientação. Qualquer que seja
o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais
da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata.

O fenômeno da linguagem, aqui enfatizada a linguagem escrita, como um processo dinâmico e


complexo de inserção na rede comunicativa que se estabelece no sistema social, no contexto da “com-
preensão”, implica a concepção de destinatário, o outro, na “tecitura” do diálogo. Um outro “ativo em
interlocução”, que assume variados “papéis” na rede discursiva (BAKHTIN, 1992, p. 356). O texto escrito,
entendido no contexto de uma concepção de linguagem enquanto ação, se constitui como uma unida-
de significativa da comunicação discursiva que tem articulações com outras esferas de ação. Exigindo
a compreensão como resposta, tem o destinatário como segundo elemento do diálogo, uma vez que
o autor busca sua compreensão e visa, no texto, antecipar sua resposta. Mas além desse destinatário
“imediato”, se apresenta nessa cadeia discursiva um destinatário “superior”, que transcende o espaço
físico e as circunstâncias materiais. O caráter de fixação da escrita, permite, além do diálogo com o leitor
particular e concreto, o diálogo com as representações ideais de leitor e de autor com as quais o autor
gostaria de se identificar, assim como o diálogo com um conjunto de representações e de idéias mais
complexo e difuso com o qual quer contribuir e ao qual pretende pertencer Esse processo permite que
o eu se constitua como enunciador e compreenda sua própria enunciação, a partir da possibilidade de
compreensão do outro (GARCEZ, 1998, p.63).
Entrar nessa cadeia discursiva vivencial e conflituosa, implica o uso de uma linguagem entendida em
seu contexto social, ou seja, observar sua relação de pertencimento a um grupo particular de falantes.
Essa observação relaciona-se com o uso dos gêneros como instrumentos mediadores na materialidade
discursiva. São instrumentos que requerem apropriação de sua forma e de seus esquemas de utilização.
A relação contextual reflete os conflitos nos processos decisórios relativos à escrita que envolvem, por
um lado, as exigências e limites da linguagem social a que pertence o autor e dos gêneros adequados
a cada situação e, por outro, a autonomia do locutor/autor em relação às possibilidades de escolha na
enunciação (BAKHTIN, 1992, p. 300). Essa negociação, que envolve os objetivos textuais e discursivos,
o destinatário e o conteúdo proposicional, determina os discursos que, por sua vez, determinam os
gêneros.
Sendo assim, a observação dos mecanismos sociais, interativos, implicados na produção dos enun-
ciados se constitui como uma possibilidade de pesquisa a partir da concepção bakhtiniana de linguagem.
Observar a formação de professores para escola básica frente às demandas de linguagem escrita que essa
categoria vem enfrentando em conflito com o desenvolvimento de sua competência lingüística implica
incluir na observação, os espaços de interlocução. Bakhtin (1992, p. 298) destaca a natureza dialógica
do texto escrito em que seu objetivo é a resposta do outro. Entrar nessa cadeia dialógica, constituir-se
como elo desse processo discursivo de produção de conhecimento materializado sob a forma escrita/im-
pressa já é uma demanda expressada no contexto da formação de professores, no entanto, consiste num
espaço ainda a conquistar se consideradas as condições de produção de desenvolvimento experiêncial
com essa competência verbal na diversidade lingüística.
A perspectiva de incompletude, da relação com o social e da criação coletiva (fruto de um diálogo
cumulativo entre o eu e o outro, entre muitos eus e muitos outros ) permite buscar um terceiro conjunto
de elementos relativos ao campo da potencialidade que burla a dominância do tom único do pensamento
e do estilo (BAKHTIN, 2002, p. 380). Trata-se de buscar as práticas escolares instituintes que, delibe-
radamente, intencionam trabalhar com a linguagem superando uma concepção de língua como sistema
sincrônico abstrato. Nessas práticas, a relação desenvolvida com a escrita é concebida sob a perspectiva
da “vivência” em que o sujeito ao mediatizar-se com essa atividade, numa “unidade do acontecer”, esta-
belece uma correlação com a ação de modo a completá-la com algo, marcá-la mediante uma entonação
(BAKHTIN, 1990, p. 40). A valoração é entendida associando as atividades em escrita com o sujeito no
acontecimento singular, no momento único e irrepetível do acontecer. Nessa perspectiva, admitimos a
possibilidade do instável (novo) no estável e previsível da normalização lingüística12. Numa ação ética,
baseada numa “memória de futuro”13 e amparada na capacidade de projeção dos sujeitos, visa-se, não
à repetição do passado, mas à construção da autonomia lingüística para todos os indivíduos. Entenden-
do que as condições de produção do discurso permitem a construção de sua significação, analisar as
práticas instituintes em seu “acabamento” (não fechamento) possibilita expandir a memória de futuro
de produção de sujeitos sociais autônomos.
As características essenciais das práticas instituintes são a ampliação do terceiro destinatário das
produções lingüísticas para além dos requisitos escolares buscando a constituição de um discurso pleno
12 Essa proposição ancora-se na perspectiva de que as instituições e normalizações (o estável), por um lado, constituem uma moldura socialmente pré-
estabelecida em que, através dela, fica assegurado o processo de objetivação do sujeito e, por outro, que essa moldura não consegue, de todo, o controle
total para definir o processo de formação como restrito à reprodução. Sendo assim, o sujeito tem um espaço de circulação “limitado mas suficientemente
generoso para não ser asfixiado pelas normas e exigências sociais” (Freitag, 1994, p. 10) que, garantindo a possibilidade tanto de reprodução quanto de
produção, qualifica a importância da força de organização do futuro, uma vez que “o futuro não decorre da biografia privada mas se refere ao futuro histórico”
relacionado às transformações dos “fundamentos da vida” (Bakhtin apud FREITAG, 1994, p. 87-88).
13 Conforme Geraldi (s/d, p. 7) é a sociedade atual que imagina um futuro e com base nesta “memória de futuro” seleciona do passado os valores, saberes
e conhecimentos que quer ver realizados. Nesse processo, três questões mostram-se fundamentais: qual a sociedade de futuro desejada, quais as experi-
ências do passado instrumentalizam a construção dessa sociedade futura e quem, na sociedade contemporânea, responde às perguntas anteriores e define
as formas de implementar o projeto que elabora.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 202


de autoria em que o enunciado se constitui como uma totalidade irrepetível, historicamente individual.
Nesse sentido, a contribuição da análise dessas práticas não se limita ao processo inicial de aprendizado,
mas estende-se por todas as experiências de escrita dos sujeitos, principalmente aquelas derivadas de
processos institucionais de formação de professores. Como constituintes do diálogo reflexivo sobre a
concepção de linguagem, as práticas instituintes possibilitam um repensar de fazer pedagógico formativo
implicando a possibilidade de construção de uma memória de futuro diferente da crença na repetição
que tem produzido a “segmentação” lingüística.
4. Conclusão
A linguagem, em sua natureza social e em suas diferentes modalidades, se mostra determinante na
produção de significados e na produção de identidades sociais sendo também condição para a ação huma-
na, uma vez que é através dela que os seres humanos dão forma àqueles modos de falar que constituem
sua percepção do político, do ético, do econômico e do social na “arena” quotidiana. Está diretamente
ligada aos processos de ensino e de aprendizagem e constitui um importante material de estudo para o
desvelamento das mediações na constituição dos sujeitos sociais inseridos no contexto de uma sociedade
grafocêntrica que tem sustentado, também no letramento, a manutenção das desigualdades sociais.
A partir da perspectiva bakhtiniana de linguagem como construção social fundada na dialogia e na
interação, é possível conceber que o desenvolvimento da autonomia em linguagem, e particularmente em
linguagem escrita, se constrói na interação social. Observar os movimentos interacionais nos processos
de escrita em relação à formação inicial e continuada de professores permite captar o espaço “formador”
da escrita. Advogar a dimensão formadora da escrita implica o direito ao estabelecimento do diálogo,
a possibilidade de entrar em condições diferenciadas, mas não desqualificadas, na cadeia discursiva. A
questão que se coloca, na perspectiva contextual da linguagem no mundo contemporâneo, é que esse
diálogo permite a criação de novos mundos em mediação e desorganiza velhos padrões. Entrar nessa
cadeia discursiva em condições de igualdade implica reconhecer que sou convocado e convoco o outro
para um diálogo. Implica repensar nosso “mundo organizado” em extratos lingüísticos conforme os ele-
mentos valorativos do contexto derivados da organização social.
A evocação da “complexidade” da linguagem (em sua interrelação com a constituição humana no
percurso histórico) relacionada ao processo de formação de professores não pode servir para nos livrar
da responsabilidade de agir. Esse trabalho não objetivou convergir os pressupostos do campo da lin-
guagem e da formação numa melhor resposta às indagações que se apresentam no cenário atual, mas
visou inserir-se na dinâmica de um alargamento conceitual na formulação de indagações no intuito de
investigar as circunstâncias concretas no fenômeno em questão, que se desdobra em múltiplas facetas.
Acredito que o diálogo entre os campos pode provocar novas conotações aos seus fenômenos próprios
com ganho de informação e alargamento da consciência crítica. Estão lançados os questionamentos e o
leitor está convidado a refletir integrando-se na busca de repensar as questões pertinentes à educação
no que concerne à parceria entre a linguagem e a formação de professores. Considerando a polifonia
e a dialogia, o “acabamento” desse texto objetiva assim a entrada na cadeia discursiva provocando o
entrelaçamento de várias óticas em que novas respostas e novas perguntas sejam formuladas no enri-
quecimento e na análise da questão em estudo.
Referências
ALARCÃO, I (org.). Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: Artmed, 2001.
BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HU-
CITEC, 2002.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, M. Hacia una filosofía del acto ético de los boradores. Barcelona: Anthopos, 1990.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). São Paulo: HUCITEC, 1998.
BARTHES, R. Roland Barthes por Roland Barthes. Lisboa: Edições 70, 1975.
BATISTA, A. A. G. O ensino de Português e sua investigação: quatro estudos exploratórios. Belo Horizonte: FAE/UFMG,
1996. Tese de doutorado em Educação.
BELLINI, L. M. A construção da escrita no ensino de história das ciências: um exemplo da biologia. In: BIANCHETI,
L. (org.). Trama & Texto: leitura crítica, escrita criativa. São Paulo: Plexus, 1997. p. 119-124.
BOLIVAR, A. (org.). Profissão professor: o itinerário profissional e construção da escola. São Paulo: EDUSC, 2002.
BORGES, J. L. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BOTTÉRO, J. e MORRISON, K. et all. Cultura, pensamento e escrita. São Paulo: Ática, 1995.
BRANDÃO, H. H. N. Escrita, leitura, dialogicidade. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido.
Campinas, São Paulo: Unicamp, 1997, p. 15-22.
BRITTO, L. P. L. Leitor Interditado. . In: MARINHO, M e SILVA, C. S. R. Leituras do professor. Campinas, São Paulo:
Mercados de Letras: Associação de Leitura do Brasil – ALB, 1998. p. 61-78.
BULLOUGH, R. Case record as personal teaching: texts for estudy in Preservice Teacher Education. Teacher and Tea-
cher Education, v.9, nº 4, 1993, p. 385-396.
CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 203


CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano 1. artes do fazer. Petrópolis: Rio de Janeiro: Petrópolis, 1994.
DRUMMOND DE ANDRADE, C. Contos de Aprendiz. São Paulo: Record, 2002.
ERIKSON, E. H. Identidad. Juventud y crisis. Madri: Taurus, 1980.
EVANGELISTA, A. A. M. A leitura literária e os professores: condições de formação e de atuação. In: MARINHO, M e
SILVA, C. S. R. Leituras do professor. S. P.: Mercados de Letras: ALB, 1998.
FIORENTINI,D. e MIORIM,M.A.(orgs.).Por trás da porta, a matemática acontece? S.P: FE/Unicamp/Cempem, 2001.
FRADE, I. C. A. S. e SILVA, C. S. R. A leitura de textos oficiais: uma questão plural. In: MARINHO, M e SILVA, C. S.
R. Leituras do professor. S. P.: Mercados de Letras: Associação de Leitura do Brasil – ALB, 1998. p. 93-117.
FREITAG, B. O indivíduo em formação (Coleção questões de nossa época). São Paulo: Cortez, 1994.
FREITAS, M. T. A. (org.). Narrativa de professores: pesquisando leitura e escrita numa perspectiva sócio-histórica.
Rio de Janeiro: Ravil, 1998.
GARCEZ, L. D. do C. A escrita e o outro: os modos de participação na construção do outro. Brasília: UNB, 1998.
GERALDI, J. W. A linguagem nos processos sociais de constituição da subjetividade-questões para pensar a cidadania:
a língua e o imaginário. (s/d). circulação restrita.
GERALDI, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. São Paulo: Mercado de Letras, 1996.
GIROUX, H. A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1997.
HUBERMAN, M. The professional life cycle of teachers. Teacher College Records, v. 91, nº 1, 1989, p. 31-57.
JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
KORTHAGEN, F. The influence of learning orientations on the development of reflective teaching. In: CALDERHEAD,
J. (org.). Teacher orifessional learning. Londres: Falmer Press, 1988.
KRAMER, S. Leitura e escrita de professores: da prática de pesquisa à prática de formação. Revista Brasileira
de Educação, nº 7, São Paulo: ANPED, 1998, p. 19-41.
LETA, M. M. Formação de professores e escrita. Rio de Janeiro: PUC, 2002. Tese de doutorado em Educação.
LÜDKE, M. et al. O professor e a pesquisa. São Paulo: Papirus, 2001.
MARCELO, C. Pesquisa sobre a formação de professores: o conhecimento sobre aprender a ensinar. Revista Brasileira
de Educação. nº 9, 1998, p. 51-75.
MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
MOURA, M. J. Uma memória: história de Leitura de professoras de 3ª série da cidade de Teresina. Campinas, 1994.
Tese de doutorado.
NASCIMENTO, J. V. e KREBS, R. J. O processo de escrever e a produção do conhecimento em Educação Física. In:
BIANCHETI, L. (org.). Trama & Texto: leitura crítica, escrita criativa. São Paulo: Plexus, 1997. p. 125-138.
Neves, C. B. et all. (orgs.) Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: UFRGS, 1999.
NÓVOA, A. (Coord.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1995.
NÓVOA, A. Formação de professores e profissão docente. In: ______. (Org.). Os professores e a sua formação.
Lisboa: Dom Quixote, 1992.
NÓVOA, A. O passado e o presente dos professores. In: ____. (Org.). Profissão prof. Lisboa: Porto, 1991. p.13-34.
NÓVOA, A. Os professores e as histórias de sua vida. In: ______. (Org.). Vida de Professores. Lisboa: Porto, 1992.
NÓVOA, A. Relação escola-sociedade: novas respostas para um velho problema. In: SERBINO, R. V. et al. (Orgs).
Formação de professores. São Paulo: UNESP, 1998, p.19-40.
PÉREZ GÓMEZ, A. I. A função e formação do professor/a no ensino para a compreensão. In: GIMENO SACRISTÁN, J.
e PÉREZ GÓMEZ, A. I. Compreender e transformar o ensino. Porto Alegre: Artmed, 1998.
PETERSON, P., CLARK, C., DICKSON, W. Educational psychology as a foundation in teacher education: reforming
and old notion. In: TOZER, S., ANDERSON, T. B., ARMBRUSTER (orgs.). Foundational studies in teacher education: a
reexamination. Nova York: Teacher College Press, 1990.
SCHÖN, D. Educando o profissional reflexivo. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
SCHÖN, D. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÒVOA, A. (Coord.). Os professores e a sua for-
mação. Lisboa: Dom Quixote, 1995.
SIKES, P. The life cycle of the teacher. In: BALL, S. J., GOODSON, J. F. (orgs.). Teachers’ lives and careers. Londres:
The Falmer Press, 1985.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
WILLIAMS, R. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ZABALZA, M. A. Diários de aula: contributo para o estudo dos dilemas práticos dos prof. Portugal: Porto. 1994.
ZEICHNER, K. M. A formação reflexiva de professores: idéias e práticas. Lisboa: EDUCA, 1993.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 204


Nomes chave: Bakhtin – Pérez Gomez – Soares – Schön – Certeau - Casto-
riadis
Palavras chave: Linguagem – escrita – dialogia - formação de professores
- pesquisa
Biografia: Sou Valdete Côco. Construí minha trajetória de estudo e de trabalho
voltada à educação com aproximação nas áreas de Formação de Professores e de
Linguagem. Na graduação, cursei Licenciatura Plena em Pedagogia. Na Pós-Gradu-
ação, realizei estudo de Pós-Graduação Lato Sensu em Planejamento Educacional
e Mestrado em Educação. Sou doutoranda em Educação na UFF na linha de pes-
quisa Linguagem, Subjetividade e Cultura com trabalho de pesquisa relacionado
a dimensão formadora das práticas em escrita de professores. Tive experiências
profissionais diversificadas: fui professora da escola básica; exerci, em diferentes
níveis, cargos de organização e acompanhamento na gestão do ensino e, atual-
mente, exerço a função de pedagoga e professora de Ensino Superior. Participei,
com apresentação de trabalhos e publicações em anais, de eventos científicos e
publiquei artigos em revistas da área educacional.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 205


Uma possibilidade de diálogo entre Bakhtin, Castoriadis e Certeau
a partir da mediação do sujeito

Valdete Côco

Rua Catune, nº 20, Jardim Marilândia,

Vila Velha, Espírito Santo. CEP 29112-140

Resumo I
Através das categorias de atuação, criação e interação, esse trabalho apresenta um diálogo entre o
pensamento de Bakhtin, Certeau e Castoriadis, tomando por base a mediação do sujeito considerando
a interdiscursividade e a polifonia social. Inicialmente, delineio resumidamente os pressupostos que
motivam aproximação entre os autores. A seguir, integro as categorias propostas para a análise esta-
belecendo ligações entre a idéia de ação humana, a concepção de linguagem e a perspectiva do sujeito
como ser ativo e inventivo na produção social da realidade. Por fim, procuro, no contexto das mediações
delineadas, compor uma síntese apontando aproximações, distanciamentos e complementaridades ob-
servadas na obra dos autores.
Resumo II
Through the categories of actuation, creation and interaction, this work presents Bakhtin’s, Certeau’s,
Castoriadis’s thoughts, taking as a base a mediation of the subject considering the intercursivity and the
social polifonia. Inicially, I describe resumidly the pressuposts which motivates the proximity between
the authors. Then I integrate the proposed categories for the analysis establishing links between the idea
of human action and the incentive on social production of the reality. At last, I try, in the context of the
underlined mediations to compound a synthesis pointing to proximities, farness and complementarities
observed on the author’s masterpiece.

Introdução
O trabalho1 objetiva apresentar um diálogo entre o pensamento de Bakhtin, Certeau e Castoriadis,
através das categorias de atuação, criação e interação, tomando por base a mediação do sujeito con-
siderando a interdiscursividade e a polifonia social. A atuação do sujeito (sua ação, suas marcas e seu
trabalho na linguagem) será observada na dialética do assujeitamento do sujeito e da sua inventividade
considerando o papel dos outros discursos no discurso e o caráter circunstancial da enunciação na cons-
tituição das relações de poder na criação social.
O trabalho será desenvolvido em três tópicos. Inicialmente, delineio resumidamente os pressupostos
que motivam aproximação entre os autores. A seguir, integro as categorias propostas para a análise es-
tabelecendo ligações entre a idéia de ação humana, a concepção de linguagem e a perspectiva do sujeito
como ser ativo e inventivo na produção social da realidade. No terceiro tópico, procuro, no contexto das
mediações delineadas, compor uma síntese apontando aproximações, distanciamentos e complementa-
ridades observadas na obra dos autores.
Pela necessidade de delimitação, abordo de modo inter-relacionado as categorias de atuação, criação
e interação focadas na mediação do sujeito considerando a interdiscursividade e a polifonia social. No
entanto, não desconsidero a complexidade e a extensão do pensamento dos autores, bem como outras
inúmeras possibilidades de diálogo, seja entre eles ou entre algum deles e outros autores. Desse modo,
esse trabalho não tem por objetivo totalizar as discussões, uma vez que consiste numa discussão de
múltiplas possibilidades. Não constitui um ponto de chegada, visa, numa perspectiva de “acabamento”
(BAKHTIN, 1992, p. 299), a retratar o movimento percorrido e, no encontro com as “contra palavras”,
a fazer emergir outros caminhos a serem trilhados na busca de novas re-elaborações. O leitor almejado
para esse texto é aquele que se interessa pela análise das práticas relativas à atuação dos sujeitos no
contexto histórico-social.

1 Esse trabalho constitui síntese de parte dos estudos relativos ao quadro teórico do projeto de pesquisa “A dimensão formadora das práticas em escrita de
professores” que venho realizando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 206


1. Os pressupostos da aproximação
Bakhtin concebe a enunciação em sua natureza social. A linguagem implica relações (estando mar-
cada por conflitos, dominação, resistência, adaptação) constituindo um espaço de “batalha” social numa
produção incessante. A idéia de incompletude, a relação com o social e a criação coletiva (fruto de um
diálogo cumulativo entre o “eu” e o “outro”, entre muitos “eus” e muitos “outros” na “arena” social)
evidenciadas no pensamento bakhtiniano indicam a perspectiva de aproximação do autor a Certeau e
a Castoriadis.
Certeau é um pensador plural cuja interpretação das práticas culturais implica observar a atuação
relativa às operações dos usuários deslocando a atenção do consumo supostamente passivo dos produtos
recebidos para a criação anônima. Sendo assim, a superação do limite da obediência, da uniformização
e do assujeitamento para perceber as diferenças e a inventividade na materialidade discursiva oferece
um enfoque coerente para confrontar seu pensamento com os pressupostos desenvolvidos por Bakhtin
e por Castoriadis.
A reflexão filosófica produzida por Castoriadis trata, fundamentalmente, da História e da Política
desenvolvendo a noção da análise institucional, do instituinte e do instituído, assim como o conceito de
imaginário social e de autonomia (que se dá no coletivo). A categoria fundante de seu pensamento é a
história como criação coletiva. O pressuposto da ação e criação em confronto com as forças instituídas
na dimensão social proposto pelo autor sinaliza uma possibilidade de diálogo com os outros autores.
Os autores, que viveram durante certo tempo em uma mesma época, além de possuírem aproxima-
ções em sua formação acadêmica ligada às Ciências Humanas e Sociais, aproximam-se essencialmente
a partir de uma visão de mundo radicada na história. Também partilham a dialética como núcleo
de suas teorias, concebem a linguagem como produção (numa “tensão”, que marca os significados ge-
rados, face às exigências sociais), dão importância à subjetividade (ao considerarem o homem um ser
expressivo e produtor de objetos culturais) e concebem a constituição do sujeito como ser histórico e
social em que discurso e contexto compõem a dinâmica social dos indivíduos (essa concepção, porém,
é marcada por caminhos diferentes).
A partir desses pressupostos é possível inferir uma aproximação entre os autores. Sem pretender
fazer uma exposição detalhada sobre suas teorias, mas buscar compreender a construção de deter-
minadas mediações a partir de recortes delimitados no conjunto interativo de seus escritos, pretendo
construir um diálogo entre esses autores com vistas a destacar aproximações, complementaridade e
distanciamentos.
2. Atuação, criação, interação: a ação do sujeito na vida cotidiana
Buscando uma formulação superadora da antinomia indivíduo-sociedade através do enfoque sobre a
ação humana, proponho, conforme Wertsch (1998, p.60)
que o funcionamento mental e o contexto sociocultural sejam entendidos como momentos
dialeticamente interativos, ou aspectos de uma unidade mais inclusa de análise – a ação
humana. Como se entende aqui, a ação não é conduzida nem pelo indivíduo nem pela socie-
dade, embora hajam indivíduos e momentos sociais para qualquer ação. (...) a ação fornece
um contexto dentro do qual o indivíduo e a sociedade (bem como o funcionamento mental
e o contexto sociocultural) são entendidos como momentos inter-relacionados.

Sendo assim, o estatuto do sujeito e do sentido proposto para esse trabalho não se refere a uma filo-
sofia do sujeito neutro, transparente a si próprio (metafísica idealista), nem tampouco, a uma filosofia do
sujeito sem determinações sócio-ideológicas (materialismo mecanicista) mas se refere à complexidade
da constituição do sujeito. Envolve tanto sua inserção em universos (de discursos) em que se inscreve
(constituição social, histórica, ideológica...) onde sua subjetividade é resultado da polifonia social, quan-
to, e ao mesmo tempo, o seu papel de agente ao reelaborar os discursos e os sentidos na práxis. Nesse
contexto, a subjetividade será entendida
como resultado dos condicionamentos sociais, ideológicos, inconscientes e, ao mesmo tempo,
lugar de novas elaborações que, na linguagem, podem ser percebidas a partir das marcas
de intervenção do sujeito (MARQUES, 2001, p. 23).

2.1. Bakhtin e a linguagem


A centralidade da ação humana (das marcas de intervenção do sujeito) pode ser captada no pensa-
mento baktiniano a partir da premissa do enunciado como forma de ação. Bakhtin (1992) afirma que “o
homem tem a especificidade de expressar-se sempre (falar), ou seja, criar um texto (ainda que poten-
cial)” (p. 334). O autor afirma ainda que “o ato humano é um texto potencial e não pode ser compreen-
dido (...) fora do contexto dialógico de seu tempo” (p. 334) e que o texto é o “reflexo subjetivo de um
mundo objetivo”, é a “expressão de uma consciência que reflete algo” (p. 340). Desse modo, o princípio
dialógico-constitutivo ressalta o papel da interação discursiva na constituição dos sujeitos. Na trilha do
trabalho do sujeito, Possenti (1996, p. 45) afirma que
a interação existe e se caracteriza pelo jogo tenso entre o que já houve e o acontecimento
circunstancial que ela é, no qual os sujeitos têm um papel que ultrapassa o de ser um lugar
imaginário.
Proceedings XI International Bakhtin Conference 207
Na dimensão da ação na interação, ou seja, do trabalho do sujeito, a linguagem será entendida como
uma prática viva, uma vez que
Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou men-
tiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A
palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial
(BAKHTIN, 1997, p. 95).

Fincando a linguagem no terreno dos signos e entrelaçando signo e realidade (ou seja, tratando a
língua como um fenômeno social), Bakhtin prioriza a linguagem na vida cotidiana observando a palavra
como “o modo mais puro e sensível de relação social” (BAKHTIN, 1997, p. 36). A construção da língua
é abordada a partir do fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação (ou das
enunciações) que renova(m) sem cessar a “síntese dialética viva entre o psiquismo e o ideológico, entre
a vida interior e a vida exterior” (BAKHTIN, 1997, p. 66) constituindo a concepção dialógica da linguagem2
em que discurso e contexto compõem a dinâmica social dos indivíduos3. Sendo assim, a linguagem é,
principalmente, uma criação coletiva, “integrante de um diálogo cumulativo entre o ‘eu’ e o ‘outro’, entre
muitos ‘eus’ e muitos ‘outros’” (MARQUES, 2001, p. 41).
Considerando que a palavra penetra todas as relações entre indivíduos, Bakhtin, na noção de dialogis-
mo, recupera a importância do referente, isto é, além do significante e do significado, entra o contexto
das relações sociais em processo de interação4. Nessa dinâmica de uma esfera mais rica da linguagem,
a palavra é contemporânea do pensamento, ou seja, à medida que eu me expresso, tomo consciência
do que eu sei, reverto e reorganizo o que eu tenho implicando num sentido de atuação ao discurso e
de possibilidade de expressão da atividade mental. Bakhtin enfatiza o “encontro com o outro” na forma-
ção da consciência. Considerando os fundamentos sociológicos da consciência, afirma que ela “adquire
forma e existência nos signos criados por grupo organizado no curso de suas relações sociais” (1997,
p. 35). Propondo a dialética do interno e do externo, mediada pela interação verbal, o autor reafirma
a atuação do sujeito implicado em sua realidade social declarando que “o pensamento humano nunca
reflete apenas o ser de um objeto que procura conhecer; com este ele reflete também o seu do sujeito
cognoscente, o seu ser social concreto” (2001, p. 22).
O destaque dado ao referente revela que o caráter interativo da linguagem constitui a base da teoria
bakhtiniana, uma vez que as palavras “servem de trama a todas as relações sociais em todos os do-
mínios” (BAKHTIN, 1997, p. 41). Reforçando a importância do discurso vivido e partilhado pelos seres
humanos no processo de interação social5, o autor afirma que o diálogo se caracteriza como uma forma
privilegiada de interação (BAKHTIN, 1997, p. 123). Essa recuperação do referente na perspectiva da
heteroglossia (pluralidade de vozes) pressupõe uma idéia de cultura não unitária pois implica a tomada
de consciência quanto à pluralidade dos modos de discurso, de suas especificidades e de suas relações
com os elementos de valoração presentes no contexto, ou seja, um jogo social de “trocas constantes
e versáteis de oposição”6 (MARQUES, 2001, p. 59 e STAM, 1992, p. 101). Nesse “embate”, para além
da repetição, a categoria de criação se expressa porque as possibilidades e as perspectivas que estão
latentes na palavra são infinitas (BAKHTIN, 1992, p. 348)7.
O sujeito baktiniano possui um estatuto heterogêneo. Ele se constitui em atuação, modifica seu dis-
curso em função de outros discursos, emerge do outro, existe a partir do diálogo com o outro. A palavra
adquire um caráter criativo no processo de apropriação das “palavras alheias”, na produção da “palavra
pessoal” (BAKHTIN, 1992, p. 405-406). O conhecimento e o fundamento do sujeito se expressam no
discurso que ele produz, portanto, seu conhecimento só pode ser dialógico. O autor afirma a consciência
na palavra, a clareza definitiva na “formulação verbal”, e ancora o sujeito na comunidade uma vez que “o
todo verbal” no comportamento do homem pertence “ao seu grupo social” (2001, p. 84-87) concebendo

2 A noção de dialogismo – que tem importância central no pensamento e no método de Bakhtin – apresenta como idéia central a relação entre o enunciado
e outros enunciados. Essa noção não confina a linguagem a um sistema fechado de regras e exceções, mas observa sua constituição nas situações concretas
que lhe dão significação. De forma resumida, a linguagem, numa concepção dialógica (BAKHTIN, 1992 e 1997), destaca-se como: um espaço em que os
valores contraditórios se expressam, é o modo mais puro e sensível da relação social, é o produto da interação viva das forças sociais em que “cada enun-
ciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados” (BaAKHTIN, 1992, p. 291); um fenômeno histórico, pois cada época e cada grupo social
tem seu repertório de formas de discurso; um fenômeno associado ao ato consciente que tem implicações na comunicação humana, pois penetra todas as
relações dos indivíduos.O dialogismo baktiniano comporta as noções de diálogo entre interlocutores (na relação entre sujeitos se constroem o sentido do
texto, a significação das palavras e os próprios sujeitos) e diálogo entre discursos (o permanente diálogo entre os diversos discursos que configuram uma
sociedade, uma comunidade, uma cultura).
3 A relação entre o homem e a vida é proposta no pensamento baktiniano a partir do princípio dialógico em que a alteridade constitui a marca do humano,
uma vez que “o outro é imprescindível”. Assim, a dialogia se constitui no jogo social em que o confronto das entoações e dos sistemas de valores que posi-
cionam as mais variadas visões de mundo dentro de um campo de visão se materializam na construção da vida. Bakhtin (1992, p. 35-36) afirma que “na
vida, agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta o que é transcendente à nossa própria consciência:
assim, levamos em conta o valor conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode causar a outrem (...)”.
4 O autor (2001, p. 79) afirma que “nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem a enunciou: é produto da interação entre
falantes e, em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu”.
5 Para o autor (1997, p. 112-113) a estrutura da enunciação concreta é determinada pelas relações sociais compreendendo a situação social imediata e o meio
social amplo, ou seja, a palavra se orienta em função da interlocução no horizonte social das “fronteiras de uma classe ou de uma época bem definida”.
6 O autor (1997, p. 46) afirma que “em todo signo ideológico se enfrentam índices de valor contraditório”, razão pela qual “o signo se torna a arena em que
se desenvolve a luta de classes”. Considerando que as sociedades são comunidades semióticas compartilhando códigos, estes se tornam lugar privilegiado da
luta de classes. Segundo Bakhtin (1997, p. 44-47), a classe dominante tende a transformar os códigos sociais em algo monovalente, quando na realidade,
são necessariamente polivalentes.
7 O autor tratando da relação entre o dado e o criado no enunciado verbal afirma que: “O enunciado nunca é simples reflexo ou expressão de algo que lhe
preexistisse, fora dele, dado e pronto. O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira, algo novo e irreproduzível, algo que está sempre rela-
cionado com um valor (a verdade, o bem, a beleza, etc.). Entretanto, qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é dada (...). O dado se
transfigura no criado (...). As possibilidades e as perspectivas que estão latentes na palavra; na verdade, são infinitas. Os limites dialógicos entrecruzam-se
por todo o campo do pensamento vivo do homem” (1992, p. 348).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 208


a existência humana dentro das condições sócio-econômicas objetivas de uma sociedade (2001, p. 22).
Essa dinâmica implica um sujeito incompleto em busca da “completude inconclusa” (Marques, 2001, p.
56) em permanente atuação/criação, desmascara o mito da autonomia individual (STAM, 1992, p.30) e
concebe a realidade como contraditória e em permanente transformação8.
2.2. Certeau e as operações dos usuários
Ao sujeito constitutivo de Bakhtin, é possível associar a idéia de sujeito inventivo de Certeau. Em
Certeau, a ação se relaciona às táticas e às estratégias que retratam as práticas e resistências nas ações
humanas no jogo social. Na inventividade é possível captar um espaço de movimentação/atuação do
sujeito onde pode surgir uma liberdade (GIARD, 1995, p. 14). Antes de pensar no sujeito como sempre
assujeitado e no coletivo como uma massa amorfa (fruto de um arcabouço teórico marcado pelo estru-
turalismo) é preciso observar as situações de interlocução nas práticas cotidianas. O contexto também
é destacado pelo autor. Por mais que haja processos de isolamento e silenciamento “a voz se impõe por
toda a parte” (CERTEAU, 1996, p. 337) constituindo a relação com o outro nas práticas cotidianas. Essas
práticas revelam a atuação do “homem ordinário” em suas “táticas para tirar partido das forças que lhes
são estranhas” (CERTEAU, 1994, p. 47) explicitando sua inventividade na atuação social9. Potencializar o
sujeito a partir das práticas cotidianas implica observar as operações efetuadas em função de objetivos
e de relações sociais:
Um primeiro aspecto dessas operações é estético: uma prática cotidiana abre um espaço
próprio numa ordem imposta, exatamente como faz o gesto poético que dobra ao seu desejo
o uso da língua comum num reemprego transformante. Um segundo aspecto é polêmico: a
prática cotidiana é relativa às relações de força que estruturam o campo social e o campo do
saber. Apropriar-se das informações, colocá-las em série, montá-las de acordo com o gosto
de cada um é apoderar-se de um saber e com isso mudar de direção a força de imposição
do totalmente feito e totalmente organizado. É traçar o próprio caminho na resistência do
sistema social com operações quase invisíveis e quase inomináveis. Um último aspecto,
enfim, é ético: a prática cotidiana restaura com paciência e tenacidade um espaço de jogo,
um intervalo de liberdade, uma resistência à imposição (de um modelo, de um sistema ou
de uma ordem): poder fazer é tomar a própria distância, defender a autonomia de algo
próprio (CERTEAU, 1996, p. 339-340).

Numa perspectiva focada nas práticas10, nas relações humanas e nas transformações das estruturas
da vida social, Certeau também trabalha com a noção de complexidade social e de relações sociais. O
autor rejeita a concepção dicotômica de cultura popular e cultura erudita para afirmar a idéia de “cul-
tura no plural”11 em que a cultura se revela como atividade social requerendo “uma forma específica de
apropriação, um trabalho que deve ser realizado em toda a extensão da vida social” (1995, p. 191-219).
Implica “um lugar especial que ocupamos e que nos determina na sociedade” (1995, p. 228). Portanto, a
perspectiva desenvolvida pelo autor o aproxima de Bakhtin na proposição de uma cultura não unitária.
Nas artes de fazer o cotidiano envolvendo a linguagem, o sujeito e o discurso, o autor advoga que
além das estagnações, ocorrem também mobilizações (e esse é seu foco de interesse investigativo12)
que revelam as ações dos sujeitos na materialidade discursiva. Nesse aspecto, a categoria de criação é
realçada pelo autor. Ele afirma que, “na realidade, a criação é uma proliferação disseminada. Ela germina”
(1995, p. 242). No entanto a ideologia da reprodução nega a ação do sujeito na sociedade e na língua.
Desse modo, por caminho diferenciado de Bakhtin, o autor envolve a luta de classes na produção social
da realidade13. Nesse aspecto, a ênfase na criação não trabalha com a idéia do isolamento do sujeito14
nos seus momentos irruptivos de criação, mas a sustenta na idéia de coletividade15 ligada às transfor-
mações da estrutura da vida social. Para o autor (1995, p. 250)
as ações culturais constituem movimentos. Elas inserem criações nas coerências legais e
contratuais. Inscrevem trajetórias, não indeterminadas, mas inesperadas, que alteram,
corroem e mudam pouco a pouco os equilíbrios das constelações sociais.
8 Bakhtin (1992, p. 41-47) considera a ideologia de forma abrangente a partir da contradição, portanto concebe a luta de classes tendo o signo como a
arena onde ela se desenvolve. Essa “paisagem social” (de luta da classe dominante contra a plurivalência social do signo e tentativa de estabelecer uma
monovalência deste) implica relações ente a infra-estrutura e as superestruturas. Konder (1990) também destaca a visão ampliada da ideologia proposta
por Bakhtin.
9 Certeau (1994, p. 97-102) assinalando os “indicadores de criatividade” nas práticas de apropriação, explora dois tipos de lógica de ação no reemprego
dos “produtos”: a estratégia – ações que, por postularem um lugar de poder, “elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes) capazes de
articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem” (p. 102) - e a tática – a arte do mais fraco que, por não ter um lugar próprio, joga
com o terreno que lhe é imposto.
10 Segundo o autor (1995, p. 233-234) “as maneiras de utilizar o espaço fogem à planificação urbanística (...). Ocorre o mesmo com as maneiras de viver
o tempo, de ler os textos ou de ver as imagens. Aquilo que uma prática faz com os signos pré-fabricados, aquilo que estes se tornam para os usuários ou
receptores, eis algo essencial que, no entanto, permanece em grande parte ignorado. Lá se produzem mobilizações e estagnações (...).”
11 Na concepção de cultura do autor (1995) “é preciso que as práticas sociais tenham significado para aqueles que a realizam” (p.141), é uma prática
significativa em que cada um “marca aquilo que outros lhe dão para viver e pensar” (p. 143) e envolve as “revoluções invisíveis” que “delineiam a chance
de um outro dia” (p. 239).
12 O autor (1994, p. 13) reforça a importância do interesse pelas operações dos usuários afirmando que “é mister ocupar-se com as maneiras diferentes
de marcar socialmente o desvio operado num dado por uma prática”.
13 Para o autor (1995, p. 245), “de certo modo, um meio particular impõe a todos como a lei àquilo que é somente a sua lei. Uma classe privilegiada marca
assim seu poder na educação e na cultura”. No entanto, não consegue, de todo, controlar os “campos” de criação presentes no cotidiano.
14 O autor (1994, p. 37-38) afirma que o exame das práticas “não implica o regresso aos indivíduos”, esse postulado está fora do seu campo de estudo.
Ele esclarece que seu foco é a relação social e os modos de operação ou esquemas de ação.
15 Para o autor (1995, p. 242), “somente isso [a coletividade] lhe permite introduzir-se na duração”.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 209


É possível captar nos trabalhos de Certeau uma concepção de linguagem que se aproxima dos pres-
supostos desenvolvidos por Bakhtin. A linguagem como uma prática viva se materializa na idéia de que
“o ato de falar (e todas as táticas enunciativas que implica) não pode ser reduzido ao conhecimento da
língua” (1996, p. 40). Trabalhando sob a perspectiva da enunciação, o autor afirma que seu objeto de
estudo (captar as operações dos usuários) privilegia o ato de falar. Fazendo referências a Benveniste
afirma que o ato de falar:
opera num campo de um sistema lingüístico, coloca em jogo uma apropriação, ou uma
reapropriação, da língua por locutores; instaura um presente relativo a um momento e a
um lugar; e estabelece um contrato com o outro (o interlocutor) numa rede de lugares e
de relações.

O autor afirma que as características relativas ao processo criativo no ato enunciativo encontram-se
em muitas outras práticas indicando que a linguagem também ocupa uma centralidade em seu projeto
investigativo das operações dos usuários na produção social da realidade.
2.3. Castoriadis e o confronto entre o instituído e o instituinte
O projeto investigativo de Castoriadis consistiu em retomar a questão da unidade entre a filosofia e a
política (tratada por Marx) postulando a política como ato instituinte. O autor também chama a atenção
para a produção social da realidade graças à atividade humana. O homem, ser determinado do “pen-
samento herdado”, também guarda seu espaço de indeterminação, uma vez que as determinações da
realidade humana e social não são suficientes para explicar o todo da criação humana (CASTORIADIS,
1992). Desse modo, contamos com um espaço de criação que pode ser marcado como um espaço de
emancipação ou de alienação. O autor (1982, p. 164) destaca na categoria de criação o processo dinâ-
mico da existência do homem em sua relação com a sociedade
O homem só pode existir definindo-se de cada vez como um conjunto de necessidades e de
objetos correspondentes, mas ultrapassa sempre essas definições – e, se as ultrapassa [...],
é porque saem dele próprio, porque ele as inventa [...], portanto, que ele as faz fazendo e se
fazendo, e nenhuma definição racional, natural ou histórica permite fixá-las em definitivo.

Nessa relação de reciprocidade, a ordem social é produzida num fazer contínuo que através das
instituições sociais16 objetiva e estrutura a sociedade de modo que o social, caracterizado pelas formas
como cada sociedade se organiza socialmente, é delineado significativamente no âmbito do imaginário.
A categoria fundante do pensamento de Castoriadis é a história como criação. Nós fazemos a história,
somos os autores originários de significações que nós mesmos instituímos para o que existe. No entanto,
essa construção não pode ser atribuída à genialidade de alguns indivíduos ou a forças sociais localizadas
numa classe. Para o autor, há uma espécie de coletivo anônimo forte o bastante para pôr significações17.
O coletivo dos homens cria significações e instituições. Essa faculdade é chamada pelo autor de imaginário
radical que só pode existir na interação. É a imaginação criadora a capacidade dos homens, que pode
produzir diferentes sociedades, uma vez que “a imaginação, em sua essência, é rebelde à determinali-
dade”. Com isso, “a sociedade existe pela instauração de um espaço de representações compartilhadas
por todos” (CASTORIADIS, 1987, p. 336 e 386).
Nessa rede interativa a linguagem ocupa um papel essencial, uma vez que a vida cotidiana e a lingua-
gem se interpenetram possibilitando que a vida cotidiana se integre “numa totalidade dotada de sentido”.
Portanto, a compreensão da linguagem é essencial à compreensão da realidade da vida cotidiana e para
compreendê-la é necessário remeter ao movimento do sujeito uma vez que “o mundo que a língua faz
existir como mundo é sempre um mundo histórico” (CASTORIADIS, 1987, p. 178-179). Integrando dis-
curso e contexto na dinâmica social dos indivíduos18, Castoriaidis (1987, p. 188-189) afirma que
O que é criação numerosa e condensada de expressão nova acha sua condição de possibili-
dade na criação anônima, quotidiana, da qual todos participam e que mantém a língua viva,
transformando-a constantemente, bem como nessa operação paradoxal e perpetuamente
renovada pela qual a comunidade sucessiva e simultânea dos sujeitos falantes se recria a
si mesma, mostrando-se capaz de acolher o novo.

Para o autor (1987) a língua tem um papel primordial na criação de núcleos de sentido, significações

16 Para Castoriadis (1982, p. 159-164), as instituições, criação dos homens, atendem tanto à dimensão da funcionalidade quanto à dimensão do simbólico,
sendo impossível delimitar as fronteiras dessas dimensões. Assim, temos o componente do imaginário na instituição da sociedade, pois: “A funcionalidade toma
de empréstimo seu sentido fora de si mesma; o simbolismo refere-se necessariamente a alguma coisa que não é simbólico, e que também não é somente
real-racional. Este elemento, que dá à funcionalidade de cada sistema institucional sua orientação específica, que sobredetermina a escolha e as conexões
das redes simbólicas, criação de cada época histórica, sua singular maneira de viver, de ver e de fazer sua própria existência, seu mundo e suas relações
com ele, esse estruturante originário, esse significado-significante central, fonte do que se dá cada vez como sentido indiscutível e indiscutido, suporte das
articulações e das distinções do que importa e do que não importa, origem do aumento da existência dos objetos de investimento prático, afetivo e intelectual,
individuais ou coletivos – este elemento nada mais é do que o imaginário da sociedade ou da época considerada” (CASTORIADIS, 1982, p. 175).
17 Castoriadis chamou de imaginário social instituinte esse coletivo anônimo com poder de criação. Essas “formações coletivas” são também representa-
ções na “cabeça de homens reais”. Por isso, podem ter uma significação importantíssima, às vezes, decisiva, para o agir dos homens. Como conseqüência
desse potencial emancipador, esse poder é cada vez mais ocultado por nossa sociedade instituída que recorre a forças extra-sociais e supra-humanas para
explicar sua própria instituição.
18 Bakhtin (1992, p. 346), enfatizando a inter-relação entre a vida e a linguagem, afirma que “a língua, a palavra, são quase tudo na vida de um homem”.
Para o autor (1992, p. 282), “a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos
que a vida penetra na língua”. Desse modo, o autor ressalta a dimensão lingüística do embate social em que os seres humanos são formados pela língua
e, concomitantemente, ajudam a formá-la.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 210


centrais, organizadores do mundo, que, uma vez admitidos, pertencem ao mundo, se tornam públicos.
E apoiando-se nessas “significações disponíveis” (ou nos instrumentos e instituições) novas significa-
ções podem emergir. Na relação entre o ser do mundo e o ser da língua, o autor considera que “sobre
o mundo, há sempre uma outra coisa a dizer e a língua torna perpetuamente possível um dizer novo”
(p. 182). Uma vez que a língua torna possível também o não-fixável, “longe de selar uma alienação do
sujeito falante, a língua lhe abre um espaço de mobilidade sem limite assinalável” (p. 183).
O autor reforça que o homem também é dotado da “faculdade” de apresentar como real aquilo que
não o é, ou seja, é capaz de exercer a imaginação. Essa é a essência do homem, é no psíquico (imagi-
nação) e no social-histórico (imaginário) que encontramos a capacidade de criação do homem. Há um
surgimento perpétuo de um fluxo de representações, afetos, desejos indissociáveis e incontroláveis. O
controle desse fluxo é relacionado às atividades do indivíduo (que pode dirigi-lo para pensar em outra
coisa)19.
Assim, o fazer social e a ordem social se entrelaçam auto-gestando-se num processo de construção
incessante. Nesse processo dialético, os indivíduos vão se produzindo, tendo acesso - na socialização
como um processo de se “tornar social” (CASTORIADIS, 1992, p. 57-58) - a “um mundo de significações
imaginárias sociais que existem efetivamente (social-historicamente) sendo instituídas” (CASTORIADIS,
1992, p. 58). A tensão entre a abertura na possibilidade da construção do devir e o controle das ten-
dências à mudança social e da emergência disruptiva de novas formas de organização da vida histórica
social faz emergir a categoria de poder. Ele é instituído dentro de uma formação social com vistas ao
controle das decisões a respeito de como o futuro haverá de ser construído. Assim, o político encontra-se
no âmbito do instituído. Diferentemente, a política encontra no âmbito instituinte, uma vez que presume
a participação, ou seja, para Castoriadis, a política é uma atividade coletiva cujo objetivo é a instituição
da sociedade (1987, p. 290).
O autor demonstra em toda sua obra uma preocupação com a questão da autonomia. Torres (1992,
p.63) afirma que Castoriadis entende que a humanidade do presente tem que enfrentar o desafio de
gerar um novo eidos, uma nova forma histórica, e essa nova forma histórica não pode deixar de trans-
formar radicalmente as instituições políticas da democracia representativa e do capitalismo moderno.
Castoriadis propõe para enfrentar esse desafio que os indivíduos sejam senhores do seu próprio destino,
sejam responsáveis e capazes de refletir, deliberar e decidir produzindo a autonomia coletiva, ou seja,
uma sociedade autônoma que vence a heteronomia20 que aliena a sociedade de seu próprio produto, as
instituições. Assim a autonomia possui uma dimensão social. Não podemos desejar a autonomia sem
desejá-la para todos. Sua realização só pode conceber-se plenamente como empreitada coletiva (CAS-
TORIADIS, 1982, p. 129). A liberdade e a igualdade devem existir para todos. Em decorrência dessa
dimensão, a práxis, como uma atividade consciente, será o investimento na conquista da autonomia21.
Essa práxis é a intenção de uma transformação do real, guiada por uma representação do sentido
dessa transformação, levando em consideração as condições reais e animando uma atividade, ou seja,
essa práxis consiste no projeto revolucionário. Em resumo, os espaços instituintes consistem em “brechas”
a serem ocupadas para a materialização de uma práxis revolucionária através da imaginação radical com
vistas à implementação do projeto revolucionário. No entanto, ela não garante os “riscos” da história,
uma vez que os homens têm sido capazes de uma crueldade infinita uns com os outros. Os homens têm
um potencial imenso, criam sentido, portando, são capazes de criar igualmente o “in-sensato”. Uma vez
que ninguém pode proteger a humanidade contra o desatino ou o suicídio, a verdadeira atitude humana é
assumir, aceitar, tomar a si a indeterminidade, o risco, sabendo-se que não há nem proteção nem garantia.
Por isso, não se pode perder de vista a questão da responsabilidade na instituição da sociedade.
3. Em busca de síntese: aproximações, complementaridades e distanciamentos
A articulação do pensamento dos autores possibilita a compreensão de que o sujeito se constitui, é
constituinte e é inventivo na sociedade (e no discurso). Pode-se destacar o reconhecimento de que a
sociedade engendra os sujeitos num processo em que, ao mesmo tempo, os sujeitos atuam, inventam,
produzem significações. Participam do quadro histórico dado de modo que são sujeitos da e na história,
envolvidos e produtores de cultura, constituídos e constituidores da linguagem. Enfim, está posto a in-
determinalidade do devir na possibilidade de o homem se constituir e de reinventar a si e à sociedade
constantemente. Mesmo que trilhando caminhos diferenciados, o ponto de interseção entre os pressu-
postos dos autores consiste na proposição da constituição do sujeito como ser histórico e social.
Na relação do homem com o mundo, a centralidade da noção de “mediação do outro” fornece sentido
aos propósitos investigativos dos autores. Destacam o papel do outro como mediador da constituição do
sujeito e do discurso na produção social da realidade. Em diferentes instâncias, o “jogo social” é posto
na rede interativa da vida cotidiana. Na relação interativa, o papel do sujeito também pode ser captado.

19 O autor afirma (1987, p. 46) que a capacidade de formar fantasias é um componente necessário não apenas à vida inconsciente, mas também à vida
consciente exemplificando que você estará enfermo se não for capaz de um devaneio em que a garota de seus sonhos vem ao seu encontro, mas estará
igualmente enfermo se não for capaz de corrigir essa fantasia ao perceber que você não corresponde às expectativas dela.
20 Condição de pessoa ou de grupo que recebe de um elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho à razão, a lei a que se deve submeter. A
heteronomia consiste no fato de que a instituição da sociedade, criação da própria sociedade, é apresentada pela sociedade como sendo obra de alguém
mais, de uma fonte “transcendente” (1982, p. 41).
21 O autor afirma que a práxis apóia-se num saber, sempre fragmentário e provisório, fazendo surgir constantemente um novo saber. Está localizada no
âmbito da política, ou seja, no domínio do fazer instituinte em que a atividade visa, para além da elucidação, à transformação. Será o fazer que visa ao
outro (ou aos outros) como ser autônomo e considerado como agente essencial do desenvolvimento de sua própria autonomia.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 211


O espaço do sujeito pode ser captado em Bakhtin na dialética do subjetivo e do objetivo mediada pela
linguagem na interação social (eu/outro em interação pela linguagem)22. Em Certeau, a concepção de
cultura no plural demonstra a possibilidade de que, nas operações dos usuários (re-apropriação), o espaço
do sujeito em processo criativo e inventivo seja preservado. Em Castoriadis, o sujeito atua, considerando
a dialética interno/externo, na construção de significações que orientam a construção da “memória de
futuro” (GERALDI, s/d) da sociedade, ou seja, a perspectiva de futuro que orienta as ações do presente.
Todos consideram a subjetividade na possibilidade da autoria ao destacarem a inventividade, a criativi-
dade e o estabelecimento de sentidos e ao conceberem o homem como um ser expressivo e produtor
de objetos culturais. Apontam a importância do social na constituição do sujeito, mas assinalam que
seu determinismo não se configura em totalidade, uma vez que “quanto mais o homem compreende
que é determinado (reificado), mais perto está de compreender também, e de realizar, a sua verdadeira
liberdade” (BAKHTIN, 1992, p. 379).
A linguagem, em sua natureza social e em suas diferentes modalidades, se mostra determinante na
produção de significados e na produção de identidades sociais sendo também, condição para a ação
humana, uma vez que é através dela que os seres humanos “dão forma àqueles modos de falar que
constituem sua percepção do político, do ético, do econômico e do social“ (GIROUX, 1999, p. 31) na
“arena” cotidiana. Os autores concebem a linguagem como produção. Bakhtin, através da idéia de po-
lifonia, polissemia e do dialogismo; Certeau, através da noção de inventividade nas operações culturais
da linguagem “ordinária” e Castoriadis, através do pressuposto das significações coletivas mediadas
pela linguagem.
Considerando que todos os autores desenvolveram uma construção teórica buscando envolver dife-
renciados campos do conhecimento, uma vez que trabalham com uma concepção de realidade dialética,
complexa e contraditória, os temas constituidores dos arcabouços teórico-metodológicos demonstram
suas especificidades e particularidades.
A construção da obra de Bakhtin não é unívoca. Todorov (1992) destaca que a unidade da obra de
Bakhtin está em sua concepção de que “o inter-humano é constitutivo do humano”. Ao estudar a lingua-
gem, Bakhtin discutiu temas como a luta de classes e a ideologia possibilitando situar seu trabalho num
contexto mais amplo. Com relação ao interesse do autor pelo contexto ampliado das relações sociais em
confronto com responsabilidade pessoal, Stam (1992, p. 17) afirma que entre 1918 e 1924 o autor fez
diversas tentativas de tratar da temática da responsabilidade ligada à perspectiva da arte. Num desses
ensaios, o autor argumenta que “cada um de nós é responsável, ou ‘respondível’, por nossas atividades.
Essas atividades correm nas fronteiras entre o eu e outro, e, portanto, a comunicação entre as pessoas
tem uma importância capital”. Stam (1992, p. 101) afirma ainda que “a contribuição mais importante
de Bakhtin talvez seja de caráter político”, uma vez que a sua noção de heteroglossia, pressupõe uma
cultura fundamentalmente não unitária na qual diferentes discursos existem em relações cambiantes e
multivalentes de oposição.
Certeau, ao centrar seus estudos na perspectiva do grupo social, da criação de seu espaço de movi-
mentação, desenvolveu uma visão inovadora de cultura. Sob a concepção de cultura no plural é possível
captar o espaço de atuação dos sujeitos. Conceber esse espaço implica o reconhecimento da luta de
classe e da ideologia presente na vida cotidiana. O autor apresenta também uma dimensão política ao
buscar captar a multiplicidade dos componentes e a contradição dos conflitos nos momentos históricos
com vistas a destituir a imposição de uma visão de mundo que produzia uma “grade” de conhecimen-
tos. Giard (1995, p. 07) assinala que a especificidade da perspectiva de Certeau, ao estudar a história
cultural e social, é construída “no entrecruzamento das disciplinas e dos métodos, associando à história
e à antropologia os conceitos e os procedimentos da filosofia, da lingüística e da psicanálise”.
Castoriadis, ao centrar sua reflexão no campo da história e da política (desenvolvendo a noção de
análise institucional, do instituinte e do instituído – em sua relação com a instituição do capitalismo – as-
sim como o conceito de imaginário social) também trabalhou no contexto mais amplo. Em toda a sua
obra, o autor demonstrou sua preocupação com a “falta” de investimento no processo revolucionário, ou
seja, com as relações de poder que se estabelecem e com a passividade das pessoas. Abordou a atrofia
de valores (1987) e a escalada da insignificância (1999) que fazem com que a sociedade se veja sem
representação de futuro, sem projeto, manifestando-se, assim, um conformismo generalizado. Ressal-
tando a importância da linguagem, ele propõe que se passe de uma cultura da culpa para uma cultura
da responsabilidade (CASTORIADIS, 1987). Valle (1999) afirma que não se poderia chamar Castoriadis
de “um otimista”, uma vez que para ele o imaginário social instituinte, como uma força de criação, pode
resultar tanto em emancipação quanto em alienação, tanto em autonomia quanto em dominação. Prefiro
localizar o autor no campo das possibilidades23, uma vez que a determinação do instituído não consegue
o controle total do imaginário social instituinte com vistas à perpetuação da ordem vigente. Sendo assim,
existe um espaço de indeterminação que pode constituir uma possibilidade de uma transformação social
que vise ao desenvolvimento da autonomia. Não obstante, os riscos do futuro permanecem abertos.

22 Konder (1990) destaca que Bakhtin, além de ser um teórico marxista da carnavalização e do riso é, também, “o teórico da realização do ser humano
através do diálogo, através da linguagem dialógica, na qual cada sujeito se abre para a experiência do outro, incorporando as diferenças e assumindo seu
inacabamento”.
23 Uma vez que Castoriadis rejeita o termo possibilidade na discussão empreendida pelos estruturalistas e pelos hegelianos por entender que ele tem um
sentido negativo em tais tendências, estou usando o termo em sentido amplo, no sentido “ativo” explorado pelo autor que implica criação, mas que não
quer dizer indeterminação, pois a criação é posição de novas determinações (CASTORIADIS, 1992, p.86-89).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 212


Assim, a partir das teorias de Bakhtin, Certeau e Castoriadis é possível captar um sujeito ativo, criativo
e inventivo “fincado” em seu contexto como um “campo de possibilidades” construído continuamente
em processo de interação. A complementaridade teórica dos autores incorpora o social, o cultural e o
histórico permitindo um distanciamento dos paradigmas cientificistas e uma aproximação de uma abor-
dagem ético-cultural.
Referências
BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HU-
CITEC, 2002.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). São Paulo: HUCITEC, 1998.
CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do Labirinto I. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1987.
CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do Labirinto II: domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1987.
CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do Labirinto III. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1987 – 1992.
CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do Labirinto V: Feito e a ser feito:. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
CASTORIADIS, C. et al. A criação Histórica. São Paulo: Artes e Ofício, 1992.
CERTEAU, M. de. A cultura no plural. Campinas, São Paulo: Papirus, 1995.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano 1. artes do fazer. Petrópolis: Rio de Janeiro: Petrópolis, 1994.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano 2. morar, cozinhar. Petrópolis: Rio de Janeiro: Petrópolis, 1996.
CÔCO, V. O processo de socialização com a leitura e a prática docente: implicações para a formação de professores.
Espírito Santo: UFES, 2000 (dissertação de mestrado).
GERALDI, J. W. A linguagem nos processos sociais de constituição da subjetividade: Questões para pensar a cidadania:
a língua e o imaginário. Campinas: circulação restrita, s/d.
GIARD, L. A invenção do possível. In: CERTEAU, M. de. A cultura no plural. São Paulo: Papirus, 1995.
GIROUX, H. A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em educação. Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 1999.
JAPIASSÚ, H. Apresentação: Paul Ricoeur: filósofo do sentido. In: RICOEUR, P. Interpretação e ideologia. Rio de Ja-
neiro: Francisco Alves, 1977. p. 1-13.
JOBIM E SOUZA, S. Infância e linguagem: Bakhtin, Vigotsky e Benjamin. São Paulo: Papirus, 1994.
KONDER, L. Bakhtin: um marxista do carnaval e do riso. In: Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro. 09/05/1990.
KRISTEVA, J. História da Linguagem. Lisboa: Edições 70, 1988.
MARQUES, M. C. S. S. Panfletos: uma leitura sob o olhar de Bakhtin e de Certeau. Porto Velho, Rondônia: EDUFRO,
2001.
POSSENTI, S. O sujeito fora do arquivo. In: MAGALHÃES, I. (Org.). As múltiplas faces da linguagem. Brasília: UNB,
1996. p. 37-47.
SCHAFF, A. Ensayos sobre filosofia del lenguaje. Barcelona: Ariel, 1973.
STAM. R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
TODOROV, T. Prefácio. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
VALLE, L. do. Apresentação. In. CASTORIADIS, C. Feito e a ser feito: as encruzilhadas do labirinto V. Rio de Janeiro:
DP&A, 1999. p. 7-11.
WERTSCH, J. V. A necessidade da ação na pesquisa sociocultural. In: WERTSCH, J. V., DEL RIO, P. e ALVAREZ, A.
Estudos socioculturais da mente. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 56-71.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 213


Nomes chave: Bakhtin – Certeau - Castoriadis
Palavras chave: Sujeito - linguagem – atuação – criação – interação – insti-
tuído - instituinte
Biografia: Sou Valdete Côco. Construí minha trajetória de estudo e de trabalho
voltada à educação com aproximação nas áreas de Formação de Professores e de
Linguagem. Na graduação, cursei Licenciatura Plena em Pedagogia. Na Pós-Gradu-
ação, realizei estudo de Pós-Graduação Lato Sensu em Planejamento Educacional
e Mestrado em Educação. Sou doutoranda em Educação na UFF na linha de pes-
quisa Linguagem, Subjetividade e Cultura com trabalho de pesquisa relacionado
a dimensão formadora das práticas em escrita de professores. Tive experiências
profissionais diversificadas: fui professora da escola básica; exerci, em diferentes
níveis, cargos de organização e acompanhamento na gestão do ensino e, atual-
mente, exerço a função de pedagoga e professora de Ensino Superior. Participei,
com apresentação de trabalhos e publicações em anais, de eventos científicos e
publiquei artigos em revistas da área educacional.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 214


Vozes da crítica: Clarice Lispector sob a égide da incompreensão

Roselene de Fatima Coito

Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste

R. Pernambuco, 1777 – Centro - Marechal Cândido Rondon - PR

RESUMO I
Levando-se em consideração que o texto literário é a materizalização de discursos que circulam na
sociedade, discursos esses que fazem transmigrar ideologias sociais do dizer no seu dizer, tomamos
como ponto de partida o questionamento da linguagem que constitui esse discurso – o literário - como
algo que produz efeitos de sentido na sociedade discursiva. Pelo fato de produzir efeitos de sentido, o
discurso literário pode revelar a interdição que determinados discursos sofrem quando há uma comuni-
dade de leitores, no nosso caso a crítica literária, que cerceia esse dizer por não tomá-lo como um dizer
que está no verdadeiro de uma época. Isso faz com que autores como Clarice Lispector tenham seu
dizer à margem dessa sociedade discursiva, como é o caso da produção literária infantil dessa autora
até os dias de hoje.
RESUMO II
Thinking about the literary text as materialisation of discourses that round in the society, discourses
that does transmigrate socials ideologies in your words, we make a point of language that constitutes
the literary discourse as something to produce effects of meanings in the discursive society. For that,
the literary discourse can revel the interdiction that some discourses receive when there is a lectors
communities, in this case the literary criticism, that forbidden this said (words) for cause of considering
this said out true of that historic moment. The consequence of that is the exclusion of authors in literary
Canon as Clarice Lispector with your literature for children.

Pensando no texto literário, texto tomado como materialização do discurso, podemos dizer que no
literário, além do ato explícito, temos o ato implícito como uma constante dissimulação do dizer. Por
isso Bakhtin se volta para a imagem da linguagem do homem, sendo que toma por imagem da lingua-
gem, o jogo de línguas passadas e futuras ou, ainda, as virtualidades da linguagem dada reveladas no
interdiscurso.
Por tomar a imagem da linguagem do homem como um dos pontos para a discussão do gênero
literário, é que a abordagem de Bakhtin se diferencia de outras correntes teóricas, as quais atribuem
à literatura um lugar privilegiado na sociedade além de tomarem a forma como algo fixo e isolado do
conteúdo. Bakhtin opera um deslocamento no conceito de gênero caracterizando-o como tema e forma
de composição.
Tema, para Bakhtin, é o sentido que resulta de uma interação, pois gênero é uma forma de produção,
forma de circulação e forma de recepção, e como tal é instável e sofre coerções da língua, do momento
histórico e do lugar da enunciação. A significação acontece numa interação e terá como resultado final
um sentido. Por isso, o gênero é a formatação (ou materialização) do signo ou uma forma de composição
que caracteriza o efeito de sentido como instável.
Quando dizemos que o efeito de sentido é instável, estamos pensando em textos que mudam de
configuração (ou materialização) conforme a época, como por exemplo, Os sermões de Padre Vieira,
que eram tidos como discurso de persuasão religiosa – argumentos ético-filosóficos, que com o reconhe-
cimento da sociedade, passa a ser considerado discurso literário – argumentos estético-filosóficos.
Portanto, pode-se dizer que a literatura não tem um compromisso com o real, mas com as virtualida-
des da linguagem dada do real. O discurso literário não quer convencer, é uma argumentação simulada,
se pensarmos nas estratégias de construção do literário e dissimulada, se pensarmos no funcionamento
real do discurso, conforme Fiorin, e uma mescla de gêneros, tomando o gênero no sentido bakhtiniano,
ou seja, gênero secundário pela complexidade de sua constituição.
Assim como “as particularidades formais da linguagem, dos modos e dos estilos do romance são
também símbolos de perspectivas sociais”, como asseverou Bakhtin, podemos dizer que a Literatura

Proceedings XI International Bakhtin Conference 215


Infantil, um gênero ainda mais recente do que o romance – nascido no século XVIII, juntamente com
o drama e o melodrama, mais do que símbolos de perspectivas sociais, é símbolo de um eu que cria o
efeito de sentido de cumplicidade - ou de autoritarismo - com um tu.
A obra infantil de Clarice Lispector oferece uma vasta exemplificação dessa relação dialógica entre
criança/texto/autor, na qual ressalta a riqueza desse diálogo para a construção do “leitor perspicaz”, pois
essa autora concede, estrategicamente, ao leitor infantil a plenitude dessa pluralidade.
Nos cinco livros infantis de Clarice Lispector, quais sejam, A mulher que matou os peixes, Quase de
Verdade, A vida íntima de Laura, O mistério do Coelho Pensante e Como nasceram as estrelas – doze
lendas brasileiras, o leitor infantil é figurado como participante ativo e inteligente na teia que se vai
tecendo no discurso.
Muito embora haja um vasto estudo de cunho psicanalítico sobre a escritura de Clarice, que não
abordaremos neste momento, o que pudemos perceber, principalmente nos textos dirigidos à criança, é
a preponderância do aspecto filosófico, tão bem investigado por Benedito Nunes em sua obra O Drama
da linguagem – Uma leitura de Clarice Lispector (1989).
Tomando aqui o filosófico como especulação sobre o real e como virtualidade da linguagem literá-
ria, podemos dizer que Clarice Lispector, enquanto sujeito que ocupa o papel de autora, produz textos
filosóficos na medida em que tem como cerne o questionamento, seja no texto da literatura destinada
ao adulto, seja no destinado à criança. Esse questionamento acontece quando, ao construir seus textos
subvertendo as estruturas tradicionais dos gêneros narrativos, Clarice questiona, através da figurativi-
zação e da tematização, a vida e a arte, especialmente a literária na aparente falta de lógica na ordem
da narrativa e, também, na ordem do “discurso próprio de Clarice”.
Falamos em “discurso próprio de Clarice” porque seus enunciados se entrecruzam e formam um mo-
saico tecido sobre um pano de fundo que poderá desvelar, no processo da leitura, uma das práticas de
construção do sujeito, um enunciador cúmplice da escritura na constituição do objeto (literatura infantil)
e na construção do sujeito (enunciatário mirim).
Clarice Lispector, também enquanto sujeito histórico e ideológico que interage dialogicamente com seu
leitor-enunciatário, delega voz à criança ao criar argumentações “cotidianas”, “filosóficas” e “literárias”, ou
o que Bakhtin chama de “linguagens que entram em contato entre si e se reconhecem uma às outras”.
Essas argumentações desvelam, ora com uma aura mágica ora com uma aura real, os limites entre o
imaginado e o vivido fazendo com que se definam e se confundam, criando o que aqui arriscamos chamar
de “argumentação dissimulada do discurso literário”. É nesse “jogo” de linguagem que vai construindo
o discurso configurado no mundo literário que a fabulação acontece.
Clarice Lispector recria o complexo e contraditório universo humano. Nessa recriação, ela penetra no
universo infantil com destreza artística, fazendo de seu enunciatário um ser questionador, observador,
perceptivo e sensível, engendrando-lhe uma memória polêmica ao dialogar com outros textos, consigo
e com o outro.
Esse dialogismo, a interação verbal entre interlocutores, é possível porque o discurso produz na
relação eu/tu uma reversibilidade tanto simétrica como assimétrica, ao mesmo tempo em que abre
ao enunciatário a possibilidade da resposta não-especular, pois o novo dizer (perspectivas teóricas re-
atualizadas) sobre o novo (o gênero literatura infantil) abre caminhos de reflexão sobre a escritura e a
leitura do universo infantil.
Por isso que, mesmo que uma comunidade de leitores – Chartier (1998) –, como impressores, escri-
tores, editores, leitores “mais hábeis”, insista em ditar modos da prática de leitura e usos legítimos da
leitura, Clarice Lispector permite que a criança perceba os jogos sociais de interdição por meio dos enredos
polêmicos que cria em seus textos e, ao mesmo tempo em que revela as interdições, revela-se cúmplice
de seu leitor, o que não acontece com a posição crítica (uma comunidade de leitores especializados em
literatura) diante da literatura infantil – gênero mais recente do que o romance - , se considerarmos o
processo histórico e histórico-literário de correntes teóricas mais herméticas.
Por isso, no nosso próximo item, discutiremos as posições que a crítica literária ocupa, em uma so-
ciedade discursiva (termo utilizado por Michel Foucault) ou ainda em uma comunidade semiótica (termo
utilizado por Mikhail Bakhtin), e os deslocamentos de olhar que se podem realizar quando se reflete
sobre o literário.
POSIÇÕES CRÍTICAS SOB A ÓTICA DE BAKHTIN: DESLOCAMENTOS DO OLHAR
Partindo do conceito de polifonia, Bakhtin analisa o romance atribuindo-lhe uma nova teoria que se
configura como um projeto discursivo que pode fazer emergir um novo olhar sobre o literário.
Em Problemas da poética de Dostoiévski, para o teórico russo, o fenômeno da polifonia refere-se
à manifestação, em um mesmo texto, de múltiplas vozes, sem que uma se sobreponha às outras. As
personagens dostoiévskianas constroem-se por meio de seus próprios discursos, e suas vozes têm au-
tonomia e por esse fato Bakhtin revela que não é a imagem do homem que se representa no romance,
mas a imagem da linguagem do homem que se deixa interpretar ao desvelar o contexto sócio-histórico
representado no texto.
Ao buscar essa imagem da linguagem do homem, na poética de Dostoiévski, Bakhtin lança uma nova
forma de se “olhar” a obra literária, pois “para o pensamento crítico-literário, a obra de Dostoiévski se

Proceedings XI International Bakhtin Conference 216


decompôs em várias teorias filosóficas autônomas mutuamente contraditórias, que são defendidas pelos
heróis dostoiveskianos” (1981, p. 01).
Por assegurar que é a imagem da linguagem do homem que é buscada na interpretação literária, o
autor caracteriza-se, para Bakhtin, como uma instância discursiva que, no texto, se dá como uma “cons-
ciência de uma consciência” ou “excedente de visão”, ao passo que, no discurso, ele é sempre o sujeito
de uma incompletude, que tem que se construir enquanto tal para dar coerência ao projeto discursivo.
Esses traços de incompletude exigem, em todo e qualquer discurso uma atitude responsiva. Por isso,
para o teórico russo,
Em todas as formas estéticas, a força organizadora é categoria de valores do outro, uma
relação com o outro enriquecida do excedente de valores inerente à visão exotópica que
tenho do outro e que permite assegurar-lhe o acabamento. O autor só se aproxima do herói
quando sua própria consciência está incerta de seus valores, quando está sob o domínio da
consciência do outro, quando reconhece seus próprios valores no outro que tem autoridade
sobre ela (através do amor e do interesse desse outro), quando o excedente da visão (o
conjunto de elementos transcendentes) está reduzido ao mínimo, está isento de tensão e
não tem um caráter de princípio. O acontecimento que ocorre se realiza entre duas almas
( quase dentro dos limites de uma única e mesma consciência de valores) e não entre o
espírito e a alma. [e mais adiante] A compreensão deve operar sobre o acontecimento, em
função dos princípios que lhe fundamentam os valores e a vida, dos participantes que o
vivem (não é a relação do autor com o material, mas a relação do autor com o herói que é
significante e tem caráter de acontecimento). (1997, p. 203 e 204)

Como podemos notar, Bakhtin, ao tratar da forma estética, que não se desvincula do conteúdo, atribui
ao criador uma força organizadora que se pauta na categoria de valores do outro. Esse outro é o herói
que tem caráter de acontecimento, ou seja, o herói é um autor-espectador e ao participar da instância
discursiva, apresenta-se com uma visão paralela à do autor. Muitas vezes, o herói pode se revelar como
uma consciência autônoma, já que na experiência estética “o autor, em seu ato criador, deve situar-se na
fronteira do mundo que está criando, porque sua introdução nesse mundo comprometeria a estabilidade
estética deste” (1997, p. 205).
Partindo da reflexão de que o herói é um autor-espectador, na medida em que é composto pelo discurso
e que compõe este discurso, é-nos permitido dizer que o herói tem uma certa autonomia na construção
arquitetônica do texto. Também não desconsideramos que o autor ocupa posições paratópicas , mas, ao
mesmo tempo, é um ser da incompletude, e, como tal, é uma instância discursiva do material verbal.
Todorov, mesmo concebendo a literatura como discurso, por não tomar o conceito de autor como
instância discursiva, critica Bakhtin, no prefácio de Estética da criação verbal. Diz Todorov:
... Em Dostoiévski, diz outro texto, “o autor não passa de um participante do diálogo (e seu
organizador)” (Estetika, p. 322): mas o parênteses destrói toda a radicalidade do que foi
dito antes. Se o indivíduo é o organizador do diálogo, não é apenas um mero participante.
Bakhtin parece estar confundindo duas coisas. Uma é que as idéias do autor sejam apresen-
tadas por ele, no interior de um romance, como tão discutíveis como as de outros pensado-
res. A outra é que o autor esteja no mesmo plano de suas personagens. Ora, nada autoriza
tal confusão, já que também é o autor que apresenta tanto suas próprias idéias quanto
as das outras personagens. [mais adiante] ... Dostoiévski não é uma voz entre outras nos
seus romances, é o criador único, privilegiado e radicalmente diferente de todas as suas
personagens, uma vez que cada uma delas não é, justamente, senão uma voz, enquanto
Dostoievski é criador dessa própria pluralidade. (1997, p. 12 e 13)

Todorov, sob a ótica estruturalista e formalista, toma o autor como um indivíduo, um sujeito não cindi-
do. Contudo, partindo dos estudos da filosofia da linguagem, Bakhtin pensa o indivíduo como sujeito que
tem atividade mental do eu, do nós e do para si. Essa atividade mental define os graus de consciência
e de elaboração ideológica do sujeito.
Portanto, o autor, enquanto sujeito social, tem seu dizer atravessado por múltiplos dizeres, tem graus
de consciência e de modelagem ideológica, e está sujeito a ter seu dizer dialogicamente construído pelo
herói e/ou pelas personagens.
Podemos encontrar a resposta para as críticas a Bakhtin no próprio texto de Bakhtin, de cuja edição
francesa, também, faz parte o prefácio crítico de Todorov. Argüi Bakhtin:
... A ingenuidade dos primeiros que colocaram a ciência em estudo foi acreditar que tam-
bém o mundo da criação compunha-se de elementos científicos abstratos; ora, acontece
que falamos o tempos todo em prosa sem nem desconfiar .O positivismo ingênuo aventa
que no mundo – ou seja, no acontecimento do mundo pois, de fato, é nele que vivemos,
agimos e criamos – lidamos com a matéria, com o psiquismo, com o número matemático
em sua relação com o sentido e com o objetivo de nosso ato, que é por aí que se pode
explicar qualquer ato e qualquer criação enquanto tal (o exemplo de Sócrates em Platão).
Ora, tais noções explicam apenas o material do mundo, o aparato técnico do acontecimento

Proceedings XI International Bakhtin Conference 217


do mundo. O ato e a criação superam o material do mundo de uma forma imanente. Esse
positivismo ingênuo repercutiu nas ciências humanas (a concepção ingênua do cientismo, tal
como ela é aceita em nossos dias). O que se trata de compreender não é o aparato técnico,
mas a lógica imanente à criação, e, acima de tudo, a estrutura dos valores do sentido na
qual a criação se desenvolve e toma consciência de seus próprios valores, o contexto em
que o ato criador é pensado. A consciência criadora do autor-artista jamais coincide com
sua consciência lingüística; ... Assim portanto, a consciência criadora do autor não decorre
de uma consciência lingüistica (no sentido lato da palavra) que não é mais do que uma fase
passiva da criação: a fase em que o material é superado de modo imanente. (1997, p. 207
– 208)

Bakhtin defende, portanto, o ato criador como algo que vai além da estrutura e da forma, sem, con-
tudo, desprezar o valor dos estudos até então realizados, muito embora diga que todos os elementos
lingüisticos são importantes, mas não ocupam o primeiro lugar da atividade criadora e nem a determi-
nam, mas são determinados por ela. Com isso, ele quer dizer que o trabalho com a linguagem vai além
de formas e estruturas. O trabalho com a linguagem está inserido num contexto de valores do autor e
num contexto de valores do contexto literário. Isso faz com que a autonomia do herói seja possível.
A autonomia do herói fica clara na citação de Bakhtin:
À semelhança do Prometeu de Goethe, Dostoiévski não cria escravos mudos (como Zeus)
mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador; de discordar dele e
até rebelar-se contra ele. [continua o teórico] Por isso o romance de Dostoiévsk tem a tarefa
de construir um mundo polifônico e destruir as formas já constituídas do romance europeu,
principalmente do romance monológico (homofônico). (1981, p. 2 e 3)

Sendo o herói, da poética de Dostoiévski, um ser – ou uma personagem – livre, a posição da crítica
se torna ou confusa ou inadequada diante do novo. Diz Bakhtin: (1981, p.05) “É por isto que todas as
grandes monografias sobre Dostoiévski, baseadas na monologação filosófica de sua obra, propiciam tão
pouco para a peculiaridade estrutural do seu mundo artístico por nós formulada ...”, pois que, é preciso
não apenas dar “um enfoque nas idéias por si mesmas mas também das obras enquanto totalidades
artísticas”.
Ao estabelecer parâmetros entre um estudo e outro, Bakhtin cita em seu ensaio os primeiros estudio-
sos que buscaram a “totalidade artística” nas obras polifônicas de Dostoiévski, que foram: Vyatcheslav
Ivanov (que, segundo Bakhtin, tateia a peculiaridade estrutural do universo artístico de Dostoiévski, mas
permanece nos limites da cosmovisão monológica formulada do autor, apesar de ter penetrado na essência
dostoiévskiana da afirmação do “eu” do outro não como objeto mas como sujeito) e S. Askóldov (que
“entendeu corretamente que o principal em Dostoiévski é a visão inteiramente nova e a representação
do homem interior e, conseqüentemente, do acontecimento que relaciona as pessoas interiores; não
obstante, transferiu sua explicação para a superfície da cosmovisão do autor e a superfície da psicologia
das personagens”), os quais não atingiram o verdadeiro postulado de Dostoiévski, segundo Bakhtin.
Outros teóricos, com os quais, evidentemente, Bakhtin não concorda, analisam a obra dostoiévskiana
como objeto da lingüística, tomando sua linguagem como uniforme, não-dialógica.
Sob um outro ângulo, o da própria construção artística, alguns estudiosos contribuíram substancial-
mente para o entendimento da polifonia do romance dostoiévskiano, apesar de apresentarem alguns
pontos que Bakhtin põe em discussão. Entre esses estudiosos, podemos citar, apenas com o intuito de
elucidar a disparidade de posições da crítica diante do texto literário, os teóricos: Leonid Grossman, Otto
Kaus, V. Komaróvitch, B.M Engelgardt e Lunatcharsky.
Bakhtin não está de acordo com os apontamentos desses teóricos porque, segundo ele, “o principal
na polifonia de Dostoiévski é justamente o fato de ela realizar-se entre diferentes consciências”, ou seja,
a polifonia se dá na interação verbal e na interdependência entre essas consciências.
A interação verbal para Bakhtin é o princípio do dialogismo, pois para Bakhtin, “o mundo interior e
a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se
constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações, etc” (1999, p. 112-113), tanto que
esse filósofo arrola o fato de a palavra proceder de alguém e dirigir-se a alguém, não como um diálogo
necessariamente harmônico como pregava a teoria da comunicação que deu uma interpretação enviesada
ao processo de comunicação jakobsoniano, mas como um produto da interação do locutor e do ouvinte,
não do locutor para o ouvinte.
Também, a palavra, para Bakhtin, “é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros”, não de
mim para os outros, pois por meio da palavra o sujeito se define em relação ao outro e em relação à
comunidade. Por isso “o grau de consciência, de clareza, de acabamento formal da atividade mental é
diretamente proporcional ao seu grau de orientação social” (1999, p. 114). Contudo, a atividade mental
divide-se em duas modalidades: do eu e do nós, que serão os limites na tomada de consciência e na
elaboração ideológica.
Na atividade mental do eu há uma auto-eliminação do sujeito, restando somente o indivíduo, este
que se aproxima da reação fisiológica do animal, ao passo que, na atividade mental do nós permite-se
diferentes graus e diferentes tipos de modelagem ideológica. Além disso, Bakhtin diferencia a atividade
mental do eu da atividade mental do para si. Esta é o que chama de individualismo, ou seja, é “uma
Proceedings XI International Bakhtin Conference 218
forma ideológica particular da atividade mental do nós”, que é uma orientação sólida e afirmada que vem
do exterior, como por exemplo de classes sociais inseridas num sistema organizado, que faz parte de um
sistema dentro de outro sistema, como é o caso da classe burguesa. Portanto é um micro-poder dentro
de um macro-poder, se pensarmos na filosofia foucaultiana, rechaçando sua função de indivíduo enquanto
indivíduo e tomando a palavra consciência não como um ato individual interior mas um fato social.
Por isso, estudiosos que insistem em dizer que Bakhtin é humanista, no sentido de pensar o homem
em sua individualidade, desconhecem a “desconstrução” reflexiva acerca do que seja indivíduo e do que
seja sujeito, do seja sistema histórico, ideológico e literário feita por este filósofo, já que os estudiosos
do subjetivismo idealista tratam da representação do homem no literário ou não-literário.
Se em Marxismo e Filosofia da Linguagem Bakhtin fornece os primeiros impulsos para a reflexão do
lingüístico e do literário sob a ótica marxista, o ensaio mais significativo sobre a obra de Dostoiévski
para Bakhtin foi o de Grosman.
Foi a partir do ensaio de Grosman, que ele abordou o aspecto polifônico na composição da obra, que
se diferenciou análises histórico-literárias e/ou histórico-sociológicas da literatura enquanto uma filosofia
da linguagem, como um discurso.
Por isso, é preciso sempre lançar um novo olhar sob a criação artística, o olhar do criador diante da
criação, e, como diz Bakhtin, “entendida corretamente, a forma artística não formaliza um conteúdo já
encontrado e acabado mas permite, pela primeira vez, percebê-lo e encontrá-lo”. E é por isso que, no ca-
pítulo II de Marxismo e Filosofia da Linguagem, a abordagem sobre a percepção da personagem como ser
autônomo nas obras de Dostoiévski, “obriga-nos” a fazer, sempre, uma nova leitura critíco-literária, a fim
de que possamos entender o sentido de novas formas artísticas, que no caso de Dostoiévski, no romance
polifônico, cria (constrói) um herói que representa, por meio de sua plenivalência e autoconsciência, o
que é mais profundo no homem: ser um ser inacabado. Por isso, partiremos para o tópico seguinte com
o intuito de discutirmos os olhares sobre a produção da leitura da literatura infantil clariciana.
DESVELANDO O VELADO UNIVERSO DA CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA
Se tomarmos o cânone como um conjunto de leitores especializados – com direito à voz na sociedade
– que sacralizam o literário, vemos que Clarice não estava (e não está) no verdadeiro da época em que
se encontrava, talvez porque tenha como marca literária subversão do que se tem como cânone de uma
época, mais especificamente dos anos 40 e 50, conforme podemos ver nos relatos abaixo.
Na Revista Bravo (1997, p. 76-77) temos no relato de Carlos Heitor Cony:
... Durante anos, seus livros ficaram amontoados nos sebos da cidade...
Não foi a crítica que descobriu Clarice Lispector. Foram os leitores, principalmente leitoras,
ao atingirem o nível universitário. De repente sua obra começou a ser lida e discutida, era
a preferida para teses de mestrado. Vieram em cascata as traduções e os estudos críticos,
publicam-se, no Brasil e no exterior, os primeiros ensaios acadêmicos... Nascia um fenôme-
no que vinha de baixo para cima, que subia do leitor para a crítica, do limbo para o Olimpo
editorial.

E na Revista CULT (1997, p. 57), no relato de Gilberto Figueiredo Martins:


Três críticos em especial detiveram-se na leitura do romance [Perto do coração Selvagem];
lidos hoje, seus ensaios documentam e registram exemplarmente um inevitável desnorte-
amento de pressupostos críticos, atestando uma dificuldade insistente que se fixaria por
algum tempo na recepção crítica dos textos da autora”. E, depois de citar alguns críticos
(Antônio Cândido, Sérgio Milliet, Álvaro Lins e Roberto Schwartz) e suas posições diante do
texto inaugural de Clarice Lispector, menciona na página 58:
“Mas é principalmente a partir da primeira metade da década de 60, já publicados livros de
contos e outros dois romances (O lustre e A cidade sitiada), que se consolidará o interesse
dos críticos pela obra de Clarice Lispector”.

Perguntamos para Gilberto Figueiredo Martins: será mesmo que a obra de Clarice se consolidou?
Pensando na questão das unidades do discurso proposta por Michel Foucault em A Arqueologia do
Saber (1986), esse filósofo diferencia livro de obra. O livro é tomado como um “feixe de relações”, um
“nó numa rede”, “que só se constrói a partir de um campo complexo de discursos” (p.26), e obra como
opus determinada em sua unidade. No entanto, se considerada como algo imediato, certo, homogêneo,
perde-se a capacidade de perceber os discursos “no jogo de sua instância”, discursos esses que circulam
numa sociedade. Além disso, a obra tida como algo imediato impede construção de enunciados diferentes
dos enunciados das vozes autorizadas pela sociedade, vozes essas que chamamos de cânone. Isso nos
leva a perceber que ainda hoje a obra de Clarice não se consolidou.
Também, por vermos os que as revistas especializadas falam sobre a produção de Clarice excluindo
quase que completamente sua produção de livros infantis, podemos dizer que seu discurso ainda sofre
interdições, já que os livros infantis produzidos pela autora são desconsiderados pelas vozes autorizadas,
ou seja, pela voz do cânone, o que demonstra a precariedade da crítica literária ao descartar as irrupções
e saberes de nossa época.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 219


Como vimos na citação do trecho do texto de Paul Hazard, publicado em 1967, na França, alguns
poucos demonstram-se preocupados com a literatura e a leitura que são produzidas para o público infantil
daquele país, fato esse que parece não ser tão relevante nessa nossa sociedade discursiva: a academia,
os críticos de literatura, os editores.
Muito embora sejam lançados programas de leitura, até mesmo envolvendo a mídia, onde está o
“verdadeiro leitor”? No terceiro grau? Que práticas de leitura efetivamente se têm em nossa sociedade
discursiva? Será que novamente os textos de Clarice deverão sair do limbo para chegar ao Olimpo?
Se levarmos em conta que “a leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção; que ela
é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros” e que “um texto só
existe se houver um leitor para lhe dar um significado”, concordando com Chartier (1998, p. 16 e p. 11
respectivamente), os textos infantis de Clarice ainda estão, por imposição daqueles que se constituem
como “a voz autorizada”, fora do cânone. Para exemplificarmos essa afirmativa citaremos alguns exemplos
de como o cânone precisa rever sua posição sobre este embate sócio-histórico-ideológico literário.
Pensando na produção crítica de leitores de Clarice Lispector dirigida ao terceiro grau, temos alguns
exemplos ilustrativos de como se dá a “inclusão” e a exclusão de sua produção, principalmente a infantil,
nos livros que formam o cânone literário brasileiro. Portanto, começaremos a apresentar, apenas para
exemplificar, como cada autor-crítico cita as obras de Clarice Lispector.
- O livro de Alfredo Bosi, História concisa da Literatura Brasileira , 3.ed., São Paulo: Cultrix, 1997,
p. 478 – 481, aponta alguns elementos sobre a produção escrita por Clarice e um pouco sobre sua vida.
Sobre a produção infantil não faz nenhum comentário.
- No livro de Antonio Cândido e J. Aderaldo Castello, Presença da Literatura Brasileira, 9. Ed., São
Paulo: DIFEL, 1983. Nenhum comentário sobre Clarice, embora haja depoimentos (críticos) e um ensaio
de Antônio Cândido específico sobre Clarice Lispector. Mas nesse livro, especificamente, não há nada
sobre a autora.
- Na Revista do Departamento de Teoria Literária, Remate de Males, nº 09, Unicamp: Campinas,
1989. Nenhum comentário sobre a produção infantil dessa escritora.
- No livro de Nádia Battella Gotlib, Clarice- uma vida que se conta, São Paulo: editora Ática, 1995.
Há citações de todos os textos infantis de Clarice, mas em sua maioria para contar uma passagem da vida
de Clarice. Por exemplo, da página 285 à página 289 há um breve comentário sobre o livro O mistério
do coelho pensante. O título dessa parte vem como: “Nos Estados Unidos – Em Washington: a mãe-es-
critora”. Gotlib discorre sobre fatos reais ocorridos na vida de Clarice e diz: “Pode-se afirmar, pois, que
foi como mãe que Clarice Lispector ingressou na literatura infantil. E como mãe-escritora solicitada pelo
filho. Teria sido uma forma de ele, assim, lhe chamar a atenção, quem sabe? “ (p.287).
Em páginas subseqüentes, Gotlib aponta os outros textos infantis. Da página 383 à página 389 comenta
sobre A mulher que matou os peixes, e também mistura situações daquele momento da vida de Clarice;
da páginas 401 à página 402, faz uma leitura breve de A vida íntima de Laura e fecha o comentário com
uma passagem da vida de Clarice; e, finalmente da página 445 à 446, cita rapidamente Como nasceram
as estrelas – doze lendas brasileiras e Quase de Verdade – (obras póstumas).
Muito embora seja esse um dos únicos livros que comentem a produção infantil de Clarice Lispector
e também por considerá-lo como um livro bússola para quem está se iniciando na leitura sobre a crítica
da literatura clariciana, parece que aliar o ingresso de Clarice na literatura infantil à situação de mãe
diminui o valor de sua produção para crianças, como se toda e qualquer criança não tivesse o direito ao
livro infantil que a trate, como diz Paul Hazard, “de igual para igual”, e como se aquela criança que não
tivesse uma mãe-escritora não merecesse Ter um livro produzido para ela e nem que merecesse ler. É
certo que o título do livro é Clarice – uma vida que se conta, mas o fato de enlaçar vida e obra não quer
dizer desmerecer alguns livros que compõem a obra só porque se destina a um público específico – a
criança.
Já nos livros didáticos dirigidos a leitores do Ensino Médio temos alguns exemplos, também ilustra-
tivos, dessa “incursão literária” na produção de Clarice Lispector:
- No livro do Professor Maia, Curso prático de REDAÇÃO, Língua e Literatura, São Paulo: Editora
Ática-Maltense, 1989, p. 224- 226, há um breve histórico da vida de Clarice, a citação de suas obras,
para adultos e para crianças, algumas características da obra – tomada como um todo mas apenas
comentada parcialmente, e com uma proposta de exercício pouco significativa diante de seus textos.
Além disso, não consta na citação de suas obras o texto que fora publicado em 1987, Como nasceram
as estrelas – doze lendas brasileiras.
- No livro de Ernani & Nicola, Curso Prático de Língua, Literatura & Redação 3, da editora de São
Paulo: Scipione, 1994, temos nas páginas 206, 207 e 208, um breve histórico de sua vida, apenas uma
proposta de leitura de um texto de Clarice. Não há nenhuma citação da produção literária de Clarice
Lispector.
- No livro de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, Português: Linguagens – Litera-
tura, Gramática e Redação 3, da editora Atual de São Paulo, 1994, temos uma abordagem mais completa
sobre a escritura clariciana; temos o conto “Amor” como proposta de leitura. No entanto, na citação
de suas obras, há um pequeno deslize, pois ao referir-se aos textos infantis de Clarice deixa de citar
o livro Como nasceram as estrelas – doze lendas brasileiras. Além disso, na citação de sua produção

Proceedings XI International Bakhtin Conference 220


infantil, deixa seu leitor sem uma certeza dos textos infantis publicados, pois utilizam a palavra outros
para designar que existem mais textos sem, contudo, mencioná-los.
Sabemos serem todas essas citações importantes para informar e localizar os leitores – pro-
fessores, alunos ou outro tipo de leitor de literatura – sobre a produção de Clarice Lispector,
até mesmo para se poder ter uma prática de leitura comparativa e de efetiva reflexão do e
sobre o literário, o que parece não haver na prática.

Cremos ser necessário repensar esse posicionamento das vozes autorizadas, pois não podemos con-
cordar que leitor é somente aquele que se encontra no terceiro grau, os “Commun readers” discutidos
por Frank Kermode em “Um apetite pela Poesia” (1989), e nem que se encontram só a partir do ensino
médio, ainda mais por ocasião do vestibular, mas sim aquele que cresce podendo ter o contato – nas
práticas efetivas de leitura – com a literatura.
Não podemos admitir que haja “governos totalitários e/ou absolutistas” – sejam eles políticos, sociais
ou acadêmicos - , no que se refere também à leitura literária, que olham para o leitor ora como um
ser apático ora como perigoso, parafraseando Alberto Manguel numa conversa com Jorge Luís Borges
(1999, p. 35).
Parece que devemos sempre olhar com um “olhar desconfiado” para aqueles que se apresentam como
representantes da sociedade, também discursiva, pois como a própria Clarice observou:
A crítica, quase sempre, confunde as coisas, e acaba interpretando ao contrário o que, na
verdade, quero dizer. Por esta razão, nunca me interessei pela opinião dos críticos a meu
respeito, por julgar que nem sempre ela é tão objetiva como deveria ser.
Um exemplo que sempre me utilizo para justificar minha posição em relação ao assunto,
é o da crítica ao meu primeiro livro publicado: Perto do Coração Selvagem, lançado em
1944, quando eu contava dezessete anos. Na época o livro foi classificado como hermético
e incompreensível, e anos mais tarde, tornou-se um dos mais vendidos. Isto me intrigou
profundamente, tanto que um dia resolvi perguntar a um amigo: O que está acontecendo?
O livro continua o mesmo. E meu amigo então respondeu: É que as pessoas se tornaram
mais inteligentes, de uns anos para cá. (1995, p. 435)

Então, pensando nessas “vozes autorizadas” da sociedade, que ainda excluem a produção infantil de
Clarice Lispector, devolvo a pergunta para esse amigo da escritora: será que novamente a produção literária
de Clarice não sairá do limbo ao Olimpo? Quais poderiam ser as maneiras de ler a obra clariciana para
que pudéssemos fazer valer sua produção também infantil? A que se deve esta resistência ao novo?
Segundo Casais Monteiro (1962), o crítico literário aprende a ser crítico lendo. Nesse processo infin-
dável de leituras faz cortes em profundidade, os quais permitem penetrar no texto – chamado por ele de
obra – em suas várias camadas, sustentando, alimentando e vivificando a superfície. Portanto, a principal
função do crítico é “pôr a claro aquilo que ainda não foi assimilado, e que encontra mais dificuldade em
ser aceite” (1962, p. 62).
Se a função do crítico não é canonizar textos mas despertar esse olhar mais aguçado sobre o literário,
podemos dizer que os críticos de Clarice Lispector deixam muito a desejar com relação à leitura de sua
obra – no sentido de opus -, pois insistem em um único dispositivo de leitura, que é o estético apenas
da forma e não do material verbal, no sentido bakhtiniano e tal qual os olhares que foram lançados so-
bre Dostoiévski, a crítica literária brasileira lança um olhar caótico sobre a produção infantil de Clarice
Lispector, deixando-a mais uma vez à margem da sociedade discursiva.
Agradecimentos:
À Universidade Estadual do Oeste – UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon, por viabilizar
a participação nesse congresso.
Notas:
Fabulação no sentido de construção, de estratégias discursivas na dissimulação do dizer literário.
Cenas enuciativas, de acordo com Dominique Maingueneau, são enunciados que, no ato da enun-
ciação, formam imagens.
Paratopia, segundo Dominique Maingueneau, são os vários papéis que o indivíduo, enquanto sujeito
social, ocupa na sociedade.
Referências:
BAKHTIN, M. (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F.Vieira, São Paulo, Martins
Fontes, cap. 4 –1, 1981.
BAKHTIN, M - Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Editora da Unesp
Hucitec, 1999.
____. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G.G. Pereira, São Paulo, Martins Fontes, p. 25 –113, 1997.
____. Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance. Trad. Bernardini, A et alii. 4 Ed. São Paulo: Editora
da UNESP, 1998.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 221


____. Problemas da Poética de DOSTOIÉVSKI. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981.
BOSI, A . História Concisa da Literatura Brasileira. 3. Ed., 18. Tiragem, São Paulo, Cultrix, 1997.
CANDIDO, A & CASTELLO, J. ADERALDO. Presença da Literatura Brasileira - MODERNISMO. 9. Ed., São Paulo, DIFEL,
1983.
CASAIS MONTEIRO, A Clareza e Mistério da Crítica. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962, p. 62.
CHARTIER, R. “Comunidades de Leitores e Figuras do autor”. In: A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas
na Europa entre os séculos XIV e XVII. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 1998, p. 11-66.
CEREJA W. R. & MAGALHÃES, T. C., Português: Linguagens – Literatura, Gramática e Redação 3, São Paulo:
Atual, 1994.
FIORIN, J. L. “O romance e a simulação do funcionamento real do discurso”. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin, dialogismo
e construção do sentido. Campinas, São Paulo, Ed. Unicamp, p.229 –247, 1997.
FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 2 ed. Rio de Janeiro, Forense-Universitária,
1986.
____. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5 ed. São Paulo, Edições Loyola, 1999 (b)
____. “Deux essais sur le sujet et le pouvoir”. In: FREYFUS, H. & RABINOV, P. Un parcours philosophique. Paris:
Gallimard, 1984, p. 297 – 321.
_____. As Palavras e as Coisas - uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8 ed., São
Paulo: Martins Fontes, 1999 (a) – (Coleção Tópicos)
____. Microfísica do Poder. Trad e org. Roberto Machado, 13 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GOTLIB, N. B. Clarice - Uma vida que se conta. 4 ed. São Paulo: Ed. Ática, 1995.
HAZARD, P. Les livres, les enfants et les hommes. Hatier, Paris, 1967.
JAKOBSON, R. “Da Poética”. In: A literatura em suas fontes. Costa Lima, Luiz Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves
Editora S.A, vol I, 1975.
KERMODE, F. Um apetite pela poesia. Trad. Sebastião Uchôa Leite, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo,
1993 - (Criação & Crítica; 7).
LISPECTOR, C. A vida íntima de Laura. 12ª ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1991.
____. Quase de Verdade. São Paulo, Siciliano, 1993.
____. A mulher que matou os peixes. Ilustrações de Flor Opazo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
MAIA, J.D. Curso prático de REDAÇÃO, Língua e Literatura. São Paulo, Editora Ática S.A, 1989.
MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
____. Elementos de lingüística para o texto literário. Trad. Maria Augusta de Matos. São Paulo: Martins Fontes, 1996
– (Coleção Leitura e Crítica).
MANGUEL, A. Uma História da Leitura. 3. Reimpressão, trad. Pedro Maia Soares, São Paulo, Companhia da letras,
1997.
NUNES, B. O drama da linguagem – Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Ática, 1989.
Revista BRAVO - Viva Clarice - por André Luiz Barros -, São Paulo, 1997.
Revista Brasileira de Literatura - CULT - nº 5 - Dossiê - Clarice Lispector - Há vinte anos morria a maior escritora
brasileira, São Paulo, dezembro de 1997.
Revista do Departamento de Teoria Literária - REMATE DE MALES, nº 9. Campinas, UNICAMP, 1989.
TERRA, E. & NICOLA, J. de. Curso prático de LÍNGUA, LITERATURA & REDAÇÃO 3. São Paulo, Editora Scipione Ltda,
1994.
TODOROV, T. Les genres du discours. Paris: Ed. du Seuil, 1978. Trad. portuguesa, Lisboa: Almedina, 1980.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 222


Textos chave: BAKHTIN, Mikhail (Volochinóv)Marxismo e Filosofia da Lingua-
gem; BAKHTIN, Mikhail Estética da Criação Verbal, Questões de Literatura e de
Estética – A Teoria do Romance e A Poética de Dostoiéviski; FOUCAULT, Michel A
ordem do Discurso.
Nomes chave: Clarice Lispector; Mikhail Bakhtin; Michel Foucault
Palavras Chave: Literatura Infantil; Crítica Literária; Interdição.
Bibliografia resumida: Docente na Universidade Estadual do Oeste do Paraná
– UNIOESTE – Campus Marechal Cândido Rondon, autora da Tese de Doutorado:
Uma leitura inquieta: o leitor infantil nos mistérios de Clarice Lispector (2003),
membro do Grupo de Análise do Discurso de Araraquara – GEADA (UNESP) e do
Grupo LER – Vozes Femininas (UNB), com publicação de artigos nos respectivos
livros: Filigranas do discurso – as vozes da história FCL/ Laboratório Editorial da
UNESP - São Paulo: Cultura Acadêmica, 2000, organização de Maria do Rosário V.
Gregolin e Análise do Discurso – as materialidades do sentido, São Carlos, São Paulo:
Claraluz, 2001, organização de Maria do Rosário Gregolin e Roberto Baronas.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 223


O Clube do Picadinho feito picadinho. A paródia
na ficção de L. F. Verissimo

Lígia Militz da Costa

Universidade de Cruz Alta – RS – BRASIL

A carnavalização é uma forma insolitamente flexível


de visão artística, uma espécie de princípio heurístico
que permite descobrir o novo e o inédito.
Bakhtin, 1981, p.144.

Três são os romances publicados por Luis Fernando Verissimo até este início do século XXI: O jardim
do diabo (1987), O Clube dos Anjos (1998) e Borges e os orangotangos eternos (2000). Diferentemen-
te do que acontece com sua produção no gênero da crônica, de numerosas publicações e reedições, a
narrativa longa é uma presença parcimoniosa e rara no seu universo de criação ficcional, e de intrincada
compreensão.
Elementos básicos da poética de LFV podem ser estabelecidos a partir dos seus três romances: clas-
sificação das obras como policiais-paródicas e, ao mesmo tempo, introspectivas; presença da temática
da morte associada à idéia da fatalidade irreversível à que está condenada a vida humana; presença
insólita de enigmas e labirintos; sátira da própria arte de narrar; convívio de diferentes códigos de
significação da linguagem; apropriação intertextual crítica da tradição cultural existente; presença de
protagonista das histórias com a função de narrador-personagem e com papel também de escritor, que
pode, por isso, dobrar metanarrativamente a representação e propor a confusão dos âmbitos da ficção
e da “realidade”.
A prosa do escritor gaúcho pode ser situada dentro dos chamados gêneros do cômico-sério. Mikhail
Bakhtin (1981), em seus notáveis estudos a respeito das obras do cômico-sério, esclarece uma série de
traços desse filão literário que auxiliam na avaliação crítica de narrativas com discurso bivocal, como é,
nitidamente, o caso dos romances de Luis Fernando Verissimo. Nas produções desse gênero debilita-se
a seriedade retórica unilateral, a racionalidade, a univocidade e o dogmatismo, em favor de uma situa-
ção de alegre relatividade que se assemelha a uma cosmovisão carnavalesca. Os parâmetros e valores
convencionais são desprezados em favor de uma vida desviada da sua ordem habitual, voltada para um
mundo invertido com vida às avessas, onde hierarquias e desigualdades se eliminam, alianças impro-
váveis podem ocorrer, assim como profanações, sacrilégios, indecências, paródias proibidas, etc. Ações
e imagens enfatizam transformações e reforçam rituais biunívocos ambivalentes (nascimento e morte,
bênção e maldição, etc.) que confundem a sisudez de qualquer regime. Desse quadro instável faz parte
o riso e o cômico, que promovem a renovação e podem também podem manifestar-se em dimensão re-
duzida, a exemplo da ironia e do humor. A imagem do riso aproxima Bakhtin da abordagem da paródia,
que é explicitada através de sua estrutura carnavalesca e com uma natureza orgânica completamente
separada de todos os gêneros puros da literatura. Bivocal e dúbia, a paródia consiste num discurso que
se converte em palco de duas vozes. (Bakhtin, 1981:168)
1. Paródia de abertura
Apresentado em bela edição, como toda a série dos “Plenos pecados”, o segundo romance de LFV, O
Clube dos Anjos, conta uma história de evidente ambivalência em torno do pecado da gula. A gula se
insere no conjunto dos sete pecados ou vícios capitais estabelecidos pela Igreja: avareza, gula, inveja,
ira, luxúria, orgulho, preguiça. Sendo o pecado a violação de um preceito sagrado, a história do Clube
se contextualiza, a priori, numa temática de âmbito religioso, e o fato de haver a palavra Anjos no título
acentua ironicamente a correlação.
O Clube dos Anjos é uma obra com discurso paródico, trama policial e reflexão introspectiva. O livro
começa com narração em primeira pessoa e uma referência direta ao diabo, mas em forma de negação do
próprio maligno: Lucídio não é um dos 117 nomes do Diabo, nem eu o conjurei de qualquer profundeza
para nos castigar. (p.9) A negação (“não é” e “nem eu”) também é uma forma de presentificar alguma

Proceedings XI International Bakhtin Conference 224


coisa ou alguém; de recusar, fazendo uma declaração formal negativa, afirmando, contudo, a existência
do objeto da recusa no enunciado da linguagem. Ao dizer que o nome do exímio e macabro cozinheiro
dos jantares não é um dos 117 nomes do diabo, e que tampouco ele, o narrador, o conjurou de qualquer
profundeza para castigar os membros do Clube, o protagonista já estabeleceu a relação entre ele próprio,
Lucídio e o demo, remetendo a uma cosmovisão carnavalizante e confusa de mundo.
A história do livro vai desenvolver-se na direção de colocar Lucídio como o suspeito principal para os
assassinatos dos membros do Clube do Picadinho, que vão morrendo um a um, mensalmente, após cada
noite de esplêndido jantar. Há, entretanto, a probabilidade de que o próprio protagonista da história de
O Clube possa ser mais do que o autor intelectual dos crimes descritos, isto é, de que ele mesmo possa
ser o “verdadeiro” assassino, porque seus dedos (de escritor) não se limitaram à sua dança tétrica nos
teclados mas também derramaram o veneno na comida. (p.9) Essa possibilidade acentua a relatividade
da realidade bifronte que começa a ser instalada desde a abertura da história “policial” do livro.
O narrador se identifica como o “autor” do livro e diz que precisa convencer o leitor de que a história
que conta é verdadeira, porque assim provará sua inocência junto com o fato de que não inventou Lucídio.
Ele diz também que se só um estiver vivo no fim, ele ou Lucídio, eis o criminoso. Ao referir categorias
narrativas como “autor”, “leitor”, “livro”, “verdade” “invenção”, etc., o narrador situa de forma irônica o
processo metanarrativo da escritura que faz parte do conteúdo de sua ficção.
2. Tempos de carnaval
O livro começa falando do seu fim, com Daniel dizendo que só ele e Lucídio não morrem no final da
história. O personagem protagonista-narrador faz parte, com outros amigos, do Clube do Picadinho, que
realiza jantares mensais. Em meio a toda incerteza inicial de afirmações ambíguas e contraditórias, ele
declara que precisa convencer o leitor de que é objetivo e verdadeiro no que diz, insinuando ironicamen-
te o contrário, isto é, que a intencionalidade retórica deverá prevalecer sobre a “verdade” no relato. O
livro começa com exposições de suspeitas, com o leitor farejando “possibilidades” de ser enganado e de
seguir um trajeto conduzido por um narrador inconfiável.
A construção da temporalidade na obra é outro fator de complexidade e desdobramento dialógico na
história. Nela se cruzam um tempo presente, tempos passados (passado mais próximo ou mais antigo)
e, ainda, um tempo ficcional. Essas diferentes dimensões temporais interagem e resultam em perspec-
tivas diversas sobre os fatos, gerando novas vozes para o próprio narrador e para os personagens, em
função de situações modificadas no tempo. Como são muitos personagens, dez que formam o Clube,
mais Ramos e Lucídio, mais as mulheres deles e ainda o Sr. Spector, no final, multiplica-se a possibilidade
da incidência polifônica na obra, qualidade que realmente se faz presente por diferentes aspectos de O
Clube dos Anjos. A essência da polifonia, segundo Bakhtin, consiste no fato de que as vozes permane-
cem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. (...)
A vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do aconte-
cimento. (1981-a: p.16)
O tempo presente do relato corresponde ao momento em que Daniel está escrevendo a história do
Clube do Picadinho, quando todos os seus membros já morreram, menos ele e Lucídio, que foi o cozi-
nheiro dos últimos meses de existência do grupo. Daniel, em processo de metaficção narrativa, conta
que está escrevendo a história dos membros do Clube, que conhecera Lucídio nove meses antes e que
está esperando, naquele momento, a segunda visita do Sr. Spector. (p.22) O resto da história são tempos
passados: passado recente, a partir dos meses desde o “Encontro” com Lucídio e as mortes da turma
do Clube do Picadinho; e passado mais antigo, com histórias da vida de cada personagem, bem como a
história da formação e evolução do Clube. Um tempo ficcional também tem espaço no texto, já que além
da história “real” que Daniel está narrando, ele, que é escritor, tem uma história em andamento que não
consegue terminar de escrever, chamada As Xifópagas Lésbicas. A obra faz coexistir dialogicamente,
numa unidade heterogênea, todas as instâncias das temporalidades, inclusive a do tempo histórico do
leitor. Essa reunião complexa de temporalidades e vozes exemplifica o que preconiza o pensamento de
Bakhtin:
As relações dialógicas são muito particulares e não podem ser reduzidas às relações que se
estabelecem entre as réplicas de um diálogo real; são, por assim dizer, muito mais amplas,
heterogêneas e complexas. Dois enunciados distantes um do outro no tempo e no espaço,
quando confrontados em relação ao seu sentido, podem revelar uma relação dialógica. Por-
tanto as relações dialógicas são relações de sentido, quer seja entre os enunciados de um
diálogo real e específico, quer seja no âmbito mais amplo do discurso das idéias criadas por
vários autores ao longo do tempo e em espaços distintos. (SOUZA, 1995:100)

3. Vozes nada angelicais


Todas as vozes que desempenham papel realmente essencial no romance são convicções ou pontos
de vista acerca do mundo. (Bakhtin,1981:27) Se o narrador Daniel é o protagonista de O Clube dos
Anjos, Lucídio é o seu principal interlocutor dialógico e como que o seu duplo pela contraditoriedade e
complementaridade de seus perfis. Daniel é o protagonista empenhado em reorganizar os jantares do
Clube do Picadinho; Lucídio é o cozinheiro perfeito que faltava para fazer renascer, com sua arte, o gru-
po de amigos, que decaíra desde a morte de Ramos. São duas vozes, Daniel e Lucídio, e duas posições

Proceedings XI International Bakhtin Conference 225


sociais: o anfitrião e proprietário do apartamento, e o cozinheiro perfeito e ocultamente vingativo.
A partir do segundo parágrafo do primeiro capítulo, (p.10) o narrador dá indicações de si próprio e
de Lucídio, mostrando os contrastes inversamente proporcionais entre eles. Em primeira pessoa Daniel
expõe-se no texto, fazendo uma auto-apresentação paródica. Declara-se gordo e rico e diz ser conhe-
cido como Dr. Daniel na loja importadora, porque compra vinhos franceses finos; depois diz que é alto
e corpulento, usa alpargatas, camisas largas fora da calça, e que não senta, “atraca” numa cadeira e
mesa (p.10 e 11). Sua auto-apresentação, de altos e baixos, face e traseira, elogio e impropério, cor-
responde a uma imagem carnavalesca que abrange os dois pólos de um processo de antíteses, onde o
superior se reflete no inferior.
O tema da obra, também paródico, abrange a culinária carnavalizada que mistura o popular com o
requintado, e com vários idiomas. A base culinária é nacionalíssima, com o consagrado “picadinho de
carne com farofa de ovo e banana frita” do bar do Alberi, que é substituído pelos vinhos Bordeaux, o peixe
fugu japonês, a paella, e pela excelência da cozinha francesa, com pratos como o boeuf bourguignon, o
quiche Lorraine, o gigot d´agneau, etc... O próprio nome do livro participa do jogo paródico instalado
na linguagem da obra: O Clube dos Anjos, título do livro, não é o nome do Clube onde se reúne o grupo
dos jantares; o nome é “O Clube do Picadinho”, que é relativizado cômica ou tragicamente nas denomi-
nações de “Clube de Malucos”, (p.59) “Clube das Moscas” (p.108) e, no final da narrativa, como “Clube
da Morte”(p.129), porque se torna uma espécie de “fábrica de anjos”.
Lucídio é o personagem coadjuvante do principal, único que estará vivo ao lado de Daniel no final da
narrativa e, em princípio, será também um membro dos futuros negócios da organização mortal a ser
criada. Lucídio é descrito praticamente como o contradiscurso de Daniel: de costas retas, magro, baixo,
cabeça grande desproporcional, mas elegante; usa terno e gravata, senta com discrição, quase não move
a cabeça e não mostra os dentes (p.12); é o novo amigo muito bem-educado, simpático e elegante, que,
em princípio, não oferece perigo algum. (p.25) Conta a Daniel a história macabra da escama do peixe fugu,
da sociedade secreta de Kushimoto, no Japão, e do excitante risco de morte que correm os degustadores
da iguaria na reunião anual; explica a relação da morte com o prazer (p.25,26) e diz-se especialista na
cozinha clássica francesa. (p.28) Ele é a esperança de Daniel para a reorganização do grupo (p. 32), que
estava em deterioração desde a morte de um de seus membros (Ramos) e com péssima lembrança da
última reunião. (p.33) A configuração de Lucídio dá-se igualmente através de uma imagem biunívoca,
na qual, ao contrário de Daniel, prevalece o pólo negativo: ele parece uma figura diabólica, revestido de
impecável aparência. (p.11e12) Não mostrava os dentes e sorria de boca fechada. (p.13) Compõe uma
imagem excêntrica e sinistra, que combina os altos do conhecimento intelectual e da mestria culinária
com o cheiro de mortalidade nas mãos e os baixos da dissimulação criminosa.Trata-se de um personagem
misterioso, perigoso e poderoso.
Os jantares do Clube recomeçaram com Lucídio cozinhando na casa de Daniel, e, na primeira noite
da nova série, o grupo revigorou-se. Mas logo depois daquele momento de plenitude, veio a informação
de que um deles, Abel, morrera durante a noite. A seqüência da história torna-se violenta a partir daí,
pelos episódios narrados em clima de romance policial feroz. O relato passa a ser de velocidade, com a
sucessão das mortes ocorrendo mensalmente.
Do picadinho de carne do Bar do Alberi até o gigot d’agneau de Lucídio, nos salões do apartamento
de Daniel, o Clube percorre uma trajetória de um ritual progressivo da gula, no qual, quando conseguem
alcançar a realização dos maiores desejos, deparam-se também com o próprio sacrifício da vida, que é
a morte. E daí vem a pergunta: Todo desejo seria mesmo um desejo de morte, conforme prescreve a
epígrafe “apócrifa” do livro? Depois de suas coroações bufas, em meio ao prazer máximo da gastronomia,
os membros do Clube são destronados e destruídos, remetendo com isso à ambivalência tragicômica das
mudanças e transformações da vida em morte.
4. O terror inevitável
A dureza e a angústia das aflições relacionadas à aporia da morte constituem-se, no livro, no contrapon-
to severo para o prazer desmedido do pecado da gula. A narrativa tensiona esses dois pólos contraditórios,
mostrando-os como vozes coexistentes e simultâneas em interação. O final do quinto capítulo retoma a
história das “Xifópagas Lésbicas” para evidenciar que o amor irrealizado entre elas se transformara em
ódio. As Xifópagas, com dois corpos unidos em conflito, metaforizam a dualidade ininteligível entre o
corpo e a alma do homem e a dependência de um do outro. Na história delas, a temática da angústia
existencial, visível em todos os romances de Luis Fernando Verissimo, é ratificada em vários momentos,
como quando o narrador refere o nosso corpo físico como uma carne excedente que não é a gente mas
compartilha da nossa biografia e no fim nos leva junto quando morre(p.63) A enunciação revoltada de
Daniel contra essa contingência contraditória e irreversível de estar no mundo dá idéia do âmbito do
terror que representa ter essa consciência da dualidade. Nesse contexto paradoxal da existência huma-
na, o pavor da morte vai equilibrar-se em intensidade com o prazer da gula, coexistindo e interagindo
com ele simultaneamente.
No sexto capítulo do livro, o narrador lembra que Ramos, o filósofo do grupo, dissera que a vida era
uma história de assassinato mal contada, (...) que sabíamos quem era o assassino desde o início. (que)
ele nascia conosco. (...) Mas não sabíamos quando ele nos mataria, não sabíamos qual era o seu jogo.
(p.72-73) Essa consciência da morte inevitável, espécie de “traição” escancarada e garantida, funciona
na história como motivação e justificativa para o desejo de burlar esse destino, de escapar dele, progra-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 226


mando o próprio fim com autonomia. À paródia de afirmar a vida como uma história de assassinato mal
contada, acrescenta-se a revolta sério-cômica que denuncia o absurdo da existência humana, caracte-
rizada por ter prazer em comer e ser obrigada a morrer. No Clube, além da delícia dos manjares, o alvo
do grupo era ousar a perplexidade de participar soberanamente da decisão da própria morte: saber a
hora e a forma da nossa morte era como ser presenteado com um enredo, com uma trama, com todas
as vantagens da literatura policial sobre a vida. Saber nosso destino era como ter olhado o fim do livro.
Passávamos a fazer outra leitura da nossa vida, agora como cúmplices do autor e do assassino. (p.73)
Na voz de Ramos aparece a afirmação de que os homens têm inveja secreta dos condenados: o que
invejamos no condenado à morte é o seu privilégio de saber o seu fim, de ser um leitor superior a nós.
Não há leitores casuais nos corredores da morte... (p.72) Assim, o discurso de Ramos constrói e prepara,
desde o início da narrativa, o arbítrio inovador da base temática do livro, ligada à exposição voluntária
final dos membros do Clube ao risco da morte, em meio ao prazer da gula.
5. Possíveis estouros finais
No velório da dupla Marcos e Saulo, (p.82) após o jantar das quiches Lorraines, Daniel foi abordado
pela primeira vez pelo Sr. Spector (“Inspetor”). Sr.Spector será a voz poderosa da interação dialógica final
do texto, uma vez que com sua visão e posição social, carnavaliza-se a situação trágica de extermínio
geral, a ponto de ser possível descobrir o novo e o inédito na própria desgraça, e, com isso, retornar ao
riso ambivalente. Sr. Spector quer contratar os serviços da “organização” de Daniel para proporcionar
mortes maravilhosas a pessoas interessadas.
Quando restavam apenas cinco membros vivos no Clube, o grupo resolveu continuar com os jantares
porque o prazer de comer era maior do que o medo da morte (p.87) e também porque sentiram que
os seus sentidos se aguçavam quando havia a possibilidade de ser o escolhido para morrer com aquela
comida maravilhosa. (p.87, 88) No jantar em que foi servido rodízio de suflês, na hora do brinde o grupo
tinha mais mortos a brindar, do que vivos para fazer o brinde: era O Clube do Picadinho feito picadinho.
(p. 105) No jantar dos crepes, depois do enterro de Pedro, Samuel acabou contando que estava sendo
executado por Lucídio por vingança, que assim vingava a morte de Ramos, de quem Samuel fora o
“Executor Sagrado” a pedido do próprio Ramos, quando este já estava no hospital com AIDS; a morte
de Ramos, que era homossexual, não fora, portanto, de AIDS; Samuel o envenenara com o molho de
menta. (p.115,116) Ramos gostava muito desse molho e dizia que, além de Shakespeare e do parla-
mentarismo, a única contribuição britânica para a civilização ocidental era o molho de menta. Porque
Samuel assassinara Ramos, Lucídio, que formava com Samuel a dupla de wanton boys de Ramos, matara
os outros membros do grupo para vingar-se, deixando Samuel para o fim.
Na última parte, o segundo encontro de Daniel com o Sr. Spector corresponde ao final excêntrico da
história e ao momento do tempo presente da narrativa. Isso contece no décimo e último capítulo do livro,
quando ainda estão vivos apenas Daniel e o cozinheiro Lucídio. Tragicômico, o final é dual e inconcluso
como a ambivalência geral de todo o texto. Cabe observar que a cosmovisão carnavalesca desconhece
o ponto conclusivo, é hostil a qualquer desfecho definitivo; (...) todo fim é apenas um novo começo, as
imagens carnavalescas renascem a cada instante. (Bakhtin,1981:143)
Uma interrogação fica implícita no término do relato: o jantar que Lucídio prepara para Daniel rece-
ber o Sr. Spector corresponderá à morte do protagonista, já que o prato a ser servido é o seu preferido
(“gigot d’agneau”), e a morte dos demais membros do Clube se deu justamente após a satisfação do
maior desejo gastronômico de cada um? Ou nesse encontro as propostas de negócios com o Sr. Spector
serão realizadas, e Daniel e Lucídio gerenciarão uma empresa de organizações turísticas eutanásicas,
capazes de promover, até em orgiásticos cruzeiros, o prazer da decisão das pessoas de morrer da for-
ma que escolheram e para a qual pagaram regiamente? Morrer em grande estilo, com programação
escolhida, em grandes investimentos pessoais – é para isso que o final aponta ou para mais uma trama
policial e diabólica de Lucídio, de exterminar vingativamente o último membro do Clube? Forma sinistra
e extrema de paródia, a morte é colocada em programa turístico de invejável projeção, proporcionando
momentos de máximo de prazer(?) final para uns e excelentes rendimentos pessoais para outros. Ela
será o negócio que trará nova vida a Daniel, solucionando seu impasse econômico.
O Clube dos Anjos não é nada angelical, já que nele prevalecem profanações, sacrilégios, paródias
proibidas, etc., tudo que representa um mundo invertido e contraditório. O jantar, em que Samuel inau-
gura a existência do grupo e enaltece as virtudes da voracidade e do pecado da gula, insinua que seus
membros, diferentemente dos apóstolos, são anjos perversos. Em lugar de celebrar a ceia cristã e de
invocar Cristo, invocam Ramos, (p.97) que considerava a voracidade e a gula como prazeres insuperáveis,
e celebram o prazer do pecado, celebram o prazer voraz de satisfazer sua afinidade animal da fome em
bando, (p.53) mesmo que esse prazer lhes pudesse trazer a morte. Ramos considerava a gastronomia
como arte única e prazer cultural exclusivo, porque trazia um desafio filosófico: “a apreciação exigia a
destruição do apreciado, veneração e deglutição se confundiam”. (p.18)
As perguntas se instalam nesse contexto sério-cômico: Daniel programará seu fim, seu estouro final,
vendendo fausticamente sua alma ao “demônio” para comer o gigot d’ agneau? Ou se converterá, junto
a Lucídio, no próprio demo a proporcionar, a peso de ouro, maravilhosas e desejadas mortes clementes
ao grupo de pessoas interessadas na iniciativa? (p.128) Ou, ainda, continuará a transformar-se em
Lucídio (que pode ter sido inventado por ele) e colocará veneno para si mesmo, ao preparar, numa ceia
derradeira e solitária, seu prato favorito?

Proceedings XI International Bakhtin Conference 227


Referências bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:Hucitec, 1979.
______. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
FARACO,C.A., TEZZA,C. & CASTRO,G. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: UFPR, 1996.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1989.
RICARDOU, Jean. Problèmes du nouveau roman. Paris: Seuil, 1967.
SOUZA, Solange Jobim. Infância e linguagem. 2.ed.Campinas: Papirus, 1995.
VERISSIMO, Luis Fernando. O jardim do diabo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
______. O Clube dos Anjos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.
______. Borges e os orangotangos eternos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 228


Confluências de vozes na lírica de Helena Kolody e Lila Ripoll

Antonio Donizeti da Cruz¹

UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná

Rua Deonato Schwaab, 1357, apto 31

85960-000 – Marechal Cândido Rondon – PR

donizeti@unioeste.br

RESUMO I
Este trabalho apresenta a multiplicidade de vozes na lírica de Helena Kolody e Lila Ripoll, relaciona-
das ao ato de (re)memorar, revelando um tom memorial e evocativo de vozes que se intercruzam no
discurso poético.
A poeta Helena Kolody, filha de imigrantes ucranianos, nasceu em 12 de outubro de 1912, em Cruz
Machado (PR). Os temas recorrentes em sua lírica são: o tempo; a permanência; a solidão; a memória;
a transitoriedade, entre outros.
Lila Ripoll nasceu em Quarai (RS), em 1905, e faleceu em Porto Alegre, em 1967. A obra de Ripoll
revela o universo imaginário interligado aos temas da memória, do mito de Narciso, do tempo e do du-
plo. Assim, o presente trabalho engloba temas e imagens que contribuem para propor (re)significações
à obra kolodyana e ripolleana no contexto da Literatura Brasileira.
RESUMO II
This paper presents the multiplicity of voices which are into Helena Kolody and Lila Ripoll’s lyrics,
related by the act of remembering, to reveal a memorial and evocative tone of voices that crosses the-
mselves in the poetic discourse.
Helena Kolody, daughter of ucranian immigrants, was born on October 12, 1912, in Cruz Machado
(PR). Her usual themes are: time, permanence, loneliness, memory, transitority, among others.
Lila Ripoll was born in Quarai (RS), in 1905 and she died in Porto Alegre in 1967. Her works revealed
the imaginary world joined to memory themes, the myth of Narciso, the time e the dual. Thus, this work
joins themes and images that contribute to propose new meanings to “kolodyane” and “ripolleane” works
in the context of the Brazilian Literature.

Mikhail M. Bakhtin, em A estética da criação verbal, afirma que a contemporaneidade conserva sua
importância decisiva: sem ela não existiria a obra em si mesma. A obra literária revela-se, principalmente,
na unidade diferenciada da cultura da época de sua criação, mas não se pode aprisioná-la dentro dessa
época: sua plenitude apenas mostra-se tão somente na grande temporalidade (BAKHTIN, 1997, p. 366).
Consoante ao pensamento de Bakhtin, todo poeta, escritor, criador, por mais criativo que seja, é sempre
“fruto” de sua época. A obra literária constitui um processo consecutivo em que as novas formas, por
mais inusitadas que sejam, se apóiam nas precedentes. As afirmativas de Bakthin revelam a literatura
como um fenômeno de múltiplas “faces” e complexo.
O significado da produção literária, a reação do material escrito com sua época, a intemporalidade da
obra de arte se imbricam e tomam formas a partir de uma tomada de consciência por parte do artista,
fundamentada na questão estética tendo como eixo norteador a relação do eu com o mundo. Nessa
perspectiva, a história está interligada à vida e ao fazer poético, uma vez que a produção literária se
insere no campo da história literária.
Na lírica de Helena Kolody e Lila Ripoll, a multiplicidade de vozes estão relacionadas ao ato de
(re)memorar e apresentam um tom memorial e evocativo, de vozes que se intercruzam no discurso
poético. A memória e as vozes que aparecem nos poemas são forças mediadoras e potências capazes
de interligar os fatos, as pessoas e suas ações e as coisas do mundo.

1 - Doutor em Letras (Literatura Brasileira - UFRGS) e Professor do Colegiado de Letras e Colegiado do Curso de Mestrado “Linguagem e Sociedade”, da
UNIOESTE - Campus de Marechal Cândido Rondon - PR.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 229


Helena Kolody: vozes da recordação
A poeta contemporânea Helena Kolody nasceu a 12 de outubro de 1912, no recém-fundado núcleo
colonial de Cruz Machado (PR). Professora aposentada, dedicou sua vida ao magistério e ao Ensino no
Paraná.
Personalidade humana e literária marcante, Helena Kolody tem uma trajetória poética e social singular,
tal como comprova a fortuna crítica de sua obra. Publicou doze livros de poesia e doze antologias, além
de inúmeros poemas publicados em revistas e jornais. Emergiu para a literatura brasileira em 1941, com
o livro Paisagem interior, publicado às suas próprias expensas. Essa obra é muito bem realizada, por
ser de uma jovem estreante. Esta publicação foi decisiva para Helena Kolody, pois registra seu nome no
panorama da literatura brasileira e marca o início do reconhecimento pelo círculo crítico-literário para-
naense e brasileiro dos quais vem recebendo destaque por sua constante produção poética.
O conjunto da obra kolodyana traz a marca nuclear da modernidade, ou seja, a operacionalização
da linguagem. Já a metalinguagem está presente em todos os livros de Kolody. Ao questionar o fazer
poético e descrever o processo de criação, o poeta mantém um diálogo permanente do eu com o mundo,
articulado com o encanto da linguagem, cujo fator imprescindível reside no exercício de uma poiesis que
converge para a experiência poética centrada no encontro do ser humano com os temas antitéticos mais
inquietantes, como vida/morte, presença/ausência, ser/não-ser.
Desde Paisagem interior (1941) passando por Reika (1993) até Tear de palavras, que reúne poemas
inéditos (organizado pela minha pessoa), a poeta concretiza uma trajetória que se revela em uma poesia
participativa e harmoniosa. A opção pela composição das formas breves para expressar um estado de
lirismo, como se pode ver em Paisagem interior (1941), até alcançar uma aguda consciência sintética,
como ocorre na obra Reika (1993), efetiva uma construção poética que se concretiza de maneira con-
cisa, com alto grau de lirismo espontâneo, contido numa linguagem lúdica e de encantamento perante
a vida e o fazer poético.
Em 1999, organizei a obra inédita de Helena Kolody intitulada: Tear de palavras: poemas inéditos
e reunidos². Esta coletânea – apêndice da tese – revela que a poesia é comunicação e sinal de perma-
nência. Nessa obra, imagens remetendo ao efêmero e ao eterno cruzam-se, formando redes de senti-
dos. Os poemas convergem para uma atitude inquieta do eu poético que anseia por atingir um estado
transcendente. Tear de palavras é uma obra em que as imagens do desdobramento do eu aparecem de
maneira nítida. Há, também, um entrelaçamento de temáticas: a religiosidade enquanto experiência de
vida, a infância, o tempo, a solidão, a memória, a efemeridade e permanência, o humor, a ironia, entre
outras. O fazer poético também fica notório no realce ao amor às palavras, à metapoesia, ao diálogo
com o leitor, à comunicação literária.
A imaginação é o elemento basilar de toda a poética de Helena Kolody. Ao elaborar uma poiesis
alicerçada em um mundo de significações, ela realiza um fazer poético que remete à condição huma-
na: transitoriedade e permanência. Nessa perspectiva, Kolody elabora os poemas dando-lhe sentidos,
formas e um colorido singular, que exprimem um “sentimento do mundo”, basta ver suas preocupações
em relação à temática social: preocupação com os “pequeninos” e desamparados, com os “sem vez e
sem voz”. A temática social kolodyana está embasada numa construção poética capaz de valorizar os
sentimentos de amor, participação frente aos inquietantes desafios que a vida impõe. É o desafio de
vencer os obstáculos e redimensionar o pensamento frente à dura realidade cotidiana que faz do poeta
um ente atento às dificuldades da vida. Por isso que o poeta, ser solidário, busca transpor as barreiras
de um mundo repleto de angústia, dor e sofrimento, tendo em vista superar os conflitos e, por meio da
linguagem, realizar, assim, uma poesia capaz de evocar mundos imaginários.
O universo imaginário na poesia de Helena Kolody é espaço aberto no qual a poeta concretiza sua
visão da vida e imagem do mundo. Já a linguagem poética é uma forma de (re)invenção e articulação
do eu com o mundo. De acordo com Bakhtin, “o mundo da poesia que o poeta descobre, porquanto
mundo de contradições e de conflitos desesperados, sempre é interpretado por um discurso único e
incontestável” (1998, p. 94), ou seja, “a língua do poeta é a sua própria linguagem, ele está nela e é
dela inseparável” (id., ibid.).
A obra kolodyana, inserida na modernidade, apresenta novas formas, perspectivas e possibilidades
de significação, sem abdicar do passado. Através do ato de operacionalizar o discurso, a poeta projeta
espaços de conscientização e cumplicidade com o leitor. Nesse sentido, seu fazer poético é invenção,
redescoberta da presença e construção de espaços possíveis operacionalizados pela linguagem, uma
vez que, no dizer de Bakhtin, a “criação do poeta não se situa no mundo da língua, o poeta apenas
serve-se da língua” (1997, p. 206), ou seja, ”o artista utiliza a palavra para trabalhar o mundo, e para
tanto a palavra deve ser superada de forma imanente, para tornar-se expressão do mundo dos outros
e expressão da relação do autor com esse mundo” (id., p. 208).
A temática da memória, presente no poema dístico “Nostalgia”, aponta para a relação do som como
despertador do passado adormecido:

2 - A referida obra é parte integrante de minha tese de doutorado (Apêndice A – vol. II).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 230


Gorjeiam sempre em nós
os pássaros de antigamente.
(CRUZ, 2001, p. 168. Apêndice A – vol. II)

Nos versos, a imagem “pássaros de antigamente” sugere que o passado permanece na memória:
“gorgeiam sempre em nós”. No texto, o eu poético através da memória reencontra o tempo concreta-
mente perdido. O “gorjeio” é “revivido” através das lembranças, ou seja, por meio do ato de rememorar.
O título do poema remete à saudade e suscita uma aproximação semântica em relação à memória. Na
busca de um tempo que sobreviva ao instante fugaz, o eu poético concretiza um momento único e in-
transferível. No confronto da brevidade da vida, a poesia é o sinal do ser humano e o seu testemunho
perante o futuro, protegendo-o contra a automatização.
Através do ato de rememorar, Kolody faz com que sua poesia se desdobre verso a verso, dando a
impressão de que, em cada composição verbal, ela busca uma “unidade totalizadora” do espaço e do
tempo, anteriormente vivenciada, e que logo é retomada pela consciência da fragilidade frente ao es-
quecimento e às lembranças.
No poema “Infância”, a meninice é rememorada pelo eu-lírico. Note-se o valor da memória enquanto
reconquista de um tempo “vivido” pelo sujeito lírico, recuperando a pureza original da infância, com suas
aspirações mais puras:
Aquelas tardes de Três Barras.
Plenas de sol e de cigarras!

Quando eu ficava horas perdidas


Olhando a faina das formigas
Que iam e vinham pelos carreiros,
No áspero tronco dos pessegueiros.

A chuva-de-ouro
Era um tesouro,
Quando floria.
[...]
O cão travesso, de nome eslavo,
Era um amigo, quase um escravo.

Merenda agreste:
Leite crioulo,
Com mel dourado,
Cheirando a favo.
[...]
Do tempo só se sabia
Que no ano sempre existia
O bom tempo das laranjas
E o doce tempo dos figos...

Longínqua infância... Três Barras


Plena de sol e cigarras!
(1999, p. 182-183)

A evocação é a tônica que movimenta o poema. Ao revisitar o tempo da infância, o eu-lírico relembra
momentos de contemplação da natureza: “Quando eu ficava horas perdidas/ Olhando a faina das formi-
gas/ Que iam e vinham pelos carreiros,/ No áspero tronco dos pessegueiros”. Nota-se a despreocupação
do sujeito lírico nessa fase da vida, rememorando com saudade e melancolia aquele “tempo bom”. Há
uma integração perfeita do sujeito lírico com os elementos da natureza, como pode ser verificada nos
versos: “A chuva de ouro/ Era um tesouro,/ Quando floria.” (p.182). O eu-lírico recorda-se, também, do
“cão travesso, de nome “eslavo”, da “merenda agreste”, do “leite crioulo”, do “pão feito em casa,/ Com
mel dourado,/ Cheirando a favo” (Loc. cit.). Pode-se dizer que há, por parte do eu-lírico, uma saudade
do lar, da vida de outrora. O presente texto fornece múltiplas categorias de percepção do mundo, cujas
imagens instauram uma operacionalização que remetem para uma reconstrução de acontecimentos pas-
sados. O olhar que se volta para as rememorações vividas anteriormente acentua o poder das imagens e
seu poder de simbolização. No texto, as imagens têm o poder de reconstruir os acontecimentos a partir
de uma observação atenta do poeta, que registra o seu “estar no mundo” ao “rememorar o passado”.
Na penúltima estrofe, constata-se, que “do tempo”, somente conhecia-se o “bom tempo das laranjas/

Proceedings XI International Bakhtin Conference 231


E o doce tempo dos figos...”. Assim, desse tempo passado só restaram as lembranças. O poema repre-
senta a tentativa de reencontrar a harmonia anteriormente vivenciada, na qual o eu-lírico encontra uma
forma de reavivar os fatos que ficaram marcados na memória.
Na poesia kolodyana, o ato de recordar é elemento inerente ao fazer poético. O poema “Curitiba – Ci-
dade Menina” apresenta a cidade de Curitiba, com suas formas e cores, em que o sujeito lírico descreve
acontecimentos vivenciados. A enunciação é realizada no tempo pretérito. Nota-se as rememorações e a
maneira como Kolody organiza o texto, direcionando o tempo e imagens que trazem uma certa nostalgia
e sentimento melancólico, circunscrito pela denominação de Curitiba – “cidade menina” –, em dois mo-
mentos: “paisagem de meu amanhecer” (primeira estrofe) e “paisagem de meus dias” (estrofe final):
Curitiba – cidade menina,
paisagem de meu amanhecer.

[...]

Jardins
Pomares
Pinheiros e mais pinheiros,
onde moravam sabiás cantores
e bem-te-vis moleques.

As torres da Catedral
olhavam por sobre os sobrados.

Preguiçosos circulavam pela cidade,


bondes elétricos.

Carroças de Santa Felicidade


trepidavam nos paralelepípedos,
fazendo tremer a voz cantante
das colonas italianas,
que cheiravam a sal
e a manjerona.
[...]

Curitiba sonora de pregões.


Corria pelas ruas
o grito dos pequenos jornaleiros:
– Gazeta e Dia!
Diário da Tarde – Grande crime!

Perdia-se nos longes


o pregão do peixeiro português:
– Peixe... camarããão!
[...]

Curitiba, paisagem de meus dias.


Radiosa manhã,
Meio-dia pleno,
sereno anoitecer.
(CRUZ, 2001, p. 49-50. Apêndice A – vol. II)

O eu poético, nessas estrofes, resgata fatos e acontecimentos que realçam a trajetória de um eu


que relembra a cidade no tempo de sua juventude, quando os pássaros – sabiás e bem-te-vis – tinham
por habitat os jardins, os pinheiros e os pomares. A expressão “pinheiros e mais pinheiros” registra a
observação atenta de um eu que, na atualidade, nota a escassez dos pinheiros no espaço citadino. A
constatação dos bondes elétricos “preguiçosos”, sem muita presa, que circulavam as ruas da cidade,
em contraste com a agitação e frenesi da vida contemporânea. São tempos outros, com suas carroças
oriundas de Santa Felicidade. Há ainda as vozes das colonas italianas, a voz do peixeiro português – “as
vozes” dos imigrantes – e a do menino jornaleiro. Os pregões acentuam as marcas da agitação dos cen-
tros da metrópole. No poema, há também os olhares “por sobre os sobrados” das torres da Catedral.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 232


Aqui, o olhar aparece como elemento diferenciador, pois da mesma forma como as torres observam as
coisas, o poeta lança o olhar no tempo. No texto apresenta dois momentos da cidade: o tempo do início
da modernização e o atual. Já a memória é o lugar que permite à poeta dialogar com o passado. Lugar
de refúgio e manifestação permanentemente atualizada do passado, a memória é capaz de reativar ima-
gens que ficaram distantes no tempo. Ela faz reviver as coisas que ficaram “marcadas” na vida do sujeito
da enunciação e, simultaneamente, operacionaliza a imaginação desse eu que “inventa imagens novas”
a partir da realidade concreta; memória essa como combinação de múltiplos elementos: recordações,
esquecimentos, fantasias, imaginações, ressonâncias de fatos e da história, evocações, e outros.
De acordo com Ecléa Bosi, “cada geração tem de sua cidade, a memória de acontecimentos que per-
manecem como pontos de demarcação em sua história” (BOSI, 1994, p. 418). Esta afirmativa da autora
pode ser constatada nesse poema de Kolody, anteriormente apresentado, no qual se verifica o compasso
social do tempo e a memória registrada através das declarações do eu-lírico. Ainda no dizer de Bosi,
o tempo social é capaz de absorver o tempo individual, pois cada grupo vivencia de forma diferente o
tempo da família, da escola, das relações de amizades, da própria cidade. Outrossim, a autora observa
que, “por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que recorda. Ele é o memorizador e das
camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são, para ele, e só para ele, significativos
dentro de um tesouro comum” (id., p. 411).
O poema a seguir, intitulado “Praça Rui Barbosa”, apresenta de maneira detalhada a descrição da re-
ferida Praça e a recomposição do tempo e espaço realizado pelo eu poético através da rememoração:
Quando a conheci, chamava-se, ainda, Praça da República.
Era um grande retângulo de argila amarela
servia de pátio de exercícios para o 15º BC.
[...]
Mudou-se o 15. O quartel foi desativado.
A praça começou a mudar. Ganhou árvores, ajardinamento,
calçadão de “petit-pavé”, repuxo iluminado, onde sonhavam garças.
Ficou linda!
[...]
Depois de instalada a feira, a praça enlouqueceu:
Vozes, gritos, risadas, piadas e insultos
se entrecruzam entre as barracas.
[...]
De momento a momento, a fisionomia da praça muda.
Com o avançar das horas, diminui a maré do movimento.

Alta noite,
[...]
Dorme a praça o sono dos abandonados:
Estiram-se nos cantos escuros,
encolhem-se nos desvãos dos prédios.

Noite fria,
os menores se escondem nos caixotes de papelão
que o comércio deixa nas calçadas, rumo ao lixo.
Luz e sombra,
esplendor e miséria da cidade grande.

Na Praça Rui Barbosa,


a vida escreve uma página
da História Curitibana.
(CRUZ, 2001, p. 195-196. Apêndice A – vol. II)

O sujeito lírico relembra o passado através do exercício efetivo das lembranças. As reminiscências
são formas de articulação de uma observação atenta de um eu que resgata a história de um símbolo
que une passado e presente numa “geometria” memorial. Nos versos, o eu onisciente descreve a esta-
ticidade da praça; surge o espaço para as transformações de embelezamento do local, como sinal dos
novos tempos. Nesse ínterim, o eu-lírico afirma que a nova praça “ficou linda”. Se antes o que marcava
a praça era a aridez, a nova configuração descrita, imprime-lhe dinamismo e funcionalidade, estas ca-
racterísticas acentuam-se através dos versos, onde se ressalta a agitação e a beleza da praça por toques
de um humanismo utilitário.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 233


A poeta – com sua imaginação verbal – descreve o contraste advindo da estratificação social, acentu-
ado pela crescente urbanização, é desvelado pelo olhar do eu crítico que de forma consistente tece uma
contundente crítica social. Kolody sobrepõe riquezas e misérias para explicitar os contrastes da “luz e
sombra”. A constatação na última estrofe de que “na Praça Rui Barbosa, a vida escreve uma página da
história curitibana” é um testemunho que registra as transformações que ocorreram no microuniverso da
praça e no macrouniverso da cidade. O apanhado de versos e estrofes evidencia a memória social, crítica
e interpretativa da condição humana, ou seja, a memória individual configurada na esfera do social.
Note-se, na lírica kolodyana, a exotopia, que orienta-se além do tempo e espaço, projetando uma
“objetivação lírica do homem interior”, tornando-se “auto-objetivação” (1997, p. 181). Ou seja,
“[...] A forma lírica se introduz nela de fora e expressa não a relação da alma consigo mesma,
mas a relação de valor que o outro, como tal, mantém com ela; é por isso que no lirismo
a exotopia do autor é tão fundamental e tão intensa, e este deve aproveitar ao máximo o
privilégio que o situa fora do herói. Ainda assim, o herói e o autor ficam tão próximos na
obra lírica como na biográfica” (BAKHTIN, 1997, p. 181).

No texto “Tempo de recordar”, a temática da memória, expressa no título, alude ao poder sugestivo
das palavras: “Brilham palavras antigas/ No ingênuo rio da memória.// A lágrima prisioneira/ orvalha
a flor da lembrança.(1999, p. 123). Nos versos do poema, as lembranças são associadas a pontos bri-
lhantes no manancial pelo qual a viagem metafórica transcorre. Na reminiscência poética, destacam-se
os vocábulos como rio, palavras, lágrima e flor. Com grande força de sugestão, o eu poético cria uma
experiência mítica ao buscar na realidade uma dimensão absoluta. A palavra poética visa recuperar o
tempo, espaço mágico das rememorações da infância, nascedouro da identidade, para resgatar do “rio
da memória”, as “palavras antigas” que têm o poder de fazer reaparecer a “flor da lembrança”, ou seja,
reavivar o ser da linguagem. Na palavra e pela palavra, o eu poético encontra sua realização, mesmo
que seja no “tempo de recordar”, tempo este marcado pela vivacidade e nostalgia.
Lila Ripoll: as vozes da canção
A poeta Lila Ripoll nasceu em Quaraí, RS, no ano de 1905 e faleceu em 1967, em Porto Alegre, RS.
A obra poética publicada pela poeta entre 1938 a 1961, compõe-se de sete livros, de que foi realizada
somente uma edição: De mãos postas (1938), Céu vazio (1941), Por quê? (1947), Novos poemas (1951),
Primeiro de Maio (1954), Poemas e canções (1957) e Coração descoberto (1961). Quando do Golpe
de 64, Lila Ripoll foi presa e libertada pouco tempo depois por estar muito doente. Faleceu em 1967, e
deixou uma obra quase desconhecida. Cumpre destacar que a poeta sempre teve o reconhecimento dos
escritores. Em 1954, Ripoll presidiu a seção regional da União Brasileira dos Escritores e organizou em
Porto Alegre o 4º Congresso Brasileiro de Escritores. No ano seguinte, a poeta recebe o Prêmio Pablo
Neruda da Paz. Tendo em vista o seu engajamento, Ripoll elaborou ao longo de sua trajetória uma lírica
intimista que evoluiu para uma concepção dilacerada da existência.
A lírica de Lila Ripoll se aproxima em muito com a poesia de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Mário
Quintana, Helena Kolody, entre outras vozes da lírica brasileira. Ripoll desenvolve uma poiésis em que
privilegia a síntese poética e os questionamentos, marcas estas da modernidade.
Na obra Lila Ripoll: obra completa, as imagens do desdobramento do eu aparecem de maneira nítida.
Há, também, um entrelaçamento de temáticas: o tempo, a solidão, a memória, a infância, a efemeridade
e permanência, o humor, a ironia, entre outras. O fazer poético também fica notório no realce ao amor
às palavras, à metapoesia, ao diálogo com o leitor, à comunicação literária.
Para Alice Campos Moreira, Lila Ripoll - laureada com dois relevantes prêmios de poesia - é uma das
mais autênticas vozes líricas da literatura sul-rio-grandense. E salienta:
“A ela se deve a elevação do nível estético do discurso poético feminino, presente desde as
primeiras manifestações literárias do Sul do País. Os efeitos líricos que emanam da musi-
calidade e da simplicidade temática de seus versos, de comunicação imediata, permitem
aproximá-la dos mais altos representantes da poesia brasileira” (MOREIRA. In: Lila Ripoll,
1998, p.11).

Na poesia, o tempo implica na questão ontológica. Ele é como que uma descontinuidade ritmada da
espiral, do círculo e do eterno retorno. Mas também há os momentos únicos do poeta perante o fazer
poético e o exercício da linguagem revelando-se em canções, mesmo que os questionamentos remetam
para a dúvida, tal como os versos do poema “Canção da dúvida”, de Lila Ripoll: “Tua palavra é forte./ Teu
rosto, inquieto.// Eu acompanho o movimento/ do rosto e das palavras.// Eu acompanho o movimento/
das nuvens e do vento.// Mas onde vão as nuvens?/ E qual a direção... do vento?” (1998, p. 238).
Os questionamentos do eu-lírico sobressaem no texto. Já o fazer poético de Ripoll apresenta como
marcas de humanização, ou seja, uma construção textual embasada no projeto de valorização da natureza
e no olhar atento da poeta que faz de sua lírica uma forma de projetar o pensamento e (re)invenção das
relações entre o eu e o mundo. Sua arte poética reside no diálogo com a inconstância das coisas e dos
acontecimentos exteriores frente à paisagem natureza-mundo.
No poema “Ciranda”, o tema da memória fixada na infância fica evidente:

Proceedings XI International Bakhtin Conference 234


História da minha infância,
“Borralheira, 7 anões,
O chapeuzinho Vermelho
Malazerte, o mentiroso” –

– que é feito dessas histórias


que eu nunca mais escutei? –

Meu velho amigo esquecido,


contador dessas histórias,
na varanda da minha casa,
nas noites longas de inverno –

– onde está o meu velho amigo


contador dessas histórias? –
[...]
Crianças da minha roda,
companheiros que não vejo,
Mariazinha da Glória,
meu irmão que já morreu –
[...]
História da minha infância,
Borralheira, 7 anões,
meu irmão que já morreu,
companheiros que perdi –

– velhas árvores amigas,


eu também envelheci! –
(Ripoll, 1998, p. 52)

Através das reminiscências, o poeta recorda o tempo da infância, no qual centra as suas aspirações
mais ternas. Nos versos do poema, o tempo, as perdas, a evocação, a memória são tomados pelo poeta
como momentos da infância, pois reside nessa fase da vida as origens de suas aspirações mais ternas e
puras. Tal como na passagem, em que o sujeito da enunciação lembra das histórias contadas pelo “velho
amigo”, no aconchego do lar. As histórias infantis, listadas entre aspas, direcionam para a intertextuali-
dade. Mas há o sentimento de tristeza das perdas dos entes perdidos, do irmão que morreu.
Mediante o ato de rememorar, o eu poético realiza o diálogo com o mundo e, através do espaço e
circunstâncias que o envolve, operacionaliza o “eu penso” em oposição ao desespero do aniquilamento
frente à objetividade mortal. Percebe-se que, primeiramente, há o tempo concreto, vivido pelo eu, de-
pois há o momento de solidão e finalmente a memória. As lembranças e o sentimento de perda projetam
sentimentos melancólicos marcados pela transitoriedade dos entes e das coisas.
No texto “Três cantigas de roda” (I parte), sobressai o tema do memorialismo fixado na infância e o
das perdas:
Éramos três primas e dois primos.
Sob o olhar vigilante de papai
irrompíamos no quintal.

Havia a sombra crespa das pitangueiras,


as frutas maduras
e o assovio do vento nos bambus.
[..]
Em cada dia, uma surpresa,
uma alegria inesperada.
[...]

Às vezes, nossas vozes se uniam às dos pássaros.

“Nesta rua, nesta rua tem um bosque,


que se chama, que se chama solidão.”

Proceedings XI International Bakhtin Conference 235


O sol descia
e as vozes e as coisas se escondiam
no crepúsculo.
(Ripoll, 1998, p. 211-212)

Nos versos, a memória aparece enquanto duração e permanência, pois essa ninguém pode tirá-la do
eu mais profundo. A melancolia é realçada através do sintagma “o sol descia” e dos versos “as vozes e
as coisas se escondiam/ no crepúsculo”.
O tema do desdobramento, a princípio, se refere à existência do outro, que duplica a existência do
sujeito lírico. O tema do eu e o outro, são regidos por uma coerência que lhes confere unidade, rela-
cionado ao tema do duplo, no qual reflete uma inquietude metafísica, que aponta para uma profunda
reflexão sobre a vida e a literatura. Dessa forma, Bakthin observa que,
“O eu e o outro constituem as categorias fundamentais de valores que pela primeira vez originam um
juízo de valor real, e esse juízo, ou mais exatamente, a ótica axiológica da consciência, manifesta-se não
só pelo ato, mas também pela menor vivência, pela mais simples sensação: viver significa ocupar uma
posição de valores em cada um dos aspectos da vida, significa ser numa ótica axiológica” (BAKHTIN,
1997, p. 201-202. Grifos do autor).
No texto “Retorno”, o eu-lírico (re)memora o passado e centra a enunciação no tema da na infância e
na indagação frente as solicitudes da vida e também nas perdas: “Diante do velho poço,/ fiquei olhando
as datas/ que só eu conhecia.// As uvas maduras tinham sabor de infância/ nos meus lábios/ e as árvores
me estendiam os braços enrugados.// Com elas conversei quase em surdina.// Ai que sonhos, os meus
sonhos!// – Onde terá perdido a face daquele tempo? (1998, p. 228). A indagação do eu poético é uma
constante na lírica ripolleana. A linguagem metafórica, o mito de Narciso redivivo no ato de olhar para o
“velho poço”, o diálogo do sujeito lírico com as árvores e a visão onírica, são elementos de integração
do eu com a natureza.
Em “Quatro poemas de amor”, o eu-lírico declara: “Eu te amo com uma intensidade/ que me assusta
em me perturba. Tu vives em todos os meus sentidos,/ e na forma dos meus pensamentos.// [...] Sou
como uma fonte clara e simples/ que reflete, no fundo, a mesma imagem.// [...] Eu vivo porque tu
existes em todos os meus sentidos/ e na forma dos meus pensamentos” (1998, p.132). Na passagem
ocorre a confissão amorosa do eu-lírico para com as palavras: “Nunca imaginei tão grande o peso das
palavras. Dos pensamentos escondidos. Das confissões não enunciadas. Agora é tempo de avaliar./ [...]
É tempo de pensamento e solidão./ Tempo de procurar em mim./ Tempo de me ver inteira num espelho”
(“Estrelas e areias”, 1998, p. 272).
Os signos vida e morte fazem parte da vida do homem. Sob esta perspectiva, a poesia de Lila Ripoll
tematiza a vida e a morte, apresentando imagens que se desdobram e que realçam a condição humana
ante a finitude. Mediante as imagens dos desdobramentos do eu e da busca do outro, a vida necessária
se concretiza frente à precariedade do instante e à certeza da morte, ou seja, o efêmero e o eterno ins-
tauram sentidos dicotômicos perante a vida: indelével viagem marcada por presenças e ausências.
As articulações da linguagem no sentido de apresentar o tema do desdobramento (mito de Narciso,
espelho, sombra, reflexo) se concretizam na lírica de Ripoll. Nos versos do poema “Manchas” (I parte),
os temas do desdobramento do eu, do mito de Narciso, da ausência e da solidão ficam evidentes nas
passagens, em que o eu-lírico declara:
Foi sempre tristeza. Tristeza remota, vinda quem sabe
de onde. De que desesperados apelos. De que exilado
sonho.
De que grandeza mutilada.

E foi também solidão. Secreta solidão.


[...]
Na rua alegre e colorida, foi uma mancha
de inútil dissonância.
Ninguém sentiu sua tragédia.
A ausência de seu riso.
A forma quase definitiva de seu rosto.

Um dia, inclinei-me sobre ela


Como quem se procura num espelho.
[...]
(1998, p. 223)

Entre presenças e ausências, o sujeito lírico, em meio a mais “secreta solidão”, parece lutar contra a
passagem temporal, entre o ser e não-ser, presença e ausência, acentuada pela duplicidade. Tal como

Proceedings XI International Bakhtin Conference 236


Narciso debruçado sobre a fonte, o eu-lírico inclina-se sobre “a mancha de inútil dissonância”. A tristeza, a
melancolia e a solidão vivenciadas pelo eu-lírico contrastam com o colorido e a agitação festiva da rua.
Ainda em “Manchas” (II parte), a negação do instante se dá pela aceitação de um outro momento, o
da poesia: “Não é meu este instante. É teu, Poesia./ É tua esta irreal melancolia/ que resvala da noite,
das estrelas,/ das janelas abertas para vê-las.// Não é meu o momento que germina/ de uma antiga
tristeza.// Nem a sombra que me divide em duas/ pela rua” (1998, p. 224). O eu-lírico feminino, “des-
dobrado”, complementa que mesmo que a poesia multiplique o próprio rosto, ele a reconhece devido à
melancolia que o atinge.
Na lírica de Ripoll, há também o aspecto lúdico da linguagem, tais como nos versos do poema: “Canção
de esconde, esconde”, em que o eu-lírico declara: “Solidão brinca comigo/ um jogo de esconde/ esconde.
Desaparece um momento/ e surge não sei de onde.// Parece espelho partido/ pelo chão esparramado./
Mesmo que não pareça/ há o reflexo a meu lado./ [...] Solidão se esconde e volta,/ mói a vida, o sonho,
o amor./ Ai! Jogo de esconde-esconde,/ esconde também a dor” (1998, p. 225).
O recurso dos desdobramentos do eu e do mito de Narciso para alicerçar um poema e, ao mesmo
tempo, dar consistência a um elemento imaginário totalmente inusitado, são evidenciados na lírica de
Ripoll. A criatividade da poeta está, também, na tentativa de encontrar um suporte imagético ao re-
correr à mitologia, por exemplo, quando trata em sua obra poética sobre o mito de Narciso. O tema do
desdobramento de eu aparece sob as mais diversas formas na poesia ripolleana. Assim, poeticamente,
cada verso reflete a imagem do eu poético na amplidão do espelho, no reflexo, na sombra, entre outras
formas de duplicação que o universo poético possibilita.
Já os versos singelos do poema “Esboço”, de Lila Ripoll, apresentam pinceladas leves, rápidas, com
um lirismo intenso: “Um leve traço/ de luz, ligeiro./ Um sol escasso, meu rosto inteiro.” (1998, p. 227).
Tal como o rosto que se mostra por inteiro, a poesia é força transformadora e energia vital. Assim, a
lírica de Ripoll é marcada pela rapidez, pelos traços ligeiros, que revelam a exaltação intensa da vida e
a constante interrogação do sentido da vida.
Vozes convergentes
O universo imaginário e poético de Helena Kolody e Lila Ripoll deixam aflorar os signos da poesia da
vida. Na poesia kolodyana e ripolleana, o tempo, a solidão e a memória aparecem de forma articulada,
ou seja, são temas que se interligam. Primeiramente, há o tempo vivido, cronologicamente, base para
situar as reminiscências vivenciadas, que são reelaboradas, reorganizadas pelo sujeito. Em um segundo
momento, a memória tem o poder de ativar ou reter as coisas. A memória faz parte da vida, ou seja,
somos feitos, de certa forma de memória, mas também de lembranças e esquecimentos. Da conjuga-
ção do tempo e memória, a solidão aparece enquanto momento vital de um eu que busca “reviver”, ou
simplesmente lembrar o passado, mesmo que de forma evanescente, pois através do ato de rememorar,
se realiza o milagre da linguagem.
Na lírica as experiências vitais – a alegria de viver, o sonho, a revisitação da infância – aparecem
de forma nítida, mas também há a marca da solidão e da melancolia, tão próprias do ser humano. A
recordação é o fator imprescindível que movimenta as aspirações e sentimentos do sujeito poético,
pois no momento da recordação o eu rememora, com profundidade, os acontecimentos e experiências
anteriormente vivenciados, podendo até imaginar situações que apontam para o tempo futuro, ou seja,
por meio das lembranças e da memória, é possível concretizar as objetivações à esfera vital. No dizer
de Bakhtin,
“a memória que tenho do outro e de sua vida difere, em sua essência, da contemplação e
da lembrança da minha vida: essa memória vê a vida e seu conteúdo de uma forma dife-
rente, e apenas ela é produtiva. [...] A memória faz com que a abordagem se opere numa
ótica de valores e acabamento. Até certo ponto, a memória não tem esperança, mas, em
compensação, só ela é capaz de formular, sem levar em conta a finalidade e o sentido, um
juízo sobre uma vida inteiramente presente em sua realização e seu acabamento” (BAKHTIN,
1997, p. 122).

A lírica de Lila Ripoll e a de Helena Kolody, lapidadas no cinzel da memória, instauram um procedi-
mento poético em que a linguagem – enquanto magia e encanto – desperta no leitor uma atenção vol-
tada para as coisas mais sensíveis, pois a linguagem é sinal de vida e permanência. Ao mesmo tempo,
ela é afirmação do eu que se presentifica no ato de dizer, de realizar e descobrir sentidos mediante as
palavras. O homem – marcado pela finitude – vive uma vida transitória, em permanente viagem. Entre
buscas e fugas, ele se vê frente à instabilidade das coisas. Entretanto, a poesia tem o poder de despertar
o homem para a consciência e horizonte dos mundos possíveis.
AGRADECIMENTOS: À UNIOESTE, pelo incentivo à pesquisa.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp; Hucitec, 1998.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 237


CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionários de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
CRUZ, Antonio Donizeti da. O universo imaginário e o fazer poético de Helena Kolody. Porto Alegre, 2001. Tese (Dou-
torado em Literatura Brasileira) – Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 2001 (2 vol.).
DAVALLON, Jean. A imagem, uma arte da memória? In: PAPEL da memória / Pierre Achard... [et al.]; tradução e
introdução de José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999.
ILHA difícil: antologia poética. Seleção e apresentação de Maria da Glória Bordini. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
1987.
KOLODY, Helena. Viagem no espelho. 5ª ed. Curitiba: Editora da UFPR, 1999.
LILA Ripoll: obra completa. Alice Campos Moreira (Org). Porto Alegre: IEL: Movimento, 1998.
MOREIRA, Alice Campos. Apresentação. In: LILA Ripoll: obra completa. Organização de Alice Campos Moreira. Porto
Alegre: IEL: Movimento, 1998.
RIPOLL, Lila. Ilha difícil: antologia poética. Seleção e apresentação de Maria da Glória Bordini. Porto Alegre: Editora
da Universidade/UFRGS, 1987.
VENTURELLI, Paulo (Org.) Helena Kolody. Curitiba: Ed. da UFPR, 1995 (Série paranaense, n. 6).

Textos chave: Confluências de vozes


Nomes chave: Bakhtin – Multiplicidade de vozes
Palavras chave: Lírica – Memória - Helena Kolody – Lila Ripoll
BIOGRAFIA: ANTONIO DONIZETI DA CRUZ nasceu em Lobato - PR. É pro-
fessor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Leciona Teoria
da Literatura e Literatura Portuguesa na graduação - Campus de Marechal Cândido
Rondon e Lírica de sociedade na pós-graduação - Mestrado em Letras da UNIO-
ESTE – PR. Licenciado em Letras; com especialização em Literatura brasileira e
Lingüística pela Universidade Federal do Paraná; Mestrado em Teoria da Literatura
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e Doutor em Literatura
Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A tese de doutoramento
intitula-se: O universo imaginário e o fazer poético de Helena Kolody.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 238


O discurso de outrem nos estudos da linguagem pós-bakhtinianos

Dóris de Arruda C. da CUNHA

Universidade Federal de Pernambuco/CNPq - Brasil

Av, Boa Viagem, 2412/203

51 020-000 Recife, Pe

Tel: 081 33263773, 081 91477677

doris@ufpe.br, dorisarruda@terra.com.br

Resumo
O objetivo dessa comunicação é discutir a visão de Bakhtin do discurso de outrem e as conseqüên-
cias teóricas e metodológicas para os estudos da linguagem. Nessa perspectiva, o discurso de outrem,
marcado ou não como tal, na sua inter-relação com outros discursos é um fenômeno central. Nossas
pesquisas sobre o discurso citado em gêneros primários e secundários revelam que o diálogo do discurso
próprio com diversas fontes de fala é da ordem da linguagem e não da língua, podendo ser mais ou me-
nos marcado como tal por quem enuncia e mais ou menos percebido por aquele a quem ele é dirigido,
sendo portanto uma questão de interação e não de formas.
Abstract
The aim of this paper is to discuss the Bakhtinian position regarding the discourse of the other, as well
as its theoretical and methodological consequences on the studies of language. From this perspective,
the discourse of the other, whether or not indicated as such, in his interrelation with other discourses is
a phenomenon of fundamental importance. Our research on reported speech in primary and secondary
genres reveal that the dialogue between the enunciator’s discourse and several speech sources comes
from the language – as parole – and not from the langue. Reported speech can be marked as such by
the enunciator and perceived by the those to whom the discourse is addressed. It is, therefore, a matter
of interaction and not of structure.

Introdução
O que reúne os autores desses anais é Bakhtin, considerado por Todorov (1981:7) “o mais importante
pensador soviético no domínio das ciências humanas e o maior teórico da literatura do século XX”. Esse
fato nos faz começar situando o lugar de onde falamos: o de uma lingüista trabalhando com a linguagem
na perspectiva sócio-histórica proposta pelo nosso autor. Foi o interesse pela citação que nos proporcio-
nou o encontro com a teoria bakhtiniana, a qual nos conduziu a uma abordagem não da língua, mas da
linguagem, em função de fatores múltiplos por ela apontado: a diversidade de modos de funcionamento
da linguagem, de relação ao outro, de estilos e de efeitos de sentido sobre os interlocutores; a comple-
xidade da relação entre a parte verbal e extra verbal dos enunciados, entre outros.
Nessa comunicação, retomamos algumas reflexões sobre as contribuições do Círculo de Bakhtin ao
exame do discurso citado e apontamos os desenvolvimentos do estudo do fenômeno proporcionados
pela abordagem dialógica.
O discurso de outrem
Na terceira parte do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Voloshinov (1995) apresentam
o discurso de outrem como um problema de sintaxe específico, que a lingüística não era capaz de dar
conta, tendo em vista ter elaborado categorias de análise fonéticas e morfológicas até aquele momento.
Sendo as formas sintáticas as que mais se aproximam das formas de enunciação concreta, os autores
propõem o estudo das formas da comunicação verbal e das formas correspondentes de enunciação para
resolver os problemas de sintaxe. Lançam assim um novo olhar sobre o discurso de outrem, reformu-
lando-o como problema, a partir de novas questões de pesquisa. Nas palavras dos autores, “o interesse
metodológico excepcional que apresentam esses fatos ainda não foi apreciado na sua justa medida.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 239


Ninguém foi capaz de discernir nessa questão de sintaxe, à primeira vista secundária, os problemas de
enorme significação que ela coloca para a lingüística”. (Bakhtin/Voloshinov, 1995: 143).
Partindo da análise de autores clássicos russos, Bakhtin/Voloshinov explicitam a importância do estudo
do discurso citado como preâmbulo ao estudo do diálogo, na medida em que nele se manifestam “as
tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem”(p.146).
Vemos aqui a primeira contribuição dos autores: até então, os estudos pareciam sacrificar o discurso
de outrem às três formas de discurso citado e esse último à gramática, sem levar em conta o caráter
histórico da linguagem e dos modos de interação entre os discursos. O discurso citado era, o mais das
vezes, objeto de um debate periférico e puramente aplicado. Com Bakhtin/Voloshinov a questão é
magistralmente redefinida. Isso se percebe pelo título do capítulo O discurso de outrem e no primeiro
parágrafo, com a afirmação categórica que o discurso citado é o “discurso no discurso, a enunciação na
enunciação, mas, é ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre enunciação.
Bakhtin/Voloshinov abordam o discurso de outrem com vistas a elaborar uma teoria geral da linguagem,
tendo sido os primeiros a propor uma abordagem global do problema da citação.
O ponto de partida da reflexão é o processo de compreensão ativa da enunciação de outrem. Esse
processo passa, segundo eles, pela análise do discurso interior, no qual se realizam duas operações: a
preparação de uma réplica interior e de um comentário efetivo. Essas operações constituem um todo
organicamente fundido (mas freqüentemente uma domina a outra) e se exprimem no contexto narra-
tivo que introduz o discurso citado, e manifesta a “relação ativa de uma enunciação a outra” (p. 145).
Dessa forma, o verdadeiro objeto da pesquisa é a inter-relação dinâmica entre o contexto narrativo e o
discurso citado.
Temos aqui outra importante renovação da problemática: o deslocamento do estudo das formas iso-
ladas de citação para o contexto narrativo, o que permite dar conta da relação do locutor com o discurso
que ele retoma, ou seja, da relação entre duas enunciações e entre dois sujeitos.
Nessa perspectiva, Bakhtin vê duas orientações na inter-relação entre o discurso narrativo e discur-
so citado. A primeira, chamada estilo linear, transmite o discurso autoritário, que é conservado na sua
integridade e separado do discurso do narrador por fronteiras nítidas. A segunda orientação, o estilo
pictórico, transmite um discurso apreendido como um ato social completo. É um discurso individualizado
no qual os comentários e réplicas do narrador se misturam com o discurso citado, sem que o auditor
perceba as fronteiras entre os dois, manifestando-se numa grande variedade de enunciados. Embora
trate-se de uma classificação dicotômica dos dois estilos, Bakhtin/Voloshinov (1995) e Bakhtin (1993)
consagram-se ao estilo pictórico, revelando por meio de análises finas os numerosos casos em que há
contágio recíproco entre o contexto narrativo e o discurso citado.
A abordagem discursiva da citação por esses autores postula ainda que:
Ø não há formas de discurso citado, mas esquemas configurativos de transmissão do discurso de
outrem, que tendem para o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre, cuja descrição
não poderá ser feita de modo definitivo. O esquema só se realiza sob a forma de uma variante específi-
ca, lugar em que se realizam as mudanças ao longo do tempo e que “se estabilizam os novos hábitos de
orientação ativa em relação ao discurso de outrem, as quais se fixam em seguida sob a forma de repre-
sentações lingüísticas duráveis nos esquemas sintáticos” (Bakhtin/Voloshinov, 1995:155). O interesse
é portanto analisar não as formas cristalizadas, mas as variantes desses esquemas e as modificações
dessas variantes. Desse ponto de vista, é inútil elaborar uma lista de formas do discurso citado, porque
sempre será possível encontrar variantes.
Ø Há uma correlação entre os gêneros secundários de discurso e as formas de transmissão: o dis-
curso retórico (político ou judiciário), que pressupõe autenticidade, fidelidade, apresenta o discurso
de outrem no interior de fronteiras claras, sobretudo quando o discurso de outrem provém do alto numa
escala hierárquica. A variante discurso indireto analisador do conteúdo, que retém o conteúdo temático
e separa os discursos citante e citado, é utilizada em contextos epistemológicos ou retóricos (científicos,
filosóficos, políticos, etc.). O discurso literário trata livremente o discurso de outrem, transmitindo
finamente as transformações na inter-orientação sócio-verbal; nele encontram-se as seguintes varian-
tes: o discurso indireto analisador da expressão, que retoma de forma analítica a expressão do locutor,
incluindo os elementos subjetivos e estilísticos, por meio dos quais se enfatiza a personalidade do sujeito
citado; o discurso direto onde ocorre troca de entoações, revelando as posições do autor e do herói,
podendo esse último ser desvelado pelas mudanças de tom, pelo contraste entre a elevação da sintaxe
e a vulgaridade do vocabulário; o discurso indireto livre, esquema mais importante de transmissão nos
gêneros literários, sendo o caso extremo de convergência de dois discursos com entoações diferentes.
Na visão inovadora dos autores, o discurso indireto livre exprime uma orientação ativa que se traduz
não por formas gramaticais, mas por interferência de acentuação.
Ø Há uma posição do locutor que cita em relação ao discurso do outro: “transmitem-se, evocam-se,
ponderam-se ou julgam-se as palavras dos outros, as opiniões, as declarações, as informações: indigna-
se ou concorda-se com elas, discorda-se delas, refere-se a elas, etc. /.../ (Bakhtin, 1993: 140). Essa
posição se manifesta nas descrições dos elementos constitutivos da situação enunciativa, nos comen-
tários prévios ao discurso citado, nas reacentuações, na escolha do vocabulário, etc.
Sabe-se que Bakhtin retoma o tema do discurso de outrem poucos anos mais tarde, no ensaio O
discurso no romance. A partir da análise do romance humorístico inglês, o teórico mostra a onipresença

Proceedings XI International Bakhtin Conference 240


do discurso de outrem na literatura e na vida, o diálogo incessante das forças sociais, dos tempos, das
épocas. A análise de fragmentos desse gênero desvela a fala de outrem no discurso do autor, inserida
sob a forma dissimulada, sem nenhuma indicação da pertença a outrem, e em construções híbridas
(pertence a um falante, mas carrega dois tons e dois estilos). Apesar de não se dedicar à descrição dos
esquemas de transmissão, como Bakhtin/Voloshinov (1995), Bakhtin constata, a partir do estudo dos
diálogos diretos na obra de Turguêniev, que “com apenas três modelos sintáticos de transmissão, com
as diferentes combinações desses modelos e com os diversos procedimentos da sua réplica de enqua-
dramento e estratificação por meio do contexto do autor, realiza-se o jogo múltiplo dos discursos, seu
entrelaçamento e seu contágio recíproco”. (Bakhtin, 1993: 123).
A reflexão sobre do discurso de outrem conduz o pensador russo do âmbito da teoria literária para
o do uso ideológico da consciência, que é de ordem filosófica: “aí, a palavra de outrem não é mais uma
informação, uma indicação, uma regra, um modelo, etc, - ela procura definir as bases mesmas de nossa
atitude ideológica em relação ao mundo, e de nosso comportamento, ela surge aqui como uma palavra
autoritária e como uma palavra interiormente persuasiva” (Bakhtin, 1993). A primeira, a palavra auto-
ritária (religiosa, política, moral, a fala do pai, dos adultos, dos professores) se opõe a segunda porque
ela é dada e percebida como tal, quer dizer, como proveniente do alto. Ela não se confunde com as que a
circundam, ela se isola como um bloco “compacto e inerte”. Ela é portanto globalmente transmitida sem
modificação e exige as marcas do seu isolamento (as aspas ou itálicos são obrigatórios). Não é possível
nenhum diálogo no contexto de transmissão. Quanto à segunda, a palavra interiormente persuasiva, ela
não emana diretamente de uma autoridade, freqüentemente desconhecida socialmente, ela se mistura a
nossa fala: “a estrutura semântica /.../ não é terminada, permanece aberta, é capaz de revelar sempre
todas as novas possibilidades semânticas cada um dos seus novos contextos dialogizados” (p. 146).
Essa estrutura aberta se integra sutilmente no contexto novo, sem traçar fronteiras entre o contexto
narrativo e o discurso de outrem. Na literatura Dostoievski pode servir de modelo desse tipo de trans-
missão, uma vez que nele se encontra uma diversidade de formas de transmissão e de encadeamentos
de discursos.
Bakhtin/Voloshinov (1995) e Bakhtin (1981, 1993) elaboraram uma das mais ricas e mais frutífe-
ras abordagens do discurso citado. Ela deu origem a numerosos estudos da linguagem, enfocando a
heterogeneidade enunciativa e constitutiva, bem como as atitudes dos sujeitos face aos mais diversos
discursos. É o que apresentaremos no item seguinte, de forma incompleta e parcial, tentando apenas
apontar o campo aberto, sem indicar todas as veredas.
A citação na lingüística pós-baktinina
Os estudos lingüísticos anteriores aos anos 80 voltaram-se para a descrição das formas de citação,
no âmbito da sintaxe, a partir de textos literários ou jornalísticos, com vistas a determinar no nível da
língua critérios estáveis e recorrentes para propor uma taxonomia. Centravam-se nas formas marcadas,
tipograficamente ou por meio dos elementos morfossintáticos - correlação dos tempos verbais e uso de
dêiticos ou anafóricos, independente do contexto de produção.
Os estudos lingüísticos pós-bakhtinianos sobre a citação seguem uma tendência ilustrada pelos traba-
lhos de Gardin (1976), Maingueneau (1980), Authier-Revuz (1982), Fiala (1986), Cunha (1992), Moirand
(1999), entre outros. Gardin foi um dos primeiros a aplicar a teoria bakhtiniana à análise do discurso
citado num corpus bastante original: um programa de televisão constituído de entrevistas, depoimentos
e reportagens, o que contribuiu bastante para a compreensão da relevância do fenômeno.
As abordagens enunciativas, desenvolvidas ainda nos anos 80, formulam questões que podemos
aproximar das colocadas por Bakhtin/Voloshinov: Como uma enunciação pode incluir uma outra? Quais os
recursos oferecidos pela língua para isso? Para Maingueneau (1980), por exemplo, trata-se de descrever
o discurso citado enquanto ato de enunciação e ao mesmo tempo de ampliar o quadro, examinando,
além das três formas conhecidas de citação: o resumo com citações de palavras, o emprego de aspas
ou do futuro do pretérito, e as funções da citação. O lingüista francês faz uma incursão no campo da
alteridade, indo do discurso citado às formas marcadas de introdução do outro no texto escrito, e daí
para a diversidade formal e funcional das retomadas em situação de diálogo por meio do emprego do
pretérito perfeito. Vê-se, portanto, uma ampliação que tende a dar uma visão do uso feito do discurso
de outrem numa perspectiva enunciativa.
Paralelamente ao desenvolvimento das teorias enunciativas, encontramos na semântica argumentativa
uma aplicação livre do conceito de polifonia, Enunciados com pressuposição e negação são considerados
polifônicos, por apresentarem atos atribuídos a enunciadores diferentes e colocar em cena dois atos ilo-
cucionários atribuídos a dois enunciadores distintos: a afirmação de um ponto de vista e a recusa desta
afirmação. Embora a extensão do conceito de polifonia seja problemática (Castro, 1993), o postulado
de que um enunciado pode fazer ouvir mais de uma voz deu margem ao desenvolvimento da reflexão
sobre a heterogeneidade dos discursos e dos sujeitos.
Merece destaque o trabalho de Authier-Revuz (1982) que, partindo de Bakhtin e Lacan, elaborou
uma das distinções mais importantes nesse campo: a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade
constitutiva, conceitos que ampliaram o campo de estudos para a lingüística e deram origem a numerosas
análises, que revelam “facetas antes insuspeitadas do funcionamento da linguagem” (Possenti, 2002:
62). Nos termos de Authier-Revuz (2001), “essas heterogeneidades são radicalmente heterogêneas!
Uma é ligada à representação e à intencionalidade; a outra é irrepresentável para o sujeito falante, e

Proceedings XI International Bakhtin Conference 241


determina o dizer dele; nem é acessível ao analista, que pode, no máximo, construir hipoteticamente
em bases históricas, partes, parciais, da memória discursiva na qual se produziu o discurso”
Nossas pesquisas sobre o discurso de outrem em gêneros primários e secundários também revelam
a existência de um leque de modos de relação à fala de outrem (Cunha, 1992, 1996, 1998, 1995, 2001,
2002, 2003a, 2003b; Cunha e Valois, 2003). Vimos que de um lado há a citação, do outro a paráfrase,
retomada não marcada do discurso de outrem que se funde totalmente com o discurso próprio. Em todos
os casos, os locutores, em graus diferentes, assumem uma posição em relação ao discurso original que
se revela através de modificações, retematizações, comentários e julgamentos, marcados diferentemen-
te, uma vez que toda retomada serve a um propósito numa situação sócio-histórica singular (Cunha,
1992).
Na ficção contemporânea, a voz do narrador pode ser interrompida pela da personagem, muitas vezes
sem marcas, de modo que os discursos se confundem. Nos contos de Rubem Fonseca, por exemplo, há
não só uma grande diversidade de modos de inter-relação entre os discursos, mas também uma gran-
de variedade de gêneros intercalados, que consideramos citações de outros discursos. Encontramos o
discurso citado não marcado cujo discurso introdutor começa com freqüência no parágrafo precedente,
muitas vezes bastante longo, diálogos reportados com comentários intercalados do narrador, resumo de
atos de fala, citação sem discurso atributivo, menções e alusões ao discurso de outrem, ou seja, discursos
no e sobre o discurso (Cunha, 2003a, 2003b, 2003c)
Nas análises dos gêneros da imprensa, vimos que a notícia é uma espécie de relato de discursos e
não de fatos, de modo que se suprimíssemos as falas alheias, não restaria quase nada. Essa presença
explícita da voz do outro é portanto constitutiva do gênero, que busca tornar a informação mais verda-
deira, mais objetiva, ou atender ao gosto do público atual pelo autêntico, pelo real. No artigo de opinião,
comentário do que é veiculado na mídia, no mesmo dia ou em dias anteriores, faz-se alusão a artigos
anteriores; menção a discursos de determinados atores sociais; dialoga-se com o discurso potencial do
leitor por meio de construções com a negação, para fazê-lo aderir ao seu ponto de vista e para criticar
os outros com os quais mantém uma relação de conflito. Em suma, nesses gêneros, vemos o trabalho
incessante com o já-dito, cabendo ao lingüista a análise do diálogo, explícito ou subjacente ao texto.
No contínuo de variantes das formas de interação entre discursos, verificamos que tudo depende do
grau de distância criado pelo locutor em relação ao discurso original e ao interlocutor, de modo que a
retomada é um fenômeno aberto e dinâmico, ligado às múltiplas maneiras como os sujeitos falantes
recebem e reorientam a fala alheia.
Considerações finais
O discurso de outrem revela uma diversidade de objetos, de questionamentos e de abordagens teóricas
dentro da literatura lingüística que se reflete na diversidade conceitual e terminológica atual: discurso
citado, heterogeneidade mostrada e constitutiva, interdiscurso, polifonia, intertextualidade manifesta e a
intertextualidade constitutiva, dialogismo mostrado e constitutivo. Essa diversidade conceitual manifesta
a vitalidade da pesquisa nesse domínio complexo.
Bakhtin/Voloshinov (1995) e Bakhtin (1981, 1993) tiveram a originalidade de abordar o discurso
como circulante e o discurso citado como um fenômeno relacional: uma “relação de falas” e uma fala
relacionante, que concerne no mínimo dois atos de enunciação e três sujeitos.
Bibliografia
Authier-Revuz, J. (1982b) “ Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive, éléments pour une approche de
l’autre dans le discours”. DRLAV 26.
________ (2003) “La représentation du discours autre : un champ multiplement hétérogène” In Le discours rapporté
dans tous ses états: question de frontière’. Paris, L’Harmattan, 2003 (no prelo)
Bakhtin, M. (1997) Estética da criação verbal. 2a ed. São Paulo, Martins Fontes.
___________ (1981) Problemas da poética de Dostoïevski, Rio de Janeiro, Forense-Universitária (1a ed. 1929).
Bakhtin, M. (1993) Questões de Estética e de Literatura. 3a ed. S. Paulo, UNESP /Hucitec.
Bakhtin, M./Volochinov, V. N. (1995) Marxismo e Filosofia da Linguagem. 7a ed. São Paulo, Ed. Hucitec (1a edição,
1929).
Charaudeau, P. e Maingueneau, D. (ed.) (2002) Dictionnaire d’ analyse du discours. Paris, Seuil.
Castro, G. de (1993) Em busca de uma lingüística sociológica: contribuições para uma leitura de Bakhtin. Dissertação
de mestrado. Curitiba, UFPR
Cunha, D. A. C. (1992) Discours rapporté et circulation de la parole, Leuven/Louvain-la-Neuve, Peeters/Louvain-la-
Neuve.
_________________ (1995) “Discurso reportado e criatividade em narrativas infantis”. Anais do I Congresso Inter-
nacional da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN), (em disquete).
__________________ (1998) “Vozes e gêneros discursivos na fala e na escrita”.Investigações - Lingüística e Teoria
Literária, Recife, UFPE, vol. 8.
________________ (2001) “Atividades sobre os usos ou exercícios gramaticais formais? O tratamento do discurso
reportado”. In Dionisio, A. e Bezerra, M. A (org.) O livro didático de língua portuguesa: múltiplos olhares. Rio de
Janeiro, Lucerna.
_______________ (2002) “O funcionamento dialógico em revistas e artigos de opinião” In Dionisio, A., Machado, A.
R. e Bezerra, M. A. (org.) Gêneros textuais & Ensino. Rio de Janeiro, Lucerna.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 242


_______________ (2003a) “A pluridiscursividade em Contos de Rubem Fonseca” Anais do I Congresso e IV Colóquio
da Associação Latinoamericana de Análise do Discurso, Recife, (em CD –ROM).
_____________ (2003b) “L’interaction discoursive dans la fiction brésilienne” In Le discours rapporté dans tous ses
états: question de frontières. Paris, L’Harmattan, (no prelo com publicação prevista para dezembro de 2003)
Cunha, D. de A. C. e Valois M. (2003) La mise en paragraphes du discours rapporté dans les récits de fiction brésiliens,
in Modèles Linguistiques, no 48, XXIV-2 (no prelo com publicação prevista para dezembro de 2003)
Ducrot, O. (1987) O dizer e o dito. Campinas, Pontes.
Fairclough, N. (2001) Discurso e mudança social. Brasília, Editora da UNB.
François, F. (1998) Le discours et ses entours. Paris, L’Harmattan.
Lemarchand, J. (1993) “ Reprise et reformulation du discours d’ autrui: les commentaires
radiophoniques immédiats des interventions du président de la République”. Langage et société, 64.
Lorda, C.U. (1997). “La relation des déclarations politiques: hétérogénéités et mise enscène de la parole”, Pratiques,
49.
Moirand, S.(1999) “Les indices dialogiques de contextualisation dans la presse ordinaire”. Cahiers de praxématique,
33: 145-183.
Possenti, Sírio (2002) Os limites do discurso. Curitiba, Criar Edições.
Rosier, L. (1999) Le discours rapporté – histoire, théories, pratiques. Paris, Bruxelles, Duculot.
Stan, R. (1992) Bakhtin – da teoria literária à cultura de massa.São Paulo, Ática.

Palavras chave: discurso citado; enunciação; diálogo; gênero discursivos


Biografia resumida: Dóris de Arruda C. da Cunha, doutora em Ciências da
Linguagem pela Universidade de Paris V (1990), é professora nos cursos de gradu-
ação e pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, onde
orienta dissertações de mestrado e teses de doutorado. Coordenadora atual do
Programa de Pós-Graduação em Letras e pesquisadora do CNPq, publicou livro,
capítulos de livros e artigos, no Brasil e na Europa, com estudos sobre o discurso
citado e a circulação da fala, o funcionamento da linguagem, as relações entre fala
e escrita, ensino de língua portuguesa, livro didático, entre outros temas.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 243


Estilo: dialogismo mostrado

Norma Discini

Universidade de São Paulo

Rua Capital Federal, 419, ap. 202 Sumaré

01259 010 São Paulo, SP

Resumo I
As reflexões a serem feitas apóiam-se no princípio de que o estilo é o homem, entendido este homem
como efeito de sujeito depreensível de uma totalidade de discursos e, portanto, passível de ser recons-
truído por meio da observação das relações de interdependência entre expressão e conteúdo. Além disso,
essas reflexões se apóiam no princípio de que o eu se constitui dialogicamente. A partir do dialogismo
constitutivo, constatamos que um estilo pode construir-se sobre outro e, por isso, mostrar seu direito e
seu avesso. Falamos do dialogismo mostrado, aquele que deliberadamente mostra o outro no um. Assim
a paródia e a estilização de estilo serão cotejadas com o estilo de referência. Na paródia, sob traços
de um caráter subvertido, pressupõe-se o outro, para que se consolide o novo ethos, firmado como fé
contrária. Disso resulta o confronto de leituras, que provoca o humor. Aqui um estilo imita e subverte o
outro. Na estilização, o eu e o outro são construídos por meio de complementaridades de relações. Entre
o estilizado e o estilizador, legitima-se apenas o primeiro, como voz, corpo, caráter, ethos, enfim. Aqui
um estilo imita e capta o outro, do que resulta o estilo à maneira de.
Resumo II (Abstract) - STYLE: EXPOSED DIALOGISM
The reflections to be made rely on the principle that the style is the man, being this man understood
as subject’s effect inferred from a totality of discourses and, as a result, likely to be reconstructed by
the observation of the relations of interdependence between expression and content. Furthermore, these
reflections rely on the principle that the I is dialogically constituted. From the constituting dialogism,
we verify that a style may be based on another one and, for this reason, it may show its inside as well
as its outside. We talk about the exposed dialogism, the one which deliberately exposes the other in
the one. Thus, the parody and the stylisation of style will be confronted with the reference style. In the
parody, under traces of a subverted character, the other is presupposed so that a new ethos is conso-
lidated, confirmed as contrary faith. From this results the confrontation of readings which causes the
humour. Here, a style imitates and subverts the other. In stylisation, the I and the other are constructed
by means of a complementarity of relations. Between the stylised and the styliser, only the second one
is legitimated as voice, body, character, ethos at last. Here, a style imitates and captures the other,
resulting in the style in the way of.

Estilo e dialogismo: conceitos


Concebendo o estilo dos textos não como o algo-a-mais, o belo e o raro desviantes de uma norma,
suposto grau zero de expressividade, mas como um conjunto de traços da expressão e do conteúdo
que criam um ethos, uma imagem do enunciador, reafirmamos a máxima de Buffon, segundo a qual O
estilo é o homem. Homem, porém, é pensado como a imagem de um sujeito construída por uma totali-
dade de textos: o sujeito da enunciação pressuposto a uma totalidade de discursos, também chamado
ator da enunciação. Esse homem é dado a conhecer como sujeito linguageiro, efeito de individualidade
construído nos textos. Esse homem é dado a conhecer não por uma análise que se preocupa em buscar
as expressões estilísticas, supostos átomos expressivos espalhados no raso da superfície textual, mas
por uma análise que procura reconstruir quem diz pelo modo de dizer; um sujeito que, entendido com
corpo, voz e caráter, é reconstruído por meio do exame das próprias estratégias enunciativas, as quais,
recorrentes numa totalidade de discursos, firmam um modo próprio de presença no mundo. Esse sujeito,
construção do próprio discurso, supõe saberes, quereres, poderes e deveres ditados por valores e cren-
ças sociais e, identificável por meio da observação das apreciações moralizantes implícitas à totalidade,
é tido como construção de dada formação social: um eu fundado no diálogo com o outro. Esse sujeito,
passível de reconstrução por meio de uma estilística discursiva, apóia-se num fato formal subjacente à

Proceedings XI International Bakhtin Conference 244


totalidade e, como o fato formal somente significa por ser diferencial, esse sujeito confirma a própria
relação com seu exterior. Esse sujeito é único e duplo, singular e plural, homogêneo e heterogêneo;
único, singular e homogêneo, por decorrer de um fato formal; duplo, plural e heterogêneo, por decorrer
da resposta ao outro.
O estilo são dois homens, disse Mikhail Bakhtin, ao problematizar o estilo sob a concepção dialógica
da linguagem, para a qual o sujeito somente se constitui na relação com a alteridade. Concebendo o ho-
mem inacabado, que se constrói em cada evento, o autor toma a linguagem como construção histórica
e social e o signo, como “social por natureza”. Fica assim confirmado o indíviduo “como um fenômeno
puramente sócio-ideológico”. Na dialética estabelecida, Bakhtin (1988: 48-58) explicita que “as mani-
festações ideológicas são tão individuais quanto psíquicas”, mas reforça que o selo da individualidade
nunca deixa de ser social. É assim desfeita a dicotomia individual vs. social.
O chamado Círculo de Bakhtin, já que foi dele a produção de maior envergadura, apresenta pensa-
mentos que podem orientar aqueles que buscam entender o mundo como “o enunciado construído pelo
sujeito humano e decifrável por ele”, como diz Greimas (1989: 291); ou o mundo feito discurso, feito sig-
nificação, feito linguagem e feito História. É só atentar à crítica bakhtiniana, quer explícita, quer implícita,
que ora se confronta com o psicologismo intuitivista, ora com a abstração racionalista; estas tendências,
ambas, de um pensar que cria a imagem do homem voltado sobre si mesmo e emparedado na ilusão
da própria soberania. Tal crítica se realiza em passagens como a que propugna o “caráter refratário e
deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante”, a que se juntam afirmações como
esta: “O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”, para em seguida afirmar que “é
este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir”. Susten-
tando o chamado mundo interior como espaço povoado de vozes sociais em relação de concordância e
discordância, prossegue o autor: “O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem
da luta de classes, irá infalivelmente delibitar-se” (Bakhtin, 1988: 55 - 65). Assim são lançadas bases
de um pensamento que subsidia a noção do sujeito dialógico, por firmar o princípio de que o individual
só significa em relação ao social.
A partir da constatação do dialogismo constitutivo do estilo, podemos refletir sobre o dialogismo
mostrado. Um estilo pode ser construído sobre outro e mostrar o próprio direito, ou seja, o mundo
de crenças que o constitui, e o próprio avesso, ou seja, as crenças do outro com o qual se confronta.
Falamos daquela heterogeneidade, que deliberadamente mostra o outro no um. Falamos mais especifi-
camente de uma heterogenidade mostrada e não marcada. A heterogeneidade mostrada será marcada,
quando, com aspas, travessões e letras tipo itálico, entre outros recursos, mantém o outro circunscrito
a um lugar à parte, em separação nítida do um, como propõe Authier-Revuz (1984: 98). Referimo-nos
ao outro mostrado de maneira diluída no discurso e no texto do um. Reportamo-nos ao espaço “onde o
outro é dado a reconhecer sem marcação unívoca”, entre cujos exemplos Authier-Revuz cita “pastiche e
imitação”. Ao falar em dialogismo mostrado entre estilos, levamos em conta que um estilo pode imitar
outro, para captá-lo ou subvertê-lo como totalidade ética.
Dialogismo mostrado e estilo de referência
A imitação de um estilo por outro realiza-se por meio do discurso segundo, que imita o estilo de refe-
rência, resultando na heterogeneidade que, mostrada e acidental, deliberadamente acolhe a constitutiva
e essencial. A imitação de um estilo por outro pode ocorrer por captação, como é o caso da estilização, e
por subversão, como é o caso da paródia. Na estilização, temos o estilo à moda do outro, que promove
uma asserção do estilo de referência, com o qual mantém uma relação de complementaridade ética. Na
paródia temos a subversão do estilo de referência, ou o estilo à moda contrária que, para responder ao
outro, subverte-o, contrariando-o, o que supõe presenças em pressuposição recíproca: lê-se a paródia,
pensando no estilo de referência.
Mas, se o estilo é o homem, as relações estabelecidas são entre sujeitos; entre atores da enunciação
de cada totalidade em diálogo. Da observação desse movimento, firma-se portanto a própria unicidade
de cada totalidade de discursos, então delimitada com o não-eu. Firmam-se as fronteiras de cada estilo,
tornadas permeáveis por esse dialogismo que, ao se mostrar, corrobora o centro como constituído pelo
não-centro. Firma-se o leitor que, como co-enunciador, pode desfrutar o prazer de procurar o outro
mostrado no um, ao identificar mecanismos discursivos por meio dos quais estilos se imitam, a fim de,
ora captar, ora subverter um ethos.
Antes de verificar procedimentos de construção desse dialogismo mostrado, observemos um estilo
que foi retomado pela paródia, por isso tido como estilo de referência: a revista Caras, publicação da
Editora Abril, São Paulo, com tiragem semanal de uma média de 420.000 exemplares. O ator da enun-
ciação da totalidade foi identificado pelo modo recorrente de usar figuras e temas que se relacionam ao
sistema de atrações e repulsões em relação a valores, o que significa convergir para e divergir de vozes
e grades culturais. Núcleos temáticos como o da ostentação de haveres e da supervalorização de bens
materiais, expandindo-se em percursos da vazão da privacidade e da exposição de um bem-estar obriga-
toriamente contínuo, dão a conhecer uma enunciação que, no discurso, faz rejeitar o simples, enquanto
o natural, o não-afetado, o modesto. Núcleos temáticos confirmadores da opulência, relacionados a um
saber-fazer dinheiro, pressuponente de um poder discursivizado como dom detido por alguns poucos
privilegiados, legitimam lugares de quem fala e de quem escuta. Dessa maneira o estilo reflete e refrata
determinado corpo ideológico e, sob um modo peculiar de encadear figuras e temas, faz pulsar a arena

Proceedings XI International Bakhtin Conference 245


de conflitos sociais aparentemente descaracterizados por ilusória confluência da classe dominante com
a classe dominada, no aplauso previsto desta para aquela.
Um modo de presença é depreensível de cada exemplar e de cada seção de cada revista já que,
em se tratando de estilo, o todo está nas partes. Podemos lembrar fragmentos de receitas da seção Nova
cozinha de Caras, como a de Canapès de viande des Grisons, de autoria da banqueteira Adriana Carioba
(Caras, 1º de outubro de 1999): “Com a viande des Grisons, carne curada no gelo, originária do cantão
suíço dos Grison (vende-se filé mignon), modele pequenas rosas”, fragmento do qual depreendemos
a consolidação de uma prática definida pela não-restrição: de dinheiro para comprar ingredientes; de
esforço e cuidado para cozinhar; de arranjos à mesa para se servir; de dispêndio de tempo, enfim. En-
quanto isso, a totalidade de receitas se volta para a confirmação de porções exíguas a serem servidas,
coerente com a necessidade de patrulhamento do peso, tema recorrente, concretizado neste exemplo:
“Vera Fischer (48), realizou um desejo especial (...). A atriz retirou no total três litros de gordura (em
lipoaspiração) e gostou do resultado” (Caras, 31 de dezembro de 1999).
Encadeadas recorrentemente à culinária, reportagens sobre mansões firmam a voz do ator do enun-
ciado e, conseqüentemente, da enunciação:
Tudo em que Wilma investe dá certo. Seus negócios lhe trouxeram bons resultados e lhe
permitem alguns requintes. Ela tem em sua garagem um BMW branco e um Mercedes Benz
C-36 prateado. Escolhe as roupas de acordo com a cor do carro. “Não ganhei dinheiro em
loteria nem roubando e sim com meu trabalho”. (...) “Tenho experiência na área financeira.
Fui caixa de banco e nos anos da superinflação fazia bons negócios para meus clientes.”
(Caras, 16 de julho de 1999)

Na figura do funcionáro subalterno, o caixa de banco, que se transforma em mega-empresário, está


fundamentada a estereotipia imaginária do trajeto do sucesso individual, ou de quem teve a competência
para, cumprindo o dever de pequeno empregado da estrutura burocrática de uma empresa, aprender a
fazer investimentos rendosos. Está aí representada a formação discursiva que propõe a ascensão social
como competência de um sujeito que, para subir na vida, deve saber e querer simplesmente; um sujeito
que, ainda, articulado ao papel do esperto, firma a imagem daquele que sabe e pode não sofrer, coerente
com a ética do sucesso. Eis, sob alguns aspectos, um ethos de mármore.
Paródia de estilo
A revista Bundas, publicação semanal da Editora Pererê, do Rio de Janeiro, parodia Caras. Bundas
imita e subverte Caras por meio de reportagens em que, por exemplo, Os Silva recebem os amigos
- churrasco e pagode inauguram nova casa, onde, sentado com bermuda que deixa à mostra a barriga
protuberante, um açougueiro aparece com a família, “antes de tudo alegre”, num “week end de puro
lazer” (Bundas, Ano 1 - nº7 - 27 de julho a 2 de agosto de 1999, p. 30-32). Numa retomada do que faz
a revista Caras, os Silva se deixam fotografar no próprio banheiro, só que aqui o fio elétrico do chuveiro
está à mostra, atrás de uma cortina de plástico estampado, de fundo branco. Ao lado da foto, a legenda:
O banheiro dos Silva é um convite para o prazer.
Na seção culinária, Bundas recontextualiza NOVA COZINHA DE CARAS, que se orienta pelo gosto do
luxo, supondo o ingrediente raro, a não-restrição do dinheiro para comprar e do tempo para preparar o
alimento e para permanecer à mesa. Na recontextualização surge em NOUVELLE CUISINE DE BUNDAS
a paródia na coluna Minha receita, que registra, da autoria de José Silva, o açougueiro, a receita de
torresmo:
Lá no meu açougue você encontra sempre uma pele de porco da melhor procedência. Antes
de cortar em quadrados de 4cm, aproximadamente, coloque o óleo para ferver. Quando
estiver acendendo fósforo de tão quente, jogue o torresmo e se ajoelhe para agradecer a
Deus por ter inventado um prato tão maravilhoso.

Sob traços de um caráter subvertido, é mostrado o ator de Caras que, virado ao avesso, é desmoraliza-
do, para que se consolide o anti-ethos e se confirmem não apenas práticas culinárias e hábitos alimentares
opostos, mas uma hexis corporal, um corpo que se move de maneira própria em outra e dada dimensão
social. Tais gestos, porém, são relativizados pelo riso próximo daquele observado por Bakhtin (1987:
203) que, ao se referir a “obras tipicamente recreativas, populares”, descreve-as opondo “o ordinário e
o cotidiano” às “idéias sombrias e sérias”, ao mesmo tempo em que se dirigem, tais obras, segundo o
autor, contra o tom das “predições e profecias sérias”, contra a “maneira de ver e interpretar a vida, a
história, o tempo.” “É nesse mesmo espírito carnavalesco que está escrita a Pantagrueline prognostica-
tion. Encontramos nesse curto texto (diz Bakhtin, para citar Rabelais) imagens materiais e corporais: ´o
toucinho evitará as ervilhas na Quaresma; o ventre irá adiante; o cu assentar-se-á primeiro`”.
Bundas está amparada na história do riso e, da margem da não-oficialidade, filiada ao “baixo” material
e corporal, inverte e traveste o ator de Caras, que tanto se esfalfa para parecer “elevado”. O escracha-
do José Silva, é o bufão sagrado rei, como nos bons tempos carnavalescos do século XVI, o século de
Rabelais. O ator de Caras, programado pela totalidade como aquele que tem percepção refinada para
apreciar um mundo de requinte e apuro, dotado então de um saber e de um poder que supostamente
o privilegiam, é retomado e desmoralizado como alvo da ironia na totalidade Bundas. Não sai impune,
portanto, tal ator, ao ser recontextualizado nesse outro mundo, em que “as vitrinas das melhores casas

Proceedings XI International Bakhtin Conference 246


do ramo (bares) estão sempre cheias das melhores porcarias e engorduradas pelos mais saturados óleos
de soja.” Assim, enquanto é construído o ator da totalidade parodística, o outro citado e com o qual a
dissensão é mantida ludicamente, permanece como presença pressuposta. Na paródia de estilo, sob os
traços de um caráter subvertido, pressupõe-se então o outro, para que se consolide o novo ethos, não
apenas fundamentado em valores contrários, mas firmado com fé contrária. Da oposição ética emer-
gem sujeitos-suporte de formações ideológicas presentes nas relações sociais, indicativas de visões de
mundo conflitantes e contrárias e, da pressuposição recíproca dos sujeitos mostrados hiperbolicamente
na própria incongruência, confirma-se o riso da paródia.
Estilização de estilo
Na estilização um estilizador capta um estilo, enquanto estrutura e acontecimento, enquanto abstração
e concretude, parecendo o outro imitado e sendo. Travestido no outro, o estilizador cede a ele o próprio
discurso, o que resulta num único modo de presença: o da totalidade estilizada.
Bandeira, nos poemas à maneira de..., constrói uma estilização de estilo. Para tanto, faz esquecer seu
próprio modo de ser, como acontece no soneto À maneira de Olegário Mariano, em que, no enunciado,
é instaurado um eu e invocado um tu, para firmar-se um lamento por perdas irrecuperáveis. Esse tu
remete a Betsabé, mulher bíblica, com quem o rei Davi um dia se casou, após ter forjado a morte de
Urias, o esposo de direito, conhecimento de mundo supostamente partilhado entre autor e leitor. Vamos
ao soneto:
À MANEIRA DE OLEGÁRIO MARIANO

Triste flor de milonga ao abandono,


Betsabé, Betsabé, que mal me fazes!
Ontem, a coqueluche dos rapazes,
E agora? pobre pássaro sem dono.

Primavera e verão foram-se. O outono


Chegou. Folhas no chão... Névoas falazes...
E aí vem o inverno... O fim das lindas frases...
O último sonho, e após, o último sono!

As cigarras calaram-se. Era tarde!


E hoje que no teu sangue já não arde
O fogo em que tanta alma se abrasou,

Choras, sem compreenderes que a saudade


É um bem maior que a felicidade,
Porque é a felicidade que ficou!

Manuel Bandeira, Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p. 434

Apresenta-se o irreprimível desejo do desejo do outro, na circularidade da perda, tentativa de recupe-


ração, confirmação da perda; sempre a perda da companhia, o bem mais que desejável e abundantemente
pranteado. Eu-poeta e tu-Betsabé fundem-se nessa falta, já que Betsabé salta dos limites figurativos de
mulher bíblica para expandir-se no ícone da perda irrecuperável, confirmado, no texto, pela metáfora do
pobre pássaro sem dono. A triste flor de milonga ao abandono é o eu e o tu. Centralizada na figura de
Betsabé, emerge do enunciado no qual se contempla, a figura do enunciador.
Junta-se o então à primavera e ao verão; o agora ao outono e inverno. Lá, implícita, a fala do outro;
aqui, no fim das lindas frases, o silêncio indesejado. Aqui, os temas da velhice e da morte figurativizados
respectivamente pelas metáforas do último sonho e do último sono. A gradação da perda atinge o clímax
no meio do poema ou no último verso do último quarteto, encerrando com o último sono o mundo já
encerrado em si mesmo por meio das rimas que se retomam entre si no esquema abba/ abba, por meio
do desenho métrico dos próprios quartetos, constituindo materialmente um todo. No bloco seguinte,
formado pelos dois tercetos e pelas novas rimas, têm progressão silêncio e dor, introduzidos ambos pelo
ato de calar-se das cigarras. No silenciamento está a morte daquela que é o símbolo da vida, do sonho e
da lucidade, se entendida em oposição à formiga, da fábula de La Fontaine. As cigarras calaram-se. Era
tarde. Com este verso, o bloco construído pelos tercetos, retomando o fim das lindas frases, antecipa a
semantização do hoje (v. 10) como o tempo do fim, em que se emparelham na rima e na vida a tarde
e o fogo que já não arde. Com silêncio e frio indesejáveis é figurativizado esse tempo daquilo que ficou,
esvaziado de si mesmo e preenchido pelo passado, que é o que traz a saudade, estado de consciência
dolorosa pela perda de um bem, como está no dicionário.
Por conseguinte, pelas combinações de um crer-querer-ser e de um saber-não-poder-ser, fundamenta-
se determinada sintagmática de papéis, como a do desalentado que, aliado ao do impotente, configura
o ator nostálgico. É preciso compreender, manda o poema, que a saudade é a felicidade que ficou: se-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 247


lecionados estados dolorosos para a constituição do sujeito que sente, reage e se emociona orientado
pela falta, temos ainda o papel do ator que ostenta falta e dor fincadas nesse querer fazer-saber. Assim
e por isso exalta-se a saudade.
Firmada a ética da euforização do passado, os temas da velhice e morte acoram-se no discurso por
meio do valor do indesejável, consolidando o tom nostálgico da voz. Por um não poder fazer, por um
não poder ser, somatiza-se o desalento num corpo enfraquecido, por sua vez incorporado na cena nar-
rada a qual, interessando como “foco de coordenadas que serve de referência à enunciação”, como diz
Maingueneau (1995: 121), remete ao próprio corpo do ator da enunciação. Betsabé, o sujeito que não
pode, porque não sabe se realizar segundo as recordações do passado, reforça o tom de voz do Olegário
de As três sombras que passaram (Mariano, 1968: 64):
Veio a primeira. Trazia
Nos braços, nas mãos cheirosas,
Uma braçada de rosas...
Esperança! Flor de um dia!
No esplendor de um corpo lindo,
Passou cantando e sorrindo...

Veio a segunda, ébria e louca.


Boêmia, inconsciente e perdida.
Sua boca era uma taça.
Tira um beijo à flor da boca.
Sacode-me o beijo e... passa.
De mão em mão... Pobre vida!

Veio a terceira, a mais bela,


Suave, espiritual, sonora...
Chorou, quis ficar comigo,
Sem saber quem era aquela,
Deixei-a ir... Foi-se embora...
Era a felicidade, meu amigo.

As três sombras que passaram, a Esperança, a Vida e a Felicidade, de Olegário, confirmam, em


relação ao poema à maneira de..., de Bandeira, o único sujeito “que fala”, respaldado por tematização
emblemática. O efeito de sujeito, Olegário, é forjado na estilização por estratégias que incorporam a fé
na felicidade só existente, se advinda da companhia do ser amado. Para tanto, firma-se o tempo pre-
sente como o tempo do frio e da tristeza, diferentemente do passado, o tempo do fogo, em que o êxito
com os galanteios (coqueluche) dos rapazes garantiam a milonga, o feitiço, de Betsabé. Mas a flor está
triste, devido ao abandono.
Numa pausa ilustrativa, lembramos que Olegário Mariano foi contemporâneo de Manuel Bandeira e,
portanto, contemporâneo da Semana da Arte Moderna. No entanto, segundo o próprio Manuel Bandeira
que, além de estilizador também foi crítico do poeta estilizado, “Olegário Mariano (...) ingenuamente
se julgava um parnasiano e jurava por Bilac e Alberto de Oliveira, quando o que dava particular acento
aos seus versos era a musicalidade (...) simbolista” (Bandeira, apud: Mariano, 1968: 8). Tais afirmações
ratificam o estilo Olegário como resposta divergente ao ideário da Semana, com a qual não partilhava
os mesmos valores. O estilo Olegário constrói, portanto, em relação ao contexto histórico-literário que
o atravessa, um ethos de constraste.
Mas Bandeira demonstrou poder parecer e ser Olegário, reconstruindo o lugar e o momento legitima-
dores de um discurso outro, no modo do parecer e do ser. A estilização faz confirmar-se o próprio sujeito
como construção do discurso e, por isso, um sujeito passível de ser imitado e captado. A assinatura
Manuel Bandeira, enquanto responsabilidade pelo que se diz, constrói então um estilo que não é o seu,
nem parece ser o seu. Basta examinar este poema, agora de Bandeira ele-mesmo:
O AMOR, A POESIA, AS VIAGENS

Atirei um céu aberto


Na janela do meu bem:
Caí na Lapa – um deserto...
- Pará, capital Belém...

Manuel Bandeira, Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1996, p. 229

Atirei o quê? Um céu aberto. Atirei um céu aberto onde? Na janela do meu bem. Rompem-se as

Proceedings XI International Bakhtin Conference 248


expectativas dadas pelo sistema da língua, já pelo preenchimento semântico inusitado do objeto direto
do verbo atirar: um céu aberto; já pelo aparente non-sens da configuração tópica: Lapa/Pará, capital
Belém; mais rupturas, na aparentemente injustificada figura de cair, com o traço da fragilidade de quem
cai, após ter sido projetado o poder de quem consegue atirar um céu aberto na janela de alguém; mais
rupturas ainda no último verso configurado como brincadeira discursiva e fonológica, na confluência das
rimas meu bem/ Belém, verso que, em aparente desconexão com os anteriores, promove uma inserção
lúdica de idéias, diante de suposta ausência do que dizer, recurso aliás que aparentemente faz valer mais
a expressão e menos o conteúdo do texto.
Mas em O amor, a poesia, as viagens, é relatada, em segredo, a frustração amorosa. Para tanto, o
céu aberto, como metáfora da disponibilidade afetiva, acaba por se emparelhar na rima e no discurso
com o deserto, metáfora da solidão, enquanto o verso Caí na Lapa – um deserto acaba por representar a
insatisfação, estado decorrente da não-conjunção do sujeito com o objeto de desejo. Delineada a imagem
do insatisfeito, é agregada a ela a imagem do desapegado, a ponto de, enquanto no discurso se firma
a brincadeira em relação à própria falta, no texto é reconstruída a brincadeira em relação a qualquer
arbitrariedade lógica, principalmente a arbitrariedade do signo lingüístico, na leveza de um corpo que,
brincando, vai do céu ao deserto. Assim, por meio da, e não apesar da coerção material dos versos em
redondilha maior e do esquema rímico, firma-se o ethos lúdico. Todavia, no poema à maneira de Olegário
Mariano, Bandeira, firma apenas o ethos fundado no papel do sujeito insatisfeito, que se articula ao do
resignado, para consolidar o tom de lamento, coerente com a isotopia actorial: um sujeito de luto e de
corpo curvado.
Considerações finais
Para concluir, lembremos que, na paródia, depreendem-se vozes que, embora dissidentes uma em
relação a outra, recuperam-se reciprocamente. Por essa razão a paródia exibe um grau máximo de
dialogismo. A estilização, ao construir o efeito de ausência do eu estilizador firma o efeito de presença
exclusiva da voz do outro. Por essa razão a estilização consolida um declínio do dialogismo mostrado,
assim reduzido a um grau mínimo de realização.
Aproveitando o que disse Critóvão Tezza sobre a autoridade da palavra poética, na palestra de abertura
da XI Conferência Internacional sobre Bakhtin (resumo localizável no site http://www.ufpr.br/bakhtin),
afirmamos que Bandeira, na estilização, discursiviza o peso de autoridade da palavra poética, parado-
xalmente ao fazer valer a palavra alheia e tão somente ela. Pelos labirintos do dialogismo mostrado,
o poeta ritualiza o “discurso indubitável”, fazendo prevalecer a “autoridade indiscutível”, ao organizar
vozes predominantemente a serviço da centralidade: do outro, entretanto.
Lembremos finalmente que os movimentos interdiscursivos e intertextuais examinados, ao comprovar
a mobilidade do discurso, discursivizam um universo instável, que se metamorfoseia “em movimento
interno da própria existência e exprime-se na transmutação de certas formas em outras, no eterno
inacabamento da existência”, que é como Bakhtin (1987: 28) se refere ao grottesco, ao comentar as
pinturas encontradas nos “subterrâneos das Termas de Tito”, em “fins do século XV.” Nessas pinturas
“o movimento deixa de ser o de formas completamente acabadas - vegetais e animais - num universo
também totalmente acabado e estável; metamorfoseia-se em movimento interno da própria existência”.
O dialogismo mostrado é um modo de realização deste grottesco.
AGRADECIMENTOS
A Carlos Alberto Faraco que, na XI Conferência sobre Bakhtin, foi abelha incansável na construção
do mel.
REFERÊNCIAS
AUTHIER-Revuz, Jacqueline (1984). Hétérogénéité(s) enonciative(s). Langages, 73, Paris:
Larousse, 1984, p. 98-111.
BAKHTIN, Mikhail (1987). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto
de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. Brasília: Hucitec.
________ (1988). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec.
GREIMAS, Algirdas Julien, COURTÉS, Jacques. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias
Lima et alii. São Paulo, Cultrix, v. I.
MAINGUENEAU, Dominique (1995). O contexto da obra literária. Trad. Marina Appenzeller.
São Paulo: Martins Fontes, 1995.
MARIANO, Olegário (1968). Poesia. Rio de Janeiro: Agir.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 249


TEXTOS-CHAVE: AUTHIER-Revuz, Jacqueline (1984). Hétérogénéité(s)
enonciative(s). Langages, 73, Paris:
Larousse, 1984, p. 98-111. BAKHTIN, Mikhail (1987). A cultura popular na
Idade Média e no Renascimento. O contexto
de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. Brasília: Hucitec.
NOMES-CHAVE: Mikhail Bakhtin
PALAVRAS-CHAVE: estilo, ethos, dialogismo, paródia, estilização
KEYWORDS: style, ethos, dialogism, parody, stylisation
BIOGRAFIA RESUMIDA: Norma Discini, professora do Departamento de Lin-
güística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, pesquisadora nas áreas da Análise do Discurso e da Semiótica, ambas
de linha francesa, dedica-se a questões do estilo. É autora de livros didáticos para
o ensino de língua portuguesa no nível fundamental, entre os quais destaca Leitura
do mundo, em co-autoria com Lúcia Teixeira, pela Editora do Brasil. Publicou, pela
Editora Humanitas, Intertextualidade e conto maravilhoso (2002) e, pela Editora
Contexto, O estilo nos textos (2003).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 250


El señor Presidente a la luz de la estética del grotesco:
la ambivalencia del mundo al revés

Renata Egüez

Deparment of Spanish and Portuguese

University of Maryland at College Park

Desde la invocación demoníaca con la que Miguel Ángel Asturias (Guatemala, 1899) abre El señor
Presidente (1946), se anuncia un universo dual en el que conviven vida/muerte, luz/sombra, humor/hor-
ror. En diálogo con este vaivén, doloroso y gozoso, de fuerzas en oposición es posible percibir una serie
de correspondencias entre la estética del grotesco, desde la teoría de Mijail Bajtin (La cultura popular en
la Edad Media y en el Renacimiento. El contexto de Francois Rabelais), y El señor Presidente, a partir de
una visión de mundo marcada por la ambivalencia.
Efectivamente, las imágenes cómicas relacionadas con el principio de la vida material y corporal
implican en el realismo grotesco antes que una degradación, un descenso o una mortaja, más bien un
principio positivo, una elevación, un renacimiento: “De allí que [el realismo grotesco] no tenga exclusi-
vamente un valor negativo sino también positivo y regenerador: es ambivalente, es a la vez negación
y afirmación” (Bajtin, 25). Desde esta perspectiva me interesa analizar el potencial del grotesco en El
señor Presidente como expresión de salidas interiores para los personajes y para el texto propiamente.
La crítica que prevalece sobre “la novela del dictador” (Estrada Cabrera, 1898-1920) se ha enfocado en
el universo trágico (Rosado, Krauel), como negación de esperanza y dominio del miedo (Navarro). Si
bien la impresión de un mundo cerrado se corrobora en espacios opresivos o en acciones que frustran
escapes exteriores, mi lectura apuesta por la capacidad regenerativa del grotesco bajtiano, de aquellas
fuerzas perturbadoras del infierno dictatorial, como son: la risa, lo maternal, la locura, el nacimiento/
alumbramiento, el ideal y el amor. Gracias a éstas, se posibilita la aproximación a otro orden de las cosas,
a un mundo al revés que concentra la tensión de la ambivalencia y se rebela en contra de la realidad “al
derecho” representada por el Presidente. La novela se mueve por espacios liminales, purgatorios que
abren el tránsito del infierno hacia elementos regeneradores de la existencia: así, sólo cuando la muerte
convoca a la vida, lo feo a lo sublime, lo dionisiaco a lo apolíneo y, sobre todo, el miedo al humor, la
ambivalencia actúa y el grotesco se concreta.
Los mendigos del Portal del Señor
La galería de pordioseros expuesta en el primer capítulo determina la estructura grotesca de la novela.
Hacinados bajo el Portal del Señor, conviven un idiota (el Pelele), una ciega que se imagina cubierta de
moscas y colgada en una carnicería, un tiñoso, un ciego desmembrado (el Mosco), un tuerto y un mulato
degenerado. La escena da cuenta de un grupo humano en degradación, de un mundo subterráneo que
emerge a la república del dictador y expone a sus víctimas patéticas y grotescas.
En ese universo demoníaco los pordioseros se rebajan, en términos bajtianos, mediante sus cuerpos
hipertrofiados. Esta descomposición es “el rasgo sobresaliente del realismo grotesco, o sea la transfe-
rencia al plano material y corporal de lo elevado, espiritual, ideal y abstracto” (Bajtin, 24). El cuerpo
absorbe el mundo y es absorbido por éste en una metáfora del desmembramiento colectivo, social. Al
mismo tiempo, el cuerpo se abandona a su condición de objeto o víctima de la succión y a ese entorno
represivo que lo despoja de sustancia. Los límites entre ambas esferas (lo micro y lo macro) se desplazan
al espacio de la ambivalencia gracias a estas mutuas devoraciones.
En los infiernos –que Bajtin define como el “nudo donde se cruzan los elementos directores: el car-
naval, el banquete, la batalla y los golpes, las groserías y las imprecaciones (Bajtin, 348)-, se suceden
los insultos, los pleitos tragicómicos y se evidencia la condición grotesca de los mendigos del Portal del
Señor descritos como animales rastreros. La bestialización en la novela es el recurso que permite a As-
turias asociar a sus personajes con las facultades negativas de los animales, como las que los identifican
con las aves de rapiña (en una metáfora de los hombres carnívoros, anunciadores de la muerte), a los
movimientos corporales rastreros, como signos del miedo; o a su forma de acoplarse, dormir y comer
grotescamente. Los animales exponen, además de la inseguridad humana, cualidades “fuera de”, más
allá de los límites de las reglas de comportamiento del mundo al derecho. Los personajes se apropian de

Proceedings XI International Bakhtin Conference 251


estos rasgos y, así, exponen el mundo al revés y desequilibran el orden establecido.
Del efecto desarticulador de la bestialización, resulta una regeneración en la perspectiva bajtiana:
el retorno a lo primitivo anuncia un renacimiento humano. Prueba de ello es el capítulo dedicado a la
tortura del Mosco, pordiosero ciego y desmembrado, quien resiste mediante el humor, en una suerte de
performance clownesca cargada de groserías y de bromas coloquiales. De esa reacción en desparpajo
resulta su muerte: su cuerpo queda reducido al tórax, a un órgano sin voz, a una materia incapaz de
defenderse.
Al final de esta escena, el narrador anuncia un nuevo día y el indicio de un niño por nacer: “Empe-
zaban a cantar los gallos. Los mendigos en libertad volvían a las calles. La sordomuda lloraba de miedo
porque sentía un hijo en las entrañas” (Asturias, 17). El embarazo, tanto como las enfermedades –en el
caso del tiñoso- y el despedazamiento –del Mosco-, se efectúan según Bajtin en “los límites del cuerpo
y del mundo, o en los del cuerpo antiguo y del nuevo; en todos estos acontecimientos del drama cor-
poral, el principio y el fin de la vida están indisolublemente imbricados” (Bajtin, 286). En ese sentido, el
cuerpo es el espacio liminal por excelencia que en la novela de Asturias expone la ambivalencia de los
personajes.
Otra salida interior entre los mendigos es la risa, en resistencia al llanto y al miedo. El tipo de hila-
ridad es histérica: la risa nace de un trauma, de la carencia del elemento maternal que, en el caso del
Pelele desata su locura, el grito, el llanto, su idiotez y su condición animal. Demencia y risa devienen en
formas de renacimiento y resistencia, explosiones grotescas que a la vez significan salidas catárticas de
un histerismo contenido, causado por el miedo y por el vacío materno.
Luego de matar al coronel Parrales Sonriente, el Pelele se da a la fuga y su cuerpo agujereado se
exterioriza, se descubre mediante salidas corporales (secreciones, mocos, saliva, vómito) que desbordan
el organismo a través de la boca, cavidad que el realismo grotesco privilegia. “El rostro grotesco supo-
ne de hecho una boca abierta, y todo lo demás no hace sino encuadrar esa boca, ese abismo corporal
abierto y engullente” (Bajtin, 285). La boca exhibe al hombre lanzado al vacío, en actitud de angustia
y de reclamo al mundo, pero también representa el lazo con el mundo, el canal que se abre desde el
individuo hacia el universo, para ser absorbido.
Entre risas y terror, el Pelele sirve de banquete a los zopilotes, quienes lo engullen por partes. En
seguida, ya no son las aves de rapiña las únicas que lo picotean, sino el hipo, expulsión material del
organismo, contracción grotesca que evoca un vacío interior, una represión personal y, por extensión,
social. En el clímax del ritual, Asturias sugiere un renacimiento, no de la materia, sino del principio rege-
nerador, en la línea de Bajtin: aun si el cuerpo del pordiosero está desmembrado, no es ésa la imagen
que prevalece al final del capítulo, sino la de una vida que nace: “Entre relámpagos huía la sombra de
los gusanos convertida en mariposa” (Asturias, 22).
El dictador y su círculo de poder
El personaje de Miguel Cara de Ángel, el favorito del presidente, aparece en el barranco de los zopilotes
para auxiliar al Pelele, con tal naturalidad que se diría salir de su hábitat infernal. Su oscura presencia
enfatiza el carácter grotesco de la novela por contraste, pues frente a su polo negativo, se desarrolla
una energía en resistencia: el amor por Camila, hija del coronel Eusebio Canales, caído en desgracia del
Presidente. Poco a poco, el favorito adopta las cualidades de un enamorado grotesco. Primero, el efecto
del amor lo descompone físicamente, pero después actúa, más bien, como epifanía.
Otro rasgo grotesco que vincula a Cara de Ángel con los pordioseros son los desahogos histéricos,
debidos también a la ausencia de la madre. El capítulo “Vuelta en redondo” demuestra cómo la figura
materna -representada en la imagen recurrente de la Virgen y en Camila- apunta a ese afán regene-
rador. Cara de Ángel se inserta en un movimiento circular inconsciente que lo desinhibe y se entrega a
un remoto sueño en el que busca la seguridad maternal y el inicio de la elipsis de su vida. En el mismo
capítulo, la conciencia de su amor por Camila revela un concepto grotesco del individuo, reducido a un
“¡Sexo de moco de chompipe!” (142), a una bestia en el juicio final despojada de entrañas: “El hombre
se rellena de mujer –carne picada- como una tripa de cerdo para estar contento. ¡Qué vulgaridad!” (143).
Lo grotesco da cuenta del dominio de la carne, del cuerpo animalizado en su deseo de posesión de la
mujer. El amor ambivalente oscila entre la redención regeneradora y la antropofagia: al rellenarse con
la carne de la mujer, el hombre adquiere los atributos positivos del ser amado.
A continuación, el favorito del dictador tiene una pesadilla en la que se impone la lógica del mundo
al revés, la ambivalencia y el carnaval, segundo universo que plantea una resistencia al orden oficial:
Cara de Ángel asiste a una función protagonizada por unos hombres de rojo que juegan con sus cabezas,
quienes terminan por obedecer, no a la voz del Presidente, sino a la del público (el pueblo). El juego se
repite hasta que los cráneos se estrellan en el suelo. El mal sueño concluye con una imagen grotesca,
degradante, de referencia material cíclica (comer, defectar, comer): “Entre los hombres de pantalón rojo,
el Auditor, con su cara de lechuza, esgrimía un anónimo, lo besaba, lo lamía, se lo comía, lo defecaba,
se lo volvía a comer” (185). Si bien aquí se anticipa la muerte de Cara de Ángel, también se anuncia que
una vez “comido” será devuelto al mundo. El movimiento productivo de este acto es clave en el realismo
grotesco. Para Bajtin, toda acción que implique un procesamiento de lo material (del cuerpo o de sus
funciones orgánicas, como la digestión o la evacuación) sólo se completa en la rueda regeneradora.
Ni siquiera el Presidente en toda su omnipotencia escapa a ese ciclo. Su enfrentamiento con el pueblo

Proceedings XI International Bakhtin Conference 252


no es fácil, pues “el populacho le afecta el corazón” (98), especialmente las mujeres, que evocan en él
a su madre ausente: “El amo tragó saliva amarga evocando tal vez sus años de estudiante, al lado de
su madre sin recursos, en una ciudad empedrada de malas voluntades” (97). Como en Pelele y Cara de
Ángel, la imagen maternal significa un polo de renovación para este ser degradado.
En el capítulo “El señor presidente”, éste, borracho y abandonado a la carcajada, se atora, su cuerpo
se hincha, y explota en eructos y risas satánicas. El alcohol despierta nuevamente en el dictador las
evocaciones de su madre, reminiscencias que lo conmueven al tiempo que lo descubren más grotesco:
“Se recostó en el hombro del favorito con la mano apretada en el estómago, las sienes tumultuosas, los
ojos sucios, el aliento frío, y no tardó en soltar un chorro de caldo anaranjado [...]. Lloraba y repetía
¡Ingratos! ¡Ingratos!” (223-224).
Los personajes femeninos
Junto con los mendigos, los personajes femeninos de Asturias me parecen los más ricos para una
lectura de lo grotesco, dado el proceso de degradación y renacimiento que sufren, ya sea mediante la
potencialización de lo maternal (Fedina Rodas), de la locura (la Chabelona) o de la carnavalización del
placer (las prostitutas). Percibo la relación de este sector femenino con el masculino como parte de un
movimiento inevitable de atracción: El Pelele, Cara de Ángel y el Presidente están marcados por la au-
sencia de la madre; de allí que su búsqueda se oriente hacia la reunión con aquel polo regenerador de
su existencia.
La primera en ser descrita a la luz del grotesco es Fedina Rodas, esposa de Genaro Rodas, cómplice
en el asesinato de uno de los mendigos, y amigo de Lucio Vásquez, agente del gobierno. El narrador la
describe con “senos caídos, fláccidos y velludos como ratas colgando sobre la trampa de las costillas”
(58). A pesar de su cuerpo en descomposición, el polo materno aflora en Fedina cuando protege a su
bebé ante su esposo alucinado: “Como la gallina que abre las alas y llama a los polluelos en viendo pasar
al gavilán, se levantó a poner sobre el pechito de su recién nacido una medalla de San Blas” (60). En
este instinto maternal radica la ambivalencia del personaje, porque significa su tránsito de lo grotesco
en términos de degradación, a una forma de resistencia: asegurar la vida de su hijo.
Como consecuencia de la redada inculpatoria dirigida por el Auditor de Guerra, Fedina cae presa.
Encerrada en un calabozo y transida de miedo, encuentra una salida interior en el recuerdo de su hijo:
“Pensaba en él como si aún lo llevara en las entrañas. Las madres nunca llegan a sentirse completamente
vacías de sus hijos” (108). La conciencia de lo maternal la sosiega, pues sólo allí se sabe segura.
Incapaz de alimentar a su hijo luego de la tortura, Fedina siente morir en su regazo a su bebé, con-
vertido ahora en un muñeco de trapo. La fuerza maternal la impulsa a transformarse en la tumba viva
de su hijo. Como señala Bajtin,
“La degradación cava la tumba corporal para dar lugar a un nuevo nacimiento. De allí que
no tenga exclusivamente un valor negativo, sino también positivo y regenerador: es ambi-
valente [...] es también inmersión en lo inferior productivo [...]. Lo ‘inferior’ para el realis-
mo grotesco es la tierra que da vida y el seno carnal; lo inferior es siempre un comienzo”
(Bajtin, 25-26).

En ese sentido, el cuerpo como tumba es ambivalente porque a la vez que degenera, fecunda vida. La
tierra y lo carnal resisten, así, al dominio de la muerte. De allí que aunque el hijo de Fedina muere, ella
lo acoge como si el cordón umbilical nunca se hubiera cortado: “Era suya la alegría de las mujeres que
se enterraban con sus amantes en el Oriente sagrado. Y en medida mayor, porque ella no se enterraba
con su hijo; ella era la tumba viva, la cuna de tierra última” (Asturias, 148-149). La muerte del hijo de
Fedina la degrada, pero también la regenera. Por un lado, allí encuentra un nexo con la tierra –tierra
madre, de acuerdo con el principio indígena-; por otro, le es posible vislumbrar una salida a su estado
mental y emocional, al volver al polo positivo que emana de lo materno.
El Auditor de Guerra pone en venta el cuerpo torturado de Fedina Rodas y lo entrega al prostíbulo
El dulce encanto. Allí se recrean el espíritu carnavalesco y la galería de cuerpos grotescos, el de las
prostitutas, “Altas, bajas, gordas, flacas, viejas, jóvenes [...] de senos casi líquidos” (160); y el de
los clientes: desde el hombre de negocios con “astronómica cantidad de vientre que le redondeaba la
caja toráxica” (161), hasta “el burgués adiposo” (161). En la noche, el carnaval se desata con matices
lascivos, baile, música, alcohol, gritos y risotadas. En la manifestación carnavalesca no escapa, según
Bajtin, una unidad de estilo que hace de esta diversidad una zona única de la cultura cómica popular.
El prostíbulo es, en definitiva, el espacio ambivalente del deseo -de su búsqueda y de su frustración-.
En términos bajtianos, El Dulce Encanto llega a funcionar como cronotopo toda vez que allí confluye el
tiempo y el espacio del carnaval.
Otros personajes femeninos encuentran sus salidas interiores en la locura, como la Chabelona. En su
afán de proteger a Camila de los agentes del dictador, la nodriza recibe los golpes y queda con el crá-
neo roto. De ese bulto de mujer surge la risa demente, que se combina con el juego de las escondidas:
“¡Já-já-já-já!.... ¡Jí-jí-jí-jí!... ¡Jú-jú-jú-jú!... ¡Tuero! ¡Salga, niña Camila, que no la ‘jallo’!” (87). Esa risa
se transforma en seguida en “grito de mono herido” (87) cuando ve su imagen grotesca reflejada en un
estanque. La Chabelona vaga como una bestia mientras afuera pasa la banda marcial. Entonces acude
al recuerdo de su infancia –el juego de niños- para encontrar una fórmula de sosiego.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 253


Por su parte, el personaje Camila garantiza la continuidad del ciclo maternal y de la ambivalencia re-
generadora en el infierno del dictador. En ella se configuran las contradicciones del poder y del universo
del señor Presidente. A partir de su rapto, a manos de Cara de Ángel, termina abruptamente una primera
etapa en la vida de la hija de Canales. Todo el orden de su mundo se trastoca con este acto.
Luego de una agónica enfermedad, Camila se dispone a la renovación. El capítulo “Luz para ciegos”
describe ese renacimiento análogo al de la naturaleza:
“Andaba fuera del mundo con los ojos abiertos, recién nacida, sin presencia. [...] Había
muerto sin dejar de existir, como en un sueño, y revivía juntando lo que en realidad era ella
con lo que ahora estaba soñando. Su papá, su casa, su Nana-Chabela, formaban parte de su
primera existencia. Su marido, la casa, las criadas, de su nueva existencia. [...] Sensación
de volver a la vida en otra vida” (236).

El tránsito por el umbral de lo liminal se concreta en Camila en este punto en el que separa su exis-
tencia anterior de su nueva vida. En términos bajtianos, esta escena concentra la ambivalencia cuando
la degradación (léase su vida pasada) da lugar a un nuevo nacimiento.
El embarazo de Camila representa una extensión de la vida, pero también significa un riesgo: expo-
ner a un nuevo ser al domino del dictador, a la vida grotesca en oposición al vientre materno, espacio
de seguridad y amor. Sin embargo, en el alumbramiento, Asturias propone una salida: un niño está por
nacer, mientras la vida afuera “anochecía y amanecía” (277), es decir, mientras el ciclo continúa. Y es
que, como afirma Bajtin, “en actos tales como [...] el embarazo, el alumbramiento, [...] el cuerpo [...]
es un cuerpo eternamente incompleto, eternamente creado y creador, un eslabón en la cadena de evo-
lución de la especie” (Bajtin, 30).
Esa cadena que asegura la posibilidad regenerativa encuentra en Camila el eslabón principal, y en la
figura del dios Tohil (que aparece en una visión de Cara de Ángel), la legitimación de la fertilidad como
elemento del ritual de regeneración. El baile dedicado a Tohil representa en la narración el clímax en el
que se conjugan el grotesco con el espíritu de renovación. La visión del favorito corresponde a un ritual
de sacrificio en honor a este dios maya de la guerra, descrito en el Popul Vuh, que se inserta en la obra
de Asturias como figura análoga al dictador.
En esta suerte de rito dionisiaco, se puede conjugar el concepto bajtiano de fiesta, vinculado con el
tiempo cósmico, biológico e histórico. En efecto, las fiestas medievales “han estado ligadas a períodos de
crisis, de trastorno, en la vida de la naturaleza, de la sociedad y del hombre. La muerte y la resurrección,
las sucesiones y la renovación constituyeron siempre los aspectos esenciales de la fiesta” (Bajtin, 14).
Asimismo, el baile del Tohil se inserta en un momento histórico crítico para Guatemala, y no obstante,
augura un renacimiento. Del desorden caótico en el que se desarrolla el sacrificio deberá germinar un
nuevo orden, producto de esa crisis, como parte del ciclo de fertilidad –y no sólo de muerte- al que el
propio ritual responde.
La ofrenda se inicia como resultado del robo del fuego. El dictador es responsable de la oscuridad y de
las cabezas de sus víctimas. La tribu –el pueblo- busca la luz porque es ciega de nacimiento y, por ello,
reclama al Dador del fuego, Tohil. A cambio, éste exige sacrificios humanos: “Y estos hombres, ¡qué!;
¿cazarán hombres?” (262), se pregunta el dios. La tribu está dispuesta a ello, “¡Con tal de que no se
nos siga muriendo la vida, aunque nos degollemos todos para que siga viviendo la muerte!” (262). Ello
significa la felicidad de Tohil y la confirmación de que vida y muerte están unidas en un ciclo de sacrificio
y renovación: “Sobre hombres cazadores de hombres puedo asentar mi gobierno. No habrá ni verdadera
muerte ni verdadera vida” (262). Se trata de la misma voz del Presidente que exige a su pueblo sacri-
ficios humanos y a sus guerreros, que sean cazadores de hombres. La pregunta es, si el fuego retorna
efectivamente en el mito maya, ¿lo hará también en la realidad que Asturias recrea? ¿A quiénes se les
devuelve el fuego? ¿En quiénes se complementa la rueda?
El nacimiento de Miguelito, el hijo de Cara de Ángel y de Camila, anuncia efectivamente otro ciclo, el
“del bienestar de domingo” (279), el de la naturaleza en movimiento. Camila presiente la renovación a
través de su hijo, pero la esperanza no es sólo para ella, sino para toda la novela: “El pequeño Miguel
creció en el campo, fue hombre de campo, y Camila no volvió a poner los pies en la ciudad” (280). La
oposición campo (salida positiva) versus ciudad (sinónimo de panóptico) anticipa la posibilidad del por-
venir, pues en el campo, la rueda de la existencia retoma su rumbo.
Finalmente, el otro personaje que constata una salida “exterior” es el estudiante. En la penumbra de
un calabozo, aparece como una voz más entre los presos: “Se deleitaba en sus dolencias físicas para
olvidar que había visto la luz en un naufragio, que había visto la luz entre cadáveres, que había abierto
los ojos en una escuela sin ventanas, donde al entrar le apagaron la lucecita de la fe y, en cambio, no le
dieron nada: oscuridad, caos, confusión, melancolía astral de castrado” (200). Sin embargo, es el único
que habla de libertad en la cárcel y opone a la desesperanza, la revolución: “-¡Qué es eso de rezar! ¡No
debemos rezar! ¡Tratemos de romper esa puerta y de ir a la revolución!” (202).
El epílogo confirma al estudiante como el polo positivo de la novela, toda vez que logra la libertad. La
narración, no obstante, concluye con la ambivalencia de toda la obra: el Portal del Señor está en ruinas
(en alusión al terremoto de 1917, que marca el inicio del fin de Estrada Cabrera); entre los escombros,
el titiritero Benjamín –cuyo oficio Bajtin destaca como símbolo de automatismo y bufonería- encuentra
su salida interior en la locura, poéticamente descrita por Asturias: “montado en una escoba, a su espalda

Proceedings XI International Bakhtin Conference 254


las estrellas en campo de azur y a sus pies cinco volcancitos de cascajo y piedra” (289).
En ningún momento de la novela Asturias propone un regreso fácil ni ordenado al mundo “del derecho”.
Del infierno con el que se inicia El señor Presidente pasamos al purgatorio, mundo de las ambivalencias,
del grotesco, de la vida y la muerte. La llegada al cielo tomará tiempo, pero deberá suceder. Es la noción
cíclica de los principios biológicos, naturales y míticos la que se impone al final. Es la visión sincrética de
Asturias la que lo pone en diálogo, de manera muy particular, con la estética del grotesco, en una suerte
de tercera naturaleza en donde la tradición indoamericana, también regeneradora, se combina con los
principios occidentales del realismo grotesco. Es la voluntad de ruptura discursiva (asimismo, estrategia
de ruptura socio-histórica), en pos del renacimiento de la palabra como medio de expresión ligado a lo
abyecto, inconsciente y mítico; una escritura que desafía la visión oficial del mundo al derecho.
Bibliografía
Anderson-Imbert, Enrique. “Análisis de El señor presidente”. Homenaje a Miguel Ángel Asturias. Ed. Helmy Giacoman.
New York: Las Américas, 1971. 125-131.
Asturias, Miguel Ángel. El señor Presidente. Buenos Aires: Losada, 1972.
Bajtin, Mijail. La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento. El contexto de Francois Rabelais. Madrid:
Alianza Editorial, 1990.
Krauel, Ricardo. “La república clausurada: los espacios opresivos en El señor Presidente”. Revista Monográfica 11
(1995): 220-234.
Kayser, Wolfgang. The grotesque in art and literature. Bloomington: Indiana University Press, 1963.
Navarro, Carlos. “La desintegración social en El señor Presidente”. Homenaje a Miguel Ángel Asturias.Ed. Helmy Gia-
coman. New York: Las Américas, 1971. 169-191.
—. “La hipotiposis del miedo en El señor Presidente”. Homenaje a Miguel Ángel Asturias. Ed. Helmy Giacoman. New
York: Las Américas, 1971. 155-167.
Rosado, Juan A., “La visión trágica de Miguel Ángel Asturias en El señor Presidente”. Cuadernos Americanos 14.5
(2000): 216-36.
Thomson, Philip. The grotesque. London: Methuen &Co., 1972.
Urza, Carmelo. “Metáfora y deshumanización en El señor Presidente”. Explicación de textos literarios 14.1 (1985-
1986): 79-83.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 255


O romance-folhetim de Aluísio Azevedo sob a perspectiva bakhtiniana

Angela Maria Rubel Fanini

Mestre em Literatura, UFPR

Doutoranda em Literatura, UFSC

afanini@bol.com.br

Frei Fabiano de Cristo, 524, Jardim das Américas,

Curitiba, PR, Brasil, 81530-110.

Resumo
Nesta comunicação, analisamos o romance-folhetim Filomena Borges1, publicado em 1884, de autoria
de Aluísio Azevedo, escritor brasileiro oitocentista, sob a luz da teoria do romance denominado de segun-
da linha do teórico Mikhail Bakhtin, investigando como o escritor formaliza esteticamente a narrativa, a
partir da carnavalização e da hiperinflação do romantismo.
Abstract
In this paper, we investigated the novel Filomena Borges, published in1884, written by Aluísio Aze-
vedo, a Brazilian novelist from the nineteenth century, using Mikhail Bakhtin’s background about the
second line novel, presenting how the author builds the narrative through carnavlesque strategies of
the romantic values.

Antes de iniciarmos a investigação do romance Filomena Borges, é necessário que se apresente


previamente a categoria romance e romance-folhetim em Mikhail Bakhtin. O teórico russo tem por pre-
ocupação central em sua obra o estudo da formação cultural e histórica da consciência lingüístico-ideo-
lógica do homem ocidental. Para tal intuito, elabora um estudo diacrônico que se inicia nos primórdios
da vida social do homem quando este ainda vivia em uma sociedade agrária comunitária, não dividida
em classes sociais. Nesse universo, o homem é um ser exteriorizado, ainda não se configurando como
um ser cindido em luta entre uma interioridade problemática e o mundo exterior. Nada lhe é alheio,
destacado de si, reificado, abstrato. Tudo que se avizinha desse homem (o trabalho, o sexo, a comida,
a bebida, a vida, a morte etc) faz parte de seu universo concreto e coletivo: “Afirmamos mais uma vez:
a vizinhança analisada por nós não se apresenta para o homem primitivo como uma reflexão ou uma
contemplação abstratas, mas dentro da própria vida, no trabalho coletivo sobre a natureza, no consumo
coletivo dos frutos do trabalho e na preocupação coletiva com o crescimento e a renovação da entidade
social”(BAKHTIN, 1988, p.321). À medida que a sociedade de classes se desenvolve, muito do que é
vivido coletivamente passa para o âmbito privado e familiar e a materialidade da vida como a comida,
o sexo, o trabalho, a bebida são enquadrados em outras esferas ideológicas, recebendo um tratamento
hierarquizado e sublimado. Toda uma literatura oficial de tom sério e de “embelezamento” surge e, a
partir dos “gêneros empolados da ideologia do sublime,” o amor, o sexo, o trabalho, a natureza e a vida
social em geral são enobrecidos por uma linguagem idealizadora. Paralelamente a essa “literatura do
sublime,” surgem outros gêneros discursivos, vinculados a uma estrutura cômica e de ligação ao folclore
popular em que as antigas ligações dos homens de uma sociedade agrária ainda persistem e mantêm
sua concretude. Mikhail Bakhtin destaca os diálogos socráticos, as sátiras menipéias e toda uma cultura
do riso em que o homem e suas relações sociais não são representados de modo abstrato, idealizado e
hierarquizado. A “cultura do embelezamento” encontra em François Rabelais e Miguel de Cervantes um
contraponto, pela ausência de componentes discursivos enobrecedores da realidade.
Entretanto, somente com Fiódor Dostoiévski, com o romance polifônico, termo cunhado por Bakhtin,
ocorre a representação literária da desintegração de quaisquer relações hierárquicas em âmbito dis-
cursivo, recuperando-se de certa forma, em um outro tempo histórico, as antigas relações sociais de
uma comunidade agrária e essencialmente coletiva. Na polifonia, a recuperação do coletivo se faz via

1 AZEVEDO, A. Filomena Borges. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d. As demais citações dessa obra se referem a essa edição e serão intituladas por
FB.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 256


linguagem em que o outro é uma presença constante visto ser a linguagem uma realidade intersubjetiva
e essencialmente dialógica. Aqui, o ser isolado, o particular e o privado são sempre atravessados pela
coletividade como ocorria em uma sociedade agrária em que o homem era pura exterioridade. A polifonia
não é uma realidade apenas literária visto que para o teórico russo não existe a série literária isolada e
independente da série social. O romancista russo soube captar e fazer migrar para o interior do romance
a polifonia presente no social e abafada por práticas culturais e comportamentais monológicas. Para
Mikhail Bakhtin, a polifonia institui uma radical democracia social em que se ultrapassa a coisificação
do outro à medida em que todos que falam têm reais possibilidades de serem ouvidos e de intervirem
com a sua fala no processo social e no outro. Eis aí um certo retorno àquele “mundo agrário idealizado”
em que tudo é vivido no coletivo e o ser isolado ainda não existe. Percebe-se que essa volta à origem é
construída por certa perspectiva romântica e popular, revelando componentes utópicos.
Mikhail Bakhtin narra a pré-história do romance e nessa, destaca, sobretudo, uma tipologia: romances
de primeira linha em que o plurilingüismo social ocorre, porém sofre um processo de embelezamento,
sendo refinado por um centro que em certa medida homogeiniza as várias falas sociais aí justapostas.
Essa variante se constitui como um guia do bem falar e agir na sociedade. Já, nos romances de segunda
linha ocorre a introdução do plurilingüismo social, sem sofrer um processo de higienização, refinamento
e hierarquização. Aqui, os discursos literários embelezadores é que são o alvo da paródia, da crítica e da
sátira. D. Quixote de Miguel de Cervantes comparece como representante 0máximo dessa variante. É
a partir dessa conceituação - romance de segunda linha - que analisamos o romance-folhetim Filomena
Borges visto que nessa obra Aluísio Azevedo constrói uma narrativa crítica da linguagem e dos valores
românticos embelezadores, idealizadores e hierarquizadores do real.
Mikhail Bakhtin é o teórico do não canônico, pois em sua obra há uma constante preocupação em
investigar a produção de cultura extra-oficial. O teórico russo está sempre a “escovar a história a con-
trapelo,” levantando aí possibilidades outras de entender a história e a cultura do homem e, nesse outro
olhar, intervir no curso histórico. O seu pensamento tem uma dimensão ético-política em prol dos mais
fracos e dos oprimidos: “o culto da fraqueza, da impotência, da bondade, etc.- o animal, a criança, a
mulher fraca, o imbecil e o idiota, a florzinha, tudo quanto é pequeno, e assim por diante”(Bakhtin,
1997, p.381). É dentro desse contexto do não canônico, do que é considerado menor qualitativamente
que Mikhail Bakhtin vai ter um outro olhar para o romance-folhetim. Diferentemente da maioria dos
historiadores da literatura que desqualificam o romance-folhetim, Mikhail Bakhtin vê essa variante roma-
nesca sem preconceitos, destacando-lhe o aspecto carnavalizado como o seu componente mais positivo.
O romance-folhetim tem suas raízes nas sátiras menipéias, no romance grego de provas e no romance
de aventura. O enredo múltiplo; toda sorte de encontros e desencontros; de provas por que passam
os heróis; de estados sociais, mentais e psicológicos de agudos contrastes experienciados pelos heróis
(pobreza, riqueza, criminalidade, castigo, benevolência, loucura, paixão, caridade, suicídio, soberba etc)
afastam o romance-folhetim do universo bem comportado, equilibrado e racional da narrativa e mundo
burgueses. Essa hiperinflação de peripécias e estados que constituem o romance-folhetim é que são a
sua riqueza, pois aí o herói vivencia uma realidade mais ampliada, mais totalizante e menos fragmentada
e monológica. Essa realidade plural do romance-folhetim escandaliza o universo da crítica que prefere
o equilíbrio de uma certa unidade de tempo, espaço, lugar e linguagem. As narrativas folhetinescas se
inserem na contramão da crescente racionalidade que assola o Ocidente, sobretudo, após o pensamento
de René de Descartes. É também por esse novo olhar sobre o romance-folhetim que pretendemos in-
vestigar a obra Filomena Borges, considerada menor dentro da produção romanesca de Aluísio Azevedo
em virtude de sua classificação como romance-folhetim2.
Filomena Borges é publicado em 1884 e, com certeza, é o romance-folhetim mais aventuresco de
Aluísio Azevedo, pois caracteriza-se pelo uso inflacionado dos expedientes folhetinescos já mencionados.
Aluísio Azevedo utiliza toda sorte de “maquinaria envolvente”3 típica de narrativas folhetinescas, mas
também opera uma crítica a essa maquinaria. Desconstrói o discurso folhetinesco à medida que hiperin-
flaciona os seus componentes, gerando toda sorte de inverossimilhanças que levam à comicidade. Nessa
obra ocorre uma escrita metalingüística contracanônica em que o romantismo exaltado, sublimado e
idealizador do real é dessacralizado. Sabemos que à época da escritura desse romance, o romantismo era
apreciado e canonizado pelo público leitor. A crítica, já embuída de outra perspectiva (a real-naturalista)
é que condenava esse tipo de narrativa. Em Filomena Borges, o romantismo e seus valores podem ser
considerados os principais objetos de depreciação do discurso romanesco4. Aqui, a categoria romance de
segunda linha a que nos remete Mikhail Bakhtin se institui em sua plenitude haja vista que o que está

2 Boa parte da crítica canônica e tradicional (Antonio Candido, Lucia Miguel Pereira, Nelson Werneck Sodré, Alfredo Bosi, Massaud Moiseés etc) divide a obra
de Aluísio Azevedo em romances de qualidade estética e romances-folhetins de cunho meramente mercadológico, sem valor literário. Nossa perspectiva
é outra, pois acreditamos que tanto Filomena Borges quanto os outros romances-folhetins de Aluísio Azevedo apresentam valor histórico e literário. Essa
discussão sobre o valor é realizada em nosso trabalho de doutoramento, na UFSC, que no presente momento, está na fase de considerações finais.
3 A esse respeito, consultar Umberto Eco em O super-homem de massa (retórica e ideologia no romance popular), 1991, em que o escritor destaca o poder
da “maquinaria envolvente” dos romances-folhetins ou populares. Para Eco, o leitor de romances de aventura deve manter o senso crítico num processo de
distanciamento, mas também pode se deixar envolver: “E portanto se o Corsário Negro chora, ai de quem sorri! Mas ai do estólido que se limita a chorar!
Também desmonta a máquina.” p. 30.
4 Aluísio Azevedo foi intelectual cujas idéias se vinculavam a uma grande gama de ideologias (positivismo, republicanismo, jacobinismo, cientificismo, aboli-
cionismo, anticlericalismo etc). Em virtude dessas componentes ideológicas, pode ser considerado um intelectual progressista burguês que via na linguagem
real-naturalista uma saída para o atraso da sociedade brasileira, atrelada ao romantismo que dava sustentação à Monarquia e sua instituições. O escritor
estava ciente de que o público leitor de suas narrativas apreciava a linguagem romântica e a crítica a condenava. Em prefácio ao romance-folhetim Girândola
de Amores, 1882, explicita o seu projeto ilustrado para as letras que consistia em introduzir a escrita real-naturalista nas narrativas folhetinescas ao gosto
do público a fim de ilustrá-lo e prepará-lo para o grande salto qualitativo que desembocaria no ideário e escrita real-naturalistas. Esse projeto, no entanto,
não se efetiva sem percalços. Essa discussão faz parte de nossa pesquisa em andamento no Programa de Doutorado da UFSC.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 257


sendo provado são os heróis românticos, sua linguagem idealizadora e a estrutura romântica, revelados
em sua inadequação para dizer o real. Antonio Candido, prefaciando a obra, apesar de criticar a narrativa,
acentua-lhe a pluridiscursividade e a semelhança da obra ao romance de Miguel de Cervantes:
A curva das duas vidas [Filomena e João Borges], solidárias e tão distantes, constitui a
espinha do romance. E o leitor começa a indagar se o bovarismo da bela Philomena não é
antes uma espécie de quixotismo, dado o complemento que lhe traz o parceiro. Não seriam,
respectivamente, Dom Quixote e Sancho Pança? Ela, transfigurando o mundo pela imaginação
e arrastando João Borges à aventura contra moinhos e gigantes, nas ruínas que se tornam
paisagens de idílio, nas terras mais remotas, até forcejar por instá-lo na Baratária do favor
imperial- que foge como a ilusão. E o pobre homem, do seu lado, vai, ao menos por inter-
mitências, aceitando o delírio da mulher, que acaba lúcida como o fidalgo da Mancha.
(...) O plano e a fatura oscilam entre vários pontos de atração, embora predomine a tona-
lidade cômica. Por vezes nos sentimos em pleno romance de costumes, como em toda a
parte inicial e várias outras. De repente, passamos ao conto anedótico, à Artur Azevedo, nas
seqüências do ferrolho, com que Filomena barra o acesso ao quarto. Além, já é a atmosfera
de aventura folhetinesca, como no episódio da Espanha; noutras partes, a burleta das festas
e das cenas de circo, ou a comédia dos episódios com os criados. Como se não bastassem,
ocorrem chanchadas (a sova do Barroso na mulher, por exemplo) e lances de dramalhão (o
encontro com o cachorro, o desfecho sepulcral)5.

Filomena Borges foi classificada, à época de sua publicação, como comédia por Emilio Rouede e levada
ao teatro também como comédia pelo irmão do escritor, Arthur Azevedo. Em Filomena Borges, o discurso
romântico é dessacralizado pelo veio cômico e, nesse sentido, o cerne do universo sério, da esfera oficial,
do discurso monológico embelezador da realidade é atacado. O que está entronizado, oficializado e con-
vencionalizado é mostrado em suas dimensões históricas. Aluísio Azevedo exacerba o romantismo dos
heróis e das situações em que se envolvem, e esse exagero se apresenta como caricatural, revelando-se
crítico. O escritor brasileiro, antes de ser romancista, foi exímio caricaturista em vários periódicos de
renome nacional (O Fígaro, O Mequetrefe, A Semana, Revista Ilustrada etc), criticando pelo veio jocoso
a política econômica-cultural imperial e essa passagem pela caricatura lhe dá base para trabalhar com
o cômico e com a hipérbole que se efetivam em Filomena Borges.
A narrativa apresenta inúmeras desilusões da heroína, pois a cada passo a sua mente intoxicada
pela visão romântica e embelezadora do real entra em contato com outra realidade, menos nobre, mais
chã, corriqueira e prosaica, revelando a contradição existente entre o discurso enobrecedor e os fatos. A
heroína vai se decepcionando ao perceber que todas as peripécias e as aventuras rocambolescas pelas
quais passa não lhe alçam à condição de uma vida extraordinária e feliz, mas a frustam, pois parece que
há um fosso entre o romantismo e a realidade.
A personagem Filomena odeia o Brasil, intoxicada por uma literatura importada cuja linguagem constrói
de modo idealizador e embelezador as cidades européias e seus cidadãos, fazendo com que a realidade
brasileira oitocentista do Rio de Janeiro pareça simplória, sórdida, pequena e chã. Como não encontra em
sua terra natal o que leu nos livros, viaja para se abeberar da realidade idealizada. Ao chegar a Roma,
Veneza, Pompéia, Egito, Índia etc, que conhece via discurso enaltecedor, depara-se com outra realidade
muito diferente e se desilude, occorendo aí a dessacralização da literatura de evasão, enobrecedora e
típica do romantismo. A passagem seguinte atesta a decepção: Qual! Pois aquilo era lá um Nápoles!
Impossível! Bem longe estava de ser o Nápoles que ela queria – o seu rico Nápoles!(...) – Qual Pompéia,
nem qual histórias! Respondeu a mulher, furiosa contra seus poetas e romancistas. Canalhas! Súcia de
empulhadores!,” FB, p.92
A personagem Filomena quer o extraordinário como toda heroína romântica. Além de desejar viver outra
vida diferente da que leva, também não aceita o marido, João Borges, como ele é (simplório, ordinário,
não afeito à civilização ocidental aristocrática, apolítico, burguês pacato, trabalhador), desejando trans-
formá-lo em um ser extraordinário. Ela só pode amá-lo se ele se transformar em um herói romântico.
Filomena Borges é bastante europeizada e opera uma verdadeira metamorfose em João Borges a
fim de que ele adquira também uma cultura de importação. João Borges passa por toda a sorte de peri-
pécias e martírios corporais e mentais a fim de agradar a esposa (passa a beber vinho, a fumar charuto,
a fazer teatro, a ler livros literários da moda, a exercer cargo político, a escrever leis, a estudar línguas
estrangeiras etc). Adquire toda sorte de cultura civilizada e importada. Para o definirmos, poderíamos
dizer dele que se transforma, por força de sua paixão por Filomena, em o antípoda da personagem Po-
licarpo Quaresma, de Lima Barreto, odiando tudo o que é nacional, mas, na realidade, tudo o que quer
é viver no Brasil, na ilha de Paquetá, existindo de modo simples entre os cidadãos simples. Filomena
europeíza o amado, sendo também uma personagem antitética à personagem Rita Baiana de O cortiço
que abrasileira o europeu, a personagem Jerônimo. Todo o processo de metamorfose que se passa no
casal para adquirirem uma cultura de importação é dado a partir de uma linguagem satírica e bem hu-
morada. A relação entre cultura do centro e da periferia é motivo de sátira em Filomena Borges6.

5 AZEVEDO, A. Filomena Borges. São Paulo: Livraria Martins Editora, prefácio de Antonio Candido, p.4 .
6 A questão conflitante de ajustes, filtragens e adaptações entre a cultura do centro e da periferia pode ser encontrada nas clássicas análises de Roberto
Schwarz, Alfredo Bosi, Emilia Viotti da Costa, Maria Sylvia de Melo Franco e Aijaz Ahmad.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 258


Filomena tem um propósito último para o cônjuge: torná-lo célebre. Formaliza-se, então, o pro-
cesso de formação de uma celebridade. Filomena o submete às mais duras provações, fazendo com que
ele se transforme em um aristocrata nobre sob o título de Visconde de Itassu, concedido pelo Imperador
D. Pedro II de quem o casal se torna íntimo. Em uma de suas inúmeras aventuras, o casal muda para
Petrópolis e aí passa a conviver com o Imperador. Em Petrópolis, o Monarca passeia pelas ruas, bosques,
vai a saraus, teatros e festividades, sem a cerimônia oficial de quando despacha no palácio do Rio de
Janeiro. Essa atitude despojada do monarca é aproveitada ficcionalmente, narrando-se a aproximação
familiar entre Filomena e D. Pedro II. O Imperador aí, em Petrópolis, pode ser carnavalizado, pois está
fora do trono, em atitude mais corriqueira e cotidiana. A aproximação entre eles carnavaliza o imperador
visto que revela a vida íntima e privada de D. Pedro II que se apaixona por Filomena, conferindo-lhe título
de nobreza e empregando seu marido. O escritor constrói uma história do cotidiano para o imperador a
partir de outro registro onde o Imperador pode ser mostrado em suas limitações e fraquezas.
A personagem Borges é um simplório, não consegue escrever sobre uma idéia genial que o auxilie na
ascensão política, mas a partir do jogo amoroso de Filomena sobre o Imperador, consegue se alçar a uma
posição política bem confortável, transformando-se em um guia para as decisões do Monarca. Borges,
seguindo à risca uma Teoria do medalhão machadiana, transforma-se em celebridade, constituindo-se
não pelo extraordinário, mas pelo lugar comum, repisado e já domesticado. Borges se transforma em
consultor para assuntos diversos na Corte, embora sua competência técnica seja nula. O cargo de onde
fala é legitimado pelo Imperador e, assim sendo, enquanto os poderes imperiais estão vigentes, o dis-
curso que emite é verdadeiro, entronizado e sacralizado. Porém, um fato histórico (perda de hegemonia
do Partido Conservador, 5 de janeiro de 1878) neutraliza o poder exercido pelo Monarca e a competência
de Borges passa a ser questionada. O herói, jogado no meio social dinâmico e conflituoso adquire uma
personalidade partida, sendo falado e interpretado de diferentes mirantes ideológicos. A personagem
é definitivamente desalojada de sua posição social e passa a ser alvo de críticas. Ocorre a dessacrali-
zação de uma celebridade. Os discursos demolidores, vinculados ao Partido Liberal, prevalecem. Esses
estiveram na marginalidade, mas, agora, em virtude do novo contexto histórico, passam ao centro,
desentronizando o herói de seu status, de sua posição célebre. Essa situação narrativa, dentre outras
coisas, critica a inoperância de mais um índice romântico, ou seja, a busca do extraordinário à medida
que Borges somente se sustenta no cargo por questões políticas e por falar e fazer o óbvio, repetindo a
pedagogia do medalhão.
A linguagem romanesca carnavaliza o fato histórico citado, apresentando-o por intermédio da sátira,
utilizando-se de registros vários de linguagem, distanciando-se do discurso didático sério e enobrecedor
dos compêndios de história. A descrição de tal queda se constrói por intermédio de linguagem colo-
quial em tom de zombaria e bisbilhotice (“Foi um charivari furioso”; “Um dia tão levado dos diabos”;
“reduziram-no a peteca”); de linguagem grandiloqüente e apocalíptica, comparando a queda do poder
a cataclismos naturais; de uma imagística trágica, grotesca em que o canibalismo se acha presente. A
queda de uns e a ascensão de outros é dada a partir de uma inflação lingüística em que se avolumam
hiperbolicamente as imagens de transição entre a vida e a morte, a descida e a entrada no trono. Essa
linguagem hiperbólica gera comicidade.
Filomena, em uma primeira instância, desilude-se no seu primeiro encontro com o Imperador, pois
o imagina a partir de suas lentes de romântica exaltada, querendo ver no Imperador um herói saído
dos romances românticos e folhetinescos de Alexandre Dumas, Eugene Sue ou Emilio Salgari. Assim o
narrador descreve a sua desilusão: “A gorda figura do Imperador, com o seu abdômen saliente, as suas
pernas finas, a testa abaulada, os olhos vulgares, causava-lhe um desgosto profundo”, (FB, p. 237). Po-
rém, em um segundo momento, enfeitiça o Imperador, tornando-se íntima dele com seu jogo amoroso.
Não tarda e passa a exercer todo tipo de tráfico de influências na Corte. Notamos que há um crescimento
da heroína entre a primeira decepção quando se desilude com a aparência física do Imperador e o seu
entusiasmo por ele à medida que percebe que a partir dele pode auferir poder político. Filomena aban-
dona uma visão muito romântica, apegada aos dotes físicos do homem ideal para entusiasmar-se pela
prática política, que lhe confere um prazer mais profundo. O exercício do poder faz Filomena abandonar
o bovarismo romântico que a impelia para evadir-se em aventuras exóticas e extraordinárias. Essa situ-
ação narrativa é crítica, pois aponta para a simbiose existente entre romantismo nacionalista-oficial e a
monarquia. Filomena pode estar representando um certo projeto político patrocinado por D. Pedro II que
consistia em financiar alguns intelectuais palacianos de orientação romântica (Gonçalvez de Magalhães,
Pedro Américo, Vítor Meireles etc) que deveriam a partir de várias mídias (pintura, escultura, literatura,
produção científica etc) criar e estabelecer uma possível genealogia e identidade nacional idealizadas,
estabelecendo uma monarquia ilustrada nos trópicos7. Nesse sentido, Aluísio Azevedo desvela, humo-
risticamente, as ligações entre romantismo idealizador e construção simbólica e conservadora de uma
certa brasilidade no universo imperial.
Filomena Borges, no conjunto da produção de romances-folhetins de Aluísio Azevedo, institui-se como
um dos exemplos mais bem sucedidos de discurso crítico, via perspectiva jocosa, de uma certa lingua-
gem social enobrecedora e idealizadora, aproximando-se a obra da categoria romance de segunda linha.
Filomena Borges é também romance autocrítico, pois a personagem Filomena pode representar a autora

7 A esse respeito consultar Lilia Moritz Schwarcz em sua obra As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos, 1998. Nessa obra, destaca-
se a diferença de atuação política e cultural dos intelectuais palacianos financiados pelo poder imperial e os intelectuais da geração realista ou boêmia da
qual fazia parte Aluísio Azevedo.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 259


de heróis folhetinescos haja vista que é ela que submete o pacato marido a toda sorte de provações
e peripécias a fim de que ele se transforme em um aristocrata e um homem célebre. O romancista de
folhetins é satirizado por intermédio de Filomena, a autora autoritária que põe à prova suas criaturas.
De pacato cidadão a herói extraordinário.
Porém, como destacamos, um fato histórico ficcionalizado (a queda do Partido Conservador) inter-
cepta os planos da heroína, malogrando toda a sua empreitada política. O casal falido, desiludido e
desacreditado, ao final da narrativa, recolhe-se à ilha de Paquetá onde morre. Filomena, em Paquetá,
toma consciência de si e de que esteve a lutar contra moinhos de vento tal qual o fidalgo da Mancha.
É a morte dos heróis românticos. Aluísio está a reforçar o seu projeto ilustrado, revelando a inoperân-
cia da linguagem e dos valores românticos. Os tempos são outros. A Monarquia e as instituições que a
sustentam, inclusive, a linguagem romântica, devem fenecer para dar ligar a outra linguagem e outro
ordenamento sócio-econômico. O romantismo é o herói destronado e carnavalizado.
Em Filomena Borges, o projeto de ultrapassar o romantismo se efetiva a partir da carnavalização
da linguagem romântica, não se colocando outra linguagem (a real-naturalista) para substituí-la como
ocorre em Condessa Vésper (1882) e Girândola de Amores (1982), outras obras folhetinescas também
de Aluísio Azevedo. Nessa não substituição reside a postura crítica do escritor a qualquer discurso que
queira tomar o centro e lá permanecer.
Embora haja a desqualificação do discurso romântico em Filomena Borges, destacando-se, por inter-
médio do universo cômico, a limitação histórica da linguagem romântica, esta não é passiva, pois resiste
ao processo de torná-la objetal e reificada. O final da narrativa, por sua tragicidade e sentimentalismo,
provoca certa identificação por parte do leitor, anulando-se temporariamente o distanciamento provocado
pelo universo cômico. A obra é complexa e as guerras discursivas em seu interior provam que a reificação
de um discurso pelo outro ocorre, mas, entretanto, não se dá sem resistência.
Referências
AZEVEDO, A. Filomena Borges. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d.
BAKHTIN, M.. Marxismo e Filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec,
1986.
_____. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense –Universitária, 1981.
_____. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora Hucitec, 1988.
BOSI, A. A escravidão entre dois liberalismos. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia da Letras, 1992.
CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira (Movimentos decisivos). 6. ed. v.2 Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1981.
CARVALHO, J. M. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
_____. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ECO, U. O super-homem de massa (retórica e ideologia no romance popular). São Paulo: Perspectiva, 1991.
FARACO, C. A. O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In: Carlos Alberto Faraco, Cristovão Tezza,
Gilberto de Castro (orgs.). Diálogos com Bakhtin. 3 ed. Curitiba: UFPR, 2001.
SCHWARZ, R. As idéias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do
romance brasileiro. 34. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000.
SCWARCZ, L. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2.ed. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1998.
TIHANOV, G. Reification and Dialogue: aspects of the theory of culture in Lukács and Bakhtin. Disponível em: http://
www.shef.ac.uk/uni/academic/A-C/bakh/tihanov.html> acesso em 10 març. 2000.

Palavras Chaves: romance-folhetim; romance de segunda linha; carnavalização


do discurso romântico; real-naturalismo; Aluísio Azevedo.
Biografia Resumida: Angela Maria Rubel Fanini
Natural de Itaiópolis, SC
Data Nascimento: 09/05/59
Graduação: Letras Português/Inglês, UFPR
Mestrado: Literatura Brasileira, UFPR
Doutoranda: Teoria da Literatura, UFSC
Professora de 2.º e 3º graus, CEFET-PR
Conselheira de Ensino na Área de Humanas, CEFET-PR

Proceedings XI International Bakhtin Conference 260


Voloshinov – um coração humboldtiano?

Carlos Alberto Faraco

Universidade Federal do Paraná

Resumo
O texto faz uma discussão crítica da recepção do livro de V.N.Voloshinov – Marxismo e filosofia da
linguagem – no Brasil. Destaca-se um aspecto não considerado nesta recepção: a filiação de Voloshinov
às concepções de linguagem de W. Humboldt.
Abstract
The paper presents a critical discussion of the reception of V.N.Voloshinov´s book – Marxism and the
philosophy of language – in Brazil. It points out an aspect of that book which has not been sufficiently
considered in the reading of that book in Brazil: Voloshinov´s affiliation to W. Humboldt´s conception
of language.

Um dos aspectos mais interessantes da recepção das idéias do Círculo de Bakhtin no Brasil é, certa-
mente, o fato de os leitores terem se deixado seduzir pela retórica de Voloshinov em Marxismo e filosofia
da linguagem.
A crítica que ele desenvolveu, na Segunda Parte do livro, às duas principais tendências do pensa-
mento lingüístico de seu tempo – que ele denominou de ‘objetivismo abstrato’ e ‘subjetivismo idealista’
– foi tomada, entre nós, como juízo condenatório definitivo daquelas tendências. E, como tal, foi sendo,
em paráfrases quase-perfeitas, repetida “ad nauseam”, em teses, dissertações, artigos, comunicações
e conferências.
O que fascina, nesse episódio, é que os leitores acreditaram piamente no jogo retórico de Voloshinov
de que ele havia, de fato, dado todos os argumentos para o descarte das tendências teóricas sistêmicas
ou subjetivistas na lingüística.
E mais: os mesmos leitores acreditaram que, para além do descarte, ele havia produzido uma sín-
tese dialética das duas tendências que seria, então, uma espécie de alvorecer de uma nova era para os
estudos da linguagem.
Certamente, o “marxismo” do título e as artimanhas retóricas do autor (que joga habilmente com o
vocabulário da chamada dialética, ou seja, tese-antítese-síntese) foram uma das causas para a sedução
em grau tão elevado que o texto exerceu em nosso meio acadêmico, meio em que há, desde os anos de
chumbo da década de 1970, uma malfadada identificação implícita entre lingüística formal e pensamento
político de direita.
Em nosso meio, resistir ao regime militar passou pelo elogio de qualquer estudo da linguagem que se
apresentasse como anti-formalista e incluísse o adjetivo social em suas asserções de base. A descoberta
de Voloshinov no fim da década de 1970 – entre outras ondas intelectuais – funcionou como uma pre-
ciosa mão na roda, o que favoreceu a imediata sacralização do seu texto, sacralização que permanece
até hoje.
Tornou-se um texto que só se admite reportar em estilo linear, isto é, mantendo a integralidade da
voz reportada, criando nítidos contornos à sua volta; e jamais em estilo pictórico – aproveitando aqui a
análise do discurso reportado que está na Terceira Parte de Marxismo e filosofia da linguagem.
Em outros termos, aquele texto continua sendo tomado como palavra de autoridade (a cobrar ade-
são incondicional) e jamais como palavra internamente persuasiva – para aproveitar agora a análise de
Bakhtin sobre as nossas relações com a palavra alheia.
Se lemos Voloshinov, contudo, tentando resistir ao encanto de sua retórica, vamos observar alguns
dados peculiares. Por exemplo, a asserção de que ele estaria realizando uma “síntese dialética” das duas
tendências não passa efetivamente de um truque. Ele argutamente elabora sua exposição de modo a
caracterizar uma das tendências como ‘tese’ e a outra como seu contrário. Com esse artifício, o autor
fica à vontade para, num passe de mágica, afirmar que está recusando as duas e superando-as por uma
“síntese dialética”.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 261


Em meio à exaustiva discussão da Segunda Parte do livro, fica efetivamente claro que há uma recusa
radical de Voloshinov ao ‘objetivismo abstrato’: não se encontra naqueles capítulos nenhum enunciado
que preserve qualquer aspecto das teses do racionalismo lingüístico. No entanto, Voloshinov, embora
crítico da perspectiva subjetivista e individualista do idealismo lingüístico, diz explicitamente que suas
teses são corretas (em particular, a concepção da linguagem como atividade). Não há, portanto, recusa
desta tendência com a mesma radicalidade com que ele recusa a anterior.
Voloshinov deixa bem evidente sua opção – mesmo que crítica – por uma das tendências. Nesse sen-
tido, fica sem base sua afirmação de que está recusando ambas e realizando uma “síntese dialética”.
Uma primeira exigência para uma tal “síntese” seria que ela conjugasse efetivamente sistema e ati-
vidade, o que não ocorre, de fato, na exposição de Voloshinov. Quando, ao cabo da discussão, ele fala
da realidade fundamental da linguagem, aparece apenas a menção ao fenômeno social da interação
verbal. Sobra apenas a linguagem como atividade; some completamente a questão estrutural, o que é
certamente estranho para quem se propôs a recusar duas tendências ditas antagônicas, superando-as
qualitativamente por uma síntese – que deveria, no espírito da dialética, conjugar as duas tendências
numa nova totalidade.
Além de não subsumir a questão estrutural em sua pretensa síntese dialética, Voloshinov se enreda
numa exposição um tanto quanto confusa e contraditória. O objetivo desta comunicação é justamen-
te tentar levantar subsídios para entender essa situação em que ora a questão estrutural é recusada
radicalmente (sob o frágil argumento de que, na prática, o falante não se liga no recorrente, mas na
novidade conjuntural do signo – o que, convenhamos, não resolve o problema posto pelo estrutural);
ora ela é incluída no signo.
Como desenredar este nó? Como acomodar no plano teórico um fenônemo que é, a um tempo, recu-
sado radicalmente (“não é um fato objetivo” – p. 91) e, em outro momento, é incluído como “uma parte
inalienável, indispensável, da enunciação” – p. 129?
A recusa radical de uma perspectiva formal para o estudo da linguagem traz, portanto, para Voloshinov
alguns problemas de coerência interna. Isso é particularmente visível quando ele, ao discutir a relação
falante/signo, argumenta que os falantes, na interação concreta, não se orientam por um sistema abstrato
de formas, mas pela significação que a forma adquire no contexto singular da enunciação.
Introduz, então, uma distinção entre sinal e signo, apresentando o primeiro como o nível da recor-
rência e do estável e o segundo como o sempre mutável e adaptável. Embora essa distinção faça sentido
no conjunto de sua reflexão (na medida em que ele quer precisamente enfatizar a plurissignificação do
signo nos diferentes contextos de enunciação), ele não deixa esta relação sinal/signo suficientemente
bem resolvida no plano teórico. E isso, segundo nosso ponto de vista, porque Voloshinov não consegue
lidar, com clareza, com a especificidade gramatical, negando-lhe pertinência num ponto de seu texto e
pressupondo-a em outro.
Embora alguns estudiosos da linguagem cheguem mesmo a negar essa especificidade, parece-nos, de
fato, impossível tratar a linguagem verbal sem considerá-la. Podemos, é claro, criticar as insuficiências
dos modelos gramaticais existentes e até mesmo tentar criar outros levando em conta o pressuposto
de Voloshinov (isto é, de que o estudo não escolástico das formas lingüísticas como tais só se faz pro-
dutivamente no interior de uma teoria da enunciação). Contudo, parece-nos que não podemos ignorar
a materialidade da questão estrutural ou dela escapar.
O próprio Voloshinov não a ignora em seu quadro de referência. Assim, ao discutir a significação do
enunciado (cap. II-4 de Marxismo e filosofia da linguagem), ele inclui as formas lingüísticas como parte
inalienável do enunciado e a significação calculável nestas formas (que ele identifica como aqueles as-
pectos semânticos que são reiteráveis e sempre iguais em qualquer situação em que o enunciado ocorre)
como parte inseparável da significação do enunciado.
Em outras palavras, o plano da sinalidade é parte constitutiva do plano da significação do enunciado.
Assim, sua semântica comportaria necessariamente duas dimensões em estreita correlação: a signifi-
cação dada pela estrutura (reiterável e sempre igual) e a significação dada pela enunciação (o sempre
mutável e adaptável) – ou seja, o mesmo (sinal) que é sempre outro (signo).
Como formulação semântica geral, parece-nos uma diretriz adequada: ela constitui, de fato, o núcleo
de qualquer discussão pertinente sobre a significação na linguagem. Ela antecipa, por várias décadas, o
desafio que continua a nos perseguir nas disciplinas da significação, isto é, engendrar modelos semânticos
capazes de dar conta desta correlação.
Apesar de, na discussão das bases de sua semântica, Voloshinov não recusar pertinência à materia-
lidade do lingüístico como tal, ele parece perder-se no tratamento dessa questão no capítulo em que
introduz a distinção sinal/signo (cap. II-2).
A discussão que se desenvolve neste ponto do livro deixa-nos a forte impressão de que Voloshinov
parece ter confundido o sistema sincrônico conforme definido pelo objetivismo abstrato com o (segundo
nosso entendimento – irrecusável) aspecto estrutural da língua e ao recusar um acabou por recusar o
outro, criando para si mesmo um vácuo teórico: ele não consegue falar do enunciado sem admitir que
há nele uma face reiterável (que ele chama de sinalidade); no entanto, não encontra elementos para
caracterizar a sua natureza e termina por fazer a afirmação claramente esdrúxula de que o componente
de sinalidade existe na língua, mas não como constituinte da língua como tal (p. 69). O que poderia ser

Proceedings XI International Bakhtin Conference 262


isso que existe na língua, mas não é constituinte dela?
Obviamente, o fato de o elemento de sinalidade ser “dialeticamente eclipsado pela nova qualidade
de signo” (p. 69) não lhe tira a especificidade estrutural. Voloshinov parece ter confundido os planos da
sentença e do enunciado; e, ao recusar uma lingüística de sistema, não encontra uma alternativa para
lidar com aquela especificidade que fica mal situada em seu conceitual: o sinal – a forma lingüística
como tal – é sem ser!
As origens dessas dificuldades de Voloshinov – segundo nossa hipótese – parecem estar em sua cla-
ra filiação (embora crítica) à filosofia da linguagem de Humboldt. Ao filiar-se à tradição humboldtiana,
Voloshinov, ao mesmo tempo em que lhe dá um caráter novo (sociologizando-a, isto é, concebendo a
linguagem como atividade social), herda as notórias dificuldades daquele pensamento para tratar do
gramatical propriamente dito.
Mesmo dando ênfase à linguagem como atividade (como energeia, para retomar a terminologia de
Humboldt), os humboldtianos não puderam escapar totalmente da questão estrutural e acabaram por
defini-la – numa asserção genérica (de caráter dicotômico), da qual, aliás, nunca resultou nada heuristi-
camente produtivo – como ponto de chegada e não como ponto de partida da linguagem, ou seja, como
um a posteriori e não como um a priori da atividade lingüística. Esta não seria um mero produto de um
sistema que lhe pré-existe (como a entende o racionalismo lingüístico), mas o sistema – se é que ele
existe, ressalvariam alguns humboldtianos – resulta da atividade elaboradora do espírito.
É esta atividade que efetivamente importa para eles. Por isso, os humboldtianos, em geral, desdenham
a questão estrutural. São, nesse sentido, fiéis a seu patrono, para quem a gramática como tal (como
um a priori) e a comunicação são absolutamente acessórias, vêm depois e nunca antes daquilo que é
essencial, isto é, o trabalho elaborador do espírito.
Talvez a expressão mais nítida deste desdém humboldtiano pelo gramatical possa ser encontrada em
Cassirer, quando ele diz (à página 146 de seu livro A filosofia das formas simbólicas):
A fragmentação da linguagem em palavras e regras será sempre um trabalho grosseiro e
inútil da análise científica – pois a essência da linguagem não reside jamais nestes elementos
ressaltados pela abstração e pela análise, mas tão somente no trabalho eternamente repetido
que realiza o espírito para tornar o som articulado capaz de expressar o pensamento.

Até onde vai meu conhecimento, o único humboldtiano que tentou efetivamente enfrentar a questão
gramatical foi o lingüista brasileiro Carlos Franchi. Ele não só defendia a concepção de linguagem como
atividade constitutiva, mas acreditava ter encontrado, na lógica combinatória e na teoria da funcionali-
dade formulada por Curry e Feys, um caminho promissor para um modelo formal capaz de “dar conta da
‘forma’ de uma atividade” (p. 36) – aspecto para o qual Voloshinov não encontrou solução teórica.
Se, de fato realizável, tal tratamento formal colocaria no horizonte uma perspectiva de superar qua-
litativamente a clássica limitação do pensamento humboldtiano no tratamento da questão gramatical. Aí
sim se poderia dizer que se estava apontando para uma síntese dialética de sistema e atividade.
Franchi, no entanto, manteve-se fiel ao individualismo de base do pensamento humboldtiano. É clás-
sica sua asserção de que a linguagem é antes para a elaboração do que para a comunicação. Ignorou
deliberadamente Voloshinov (personal communication), sob o argumento de que este nada oferecia
em termos formais para a análise da linguagem. Com isso, não aproveitou o que de melhor produziu o
Círculo de Bakhtin, isto é, uma concepção sociológica da atividade lingüística.
Voloshinov adota a concepção de Humboldt de linguagem como atividade, mas muda radicalmente o
eixo de sua articulação ao atribuir-lhe um caráter inerentemente social, em que a interação longe de ser
acessória (como era para Humboldt) é essencial. Desse modo, o trabalho elaborador mental contínuo não
precede a comunicação: é esta que, ao alimentar de signos a consciência e dar-lhe a lógica das relações
dialógicas, torna possível aquele trabalho.
Voloshinov, ao sociologizar a concepção de Humboldt, recupera o poder heurístico daquela filosofia.
Suas coordenadas abrem a possibilidade de se pensar a linguagem como atividade sem subordiná-la,
como fez tanto o idealismo quanto o racionalismo lingüístico, à centralidade do indivíduo.
No entanto, como dissemos acima, Voloshinov, como os humboldtianos em geral, tem dificuldades
para situar em seu quadro teórico a questão do especificamente gramatical. Faz avançar a discussão da
linguagem como atividade, mas deixa mal resolvida a questão da face formal da linguagem.
Bakhtin parece resolver melhor esta questão, pelo menos no plano dos pressupostos gerais. Sua
estratégia foi propor uma divisão de trabalho entre duas disciplinas, argumentando que sentença e
enunciado são fenômenos de naturezas diferentes a exigir análises diferentes.
Seu foco de interesse (como também o de Voloshinov) é o enunciar como uma atividade social in-
trinsecamente dialógica (no sentido amplo do termo) e não como um fato puramente lexicogramatical.
No entanto, se ele nada avança no sentido de uma análise estrutural, nem por isso nega sua relevância
ou reduz o estrutural a um elemento que é sem ser.
Essa divisão de trabalho certamente não agradaria Voloshinov. Dizemos isso considerando suas reite-
radas argumentações, quando discutia os fundamentos de uma poética sociológica, de que, no interior
de um quadro de referência marxista, o estudo das questões humanas devia respeitar necessariamente
o monismo metodológico e o caráter social e histórico dessas questões.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 263


Poderíamos contra-argumentar lembrando simplesmente que, como Bakhtin não tinha o marxismo
como quadro de referência de seu pensamento, não precisava se submeter ao monismo metodológico
defendido por Voloshinov.
No entanto, o cerne dessa questão é bem mais complexo. A divisão de trabalho que Bakhtin aceita,
continua permeando, quase aporeticamente, as discussões contemporâneas na área dos estudos lingü-
ísticos. Se temos relativa clareza de que as práticas de linguagem e suas significações são de caráter
histórico-social, essa mesma clareza não existe quando se trata da face estrutural das línguas. Não é
preciso dizer que a respeito desta é hegemônico hoje o pensamento que a toma como uma realidade
biológica.
Essa caracterização, é claro, incomoda vários estudiosos, muito embora ninguém tenha conseguido
até agora formular uma efetiva alternativa teórica para a questão. Se chegássemos um dia a demons-
trar que, de fato, o estrutural é, no fundo, de natureza histórico-social, então o monismo metodológico
defendido por Voloshinov se imporia naturalmente e Bakhtin estaria errado em tê-lo considerado de
natureza diferente dos fenômenos discursivos e a exigir análise diferente.
No entanto, se prevalecesse o argumento de que o estrutural, no fundo, é de caráter biológico, tería-
mos, então, de aceitar a impossibilidade do monismo metodológico e, por conseqüência, a necessidade
da divisão de trabalho nos estudos lingüísticos. Isso nos lançaria num outro patamar, que exigiria uma
articulação entre o biológico e o histórico-social, assim formulado, em termos gerais, por Raymond
Williams (1977, p.43-44):
Desse modo, podemos acrescentar à necessária definição da faculdade biológica da linguagem
como constitutiva uma igualmente necessária definição do desenvolvimento da linguagem
– tanto no indivíduo quanto na sociedade – como social e historicamente constituído. O que
podemos, então, definir é um processo dialético: a consciência prática dos seres humanos
– na qual ambos os processos evolutivo e histórico podem tanto receber o mesmo peso,
quanto podem ser distinguidos – vai se alterando na complexa variabilidade do uso con-
creto da língua.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. I – a linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
FRANCHI, C. Linguagem – atividade constitutiva. Almanaque, 5. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 9-26. Republicado
em Cadernos de estudos lingüísticos, Campinas, (22): 9-39, Jan./Jun. 1992.
VOLOSHINOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. 8. Ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
WILLIAMS, R. Marxism and literature. Oxford: Oxford University Press, 1977.

Palavras-chave: Voloshinov, Humboldt, linguagem e atividade.


Key-words: Voloshinov, Humboldt, language and activity.
Autor-chave/ key-author: Voloshinov.
Livro-chave/ key-book: Marxismo e filosofia da linguagem; Marxism and the
philosophy of language

Proceedings XI International Bakhtin Conference 264


Questões de tempo-espaço (cronotopo) em Eça de Queirós

Rosane Gazolla Alves FEITOSA

UNESP-Assis (SP)-Brasil

Av. Dom Antonio, 2100

Parque Universitário

19806-900- Assis - São Paulo-Brasil

RESUMO
Sob a perspectiva da interligação das relações temporais e espaciais, o cronotopo, conceituado por
Bakhtin como uma “categoria conteudístico-formal” [...], expressão de indissolubilidade de espaço e de
tempo [...] em que ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais [...].”(BAKHTIN, 1988, p. 211) ,
percorreremos um caminho para o conhecimento dos aspectos intervencionistas dos intelectuais da Ge-
ração de 70 em que a personagem obsedante, Portugal, sob o tema do constitucionalismo e do regime
regenerador, é problematizada em seus aspectos sócio-político-culturais. Por meio de alguns espaços
emblemáticos, as estátuas de Camões, na Praça Camões e a de D.Pedro IV no Rossio, conotando, dia-
leticamente, um momento passado de glória e um momento de decadência da nação portuguesa, Eça
de Queirós consegue nos mostrar em O Crime do Padre Amaro (OCPA), O primo Basílio (PB), A capital
! (CAP) e Os Maias (OM), a proposta literária da Geração de 70.
ABSTRACT
From the setting-time point-of-view, the chronostopos, theorized by Bakhtin as a “formal-content
aspects […], expression of indissolubility of setting and time […] in which occurs he fusion of setting and
timing aspects […].” (BAKHTIN, 1988, p. 211), we will discuss a way to know of the changeable aspects
of 70th generation intelectuals in wich the obsessive character , Portugal, under the constitucionalism and
regenarator theme is questioned on its cultural, social and political points. From some emblematic settings,
as Camões statue at Camões Square and D Pedro IV statue at Rossio, places that show dialletically a past
moment of glory and a present time of decadence of the Portuguese nation, Eça de Queirós demonstrate
to us the 70 Generation´s ideas in Father Amaro´s Crime, Basílio Cousin, The Capital! The Maias,
De todas as interpretações da realidade nacional da geração de 70- e acaso do século e de
sempre [...] – a mais complexa, a mais obsessiva, ardente, fina e ao fim e ao cabo a mais
bem sucedida, por mais adequada transposição mítica, sentido da realidade e criação de
imagens e arquétipos ainda de pé, é sem dúvida a de Eça de Queirós. [...] é um Portugal
realmente presente que ele interroga e que o interpela. [...] e fá-lo, [...] para descobrir, com
mais paixão do que sua ironia de superfície a deixa supor, a face autêntica de uma pátria
que talvez ninguém tenha tão amado e detestado. (LOURENÇO, 1991, p. 95).

Em Portugal, a interpretação da História feita por Herculano, considerando o Portugal contemporâneo,


primeira metade do século XIX, embrenhado num processo de decadência desde os tempos medievais,
teve bastante importância na formação do espírito da chamada Geração de 70, em Antero e Oliveira
Martins, em especial. Por outro lado, a falência inequívoca do regime regenerador e da política fontista
levará à perda da esperança no liberalismo e ao descrédito do constitucionalismo assente num rotativismo
feito sobre arranjos político-partidários.
É assim que, se nos folhetins de O Distrito de Évora, Eça adota em relação à realidade nacional um
tom crítico, embora ainda bafejado por uma esperança reformadora, a partir do projeto geracional das
Conferências do Cassino e de As Farpas (1871-1872), iremos assistir a uma crítica virulenta e sarcástica,
que parte da constatação da indiferença geral perante a decadência da nação e que visa, claramente, a
uma intervenção.
Essas considerações nos levam às interligações das relações temporais e espaciais, o cronotopo, con-
ceituado por Bakhtin como uma “categoria conteudístico-formal [...] expressão de indissolubilidade de
espaço e de tempo [...] em que ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais [...]” (BAKHTIN, 1988, p.
211) em textos de Eça de Queiroz como O Crime do Padre Amaro (OCPA), O primo Basílio (PB), A capital

Proceedings XI International Bakhtin Conference 265


! (CAP), Os Maias (OM). Para Bakhtin (1988, p. 221), “[...] o tempo condensa-se, comprime-se, torna-
se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e
da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido
com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico.”
Consideramos que o cronotopo, teorizado por Bakhtin, contempla o impasse das articulações entre
texto e extratexto, assegurando as questões relativas à estrutura da obra sem perder de vista a espe-
cificidade do literário, ao mesmo tempo, assegurando a concepção de que dados históricos e pessoais
participam do corpo da obra, mas não podem ser atribuídas à idéia de simples reflexo.
Por meio da ficção queirosiana, em O Crime do Padre Amaro (OCPA), O primo Basílio (PB), e Os Maias
(OM), podemos percorrer um caminho para o conhecimento dos aspectos intervencionistas dos intelec-
tuais da Geração de 70 em que a personagem obsedante, Portugal, sob o tema do constitucionalismo e
do regime regenerador, é problematizada em seus aspectos sócio-político-culturais, por meio de alguns
espaços emblemáticos, tal como as estátuas de Camões na Praça Camões e a de D.Pedro IV no Rossio,
conotando, dialeticamente, um momento passado de glória e um momento presente (segunda metade
do século XIX ) de decadência da nação portuguesa
Concordamos com Bakhtin (2000, p. 243) quando diz que
[...] teremos os sinais visíveis, mais complexos, do tempo histórico propriamente dito, as
marcas visíveis da atividade criadora do homem, as marcas impressas por sua mão e por
seu espírito: cidades, ruas, casas, obras de arte e de técnica, estrutura social, etc. O artista
decifra nelas os desígnios mais complexos do homem, das gerações, das épocas, dos povos,
dos grupos e das classes sociais.
[...]
O domínio da literatura e, mais amplamente, da cultura (da qual não se pode separar a
literatura) compõe o contexto indispensável da obra literária e da posição do autor nela,
fora da qual não se pode compreender nem a obra nem as intenções do autor nela repre-
sentadas. A relação do autor com as diferentes manifestações literárias e culturais assume
um caráter dialógico, análogo às inter-relações entre os cronotopos do interior da obra.
(1988, p. 360).
A recriação do espaço diegético que Eça de Queiroz faz da capital lisboeta é vivo reflexo do senti-
mento decadentista em relação a seu país, que atingiu os mais representativos escritores portugueses
da segunda metade do século XIX – “A obsessão da decadência nacional dum progressivo e inelutável
declínio de todo o País, complexo de morbos, reacções, profecias e desesperos que podíamos resumir
na expressão de miséria portuguesa.” (MEDINA, 1974, p. 33).
“Lisboa é Portugal – gritou o outro[João da Ega]. – Fora de Lisboa não há nada. O país está todo
entre a Arcada e S. Bento!...” (Os Maias, p. 170). Eis aqui o espaço do Portugal queirosiano, do Portugal
constitucionalista, regenerador do Século XIX: da Arcada, situada na Praça do Comércio, sede do Governo
Monarquista até o Palácio de São Bento, sede do Constitucionalismo – eis o resumo do Portugal do século
XIX queirosiano, em um resgate do espaço-tempo ficcional e histórico de Portugal.
Pelas referências que faz à Arcada, Praça do Comércio, Rossio, Passeio Público, Rua do Ouro,
Teatro D. Maria II, Rua da Madalena, Rua Nova do Carmo, Arco do Bandeira, Praça da Alegria, Aterro,
dentre outras, verificadas no passeio das personagens Conselheiro Acácio e Luísa. (PB, p.1021-1025),
constatamos ser este espaço uma radiografia física, social e econômica da Baixa Pombalina, com descrições
que tipificam os comportamentos dissolutos e os vícios do Constitucionalismo monárquico, paradigma
da “miséria portuguesa”.
A rememoração dá forma aos nossos elos de ligação com o passado, e os modos de reme-
morar nos definem no presente. Como indivíduos e sociedades, precisamos do passado para
construir e ancorar nossas identidade e alimentar uma visão de futuro. (HUYSSEN, 2000,
p.67). [...] A memória de uma sociedade é negociada no corpo social de crenças e valores,
rituais e instituições. No caso específico de sociedades modernas, ela se forma para espaços
públicos de memória tais como o museu, o memorial e o monumento. (p. 68).

Em um dos espaços diegéticos recorrentes na ficção queirosiana, no Rossio, praça situada no centro
da Baixa Pombalina, ergue-se um monumento erguido em 1870, no momento áureo do Cenáculo, da
Geração de 70, de As Farpas (1871-71) de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão1. uma coluna coríntia
com a figura de D. Pedro IV, uma estátua pedestre, simbolizando mais as virtudes cívicas do rei do que
suas virtudes guerreiras. No cume da coluna, encontra-se D. Pedro IV, de uniforme de general com o
manto, insígnia de realeza e a cabeça coroada de louros. Na mão direita segura a Carta Constitucional,
enquanto a mão esquerda encontra-se apoiada na espada. Na base da estrutura piramidal, em pedra
de lioz, estão sentadas, nos ângulos, as figuras: Prudência, Justiça, Fortaleza e Moderação, valores que,
bem analisados, expressavam exemplarmente a mundividência do constitucionalismo conservador, que

1. Ao concurso, para a escolha do monumento a D. Pedro IV (D. Pedro I, no Brasil) em 1864, concorreram 87 projetos vindos de vários países da Europa. A
comissão optou pelo formato e os vencedores foram os projetos de dois artistas famosos da época Gabriel Davioud e Elias Robert. Teria esta praça alguma
coisa a ver com a sobrevivência do exemplo vintista, período em que o local passou a ser designado, ainda que transitoriamente por “Praça da Constituição”,
e, onde, em 15 de Setembro de 1821, D. João VI lançou a primeira base do monumento em honra de 1820, iniciativa que naturalmente, o absolutismo de
D. Miguel veio a destruir e a bloquear? Em 1851 a praça recebeu o nome de “Praça de D. Pedro IV”. (Cf. CATROGA, 1991, p. 459-460).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 266


acabou por hegemonizar o liberalismo português.A estátua pretendia ser um símbolo de união nacional
e de recalcamento da memória da guerra civil com profundas conotações ideológicas que possibilitam
ao leitor perceber as idéias das personagens, a ironia do narrador intruso, funcionando esta como um
elemento significativo a mais na diegese.
A data de inauguração do monumento a D. Pedro IV é altamente conotativa em relação aos in-
tegrantes da Geração de 70 que tinham reservas em relação ao constitucionalismo, ao qual atribuíam a
decadência em todos os setores da vida sócio-econômico-política da sociedade portuguesa. Outro fator
que corrobora a crítica veemente de Eça, é o fato de a estátua de D. Pedro IV, símbolo do constitucio-
nalismo e, por conseguinte, o alvo preferido das farpas de Eça de Queiroz, situar-se num dos espaços
mais citados ao longo da obra queirosiana – o Rosssio.
Vossa Majestade está no alto de uma coluna, esguia, polida e branca como uma vela de es-
tearina, e mostra, equilibrando-se sobre uma bola de bronze, um papel, a Carta – ao clube
do Arco do Bandeira. É a quem Vossa Majestade a mostra. O clube do Arco do Bandeira pela
sua atitude, modesta e digna, parece não dar por tal. Vossa Majestade está com a espada
na bainha. Vossa Majestade passa à posteridade com um rolo de papel na mão – como um
tabelião, ou um vate. Nada que lembre o soldado. É uma estátua – doméstica. (Uma cam-
panha alegre, v. 3, p. 1246).

No Rossio, o calçamento feito de pedras, com motivo ondeado em preto e branco, em uma referência
às ondas dos mares navegados no período da expansão marítima do séculos XV e XVI, piso este conhecido
por “Mar Largo”, na época, cobrindo quase a totalidade da praça, foi construído em 1848 e possibilitou
ao Rossio tornar-se um excelente local de lazer (Cf. MATOS, 1993, p. 855). Desse piso vem a inspiração
para as calçadas brasileiras, especialmente as da praia de Copacabana no Rio de Janeiro, que, depois,
popularizaram o desenho por todo o Brasil.
Verifica-se que o espaço do Rossio, nos textos de Eça de Queiroz, constitui-se dialeticamente. Neste
espaço/tempo-síntese convivem, de um lado, o piso desenhado pelas ondas que remetem à expansão
marítima, período áureo da dinastia de Avis, momento de poder sócio-político-econômico de Portugal;
por outro lado, o contraste, com a estátua de D. Pedro IV, D. Pedro I, no Brasil, que instituiu de vez a
monarquia constitucional em Portugal em 1834, depois de uma guerra civil com seu irmão, D.Miguel,
apoiado por sua mãe, Carlota Joaquina. Este monumento, o qual remete ao Constitucionalismo, sistema
político implantado em 1834, que, nos textos de Eça, ficção e não ficção, é ironizado e desmoralizado
reiteradamente como sinônimo de decadência do país, numa alusão à dinastia de Bragança e ao mo-
mento contemporâneo de Eça.
Em O Primo Basílio, encontramos este excerto realista, enfatizando a decadência do povo por-
tuguês e o sistema de governo – o constitucionalismo – concretizando-se a decadência pelo conjunto:
Rossio, logradouro central da capital de Lisboa e a estátua de D. Pedro IV, símbolo de um constituciona-
lismo falhado, ambos situados na Baixa Pombalina.

Vossa Majestade está no alto de uma coluna, esguia, polida e


branca como uma vela de estearina, e mostra, equilibrando-se
sobre uma bola de bronze, um papel, a Carta – ao clube do
Arco do Bandeira. [...]. Vossa Majestade está com a espada
na bainha. Vossa Majestade passa à posteridade com um rolo
de papel na mão – como um tabelião, ou um vate. Nada que
lembre o soldado. É uma estátua – doméstica. (Uma campanha
alegre, p. 1246, v. 3)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 267


No Rossio, sob as árvores, passeava-se; pelos bancos, gente imóvel parecia dormitar; aqui
e além pontas de cigarro reluziam; sujeitos passavam, com o chapéu na mão, abanando-
se, o colete desabotoado; a cada canto se apregoava água fresca do Arsenal; em torno do
largo, carruagens descobertas rodavam vagarosamente. O céu abafava – e na noite escura,
a coluna da estátua de D. Pedro tinha o tom baço e pálido de uma vela de estearina colossal
e apagada. (cap. IV, p. 927).

Um outro monumento, a estátua e a presença de Camões, não do poeta de Os Lusíadas, mas do


símbolo maior da Pátria, que cristaliza em torno do seu nome, da sua epopéia e da sua lenda, as virtu-
alidades regeneradoras de Portugal, esteve sempre presente na ficção queirosiana, desde O Crime do
Padre Amaro (verso definitiva) e chega até Os Maias, para ocupar um lugar de destaque, um “sinal de
alerta” no espaço dos romances de Eça de Queiroz. A importância da figura ideológica de Camões é parti-
cularmente significativa, se a enquadrarmos nos problemas e nas preocupações do seu tempo – segunda
metade do século XIX – momento histórico da Regeneração de Portugal. A estátua de Camões, dentro
das narrativas de Eça, funciona como um símbolo dialético da decadência da Pátria, apesar de Camões
conotar um momento da grandeza de Portugal.
Nas oito figuras da estátua2, note-se o predomínio dos cronistas e dos poetas heróicos da pátria antiga,
homens de letras cuja função é narrar a gesta nacional, desde a consolidação da nacionalidade operada
pelo mestre de Avis até o declínio do Império português do Oriento. Eça talvez pensasse neste detalhe
quando realçou no monumento sua função de “memória quase perdida”, de rememoração duma glória
passada nacional em todos os seus aspectos.
A figura ideológica de Camões é particularmente significativa, se a enquadrarmos nos problemas e
nas preocupações do tempo – segunda metade do século XIX – momento histórico da Regeneração de
Portugal.
–– Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que prosperidade!
[...]
–– Vejam – ia dizendo o conde: – vejam toda essa paz, esta prosperidade, este contenta-
mento [...] Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!” (P.B.,
p. 369).

Ao discurso grandiloqüente e oco do conde de Ribamar acerca da realidade portuguesa, Eça contrapõe
o quadro realista do país real, contrastando com o espaço circundante do Largo de Camões.
Tipóias vazias rodavam devagar, pares de senhoras passavam, de cuia, cheia e tacão alto,
com os movimentos derreados, a palidez clorótica duma degeneração de raça; nalguma
magra pileca, ia trotando algum moço de nome histórico, com a face ainda esverdeada da
noitada de vinho; pelos bancos da praça gente estirava-se num torpor de vadiagem; um
carro de bois, aos solavancos sobre as suas rodas, era como símbolo de agriculturas atra-
sadas de séculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum burguês enfastiado lia
nos cartazes o anúncio de operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operários havia como
a personificação das indústrias moribundas [...] E todo este mundo decrépito se movia len-
tamente, sob um céu lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a lotaria e a batota
pública, e rapazinho de voz plangente oferecendo o “Jornal das Pequenas Novidades”: e
iam, num vagar madraço, entre o largo onde se erguiam duas fachadas triste de igreja, e o
renque comprido das casarias da praça onde brilhavam três tabuletas de casa de penhores,
negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam, com um tom sujo de esgoto
aberto, as vielas de todo um bairro de prostituição e de crime. (P.B. p. 369).

Note-se que as três figuras – Padre Amaro, Cônego Dias e Conde de Ribamar – conversam “sob o
frio olhar de bronze do velho poeta e nobre”, rodeado de heróis, a contrastar fortemente no seu retrato
físico e moral, não apenas com aquele quadro decadente de Lisboa, mas também com a pequenez dos
representantes do meio oficial da Regeneração portuguesa.
A ironia enfática do 25º capítulo, final de O Crime do Padre Amaro (3ª versão) está no aspecto dialético
entre o país da ficção e o país da realidade, diante daquela estátua que pretende simbolizar a glória da
pátria que Eça considera perdida, conservada apenas como simples “memória” nos arquivos da Histó-
ria – “[...] – o passado rememorado com vigor pode se transformar em memória mítica.” (HUYSSENS,
2000, p. 69).
Lembra Bakhtin (1988, p. 349) que
Em arte e em literatura, todas as definições espaço-temporais são inseparáveis umas das
outras e são sempre tingidas de um matiz emocional. [...] salta aos olhos o significado
figurativo dos cronotopos. Neles o tempo adquire um caráter sensivelmente concreto [...]
graças justamente à condensação e concretização espaciais dos índices do tempo – tempo

2. O monumento a Camões projetado em 1860 por Vitor Bastos já vinha sendo pensado pelos governantes desde 1817. Em 1862, a pedra fundamental da
estátua foi lançada e esta foi inaugurada em 28-06-1867, um prazo curto, se o compararmos ao arrastar de obras similares. As oito figuras do pedestal são:
o historiador Fernão Lopes, o cosmógrafo Pedro Nunes, o cronista Gomes Eanes de Azurara, os historiadores João de Barros e Fernão de Castanheda e os
poetas do período barroco Vasco Mouzinho de Quevedo, Jerónimo Corte Real e Francisco Sá de Menezes

Proceedings XI International Bakhtin Conference 268


da vida humana, tempo histórico – em regiões definidas do espaço.(p. 355).

O Largo de Camões em que se encontra o monumento a Camões está estrategicamente situado em um


num local do que se permite ter uma visão panorâmica da cidade de Lisboa e do rio Tejo. Temos ainda
um outro aspecto a ser levado em conta – a localização do monumento – , o caráter dialógico do espaço
memorial, sua intertextualidade, para reforçar o contraste acima referido, enfatizando a decadência do
país. Ao mesmo tempo que deste local se pode avistar o rio e oceano Atlântico de onde partiram as ca-
ravelas que deram grandeza à Portugal, deste local também se pode ver as ruas que desembocam junto
a estátua, nas quais se movem uma raça degradada e doente – “a palidez clorótica duma degeneração
de raça”; range “um carro de bois [...] como símbolo de agriculturas atrasadas de séculos”, introduzindo,
num quadro citadino a nota de uma estrutura sócio-econômica arcaica.
O curto passeio de João da Ega e Carlos da Maia, no final de Os Maias, capítulo XVIII, em que passam
pela estátua de Camões e vão até o começo da Avenida da Liberdade, sumariza, de modo emblemático
quase toda a ficção queirosiana, que por vezes implícita, outras explicitamente insinua a sua obsessão
decadentista acerca de Portugal, realçando a degradação que o país viveu depois de Alcácer-Quibir com
o desaparecimento de D.Sebastião3. Se em O Crime do Padre Amaro o monumento a Camões, o monu-
mento funciona para acentuar o contraste da decadência nacional simbolizada no espetáculo humano que
se encontra ao redor da praça, em Os Maias, o mesmo monumento reaparece para lhe ser adicionado
outro índice da decadência – a imutabilidade.
Estavam no Loreto; e Carlos parara, olhando, reentrando na intimidade daquele velho co-
ração da capital. Nada mudara. A mesma sentinela sonolenta rondava em torno à estátua
triste de Camões. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brasões eclesiásticos, pendiam
nas portas das duas igrejas. O Hotel Aliança conservava o mesmo ar mudo e deserto. [...] A
uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina defronte, na Havanesa, fumavam
também outros vadios, de sobrecasaca, politicando.
–––Isto é horrível, quando se vem de fora!–exclamou Carlos. –Não é a cidade, é a gente.
Uma gente feíssima, encardida, molenga, reles, amarelada, acabrunhada!...
–––Todavia Lisboa faz diferença – afirmou Ega, muito sério.– Oh, faz muita diferença! Hás-
de ver a Avenida... [...].
Foram descendo o Chiado. [...] E Carlos reconhecia, encostados às mesmas portas, sujeitos
que lá deixara havia dez anos, já assim encostados, já assim melancólicos. Tinham rugas,
tinham brancas. Mas lá estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas om-
breiras, com colarinhos à moda. (p. 697) (Grifos nossos)

Ao passarem, Carlos e Ega, pelo monumento a Camões, Eça, tendo talvez presente a celebrações do
tricentenário de Camões em 1880, sublinha a imutabilidade da decadência portuguesa, no uso enfático
das expressões mesmo - “mesma sentinela”, “os mesmos resposteiros vermelhos”, “o mesmo ar miúdo
e deserto”, “as mesmas portas”, no prefixo re-”reentrando”, “reconhecia”; no uso de assim, já e ainda

E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha,


junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza
gloriosa da grandeza do seu país, – ali ao pé daquele pedestal, sob o frio
olhar de bronze do velho poeta, erecto e nobre, com os seus largos ombros
de cavaleiro forte, a epopéia sobre o coração, a espada firme, cercado
dos cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria – pátria para sempre
passada, memória quase perdida! (O Crime do Padre Amaro, p. 1035) .

3. Eça de Queiroz e a Geração de 70 comungavam das idéias de Oliveira Martins expressas em seu livro História de Portugal, no qual considera como “Catás-
trofe” (título de um capítulo) o período da dinastia de Avis , entre os de 1500 e 1580 e como “Decomposição” (título de outro capítulo) o período do domínio
espanhol e da dinastia de Bragança. No capítulo “A Catástrofe”, depois de descrever a derrocada do reino após a batalha de Alcácer-Quibir, comenta: “Acaba-
vam ao mesmo tempo, com a pátria portuguesa, os dois homens – Camões, D. Sebastião – que nas agonias dela tinham encarnado em si e numa quimera,
o plano da ressurreição. Nesse túmulo que encerrava, com os cadáveres do poeta e do rei, o da nação, havia dois epitáfios: um foi o sonho sebastianista;
o outro foi, é, o poema dos Lusíadas. A pátria fugira da Terra para a região aérea da poesia e dos mitos” (p. 69). Provavelmente, sugestionado pela visão
trágica e catastrófica de Oliveira Martins, Antero de Quental (1923, p. 309) escreveu: “Há nações para as quais a Epopéia é ao mesmo tempo o epitáfio”

Proceedings XI International Bakhtin Conference 269


no indicativo de modo – “já assim encostados”, “já assim melancólicos”; indicativo de tempo – ainda “lá
estacionavam ainda apagados [...]”.
Também em A capital! : começos duma carreira (composto provavelmente entre os anos de 1877 e
1884, e editado postumamente em 1925), verificamos que Eça reforça a imutabilidade na descrição do
espaço diegético como poderosa crítica à estagnação. A capital, Lisboa, ainda é a mesma, antes, durante
e depois da estadia do protagonista Artur Corvelo.
Demonstram-no a repetição do pronome mesmo nas exclamações dos habitantes de Oliveira de Aze-
méis que muitos anos antes tinham estado na capital, ao ouvir as histórias de Artur: “Tal qual! É isso
mesmo! Era o mesmo no meu tempo...Bem vê que o amigo conhece Lisboa.” (cap. X, p. 391).
A descrição do ambiente do “Espanhol” [hotel] , permanecia inalterável:
Encontrou no Espanhol – no primeiro dia, [...] – quase os mesmos hóspedes que o habita-
vam, meses antes, na sua chegada a Lisboa. Lá estava a espanhola bonita e gordinha, [...].
Os dois republicanos espanhóis, sentavam-se no mesmo lugar, [...]. Havia, de novo, um
homenzarrão barbudo [...]. E em volta da mesa [...] o Manuel que tanto desesperara Artur,
outrora, lastimando-lhe as botas rotas [...]. A mesma gaze cor-de-rosa protegia o caixilho
dourado do espelho [...]. (Cap. VIII, p. 328). (Grifos nossos).

A carta de Melchior, no final de A capital! ,capítulo X, insiste na imutabilidade e na mesmice das


atividades em Lisboa: “ E você, quando vem? Lisboa brilhante, belo tempo, companhia francesa que
chegou, o delírio. Se a velhota deixar cheta, é fazer a mala e cair-nos aqui, para recomeçar a bela folia.
[...]” (p. 397).
O uso reiterado dessas expressões dão ênfase à comparação do presente com o passado”, diz Jacinto
Prado Coelho (1976, p. 171) traduz um “tempo colectivo português: um tempo fora do tempo [...] as
alterações individuais ou de superfície mais reforçam a sensação de permanência. É o tempo parado,
estagnado [...]”.
Recuperando a teorização de Bakhtin (1988, p. 361-362) acerca do cronotopo, ele explicita que:
[...] qualquer fenômeno, nós, de alguma forma, o interpretamos, ou seja, o incluímos não
só na esfera da existência espaço-temporal, mas também na esfera semântica. [...] esses
significados, quaisquer que eles sejam, devem receber uma expressão espaço-temporal
qualquer, ou seja, uma forma significa audível e visível por nós (um hieróglifo, uma fórmula
matemática, uma expressão verbal e lingüística, um desenho, etc.). Sem esta expressão
espaço temporal é impossível até mesmo a reflexão mais abstrata. Conseqüentemente, qual-
quer intervenção na esfera dos significados só se realiza através da porta dos cronotopos.

A presença deste espaço-tempo coletivo em Os Maias, concretizado na imutabilidade do espaço e


personagens reafirmam, na ficção queirosiana, que vimos analisando até o momento, a idéia da de-
cadência do país, da miséria portuguesa, herdadas da Geração de 70, em particular das obras de seu
amigo Oliveira Martins – História de Portugal (1879) e Portugal Contemporâneo (1881). Esta especial
ótica decadentista delineia o embasamento cultural e político de Os Maias, redigidos a partir de 1880,
contemporâneos, portanto, da problemática e mesmo da atualidade que levam às celebrações de 10 de
Junho (Dia de Camões) e delas decorrem para os destinos práticos da nação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini e outros.
São Paulo: FUNDUNESP; HUCITEC, 1988.
______. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
BERRINI, Beatriz. Eça de Queiroz: palavra e imagem. Lisboa: Inapa, 1988. p.184. il.
CATROGA, Fernando. Revista de História das Idéias, Coimbra, n. 12, p. 459-460, 1991.
COELHO, Jacinto do Prado. Ao contrário de Penélope. Amadora: Bertrand, 1976.
FRANÇA, José-Augusto. O romantismo em Portugal: estudo de factos socioculturais. 2.ed. Lisboa: Livros Horizonte,
1993. sem paginação. il.
QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. Porto: Lello & Irmão, [1979a]. v.1. (Obras de Eça de Queiroz).
______. Uma Campanha Alegre. Porto: Lello & Irmão, 1979b. v.3 (Obras de Eça de Queiroz)
______. Os Maias: episódios da vida romântica. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.
______. A capital! : começos duma carreira. Edição de Luiz Fagundes Duarte. Lisboa: Imprensa-Nacional-Casa da
Moeda, 1992. (Edição crítica das obras de Eça de Queirós).
______. O crime do padre Amaro. Edição de Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2000. (Edição crítica das obras de Eça de Queirós)
HUYSSENS, Andréas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Trad. Sergio Alcides. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000.
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português. 4.ed. Lisboa: Dom Quixote,
1991.
MARTINS, Oliveira.História de Portugal. 10.ed. Lisboa; parceria Antonio Maria Pereira, 1920. 2v.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 270


MATOS, A. Campos (Org. e Coord.). Dicionário de Eça de Queiroz. 2.ed. rev. e aument. Lisboa: Caminho, 1993.
MEDINA, João. Eça político. Lisboa: Seara Nova, 1974.
QUENTAL, Antero. Prosas. Coimbra: Imprensa da Universidade,1923. 2v.

PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queirós; espaço-tempo, Realismo português; século


XIX português; narrativa, cronotopo.
KEYWORDS: Eça de Queirós, setting-time, Portuguese Realism, Portuguese
19th century, prose, chronos topos.
BIOGRAFIA RESUMIDA: Rosane Gazolla Alves Feitosa, professora assisten-
te doutora de Literatura Portuguesa na Faculdade de Ciências e Letras-UNESP (
Universidade Estadual Paulista), campus de Assis/SP (feitosa@tvcassis.com.br),
trabalhou no ensino fundamental e médio paulista, pesquisou sobre Miguel Torga
no Mestrado e Eça de Queirós no Doutorado. Atualmente ainda estuda Eça de
Queirós, principalmente os textos de não ficção, sua correspondência e a recepção
deste autor no Brasil nas décadas iniciais do século XX em periódicos brasileiros.
Ministra cursos na Pós-Graduação e orientada alunos de Mestrado, Doutorado e
Iniciação Científica.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 271


Bakhtin e construcionismo social: crítica e construção da
subjetividade na era pós-moderna
Bakhtin and Social Constructionism: subjectivity criticism and construction
in the post-modern era

Wagner FERREIRA-LIMA

Universidade de Londrina – UEL

Depto de Letras Vernáculas e Clássicas – CCH

Campus Universitário – Fone (43) 3371-4428 – Caixa postal 6001

CEP 86.051-990 – Londrina – PR.

RESUMO
Este trabalho examina a contribuição teórica do Construcionismo Social para uma política de identi-
dade na escola que seja mais condizente com a condição pós-moderna. A proposição de uma tal política
implica numa reformulação da noção de self, que ainda se define com base nos postulados da era mo-
derna. O Construcionismo Social desconstroi essa concepção moderna de sujeito e propõe, no lugar, uma
forma sujeito que designamos psicossocial. O novo modelo de self é, assim, mais eficaz na explicação
dos problemas identitários e, por isso mesmo, é mais adequado à formulação de uma política identitária
mais justa e realista para o contexto escolar atual. Destaca-se, na definição do self psicossocial, a crucial
contribuição de M. Bakhtin, que, através do princípio do dialogismo (lingüístico), abre caminho para se
pensar a constituição do sujeito no espaço intersubjetivo; o que é compatível com a linha de pensamento
da corrente sócio-construcionista.
ABSTRACT
This work examines the theoretical contribution of Social Constuctionism regarding an identity policy
in schools which is more suitable to the post-modern condition. The proposal of such policy implies a
reformulation of the notion of self, which is still defined based on the suppositions of the modern era.
Social Constructionism undoes such modern conception of subject and proposes, instead, the so-called
psycho-social subject form. The new model of self is, that way, more efficient in the explanation of identity
problems and, for that reason, is more adequate to the formation of a fairer and more realistic identity
policy to the current school context. In the definition of the psycho-social self, M. Bakhtin’s crucial con-
tribution is emphasized, opening the way for thinking of the subject constitution in an inter-subjective
space through the principle of (linguistic) dialogism, which is compatible with the social-constructionist
line of thought.

0. Introdução
A globalização tem afetado as políticas de identidade em todo mundo. Entretanto, nem sempre tais
políticas dispõem de um aparato teórico adequado para lidar com os problemas sociais decorrentes da
diferença. De um modo geral, essas políticas repousam sobre concepções essencialistas acerca das
pessoas e dos grupos.
Neste particular, o Construcionismo social posiciona-se contrário a essas políticas e defende uma
concepção de subjetividade antiessencialista, orientada não só pelo reconhecimento da diferença, como
também pela importância capital da alteridade na constituição do self e dos grupos culturais.
Tomando-se como objeto dessa comunicação o tema da “constituição do self pós-moderno”, propomos
demonstrar o modo pelo qual o Construcionismo constrói, ao lado dos sujeitos egóico e epistêmico, das
psicologias clássica e cognitiva respectivamente, um sujeito psicossocial. Na medida em que pressupõe,
como fundamento, a coexistência dos seres, tal empreendimento trava conhecimento com o princípio
do dialogismo de M. Bakhtin.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 272


1. O self encapsulado¹: reduções idealista e fisicalista
As teorias acerca do self orientam-se grosso modo por duas vertentes epistemológicas: o idealismo e
o fisicalismo. A primeira reduz o ser humano à razão; já a segunda, a uma máquina biológica. A primei-
ra inspira-se no famoso aforismo cartesiano Cogito, ergo sum, que inaugurou o pensamento moderno
sobre a subjetividade. A segunda vertente, a fisicalista, pauta-se pelas teorias que explicam a mente na
forma de processos eletro-químicos, de processadores de informações extra-somáticas, ou de registros
de comportamentos condicionados. Destaquemos, nesta exposição, o modelo cognitivista de sujeito.
Na teoria do conhecimento de Descartes, o ser humano distingue de outros animais precisamente
por ser dotado da faculdade da razão. Ou seja, ser capaz de exercer as operações “superiores do pen-
samento”, como, por exemplo, o raciocínio lógico-dedutivo (Lúria, 1987, p. 11-12). A razão aparece
na teoria cartesiana como uma propriedade inerente à natureza humana e como uma via de acesso à
autoconsciência. Mediante o pensamento racional, o homem põe em dúvida sua própria existência, bem
como a existência de outras pessoas.
Um modelo tal de subjetividade postula um conceito de pessoa como algo encerrado em si mesmo,
privado, a-social e praticamente monológico em sua forma. O self implicado nesse modelo reduz-se
a uma instância mental capaz de capturar o real de forma intuitiva e direta e a si mesma de maneira
introspectiva.
Por outro lado, a vertente fisicalista de algumas psicologias cognitivas em voga procuram dar um
resposta para a questão da subjetividade afirmando que a mente humana, compreendendo o si mesmo
e a consciência toda, é explicável pelas ações internas do sistema nervoso central. Nas palavras de Go-
olishian et Anderson (1996), “a metáfora básica das ciências cognitivas é uma função de computador
na qual a mente e o self se reduzem a pouco mais que uns programas internos da máquina, capazes de
computar a utilidade de possíveis ações” (p. 192).
Nessas teorias, os significados e a compreensão são, não raro, reduzidos a uma estrutura biológica
e ao funcionamento de sistemas fisiológicos que “computam” e dão origem ao processo psicológico de-
nominado de si mesmo (Goolishian et Anderson, 1996, p. 193). A subjetividade, segundo esse modelo
computadorizado e cognitivo do sistema psicológico, é concebida como a expressão de processos mentais
produzidos pelo cérebro de uma pessoa.
Tal concepção apoia-se também na crença cartesiana (e lockeana) de que a mente é um espaço fechado
auto-suficiente. Assim, tanto na vertente idealista., como na fisicalista, o si mesmo define-se como um
self encapsulado. Goolishian et Anderson advertem-nos sobre o perigo de uma tal crença:
O perigo desta crença epistemológica modernista consiste em supor que é possível reduzir
todos os fenômenos psíquicos a alguma base ou modelo último, a alguma origem fundamental
e, por isso, que tudo tem em definitivo uma explicação de base causal, essencialista², que
remete a algum tipo de fundamento. (1996, p. 193)

Essa crença está, por assim dizer, na base dos fenômenos sociais negativos, como os preconceitos,
o racismo, a discriminação, os conflitos étnicos etc. Historicamente, é responsável pelas exclusões e in-
justiças sociais em todo o mundo, influenciando, assim, as políticas de identidade até os dias de hoje.
2. O Construcionismo social e o problema do self
O Construcionismo social faz parte de uma visão de mundo mais ampla denominada Pós-modernidade.
Segundo M. Spink (1999), a perspectiva construcionista “é resultante de três movimentos: na Filosofia,
como uma reação ao representacionismo; na Sociologia do Conhecimento, como uma desconstrução da
retórica da verdade; e na Política, como uma busca de empowerment de grupos socialmente margina-
lizados” (p. 23).
O Construcionismo define-se, assim, como um novo paradigma epistemológico que se contrapõe ao
modelo tradicional baseado nos pressupostos do discurso da Modernidade. Dentre tais pressupostos,
destaca-se a concepção do self encapsulado. O fato de o sócio-construcionismo combater a visão essen-
cialista do si mesmo repousa não apenas na constatação de que essa crença moderna é ontologicamente
incorreta, mas também nos testemunhos históricos de que, politicamente, traz conseqüências funestas
à sociedade.
Do ponto de vista ontológico, reduzir o self a um ser racional ou a um sistema psicológico auto-sufi-
ciente, em uma palavra, a um ser em si, significa em outros termos considerar o solipcismo como uma
característica inerente ao ser humano, o que está longe de corresponder aos fatos.
Na realidade, o homem é um ser coexistencial. Ele existe em meio a uma trama de sentidos que o liga
a outros seres, pessoas ou coisas (concretas ou abstratas) do seu meio ambiente. Esse liame de sentidos
é o mundo, de modo que o homem está nele, e não fora dele. O sujeito se acha, assim, mergulhado
num universo sociocultural que confere sentido à sua existência e por cuja organização ele também é
diretamente responsável.
Ao determinar a centralidade do self, colocando-o no mundo como um mero espectador dos fenô-

1 O termo “self encapsulado” é um neologismo usado por Goolishian et Anderson no texto descriminado nas referências bibliográficas abaixo.
2 O grifo é nosso.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 273


menos, tal uma concepção encapsulada de subjetividade obscurece o fato de que os selves são abertos
à alteridade e que, por isso mesmo, são ontologicamente seres sociais, e não solipsos. O solipcismo,
derivado do subjetivismo essencialista, não passa senão de uma ideologia do individualismo, ela própria
bem aproveitada pelas classes dominantes burguesas para manter o controle da ordem institucional
capitalista.
Do ponto de vista político, a imagem do self como portador de propriedades inerentes legitima uma
série de práticas sociais de exclusão e preconceitos, cujos testemunhos abundam na história mundial.
Citemos o exemplo da chamada ideologia do dom no bojo do contexto escolar. Ainda que já se tenha
exaurido enquanto modelo explicativo do fracasso escolar dos alunos, na prática ela ainda continua legi-
timando as relações interpessoais entre educadores e educandos, contribuindo, assim, para o fomento
das exclusões sociais.
Conforme essa ideologia, as causas do sucesso ou do fracasso na escola devem ser buscadas nas
características dos indivíduos e não no contexto em que se desenvolve o processo de ensino/aprendi-
zagem. A escola responde por oferecer igualdade de oportunidades e os alunos por aproveitá-las da
melhor maneira possível consoante o seu dom (aptidão, inteligência, talento). Assim sendo, o fracasso
do aluno explica-se por sua incapacidade de adaptar-se, de ajustar-se ao que lhe é oferecido, cabendo
à escola a função de adaptar e ajustar os alunos à sociedade, segundo suas aptidões e características
individuais (Soares, 1992, p. 11).
Essa ideologia propicia, portanto, um exame in abstracto dos problemas escolares, na medida em que
extrai o sujeito da situação concreta na qual se dá a transmissão e produção do conhecimento, atribuindo
a causa dos problemas de aprendizagem à incapacidade dos indivíduos de se adaptarem às condições
escolares. Explicando os fatos deste modo, essa ideologia reforça a crença moderna no self encapsulado
e, mais do que isso, legitima políticas identitárias injustas, assentadas no essencialismo subjetivista; o
que tem por efeito prático justificar os problemas sociais, como as exclusões, em termos de deficiências
cognitivas dos indivíduos.
A corrente sócio-construcionista posiciona-se contrário aos fundamentos do self encapsulado, espe-
cialmente porque eles dão margens à produção de processos sociais de segregação racial, de divisão de
classes e de preconceitos acerca dos indivíduos. As características pessoais negativas atribuídas a um
indivíduo são interpretadas como algo que as pessoas têm, e não como algo que constroem interativa-
mente nos contextos pelos quais elas se movem.
O Construcionismo difere das correntes psicológicas clássicas por salientar o caráter construtivo dos
fenômenos sociais, incluindo o próprio self. Conforme essa perspectiva, o si mesmo não se apresenta
como um espaço fechado auto-suficiente, senão como uma construção em processo, segundo os con-
textos de interação verbal.
3. Dialogismo e interação social: o self em construção
Uma das diferenças fundamentais entre o sujeito postulado pela Modernidade e o sujeito teorizado
pelo Construcionismo está no fato de este último constituir-se numa dimensão primordialmente dialógica
e interacional, ou seja, numa relação ontológica com a alteridade. Essa condição permite definir uma
forma de self orientado para a (inter)ação social e para a (re)construção dos contextos interpessoais.
Nesse processo interacional e dialógico contínuo os selves vão, de uma só vez, construindo a realidade
e construindo-se, num movimento reflexivo ininterrupto.
A dialogia é um conceito amplo que se refere tanto ao diálogo interno, intra-pessoal, quanto à conver-
sação externa, interpessoal. Embora esse conceito já esteja tacitamente implícito nas filosofias clássica,
medieval e moderna, ele só adquiriu visibilidade de fato a partir das reflexões de M. Bakhtin, filósofo da
linguagem russo do século XX.
Na filosofia clássica, para o Sócrates de Platão, todo pensamento não passava de uma conversação
no interior do self, e portanto de uma autocontemplação reflexiva, ou seja, o pensamento era um diálo-
go do “eu” com o “si mesmo”: “quando a mente está pensando, ela está simplesmente falando consigo
mesma, apresentando questões e respondendo a elas, e dizendo sim ou não” (Platão, 1961 apud Wiley,
1996, p. 90).
Na tradição aristotélica-escolástica, a teoria do conhecimento apoiava-se precipuamente na abstração,
ou seja, na elevação intuitiva do significado a partir de sensações particulares, e não na noção dialógica
da reflexividade. Entretanto, conforme nos afirma Wiley (1996), a teoria da abstração, que distinguia
duas capacidades ou momentos intelectuais, comportava um componente dialógico reflexivo: “o intelecto
ativo ou atuante efetua uma abstração do significado universal a partir do particular, mas comunica então
esse significado ao intelecto passivo ou possível” (1996, p. 91).
Podemos dizer que no pensamento clássico e medieval, o diálogo que se processava no interior do
self, decorrente da autocontemplação reflexiva, era de cunho privado e a-social. Foi Hegel, contudo,
quem na Modernidade apresentou uma noção explicitamente social e dialógica da autoconsciência. Para
esse filósofo, a consciência do self girava em torno do “reconhecimento” outorgado pelo “outro” (Wiley,
1996, p. 91).
Aproveitando a relação dialética entre o self e o “outro”, Bakhtin subtrai essa relação das alturas
transcendentais nas quais Hegel a concebeu, e a situa no plano material das relações sociais. A trans-
posição de planos faz com que a autoconsciência do self seja mediada pela alteridade, que se apresenta

Proceedings XI International Bakhtin Conference 274


na forma do que Bakhtin denominou por vozes. Tais vozes indicam a influência do “discurso do outro”
no discurso do sujeito, quer seja o discurso interior intra-pessoal (ou o pensamento consciente), quer o
discurso exterior interpessoal (ou a interação verbal).
Para Bakhtin (1997) os enunciados concretos são construídos quando duas ou mais vozes se con-
frontam, segundo o modelo dialógico da linguagem: quando a voz de um ouvinte responde à voz de um
falante. Ademais, as vozes às quais um enunciado é dirigido podem estar espacial ou temporalmente
distantes (Spink, 1999, p. 46). Por isso, inclusive o pensamento é dialógico: nele habitam falantes e
ouvintes que se interanimam mutuamente e regulam a produção de sentidos e enunciados.
O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locu-
tor que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não
só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência dos enunciados
anteriores – emanantes dele mesmo ou do outro – aos quais seu próprio enunciado está
vinculado por algum tipo de relação (fundamenta-se neles polemiza-se com eles), pura e
simplesmente ele já os supõe conhecidos do ouvinte. (Bakhtin, 1997, p. 291)

As formulações bakhtinianas têm importantes implicações para o pensamento sócio-construcionista.


Destacamos aqui o caráter social da reflexividade na construção do sdo self baseia-se de um modo geral
na constatação de que a atividade humana que se leva a cabo de forma mais inexorável, em público ou
privadamente, acordados ou dormindo, é a da linguagem. E, neste sentido, criar significados na lingua-
gem implica em narrar histórias (Goolishian et Anderson, 1996, p. 193).
Os relatos que os indivíduos fazem de si não são, por assim dizer, expressões fidedignas de eventos
pretéritos experienciados por eles. Mas sim reconstrução desses conteúdos conforme os interesses so-
ciais e necessidades comunicativas em jogo no ato de enunciação. Neste (re)contar os acontecimentos
biográficos, o “outro” direta ou indiretamente desempenha um papel de co-construtor dessas narrativas,
ressignificando a memória dos selves.
A memória não é, portanto, um banco de dados acerca das vivências passadas dos sujeitos, mas
elaboração semântica presente dessas vivências. Segundo Íñiguez, a memória é
o conhecimento do passado, não no sentido de coincidência de lembranças com uma realidade
pretérita, senão como organização semântica de acontecimentos, reconstrução generativa
e não mecânica dos mesmos e obtenção de narrativas fruto da dialética e da negociação de
posturas antitéticas marcada por um sentido do passado. (Íñiguez, 1998, p. 266)

Isso quer dizer que as vozes de outrora, que dão um sentido histórico à existência dos selves, são
ressignificadas ou orientadas à luz das vozes atuais envolvidas na enunciação presente. O contexto
de enunciação orienta, assim, os sentidos que vamos dar às nossas narrativas. A resposta à pergunta
sobre quem somos? depende, deste modo, do contexto de interação verbal em que se encontram as
pessoas.
É dentro desses contextos que é possível a construção de narrativas coerentes em torno de eixos
comuns, como, por exemplo, na seguinte narrativa: “sou fulana de tal, nascida no interior do Rio Gran-
de do Sul, filha de gaúchos, antropóloga, vivendo em Campinas, cursando Mestrado e pretendendo dar
continuidade à carreira acadêmica, investindo num futuro curso de Doutorado...” A mesma pessoa, num
outro contexto dialógico, com a presença de outro(s) interlocutor(es), pode elaborar uma narrativa sobre
si mesma, tão coerente quanto a anterior, a saber: “sou fulana de tal, loira, olhos verdes, sobrancelha
fina, solteira, católica não praticante, tenho uma sobrinha maravilhosa, gosto de ser diferente, curto
modo alternativa, estou à busca da felicidade e de um amor ideal...”³
As informações contidas nessas narrativas implicam valores e avaliações sociais emanantes de vozes
passadas, que fizeram e fazem parte da trajetória social da referida personagem, mas são ajustadas
ao contexto enunciativo. O conteúdo e a forma dessas narrativas são, assim, orientados pelo contexto
argumentativo que se configura no momento do diálogo.
A reflexividade da voz do “outro”, co-presente no processo de interação verbal, é, por outro lado,
primordial também para a redefinição dos contextos. Como já antecipamos acima, a única maneira de
os selves verem-se a si mesmos é verem-se através dos olhos dos demais.
Heinz von Foerster, professor de Biofísica da Universidade de Illinois, relata um episódio verídico viven-
ciado por um amigo, Viktor Frankl, ao final da Segunda Guerra Mundial, o qual ilustra bem tal afirmação
e o qual reproduzimos a íntegra:
[...] em Viena, vivia um casal cujos componentes vinham de dois campos de concentração
diferentes; ambos tinham conseguido sobreviver e reencontraram-se nessa cidade. Passa-
ram juntos uns seis meses, e a esposa morreu de uma enfermidade contraída no campo
de concentração. O marido ficou desolado. Passava o dia inteiro em sua casa sem querer
sair, deixou de responder àqueles que tentavam consolá-lo, e diziam-lhe: “Pensa o que teria
acontecido se ela tivesse morrido antes do reencontro!”, mas ele não reagia. Finalmente
alguém o convenceu a ir pedir ajuda a Viktor Frankl.

3 Esses exemplos foram extraídos do texto “Produção de sentidos no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para a análise das práticas discursivas”.
In: SPINK, M. J. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. São Paulo: Cortez, 1999, p. 56.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 275


O homem foi vê-lo e falaram longo tempo, duas horas, talvez três. Ao término da conver-
sação, Viktor Frankl disse-lhe: “Suponhamos que Deus me concedesse o poder de criar
uma mulher exatamente igual à sua esposa: ela recordaria todas as conversas que vocês
tiveram, as brincadeiras que fizeram, todos os detalhes. Você não poderia distinguir esta
mulher criada por mim da esposa que acaba de perder. Você gostaria que eu a criasse?” O
homem ficou em silêncio por um momento e depois lhe disse: “Não, obrigado”. Apertou-lhe
a mão, levantou-se, foi-se e começou uma nova vida.
Quando Frank me contou este episódio, perguntei-lhe: “Que aconteceu, doutor? Não com-
preendo...” Ele respondeu-me: “O que acontece é que nós vemos a nós mesmos através
dos olhos dos demais. Quando ela morreu, ele ficou cego; mas ao ver que estava cego....
recuperou a visão!” (Foerster, 1996, p. 73-4)

Esse relato ilustra a função da reflexividade inerente à interação social na redefinição dos contextos.
A conversa que o doutor Viktor Frankl teve com o cliente transformou o contexto em que se encontrava
este. O doutor fê-lo ver que ele era o único responsável pela sua depressão; redefinindo, por assim
dizer, a sua condição.
Esses exemplos demonstram que os seres humanos são geradores perpétuos de novas descrições e
narrações, mais do que seres que se possam descrever de maneira precisa e fixa, como fazem crer as
reduções idealista e fisicalista do self. Em conformidade com Bakhtin, o Construcionismo defende que a
natureza do self e a de nossas subjetividades são fenômenos intersubjetivos, dialógicos e interacionais.
Nas palavras de Goolishian et Anderson, os selves erigem como
O produto de narrarmos histórias uns aos outros e a nós mesmos acerca de nós, e as que
outros narram para nós e sobre nós. A cambiante rede de narrativas é produto de intercâmbio
e práticas sociais, do diálogo e da conversação. Para esta visão pós-moderna, não somos
mais que co-autores das identidades que construímos narrativamente. Somos sempre tantos
selves, tanto si mesmos potenciais quanto aqueles que estão contidos nas conversações dos
narradores criativos.(Goolishian et Anderson, 1996, p. 195)

4. O self psicossocial e suas implicações para as políticas de identidade


As reduções idealista e fisicalista do self dão lugar grosso modo a duas formas sujeitos: o sujeito
epistêmico e o sujeito psicológico, respectivamente. Este é centrado num espaço encerrado em si mes-
mo, auto-motivado, e independente do seres que o cercam (objeto da Neurofisiologia, da Psicologia
cognitivista; etc.); aquele é caracterizado como aquilo que é comum a todos os sujeitos e se apresenta
na forma de categorias gnosiológicas apriorísticas ( Descartes; Hegel; Kant; Husserl; etc.), ou na forma
de estruturas cognitivas inerentes a sujeitos no mesmo nível de desenvolvimento (Piaget).
As indagações que motivam, ou motivaram, o postulado desses sujeitos são do tipo metafísico: “o
que é o self?”; que implica outros questionamentos como: “De que somos conscientes quando somos
conscientes de nós mesmos? De idéias de nossa mente, de movimentos de nosso corpo? Como saber
se nossa consciência reflete o estado real de nossa mente? Que é o si mesmo real e como podemos
conhecê-lo?”. Numa linha mais cognitivista a questão central é “Como o conhecimento é possível”, na
medida em que o self é reduzido a um ser do conhecimento.
Como dissemos, o Construcionismo, assentado no dialogismo de Bakhtin, não considera o self nem
como um sujeito ideal ou transcendental, nem como uma máquina biológica. Pelo contrário, essa corrente
o vê como um sujeito encarnado, inserido em contingências espácio-temporais historicamente situadas,
as quais têm papel preponderante em seu desenvolvimento e em suas inserções sociais.
Na opinião de Duveen (1998), para dar conta da complexidade do self, é necessário reconhecer,
além das suas dimensões lógica e material, o caráter psicossocial do mesmo, ou seja, o self psicosso-
cial: aquele “para quem o conhecimento não é produto de um universal em abstrato, mas é expressão
de uma identidade social” (1998, p. 271). Assim as perguntas: “o que é o self?” e “Como é possível o
conhecimento” devem ceder lugar às seguintes questões: “Como se produz o self” e “Para quem o co-
nhecimento é possível?”.
Na realidade, no dizer de Pearce (1996), a noção de “indivíduo” ou de self é algo que as pessoas
desenvolvem em razão de participarem de uma variedade de “pautas de interação social”. É no interior
de tais pautas de interação que os selves se produzem em co-participação com o “outro”. Mais do que
conhecer as coisas, os si mesmos ou as pessoas comuns querem interagir com os seus iguais, querem
participar das diferentes contextos interacionais, a fim de viverem em sociedade.
Essa forma de ver as coisas, devolve o self ao mundo material e histórico de onde foi tirado pelas
reduções idealista e fisicalista do sujeito. O modelo do self psicossocial é, neste sentido, de crucial
importância para a proposição de políticas de identidade centradas na diferença e na multiplicidade
coexistencial dos seres. Com efeito, esse modelo promove não só o reconhecimento do diferente e do
múltiplo, mas também a inclusão do “outro” em contextos de interação nos quais é socialmente interdita
a sua participação.
Tomemos o exemplo dos contextos de interação das instituições escolares da rede pública. Sabemos
que, em tais contextos, a tolerância com o diferente é mínima. As crianças que “desviam” do padrão de

Proceedings XI International Bakhtin Conference 276


comportamento preestabelecido pela instituição escolar são automaticamente excluídas desses contextos
e, por extrapolação, dos contextos de interação formal correntes na sociedade.
A exclusão é um fenômeno sutil, que as pesquisas macrossociais capturam, numa leitura quantitativa,
na forma dos altos índices de repetência e evasão escolares. Entretanto, numa análise microssocial, tal
fenômeno mostra-se como efeitos do choque de ideologias e linguagens dos selves envolvidos no pro-
cesso interacional. O problema reside, assim, em grande parte, no reforço de identidades preexistentes
que a escola acaba por efetuar nas interações verbais ocorrentes no âmbito institucional, envolvendo
professores, funcionários e alunos.
Uma política de identidade mais adequada com a multiplicidade do mundo pós-moderno repousa
em ações interacionais que não só reafirmem as identidades culturais dos grupos desfavorecidos, mas
sobretudo que possibilitem a seus membros a participação em contextos formais de interação verbal.
Ou seja, que aqueles possam também mover-se por contextos identitários que, na nossa sociedade, são
exclusivos dos grupos hegemônicos, a fim de exercerem plenamente a sua cidadania.
Tal uma política poderia começar pela mudança do “enredo” das narrativas que os indivíduos estu-
dantes contam sobre si mesmos e que os outros narram sobre eles. Porquanto é na relação direta ou
indiretamente com a alteridade que os selves se constituem, se conhecem e organizam suas ações futuras,
num processo lingüístico e interacional contínuo. A reflexividade inerente a esse processo determina o
significado que os selves psicossociais vão adquirindo no decurso da comunicação social ininterrupta.
Acreditamos que essa prática consiste num meio eficaz de mudar o significado e a imagem que as
pessoas menos favorecidas têm delas mesmas e dos contextos sociais pelos quais transitam, com ou
sem sucesso. Como sustenta Rom Harré, filósofo de Oxford,
o self é uma teoria, como outras teorias, e que todos nós temos uma teoria acerca de quem
somos. Colocamo-la à prova, convivemos com ela e, em certos sentidos, ela nos cega, mas
esta teoria do self provê as bases de nossos juízos morais a respeito de quem somos e o
que fazemos. (Harré, 1984 apud Pearce, 1996, p. 179)

Deste modo, incluir os excluídos na sociedade significa, em grande parte, mudar a “teoria” que eles
têm de si mesmos, ressignificando os conteúdos culturais autóctones e levando-os a produção de novas
narrativas sobre eles a respeito de novos contextos interacionais, onde os mesmos possam funcionar
como personagens protagonistas. Uma prática como tal precisa, primeiramente, questionar a crença da
noção unitária, fechada, independente e essencial do self.
5. Considerações finais
A comunicação que ora apresentamos permite-nos extrair algumas conclusões básicas, que podem
nortear futuras pesquisas sobre o self.
Primeiro, o self não é uma “coisa”, como o é um objeto natural, mas um “ente em construção”, pas-
sível de ser apreendido não por meio de uma redução descendente positivista, senão apenas por meio
de um processo histórico e hermenêutico.
Segundo, o self, por outro lado, não pode ser concebido como uma estrutura cognitiva transcenden-
tal, extraída do mundo material e histórico em que existe, como fazem as correntes idealistas. Tanto
no primeiro, quanto no segundo caso, o self é compreendido como uma essência psicológica ou trans-
cendental.
Terceiro, do ponto de vista ontológico, é mais razoável concebermos o self como um ser inserido no
mundo. Não como “espectador”, mas como “construtor” da realidade extrapessoal e intra-pessoal. Nesse
processo existencial, ele não se acha sozinho mas em companhia de “outros” seres, iguais a ou diferentes
dele. Tal coexistência abre o self para a alteridade, esta própria sendo a condição ontológica primordial
para a autocontemplação do self, via reflexividade.
Quarto, a constituição do self pressupõe a existência de uma variedade de contextos de interação
verbal, ou diálogos, em cujos interiores os indivíduos se situam no mundo, assumindo, por isso mesmo,
identidades várias.
Por fim, tais características, fornecidas pelos autores construcionistas, incluindo o próprio Bakhtin,
permite a postulação do self psicossocial. Uma forma sujeito que aspira a práxis em vez do conhecimento
verdadeiro. Essa forma sujeito é mais condizente com as políticas de identidade do mundo pós-moderno,
marcado pela tensão entre o reconhecimento do múltiplo e do diferente, por um lado, e a necessidade
da eqüidade sociocultural, por outro.
Referências bibliográficas
FOERSTER, H. von. “Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem”. In: SCHNITMAN, D. F. (Org.). Novos Para-
digmas, Cultura e Subjetividade. Trad.: Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. pp. 59-74.
ÍÑIGUEZ, L. et alii. “La construcción de la memoria y del olvido: aproximaciones y alejamientos a la Guerra Civil
Española. In: PÁEZ, D. et alii. Memorias Colectivas de Procesos Culturales y Políticos. Bilbao: Argitalpen Zerbitzua,
1998. pp. 265-285.
LURIA, A. R. Pensamento e Linguagem. Trad.: Diana Myriam Lichtenstein e Mário Corso. Porto Alegre: Artes Médicas,
1987.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 277


PEARCE, W. B. “Novos modelos e metáforas comunicacionais: a passagem da teoria à prática, do objetivismo ao
construcionismo social e da representação à reflexividade”. In: SCHNITMAN, D. F. (Org.). Novos Paradigmas, Cultura
e Subjetividade. Trad.: Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. pp. 172-183.
SPINK, M. J. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. São Paulo: Cortez, 1999, p. 56.

Textos chave
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad.: Maria Ermantina Galvão Pereira.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
DUVEEN, G. “Crianças enquanto atores sociais: as representações sociais em
desenvolvimento”. In: GUARESCHI, P. A. et JOVCHELOVITCH, S. (Orgs.). Textos
em Representações Sociais. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998. pp. 261-293.
GOOLISHIAN, H. A. et ANDERSON, H. “Narrativa e self: alguns dilemas pós-mo-
dernos da psicoterapia”. In: SCHNITMAN, D. F. (Org.). Novos Paradigmas, Cultura
e Subjetividade. Trad.: Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas,
1996. pp. 191-199.
WILEY, N. O Self Semiótico. Trad.: Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições
Loyola, 1996.

NOMES-CHAVE: Mikhail Bakhtin; Harlene Anderson; Harold Goolishian; Norbert


Wiley; Gerard Duveen;
PALAVRAS-CHAVE: self encapsulado; self psicossocial; dialogismo; política
identitária; pós-modernidade.
KEY-WORDS: capsulated self; psycho-social self; dialogism; identity policy;
post-modernity;
Wagner Ferreira Lima, mestre em Lingüística pela Universidade Estadual Paulista
e doutorando pela mesma instituição, é professor auxiliar do Departamento de
Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina. Atualmente,
seu interesse principal relaciona-se ao estudo sociocultural do léxico da língua
portuguesa.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 278


A polifonia e o grotesco na Crônica da Casa Assassinada

Rita Felix Fortes

Unioeste – Campus de Marechal Cândido Rondon

fortes@rondonet.com.br

RESUMO
Neste estudo, objetiva-se analisar a estrutura polifônica e alguns aspectos do grotesco no romance
Crônica da casa assassinada (1959), do escritor Lúcio Cardoso. Tendo por base a obra Questões de li-
teratura e estética (a teoria do romance), de Mikhail Bakhin, buscar-se-á discutir como Lúcio Cardoso
recorre, simultaneamente, aos recursos plurivocais, pluriestilísticos e plurilingüísticos na composição
da obra – este será um dos aspectos formais melhor realizado do romance. Quanto aos elementos do
grotesco, serão abordados a partir da perspectiva bakhtiniana presente n’ A cultura popular na idade
média (o contexto de François Rabelais). No entanto, há que se ressaltar que o grotesco, no contexto
do romance, perdeu sua força edificante e positiva, mantendo apenas seus aspectos destrutivos, visto
que não há a possibilidade de qualquer renascimento ou revitalização, ao contrário, a obra aponta para
os estertores finais de uma família e da classe social a que ela pertence.
ABSTRACT
This study aims at analyzing the polyphonic structure and some aspects of the grotesque in the novel
Crônica da casa assassinada (1959), written by Lúcio Cardoso. Based on Mikhail Bakhtin’s Questões de
literatura e estética (a teoria do romance), it is intended to discuss how Lúcio Cardoso recurs, simulta-
neously, to the plurivocal, pluristylistic and plurilinguistic resources when composing the work, being one
of the formal aspect best accomplished in the novel. Also, some elements of the grotesque occurring in
Crônica da casa assassinada will be discussed from a bakhtinian perspective taking place in A cultura
popular na idade media (o contexto de François Rabelais). However, it has to be emphasized that the
grotesque, in the context of the novel, lost its edifying and positive aspect, keeping only its destructive
aspects, since there is no positive aspects that imply any rebirth or revitalization, but, to the contrary,
the work points to the final sighs of a family and its social class.

UMA ESTRUTURA PLURAL


Crônica da Casa Assassinada é um romance composto de diários, cartas, narrativas ou narrações,
confissões, depoimentos, livro de memórias e pós-escrito, recursos vinculados ao perfil e/ou ao esta-
do emocional das personagens às quais os escritos se reportam. Esta multiplicidade de gêneros que
aparecem simultaneamente na obra, resulta em um processo narrativo extremamente imbricado, cujo
eixo segue o fluxo de consciência de quem fala ou escreve. Tal polifonia exige que o leitor estabeleça
relações entre as partes, aparentemente estanques, para, ao penetrar no universo humano e lingüístico
das personagens, ir desvelando o sentido do romance.
Para Bakhtin, a riqueza do romance resulta da multiplicidade de recursos aos quais os romancistas
recorrem e que foram se incorporando à prosa contemporânea, ampliando cada vez mais sua versa-
tilidade e fazendo dele um gênero literário em processo de formação, posto que não esgotou, ainda,
todas as suas possibilidades estilísticas. “O romance, tomado como um conjunto, caracteriza-se como
um fenômeno pluriestilístico, plurilingüe e plurivocal. O pesquisador depara-se nele com certas unidades
estilísticas heterogêneas que repousam às vezes em planos lingüísticos diferentes e que estão subme-
tidas a leis estilísticas distintas”1.
Segundo o crítico em questão, as unidades estilísticas básicas na composição narrativa seriam:
a narrativa direta e literária, com sua variedade multiforme; a estilização de várias formas da narrativa
oral; a estilização das várias formas escritas, semiliterárias, como: cartas, diários, etc.; as formas literá-
rias embutidas no discurso do autor, tais como: escritos de cunho moral, filosófico, científico e o discurso
individualizado das personagens. Todos esses elementos narrativos se mesclam na prosa romanesca,
tecendo um sistema literário harmônico que se entrelaça, dando forma e unidade ao texto como um

1 BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1988, p.74-5.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 279


todo, sem que, necessariamente, sejam identificáveis as unidades estilísticas que o compõem.
(...) a confissão, o diário, o relato de viagens, a biografia, as cartas e alguns outros gêneros.
Todos eles podem não só entrar no romance como seu elemento estrutural básico, mas tam-
bém determinar a forma do romance como um todo (romance- confissão, romance-diário,
romance epistolar, etc.). Cada um desses gêneros possui suas formas semântico-verbais
para assimilar os diferentes aspectos da realidade. O romance também utiliza esses gêneros
precisamente como formas de assimilação da realidade2.

A estratégia inovadora do romance Crônica da casa assassinada não reside na utilização de alguns
desses recursos apontados por Bakhtin, visto que isso já vem sendo feito desde o século XIX, mas em se
valer, simultaneamente, de quase todos eles e, ao mesmo tempo, tentar adequar o recurso escolhido ao
perfil e aos propósitos das personagens, em sintonia com suas perspectivas de mundo e estados emo-
cionais. Ao depreender-se a intenção de Lúcio Cardoso – de ajustar os escritos às ideologias e processos
mentais das múltiplas vozes que se imbricam na composição do romance –, percebe-se o empenho no
trabalho estético que demandou sua composição. Entretanto, o autor não consegue, efetivamente, criar
estilos narrativos distintos, que se coadunem com as diferentes vozes que compõem o romance.
A questão do tempo, na Crônica da casa assassinada, é problemática, não por causa da complexidade
da composição e sim porque Lúcio Cardoso nem sempre retoma todos os fios da narrativa. Às vezes, fica
a impressão de que faltou arrematar a tessitura do romance, como se alguns fios narrativos estivessem
soltos ou esgarçados.
O diário de André, por exemplo, é escrito no tempo presente ou no passado imperfeito, por um nar-
rador adolescente. Nas partes narradas no presente ele está atordoado pela morte de Nina – sua amante
e suposta mãe – e, no passado, pelo desejo e pelo peso do incesto. Entretanto, em determinados mo-
mentos, a narrativa adquire um distanciamento e uma capacidade reflexiva que não condizem nem com
o diário de um adolescente em crise, nem com a falta de distanciamento entre o vivenciado e o escrito.
Não há indicadores que permitam ao leitor concluir que as memórias se entremeiam ao diário, o que
permitiria essa reflexão distanciada entre o vivido e o lembrado.
Pernas rijas - disse - e músculos novos. E de repente, com os lábios apertados, vibrou-me
uma pancada forte sobre as pernas, (...) Muitos anos mais tarde, ao lembrar-me desse
gesto, sentiria na carne um gosto fremente e voluptuoso – e não raras outras, sem conter
a sensualidade atuante no meu ser, era sob a forma brusca e crispada de uma vergasta que
ela surgira, como se um eco longínquo, vindo da infância, repetisse o gosto acre de sua
extraordinária descoberta3.

É pertinente a associação entre prazer e dor que se mescla, na fantasia do adolescente André, à
iniciação sexual. O corpo, de acordo com Bergson, é:
no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo
e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher,
em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe. (...) Pode-se dizer que meu
corpo é matéria ou que ele é imagem, pouco importa a palavra. Se é matéria, ele faz parte
do mundo material, e o mundo material, conseqüentemente, existe em torno dele e fora
dele. Se é imagem, essa imagem só poderá oferecer o que se tiver posto nela, e já que ela
é, por hipótese, a imagem de meu corpo apenas, seria absurdo querer extrair daí a imagem
de todo o universo4.

A lembrança física da pancada como uma fonte de reminiscências associadas ao desejo e ao prazer,
está muito bem construída. O problema está na estrutura temporal da narrativa. Como pode um adoles-
cente, no presente, ao transcrever no seu diário esta associação, analisar os desdobramentos que essa
sensação terá ao longo de toda a sua vida? Esse tipo de reminiscência seria, estilisticamente, mais ade-
quado a um livro de memórias e não a um diário. Não há indicações que possibilitem ao leitor depreender
que, ao diário de André, se entremeiam reminiscências posteriores, escritas em forma de memória; ao
contrário, as dez partes que compõem os seus escritos, são todas intituladas diários.
As formas narrativas às quais recorre Lúcio Cardoso fazem parte da tradição romanesca de se imiscuir
e transitar em várias áreas do discurso, incorporando, de forma simultânea, diversos recursos disponí-
veis à composição em prosa, numa mescla de diferentes gêneros narrativos. Essa mescla faz com que
as partes do romance pareçam ter sido organizadas de forma acidental. É como se alguém, ao remexer
um baú, encontrasse uma série de textos que, embora escritos por “autores” diferentes, compusessem
uma fascinante e escabrosa história, como, de fato, podem ser as histórias da decadente aristocracia
rural mineira, recheadas de casos de incestos, crimes passionais e toda uma gama de transgressões,

2 Id. ibid., p. 124.


3 Todas as citações d’A crônica da casa assassinada referem-se a: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 2. ed. Rio de Janeiro: Letras e Artes,
1963.
4 BERGSON. Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 11.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 280


cuidadosamente enclausuradas às paredes da casa e à memória familiar5. Em um depoimento, o autor
da Crônica define Minas Gerais como “esse espinho que não consigo arrancar do meu coração”6.
À medida que o romance vai entrelaçando as cartas, diários, narrativas, etc., estas formas estanques
vão fazendo sentido e o desnorteamento inicial acaba por resultar em uma estratégia que prende a aten-
ção do leitor e o conduz na leitura e no desvelar dos conflitos e intrigas da narrativa, sem, entretanto,
revelar completamente os embricamentos do enredo. Sonia Brayner afirma que:
o projeto literário de A crônica da casa assassinada persegue um objetivo de difícil conse-
cução: ser capaz de dar conta, no âmbito da linguagem, no centro da narrativa, da divisão
humana sempre à procura da estabilidade e não encontrando senão mudança. A fragmentação
dos relatos, a impossibilidade de se obter uma verdade, a obsessão com uma perda radical
traduzida pela noção de pecado, doença e morte, vão demarcando as áreas semânticas do
núcleo épico7.

Todas as cinqüenta e seis partes do romance, narradas em primeira pessoa, não têm um fio condutor
que as interligue. Há, apenas, anotações à margem de alguns dos textos, feitas por um “organizador
anônimo” que – muitos anos depois dos fatos terem ocorrido e de os diários, cartas, etc., terem sido
escritos – compila-os, toma os depoimentos de várias personagens, sem, no entanto, indicar as razões
que o levam a empreender semelhante tarefa.
A ordem dos segmentos tenta recompor as narrativas e, percebe-se aos poucos, que esse
desconhecido editor organizou-as e provocou os depoimentos. (...) A marca desse compi-
lador se deixa surpreender em vários níveis, desde o ato de interlocução do farmacêutico e
do médico em seus relatos até o último segmento, fundamental para o desvendamento de
grande parte do mistério de Nina8.

As cartas, os diários e as confissões, concomitantes aos acontecimentos, revelam o drama da família


no momento em que esse acontece. Os depoimentos e o pós-escrito amarram quase todos os fios soltos
da narrativa e objetivam esclarecer a intriga sob uma visão abrangente e distanciada no tempo. Esses
depoimentos e, principalmente, o pós-escrito de Padre Justino, têm, enquanto estrutura, a função de
arrematar a tessitura da trama narrativa.
A organização temporal, na Crônica da casa assassinada, não estabelece um intervalo de tempo
entre os acontecimentos e suas revelações, entremeadas de suspense e de alguns elementos da narrativa
policial. É como se o texto viesse a público não para restabelecer a verdade dos fatos e sim para inten-
sificar seu mistério. Alguém empreende uma pesquisa detetivesca, resgatando as cartas, os diários e as
confissões. Estes documentos, escritos simultaneamente aos acontecimentos, estariam marcados pela
tensão do momento. Já os depoimentos, tomados muitos anos mais tarde, seriam mais analíticos graças
ao distanciamento entre o vivido e o rememorado. Por mais que os depoentes revivam o passado, esse
recordar é virtual e não real, pois a lembrança que eles têm dos fatos “continua presa ao passado por
raízes profundas, e se, uma vez realizada, não se ressentisse de sua virtualidade original, se não fosse,
ao mesmo tempo que um estado presente, algo que se destaca do presente, não a reconheceríamos
jamais como lembrança”9.
O projeto de resgatar os textos escritos e tomar os depoimentos objetiva “esclarecer” o que provocou
o fim da família Meneses e editar os textos. Esta estratégia documental10, recorrente desde o Romantis-
mo, visa criar no leitor a ilusão de verossimilhança.
Na Crônica, o levantamento se dá muitos anos após os acontecimentos, mas não há uma indicação
precisa do porquê nem de quem o faz. No Pós-escrito de padre Justino está a pista mais evidente do
objetivo da compilação dos escritos e da tomada dos depoimentos: alguém empreende essa busca vi-
sando restabelecer a verdade dos fatos. Entretanto, não ficam claros os motivos que levaram esse editor
a resgatá-los nem as causas íntimas da decomposição das personagens. Estas lacunas fazem parte da
estratégia narrativa e enredam o leitor em um amaranhado de histórias que se insinuam e se comple-
tam, sem, contudo, preenchê-las. Segundo Brayner , “a ‘estrutura de apelo’ da Crônica tira os melhores
efeitos de sua indeterminação e de seus vazios semânticos, constantemente assinalados por reticências
e por deslocamentos temporais e espaciais”11.

5 Guimarães Rosa, a propósito dessa temática, afirma no texto “Minas Gerais” (In: Ave palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 173): “de Minas
Gerais, tudo é possível. Viram como é de lá que mais se noticiam as coisas sensacionais ou esdrúxulas, ou fenômenos? O diabo aparece regularmente,
homens e mulheres mudam antagonicamente de sexo (...), aparições meteóricas, tudo o que aberra e espanta.” Descontado o propósito do autor de corro-
borar para a consolidação da mítica sobre a mineiridade, há, nas regiões mais antigas da Serra da Mantiqueira, onde se situa geograficamente o romance
de Lúcio Cardoso, famílias muito antigas e tradicionais que, ao entrarem em franco processo de decadência, passam a agir de forma tão fechada e doentia
que acabam num patológico processo de auto-devoração e transgressão social.
6 CARDOSO, Lúcio apud CUNHA, Fausto. Ficção e confissão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970, p. 71-2.
7 BAYNER, Sônia. “A construção narrativa: uma gigantesca espiral colorida”. In: CARELLI, Mário. (org). Crônica da casa assassinada: Lúcio Cardoso. 2. ed.
São Paulo: ALLCA, 1996, p. 722.
8 Id. ibid., p. 719.
9 BERGSON, Henri. Op. cit., p. 110.
10 José de Alencar recorreu amplamente a este expediente. Nos romances O Guarani, Minas de Prata, A Viuvinha, Lucíola, Cinco minutos há sempre uma
introdução que justifica a existência da história. São sempre cartas recebidas de amigos, velhos manuscritos perdidos, confissões, etc., e objetivam criar
nos (as ) leitores(as) a ilusão de realidade, muito ao gosto dos folhetins românticos.
11 BRAYNER, Sônia. Op. cit., p. 719.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 281


DEMÉTRIO, VALDO E TIMÓTEO: RUÍNAS GROTESCAS DE UM TEMPO MORTO
Bakthin, na obra Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, ao contrapor o grotesco da
produção literária rabelaisiana, ao da literatura realista/naturalista afirma que
o campo da literatura realista dos três últimos séculos está praticamente juncado de destro-
ços do realismo grotesco, destroços que, às vezes, apesar disso, são capazes de recuperar
a vitalidade. Na maioria dos casos, trata-se de imagens grotescas que perderam ou debi-
litaram seu pólo positivo, sua relação com um universo em evolução. É apenas através da
compreensão do realismo grotesco que se pode entender o verdadeiro valor destes destroços
ou dessas formas mais ou menos vivas12.

É marcante, na Crônica, como os últimos representantes da família Menezes, cada um a seu modo, são
caricaturas grotescas daquilo que eles se imaginam ser: especialmente Demétrio e Timóteo. No entanto,
não há neles qualquer resquício de positividade que, através do riso e da zombaria, possa resgatá-los
da ruína definitiva que se abateu sobre a família. Após o velório de Nina – pivô de uma decadência que
se arrasta há décadas – não há qualquer possibilidade de reestruturação. Perdeu-se, definitivamente, a
positividade, implícita à morte, “sempre relacionada ao renascimento. (...) Nascimento-morte e morte-
nascimento (...) [enquanto] as fases constitutivas da própria vida”13. Esta perda absoluta de qualquer
traço de positividade que, até o final do século XIX, ainda se mantinha, tem que ser buscada nas con-
tingências históricas e sociais nas quais o autor insere as personagens.
Demétrio – o primogênito e o mais alienado e desesperado dos Meneses – não consegue ter uma
noção exata da desagregação da família, nem das mudanças socioeconômicas ocorridas à sua volta.
Ele se sente um baluarte da aristocracia rural mineira, cujo brasão seria uma casa arruinada e as terras
perdidas. Sem esses sustentáculos, essa “nobreza caipira” fica reduzida a um grupo de pernósticos e
empulhados, cujas atitudes e valores obsoletos os expõe ao ridículo.
A casa Meneses que, no passado, fora uma referência social, torna-se um sítio exótico e folclórico,
objeto da curiosidade, da maledicência e do escárnio provinciano. As narrativas do farmacêutico e do
médico sintetizam a opinião popular e a visão distanciada que se tem dos donos da Chácara. A irreve-
rência e o prazer com que a população os difama é mais um dos sintomas de que o tempo no qual eles
vivem, o respeito e o donaire que eles se arrogam, não existem mais a não ser em suas fantasias de
grandeza.
A análise de Raymundo Faoro sobre os vícios do início da formação do Estado brasileiro e que, segundo
ele, se arrastam até hoje, ajuda a elucidar a situação socioeconômica que serve de suporte sociológico
à composição da Crônica. Faoro atribui ao excesso de interferência do Estado nos setores produtivos as
causas que, no século XIX, provocaram a bancarrota da aristocracia rural brasileira.
A crise, atingindo a nobreza, fere todo o reino, sobre o qual incrusta suas unhas envenenadas.
Nem o açúcar do Brasil, nem o escravo africano, nem o ouro de Minas Gerais - nada salvará
este mundo condenado à mansa agonia de muitos séculos. A doença - ‘doença modelar, da
qual até hoje não conseguiu erguer-se.’(...) Ela não mata, mas paralisa14.

Demétrio – por ser o primogênito, portanto o responsável pela continuidade do nome e da família – é
quem mais se ressente do desprestígio que se abateu sobre ela. Ele é uma personagem paradoxal e de
difícil configuração. Enquanto estratégia narrativa, é importante ressaltar, ele é a personagem central,
para a qual convergem todos os dramas, contudo, é a única que não deixa registro escrito. Seu perfil se
configura através dos textos dos outros e ele é o símbolo de um ser massacrado pelo papel social que
lhe é legado por herança.
Demétrio prima pela contradição. Seu perfil de senhor patriarcal, sua frieza e arrogância, sua cons-
ciência da importância do nome, descritos por todos que a ele se reportam, constrói a síntese do que
seria um “nobre brasileiro”. Entretanto, o Barão, modelo da “nobreza” almejada, não apresenta nenhum
traço do comportamento por ele cultivado. Ao contrário, ajusta-se bem à caricatura grotesca de alguém
a dessorar a comida que ingere ininterruptamente. Ele sintetiza “o exagero do negativo (...) até aos
limites do impossível e do monstruoso”15.
Um olhar de português rude e disposto a uma chalaça brutal. (...) E todo ele já começava
a dessorar essa coisa açucarada que lhe banhava o rosto e que lhe emprestava um aspecto
repugnante, de um presunto untado, como se por todos os poros lhe filtrasse a essência dos
alimentos que ingeria laboriosamente e constantemente (p.417-18).

O Barão não apenas destoa dos valores sociais e comportamentais cultivados pelos Meneses, como
também faz parte daqueles que se adaptaram à nova ordem social. No entanto, ele é apenas mais um
entre “todos os tipos ‘profissionais’de advogados, mercadores, alcoviteiras, velhos e velhas, etc., simples
máscaras de um realismo falsificado e degenerado”16. O grotesco de que o autor se vale para descrever
12 BAKHTIN. Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, 1987, p. 21.
13 Id. Ibid., p. 44.
14 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: a formação do patronato brasileiro. 11. ed. São Paulo: Globo, 1997, p. 83.
15 BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Metia e no Renascimento, p. 267.
16 Id. Ibid., p. p. 46.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 282


o barão – “que se achava dominado pelo demônio da gulodice, que mais tarde o arrebataria, depois de
uma tão cruel agonia” (417-18) – , ao contrário da ambivalência de que era revestido na Idade Média,
é “exclusivamente negativo”17.
No entanto, para, finalmente, receber a visita dessa personagem ridícula, a destilar a gordura que
ingere – que deveria, pelo riso, redimensionar o ridículo da vaidade humana – Demétrio é capaz de vili-
pendiar o cadáver de Nina que ele “mandara enrolar num lençol ainda quente, apenas para precipitar a
chegada do Barão! Tremi [Valdo] de indignação, imaginando aquela hipocrisia toda” (p. 417).
Outro paradoxo de Demétrio é o cuidado com que, por um lado, ele cultiva o passado, por ser incapaz
de se ajustar ao presente e, por outro, deseja apagar da crônica e da memória familiar as “máculas”
que vêm desse passado e que são, simultaneamente, seu sustentáculo e sua degradação. Embora esse
passado, simbolizado pelo retrato de Maria Sinhá, esteja confinado ao porão, suas marcas subsistem
nitidamente na parede da sala de visitas. Ou seja, esta ancestral escandalosa mantém os vestígios do seu
passado na parede, no porão e, principalmente, em Timóteo, seu sobrinho neto. Entretanto, foi sob seu
mando que a família viveu seu apogeu, do qual tanto se orgulham os Meneses, e que a mantém presa
ao passado. Maria Sinhá lega-lhes o poder do nome respaldado nas terras, no dinheiro e no prestígio
inerente à riqueza. É sob a gerência dessa escandalosa ancestral que a família vivera seu maior fausto e
sua morte dará início ao processo de ruína. “O prestígio da velha fazenda no Município, seus senhores,
que mantinham casa aberta nas cidades de Leopoldina, de Ubá e outras mais próximas - e mais tarde o
loteamento de suas terras, e a morte de Maria Sinhá”. (p. 118). Mas, também, vêm dela as causas da
vergonha: seu comportamento masculino, amoral e anti- religioso.
O povo, de cabeça baixa, dizia que era uma mulher sem religião e o provara no dia em que,
agonizando uma das suas escravas, um padre infringira suas ordens a este respeito, vio-
lentando a porteira da fazenda a fim de ministrar-lhe os sacramentos. Então ela o apanhara
pela batina e, arrastando-o pela estrada, com uma força incrível fora atirá-lo fora dos limites
da propriedade, rasgado e ferido. (p.121).

Neste jogo, entre o que esconder e o que apregoar do passado, os Meneses se perdem, não apenas
porque as marcas desse passado são evidentes, mas também porque Maria Sinhá ressurge às avessas
na figura de Timóteo. Ela, que encarnara as glórias perdidas, é também o elemento que inicia o processo
de degradação da família. É sintomático que o ancestral mais viril, poderoso e cruel da família seja uma
mulher e que, neste mundo misógeno, a feminilidade seja encarnada no caricaturesco Timóteo. Maria
Sinhá representa a raiz do mundo às avessas, do não ser que, com o tempo, solapará ética e moralmente
os alicerces da família. De acordo com Kathrin Rosenfield,
a dimensão negativa é representada na antiguidade pela categoria dos deuses subterrâneos.
As figuras do avesso - daimones da destruição e da anulação - não são apenas contrários,
mas complementares às divindades ctônicas vitais e positivas. (...) Os senhores das esfe-
ras obscuras, os guerreiros insaciáveis de combate e destruição aparecem freqüentemente
associados aos seus antagônicos18.

Maria Sinhá, como um daimone, planta na família o germe da destruição e da anulação. Tanto é assim
que, imediatamente após sua morte, tem início a bancarrota dos Meneses. Como não há no romance
nenhuma personagem revitalizadora para se opor à força destrutiva de Timóteo - ao contrário, Nina vem
acentuar esse desequilíbrio, aliando-se ao cunhado - estas forças sairão vencedoras. Timóteo identifica
em Nina o instrumento de sua vingança para destruir a família.
Desde o primeiro minuto senti que ela era um desses seres insubstituíveis, com uma força
ativa e transcendente, que nos aconteceu como um pé-de-vento nos apanha na extensão da
noite. Que carnalmente fosse ela, e tivesse um nome, e viesse trazida pela mão de outro -
que tangida pelas próprias leis internas não demorasse nunca - que importava tudo isto? São
estes, precisamente , os seres que em qualquer sentido não demoram nunca. E a verdade
é que encarnava para mim, de modo completo, o ser que desde há muito eu esperava. (...)
logo à primeira vista, com esse faro especial de que são dotadas certas vítimas, os Meneses
souberam que se achavam diante de uma espécie de anjo exterminador. (p. 409).

Timóteo reconhece Nina porque eles são da mesma natureza e estão predestinados a concluírem
a destruição da família, iniciada por Maria Sinhá. Como um daimone, ele encarna por sua condição
aberrante de homem-mulher, a contracara, a face obscura de sua ancestral. Nina é um ser totalmente
amoral, flutuando num mundo sem princípios, sem nenhuma espécie de valor ou objetivo que não se-
jam a satisfação de suas vaidades e seus prazeres. Não é por acaso que, quando Valdo a conhece, ela
fora perdida por seu pai em um jogo de cartas com um velho amigo da família a quem ela explorará
impiedosamente durante toda a vida. Se vista como um daimone da antiguidade ou, ainda, como o mal,
como “quebra de uma ordem sempre imperfeita, sempre inacabada: irrupção que pode abalar o que
existe”19, como postula Schelling, Nina é a igual que Timóteo reconhece e à qual procura juntar forças
para, destruindo os Meneses, interromper o elo entre o passado e o futuro. Ele se acredita investido
17 Id. Ibid., p. 19.
18 RONSENFIELD, Kathrin. Os descaminhos do demo: tradição e ruptura em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 176-8.
19 ROSENFIELD. Denis. Do mal: como introduzir em filosofia o conceito de mal. Porto Alegre: L&PM, 1988, p. 77.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 283


dessa missão e sabe que lhe cabe, enquanto o maldito, consumá-la. Mas será Nina quem fará explodir
os males familiares que há muito corroem as relações dos Meneses entre si e entre eles e o mundo. Sua
fixação por violetas prenuncia esta força destruidora. Dentro do ciclo vital, a cor violeta, em oposição
ao verde, simboliza “a goela que engole e apaga a luz, enquanto o verde é a cor que rejeita e reacende
a luz”20. Não há nenhuma personagem no romance que reequilibre esta força destruidora, ao contrário,
todos corroboram para acentuá-la, especialmente Timóteo, Demétrio e Ana.
Timóteo, com sua figura hedionda, seu travestismo, seu encerramento voluntário e sua conspira-
ção para destruir os Meneses, representa, na perspectiva de Demétrio, a encarnação do mal, visto que
nada poderia ofender mais a honra da família do que seu hediondo aspecto físico. No entanto, o físico
de Timóteo é tão monstruoso quanto o psiquismo de Demétrio. Eles são personagens complementares
e simbólicas do estágio final de decomposição da família. Valdo é quem melhor percebe tanto o espírito
monstruoso de Demétrio quanto o físico hediondo de Timóteo.
Não era propriamente gordo, mas imenso (...) Mal conseguia mover o braço rotundo – sua
imensidão, como talhada em chapadões e descidas a pique, era o que mais impressionava
– (...) Nem mesmo seus olhos eram fáceis de perceber naquela massa humana tratada
pelo descaso e pela preguiça. (...) Os cabelos longos corriam-lhe pelos ombros (...) eram
cipós selvagens, contorcendo-se e oscilando ao jogo da rede (...). Sua entrada poderia ser
extraordinária, mas poderia muito bem significar apenas a entrada de um homem doente.
Descendo, vestido naqueles trajes mais do que impróprios, cometia um insulto e um insulto
que atingia todo o mundo reunido naquela sala. Os homens suportam uma certa dose de
grotesco, mas até o momento em que não se sentem implicados nele. De pé, parado diante
daquela gente, Timóteo era a própria caricatura do mundo que representavam – um ser de
comédia, mas terrível e sereno. Vestia-se com qualquer coisa que não se poderia chamar de
vestido, mas que fora um vestido (...) e que agora, cor desbotada de malva, esgarçava-se em
remendos colados às pressas e de fazendas de tons e panos diferentes. Trazia os braços e o
pescoço juncados de colares. (...) Lento, ele percorreu com o olhar a multidão fascinada que
o fitava: ninguém ousava fazer um só gesto, nem pronunciar a mínima palavra (418-20).

É através do olhar de Valdo que se percebe o quão estarrecedora é a figura de Timóteo e como ele,
propositalmente, visa, com sua figura hedionda, afrontar toda a empáfia de Demétrio e revelar para a
sociedade quem são, de fato, os Meneses, e as ignomínias que as paredes da casa escondem. Ele encarna
“a caricatura, mas levada ao extremo do fantástico (...).O exagero negativo (o que não deveria ser) até
aos limites do impossível e do monstruoso”21, enfim, “a propriedade essencial do grotesco”22.
Outro aspecto grotesco da Crônica é a cena – na sala onde o cadáver de Nina está sendo velado,
ante os olhos do Barão, que come empadinhas, e de toda a sociedade – na qual Demétrio, em um gesto
tresloucado, começa a espalhar os pertences de Nina , o que faz com Valdo lute com ele.
Naquele momento não éramos dois irmãos, mas dois seres desconhecidos combatendo
pela posse de uma zona vital.(...) Alguma coisa devia realmente estar rompida, para que
os Meneses assim se digladiassem diante de tantos olhares estranhos - e esforçando-me
para abatê-lo, dizia comigo mesmo, nessa lucidez e nessa pressa dos momentos extremos,
que não era eu quem ali representava o papel mais extraordinário, mas ele, o outro, aquele
homem que inesperadamente deixara vir à tona o eu que se esforçara por esconder durante
a vida inteira. (p. 419-20).

Consuma-se, ante o Barão e toda a sociedade, o desmantelar da família. A morte de Nina confirma o
que todos já sabiam: que a casa Meneses está minada e a família destruída. A materialização da morte,
presente no cadáver, acentua a consciência humana da concretude do memento mori, que paira como
advertência permanente sobre o tempo do calendário e do relógio. Após o confronto entre os irmãos e
o enterro de Nina, Valdo e “seu filho” André, cada um por si, deixaram a casa para sempre. Timóteo,
obeso e alucinado, sofre um derrame cerebral e a narrativa não volta a tratar de Demétrio. Valdo reme-
mora, muitos anos mais tarde, a importância deste dia. O velório de Nina converte-se em um charivari
familiar e os Meneses e sua reservada casa tornam-se alvo do escárnio público. O final da Crônica da
casa assassinada provoca em Valdo uma sensação de pesadelo que se aproxima do pesadelo do usurpa-
dor – personagem de Rabelais. De acordo com Bakhin, “em todas as épocas do passado existiu a praça
pública cheia de uma multidão a rir, aquela que o Usurpador via no seu pesadelo: Embaixo a multidão
agitava-se na praça/ E, rindo, apontava-me com o dedo; E eu, tinha vergonha e tinha medo”23.
Depreende-se, portanto, que a forma polifônica e o grotesco demolidor – sem qualquer vestígio de po-
sitividade e renovação – são dois aspectos relevantes na composição da Crônica da casa assassinada.

20 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gostos, gestos, formas, figuras, cores, números. 10. ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1996, p. 906.
21 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. p. 267.
22 Id. Ibid., p. 267.
23 Id. Ibid., p. 419.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 284


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et. al. São
Paulo: HUCITEC, 1988.
——. BAKHTIN. Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.
Yara Franteschi Viera. São Paulo: HUCITEC, 1987.
BERGSON. Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves da Silva.
São Paulo: Martins Fontes, 1990.
CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 2. ed. Rio de Janeiro: Letras e Artes, 1963.
CARELLI, Mário. (org). Crônica da casa assassinada: Lúcio Cardoso. 2. ed. São Paulo: ALLCA, 1996.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gostos, gestos, formas,
figuras, cores, números. Trad. Carlos Sussekind et. al. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.
CUNHA, Fausto. Ficção e confissão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: a formação do patronato brasileiro. 11. ed. São Paulo: Globo, 1997.
ROSA, João Guimarães. Ave palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ROSENFIELD. Denis. Do mal: como introduzir em filosofia o conceito de mal. Porto Alegre: L&PM, 1988.
RONSENFIELD, Kathrin. Os descaminhos do demo: tradição e ruptura em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.

TEXTOS CHAVE: Crônica da casa assassinada; A cultura popular na Idade


Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais; Questões de literatura
e estética (A teoria do romance).
NOMES CHAVE: Lúcio Cardoso; Mikhail Bakhtin.
PALAVRAS CHAVE: Polifonia; Grotesco; Decadência;
BIOGRAFIA: Sou professora de Literatura Brasileira no Curso de Letras da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus de Marechal Cândido Rondon
– e professora do Mestrado em Linguagem e Sociedade, no qual leciono a discipli-
na Linguagem ficcional do século XX: Literatura, Sociedade e Mito. Cursei Letras
Português/Inglês/Francês na Universidade Federal de Viçosa – MG, Mestrado em
Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina e Doutorado em
Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faço parte
de um grupo de pesquisa intitulado Literatura Brasileira: sociedade e mito.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 285


A pesquisa nas ciências humanas: Um encontro entre sujeitos

Maria Teresa de Assunção Freitas1

Ao iniciar esta apresentação considero importante explicitar o lugar de onde falo. Sou uma pesquisa-
dora da área da educação e todo meu trabalho acadêmico é produzido na interlocução entre a Psicologia
e a Linguagem, por acreditar, que é no diálogo entre esses dois campos do conhecimento, que ambos
se completam. Tenho também a preocupação, em meu esforço de pesquisa, de assinalar como a pers-
pectiva sócio-histórica pode representar um caminho significativo para uma forma outra de produzir
conhecimento no campo das ciências humanas.
Nesse texto2 pretendo refletir sobre as implicações do pensamento de Bakhtin para a pesquisa nas
ciências humanas no que se refere tanto às características processuais e éticas, quanto aos instrumentos
metodológicos como a observação e a entrevista, concretizando esses aspectos com algumas indicações
sobre o trabalho investigativo que tenho desenvolvido. Enfim, procuro compreender a partir da pers-
pectiva bakhtiniana como a pesquisa nas ciências humanas pode ser pensada como um encontro entre
sujeitos.
Bakhtin não é um autor que tenha se dedicado especialmente à pesquisa tornando-se um metodó-
logo. Suas contribuições ao tema estão presentes no todo de sua obra que tem como conceito central o
dialogismo. Sua teoria se organiza como uma arquitetônica alicerçada no diálogo a partir do qual todos
os seus textos se interpenetram, o mesmo acontecendo com seus conceitos. Esses se constituem como
verdadeiras mônadas, um guardando em seu interior o outro. Impossível falar de um sem remeter ao
outro. Nessa intertextualidade, nesse diálogo constante entre textos e conceitos é que se encontram
suas reflexões sobre a pesquisa nas ciências humanas. È num texto pequeno, mas denso, escrito já em
seus últimos anos de vida ”Observações sobre a epistemologia das ciências humanas” que Bakhtin(1992)
aborda especificamente a questão. Mas outras reflexões se evidenciam ao longo de sua obra presentes
em diversos textos seus e do Círculo de Bakhtin.3 Considerando que a crise de paradigmas, no dizer de
Marcondes (1994), caracteriza-se como uma mudança conceitual ou como uma mudança de visão de
mundo resultante de uma insatisfação com os modelos explicativos anteriormente predominantes, atre-
vo-me a dizer, que Bakhtin inaugura um novo paradigma de pesquisa para as ciências humanas. Este
autor, sempre se preocupou em criticar em diferentes disciplinas, as visões dicotômicas e fragmentárias
opondo a elas uma visão integradora. É o que faz em relação à linguística de seu tempo, que não o sa-
tisfaz, por valorizar na linguagem apenas os sistemas abstratos de normas ou a expressão monológica
isolada, privilegiando de um lado a objetividade de um sistema lingüístico abstrato e inerte e de outro
a língua enquanto criação individual.Procura a superação dessas posições fragmentárias considerando
que “a interação verbal é a realidade fundamental da língua” (Bakhtin/Volochinov,1988,p.30) e constrói
assim o que chamou de uma metalingüística. Também diante da psicologia critica o subjetivismo e o
objetivismo, que isola aspectos internos e externos, privilegiando ora o fisiológico, ora a vivência interior,
propondo como alternativa uma psicologia de base sociológica na qual considera a consciência indivi-
dual como um fato sócio-ideológico. Concebe assim, que o psiquismo se situa num entrelugar: entre o
organismo e o mundo exterior e a forma de mediar a relação entre os dois se materializa nos signos, na
linguagem. Em relação à pesquisa, continua nesta perspectiva, criticando os paradigmas hegemônicos
de seu tempo, que numa preocupação com a cientificidade das ciências humanas acabam por delas
expulsar o homem, tornando-as deshumanas. Esta sua crítica é dirigida principalmente ao paradigma
positivista que em sua convicção de que a realidade é objetiva e apreensível considera a ciência como
um conhecimento positivo, verdadeiro, obtido sob determinadas condições. Essa perspectiva acaba por
divorciar ciência e vida, conhecer e agir, homem e realidade. Bakhtin, contrapondo-se a essa reificação
e fragmentação do homem se dispõe a pensar a pesquisa como uma forma de compreender a própria
condição do homem. (Faraco, 1996)
Olhando para as ciências humanas e as naturais/exatas Bakhtin (1985) reconhece que elas se diferen-
ciam principalmente na relação que estabelecem com seu objeto de estudo. É enfrentando este aspecto

1 Professora da Faculdade de Educação da UFJF, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Linguagem Interação e Conhecimento que desenvolve pesquisas
apoiadas pelo CNPQ e FAPEMIG.
2 O texto ora apresentado constitui-se numa adaptação de um outro texto de minha autoria: FREITAS, M T A A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana
da construção do conhecimento IN: Freitas, M T A et ali ( orgs) Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. S. Paulo: Cortez, 2003.
3Essas reflexões podem ser encontradas nos seguintes textos de Bakhtin:“Por uma Filosofia do Ato”, “O Autor e o herói”, “Os gêneros do discurso”, “O pro-
blema do texto”, “Respostas a Revista Nova Myr”, “Os apontamentos de 1970-1971” “Problemas da poética de Dostoiévski, entre outros, podendo também
serem assinalados textos do Círculo de Bakhtin como “Marxismo e Filosofia da Linguagem” e “Discurso na vida e na arte”.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 286


diferenciador que ele se arrisca a dizer que as ciências exatas representam uma forma monológica do
conhecimento.4 Diante de seu objeto de estudo o pesquisador assume uma atitude contemplativa, de
quem observa e se expressa sobre o objeto observado. Como este objeto não tem voz, na situação de
pesquisa permanece apenas um sujeito, o pesquisador: aquele que contempla o objeto e fala sobre ele.
O objeto não é falante, mas falado.
Referindo-se às ciências humanas Bakhtin (1985) afirma que o texto é o ponto de partida das discipli-
nas que as compõem. “Onde não há texto, não há objeto para a investigação e o pensamento”(p.294).
Considerar o homem independente dos textos que cria significa, portanto, situá-lo fora do âmbito das
ciências humanas (Freitas, 2002) Para Bakhtin, essas ciências têm como objeto o homem como um
ser social que fala e se expressa. Não sendo coisa, nem fenômeno natural, o homem está sempre fa-
lando, criando textos. Não há possibilidades de chegar até o homem, sua vida, seu trabalho, sua luta,
senão através dos textos sígnicos criados ou por criar. A ação física do homem tem de se compreendida
como um ato porém o ato não pode ser compreendido fora de sua expressão sígnica que por nós é
recriada.”Estudando o homem em todas as partes buscamos e encontramos signos e tratamos de com-
preender o seu significado” (Bakhtin, 1985, p. 305)
È por tudo isso, que nas ciências humanas, o pesquisador não pode se limitar ao ato contemplativo,
pois, tem diante de si um ser que tem voz e precisa, portanto, falar com ele, estabelecer uma interlo-
cução.
Inverte-se, desta maneira, toda a situação que passa de uma interação sujeito-objeto para
uma relação entre sujeitos. De uma orientação monológica passa-se a uma perspectiva
dialógica. Isso muda tudo em relação à pesquisa, uma vez que investigador e investigado
são dois sujeitos em interação. O homem não pode ser apenas objeto de uma explicação
produto de uma só consciência, de um só sujeito, mas deve ser também compreendido,
processo esse que supõe duas consciências, dois sujeitos, portanto dialógico. (Freitas, 2002,
p.24/25)

Diálogo marcado pela perspectiva da alteridade, do reconhecimento do outro como um não eu dife-
rente e essencial ao acabamento do eu. Conclusividade essa que se torna possível a partir do movimento
exotópico dos interlocutores.
Como, então compreender a pesquisa nas ciências humanas como um encontro de sujeitos? Mais do
que compreender como assumir isso na prática?
Segundo Rey (1999),a própria utilização dos termos objeto ou sujeito no fazer da pesquisa reflete a
posição do pesquisador quanto à sua forma de focalizar e compreender a realidade. A referência à pes-
soa investigada, assinalada como objeto, significa que o pesquisador é quem detém o poder de realizar
uma interpretação sobre o outro sem lhe permitir um espaço para sua participação ativa no processo.
Considerar a pessoa investigada como sujeito implica compreendê-la como possuidora de uma voz re-
veladora da capacidade de construir um conhecimento sobre sua realidade que a torna co-participante
do processo de pesquisa. Conceber, portanto, a pesquisa nas ciências humanas a partir do pensamento
bakhtiniano significa entendê-la como uma relação entre sujeitos possibilitada pela linguagem.
Considerando a pesquisa como uma relação entre sujeitos, portanto numa perspectiva dialógica,
Bakhtin assume a interação como essencial ao estudo dos fenômenos humanos. Salienta o valor da
compreensão constituída a partir dos textos sígnicos criados pelo homem, portanto, assinalando o ca-
ráter interpretativo dos sentidos construídos. Aí Bakhtin aproxima-se do paradigma interpretativista de
pesquisa mas avança em relação a ele. O sujeito é percebido em sua singularidade, mas situado em
sua relação com o contexto hitórico-social, portanto, na pesquisa o que acontece não é um encontro de
psiqués individuais mas uma relação de textos com o contexto.
Bakhtin (1985), acena pois, para uma complexa relação entre o texto - objeto de estudo e reflexão
- com o contexto não qual se realiza. Assim, o encontro do texto com o contexto, isto é, do que está
dado e do que se está criando como uma resposta ao primeiro, é por conseguinte, um encontro de dois
sujeitos, de dois autores, de duas culturas.
Todas essas suas idéias têm implicações na características processuais e éticas de fazer pesquisa nas
ciências humanas que se refletem na relação pesquisador/pesquisado, no processo de coleta e análise
de dados através dos instrumentos como a observação e a entrevista e na construção dos textos apre-
sentando o conhecimento produzido na investigação.
A partir do exposto até aqui, situo a observação e a entrevista enquanto instrumentos metodológicos,
repensando sua forma e funcionalidade numa perspectiva de coerência com essa forma humana de
produção do conhecimento.
Os estudos qualitativos basearam-se na observação participante para realizarem seus trabalhos de
campo. Podemos dizer, que na pesquisa qualitativa, a observação participante tem se apresentado a
partir das diferentes perspectivas: objetivista, subjetivista e interpretativa. A primeira, numa versão
positivista da representação etnográfica de cultura, em busca da objetividade, considera a cultura como
uma totalidade objetiva passível de ser representada por um vocabulário supostamente neutro e/ou

4 È preciso atentar para o fato de que Bakhtin está afirmando esse monologismo das ciências exatas não no seu todo mas apenas no que se refere à relação
com o seu objeto, que por ser coisa não pode falar, não pode dirigir-se ao pesquisador.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 287


transparente. A segunda, numa concepção romântica em busca de autenticidade, considera a cultura
como uma totalidade subjetiva a ser expressa com autenticidade, seja pelos nativos ou pelo etnógrafos,
daí resgatar através de uma interpretação os símbolos e significados presentes nesta cultura. A tercei-
ra, numa linha da interpretação da cultura, possibilitada principalmente pelos trabalhos de Geertz, vê a
cultura como um texto portador de um significado que deve ser resgatado pela interpretação.
Que particularidades assume a observação como um instrumento metodológico numa pesquisa pen-
sada a partir de Bakhtin? Um processo não apenas participante, focalizado na análise interpretativa dos
eventos descritos, mas assinalando um caráter mais dialético, buscando uma mediação entre o indivi-
dual e o social. Na observação etnográfica interpretativa está presente a autoridade do pesquisador que
representa os sujeitos, enquanto na nova perspectiva o pesquisador está com os sujeitos produzindo
sentidos dos eventos observados. De fato, o que se busca com esta observação é uma compreensão
marcada pela perspectiva da totalidade construída no encontro dos diferentes enunciados produzidos
entre pesquisador e pesquisado.
Mais do que participante, esta observação é caracterizada pela dimensão alteritária: o pesquisador
ao participar do evento observado constitui-se parte dele, mas ao mesmo tempo mantém uma posição
exotópica que lhe possibilita o encontro com o outro . E é este encontro, que ele procura descrever no
seu texto, no qual revela outros textos e contextos. Dessa forma, vejo a situação de campo como uma
esfera social de circulação de discursos e os textos que dela emergem como um lugar específico de pro-
dução do conhecimento que se estrutura em torno do eixo da alteridade.
Neste sentido a observação não pode se prender apenas em descrever os eventos mas procurar as
suas possíveis relações, integrando o individual com o social.
Trata-se, pois, de focalizar um acontecimento nas suas mais essenciais e possíveis rela-
ções. Quanto mais relevante é a relação que se consegue colher em uma descrição, tanto
mais se torna possível a aproximação da essência do objeto, através de uma compreensão
das suas qualidades e das regras que governam as suas leis. Quanto mais se preserva em
uma análise as riquezas das suas qualidades, tanto mais é possível a aproximação das leis
internas que determinam sua existência. De fato, só ao colher os traços mais importantes e
depois aqueles mais secundários, identificando suas possíveis conseqüências, é que começam
a emergir claras as relações que os ligam entre si. O objetivo da observação se enriquece
assim de uma rede de relações relevantes (Freitas,2002,p.20)

A observação, numa pesquisa apoiada em Bakhtin, se constitui pois, em um encontro de muitas


vozes: ao se observar um evento depara-se com diferentes discursos verbais, gestuais e expressivos.
São discursos que refletem e refratam a realidade da qual fazem parte construindo uma verdadeira
tessitura da vida social.
Fica difícil exemplificar como se dá essa observação, mas fazendo uma tentativa de concretizar o
dito, vou me reportar a algumas experiências vividas em nosso grupo de pesquisa e na minha prática
de orientadora de dissertações.
No interior de uma pesquisa desenvolvida com o objetivo de compreender a construção/produção da
escrita de adolescentes na Internet, a observação foi usada a partir das características acima apontadas.
Nessa pesquisa nos dispusemos a compreender a escrita dos adolescentes em situações de uso de salas
de bate-papo ou chats e também em e-mails de listas de discussão. Nessas duas situações consideramos
as sessões de chat ou de discussões nas listas de e-mails como um acontecimento do qual também
fazíamos parte. Não éramos meros observadores passivos que de fora observávamos o que estava acon-
tecendo nesses canais. Participamos das sessões de chats teclando com os internautas. Respondemos
e escrevemos e-mails com os participantes das listas de discussão. Essa imersão no próprio meio virtual
compartilhando o acontecimento, fazendo parte integral dele, nos possibilitou compreender de fato o
que pretendíamos pesquisar : o processo de construção/produção dessa escrita.
Numa outra pesquisa realizada por uma de minhas orientandas,5 a observação esteve voltada para
o que acontece em bibliotecas escolares de duas escolas públicas da cidade de Juiz de Fora. A pesqui-
sadora se inseriu nessas escolas, especificamente nas bibliotecas, fazendo parte integral dos eventos
observados, interagindo com os participantes a partir do que via. Estava consciente de que a sua própria
inserção no ambiente da biblioteca produzia algo novo ao acontecimento. Ao relatar suas observações o
fez não só a partir do seu olhar mas reproduzindo as vozes dos outros participantes dos eventos, cap-
tando os sentidos construídos nessas interlocuções. O texto, relato dessas observações traz sua voz de
pesquisadora orquestrando as outras vozes participantes.
Enfim, a teoria enunciativa da linguagem de Bakhtin permite considerar a observação numa pers-
pectiva discursiva, dialógica e polifônica comprendendo que o campo nos confronta com eventos de
linguagem marcados pela interlocução.
Também a entrevista nessa perspectiva tem a particularidade de ser compreendida como uma produção
de linguagem. A entrevista acontece entre duas ou mais pessoas: entrevistador e entrevistado(s) numa
situação de interação verbal e tem como objetivo a mútua compreensão. Não uma compreensão passiva
baseada no reconhecimento de um sinal, mas uma compreensão ativa que no dizer de Bakhtin(1988),

5 Trata-se da mestre pelo Programa de Pós Graduação em Educação da UFJF: Alessandra Sexto Bernardes.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 288


é responsiva pois já contém em si mesma o germém de uma resposta. O ouvinte concorda ou discorda,
completa, adapta, repensa e essa sua atitude está em elaboração constante durante todo o processo
de audição e de compreensão desde o inicio do discurso. Para Bakhtin (1992), o enunciado é a unidade
real da comunicação discursiva, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes. A com-
preensão desse enunciado vivo é sempre acompanhada, portanto de uma atitude responsiva ativa, “ pois
toda compreensão é prenhe de resposta, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte
torna-se locutor.(Bakhtin, 1992,p.290) Só este tipo de compreensão ativa é que permite a apreensão
dos sentidos dos enunciados. Todo enunciado se elabora como que para ir ao encontro da resposta do
ouvinte. De fato o que constitui um enunciado é justamente o fato de dirigir-se a alguém e de estar vol-
tado para o seu destinatário. Na situação de entrevista compreender ativamente o enunciado de outrém
significa orientar-se para o outro. Bakhtin, ao falar sobre o excedente de visão que se tem em relação
ao outro descreve muito bem esse processo:
Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de sue sistema de valores, tal
como ele vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, contemplar
seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo fora dele; devo emoldurá-lo,
criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber,
de meu desejo e de meu sentimento ( 1992.p.45)

Essa volta ao seu lugar é indispensável ao pesquisador, pois se ela não acontecer este se detém
apenas no aspecto da identificação. Ao voltar ao seu lugar é que o entrevistador tem condições de dar
forma e acabamento ao que ouviu e completá-lo com o que é transcendente à sua consciência. Todos
estes valores que completam a imagem do outro são extraídos do excedente de sua visão. Deste lugar
fora do outro, portanto exotópico, é que o entrevistador pode ir construindo suas réplicas que quanto
mais numerosas forem indicam uma compreensão mais real e profunda (Bakhtin,1988,p.132). A com-
preensão bakhtiniana implica duas consciências, dois sujeitos, sendo portanto uma forma de diálogo:
consiste em opor ao interlocutor a sua contrapalavra. Só na corrente dessa comunicação é que é possível
que se construam sentidos.
A partir dessas considerações, justifica-se chamar a entrevista, que se realiza a partir dessa concepção,
de dialógica, pois, ela estabelece uma relação de sentido entre os enunciados na comunicação verbal.
Essa relação dialógica é marcada não por uma ordem lógica ou lingüística mas é uma relação específica
de sentido cujos elementos constitutivos só podem ser enunciados completos por trás dos quais está
um sujeito real. Nessa perspectiva, por conseguinte, a entrevista se constitui como uma relação entre
sujeitos, na qual se pesquisa com os sujeitos as suas experiências sociais e culturais, compartilhadas
com as outras pessoas de seu ambiente. Assim pesquisador e pesquisado passam a ser parceiros de uma
experiência dialógica conseguindo se transportarem da linguagem interna de sua percepção para a sua
expressividade externa entrelaçando-se por inteiro num processo de mútua compreensão.
Entretanto, os sentidos que são criados nesta interlocução, dependem da situação experenciada, dos
horizontes espaciais ocupados pelo pesquisador e pelo entrevistado.
As enunciações acontecidas dependem da situação concreta em que se realizam, da relação
que se estabelece entre os interlocutores, depende de com quem se fala. Na entrevista é o
sujeito que se expressa, mas sua voz carrega o tom de outras vozes, refletindo a realidade
de seu grupo, gênero, etnia, classe, momento histórico e social. (Freitas, 2002,p.29)

São importantes estas considerações e a elas acrescento que a contextualização do pesquisador é


também relevante. Este é um ser social que marca e é marcado pelo contexto no qual vive. Sua inserção
no campo de investigação significa de fato sua penetração numa outra realidade, para dela fazer parte,
levando para esta situação tudo aquilo que o constitui como um ser concreto em diálogo com o mundo em
que vive. De acordo com Bakhtin(1988), cada pessoa tem um determinado horizonte social orientador de
sua compreensão, que lhe permite uma leitura dos acontecimentos e do outro, impregnada pelo lugar
de onde fala. Deste lugar no qual se situa, é que dirige o seu olhar para a nova realidade. Olhar que se
amplia na medida em que interage com o sujeitos. É neste jogo dialógico que o pesquisador constrói
uma compreensão da realidade investigada transformando-a e sendo por ela transformado.
Essas são algumas reflexões, ainda iniciais, construídas a partir dos conceitos bakhtinianos sobre o uso
da observação e da entrevista na pesquisa em ciências humanas. Reflexões que estão marcadas pela
preocupação ética de que, embora pesquisadores e pesquisados ocupem lugares diferentes, a pesquisa
deve sempre se constituir como um encontro entre sujeitos.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_____ . Estética de la Creácion Verbal. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Argentina Editores, 1985.
______ Observações sobre a epistemologia das ciências humanas. In Bakhtin M. Estética da Criação Verbal. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.
_____. Hacia una metodologia de la ciências humanas. In M.M. Bakhtin, Estética de la Creácion Verbal. Buenos
Aires: Siglo Veintiuno Argentina Editores, 1985.
_____ . El problema del texto en la linguistica, la filologia y outras ciencias humanas. In In M.M. Bakhtin,Estética
de la Creácion Verbal. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Argentina Editores, 1985.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 289


_____ . (Voloshinov, V.) Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.
FARACO, C. A. O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In Faraco et ali (orgs) Diálogos com Bakhtin.
Curitiba: Editora UFPR, 1996, p.113-126.
FREITAS, M T A A Abordagem Sócio-Histórica como orientadora da pesquisa qualitativa IN: Cadernos De Pesquisa
, n.116,p.20-39, 2002
FREITAS, M T A A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento IN: Freitas, M T A
et ali ( orgs) Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. S. Paulo: Cortez, 2003. p.26-38.
MARCONDES, D. A crise de paradigmas e o surgimento da modernidade. In Brandão Z.( org.) A crise dos paradig-
mas e a educação. S. Paulo:Cortez, 1994.p.14-29.
REY, F. G. La investigación cualitativa en Psicologia- Rumbos y desafios. S. Paulo: Educ,1999.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 290


As interações dialógicas de sujeitos com deficiência mental
e de seus familiares

Ana Paula de Freitas* - e-mail: afreitas@unimep.br

Rua Luiz Otávio, 2002 Apto 41 – Mansões Sto Antonio, Campinas – SP, CEP:13088-130

Evani Amaral Camargo* -e-mail: eacamarg@unimep.br

Rua Antonio G. de Oliveira Barros, 126 - Barão Geraldo, Campinas-SP, CEP:13084-275

Maria Inês Bacellar Monteiro* - e-mail: mbmontei@unimep.br

Rua Marechal Deodoro, 2320 - Vila Monteiro, Piracicaba-SP, CEP: 13418-565

*Universidade Metodista de Piracicaba

Resumo
Este estudo teve por objetivo analisar encontros de grupos de pais e irmãos de sujeitos deficientes
mentais, bem como analisar encontros de um grupo de jovens com deficiência mental que são atendi-
dos em uma clínica-escola de Fonoaudiologia, apoiando-nos nas discussões de Bakhtin (1995, 1997) a
respeito da dialogia, polissemia, polifonia e indeterminação do sujeito e em Vion (1992) em relação ao
conceito de intersubjetividade e representação. Os resultados foram analisados considerando o processo
de interlocução dos sujeitos deficientes mentais e dos familiares e profissionais participantes do grupo,
dando especial atenção às ressignificações sobre a deficiência e sobre o sujeito deficiente. Foi possível
constatar que os jovens do estudo necessitam do apoio de interlocutores para participarem do diálogo
em grupo, contudo, a partir das trocas dialógicas, processos de significação e sentido são elaborados por
eles. Além disso, o envolvimento da família: pais e irmãos, no processo terapêutico, pode contribuir sig-
nificativamente para o desenvolvimento da linguagem e constituição do sujeito em seu grupo social.
PALAVRAS CHAVE: LINGUAGEM, DINÂMICA DIALÓGICA, GRUPO SOCIAL, DEFICIÊNCIA

Introdução
Este texto diz respeito a um projeto de pesquisa desenvolvido na Clínica-Escola de Fonoaudiologia
da UNIMEP. Tal projeto tem o intuito de analisar trabalhos realizados em grupos terapêuticos fonoau-
diológicos para crianças e jovens com ou sem deficiência mental e trabalhos realizados com familiares,
pais e irmãos.
Na área da fonoaudiologia há pouca tradição de trabalhos em grupos, sendo que tais trabalhos ti-
veram suas origens ou pela demanda na Saúde Pública, em relação à fonoaudiologia preventiva ou nas
instituições especiais. Entretanto, a proposta deste projeto não decorreu da demanda e sim da concepção
teórica adotada nesta clínica. Tal concepção aborda a (re)construção lingüística de sujeitos com agravos
fonoaudiológicos, destacando padrões e valores culturais do sujeito e do grupo. Nesta perspectiva, o
sujeito é visto como um ser social e histórico, sendo a linguagem constitutiva do sujeito. A relação te-
rapeuta-paciente constrói gradativamente um processo interativo, fundamentado em componentes afe-
tivo-emocionais, sendo a linguagem discursivamente orientada nos processos enunciativos-discursivos,
havendo sempre uma relação dialética de constituição mútua, com a concepção de que a subjetividade
decorre das interações sociais.
A clínica fonoaudiológica vista desta perspectiva, é sempre um lugar de construção de sentidos, se
configura em uma unidade sócio-histórica, e se realiza em uma esfera discursiva, em um determinado
gênero discursivo. Entendemos gêneros discursivos como tipos relativamente estáveis de grupos de
enunciados, ligados a uma esfera de utilização da língua pelos falantes (Bakhtin, 1997). Os enunciados
dispõem de uma forma padrão e de uma relativa estabilidade de estruturação. Durante as interlocuções
moldamos nossa fala às formas dos gêneros discursivos, isto é, todo o intuito do interlocutor, sem que
perca a subjetividade, realiza-se num determinado gênero.
Nesta esfera específica, neste gênero discursivo, há o lugar do resgate da história dos sujeitos no
grupo e o lugar de produção e constituição de identidades pela linguagem. A clínica, aqui, é apresentada

Proceedings XI International Bakhtin Conference 291


em um sentido amplo, levando em conta a importância dos “outros” grupos culturais do sujeito atendido
nesta clínica, tais como a família e a escola.
O grupo é aqui identificado como um espaço efetivo na construção de sentidos, que apresenta ativi-
dades significativas e criativas e que pode possibilitar atitudes críticas, o lugar em que a interação com
alguém que detêm um papel social mais experiente pode contribuir para reorganizar as necessidades
manifestas no grupo. Desta forma, na interação com os pares e com o profissional que dirige o grupo, o
sujeito vivencia ações sócio-culturais, com papéis e representações sociais definidas, o que permite que
ele reconstrua sua própria história.
Além da perspectiva teórica de Bakhtin, a de Vygotsky também norteia este estudo. Nesta vertente, a
linguagem tem uma importância crucial no desenvolvimento humano, sendo seu aparecimento um ‘mar-
co’ no desenvolvimento da criança (Vygotsky, 1987). A constituição do sujeito tem uma gênese social;
desta forma é sempre o outro que atribui os sentidos às palavras e ações da criança, os interlocutores
têm um papel essencial no funcionamento intra-psicológico de cada um e a formação da consciência
individual é sempre um processo semioticamente mediado. Assim, a subjetividade é constituída nas
relações sociais, sendo que a linguagem e a interação social têm um papel fundamental na constituição
do sujeito e as funções mentais superiores (a linguagem racional, o pensamento conceitual, a atenção
voluntária e a memória lógica) vão sendo construídas ao mesmo tempo em que vão constituindo o su-
jeito nas relações sócio-históricas.
Além disso, Bakhtin (1995,1997) discute que o sujeito e a linguagem são mutuamente constitutivos e,
nesta constituição, encontram-se ancorados nas condições de produção extra-ligüísticas. Ainda para este
autor, a interação verbal está constituída nas enunciações, que se configuram como frações da corrente
de comunicação verbal, em que há sempre um interlocutor presente ou pressuposto, e que se realiza
em enunciados concretos. Para Bakhtin, a língua é um sistema de abstração e o que se faz importante
é a significação e os sentidos adquiridos no contexto em que a enunciação se realiza.
Segundo Bakhtin, a subjetividade decorre do princípio de alteridade, havendo sempre um inacaba-
mento constituinte do sujeito: “Na vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos dos outros, sempre
regressamos a nós mesmos...” (Bakhtin, 1997:32). Complementando as idéias deste autor, podemos
nos reportar a Vion (1992), que argumenta que a subjetividade decorre do plano da intersubjetividade,
assim, esses autores abandonam a idéia do sujeito psicológico, individual, vendo-o como social.
Para discutirmos, então, o grupo terapêutico fonoaudiológico e o trabalho com grupo de familiares,
devemos levar em conta o inacabamento constituinte do sujeito, em que há sempre uma indeterminação/
reconstituição permanente, reconstituição embasada nas relações dialógicas, sendo que o sujeito recons-
tituí-se a cada interação verbal, pela linguagem, e os sentidos vão sendo construídos nas enunciações,
coletivamente. Desta forma, os sujeitos alteram suas concepções e (re)constroem sua subjetividade nas
interações sociais, e o grupo configura-se como um espaço propício para tal constituição.
Cabe esclarecer, que este texto será dividido em duas partes: na primeira delas, apresentaremos
o estudo referente ao grupo de jovens com deficiência mental e na segunda, explicitaremos o trabalho
com o grupo de famílias dos sujeitos deficientes.
Estudo da dinâmica dialógica em um grupo de jovens com deficiência mental
Neste estudo, pretendemos, analisar a dinâmica dialógica entre os sujeitos com deficiência mental
e entre eles e o fonoaudiólogo, com foco para o desenvolvimento da linguagem oral e nas mediações
existentes nestas relações.
Os sujeitos
O estudo desenvolveunos, com atraso no desenvolvimento da linguagem, com características de uma
deficiência mental moderada.
Após as filmagens são realizadas transcrições ortográficas de todas as sessões de fonoaudiologia e
são feitos recortes de episódios para serem analisados.
Com este grupo de jovens, os objetivos do trabalho fonoaudiológico são: a constituição dos sujeitos,
o diálogo - perguntas e comentários sobre fatos da vida de cada um, a narratividade oral – relatos de
experiências vividas.
Alguns episódios e suas análises
Episódio 1 - Data: 26/11/02
Situação: A fonoaudióloga leva para a sessão um jornal e discute com o grupo sobre o conteúdo que
há neste tipo de portador de texto.
T 1: Fono: Então no jornal tem...Fala sobre novela, fala sobre futebol. Sabe o que mais dá
no jornal? Os nomes dos filmes que estão passando no cinema. Tudo isso fala no jornal. E
que mais tem no jornal? Tem notícia boa ou tem notícia ruim?
T 2: Lúcia: Tem notícia ruim.
T 3: Fono: Tem notícia ruim?
T 4: Edilene: Violência...

Proceedings XI International Bakhtin Conference 292


T 5: Fono: Violência!
T 6: Fono: Você sabe o que é violência Alex?
T 7: Alex: Eu não.
T 8: Edilene: Eu sei.
T 9: Fono: Quem vai contar pro Alex o que é violência? Você sabe Lúcia o que é violência?
T 10: Lúcia: Assim, batê, matá...
T 11: Fono: Bater, matar, que mais?
T 12: Edilene: Seqüestro.
T 13: Fono: Seqüestro...Olha, aqui no jornal tem também uma notícia de violência, quer
vê, eu vou ler uma...”Estudante matou a avó e a empregada”. Nossa, é uma notícia de
violência não é?
T 14: Edilene: (balançou a cabeça fazendo gesto afirmativo).
T15: Fono: Vocês ouviram falar desse moço que matou a avó e a empregada?
T 16: Lúcia: Eu vi.
T 17: Fono: Viu? Aonde Lúcia?
T 18: Lúcia: Minha mãe falou.
T 19: Fono: Sua mãe te contou?
T 20: Lúcia: (balança a cabeça fazendo gesto afirmativo)
T 21: Fono: Entendeu o que é violência Alex?
T 22: Alex: (balançou a cabeça fazendo gesto afirmativo).
T 23: Fono: O que você acha que é violência então?
T 24: Alex: Matá a vó.
T 25: Fono: Quando mata a vó...Então violência é coisas que acontecem, coisas ruins, então
quando alguém faz algum mal pra outra pessoa. Isso tudo é violência.

Neste episódio observamos que no turno 1 a fonoaudióloga dá início a um assunto, que refere-se
ao conteúdo existente em um jornal. A pergunta feita por ela possibilita, no turno 4, o uso da pala-
vra ‘violência’ por uma das jovens participantes do grupo. A partir daí inicia-se uma discussão sobre o
significado da palavra ‘violência’. Os jovens e a fonoaudióloga vão construindo o sentido das palavras
(que não se apresenta como um item de dicionário), mas como parte das diversas enunciações de Alex,
Edilene, Lúcia e da Fono.
Como afirma Bakhtin, a palavra ‘violência’ está sempre carregada de um conteúdo ou de um sen-
tido ideológico ou vivencial. Na dinâmica dialógica que se estabelece entre os participantes do grupo,
verificamos que cada um, procura explicar o conceito, a partir de suas próprias experiências. Alex, num
primeiro momento não sabe o que é violência. Para Lúcia é matar, é roubar. Para Edilene é seqüestro.
A terapeuta lê uma notícia do jornal, que relata o assassinato de uma senhora e o suspeito de ter co-
metido o crime, seria seu próprio neto. Alex, a partir daquilo que escuta, dá início ao seu processo de
elaboração conceitual: violência é matar a avó. Embora, num primeiro momento, ele demonstra não
conhecer o sentido da palavra, ao mergulhar na corrente da comunicação verbal – ele pode passar a
operar/usar essa palavra.
Episódio 2 - Data: 29/10/02
Situação: No início da sessão fonoaudiológica, a terapeuta conversa com o grupo, questionando-os
sobre como eles passaram a semana, se têm novidades para contar, etc
T 1 Fono: E você Gilmar, tá tudo bem com você?
T 2: Gilmar: (sorri e faz um gesto com uma das mãos como se estivesse dormindo, colo-
cando-a do lado esquerdo sobre a orelha).
T 3 Fono: O que é?
T 4: Gilmar: (aponta com o dedo indicador para si mesmo e sorri).
T 5: Fono: Você tava dormindo? Você tá com sono?
T 6: Gilmar: (balança o dedo indicador fazendo gesto negativo).
T 7: Fono: Não?
T 8: Gilmar: (começa a passar os dedos sobre o queixo).
T 9: Fono: O que é que tem a barba? Deixou a barba crescer?
T 10: Gilmar: (sorri e balança a cabeça fazendo gesto afirmativo).
T 11: Fono: Tá ficando bonito! O que vocês acham gente, do Gilmar de barba?
T 12: Alex: (coloca a mão sobre o rosto)
T 13: Lúcia: É feio.
T 14: Fono: Você achou feio?

Proceedings XI International Bakhtin Conference 293


T 15: Lúcia: (sorri e balança a cabeça fazendo gesto afirmativo)
T 16: Fono: Ih, ó, é melhor tirar!
T 17: Gilmar: (sorri, coloca a mão sobre o rosto e abaixa a cabeça)
T 18: Fono: É melhor tirar, porque a Lúcia achou feio... Não sei não, vai que a mulherada
não gosta... vai deixar aí a barba e o bigode.
T 19: Gilmar: (passa o dedo sobre o queixo e entre o nariz e o lábio superior)
T 20: Fono: Você tem barba já Alex?
T 21: Alex: (balança a cabeça fazendo gesto afirmativo)
T 22 Fono: Deixa eu ver. Você tira a barba? Quem tira é você?
T 23: Alex: (balança a cabeça fazendo gesto afirmativo)
T 24: Fono: Como é que você faz?
T 26: Alex: É, é, é...Eu passo gilete.
T 27: Fono: Você passa gilete? Sozinho?
T 28: Alex: (balança a cabeça fazendo gesto afirmativo)
T 29: Fono: Que legal Alex!
T 30: Fono: E você sabe tirar a sua barba também Gilmar?
T 31: Gilmar: (sorri e faz com o dedo indicador gesto negativo)
T 32: Fono: Você vai deixar ela aí?
T 33: Gilmar: (passa o dedo indicador sobre o queixo)
T 34: Fono: Fico bom, eu gosto, fica bonito!
T 35: Alex: (abaixa a cabeça e coloca a mão sobre os lábios).
T 36: Fono: Hei, tira a mão da boca. O que nós estamos fazendo aqui gente?
(todos permanecem em silêncio)
T 37: Fono: O que a gente tá fazendo agora aqui?
T 38: Lúcia: Papeando.
T 39: Fono: Oi? Papeando! Exatamente, a gente tá papeando, conversando. Quando a gente
conversa, a gente pode olhar para baixo, ficar olhando pro chão?
T 40: Lúcia: (balança a cabeça fazendo gesto negativo)
T 41: Fono: E não, pra quem a gente olha quando a gente conversa? Pra cima, olha pras
pessoas não é?

O diálogo surge como uma das formas mais significativas de interação verbal. Neste episódio, temos,
não somente a comunicação em voz alta, temos Gilmar que se utiliza de gestos indicativos para se co-
municar com os interlocutores.
Os gestos e expressões de Gilmar adquirem um valor semiótico, a medida em que, a fonoaudióloga
interpreta e atribui significado a eles, tornando-os expressivos.
Lúcia e a terapeuta expressam suas opiniões sobre o uso da barba, deste modo, emitem seus senti-
mentos e seus julgamentos. Emoção e juízo de valor são coisas alheias à palavra dentro da língua, e só
nascem graças ao processo de sua utilização ativa no enunciado concreto.
O grupo está conversando sobre algo que Gilmar enuncia: o uso da barba. Deste modo, Gilmar, Lúcia,
Alex e a fonoaudióloga se alternam e produzem seus enunciados, cuja fronteira, é determinada pelo
enunciado do outro, ou seja, pela alternância dos locutores.
A fonoaudióloga chama a atenção do grupo para uma regra de conversação: quando se conversa,
não se pode olhar para o chão ou por a mão sobre o rosto. Tal fato, já havia sido discutido em momen-
tos anteriores no grupo. Deste modo, o objeto do discurso da terapeuta não é objeto do discurso pela
primeira vez neste enunciado, e nem ela é a primeira a falar de regras de conversação. Tais regras já
foram explicitas em inúmeras teorias da lingüística, já foram faladas no próprio grupo, já foram, por assim
dizer, esclarecidas e julgadas de diversas maneiras. No jogo dialógico os objetos do discurso se cruzam,
se encontram e se separam sob diferentes pontos de vista, visões de mundo e tendências.
Conclusões
O Grupo Terapêutico Fonoaudiológico configura-se como espaço privilegiado que possibilita a consti-
tuição dos jovens com deficiência mental.
Os jovens deste estudo, na maioria das vezes, ainda necessitam do interlocutor para iniciarem um
diálogo. Contudo, com a ajuda da fonoaudióloga, que assume o papel de mediadora, os jovens relatam
suas experiências, negociam conceitos, concordam ou discordam.
Através da análise dos dados podemos observar que os sentidos das palavras podem ser construídos
na dinâmica dialógica existentes no grupo.
Vale ressaltar que, embora as dificuldades de linguagem continuem a existir durante a dinâmica

Proceedings XI International Bakhtin Conference 294


dialógica, elas não são impeditivas para que o diálogo entre os jovens com deficiência mental ocorra.
Além disso, a possibilidade de novas experiências e variadas “leituras de mundo” parecem ser fatores
primordiais para a ocorrência do diálogo entre esses jovens.
Reflexões sobre as interações dialógicas de familiares de sujeitos com deficiência mental
O grupo familiar configura-se como o primeiro grupo social no qual a criança se insere. Neste núcleo,
a constituição do sujeito decorre das inter-relações com os outros integrantes e, em uma perspectiva
dialética, da constituição da linguagem, estando ambos ancorados nas condições de produção extra-
lingüísticas (Bakhtin, 1995). Assim, tais inter-relações criam uma interdependência muito forte entre os
membros do núcleo familiar, o que leva ao surgimento de sentimentos os mais variados e, com freqüência,
ambivalentes. Neste processo, todas as famílias experimentam uma série de dificuldades que podem ser
mais ou menos difíceis de serem superadas, dependendo das relações daquele núcleo familiar.
A deficiência mental não é apenas determinada biologicamente, mas é também construída no grupo
social em que o sujeito vive. Desta forma, as concepções dos interlocutores presentes em seu processo
de desenvolvimento tornam-se fundamentais na constituição de sua subjetividade e as crenças de pais
e irmãos são marcantes nessa formação. Frente a isto, fazem-se necessários estudos que discutam as
concepções dos mesmos.
A fonoaudiologia tem trabalhado com crianças e jovens (com ou sem deficiência mental) que apresen-
tam alterações de linguagem e com suas famílias, mas os estudos realizados sobre essa prática clínica
ainda são escassos e merecem ser aprofundados. Em muitos casos, quando o trabalho fonoaudiológico
incorpora os pais em seu planejamento, as atividades desenvolvidas com estes referem-se apenas a
orientações sobre o que deveriam fazer ou como deveriam se relacionar com o filho. Raramente, voltam-
se para a construção conjunta de espaços discursivos que privilegiem a inter-relação entre sujeitos, e
que se distancie de uma prática autoritária de orientação.
Segundo Freire (2000), existe uma tentativa da Fonoaudiologia, nas clínicas e nos próprios serviços
de saúde, em aproximar-se das famílias, mas normalmente estes espaços são marcados pela orientação
de condutas e não pela reflexão.
De acordo com Camargo (2000), espaços discursivos nos quais profissionais e pais de sujeitos com
deficiência mental possam discutir suas dúvidas, sentimentos e concepções säo relevantes para que
ocorram ressignificações a respeito da deficiência. Ampliando essas reflexões, inferimos que tais espaços,
como reuniões de pais e irmãos, que propiciam a interlocução entre familiares e profissionais e que levam
em conta os saberes e concepções desses membros se configuram como significativos para minimização
das dificuldades por eles enfrentadas no relacionamento com o sujeito com deficiência mental.
O estudo aqui apresentado teve por objetivo analisar encontros de grupos de pais e irmãos de su-
jeitos deficientes mentais que são atendidos em uma clínica-escola de Fonoaudiologia, apoiando-nos
nas discussões de Bakhtin (1995, 1997) a respeito da dialogia, polissemia, polifonia e indeterminação
do sujeito e em Vion (1992) em relação ao conceito de intersubjetividade e representação. Buscou-se
identificar nas reuniões realizadas como o processo de interlocução constrói ou (re)constrói sentidos
e concepções a respeito do sujeito com deficiência mental e discutir as concepções na constituição da
subjetividade destas crianças e jovens.
Os grupos de pais e de irmãos
Foram realizadas 18 reuniões com grupos de pais e 11 encontros com grupos de irmãos de sujeitos
deficientes mentais que participavam de atendimento fonoaudiológico em uma clínica-escola.
As reuniões ocorreram periodicamente, sendo que as temáticas ou atividades desenvolvidas durante
o encontro, foram preparadas a partir dos interesses dos participantes. Os encontros foram filmados
(encontros dos irmãos), ou gravados em áudio (encontros de pais) e transcritos ortograficamente.
No presente trabalho, analisamos episódios que demonstram as concepções dos pais e irmãos sobre
a deficiência mental, sobre o sujeito deficiente e sobre suas possibilidades, bem como suas diferenças.
Apoiados nos pressupostos de Bakhtin (1995), consideramos que as concepções dos pais e irmãos a
respeito do sujeito deficiente configuram-se como fundamentais para a constituição da subjetividade
dos mesmos.
Alguns episódios e suas análises
Episódio 1: O seguinte episódio é relativo a uma reunião de grupo de pais, da qual participam 3 mães,
a pesquisadora e a bolsista de iniciação científica. A pesquisadora está relatando sobre um filme visto
no encontro anterior, no qual 2 mães não estavam presentes:
T.1: E(pesquisadora): O filme é de dois adultos com deficiência mental... É que eles estão
vendo um filme, aí acaba o filme e ela pergunta: “ E aí, eles foram felizes para sempre?”
Ele vira e responde: “Não sei. Não teve outro filme...” ..... Ela também falou que a dona
da cantina da escola disse que era bom ela ter um spray de pimenta, ela fala pra mãe: ”Se
alguém quiser fazer algo que eu não queira, eu uso o spray de pimenta. Porque eu também
tenho que querer.” Aí, a mãe pergunta o que mais essa senhora disse, ela fala:”Ela disse
que não podia grudar chiclete embaixo da carteira.” (Risos)
T.2: M ªA. (mãe): Eu só vi um pedaço, mas eu identifico bem a situação da minha filha.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 295


(Silêncio)
T.3: E (pesquisadora): Porque você acha que identificou, o que você viu assim, de seme-
lhante?
T.4:M ªA. (mãe): Por exemplo, essa cena em que ela está falando de uma coisa e de re-
pente, muda. A minha filha também é assim. Tem dia que se comporta que parece uma
menina normal, mas, de repente, sai completamente fora do que estava falando, faz coisas
que não tem nada a ver.
T.5: E((pesquisadora): E isso te deixa...
T.6: MªA. (mãe): Eu estava prestando atenção sobre o namoro. A D. também se preocupa
muito em namorar, casar, sexo. Outro dia, eu sentei pra conversar com ela sobre sexo e ela
falou que tinha muitas coisas que ela imaginava, mas não sabia, outra coisa, ela se defende
muito a respeito de sexo, acha que não pode fazer uma coisa porque acha que vai acarretar
problemas mais tarde...
T.7: E (pesquisadora): Então, ela tem essa noção?
T.8: MªA .(mãe): Ela tem, que vai sofrer conseqüência daquilo...
.......
T.9: MªA.(mãe):Eu estava prestando atenção no filme e pensando:”Será que eu poderia
confiar na minha filha, deixar namorar sozinha, casar? Isso é muito difícil”
T.10: L(mãe): A própria mãe dela, no começo, resistiu.(referindo-se ao filme)
T.11: MªA.(mãe): Aí a gente fica naquela: “Será que eu faço bem em resistir? Devo confiar
e ceder?
T.12: J (mãe): Às vezes, o que a gente pensa, dá errado. A minha filha, não tem problema
nenhum, mas acho que normal também não é... (Risos)... Às vezes, eles estando juntos
com a gente, não se viram, não dão jeito para as coisas, se acomodam.
T.13: MªA.(mãe): Ficam mais dependentes.
T.14: J (mãe): E judiam da gente...

Podemos observar aqui a construção de sentidos a partir da interlocução entre as mães e a pesqui-
sadora. O filme discutido, como ferramenta social, desencadeia um sentido que veicula socialmente.
Discute-se a representação social do sujeito deficiente mental e de suas possibilidades. Nas falas das
mães aparece a concepção da normalidade/não normalidade. J. fala que sua filha “não tem problema
nenhum”, mas logo em seguida acrescenta que “normal também não é”, Ma. A. lembra que suas filhas
“ficam mais dependentes” e J. completa dizendo que “judiam da gente”. A troca entre pares e com a
pesquisadora vai construindo um espaço que permite ressignificações de sentidos.
Nestas trocas, cada componente do grupo, com suas “vozes”, perspectiva, concepções, constrói um
sentido comum.
A pesquisadora também traz para o grupo informações e suas concepções. Suas colocações levam
as mães a refletirem sobre aquilo que afirmam e com isto elas vão revelando suas preocupações de
maneira mais clara.
O sentido do episódio foi sendo construído coletivamente pelas concepções individuais, transformando-
se em um sentido comum, em que o papel de cada representante do grupo influenciou para a significação
final. Podemos identificar que o sentido final é reflexo das concepções do grupo histórico-cultural, do
qual as mulheres presentes no episódio fazem parte (mães e profissional). Podemos também supor que,
ao discutir a respeito do filme, cuja temática é tão próxima da vida dessas mães, elas possam refletir,
do ponto de vista individual e do ponto de vista do grupo, sobre sentimentos e expectativa da vida e
possibilidade das filhas. Ao poder discutir sobre possibilidades/limites das filhas, explicitam angústias,
medos e assim reconfiguram concepções e perspectivas em relação aos filhos e à deficiência mental.
Episódio 2: Neste episódio temos crianças que tem um irmão deficiente e um adulto (pesquisador)
conduzindo o grupo, e estão discutindo sobre a rotina com os irmãos.
T.1:(pesquisadora): Bom, agora, já que a gente tá aqui batendo papo, me conta como vocês
conversam com seus irmãos. Todos eles falam?
T.2: Ta: O Juliano fala.
T.3: Te: A Daiana não!
T.4: I: A Lourdinha também não?
T.5: M: Não!
T.6: I: E a Vanessa?
T.7: Li: Ela fala, mas eu não entendo direito.
T.8: I: E daí, como vocês fazem para conversar com eles? Quando eles querem alguma coisa,
como vocês fazem pra entender?
T.9: Te: A Daiana quando quer alguma coisa ela chora.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 296


T.10: I: Daí você sabe que ela quer alguma coisa. Mas você nunca tentou conversar, entender
o que ela quer, quando ela fala por gestos?
T.11: Te: Não!
T.12: I: Então, ela só chora?
T.13: Te: Não! Ela tem uma voz de chamar minha mãe. Quando minha mãe chega perto
ela já...
T.14: I: E com você, nada?
T.15: Te: Ah, comigo também, quando ela vai no parquinho, ela brinca e eu sei.
T.16: I: Ah, então, você leva ela no parquinho. Que legal!
T.17: Te: Levo!
T.18: I: E a Maria de Lourdes, quando ela quer alguma coisa, como você sabe o que ela
quer?
T.19: M: Ãh?
T.20: I: Ela, quando quer alguma coisa o que ela faz, ela faz gestos?
T.21: M: É!
T.22: I: E a Vanessa?
T.23: Li: Ela faz gestos, aponta e minha mãe entende mais, aí ela fala pra mim.
T.24: I: E como foi pra vocês quando vocês perceberam que seus irmãos eram diferentes?
É, eu vou dar um exemplo. Eu tenho um colega que é gago, sabe? Ele ga-ga-ga-gagueja!
Então, eu nunca tinha reparado nisso até que um dia eu tava com minha priminha, aí ele
falou assim: “eu num-num-num vou...”, ela me perguntou o que que era o ‘num-num-num’.
Aí que eu parei e pensei: “puxa! Ele é gago!” Então, quer dizer que tem coisa que a gente
nem percebe até que um dia alguém... E como foi com vocês?
T.25: Te: Quando a Daiana nasceu, ela era normal.
T.26: I: E o que aconteceu com ela?
T.27: Te: É que ela tava doentinha aí a médica deu um calmante muito forte. Daí mexeu
com a vista, com as mão e com as perninha,.
T.28: I: Mas quando foi que você percebeu que ela era diferente de você. Como foi?
T.29: Te: Daí minha mãe falou e eu fiquei com minha mãe uns trinta dia em Rubião com a
Daiana que ficou internada. Depois minha mãe foi pra Campinas e daí falaram pra nóis que
a Daiana não tem mais possibilidade de enxergar.
T.30: I: E pra você como foi?
T.31: Ta: Quando o Juliano nasceu, ele teve que fica internado.
T.32: I: Tá, ele já nasceu assim. Mas quando vocês nasceram, ele já era grandão e daí
como foi?
T.33: Lu: Ele não nasceu assim. Ele tava andando de bicicleta e bateu no poste.
T.34: I: Ah, tá ele se machucou...
T.35: Ta: É, mais ou menos. Minha mãe, uma vez nóis perguntamo e ela falo que ele não
nasceu deficiente, ele caiu da cama do hospital e aí ficou.
T.36: Te: Ele nasceu, daí ele caiu!
T.37: I: Então, vocês perguntaram pra sua mãe e foi isso o que ela disse?
T.38: Lu: Foi!
T.39: I: E você Ligia?
T.40: Li: Eu perguntei pra minha mãe e ela falou que a Vanessa é deficiente mental.
T.41: I: Só assim?
T.42: Li: Só, que ela não era igual eu.
T.43: I: E você, Marina, como foi pra você?
T.44: M: Ah...
T.45: I: Você perguntou pra sua mãe?
T.46: M: A Lourdinha não era assim. Ela foi operada em Rubião, aí ela não andou, nem falou
mais.

A construção dos sentidos é realizada coletivamente através da interlocução dos componentes do grupo.
Num primeiro momento, o grupo conversa sobre como cada um se comunica com os irmãos deficientes.
Num segundo momento, passam a explicitar como identificaram a deficiência mental do irmão.
No episódio apresentado ocorreram duas temáticas introduzidas pelo adulto. A segunda temática
decorre da primeira e é construída na interação verbal.
Nas falas das crianças, identificamos a voz do adulto (pais ou mães) sendo reafirmada por elas, como

Proceedings XI International Bakhtin Conference 297


por exemplo no turno 40, quando diz que perguntou para a mãe sobre a irmã e a mãe lhe disse que “
a Vanessa é deficiente mental”.
Podemos observar nos dados apresentados que as concepções sobre a fala dos sujeitos deficientes
e sobre a própria deficiência, que aparecem na fala das crianças revelam concepções da família e do
grupo social.
Conclusões
Os pais (mães) e os irmãos mostraram que alguns sentimentos e experiências são peculiares. Muitas
vezes, não existem espaços sociais que permitem a construção e reconstrução destes sentimentos e os
sentidos são construídos fantasiosamente e ficam confusos.
O envolvimento da família: pais e irmãos, no processo terapêutico, pode contribuir significativamente
para o desenvolvimento da linguagem e constituição do sujeito em seu grupo social.
Os pais e irmãos organizam suas concepções de sujeito deficiente a partir daquilo que é expresso pelo
grupo. As palavras dos outros componentes do grupo introduzem sua expressividade, seu tom valorativo,
que é assimilado, reestruturado e modificado no grupo.
Assim, espaços discursivos, como as reuniões e encontros apresentados permitem ressiginificações
de sentidos.
Desta forma, identificamos que a troca entre pares, e entre pares e profissionais, configuram-se
como espaços discursivos que permitem a construção coletiva de significações, em que sentimentos e
concepções podem ser reorganizados, discutidos e assim, reconstituídos, permitindo que os sujeitos,
pela linguagem, possam amenizar angústias e inseguranças e refazer sentidos e preconceitos (no caso
sobre a deficiência mental) socialmente estabelecidos.
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1995.
__________ .Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes Editora Ltda, 1997.
CAMARGO, E.A.A. Concepções da Deficiência Mental por Pais e profissionais e a Constituição da Subjetividade da
pessoa Deficiente. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação, UNICAMP, 2000.
FREIRE, M. R.; ARAÚJO, M. H. & BUENO, T. C. Orientação: Um Procedimento da Ordem do Equívoco.Mimeo, 2000.
VION, R. La Communication Verbale: Analyse des Interactions. Paris: Hachette, 1992.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda. 1984.
______________ Pensamento e Linguagem. São Paulo:Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1987.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 298


Teoria e prática dialógica da leitura por Mikhail Bakhtin
Theory and dialogic practice of reading by Mikhail Bakhtin

Magda Medeiros Furtado

Colégio Pedro II (RJ)

Rua Almirante Gomes Pereira, 76, apto. 101 – Urca – Rio de Janeiro.

CEP 22291-170 - telefone: (21) 2541-0403

magfurtado@uol.com.br

Resumo I
Este trabalho pretende apresentar uma teoria da leitura extraída dos estudos de Bakhtin sobre os
gêneros do discurso e o problema do texto nas ciências humanas. Voltando-se para a efetivação do
processo comunicativo no interlocutor, Bakhtin expressa seu interesse pelas estratégias dialógicas de
provocação das respostas e escolha de interlocutores. A teoria bakhtiniana da leitura está centrada na
importância dada à escolha, feita pelo autor do discurso, de seu hipotético interlocutor imediato. Para
Bakhtin, o autor, não podendo prever seu público no futuro – nem ao menos sua própria permanência
como texto ativo da cultura – procura direcionar sua produção para um determinado segmento da so-
ciedade, contando com diversos recursos textuais. Assim, o autor escolhe seus leitores dentro de sua
contemporaneidade e lhes traça a imagem, delimitando igualmente suas margens de manobra dentro de
uma leitura esperada, da qual o leitor freqüentemente escapa em sua “compreensão responsiva ativa”.
Resumo II
This work intends to present a literature theory from the Bakhtin’ writings about speech genres and
the text problem in the Human Sciences. Turning to the effectiveness of the communication process in
the interlocutor, Bakhtin express his interest in the dialogic strategies of provoking answers and choice
of interlocutors. The bakhtinian theory of reading is centred in the importance given to the choice, by
the author of any speech, of his hypothetic immediate reader. According to Bakhtin, the author, as far
as he cannot foresee his public in the future - neither its permanence as an active text of the culture
- he tries to guide his production to a certain segment of the society, using different text resources.
Therefore, the author chooses his readers in his own time period and traces their image, equally limiting
their expected reading possibilities, from which the reader frequently escapes in his “active responsive
comprehension”.

Para abordar a questão da leitura sob o olhar de Mikhail Bakhtin, gostaria de começar invertendo a
questão e me deter inicialmente sobre o Bakhtin leitor. Esse viés nos fornecerá pistas importantes de
suas posições a propósito da recepção do discurso literário.
Das leituras conhecidas de Bakhtin, destacam-se seu denso trabalho sobre Rabelais e o estudo sobre
Dostoievski, já sobejamente destrinchados sob todos os ângulos possíveis. Em sua teoria do romance,
há inumeráveis referências aos clássicos do gênero, desde a sua formação até os grandes nomes do ro-
mance europeu do século XIX. É conhecida a preferência de Bakhtin pelo romance como arena dialógica
por excelência, em detrimento da poesia, vista como gênero predominantemente monológico. A ressalva
aqui feita através do uso do termo “predominantemente” é devida a seus raros ensaios sobre poesia, um
dos quais, sobre Maiakovski, só foi dado a conhecer postumamente; Bakhtin, nos estudos da origem do
romance, não faz ressalva alguma a respeito do monologismo do discurso poético.
Além dos clássicos, Bakhtin vai beber na fonte da cultura popular, buscando nas sátiras da antigui-
dade e na cultura popular da Idade Média e do Renascimento as raízes do gênero romanesco, impuro e
híbrido em sua gênese.
Vemos então Bakhtin trabalhar com duas pontas opostas: de um lado, com os clássicos da literatura
ocidental; de outro, com a tradição da cultura popular que formou uma das raízes do romance. Mas não
conhecemos leituras de Bakhtin sobre o romance contemporâneo.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 299


Conhecido poliglota e leitor voraz, Bakhtin não escaparia de ler James Joyce, se tivesse acesso. Ainda
que desconsideremos o exemplo extremo de querer que Bakhtin tivesse escrito sobre Ulisses ou Fin-
negans Wake, já que escrever sobre literatura em língua inglesa na URSS stalinista seria praticamente
condenar-se à morte, pelo que sabemos das condições políticas da época, resta-nos perguntar por que
o romance modernista não ganhou de Bakhtin algumas linhas sequer.
Uma das possíveis respostas poderia ser a falta de distanciamento temporal que Bakhtin parece
prezar como necessária para se entender plenamente uma cultura ou uma literatura – a condição de
“exotopia” ou “exterioridade”. Essa condição se reforça a partir da leitura de seu ensaio de 1970 para
uma revista soviética dirigida a intelectuais, a “Novy Mir”. Em português o ensaio ganhou o título de “Os
estudos literários hoje”. Ali, Bakhtin declara que se limitará à literatura do passado ao falar das tarefas
que julga essenciais para os estudos literários, deixando de lado as questões relativas ao estudo da li-
teratura contemporânea. Justificando sua escolha, ele avalia que as tarefas de que se propõe a falar já
amadureceram o suficiente e já motivaram trabalhos profícuos que devem prosseguir1.
Portanto, Bakhtin, além da exotopia, faz alusão a “amadurecimento” e “continuidade” como valores
importantes para uma leitura especializada. Um pouco mais adiante nesse mesmo texto, Bakhtin dis-
corre sobre o enriquecimento dos sentidos de um texto proporcionado pela “grande temporalidade”, isto
é, pelos leitores do futuro que descobrem novos sentidos na obra. Esses sentidos são produzidos pela
interação dialógica entre culturas de épocas diferentes; o leitor se constitui no organizador desses novos
sentidos refratados pelo cabedal de suas leituras prévias.
Dessa forma, a leitura de uma obra por uma outra época, na “grande temporalidade”, é sempre mais
enriquecedora, pois, além de desfrutar do olhar “de fora” do leitor, apto a captar sentidos que ficaram
obscurecidos pela limitação (ou parcialidade) do observador “de dentro”, beneficia-se dos novos sentidos
esclarecidos e produzidos pela história de sua recepção. Com isso, estamos fazendo a defesa da leitura
dos clássicos como elemento provocador desse dialogismo entre épocas, além de todos os outros motivos
já suficientemente conhecidos.
Isso não quer dizer que não possamos fazer, nós mesmos, leituras bakhtinianas de Joyce ou Mário de
Andrade, até porque o Modernismo já se tornou um clássico para nós. Apenas faz-se necessário tomar
cuidado com as leituras contemporâneas utilizando a voz de Bakhtin. Na verdade, devemos nos precaver
diante de qualquer afirmação sobre Bakhtin, inclusive esta quanto às leituras sem distanciamento, pois
até mesmo a recepção da obra de Bakhtin tem sofrido constantes solavancos com o aparecimento, de
tempos em tempos, de obras reveladas como suas, oriundas do trabalho com seus arquivos, além da
falta de esclarecimento definitivo quanto à autoria de alguns importantes textos que levam também o
seu nome na capa. Essa é uma prova eloqüente de que não é seguro nem mesmo trabalhar com auto-
res mortos, como provam as leituras recentes de Toward a Philosophy of the Act2, ao que parece, sua
primeira obra, que, no entanto, chegou-nos por último.
Entretanto, a contribuição de Bakhtin para uma teoria da leitura, ou uma “estética da recepção bakhti-
niana”, vai muito além disso. Consideremos que ele elaborou, a partir de “Os gêneros do discurso”, uma
teoria da recepção do discurso numa época anterior à da “Estética da recepção e do efeito” da Escola de
Constança (Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e outros).
Bakhtin criou uma teoria da comunicação voltada para o interlocutor e suas respostas ao texto com o
qual estabelece relações dialógicas a partir de sua leitura. Essa última fase de Mikhail Bakhtin, voltada
para a comunicabilidade verbal como o vértice de suas preocupações teóricas, pode ser acompanhada
nos textos que fecham a Estética da criação verbal, coletânea publicada em português que traz também
alguns de seus primeiros escritos .
Os textos de Bakhtin que mais interessam a este trabalho são “Os gêneros do discurso”, de 1953; “O
problema do texto”, de 1961; “Os estudos literários hoje”, de 1970; “Observações sobre a epistemologia
das ciências humanas”, de 1974, e apontamentos inacabados feitos entre 1970 e 71.
Foi a própria evolução do conceito de dialogismo na obra de Bakhtin que o levou a se preocupar com
a recepção do discurso. Seus estudos rompem os limites da teoria literária para se centrar no texto
verbal de modo geral, já que, em “O problema do texto”3, ele amplia o conceito de “texto” para qualquer
sistema organizado de signos - o texto musical, por exemplo.
A “estética da recepção bakhtiniana” parte do princípio de que todo discurso, mesmo o a priori mo-
nológico, defensor de uma tese fechada, torna-se dialógico sob dois pontos de vista, ambos envolvendo
sua recepção. Primeiramente, deve-se alcançar uma compreensão ampla de sua relação com outros
textos do mesmo gênero, pois o discurso parte de outras teses, para refutá-las ou referendá-las. Além
disso, essa relação dialógica também se efetiva diretamente em seu processo de recepção, porque
provoca uma compreensão responsiva ativa - os leitores /ouvintes, mesmo que não se manifestem,
selecionam, concordam ou discordam, enfim, filtram o discurso de acordo com seu universo de leituras
ou de interesses.
Não existe, portanto, um receptor passivo, apenas ouvinte de um discurso. O autor de um texto
(ou o falante) não tem controle total sobre a recepção e qualquer compreensão, qualquer leitura, já é
1 BAKHTIN, Mikhail. [Os estudos literários hoje]. In: Estética da comunicação verbal, p. 362.
2 Bakhtin, M. Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993.
3 O título da edição original é mais elucidativo: “O problema do texto em lingüística, filologia e nas ciências humanas: uma tentativa de análise filosófica”.
In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins fontes, 1992, p. 331.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 300


uma interpretação, ou uma compreensão responsiva ativa. Por sua vez, o produtor de um texto tenta
controlar ao máximo a recepção através de elementos estilísticos e de construção que denotam sua
visão de mundo4.
O grau da atitude responsiva ativa é variável. A compreensão responsiva é a primeira fase para uma
resposta, a qual já está predeterminada pela obra. É bom ressaltar que é a obra, e não o produtor textual,
que predetermina as respostas, pois os sentidos assumidos pelo texto fogem ao controle de seu autor.
Entretanto, é essa presunção da resposta que determinará a escolha, por parte do autor, do gênero dis-
cursivo mais adequado a seus propósitos, além da própria seleção das estratégias de composição. Logo,
a pressuposição de uma determinada leitura influencia diretamente a própria construção da obra5.
Podemos proceder a uma análise textual de um enunciado com o intuito de determinar qual a atitude
responsiva ele provoca. Para Bakhtin, em “Os gêneros do discurso”, todo locutor postula uma compreensão
responsiva ativa, e não passiva, que seria uma mera duplicação de seu pensamento. O que ele espera
é uma resposta, que pode ser de objeção, execução, adesão ou concordância, mas que sempre terá a
filtragem da compreensão de outro sujeito. Mesmo concordando, o interlocutor soma a esse enunciado
sua vivência, sua expectativa, suas leituras, seu ponto de vista. Essa atitude responsiva nem sempre é
imediata: podendo ser uma réplica sucessiva, ela às vezes demora toda uma vida para ser expressa. É
o que Bakhtin chama de compreensão responsiva de ação retardada: “cedo ou tarde, o que foi ouvido e
compreendido de modo ativo encontrará eco no discurso ou no comportamento subseqüente do ouvinte.
(...) O que acabamos de expor vale também, mutatis mutantis, para o discurso lido ou escrito.” 6
Aprendemos com Bakhtin, portanto, a não nos incomodar tanto quando uma leitura recebe o silêncio
como resposta. Pode se tratar de uma “compreensão responsiva muda, de ação retardada”, que vai
elaborar lentamente uma resposta, a qual pode nem ser verbal e talvez demore até mesmo alguns anos
para vir à tona. Aquela leitura, entretanto, pode passar a fazer parte do discurso desse leitor inicialmente
passivo. Como corolário dessa idéia, emerge a defesa do aspecto formador da leitura.
Ao produzir um texto, o autor não compõe a partir do nada. Ele se inscreve em um ilimitado universo
textual de sua e de outras culturas, através do tempo e do espaço. Sua obra, portanto, estabelece re-
lações dialógicas com todo o patrimônio cultural ao alcance do autor. Naturalmente o universo do leitor
não é o mesmo, e essas relações dialógicas podem ser recebidas de forma diferente, ou podem também
não ser recebidas. Essa pode ser a maior dificuldade da leitura de textos clássicos por leitores que não
têm o contexto cultural da época em que a obra foi produzida.
Um texto também pode entrar em relação dialógica com outro texto, a despeito de seu autor. As
relações dialógicas estabelecidas pelo texto sob o controle do autor são, com efeito, mais evidentes,
estão se oferecendo ao leitor. Mas outros diálogos não imaginados pelo produtor textual podem ser es-
tabelecidos pelo receptor, inclusive muitos séculos após a obra ter sido produzida. Esse tipo de relação
dialógica depende de um organizador, que pode ser o próprio leitor ou um crítico.
Existe um tipo de dialogismo “visível”, ou seja, as citações e paródias diretas, as respostas a polêmicas,
os discursos que remetem explicitamente a outros. Nessas formas, há “marcas” evidenciadas de diálogo,
como formas pronominais, palavras de outrem entre aspas, vários recursos lexicais de referências e,
dependendo da intenção do discurso, a presença de ironia ou hostilidade com relação ao outro texto.
A relação dialógica, portanto, apresenta nesses casos reflexos na própria estrutura do enunciado, e se
impõe ao leitor; ainda que ele não conheça os textos prévios, sabe que ali ocorre uma polêmica.
O diálogo textual realizado em tempo real, isto é, constituído a partir de réplicas que se sucedem
no tempo, em um mesmo espaço, tem uma tensão muito maior, permitindo com facilidade a busca de
marcas dialógicas que são abundantes no corpo textual. Já a relação dialógica construída através de
paródias para uma recepção posterior é muito mais sutil - é uma mensagem segunda, que pode ser
independente da primeira relação de comunicação com o receptor, que, dependendo de seu repertório,
poderá ficar apenas nesse primeiro nível de leitura.
A relação dialógica pode ser de debate, ironia, confronto ou discordância, mas pode ser também uma
relação dialógica de concordância ou mesmo de homenagem. Neste caso, sua perceptibilidade pode ser
menor ainda, uma vez que as marcas de ironia e de animosidade são ausentes ou muito pouco evidentes.
Em outros casos, a homenagem de um texto a outro pode ser tomada não como uma relação dialógica
de produção a partir desse texto, mas sim como uma incorporação absoluta da palavra do outro, que
fica apagado, de maneira que a relação dialógica original fica inteiramente esquecida, tornando-se mo-
nológica7, no sentido de que passa a ser a voz de um só sujeito.
A oposição entre discurso dialógico e monológico, no entanto, torna-se bastante esgarçada em “Os
gêneros do discurso”. Neste texto, Bakhtin alerta que, por mais monológico que seja um discurso (o
discurso científico, por exemplo), ele “não deixa de ser também, em certo grau, uma resposta ao que já
foi dito sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo problema, ainda que esse caráter de resposta não receba
uma expressão externa bem perceptível”8. São as “tonalidades dialógicas” que podem ser detectadas no
discurso, seja ele oral ou escrito.
4 BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Op. cit., Especialmente p.298.
5 Idem, ibidem, especialmente p. 321.
6 BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação verbal.São Paulo: Martins Fontes, 1992. Pp. 290 e 291
7 BAKHTIN, Mikhail. Observações sobre a epistemologia das ciências humanas. In: Estética da Criação verbal. Op. Cit., p. 406.
8 BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal, p. 317.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 301


No caso de relações dialógicas entre textos, o sujeito da leitura passa a ser o efetivador da cadeira
discursiva, e aí já temos três pontas do dialogismo: o primeiro texto como ponto de partida, o segundo
texto – que é uma resposta, uma paródia ou uma homenagem ao primeiro –, e finalmente o leitor, que
constrói um terceiro texto, ainda que não verbal, a partir de sua compreensão da relação dialógica entre
esses dois primeiros textos. Esse é um esquema mínimo, que pode ter uma infinidade de participan-
tes.
Mas essa interpretação tem limites dados pelo próprio texto. Nesse ponto, Bakhtin pode ser aproxi-
mado à defesa dos limites da interpretação feita por Umberto Eco9, para se opor a superinterpretações
feitas de sua Obra Aberta.
Nesta teoria bakhtiniana da leitura, cabe ressaltar também a importância conferida por Bakhtin ao
sentido da obra, que remete à ideologia do discurso. Para Bakhtin, o todo do enunciado é uma unidade
de comunicação verbal que não possui uma significação, mas um sentido, relacionado com um valor (a
verdade, a beleza, a justiça, etc.), que implica uma compreensão responsiva apoiada em um juízo de
valor (“Compreender sem julgar é impossível. As duas operações são inseparáveis: são simultâneas e
constituem um ato total.”10). Este, implícito em toda compreensão responsiva (mesmo que seja apenas
um juízo de valor da qualidade), pode estar inconsciente, mas forma a base dessa compreensão. Não se
pode escamotear a permanente faculdade humana do julgamento de valor de todo ato de compreensão,
ainda que não se admita esse juízo em situações onde os valores não são coincidentes entre todos os
participantes.
Nos apontamentos de 1970 e 1971, Bakhtin atribui à obra literária o poder de alterar essa visão de
mundo preexistente à leitura, formada pelo ponto de vista do leitor. Ainda que esses valores prévios
contribuam para a formação de um juízo sobre a obra, esta acrescenta “algo novo”, exceto em casos
de extremo dogmatismo, quando o sujeito receptor está fechado a qualquer alteração de sua visão de
mundo. Bakhtin desaprova essa postura, pois para ele o ato de compreensão envolve enriquecimento
mútuo – do leitor/receptor e do próprio texto11.
Nas notas reunidas em “Observações sobre a epistemologia das ciências humanas”, de 1974, Bakhtin
contrasta os conceitos de “significação” e de “sentido”, tomando aquela como “o aspecto propriamente
semântico da obra”, acessível numa primeira fase da compreensão, enquanto “sentido” envolveria os
valores individuais em interação com valores coletivos, ou seja, seria uma compreensão superior para a
qual Bakhtin resgata os conceitos de juízo de valor, sujeito e fraternidade12.
É preciso que se tenha coragem de restaurar o sujeito, na figura do autor e do leitor/receptor do
discurso, o que pode ser embaraçoso para quem já tinha considerado a morte dessas instâncias desde a
sentença decretada pelo estruturalismo francês; é isso o que faz Bakhtin ao longo de sua obra. É verdade
que o autor cria uma imagem de si mesmo a partir da obra; essa imagem pode diferir muito do autor
real. No entanto, Bakhtin dedica-se a resgatar esse autor real como um ideólogo, pois ele não é apenas
um ponto em uma estrutura impessoal; é o sujeito quem traça as relações textuais13.
Bakhtin expõe o drama da palavra que cai no vazio, que é bem diferente do silêncio, pois este pode
ser pleno de compreensão. Para a palavra, nada é mais terrível que a falta de resposta14, diz ele. Sua
natureza é dialógica, portanto ninguém escreve para não ser lido, nenhum discurso é produzido para
não ser ouvido e compreendido; isso vale até mesmo para o discurso dos loucos, que têm ouvintes ima-
ginários - suas consciências multifacetadas. A palavra, então, busca uma compreensão responsiva, que
pode ser imediata - o caso da palavra falada - ou pode ser uma compreensão distanciada do tempo de
sua produção, como a palavra escrita.
Há um destinatário imediato, percebido com maior ou menor consciência, que é o segundo elemento
no eixo produção - recepção. No caso de uma obra literária, esse destinatário é aquilo que o escritor
imagina como sendo o seu público. No caso de um discurso falado, ele pode ser um auditório atento,
por exemplo.
Há, porém, um superdestinatário, o terceiro vértice do discurso, que pode estar em um tempo histó-
rico afastado, diz Bakhtin em “O problema do texto”, ao considerar a produtividade da recepção futura
do discurso verbal15. Esse superdestinatário pode ser uma abstração, como a pessoa amada ausente,
Deus, “a crítica” como entidade indefinida, e pode ser ainda o julgamento da posteridade – os desejados
“leitores do futuro”. As relações e interações dialógicas feitas por esse superdestinatário geralmente
fogem ao controle do autor, e não dão espaço, pela impossibilidade, para uma réplica. O superdestinatário
“faz o texto falar” muitas vezes até o que não queria, apossa-se dele, constrói um outro texto a partir
de sua compreensão baseada em elementos que não estavam disponíveis no momento da produção do
texto. Como exemplo, um crítico pode apontar “racismo” ou “conservadorismo” em um texto no qual
esses valores não tinham o conceito que têm no presente.

9 ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2000. Especialmente pp. 62-72.
10 BAKHTIN, M. Apontamentos 1970-1971. In: Estética da criação verbal. Op. cit., p. 382
11 BAKHTIN, M. Ibidem, p. 382
12 Cf. especialmente página 409 de “Observações sobre a epistemologia das ciências humanas”.
13 BAKHTIN, M. O problema do texto. Op. cit., pp. 344-345
14 BAHTIN, M. O problema do texto, p. 356.
15 BAKHTIN, M. O problema do texto, p. 356, e [Os estudos literários hoje], Op. cit., Pp.364-367.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 302


A compreensão responsiva do superdestinatário será normalmente diferente da compreensão do
destinatário imediato, mas é para este que o texto é produzido. O autor não ignora esse processo, mas
não tem como produzir para o leitor ou o crítico literário de outras gerações, para um “julgamento da
história”; não tem, enfim, como preferir ser ignorado ou hostilizado por seus contemporâneos, tendo em
vista uma recepção mais favorável, uma compreensão mais plena por parte de destinatários distanciados.
Se isso muitas vezes acontece, é a despeito da vontade do autor de ser compreendido por sua época
- ele não poderia confiar, se assegurar de uma recepção futura, pois simplesmente ela é imprevisível.
Mas, apesar disso, freqüentemente encontramos no texto algumas marcas destinadas a esse super-
destinatário - trata-se de uma aposta numa possível recepção. Para Mikhail Bakhtin, como as grandes
obras da literatura são fruto de uma longa gestação cultural através dos séculos, essa ruptura das fron-
teiras de seu tempo é pressuposta pela própria obra, que oferece a seus leitores do futuro fenômenos
de sentido “que podem existir de uma forma latente, potencial, e revelar-se somente num contexto de
sentido que lhes favoreça a descoberta, na cultura das épocas posteriores”16.
Há os autores visionários, que escrevem sempre fora de seu tempo, os incompreendidos da história,
descobertos séculos depois pela crítica. Poderíamos citar Gregório de Matos, Sousândrade e mesmo Au-
gusto dos Anjos, com todo o poder de choque de suas imagens, cuja melhor recepção se deu logo após o
Modernismo se estabelecer no Brasil. Mas esses autores certamente não escolheram morrer na miséria,
sem o reconhecimento de seus pares, e trocariam provavelmente toda a glória futura por uma resposta
favorável de seus destinatários imediatos, os tão desejados leitores contemporâneos. Toda palavra pede
uma resposta; é da natureza humana querer ser compreendido, enfim, obter aprovação.
Referências
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Comunicação verbal. Tradução de Maria Ermantina G. Gomes Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. (University of Texas Press Slavic Series, n.8) Translated by
Vern W. McGee. Ed. by Caryl Emerson and Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 1986.
BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. (University of Texas Press Slavic Series, n. 10). Ed. by Michael
Holquist and Vadin Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1993.
BAKHTIN, M. M. The dialogic Imagination. (University of Texas Slavic Series, n. 1). Translated by Caryl Emerson and
Michael Holquist. Ed. by Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 1981.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. (Coleção Estudos). São Paulo: Perspec-
tiva, 2000.

16 BAKHTIN, Mikhail. [Os estudos literários hoje], pp. 364-365.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 303


Textos chave:
1- “Os gêneros do discurso”. In: BAKHTIN, M. Estética da Comunicação verbal.
São Paulo: Martins Fontes, 1992. Em inglês, “The problem of Speech Genres”. In:
BAKHTIN. M. Speech Genres and Other Late Essays. Austin: University of Texas
Press, 1986.
2- “O problema do texto”. In: BAKHTIN, M. Estética da Comunicação verbal.
Em inglês, “The Problem of the Text in Linguistics, Philology, and the Human Scien-
ces: an Experiment in Philosophical Analysis. In: BAKHTIN, M. Speech Genres and
Other Late Essays.
3- “[Os estudos literários hoje]”. In: BAKHTIN, M. Estética da comunicação
verbal. Em inglês: “Response to a question from the Novy Mir Editorial Staff”. In:
BAKHTIN, M. Speech Genres and Other Late Essays.
4- “Apontamentos 1970-1971”. In:BAKHTIN, M. Estética da Comunicação
verbal. Em inglês, “From Notes Made in 1970-71”. In: BAKHTIN, M. Speech Genres
and Other Late Essays.
5- “Observações sobre a epistemologia das ciências humanas”. In. BAKHTIN,
M. Estética da comunicação verbal. Em inglês, “Toward a Methodology for the
Human Sciences”. In: BAKHTIN, M. Speech Genres and Other Late Essays.
Nomes chave: MIKHAIL BAKHTIN - UMBERTO ECO
Palavras chave: Leitura – recepção – leitor – ouvinte – interpretação - exotopia
– tonalidades dialógicas – grande temporalidade – compreensão responsiva ativa
– superdestinatário - sentido – dialogismo – gêneros do discurso – texto
Biografia resumida: MAGDA MEDEIROS FURTADO (Rio de Janeiro, 1966, - )
é Doutora em Teoria Literária pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janei-
ro), tendo defendido a tese Jogo Literário e discurso social: Uma teoria da
polêmica em Mikhail Bakhtin em 1998. Atualmente leciona no ensino médio
da Unidade Humaitá do Colégio Pedro II (Instituição Federal de Ensino) no Rio de
Janeiro, Brasil. Tem diversos artigos publicados em anais de congressos sobre
Teoria Literária, Literatura Brasileira e Educação.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 304


Marcas de subjetividade e intersubjetividade na
linguagem jornalística falada

Paulo de Tarso Galembeck.

Universidade Estadual de Londrina – Centro de Letras e Ciências Humanas

Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas.

Rua Professor Samuel Moura, 710 – Apto. 602 – CEP 86061-060 – Londrina-PR.

Telefone: (43) 3328-8515 – e-mail: deptlet@uel.br

Resumo I
Este texto discute o papel das marcas de subjetividade e intersubjetividade na linguagem jornalística
falada (programas de entrevistas e debates), a partir de uma série de variáveis (tipo de marca, e quem
a produz; a quem ela se dirige; grau de envolvimento; relação com o desenvolvimento tópico; valor de
atenuação). O trabalho se baseia nos conceitos de sujeito (aqui considerado em sua identidade dupla)
e de dialogismo (o fato de a linguagem pressupor um interlocutor).
Resumo II
Ce texte aborde le rôle des marques de subjectivité e intersubjectivité dans le langage journalistique
parlé (programmes d’interviews et e débats), d’aprè une série de variables (le tipe de la marque; ce qui
la produit; à qui elle se tourne; la proximité entre les interlocuteurs; le rapport avec le developpement
du topique; valeur d’alternation). Le travail se fonde sur lês notions de sujet (ici considéré à partir de sa
douple identité) et de dialogisme (le fait du langage présuposer un interlocuteur).

0. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho discute a presença das marcas de subjetividade e intersubjetividade na linguagem jor-
nalística falada (programas de entrevistas e debates), com a finalidade de evidenciar o papel por elas
exercido na construção dos referidos eventos comunicativos. Enfatiza-se, sobretudo, a função dessas
marcas no estabelecimento e manutenção das relações entre os participantes do diálogo e na definição
dos papéis dos mesmos no processo de negociação dialógica. Adota-se, como hipótese de trabalho, a
noção de que todo sujeito constitui uma entidade dúplice, já que o “eu” só pode instituir-se como tal
em face do “outro”. A noção de sujeito é reversível e transitiva, e disso decorre o caráter dialógico da
linguagem e a existência de um componente interpessoal nos textos, sobretudo nos textos falados.
De acordo com essa perspectiva, incluem-se entre as marcas de subjetividade e intersubjetividade
todos os elementos que indicam, de modo direto, a presença dos interlocutores no diálogo: pronomes e
formas verbais de primeira e segunda pessoas, marcadores conversacionais de valor fático, lexicalizados
(certo?,né?) ou não (ahn ahn, uhn).
O trabalho compõe-se de duas partes. Na primeira, dedicada à fundamentação teórica, expõe-se ini-
cialmente o conceito de sujeito, e, em seguida, discute-se o caráter dialógico da linguagem. Encerram
essa primeira parte considerações referentes ao componente dialógico ou interpessoal do discurso falado.
A segunda parte é dedicada ao exame das marcas de subjetividade e intersubjetividade de acordo com
uma série de variáveis.
O córpus do trabalho é constituído por programas das séries “Roda Viva” e “Brasil pensa”, exibidos
semanalmente pela TV Cultura, emissora pública do estado de São Paulo. Os programas que constituem
o córpus são citados a seguir:
“Roda-viva”:
· RV-1: entrevista com o senador Pedro Simon.
· RV-2: entrevista com a filósofa Marilena Chauí.
“Brasil pensa”:
· BP-1: debate acerca de variação climática e o fenômeno “El Niño”.
· BP-2: debate acerca de defesa e segurança global.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 305


1. FUNDAMENTAÇÃO

1.1 A Noção de Sujeito


Morin (1996, p. 45 e ss.) define sujeito como o indivíduo, considerado em duas dimensões: a autono-
mia e a dependência. Com efeito, o sujeito é autônomo, e tem consciência de que é um indivíduo único,
dotado de identidade própria. Mas esse indivíduo autônomo está ciente, ademais, de que depende de
outros seres (da mesma ou de outra espécie) para construir a própria individualidade.
Associado à noção de sujeito, surge o conceito de identidade, ou seja, a consciência que o indivíduo
tem de si mesmo, de suas particularidades, de que ele permanece o mesmo, ainda que se leve em conta
a personagem do tempo. Contudo, a noção de identidade também é dupla, pois o indivíduo só a adquire
a partir da interação com os outros seres.
Os conceitos de sujeito e identidade têm, pois, dupla face: para a explicitação de ambos é necessário
considerar não só o indivíduo em si, mas igualmente os outros seres, com os quais se mantêm relações
de dependência.
Por isso mesmo, a noção de sujeito baseia-se em dois princípios, inseparáveis e associados, o prin-
cípio da exclusão e o da inclusão.
O princípio da exclusão baseia-se na instituição do “eu” como elemento único e central: é a consciên-
cia da individualidade e da subjetividade. Mas a exclusão pressupõe a inclusão, pois o “eu” só existe em
função do outro com o qual mantemos relações (“você”) e de outros seres com os quais nos integramos
(“nós”). O “eu” isolado não existe, porque o sujeito e o outro se complementam e é nessa complementa-
ridade que o ser humano pode exercitar a sua liberdade, como tal entendida a capacidade de escolha.
1.2 Dialogismo: o “Eu” e o Outro
A idéia de que o “eu” e o outro são instituídos a partir da interação pela linguagem já havia sido
formulada por Bakhtin (1986, p. 32 e ss.). Esse autor coloca o princípio dialógico como pilar de sua con-
cepção de linguagem e, pode-se admitir, também, de sociedade e do mundo. O dialogismo – segundo
o mesmo autor – é a condição para que o discurso tenha um sentido pleno e, igualmente, para que por
meio dele se possa evidenciar a relação existente entre linguagem e vida.
Como assinala Barros (1999, p. 2), “Bakhtin concebe o dialogismo como o princípio constitutivo da
linguagem. Examina-se, em primeiro lugar, o dialogismo discursivo, desdobrando em dois aspectos: o
da interação verbal entre o enunciador e o enunciatário do texto, o da intertextualidade no interior do
discurso”. Neste texto, enfoca-se o primeiro desses aspectos, qual seja, a presença dos participantes do
ato comunicativo no estabelecimento do sentido desse ato.
O conceito de dialogismo resulta da interação verbal que o enunciador e o enunciatário estabelecem
entre si no espaço criado pelo texto. Ora, esse conceito faz com que o sujeito perca o papel central (e
mesmo exclusivo) na construção do texto. Ao contrário, a noção de sujeito torna-se múltipla, pois incor-
pora outras vozes, ou pelo menos a voz do outro. Aliás, em diversos trechos do capítulo primeiro da obra
citada, Bakhtin enfatiza dois pontos que merecem ser salientados: o papel do outro na determinação do
sentido e o fato de que nenhuma palavra é exclusivamente nossa, já que, nos vários enunciados, nota-
se a presença de outras vozes que não a do próprio sujeito.
Em forma de síntese, pode-se afirmar que, para Bakhtin, a natureza dialógica constitui uma caracte-
rística intrínseca e essencial da linguagem: o “eu” pressupõe o “outro”, ambos estão inseparavelmente
ligados e interagem pela linguagem. O sujeito discursivo é, portanto, múltiplo.
As idéias de Bakhtin coincidem com a postulação de Morin, já que ambos concebem o sujeito como um
ser múltiplo, que interage e se complementa com o outro. Deve-se ressalvar, porém, que Bakhtin, embasa-
do nas idéias do materialismo histórico-dialético, considera o sujeito a partir de uma perspectiva histórica
e social. Essa característica, aliás, é uma resultante do próprio caráter dialógico da linguagem.
1.3 Língua Falada e Dialogismo

1.3.1 Tendências no Estudo da Conversação


Barros (1999, p. 3) menciona o fato de que a relação dialógica (“eu” e “você”) tem sido tratada por
várias disciplinas lingüísticas: análise da conversação, semiótica narrativa e discursiva, análise do discurso,
pragmática, teoria da enunciação. Eggins e Slade (1997, p. 23 e ss.), por sua vez, citam as principais
correntes ou abordagens da análise de diálogos espontâneos: perspectivas de base sociológica e etno-
metodológica (análise da conversação); abordagens sociolingüísticas (etnografia da fala, com ênfase no
contexto; sociolingüística interacional, baseada da contextualização do discurso); corrente lógico-filosófica
(teoria dos atos de fala: a conversação como uma seqüência de atos de fala; pragmática: máximas do
comportamento conversacional); correntes estrutural-funcionais (a escola de Birmingham: especificação
da estrutura da troca conversacional; a lingüística sistêmica funcional: interpretação funcional e semântica
da conversação; análise crítica do discurso).
Em todas essas tendências manifesta-se, com maior ou menor ênfase, o princípio do dialogismo. Isso,
aliás, é óbvio, já que na interação face-a-face o reconhecimento da presença do outro e o desdobramento
do sujeito se tornam mais marcantes. O “outro” é um ser concreto e, como tal, o discurso falado traz
marcas específicas da sua presença.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 306


Este trabalho segue uma das vertentes das abordagens estruturais-funcionais, a lingüística sistêmica
funcional. As razoes dessa escolha serão explicitadas na seqüência do trabalho.
1.3.2 A Lingüística Sistêmica Funcional
As correntes incluídas na rubrica das abordagens sistêmico-funcionais (a escola de Birmingham e
a lingüística sistêmica funcional) têm em comum o fato de descreverem a conversação como um nível
autônomo, altamente organizado (Taylor e Cameron, 1987, p. 5, citados por Eggins e Slade, op. cit., p.
43). Nos trabalhos dessa linha teórica, busca-se compreender as características da estrutura da con-
versação e, também, relacionar essa estrutura mais ampla com outras unidades, níveis e estruturas da
linguagem.
A opção pela vertente sistêmico-funcional decorre do fato de ela ser, dentre as várias correntes citadas,
aquela em que o caráter dialógico da linguagem e a presença são mais marcantes. Essa característica
advém de duas postulações dessa vertente, as quais são mencionadas a seguir: o reconhecimento de
que há diferentes tipos de significado (entre eles, o interpessoal) e o estabelecimento de diferentes níveis
de significação (gramatical, semântico, discursivo, referente ao gênero textual).
Eggins e Slade (op. cit., p. 48 e ss.) mencionam mais três espécies ou camadas de significação: a
ideacional, a interpessoal, a textual. Na primeira, encaixam-se os significados acerca do mundo e as
diferentes representações da realidade; a segunda consiste na negociação acerca dos papéis e relações
sociais (status, contato, intimidade, filiação); o significado textual relaciona-se com a própria mensagem
(coesão, ênfase, conhecimentos prévios).
Essas três camadas são simultâneas e interdependentes, já que podem ser encontradas em unidades
lingüísticas de diferentes níveis: palavra, sintagma, frase, texto. Além disso, unifica-as o fato de elas
serem, simultaneamente, funcionais (pois em todas se consideram a conversação como uma atividade
com propósito e finalidade definidos) e semânticas (todas partem da noção de que a conversação é um
processo de produzir significados). Esses dois traços, aliás, encontram-se na formulação de Halliday
(1973, p. 34), segundo o qual a linguagem é como é devido àquilo que tem de fazer, ou seja, a lingua-
gem é simultaneamente um meio de interação social e de criar significados. Halliday ainda acrescenta
que essas três camadas estão representadas na linguagem porque são complementares, ou seja, cada
qual pressupõe os outros dois. Pode-se citar alguns exemplos: o partilhamento das idéias e conceitos
(ideacional) está associado à negociação de papéis, assim como à relação entre os interlocutores do
tema associa-se aos processos de estruturação do texto (componente textual).
Halliday, no mesmo texto já citado, fala em três metafunções, que correspondem aos três tipos de
significado já expostos e constituem elementos reguladores e organizadores da atividade lingüística. O
citado autor, ademais, revela preocupações com os aspectos cognitivos e enumera as três metafunções
que organizam o contexto. Essas três outras metafunções (denominadas também “registros”) corres-
pondem às camadas de significação:

Metafunção da linguagem Metafunção do contexto


- ideacional - campo
- textual - modo
- interpessoal - teor

O campo consiste no foco que incide sobre o assunto e o delimita, o modo relaciona-se com os conhe-
cimentos prévios partilhados, e o teor refere-se aos papéis e relações sociais. Cada uma das variáveis
de registro (metafunções contextuais) é realizada, no plano da expressão, por uma das metafunções
que organizam a linguagem. O que foi dito pode ser enunciado de outra forma: pode-se considerar as
metafunções contextuais como a dimensão mais ampla de certas situações que possuem conseqüências
predizíveis no plano da estruturação do texto e do enunciado.
Cabe reiterar que essas três camadas são interdependentes e complementares. Desse modo, as marcas
de subjetividade e intersubjetividade não se situam apenas na camada interpessoal e no teor (papéis e
relações sociais). Ao contrário, as marcas de interpessoalidade estão presentes na estruturação do texto,
na relação do assunto e do ponto de vista em que ele vai tratado, nos procedimentos de contextualização
e saliência, na escolha de itens lexicais e na seleção gramatical.
Acrescente-se ainda, que a noção de interpessoalidade é múltipla. Poyton (1985) e Martin (no pre-
lo), ambos citados por Eggins e Slade (op. cit., p. 52 e ss.), mencionam quatro dimensões da variável
teor:
a) as relações de status, que podem ser definidas previamente (professor/aluno, por exemplo), ou,
então, estabelecidas durante o processo de interação;
b) o envolvimento afetivo: manipulação de sentimentos (positivos ou negativos) em relação ao
interlocutor;
c) o contato: diz respeito à familiaridade entre os interlocutores e a freqüência com que as relações
se estabelecem. O contato (e também o envolvimento afetivo) depende do gênero textual: há gêneros
que favorecem o distanciamento (situações com papéis definidos: aulas, interrogatórios, por exemplo),

Proceedings XI International Bakhtin Conference 307


assim como há gêneros que propiciam um envolvimento mais acentuado (debates, discussões);
d) orientação para a filiação (família, escola, local de trabalho), que contribui decisivamente para o
estabelecimento da identidade social e da imagem recíproca dos interlocutores. A filiação pode ser vista
como algo positivo, que fornece o contato (por exemplo, a participação no mesmo grupo religioso) ou
como um dado negativo (por exemplo, certos grupos como os adolescentes rebeldes, os skinheads).
Este trabalho vai enfocar sobretudo a dimensão do contato e das relações interpessoais, pois este
é o papel mais relevante das marcas de primeira e segunda pessoas. São elas, aliás, que indicam de
modo direto à presença dos interlocutores e o fato de o discurso estar voltado para o estabelecimento
de relações interpessoais.
Este trabalho centra-se no componente interpessoal (teor), pois os pronomes e desinências da pri-
meira e segunda pessoas constituem as marcas mais evidentes das relações dialógicas. A eles, com
efeito, cabe a função de instituir os papéis dos participantes da interação verbal ( o “eu” e o outro, ou
seja, o falante e ouvinte) como marcas específicas da presença dos interlocutores. São, assim, marcas
intrínsecas de subjetividade e intersubjetividade, característica que se torna mais nítida na conversação
(simétrica) já que nela há uma constante alternância entre o “eu” e o outro. Além disso, como assinalam
Eggins e Slade (op. cit., p. 49 e ss.), a conversação é “governada” antes pelos significados interpessoais
que pelos componentes ideacionais ou textuais: a tarefa primordial da conversação é a negociação da
identidade e das relações sociais. Em verdade, o componente ideacional (assuntos tratados) constitui
apenas o pano de fundo para o estabelecimento das relações entre os interactantes.
2. ANÁLISE DAS VARIÁVEIS
As marcas de subjetividade serão estudadas a partir de seis variáveis: tipo de marca; interlocutor
que a produz; a quem elas se dirigem; grau de envolvimento entre os interlocutores; relação com o
desenvolvimento tópico; valor de atenuação das marcas.
2.1 Tipo de Marca
As marcas de subjetividade e intersubjetividade são classificadas de acordo com as subcategorizações
que constam da tabela a seguir:

Tabela I – Tipo de marca


RV-1 RV-2 BP-1 BP-2
N % N % N % N %
L 32 (20) 36 (25) 36 (22) 32 (20) 25 (14) 23 (12) 31 (23) 29 (21)
P 11 13 10 05 18 16 14 13
N 05 06 05 49 04 03 06 06
C 40 45 60 54 64 58 56 53
L – Marcadores conversacionais lexicais (certo?, entende?, sabe?).
P – Marcadores conversacionais proposicionais (eu acho que, você vê).
N – Marcadores conversacionais não-lexicalizados (ahn, uhn).
C – Expressões não-convencionalizadas como marcadores conversacionais.

Os números entre parênteses no item L (marcadores lexicais) indicam a quantidade desses marca-
dores que têm marcas de pessoa (sabe?, entende?).
A maior parte dos indicadores de interpessoalidade é representada por expressões não-convenciona-
lizadas que possuem marcas específicas de pessoa (verbo e pronomes).
Essa característica é particularmente nítida nos fragmentos em que o informante manifesta opiniões
ou pontos de vista, ou, então, relata suas experiências pessoais:
(1) (Os informantes discutem a capacidade de intervenção dos Estados Unidos).
Loc.: General... eu acho que é importante termos presente que... os Estados Unidos
não têm como pauta intervir... em todo e qualquer lugar do mundo... nós vemos... que
eles têm essa capacidade... mas nem sempre... a exercem... de maneira que não creio que
devamos centrar a análise nesse ponto... certo? (BP-2)

O componente interpessoal tem importância particular nos textos conversacionais, pois neles tende
a existir uma relação simétrica entre os interlocutores. Por isso mesmo, as marcas de pessoalidade
constituem um traço intrínseco dessa modalidade de texto e, assim, não necessitam ser assinaladas por
expressões conversacionais e recorrentes, como é o caso dos marcadores conversacionais.
Verifica-se, ademais, que a maior parte dos marcadores conversacionais (lexicais e proposicionais)
que denotam subjetividade traz marcas específicas de pessoa. Aliás, nos marcadores proposicionais de
valor interpessoal, essas marcas constituem uma constante:

Proceedings XI International Bakhtin Conference 308


(2) (O locutor trata das mudanças na ordem internacional).
Loc.: vocês vêem que há... mudanças importantes na ordem internacional... acho que
a ordem internacional mudou... a partir de oitenta e nove... noventa... vejam que... não há
mais duas superpotências... estou certo disso (...) (BP-2)

No exemplo anterior, os marcadores proposicionais assinalados possuem marcas de pessoa. Aliás,


se for somado o total de indicadores de subjetividade que possuem essa marca, verifica-se que eles
representam a ampla maioria das ocorrências. Veja a soma das porcentagens desses marcadores nos
diferentes inquéritos: RV-1: 83%; RV-2: 83%; BP-1: 86%; BP-2: 86%.
Os marcadores lexicais que não possuem marcas de pessoa e aqueles representados por expressões
não-lexicalizadas foram incluídos entre as marcas de subjetividade por possuírem valor fático. Os pri-
meiros, geralmente, incluem-se entre os marcadores de busca de aprovação discursiva (né?), ou os de
confirmação ou assentimento.
(3) (...) o El Niño vocês podem interpretar... de uma maneira muito simples... pensando...
que nós temos uma enorme gigantesca piscina... certo? ... e que a água é quente éh:: ... de
um lado da piscina.. que é o lado da Indonésia... do Oceano Pacífico... sabe? ... e do lado...
de cá... a água é fria... certo? ... do lado do Equador... Peru... né? (BP-1)

Os marcadores lexicais que indicam confirmação ou assentimento figuram em textos inseridos:


(4) Loc. 1: eu fui religiosa... mas resolvi... o problema de Deus... da seguinte forma... eu
conheço Deus... mas não acredito nEle...
Loc. 2: certo...
Loc. 1: mas ainda assim acho que razão e fé não se excluem...
Loc. 2: exato... (RV-2)

As marcas que figuram em fragmentos de discurso direto ou reportado são pouco numerosas e apre-
sentam a particularidade de não se referirem aos interlocutores reais, mas a outras pessoas, cujas falas
são incorporadas ao discurso do intelocutor.
(5) Loc. 1: o episódio do Ricupero... me deixou muito triste... senti... porque ele é uma
pessoa muito pura...
Loc. 2: ahn ahn
Loc. 1: ele é sincero… ele admitiu a culpa… (RV-1)

2.2 Quem Produz a Marca de Subjetividade


As marcas de subjetividade são produzidas, em sua maior parte, por aquele que detém o termo. É o
que pode ser verificado no quadro a seguir:

Tabela II – Interlocutor que produz a marca de subjetividade


RV-1 RV-2 BP-1 BP-2
N % N % N % N %
F 82 93 90 81 94 82 89 85
O 04 05 15 14 10 08 10 10
R 02 02 06 05 11 10 06 05
F – Falante.
O – Ouvinte (falante ocasional: turnos inseridos).
R – Discurso reportado.

A maior parte das marcas de subjetividade e intersubjetividade é produzida pelo próprio falante. Esse
fato pode parecer óbvio, uma vez que o detentor do turno é responsável pela formulação dos enunciados
e pelo desenvolvimento do tópico. No entanto, dos dados acima pode ser extraída a seguinte conclusão:
as marcas de pessoalidade participam da construção do texto conversacional, ao lado do desenvolvi-
mento do tópico, dos procedimentos de contextualização e dos elementos coesivos. Cabe recordar, a
esse respeito, que no texto conversacional manifestam-se três componentes ou níveis de significação,
o ideacional, a interpessoal, o textual. As marcas de subjetividade e intersubjetividade associam-se na
produção do texto, ao desenvolvimento e partilhamento das idéias e conceitos e aos procedimentos de
coesão e estruturação textual.
As marcas produzidas pelo ouvinte correspondem geralmente a turnos inseridos, representados por
marcadores conversacionais que denotam concordância ou assentimento. É o que se verifica no exemplo
a seguir, no qual também estão assinaladas as marcas produzidas pelo falante:
(6) Loc. 1: (...) eu quero... nós/tamos no fim do “Brasil pensa”... ficou apenas uma questão

Proceedings XI International Bakhtin Conference 309


Carlos Nobre...
Loc. 2: pois não
Loc. 1: eu pediria que você explicasse... se o desmatamento da Amazônia... contra ou não
para para o clima... global... pra nós podermos concluir
Loc. 2: o clima da Amazônia seria diferente... mas... veja bem... acho um exagero... acho
que todos nós concordamos com isso... que o desmatamento da Amazônia... pudesse in-
terferir como clima global (...) (BP-1)

As marcas que figuram em fragmentos de discurso direto ou reportado são pouco numerosos e apre-
sentam a particularidade de não se referirem aos interlocutores reais, mas a outras pessoas, cujas falas
são incorporadas ao discurso do interlocutor.
(7) (O locutor alude ao episódio em que o ministro Ricupero teve uma declaração divulgada
indevidamente).
Loc.: o Ricupero admitiu a culpa... e::... disse “MEU Deus... por que fui... tão... vai-
doso... tão... soberbo... por que não agi de outro... modo”(...) (RV-1)

2.3 A quem se Dirigem as Marcas Produzidas pelo Falante


As marcas produzidas pelo falante podem ser autocentradas (primeira pessoa) ou heterocentradas
(segunda pessoa e marcadores de valor fático). Veja-se o exemplo a seguir, no qual figuram marcadores
de ambos os tipos:
(8) Loc. 1: (...) eu comecei a me interessar por filosofia... quando estava no colegial... no
Colégio Presidente Roosevelt... sabe?
Loc. 2: colégio estadual?
Loc. 1: sim... estadual... e fui aluna do professor Villalobos... que nos introduziu... introduziu
a minha turma... nos diversos campos da filosofia...
Loc. 2: sim...
Loc. 1: e terminando o colegial... resolvi prestar vestibular... pra filosofia... e continuo me
dedicando a ela (...) (RV-2)

A informante expõe, em primeira pessoa, como se deu o seu contato com a filosofia. Trata-se, pois,
de um discurso autocentrado e nele predominam as marcas de primeira pessoa (sublinhadas com um
traço); mesmo assim, são nítidas as marcas de segunda pessoa e os fáticos (assinalados por dois traços).
Isso significa que a presença do outro é muito nítida, mesmo no discurso autocentrado: ao falar de si,
o locutor não deixa de reconhecer a presença explícita do outro, ou seja, ao instituir-se como sujeito e
delimitar sua individualidade, o falante reconhece a presença do outro. O sujeito é, pois, dúplice, bifacial,
e seu discurso deve equilibrar a presença de si mesmo e do outro. Nota-se, ainda, que as ocorrências
com o pronome você – no exemplo citado – têm valor de indeterminação, mas foram incluídos entre os
marcadores voltados para o ouvinte, por terem um nítido valor fático.
Em fragmentos centrados não no sujeito, mas no desenvolvimento de um assunto, predominam as
marcas voltadas para o ouvinte.
(9) (O informante trata das perseguições durante o regime militar).
Loc.: (...) então você pega... o que aconteceu com o Brasil... você vê cassações...
torturas... perseguições... mortes... mas se você pega o Rio Grande... você vê que as coisas
lá... são... devem ser... multiplicadas... por DEZ... porque lá... as coisas foram... bem mais
graves... você lembra que... era o único Estado... em que a oposição... tinha... maioria na
Assembléia... então tiveram... de cassar deputados... pro gover/governo... ter maioria...
você sabe... o governo... a censura não permitia... a divulgação do que ocorria por lá...
então você vê que a situação lá foi bem... complicada (RV-1)

O quadro a seguir expõe a distribuição das marcas auto e heterocentradas:


Tabela III – A quem estão voltadas as marcas de subjetividade e intersubjetividade
produzidas pelo falante.
RV-1 RV-2 BP-1 BP-2
N % N % N % N %
A 54 66 52 57 30 32 31 35
H 28 34 38 47 64 68 58 65
A – Marcas autocentradas.
H – Marcas heterocentradas.

2.4 Grau de Envolvimento


Consideram-se, nesta variável, dois graus de envolvimento: o maior, caracterizado pela presença de

Proceedings XI International Bakhtin Conference 310


marcas de primeira e segunda pessoas, e o menor, no qual essas marcas não se manifestam. Veja-se
a tabela a seguir:
Tabela IV – Grau de envolvimento entre os interlocutores.
RV-1 RV-2 BP-1 BP-2
N % N % N % N %
M 65 73 67 60 60 52 68 65
E 23 27 44 40 55 48 37 35
M – Maior envolvimento.
E – Menor envolvimento.
Verifica-se o predomínio das marcas que trazem a indicação direta da presença dos interlocutores
(pronomes e desinências verbais de primeira e segunda pessoas). Esse fato ocorre em todos os inquéri-
tos, mas é menos nítido em BP-1, já o referido programa tem um caráter expositivo, já que o tema nele
tratado (variação climática; o fenômeno “El Niño”) não suscitou debates ou controvérsias.
O predomínio das marcas que denotam maior envolvimento entre os interlocutores é devido ao fato
de serem elas as que indicam, de modo direto, a participação dos interlocutores no processo de inte-
ração verbal. Desse modo, são elas as que mais se prestam a indicar os papéis dos interlocutores na
construção do texto conversacional, nas relações que entre eles se estabelecem e se desenvolvem e no
espaço comum que cria a partir dessa relação.
2.5 Relação como Desenvolvimento Tópico
A maior parte das marcas de subjetividade e intersubjetividade não está ligada ao desenvolvimento
do tópico ou assunto. É o que pode ser verificado por meio da tabela a seguir:
Tabela V – Relação com o desenvolvimento tópico.
RV-1 RV-2 BP-1 BP-2
N % N % N % N %
T 14 16 21 19 21 18 19 18
N 74 84 90 91 94 82 86 82
T – Ligada ao elemento tópico (elemento coesivo).
N – Não ligado ao desenvolvimento tópico.

As marcas de interpessoalidade que mantêm relações com o desenvolvimento tópico, são representadas
por marcadores proposicionais de opinião, geralmente construídos com verbos de valor cognitivo: acho
que, creio que, você sabe que e assemelhados. Considera-se que essas expressões têm valor coesivo,
porque elas ampliam o tema, geralmente mediante a introdução de uma explicação:
(10) (O informante trata do conceito de segurança global).
Loc.: (...) em primeiro lugar... éh::... creio que devemos considerar a abrangência desse
conceito... ou dessa expressão... segurança global... nós concordamos que... não podemos
ficar... na ótica vamos dizer mais restrita... do emprego dos meios de defesa... particular-
mente das Forças Armadas... acho que qualquer doutrina militar deva... incorporar... esse
fato (BP-2)

Os marcadores de opinião (mesmo os de caráter objetivo, como creio que, estou certo que) possuem
valor de subjetividade acentuado, já que assinalam, de modo inequívoco, a presença do interlocutor
no processo interacional. Essa dupla destinação (com o assunto e com sujeito) constitui uma evidencia
positiva do ser essa noção binária e transitiva, pois essa marca assinala a presença do sujeito em face
do interlocutor.
2.6 Valor de Atenuação
Os procedimentos de atenuação são utilizados para diminuir a força ilocutória do enunciado e, desse
modo, figuram especialmente nas situações em que o falante se expõe de forma direta: pedidos, aten-
dimento de pedidos ou recusa em fazê-lo, perguntas diretas ou indiretas, respostas, manifestação de
opinião (Galembeck: 1997, p. 136). No córpus deste trabalho, os marcadores de atenuação com marcas
de primeira e segunda pessoas são representados sobretudo por expressões eu acho que e assemelha-
das:
(11) (O entrevistado discorre acerca do papel da oposição no Brasil).
Loc.: (...) a oposição... todos concordam que ela é essencial... ao regime democrático...
não sei se há oposição... se há uma democracia... verdadeira... acho que a oposição deveria
ser o espelho... do governo... mas acho que não um espelho... que só dis/distorce... a:: a
imagem (...) (RV-1)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 311


Com os marcadores acho que e eu não sei, a informante manifesta dúvida e incerteza, já que não
está plenamente convicta da força dos seus argumentos. Com essa manifestação, ela se resguarda de
possíveis questionamentos e objeções.
Pela tabela a seguir, fica evidenciado que a maioria das marcas de subjetividade e intersubjetividade
não é empregada com valor de atenuação ou preservação da imagem do falante.
Tabela VI – Valor de atenuação
RV-1 RV-2 BP-1 BP-2
N % N % N % N %
S 14 16 21 19 20 17 18 17
N 74 84 90 81 95 83 86 83
S – Com valor de atenuação.
N – Sem valor de atenuação.

Verifica-se que a maior parte da marcas de subjetividade e intersubjetividade não é empregada com
valor de atenuação. Isso significa que a atenuação é apenas uma das funções dos indicadores de inter-
pessoalidade. Trata-se, em verdade, de uma função derivada, que se associa à função mais importante,
que é a indicação da presença dos interlocutores. Mencione-se, ainda, que nem todos os marcadores de
atenuação possuem marcas de primeira e segunda pessoas: na realidade, esse fato só ocorre com um
número limitado de atenuadores (os marcadores de opiniões: eu acho, para mim, na minha opinião, e
assemelhados; marcadores de dúvida: se não me engano).
A atenuação não se manifesta nem mesmo nos marcadores conversacionais que denotam o envol-
vimento do ouvinte.
(12) Loc.: você vê que... que não é possível... conciliar administração... vida polí-
tica... e::... vida acadêmica... pesquisa... e:: eu nunca pretendi fazer isso (...) (RV-2)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enfatizou-se, neste trabalho, que o sujeito da enunciação é sempre um intersujeito, já que o indivíduo
que se institui como falante acaba elegendo, do mesmo modo, um determinado paralelo conversacio-
nal. Esse fato decorre do caráter dialógico da linguagem: qualquer ato de linguagem (escrita ou falada)
pressupõe um interlocutor. Aliás, é pelo diálogo, pela relação com o interlocutor, que o ser humano se
institui como ser histórico, situado em dado contexto social. Por isso mesmo, as teorias que analisam a
conversação (em particular as abordagens sistêmico-funcionais) ressaltam o componente significativo
de natureza interpessoal.
O caráter dialógico da linguagem e o componente interpessoal tornam-se patentes ao examinar-se
o papel exercido pelas marcas de subjetividade e intersubjetividade. Com efeito, a análise das variáveis
revela que as marcas indicativas da presença e da participação dos interlocutores possuem certas carac-
terísticas evidenciadoras do papel das mesmas no estabelecimento da significação interpessoal: a maioria
dos indicadores de subjetividade apresenta marcas de segunda pessoa; as marcas podem ser auto ou
heterocentradas, ou seja, estão voltadas para o falante ou o ouvinte, embora as últimas predominem,
o que evidencia o caráter dialógico da linguagem. Verifica-se, ademais, que as marcas de subjetividade
indicam um alto grau de envolvimento entre os interlocutores (já que possuem marcas de pessoa); não
estão ligados ao desenvolvimento tópico nem possuem valor de atenuação.
Deve ficar claro que as marcas que foram focalizadas não são os únicos procedimentos a assinala-
rem a presença dos interlocutores. Há outros procedimentos de construção do texto falado que também
marcam a presença dos interlocutores: processos de reformulação (paráfrase e correção), parênteses
de esclarecimentos, procedimentos de contextualização, entre outros. Nenhum deles, porém, assinala
de forma clara e direta a presença dos interlocutores como as marcas estudadas neste trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de (1999). Dialogismo, polifonia e enunciação. In: __________ e FIORIN, José Luiz (orgs.).
Dialogismo, polifonia e enunciação: em torno de Bakhtin. São Paulo.
BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov) (1986). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Problemas fundamentais do método
sociológico nas ciências da linguagem. 3a ed. Trad. de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. São
Paulo: Hucitec.
CASTILHO, Ataliba Teixeira de e PRETI, Dino (orgs.) (1997). A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. Mate-
riais para o seu estudo, v. III. Diálogo entre dois informantes. São Paulo: T. A. Queiroz/FAPESP.
EGGINS, Suzanne e SLADE, Diana (1997). Analysing casual conversation. London and Washington: Cassel.
GALEMBECK, Paulo de Tarso (1997). Preservação da face e manifestacao de opiniões: um caso de jogo duplo. In:
PRETI, Dino (org.). O discurso oral culto. São Paulo: Humanitas.
HALLIDAY, Michael A. K. (1973). Explorations in the functions of language. London: Longman.
MORIN, Edgar (1996). A noção de sujeito. In: SCHNITMAN, Dora Fried (org.). Novos paradigmas, culturas e subjeti-
vidade. Trad. de Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 312


Textos-chaves/Autores-chave:
BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov) (1986). Marxismo e filosofia da linguagem. Pro-
blemas fundamentais do método sociológico nas ciências da linguagem. 3. ed. Trad.
de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. São Paulo, Hucitec.
HALLIDAY, Michael A. K. (1973). Explorations in the functions of language.
London: Longman.
MORIN, Edgar (1996). A noção de sujeito. In: SCHNITMAN, Dora Fried (org.).
Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Trad. de Jussara Haubert Rodrigues.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Palavras-chave: Discurso; Interação; Sujeito; Dialogismo.
Bibliografia resumida: Paulo de Tarso Galembeck é mestre em Língua Portu-
guesa pela PUC/SP e doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP. Foi professor
de Língua Portuguesa na USP (1984-1988) e na UNESP/Araraquara (1988-2000)
e atualmente ministra aulas dessa mesma disciplina na Universidade Estadual de
Londrina. Pesquisador de Língua Falada e Análise da Conversação, tem cerca de
quarenta trabalhos publicados em coletâneas de textos e publicações especiali-
zadas.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 313


Stephen Dedalus relê o fim do Marxismo

Caetano Waldrigues Galindo

Professor da Universidade Federal do Paraná,

doutorando na Universidade de São Paulo

cwg@netpar.com.br

Resumo
Este trabalho pretende rediscutir o direcionamento do texto sobre a reprodução do discurso do outro,
que fecha o Marxismo e filosofia da linguagem, de Volochínov, através de uma aproximação dos pro-
cedimentos ilustrados pela obra de James Joyce, com especial atenção à abertura do Ulysses. Partindo
do princípio de que arte e crítica são formulações de validade heurística comparável, o texto pretende
demonstrar que a teoria do romance embutida nas obras de Joyce, já publicadas quando da composição
do Marxismo, dá continuidade e acabamento a um processo desenhado em suas possibilidades pelo
próprio autor russo, especialmente ao inverter a perspectiva do que se chama usualmente de discurso
indireto livre através de um emprego revolucionário do dito monólogo interior, aqui chamado de discurso
direto livre.
Abstract
This paper wishes to reconsider the position of the essay on the reproduction of the discourse, which
closes Marxism and the philosophy of language, by Volochinov, through a comparison with the procedures
brought to light on reading the works of James Joyce, with special attention being given to the opening
section of Ulysses. Considering art and criticism to be procedures with comparable heuristical validity,
the paper tries to demonstrate that the theory of the novel embedded between the lines of Joyce’s work,
already published when Marxism was written, pushes further and perfects a process already conceived
in its possibulities by the russian author, specially through changing the perspective of what we use to
call discours indirect libre by revolutionary employ of the monologue intérieur, here called discours direct
libre.

Pode ser que os últimos romances de Joyce se casem tão bem e tão obviamente com as idéias
de Bakhtin que a maioria das características desses romances que possam ser identificadas
por uma leitura bakhtiniana possa ser identificada sem ela. [tradução minha]

Esta frase está na página 9 do livro de Keith Booker sobre Joyce e Bakhtin. Poderia contudo provir
da fala de qualquer leitor mais atento da obra dos dois autores, o que serve apenas para confirmar o
juízo que expressa.
Se posso pensar que a arte é uma dentre as possíveis formas, uma dentre as várias fôrmas que
organizam o mundo ou concedem-lhe existência semiotizando o caos, tornando-o digerível para nossos
olhos, devo poder aceitar que a teoria do romance veiculada por Joyce no Ulysses é tão válida como
objeto de estudo quanto aquela que podemos extrair dos escritos do círculo de Bakhtin que tocam no
mesmo ponto. Se o melhor comentário a um poema há de sempre ser o próximo, e não a crítica, posso
na verdade supor que a reflexão de Joyce, acientífica que seja, não deixa de ter (ou passa precisamente
por isso a tê-lo) um potencial heurístico quem sabe mesmo maior do que a sistematização teórica em-
preendida pelas leituras deste ou de outros círculos.
Explique-se.
James Joyce, como talvez nenhum outro romancista, teve um projeto claro, claramente concebido e
com clareza executado. Dos fragmentos que nos restaram do Stephen Hero, passando pelo importan-
tíssimo laboratório de Dubliners, até a reelaboração magistral que é A portrait of the artist as a young
man depreende-se nítido um caminho. A via de um autor que compreendera extremamente bem o locus
histórico da narrativa ficcional naquele momento, e que já dava sinais de estar ela ultrapassada para
suas ambições, ultrapassada por suas ambições.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 314


O Portrait, especialmente em seu incrível trecho de abertura, que estabelece o padrão mimético do
estilo do livro todo –evoluindo conforme evolui o intelecto de seu protagonista; ou mesmo mais que
ele, a ponto de deixar insinuado um certo distanciamento irônico nos últimos momentos– já inicia um
processo de rompimento com uma tradição muito estável do desenvolvimento da narrativa, que vinha
se esboçando também em outros autores, como Zola e, principalmente, Flaubert.
A idéia de uma voz narrativa que é projetada pela personagem, que, subjugada por ela, incorpora
mesmo suas limitações discursivas, culturais e ideológicas começava a se apresentar como grande con-
tributo bakhtiniano de Joyce à ficção já naquele momento.
Leandro Konder, na página dezoito de sua introdução a O romance está morrendo?, de Ferencz Fehér,
trazia a pergunta para o mundo joyceano.
Será o romance uma “garrafa” que comporta indiferentemente qualquer vinho? Então por
que a garrafa explodiu quando Joyce lhe derramou o Ulysses adentro?

É óbvio que a concepção exposta (criticamente) por Konder é datada e quase pejorativamente ca-
racterizável por nós, hoje, requerendo mesmo uma noção de autor e de expressão que sabemos fazer
mais parte da história do que da teoria da literatura. No entanto, sob outros muitos matizes, ela parece
perpassar várias posições críticas de hoje, no que se possa referir a algum estatuto próprio do romance
e à atenção que se lhe deva conceder.
A mesma recusa do estudo estritamente formal, em favor de uma escola de crítica de inspiração
historiográfica e sociológica faz com que ao menos no Brasil a metáfora do vaso continue sendo, decla-
rada ou subsumidamente, empregada por vários autores. O fato é que para este tipo de trabalho pouco
importa a forma de tal vaso, bem como importa pouco sua existência como tal, o que é limitação que
por vezes atinge mais do que poderia supor um mero delimitar de campo de estudo1.
Na verdade, até por isso acho uma falha na bela frase de Konder; porque podem ser precisamente
aqueles que acreditam conceber o romance como unicamente vasilhame os que negariam a explosão
promovida por Joyce. Para se poder reconhecer o estrago que o Ulysses determinou naquela fôrma, seria
preciso ver nela mecanismos específicos e determinantes, que seu autor identificou, alvejou e destruiu.
Mecanismos de todo desinteressantes àquele tipo de análise.
Pois capítulo a capítulo a odisséia do senhor Bloom e de sua cidade parece se dedicar inicialmente a
esgotar todos os procedimentos relevantes naquele momento ao fazer literário romanesco, apenas para
posteriormente (de modo especial em sua segunda metade) ostentar sua superação definitiva.
Se ao terminarmos de ler o Ulysses somos capazes de voltar a ler romances anteriores a ele (quase
todos os romances) e, muito especialmente, se somos capazes de continuar a escrever romances ante-
riores a ele, isso necessariamente configura uma desistência. Por outro lado, o procedimento do próprio
Joyce ao escrever o Finnegans Wake, se não é uma outra desistência pode ser visto pessimisticamente
como uma recusa. O caminho do desenvolvimento do romance como nós o conhecemos até hoje encontra
de fato (ou encontro eu nele) um fim, uma explosão, no Ulysses, e seu autor obrigou-se a radicalizar
suas próprias conclusões ao escrever o ultra-romance que o sucedeu.
Faça o que eu digo, não faça o que eu faço, dizem muitos escritores e tradutores que fazem conviver
com sua produção artística uma veia crítico-teórica. James Joyce disse muito pouco. Como bem lembra
Richard Ellman em sua introdução aos Critical Writings, a crítica que ele escreveu nos conta muito mais
sobre ele mesmo do que sobre os autores que analisou. No entanto seu programa foi todo ele feito:
mostrado. Icônico, como seu procedimento literário mais característico no Ulysses: mostrar no texto
muito mais do que descrever.
Este meu trabalho pretende exatamente mostrar que a declaração de Booker que o abre pode ser
tão verdadeira a ponto de não apenas eximir a crítica bakhtiniana de recorrer à teoria do círculo para
ler Joyce como também de permitir uma leitura joyceana da obra dos teóricos ligados a Mikhail Bakhtin.
Se as teorias de Bakhtin funcionam particularmente bem quando aplicadas à obra de Joyce2; se Joyce
poderia ser a ilustração perfeita de quase todos os principais conceitos bakhtinianos3, é porque as teorias
que podemos desentranhar dos corpora dos dois autores, referindo-se ao objeto, aos objetivos e aos
meios da forma romanesca, trafegam em pistas similares, buscando pistas similares de um überroman
(para germanizar a definição que Pound deu do Ulysses) ideal para uns, ainda que não presente como
ideal teleológico, e manifesto por outro.
O diálogo entre eles só poderia ser proveitoso.
O próprio Kenneth Booker, a respeito disso, ressalta, na segunda nota a seu texto, que
A mais que óbvia relevância das teorias de Bakhtin para a obra de James Joyce tem levado
muitos a imaginar por que o próprio Bakhtin mal menciona Joyce. Clark e Holquist oferecem
uma resposta, ao notar que Joyce era persona non grata no contexto da cultura stalinista: ‘no
mínimo a partir do Primeiro Congresso de Escritores, em 1934, o Ulysses não mais podia ser
louvado na imprensa [...] Dessa forma, Bakhtin tinha efetivamente duas escolhas, no que se

1 Minha modestíssima...
2 Kershner (apud Booker, 8)
3 Booker, 9.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 315


refere a Joyce, atacá-lo ou não mencioná-lo’. De fato, na Rússia stalinista era politicamente
perigoso tratar da maioria dos textos contemporâneos, embora também seja verdade que
Bakhtin (que foi treinado como classicista) parecesse preferir textos mais antigos por uma
questão de gosto. [tradução minha]

O diálogo entre eles só poderá, feito por nós, ser proveitoso.


Para nós e para eles.
2.
Como este trabalho é um primeiro momento de uma pesquisa de doutoramento (desenvolvida na
Universidade de São Paulo, sob orientação do professor José Luiz Fiorin) a respeito das formas de re-
produção e de assimilação de discursos no Ulysses, o texto de Volochínov sobre o “Discurso de outrem”,
incluído como apêndice ao Marxismo e filosofia da linguagem, pareceu um ponto de partida mais do
que adequado à sistematização de algum, qualquer, instrumental de análise que pudesse ser útil para o
desenvolvimento posterior do trabalho.
Já em uma algo acalorada conversa de corredor com o professor Fiorin, começou a surgir o germe
do que seria a hipótese por trás deste texto. Tentando situar histórica e eticamente (fiquemos por ora
com este termo) o emprego do monólogo interior (MI), encontrávamos uma situação de impasse. Pen-
sando nas formas mais típicas do MI e em seus usos mais diretos, o professor Fiorin não podia deixar de
vê-lo como uma espécie de regressão no contínuo estabelecido por Volochínov desde o discurso direto
monumental até o discurso indireto livre. Por outro lado, eu não podia deixar de sentir que, de alguma
maneira, o emprego que Joyce fazia do MI não só não se coadunava com esse juízo como, possivelmente,
representava um passo além no desenvolvimento das formas de representação do discurso do outro.
Aqui cabe fazer a ressalva de que, ao menos para este trabalho, me parece adequado encarar a aná-
lise de Volochínov como sendo o estabelecimento de um contínuo, se não teleologicamente orientado,
ao menos direcionado, vetorizado. Na medida em que (eu, aqui) considero como um desenvolvimento
positivo a progressiva integração das vozes na representação romanesca, ou sua progressiva prosificação
(como diria Cristovão Tezza, em seu Entre a prosa e a poesia) sua progressiva dissolução de um centro
de valores, progressiva obliteração de qualquer axiologia única, posso falar de uma ética especifica e
unicamente romesca que, sim, desenvolve-se: evolui. E não faço mais do que tomar a deixa do mesmo
Cristovão Tezza que, em texto publicado no livro Bakhtin, dialogismo e contrução do sentido, terminava
dizendo acreditar que poderia derivar de Bakhtin uma ética, e declarava falar naquele momento talvez
mais en auteur.
Assim, ficava formulada a hipótese que, em um primeiro momento, era tudo de que dispúnhamos e
cuja possibilidade cabia verificar: o monólogo interior (ao menos como empregado por Joyce no Ulysses)
era o ponto que faltava para a conclusão do raciocínio volochinoviano que demonstra o desenvolvimento
de meios mais refinados e mais democráticos de representação de discursos no universo da narrativa
romanesca, ponto este curiosamente sequer considerado por Volochínov.
O primeiro passo necessário para que possamos pensar em qualquer desenvolvimento para além do
discurso indireto livre (DIL) é definirmos o que estamos chamando de DIL em um determinado momento.
Grassa grossa confusão a cada vez que se emprega o termo, parecendo definitivamente ser ele termo
uma sentença para cada cabeça, caber diferente em cada sabença.
Se consideramos apenas os exemplos retirados da obra de Thomas Mann, que o próprio Volochínov
utiliza como demonstração das características do que ele chama de DIL, e se o fazemos já de saída
lendo seu texto através de Joyce, através de lentes polidas pela leitura do Ulysses, fica clara uma inde-
finição.
Pois se em um trecho como:
O cônsul, as mãos às costas, ficou passeando e movendo nervosamente os ombros.
Ele não tinha tempo. Estava assoberbado, por Deus! Ela devia ter paciência e, por favor!,
pensar mais cinqüenta vezes.

temos o que poderia corresponder a uma exemplo perfeito de DIL, o que poderíamos fazer com este
trecho, o ínicio do conto The dead, publicado em Dubliners, em 1910?
Lily, a filha do zelador, estava literalmente de pernas para o ar. Mal tinha trazido um cava-
lheiro à despensa pequena atrás do escritório no térreo e o ajudado a tirar o casaco, e lá
batia de novo a sinetinha asmática da porta de entrada e ela tinha de saltitar pelo corredor
vazio para deixar entrar um outro convidado. Bom para ela era que não tinha que cuidar
das senhoras também. [trad. minha]

Se o texto de Thomas Mann é a representação de uma réplica em situação de diálogo, manuseada


segundo as regras da arte que configuram o DIL prototípico, o trecho de Joyce (e ressalte-se que ele é
a abertura do conto) está em posição muito mais delicada, muito mais complexa. Fica claro que o texto
está escrito como que visto pelos olhos e concebido pela linguagem de Lily. Fica claro que James Joyce,
ou seu narrador, não estão dizendo que ela estava literalmente de pernas para o ar. O fato, por outro
lado, de ela ser uma terceira pessoa, identificável e apresentável (a filha do zelador) deixa claro que o

Proceedings XI International Bakhtin Conference 316


texto não é a reprodução de sua fala.
Até aqui estamos no campo possível do DIL: temos um texto que, na voz do narrador, em seu quadro
enunciativo, contamina-se pela voz da personagem. No entanto há uma mancha: o trecho joyceano não
supõe a representação de uma fala. De fato, se alguém efetivamente pronunciou aquelas frases,
pode mesmo nem ter sido Lily.
Em um movimento que já se aproxima do que fará com o monólogo interior de Dujardin em Ulysses,
James Joyce nos leva além da representação da fala de outrem. Ele representa, sim, um discurso
alheio, e o incorpora de maneira cada vez mais definitiva e mais sutil à trama de sua própria voz. Mas,
precisamente por fazê-lo em um grau até então inaudito, ele rompe a barreira da enunciação. Seu nar-
rador (e não é a toa que em seus últimos livros mal se pode falar na presença de um narrador) está tão
profundamente impregnado pela voz dos outros que não é mesmo necessário que eles falem para nele
encontrarem uma expressão.
Os estudos bakhtinianos de Joyce tem se deleitado especialmente em mostrar como esse processo de
constituição dialógica de uma voz molda a relação de James Augustine Aloysius Joyce com a tradição:
a intertextualidade feita princípio e tudo o que nesse processo propicou nossa (pós-) modernidade. O
que se pretende fazer aqui é ilustrar como a voz narradora do Ulysses é constituída tão basilarmente
sobre as outras que por vezes não admite sequer o grau de independência e de autoridade necessários
para sustentar a imposição de um quadro enunciativo (um hic et nunc outro e determinante, porque
determinado) que define o DIL típico.
Um exemplo ainda mais radical, e ainda assim anterior ao Ulysses, pode ser colhido na abertura de
A portrait of the artist as a young man, aqui também em tradução minha.
Era uma vez, e uma vez muito boa que era, uma vaquinha mumu vinha descendo a estrada
e essa vaquinha mumu que vinha descendo a estrada encontrou um menininho muito bon-
zinho que se chamava nenê fução...
Seu pai lhe contava essa estória: seu pai olhava para ele através de um vidro: e tinha uma
cara peluda.
Ele era o nenê fução. A vaquinha mumu vinha descendo a rua onde a Betty Byrne morava:
ela vendia docinho de limão.

As vozes de Simon Dedalus e de seu filho Stephen quando criança, ambos completamente desconhe-
cidos neste momento, não apenas têm curso na voz narradora. Elas constituem a voz narradora. Essa
noção, a de um narrador (ou voz narradora, ou arranjador, como prefere Kiberd) que é constituído pelos
personagens, formado especificamente como projeção lingüística e psicológica de uma determinada
personagem, em um dado momento da narrativa, talvez seja precisamente o que faltava ao DIL para
que se pudesse constituir no ponto que faltava a Volochínov.
Volto ainda a isso.
Acredito poder ter ficado claro (nas limitações de poucos exemplos destinados a não abusar de sua
paciência e tempo) que o DIL, ou algum tipo de representação de discursos alheios que por hora podemos
deixar chamado assim, já se encontrava apud Joyce, mesmo antes da do início da publicação seriada do
Ulysses, em um estágio diferenciado. Mas aqui ele ainda não fazia mais que (como foi dito para mesmo
a primeira metade do dédalo de Bloom) empregar com extremado refinamento recursos que já estavam
sobre a mesa naquele momento, descobrindo neles possibilidades maiores.
Pois, se apenas tomamos um outro trecho do Thoman Mann citado por Volochínov, e especialmente
se o tomamos com vem publicado por Volochínov, descontextualizado, isolado, podemos perceber que a
potencialidade explorada por Joyce já se encontra, em germe, nas formas clássicas do DIL.
As coisas iam mal para o senhor Gosch: com um belo e largo movimento de braço, ele recu-
sou a hipótese de que pudesse pertencer aos infelizes. A incômoda velhice se aproximava,
estava ali –sua cova, como se dizia, estava aberta. À noite ele mal podia levar o copo de
grogue à boca sem derramar a metade, de tanto que o diabo fazia seu braço tremer. Aí
nenhuma maldição adiantava... a vontade já não triunfava mais.

Aqui, sem um interlocutor discursivamente determinado, pode-se facilmente supor serem as frases
todas ditas pelo senhor Gosch frases não-ditas pelo senhor Gosch. Mesmo que se queira pensar que a
frase a respeito de sua cova aberta tenha sido pronunciada por alguém, pode-se supor que outras não
tenham.
Curiosamente, há que se apontar o fato de que a marca de oralidade que mais facilmente denunciaria
a frase citada como tendo sido efetivamente dita é um como se dizia, que marca a distância de uma
voz em relação a uma outra, de que ela agora se apropria. Ainda que este não seja o objetivo deste
trabalho, cabe lembrar que este está longe de ser um procedimento típico do Ulysses. A contaminação,
a constituição dialógica das vozes em Joyce atinge mesmo suas personagens, que vivem mergulhadas
em citações, algo mais ou menos inconscientes, que formam seus discursos a partir de ditados, canções,
rimas infantis, trechos de poemas, alusões históricas e políticas devidamente integradas e desprovidas
de aspas.
Assim, e indo mais além, se pôde-se já apontar a força do diálogo com o passado para o escritor

Proceedings XI International Bakhtin Conference 317


James Joyc, posso, defender a força do diálogo com os personagens para a voz narradora do Ulysses.
Poderíamos traçar a importância do dialogismo para a formação de cada fala de Simon Dedalus, Leopold
Bloom, Stephen Dedalus, Molly Bloom. Mais bakhtiniano que os autores do círculo, James Joyce expunha
sua crença no poder do dialogismo em textos dialógicos narrados por uma voz dialogal. Não poderia ter
sido um teórico4.
O que resta como problema, exposto pela leitura dos fragmentos de Joyce, é a possibilidade de que
uma tal possibilidade, que definitivamente redefine os limites de seu tema, tenha sido ignorada por Vo-
lochínov. A possibilidade de haver uma diferença de potencial entre alguns e outros usos (se não formas)
do discurso indireto livre, pelo mero fato de que pela primeira vez na linha estabelecida por Volochínov
rompe-se a fronteira da enunciação enunciada, da enunciação sobre a enunciação, para se permitir que
a enunciação que cita presuma, incorpore a outra voz a ponto de não precisar de suporte material para
a citação, teria obrigatoriamente de reformular a posição do autor russo. E, curiosamente, essa refor-
mulação teria de ir na precisa direção para a qual ele parece conduzir seu texto.
Se aquele, suposto, contínuo que segue rumo a uma democratização da hierarquia das vozes poderia
levar a algum lugar, os mesmos exemplos citados por Volochínov já poderiam apontá-lo: o estabeleci-
mento efetivo do domínio da interferência discursiva que ele mesmo já detectava, mas agora posta em
novo nível.
3.
O próprio texto de Volochínov já cita a curiosa afirmação de Charles Bally de que o discurso indireto
livre tenderia ao discurso direto (DD), o que parece contrariar o movimento que ele próprio supõe. Bally
pode ter pensado em apenas fatos estruturais verificáveis, como a ausência do verbum dicendi e de todo
o aparato de introdução ou comentário fornecido pelo narrador nas formas típicas dos discursos indiretos,
mas posso agora pensar em um movimento diverso, acarretado por este.
O que algumas formas, alguns empregos do DIL parecem indicar é um movimento de restabelecimento
de um equilíbrio que, em nome da integração das vozes, perdeu-se na passagem do DD para o DI. Ao
embaraçar os discursos, processo que culminaria do DIL prototípico, em nome (suponho, eu, aqui) de
uma nova relação ética entre as vozes representadas, a linha exposta por Volochínov acaba por paradoxal-
mente apagar a possível autonomia do discurso representado, terminando, naquelas formas prototípicas
do DIL, por entregá-lo totalmente ao narrador. O modo que até então se encontrara de fornecer livre
e plena expressão às vozes representadas era reconhecer como dada a superioridade de meios da voz
narradora e buscar conceder às outras estas suas possibilidades. Conceder nela um espaço a elas.
E quanto mais espaço aberto às outras vozes, mais se fortalece a posição da voz do narrador, e mais
espaço ela ocupa.
Ao ler Les lauriers sont coupés, de Édouard Dujardin, Joyce deu-se conta da possibilidade que lhe
faltava, e que parece ter passado décadas desperbida por todos, incluindo seu autor (e incluindo Volo-
chínov) tendo o livro sido publicado em 1887.
Uma narrativa toda ela escrita como que a acompanhar o fluxo dos pensamentos de uma personagem
abria a oportunidade de se integrar definitivamente voz a voz, como que com a criação de um discurso
direto livre (DDL) que, depois de Joyce, passou a ser chamado de monologue intérieur ou stream of
consciousness. Estas duas últimas designações, contudo, recobrem bem apenas o método de Dujardin;
mas a primeira, proposta aqui, poderia ser aplicada somente a Joyce. E essa distinção pode estar na raiz
da diferença entre as leituras com que nos deparávamos eu e meu orientador.
Porque o problema, a diferença, repousa no fato de ser a narrativa francesa um relato em primeira
pessoa (distinção algo estranhamente subestimada por todo o texto de Volochínov), definitivamente cen-
trado e axialmente orientado. Joyce, sintonizado que estava em uma busca que seguia em outra direção,
saberá fazer do monólogo interior a máxima fusão, a máxima penetração que as vozes representadas
atingirão, sem contudo impor a elas (ou à narrativa como um todo) uma orientação ideológica e discursi-
va. Ele descobrirá que fazendo conviver o MI, agora mais propriamente chamado DDL, com um discurso
direto exemplarmente sobredeterminado, por exemplo, poderá criar a hierarquia entre personagem e
personagem que institui, a cada momento, uma relação de proeminência entre elas, e não entre eles e o
narrador. Digo a cada momento porque esse foco variará em todo o romance, principalmente entre Bloom
e Stephen, mas incluindo mesmo personagens menores como o padre John Conmee no capítulo 10.
Abrindo de mão de todo de um narrador prototípico que pudesse mesmo fornecer algum quadro
orientador, e especialmente abrindo mão de todo de usar um só narrador (possibilidade estrutural que,
abrindo o escopo das considerações, por si só já altera as possibilidades hierárquicas, levando-as muito
além do previsto por Volochínov), fazendo com que as vozes narradoras sejam predominantemente
projeções dos personagens em foco, ele reforça essa redistribuição de forças.
Isso pareceria o bastante, mas manteria aberta a possibilidade de se encarar o processo como tendente
ao monologismo, se pensássemos que, em cada momento, a personagem retratada em MI encontra uma
integração com a voz narradora. Mas falamos aqui de luta muito mais que de vitória. Pois as sucessivas
releituras do romance, como seu primeiro capítulo já deixa sobejamente claro, acabam revelando uma
sutílima ironia de caracterização que relativiza mesmo o estatuto, naquele momento, central de uma

4 Imagino o comentário: de te fabula...

Proceedings XI International Bakhtin Conference 318


determinada personagem. Ao percebermos que o narrador foi cooptado, re-lemos em busca de uma au-
tonomia nossa de julgamento, e encontramos inconsistências. Ernst Curtius, pretendendo criticar Joyce,
já havia dito que não se pode ler o Ulysses; pode-se apenas relê-lo.
E, relendo-o, o seguinte trecho, da abertura do romance, pode talvez nos mostrar algumas coisas.
(Cito, apesar de longo, para evitar ter de editar Joyce, e para evitar outras citações de mais corpo. E
cito, novamente, em tradução minha, que é parte de nossa pesquisa de doutoramento.)
Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no topo da escada trazendo uma vasilha de espuma
de barba em que espelho e navalha pousavam cruzados. Atrás dele um roupão amarelo,
desatado o cíngulo, mantinha-se delicadamente suspenso no doce ar da manhã. Elevou a
vasilha e entoou:
– Introibo ad altare Dei.
Detendo-se, examinou o escuro da escada recurva e chamou rudemente:
– Suba, Kinch. Suba, jesuíta medonho.
Altivo ele se adiantou e montou a redonda plataforma de tiro. Olhou à volta e por três
vezes abençoou gravemente a torre, o campo em torno e as montanhas que acordavam.
Então, percebendo Stephen Dedalus, inclinou-se em sua direção e fez rápidas cruzes no ar,
arrulhando na garganta e balançando a cabeça. Stephen Dedalus, contrafeito e sonolento,
apoiou os braços no alto da escada e olhou friamente o arrulhante rosto balouçante que o
abençoava, eqüino por seu comprimento, e o cabelo intonso claro, granulado e matizado
de pálido carvalho.
Buck Mulligan espiou um instante sob o espelho e então cobriu prontamente a vasilha.
–De volta à caserna, ele disse peremptoriamente.
Acrescentou em tom de prédica:
–Pois isto, ó mui estimados, é a genuína Cristina: corpo e alma e sangue e chagas. Música
lenta, por favor. Fechem os olhos cavalheiros. Um momento. Um probleminha com estes
corpúsculos brancos. Silêncio, todos.
Olhou para cima de esguelha e soltou um assovio longo e baixo, um chamado, então parou
por um instante em enlevada atenção, seus dentes brancos regulares brilhando aqui e ali
com pontos de ouro. Chrysostomos. Dois assovios fortes e estridentes responderam através
da calmaria.

Mais adiante, neste mesmo capítulo, parágrafos inteiros serão concedidos aos pensamentos de Dedalus,
que progressivamente se entretecerão ao resto da narrativa, além de dominar todo o terceiro capítulo,
à la Dujardin. Neste primeiro trecho, contudo, a usual prudência e segurança de Joyce em introduzir
e apresentar seus temas e procedimentos o levam a entregar à voz suposta de Stephen apenas uma
palavra: Chrysostomos.
Assim, solta em meio a uma narrativa razoavelmente ortodoxa ela não pode deixar de semear uma
dúvida, uma desconfiança.
Se não, vejamos: a palavra grega significa boca de ouro; pois muito bem, acabava-se de fazer refe-
rência, ainda que enviezada, às restaurações dentárias de Mulligan. Apesar de o tom deste comentário
não se coadunar exatamente com o do resto da narrativa, isto poderia bastar como explicação em uma
leitura mais apressada. Mas apenas se pode reler Joyce. E, mais do que isso, ele era pernóstico o suficiente
para contar com um conhecimento por parte do leitor de seu romance anterior, que tinha Dedalus como
personagem principal. Exatamente como poucas páginas adiante ele esperará que possamos recordar,
sem qualquer outra explicação, quem era Cranly, e o que ele representava no Portrait, aqui ele se dá
ao luxo de esperar que conheçamos o espírito e o estilo de Dedalus, que ali vimos crescer e aprender,
converter-se e abjurar.
Primeiro de tudo, a própria posição em que se encontra Stephen, no topo da escada, ainda sem sair
para a cobertura da torre, olhando para um Buck Mulligan montado em uma plataforma de tiro, nos pos-
sibilita pensar ser ele a ver os tais pontos de ouro. Em segundo lugar, seria típico dele e de sua relação
com Mulligan, que mais tarde vai chamá-lo de kinch-banguela em função do péssimo estado de seus
dentes, prestar atenção, recalcado, à riqueza manifesta de Mulligan. No capítulo 3 Stephen terá de decidir
entre ir ao dentista cuidar de um dente já oco ou gastar seu salário bebendo, o que acaba fazendo.
Não bastando isso, há uma outra camada de leitura. Crisóstomo é o epíteto de vários santos católicos,
mas especialmente de São João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla no século IV e um dos princi-
pais nomes da igreja pré-cismática, assim chamado em função de seus dotes oratórios. Novamente a
referência, história, hagiográfica e algo desdenhosa carrega a marca de Stephen Dedalus. Não bastasse
isso tudo, Saint-John era o nome do meio de Oliver Gogarty, médico irlandês amigo de Joyce que inspirou
a personagem Buck Mulligan.
Em apenas uma palavra, solta no texto à mercê da boa-vontade do re-leitor, revela-se o estatuto
privilegiado da personagem Stephen Dedalus: em um nível, alter ego do autor e, em outro, o que mais
nos interessa: voz com direito de posse sobre o discurso teoricamente neutro do narrador. Dedalus não
pode ter pronunciado seu chrysostomos. O discurso citado aqui é necessariamente suposto, confirman-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 319


do a interferência definitiva entre as duas vozes. E singularmente, exatamente por estar rigidamente
separado graficamente da voz do narrador, ele põe muito mais seriamente em questão a independência
desta voz, porque pode se manifestar sem recurso a ela, direta e livremente.
Trata-se, a meu ver, de uma verdadeira guinada copernicana em que não é mais a posição do narrador
que concede espaço a outras vozes, algo mais ou menos munificente. É agora ela quem vê seu espaço
questionado, devido à total equiparação de possibilidades entre as vozes em disputa. Trata-se de luta.
E relemos, vendo que se o primeiro adjetivo, a primeira palavra do romance, corrobora uma atitude
de pastiche sustentada pelo próprio Mulligan, o segundo adjetivo pode já ser lido como prismado pelo
olhar do esquálido, esfaimado e algo invejoso Dedalus. Todo o capítulo é modelado sobre o Hamlet, e
Buck Mulligan, chamado de usurpador na última palavra do texto, com suas roupas coloridas, seu em-
bonpoint e seu viço, seria o paralelo de Cláudio.
A menção à palavra cíngulo [girdle], que se perdeu em outras traduções, é também tipicamente
assinada pelo rapaz que mais tarde vai recordar os tempos em que carregava a naveta de incenso na
escola. O judeu Leopold Bloom, por exemplo, não saberia dizer qual o nome do cinto que ata a alba do
sacerdote, nem mesmo querendo usá-lo apenas derrisoriamente. Ele nem mesmo poderia saber que um
tal paramento se chama alba. Na verdade, ele nos fornece um maravilhoso exemplo da primordialidade
do quadro ideológico dos personagens que criam a voz narrativa em Joyce; pois neste mesmo registro
pretensamente neutro do narrador, no capítulo 5, que narra as andanças do senhor Bloom pela manhã
de Dublin, essa mesma alba de um sacerdote será descrita como treco de renda [lace affair]. O narrador,
aqui, compartilha da visão, da visão de mundo, do mundo e do léxico do jesuíta medonho que, anos
mais tarde, virá a ser seu autor.
Já para Mulligan, o único registro possível, o único espaço concedido por uma agora egoísta (e sa-
bemos por quê) voz narradora (sabemos a quem ela serve) é o de um discurso direto exageradamente
tipificado. Nas pouco mais de vinte páginas do primeiro capítulo, por exemplo, há mais de uma centena
de ocorrências da fórmula ele disse. Nem mesmo a ordem dos constituintes da fórmula varia, havendo
menos de meia dúzia de ocorrências de disse ele. Será apenas no capítulo 12, depois de consumado o
processo de esgotamento dos recursos usuais da narrativa, que esta fórmula variará, reproduzindo um
padrão da oralidade dublinense que alterna says he e says I, porque, aqui sim, haverá um narrador, uma
personagem que narra em terceira pessoa, sem que, curiosamente, saiba-se direito quem ele é.
Mulligan tem a primeira fala do livro, e também a primeira declaração de estranhamento, de alie-
namento: ele fala latim, a língua da igreja que Stephen reconhece como jugo de que deve se libertar.
Depois disso ele o ofende, marca-o como jesuíta, pronuncia uma frase feita e um pastiche. Se a voz de
Stephen mistura-se à do narrador (cuja mesma existência neste momento já passa a ser questionável),
a de Mulligan é reproduzida tendenciosa, se não maldosamente. E, mesmo dono da voz, Dedalus poderá
então ser re-lido pela lente da ironia. Há que se aprender a ler o Ulysses: só se pode relê-lo.
4.
Talvez a contribuição de Joyce para o progresso das formas de representação do discurso de outrem
em uma linha orientada pela gradual integração de vozes tenha sido precisamente responder à dúvida
que tivemos eu e o professor Fiorin, e responder apoiando-se em uma distinção e em uma possibilida-
de que o texto de Volochínov não considerava. Ao artesão, as distinções desconsideradas pelo crítico
mostram seu peso e suas oportunidades: da narrativa em terceira pessoa ao uso em macro-escala das
possibilidades insinuadas no nível da frase.
Sim, é possível escrever-se narrativas calcadas no emprego do monólogo interior em que o caminho
esboçado por Volochínov é abandonado em favor de um estágio anterior, mais claramente monológico.
Estas narrativas, contudo, serão preferencialmente narradas em primeira pessoa, uma distinção, repito,
estranhamente desprezada por Volochínov. Outra maneira de fazê-lo talvez seja, mesmo com um nar-
rador separado do universo dos personagens, através de uma postura que não permita, ou que sequer
conceba, a possibilidade do apagamento da persona e da axiologia do autor conforme representado por
este narrador. Talvez um livro como Mrs Dalloway, por exemplo, possa ilustrar esta possibilidade.
James Joyce, por outro lado, com a originalidade imprevisível e paradoxal típica daqueles autores que,
como gosta de dizer um outro Bloom –o crítico Harold Bloom– são pura e simplesmente mais inteligen-
tes do que nós, conseguiu resolver este problema do apagamento de sua voz e de suas projeções por
meio de um relato fortemente autobiográfico. James Joyce cede o poder de determinação do discurso a
Stephen Dedalus, nome com que, já nos anos dez, ele assinava por vezes sua correspondência. Mas ele
o concederá depois a Bloom, a Molly, a Conmee, a Tom Kernan...
Talvez tenha sido o reconhecimento, por sua parte, de que algum centro é necessário, que lhe tenha
permitido abrir mão de ser ele, via seu narrador, o centro das vozes de sua obra. Talvez tenha sido por
ignorar essa necessidade que Virgina Woolf não tenha alcançado o mesmo resultado. E a mesma estrutura
episódica do Ulysses age como facilitadora das mudanças de centros de orientação que, contudo, esten-
dem-se por trechos consideráveis. Some-se a isso o reconhecimento da possibilidade de se citar discursos
não-pronunciados, falas supostas graças a um elevado grau de interferência de vozes e de consciências,
possibilidade manifesta em seu uso daquilo que aqui escolhi então chamar discurso direto livre, e temos
demonstrada, executada a possibilidade não só de se confirmar a suposição de Bally agora no nível da
ideologia como de se fazer avançar de um grande passo o caminho esboçado por Volochínov.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 320


Seamus Deane, no início de sua introdução ao Finnegans Wake, dizia:
É difícil dizer que o Wake é um romance; igualmente difícil é negá-lo. Poucas obras apagam
mais efetivamente o autor como uma voz e um gênio individuais; nenhuma afirma esse
papel mais alta e escandalosamente.

Precisamente por encampar todos seus personagens e por projetá-los todos a partir de si mesmo
é que James Joyce pôde ceder-lhes a voz e a vez de maneira mais generosa do que os autores que o
antecederam. Precisamente por levar o romance ao paroxismo de suas próprias características ele pôde
questionar seu futuro. Esgotá-lo mais do que destruí-lo.
Biografias à parte, o Ulysses é o que temos. Mas, parafraseando seu mestre, podemos dizer que
só temos ao Ulysses tão coerente e independente da vida de James Augustine Aloysius Joyce, porque
l’Ulysse, c’est lui.
Especulações à parte, a forma do discurso (seus aspectos sintáticos) é o que temos. Mas, recorren-
do ao principal teórico do círculo, talvez possamos encontrar a melhor definição para o processo que
Joyce levaria a culminar no Finnegans Wake, e que já se encontra em pleno desenvolvimento no Ulysses
em um parágrafo que trata de uma questão ideológica e de um conceito que só poderíamos aplicar a
nossa questão se considerássemos, novamente, a possibilidade de sua iconização, sua tematização; se
visualisássemos o emprego estrutural de um procedimento mais freqüentemente analisado em nível de
conteúdo. E poucas coisas seriam mais joyceanas.
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e especuladores. No
carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se
contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vive-
se conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca.
Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”,
um “mundo invertido” (“monde à l’envers”)5

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BOOKER, M. Keith. Joyce, Bakhtin and the literary tradition; towards a comparative cultural poetics. Michigan, Uni-
vesrity of Michigan press, 1997.
ELLMANN, Richard & MASON, Ellsworth (eds.) The critical writings of James Joyce. Londres: Faber & Faber, 1959.
JOYCE, James.Dubliners. Londres: Penguin books, 1996.
___________. Finnegans Wake (Seamus Deane, ed.). Londres: Penguin books, 2000.
___________. A portrait of the artist as a young man. Londres: Penguin books, 1996.
___________. Ulysses (Declan Kiberd, ed.). Londres: Penguin books, 2000.
KONDER, Leandro. “Introdução” a FEHÉR, Ferencz. O romance está morrendo? Rio de Janeiro: Paz e terra, 1997.
TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
___________. “A construção das vozes no romance” in: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do
sentido. Campinas: Edunicamp, 1997.
VOLOCHÍNOV, V. N (BAKHTIN). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

5 Problemas da poética de Dostoiévski (p. 123) Agradeço à professora Sandra M. Stroparo por me fornecer este trecho, por perceber esta algo subversiva
possibilidade de leitura, e por tanto mais...

Proceedings XI International Bakhtin Conference 321


Textos chaves:
JOYCE, James. Ulysses.
VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem
Nomes chaves: James Joyce, V. N. Volochínov, Mikhail Bakhtin.
Palavras chaves: James Joyce, Volochínov, monólogo interior, discurso indi-
reto livre.
Biografia resumida: Formado (1997) em letras pela Universidade Federal do
Paraná com habilitação em português e francês. Aprovado em concurso e contra-
tado em 1998 por esta mesma universidade, onde passa a ministrar disciplinas
de filologia românica, língua portuguesa e língua latina. Em 2000 defende ali seu
mestrado sob orientação do professor Carlos Alberto Faraco, com uma dissertação
entitulada De futuris: Plotino, Agostinho e o futuro românico. Desde 2002 é aluno
do curso de pós-graduação em semiótica e lingüística geral da Universidade de
São Paulo, onde, sob orientação do professor José Luiz Fiorin, desenvolve trabalho
sobre a representação do discurso no Ulysses de James Joyce.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 322


Dialogismo, autoficción y autenticidad: sobre Bakhtin y Gombrowicz.

Pablo Gasparini

USP/FAPESP

Refiriéndose a su concepto de “dimensión interhumana” Witold Gombrowicz afirma que “Soy como
una voz en la orquesta que tiene que entonar con el sonido de todo el conjunto, encontrar el propio lugar
en la melodía; o como un bailarín para quien no es tan importante lo que baila sino como unirse con los
demás en la danza” (Diario 1: 328). En efecto, la “dimensión interhumana” es planteada por el escritor
polaco como una exigencia de “rimar” con los demás de acuerdo a ciertas formas o Forma preexistente:
“de esto se deduce” – continua escribiendo en su Diario- “que para mí no existen pensamiento o senti-
miento verdaderamente auténticos, totalmente ‘propios’. El artificio hasta en los reflejos más íntimos:
éste es elemento del ser humano sometido a lo ‘interhumano’” (Diario 1: 329).
A lo largo de su vida, Witold Gombrowicz, cuya literatura de hecho se asienta sobre una filosofía o
más bien antropología de cuño personal, insiste en valorar la “dimensión interhumana” como su “mayor
aporte al existencialismo”. No discutiremos aquí la validez de esta afirmación. Cualquier lector de Gom-
browicz sabe su gusto por la provocativa grandilocuencia en la enunciación, eso que corre en su Diario
como correlato a la excentricidad intelectual que le deparó, en gran parte, su exilio argentino. Quiero,
más bien, marcar, a partir de cierta sugerencia de Jean Pierre Salgas en su Witold Gombrowicz, ou,
L’atheisme généralise (Seuil, 2000), cierta reciprocidad entre ese concepto gombrowicziano y el bajti-
niano de dialogismo.
Ambos, en primera instancia, parecen instaurar una crítica a la idea de identidad. Si, según Gom-
browicz, cada individuo está condenado “a rimar con el otro”, “a recitar lo humano” esta idea de dimen-
sión interhumana bien podría ser definida entonces a partir de la microsociología elaborada por Erwin
Goffman en Les rites d’interaction (1974). Erwin Goffmann, en efecto, se propone leer la pragmática
social como una verdadera representación dramatúrgica en la que cada actante se presenta y actúa de
acuerdo a un rol preestablecido, en el que importa menos la originalidad que el cumplimiento acabado
de las normas de interacción. Al llevar ese aspecto de la dinámica social al plano filosófico de la existen-
cia, Gombrowicz plantea así menos una subjetividad plena, que un sistema de relaciones en el que la
conciencia aparece como mero fenómeno: “Aunque tenga consciencia” – leemos en su Diario- como todo
en mí, es más bien una semiconsciencia y una cuasiconsciencia” (Diario 1: 85) Bakhtin, por su parte,
postula, como sabemos, que la conciencia del personaje de Dostoyevski está constantemente dirigida
al exterior pues, en virtud de su pleno carácter dialógico, sondearía a las otras conciencias provocando
una suerte de tensión interna en la que el personaje -o más bien la concepción unidimensional de éste-
parece desaparecer. Ambas concepciones, la de Gombrowicz y la de Bakhtin, parecen fundamentarse
así sobre un mismo presupuesto de interacción que, sabemos, ya había sido puesto en relieve en 1929
por Volochinov en su Marxismo y filosofía del lenguaje, texto en que la idea de “magma interdiscursivo”
o “interaccion verbal” se contrapone a las filosofías del lenguaje en aquel entonces contemporáneas:
aquellas que el propio Volochinov llama, por un lado, “subjetivismo idealista” (von Humboldt, Vossler y
la idea de que la lengua se genera a partir de la impulsión de una conciencia singular) y la que, por otro,
Volochinov decide denominar “objetivismo abstracto”, es decir, Saussure y la idea de la lengua como un
sistema de formas que, a través de leyes que rigen los lugares entre los signos, se impone a cualquier
consciencia subjetiva.
“Soy como una voz en la orquesta que tiene que entonar con el sonido de todo el conjunto, encontrar
el propio lugar en la melodía”: ¿debemos pensar que Gombrowicz está más cerca de esta concepción
estructuralista que de la interacción bajtiniana? La respuesta sería medianamente aceptable si no fuese
porque en Gombrowicz, la relativización del concepto de conciencia subjetiva convive con una intensa
prédica y práctica de la autenticidad como hacer artístico e intelectual: “ Yo soy el primero y sin dudas
el único de mis problemas, el único de mis héroes que verdaderamente poseo” (Volle, Jaques 1972 :
19); una poética de la primera persona plasmada en una obra que en gran parte, y en primera instan-
cia, podría ser calificada de autobiográfica (Diario), y autoficcional (de tenerse en cuenta las novelas o
“autoficciones” Transatlántico, La seducción y Cosmos).
¿Podríamos hallar en Bakhtin una idea semejante de autenticidad?
Argumentando que una de las tareas de la novela es denunciar toda perniciosa y falsa convención,
Bakhtin destaca el valor de la denuncia paródica del bufón:

Proceedings XI International Bakhtin Conference 323


Es el orden y la ideología feudal las que han impregnado la vida humana de una malhada-
da forma de convención. (...) La hipocresía y la mentira penetran todas las relaciones que
se dan entre los individuos. Por el contrario, todas las funciones sanas y “naturales” de la
naturaleza humana se cumplen de forma salvaje, pues la ideología no las santifica. Más
bien la ideología introduce la falsedad y la duplicidad en la existencia del hombre. Todas las
formas ideológicas, institucionales, devienen hipócritas y mentirosas, mientras que la vida
real, privada de interpretación ideológica, se vuelve groseramente animal.
En las fábulas y farsas, en los ciclos satíricamente paródicos, se persigue una lucha contra
el fondo feudal, contra las insanas convenciones, contra la mentira que ha penetrado todas
las relaciones humanas. A esa mentira, se le opone un poder revelador: la inteligencia luci-
da, gozosa y astuta del bufón (ya sea bajo la forma del “villano”, del pequeño aprendiz de
las ciudades, del joven clérigo “vagabundo” y, en general, del vagabundo desclasado). A la
mentira grave y siniestra se le opone así las burlas paródicas del bufón, la incomprensión
ingenua del tonto, la alegría embaucadora del pícaro; a la falsedad y a la ávida hipocresía,
a todo aquello que es convencional y abusivo, se le opone la generosa simplicidad, la sana
torpeza del tonto, la forma sintética de las denuncias paródicas del bufón. (Bakhtine 1978:
308).

Refiriéndose a la literatura polaca del exilio, Gombrowicz parece repetir el valor desenmascarador,
des-fachatante, de la parodia:
Durante demasiado tiempo” –dice- “habéis sido excesivamente literales, demasiado ingenuos en
vuestra lucha contra el destino. Os habéis olvidado de que el hombre no es únicamente él mismo, sino
que también se imita a sí mismo. Habéis echado al basurero todo lo que había en vosotros de teatro y
de histrionismo, y habéis intentado olvidarlo; hoy, a través de la ventana, veis que en el basurero ha
crecido un árbol que es una parodia de árbol. Suponiendo que naciera (lo cual no es seguro), nací para
desenmascarar vuestro juego. Mis libros no han de deciros: sed quienes sois, sino: fingís que sois quie-
nes sois. (Diario 1: 74).
En más de una ocasión Gombrowicz declara en su Diario que en momentos en que Polonia necesitaba
un Moisés, habría surgido un bufón (él mismo); un bufón que, sabemos, hacia el final de su novela Tran-
satlántico, se atreve aún, en momentos en que Polonia está siendo arrasada por la máquina de guerra
nazista, a la risa. Gombrowicz, en efecto, labra una actitud remisa a la plasmación directa de la tragedia,
a la seriedad que la tragedia impone, para labrar una ética estética (en el sentido de Kierkegaard), por
la cual recibe numerosos ataques de los grupos de exiliados polacos ingleses que entendían esa actitud
como raigalmente descomprometida.
Para volver a nuestra discusión, se diría que pese a que Gombrowicz nos alerte repetidamente en
su Diario que su filosofía sólo constata aquella inautenticidad radical de lo humano (Diario 2: 13) y que
no debemos esperar de ella “remedios” para aquel malaxante “rimar con los demás en la forma”, sabe-
mos que es precisamente en el Diario donde se esbozarán éticas capaces de construirse a partir de ese
conflicto. Estas éticas, sabemos, van desde la dostovieskana apelación a la confesión1, hasta el heracli-
teano culto a la metamorfosis2 (denunciado ya por Kierkegaard como una de las enfermedades del alma
estética, Kierkegaard: 51), alcanzando su mayor intensidad en un concienzudo histrionismo capaz, al
parecer, de convertir la malaxación del carácter en libertaria caricatura. Así, si el hombre está condenado
a “recitar lo humano”, le quedaría aún el recurso de vivir esa recitación-repetición histriónicamente, es
decir invalidándola como auténtica y a plena conciencia de su carácter falaz
La autenticidad entonces, como en la bufonería descripta por Bakhtin, es necesariamente paródica,
actuada desde prácticas oblicuas, desde gozosas y lúcidas astucias: todas aquellas formas de la burla,
la incomprensión y la impertinencia que pueden conjugar la raigalmente inauténtica condición humana
con una expresividad histriónica donde el yo puede decirse a través de una ficción alegre que es también
una angustiosa alegría ficticia.
Creo que este es el punto en el que podemos evaluar desde un nuevo ángulo el problema teórico
que parece inherente al concepto de autoficción.
En efecto, en un tramo de El Pacto autobiográfico (1975), Léjeune se pregunta si el héroe de una
novela puede tener el mismo nombre que el autor. A pesar de reconocer que nada impediría esta po-
sibilidad no se le ocurre ningún ejemplo práctico, así Gombrowicz con su Transatlántico (1952) parece
verdaderamente un precursor en la explotación de un género que ni siquiera todavía había sido enun-
ciado teóricamente.
Si tanto la biografía como la autobiografía no se distinguirían en tanto ambas precisan de la conciencia

1 Así, en el Diario, podemos leer que “No se trata, pues, de que el hombre haya de desprenderse de su máscara –pues detrás de ella no tiene ninguna
cara-; lo único que se le puede exigir es que tome conciencia de su artificiosidad y que la confiese. Si estoy condenado a la falsedad, la única sinceridad
posible para mí consiste en confesar que la sinceridad está fuera de mi alcance” (Diario 2: 13). Esta actitud quizás sea la más frecuente entre los personajes
gombrowiczianos, algunos de ellos eminentemente confesionales.
2 Si, como lo ha enunciado en diversas ocasiones Gombrowicz, toda forma deforma, es decir, lleva en sí la maldición de la alienación, esta segunda actitud
propone la metamorfosis continua del hombre de tal modo que su rostro no se petrifique en ninguna forma Para un análisis de la figura del camaleón que
propongo como símbolo de esta actitud ver Valérie Deshoulières: “Witold Gombrowicz: Toward a Romantic Theory of Incompleteness” en Ziarek, Ewa Plo-
nowska (org.), Gombrowicz’s Grimaces. Modernism, Gender, Nationality. New York, State University of New York Press, 1998. En este artículo se analiza,
desde los presupuestos de Heráclito, la obsesión de Gombrowicz por el movimiento y se indaga en la figura del camaleón como metáfora de la metamorfosis.
El artículo se remite así a la teoría del camaleón de Keats, y a sus implicaciones en Musil y Cortázar.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 324


de otro para poder estructurarse (Bakhtine 1984: 160), abriendo desde esa necesidad retórica un juego
de mayor o menor aproximación, de mayor o menor reconocimiento, de mayor o menor encubrimiento
entre esa “consciencia otra” -instancia del narrador- y el “yo” del relato, la autoficción tal como es asu-
mida por Gombrowicz supone el gesto de mayor falta de disimulo, o de mayor desencubrimiento de esa
relación: aquí la consciencia que narra es el propio yo del relato.
No se trata aquí del orden de la falsedad o de la verdad del relato, tal como la misma es planteada por
Genette en Ficción y dicción (1993) –planteo que sólo puede hacerse trayendo la figura de un autor que
en una suerte de paratexto se explaye sobre la verdad o mentira de su autoficción- sino del intento de
construcción de un dispositivo retórico por el cual se pretende alcanzar la plenitud de una conciencia.
Se dirá que esa pretensión de autenticidad en la que el yo es su propio narrador no se distingue de
una mera confesión. Sin embargo, faltaría entonces la esperanza de redención sobre la que la confesión
se asienta. Una autoficción -al menos como ella es concebida por Gombrowicz- carece (a pesar de cual-
quier semejanza con la confesión) de la previsión de una instancia posterior (y superior) que pudiera
operar una suerte de punto final en que lo dicho o confesado se desvaneciera como un pasado ominoso.
El tiempo de la autoficción es el de su propia y afrentosa contemporaneidad. Leemos al principio de
Transatlántico:
Me siento en la necesidad de comunicarle a mi Familia, a mis parientes y amigos, el comienzo
de mis aventuras, que duran ya diez años en la capital argentina. No pretendo invitar a nadie
a gustar de estos viejos Fideos míos, de este Nabo tal vez crudo que nada en una olla de
Estaño, Magra, Mala y Vergonzosa, en el aceite de mis Pecados, de mis Vergüenzas, de esta
Cebada pasada, Oscura, revuelta con negro alforfón. ¡Ay, cuánto mejor sería no llevármela a
la Boca para evitar mi Condenación eterna, mi Humillación a lo largo del interminable camino
de esta Vida mía, que asciende una Montaña dura y fatigosa! (Transatlántico: 11).

Estas aventuras que “duran ya diez años en la capital argentina” se narran desde la resistencia a
servirse de las mismas como redención (¡Ay, cuánto mejor sería no llevármela a la Boca para evitar mi
Condenación eterna!), y desde una irreverencia singularmente conjugada a lo trágico. Estas aventuras
no se escriben para dios, y tampoco para la patria (la nación polaca que sabemos que Gombrowicz juz-
ga perversamente aliada a la virtud cristiana y católica) sino, simplemente, para “comunicarselas” a la
Familia, a los parientes y amigos.
Si Bakhtin lee aquella “consciencia ajena” que organiza y narra la autobiografía como la anticipación
del recuerdo que la vida del yo del relato dejará en la vida de los otros -con todo lo que esto implica de
mancomunidad y sostén de los valores morales- (Bakhtin 1984: 160), puede entenderse porque Gom-
browicz, un crítico radical de los valores de la sociedad polaca, opta por una forma que pone los funda-
mentos del relato autobiográfico en estado de alarma, actitud que bien podría extenderse a su propio
Diario, al que se le ha reprochado, -durante su publicación original en Kultura- su circunstancialidad, su
falta raigal de trascendencia, aquello que, precisamente, erige su valor literario.
Frente al desdoblamiento de la consciencia que exige la autobiografía, la autoficción asume así la
transgresión lógica de una simultaneidad que impide cualquier tipo de exotopia (esa capacidad, según
Bakhtin, que el autor poseería de vislumbrar el espacio y el tiempo de su héroe3). De aquí que la subje-
tividad de Gombrowicz en Transatlántico jamás llegue a alcanzar una identidad, jamás llegue a formarse
-a madurar-, apelando a las idas y vueltas, a un deambuleo, a un vagar propio del borderline: “Extraviado
como en un Bosque – confiesa Gombrowicz apenas desembarcado en Buenos Aires- entre tantos nuevos
rostros desconocidos, me perdía entre dignidades y títulos, confundía personas, asuntos y cosas, bebía
o no bebía vodka y, como a tientas en medio del campo, deambulaba” (Transatlántico: 12).
El bufón, decíamos en la cita de Bakhtin, puede optar por varias formas, pero una de ellas, quizás la
más fuerte, es, precisamente, la del vagabundo. Quien recuerde Ferdydurke o Transatlántico, recordará
lo central que es en estos textos el indefinido andar, la vagarosa marcha, la deriva existencial de sus
personajes. La autoficción puede leerse así como una transgresión bufa de la autobiografía, como una
ficción alegre de imposible (o histriónica) autenticidad, un recurso de la astucia que subvierte valores
estéticos y morales, un simulacro de expresión sobre la condición esencialmente heterogénea o múltiple
que tanto Bakhtin como Gombrowicz formularon sobre la consciencia y sus modos de enunciación.
Bibliografía
BAKHTINE, Mikhaïl Esthétique et Théorie du roman, Gallimard, Paris, 1978.
_________________. Esthétique de la création verbale, Gallimard, Paris, 1984.
_________________.Problèmes de la poétique de Dostoïevski, L’Âge d’homme, Lausanne, 1970.
BAKHTINE, Mikhaïl / V.A. VOLOCHINOV. Le Marxisme et la philosophie du langage – Essai d’application de la
méthode sociologique en linguistique, Editions de Minuit, 1977.
GENETTE, Gerard. Ficción y dicción, Barcelona, Lumen, 1993.
GOFFMAN E. Les rites d´interaction, Paris, Minuit, 1974.
GOMBROWICZ, Witold . Diario 1, Madrid, Alianza, 1988.
_____________________. Diario 2, Madrid, Alianza, 1988.

3 En Bakhtine 1970, p. 119.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 325


_____________________. Ferdydurke, Bs. As., Sudamericana, 1983.
_____________________. Transatlántico, Barcelona, Barral, 1995.
KIERKEGAARD, S. Estética y Ética en la formación de la personalidad, Bs. As., Nova, 1969.
LÉJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique, Paris. Seuil, 1975.
PEYTARD, Jean. Mikhaïl Bakhtine, Dialogisme et analyse du discours, Bertrand- Lacoste, Paris, 1995.
SALGAS, Jean Pierre. Witold Gombrowicz, ou, L’atheisme généralisé , Seuil, Paris, 2000.
VOLLE, Jacques. Gombrowicz; bourreau, martyr, Bourgois, Paris, 1972.
ZIAREK, Ewa Plonowska (org.). Gombrowicz’s Grimaces. Modernism, Gender, Nationality, New York, State
University of New York Press, 1998.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 326


O pensamento bakhtiniano no debate brasileiro
sobre o conceito de gênero

Sandoval Nonato GOMES-SANTOS

N.P.I.-Universidade Federal do Pará/ IEL-Universidade Estadual de Campinas

End.: Rua Falcão Filho, 233 – Bl. B – apto. 101

CEP 13.020-160 – Campinas – SP – Brasil.

Resumo
A emergência mais recente do conceito de gênero no domínio da pesquisa acadêmica, no Brasil, tem
sido marcada por modos diversos de articulação de aportes teóricos advindos de diferentes tradições
disciplinares. Assim, ao ser considerado pertinente para os estudos da linguagem, o conceito de gênero
parece suscitar, entre outras, questões sobre as fronteiras entre os estudos do texto, os do discurso e
aqueles preocupados com questões didáticas. Nesse contexto, o pensamento bakhtiniano permanece como
a principal referência teórica de que se apropria o debate sobre gênero. A partir dessas considerações,
propomo-nos a analisar os modos de reformulação das percepções bakhtinianas em um conjunto de
artigos científicos publicados, no Brasil, entre 1998 e 2002, em coletâneas organizadas especificamente
com a finalidade de discutir gênero.
Résumé
La récente émergence du concept de genre dans le domaine de la recherche académico-scientifique
brésilienne est marquée par des manières différentes d’articuler les apports théoriques liés à maints
courants disciplinaires. C’est pour quoi le genre est devenu un concept qui joue un rôle important dans
la délimitation des frontières entre les études textuelles, les études à visée discoursive-énonciative et
celles explicitement préoccupées par des questions didactiques. Dans cette conjoncture intelectuelle, la
réflexion bakhtinienne sur le problème du genre est la référence théorique la plus importante. A partir
de cette supposition, nous nous proposons d’analyser les modes de réformulation des idées de Bakhtin
dans un ensemble d’articles scientifiques publiés au Brésil entre 1998 et 2002 dans des récueils dont le
but est de discuter la question du genre.

0. Introdução
A emergência mais recente do conceito de gênero no domínio da pesquisa acadêmica, no Brasil, tem
sido marcada tanto pela pluralidade de temas e objetivos enfatizados no debate sobre esse conceito quanto
por modos diversos de articulação de aportes teóricos advindos de diferentes tradições disciplinares.
A partir dessas percepções, confirmadas em trabalho anterior em que analisamos algumas tendências
dos estudos sobre gênero na pesquisa acadêmica brasileira (v. Gomes-Santos, 2002), propomo-nos a
focalizar, neste estudo, as formas de retomada da reflexão bakhtiniana sobre gênero quando da tema-
tização do conceito. Utilizamo-nos, para tanto, de um conjunto de artigos científicos publicados, entre
1998 e 2002, em coletâneas organizadas especificamente com a finalidade de tematizar o conceito de
gênero (42 artigos).
Cabe assinalar que a seleção dos artigos orientou-se pelo critério de tematização do conceito de gê-
nero. Tematizar o conceito de gênero consistiu, conforme opção metodológica deste estudo, em estabe-
lecer algum tipo de relação entre o objeto e as questões de pesquisa de que se ocupam os trabalhos e o
conceito de gênero, mesmo que esse conceito, em alguns trabalhos, esteja apenas pressuposto. Segue
o quadro das coletâneas em que foram publicados os artigos que constituem o corpus deste estudo.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 327


Tabela 1: Coletâneas selecionadas para a constituição do corpus

Título da coletânea Organizadores Vínculo instituci- Editora/ Local, No. de artigos por
onal dos organiza- Data de publi- coletânea
dores cação
A. Gêneros do dis- M. H. N. Brandão USP Cortez Editora/ 5
curso na escola São Paulo, 2000
B. Gêneros tex- A. P. DionísioA. UFPEPUC-SPUFPB Lucerna/ Rio de 15
tuais e ensino R. MachadoM. A. Janeiro, 2002
Bezerra
C. Gêneros tex- J. L. MeurerD. UFSCUFSM EDUSC/Bauru 13
tuais Motta-Roth (SP), 2002
D. A prática de R. Rojo PUC-SP EDUC e Mercado 9
linguagem em sala de Letras/São
de aula – prati- Paulo e Campinas,
cando os PCNs 2000
TOTAL 42

Os artigos selecionados foram organizados segundo quatro categorias: i) enfoques temáticos; ii)
aportes teóricos; iii) tipos de dados analisados; iv) contextos institucionais de constituição dos dados
analisados. O estabelecimento dessas categorias decorreu, por um lado, do estudo exploratório que
mencionamos (Gomes Santos op. cit.) e da leitura de trabalhos que tiveram a proposta de estabelecer
uma espécie de estado do conhecimento sobre a alfabetização no Brasil (Soares 1989); sobre a aqui-
sição e o ensino da escrita (Caron et al.: 2000); sobre as relações entre lingüística, ensino de língua e
formação de professores (Geraldi et al.: 1996) e ainda sobre a circulação do conceito de gênero (Rojo:
mimeo). Por outro lado, a própria leitura dos artigos possibilitou a depreensão de informações que se
constituíram elementos para o estabelecimento das categorias mencionadas.
Optamos por apresentar, a seguir, apenas a categoria relativa aos aportes teóricos a que fazem
recurso os trabalhos quando do tratamento da questão do gênero. Mais especificamente, a análise do
corpus privilegiará a observação dos modos de reformulação da reflexão bakhtiniana sobre gênero e a
articulação que se busca estabelecer entre essa reflexão e o fenômeno mais recente de retorno do debate
acadêmico-científico sobre o conceito de gênero.
1. Aportes teóricos do tratamento da questão do gênero
Organizamos, nessa categoria, os trabalhos segundo os aportes teóricos que os fundamentam e/ou
orientam os procedimentos metodológicos da análise que propõem. Vale assinalar os modos diversos
de retomada de aportes teóricos nos trabalhos analisados: eles podem servir para subsidiar a análise
dos dados, para discutir o conceito de gênero do ponto de vista teórico ou ainda para construir uma
determinada visada teórica/histórica do conceito, entre outras possibilidades. Como veremos, não há
como estabelecer limites muito rígidos entre os aportes teóricos de que se utilizam os trabalhos, já que
o mais comum é o entrecruzamento de referências teóricas advindas de tradições disciplinares diversas.
Dado esse fato, optamos por considerar os aportes teóricos apresentados a seguir em termos de maior
ênfase/dominância com que aparecem nos trabalhos.
Inicialmente, pode-se destacar no conjunto dos dados dois agrupamentos que se distinguem dos de-
mais em função do modo como se apropriam dos aportes teóricos: por um lado, os trabalhos que não se
utilizam de aporte teórico particular em função da própria natureza da investigação. Trata-se de estudos
cujo enfoque circunscreve-se à problematização teórica do conceito de gênero pelo confronto de uma ou
de várias correntes teóricas. Nesse caso, pode-se dizer que os aportes teóricos são o próprio objeto sob
análise e não têm propriamente função operatório-metodológica para a análise de um corpus no contexto
do estudo. Por outro, os trabalhos que conjugam diversos aportes teóricos advindos não exatamente dos
estudos lingüísticos e/ou não necessariamente ligados à reflexão sobre gênero.
Seguem as tabelas que contemplam esses trabalhos.

Tabela 2: Agrupamentos de trabalhos segundo dois modos de apropriação de aportes teóricos


Dois modos particulares de apropriação de aportes teóricos No. de artigos científicos %
1. Dada a natureza do estudo, não há aporte teórico particular
1 2,4
para a análise de dados
2. Conjugação de aportes teóricos os mais diversos ligados ou não
3 7,1
à reflexão sobre gênero
TOTAL 4 9,5

Proceedings XI International Bakhtin Conference 328


Quanto aos trabalhos em que há especificação de aportes teóricos, podemos distribuí-los como a
seguir.
Tabela 3: Aportes teóricos do tratamento do conceito de gênero
Aportes teóricos No. de artigos científicos %
1. Bakhtin, grupo de Genebra e outros autores 13 30,9
2. Bakhtin e outros autores de tendências variadas 10 23,8
3. Estudos anglo-saxãos (Fairclough, Swales, Bathia etc.) e/ou
autores brasileiros de tendência similar 6 14,3
4. Grupo de Genebra e outros autores 3 7,1
5. Bakhtin e estudos de gênero anglo-saxãos 2 4,8
6. Estudos em lingüística textual e/ou análise
da conversação conjugados a estudos de tendências variadas 2 4,8
7. Bakhtin, teoria do discurso de linha francesa e/ou
estudos de história das idéias e mentalidades 1 2,4
8. Escola francesa de análise do discurso e outros estudos
enunciativo-discursivos 1 2,4
TOTAL 38 100

Uma das principais tendências na pesquisa acadêmica sobre gênero é a retomada do pensamento
bakhtiniano, associado a outros aportes teóricos. Essa complementaridade é recorrente em grande parte
dos trabalhos analisados e assume nuanças diferentes segundo modos de remissão diversos às idéias
de Bakhtin e de articulação de seu pensamento com outros estudos. Dada a relevância do recurso ao
pensamento bakhtiniano, podemos distinguir dois grandes procedimentos de utilização de aportes teó-
ricos no corpus: i) trabalhos que de algum modo retomam as idéias de Bakhtin e as articulam a outros
estudos e ii) trabalhos que se utilizam de outros aportes sem referência explícita a Bakhtin.
No primeiro caso, as articulações com o aporte teórico bakhtiniano podem assumir as particularidades
expostas a seguir:
a) a articulação entre Bakhtin, o grupo de Genebra e/ou outros autores. Os trabalhos que mencionam
tais aportes teóricos trazem um interesse explicitamente marcado pela descrição de gêneros para fins
didático-pedagógicos. Trata-se de estudos que propõem a caracterização de gêneros para o ensino de
línguas, de leitura e de escrita e/ou tematizam outras questões didáticas como formação de professores
etc. Bastante freqüente, nos trabalhos agrupados nesse bloco, é a referência ao interacionismo sócio-
discursivo, conforme proposto por Bronckart e o grupo de pesquisadores a ele associado. Aparecem,
também com freqüência, as menções a Marcuschi e a Vygotsky, entre outras. Enquanto Bakhtin perma-
nece como o aporte teórico fundante da definição de gênero, os demais aportes teóricos são convocados
como forma de clarificar o conceito de gênero bakhtiniano, por meio tanto da problematização teórico-
epistemológica do mesmo, quanto da proposição de dispositivos operatórios para a análise de dados
de diversa natureza. Além disso, alguns dos demais aportes teóricos dão suporte para a discussão de
questões conexas à discussão sobre gênero, tais como letramento, formação em serviço, ensino-apren-
dizagem de língua etc.
b) a articulação entre Bakhtin e outros autores de tendências variadas. A remissão ao pensamento
bakhtiniano, nesse caso, associa-se à citação de autores os mais diversos, isto é, daqueles cujo pertenci-
mento disciplinar não pode ser marcadamente delineado ou ainda daqueles não necessariamente ligados
aos estudos da linguagem, em geral, e aos estudos do gênero, em particular. Esse modo de associação
subsidia a discussão sobre gênero em trabalhos que trazem os mais diversos objetivos, tais como: a
caracterização e a descrição de gêneros (mito, cartas do leitor, notícias e artigos de opinião, cordel etc.)
e/ou a análise de macrotemáticas em gêneros particulares (estratégias de ataque à face, o papel da
polifonia discursiva, relações interdiscursivas etc.), entre outros casos. Assim, o modo de articulação
mencionado parece ser sobredeterminado – de modo bastante explícito nesse bloco de trabalhos – pelo
enfoque temático, pelos objetivos e pelo tipo de corpus de que se ocupam os trabalhos.
c) a articulação entre Bakhtin, a teoria do discurso de linha francesa e/ou os estudos de história das
idéias e mentalidades. Os trabalhos agrupados nesse bloco convocam autores e estudos explicitamente
identificados com a teoria francesa do discurso e/ou ligados à história das idéias e das mentalidades.
Estudos francófonos como os de Pêcheux, Foucault, de Certeau, Chartier, Maingueneau, Reboul etc. as-
sociam-se à reflexão bakhtiniana em trabalhos que buscam, por exemplo, problematizar o conceito de
gênero e sua relação com a noção de tipologia textual, entre outros aspectos.
d) a articulação entre Bakhtin e estudos de gênero anglo-saxãos. Essa última forma de associação
do pensamento bakhtiniano com outros aportes teóricos é efetivada pelo recurso a modelos advindos de
estudos anglófonos como o de N. Fairclough e a área de pesquisas denominada Análise Crítica do Dis-
curso e/ou a estudos mais especificamente ligados à questão do gênero, como os de Bathia e de Swales
– bem como de pesquisadores brasileiros de mesma corrente teórica.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 329


Como segundo modo de apropriação de referências teóricas, temos os trabalhos que se utilizam
de outros aportes sem remissão explícita e direta a Bakhtin, ou seja, aqueles em que o pensamento
bakhtiniano, embora pressuposto como referência, não é retomado efetivamente na fundamentação
teórica do trabalho. Nessa direção, um aporte teórico importante é aquele advindo dos estudos anglo-
saxãos (Fairclough, Swales, Bathia etc.) e/ou autores brasileiros de tendência similar. A remissão a esses
estudos configura-se como aplicação, adaptação e/ou ampliação de dispositivos teóricos e metodológicos
para a análise de dados. É o caso do Modelo tridimensional de análise crítica do discurso, que tem N.
Fairclough como principal expoente, e do modelo CARS (Create a researth space) – constituído na área
de ensino de línguas para fins acadêmicos e tendo como nome mais representativo J. M. Swales. Acres-
ce-se à utilização desses aportes o recurso a outros autores como Bathia e Miller, além da referência
à gramática sistêmico-funcional conforme proposta por Halliday. Pesquisadores brasileiros de corrente
teórica similar – Meurer, Motta-Roth etc. – complementam o rol de autores que embasam trabalhos cujo
interesse volta-se tanto para a descrição de gêneros (especialmente os acadêmicos), quanto para a
análise de macrotemáticas – ideologia, identidade, relações de poder – em gêneros particulares, entre
outras delimitações.
Três outros casos de apropriação de referências teóricas sem retomada explícita e direta de Bakhtin
incluem a remissão aos trabalhos do chamado grupo de Genebra, à lingüística textual e/ou análise da
conversação e à escola francesa de análise do discurso e outros estudos enunciativo-discursivos. Vale
lembrar que, embora não explicitamente retomado, o pensamento bakhtiniano está implicado em vários
dos trabalhos que integram esses três blocos, uma vez que os aportes teóricos por eles convocados
pressupõem, em grande medida, a reflexão de Bakhtin. É o caso especialmente dos trabalhos que fazem
referência aos estudos do grupo de Genebra.
***
Em síntese, considerando que, do ponto de vista da discussão sobre gênero, a referência teórica mais
recorrente seja o pensamento bakhtiniano, pode-se dizer que o recurso a aportes teóricos na pesquisa
acadêmica sobre gênero caracteriza-se como a seguir:
1) Trabalhos que, por sua natureza, não fazem referência a aportes teóricos particulares;
2) Trabalhos em que são conjugados aportes teóricos diversos advindos não necessariamente dos
estudos lingüísticos nem ligados obrigatoriamente à reflexão sobre gênero;
3) Trabalhos que fazem recurso ao pensamento bakhtiniano podendo articulá-lo a outros estudos.
Nesse caso, a articulação pode constituir-se como:
a) referência a Bakhtin e aos estudos do grupo de Genebra, bem como a menção a outros autores;
b) referência a Bakhtin e outros autores de tendências variadas;
c) referência a Bakhtin e à teoria do discurso de linha francesa, bem como a autores ligados à história
das idéias e das mendalidades;
d) referência a Bakhtin e aos estudos de gênero anglófonos.
4) Trabalhos que não fazem recurso ao pensamento bakhtiniano apropriando-se de outros estudos
ligados ou não diretamente à reflexão sobre gênero:
a) referência aos estudos de gênero anglófonos, conjugados a autores brasileiros de corrente simi-
lar;
b) referência a estudos em lingüística textual e análise da conversação, articulada à menção de outros
estudos;
c) referência à escola francesa de análise do discurso e outros estudos enunciativo-discursivos.
Como havíamos mencionado, a análise dos dados quanto aos aportes teóricos de que se utiliza a
pesquisa acadêmica sobre gênero explicita modos diversos de articulação entre eles. A própria remissão
ao pensamento bakhtiniano – bastante relevante no conjunto de trabalhos – não se efetiva de modo
similar em todos eles. Ela é configurada em graus diferentes que podem consistir em citação do nome do
autor e de suas percepções sobre gênero, em retomada do enunciado do autor segundo o qual gêneros
do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados das várias esferas da atividade humana,
em problematização teórica das idéias bakhtinianas etc. Além disso, a retomada de outros estudos para
subsidiar a discussão proposta nos trabalhos pode contemplar ainda: i) a filiação explícita a uma cor-
rente teórica e a tentativa de se apropriar de dispositivos metodológicos claramente consolidados como
tal (caso dos trabalhos que se utilizam seja do modelo do sócio-interacionismo discursivo proposto pelo
grupo de Genebra, seja do modelo CARs proposto por Swales ou ainda daquele chamado de modelo tri-
dimensional de análise do discurso proposto por Fairclough); ii) a filiação a disciplinas lingüísticas cujas
fronteiras podem ser delineadas (lingüística textual, análise da conversação, teoria do discurso de matiz
francês etc.); iii) a filiação a vários autores/aportes como forma de elaborar um conhecimento sobre o
estado da arte dos estudos; iv) a conjugação de vários autores não necessariamente ligados aos estudos
da linguagem, em geral, e aos estudos do gênero, em particular.
Os entrecruzamentos dos vários aportes teóricos, embora, por um lado, possa revelar uma certa
pluralidade teórica como marca da pesquisa acadêmica sobre gênero, parece explicitar, por outro, que
a reflexão sobre gênero, ao tentar associar saberes teóricos diversos, acaba por produzir um efeito de
conciliação necessário para legitimar a questão do gênero como pertinente. Esse efeito parece decorrer,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 330


entre outras motivações, do próprio modo interdisciplinar pelo qual o conceito tem-se estabelecido na
pesquisa acadêmica, uma vez que tanto concilia categorias teóricas nem sempre facilmente articuláveis
– como aquelas de texto e de discurso – quanto de certo modo flexibiliza fronteiras disciplinares – entre,
por exemplo, os estudos em lingüística (em várias de suas nuanças) e aqueles mais ligados à didática
de línguas.
A seguir, vejamos como se configuram, sob um enfoque mais propriamente lingüístico, as tendências
relacionadas aos aportes teóricos retomados pela pesquisa acadêmica sobre gênero, no que se refere
especificamente ao pensamento bakhtiniano. Para tanto, organizamos as ocorrências lingüísticas que
indiciam procedimentos de citação do referencial teórico bakhtiniano, assinalando qual o funcionamen-
to desses procedimentos. Assim, do corpus de 42 artigos, a análise incidirá tão-somente sobre os que
retomam explicitamente o pensamento bakhtiniano (ou seja, 27 artigos), tal como mostra o quadro a
seguir:
Tabela 4: Trabalhos que retomam explicitamente o pensamento bakhtiniano
Dois modos particulares de apropriação de aportes teóricos No. de artigos científicos %
1.Bakhtin, grupo de Genebra e outros autores 13 48,2
2. Bakhtin e outros autores de tendências variadas 10 37
3. Bakhtin e estudos de gênero anglo-saxãos 2 7,4
4. Bakhtin, teoria do discurso e linha francesa e
estudos de história das idéias e mentalidades 1 3,7
5. Dada a natureza do estudo, não há aporte teórico
particular para a análise de dados 1 3,7
TOTAL 27 100

2. Ocorrências lingüísticas dos modos de citação do pensamento bakhtiniano


Para a análise que propomos a seguir, consideramos que os modos de citação do pensamento bakhti-
niano podem ser tomados, em certa medida, como modos de reformulação, na direção sugerida – em
outro contexto de discussão – pelos trabalhos de Jacobi (1988) e de Mortureux (1993).
Quando de sua análise do discurso de divulgação científica, Jacobi assinala o papel da reformulação
na definição de objetos científicos. A reformulação compõe-se, para o autor, de duas frases: a primeira
encapsula o termo-pivô e a segunda visa a explicitar o sentido desse termo. Dois tipos de fontes podem
ser utilizadas quando da reformulação de enunciados científicos: o procedimento de substituição e o
procedimento de expansão – nesse último caso, o termo-pivô pode ser retomado por uma expressão
equivalente cuja aposição dá-se por antecipação ou por posposição (Jacobi, op. cit.: 101-3).
Já M.-F. Mortureux, ao tratar do que chama de “paradigmas designacionais”, lembra que, já em 1975,
o número 37 da revista Langages enfatizava as noções de “substituibilidade” e de “paráfrase discursiva”.
Nos termos da autora, a noção de paradigmas designacionais consiste,
“em uma primeira aproximação, em listas de sintagmas (em geral, nominais, às vezes, ver-
bais) que funcionam em correferência com um vocábulo inicial em um dado discurso. Será
necessário precisar a coisa, distingüindo primeiramente, dentre os reformulantes, aqueles
sintagmas com valor designativo e as perífrases definicionais (paráfrases)... ” (Mortureux,
1993: 123-4).

Com base nessa definição, a autora propõe quatro modalidades de reformulação, a saber: a me-
talinguagem (paráfrase in praesentia); a diáfora (o conjunto de mecanismos que asseguram a coesão
textual por meio da anáfora e da catáfora); a tipografia (sinais de pontuação, aspas, parênteses, negrito
e itálico) e a equivalência distribucional (paráfrase in absentia).
As percepções de Jacobi e de Mortureux servem, no caso da análise a seguir, como sugestão para um
certo tipo de tratamento das ocorrências lingüísticas presentes nos artigos e não exatamente, conforme
veremos, como modelo de análise ao qual poderiam ser remetidas essas ocorrências.
Como mencionamos anteriormente, há modos diversos de citação do pensamento bakhtiniano nos
trabalhos analisados: a remissão a esse pensamento pode servir para marcar um certo pertencimento
disciplinar/institucional do estudo em questão, para definir o objeto-gênero do ponto de vista teórico,
para subsidiar a análise dos dados, para descrever fenômenos lingüísticos, para caracterizar determina-
dos gêneros, entre outras possibilidades. Assim, interessa-nos detectar não apenas os modos de citação
(como se cita), mas também o papel dessa citação (para que se cita) nos trabalhos sob análise. Seguem
as ocorrências em que se configuram esses procedimentos de citação.
2.1. A explicitação de um pertencimento disciplinar, teórico e/ou institucional particular pela referência
à perspectiva teórica bakhtiniana. Nesse caso, busca-se encapsular sob uma determinada nomeação a
filiação explícita ao aparelho teórico bakhtiniano:
(1) A base teórica que assumimos em relação à linguagem concentra-se na abordagem

Proceedings XI International Bakhtin Conference 331


enunciativo-discursiva de Bakhtin (1929/1953), que dá ênfase ao processo de interação
verbal e ao enunciado. (p. 59) [B.4.]
(2) Como sugerem o título e a introdução, este trabalho insere-se numa perspectiva enun-
ciativa. Adotamos a teoria formulada por Bakhtin, cujos conceitos de linguagem, gênero,
dialogismo e polifonia serão definidos nesta seção. (p. 167) [B.12.]
(3) Assim, os gêneros discursivos, com formas específicas de uso da língua, ocupam um
lugar de destaque na concepção sociointeracionista de linguagem empreendida por Bakhtin.
(p. 147) [C.5.]
(4) Este grupo de pesquisadores compartilha essa posição e fundamenta seu trabalho de
pesquisa na concepção enunciativa de língua proposta por Bakhtin (1953/1979), uma das
teorias que embasam os PCNs, especialmente no que diz respeito aos gêneros de discurso.
(p. 95) [D.4.]

As diferentes nomeações do aporte teórico bakhtiniano podem indicar pelo menos duas ênfa-
ses quando da utilização desse aporte para o tratamento do conceito de gênero: a ênfase no aspecto
comunicacional (sócio-interativo) – isto é, na dimensão comunicativa das práticas verbais – e a ênfase
no aspecto enunciativo – na ancoragem enunciativo-discursiva das marcas lingüísticas presentes em
produções de linguagem tomadas como gênero.
2.2. A retomada das percepções bakhtinianas sobre gênero, como forma de definir esse objeto. Nesse
caso, as tentativas de definição do objeto-gênero podem consistir:
a) em reformulação do sintagma gêneros discursivos (e de suas variantes gêneros do discurso, gênero
etc.) pelo uso dos dispositivos de posposição ou anteposição, o que se configura tanto pela pontuação
(vírgulas, travessões etc.) quanto por expressões reformuladoras (isto é) ou ainda por expressões ge-
néricas (o termo):
(5) Para Bakhtin (1953), a cada tipo de atividade humana que implica o uso da linguagem
correspondem enunciados particulares, os gêneros do discurso. Enquanto os gêneros são
relativamente estáveis, os textos que os materializam são extremamente variáveis e ma-
leáveis (Bronckart, 1997; Dolz e Schneuwly, 1996), o que torna difícil a sua classificação.
(p. 74) [B.5.]
(6) O presente trabalho está embasado, primordialmente, na abordagem de gênero de Bakhtin
(1992). Para o autor, sempre que falamos, utilizamos gêneros do discurso, ou seja, todos
os enunciados são constituídos a partir de uma forma padrão de estruturação. Dessa forma,
gênero pode ser definido como ‘tipos relativamente estáveis de enunciados’, elaborados por
cada esfera de utilização da língua. Esses enunciados relativamente estáveis são construídos
sociohistoricamente e se relacionam diretamente a diferentes situações sociais, sendo que
cada situação gera um determinado gênero com características temáticas, composicionais
e estilísticas próprias. (pp. 87-88) [B.6.]
(7) Parece-nos ainda que já se estabeleceram certas convenções relativas às produções
verbais aí possíveis, esperando-se de uma pessoa não habituada a freqüentar as salas de
bate-papo uma rápida adaptação, na situação, de seu discurso às formas do gênero, ou
seja, ao tipo de conteúdo que aí se espera, ao tipo de estilo e de construção composicional
de seus enunciados que são, para Bakhtin, os três elementos que caracterizam um gênero.
Na falta dessa adaptação, o produtor seguramente não será bem sucedido na sua tentativa
de interação verbal via chat. (p. 88) [B.6.]
(8) Na concepção teórica, o conceito bakhtiniano de gênero pode ser pensado como um
evento recorrente de comunicação em que uma determinada atividade humana, envolvendo
papéis e relações sociais, é mediada pela linguagem (Motta-Roth, 1998b, p. 127). Gênero,
aqui, está relacionado a constantes inscritas em textos que representam um dado evento
comunicativo (p. ex., um texto publicitário, um programa de entrevistas na televisão, uma
reportagem jornalística ou um editorial em revistas femininas). O termo, amplamente uti-
lizado pela retórica, pela teoria literária, pela lingüística e, mais recentemente, pela teoria
midiática, é adotado neste trabalho para fazer referência a diferentes classes ou tipos de
textos. (p. 261) [C.12.]
(9) Os gêneros, como espaço de permanente mobilidade e transformação, podem ser ca-
racterizados como espaços dinâmicos capazes de incorporar transformações que se impõem
historicamente.
A visão bakhtiniana, conforme se observa, aproxima-se da idéia de mobilidade e dinamici-
dade assumida também por Todorov e já explicitada neste trabalho. Com essa possibilidade,
apesar do caráter regulador e estabilizador, um gênero, antes de ser um sistema que limita
a criatividade, que enclausura a aprisiona produtores e receptores, é um sistema que os
orienta para a produção e recepção de textos adequados a situações específicas, em épocas
também específicas. (pp. 270-1) [C.12.]
(10) Para o autor [Bakhtin], é nas diferentes esferas da atividade e comunicação humana
que se constituem os enunciados, que refletem as condições específicas da sua esfera pelo

Proceedings XI International Bakhtin Conference 332


tema, pela composição e pelo estilo. Aos diferentes tipos de intercâmbio comunicativo social
correspondem diferentes enunciados, que, historicamente, constituem formas relativamente
estáveis de enunciados, os gêneros do discurso. (p. 210) [D.8.]

Além dos dispositivos mencionados, o objeto-gênero pode ainda ser definido por meio de estratégias
de equivalência. Nesse caso, a definição do objeto opera-se pelo uso do verbo-cópula ser e/ou por outros
verbos que apresentam um funcionamento designativo similar ao do verbo ser.
(11) Daí dizer-se que os gêneros são modelos comunicativos. Servem, muitas vezes, para
criar uma expectativa no interlocutor e prepará-lo para uma determinada reação. Operam
prospectivamente abrindo o caminho da compreensão, como muito bem frisou Bakhtin
(1997). (p. 33) [B.1.]
(12) Cada gênero tem seu estilo verbal próprio. Como coloca Bakhtin, os estilos lingüísticos
são estilos de gêneros. Os gêneros do discurso se constituem como uma das grandes forças
de estratificação interna da língua (Bakhtin, 1993a). (p. 212) [D.8.]

Por fim, a reformulação do sintagma gêneros do discurso pode configurar-se pelo uso de expressões
de modalização epistêmica como nos termos de, tal como entendidos por etc.:
(13) Se as sociedades e culturas são inúmeras e se suas atividades (também inúmeras) são
mediadas pela linguagem, os modos de utilização dessa linguagem são tão variados quanto
variadas forem as atividades humanas, as quais vão moldando a linguagem em enunciados
relativamente estáveis, no dizer de Bakhtin (1997), garantindo a comunicação verbal. Esses
enunciados constituem os gêneros (discursivos, para esse autor) textuais, como chamaremos
aqui. (p. 209) [B.15.]
(14) Conforme já mencionado, o gênero envolve uma rede complexa de relações entre escri-
tos, leitor, editor, editora, etc. (...) O gênero funciona assim como um pronunciamento, como
um mecanismo de verificação de qualidade da tradição literária, exercendo algum tipo de
força centrípeta (nos termos de Bakhtin) em acomodar o novo livro na rede de publicações
existente e no atual estado de conhecimento da disciplina. (p. 88) [C.3.]
(15) É sempre bom lembrar que os gêneros, tal como entendidos por Bakhtin, são formas
oriundas de diferentes esferas de comunicação e não formas estabelecidas aprioristicamente.
(p. 162) [D.5.]

b) em reformulação do enunciado do autor segundo o qual “gêneros do discurso são tipos relativa-
mente estáveis de enunciados das várias esferas da atividade humana” (Bakhtin [1952-3] 1997: 279).
A reformulação pode se configurar como retomada desse enunciado com ou sem renomeação do termo-
pivô tipos de enunciados. Para o caso em que há retomada com renomeação, temos:
(16) (...) os gêneros textuais não se caracterizam como formas estruturais estáticas e defi-
nidas de uma vez por todas. Bakhtin [1997] dizia que os gêneros eram tipos ‘relativamente
estáveis’ de enunciados elaborados pelas mais diversas esferas da atividade humana. São
muito mais famílias de textos com uma série de semelhanças. Eles são eventos lingüísticos,
mas não se definem por características lingüísticas: caracterizam-se, como já dissemos,
enquanto atividades sócio-discursivas. Sendo os gêneros fenômenos sócio-históricos e
culturalmente sensíveis, não há como fazer uma lista fechada de todos os gêneros. (p. 29)
[B.1.]
(17) Esta era também a posição central de Bakhtin [1979] que, como vimos, tratava os
gêneros como atividades enunciativas “relativamente estáveis”. (p. 35) [B.1.]
(18) A interação verbal efetiva-se por meio de enunciados considerados relativamente está-
veis, chamados de gêneros, embora essa estabilidade deva ser examinada com ressalvas,
porque os gêneros estão em constantes transformações. (...) Foi esse conceito que nos
possibilitou realizar um trabalho de letramento escolar, com base nos gêneros de uso social,
dentre eles, os textos de opinião. (p. 59) [B.4.]
(19) Os gêneros, como formas relativamente estáveis de enunciados historicamente deter-
minados, opõem-se ao ensino organizado a partir de tipologias textuais como a narração, a
descrição e a dissertação, invariavelmente adepto da utilização de textos petrificados e fora
do fluxo vital da organização e da vida social. (pp. 127-8) [D.5.]

Para aqueles em que a retomada se dá sem renomeação, temos:


(20) De acordo com Bronckart (1999), a utilização de uma língua efetua-se sob a forma
de enunciados (orais e escritos) que são provenientes dos representantes de um ou outro
domínio da atividade humana. Cada um desses domínios elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados que Bakhtin (1992) denomina gêneros do discurso. Disso resulta,
como lembra Bronckart, que qualquer espécie de texto, concebido como produto concre-
to da ação da linguagem pode ser designada em termos de gênero e que, portanto, todo
exemplar de texto observável pode ser considerado como pertencente a um determinado
gênero. (p. 50) [B.3.]

Proceedings XI International Bakhtin Conference 333


(21) O presente trabalho está embasado, primordialmente, na abordagem de gênero de
Bakhtin (1992). Para o autor, sempre que falamos, utilizamos gêneros do discurso, ou seja,
todos os enunciados são constituídos a partir de uma forma padrão de estruturação. Dessa
forma, gênero pode ser definido como ‘tipos relativamente estáveis de enunciados’, elabo-
rados por cada esfera de utilização da língua. Esses enunciados relativamente estáveis são
construídos sociohistoricamente e se relacionam diretamente a diferentes situações sociais,
sendo que cada situação gera um determinado gênero com características temáticas, com-
posicionais e estilísticas próprias. (pp. 87-88) [B.6.]
(22) Tal como posta por esse autor, assumimos a noção bakhtiniana de gênero do discur-
so, segundo a qual as diferentes esferas das atividades humanas, no decorrer da história,
elaboram ‘tipos relativamente estáveis de enunciados’ (Bakhtin, 1992: 279), os gêneros de
discurso, que se caracterizam por apresentarem tema, construção composicional e estilo
específicos. (p. 139) [B.10.]
(23) Cada esfera de utilização da língua elabora ‘tipos relativamente estáveis’ que, segundo
Bakhtin, são gêneros do discurso, caracterizados pelos seus conteúdos e pelos meios lingü-
ísticos que eles utilizam. (p. 146) [C.5.]
(24) Considerados isoladamente, os enunciados são individuais, mas cada esfera de utiliza-
ção da língua elabora seus gêneros, tipos relativamente estáveis de enunciados. Os gêneros
textuais dividem-se em ‘primários’ (simples) e ‘secundários’ (complexos) (id., p. 281). (p.
201) [C.8.]

O modo de reformulação do sintagma tipos de enunciados parece indicar modos de definição diversos
do objeto-gênero, na medida em que, ao ser renomeado, esse sintagma pressupõe posicionamentos
teóricos particulares, manifestos nas expressões: famílias de textos, eventos lingüísticos, atividades
sócio-discursivas, fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensíveis, atividades enunciativas, enun-
ciados, formas etc. A observação dessas expressões permite assinalar propriedades de natureza diversa
tomadas como supostamente constitutivas do objeto-gênero, fundadas no entrecruzamento de critérios
tanto circunscritos à dimensão propriamente textual do objeto (famílias de textos, formas), quanto os
que se relacionam a sua realidade sócio-histórica (fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensíveis)
– para ficar em alguns exemplos.
c) em reformulação da definição de gênero bakhtiniana por meio de remissão a contribuições de outros
estudos de gênero, como modo de precisar teoricamente o conceito e de atribuir-lhe um pertencimento
disciplinar explícito. Vejamos:
(25) Partimos do pressuposto básico de que é impossível se comunicar verbalmente a não ser
por algum gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum
texto. Em outros termos, partimos da idéia de que a comunicação verbal só é possível por
algum gênero textual. Essa posição, defendida por Bakhtin [1997] e também por Bronckart
(1999) é adotada pela maioria dos autores que tratam a língua em seus aspectos discursivos
e enunciativos, e não em suas peculiaridades formais. (p. 22) [B.1.]
(25) Enquanto Dolz e Schneuwly (1996) desenvolvem a idéia metafórica de gênero como
(mega)instrumento para agir em situações de linguagem, Bakhtin concebe os gêneros do
discurso como tipos de enunciados criados dentro dos vários campos da atividade humana.
(p. 48) [B.3.]
(26) Aprofundando a concepção de Bakhtin, Schneuwly desenvolve a tese de que os gêne-
ros se constituem como verdadeiras ferramentas, baseando-se no conceito de ferramenta
de Marx & Engels (...).Dessa forma, o sujeito sempre age utilizando a linguagem em uma
determinada situação com a ajuda de uma ferramenta (do gênero, para Bakhtin). (p. 89)
[B.6.]
(27) Retomando a afirmação de Bakhtin de que sempre nos comunicamos com base em um
gênero e que, sem eles, a comunicação humana seria praticamente impossível, Schneuwly
(1994: 160-162) defende a tese de que, nas atividades de linguagem, os gêneros se cons-
tituem como verdadeiras ferramentas semióticas complexas que nos permitem a produção
e a compreensão de textos. (p. 139) [B.10.]
(28) Depois de Bakhtin (1992), os estudos sobre gêneros têm sido atualizados com uma
classificação (ou listagem, Marcuschi, 2000) mais aberta, pois a noção de gênero tem sido
aplicada a todos os conjuntos de produções verbais organizadas, orais ou escritas. Disso
resulta que qualquer espécie de texto pode atualmente ser designada em termos de gênero
e que, portanto, todo exemplar de texto observável pode ser considerado como pertencente
a um determinado gênero (Bronckart, 1999: 73). (p. 151) [B.11.]
(29) Ao discutir o conceito de gênero já desenvolvido por Bakhtin, Maingueneau (2000, p.
64-68) considera que os gêneros textuais são atividades sociais que se submetem a critérios
de êxito, da mesma forma que os atos de fala. (p. 203) [C.8.]
(30) Três estudiosos fundamentam as bases dessa concepção de linguagem: 1) Wittgenstein
(1961), na filosofia da linguagem; Vygotsky (1934, 1935), na psicologia do desenvolvimen-
to; e Bakhtin (1929, 1953/1979), estudioso de várias áreas do saber como a lingüística

Proceedings XI International Bakhtin Conference 334


e a teoria literária, fundamenta o presente estudo com as noções de gênero do discurso,
polifonia e intertextualidade. (p. 129-130) [D.5.]
(31) O paradigma teórico no qual se ancorou a pesquisa articula a teoria vygotskiana, no que
diz respeito à concepção de ensino-aprendizagem, aos pressupostos de Bakhtin/Volochínov
relativos à concepção de língua e linguagem e às contribuições do grupo de Genebra, sobre-
tudo na tese defendida por Schneuwly, dos gêneros como megainstrumentos na construção
dos discursos. (p. 186) [D.7.]

A reformulação da definição bakhtiniana de gênero convoca, no caso dessas ocorrências, as


formulações de outros estudos/autores. A remissão a outros estudos/autores parece decorrer, por um
lado, da tentativa do próprio estudo de legitimar a interpretação que faz da definição bakhtiniana pelo
recurso a outros estudos de gênero (considerados autorizados para o debate da questão) e, por outro,
de constrições metodológicas próprias das opções temáticas, dos objetivos e do tipo de corpus de que
se ocupa o trabalho.
2.3. A retomada do pensamento bakhtiniano segundo sua suposta operacionalidade para o funcio-
namento da investigação. Nesse caso, o conceito bakhtiniano de gênero investe-se de uma natureza
explicitamente instrumental, servindo como categoria de análise circunscrita à delimitação metodológica
da pesquisa. Várias são as nuanças dessa instrumentalização do conceito, tais como:
a) a caracterização de um determinado gênero e/ou a análise de algum fenômeno da dimensão tex-
tual-discursiva da linguagem (em um gênero particular):
(32) O objetivo deste ensaio é resgatar o valor dos mitos no ensino da língua portuguesa.
Como um gênero do discurso pertencente à classe dos discursos primários (Bakhtin, 1992),
o mito é uma narrativa de composição simples que tem uma preocupação explicativa, aten-
dendo a uma necessidade que temos, seres humanos, de dar um sentido para as coisas,
para os fenômenos que nos cercam. (p. 47) [A.1.]
(33) Vale lembrar que, para Bakhtin (1981), todo gênero possui uma lógica orgânica que
pode ser entendida e dominada de modo criativo a partir de fragmentos de gêneros. Para
o autor, cada variedade de um gênero de algum modo sempre o generaliza, contribuindo
para o aperfeiçoamento da linguagem daquele gênero. Assim, os fragmentos apresentados,
a seguir, de um chat educacional específico visam a contribuir para a compreensão desse
novo gênero no campo da educação. (p. 91) [B.6.]
(34) É esse o objetivo deste capítulo, no qual buscaremos retomar algumas posições da
Lingüística Textual sobre o processo de sumarização e de produção de resumos, mas bus-
cando dar a elas uma nova perspectiva, lançando mão, para isso, da noção bakhtiniana de
gênero. (p. 138) [B.10.]
(35) Como observado, as correntes via e-mail, por serem tipos relativamente estáveis de
enunciado (Bakhtin, 1992), seguindo uma estrutura de discurso exortativo, constituem,
apesar de sua diversidade, um gênero textual que poderia ser subdividido em categorias
mais específicas, de acordo com os vários tipos citados. (p. 307) [C.13.]

b) a problematização de questões de ordem didático-pedagógica e/ou a proposição de intervenções


didáticas:
(36) A interação verbal efetiva-se por meio de enunciados considerados relativamente está-
veis, chamados de gêneros, embora essa estabilidade deva ser examinada com ressalvas,
porque os gêneros estão em constantes transformações. (...) Foi esse conceito que nos
possibilitou realizar um trabalho de letramento escolar, com base nos gêneros de uso social,
dentre eles, os textos de opinião. (p. 59) [B.4.]
(37) Um dos conceitos teóricos a partir do qual nosso programa de curso foi montado é a
noção de gênero como proposta por Bakhtin (1953) e retomada por Bronckart (1997). (p.
74) [B.5.]
(38) Assim, a atitude inicial do grupo, na ocasião do planejamento da ação de formação
referida, foi tentar compreender mais claramente o conceito de situação de produção de-
corrente da teoria de gêneros em Bakhtin (1953/1979). A partir do conceito de situação de
produção como sócio-histórica, pode-se compreender melhor a diferença entre o conceito
de “língua viva” e “língua como abstração sistêmica” (Bakhtin/Volochínov, 1929, p. 108) e
procurar estabelecer diferenciação entre gêneros. (p. 98) [D.4.]
(39) A experiência francófona está sendo desenvolvida na Suiça como um modelo de ensi-
no modular da escrita, aplicável a todas as séries do Ensino Fundamental, levando-se em
consideração as formulações teóricas de Vygotsky e de Bakhtin sobre a linguagem e, ainda,
a concepção bakhtiniana de gêneros do discurso. (p. 132) [D.5.]
(40) A eleição dos gêneros do discurso, tal como definido por Bakhtin – como sendo a cris-
talização de formas de dizer sócio-historicamente constituídas –, como objetos de ensino,
pelo fato de esse conceito incluir aspectos da ordem da enunciação e do discurso, pode
contemplar, de maneira mais satisfatória, o complexo processo de produção e compreensão

Proceedings XI International Bakhtin Conference 335


de textos. (p. 152) [D.6.]
(41) Na implementação das propostas, junto com os avanços conseguidos, entre eles o
fato de se estar trabalhando com a unidade real da comunicação discursiva, o enuncia-
do (Bakhtin, 1985), de se estar lidando com a diversidade textual pela contemplação de
diferentes gêneros, ausência tão cara à escola, novos desafios acabam se colocando aos
educadores. (p. 208) [D.8.]

c) a consideração de outros domínios institucionais em que o conceito circula, como o da normatização


oficial (representado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN):
(42) A perspectiva dos PCNs, de considerar os gêneros discursivos como objeto de ensino
e os textos como unidade de ensino, parece-nos estar afinada com a teoria de Bakhtin/Vo-
lochínov (1929) e de Bakhtin (1953/79) e proporcionar um encaminhamento inovador e
eficaz para o ensino de língua. (p. 102) [D.4.]
(43) Nesse sentido, o presente artigo tem a intenção de discutir algumas das opções teóricas
assumidas pelos PCNs de Língua Portuguesa, sobretudo a adoção da noção bakhtiniana de
gênero do discurso como objeto de ensino. Além da defesa dessa adoção, procuraremos
apontar caminhos relativos a como trabalhar com os gêneros do discurso em sala de aula.
Para tanto, levantaremos alguns dos problemas que podem ser encontrados para a con-
cretização de uma prática sustentada por esses pressupostos, tomando como base uma
experiência com formação de professores da rede pública estadual paulista (PEC-Polo 3).
Por fim, discutiremos critérios que poderiam embasar a seleção de gêneros e a elaboração
de uma progressão curricular, esperando, assim, contribuir para a efetivação dos níveis de
concretização acima descritos. (p. 150-1) [D.6.]
(44) A eleição do texto como unidade básica de ensino, bem como da noção bakhtiniana
de gêneros do discurso como articuladora do trabalho em Língua Portuguesa (doravante,
LP), tal como efetivada pelos PCNs, é uma dessas possibilidades de concretização, o que
passaremos a comentar agora. (p. 151) [D.6.]

***
Para concluir esta seção, não é inútil lembrar que as ocorrências elencadas anteriormente não es-
gotam o conjunto de referências feitas ao pensamento bakhtiniano no corpus de que nos ocupamos. A
eleição das ocorrências supracitadas, bem como a interpretação que delas propusemos, embora bastante
representativas do que se pode detectar no conjunto de artigos analisados, não anulam a possibilidade
de que outras nuanças do pensamento bakhtiniano sejam apreendidas quando de sua apropriação pelo
debate brasileiro sobre gênero. Segue o quadro-síntese da organização dos dados quanto a esses modos
de citação nos artigos analisados.
Tabela 5: Modos de citação do pensamento bakhtiniano

Modos de citação do pensa- Ocorrências lingüísticas


mento bakhtiniano

i) A explicitação de um pertenci- a) a ênfase no aspecto comunicacional (sócio-interativo) – isto


mento disciplinar, teórico e/ou insti- é, na dimensão comunicativa das práticas verbais;
tucional particular pela referência à b) a ênfase no aspecto enunciativo – na ancoragem enunciati-
perspectiva teórica bakhtiniana. vo-discursiva das marcas lingüísticas presentes em produções de
linguagem tomadas como gênero.

ii) A retomada das percepções a) reformulação do sintagma gêneros discursivos pelo uso dos
bakhtinianas sobre gênero, como dispositivos de posposição ou anteposição;
forma de definir esse objeto. b) reformulação do enunciado do autor segundo o qual “gêneros
do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados das
várias esferas da atividade humana” com ou sem renomeação do
termo-pivô tipos de enunciados;
c) reformulação da definição de gênero bakhtiniana por meio
de remissão a contribuições de outros estudos de gênero, como
modo de precisar teoricamente o conceito e de atribuir-lhe um
pertencimento disciplinar explícito.

iii) A retomada do pensamento a) caracterização de um determinado gênero e/ou análise de


bakhtiniano segundo sua suposta algum fenômeno da dimensão textual-discursiva da linguagem;
operacionalidade para o funciona- b) problematização de questões de ordem didático-pedagógicas
mento da investigação. e/ou proposição de intervenções didáticas;
c) consideração de outros domínios institucionais em que o
conceito circula, como o da normatização legal.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 336


3. Considerações finais
Para finalizar, cabe questionar qual o sentido da convocação – e da pertinência – do pensamento
bakhtiniano no debate brasileiro sobre o conceito de gênero. Nessa direção, é preciso reconhecer, inicial-
mente, que não é a aparição mais recente desse debate que inaugura a apropriação do aporte teórico
bakhtiniano pela pesquisa acadêmico-científica, o que pode ser confirmado, por exemplo, pela conside-
ração dos modos de recepção das idéias de Bakhtin, no Brasil, ainda no final dos anos setenta e início
dos oitenta, como mostra o trabalho de Freitas (1994).
Além disso, vale assinalar complementarmente que o conceito de gênero não se configura como o
único vetor da circulação das percepções bakhtinianas no Brasil. Mesmo uma verificação assistemática
do conjunto de trabalhos acadêmicos que fazem referência a e/ou pressupõem as reflexões de Bakhtin
explicitaria que o autor é relevante para os estudos em várias das disciplinas das chamadas ciências
humanas e sociais, incluindo desde os estudos lingüísticos textual-discursivos até os estudos literários,
passando ainda por aqueles localizados no campo da sociolingüística, da etnolingüística, da filosofia da
linguagem, da didática de línguas, entre outros. Essa pluralidade de modos de abordagens do referencial
bakhtiniano talvez autorizasse a caracterizar Bakhtin como um autor, no sentido foucaultiano do termo,
já que ele parece estabelecer-se como princípio de unidade, como parâmetro que agrega um conjunto
expressivo de estudos em várias áreas do conhecimento.
Com base nessas considerações, importa reiterar a indagação sobre a pertinência e as implicações da
apropriação do pensamento bakhtiniano no fenômeno de retorno do debate acadêmico-científico sobre
o conceito de gênero e, inversamente, questionar em que medida o prestígio do conceito de gênero
complexifica a difusão/recepção das idéias de Bakhtin na atual conjuntura acadêmico-científica brasi-
leira. Uma resposta possível para tais indagações seria talvez afirmar que a remissão a Bakhtin decorre
tão-somente da circulação do texto sobre O problema dos gêneros do discurso, escrito em 1952 (ou
1953). Fetichizando esse texto, por meio da afirmação de sua suposta eficácia intrínseca, abdicaríamos,
então, de considerar as práticas discursivas que possibilitam as condições de visibilização e prestígio
das reflexões bakhtinianas para os estudos de gênero (caso particular do objeto de que nos ocupamos
neste estudo). Desconheceríamos, além disso, que a reenunciação do pensamento bakhtiniano segundo
correntes disciplinares diversas é sintomática do fato de que não há difusão/recepção puras, no sentido
de absolutamente livres de conflitos decorrentes do funcionamento institucional da produção do saber
científico. Em outros termos, desconheceríamos – tal qual assinalava Pêcheux em um outro contexto de
discussão – que
todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se
deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro. (...) todo discurso é o
índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em
que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos
consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determina-
ções inconscientes) de deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente bem
sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra,
por uma ‘infelicidade’ no sentido performativo do termo – isto é, no caso, por um ‘erro de
pessoa’, sobre o outro, objeto de identificação” (Pêcheux, 1988: 56).

A análise que propusemos anteriormente dos modos de retomada do pensamento bakhtiniano


no debate acadêmico-cientítico brasileiro sobre o conceito de gênero, não pretendendo ser exaustiva,
buscou explicitar apenas uma das facetas da apropriação da reflexão bakhtiniana, circunscrevendo-a a
uma delimitação particular: a especificação de uma questão – a do gênero –, em um domínio institucional
específico – o acadêmico-científico –, tendo como parâmetros o campo das disciplinas lingüísticas e um
corpus constituído de artigos científicos. Essa delimitação pôde apontar algumas das nuanças da apro-
priação do pensamento bakhtiniano quando de sua retomada pelos estudos sobre gênero, tais como:
i) a complemenridade entre as reflexões bakhtinianas e outros estudos advindos de disciplinas lin-
güísticas diversas, como os estudos em lingüística textual, aqueles localizados no campo da didática de
línguas e ainda os caudatários da psicologia de linha vygotskyana (para ficar nesses exemplos);
ii) a tentativa de conciliação de categorias teóricas nem sempre facilmente articuláveis – como aquelas
de texto e de discurso, o que confirma a percepção de Maingueneau (2002) segundo a qual a noção de
gênero “localiza-se na articulação entre a ordem do texto e a ordem do discurso”;
iii) a flexibilização de fronteiras entre instâncias institucionais – tais quais a acadêmico-científica e a
legal (representada pelos PCN de Língua Portuguesa, documento oficial de normatização do ensino de
português, no qual gênero é tomado como “objeto de ensino”).
Esses são apenas alguns dos aspectos que o diálogo entre o pensamento bakhtiniano e o debate re-
cente sobre o conceito de gênero faz emergir. A avaliação de outros aspectos desse diálogo deve apontar
outras nuanças do percurso do referencial bakhtiniano na trajetória mais ampla dos estudos da lingua-
gem, no Brasil. Nessa direção, diríamos – para usar uma metáfora do próprio Bakhtin – que este estudo
é apenas “una gota en el rio de la comunicación verbal, rio ininterrumpido, así como es ininterrumpida
la vida social misma, la historia misma” (Bakhtin, [1929] 1998: 44).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 337


Agradecimentos: A elaboração deste trabalho se deve, em grande parte, às contribuições da pro-
fessora Ingedore G. V. Koch (orientadora da tese que vimos elaborando no Programa de Pós-Graduação
em Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL – da Universidade Estadual de Campinas
– UNICAMP), bem como dos professores João W. Geraldi, Inês Signorini e Jonas Romualdo (integrantes
da banca de qualificação a que foi submetido este texto no IEL/UNICAMP).
Notas
1) As reflexões expostas neste estudo integram, em grande parte, as que vimos desenvolvendo na
tese provisoriamente intitulada “Da necessidade de tipologização: modos de didatização do conceito
de gênero no Brasil”, cuja elaboração insere-se no Programa de Lingüística do Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação das professoras Ingedore G. V. Koch
e Raquel S. Fiad.
2) O termo disciplinar é tomado, neste estudo, no sentido em que o utiliza Chiss (2001), para quem a
disciplinarização refere-se ao processo em que determinados saberes são postos na ordem institucional
de uma disciplina, ou seja, são normatizados segundo uma dinâmica institucional que lhes atribui um
pertencimento a uma área ou campo de estudos.
3) É de nossa responsabilidade a tradução das citações.
4) Os dados em itálico, após as citações, referem-se respectivamente à coletânea de que foi extraída
a citação e à página em que a mesma aparece na coletânea.
5) Uma breve observação do conjunto de trabalhos inscritos na XI Conferência Internacional sobre
Bakhtin (a ser realizada no período de 21 a 25 de julho de 2003, na Universidade Federal do Paraná) dá
a medida da pluralidade de campos de investigação que se apropriam do pensamento bakhtiniano como
referencial teórico, metodológico e epistemológico.
Referências
BAKHTIN, M. (Volochinov, V. N.) (1998) . La Construccion de la enunciacion. In: ______. Que es el lenguaje?, La
Construccion de la enunciacion, Mas alla de lo social - un ensayo sobre la teoria freudiana. Buenos Aires: Editorial
Almagesto, pp. 43-78.
_____ (1997). Os gêneros do discurso. In: _____. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, pp. 277-
326.
CARON, M. F.; FIAD, R. S.; FREIRES, F. N. ; GAZELA, S. Ma.; RONCAGLIA, C. B. & SANTOS, S. N. G. (2000). A pro-
dução acadêmica sobre aquisição e ensino da escrita. Estudos Lingüísticos XXIX. São Paulo (SP): Grupo de Estudos
Lingüísticos do Estado de São Paulo (GEL), pp. 492-497.
CHISS, J.-L. (2001). Didactique des langues et disciplinalisation. In: MARQUILLÓ LARRUY, M. (dir.). Questions
d’épistémologie en didactique du français (langue maternelle, langue seconde, langue étrangère). Poitiers: Les Cahiers
FORELL – Université de Poitiers, pp. 159-163.
FOUCAULT, M. (1992). O que é um autor? [1969]. Lisboa: Vegas/Passagens.
FREITAS, M. T. de A. (1994). O Pensamento de Vygotsky e Bakhtin no Brasil. Campinas (SP): Papirus.
GERALDI, J. W. et al (1996). Retrospectiva: Lingüística, ensino de língua materna e formação de professores. In:
DELTA. São Paulo: EDUC, ABRALIN, vol. 12, no. 2.
GOMES SANTOS, S. N. (2002). Algumas tendências dos estudos sobre gênero discursivo na pesquisa acadêmica
brasileira. In: Leitura: Teoria e Prática. Revista da Associação de Leitura do Brasil. ALB: Campinas (SP), no. 38, pp.
13-32.
JACOBI, D. (1988). Le discours de vulgarisation scientifique – problèmes sémiotiques et textuels. In: JACOBI, D. &
SCHIELE, B. (1988). Vulgariser la Science – le procès de l’ignorance. Champ Vallon, pp. 87-117.
MAINGUENEAU, D. (2002). Retour sur une catégorie: le genre. Comunicação durante o Colóquio Internacional Caté-
gories Descriptives pour le texte. Dijon (FR).
MORTUREUX, M.-F. (1993). Paradigmes désignationnels. In : Semen 8 – Configurations discursives (Peytard, J. et
Moirand, S. dir.). Besançon, Université de Franche-Comté, Les Belles Lettres, pp. 121-141.
PÊCHEUX, M. (1990). O Discurso, estrutura ou acontecimento. Campinas (SP): Pontes.
ROJO, R. H. R. (mimeo.). Gêneros do discurso e gêneros textuais: Questões teóricas e aplicadas. São Paulo: LAEL/
PUC.
SOARES, M. (1989). Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento. Brasília: REDUC.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 338


Palavras chave: Bakhtin; gênero; pesquisa acadêmico-científica brasileira;
reformulação.
Biografia resumida: Sandoval Nonato Gomes-Santos é professor da Escola de
Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA) desde 1993, onde tem atuado
nas séries iniciais do ensino fundamental. Natural do Pará, licenciou-se em Letras
pela UFPA em 1997 e obteve o título de mestre em Lingüística Aplicada pela Univer-
sidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1999. Atualmente, conclui doutorado
em Lingüística na Unicamp sob a orientação das professoras Ingedore G. V. Koch
e Raquel Salek Fiad, tendo seus estudos acompanhados, entre 2001 e 2002, pelo
professor Dominique Maingueneau, durante estágio de doutoramento em Paris.
Publicou o livro “Recontando histórias na escola: gêneros discursivos e produção
da escrita”, pela Editora Martins Fontes, e vários artigos sobre a questão do gênero
discursivo em periódicos especializados. Suas pesquisas se localizam na articulação
entre a lingüística e a didática de línguas. E-mail: sandovalnonato@hotmail.com.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 339


Anexos
1) Artigos organizados por coletânea

Título do artigo Autor Instituição a que Fonte


se vincula o
autor/Instituição
de formação
A.1. Mito e tradição indígena L. M. de Jesus PG-USP Gêneros do
H. N. Brandão USP discurso na
escola: pp. 47-84
A.2. O conto popular M. F. Guimarães PG-USP Gêneros do
discurso na
escola: pp.85-117
A.3. O cordel em sala de aula M. C. Evaristo PG-USP Gêneros do
discurso na
escola: pp. 119-
184
A.4. O discurso político D. M. Tavares PG-USP Gêneros do
discurso na
escola: pp. 185-
228
A.5. O discurso de divulgação A. P. Leibruder G-USP Gêneros do
científica discurso na
escola: pp. 229-
269
B.1. Gêneros textuais: definição e L. A. Marcuschi UFPE Gêneros textuais e
funcionalidade ensino: pp.19-36
B.2. Ensino de língua portuguesa e Ma. A. Bezerra UFPB/PG- Gêneros textuais e
contextos teórico-metodológicos Université de ensino : pp. 37-46
Toulouse-le Mirail
B.3. Gêneros discursivos e ensino de A. P. Pinto UFPE/PG-PUCSP Gêneros textuais e
língua inglesa ensino: pp. 47-57
B.4. Gêneros jornalísticos no L. V. de Souza UFG/PG-PUCSP Gêneros textuais e
letramento escolar inicial ensino: pp. 58-72
B.5. Elaboração de material didático E. G. Lousada PG-PUCSP Gêneros textuais e
para o ensino de francês ensino: pp. 73-86
B.6. O chat educacional: o professor L. S. Abreu PG-PUCSP Gêneros textuais e
diante desse gênero emergente ensino: pp. 87-94
B.7. O gênero quarta capa no ensino V. L. L. Cristóvão Universidade Gêneros textuais e
de inglês Estadual de ensino: pp. 95-
Londrina/ PG- 106
PUCSP
B.8. As letras e a letra: o gênero N. B. da Costa UFCE/PG-PUCSP Gêneros textuais e
canção na mídia literária ensino: pp. 107-
121
B.9. Verbetes: um gênero além do A. P. Dionisio UFPE/PG-UFPE Gêneros textuais e
dicionário ensino: pp. 125-
137
B.10. Revisitando o conceito de A. R. Machado PUCSP Gêneros textuais e
resumos ensino: pp. 138-
150
B.11. “Frases”: caracterização do C. E. F. Pedrosa UFSergipe/PG- Gêneros textuais e
gênero e aplicação pedagógica UFPE ensino: pp. 151-
165
B.12. O funcionamento dialógico em D. de A. C. da UFPE/PG-Paris V Gêneros textuais e
notícias e artigos de opinião Cunha ensino: pp. 166-
179

Proceedings XI International Bakhtin Conference 340


B.13. Entrevista: uma conversa J. C. Hoffnagel UFPE/PG-Indiana Gêneros textuais e
controlada University e ensino: pp. 180-
University of 193
Texas-Austin

B.14. Um gênero quadro a quadro: M. R. de S. UFPE/PG-UFPE Gêneros textuais e


a história em quadrinhos Mendonça ensino: pp. 194-
207
B.15. Por que cartas do leitor na M. A. Bezerra UFPB/PG- Gêneros textuais e
sala de aula Universidade ensino: pp. 208-
Toulouse-le Mirail 216
C.1. Uma dimensão crítica do estudo J. L. Meurer UFSC/PG- Gêneros textuais e
de gêneros textuais Universidade de práticas
Georgetown e discursivas: pp.
Universidade de 17-29
Birmingham
C.2. Modelo didático de gênero V. L. L. Cristóvão Universidade Gêneros textuais e
como instrumento para a formação Estadual de práticas
de professores Londrina/PG- discursivas : pp.
PUCSP 31-73
C.3. A construção social do gênero D. Motta-Roth UFSM/PG-UFSC Gêneros textuais e
resenha acadêmica práticas
discursivas: pp.
77-116
C.4. Citando na Internet: um estudo G. R. Hendges UFSM/PG-UFSM Gêneros textuais e
de gênero da Revisão da literatura práticas
em artigos acadêmicos eletrônicos discursivas: pp.
117-139
C.5. Uma análise da polifonia A. D. Araújo UECE e UFPI/PG- Gêneros textuais e
discursiva em resenhas críticas UFSC práticas
acadêmicas discursivas: pp.
141-158
C.6. A redação de vestibular como J. Pilar UFSC/PG-UFSC e Gêneros textuais e
gênero UFSM práticas
discursivas: pp.
159-174
C.7. Análise crítica do discurso de S. Jorge Universidade do Gêneros textuais e
um fôlder bancário Vale do Itajaí/PG- práticas
UFSC discursivas: pp.
V. M. Heberle UFSC/PG-UFSC 177-198
C.8. Estratégias de ataque à face N. C. de Barros UFSC/PG-PUCRGS Gêneros textuais e
em gêneros jornalísticos práticas
discursivas: pp.
199-214
C.9. Particularidades sintático- I. C. Antunes UFPE/PG- Gêneros textuais e
semânticas da categoria de sujeito Universidade de práticas
em gêneros textuais da Lisboa discursivas: pp.
comunicação pública formal 215-224
C.10. Cartas ao editor: a linguagem I. Fontanini Universidade Gêneros textuais e
como forma de identificação social e Estadual de práticas
ideológica Maringá; discursivas: pp.
Faculdades 225-238
Cesumar e
Nobel/PG-UFSC
C.11. “Sabe tudo sobre tudo”: J. S. do V. Pereira PG-UFSC Gêneros textuais e
análise da seção de cartas-pergunta M. B. de Almeida práticas
em revistas femininas para PG-UFSC discursivas: pp.
adolescentes 239-258
C.12. A noção de gênero para N. F. Pinheiro Universidade de Gêneros textuais e
análise de textos midiáticos Caxias do Sul- práticas
Unisinos/PG-UFSC discursivas: pp.
e Unisinos 259-290

Proceedings XI International Bakhtin Conference 341


C.13. “No creo en brujas, pero que C. E. de C. Meurer PG-Université Gêneros textuais e
las hay, las hay”: uma análise de Paris VII – Denis práticas
cartas-corrente via e-mail Diderot discursivas: pp.
291-309
D.1. PCNs, gêneros e ensino de B. Brait PUCSP; USP A prática de
língua: faces discursivas da linguagem em sala
textualidade de aula : pp. 15-
25
D.2. Modos de transposição dos R. Rojo PUCSP A prática de
PCNs às práticas de sala de aula: linguagem em sala
progressão curricular e projetos de aula: pp. 27-38
D.3. A construção de “títulos” em S. R. Costa UFJF A prática de
gêneros diversos: um processo linguagem em sala
discursivo polifônico e plurissêmico de aula: pp. 67-90
D.4. Os PCNs: uma experiência de B. W. Pompílio PG-PUCSP A prática de
formação de professores do ensino C. C. Mori-de- linguagem em sala
fundamental Angelis de aula: pp. 93-
H. A. D. de 126
Oliveira
I. D. da Silva
M. de S. Barbosa
R. H. Nunes
D.5. Os PCNs e a formação pré- C. Magalhães- UnB/PUCSP A prática de
serviço: uma experiência de Almeida linguagem em sala
transposição didática no ensino de aula: pp. 127-
superior 147
D.6. Do professor suposto pelos J. P. Barbosa UMC/PUCSP A prática de
PCNs ao professor real de Língua linguagem em sala
Portuguesa: são os PCNs de aula: pp. 149-
praticáveis? 182
D.7. Critérios para a construção de E. Rosenblat Escola Vera A prática de
uma seqüência didática no ensino Cruz/PUCSP linguagem em sala
dos discursos argumentativos de aula: pp. 185-
205
D.8. O artigo jornalístico e o ensino R. H. Rodrigues UFSC/PUCSP A prática de
da produção escrita linguagem em sala
de aula: pp. 207-
220
D.9. Trabalhando com artigo de K. L. Bräklin PG-PUCSP A prática de
opinião: re-visitando o eu no linguagem em sala
exercício da (re)significação da de aula: pp. 221-
palavra do outro 247

2) Dois modos particulares de apropriação de aportes teóricos

Dois modos particulares de apropriação de aportes No. de artigos científicos


teóricos
1. Dada a natureza do estudo, não há aporte B1
teórico particular para a análise de dados
2. Conjugação de aportes teóricos os mais B2; B13; C9
diversos ligados ou não à reflexão sobre
gênero

Proceedings XI International Bakhtin Conference 342


3) Aportes teóricos do tratamento do conceito de gênero

Aportes teóricos Artigos científicos

1. Estudos em lingüística textual e/ou análise B9; B14


da conversação conjugados a estudos de
tendências variadas
2. Bakhtin; grupo de Genebra e/ou outros B3; B4; B5; B6; B10; B11; D3; D4; D5;
autores D6; D7; D8; D9
3. Bakhtin e outros autores de tendências A1; A2; A3; A4; A5; B12; B15; C5; C8;
variadas C12
4. Estudos anglosaxãos (Fairclough, Swales, C1; C4; C6; C7; C10; C11
Bathia etc.) e/ou autores brasileiros de
tendência similar
5. Bakhtin, teoria do discurso de linha D1
francesa e/ou estudos de história das
idéias e mentalidades
6. Bakhtin e estudos de gênero anglosaxãos C3; C13
7. Grupo de Genebra e/ou outros autores B7; C2; D2
8. Escola francesa de análise do discurso e B8
outros estudos enunciativo-discursivos

Proceedings XI International Bakhtin Conference 343


Da homogeneidade à heterogeneidade discursiva: reflexões sobre o
funcionamento do discurso outro.

Evandra Grigoletto

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

Rua. Gen. Lima e Silva, 1045/703 - Porto Alegre/RS - 90050-103

g.evandra@terra.com.br

RESUMO I
O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do conceito do discurso de ‘’outrem’, introduzido
por Bakhtin (1929) em sua obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, fazendo uma aproximação/com-
paração com o conceito de heterogeneidade, preconizado pela Escola Francesa de Análise do Discurso.
Pretendo, dessa forma, mostrar como o outro se incorpora ao discurso do ‘um’ para produzir sentido, o
que supõe que nenhum discurso é homogêneo, nem desprovido de sujeito, sendo sempre atravessado
por outros discursos, outras vozes. Para analisar, então, o funcionamento do discurso do outro, tomarei
alguns enunciados do discurso de divulgação científica como exemplos, partindo da discussão feita por
Bakhtin avançando à noção de heterogeneidade na Análise do Discurso.
RESUMO II
The present paper aims at a consideration on the concept of “someone else’s” discourse, brought
up by Bakhtin (1929) in “Marxism and the Philosophy of Language”, compared to the concept of hete-
rogeneity, supported by the French Discourse Analysis. Thus, I intend to demonstrate how the “other
one” is embodied in the “one’s” discourse to construct meaning, on the grounds that discourse is neither
homogeneous, nor unfurnished of a subject, being always crossed by other discourses, other voices. In
order to analyze the other one’s discourse functioning, I will take as examples some utterances of the
scientific divulgement discourse, from Bakhtin’s discussion, moving towords the notion of heterogeneity
in the Discourse Analysis.

INICIANDO A REFLEXÃO: as concepções bakhtinianas de língua e discurso


A reflexão sobre o discurso de outrem foi introduzida por Bakhtin, em 1929, em sua obra “Marxismo
e Filosofia da Linguagem”. Portanto, é em torno dessa obra sobretudo que vou centrar minha reflexão.
Tal obra representa um marco, uma mudança de paradigma nos estudos da linguagem, já que propõe
uma concepção de linguagem diferente da lingüística imanente, na medida em que considera o signo de
natureza ideológica e a alteridade como elemento que é constitutivo do discurso. Em outras palavras,
traz à reflexão dos estudos da linguagem a questão do histórico e do social, bem como a discussão sobre
o sujeito. Por isso, essa é a obra de Bakhtin que mais chama a atenção dos lingüistas.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin trava um diálogo com o materialismo histórico. Por
isso, é considerada uma obra essencialmente marxista. Como diz Marina Yaguello na introdução à edição
brasileira, o livro é marxista do começo ao fim, já que trata das relações entre linguagem e sociedade,
sob o signo da dialética do signo, enquanto efeito das estruturas sociais (cf. Yaguello, 2002). Um signo
constitutivamente ideológico, não nos esqueçamos.
É dialogando com o materialismo histórico que Bakhtin vai fazer, nessa obra, uma crítica ao estrutu-
ralismo, às concepções stalinistas de linguagem e à psicologia social (Behaviorismo), as quais tem em
comum um conceito de língua homogênea, na qual o sujeito não está contemplado. Tais críticas estão
ligadas a duas correntes dos estudos da linguagem, que Bakhtin denominou de objetivismo abstrato, o
qual contempla o estruturalismo, caracterizado por Saussure e seus seguidores, e subjetivismo idealista,
que contempla a crítica à psicologia social, a qual toma a língua enquanto produto acabado, sistema
estável, que considera o ato de fala uma criação individual
Dessas críticas e do diálogo com o marxismo resulta uma nova concepção de língua, pensada por
Bakhtin, e que o aproxima de Pêcheux.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 344


Bakhtin, ao propor a sua concepção de língua, ao contrário de Saussure, vai valorizar justamente a
fala, a enunciação, afirmando sua natureza social, não individual: a fala está indissoluvelmente ligada
às condições de comunicação que, por sua vez, estão sempre ligadas às estrutura sociais (cf. Yaguello,
2002, na introdução à 10ª edição brasileira de ‘Marxismo e filosofia da linguagem). Assim, a palavra é
a arena onde se confrontam os valores sociais contraditórios e, por isso, os conflitos da língua refletem
os conflitos de classe no interior mesmo do sistema. Portanto, língua e sociedade, língua e ideologia não
podem ser concebidas separadamente, devem estar sempre imbricadas. Daí a concepção de Bakhtin de
língua heterogênea, suscetível a mudanças históricas, sociais e culturais.
A língua é determinada pela ideologia, sendo o instrumento e objeto das relações e conflitos interin-
dividuais, representados na interação verbal pela relação entre eu e tu, que não é uma relação direta,
mas determinada socialmente. E dessa concepção de língua, vista em sua integralidade concreta e viva
e não como objeto específico da lingüística, resulta a concepção bakhtiniana de discurso, um fenômeno
muito complexo e multifacetado. Ao propor tais concepções de língua e discurso, Bakhtin contempla
a inscrição, a presença do discurso outro em toda e qualquer prática discursiva. Ou seja, contempla a
heterogeneidade como elemento constitutivo do discurso.
E para ratificar tal afirmação, cito algumas afirmações do próprio Bakhtin, em ‘Problemas da Poética
de Dostoiévski’. Segundo o autor (1981), as relações dialógicas são extralingüísticas, mas não podem ser
separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. Por isso, “são
irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dia-
lógico. Devem personificar-se na linguagem, torna-se enunciados, converter-se em posições de diferentes
sujeitos expressas na linguagem para que entre elas possam surgir relações dialógicas”(1981,p.159).
Eis a concepção dialógica de língua e, por extensão, de discurso de Bakhtin. Concepções que se apro-
ximam muito das pensadas por Pêcheux. Pêcheux (1975) propõe que pensemos o discurso como um
objeto lingüístico, desde que não seja entendido como inteiramente lingüístico, mas também como um
objeto histórico, ideológico e social. Assim também deve ser tomada a língua, que é objeto material do
discurso e incorpora as falhas, os deslizes como elementos constitutivos do sentido. Portanto, língua e
discurso são atravessados pela incompletude e são tomados como relações dialógicas, ou seja, como
objetos heterogêneos.
O DISCURSO OUTRO: implicações na noção de heterogeneidade discursiva
Bakhtin afirma que a palavra é um ato bilateral. É determinada igualmente por aquele de quem ela
é a palavra e por aquele a quem é destinada. Eis a tese do dialogismo bakhtiniano, que se constitui no
princípio constitutivo da linguagem em sua relação com o outro. Conforme nos aponta Indursky (2000),
a “dialogia está diretamente vinculada a outras noções que lhe são correlatas: fala de outrem, vozes
diferentes, vozes dos outros, discurso do outro, inter-relação dialógica, ressonâncias dialógicas, mul-
tiplicidade de vozes, polifonia, interação verbal, entre outras” (2000, p.70). Eis o princípio dialógico,
apresentado sob diferentes enfoques, que perpassa toda a obra de Bakhtin e que nos remete à noção de
heterogeneidade. O dialogismo, em Bakhtin, comporta uma dupla dimensão: por um lado, diz respeito
ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que
configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. E, nesse sentido, podemos interpretá-lo como
o elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem. Por outro lado, o dialogismo
diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos, instaurados
historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez, instauram-se e são instaurados por discursos.
Embora Bakhtin não tenha dedicado uma parte específica do seu livro “Marxismo e filosofia da lin-
guagem” para tratar da questão do dialogismo, os princípios dialógicos permeiam todo o livro e, em
especial, no capítulo em que trata do ‘discurso de outrem’, onde aborda as formas de incorporação do
outro ao discurso, preocupando-se com a necessidade de dar conta da presença do outro, ao contrário
de muitos lingüistas que ignoravam essa questão.
E, tratar das relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos, é incluir
o sujeito na sua constituição. Para Bakhtin (1992), o discurso do outro possui uma expressão dupla: a
sua própria e a do enunciado que o acolhe, o que repercute na inter-relação dialógica. Ao lançar mão
do dialogismo, Bakhtin inclui na constituição do seu conceito as questões da relação dos sujeitos com o
mundo e a dimensão assumida pela linguagem nessa relação.
Passo, então, a refletir mais especificamente sobre o que Bakhtin entende como sendo o discurso de
‘outrem’.
Para refletir a inserção do ‘outro’ no discurso, o autor relaciona o discurso de ‘outrem’ ao discurso
citado, o qual ele conceitua como o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas, ao mesmo
tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação, ou seja, estamos diante dos
modos como o dizer do outro se inscreve no discurso. E uma das formas desse dizer se inscrever na
cadeia discursiva é através do discurso indireto - procedimento que Bakhtin vai explorar.
Bakhtin nos mostra que o discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pes-
soa, completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do
contexto narrativo (2002, p. 144). Isso lhe garante uma existência autônoma, a partir da qual o discurso
de ‘outrem’ passa para o contexto narrativo, conservando seu conteúdo aparentemente intacto. O nar-
rador, por sua vez, ao incorporar o discurso de ‘outrem’ elabora regras próprias. No entanto, a diluição

Proceedings XI International Bakhtin Conference 345


da palavra citada no contexto narrativo não se efetua completamente, já que a substância do discurso
do outro permanece palpável, como um todo auto-suficiente. É o processo que Bakhtin chama de reação
da palavra à palavra. Podemos perceber, nesse processo, um sujeito consciente, auto-suficiente, que
supõe estar na origem do dizer e que tem a ilusão de resolver as suas apropriações tão somente atra-
vés das regras da língua. Um sujeito diferente, portanto, do sujeito interpelado ideologicamente, isto é,
assujeitado às condições de determinação que intervêm no modo de produção das práticas sociais, da
Análise do Discurso. No entanto, devemos levar em conta que o espaço discursivo de ‘outrem’ não é o
de um sujeito empírico. E o próprio Bakhtin atesta isso, ao afirmar que um membro de uma comunidade
nunca encontra a palavra como uma palavra neutra, isenta das aspirações e avaliações de outro ou des-
povoadas das vozes dos outros. Absolutamente, a palavra ele a recebe da voz do outro e repleta de voz
do outro. Ocorre que, ao introduzirmos na nossa fala a palavra do outro, inevitavelmente a revestimos
com algo de novo, com nossa compreensão e com nossa avaliação, a partir da nossa inscrição em uma
ordem social. Portanto, o sujeito nunca está na origem do que diz e, a cada novo dizer, a sua palavra é
determinada social e ideologicamente.
Bakhtin propõe um modo de olhar para o discurso de ‘outrem’. Segundo o autor, toda a essência da
apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo que pode ser ideologicamente significativo tem
sua expressão no discurso interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo,
privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores (2002, p. 147). É pelo discurso
interior que se opera a junção com o discurso exterior. Discurso interior aqui entendido como o discurso
um, isto é, o discurso individual de cada sujeito enquanto reflexo do outro, a partir do que é externo,
social. Assim, a palavra vai à palavra.
O discurso a transmitir (discurso de ‘outrem’) e aquele que serve para transmiti-lo (discurso interior)
devem ser tomados numa interação dinâmica. Assim, o discurso citado e o contexto de transmissão são
somente os termos de uma inter-relação dinâmica que, por sua vez, reflete a dinâmica da inter-relação
social dos indivíduos na comunicação ideológica verbal, o que nos aponta para a intervenção da exte-
rioridade e, conseqüentemente, do outro na constituição do discurso, bem como para o fato de que o
discurso só se produz a partir de um lugar social.
E Bakhtin nos aponta duas direções nas quais pode se desenvolver essa dinâmica da inter-relação
entre o discurso narrativo e o discurso citado. A primeira direção é construída a partir de uma tendência
fundamental da reação ativa ao discurso de outrem, visando à conservação da sua integridade e auten-
ticidade, a qual Bakhtin vai chamar de estilo linear. Trata-se de uma tentativa da língua e do sujeito
em esforçar-se para delimitar o discurso citado com fronteiras nítidas e estáveis, isto é, de controlar os
limites do dito. Nessa primeira orientação, cabe destacar a questão da apreensão social do discurso de
outrem, pois pode ser que ele seja recebido como um único bloco de comportamento social, como uma
tomada de posição inanalisável do falante - e, nesse caso, apenas “o que” do discurso é apreendido,
enquanto o “como” fica fora do campo de compreensão. Percebemos, nessa orientação, uma tendência
em considerar o discurso do outro como homogêneo, como se as fronteiras que separam o discurso
interior do exterior fossem nítidas e invioláveis.
Na segunda orientação, observamos processos de natureza exatamente opostas. A língua elabora
meios sutis e mais versáteis para permitir ao autor infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso
de outrem. O contexto narrativo esforça-se por desfazer a estrutura compacta e fechada do discurso
citado, por absorvê-lo e apagar as suas fronteiras
(2002, p.150). Bakhtin vai denominar essa segunda orientação de estilo pictórico. Trata-se de um
estilo que procura atenuar os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem. Por isso, percebe-se
aí uma hibridez das marcas lingüísticas e uma tentativa de apagamento do contexto histórico. Se, na
primeira tendência, havia uma preocupação em demarcar nitidamente as fronteiras da fala do outro, aqui
ocorre o contrário, há um enfraquecimento, muitas vezes até um apagamento, do discurso citado.
Segundo Clark & Holquist (1998), Bakhtin, ao apresentar estes dois estilos - o pictorial e o linear,
promove mais do que uma discussão de estilística, uma discussão sobre sociedades inteiras, pois o pro-
blema do discurso de outrem, ou melhor, do modo de apreensão desse discurso, tem a ver com a política
de citações. Para os autores (op.cit),
a questão de quanto do significado do outro eu permitirei que passe quando cerco suas pa-
lavras com as minhas é uma questão acerca da governança do significado, acerca de quem
o preside e de que porção dele é partilhada. Em outros termos, ela tem a ver com os graus
relativos de liberdade concedidos pelos locutores àqueles outros locutores cujas palavras
eles apropriam nas suas (1998, p. 255).

Tal comentário dos autores atesta que a apropriação da palavra de outro vai ter uma relação direta
com o sentido de um discurso, o qual é construído a partir das determinações sociais e ideológicas. Por
outro lado, estamos diante de um sujeito, embora histórico, consciente de suas escolhas, com controle
sobre o seu dizer.
Para mostrar o funcionamento dessas tendências de orientação do discurso citado e do discurso
narrativo, Bakhtin elege alguns esquemas de transmissão, como é o caso do discurso direto e indireto
em textos literários, esclarecendo que é impossível estabelecer uma fronteira estrita entre o esquema
gramatical e sua variante lingüística, já que não se pode divorciar a gramática da estilística. Segundo

Proceedings XI International Bakhtin Conference 346


Bakhtin, cada esquema recria à sua maneira a enunciação (o discurso de outrem), dando-lhe assim uma
orientação particular, específica. Vou apresentar, ainda que brevemente, alguns comentários que Bakhtin
faz a partir das análises do discurso indireto pois, em seguida, analiso alguns exemplos desse esquema
sintático funcionando no discurso de divulgação científica.
O emprego do discurso indireto, para Bakhtin, implica uma análise da enunciação simultânea ao ato
de transposição e inseparável dele, ou seja, não há como separar o que é interior do que é exterior. O
autor ainda chama a atenção para o fato de que, no discurso indireto, os elementos emocionais e afetivos
do discurso não são literalmente transpostos, na medida em que não são expressos no conteúdo mas nas
formas de enunciação. E, nesse aspecto, ele se diferencia do discurso direto. Como nos diz Bakhtin, o
discurso indireto ouve de forma diferente o discurso de outrem. Por isso, a análise é a alma do discurso
indireto, podendo tomar duas direções, conforme Bakhtin:
1) a enunciação de outrem pode ser apreendida como uma tomada de posição com conteúdo
semântico preciso por parte do falante, o que resulta numa composição objetiva exata (o que disse o
falante). A essa variante Bakhtin vai chamar de analisadora do conteúdo;
2) a enunciação de outrem é apreendida e transmitida enquanto expressão que caracteriza não
só o objeto do discurso, mas ainda o próprio falante: sua maneira de falar, seu estado de espírito, sua
capacidade ou incapacidade de exprimir-se bem. A essa variante Bakhtin vai chamar de analisadora de
expressão.
Trazendo a reflexão do discurso-outro para o âmbito da AD, há que se observar, em primeiro lugar, que
a presença do discurso-outro não é exclusividade dos textos literários, mas, pelo contrário, é elemento
constitutivo de todo e qualquer discurso. Em segundo lugar, não é somente a partir desses esquemas
sintáticos que se atesta a presença do discurso-outro, mas a partir de qualquer marca lingüística.
É na segunda e, sobretudo, na terceira e última fase dos escritos de Pêcheux, quando há a desconstrução
por completo da noção de maquinaria discursiva, que se abre espaço para se trabalhar com heterogenei-
dade enunciativa, com discurso-outro, o que possibilita um espaço real de diálogo com Bakhtin. Assim,
torna-se evidente a necessidade de considerar tal noção como constitutiva das questões discursivas.
Authier-Revuz reflete sobre as questões do dialogismo bakhtiniano, deslocando-as para uma perspec-
tiva discursiva, ao propor suas formulações sobre heterogeneidades enunciativas, as quais contribuíram
para o aprofundamento da noção de heterogeneidade nos estudos da linguagem.
Authier-Revuz (1990), em seu artigo intitulado Heterogeneidade(s) Enunciativa(s), apresenta as dife-
rentes formas de inscrever o outro na seqüência do discurso, o que a autora vai chamar de heterogeneidade
mostrada, a qual está dividida em marcada (discurso indireto, aspas, formas de retoque ou de glosa, etc)
e não-marcada (discurso indireto livre, ironia, imitação, etc). A heterogeneidade mostrada marcada se
constitui, segundo a autora, de formas lingüísticas de representação de diferentes modos de negociação
do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva. Authier entende que o exterior, inevitavelmente,
retorna implicitamente ao interior dos enunciados produzidos pelo sujeito, no discurso. Portanto, a he-
terogeneidade é constitutiva, isto é, própria, inerente tanto ao sujeito quanto ao discurso.
Authier-Revuz, ao propor a noção de heterogeneidade constitutiva, apóia-se em três vertentes te-
óricas: o dialogismo do círculo de Bahktin, para o qual as palavras são, sempre e inevitavelmente, ‘as
palavras dos outros’. Nenhuma palavra é “neutra”, mas inevitavelmente “carregada”, “ocupada”, “habi-
tada”, “atravessada” pelos discurso nos quais “viveu sua existência socialmente sustentada” (1990: 27);
a problemática do discurso como produto do interdiscurso, que postula um funcionamento regulado do
exterior, do interdiscurso, para dar conta da produção do discurso, estrutura ignorada pelo sujeito que
acredita ser fonte desse discurso; e a psicanálise, via inconsciente, que entende a fala como fundamen-
talmente heterogênea e o sujeito como dividido. Sempre sob as palavras, “outras palavras” são ditas.
A partir de tais aproximações, Authier-Revuz (1990) propõe uma ruptura na noção de um sujeito
uno, senhor do seu dizer para um sujeito múltiplo, heterogêneo, que traz na sua constituição o Outro.
Portanto, todo sujeito e seu discurso são constitutivamente heterogêneos. Eis no que consiste a hetero-
geneidade constitutiva: não há discurso, nem sujeitos que não sejam heterogêneos.
Observamos, portanto, já um distanciamento da forma como Bakhtin elabora a questão do discurso-
outro. A autora, apoia-se no pensamento dialógico bahktiniano, no entanto, propõe um sujeito que não é
consciente e que está, necessariamente, interpelado pelo outro. Além disso, também avança ao incorporar
à discussão a noção de interdiscurso, pensada por Pêcheux, que contempla o complexo das formações
ideológicas, as quais, por sua vez, incorporam as relações de desigualdade-contradição-subordinação,
próprias à exterioridade de qualquer discurso. Ou seja, nas palavras de Pêcheux, algo fala sempre an-
tes, em outro lugar e independentemente. Embora com alguns deslocamentos, há que se reconhecer a
contribuição de Bakhtin para o estudo da noção de heterogeneidade na perspectiva discursiva.
Para Authier-Revuz, “heterogeneidade constitutiva do discurso e heterogeneidade mostrada no discurso
representam duas ordens de realidade diferentes: a dos processos reais de constituição dum discurso e
a dos processos não menos reais, de representação, num discurso, de sua constituição” (1990: 32).
A partir dessas reflexões da autora, podemos constatar que a heterogeneidade constitutiva é da ordem
do interdiscurso, do Outro enquanto a heterogeneidade mostrada é da ordem do intradiscurso, do outro,
já que se lineariza no fio do discurso. No entanto, embora de ordens diferentes, elas não se excluem,
muito pelo contrário, elas se complementam para dar sentido ao discurso.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 347


Afirmo, com Indurky (1997) que um discurso é heterogêneo porque sempre comporta constitutivamente
em seu interior outros discursos (1997: 196). É heterogêneo também porque comporta em seu interior
contradições, diferentes posições-sujeito. Assim, o efeito de unidade, de homogeneidade do discurso é
um espetáculo, uma simulação, que está baseada nas evidências de que o sujeito é a origem do dizer e
de o sentido é literal, transparente.
Falar de heterogeneidade significa, antes de tudo, questionar a unicidade de todo o dizer, considerando
a presença do outro na constituição de todo e qualquer discurso, o que significa postular a ideologia e
as relações de poder como constitutivas das relações sociais. Negar tais manifestações é camuflar, mas-
carar a presença da heterogeneidade. Por fim, falar de heterogeneidade significa também considerar os
sentidos como múltiplos e o sujeito como cindido, disperso.
Apresentada a noção de heterogeneidade sob a perspectiva discursiva e o modo como ela avançou,
a partir das reflexões bakhtinianas acerca do conceito do discurso de outrem, passo a comentar alguns
exemplos de enunciados do discurso de divulgação científica, analisados a partir dessas duas perspec-
tivas teóricas.
A PERSPECTIVA BAKHTINIANA: algumas análises
Apresento, a seguir, alguns exemplos de enunciados no discurso indireto, retirados de matérias de
divulgação científica da revista Superinteressante:
Ex.1: Em um simples fio de cabelo, os cientistas podem descobrir que remédios, drogas ou alimentos
a pessoa consumiu nas últimas semanas (Revista Superinteressante, março/2002).
Ex.2: Ao observar algo familiar em uma imagem, o cérebro emite um tipo particular de impulsos
elétricos entre 300 e 800 milissegundos depois do estímulo. Os cientistas acreditam que essas ondas
podem ser utilizadas para saber se uma pessoa tem alguma lembrança de cenas ligadas ao crime (Revista
Superinteressante, março/2002).
Ex.3: os cientistas estão convencidos de que as viagens no tempo são, do ponto de vista da Física,
perfeitamente viáveis e naturais (Revista Superinteressante, maio/2002).
A partir desses exemplos, observamos, em primeiro lugar, que não há uma diluição completa do
discurso de outrem, já que se apresenta, em todos os exemplos, uma marca lingüística que atesta essa
presença: os cientistas. Por outro lado, há que se observar também que o jornalista, ao apreender a
enunciação de outrem, pratica um gesto de apreciação.
Ao tomarmos o discurso citado - nesse caso, o dos cientistas - e o discurso que serve para transmiti-lo
- nesse caso, o de divulgação científica - numa interação dinâmica, conforme nos sugere Bakhtin, sem
fronteiras bem delimitadas entre exterior e interior, é que vamos dar sentido a esse discurso. Sentido
esse que também é construído na interação verbal entre o eu e o outro, enquanto reflexo de uma inter-
relação social de indivíduos numa comunicação ideológica.
Pensando nas direções que Bakhtin dá a esse processo de inter-relação entre o discurso narrativo
e o discurso citado, diríamos que existe, nesses exemplos, a predominância do estilo linear, já que o
sujeito - nesse caso, o jornalista - esforça-se em delimitar a presença do outro, tentando controlar os
limites do dito. O ‘o que’ do discurso citado é apreendido como um bloco homogêneo, enquanto o ‘como’
e o ‘porque’, que poderiam flagrar a presença de outras vozes, marcar o heterogêneo, são ‘higienizados’,
isto é, ficam fora da constituição do discurso.
No entanto, embora predomine o estilo linear, observamos que existem deslizes para o estilo pictórico,
quando o jornalista, como é o caso dos exemplos 1 e 3 sobretudo, emite comentários sobre a fala do
outro. E tais comentários podem ser deflagrados através das marcas lingüísticas podem descobrir, no
exemplo 1, e estão convencidos, no exemplo 3. Mais que um comentário, poderíamos dizer que se trata
de uma apreciação, uma intervenção à palavra do outro.
Em relação às duas variantes apontadas por Bakhtin para a análise do discurso indireto, a analisadora
do conteúdo e a analisadora de expressão, observamos somente a presença da primeira variante nesses
exemplos, já que há uma preocupação e até uma responsabilidade do jornalista em preservar o sentido
do que o(s) outro(s) disse(ram), não interessando a sua individualidade, a sua maneira de pensar e fa-
lar, que é característica da segunda variante. Há um esforço em conservar uma distância nítida e estrita
entre as palavras do narrador e as palavras citadas, o qual nem sempre é alcançado com tanto sucesso,
devido ao fato de que se se nega a subjetividade do discurso de outrem, ela está presente, ainda que
mascarada, no discurso do narrador.
A partir de tais análises, com base no dialogismo bakhtiniano, podemos constatar a presença do he-
terogêneo na constituição do discurso, embora Bakhtin não fale, especificamente, em heterogeneidade.
Trata-se de uma heterogeneidade, no entanto, que o sujeito, consciente do seu papel histórico e social,
tenta controlar, através da apreensão apreciativa do discurso de outrem.
A PERSPECTIVA DISCURSIVA: algumas análises
Analiso, agora, os mesmos exemplos, porém sob uma perspectiva discursiva. Os dois primeiros
exemplos foram retirados de um artigo intitulado ‘Detetives de Laboratório’, que tratava das diferentes
tecnologias que alguns cientistas estão utilizando para descobrir pistas que ajudem a desvendar sus-
peitos de crimes, publicado numa sessão intitulada tecnologia, em março de 2002. É a ciência a serviço

Proceedings XI International Bakhtin Conference 348


da polícia.
O funcionamento da generalização ‘os cientistas’ chama-me a atenção, em primeiro lugar, justamente
por generalizar uma categoria de pessoas - os cientistas. Não se trata de um cientista, de alguns cientis-
tas, tampouco de um cientista de uma área específica, mas de todo e qualquer cientista, independente
da área. O pronome definido, que precede tal categoria - os, deveria defini-la, determiná-la, conforme o
que prevê a Gramática Normativa, mas, ao contrário disso, ele indetermina, generaliza. Indeterminação
aqui entendida como o efeito de um lugar social (nesse caso, o jornalista) ocupado pelo sujeito do discur-
so. Observamos, então, um funcionamento que vai de encontro às normas prescritas pela gramática, o
que nos aponta, por sua vez, para a importância de se pensar a língua como capaz de incorporar falhas,
deslizes e não como algo homogêneo e higienizador. E é lançando um olhar discursivo sobre a língua
que podemos perceber os efeitos de sentido que tais deslizes podem produzir.
Ao mesmo tempo que tal funcionamento indetermina no nível do intradiscurso, ele simula uma ho-
mogeneidade de vozes, buscando um efeito de determinação no nível do interdiscurso. O locutor fala
de um lugar social - o lugar do jornalista e, como tal, representa as instituições - ciência e mídia - e
fala (diz) dos cientistas, mas também como os cientistas. Logo, ele inscreve o seu dizer num espaço
intervalar, que oscila entre o dizer dos cientistas e o seu próprio dizer sobre os cientistas. O sujeito do
discurso, aqui ocupando o lugar social de jornalista, ao enunciar a generalização ‘os cientistas’, produz
um efeito de homogeneidade no discurso, por simular uma ilusão de consenso de vozes entre os saberes
que circulam no discurso da ciência.
Tal funcionamento se constitui numa forma marcada de heterogeneidade mostrada, conforme clas-
sificação apresentada por Authier-Revuz, por introduzir o outro, no caso ‘os cientistas’, na seqüência do
discurso. No entanto, embora esteja marcada a presença do outro, o que já aponta para a presença da
heterogeneidade no nível intradiscursivo, o que Authier-Revuz não prevê é que tal funcionamento remete
a uma forma não marcada de heterogeneidade mostrada no nível do interdiscurso. Aí, no interdiscurso,
é que se dá o efeito de apagamento, a dissolução do(s) outro(s) no um, a qual, por sua vez, vai refletir
no intradiscurso em forma de generalização, simulando uma voz consensual entre os cientistas. O que,
então, atesta a presença do heterogêneo no intradiscurso vai negar a heterogeneidade, representada por
múltiplas vozes, no interdiscurso, simulando uma homogeneização do dizer. Assim, o jornalista realiza
um movimento contraditório: ao mesmo tempo que abre espaço para o heterogêneo, indeterminando
o dizer no intradiscurso, ele impõe limites ao discurso, determinando um consenso de vozes entre os
cientistas, numa tentativa de controlar o dizer no nível do interdiscurso, o que vai produzir um efeito de
homogeneidade.
É interessante ainda notar, nesses exemplos, os verbos que acompanham a generalização ‘os cientis-
tas’. No exemplo 1, a locução verbal podem descobrir aponta para uma certa relativização do dizer dos
cientistas. Há que se observar que quem relativiza o saber dos cientistas não são os cientistas, mas o
jornalista, o que vem ratificar a reflexão de que, ao ocupar o lugar de dizer, o jornalista não fala só como,
mas também sobre os cientistas. E, ao falar sobre os cientistas, o seu lugar social está interditado pela
mídia, já que, ao ocupar tal lugar, o locutor deve produzir um efeito de neutralidade, de modo que não
deve se apropriar inadequadamente do discurso da ciência, tampouco deve ressignificar erroneamente tal
discurso ao público-leitor. E, ocupando um lugar de entremeio entre a ciência e o público-leitor, aparece
a mídia, aqui representada pela revista e também pelo jornalista.
Já, no exemplo 2, o verbo ‘acreditam’ aponta para uma certeza maior. Há uma credibilidade maior
no dizer dos cientistas, também atestada pelo jornalista. Tais observação, no entanto, não anulam o
funcionamento das generalizações que acabo de descrever. Muito pelo contrário, elas vêm reforçar a
ilusão de homogeneidade, de simulação de um consenso de vozes.
O exemplo 3 foi retirado de um artigo intitulado “Uma questão de tempo” e publicado numa sessão
intitulada ciência, em maio de 2002, onde são feitas, a partir da teoria da Relatividade, previsões sobre
viagens no tempo.
Assim como nos exemplos anteriores, a generalização ‘os cientistas’ marca a presença/a inscrição
do outro na seqüência do discurso, através do lugar de dizer, que fala como, mas também sobre os
cientistas. E tal marca de heterogeneidade intradiscursiva remete não só a heterogeneidade constitutiva,
mas a uma forma não marcada de heterogeneidade mostrada na ordem do interdiscurso, onde há uma
dissolução, um efeito de apagamento dos diferentes dizeres do discurso científico que aí se cruzam. E é
assim, com aparência de unicidade, de consenso que os diferentes saberes da ciência, os quais circulam
no interdiscurso, vão se inscrever no intradiscurso, simulando uma homogeneidade no dizer.
Nesse exemplo há uma aproximação com o discurso da ciência, para mostrar ao leitor o status de
seriedade científica, isto é, a imagem social do que é ciência. E essa imagem da ciência como uma coisa
séria, formal, acadêmica, verdadeira é construída a partir da visão do jornalista, da sociedade e dos
próprios cientistas, conforme podemos observar nas seguintes pistas lingüísticas: os cientistas estão
convencidos, do ponto de vista da Física, seriedade científica.
O que ocorre nesses exemplos é uma simulação, através da generalização ‘os cientistas’ da consen-
sualidade, da unicidade, enfim, da homogeneidade do discurso. Mas, ao contrário do que quer aparentar,
tal generalização, assim que é remetida ao interdiscurso, continua produzindo evidências do heterogêneo.
Então, o que produz uma evidência de heterogeneidade ‘contida’ no intradiscurso - a generalização ‘os
cientistas’ - tenta controlar a multiplicidade de sentidos presentes no interdiscurso, produzindo um efeito

Proceedings XI International Bakhtin Conference 349


de homogeneidade. Mas, tal controle é somente ilusório, pois quanto mais se tenta conter, determinar
os sentidos, mais heterogêneo é o discurso.
Podemos observar, a partir das análises, a inegável presença da heterogeneidade no Discurso de
Divulgação Científica, embora sob perspectivas teóricas diferentes. Na perspectiva bakhtiniana, embora
com exemplos não extraídos da literatura, foi possível verificar a presença da heterogêneo na constituição
do discurso, o que nos mostra a contribuição de Bakhtin para os estudos da heterogeneidade, a partir
de sua reflexão sobre o discurso de ‘outrem’. Reflexão esta que também contribuiu para a discussão
acerca da alteridade do sujeito em Análise do Discurso (AD). Ainda quero destacar que, nas análises
realizadas a partir da perspectiva teórica da AD, ao observar o funcionamento da generalização ‘os
cientistas’, percebemos a presença do efeito de homogeneização, produzido no nível do interdiscurso,
onde a aparente diluição do(s) outro(s) no um simula um consenso de vozes entre os cientistas. Tal
efeito é produzido graças aos movimentos que o sujeito-jornalista realiza, ainda que ilusoriamente, ao
se inscrever e inscrevendo o seu dizer num espaço intervalar, que oscila entre o discurso da ciência, da
mídia e do senso-comum. Por fim, tanto na perspectiva bakhtiniana como na discursiva, percebemos
uma tentativa de controle do dizer, produzida pelo sujeito do discurso. No entanto, tal tentativa é pro-
duzida de maneira consciente pelo sujeito bakhtiniano, através da apreensão apreciativa do discurso de
outrem; enquanto, na perspectiva discursiva, o sujeito só tem a ilusão de controle do dizer, acreditando
ser a fonte do sentido. Na verdade, por ele ser assujeitado ideologicamente e, por sua vez, submetido
às condições de produção da formação social, ideológica e discursiva em que se inscreve, o sujeito do
discurso só carrega realmente a ilusão das escolhas conscientes. Sendo assim, o seu dizer e o dizer do
outro que é incorporado ao seu discurso são afetados pelo inconsciente.
NOTAS
1 Tal concepção de discurso encontra-se na obra de Bakhtin intitulada “Problemas da Poética de Dos-
toiévki”, no capítulo que trata do Discurso em Dostoévski.
2 Os negritos e itálicos dos exemplos são grifos meus
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Trad. brasileira de Celene M. Cruz e João Wanderley
Geraldi. In: Cad. Est. Ling. Nº 19, Campinas, SP, jul./dez. 1990, pp. 25-42.
BAKHTIN. Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 10ª ed. brasileira, São Paulo: Hucitec, 2002.
_____. O discurso em Dostoiévski. In: Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1981.
______. O enunciado, unidade da comunicação verbal. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,
1992.
CLARK, Katerina & HOSQUIST, Michael. Mikail Bakhtin. Trad. brasileira J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998.
INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997.
_____ . Reflexões sobre a linguagem: de Bakhtin à Análise do discurso. In: Línguas e instrumentos lingüísticos.
Nº 4 e 5. Campinas - SP: Pontes editores, dez/99 a jun/00, 2000, pp. 69-88.
PÊCHEUX, Michel (1975). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2ª ed., Campinas: Editora da
Unicamp, 1995.

TEXTOS CHAVE: Marxismo e Filosofia da Linguagem; Semântica e Discurso.


NOMES CHAVE: Bakhtin; Pêcheux; Authier-Revuz.
PALAVRAS CHAVE: discurso outro; heterogeneidade; sujeito.
BIOGRAFIA RESUMIDA: Mestre em Teorias do Texto e do Discurso pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul; doutoranda em Teoria do Texto e do Discurso
pela mesma universidade. Autora do livro “Sob o rótulo do novo, a presença do
velho: análise do funcionamento da repetição e das relações divino/temporal no
Discurso da Renovação Carismática Católica”, publicado pela Editora da UFRGS,
2003.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 350


Gêneros do discurso e livro didático: uma relação possível?

Andréa Antolini Grijó

Centro de Educação – Universidade Federal do Espírito Santo

Rua Carlos Delgado Guerra Pinto, 335 at. 301 Jardim Camburi

Vitória – ES cep 29090 - 040

Resumo I
A partir da concepção de Gêneros do Discurso – construído por Bakhin – e tomado pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais como objetos de ensino, este trabalho analisa o tratamento dado ao gênero poé-
tico – materializado em poemas – nos livros didáticos destinados aos terceiro e quarto ciclos do Ensino
Fundamental, recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático 2002, por meio das questões
de interpretação de textos propostas. No processo de análise de seis coleções, as questões foram ca-
tegorizadas de forma que é possível identificar que a leitura privilegiada ainda é a parafrástica e que
os poemas são configurados não como gêneros discursivos, mas como gêneros textuais, deslocados de
condições de produção e recepção discursivas e cujo pressuposto fundamental é que são portadores de
um sentido que ao leitor caberá decifrar.
Resumo II
From the conception of Speech Genres – constructed by Bakhtin –and taken by the National Curricular
Parameters as teaching objects, this work analyzes the treatment given to Poetic genre – materialized
in poems – in didatic books destined to the third and fourth cycles of Basic School, recommended by the
National Program of Didatic Book 2002, by means of proposed texts interpretations questions. In the
six collections analysis process the questions were categorized in a way that is possible to identify that
the privileged reading is still paraphrastic and that poemas are configured as textual genres, displaced
of their discourse production and reception conditions and that the fundamental assumption is that they
carry a meaning that the reader will have to decipher.
1. Introdução
A lógica que orienta este trabalho é a da interrogação acerca da existência de uma relação entre
gêneros discursivos e livros didáticos, questão da qual tenho me ocupado e da qual tornarei cúmplices
os que lerem este texto.
A intenção é partilhar, não somente a interrogação, mas também algumas reflexões que se somam
a tantas outras, que se constituem como vozes no discurso coletivo que manifesta uma série de preo-
cupações acerca do exercício do ensinar e do aprender na escola.
Antes de iniciar a partilha, é preciso fazer duas considerações inicias: primeiro, este trabalho é fruto
de uma pesquisa cujo olhar está marcado socialmente, sou professora – formadora de professores, assim
construo o meu diálogo como estes objetos, de circulação social: livros didáticos.
Não se trata de um olhar que pretende revelar subentendidos e também não se trata de desconsiderar
outras leituras que são feitas com e sobre esses objetos.
Muito pelo contrário, creio que seja extremamente importante considerar aqui um diálogo de outra
natureza que cotidianamente os professores travam em suas salas de aula, quando do uso desse material
como recurso de trabalho recriam-no como sujeitos de sua ação pedagógica.
Segundo: não pretendo discutir a validade desse material — se são do bem ou do mal, como costumam
alguns dividir o mundo — não é disso que se trata, nem tampouco pretendo discutir a apropriação pelos
professores desses livros. Trato-os como objetos reais com os quais me defronto e que pretendo com-
preender como discurso que se materializa nas esferas de circulação social, em especial na escolar.
Para realizar a pesquisa, parto objetivamente de dois pressupostos, que provocaram a interrogação
inicial – as duas ações de políticas públicas educacionais criadas pelo Governo Federal e que têm pro-
gressivamente, nos últimos anos, ganhado espaço e deflagrado outras ações – aquelas que se desen-
rolam no espaço escolar: os Parâmetros Curriculares Nacionais ( PCN ) e o Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 351


Os Parâmetros Curriculares Nacionais constituem-se, hoje, em documento norteador das propostas
curriculares brasileiras das redes de ensino e escolas brasileiras. Mesmo não tendo caráter de obriga-
toriedade, os PCN são tomados como referencial para o estabelecimento de programas de formação de
professores, sistemas de avaliação educacional e também de aquisição e distribuição de material didático.
Parte do grande conjunto de propostas curriculares para todos os segmentos de ensino formal, os PCN
de Língua Portuguesa destinado aos terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental – 5a. à 8a. séries
assumem tanto nos Objetivos Gerais do Ensino de Língua Portuguesa, como em sua fundamentação as
concepções de discursividade e dos gêneros discursivos como objetos de ensino.
Entre os objetivos previstos para serem alcançados pelos alunos que nos permitem uma leitura mais
clara desses pressupostos estão:
utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e na leitura e produção de textos
escritos de modo a atender a múltiplas demandas sociais, responder a diferentes propósitos
enunciativos e expressivos, e considerar as diferentes condições de produção do discurso;
analisar criticamente os diferentes tipos de discursos, inclusive o próprio, desenvolvendo a
capacidade de avaliação dos textos... (1)

E ainda entre seus pressupostos teóricos, as concepções de atividade discursiva:


Interagir pela linguagem significa realizar uma atividade discursiva: dizer alguma coisa a
alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas
circunstâncias de interlocução. Isso significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso
não são aleatórias – ainda que possam ser inconscientes – mas, decorrentes das condições
em que o discurso é realizado. (2)

E de gênero discursivo e de textos como objetos de ensino:


Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza temática composicio-
nal e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo,
a noção de gênero, constitutiva de texto, precisa ser tomada como objeto de ensino.
Nessa perspectiva, necessário contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos
e gêneros, e não apenas em função de sua relevância social, mas também pelo fato de que
textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de diferentes formas.(3)

Ao tomar em consideração que os PCN são referencial para aquisição de material didático, cabe apre-
sentar aqui como o PNLD ressignificou os pressupostos então dos PCN.
O Programa Nacional do Livro Didático consiste numa série da ações que vão da avaliação dos livros
didáticos à distribuição a todas as escolas brasileiras de Ensino Fundamental, passando por programas
de formação de escolha e uso de livros pelos professores e outros profissionais da educação e que tem
certamente grande responsabilidade pelo interesse que esses objetos tem constituído nas pesquisas
acadêmicas.
O PNLD, como política articulada aos PCN toma os gêneros discursivos como conteúdo a ser ensinado
e seu tratamento ou abordagem nos livros didáticos como aspecto a ser avaliado.
Assim, entre os critérios classificatórios de avaliação encontram-se:
· relativos à natureza do material textual:
os gêneros discursivos e os tipos de texto selecionados para o livro didático devem ser os mais di-
versos e variados possíveis, manifestando também diferentes registros, estilos e variedades ( sociais e
regionais) do português; (4)
· relativos ao trabalho com o texto:
As atividades de exploração do texto têm como objetivo o desenvolvimento da proficiência em leitura.
Portanto só se constituem como tais, na medida em que:
(...)
explorem as propriedades discursivas e textuais em jogo, subsidiando este trabalho com os instru-
mentos metodológicos apropriados; (5)
As atividades de produção de texto escrito devem visar ao desenvolvimento da proficiência em escrita.
Nesse sentido, não podem deixar de:
(...)
explorar a produção dos mais diversos gêneros e tipos de texto, contemplando suas especificida-
des;(6)

1. MEC/SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais. Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – língua portuguesa. Brasília: 1998. p.32-33.
2. Id.,ibid.,p.20-21.
3. Id.,ibid.,p.23.
4. MEC. Guia de livros didáticos – PNLD 2002. Brasília: 2001.p.37.
5. Id.,ibid.,p.38.
6. Id.,ibid.,p.38.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 352


Os conhecimentos lingüísticos objetivam levar o aluno a refletir sobre aspectos da língua e da lingua-
gem relevantes tanto para o desenvolvimento da proficiência oral e escrita quanto para a capacidade de
análise de fatos da língua e da linguagem. Por isso mesmo, seus conteúdos e atividades devem:
(...)
subsidiar as demais atividades com um aparato conceptual capaz de abordar adequadamente a es-
trutura, o funcionamento e os mecanismos característicos dos diferentes gêneros e tipos de texto; (7)
2. Pressupostos teóricos
Além desses pressupostos objetivos, para construção do olhar sobre esse objeto: livro didático, a fim
de compreender a relação com os gêneros discursivos, vali-me dos pressupostos bakhtinianos.
Primeiro de gêneros do discurso, como: tipos relativamente estáveis de enunciados elaborados por
esferas de utilização da língua, produzidos a partir das condições e finalidades dessas esferas:
O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,
não só por seu conteúdo ( temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada
nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e
sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos ( conteúdo temático,
estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e
todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. (8)

Também me aproprio das idéias bakhtinianas para procurar compreender como podemos configurar
o processo de leitura, na perspectiva dialógica. Assim, é preciso considerar que: “O locutor termina seu
enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva do outro ou para
dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro” (9), ou seja um diálogo é que se estabelece quando
se considera um processo de leitura, de produção de significação.
E ainda que: “Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede
de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação
do locutor e do ouvinte.” (10)
É preciso reafirmar, portanto, que ao tomar esses pressupostos para o desenvolvimento do trabalho,
acreditamos no processo de produção de sentido como interação que se dá no encontro entre interlo-
cutores, descartando que possamos residir o sentido no texto, desconsiderando o leitor como sujeito
fundamental da leitura.
3. Objetivos e metodologia da pesquisa
A partir dos pressupostos apresentados, e do questionamento central que caracterizou o leitmotiv
deste trabalho, tornam-se os objetivos da pesquisa: analisar o entrecruzamento de duas políticas públicas
educacionais – os Parâmetros Curriculares Nacionais e Programa Nacional do Livro didático – em que
medida se aproximam, em que medida se distanciam e se contribuem efetivamente para um cenário
coerente de políticas educacionais.
Analisar como o tratamento dado aos textos nos livros didáticos tem se desenhado, ou seja, a abor-
dagem do texto no livro didático o configura como gênero discursivo?
Diante das limitações que o tempo e os recortes das pesquisas nos impõem, para o desenvolvimento
dessa análise, privilegiou-se o tratamento dado aos poemas, por meio dos exercícios chamados conven-
cionalmente de interpretação de textos.
E finalmente, pretende-se configurar o perfil de leitor delineado pelos livros didáticos, em especial o
leitor de poesia. E que leitor se pretende formar na escola, compreendendo que sendo a competência
leitora indispensável para o exercício da cidadania, é tarefa da escola assumi-la.
No entanto, antes é preciso considerar fato que hoje se constitui como fulcro de qualquer discussão
que tome os gêneros discursivos como objeto de ensino: a reunião de diferentes gêneros do discurso
relacionados a diferentes atividades humanas específicas num livro chamado de didático que tem circula-
ção prevista numa determinada esfera, passa a constituir um outro gênero discursivo – como enunciado
único.
Como lida a escola com esse deslocamento que acaba por constituir um gênero didático ou escolar,
que circunscreve um outro sentido?
Teremos nós que pensar coletivamente acerca dos currículos, metodologias e práticas pedagógicas
significativas que articulem os gêneros discursivos e a escola de modo que não se precipite uma defor-
mação dos gêneros do discurso e conseqüente deformação de leitores e produtores de texto.
Será possível construir uma proposta metodológica que dê conta e sentido a essa questão?
Mas, voltando à pesquisa. Para o procedimento de análise, foram selecionadas coleções de Livros
didáticos de Língua Portuguesa – 5a.à 8a. séries, da categoria recomendadas pelo Programa Nacional do

7. Id.,ibid.,p.39
8. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal.São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.279.
9. Id.,ibid.,p.294.
10. BAKHTIN, M. (Voloshinov).Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. p.113.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 353


Livro Didático – Ministério da Educação, 2002, a saber:
1. Linguagem Nova
Autores: Carlos Faraco e Francisco Moura
Editora Ática
Ano de publicação: 1999
10a. edição

2. Na Ponta da Língua
Autores: Lino de Albergaria, Márcia Fernandes e Rita Espeschit.
Editora Dimensão
Ano de publicação: 2000

3. ALP Novo
Autores: Maria Fernandes e Marco Antonio Hailer
Editora FTD
Ano de publicação: 2000

4. Leitura do Mundo
Autoras: Norma Discini e Lúcia Teixeira
Editora do Brasil
Ano de publicação: 1999

5. Tecendo textos: ensino de língua portuguesa através de projetos


Autores: Tânia Oliveira, Rafael Bertolin e Antonio Siqueira e Silva.
Editora: IBEP
Ano de publicação: 1999

6. Português: linguagens
Autores: William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães
Ano de publicação: 2002
2a. edição

Foram analisadas as questões propostas em exercícios relacionados a poemas – configuração do


gênero poético, uma vez que tomo como referência que as questões propostas pelo autores dos livros
didáticos têm a intencionalidade de materializar uma compreensão responsiva, por meio da recepção
dos textos.
Foram excluídas letras de música, pois nos concentramos em poemas. Quanto às questões, foram
excluídas aquelas relativas ao vocabulário que certamente pode ser objeto de outra investigação acerca
de seu tratamento, à luz do dialogismo.
Então, no diálogo com os textos e com os exercícios propostos o que por meio do meu olhar, me foi
possível identificar e analisar quanto às questões propostas nos exercícios?
1. Análise dos dados
A análise das questões propostas a partir dos poemas, permite a construção de uma série da categorias
assim identificadas em dois blocos. No primeiro bloco estão três categorias: questões cujo enfoque se dá
no aspecto formal do texto, no aspecto temático do texto e na articulação forma – tema do texto.
Nessas primeiras três categorias é importante ressaltar o enorme valor que é dado ao texto em si
mesmo – objeto material portador de sentido, cuja leitura privilegiada é a parafrástica valorizando “o
reconhecimento, reprodução do sentido dado pelo autor” (11).
Vejamos, a seguir alguns exemplos de questões cujo enfoque privilegia os aspectos formais do texto,
com diferentes objetivos: de identificá-los, de analisar possíveis efeitos de sentido desses, para analisar
a intencionalidade do autor ao usá-lo, para caracterizar o texto e ainda para compará-lo a outros poemas
ou a outros tipos de texto:
Quantos versos e quantas estrofes tem o poema lido?
(Coleção 1 – 6a. série, p.85)
Que efeito o uso das reticências produz neste trecho do texto?
(Coleção 5 –7a. série, p.154)
Explorando o aspecto sonoro que jogo de palavras é feito na poesia e com que objetivo?
(Coleção 2—7a. série, p.184)
11. ORLANDI, E. A produção da leitura e suas condições. In: Leitura: teoria e prática. São Paulo: Mercado Aberto e Alb, abril, 1983. p.22.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 354


Analise os dois sonetos apresentados a seguir e diga quais poderiam ser os requisitos para
que um poema seja considerado um soneto italiano.
( Coleção 2 – 7a. série, p.264)
O texto estudado na unidade anterior está escrito em prosa. Compare esse texto com o que
você acabou de ler. Apenas olhando rapidamente para os dois textos, que diferenças você
pode notar entre eles quanto à disposição gráfica das palavras no papel?
( Coleção 1 –5a. série, p.188)

Nesta segunda categoria o olhar sobre a temática, ou como preferem alguns, sobre o conteúdo do
texto dá-se com os seguintes objetivos: identificá -lo, buscar informações, analisar a intencionalidade
do autor e ainda comparar a outros textos.Seguem alguns exemplos:
O que o poema canta, ou seja, qual é o assunto?
( Coleção 5 – 8a. série, p.199)
Que conflito aparece no poema?
(Coleção 3 – 8a. série, p.82)
Compare os direitos e deveres da criança da época do poema com os dos adolescentes do
texto A gente somos inútil.
(Coleção 2 – 5a.série, p.119)
Por que todas as cartas de amor seriam ridículas?
(Coleção 2 – 7a. série, p.261)
Qual semelhança temática existe entre o conto O canário e esse poema de Cecília Meire-
les?
(Coleção 1 – 8a. série)
Com que finalidade o eu lírico compara as Sete Quedas aos feitos egípcios e assírios?
( Coleção 6 – 7a. série, p.208)

A terceira categoria é a que pode ser considerada traiçoeira.


Uma primeira análise pode configurar um avanço, pois as questões partem da premissa articulação
indissolúvel entre tema e estrutura composicional, mas quando se parte para uma análise mais atenta
percebe-se que o dimensionamento das questões é o mesmo das categorias anteriores, centrado no
texto: objeto material, pressupondo que o sentido está nele mesmo.
Nessa categoria é possível observar que os objetivos propostos pelas questões tratam do reconheci-
mento da articulação, da análise de possíveis efeitos de sentido, da identificação da intencionalidade do
autor e da comparação dessa articulação em outros textos:
Os poetas, os escritores prestam atenção a tudo. Usam a forma escrita e o som da palavra
para associá-los a um sentido.
a) a palavra horror, segundo o poeta, tem a cara assustada. Como isso se mostra?
b) Por que isso acontece?
c) Isso tem efeito de terror ou de humor?
(Coleção 4 – 7a. série, p.54)
Que palavra indica que esse é o momento mais importante?
(Coleção 1 – 6a. série, p.85)
O que esses textos têm em comum? Se comparar esse primeiro texto com os outros três,
você encontra alguma diferença? Qual?
( Coleção 5 – 8a. série, p.10)
Qual a diferença de estado de espírito dos poetas – narradores? Selecione em cada poema
expressões que revelam: amor, deboche, respeito...
(Coleção 5 – 7a. série, p.39)
Na sua opinião, por que alguns versos se repetem?
( Coleção 3 –5a. série, p.12)
Compare a poesia de Mário Quintana ao verbete de dicionário, respondendo às seguintes
questões:
a) Qual dos dois textos usa a linguagem para ensinar, para dar uma explicação, uma infor-
mação?
b) Qual dos dois textos não fala diretamente de um acontecimento, mas fala por meio de
metáforas?
c) Qual dos dois textos é surpreendente na forma de se expressar porque cria sentidos
novos para as palavras? Explique.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 355


(Coleção 4 – 6a. série,p.16)
Observe agora o texto como figura, como imagem.
a) Perceba que ela faz um movimento de expansão – os versos iniciam-se curtos e passam
a longos – e, em seguida, de contração – os versos voltam a ser curtos. Qual a relação entre
esse movimento e o tema do texto? ( Coleção 6 – 8a. série, p.175)

No segundo bloco, pode-se perceber uma alteração no enfoque dado às questões.


Nesta primeira categoria há uma tentativa tímida ainda de se travar um diálogo acerca das condições
de produção dos poemas por meio da provocação da reflexão em torno de quem são os interlocutores,
e da sua compreensão como sujeitos sócio – históricos, da localização espaço – temporal desses, bem
como da intencionalidade do autor e da função social dos textos e ainda da reflexão de como esses fa-
tores influenciam nas escolhas e estratégias discursivas.
No entanto é preciso destacar que são propostas tímidas, ou seja, quantitativamente são ínfimas
no corpus analisado e qualitativamente comprometidas porque estão acompanhadas dos conjuntos já
apresentados:
O primeiro texto é um poema e o segundo é instrucional. Qual é na sua opinião, o objetivo
de cada um deles?
(Coleção 1 – 6a. série, p.33)
Qual a diferença entre a intenção do jornalista que escreveu o texto Maluco pula no Tietê
pra nadar e do autor do poema Lagoa?
(Coleção 3 –5a. série, p.12)
Em Frores, quem é o eu lírico que expressa o próprio sentimento? Jusitfique.
(Coleção 2 – 8a. série, p.242)
Qual é o sexo e a idade aproximada do narrador do poema? Justifique sua resposta.
(Coleção 5 – 5a. série, p.11)
Para quem se fala nesse texto?
(Coleção 4 – 5a. série, p.11)
Na sua opinião, qual é o poema mais antigo? Justifique.
(Coleção 3 – 6a. série, p.85)

Uma outra categoria cuja relevância é inegável é aquela cujo enfoque se dá efetivamente na recepção
ou no próprio processo de leitura.
Aqui, no entanto, é preciso destacar que muitas vezes o discurso poético é pretexto para outras
discussões de motivações variadas em que a leitura do poema não faz a menor diferença ou ainda que
a busca de impressões sobre a experiência estética de forma não reflexiva pode transformar a própria
experiência de leitura num ato vazio, sem sentido:
Releia os poemas e indique: qual você achou mais difícil de entender, qual você achou mais
triste, qual você achou mais engraçado.
(Coleção 3 – 6a. série, p.85)
Você gosta de poesia? Justifique.
(Coleção 3 – 6a. série, p.84)
E você, o que acha: o amor existe? E se existe: o amor é ridículo? Justifique sua resposta.
(Coleção 2 – 7a. série, p.262)
Depois de ter analisado e discutido o poema, você mudou a primeira impressão que teve
dele? Justifique sua resposta.
(Coleção 1 – 6a. série, p.86)
O poema junta a figura alegre do título a um tema triste. Você concorda? Por quê?
(Coleção 4 – 8a. série, p.33)
Você gostou do poema de Cecília Meireles? Por quê? Que sentimentos o poema transmitiu
a você?
(Coleção 5 – 7a. série, p.8)
Você já conhecia a literatura de cordel? Qual a sua opinião sobre esse tipo de literatura?
Você acha que ela deveria ser mais reconhecida? Por quê?
(Coleção 5 – 8a. série, p.23)

A mesma reflexão realizada acerca da timidez da categoria anterior pode ser transferida para essa,
uma vez que sua presença é rara nos livros didáticos.
Muitos autores já tiveram a oportunidade de discutir acerca da presença / ausência da literatura e,
em especial do discurso poético, na escola. Analisam os fatores que justificam o afastamento e o destra-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 356


tamento didático a esse discurso e ainda, a hiper valorização da prosa nos livros didático em detrimento
do discurso poético.
O gênero poético não pede resposta... pode ser daí que a tentativa de provocar tantas respostas por
meio da didatização desse discurso resulte no tratamento inadequado que temos a esse dispensado.
5.Conclusões
A breve análise do corpus selecionado para a pesquisa nos permite uma leitura parcial do tratamento
dado ao discurso poético nos livros didáticos, portanto o máximo a que podemos chegar são conclusões
provisórias que pretendem se inserir no diálogo acerca da apropriação dos pressupostos bakhtinianos
nos fundamentos e nas práticas pedagógicas. Não se trata de apresentar verdades, mas de apresentar
algumas afirmações para serem questionadas e debatidas.
a) do deslocamento dos textos
Os poemas deslocados de seus contextos originais para os livros didáticos recebem um tratamento
conferido aos demais textos de outra natureza que também estão presentes nos livros didáticos (re-
portagens, narrativas, piadas, textos científicos). Configuram-se como gêneros textuais e não como
enunciados de circulação em esfera social, uma vez que passam a ser tomados como textos de um novo
gênero que ali se configura: o gênero didático;
b) das questões propostas
As questões propostas não proporcionam ao leitor a construção de uma configuração do gênero po-
ético, pois a análise concentra-se na materialização do texto e não no aspecto discursivo, além disso,
enfatizam a leitura parafrástica;
c) do leitor que pretende formar na escola
O leitor que se pretende formar, a partir do que se propõem os livros didáticos não analisa os con-
textos de produção e de recepção de forma articulada ao enunciado. Quando convocado à produção de
sentidos, lê o poema como lê qualquer outro texto, o que compromete sua formação, mas principalmente
sua inserção no mundo letrado de forma autônoma.
d) da articulação PCN – PNLD
A criação do PNLD significou um enorme avanço na escolha de material didático para as redes públicas
de ensino. O estabelecimento de critérios para avaliação desse material é norte não somente para os
professores, mas também para a política editorial didática brasileira. Baseada nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, essa avaliação indica quais livros podem ser adotados pelas escolas, no entanto, essa análise
ainda indica o quanto as propostas dos livros ainda precisam ser revistas, ampliadas e discutidas para
que os pressupostos dos PCN se materializem.
Ainda não está construída – nesses materiais – uma relação com os gêneros do discurso como objetos
de ensino, mas uma questão não quer calar: é possível construir uma proposta de formação de leitores
e produtores de textos, por meio da Teoria dos Gêneros Discursivos, tendo como material de referência
os livros didáticos?
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal.São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov).Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros Curriculares Nacionais. Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental
– língua portuguesa. Brasília: MEC/ SEF, 1998.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Guia de livros didáticos – PNLD 2002. Brasília: 2001.
ORLANDI, E. A produção da leitura e suas condições. In: Leitura: teoria e prática. São Paulo: Mercado Aberto e
ALB, abril, 1983.
ROJO, Roxane. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas.( mimeo).

Palavras chave: Gêneros do discurso – livros didáticos – Parâmetros Curri-


culares Nacionais
Biografia resumida: Andréa Antolini Grijó
Mestre em Estudos Literários ( UFES – 1999)
Professora Adjunta do Departamento de Didática e Prática de Ensino
Centro de Educação – Universidade Federal do Espírito Santo
Áreas de interesse de pesquisa – Ensino de Língua Portuguesa

Proceedings XI International Bakhtin Conference 357


O dialogismo constitutivo da divulgação científica

Sheila Vieira de Camargo Grillo

Universidade de São Paulo

sheilagrillo@uol.com.br

Resumo
O texto aborda as práticas de difusão e de circulação de saberes científicos na mídia impressa brasilei-
ra, com o propósito de analisar o gênero reportagem de divulgação científica em revistas especializadas.
Para isso, traça um perfil de duas perspectivas de estudo do fenômeno em questão que se escoram na
teoria bakhtiniana do dialogismo e do plurilingüismo. A partir desses enfoques, são apresentadas duas
hipóteses de análise – uma referente às representações sociais e outra sobre uma mudança histórica
– que serão desenvolvidas na análise de reportagens de capa de duas revistas com perfis distintos. O
artigo mostra como as diferenças nas esferas de circulação são construídas nos textos e as inter-relações
entre ciência, jornalismo e publicidade.
Palavras-chave: Discurso, divulgação científica, dialogismo, plurinlinguismo.
Abstract
The text presents the diffusion and circulation practices of scientifc knowledges in brasilien press
midia, with the purpose of analysing the scientific diffusion reportages in specialized magazines. Two
points of views, based on Bakhtin’s dialogism and plurilinguism concepts, are presented. They introduce
the author’s hypothesis about social representations and historical changings, which are developed in the
analysis of reportages. The article shows how differences in social aspects are constructed in language
and the relationships among science, journalism and publicity.
Key-words: Discourse, scientific diffusion, dialogism, plurilinguism.

As práticas de divulgação e de circulação dos conhecimentos científicos ao grande público – sobre-


tudo urbano e escolarizado - têm se ampliado na sociedade brasileira nos últimos anos. Essa realidade
pode ser observada pelo número expressivo de publicações especializadas presentes nas nossas bancas
de jornais – refiro-me, em especial, às revistas Superinteressante, Galileu, Scientific American Brasil,
Pesquisa Fapesp, Ciência Hoje, Newton – e pelas matérias e seções especiais dedicadas à ciência em
jornais diários e em revistas semanais de caráter jornalístico (Veja, Isto é, Época etc). Entre os fatores
responsáveis pelo aumento de interesse da mídia e do grande público pela ciência estão o crescimento
da comunidade científica e dos órgãos de financiamento à pesquisa no Brasil, a presença de cientistas em
cargos políticos das diversas instâncias do governo brasileiro, o prestígio internacional das pesquisas nas
áreas biológicas e da saúde, o caráter utilitário dos resultados de algumas pesquisas científicas para a
indústria. Todos esses aspectos têm merecido atenção da comunidade científica que tem produzido dois
tipos de práticas: primeiro, a produção de publicações, impressas e digitais, de divulgação científica por
grupos de pesquisa universitários e por organismos fomentadores da pesquisa no Brasil – em especial o
Labjor/Unicamp, a Fapesp e a SBPC – e, segundo, a pesquisa acadêmica sobre os processos de produção,
circulação e recepção do jornalismo científico, na qual se insere este trabalho.
Identifico três campos de investigação acadêmicos que têm se constituído para analisar as práticas
de divulgação da ciência na mídia, a saber: a imagem da ciência e dos cientistas na mídia, associada à
produção e à reprodução de estereótipos; as características discursivas dos textos de divulgação cientí-
fica que incluem a discussão das relações entre mídia, ciência e sociedade; o papel educativo da mídia
na formação da opinião pública e geração de uma consciência crítica sobre a influência da ciência e da
tecnologia no mundo moderno, como aspectos constitutivos do pleno exercício da cidadania.
Inspirada na teoria do círculo bakhtiniano do dialogismo constitutivo da atividade linguageira huma-
na e da sua estabilização provisória em gêneros discursivos, bem como em trabalhos produzidos nos
contextos francês e brasileiro sobre as práticas de divulgação científica, abordarei, neste artigo, o modo
de inscrição da alteridade discursiva em textos das revistas Superinteressante e Pesquisa Fapesp. Para
tanto, apresentarei o modo de incorporação de aspectos da teoria bakhtiniana em duas perspectivas de
análise do fenômeno em questão, a fim de, em seguida, situar meu enfoque sobre as diferenças entre

Proceedings XI International Bakhtin Conference 358


as esferas de circulação e os aspectos textuais das duas publicações acima mencionadas.
Perspectivas de análise da divulgação científica
As expressões correntes “vulgarização científica”, “divulgação científica” e “jornalismo científico” signi-
ficam diferentemente a atividade de difusão e de circulação de saberes produzidos na esfera da ciência.
Essa diversidade de designações é reveladora, ao mesmo tempo, dos diferentes valores sociais que lhe
são atribuídos e dos distintos enfoques teóricos que procuram apreender e interpretar essa atividade
- refiro-me, em particular, ao campo de estudos da análise do discurso e do jornalismo acadêmico. Sem
excluírem-se de forma absoluta, identifico duas perspectivas de apreensão, entre as quais se intercalam
nuances diversas: uma primeira que concebe a difusão de saberes científicos na mídia como uma ativi-
dade de reformulação do discurso científico, e uma segunda que a encara como um discurso autônomo,
uma vez que produzido em outras condições de produção.
Na primeira perspectiva, alinha-se o trabalho de Authier-Revuz (1982) que entende a divulgação
científica como “Transmissão de um discurso existente em função de um novo receptor, a D.C. dá-se,
então, imediatamente, como uma prática de reformulação de um discurso-fonte (doravante D1) em
um discurso segundo (doravante D2).” (p. 108) Essa prática de reformulação é concebida, por Authier-
Revuz, como uma “operação de tradução” do discurso científico em um discurso segundo equivalente,
cujo resultado é um texto que apresenta três aspectos principais. Primeiramente, um quadro global de
discurso relatado no qual funciona e se mostra uma dupla estrutura enunciativa, os interlocutores e o
quadro de enunciação do discurso científico e os interlocutores e o quadro de enunciação da divulgação
científica. Segundo, recorrentes transferências de um discurso a outro, por meio da justaposição de
termos científicos e sua “tradução” pelos termos quotidianos. Essa justaposição é valorativa em favor
do discurso científico, mostrado como preciso, racional e erudito, enquanto que o discurso quotidiano é
construído à imagem do incerto e do aproximado. Terceira, a presença ostensiva de signos de distância
metalingüística em relação a uma palavra - sobretudo o itálico e as aspas - mostrada como de origem
científica ou quotidiana, ambas, porém, representadas como estrangeiras ao discurso do divulgador. O
resultado dessas operações é um discurso explicitamente e intencionalmente heterogêneo, que coloca
em contato o diálogo rompido entre a comunidade científica e a pública. Aqui Authier-Revuz lança mão,
de forma explícita, dos conceitos de “plurilingüismo” e de “dialogismo” do círculo de Bakhtin para concluir
que o gênero da divulgação científica caracteriza-se pela exibição da mediação-comunicação do diálogo
entre duas línguas – ou bilingüismo - correspondentes a dois discursos, o científico e o quotidiano. Esse
diálogo, entretanto, não realiza a ciência pela abordagem dos processos históricos e sociais de produção
do conhecimento, antes reforça uma imagem universal e absoluta do fazer científico.
A segunda perspectiva é composta por trabalhos mais recentes como o de Caldas (2001) e de Zam-
boni (2001). Caldas analisa o papel educacional da mídia para o desenvolvimento da cidadania e enten-
de que a visão, que acabamos de expor, sobre a divulgação científica é insatisfatória para os desafios
contemporâneos da área:
Refletir sobre a relação entre mídia, educação e a construção da cidadania a partir do Jor-
nalismo Científico é tarefa inadiável. Até recentemente, a cultura do difusionismo, da divul-
gação científica, era considerada satisfatória. Cabia aos jornalistas o papel de “tradutor” e
divulgador da produção científica de maneira acrítica, sem contextualizar seus procedimen-
tos, métodos e implicações políticas, econômicas e sociais. Tratava-se, na verdade, de um
jornalismo meramente declaratório, onde a principal preocupação era evitar distorções que
comprometessem a informação original. (p. 73)

Essa percepção é acompanhada da substituição, pela autora, da expressão “divulgação científica”


por “jornalismo científico”, com o intuito de marcar uma nova posição da atividade do jornalista cientí-
fico. Ao atuar como um “intérprete da sociedade” e assumir um papel ativo na construção dos saberes
científicos, o jornalista constrói um novo discurso, o jornalístico, que é divulgado à sociedade. A prática
passa a assumir uma maior responsabilidade e autonomia em relação ao discurso da ciência. Nessa ta-
refa, a autora destaca a relevância da articulação entre comunicação e educação, a fim de democratizar
o acesso ao conhecimento.
Em uma perspectiva próxima, Zamboni (2001) defende a tese de que “o discurso da divulgação
científica constitui um gênero particular de discurso, que desloca a ciência de seu campo de destinação
precípuo e a difunde para os estratos leigos da sociedade.” (p. 93) Para sustentar essa posição, a autora
polemiza explicitamente com Authier-Revuz (1982) e assinala três ressalvas e duas observações ao seu
trabalho, aqui anteriormente apresentado. Primeiro, Zamboni contesta que a alta ocorrência de discur-
so relatado seja um aspecto particularizador da divulgação científica, como defenderia Authier-Revuz.
Apoiando-se nas idéias do círculo de Bakhtin, Zamboni argumenta que a enunciação do discurso outro
está presente em diferentes gêneros discursivos, e portanto, não se constitui em aspecto diferenciador
da D.C. Em segundo lugar, o discurso relatado dos cientistas não pertence à formação discursiva da
ciência, uma vez que as informações transmitidas pelos jornais provêm, em grande parte, de entrevistas
nas quais a fala do cientista já está vulgarizada em função do público não especializado, para o qual o
jornalista escreve. Terceiro, a caracterização, por Authier-Revuz, da divulgação científica como discurso
de reformulação tem por conseqüência o estabelecimento de uma relação de equivalência com a ciência,
e com isso, a D.C. figuraria no campo do discurso científico, assumindo um papel de gênero “menor”.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 359


Novamente apoiando-se na concepção dialógica da linguagem do círculo de Bakhtin, Zamboni defende que
a mudança de destinatário provoca uma correspondente alteração na posição do locutor da divulgação
científica. Esta se constitui em gênero particular de discurso que se vincularia ao campo de transmissão
de informações, onde se encontram o discurso jornalístico e o discurso didático. Nesse campo, o discurso
da ciência comporia um dos ingredientes da D.C. e não a única fonte do jornalista.
Por fim, Zamboni faz duas observações à proposição de Authier-Revuz de que na D.C. ocorre uma
dupla linha paralela de aspas para marcar os termos científicos, estranhos ao leitor, e os termos corren-
tes, estranhos à ciência. A primeira observação, de ordem “ampliativa” como assinala Zamboni, é que
o “bilingüismo” caracterizador de dois discursos em contato está presente não só na D.C., mas em todo
e qualquer discurso de especialidade ao ser transformado num discurso de transmissão de informação.
Zamboni sustenta essa afirmação ao mostrar traços de bilingüismo discursivo nos campos da moda,
da gastronomia, da indústria e da arquitetura. A segunda observação é que o olhar de Authier-Revuz
privilegiaria a enunciação do “outro” no discurso do “eu”. Já Zamboni prefere olhar as marcas de he-
terogeneidade como “realizações efetivas do sujeito”, que trabalha sobre a indeterminação relativa do
sistema lingüístico. É esta concepção que norteia as análises de Zamboni dos textos de D.C. na imprensa
brasileira coletados.
As postulações de Zamboni trazem inovações significativas para a compreensão e a interpretação
do fenômeno da divulgação científica na esfera midiática, principalmente quando salienta o estatuto já
vulgarizado das declarações dos cientistas para a mídia e a identificação do bilingüismo terminológico
como caracterizador não apenas do discurso científico, mas de todo discurso de especialidade. Entretan-
to, uma de suas ressalvas ao trabalho de Authier-Revuz me parece improcedente. Ao apresentar esse
ponto e defender uma leitura que julgo mais adequada, salientarei, ao mesmo tempo, os aspectos que
embasarão minhas hipóteses de análise.
Recepção e subjetividade na DC
A primeira crítica refere-se à acusação de que Authier-Revuz argumenta que a alta ocorrência de
discurso relatado é caracterizadora do discurso da DC, enquanto que Zamboni mostra, sem dificuldade,
que a enunciação do discurso outro é recorrente em muitos gêneros discursivos. A afirmação de Authier-
Revuz não é bem essa, mas que a divulgação científica faz recurso a um “quadro global de discurso
relatado”, estruturante do funcionamento enunciativo da DC, o que sustenta a sua inclusão entre os
discursos reformuladores.
As significativas contribuições de Authier-Revuz e de Zamboni carecem, a meu ver, de uma consideração
mais conseqüente das representações do grande público a respeito do estatuto da D.C. e de sua relação
com a ciência. Para sustentar minha hipótese de trabalho, apóio-me na idéia de Bakhtin (1979/1992)
de que “Enquanto falo, sempre levo em conta o fundo aperceptivo sobre o qual minha fala será recebida
pelo destinatário” (p. 321) Essa passagem foi também utilizada por Zamboni para defender a autonomia
da DC enquanto gênero autônomo. A esse fundo aperceptivo do destinatário julgo necessário acrescentar
as suas representações da atividade de DC. Com isso, entendo que a consideração das condições de
produção da DC apontam para um gênero autônomo cuja prática efetiva não se esgota na “tradução”
do discurso científico, como defende Zamboni. Entretanto, em termos das representações sociais, ou
crenças socialmente difundidas, de grande parte do público alvo desse gênero, a atividade de divulgação
científica permanece como um discurso que, ancorado privilegiadamente na ciência, torna seus temas
acessíveis ao grande público. Em outros termos, minha hipótese é que boa parte dos destinatários não
faz uma distinção nítida entre os campos da ciência e da transmissão de informações científicas, incluindo
a DC na esfera da ciência. A ausência de consideração desse aspecto da recepção da D.C. nos textos de
Authier-Revuz e de Zamboni explica-se pelo enfoque das autoras. Enquanto Zamboni se propõe a analisar
os textos de divulgação sob a lente da “subjetividade mostrada” do enunciador-divulgador, Authier-Revuz
centra-se na representação da “alteridade mostrada”.
A segunda hipótese de meu trabalho apóia-se na ocorrência de uma mudança histórica da DC em
relação ao momento da produção do texto de Authier- Revuz. As auto-representações da atividade de
D.C. pelos jornalistas vêm se transformando nos últimos vinte anos. Se, no início da década de oitenta,
época da publicação do artigo de Authier-Revuz, os jornalistas compreendiam sua atividade como tra-
dução do discurso científico para o público leigo, essa compreensão parece estar mudando em favor de
um papel mais ativo do sujeito enunciador da divulgação científica, o que levaria a uma maior autonomia
desse gênero em relação ao discurso da ciência. Essa hipótese sustenta-se nas afirmações, aqui ante-
riormente transcritas, da jornalista e pesquisadora Graça Caldas sobre o caráter ultrapassado da visão
“difusionista” do jornalismo científico.
Duas variantes da divulgação científica: Superinteressante e Pesquisa FAPESP
Para a caracterização do funcionamento do discurso de divulgação científica na mídia, foram seleciona-
dos trechos da “Carta ao leitor” e da reportagem de capa da revista Superinteressante (São Paulo, Abril,
Out. 2002) e do Editorial, da anúncio publicitário e da reportagem de capa da revista Pesquisa FAPESP
(São Paulo, Fapesp, Abril 2002). A seleção dessas duas publicações fundamentou-se, por um lado, em
aspectos comuns – ambas são revistas de divulgação científica, vendidas em bancas de jornal e com
reportagem de capa da área da psicologia – e, por outro, em aspectos divergentes – as instituições res-
ponsáveis pelas publicações, editora Abril e FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São

Proceedings XI International Bakhtin Conference 360


Paulo), ocupam espaços diferentes na sociedade brasileira, o que tem conseqüências no funcionamento
discursivo dos textos que irei analisar.
A revista Superinteressante traz, no início de cada número e ao lado de quadro com informações
sobre a equipe editorial da revista e da editora Abril, um texto do gênero ‘carta ao leitor’, assinado pelo
diretor de redação. A escolha desse gênero sinaliza a busca de diálogo com o público alvo, como meio de
atingir seus propósitos: a captação do interesse do leitor em função dos temas tratados na edição com
vistas à venda da revista. Já a revista Pesquisa FAPESP veicula, no início de cada número e ao lado de
quadro com informações sobre a equipe editorial da revista e da Fapesp, um texto do gênero ‘editorial’.
Diferentemente da carta ao leitor, esse gênero, presente em grandes jornais impressos, não vem assi-
nado, pois representa a posição da equipe editorial a respeito dos assuntos tratados pelo número.
Superinteressante Pesquisa FAPESP
Carta ao leitor Editorial/Informe publicitário
De verdade, tudo que decidimos fazer na Super passa pelo crivo presumido do leitor, E que leitor! Eu,
que venço todas as mensagens que chegam à redação o que considero uma ferramenta fundamental
para a boa gestão editorial, posso falar. Os leitores da Super estão entre os mais atilados e instruídos
do país.(...) Para realizar a reportagem que você lê a partir de pág. 42, o editor Rodrigo Cavalcante,
um flamenguista nascido em Maceió, homem de letras que também é o autor dos vitupérios
mais engraçados que ecoam pela redação (xingamentos em sotaque nordestino ficam tão
mais divertidos!), ouviu ninguém menos que Peter Gay, autor de uma das mais respeitadas biografias
de Freud, Fritjof Capra, físico da Universidade Berkeley, um dos fundadores da chamada New Age, e
Sophie Freud, a neta do bom velhinho. Uma apuração exemplar que reflete bem o tipo de jornalismo
que tentamos fazer na Super todo mês: Informação e análise de primeiríssima qualidade, em primeira
mão. Boa leitura. (ed. 181 – Out. 2002, p. 10) O medo em seu estado mais bruto, esse pavor
inconsciente e ancestral que trabalha a favor do instinto de sobrevivência de homens e outros animais,
que produz reações instantâneas diante de algo, real ou imaginário, percebido como ameaça, aparece
bem delineado na reportagem de capa desta edição.(...) São evidências que provocam, necessariamente,
uma revisão do circuito estímulo aversivo/reação de defesa do organismo que, neste caso, reduz um
pouco o papel da amígdala cerebral dentro dele, tida até aqui como única estrutura responsável pelo
processo de separação entre o que pode ser ameaçador, ou não, para o organismo. (ed. 74, Abril/2002)
Fale com a inteligência do país As reportagens exclusivas sobre as pesquisas mais avançadas de ciência
e tecnologia brasileira, publicadas pela revista Pesquisa FAPESP, são lidas por pesquisadores, professo-
res, estudantes de pós-graduação, parlamentares, empresários, executivos e profissionais de pesquisa
e desenvolvimento. (ed. 81 – Nov. de 2002, p. 98)

Como podemos observar nos fragmentos acima, a carta ao leitor da revista Superinteressante se
constrói sobre o diálogo eu – diretor da redação –, tu – cada leitor individualmente – e a menção a um
ele(s) – repórteres e reportagens. No eixo da intersubjetividade (eu/tu), é produzida a aproximação di-
retor de redação/cada leitor, por meio da construção de imagens e do apagamento da assimetria repórter
(detentor de um saber) e leitor (que busca a informação). O leitor da revista é inserido no texto, com a
utilização de diversas marcas de interlocução. Por fim, fora o eixo da intersubjetividade, o texto constrói
a legitimidade dos conteúdos veiculados, ao expor e valorizar as credenciais da fonte da reportagem
(“ouviu ninguém menos que Peter Gay, autor de uma das mais respeitadas biografias de Freud, Fritjof
Capra, físico da Universidade Berkeley, um dos fundadores da chamada NEW Age, e Sophie Freud, a neta
do bom velhinho”) e da proximidade repórter/leitor (“Para realizar a reportagem que você lê a partir da
pág. 42, o editor Rodrigo Cavalcante, um flamenguista nascido em Maceió, homem de letras que tam-
bém é autor dos vitupérios mais engraçados que ecoam pela redação”). Nesse texto, a transmissão de
conhecimento é modulada pela captação e pela sedução do público leitor, que regula todo o processo: a
escolha dos temas, seu enfoque, as posturas do repórter e do diretor da redação.
O editorial da revista Pesquisa FAPESP não apresentam nenhuma marca das pessoas do discurso
(eu/tu), construindo-se inteiramente sobre a terceira pessoa, característica dos textos científicos. Os
critérios de seleção do tema da reportagem provêm das duas esferas definidoras da revista: da esfera
midiática, a preocupação com assuntos da atualidade e seu impacto social e, da esfera científica, os
avanços obtidos pelas pesquisas relatadas e sua aplicação tecnológica. É o potencial de novidade e sua
relevância social que funcionam como índices legitimadores das reportagens, cuja apresentação dispensa
a explicitação das credenciais de repórteres e cientistas, autorizados a priori pelo prestígio da FAPESP,
enquanto órgão de financiamento da pesquisa no Brasil. Já o anúncio publicitário da revista Pesquisa
FAPESP revela que seus interlocutores previstos estão na esfera científica e nas instâncias de decisão
governamental e empresarial brasileiras.
Esses três gêneros (carta ao leitor, editorial, anúncio publicitário), pela percepção das condições de
produção que permitem, funcionam como apresentadores do conteúdo da revista para o público alvo e,
por isso, explicitam aspectos relevantes, que serão concretizados nas reportagens de capa que passa-
remos a analisar.
A reportagem de capa da revista Superinteressante constrói-se sobre três elementos, intimamente
articulados, que estruturam o funcionamento de seu texto: a segmentação do texto, o diálogo explícito
com o interlocutor e a exposição abundante dos discursos dos especialistas consultados pelo repórter.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 361


A segmentação do texto se dá pela organização das diferentes áreas do saber que dialogam polemi-
camente com a psicanálise freudiana. Essas áreas, conforme os subtítulos interiores à reportagem são
Freud X Neurociência, Freud X Psicologia Social e Freud X Nova Era. Essas três divisões são emolduradas
por uma seção introdutória e por um balanço final intitulado O Futuro de Freud.
Na seção introdutória, o repórter, semelhantemente ao que ocorre com título e título auxiliar, busca a
adesão do leitor e, para isso, mobiliza os conhecimentos prévios estocados na memória do leitor, como
vemos no primeiro parágrafo da reportagem:
“Freud explica” é um dos grandes clichês do século XX. Mesmo quem nunca leu sequer um
parágrafo dos mais de 20 livros do fundador da psicanálise já esbarrou com termos como
complexo de Édipo, desejos reprimidos, inveja do pênis, símbolos fálicos, ego, id e supe-
rego.(...) (p. 43)

O enunciado citado entre aspas remete a um saber compartilhado socialmente que mobiliza o eleitor
pela identificação de aspectos familiares que, entretanto, merecem reflexão pelos questionamentos que
têm sofrido, como apontam título e título auxiliar. Em seguida, traça um panorama das três grandes
áreas que, segundo a revista, têm polemizado com a psicanálise. Por fim, o último recurso persuasivo
dessa introdução é o seguinte relato das declarações da própria neta de Freud:
“Só quem tem pouco bom senso levaria hoje a sério a maioria das idéias de Freud”, diz a
psicóloga Sophie, professora da Faculdade Simmons, em Boston, nos Estados Unidos. Sua
declaração seria mais uma dentre o coro de críticos de Freud, não fosse por um detalhe im-
portante. O último nome de Sophie é Freud. Isso mesmo: a neta do fundador da psicanálise
disse à Super que é bastante cética diante das teorias do avô e acha que pouca coisa de sua
teses ainda pode ser considerada. (p. 44)

O uso do discurso direto e o conteúdo polêmico da declaração citada são habilmente trabalhados
por meio do breve suspense para identificar a fonte do discurso. Todos esses fatores funcionam como o
argumento derradeiro para a relevância do tema da reportagem e conseqüente necessidade de o leitor
conhecer o que se passa na área.
A exposição das três áreas fontes das críticas à psicanálise é feita por meio da apresentação das
credenciais institucionais e das vozes dos especialistas. Estas se articulam com as perguntas colocadas
pelo repórter que pontua as dúvidas e as conclusões presumidas do leitor, a partir do que declaram os
especialistas. Esse procedimento discursivo ocorre durante toda a reportagem, mas extrairei apenas um
exemplo ilustrativo:
“É claro que, se você, procurar, pode encontrar no seu sonho padrões e significados para o
que quiser”, diz Sabattini. “da mesma forma que você pode dar inúmeros significados a um
quadro abstrato numa exposição de arte moderna.” Mas isso é ciência?
“Não”, responde Adolf Grünbaum, considerado um dos mais ferrenhos críticos da psicanálise
no mundo. (p. 46)

As vozes dos especialistas se acrescentam e se contrapõem, sobretudo, na forma do discurso direto


que, produz, como sabemos, um efeito de transparência, ou mesmo de duplicação do real representado,
e de complexidade de pontos de vista abarcados. O jornalista se utiliza das perguntas retóricas, presentes
inclusive na capa, para orquestrar as vozes e simular um plurilingüismo, nos termos de Bakhtin, ou seja,
introduz-se as linguagens e as perspectivas sócio-ideológicas das diferentes áreas do saber. A presença
ostensiva das vozes das fontes não é um traço constitutivo apenas da reportagem de divulgação cientí-
fica, mas da reportagem jornalística como um todo. A maneira de organizá-las em grandes áreas e de
articulá-las à perspectiva do leitor, neste caso com as perguntas retóricas, parece se constituir em traço
definidor da reportagem de divulgação científica com fortes traços de publicização.
Por fim, a seção final intitulada O Futuro de Freud enuncia o seu discurso em vias de se produzir,
como ocorre em vários outros momentos do texto, ao associar o jornalista e o leitor num mesmo ato de
comunicação, por meio da previsão das reações do público leitor:
É bem provável que a essa altura você já esteja pensando em como vai dizer a seu psica-
nalista que pretende suspender suas sessões. Mas será que os críticos de Freud conseguirão
realmente enterrá-lo no passado?(...) (p. 49)
Mas, afinal, as idéias de Freud morreram ou não?
Talvez tenha sido o americano John Horgan, ex-editor da revista Scientific American e bastante
conhecido pelo seu ceticismo, quem tenha dado a resposta mais perspicaz a essa pergunta.
Em seu livro A mente desconhecida, ele diz que não, Freud ainda não está morto. (...) “Se
os modelos da psicanálise são deficientes, a neurologia também estaria longe, muito longe
de desvendar o maior mistério da ciência: a mente humana. E, para aumentar o nível de
felicidade de alguém que sofre, vale o que funcionar, seja a ciência ou não. É isso, aparen-
temente, que as pessoas estão dizendo aos estudiosos.” (p. 50)

Como em diversos outros momentos do texto, a didatização é feita com o uso de perguntas que procu-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 362


ram antecipar as reações previstas no leitor, colocando especialistas, repórteres e leitor em uma mesma
cena enunciativa. O balanço final busca atenuar as declarações polêmicas -pressupostas nos elementos
paratextuais e no próprio corpo do texto – acerca do fim da psicanálise – confrontado-as com mais uma
voz sob a forma do discurso direto. Do início ao fim, a reportagem inscreve o diálogo com o leitor no
fio do discurso ao mesmo tempo que se propõe, por meio da ostensiva presença do discurso citado na
sua forma mais transparente ao referente, a reproduzir a fala dos especialistas da área. Essa estrutura
enunciativa evidencia minha hipótese anterior: se, por um lado grande parte dos discursos relatados foi
obtida em entrevistas, e portanto, trata-se de um discurso já vulgarizado, como bem apontou Zamboni,
por outro lado, essa representação em discurso direto produz um efeito de fidelidade ao discurso do
especialista, o qual é mediado/traduzido/reformulado pelo jornalista divulgador.
Já a reportagem de capa da revista Pesquisa Fapesp estrutura-se sobre o relato em seqüência invertida
de uma pesquisa na área de “neurobiologia do medo e da ansiedade”, isto é, a reportagem de divulga-
ção da revista Pesquisa Fapesp inicia-se pelo relato dos resultados – presentes inclusive nos elementos
paratextuais como os títulos auxiliares da capa e do interior – passa pela descrição do funcionamento
do cérebro, para depois relatar os experimentos que resultaram nas conclusões anunciadas no início da
reportagem e finaliza com a explicitação, em forma de discurso relatado, dos objetivos e do escopo da
pesquisa. A fim de visualizarmos essa estrutura, vejamos o primeiro parágrafo, o relato do experimento
já no final e o último parágrafo do texto:
O estudo do percurso neuroquímico das emoções no cérebro de mamíferos superiores – e
do próprio ser humano – colhe cada vez mais indícios de que o medo, em seu estado mais
bruto, é um sentimento que se assenta em circuitos tão antigos quanto os dos primeiros
répteis da Terra.
Foi desencadeada essa gama de temores em roedores que a equipe de Lira Brandão chegou
aos resultados de suas pesquisas, que apontam novas funções para três estruturas cerebrais.
No caso dos ratos com medo contextual condicionado, os cientistas constataram que roedo-
res com o núcleo mediano da rafe inativado, química e cirurgicamente, não apresentavam
as respostas típicas de quem estava diante de uma situação de perigo. “Já os que tinham
o núcleo preservado exibiam as respostas esperadas”, diz a bióloga Viviane Avanzi, que
participa dos trabalhos conduzidos pelo Laboratório de Psicobiologia.
Foi o suficiente para provocar a típica reação de congelamento da musculatura. “Com as
nossas pesquisas, não queremos minimizar a importância da amígdala no circuito do medo.
O estímulo aversivo precisa chegar a ela para que seja detonado o processo de reação
defensiva do organismo”, pondera Lira Brandão. “O objetivo de nossos estudos é entender
melhor todo o circuito do medo destacando a importância de várias outras estruturas, que
recebem e integram essas informações mesmo antes de elas chegarem à amígdala.”

Essa estrutura – diferente do discurso científico que segue a ordem apresentação dos objetivos, das
teorias de base, da metodologia e da descrição do experimento e, por fim, apresenta os resultados – ali-
nha-se ao padrão conhecido em jornalismo como pirâmide invertida na qual os resultados/conseqüências
são apresentados no início do texto, com a finalidade de captação do leitor, em função das coerções
temporais da recepção do texto jornalístico.
Essa estrutura global da reportagem, recorrente nesse gênero dessa revista, é marcada por outros três
aspectos característicos da esfera da divulgação de conhecimentos especializados. Primeiro, a explicação
de termos técnicos, visando à compreensão de público que, embora em grande medida da comunidade
científica, não é necessariamente da área e portanto não domina conhecimentos técnicos:
No caso do núcleo mediano da rafe, os cientistas também conseguiram precisar qual neuro-
transmissor – substância liberada por um neurônio excitado com o intuito de passar adiante
o estímulo recebido para outro neurônio – encarrega-se de levar sinais do medo dessa es-
trutura para as demais áreas do cérebro.

Segunda, a presença do discurso relatado aparece em estreita parceria com o relato do jornalista e
sua função é a de legitimação de uma informação já dada pelo jornalista e confirmada pela reprodução
da voz da fonte. O discurso direto preparado é um auxiliar para o relato da pesquisa, enquanto estrutura
textual organizadora da reportagem.
Terceira, o diálogo explícito com o leitor aparece de forma bastante discreta, sob a forma de pergunta
retórica:
Nessa linha de trabalho, o estudo do medo contextual condicionado em ratos produziu re-
sultados interessantes. Como esse tipo de emoção é criada nos animais? Vale a pena des-
crever um experimento clássico para entender o processo de indução do medo associado
a um ambiente.

Considerações Finais
O trabalho com textos de divulgação científica mostra, de forma exemplar, as possibilidades heurísticas
das noções bakhtinianas de dialogismo, de enunciado e de gêneros do discurso. A situação enunciativa
é refletida e refratada nas representações recorrentes do discurso da ciência e do leitor e revelam o

Proceedings XI International Bakhtin Conference 363


modo de funcionamento desse gênero do discurso que se constitui na tensão entre as esferas da mídia,
da publicidade e da ciência.
As diferenças entre as duas publicações se manifestaram já na escolha dos gêneros apresentadores
de cada revista – carta ao leitor e editorial – os quais constroem relações diferenciadas com a ciência e
o leitor. Os gêneros reportagens de divulgação científica apresentam diferenças significativas em função
das diferenças nas esferas de circulação das duas revistas. Quanto à forma composicional, a Pesquisa
FAPESP faz uso da pirâmide invertida e do discurso relatado preparado pelo relato do jornalista e a
Superinteressante caracteriza-se pela segmentação do texto, pelo diálogo com o leitor e pela presença
do discurso direto não preparado. Apesar de as duas publicações mostrarem características da palavra
autoritária, na acepção bakhtiniana, ao distinguirem e isolarem o discurso das fontes, ambas apresentam
tendências bastante diferenciadas: a Superinteressante faz uso extensivo do discurso direto produzindo
um efeito de dramatização dos discursos das fontes e de apagamento da voz do jornalista em benefício
da “(re)produção” da voz do cientista, enquanto a Pesquisa FAPESP funciona sob o modo do relato de
pesquisa e introduz o discurso direto da fonte para legitimar o voz do jornalista. Quanto ao estilo, embora
ambas procurem evitar o esoterismo da linguagem científica, as características composicionais da Pesquisa
Fapesp constituem um texto formal e mais denso sintaticamente e a Superinteressante caracteriza-se
por um texto escrito informal, que simula semelhanças com a oralidade. No que diz respeito ao tema, o
campo da ciência é, por um lado, comum às duas publicações e, por outro, diferentemente construído
em função das instâncias de produção e de recepção do texto.
Por fim, a historicidade dos gêneros do discurso se mostrou nas transformações das auto-representa-
ções das práticas de divulgação científica, que passam a demonstrar uma maior autonomia em relação
ao discurso da ciência. Nesse sentido, penso que são as alterações e inter-relações entre as esferas da
ciência, do jornalismo e da publicidade as fontes das mudanças em gêneros da divulgação científica.
Referências bibliográficas:
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. A encenação da comunicação no discurso de divulgação científica. In: Palavras incertas:
as não-coincidências do dizer. Campinas: Unicamp, 1998. p. 107- 131. Título original em francês: La mise-em-scène
de la communication dans des discours de vulgarisation scientifique, 1982.
______. Dialogismo e divulgação científica. In: RUA: revista do núcleo de desenvolvimento da criatividade da Unicamp
– NUDECRI. Campinas, UNICAMP, n. 5, p. 9-16, março 2000.
BAKHTIN, Mikhail./VOLOSHINOV,V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. do francês de Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992a. Título da edição original em russo: Marksizm i filosofija jazyka,
1929.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In : ______. Estética da criação verbal. Trad. do francês de Maria
Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 277-326. Título original em russo: Estetika
Slovesnogo Tvortchestva, 1979.
_____. Questões de literatura e de estética. trad. A.F. Bernadini, J. Pereira Jr, A. Góes Jr, H. S. Nazário, H. F. de
Andrade. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1993. Título da edição original em russo: Voprosy literatury i èstetiki, 1975.
BEACCO, J.C.; MOIRAND, S. Autour des discours de transmission de connaissances. Langages, Paris, Larousse, n.
117, p. 32-53, mars 1995.
______. Les enjeux des discours spécialisés. Paris: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1995a.
BURKETT, Warren. Jornalismo científico. Trad. A. Trânsito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.
CALDAS, Graça. Comunicação, educação e cidadania: o papel do jornalismo científico. In: GUIMARÀES, Eduardo (Org.)
Produção e circulação do conhecimento: estado, mídia, sociedade. Campinas: Pontes, 2001. p. 73-80.
GUIMARÀES, Eduardo (Org.) Produção e circulação do conhecimento: estado, mídia, sociedade. Campinas:
Pontes, 2001.
______. Produção e circulação do conhecimento: política, ciência, divulgação. Campinas, SP: Pontes, 2003.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.
MOIRAND, Sophie. Formas discursivas da difusão de saberes na mídia. In: RUA: revista do núcleo de desenvolvimento
da criatividade da Unicamp - NUDECRI. Campinas, UNICAMP, n. 6, p. 9-24, março 2000.
PEYTARD, Jean. Problématique de l’alteration des discours: reformulation et transcodage. Langue Française, Paris,
Larousse, n. 64, p. 17-28, dec. 1984.
ZAMBONI, L.M.S. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso
da divulgação científica. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 364


Textos analisados:
CAVALCANTE, R. A psicanálise no divã. Superinteressante. ed.
181. São Paulo: Abril, out. 2002. p. 42-50.
SILVA, A. Carta ao leitor. Superinteressante. ed. 181. São Paulo:
Abril, out. 2002. p. 10.
PIVETTA, Marcos. Circuitos do medo. Pesquisa FAPESP. ed. 74.
São Paulo: FAPESP, abril 2002.
EDITORIAL. Pesquisa FAPESP. ed. 74. São Paulo: FAPESP, abril
2002.
Anúncio publicitário. Pesquisa FAPESP. ed. 81. São Paulo: FAPESP,
nov. 2002. p. 98.

Biografia resumida: Sheila Vieira de Camargo Grillo é doutora


em Lingüística pela Universidade de São Paulo. Sua tese de doutorado
(2001), na área de Análise do Discurso, analisa os gêneros notícia e
reportagem políticas em jornais paulistas. Atualmente, é docente da
graduação em Letras e do mestrado em Língua Portuguesa da Uni-
versidade de São Paulo, onde coordena um projeto de pesquisa sobre
o funcionamento dos discursos de divulgação científica em revistas
semanais e no jornalismo diário.

Sheila Vieira de Camargo Grillo holds a PhD in Linguistics from


the University of São Paulo. Her doctoral thesis (2001), in the area
of Discourse Analysis, is about journalistic genres of discourse. She
is a professor in the Classical and Vernacular Letters Department at
the University of São Paulo, where she develops a research project
on the functioning of scientific diffusion discourse in magazines and
newspapers.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 365


The Irresolution of Language: Indetermination in the
Short Stories of Raymond Carver

Jeffrey Gruenglas, MA

Brooklyn College, CUNY

1615 Avenue I, #124

Brooklyn, NY 11230

USA

(1) 718-258-2775

Jeffg15@hotmail.com

The characters in the short fiction of American writer Raymond Carver (1938-1988) invariably find
themselves in situations in which an external or internal conflict is resolved but in which their internal
crises remain unresolved. In other words, regardless of the problem presented to the character, he or she
is unable to confront or fully resolve the issue at hand because of an inability to express his or herself.
The result is a persona deeply and internally torn, frustrated by the inability of expression.
At the linguistic root of Carverian discourse is Mikhail Bakhtin’s dialogic. A Bakhtinian perspec-
tive presents for the reader characters with the inability to resolve their conflicts, only reinforcing the
argument that all language is at once absurd and ambiguous. Whereas the plot is resolved, the person
never is. My aim in this paper is to identify in Carver’s short fiction a pattern of discourse and utterance
inherent with the properties of Bakhtin’s dialogic. My argument is that this paradigm is a reflection of
the everyday speech symptomatic of a biopsychosocial depression discourse.
The stories of Raymond Carver are known for what they don’t say than for what they do say. Unique
in form and content, his short stories utilize minimalist techniques that allow much to be said with mini-
mum use of words. Carver’s portrait of America is one in which people find themselves in a depressive
state. They are distant, disconnected from people and events, and fatigued by crises — financial, emo-
tional, psychological, and societal. They find themselves insignificant among the greater happenings
around them. This status is manifested by a lingual paralysis, rendering Carver’s characters incapable
of speech or action.
In any given discourse, an utterance itself depends on the semiotics involved within the context of
a situation. One suffering of an illness, for example, will surely possess a vocabulary that an audience,
or “other,” will not understand. What one is left with is a doubly complex discourse with which both the
“other” and the reader are incapable of understanding in the context of the utterance. The speaker, then,
remains misunderstood, or not understood entirely.
The phenomenon underlines the dialogic in Carver. The dialogic nature of language in Carver paints
a network of meanings and communicative modes that reveal complexities, paradoxes, and crises in
nearly every situation one encounters in his stories, and they reflect the complexities of communication
in everyday life. Labeled a neorealist by many critics, Carver, like Ibsen decades before, is faithful to
the genuine inflections, tones, and omissions we commit in our daily speech. The application of a multi-
plicity of voices to a depression discourse reveals how verbal language in such stories as “A Small Good
Thing” and “Intimacy” is repressed while a competing, non-verbal network of communication is exhibited
simultaneously. In most cases, the characters remain complex and unresolved. Their issues, however,
are issues, and the characters end up where they began — alone, confused, and hopeless.
Carver’s characters are suspended between thought and action. They know what they must do, but
their discourse reveals paralysis. Although they continue in their actions, their speech reveals a dialogic
nature that manifests itself through their inability to resolve internal conflict. How does this conflict
arise? To address this concern, it is helpful to apply Bakhtin’s notion of heteroglossia. What makes the
idea of heteroglossia so fascinating in the works of Carver is that at any given point, unlike Bakhtin’s
formal analysis of the Russian novel, there exists two utterances competing with one another: the utte-
rance of another and the utterance of the self. This dichotomy is what gives rise to irresolution. Carver’s
characters cannot resolve between the norm and what is perceived as carnivalesque precisely because

Proceedings XI International Bakhtin Conference 366


they cannot distinguish between the two. We observe, what Bakhtin refers to as, a series of hybrid
constructions: “an utterance that belongs, by its grammatical (syntactic) and compositional markers,
to a single speaker, but that actually contains mixed within it two utterances, two speech manners, two
styles, two ‘languages,’ two semantic and axiological belief systems” (Dentith 200).
An example of this dichotomy occurs in “A Small Good Thing.” Faced with their young comatose child
(after being struck by a car), Ann and Howard Weiss’ lives change instantly. This upper-middle-class
parents have found themselves, quite possibly for the first time, faced with a situation that neither words
nor money can resolve: “[t]he walls of their once-secure and self-enclosed familial world have, thanks
to a bit of bad luck, crumbled with alarming speed, such that the Weiss’ lives are literally shaken by
circumstances” (Nessett 62-63). In the story, Ann is crushed by her son’s death. She is inconsolable,
and the baker’s incessant reminder to pick up “Scotty’s [birthday] cake” only intensifies her fury at the
world. When she and her husband confront the baker, the level of antagonism escalates to a degree
such that we suspect the baker is bound to get more than verbal reprimand from this enraged grieving
mother, whose own speech “abolishes the social conventions, suspicions, and errors that brought them
to the point of confrontation” (Facknitz 292). No matter what she says, Ann’s failure verbally to connect
and describe emotions leaves her panting and frustrated.
But this is something Carver intentionally makes recognizable. As Michael Gearhart points out, “Lan-
guage clearly works for the reader, while it baffles the character. But the inherent ambiguity of language
is not always one of perspective” (442). The depression-laden discourse in “A Small, Good Thing,” is
certainly verbose, as evidenced by Ann Weiss’ retorts concerning her son’s condition and her monosyllabic
outbursts and utterances directed at both the doctor and her husband. But significant here is that the
words themselves seem to carry little weight or are insufficient to accurately correlate with the emotions
of the grief-stricken parents. Once again, the reader is acutely aware of “the deterioration of language
and the subsequent dependence upon implicit communication” (442).
Certainly the characters in this story convey themselves with the use of non-verbal employments, such
as signs and gestures — the type of inarticulation that suffocates the typical Carver character. Where
words fail Ann, her distraught composure and frail body hint at the depression and grief inconsolable with
simple verbal expression: “…when speech is inadequate, nonverbal signs gain added significance, and
physical appearance is no exception” (Gearhart 443). But the close of the story reveals an indefinite and
indeterminate outcome. As the grieving parents confront the baker and chide him for his insensitivity to
their grief (albeit the baker is truly unaware of the events that transpired), they are made fully aware of
their “loss” but are unable to offer any verbal utterance. They sit there, listening to the baker begin “to
speak of loneliness, and of the sense of doubt and limitation that had come to him in his middle years”
(Carver, Where I’m Calling From 332). The Weiss’s have found themselves unable to cope with their loss,
and the inadequacy of their utterance leaves them irresolute. Yet, there is a sense of determination to
confront their conflict, illustrated by communal silence and an offering of freshly baked bread.
Language is perhaps Carver’s most distinct element in his narratives, and it demonstrates the degree
to which the people in his stories are paralyzed. To Carver, we are all captives. The epiphanies of his
characters come
most often in the form of some untried, uncustomary strategy of language: for one cha-
racter potential release resides in a single word; for another it lies in a nonverbal sign; for
others it comes of the activity of nocturnal conversation; for others, the self-enriching acts
of reading and writing. (Nesset 74)

One critic adds that “Carver is constrained to the same language as his characters, and both Carver
and his characters are reduced to ‘monosyllabic probings’ of their subjects” (Seibert 26). Similarly,
Irving Howe alludes to the restraints of language, pointing out that “Carver’s characters, like those of
many earlier American writers, lack a vocabulary that can release their feelings, so they must express
themselves mainly through obscure gesture and berserk display” (43).
The axiom of listening more than talking works well when those who have something to say have
an audience. But what of the individual whose neurotic and depressed state hampers him or her from
having something to express, regardless of whether an audience is present? Silence in Carver’s works
symbolizes the death of verbal communication, an occurrence that coincides with a depression discourse
and a supplanting of bodily gestures and covert intimations of depression, as Champion writes:
While communicating with others helps heal feelings of desolation that Carver’s characters
experience, failing to communicate with others parallels or even penetrates his characters’
feelings of despair. Frequently in Carver’s fictional world, speech is therapeutic but silence
is detrimental to characters. In terms of plot structure, silence or speech may be used to
establish closure. Readers can examine discourse or lack of discourse as a means to de-
termine the resolution of many of Carver’s stories. The level of characters’ willingness to
communicate often determines the extent to which they will succeed in overcoming their
personal misfortunes…. Silences play a more important role in the story than words the
characters might have spoken, suggesting that it’s not what someone says but what some-
one doesn’t say that induces possible interpretive meanings. Just as Carver’s pared-down
plots and sparse narrative descriptions invite readers to create their own conclusions, fill

Proceedings XI International Bakhtin Conference 367


in gaps for themselves and consider various possibilities, the silences between characters
invite readers to consider possible discourses, alternatives to silence. (193)

Carver’s characters exhibit what critics have termed a “poverty of language”: “[h]is characters are
inarticulate and insufficiently realized because they seem unable to explain why they do what they do”
(May, “Do You See What I’m Saying” 39). But David Gershom Myers, a former Carver student and now
scholar at Texas A&M, argues that Carver was faithful to the voice often misheard and that he wrote
stories in other people’s voices rather than his own (461). Kathleen Shute reiterates this view, pointing
out that Carver’s change from his earlier to later stories is attributed to a “move from minimalism to a
style in which ‘the poverty of language diminishes’” (650). Most of Carver’s critics see merit in this tech-
nique because it captures a moment of paralysis that most of us encounter daily but can rarely verbalize.
Carver himself qualified this: “[t]he language of my stories is the language people commonly speak, but
it is also a prose that must be worked on to make it seem transparent” (Gentry and Stull 194).
Human discourse both informs and is informed by one’s reality. As Cynthia Marshall points out, “the
introduction of the symbol opens up the world of negativity, which constitutes both the discourse of the
human subject and the reality of his world in so far as it is human” (1210). The double-voiced nature of
Carver’s characters reveals individuals conflicted internally and with others. This is manifest in his later
story “Intimacy,” in which the narrator wants to experience feeling but cannot is unable to determine his
emotions. Further, his few utterances are drowned by the competing and almost authoritative discourse
of his wife. But the inability of dialogue here to resolve a conflict is due in part to inadequacy of language
to fully convey a singular, authoritative meaning. Equally significant is the property inherent in Bakhtin’s
“speech act,” in which an individual’s verbal conversation influences and alters the perception of another,
even resulting in a set of actions based on that influence. Specifically, Carver’s characters suffer from
a social “dis-ease,” triggered by the spoken discourse of others that challenges and inverts the lingual
conventions to which is already accustomed. Whether triggered or exacerbated by intoxication, clinical
depression, or a simple case of melancholy (the “blues”), the speech-act functions as a veneer for alie-
nation, detachment, and isolation that Carver’s characters experience on a social level.
In “Intimacy” the speech-act consists of various strands of discourse. In this story the narrator suffers
from a degree of paralysis such that his inability to communicate is only heightened further by his wife’s
own accusatory speech. The literate and well-read narrator comes home one day and is subjected to
accusations and claims from his wife that “he’s caused her anguish.” The story is told from the perspective
of “She said” (which begins nearly three-quarters of the paragraphs). The narrator seems unsure and
unaware of what he’s done wrong: “[k]neeling submissively before her, curiously passive, he is domi-
nated by his ‘material,’ a domination mirrored even on the level of [the] story’s rhetoric…” (Nessett 99).
In fact, he does not even attempt to consider or defend himself against any of the accusations. Rather,
he continues, with sporadic breaks in the narrative informing the reader that he is unable to speak or
communicate. It never becomes quite clear to him nor to the reader to what his wife is alluding. While
her elliptical mode of communication may suggest something about herself (although we know nothing
else about her), it also implies that her letter is somewhat connected with her husband’s inability to ex-
press himself and to realize it in the first place. “In the final analysis,” she says, “nobody gives a damn
anymore” (370). As he watches her drive away, the husband questions whether he should confront
her, tell her something, but he decides against this, adding that “I might not understand a word I’d say”
(370). The narrator here is both apathetic and paralyzed by an inability to fix the situation.
One encounters such paralysis of language in everyday speech to the point where our utterances
are authored with one intention while being misinterpreted or miscomprehended by another. As Bakhtin
writes:
“Many people who have an excellent command of language often feel quite helpless in cer-
tain spheres of communication precisely because they do not have a practical command
of the generic forms used in the given spheres. Frequently a person who has an excellent
command of speech in some areas of cultural communication, who speaks very well on social
questions, is silent or very awkward in social conversation.” (Morris 84).

Sadly, the narrator in “Intimacy” has no lingual authority. Consider the following phatic communica-
tion:
You know what I’m talking about, don’t you? Am I right?
Right, I say. Right as rain.
She says, “You’ll agree to anything, won’t you? You give in too easy. You always did. You
don’t have any principles, not one. Anything to avoid a fuss. But that’s neither here nor
there” (Carver, Where I’m Calling From 365).

What aggravates the dialogue here is the implication of an accusation to which the narrator cannot
correlate with his emotions. Carver’s “characters do not possess adequate words for the raw emotion
they feel” (Campbell, Carver Country: The World of Raymond Carver 74). The narrator, verbally pa-
ralyzed, is incapable of addressing his wife’s claims, whatever they may be. He simply waits patiently
as a recipient to her accusations. His failure to respond in a way that meets the demands of his wife
leaves her to speculate that he is indignant or simply avoiding the situation. To the reader, however, his

Proceedings XI International Bakhtin Conference 368


utterance, or lack thereof, carries with it far greater significance: whether he agrees with his wife or is
simply moving the conversation along is irrelevant. The dialogic properties here present a situation in
which the narrator attempts to address his wife’s claims, but his incapacity to utter what is perceived as
appropriate leaves him irresolute. The internal dialogism of the double-voiced prose discourse, Bakhtin
argues, is never truly exhausted, nor can it manifest itself into an authoritative dialogue, thus yielding
little room for demarcation. The narrator remains unresolved in spite of these inadequacies; neither his
nor his wife’s discourse dominates the dialogue. To quote Bakhtin, the heteroglot nature of the dialogue
“cannot fundamentally be dramatized or dramatically resolved (brought to an authentic end); it cannot
not ultimately be fitted into the frame of any manifest dialogue, into the frame of a mere conversation
between persons; it is not ultimately divisible into verbal exchanges possessing precisely marked boun-
daries” (Dentith 219-220).
Bakhtin‘s notion of dialogism in union with the speech-act suggests the nature and function of
dialogue in Carver. Because of the irresolute nature of language, the chasm between thought and utte-
rance remains forever unbridged. This idea further reflects the inability to ever fully express ourselves.
Because of the multiplicity and of language and genre, we are open to multiple ideologies and interpre-
tations, but never an authoritative one. And this, Bakhtin would agree, is not a bad thing.
Up to this point I have suggested that Carver’s characters are stilted by inadequate language and a
priory properties of the speech-act that yield irresolution of a given conflict or situation. But I’d like to
modify this thesis by suggesting an additional dimension to the network of verbal and non-verbal articu-
lations employed by Carver’s characters. That is, beneath this irresolution is a discourse of depression.
Were each character’s speech to possess, as Bakhtin points out, its own belief system, then—in the case
of “Intimacy”— the narrator’s indeterminate nature is further understood in the context of a biopsycho-
social element in which he is physically, verbally, and emotionally detached from his wife. His ideology
informs and is informed by a network of symbols and gestures that represent psychological and social
isolation from those around him. Further, this network evolves into a second language, not refracted
through the author necessarily (Dentith 209), but internally, within the narrator, to produce a discourse
of depression.
My objective here has been to locate the nexus of irresolution in Carver’s dialogue. While the discourse
of his characters reveals language that yields irresolution, there exists a subset of utterances combined
with a speech-act that is symptomatic of a biopsychosocial condition. At times, the irresolution transcends
the boundaries set up by the utterance and is transformed into a discourse of depression. Carver’s dis-
course can be read as a language of alienation, likening it to what Julia Kristeva calls “dead language”:
The spectacular collapse of meaning with depressive persons — and, at the limit, the me-
aning of life — allows us to assume that they experience difficulty integrating the universal
signifying sequence, that is, language…. In contrast, speech to them is like alien skin; me-
lancholy persons are foreigners in their maternal tongue.… The dead language they speak,
which foreshadows their suicide, conceals a thing buried alive. (53)

The inability for one simply to express one’s reactions or emotions in a given circumstance is in pro-
portion to one’s state of depression. As one psychologist puts it, “people’s realities can sometimes be
so disparate that meaningful communication breaks down altogether” (Karp 40). Such lack of dialogue
or expression in Carver is replaced with a discourse of depression that includes signs, gestures, and
silence.
The nature and function of discourse in Carver’s short fiction should come as no surprise to the re-
ader. But what is not so evident is how the discourse presented is a symptom of a greater “dis-ease”
than the traditional conflicts — relationships, politics, religion — we often encounter in literary texts.
Carver’s works are interlaced with a depression discourse, a network of verbal and nonverbal transmis-
sions — glances, gestures, gesticulations — that reflect the biopsychosocial nature of his characters.
Discourse is not produced in a hermetically sealed environment. Discourse in Carver is informed by
the degenerative social, psychological, and physiological states of complex human beings who lack the
ability to transmit complex ideas and feelings in a simple way. There exists rather, as Virginia Woolf
notes, “poverty of language”:
English, which can express the thoughts of Hamlet and the tragedy of Lear, has no words
for the shiver and the headache. It has all grown one way. The merest schoolgirl, when
she falls in love, has Shakespeare or Keats to speak her mind for her; but let a sufferer try
to describe a pain in his head to a doctor and language at once runs dry” (194-195).

Works Cited
Carver, Raymond. Carver Country: The World of Raymond Carver. New York: Arcade, 1990.
—. Where I’m Calling From. Selected Stories. New York: Atlantic Monthly Press, 1988.
— and William L. Stull. Matters of Life & Death: An Interview with Raymond Carver. The Bloomsbury Review 8 (1988):
14-17.
Champion, Laurie. “‘What’s to Say’: Silence in Raymond Carver’s ‘Feathers.’” Studies in Short Fiction 34 (1997): 93.
Dentith, Simon. Bakhtinian Thought. An Introductory Reader. London: Routledge, 1994.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 369


Facknitz, Mark A.R. “‘The Calm,’ ‘A Small Good Thing,’ and ‘Cathedral’: Raymond Carver and the Rediscovery of Human
Worth.” Studies in Short Fiction 23 (1986): 287-96.
Gearhart, Michael W. “Breaking the Ties That Bind: Inarticulation in the Fiction of Raymond Carver.” Studies in Short
Fiction 26.4 (1989): 439-446.
Gentry, Marshall Bruce, and William L. Stull, eds. Conversations with Raymond Carver. Jackson, MS: UP Mississippi,
1990.
Howe, Irving. Stories of Our Loneliness, The New York Times Book Review 11 Sept. 1983: 423.
Karp, David A. Speaking of Sadness: Depression, Disconnection, and the Meanings of Illness. New York: Oxford UP,
1996.
Kristeva, Julia. Black Sun: Depression and Melancholia. New York: Columbia UP, 1989.
Marshall, Cynthia. “Psychoanalyzing the Prepsychoanalytic Subject.” PMLA 117 (2002): 1207-1216.
May, Charles E. “‘Do You See What I’m Saying?’: The Inadequacy of Explanation and the Uses of Story in the Short
Fiction of Raymond Carver.” Yearbook of English Studies Annual (2001): 39.
Morris, Pam, ed. The Bakhtin Reader. Selected Writings of Bakhtin, Medvedev, Voloshinov. London: Edward Arnold,
1994.
Myers, David Gershom. “Between Stories.” Philosophy and Literature 22.2 (1986): 457-467.
Nessett, Kirk. The Stories of Raymond Carver: A Critical Study. Athens, Ohio: Ohio UP, 1995.
Powell, John. “The stories of Raymond Carver: The Menace of Perpetual Uncertainty.” Studies in Short Fiction 31
(1994): 647-657.
Seibert, Hillary. “Social Critique and Story Technique in the Fiction of Raymond Carver.” The Tales We Tell: Perspec-
tives on the Short Story. Contributions to the Study of World Literature, Number 88. Westport: Greenwood Press,
1998. 21-28.
Woolf, Virginia. Collected Essays. Volume 4. New York: Harcourt, Brace & World.v

Proceedings XI International Bakhtin Conference 370


Jogo dialógico e carnavalização nas crônicas de Moacyr Scliar

Lealis Conceição GUIMARÃES

PG – UNESP-Assis/SP; UNOPAR, Londrina/PR

Rua Espírito Santo, 1097, Centro, 86020-420, Londrina, Paraná, Brasil

lealisg@yahoo.com.br

Resumo I
Este trabalho apresenta um estudo das crônicas do escritor contemporâneo Moacyr Scliar, publicadas
no jornal Folha de São Paulo. Tais crônicas remetem, de maneira explícita, a notícias veiculadas anterior-
mente pelo mesmo jornal. A reportagem jornalística interessa apenas como objeto para uma apreciação
ficcional dos acontecimentos. Com a mordacidade crítica de Scliar, a crônica reforça caracteres insólitos
da notícia, carnavalizando-os, por meio da recriação paródica. Para demonstrarmos esse jogo dialógico,
escolhemos a crônica A pausa que refresca, publicada em 4 de abril de 1996, que alude à reportagem
jornalística Coca-Cola kosher chega ao Brasil, escrita por Suzana Barelli, em 1 de abril de 1996, na página
8 do caderno “Negócios”, da Folha de São Paulo.
Resumo II
This paper is based on chronicles published in the daily Folha de São Paulo in Brazil by Moacyr Scliar,
a contemporary Brazilian writer. With a superb critical command of the situation, Scliar selects news
that had been previously provided by the mentioned newspaper an puts it into a literary form. In a
comparative study between the news and the chronicles, his unceasingly original ideas create satirical
effects producing the parody. Aiming to reveal the parody recreation by Scliar we selected the chronicle
A pausa que refresca, published on April 4, 1996, which is a reference to Coca-Cola kosher chega ao
Brasil,written by Suzana Barelli in the Folha de São Paulo.
Este trabalho visa a apresentar alguns aspectos fundamentais das crônicas do escritor contemporâneo
Moacyr Scliar, publicadas no jornal Folha de São Paulo, desde 1993. Tais crônicas constituem narrativas
comprometidas com a interpretação da realidade e voltadas para a reflexão do leitor. Sempre baseadas
numa notícia veiculada anteriormente pelo mesmo jornal, elas eram escritas, às quintas-feiras, na seção
denominada “Boletim de Ocorrência”, título bastante sugestivo, uma vez que, no processo da criação
literária, Scliar enfatiza o espetáculo agressivo das situações grotescas do cotidiano que envolvem o ser
humano na sociedade.
A partir de 4 de setembro de 1997, a seção teve o nome alterado para “Cotidiano Imaginário”, de-
signação que alia a origem do texto e seu caráter literário e, de 11 de novembro em diante, ela passou
a ser publicada às segundas-feiras, como se mantém até hoje. Em 15 de maio de 2000, a coluna jorna-
lística sofreu nova mudança no título, que passou a ser simplesmente “Moacyr Scliar”. Em 2002, Scliar
publicou, pela Global Editora, de São Paulo, uma coletânea de oitenta e cinco dessas crônicas em um
livro intitulado O imaginário cotidiano. No prefácio da obra, ele explica seu trabalho com as seguintes
palavras: atrás de muitas notícias esconde-se uma história pedindo para ser contada. Isso justifica sua
busca diária, no jornal Folha de São Paulo impresso ou na Folha on line, de algo inusitado, envolvendo
a condição humana em uma realidade que mais parece ficção.
No exame da relação entre a notícia e a crônica, há também a ressaltar a constituição visual do espaço
em que eram divulgadas essas crônicas até 28 de agosto de 1997: o título e um ou dois parágrafos da
notícia que dava origem à crônica apareciam num quadro inserido no meio ou à direita do texto, como
se intencionalmente deixasse aberta uma janela para que se pudesse desvendar a paisagem do mundo
real, criticado humoristicamente. Ou, talvez, para ratificar o absurdo da realidade transportada para a
ficção paródica pelo olhar do cronista, que espia o mundo e envolve o leitor numa visão perturbadora
do cotidiano, em que o real e o imaginário se fundem, evidenciando vínculos possíveis entre o estético
e o social. Depois, a notícia passou apenas a ser referendada, sem essa tão significativa exploração do
espaço.
O importante é que a criação artística de Scliar se processa como um jogo de espelhos, em que um
ou vários textos se projetam num outro, formando a crônica. No entanto, essa projeção adquire outra

Proceedings XI International Bakhtin Conference 371


imagem porque são descobertos novos significados, especialmente os que chegam ao limite da lógica
convencional, voltados para as necessidades cotidianas das pessoas. Passa-se ao mundo da imaginação
e esse transporte do real para o fictício realiza-se pela criação literária carnavalizada, uma inversão que
produz a crítica às ordens e aos valores predeterminados.
Em decorrência, encontramos aí uma visão de mundo específica, marcada pelo riso provocado pelo
caráter liberal e contestador da subversão de valores sociais preestabelecidos. Essa cosmovisão carna-
valesca cria uma linguagem simbólica susceptível de transposição para a linguagem da literatura. Tal
processo de transposição é denominado, na teoria bakhtiniana, de “carnavalização da literatura” (1981,
p. 105), cuja essência está no seu caráter ambivalente, em razão da plurissignificação da linguagem
empregada para focalizar as imagens que traduzem a vida deslocada do seu curso habitual. Com isso,
a linguagem literária enfatiza a ambigüidade, ou seja, as palavras adquirem múltiplos significados, que
possibilitam a renovação de sentidos.
Ao analisar as particularidades características do cômico-sério, Bakhtin destaca que o problema da
carnavalização da literatura é uma das mais importantes questões da poética dos gêneros, visto que
existe uma influência determinante do carnaval na literatura. Assim, a paródia sobressai-se como ele-
mento indispensável a todos os gêneros carnavalizados, tendo em vista que ela se constitui no modo
privilegiado de se fazer carnavalização artística.
Percebemos que a intertextualidade, ou seja, a relação entre textos que remetem uns aos outros, é
uma característica inerente à paródia. Entretanto, sendo paródica, a intertextualidade estabelece-se não
só na semelhança com o texto primitivo como na diferença crítica manifestada na mudança de linguagem
ou de foco analítico, com deliberada intenção de produzir humor.
Assim, a paródia, sendo concomitantemente especular e crítica, supõe a retomada de uma escrita por
outra e seu referente é bem marcado, na medida em que ela se define ao se propor refletir outro texto.
O texto paródico, embora exija certa distância crítica, identifica-se na comparação com o outro texto,
movimentando-se num vaivém intertextual em que o leitor detecta a diferença irônica nele contida.
Dentre as crônicas publicadas na Folha de São Paulo, selecionamos uma das sete que compuseram
o corpus de nossa dissertação de mestrado, cujo título é Do fato ao texto literário: as saborosas
crônicas de Moacyr Scliar, defendida em 1999, na Universidade Estadual Paulista – UNESP, em Assis,
estado de São Paulo. A crônica intitula-se A pausa que refresca, publicada em 4 de abril de 1996. Ela
alude à reportagem jornalística “Coca-Cola kosher chega ao Brasil”, escrita por Suzana Barelli, em 1 de
abril de 1996, na página 8 do caderno “Negócios”, da Folha de São Paulo.
A notícia, ilustrada por uma foto do rabino que participou das negociações para que o Brasil impor-
tasse a Coca-Cola kosher, anuncia a chegada ao mercado brasileiro do citado refrigerante, proveniente
dos Estados Unidos da América, a pedido dos membros da comunidade judaica paulistana. A Coca-Cola
kosher é fabricada de acordo com os preceitos judaicos, já que, durante os oito dias da Páscoa, os judeus
são proibidos de ingerir alimentos feitos com grãos de trigo, centeio, cevada e aveia ou outros elementos
que fermentam em contato com a água.
A relação intertextual da ficção com a reportagem jornalística faz com que páginas de inspiração divina,
de um livro sagrado como a Bíblia, sejam amalgamadas à crônica. Tal relação se corporifica numa nova
composição, paródica, com humor que assume a marca indelével do cronista Moacyr Scliar. Em virtude
disso, o texto da ficção provoca um clima lúdico que desafia o leitor a se movimentar de um texto para
o outro, para acompanhar os diálogos superpostos entre notícia, crônica e Bíblia.
Assim, ao fazer a recriação literária, Scliar apropria-se de pontos fundamentais da reportagem jorna-
lística, como a importação da Coca-Cola kosher, a propagação do produto, a fórmula secreta utilizada no
processo de fabricação do refrigerante e o fato de os judeus sempre perguntarem pela Coca-Cola para
acompanhar o matzá, pão especial que deve ser consumido por eles, na época da Páscoa.
Além disso, o título da crônica A pausa que refresca, remete-nos imediatamente ao slogan norte-
americano, veiculado em 1929 (The pause that refreshes), da propaganda do conhecido refrigerante
Coca-Cola, muito apreciado ainda atualmente por grande parte de consumidores.
A pausa pode ser entendida, no contexto desta narrativa em que elementos da cultura judaica são
evocados, como uma parada para refletir e tentar solucionar o problema gerado pelo fenômeno da “di-
áspora”, ou seja, a dispersão do povo judeu pelo mundo, no decorrer dos séculos, desde os remotos
tempos bíblicos. Também nos permite considerar a pausa empreendida pelo leitor do jornal com a leitura
que refresca, já que a crônica, por ser uma narrativa ficcional, dispensa o compromisso factual.
Notamos, ainda, que o substantivo pausa é retomado pelo pronome relativo que, com o objetivo de
enfatizar a sua função de sujeito da ação refresca, isto é, “a pausa refresca”. Em vista disso, manifesta-se
a ambigüidade de um processo irônico, em que o verbo refresca tanto pode significar “matar a sede” dos
peregrinos judeus no deserto e “restabelecer as forças” deles para prosseguir viagem, como “tranqüilizá-
los” (no sentido mais popular de “refrescar a cabeça”) para enfrentar os problemas do exílio.
Na crônica analisada, a intertextualidade paródica se realiza na conjunção de semelhanças e dife-
renças, em que a recriação da notícia satiriza os recursos da propaganda para explorar o consumismo
da sociedade. As semelhanças constituem os indícios da reportagem jornalística e dos textos bíblicos do
Êxodo, no Antigo Testamento, reconhecidos na crônica, e as diferenças manifestam-se pelo teor crítico
dessas semelhanças.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 372


É interessante destacarmos que a narrativa da crônica é escrita em itálico, fechada por aspas, suge-
rindo, ironicamente, ser uma citação literal da Bíblia. Na realidade, Scliar está fazendo outra paródia,
sobreposta à da notícia. Semelhante a toda narrativa bíblica, também na crônica, a fala do Senhor está
na segunda pessoa do plural:
“E disse o Senhor a Moisés no Egito: ‘Durante sete dias comereis pães sem fermento. Já no
primeiro dia fareis desaparecer o fermento de vossas casas. Podereis preparar-vos somente
a comida que cada um comerá’.”

O excerto acima retoma a seguinte passagem bíblica do Êxodo, capítulo 12, versículos 19 e 20, que
explica a origem do pão ázimo, o matzá, para os judeus:
Durante sete dias, não haverá fermento nas vossas casas, pois quem comer pão fermenta-
do será excluído da assembléia de Israel, seja adventício ou seja nativo. Não comereis pão
fermentado; nas vossas casas, comereis pão sem fermento. (Bíblia Sagrada, 1974, p.75)

Segundo a tradição judaica, fundamentada no Antigo Testamento, durante a comemoração da Pás-


coa, os israelitas foram proibidos, por Deus, de comer qualquer alimento fermentado sob pena de serem
expulsos de Israel. Essa tradição é mantida até hoje, principalmente pelos judeus ortodoxos.
A partir do segmento seguinte, a crônica muda o foco narrativo para a terceira pessoa e marca a pre-
sença do narrador-observador, que se mantém mero espectador dos fatos, sem interferir na narrativa,
como podemos comprovar:
E os israelitas saíram, levando a massa do pão ázimo e as fôrmas. E começaram a sua
marcha pelo deserto. Caminharam três dias sem achar água. Por fim encontraram um lugar
onde havia água, mas esta era amarga, por isso lhe deram o nome de Mara.
E o povo murmurava contra Moisés, dizendo: ‘O que vamos beber?’ Moisés clamou ao Senhor,
e este Ihe indicou certa planta que, jogada na água, tornou-a boa para beber.

Percebemos que a ficção dialoga, ainda, com outra passagem bíblica do Êxodo, os versículos 22 a
25 do capítulo 15, que conta esse mesmo fato. Assim, o narrador conta a história da fuga dos judeus,
do Egito, quando foram liderados por Moisés que, seguindo o conselho divino, conduziu-os numa longa
e penosa trajetória pelo deserto. Na crônica, tal como nas narrativas bíblicas, a pergunta ‘O que vamos
beber?’ e outras falas estão sempre entre aspas simples, o que dá especial destaque aos diálogos.
As duas partes introdutórias da crônica preparam o desencadear do texto, em que o riso ambivalente
inverte o sentido do núcleo temático da notícia e se instala na ficção cronística scliariana, mesclada com
fatos bíblicos.
A seguir, os prazeres da vida, representados pelo refrigerante Coca-Cola, são ironicamente superva-
lorizados, em detrimento da água boa para beber, isto é, potável, que simboliza a regeneração e o re-
nascimento do homem pela sua confiança em Deus, quando em situações críticas, como verificamos:
Todos ficaram contentes, menos um. E este um dizia: ‘Que graça tem em tomar água? Ainda
mais com pão ázimo? Porventura haverá saco, mesmo preto, que agüente? Assim não dá,
gente, assim não dá’.
E Moisés foi ter com o descontente e perguntou-lhe: ‘O que tens contra a água?’
E o descontente respondeu-lhe: ‘Nada tenho contra a água, mas existe coisa melhor’.
E Moisés perguntou: ‘Como sabes que existe coisa melhor?’
E o homem respondeu: ‘Porque tive uma visão do futuro. Eu olhava uma caixa mágica, cha-
mada televisão, e nela eu via recomendarem uma bebida chamada Coca-Cola. Coca-Cola é
a pausa que refresca. Nenhuma sede resiste a Coca-Cola, nem mesmo a sede do deserto’.
E Moisés, desconfiado, perguntou: ‘Mas essa tal de Coca-Cola é kasher? É permitida pela
lei?’
E o homem respondeu: ‘Se não é kasher, a gente mexe na fórmula’.

O emprego de sucessivos “e”, que, no trecho em destaque, aparece nada menos que nove vezes,
estabelece um encadeamento de maior dinamismo, refletindo a vivacidade da narrativa oral, aqui trans-
crita. Do mesmo modo, isso se manifesta na seqüência de perguntas e respostas. Outra observação
interessante é quanto à fala de Moisés, que procura manter a distância respeitosa, como líder, usando
a segunda pessoa do singular.
Notamos, também, na contestação da personagem descontente, uma linguagem que marca a primeira
perturbação no discurso até então desenvolvido na narrativa. Assim, a expressão da gíria popular Por-
ventura haverá saco, mesmo preto que agüente é complementada por Assim não dá, gente, assim não
dá, que também faz parte da linguagem popular e tem na repetição o reforço à não aceitação de uma
ordem. Intensifica-se, então, o humor através de uma estrutura dialógica mais aberta, que aproxima
tudo e todos num mesmo plano, embora a forma da pergunta de Moisés conote esforço em manter uma
certa superioridade.
A visão que o peregrino descontente tem, como um sonho, é aqui introduzida como uma possibilidade

Proceedings XI International Bakhtin Conference 373


de outra vida, totalmente diferente daquela da vida comum. Essa outra vida se propõe com as imagens
extraordinárias que se inserem no texto, a partir das expressões visão de futuro e caixa mágica.
Daí em diante, o diálogo intertextual liga o misticismo do tempo bíblico aos avanços dos tempos
atuais, em que a propaganda tem forte apelo visual para chamar a atenção do povo e incentivá-lo ao
consumo. É o discurso bíblico dialogando com o discurso da propaganda, em que o riso desconstrói a
narrativa bíblica, dessacralizando-a.
A crônica retoma o discurso persuasivo do slogan da Coca-Cola - Coca-Cola é a pausa que refresca
- para convencer Moisés das vantagens do refrigerante, que pode ser transformado em bebida kasher.
O emprego do termo kasher caracteriza a força coercitiva da lei, à qual se sentem obrigados a seguir
por convicção religiosa.
A propósito, a palavra kosher (assim escrita na notícia) ou kasher (na crônica), ou ainda câsher (no
livro Tradição e Costumes Judaicos: uma viagem em torno do ano hebreu, de Erna Schlesinger),
delimita os produtos que devem ser consumidos pelos judeus, especialmente os ortodoxos, de acordo
com os preceitos tradicionais que orientam a sua composição. A significação dessa palavra “é apropriado
para comer, limpo”, como explica a citada escritora judia (1951, p.257).
Quando o peregrino disse a Moisés que poderia mexer na fórmula, propondo a adaptação da Coca-Cola
às exigências da lei, que deveria ser seguida por eles, configura-se uma crítica mordaz do cronista à
falsificação de fórmulas químicas, tão comum hoje em dia, e também ao conhecido “jeitinho brasileiro”,
que burla as leis para solucionar mais facilmente seus problemas.
Após a concordância de Moisés, todos os peregrinos passaram a beber só refrigerante Coca-Cola que,
além de satisfazer as exigências religiosas, oferece vantagens para a saúde, sendo também diet, com
baixas calorias.
A seqüência narrativa da crônica sofre uma ruptura que praticamente modifica a posição das perso-
nagens Moisés e o peregrino descontente, a partir da frase E Moisés não podia dizer nada, indicando que
Moisés foi obrigado a aceitar a situação criada pelo peregrino. A força da palavra do peregrino neutraliza
a palavra do líder, que se torna, agora, impotente diante dos fatos. Isso porque, como já foi salientado, a
Coca-Cola, sendo kasher, está dentro dos preceitos exigidos pela tradicional lei judaica e, sendo dietética,
obedece a requisitos tidos como necessários para uma vida saudável, no mundo moderno. O emprego
dos qualificativos kasher e diet é importante para estabelecer essa ligação entre o tempo histórico bíblico
e os tempos modernos, respectivamente.
Importa ressaltar, ainda, que, ao serem destruídas as barreiras da autoridade dominante, Moisés e o
peregrino são colocados no mesmo patamar. Diante disso, instala-se, na narrativa, a perplexidade gera-
da pela liberdade cômica da situação às avessas, que mistura o misticismo religioso com o consumismo
capitalista norte-americano, assim representados: a passagem bíblica e o apelo comercial.
A crônica provoca uma desestabilização temporal, ao inserir uma técnica moderna de propaganda
no tempo antes de Cristo. Um produto norte-americano moderno, a Coca-Cola, é divulgado através de
outdoors e incita o leitor a visualizar os tais painéis publicitários espalhados pela travessia do deserto,
clamando a todos para amenizarem a sua sede com o refrigerante indicado. O emprego do vocábulo
inglês outdoors, relacionado à Coca-Cola, produto representativo dos Estados Unidos da América, sugere
uma crítica ao domínio norte-americano no contexto mundial.
Assim, chegamos ao clímax da narrativa, com as imagens evocadas pelo narrador, as quais mostram
a carnavalização do texto bíblico que registra a passagem dos judeus pelo deserto em direção à “Terra
Prometida”, ou seja, Canaã, onde encontrariam a paz tão almejada.
Quase no final da crônica, há uma conotação irônica na referência à fidelidade de Aarão a Moisés,
fiel companheiro, que observa os acontecimentos mas, após o desabafo de seu amigo (‘Só falta agora
alguém ter uma visão de um produto similar e pedir para que seja incluído na bagagem dos peregrinos’),
também se deixa envolver pelo espírito comercial do peregrino descontente.
No entanto, ele não desafia abertamente o seu líder, como se pode conferir na última parte da crôni-
ca: Aarão não disse nada. Mas pensou que ‘Pepsi-Cola’ seria um bom nome. A ser lançado no momento
oportuno, claro”. Evidenciamos, aqui, a disputa comercial que Aarão pretende encetar. Daí o silêncio,
como estratégia de negócio, até chegar o momento oportuno para colocar o seu produto no mercado,
com o objetivo de competir com o outro.
O enfoque narrativo sai do exterior social para o íntimo de uma personagem e o narrador mostra os
pensamentos de Aarão, que incorpora o discurso do peregrino e planeja, sem dizer nada, fazer o mesmo
em outra oportunidade. É o sonho da personagem, que pode se transformar em realidade, no momento
certo.
As palavras finais da crônica, Pepsi-Cola seria um bom nome. A ser lançado no momento oportuno,
claro, não encerram o assunto, mas deixam abertura para um recomeço e reforçam a noção de circula-
ridade da narrativa, cuja palavra-chave é “kasher”.
Podemos afirmar, ainda, que, na crônica, insinua-se uma rivalidade entre duas figuras autênticas e
exponenciais dos primórdios do povo judeu (Moisés e Aarão) e dois produtos industriais modernos (Coca-
Cola e Pepsi-Cola), considerados extraordinários para matar a sede e que concorrem entre si no mundo
todo. Seja como for, o texto bíblico, misturado ao da propaganda, corta o discurso da crônica em todas
a direções e as personagens vivem situações inusitadas, em que Scliar privilegia o imaginário fantástico

Proceedings XI International Bakhtin Conference 374


e apresenta um mundo às avessas, carnavalizado. Com isso, o cronista parodia fatos bíblicos já cristali-
zados na memória coletiva e cria uma espécie de caricatura verbal, que reforça a dinâmica do texto.
Com efeito, nas crônicas, Scliar consegue que um assunto muito sério converta-se em exercício es-
tético do riso crítico, em que a sutileza da ironia é resultado do jogo dialógico entre a narrativa, em tom
“irônico-paródico-ambivalente”, e a realidade noticiada. Diante disso, podemos não só ver e analisar o
mundo por um foco inusitado, como também transportarmo-nos, por algum tempo, para um universo
de fantasia.
O cronista penetra profundamente nos acontecimentos e expõe aspectos relevantes destes que, às
vezes, parecem irreais e, através do labor literário, mostra-os ao mundo, uma vez que seu intuito é
estimular as pessoas a enxergarem melhor o que está acontecendo à sua volta e a reagirem consciente-
mente. Além disso, Moacyr Scliar, cronista, ao escrever a paródia, faz com que se reconsiderem certos
pressupostos literários como a originalidade artística e sua relação de proximidade ou não com o real.
Trata-se, assim, de um estudo que tem como objetivo desvelar o processo de recriação paródica nas
crônicas de Moacyr Scliar, para expor a forma como o autor trabalha literariamente os fatos veiculados por
notícias jornalísticas. Transformadas em crônicas, elas adquirem novas significações e direcionamentos
no âmbito da invenção ficcional, provocando efeitos tragicômicos que levam o leitor ao riso reduzido.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
São Paulo, Brasília: Hucitec, 1993.
_______. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
BARELLI, Suzana. Coca-Cola kosher chega ao Brasil. Folha de São Paulo, 1 abr.1996, c.2, p.8.
BÍBLIA SAGRADA: edição da palavra viva. Trad. Missionários Capuchinhos. Lisboa: C.D. Stampley Ent., 1974.
GUIMARÃES, Lealis Conceição. Do fato ao texto literário: as saborosas crônicas de Moacyr Scliar. Dissertação
(Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 1999.
SCHLESINGER, Erna C. Tradição e Costumes Judaicos: uma viagem em torno do ano hebreu. Trad. José Schor.
Rio de Janeiro: Sigal, 1951.
SCLIAR, Moacyr. A pausa que refresca. Folha de São Paulo, 4 abr.1996. c.3, p.2.
_______. O Imaginário Cotidiano. São Paulo: Global, 2002.

Texto-chave: BOLETIM DE OCORRÊNCIA


A pausa que refresca
MOACYR SCLIAR
“E disse o Senhor a Moisés no Egito: ‘Durante sete dias comereis pães sem fer-
mento. Já no primeiro dia fareis desaparecer o fermento de vossas casas. Podereis
preparar-vos somente a comida que cada um comerá’.
E os israelitas saíram, levando a massa do pão ázimo e as fôrmas. E começa-
ram a sua marcha pelo deserto. Caminharam três dias sem achar água. Por fim
encontraram um lugar onde havia água, mas essa era amarga, por isso lhe deram
o nome de Mara.
E o povo murmurava contra Moisés, dizendo: ‘O que vamos beber? ‘Moisés
clamou ao Senhor, e este lhe indicou certa planta que, jogada na água, tornou-a
boa para beber.
Todos ficaram contentes, menos um. E este dizia: ‘Que graça tem em tomar
água? Ainda mais com pão ázimo? Porventura haverá saco, mesmo preto, que
agüente? Assim não dá, gente, assim não dá.’
E Moisés foi ter com o descontente e perguntou-lhe: ‘O que tens contra a
água?’
E o descontente respondeu-lhe: ‘Nada tenho contra a água, mas existe coisa
melhor.’
E Moisés perguntou: ‘Como sabes que existe coisa melhor?’
E o homem respondeu: ‘Porque tive uma visão do futuro. Eu olhava uma caixa
mágica, chamada televisão, e nela eu via recomendarem uma bebida chamada
Coca-Cola. Coca-Cola é a pausa que refresca. Nenhuma sede resiste a Coca-Cola,
nem mesmo a sede do deserto.’
E Moisés, desconfiado, perguntou: ‘Mas essa tal de Coca-Cola é kasher? É
permitida pela lei?’
E o homem respondeu: ‘Se não é kasher, a gente mexe na fórmula’.
E Moisés concordou, e no dia seguinte o homem apareceu com um grande car-
regamento de Coca-Cola, e todos deixaram de tomar água e foram direto para o
novo refrigerante. E Moisés não podia dizer nada, porque a Coca-Cola era kasher,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 375


e, além disso, tinha uma versão diet, com baixas calorias. O produto era abundan-
temente apregoado em vários outdoors que imediatamente surgiram no deserto,
balizando o caminho para a Terra Prometida.
Quando viu aquilo, Moisés comentou com Aarão, seu fiel companheiro: ‘Só falta
agora alguém ter uma visão de um produto similar e pedir que seja incluído na
bagagem dos peregrinos’.
Aarão não disse nada. Mas pensou que ‘Pepsi-Cola’ seria um bom nome. A ser
lançado no momento oportuno, claro.”
Palavras-chave: notícias; crônicas; Moacyr Scliar; jogo dialógico; carnavali-
zação.
Biografia resumida: LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES: sou graduada em
Letras pela UFPR – Universidade Federal do Paraná; mestre em Letras (Teoria
Literária e Literatura Comparada) pela UNESP – Universidade Estadual Paulista,
de Assis, São Paulo, tendo escrito a dissertação Do fato ao texto literário: as
saborosas crônicas de Moacyr Scliar; doutoranda na mesma universidade e
estou escrevendo a tese sobre a melancolia, a ironia e o insólito na obra de Moacyr
Scliar. Além disso, atualmente coordeno o Curso de Letras e sou docente de Teoria
Literária e Literaturas Portuguesa e Brasileira, na UNOPAR – Universidade Norte
do Paraná, em Londrina, Paraná, cidade onde resido.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 376


“Twenty Years of Bakhtin’s International Conferences.
Gender and Feminist Discourse”

Maroussia Hajdukowski-Ahmed

Dept. of French, McMaster University

Hamilton, ON, Canada L8S 4M2

ahmedm@mcmaster.ca

905 525 9140 x23758

Fax: 905-529 7095

“Hell is an absolute lack of being heard”.


M. Bakhtin.
“Vouloir entendre l’autre, signifie en quelque sorte
écouter ce que l’on n’entend pas:”tu es”. Pierrette
Malcuzynski

In 1975 when, after being inspired by my reading of Bakhtin’s book on Rabelais, I decided to leave
my first doctoral thesis and started another one on the carnivalesque in the contemporary Quebec novel.
I subsequently joined the Bakhtinian family (before it became an enterprise and now an industry) at
the Toronto conference in 1982, encouraged by Andre Belleau, my first mentor, who sadly, left us all too
early. A new mother, I delivered my paper to an unknown crowd, under the benevolent eye of Michael
Holquist. Motherhood without maternity leave was then an isolating factor that hampered my desire to
connect, to interact, and to be informed. I quickly learned that the personal, the socio-ideological context,
and the conditions of production are indeed interconnected and gendered. I then met Clive Thomson
who has been a very generous and effective mentor to me and to many others1. Mentorship then could
only be male, by virtue of number and seniority. Clive spoke with enthusiasm of his encounter with Iris
Zavalla and Myriam Diaz-Diocaretz at the Dubrovnik conference, as he felt they were opening up the new
and promising domain of feminism in Bakhtinian studies to which he himself would bring a significant
contribution. Both Myriam and Iris deserve a special tribute as pioneers in feminist Bakhtinian studies
and for Myriam, as the editor of Critical Studies which published several volumes of Bakhtinian papers
that emanated from Bakhtin’s conferences. It is difficult to assess the importance and effect of contacts
and mentorship on the participation at conferences and on Bakhtinian productivity, but I strongly believe
that those unquantifiable factors play a part, which deserves closer attention, particularly with young or
isolated scholars. The next twenty years saw the expansion of feminist studies in North America and to a
lesser extent in Europe (the vast majority of presenters came from those two continents). This feminist
expansion was only modestly reflected at the Bakhtin Conferences, which are marked by the scarcity
and marginality of feminist or gender-focussed papers. There will be a few exceptions, which we shall
examine later.
Let me take you for a still to be perfected guided tour through those twenty years.
When I examined documents such as calls for papers, abstracts, photographs, programmes, pro-
ceedings, my own notes, Clive Thomson’s research papers and mine, as well as invited comments on
their experience from several Bakhtinian feminist speakers, several questions came to my mind. What
has prevented women from participating in the Bakhtinian conferences, which have largely been male-
centered? Also and paradoxically, while the number of women speakers has increased over the years,
why has feminist input lost its visibility to reach a point of near absence? Conversely, why would feminist
critics be interested in a thinker who has been noticeably silent on gender, which is a known blind spot
in his texts? For Robert Stam, Bakhtin simply did not privilege men over women, as he had a more
1- Clive Thomson had a profound impact on Bakhtin’s conferences as an outstanding organizer, a connector, an insightful and skilful synthesizer, an intel-
lectual catalyst, and now ..a reliable memory. Then, mentorship was predominantly male by virtue of number and seniority.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 377


androgynous approach (in Pearce, 57). “What does Bakhtin have to do with feminism?” wondered some
participants at the Manchester and at the Calgary conference. A lot we shall see, as we engage in a
debate on a subject we believe Bakhtin himself would have endorsed today.
Why is Bakhtin relevant to feminist studies?
As Michael Gardiner or Clive Thomson already remarked, engaging with Bakhtin’s ideas has indeed
proven to be very productive in feminist criticism (in Zylko, 110, 2001; Thomson, 1990,XIX). Bakhtin’s
theories have been instrumental in deconstructing patriarchal hegemonic discourses, in uncovering
women’s resisting discourses, and even in questioning the monological eurocentric feminism of the 70’s
itself. They also became effective in building feminist transdisciplinary, transtheoretical, transcultural,
and transnational bridges. To borrow his own maternal metaphor, while not explicitly gendered, Bakhtin’s
texts are pregnant with gender and feminist potentialities, and we the critics are acting as midwives
in great time to this Gargantuan intellectual ...Mother.
We shall assess the place of gender in the papers, as well as their reception at the dozen or so
Bakhtinian conferences, which have taken place every second year and grew several offshoots (i.e.: con-
ferences of Toronto, Dubrovnik, Cerisy-la-Salle). Who were the significant feminist contributors at those
conferences? What were the main feminist topics and how did they evolve? What alliances did feminist
contributors partake in? How do we explain the fluctuations that gender-based and feminist papers (they
coincide in 95% of the cases) have experienced at the conferences? How do we explain their present
apparent eclipse? I would now like to share the collected data and reflect on them. There will be gaps
(not all data were available), silences, misreadings (gender-neutral abstracts could conceal gender-ba-
sed papers) and predictably, . ...no last word. One should also caution the reader that abstracts, which
provided the most important source of information, do not necessarily reflect the content of the final
paper. However, enough papers were subsequently published that will give credence to our assertions.

THE CONFERENCES

Table 1. Presenters and Chairs by Gender


Year Location Presenters Chairs
Female Male Total Female Male Total
1983 Kingston 22 36 58 7 12 19
1985 Cagliari 18
1986 Jerusalem 7 29 36
1989 Urbino 17 32 49
1991 Manchester 30 50 80 9 16 25
1993 Cocoyoc 65 64 129 15 18 33
1995 Moscow 129
1997 Calgary 54 62 116
1999 Berlin 27 49 76
2001 Gdansk 49
2003 Curitiba 122 81 203

Table 2. Percentage of Gender Related Papers


Conference Year Location Gender No. of papers %
(as keyword in the title)
I 1983 Kingston 2 58 3.4
II 1985 Cagliari 0 18 0.0
III 1986 Jerusalem 0 36 0.0
IV 1989 Urbino 6 49 12.2
V 1991 Manchester 8 80 10.0
VI 1993 Cocoyoc 8 129 6.2
VII 1995 Moscow 6 131 4.6
VIII 1997 Calgary 4 116 3.4
IX 1999 Berlin 1 76 1.3
X 2001 Gdansk 1 49 2.0
XI 2003 Curitiba 5 194 2.6

Proceedings XI International Bakhtin Conference 378


At first glance, one notices that between 1983 and 1986, gender/feminism bears no significance. In
1989 (Urbino) and 1991 (Manchester) the percentage of gender-related papers reaches a -modest- peak.
In 1993, gender-based papers start their descent.
Who organized? Who participated?
Women’s participation is not to be correlated with feminist input at the Bakhtin’s conferences.
Absent at the first Toronto conference (1982), feminist papers appeared timidly in Kingston (1983)
with a presentation on Carnival in feminist literature (Voldeng, 1983). Between 1983 and 2003, of 936
papers read, 4 were gender- focussed (mostly feminist), 6 were related to Gay or Queer Studies. While
the Bakhtin conferences have not been notably welcoming to feminist speakers, they have often provided
a first forum for Bakhtinian feminists who expanded their papers into more substantial works (D.Bauer,
P.Yaeger, I.Zavalla, M.Diaz-Diocaretz, M.Russo).
In 20 years, no woman has been the main organizer of the conferences (however, helpers were pre-
dominantly women); there has never been a plenary session or roundtable on feminism per say; only a
few session chairs were women, and the highest percentage of feminist papers reached a modest 10%
(Manchester). One could wonder why such modest participation in spite of the obvious kinship that exists
between feminist and Bakhtinian theories, in spite of a rich feminist productivity in North America and
to a lesser extent in Europe during those years, and in spite of the increase in the number of Women’s
Studies departments and programs between 1980 and 19952.
Here are some possible explanations. There is an exclusionary discourse embedded in the choice of
title, theme, format, location, mode of communication, organizer, time of the year, requirements (i.e.:
conference fees) It has a filtering effect and constitutes at once an invitation and an exclusion. Often
interrelated factors such as gender, class, nationality, race, country of origin, academic status, financial
status, access to information, create their own exclusionary practices. The fact that conferences take place
only in an academic setting where men faculty and graduates still outnumber women, partly explains
the gendered power differential, and recent progress has just begun to translate into numbers, but not
yet into power. In most institutions, part-time or sessional faculty which comprise mostly women are
not eligible to receive travel grants.
When twice it was women who proposed to organise the next conference (in Spain and in Argentina)
they were outvoted by participants who selected Berlin and Moscow (which coincidentally also featured
few feminist papers: 1,3% and 4,6% ). Would a conference organized by women have attracted more
women and more gender- based or feminist papers? Probably not as Cocoyoc and Curitiba will confirm.
However, it might have invited more gender- inclusive papers, as was the case of the offshoot conferen-
ce of Dubrovnik (1987) organized by Myriam Diaz-Diocaretz, Iris Zavala, Nada Popovic, and Svetlana
Slapsak. This was the only time a conference was organized by women. It has attracted a substantial
number of feminist papers later published in Critical Studies (1989). Let us remember though that the
purpose of the Bakhtin conferences is more general: it is essentially to unfold the research map of the
past two years, particularly in new fields.
A chronological journey, key feminist themes and gender-focussed input.
In the conference data Clive Thomson made available to me, gender/feminism as theme appears
under the headings “Mixed bag” or “Minority topic”, leaving no doubt as to its place. At best, it was called
an “important minor topic” (Manchester), or a “topic of some importance”(Urbino).
First absent, feminist/gender based papers have been most prominent in Urbino and Manchester,
and gradually faded away thereafter. Feminist papers were more frequently tied with Carnival, counter-
discourse, counter-culture, Self/Other relation, ethics, and language. We shall discuss feminist papers in
the conferences’ chronological order, but also regroup several conferences under the same theme when
necessary, as to avoid the “shopping list effect”, and to highlight major feminist questions that were
addressed. The authors of feminist papers were predominantly women, with two notable exceptions:
Clive Thomson and Peter Hitchcock.
Toronto:1982 (offshoot)
Eleven papers were read, with no gender-based presentation. During those pioneer years of Bakhti-
nian studies, basic concepts were debated such as Carnival, polyphony, counter-discourse, genres, and
dialogism.
Kingston:1983
Clive Thomson was the organizer. Fifty-eight papers were read. Evelyn Voldeng presented a paper
on feminist writers and Carnival. Patricia Yaeger spoke on the counter discourse of the “bilingual” heroi-
ne. Subsequently, she published a book of essays from a Bakhtinian perspective, Honey Mad Women,
in which she argued that women fictional characters, far from being victims, have invented multiple
emancipatory strategies against dominant masculinist discourses. Myriam Diaz-Diocaretz took a similar
perspective, albeit in the field of language, when she wrote that a word is a space of struggle from which

2-I found on the Internet that in the early 1990’s, feminist critics had started compiling anthologies, readers, historical overviews. This type of productivity
indicates that a critical mass of feminist knowledge had been accumulated in North America around that date, that warrants this type of publication; 1975,
the date of the foundation of the feminist journal Signs could be considered as the beginning of this compilation.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 379


dominant discourse can be contested in a dialogic perspective (Critical Studies, 1989, 121-139). Dale
Bauer, another speaker, also edited a book on Feminist Dialogics: a Theory of Failed Community (1989)
and later, Feminism, Bakhtin and the Dialogic (1991). For her, a feminist dialogics works “ at the point
of contradiction between patriarchy and the female alienated voice” (1991, 16). In her view, the blind
spot of Bakhtin’s texts is the struggle; Bakhtin does not take enough into account the effect of power
differentials. Dale Bauer uses Bakhtin to defend an ethical stand, which in her words signifies: “Coming
to know the other” (Bauer,10). Ethical concerns pervade all feminist papers.
Cagliari, 1985
Eighteen papers were read and there was no gender-based paper. Unfortunately, the documentation
obtained is scant.
Jerusalem:1986.
The conference was organized by a Slavist, Dimitri Segal. Thirty-six papers were read
There was no gender-based title. However, this is a case when one should use caution in making
definitive statements, when only titles and no abstracts are available. A gender-neutral title such as
“M.Bakhtin’s Conception of Carnival Culture as Counter-Culture” by Renate Lachman could have conce-
aled a gender-focussed analysis.
Dubrovnik 1987 (an offshoot).
The conference was organized by Myriam Diaz-Diocaretz, Iris Zavala, Nada Popovic, Svetlana Slapsak.
Unlike men-organized conferences, this conference stresses the collaborative effort.
It was an important conference for Bakhtinian feminists, followed by the publication of selected papers
in Critical Studies ( The Bakhtin Circle Today ; ed: M.Diaz Diocaretz, 1989). Language as a relational
process and as social discourse is one of the main themes for Bakhtinian feminists. Myriam Diaz-Dioca-
retz, in ”Bakhtin, Discourse and Feminist Theories” contends that “An interactive critical perspective in
feminist linguistic and literary theory that would allow language its social dynamics can overlap in fruitful
ways”. In an anti-saussurian move (127), she perceives words as empty signs, which take up meaning
only contextually, and are given a tone and valuation. The word is an utterance, both private (when it
receives a personal reinflection) and public (as it belongs to others), at the border “between oneself and
the other”(133). Diaz-Diocaretz shifts from the dichotomizing concept of “woman as the other” to the
relational concept of “woman and the other”(136). Bakhtin understood all too well that the relationship
between saying and silence was not one of simple opposition, and that utterances were not confined to
words only. Voice and body language that is non-verbal forms of communication are rich in their capa-
city to address others, to communicate meaning. In his paper “ Bakhtin and the Body “(Critical Studies,
1989). Bakhtinian translinguistics proved to be very rich in my own analysis of the non-verbal forms of
communication of refugees and their hybridity (Berlin and Gdansk conferences)3.
In Bakhtin and contemporary Anglo-American Feminist Theory (Critical Studies, 1989) Clive Thomson
once again wrote a compelling piece on the state of knowledge in Bakhtinian feminism and its recurrent
themes, such as counter-discourse, subjectivity and subjecthood, feminist dialogics, feminist critical
reading.
Urbino, 1989:
The conference was organized by Professor Pino Paioni. Feminist papers figured prominently, as six
out of forty nine dealt with a feminist approach to Bakhtin; three of them were subsequently published
in Critical Studies by Clive Thomson as editor, under the title, Bakhtin and the Epistemology of Dis-
course. The papers by Mary O’Connor’: “Chronotopes for Women Under Capital: an Investigation into
the Relation of Women to Objects”, by Maroussia Hajdukowski-Ahmed: “Bakhtin and Feminism: Two
Solitudes?”, and by Amy Shuman: “Appropriated Personal Experiences : the Case of Abortion Junk Mail”,
continue the already well engaged dialogic encounter between Bakhtin and feminist criticism. Papers
with a feminist content were read by Barbara Godard : “Bakhtin’s Dialogics and a Theory of Counter
Discourse”, Susan Petrilli :
“M. Bachtin and Victoria Welby. Ipotesi di un dialogo”, and Regine Robin: ”Bakhtin and Post-Moder-
nism: Language, Esthetics, Feminism and Ethnic Writing”.
Manchester: (1991)
The principal organizer of the conference was David Shepherd, assisted by Craig Brandist. Three entire
sessions were devoted to feminism, eight feminist papers out of eighty papers were read (10%), including
one by Peter Hitchcock on exotopy. Themes that were featured include “Dialogism and a Theory of Gen-
der” (Malini Schueller), “From Symptom to Ideologem to Metaphor: Discourses on Hysteria” (Maroussia
Hajdukowski-Ahmed), (“The Pregnant Text. Bakhtin’s Ur-Chronotope: the Womb” (Ruth Ginsburg), “ Of
Carnival and Carnivalesque: Towards a Feminist Poetics in Theatre”(Taisha Abraham), on “Bakhtinian Dia-
logism and Documentaries: a Feminist Perspective”(Janice Welsch), “Exotopy and feminist Critique” (Peter
3-In my early essay on “Le denonce/enonce de la langue au feminin ou le rapport de la femme au langage” (in Feministe, subversion, ecriture, S. Lamy
and I. Pages (eds),Montreal: Remue-Menage, 1980), I discuss the Bakhtinian approach to women and language of Marina Yaguello, the French linguist who
also translated Bakhtin’s Philosophy of Language in French. Lately, I found a Bakhtinian approach to be very productive in my analysis of the non-verbal
forms of communication of refugee women (2002)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 380


Hitchcock), on “What is left out: Bakhtin, Feminism, and the Culture of Boundaries”(Mary Pollock). In the
latter, Mary Pollock criticizes Bakhtin’s works for being “marred by omissions on gender”, and in which
the concept of Carnival was flawed (abstracts, 97), but she sees a possible usefulness of his concepts in
the study of women’s culture and spirituality. This relative prominence given to feminist papers at the
Manchester conference is probably due to the conjunction of a historical factor and a personal one:
feminist theories are reaching a peak popularity around 1990; it was also known that David Shepherd
had a welcoming attitude towards feminism, perceived as a theoretical and ideological ally among other
marginalized left- leaning discourses (post-colonial, gay and lesbian, applied Bakhtin). A carry- over
effect of the interest generated in Urbino two years earlier may also have been a contributing factor.
The Manchester conference is important as it highlights a feminist critique which has reached a certain
maturity and sophistication, but also raised some fears among the predominantly Russian guardians of
Bakhtinian orthodoxy. Under the editorship of David Shepperd, Critical Studies published many of the
Manchester papers in a volume titled Bakhtin, Carnaval and other subjects, including feminist papers.
In his Introduction, David Shepherd states that “ the theoret(ism) which probably provokes the greatest
incomprehension and hostility among Russian Bakhtinians is feminism” (XVIII).. Panels on feminism at
Manchester “was a source of bemusement and amusement to Russian participants”(XVIII). There were
reports of “Hords of feminist participants”4. The “Correspondence between two worlds” between Vitali
Makhlin and Gary Morson articulates those fears with a disturbing animosity and regards the leftist
alliance almost as a “communist conspiracy”. One could retrospectively understand this animosity in the
context of the recent collapse of the USSR. David Shepherd’s quotes from the correspondence as well
as his own remarks in the introduction to his edited volume convey this near-paranoia: “It was as if two
conferences were happening at the same time” remarked Shepherd. The Morson-Makhlin correspon-
dence recreates a cold- war dichotomy, in which the US academia is perceived as a breeding-ground
for political radicalism (XVIII). For Morson, “ the world is divided into two opposing camps. In one live
the good people: women, homosexuals, and of course, the non-Western world-non-whites [sic] and all
those who speak out against the West in general and against the United states in particular. The West,
men, whites and heterosexuals-these are now the true source of evil in the world. Therefore, the worst
thing in the world is , of course, a sexual normal (sic) white American male who believes in bourgeois
democracy”...In this country..the worst and least convenient thing is to be an anti-marxist. Bear this in
mind in case you meet Americans who call Bakhtin a feminist or a Marxist”(XVIII)5.
Some key feminist topics:
Let us interrupt our chronological journey at the most prolific time for Bakhtinian feminists, to intro-
duce several key topics that were discussed at the Manchester and subsequent conferences
Carnival and counter-discourse
Carnival is probably the first important (and possibly the most) discussed Bakhtinian topic, which is of
particular interest to feminists. The Carnivalesque has been identified as an effective counter-discourse
to (patriarchal) norms. Subsequently, the concept of Carnival was questioned, enriched and refined,
especially after the publication by Peter Stallybrass and Allon White of their seminal work The Poetics
and Politics of Transgression (1986). Ruth Ginsburg (Manchester) enriched the feminist interpretation
of Carnival beyond womb envy; she wondered why Bakhtin perceived the grotesque as the decaying
female body of an old hag. For her, Carnival is a male body that has appropriated female characteristics
while excluding women: “What is originally female is de-femalized” in the process of being elevated in
the central site of Carnival”, wrote Ginsburg (Critical Studies, 1993, 168). The feminine becomes the
container of concepts (169). Bakhtin and Freud use the body of the mother for the purpose of building
their own theory (Ginsburg, 173). Like Gargamelle who gives birth to Gargantua, the mother dies so that
men can live. Woman gives birth as a mother but is never born herself as a woman. It is the mother
who is Bakhtin’s central metaphor, or rather her womb as Ur chronotope.
Mary Russo made a significant contribution to the feminist study of Carnival in her interpretation
of the female grotesque. For her, the “female grotesque” is less of a category than it is an operation
through which genders and identities are both constituted and de-constituted, or excluded. “Drawing
upon Bahktin and Kristeva, Freud, and Zizek, Russo traces the salient connections between abjection,
the uncanny and the grotesque” (book cover).
I discussed hysteria (Manchester) as a patriarchal construct and the body of hysterics “treated” by
Charcot at the hospital of La Salpetriere as a figure of dark Carnival. The hysteric woman exaggerates
the postures of the hysteric and this excess of mimesis functions as a resisting discourse to Charcot’s
oppressive patriarchal medical discourse.
In Cocoyoc, Catherine McGann spoke on “Juggling with Gender, Juggling for Love: Subversive Car-

4-Such rhetorical inflation is characteristic of fear-mongering hegemonic powers when they try to cling to their power or justify their oppressive measures.
I recall the pronouncement of a male Chair of my departments who, when he asked what percentage of faculty women our French department counted, was
told there were 30%, to what he retorqued:”But this is more than half!”. The same applies to inflationary public discourses on the “hords” of immigrants,
of gays and lesbians, that have “ invaded” our cities.
5-One cannot fail but note the irony of this very monological, monopolistic un-Bakhtinian standpoint, on which is grafted today with an added irony the
much troubling repressive monological neo-McCarthyism of the present Bush regime. Canadian universities have been hosts to a number of intellectual
“Bushdodgers” who have crossed the Canadian borders to breathe the fresh air of free speech. The same animosity will be directed at all progressive
Bakhtinian studies over the years, as it reappeared later in Calgary around a talk given on the Mexican Chiapas by Jose Alejos Garcia. Bakhtin was not to
be used to understand our world, let alone transform it.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 381


nivalesque Performance in Rachilde’s La Jongleuse”, and demonstrated how Carnival as a performance
can throw into question gender relationship. Pam Morris, (Cocoyoc) read “Carnavalizing the Gargantuan
Mother”, in which she warned us against a “crisis in feminist poetics and politics”(abstract).While Bakhtin’s
dialogic concept of language stands as a generative process against totalizing structures of the symbo-
lic, his carnivalesque image of the Gargantuan mother brings us back to the mother as a “ready social
identity”, even a myth. To borrow Angela Carter’s words, “It puts women “into exile from the historic
world”(abstract). One should note that
G.Ch. Spivak’s strategy of permanent deconstruction with a purpose, which she developed with her
Subaltern Study Group, appeals to many feminist Bakhtinians.
In “Dialogic History: The Brownings’ Spanish Poems” (Cocoyoc), Mary Pollock considered historical
truth to be very tenuous if one does not include personal narratives of women, such as Teresa’s narrative
in the poem “Riogo’s Widow” by Elisabeth Browning.
Identity
Clive Thomson used Bakhtin to discuss the construction of sexual identity and heterosexuality. (Man-
chester). Thomson sees compatibility between Judith Butler’s theory of identity discussed in Gender
Trouble and that of Bakhtin’s, as both Butler and Bakhtin perceive identity as historical, relational and
continuous; the self is in a perpetual state of becoming (Critical Studies, 1993, 213), a “yet to be”
according to Bakhtin. Paradoxically and like other marginalized groups (such as Blacks or Gays) whose
identity was damaged or obliterated, women have to both depend on categories of identity and also
reject them to prevent identity from becoming petrified and essentialized. Identities, including lesbian
identities, have to be established only to be displaced and deconstructed.
In “Autobiographies et temoignage: dialogue entre moi et l’autre”(Calgary), Claudine Potvin discussed
dialogism in autobiographical work by R. Manchu and I. Allende.
Kathryn White (Cocoyoc), in “Mikhail Bakhtin’s Ethics of Subjectivity”, uses the Bakhtinian ethical
concept of personal accountability to resolve the feminist stand- off between subjectivity and objectivi-
ty, agency and structure, between poststructuralism and humanism. Ethical concerns suffuse feminist
Bakhtinian studies . Pierrette Malcuzynski discusses the ethics of polyphony and C|laudine Potvin sees
the ethical potential of polyvocality (Cocoyoc) .
Debasing the Subject-Object relationship; reclaiming subjectivity and subjecthood.

The validation of everyday life as a site of struggle.


This discussion took place against the backdrop of the concept of prosaics which C. Emerson and G.S.
Morson’s developed in Creation of a Prosaics. Prosaics fetishizes the concrete, but “ ignores the extensive
colonization of the everyday by dominant discourses and technologies of power” and “the transformative
or utopian possibilities that remain embedded stubbornly (“pregnant with potential”) even in the most
mundane and routinized activities of daily life” (G.C. Spivak quoted by M.Gardiner in Zylko,110; 111).
Our everyday life is a praxis with an utopian horizon and an emancipatory direction, as Michael Gardiner
convincingly argued in Gdansk, linking feminism with Bakhtin and with other progressive world views
(110). Prosaics conveniently maintains an ideological status quo. Not unlike the Bakhtinian Carnival,
feminism has defamiliarized our perception of every day life, problematized it, disrupted it, looked at the
ossified practices with a critical eye.
Mary O’Connor has also explored the concept of everyday life from a feminist perspective in her Bakhti-
nian approach to object- relation theory (Manchester): “Gendered Subjects and objects in Bakhtin and
Kristeva”. As M. O’Connor remarks, in Author and Hero, Bakhtin validates the Subject/Subject relationship
but does not gender his subjects. Kristeva has shown how the female body has been constructed as
abject object, and generated disgust for the female body and a fear of materiality. Only intersubjectivity
and dialogue “with mutual risk to change” can abolish the Subject/Object- abject dichotomy. Then, in
“Chronotopes for Women under Capital:An Investigation of the Relation of Women to Objects” (Critical
Studies, Bakhtin and the Epistemology of Discourse, 1990), M.O’Connor brings her Bakhtinian approach
to object relation theory closer to marxism. Bakhtin wanted to destroy false hierarchies between objects
and ideas in favour of a “free organic union” (Discourse in the Novel, 169). However, if women control
objects in the domestic sphere, they are “ultimately controlled and constituted by the patriarchal and
capitalist system s that pretended to stay outdoors”(Critical Studies, 1990, 140)
Exotopy:
Peter Hitchcock uses the concept of exotopy (identification with the “other” followed by withdrawal
into one’s position; neither fusion nor objectification) as a concept that deconstructs the Subject-Object
relationship between critic and the object of her criticism. It is compatible with feminist criticism, feminist
ethics and research.
The anti-objectification alliance between feminism and post-colonialism:
In ”The Cannibalistic Discourse of Monologism”(Manchester, and Critical Studies, 1993), Iris Zavala

6-I don’t consider the notion of process without a direction or horizon to be Bakhtinian; it is more akin to a post-modern world-view of disconnected hete-
rogeneity. Dialogism and a processual dialectics are not incompatible.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 382


denounces the eurocentrism and ethnocentrism of the Spanish colonisation from a gendered perspective.
In the end, it is the constantly rearticulated, unfinished intersubjective relational process that constitutes
a meaningful paradigm, not who is at either end6. In “Ten Years of Manushi, Voices of Women in India:
Conversion or Conversation” (Cocoyoc), I have demonstrated that during the first years of its existence,
Manushi was a feminist journal which followed a marxist teleology; Madhu Kishwar, its editor, subse-
quently, rejected marxism as a neo-colonial ideology imported from the West and imposed on Indian
women. Consequently, Manushi experienced a shift in its ideology; it rejected marxism in favour of a
cultural approach to feminism, but in so doing, it privileged the Hindu cultural traditions at the expense
of the many other indigenous cultures. What really happened was that the monological marxist Manushi
replaced Western hegemonic discourse with a monological religious/cultural Hindu/Hindi discourse. The
poly-ethnic, poly-lingual and poly-cultural India became lost in the process. A cultural hegemonic dis-
course that ignored diversity replaced the ideological one, failing Bakhtinian dialogism.
Lakshmi Bandlamudi (Cocoyoc) wove ties between feminism and post-colonialism and between the
traditional past and the modern present in her paper “Weaving chronotopes of “ancient past” and “rela-
tive present”. It is a gender-related paper on the hermeneutics of the Indian epic The Mahabharath, in
which the present serves to question the past, and Indianness questions Americanness and vice-versa
in a dialogic encounter.
Cocoyoc (1993).
Ramon Alvarado and Lauro Zavala were the organizers. Cocoyoc had 8 titles on feminism out of 129
papers. There was an equal number of men and women presenters. The conference included only one
feminist session (papers were discussed before). The abstracts clearly reveal that a gender-neutral title
can conceal a gender-based paper (i.e.: Mary O’Connor on “Concepts of Everyday Life in Bakhtin and de
Certeau”, myself on Manushi). Papers were later published by Ramon Alvarado under the title Voices en
el umbral/voices at the threshold: M. Bajtin y el dialogo a traves de las culturas. M. Bakhtin and dialogue
across cultures.
Moscow (1995)
Vitaly Makhlin was the main organizer of the conference which featured 131 papers, but only one
session on feminism, 6 feminist papers in total, to which one could add a few papers with possible femi-
nist/gender content (i.e.: Kathryn White’s “Mikhail Bakhtin’s Ethics of Subjectivity”). There is probably
some mention of feminism in Barbara Godard’s “Bakhtin and the cultural turn in translation”. No abs-
tracts are available.
Cerisy (1995, offshoot)
The conference was organized by Clive Thomson. Twenty-one papers were read.
In Cerisy, there were only plenary sessions and round tables, and two papers had a distinct feminist
content: Pierrette Malcuzynski’s on “Dialogism, sociocriticism, feminism”, and mine on “ Bakhtine et les
Sciences Sociales: théorie pratique ou pratique théorique?” One could not stress enough the remarkable
contribution of Pierrette Malcuzynski to Bakhtinian feminist criticism. Her brilliant mind and impressive
knowledge of languages and cultures, her intellectual sophistication and razor sharp comments place
her among the few most influential Bakhtinians of the past two decades. Prior to Cerisy, in Crossing
Boundaries,(Critical Studies,1991) Pierrette Malcuzynski had reviewed books on sociocriticism, lamenting
the fact that they either ignored Bakhtin or ignored feminism (229, note 12). She gave credit to Myriam
Diaz-Diocaretz for her contribution to feminist cultural theory(230), exemplifying that cross-referentiality
and intertextuality effectively legitimates someone else’s discourse.
“Je n’est pas un autre“ was the title of her Cerisy paper written in French. According to Pierrette
Malcuzynski, to understand women’s texts and women’s cultural production requires new strategies,
as new questions arise. Such strategies would permit to listen to silences and decode the unsaid. The
reifying paradigm of “Woman as other” ought to be replaced with the relational paradigm of “Woman
and the other”. Critics should study the circulation of discourses, but also the context and the process
of their production . The concept of threshold requires particular consideration, as it is a space where
“I” meets the other, where two subjects, two consciousness and their discourses converge, interact, and
unfold the interdiscursive map that is the text, where an ethics of responsibility makes us look at the
text as event. Pierrette Malcuzynski opposes post-modernism and it’s a-historical fragmentation, as well
as the confusion it creates between information and communication. For her, the contact is of greater
interest than the fragment. She resolves the paradox of the feminist quest for identity while rejecting
the notion of fixed identity by stating that : “If “I” is not myself, it does not mean that myself is not “I”.
P. Malcuscynski denounces the “othering” of women and points to a difference between “to interpret “
which isolates socio-cultural objects in their otherness, and “to understand”, which means to understand
the world from the diversity viewpoint. She follows Bakhtin’s ethics of recognition, and his ethical stand
that calls for art and life to meet in the unity of one’s responsibility.
At the same conference, in my paper “Bakhtin and the Social Sciences” I sought to bridge the gap
between two domains artificially separated by academia, the Humanities and the Social Sciences, and
to demonstrate the relevance of Bakhtin in interdisciplinary studies. It was later published in a special
issue of The South Atlantic Review Bakhtin/”Bakhtin”, edited by Peter Hitchcock.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 383


Calgary(1997)
Anthony Wall was the main organizer of the conference, which was one of the most prolific, diverse
and generous Bakhtin conferences. More than twenty countries were represented , 116 papers which
covered a vast range of interests were read. A participant from a strong Latin American contingent, Jose
Alejo Garcia, examined the Chiapas’ uprising in the light of Bakhtin’s concepts, reviving the same polemic
against the use of Bakhtin to understand a concrete political issue as in Manchester six years earlier,
when the same Bakhtinian guardians of orthodoxy attacked the use of Bakhtin in feminist criticism.
They declared that Bakhtinian studies were” in a state of crisis” and urged Bakhtinians to stop applying
Bakhtin to concrete world issues in order to refocus their attention on exegesis. They feared that a new
North -South political Bakhtinian axis would create a threat to the more “legitimate” and more orthodox
East West axis, as a participant recalled. Very diverse gender-based papers were dispersed through
the sessions, since there was no special session on gender or feminism. Stacy Burton read “Renego-
ciating experience in Bakhtin and Feminist Theory”. Paul Tyrer talked about “Parody and homophobic
fundamentalism”. In her paper, “Dialogical transvestites and monological gender politics in two plays by
Piron”, Sharon Nell discussed the relationship between gender and class, and viewed the transvestite as
a character that disrupts the monological discourse of the bourgeois feminine. Lorelee Kippen examined
“Bakhtin and the novelisation of AIDS discourse”, while Marcela Saldivia Berglund shared her findings
on “Afro-Carribbean women’s voices in Mexico”. Most noteworthy is the fact that in Calgary, gender did
not coincide with feminism anymore, but included a range of discourses on sexuality. Following the Cal-
gary conference, a number of papers were published in Bakhtin et l’avenir des signes/and the Future
of Signs (1998). Anthony Wall acknowledges the absence of feminism in his edited volume (1998, XI).
However, feminism was diffuse and could often be read as a palimpsest, as in Pierrette Malcuzynski’s
brilliant paper on ”Quelques reflexions sur le discours musical chez Bakhtine”, which could apply to all
silenced voices. Her paper read like a musical score to which our translation cannot do justice. Let us
listen to her very Bakhtinian voice: “Giving meaning to musicality” (“Donner un sens au musical”; in
Wall, 1998, 61), “connecting the esthetic with the ethical” (“lier l’esthetique à l’éthique aussi”; “to listen
is to partake in an ethics of responsibility” (L’écoute participe de la responsabilité”); “The pause is an
ethical act, it give space to the other” (“La pause est un acte éthique qui donne sa place à l’autre; 72).
“Wanting to listen to the other means in some ways listening to what we don’t hear: “you are”” (Vouloir
entendre l’autre, signifie en quelque sorte écouter ce que l’on n’entend pas:”tu es”“); “The act of un-
derstanding is already pregnant with the other, is already dialogical. De facto, the “you” unsilences my
listening and ethically legitimises my voice; I then can answer the other “I too am ” with a responsible
understanding . Ethical act” (“La compréhension est déjà pregnante de l’autre, est déjà dialogique. De
facto, “tu” démutise mon écoute et légitimise ethiquement ma voix; je peux alors répondre à l’autre en
toute compréhension responsable, “je suis aussi”. Acte éthique).
Berlin:1999.
Brian Poole was the main organizer of the conference. Seventy six papers were read, one paper had a
feminist content which was not perceptible in the title “Voices of Silence, Silenced Voices. Bakhtin, Cultural
Anthropology and Health”(mine); I discussed how refugee women used crafts to weave their predicament
as a counter-discourse to a silencing oppression. Lakshmi Bandlamudi pursued her interesting exploration
of the carnivalesque in Indian epics in her talk on “Bawdy voices in Indian epics”.
Gdansk: 2001
Boguslav Zylko organized this conference, where forty-nine papers were read, and twenty-two were
subsequently published in Bakhtin and his Cultural Ambiance (B.Zylko, ed., 2002).
There were no feminist session or paper per say, but feminist criticism was acknowledged in presen-
tations such as Michael Gardiner’s “Bakhtin and Prosaics: A Critical Interrogation”, in which he adopted
a feminist-friendly position against the concept of prosaics as seen earlier. I made a presentation on
“Bakhtin and Cultural Crossings”, in which I looked at the gendered itinerary of the “arpillera” from
Chile to Canada, and examined forms of hybridity and cultural “metissage”.
Curitiba:2003
Carlos Alberto Faraco was the principal organizer of the conference where 194 papers were read,
with no feminist session, but where for the first time in the history of the Bakhtinian conferences, wo-
men presenters (122) outnumbered men presenters (81). Let us remember that gender equity among
speakers was also visible in Cayococ (64/65) and to some extent in Calgary (54/62)7. Women authors
were discussed but not necessarily from a feminist perspective, such as in Roselene de Fatima Coito’s
paper on Clarice Lispector. Round tables were organized around a variety of themes such as the historic
novel, translation, mental health issues, intersubjectivity, AIDS. The following titles indicate that gender
boundaries have become fluid, and that the gender paradigm does not overlap with the feminist paradigm
any more. Kay Halasek spoke on “Carnival consciousness and the restaging of historical methodology
in rhetoric and composition”; Anatoly Kuznetsov discussed “Bakhtin and Maria Judina”; Marta Elena

7-It would be interesting to examine if there is a correlation between gender equity and forms of democratisation of the conference (conference fees; choice
of space; topics discussed). I would submit the hypothesis that such correlation exists and that topics discussed by women presenters at both conferences
expressed more “concrete” and localized preoccupations such as in education, health, or communication.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 384


Munguia Zatarain looked at “Brothel in Latin American Literature”; Monica Eboli de Nigris examined the
“Carnavalesque Principle in Carlotta Joaqquina: Princess of Brazil”; Paulo Venturelli spoke on “Literature
and homoeroticism. A productive dialogue- O caso Bom-Crioulo”. It appears that the increase in interest
for Bakhtin that was expressed in Brazil reflected a change in the political climate which expanded the
dialogical forum in the public sphere (talks on Paolo Freire at the conference; political speeches and
protests in the public square by the hotel).
Conclusion:

The contributions of Bakhtinian feminism.

Progress…
Even though the feminist/gender-based participation has been marginal and marginalized with two
notable exceptions, the Bakhtin conferences have been a stepping stone for many scholars, who shared
their findings, created alliances or partook in them, tested their theories, and often expanded on them
in their later works. Feminist and gender-based approaches enjoyed a relative visibility in Urbino and
Manchester, created an awareness of its significance, and triggered some curiosity. Later at the confe-
rences, feminist and gender considerations suffused papers on history, education, linguistics, literature,
often in a non-explicit way. This may have signaled the transformation of Bakhtinian feminism into an
internally persuasive discourse. While intertextuality, cross-referentiality and bibliographical references
still gave more space to well- established male authors and critics like Foucault, Habermas, Jameson,
Derrida, Bourdieu, or Levinas, famed feminist authors and critics were more frequently acknowledged,
such as Teresa de Laureitis, Judith Butler, Dale Bauer, Julia Kristeva, or Pierrette Malcuzynski. Feminism
was instrumental in sharpening our reflexion on Carnival and its limitations, on language, on dialogism,
on object relations, on ethics, and on the interdisciplinary application of Bakhtin’s concepts. It helped
sharpen our concepts and critical tools as well, like to question the notions of information and theory with
their inherent tendency to reify, in favour of the more dynamic notions of strategy and communication.
But...

Was feminism or gender sometimes masked?


When one writes a paper, one cannot underestimate the presence of the addressee, and this could
explain a possible masking of gendered identity as a form of self-censorship on the part of the author
who may fear losing audience if she/he embraces a feminist standpoint. Such masking could be read as
an internalisation of a normative academic or social discourse. For example, in Cocoyoc, Nancy Glazener
looked at institutions that mediate dissemination of knowledge, “Planned obsolescence : the Institutions
of Reception that Produced Novelisation in the United States”. N. Glazener mentioned the romance as
“a residual category” without gendering it in her abstract, when one knows that the notion of genre was
gendered. Similarly, again in Cocoyoc, Myrto Konstantarakos wrote an abstract on Pasolini’s otherness,
but alluded only to his being a poor social outcast, not to his sexual identity. A comparison between
abstracts
Is feminism a North American phenomenon and a passing trend? Has it lost its relevance?
Feminist and gender-based papers appear to have reached their nadir. New fields of research have
recently emerged such as communication technologies, cultural studies, peace and conflict studies,
which invite gender analysis but don’t necessarily focus on it. The Bakhtin conferences have become
increasingly diversified in their scope and participation. The collapse of the Soviet Union has opened
boundaries and archives, which stimulated a renewed interest in Bakhtinian exegesis and translation
among researchers in the West. One can also conjecture that there are more pressing concrete issues to
resolve for feminists of un(der)represented locations than to reflect on Bakhtin. Conversely, the guardians
of Bakhtinian orthodoxy strongly resisted scholarship based on the application of Bakhtin’s concepts in
other domains (called “appropriation” by Caryl Emerson; in Clive Thomson, Critical Studies, 1989,146),
and may have discouraged certain individuals from joining Bakhtinian feminist practitioners. Academia
also dichotomizes and disconnects what is organically joined, and fears and discourages the organic
intellectual and her/his praxis. Bakhtin would have approved the merging of theory and praxis, he who
did not separate body from mind, utterance from voice, subject from object. All his writings point to
the necessary connection between theory and practice, as his concept of being as event and his ethics
of answerability indicates. Finally, the process of continuous dialogisation of identity as a construct has
led to “gender trouble”, that is to the dissolution of the notion of both sexual identity itself and gender.
Should we relegate feminism back to the margins of discourse, because it has either become entrenched
in Western academia as a fossilized academic subject (in Women’s Studies Programmes) which has lost
its link with its transformative function, or because it is in a process of being dispersed or dissolved? I
find marginality to be a dangerous location, as it relegates feminism and similarly progressive theories
to the perpetual purgatory of limbo, and freezes praxis.
In the end, it is still the written word that is the last word. Now that all conference information and
calls for papers are available on the Internet only, does the use of the Internet widen the gap between
Bakhtinians, adding the information/communication disparity to the economic disparity, at the expense of
women and of Bakhtinians (or potential Bakhtinians) from the South or the East? Bakhtin’s conferences

Proceedings XI International Bakhtin Conference 385


need to be rejuvenated, the public square widened, accessible to women and men from more countries
and spheres, who would all have access to grants and to the Internet.
Over those twenty years I have grown and greyed with my fellow Bakhtinians in what has become for
me a spirited and stimulating intellectual family of both sisters..and brothers. May that family continue
growing, prospering, disrupting, challenging, transforming, and celebrating.
Bibliography
Alvarado Ramon Voices en el umbral/voices at the threshold: M. Bajtin y el dialogo a traves de las culturas. M.
Bakhtin and dialogue across cultures, R. Alvarado, ed., Mexico: Libros de Version, 461-481, 1997
Bakhtin, Mikhail, “Discourse in the Novel”, The Dialogic Imagination. Michael Holquist (Ed.). Austin: University of
Texas Press.
Bauer Dale, Feminist Dialogics: a Theory of Failed Community. Albany: State University of New-York Press, 1988.
Butler Judith , Gender Trouble, New-York: Routledge, 1989.
Farmer Frank, Saying and Silence, Logan: Utah State UP, 2001
Gardiner Michael, “Bakhtin and Prosaics: A Critical Interrogation”,in Zylko, Boguslav, Bakhtin and his Cultural Ambiance,
University of Gdansk Press, 2001, 109-120.
Hajdukowski-Ahmed,Maroussia, “ Life at the Borders: Bakhtin and Cultural Crossings”, in Bakhtin and his Cultural
Ambience, B. Zylko (Ed), University of Gdansk Press, 2002, 120-136
Hajdukowski-Ahmed Maroussia, “The Non-Verbal Forms of Communication of Refugee Women Survivors of Torture”
, in Exile, Magda Stroinska and Vicki Cecchetto,(eds), Geneva: P. Lang, 2002, 23-34.
Hitchcock Peter (ed.)“Bakhtin Without Borders: Dialogism in the Social Sciences”, South Atlantic Review, special issue
on Bakhtin/”Bakhtin”, Duke University Press, 1998.
Lahteenmaki Mika and Hannele Dufva, Dialogues on Bakhtin.Interdisciplinary North Americary Readings, University
of Jyvaskyla, Centre for Applied Language Studies,1998.
Malcuzynski, Pierrette,“A critical View of Recent Propositions in Cultural Theory: A Review Essay”, Crossing Bounda-
ries, in Critical Studies, 1991, 221-231.
Pearce Lynne, Reading Dialogics,New-York: Routledge, 1994
Russo Mary, “Female Grotesques: Carnival and Theory”, in Feminist Studies/Critical Studies,
in de Laureitis Teresa(ed), Bloomington: Indiana University Press, 1987, 213-227
Russo, Mary, The Female Grotesque. New-York: Routledge, 1995
Shepherd David (ed). Critical Studies, special issue on Bakhtin, Carnival and Other Subjects, Amsterdam: Rodopi,
1993.
Stam Robert Subversive Pleasures:Bakhtin,Cultural Criticism and Film. Minneapolis: University of Minnesota Press,
1984.
Taylor Charles “The Dialogical Self”, in The Interpretive Turn: Philosophy, Science, Culture. Ed David Hiley, Ithaca:
Cornell UP, 1991
Thomson Clive,” Mikhail Bakhtin and Contemporary Anglo-American Feminist
Theories”, The Bakhtin Circle Today, Critical Studies, Myriam Diaz-Diocaretz (ed), Amsterdam: Rodopi, 1989,141-
161.
Thomson Clive (ed) , Critical Studies, on Bakhtin and the Epistemology of Discourse.
Amsterdam: Rodopi, 1991.
Wall Anthony (ed) Bakhtin et l’avenir des signes/and the Future of Signs,
RSSI/Recherches Semiotiques/Semiotic Inquiry, Montreal: V 28/1-2, 1998
Yaeger Patricia, Honey-Mad Women; Emancipatory Strategies in Women’s Writing, New-York: Columbia University
Press, 1988.
Zylko, Boguslav, Bakhtin and his Cultural Ambiance, University of Gdansk Press, 2001

Proceedings XI International Bakhtin Conference 386


Phenomenologies of Language in Bakhtin and Merleau-Ponty

Tim HERRICK

1. Introduction
This paper compares Bakhtin’s work with that of the French phenomenologist Maurice Merleau-Pon-
ty (1908-61), concentrating on their strikingly similar philosophies of language. Language represents
a synthesis of personal and impersonal existence which is the basis of (an ontological, ethical, social)
philosophy;1 it helps formulate the individual’s perception of the world; and it suggests general points
about other symbolic structures. This work is part of a larger project locating Bakhtin within mainstream
European philosophy, and so accounting for recognised affinities between Bakhtin and modern philoso-
phical movements such as post-structuralism, in particular the work of Jacques Derrida.2 This contex-
tualisation is important to sophisticate the understanding of Bakhtin, especially within literary theory, by
recovering the specific historical and intellectual grounding of his work and its development over time.3
Not until we recognise the traditions in which Bakhtin saw himself operating can we appreciate the full
ramifications of his thought.
Connections between Merleau-Ponty and Bakhtin are well-attested by critics, most notably Michael
Gardiner, who emphasises how both thinkers work towards an ethical philosophy based on social inte-
raction while resisting teleological determinism and abstract, “high-altitude” thinking.4 Bakhtin, through
his historical investigations of perceptions of self and other, provides a series of practical applications of
Merleau-Ponty’s theory.5 These insights can be extended by recognising Bakhtin and Merleau-Ponty’s
agreement on the incorporation, but not exhaustion, of human ideas within language,6 so in a sense im-
portant for phenomenology and for this paper, there is no immediately accessible space outside linguistic
understanding.
The essays I have chosen to concentrate on are Merleau-Ponty’s “Indirect Language and the Voices
of Silence” (“IL”), first published 1960, and Bakhtin’s “Author and Hero in Aesthetic Activity” (“A&H”),
written in the mid-to-late 1920s, and “The Problem of Speech Genres” (“SG”), composed 1952-3.7 As
the Merleau-Ponty is likely to be less familiar, permit me a brief summary. The essay begins with an
appreciation of Saussure’s contribution to our understanding of language, and elaborates some criticisms
of Saussure’s rather mechanistic concept of understanding. It then embarks on a long detour through the
theory of painting, during which it becomes evident that Merleau-Ponty’s arguments about perception,
expression, and an “historicity of life”, the living creation of tradition, equally apply to language. This is
clarified in the final section where the two strands are unified through Hegel, who for Merleau-Ponty well
describes the general movement of history, but entirely misses its personal, existential significance. As
in the case of Saussure, his preoccupation with what can be known through and about language elides
the more interesting problem of what cannot.
The Bakhtin texts will be more familiar so I will not trouble you with a summary, although I
would like to draw attention to some pertinent points of distinction. Nearly thirty years elapsed between
“Author and Hero” and “Speech Genres”, and Bakhtin’s ideas were modulated in several important ways.
Prompted by Voloshinov and Medvedev, he had become more interested in linguistics and Marxism than
ethics and neo-Kantian idealism, although vestiges of this idealism remained. His unit of analysis chan-
ges from an abstraction of the individual reinforced by literary examples, to the utterance, the medium
through which life enters language and language enters life.8 Bakhtin privileges in “Author and Hero”
a complete totalisation of the self from another’s perspective through action, and in “Speech Genres”
the self’s partial totalisation from both it’s own and another’s perspective through linguistic acts. Merle-
au-Ponty’s “Indirect Language” engages less with the problem of the unified self than with the unity of
language and the common human unity of perception, approaching a similar problem from a different

1 E.g. Bakhtin 1986, pp. 83-4.


2 E.g. Brandist 2000; Cunliffe 1997; Erdinast-Vulcan 1997.
3 Cf. Brandist 2002a; Tihanov 2000, 2001.
4 Gardiner 1998, pp. 142, 130.
5 Gardiner 1998, p. 139.
6 “IL”, pp. 41-4; “SG”, p. 92.
7 Merleau-Ponty 1964; Bakhtin 1990, 1986.
8 “SG”, p. 63.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 387


direction. This paper will explore further similarities between their work, focussing on concepts of the
body, literature, and social interaction, and then attempt to account for these similarities within the
general phenomenological movement. Both men diverge significantly from the late Husserlian vision of
phenomenology, although it is the burden of this paper to suggest the centrality of the broader movement
as a provocation and guide.
2. Comparison

2.1 Philosophies of language


But let us begin with both men’s philosophies of language. The common starting point is Saussure,9
and both have a range of criticisms of this overly-abstract model of language. For instance, Merleau-Ponty
notes how, on an experiential level, Saussure’s ideas are irrelevant because “before Saussure we did
not know anything about this [diacritical system of language], and […] we forget it again each time we
speak – to begin with when we speak of Saussure’s ideas” (Quotation 1).10 Language may well operate
on diacritical principles, but it is not exhausted by them. Similarly, Bakhtin argues that meaning cannot
be simply diacritical or unified (hence the emphasis on plurality and difference in “Author and Hero”),
and in his later works, that individual language cannot be a product of free will:
the single utterance, with all its individuality and creativity, can in no way be regarded as a
completely free combination of forms of language, as is supposed, for example, by Saussure
[…], who juxtaposed the utterance (la parole), as a purely individual act, to the system of
language as a phenomenon that is purely social and mandatory for the individuum. (2)11

Each author offers a vision of language incorporating the individual’s creativity with different levels of
the social determination of linguistic meaning, and so deploy Saussure’s work as a useful description of
the whole of language against which their (phenomenological) interest in the individual speaker can rub.
One element to this is the non-coincidence of linguistic meaning and speech, whether in Merleau-Ponty’s
formulation there is “a surplus of the signified over the signifying”,12 or in Bakhtin’s argument that there are
three possible aspects to the meaning of the word, neutral, unfamiliar, and personal.13 The construction
of this tripartite scheme suggests that while Merleau-Ponty readily testifies to the variety of meanings
and social influences in language,14 he does not study them as abstractly as Bakhtin. Merleau-Ponty’s
non-transcendental emphasis on experience, however, does not mean that he sacrifices the concept of
history, rather reclaims it as a succession of living, valid presents, suggesting “there is a fraternity of
painters in death only because they live the same problem”.15 Language similarly becomes a basic form
of social history and prediction, “pregnant with transformations which are to come,”16 a vision close to
Bakhtin’s integration of language and history from the word to the speech genre. In the essay of that
name he even reverses the expected order by suggesting that linguistic forms precede and promote social
change; “[D]uring the Renaissance familiar genres and styles […] play[ed] […] a large and positive role
in destroying the official medieval picture of the world”.17 Finally, language can be taken as a model for
other signifying structures, a move Bakhtin makes by troping social interaction as language in “Author
and Hero” and elsewhere, and Merleau-Ponty through his emphasis on the human body. Language is as
much a matter of the body as painting,18 and thus comparable with all human creative actions, arising
“from a single syntax,” and “both a beginning and a continuation” of other gestures (3).19
2.2 The body
As is well-recognised, Bakhtin’s concept of the body is problematic, partly because it changes during
his career, and partly because it represents a synthesis of several incompatible elements. The concept
changes from the private self-identical individual to one which privileges the abolition of privacy and the
development of a communal body; and the ingredients of the concept are a neo-Kantian distinction of given
and posited read into a phenomenological division of Leib and Körper, the body as experienced from within,
and as seen from without.20 In “Author and Hero”, we see the early neo-Kantian body, while in “Speech
Genres”, a naïve physical reductionism is unloaded onto the “behaviorist” school of linguistics, leaving
Bakhtin to deal with an individual shaped by society. In “Indirect Language”, Merleau-Ponty explores
how each individual’s physical capacities provide a basis for common experience, which is simultaneously
interior perception and exterior signification: “All perception, all action which presupposes it, and in short
every human use of the body is already primordial expression […] [T]he primary operation which first

9 E.g. “IL”, p. 39.


10 “IL”, p. 81.
11 “SG”, p. 81.
12 Merleau-Ponty 1962, p. 390.
13 “SG”, p. 88.
14 E.g. “IL”, p. 44.
15 “IL”, p. 62.
16 “IL”, p. 41.
17 “SG”, p. 97.
18 “IL”, p. 67.
19 “IL”, p. 68; cf. Merleau-Ponty 1988, pp. 55-6.
20 Tihanov 2001, pp. 111-13.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 388


constitutes signs as signs” (4). 21 The body, and the individual experience running through it, form the
basis of human expression and history, just as Bakhtin inverts the argument to suggest language and
history are the grounds for human experience. And in “Author and Hero”, this means that the individual’s
experience is insufficient, and that “one can speak of a human being’s absolute need for the other”.22
The individual subject requires completion from society, while for Merleau-Ponty, as for the late Bakhtin,
such completion is already implied, and made impossible, by the individual’s social embedding.
2.3 Literature
One of the more evident difficulties in Bakhtin’s “Author and Hero” essay, and generally his early work,
is the slippage between the aesthetic and the social. The essay takes the author’s power to conceive
a character in his entirety,23 and equates it with each individual’s capacity to perform this fulfilment for
others.24 While this confusion is unhelpful to the philosophy being expounded, it makes clear Bakhtin’s
belief that literature can instruct us about the workings of an experienced and real-world society. Art
relies on society, more precisely the cognitive and linguistic interaction it allows; “An aesthetic event”, he
argues, “can take place only when there are two participants present; it presupposes two noncoinciding
consciousnesses”.25 Merleau-Ponty’s awareness of the same motif should be evident from the argument
so far, but I would like to stress the temporal dimension to the social grounding of art: Merleau-Ponty
develops this through the “historicity of life”, which “in one stroke welds [the artist] to all which has ever
been painted in the world”,26 and all which will ever be painted.
A particular common feature of this overlap of art and society is the individual’s creation of his own
story, his use of language to reflect on a personal life and experience, which, for Bakhtin, is reliant on
others for completion. One of the manifestations of this autobiography is fate, which Bakhtin suggests
is an aesthetic justification of the individual’s real-world circumstances: “Fate is the artistic transcription
of the trace in being which is left by a life that is regulated from within itself by purposes” he argues;
“it is the artistic expression of the deposit in being laid down by a life that is understood or interpreted
totally from within itself” (5).27 This personal analysis of being, uninformed by others, leads to an idea
of fate developed through a series of self-judgements or analyses during the individual’s life.28 These
are secondary to judgements from outside and rooted in the same impulse: “The mere fact that I attach
any significance at all to my own determinateness […] testifies in itself that I am not alone in my self-
accounting, that someone is interested in me, that someone wants me to be good”.29 Merleau-Ponty
combines these notions of self-accounting and accountability in a similar manner, although grounding
the judgement much more in society; he writes, “everyone wants to account for himself in the eyes of X
– which means that everyone thinks of his life and all lives as something that can in every sense of the
word be told as a ‘story’30” (6).31 Merleau-Ponty sees art as a clarified presentation of social relations
exemplifying the reflexivity of language, while for Bakhtin, the significance of literature changes: in his
early works it functions as a model for social interaction, while from the 1930s onwards it becomes an
example of the social processes of language.
2.4 Social interaction.
It is to society that we now turn, and just as we found tensions between Bakhtin’s different concepts
of the body, so there are difficulties around the idea of individualism in language use. The later Bakhtin
suggests we use familiar speech genres and words which have come to us from others’ usages with only
minimal attention to their baggage. Merleau-Ponty similarly emphasises the importance of “others’ words”
in forming an individual’s speech – “Through the action of culture,” he argues, “I take up my dwelling
in lives which are not mine”32 – and he is as confident as Bakhtin in their individual usage: “Words […]
carry the speaker and the hearer into a common universe by drawing both toward a new signification
through their power to designate in excess of their accepted definition” (7). 33 Both Merleau-Ponty and
Bakhtin emphasise the necessary otherness of the other, their existence being not just a projection of the
subject’s, but fundamentally different.34 This is a key motif in certain variants of phenomenology, where
the other is not incorporated within the subject (as with Husserlian transcendental phenomenology), but
granted an entirely separate existence (as in Max Scheler’s influential work). I will return to this in a
moment, but first I would like to consider how the emphasis on difference within social existence impacts
on the ideas of language proposed.

21 “IL”, p. 67.
22 “A&H”, pp. 35-6.
23 “A&H”, pp. 5, 14.
24 “A&H”, p. 35 et passim.
25 “A&H”, p. 22.
26 “IL”, p. 63.
27 “A&H”, p. 175.
28 “A&H”, p. 16.
29 “A&H”, p. 144.
30 I presume the French reads histoire, meaning both “story” and “history”, although I have been unable to check the original text.
31 “IL”, p. 75.
32 “IL”, p. 75.
33 “IL”, p. 75.
34 E.g. “A&H”, p. 32.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 389


Difference within a common social context is the fundamental mechanism of meaning for Merleau-
Ponty,35 a shared context ensured by the common tools of perception of all human beings.36 Human
creativity relies on this basic physical experience:
We must […] recognize that what is designated by the terms “glance”, “hand”, and in general
“body” is a system of systems devoted to the inspection of a world […] The movement of
the artist tracing his arabesque in infinite matter amplifies, but also prolongs, the simple
marvel of oriented locomotion or grasping movements. (8)37

In “Speech Genres”, Bakhtin suggests minimal conditions for language, namely the presence of another
who in some way, without necessarily agreeing or understanding, responds to the individual’s speech.38
While this in one sense avoids psychological problems of meaning, it does return Bakhtin to the proble-
matic of the individual’s limits and reliance on others explored in “Author and Hero”. In this earlier essay
Bakhtin looked for social responsibility in action, whereas in “Speech Genres” it is, loosely, a tolerance of
the language of others and a duty to respond. This is similar, but not identical, to Merleau-Ponty’s idea
that the development of human society, named here as history, “is the perpetual conversation carried
on between all spoken words and all valid actions, each in turn contesting and confirming each other,
and each recreating all the others” (9).39 For Merleau-Ponty, responsibility is exercised through langua-
ge; for Bakhtin, it is beyond language and towards the transcendent conditions of linguistic interaction.
To make the obvious point, Bakhtin turns his phenomenology of language in a more idealist direction,
while Merleau-Ponty concentrates on what is accessible to experience; both attitudes to be found in the
phenomenological tradition.
3. Contextualisation
Two aspects of phenomenology which fundamentally influence Bakhtin and Merleau-Ponty are imme-
diately obvious: the concept of intention, and speech as a form of action. In “Speech Genres”, Bakhtin
combines these two ideas in the individual’s “speech plan”.40 The social effects of language are equally
obvious in “Author and Hero”, where the author shapes a personal, and inter-personal, reality. In “Indirect
Language”, Merleau-Ponty deploys a more radical version of the argument. Here, the speech act creates
rather than represents reality; we must “rid our minds of the idea that our language is the translation
or cipher of an original text”41 and acknowledge the perspectivism inherent to perception and intention.
This leads to another tenet of phenomenology adopted by Bakhtin and Merleau-Ponty, the impossibility
of returning (directly) to a prior reality. Merleau-Ponty aphorises this with the statement “perception
already stylizes”,42 and suggests we should seek existential unity not in the world underpinning all our
perceptions, but in the mechanisms of that perception itself. Similarly for Bakhtin, thought is affected
by “others’ words”43 although here and in “Author and Hero” there is a way through language to a more
direct reality. In the early works, this is based on the “subiectum” and their unique experience allowing
an intuition of reality, while in the later works the problem is elided by taking a social reality for granted
and examining its construction.
3.1 Husserl
In this case, Bakhtin is moving in the opposite direction to Husserl, trying to blend his idealist impulses
with a certain materialism, while Husserl is ever-more attracted to a transcendental idealist position. In
response to this transcendentalism, an alternative strand of phenomenology developed through Scheler
and Heidegger which placed a stronger emphasis on experience and the individual, a strand familiar to
Merleau-Ponty. This development of phenomenology took great interest in what Husserl labelled “genetic
phenomenology” which attempts to discover the history of our perceptions, both on subjective and cultural
levels. This genetic phenomenology is evident in Merleau-Ponty, with his discussion of how we represent
the world always-already affecting how we perceive it, and in Bakhtin with his histories of discursive forms
and genres. This historical analysis does not equate with a quest for origins, as Merleau-Ponty praises
Husserl for the term Stiftung, foundation or establishment, which designates the “unlimited fecundity of
each present,” as well as the “fecundity of the products of a culture” (10), suggesting a two-fold basis
of perception in the immediate present and the cultural past.44 Bakhtin similarly, although perhaps with
more sleight-of-hand, presents histories of concepts apparently without origin, the emphasis of his work
shifting from what is unique and “once-occurent” to what is common and generic.
3.2 Bühler
It might appear curious to mention Husserl in this context without exploring his own phenomeno-

35 E.g. “IL”, p. 46.


36 “IL”, p. 67.
37 “IL”, p. 67.
38 “SG”, pp. 68-9.
39 “IL”, p. 74.
40 “SG”, pp. 68-9.
41 “IL”, p. 43.
42 “IL”, p. 54.
43 “SG”, p. 92.
44 “IL”, p. 59.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 390


logy of language, yet there are good reasons for this, most notably the fact that it remains unrevised
from his earliest work and so is trapped within a certain naïve realism.45 Merleau-Ponty develops it as
sympathetically as possible in another essay in Signs, but this is largely a ground-clearing exercise for
his own ideas, outlined in “Indirect Discourse”. It is other thinkers in the phenomenological tradition,
particularly Anton Marty and Karl Bühler, who scrutinised the topic most clearly. Marty, a student of
Franz Brentano, heavily underscored the rhetorical function of language, and so the real-world effects
of speech. Bühler characterised this rhetorical force as language’s “triggering” function, to which he
added the functions of representation, the presentation of a state of affairs; and expression, an obvious
or hidden judgement on this state.46 He also suggested two distinct ways in which language was un-
derstood, namely the “index field” (Ziegfeld) and the “symbol field” (Symbolfeld). The Ziegfeld is the
immediate extra-linguistic situation which surrounds the speech act and the common background which
the conversational participants share. The Symbolfeld is the more abstract, linguistic side of context,
how the words fit together and are intended to be understood. The opposition to Husserl’s idealism is
immediate, emphasising the specificity of context rather than the generality of meaning, and variation
in language use rather than immutability; 47 Bühler called Husserl’s concept of language a “Diogenes in
a Barrel” model because of its failure to incorporate social interaction.48 Bühler’s work reaches Bakhtin
through Voloshinov: Voloshinov translated his 1922 article on syntax into Russian, and his “Discourse in
Life and Discourse in Poetry” mimics the division of Ziegfeld and Symbolfeld.49 And it is Voloshinov who
leads the “linguistic turn” away from abstract studies of social relations to the crystallisation of experien-
ce in language,50 the turn we see between “Author and Hero” and “Speech Genres”. In this later essay,
Bakhtin explores the personal aspects of utterances, their orientation towards a “particular referentially
semantic content”, the literal meaning of the words or Bühler’s representation; and the expressive aspect,
“that is, the speaker’s subjective emotional evaluation of the referentially semantic content”, a term and
concept taken wholesale from Bühler.51
4. Conclusion
We are now in a position to draw some conclusions about possible similarities between Bakhtin and
Merleau-Ponty and perhaps more importantly, to account for them. Both authors lay a heavy weight on
the influence of society, primarily in language but also on aspects such as the individual’s actions and
moral responsibilities. They are therefore interested in the centrality of the individual, as human body
and idealised subject, and the negotiation of his social situation. Their philosophies draw on literature
as an exemplar of certain linguistic functions, as well as a range of phenomenological philosophers in-
cluding Husserl, Scheler, and Bühler. Perhaps their most important shared insight is about the reflexivity
of language, that it forms both object and medium of their criticism. This connects with a larger refle-
xivity towards the perceptive act, a reflexivity which is not tacked on afterwards but inherent within it:
unmediated access to a prior reality is impossible, so there is always interpretation, requiring a method,
requiring a consciousness of that method. Phenomenology is always going to be, to some extent, a
phenomenology of language, an idea which can either be greeted with an attitude of sullen pessimism
(to caricature certain elements of French post-structuralism), or the humane embrace of Bakhtin and
Merleau-Ponty. We may only find language when we look for unvarnished reality, but that is not a cause
for despair as language always provides the means to talk about itself. Bakhtin and Merleau-Ponty are
quite different in style, approach, even the set of problems they are concerned with, but this common
insight, and the heritage it relies on, provides a bridge between Bakhtin and mainstream continental
philosophy.
Bibliography
Bakhtin, Mikhail (1986) - “The Problem of Speech Genres”, in Speech Genres and other Late Essays, edd. Caryl Emer-
son and Michael Holquist, trans. Vern W. McGee, Austin: University of Texas Press, pp. 60-102
— (1990) - “Author and Hero in Aesthetic Activity”, in Art and Answerability, edd. Michael Holquist and Vadim Liapunov,
trans. Vadim Liapunov, Austin: University of Texas Press, pp. 4-256
Brandist, Craig (2000) – “Neo-Kantianism in Cultural Theory: Bakhtin, Derrida and Foucault”, Radical Philosophy 102,
pp. 6-16
— (2002a) – The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture, and Politics, London: Pluto
— (2002b) – “On the Philosophical Sources of the Bakhtinian Theory of Dialogue and the Utterance”, in Bakhtin and
His Intellectual Ambience, ed. Bogulsaw Zylko, Gdansk: Wydawnictwo Uniwersytetu Gdanskiego, pp. 173-184
Cunliffe, Robert (1997) – “Bakhtin and Derrida: Drama and the Phoneyness of the Phoné”, in Face to Face: Bakhtin
in Russia and the West, edd. Carol Adlam, Rachel Falconer, Vitalii Makhlin and Alastair Renfrew, Sheffield: Sheffield
Academic Press, pp. 347-365
Erdinast-Vulcan, Daphna (1997) – “Borderlines and Contraband: Bakhtin and the Question of the Subject”, Poetics
Today 18:2, pp. 251-269

45 Simons 1995, p. 132.


46 Nerlich and Clarke 1996, p. 198.
47 Innis 1982, p. 14.
48 Brandist 2002b, p. 177.
49 Brandist 2002a, pp. 59, 63-4.
50 Brandist 2002b, p. 178.
51 “SG”, p. 84.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 391


Gardiner, Michael (1998) – “‘The Incomparable Monster of Solipsism’: Bakhtin and Merleau-Ponty”, in Bakhtin and the
Human Sciences, edd. Michael Mayerfield Bell and Michael Gardiner, London: Sage, pp. 128-144
Innis, Robert E. (1982) – “Key Themes in Bühler’s Language Theory”, in Karl Bühler: Semiotic Foundations of Language
Theory, New York and London: Plenum Press, pp. 3-73
Merleau-Ponty, Maurice (1962) [1945] – Phenomenology of Perception, trans. Colin Smith, London: Routledge and
Kegan Paul
— (1964) [1960] – Signs, trans. Richard C. McCleary, Evanston: Northwestern University Press
— (1988) – In Praise of Philosophy and Other Essays, trans. John Wild, James Edie and John O’Neill, Evanston: Nor-
thwestern University Press
Nerlich, Brigitte and Clarke, David D. (1996) – Language, Action, and Context: The Early History of Pragmatics in
Europe and America, 1780-1930, Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins
Simons, Peter (1995) – “Meaning and Language”, in The Cambridge Companion to Husserl, edd. Barry Smith and
David Woodruff Smith, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 106-137
Tihanov, Galin (2000) – The Master and the Slave: Lukács, Bakhtin, and the Ideas of Their Time, Oxford: Clarendon
Press
— (2001) – “The Body as a Cultural Value: Brief Notes on the History of the Idea and the Idea of History in Bakhtin’s
Writings”, Dialogism 5/6, pp. 111-121

Proceedings XI International Bakhtin Conference 392


The sacred and the everyday: attitudes to language in Bakhtin,
Benjamin and Wittgenstein

Ken Hirschkop

University of Manchester

Oxford Road

Manchester M13 9PL

England

Abstract
In this paper I examine the relationship between everyday language and the sacred in Bakhtin, and
compare it to the language theories of Walter Benjamin in “On Language as Such and the Language of
Man” and Ludwig Wittgenstein in the Tractatus Logico-Philosophicus. I briefly sketch the different ways
in which each writer embeds a notion of the sacred in his account of language and show how in each case
the postulate of either a divine language or at least a divine interlocutor is used to specify the properties
of ordinary human language.
In the course of this analysis I show that the sacred is used in each case as a lever for a critique of
the failures of positivism in the human sciences and liberalism in European politics. In this way, I intend
to show that it is possible to take Bakhtin’s religious and philosophical commitments at their full weight
without separating his theory from the sphere of sociology and politics.

Since the very beginning of scholarship on Bakhtin, religion has been an issue. When Bakhtin burst
onto the international scene in the 1970s and 1980s, it was as a daring theorist of the novel and philo-
sopher of discourse, not as a religious thinker. Nevertheless, at the outset there were hints, intimations,
that what looked like a secular, or even sociological cultural theory was really something quite different.
Katerina Clark and Michael Holquist’s 1985 biography raised the question of whether Bakhtin was him-
self a religious person and provided some fairly hedged answers: he was interested in “philosophy of
religion” (but not theology); at his death he final words were “ I go to thee” (but the thee in question
could have been either God or his wife); he was, in the words of Clark and Holquist, “enigmatic” about
his religious position1. Other critics clearly found him a good deal less enigmatic. Natalia Bonetskaia, in
a long discussion of Bakhtin’s philosophy, assured us that as a Russian philosopher, Bakhtin could only
have been filled with a sense of tserkovnost’ , that is, an ecclesiastical feeling, because, she claimed, this
was an “everyday intuition that infected every Russian person since their childhood”2. Irina Popova, in her
notes to the fifth volume of the Collected Works of Bakhtin, argued that the apparently cultural-historical
concept of Menippean satire was in fact a “euphemistic concept”, a way for Bakhtin to talk about what he
really interested him: “the history of the forms of dialogue of the person with God”3. Sergei Bocharov,
in a famous article reporting on a number of private conversations with Bakhtin, told us Bakhtin had felt
that in his study of Dostoevsky he had been unable to discuss the “most important questions”, of which
the key one was “the existence of God”4. And a series of fine scholars in the West, including Ruth Coates
and Alexander Mihailovic, placed Bakhtin’s writing in a detailed and exact theological context5.
When the second collection of Bakhtin’s works, Estetika slovesnogo tvorchestva, came out in Russian
in 1979, , writers such as the above understandably felt their cause was gaining strength. And with
the post-Gorbachev publication of the “Architectonics of the Act” and a whole series of philosophically
engaged texts, Bakhtin’s willingness to discuss Christ, revelation, salvation, and a host of other religious

1 Katerina Clark and Michael Holquist, Mikhail Bakhtin (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1985), 343.
2 N. K. Bonetskaia, “M.M. Bakhtin it traditsii russkoi filosofii”, Voprosy filosofii 1 (1993), 90.
3 I. L. Popova, editorial note to the text “Ritorike, v meru svoei lzhivosti . . .”, in Sobranie sochinenii v semi tomakh, tom 5, Raboty 1940-kh - nachala
1960-kh godov [Collected Works in seven volumes, Vol. 5, Works from the 1940s to the beginning of the 1960s] ed. by S. G. Bocharov and L. A. Gogotishvili
(Moscow: Russkie slovari, 1996), 461.
4 Sergei Bocharov, “Ob odnom razgovore i vokrug nego”, Novoe literturnoe obozreie 2 (1993), 71-2
5 See Ruth Coates, Christianity in Bakhtin: God and the Exiled Author (Cambridge: Cambridge University Press, 1999); Alexander Mihailovic, Corporeal
Words: Mikhail Bakhtin’s Theology of Discourse (Evanston, Ill.: Northwestern University Press, 1997).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 393


issues became undeniable. Yet for all that, there has been no “smoking gun” in this case. Just as the
vexed dispute over authorship – a matter connected, at a fundamental level, with the religious question
– has always sought, but never found, empirical proof of either Bakhtin’s, or Medvedev’s authorship,
so the question of whether Bakhtin really believed has never been, and probably never can be decided.
There are a few apocryphal stories treated as Gospel by one or the other side; there are the texts, of
course; but there is no place, in person or in writing, where Bakhtin puts his religious cards on the table.
And the problem is that, although Bakhtin sometimes refers to various aspects of Christian doctrine in
his writings, most of the time he doesn’t. Most of the texts, perhaps more importantly, most of the im-
portant texts are either entirely or mostly secular in their vocabulary and conceptual structure. Hence,
those who want to press Bakhtin’s religious claims have always had to argue for a sub-text below what
appears to be sociology, or linguistics, or the history of literary forms. And to support their claim they
have had to come up with a largely speculative account of Bakhtin’s life that would explain why he wrote
in this subtextual manner. They have done this with great vigour and astonishing industry, but they have
not, in the end, convinced that many people.
Bocharov, who is in many ways the shrewdest and most thoughtful of this group, has admitted the
nature of the problem. In a brilliant article entitled “Sobytie bytiia” (“The Event of Being”) Bocharov
acknowledges that Bakhtin “to a great extent concealed himself from us, particularly as to his position on
the `ultimate questions’”6. Bakhtin’s field was phenomenological description, not religious philosophy,
Bocharov confesses, and yet he infused the language of this description “with theological concepts”7.
The resulting aesthetics is, in Bocharov’s words, a “dam” holding back the flow of metaphysical questions
and conclusions8.
A dam which no doubt many interpreters would like to level, so that the spiritual waters can run
free. But the dam is there and always will be, which is to say that Bakhtin remains a writer who see-
ms to depend upon religious concepts without really wanting to be a religious thinker. And in the case
of undecidable questions like these, I think the important and worthwhile thing is not to lament the
impossibility of answering them, but to attend to the form of question itself. In the present case, the
question seems to be: did or didn’t Bakhtin believe, believe in religion, or believe in the Christian God?
What is strange about this question – strange to me, at any rate – is that we think the difficulty of the
question has something to do with Bakhtin himself: his own complicated life story, some strange habit
of reticence, a desire to conceal his position on the ultimate questions. And the reason this is strange
is that this same question seems just as necessary to ask, and just as impossible to answer, in the case
of other writers, born at more or less the same time as Bakhtin, inhabiting a quite similar intellectual
space, worried about many of the same problems. My first example is Walter Benjamin.
Benjamin was raised in what people like to call an “assimilated” Jewish family in Berlin, which is to
say, although Jewish, he did not attend synagogue, engage in prayer, study Torah, observe Jewish law
and the rest of it. In the years 1909-1911 Martin Buber gave his “Three Addresses on Judaism” to the
Bar Kochba student group in Prague, addresses which seemed to have an electrifying effect on German-
Jewish intellectuals of the time, including Benjamin. From 1912 he became, by his own admission,
interested in the Jewish question and the question of his own Jewishness.. His work became “infused”
with theological concepts, largely drawn from the Jewish messianic tradition. Although he continued to
be a literary critic, he began to develop that idiosyncratic method of his, which studies mundane things
like shopping arcades and film with the help of extramundane concepts like the Angel of History, the Day
of Judgement, the messianic spark inhering in all things, and so forth. As a consequence, Benjamin’s
interpretative fate has been in many respects just like Bakhtin’s. There are those, like his friend Scho-
lem, who claim he was a great Jewish thinker who applied a thick Marxist varnish to the perfectly good
wood underneath. There are others, like Adorno and Horkheimer, who think he was a good materialist
a little too inclined to dabble in religion. As with Bakhtin, the debate rages and seems undecidable. As
for Benjamin himself, he commented in a letter of 1912 that “for me Jewishness is not in any sense an
end in itself, but the noble bearer and representative of the intellect”9. At the same time, he considers
himself more Jewish than the Zionists around him.
Ludwig Wittgenstein also came from an assimilated Jewish family, although this one was Austrian
and much wealthier than Benjamin’s. Wittgenstein’s passion and his subject was logic, and in particular
the logic of mathematics. After meeting Bertrand Russell in 1911 he devoted himself with extraordinary
strictness to the philosophical analysis of the proposition and to a consideration of the meaning and
significance of logical argument itself. His notes on this subject date from 1913 and continue, remarka-
bly, through his service in the First World War. But suddenly, in the midst of his discussion of logic and
symbolism, he asks himself, in June of 1916, “What do I know about God and the purpose of life?” and
spends a reasonable amount of time over the next 4 months trying to answer the question10. These notes
are eventually codified in a forbidding text with a forbidding title, the Tractatus Logico-Philosophicus.
The Tractatus is one of the most influential texts of twentieth-century philosophy, and a masterpiece in

6 Sergei Bocharov, “Sobytie bytiia”. Novii mir 11 (1995), 220.


7 Bocharov, 220.
8 Bocharov, 221.
9 Letter from Walter Benjamin to Leo Strauss, 21 November 1912; quoted in Anson Rabinach, “Between Enlightenment and Apocalypse: Benjamin, Bloch
and Modern Jewish Messianism”, New German Critique 34 (1985), 97.
10 Ludwig Wittgenstein, Notebooks 1914-1916 , 2nd edn.(Chicago: University of Chicago Press, 1984), 73.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 394


the field of logic. But, annoyingly for its most devoted followers, from proposition 6.4 onwards it veers
suddenly into some very illogical places: discussions of death and ethics, the immortality of the soul, the
inexpressibility of the mystical, all culminating in the leave-‘em-hanging last line “Whereof one cannot
speak, thereof one must be silent”11. The consequences are predictable: Bertrand Russell, his logician
mentor and teacher, confesses his “intellectual discomfort” with all this talk of the mystical in the preface
he writes for the book, while Wittgenstein’s closest friend, Paul Engelmann insists, on the basis of con-
versations and letters, that for Wittgenstein the most important is precisely that which cannot be said,
which pertains to religion and ethics12.
In each case, a writer celebrated justly for his, in the broadest sense, scientific achievements. In
each also, a writer who seems compelled to invoke the deity and his/her ilk in these writings, who needs
theological concepts to make what looks in other respects like a scientific case, but who – at the same
time – gives no indication that he really believes or has faith. All three, in the words of Benjamin’s friend
Adorno, “attempt to contemplate all things as they would present themselves from the standpoint of re-
demption”, while at the same time refusing to believe in redemption as a given13. But these three writers
share something else as well: the then widespread conviction that European culture is in crisis, and that
it is necessary, as Benjamin once put it, to “situate the crisis in the heart of language”. But what marks
them out from others of this kind, say Ernst Cassirer, or Ogden and Richards, is the conviction that to
work one’s way out of the crisis one must invoke the sacred. It is language they see from the standpoint
of redemption, and it is from language, they believe, that Europe’s redemption must come.
Benjamin turned to language and to the theological at once, it seems. “On Language As Such and the
Language of Man”, written in 1916, was his first major essay, and it is here that language and Judaism
makes their first simultaneous appearance14. Although tortuously expressed, its case is simple enough.
Language as such is not words or sentences, but the tendency of all things to communicate their mental
being. This is meant to include the inanimate as well as the animate world, for all things can be known
and understood, and this is their mental being. “It is fundamental”, Benjamin stresses, “that this mental
being communicates itself in language and not through language” (63); language is not a mere means
or medium. Humans are distinguished by the fact that they communicate by naming, or as Benjamin
puts it “Man therefore communicates his own mental being (insofar as it is communicable) by naming
all other things” (64). Naming is uniquely human, and unique among language in that through it and
through it alone language communicates itself absolutely. Which is to say, “in the name, the mental
being that communicates itself is language” (65).
This hierarchy of language means that inanimate things aspire, so to speak, to language through being
named: it is in human language that they are rendered perfectly, rightly in language. The description
of man as namer recalls us to the Genesis story, and Benjamin obliges with a direct commentary on it.
In Benjamin’s explication, God creates through language and names his creation: what he creates is
therefore created as something communicable, something linguistic. When it comes to man, God does
not name him: he creates him and sets language loose with him. As Benjamin puts it: “His creativity,
relieved of its divine actuality, became knowledge. Man is the knower in the same language as God is
the creator.” (68).
That is not everything: I will spare you the Fall from grace and its linguistic consequences. But it is
worth pointing out that Benjamin is suitably guarded about the point of offering an interpretation of Ge-
nesis. The object, he assures us, is neither Biblical interpretation, nor showing that the Bible is objectively
true. Benjamin follows the Bible because “the present argument follows it in presupposing language as
an ultimate reality, perceptible only in its manifestation, inexplicable and mystical”(67). The ultimate
reality, and not a tool, or not simply one thing we do or use in a reality that surrounds and determines it.
Benjamin’s case is against what he significantly calls “the bourgeois conception of language”. According
to the bourgeois system, “the means of communication is the word, its object factual, and its addressee
a human being” (65). It is wrong on each count. Language is not a means because things partake of
it: their essence depends on an ordering that we gain in knowledge but which is not beyond, before or
outside our knowledge of it. Neither it is a means for humans, because in naming, we are not commu-
nicating the contents of our minds to others, but giving the world the sense it has, or rather bringing the
sense it has to its highest possible expression.
The contrary view, the bourgeois view, was being brought to its highest degree of theoretical sophis-
tication at the very time Benjamin was demonstrating that Judaism and language had something to say
to each other, for 1916 is also the year in which Saussure’s students published the Course in General
Linguistics, which conforms to Benjamin’s description in almost every respect. The initial chapters,
with some hesitation, assure us that language emerges as a kind of psycho-physical means for passing
concepts from the head of one human to another. The doctrine of arbitrariness leads inexorably to the
argument that the conceptual structure of language is the consequence of its own internal differentiations,
and that therefore every language is sui generis. Saussure’s course is usually heralded as inaugurating

11 Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, trans. C. K. Ogden (London and New York: Routledge, 1981), proposition 7, 189.
12 Bertrand Russell, “Introduction” to Wittgenstein, Tractatus, 22; Paul Engelmann, Letters from Ludwig Wittgenstein, With a Memoir (Oxford: Basil Bla-
ckwell, 1967), 97
13 Theodor Adorno, Minima Moralia: Reflections from Damaged Life, trans. E.F.N. Jephcott (London: Verso, 1978), 247.
14 “On Language as Such and the Language of Man”, in Selected Writings: Volume 1, 1913-1926, ed.by Marcus Bullock and Michael W. Jennings (Cambridge,
Mass.: The Belknap Press, 1996), 62-74.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 395


a genuinely scientific turn in the study of language; on Benjamin’s criteria it simply degrades language
to the status of a mere instrument.
But, of course, it degrades language precisely to the extent that it treats it as something that can be,
or ought to be the object of a science. Saussure’s often expressed desire to place linguistics on a proper
scientific footing, by delimiting its proper object, reminds us of the deeper intentions of the theory. But a
linguistic theory of this kind assumes in its very intention that its object is a piece of a world the essential
structure of which is already known. It cannot, without running into permanent ambiguity, understand
language as in any sense an ultimate reality, part of that which structures reality itself, endowing it with
a point or essence. Bourgeois linguistics has already made the positivist move: it knows the world is
composed of physical beings, with various physical needs and desires and the ability to manipulate their
vocal organs and make sounds. In this context our view of language is driven by the already individu-
alised view of the world it inhabits.
Or to put it in terminology with which we are more familiar and comfortable: Saussure ensures our
linguistic theory is descriptive, not prescriptive. One of Saussure’s great achievements was to establish
ordinary spoken language as the true object of linguistics. According to his theory, no language can be
better or worse, because there is no possible linguistic criterion according to which you could measure
one language against another: “No reason can be given” as he said, “for preferring soeur to sister, Ochs
to boeuf, etc.”15. This makes perfect sense within the terms of Saussure’s theory, which rightly tells
us that one signifier is as arbitrary as the next and there are many grammatical ways to skin the same
semantic cat. But the neutral pose only works because he has so limited the scope of language that its
only job or function is to pass information effectively from one talking head to the next. Bereft of any
role in the comprehension of the world, and bereft of any role in redemption, it performs its allotted task
differently, but expertly.
Bakhtin had also spoken of “bourgeois linguistics” in the 1950s, although the suspicion is that he was
merely echoing Stalinist rhetoric. But there is an initial obvious, but interesting problem in imagining
a connection between the sacred and the linguistic in Bakhtin, and that is that from “Discourse in the
Novel” onwards, from 1934 until the end of his days, the sacred word is construed as oppressive and
monological. The modern vernaculars achieve their irony and flexibility after having expelled the “alien
holy word” with its “sanctified borders”16. They can only thrive when the archaic speech subjects of
the old order – “priests, prophets, preachers, judges, political leaders, patriarchal fathers, and so on”
– have left the scene17. Yet as one delves into the theory it becomes clear that the main issue is not a
mistrust of the divine as such, but the belief that the ultimate error is idolatry, the claim to earthly au-
thority based on divinity, the confusion of the divine with something existing in ordinary time and space.
Bakhtin reportedly claimed that “if a person does not believe in God, then inevitably he believes in an
idol, something earthly, limited”18, which reminds us that Bakhtin’s call for faith is meant to initiate a
certain attitude or orientation, which he described in notes made in 1961:
Not faith (in the sense of a definite faith in Orthodoxy, in progress, in man, in revolution,
and so on), but a feeling of faith, that is an integral relation (of the whole person) to a
higher and ultimate value. Dostoevsky frequently understands atheism in this sense, as
indifference to an ultimate value19.

The alternative to faith is not sin or heresy, but the ultimate bourgeois danger: mere indifference.
The alternative to faith is a form of what we might call mild nihilism, in so far as it takes all values to
be relative to worldly things, which is to say, to be somehow chimerical or insubstantial in comparison
with bodies, desires, the fact of death and so on. Benjamin had shrewdly pointed out that if language
was merely a way to signify things, it effectively lost its point. Bakhtin responds by insisting that for
any value to have any force, one has to have faith in an ultimate value. This ultimate value, however,
has to be transcendent, other-worldly and in principle unreachable to do its job. It is strictly speaking
a presupposition which must always remain so.
The argument so far is a fairly routine and familiar one, a kind of poor man’s Dostoevskianism. Bakhtin’s
innovation was to apply this principle to the functioning of language. He had, in “Author and Hero in
Aesthetic Activity”, insisted that for the task of the artist to make any sense, for us to be able to make
heroes of others and be made heroes by others required “communion with the ultimate outsidedness”20.
When Bakhtin recast his theory of authorship as a theory of discourse, the principle was translated into
the idea of the “higher `superaddressee’ (`a third’), an absolutely just responsive understanding”, that
guarantees, as it were, that the empirical efforts made by ordinary mortals to understand one another
are not in vain21. This is, in fact, roughly equivalent to what Habermas calls the “unavoidable” idealization
of the ideal speech community. The critical point in both is that for speech to make sense as an activity
at all, we must live in the hope of the possibility that we will be understood eventually, even if what we
15 F. de Saussure, Course in General Linguistics, trans. Roy Harris (London: Duckworth, 1983), 73.
16 Bakhtin, “Iz zapisei 1970-1971 godov”, in Estetika slovesnogo tvorchestva, 2nd edn. (Moscow: Isskustvo, 1986), 356.
17 Bakhtin, “Iz zapisei 1970-1971 godov”, 355.
18 Nicholas Rzhevsky, “Kozhinov on Bakhtin”, New Literary History 25: 2 (1994), 434.
19 M. M. Bakhtin, “1961 god. Zametki” [“1961. Notes”], in Sobranie sochinenii, tom 5, 352.
20 Bakhtin, “Avtor i geroi v esteticheskoi deiatel’nosti” [“Author and Hero in Aesthetic Activity”], in Estetika slovesnogo tvorchestva, 175.
21 M. M. Bakhtin, “1961 god. Zametki”, 337.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 396


say is persistently misunderstood.
Without faith in this superaddressee, words, which after all are so many sounds in the air or scratches
on a page or screen, would not be something we assume should signify. If the meaning of a word is
indeed intersubjective as Bakhtin rightly argued, if it does not inhere in the sign, but only through the
functioning of a linguistic community, then the fact of misunderstanding – for it happens often enough
– is indeed a serious threat. How can a speaker possibly appeal to the idea that that is not what was
meant at all, if what was meant depends on the responses of an actual addressee. Our appeals against
misunderstanding depend on this “superaddressee”, the one who somehow, beyond our fate in actual
history, redeems our words by understanding them correctly. This is what Bakhtin meant, of course,
when he said that every word would have its festival of rebirth.
In what I still regard as one of Bakhtin’s greatest and most interesting texts, “Towards Philosophical
Bases for the Human Sciences”, written in the early 1940s, Bakhtin speaks of knowledge of the persona-
lity. Its extreme case, he claims, is “thought about God in the presence of God, dialogue, questioning,
prayer”22. God is the ideal interlocutor in the same sense as Benjamin, because he is all language, and
has no thingness beyond language. Benjamin speaks of Revelation as the perfect adequacy of the hi-
ghest material being in its expression and what he means by that is that in Revelation language leaves
no remainder, leaves nothing of mental or physical being beyond the intelligibility promised by language.
In Bakhtin’s imagined perfect conversation – the one we try to initiate in prayer – there is nothing left
of the subject outside of dialogue, no secrecy or deception.
That did not mean subjects became wholly transparent to one another: the passage above continues
“Here there is an inner kernel, which cannot be swallowed up or consumed, where a distance is always
preserved, in relation to which only pure disinterestedness is possible; disclosing itself to the other, it
always remains at the same time for itself also”23. Subjects in conversation retain an inner kernel not
because subjectivity implies a level of interiority which can only ever be accessed by the subject itself
– one can’t really keep secrets from God, after all – but because subjects come-to-be in conversation itself,
that is, their very existence as subjects depends on the fluid, open, time-bound fact of dialogue. When
Benjamin commented that the more real the mind the more expressible it is, he was reacting against the
same myth of the subject as interiority. Benjamin and Bakhtin together make the case that the more
the mind enters into expression, into dialogue, the more real, the more personality-like it becomes.
Nowhere is the critique of liberal culture and its peculiar theory of language more marked. The lan-
guage theory which culminates in Saussure allows for individuality only as unexpressed, or inexpressible
contents of the psyche, or as errors or deviations in language use – the vagaries, immune to scientific
analysis, of parole. Agreement in language, that is, communication, leaves no inner kernel – the thou-
ght or intention expressed by one speaker should be identical to the thought or intention understood by
the other. It was characteristic of European liberal culture before the First World War to acknowledge
this problem by trying to bring to expression, into articulate discourse, all that its rationalism seemed to
leave behind, whether this was the unconscious in the individual psyche, the “primitive” as exemplified
in non-Western or peasant cultures (furiously pillaged for visual and musical inspiration), or the newly
proletarianised masses, who were trying to make themselves heard but remained inarticulate to the
liberal ear. These tendencies led to some rather wonderful art and some rather terrible politics, but they
revolved around a liberal self-consciousness about the thinness or weakness of its own culture.
Of course, liberalism’s great promise was that it was capable of reforming itself, and that its endless
infinite progress would make good past errors. And at no point is the sheer difference of an appeal to
redemption, to messianic feeling, more apparent or crucial than this one. Progress implies that when
social life is finally perfected, the suffering of the past will be erased or rationalised, in so far as past su-
ffering now becomes part of the process leading to the perfect future. In that sense, the utopian future
is construed by liberal culture as the continuation of the present. The point that needs to be stressed in
connection with Bakhtin and Benjamin is that they depend on the concept of a messianic future, one in
which history is interrupted, so to speak, by something that cannot be derived from history itself. Only
an absolutely different future is capable of changing the meaning of the past, which both Bakhtin and
Benjamin claim is both possible and necessary. But on this point Bakhtin is more ambiguous than his
German counterpart. Bakhtin’s conception of a distinctively novelistic form of time, as “an uninterrup-
ted movement into a real future”, reflects his original debt to the neo-Kantianism of Hermann Cohen,
and in his writings on the novel, the force of dialogism is presented as a force within language driving it
forward24. But a future that is burdened with the task of making the past meaningful in its entirety has
to be, in some sense, independent of that past.
And this points us to the fundamental weakness in liberal culture that Benjamin, Bakhtin and Witt-
genstein understand. For the doctrine of progress sees the past as nothing more than a stepping-stone
to the present. Whatever tragedies and catastrophes it contains, whatever the setbacks or obstacles,
no longer matter when progress is the order of the day: the past is literally of no use to the present.
This was anticipated in aggressive form by the manifestoes of modernism, most notoriously in Futurism,
which threatened to throw Pushkin, and the rest of a past deemed classical, overboard from the ship

22 M. M. Bakhtin, “K filosofskim osnovnam gumanitarnykh nauk”, in Sobranie sochinenii, tom 5, 7.


23 Bakhtin, “K filosofskim”, 7.
24 Bakhtin, “Epos i roman”, in Voprosy literatury i estetiki (Moscow: Khudozhestvennaia literature, 1975), 473.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 397


of modernity. In a less aggressive form we find it in Saussure’s theory, which tells us, with none of the
malicious glee Futurism, that the past of a language is of no consequence to its present uses and the-
refore of no consequence to linguistic science.
In Wittgenstein’s Tractatus this notion finds unusual expression. According to its doctrine, our language
potentially provides us with a complete description of all that has happened. What propositions cannot tell
us is why what happened happened, or why it is of any value or consequence. “The sense of the world”,
Wittgenstein comments, “must lie outside the world . . . In it there is no value”25. For once a value is
found within the world, it becomes liable to the same mode of description-by-proposition as every other
physical fact, which is to say, it becomes a fact. What tickled Wittgenstein was that “the modern system
makes it appear as though everything were explained”, whereas the exhaustive description of the world
actually explains nothing26. For Wittgenstein, the sacred is what cannot be expressed in propositional
language: it lies outside language, as the never-to-be-expressed explanation of its structure. Although
distant from Benjamin in almost every other respect, Wittgenstein shares with him the conviction that
human language is the descriptive parody of God’s word, offering knowledge in the place of creation.
I noted at the outset that the irruption of the sacred into twentieth-century accounts of language has
been generally viewed with suspicion. Religion and politics are commonly regarded as players in a zero-
sum game, in which the more one credits the Bakhtins and Benjamins of the world with religiosity, the
less one credits them with politics. That depends, however, on a concept of religion which is outdated
for these writers. Their commitment to religion does not entail loyalty to institutions or the observance
of rituals in an everyday context27. In fact, their messianism crucially depends on the otherworldliness
of the sacred, its strictly transcendental status. Instead, religiosity features in their work as a necessary
feature of the humanistic culture they are dedicated to, necessary because it provides a corrective to the
positivism prevalent in the social and human sciences of their day.
The social sciences that emerged in the latter half of the nineteenth century, of which linguistics was
one key branch and psychology another, fought a long battle to free themselves from the hegemony of
a conservative literary culture that turned to philosophy, history and literature for the solution of moral
and political questions28. They were, often self-consciously, allied to the reforming liberal project of the
late nineteenth and early twentieth centuries (Durkheim and Weber were prominent reforming liberals in
France and Germany respectively). But although they had impressive achievements, and were allied to
a generally “progressive” agenda, the broken link to philosophy left them with a limited vision of human
culture and human possibility. Although the early versions of sociology were not as aridly functionalist
as what followed, even Weber and Durkheim seem to fight not for unalloyed human happiness but for
the preservation of older forms of “community” and culture in the wake of the modern onslaught. The
sociologists’ gods were correspondingly modest, their politics meliorist.
In this context, the sacred acted as a philosophical challenge to the “bourgeois” assumptions of the
human sciences, posing questions about the point or meaning of activities like speaking or listening which
had in effect been effaced by the human sciences themselves. This is what Wittgenstein meant when,
with a certain feigned innocence, he tells us at the conclusion of the Tractactus that scientists who think
they have explained the world have in fact explained nothing and certainly not the most important thing,
which is why there was a world to begin with.
Independently of one another, Bakhtin and Benjamin argued that while one could not change the
facts of the past – in the sense that one could not undo suffering that had taken place – one could alter
its meaning, one could open up the question of its significance, make, as Benjamin put it, the complete
incomplete29. This demonstrates the strength and weakness of their position. They were unwilling to
accept the tragic dimension of the past, the fact that it is replete with pointless and unnecessary suffe-
ring, but they were equally unwilling to rationalise that suffering and thus to let the past lie unredee-
med, accepting that history’s temporary winners had the last word. In so far as even the most powerful
movements of their day were unwilling to take on the burden of enslaved ancestors, they turned to the
only tradition available that would – religion.
References
Adorno, Theodor 1978. Minima Moralia: Reflections from Damaged Life, trans. E.F.N. Jephcott. London: Verso.
Bakhtin, M.M., 1996. Sobranie sochinenii v semi tomakh, tom 5, Raboty 1940-kh - nachala 1960-kh godov [Collected
Works in seven volumes, Vol. 5, Works from the 1940s to the beginning of the 1960s] ed. by S. G. Bocharov and L.
A. Gogotishvili. Moscow: Russkie slovari.
Bakhtin, M. M. , 1986. Estetika slovesnogo tvorchestva, 2nd edn. Moscow: Isskustvo.
Bakhtin, 1975. Voprosy literatury i estetiki. Moscow: Khudozhestvennaia literatura

25 Wittgenstein, Tractatus, 183.


26 Wittgenstein, Tractatus, 181.
27 In this respect a significant source of information is the footnote (written, I believe, by Sergei Averintsev) to “Avtor i geroi” that discusses Bakhtin’s
intellectual debts to Faddei Zelinsky and Adolf Harnack. See Estetika slovesnogo tvorchestva, 408-9 n 17.
28 On this struggle see Wolf Lepenies, Between Literature and Science: the Rise of Sociology, trans. R. J. Holllingdale (Cambridge: Cambridge University
Press, 1988).
29 See Benjamin’s commentary on a letter of Max Horkheimer’s to him on this subject in Walter Benjamin, The Arcades Project, trans. Howard Eiland and
Kevin McLaughlin (Cambridge, Mass. and London: The Belknap Press), 1999), 471 (N8, 1). Bakhtin’s discussion of the issue, couched in terms of the
distinction between changing “material being” and the “meaning of being” is found in “Iz zapisei 1970-71 godov”, 361.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 398


Benjamin, Walter, 1999. The Arcades Project, trans. Howard Eiland and Kevin McLaughlin. Cambridge, Mass. and
London: The Belknap Press.
Benjamin, Walter, 1996. Selected Writings: Volume 1, 1913-1926, ed.by Marcus Bullock and Michael W. Jennings.
Cambridge, Mass.: The Belknap Press.
Bocharov, Sergei, 1995. “Sobytie bytiia”, Novii mir 11.
Bocharov, Sergei, 1993. “Ob odnom razgovore i vokrug nego”, Novoe literturnoe obozreie 2.
Bonetskaia, N. K., 1993. “M.M. Bakhtin it traditsii russkoi filosofii”, Voprosy filosofii 1.
Engelmann, Paul, 1967. Letters from Ludwig Wittgenstein, With a Memoir. Oxford: Basil Blackwell.
Lepenies, Wolf, 1988. Between Literature and Science: the Rise of Sociology, trans. R. J. Hollingdale. Cambridge:
Cambridge University Press.
Rabinach, Anson, 1985. “Between Enlightenment and Apocalypse: Benjamin, Bloch and Modern Jewish Messianism”,
New German Critique 34.
Rzhevsky, Nicholas, 1994. “Kozhinov on Bakhtin”, New Literary History 25: 2.
Saussure, F. de, 1983. Course in General Linguistics, trans. Roy Harris. London: Duckworth.
Wittgenstein, Ludwig, 1984. Notebooks 1914-1916 , 2nd edn. Chicago: University of Chicago Press.
Wittgenstein, Ludwig, 1922. Tractatus Logico-Philosophicus, trans. C. K. Ogden. London and New York: Routled-
ge.

Key texts
Bakhtin, M.M., 1996 [1940s]. “K filosofskim osnovnam gumanitarnykh nauk”,
in Sobranie sochinenii v semi tomakh, tom 5, Raboty 1940-kh - nachala 1960-kh
godov [Collected Works in seven volumes, Vol. 5, Works from the 1940s to the
beginning of the 1960s] ed. by S. G. Bocharov and L. A. Gogotishvili. Moscow:
Russkie slovari.
Bakhtin, M.M., 1986 [1961]. “1961 god. Zametki”, in Estetika slovesnogo tvor-
chestva, 2nd edn. Moscow: Isskustvo.
Benjamin, Walter, 1996. “ On Language as Such and the Language ofMan”, in
Selected Writings: Volume 1, 1913-1926, ed.by Marcus Bullock and Michael W.
Jennings. Cambridge, Mass.: The Belknap Press.
Wittgenstein, Ludwig, 1922. Tractatus Logico-Philosophicus, trans. C. K. Ogden.
London and New York: Routledge.
Key Names: Mikhail Bakhti; Walter Benjamin; Ludwig Wittgenstein
Key Words: Language; linguistic theory; religion, monologism; positivism
Biographical Statement: Ken Hirschkop is Senior Lecturer in English Literature
at the University of Manchester. He is author of Mikhail Bakhtin: An Aesthetic for
Democracy (Oxford: Oxford University Press, 1999) and co-editor of Bakhtin and
Cultural Theory (Manchester: Manchester University Press, 1989, 2001). He is
currently working on a history of “linguistic turns” in twentieth-century Europe.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 399


Dialogical dialectics: Bakhtin, Zizek, and the Concept of Ideology

Peter Hitchcock

I begin with several vexed connections which are nevertheless locked to an underlying thesis. The
tension between dialogism and ideology is not just a structural and historical function of the distance
between the humanism of the utterance and the scientific totalization of Diamat but is itself ripe with
dialectical import. The period after 1917 reveals a sharp set of contradictions in the understanding of
ideology and some radical displacements in revolutionary zeal. In part my invocation of this moment
reminds us of the intellectual’s alienation from the state of putative revolution, an effulgence of betrayals
that nevertheless distill a Bakhtinian concept of ideology. Now, rather than dialectical revolution one
confronts the prospect of what, borrowing from Slavoj Zizek, we might term a dialectical repetition (for
Bakhtin, dialogical resurrection) in which the collapse of actually existing socialism (the end of the Soviet
interregnum) contributes not to the consolidation of a capitalist hyperpower but to the intensification of
its founding contradictions. Rather than repeat the error of Diamat in response, does Bakhtin speak to a
theorization of ideology in the present? The proximity of dialogics to dialectics appears dubious at best
and to make one an adjective or agent of the other is to offer them simultaneously both the pleasures
of murder and suicide. Yet, of course, once one begins to specify the dialectic in mind a marriage of
heaven and hell seems as likely as its earthly surrogate. What provides the link in Bakhtin’s mind is the
condensation of the inner form of language in dialogue, a move greatly facilitated by his and Voloshinov’s
close reading of Cassirer’s Philosophy of Symbolic Forms –itself a fanciful coupling of Neo-Kantianism
and idealist dialectics. We will return to this unlikely conjugal knot below, but let me note here that the
problematic persistence of Hegel in Soviet intellectual life is a structural antimony in Leninism for which
dialogical dialectics is a curiously cultural symptom (Althusser went as far as saying that Hegelianism
prepared the ground, philosophically, for Stalinism). The specter of the symptom raises another con-
founding connubial, the proper names of Bakhtin and Zizek as mutually deconstructing adjectives for
one another (the Zizekian Bakhtin, the Bakhtinian Zizek). Here their combination is intended less for
theoretical chiasmus and more to understand the confluence of opposites and whether, in a moment of
mad matrimony, dialogism for one thing is the dialectic without synthesis which, for better or worse, is
the ing in Zizek’s Repeating Lenin, and the sublime in his object of ideology. Neither burying Bakhtin,
nor resurrecting Lenin (despite the beckoning of his lifeless form) I wish to forward a particular argument
on what is living and dead in ideology, the funereal foundation of “actual existence.”
Dialogism, like dialectics, is the name for a somewhat slippery set of conceptual coordinates that is
useful in characterizing aspects of Bakhtin’s thought only to the extent that it pushes one to a more nu-
anced and theoretically-rich understanding of the utterance rather than on the one hand, extant dialogue
and on the other, extant text. Dialogism then, like speech genres, really occupies the space of discourse
in general rather than only the discrete interchange of addressor and addressee, even though the latter
provides Bakhtin and us an enduring demonstration (we might note immediately that discourse in the
present has come to displace ideology in the analysis of the social). As a Rorschach test, however, the
constitutent features of Bakhtin’s metalinguistics have taken on a number of shapes. One of them,
quite clearly is Neo-Kantian and combines aspects of a priori with the transcendental that would have
made Cohen, if not the old codger from Konigsberg, quite proud. Although I have been critical of this
Kantian compulsion in the past I do not have as much of a problem with it as some, for whom any whiff
of noumena is a perfume of fundamentally bourgeois origin. As Terry Eagleton has shown in his reading
of Benjamin, we cede too much to our capitalist confreres by allowing them the luxury of the sublime.
One of the many lessons of cultural studies is that it can be just as edifying to steal the aesthetic as to
stomp on it. A more intriguing figuration than the shape of Neo-Kantianism is Neo-Hegelianism. Since
I believe that Neo-Hegelianism functions as a conduit to dialogical revision, with a little help from Zizek,
I want to note its logic and valence. Indeed, it is in the analysis of process and contradiction that a so-
mewhat more urgent category of ideology becomes possible. No doubt the Collected Works (by Bakhtin)
will fail to emphasize this category yet it persists as a repressed foundation of an oppressed intelligentsia
and thus is all the more prescient under conditions of actually existing imperialism where much must be
repressed to overlook the error in terror and in the war against it.
Clearly with Bakhtin one has to be very careful about the use of Hegel and the dialectic; as Bakhtin
points out in his work on Dostoevsky, “The Hegelian concept of a single dialectical spirit in the process of
becoming can give rise to nothing but a philosophical monologue.” (PDP 26) Yet note that the question
is about the singularity of becoming, not the efficacy of the principle of becoming which is as much a
cornerstone of the Phenomenology of Spirit as it is a linchpin of novelization. The differences are legion,
however, which is why despite a common interest in process, commentators (and Bakhtin himself) are
quick to separate the components of dialogism from any nasty narratives of progress or totalization.
Still, Cassirer was a very practiced reader of Hegel and, despite his preference for a history of autono-
mous symbolic forms over Hegel’s progressive transcendence, Cassirer retained the basic logic of Hegel’s
historicism. Bakhtin, ever sensitive to the context of intellectual engagement, would have perceived a
consent to think about Hegel in alternative ways in Cassirer’s permissibility, just at that time that He-
gelian Marxism was bearing fruit in the work of Lukacs. Again, the point is not to make the category of
becoming synonymous between Bakhtin and Hegel but to measure the degree of creative partnership or
what Craig Brandist usefully refers to as “selective appropriation.” (C.f.The Bakhtin Circle)
The issue of selective appropriation is vital to our contemporary understanding of Bakhtin. It is not
particularly surprising in terms of intellectual engagement (obviously all theory is part hybridization and
canny creation) but it necessarily gives us pause when a particular intellect is “de-ideologized’ as the
unassimiliable. Indeed, the word “Bakhtin” has come to signify nothing less than the process of selec-
tive appropriation itself, an endeavor that of course overdetermines the current intervention. But, and
this is not alien to Bakhtin’s methodologies, whatever the compulsive or ineluctable in the Bakhtins we
make, the architectonic Bakhtin, it simultaneously registers what is symptomatic in intellectual history,
chronotopes of creativity, in ways that reflect richly in Bakhtin and in the hard work of the present. All
attempts to separate Bakhtin from what is immanent to that history are, paradoxically, formalist in their
inclination since they are willing to externalize the oracle of Orel from the historical consciousness that
would make such symptoms legible. Medvedev notes that “the ideological purview is incessantly in the
process of generation. And this process of generation, just as any other such process, is dialectical in
nature.” (Formal Method 208) Yet, of course, this is a Marxist dialectic and, in the moment I am describing,
Bakhtin was much more taken with its idealist precursor, Hegelianism via Cassirer (and the confessional
mode of Scheler–a historical irony if ever there was one). If he read anything by his friend Voloshinov
(and he seems to at least have read his translations) Bakhtin was much taken with language’s capacity
as a bridge or partition (it links or separates) of life and objective culture. Voloshinov would explicitly
connect this notion to process as historically determined (the conditions that intersect in sign), but Bakhtin,
while clearly resisting universalistic wholes and predatory spirit, the holistic Hegel, nevertheless introjects
the Ionian idea of dialectics as process that Cassirer rigorously converts into the ongoing separation and
reunification in symbolic forms. The symptom here is characteristically Hegelian in that the moment of
symbolic form enacts sublation as positive and negative combined, negation is preserved for subsequent
negation. The symptom is also, by and by, evidence of the debate about the place of language study
between the human and natural sciences (once Stalin condemned linguistics to the latter, Bakhtin was
more open and systematic about his sympathies).
If we track the Hegel connection via Cassirer this is only a means to assert that Neo-Hegelianism is
an extraordinarily lapsed variety. Cassirer himself, while favoring the “True is the Whole” and other tra-
ppings of Hegel’s idiosyncratic phenomenology yet pronounces a pox on Hegel’s “subjugation of Nature
to the absolute idea” (Logic of the Cultural Sciences 35) because, among other sins, it elides the role of
perception as something less than absolute but crucially discerning between objects as “its” and objects
as “thous.” I am not as sure as Cassirer that this subjugation is Hegel’s Achilles Heel, not least because
of the aforementioned emphasis on process. Is not the dialectic of ideas subject to a tarrying, as Hegel
puts it, that is the force of spirit in facing the negative? We could argue that Cassirer is challenging a
condition of idealism (its absolute conditioning) but the point of neo-anything is pointedly Hegelian none-
theless (as an adjective rather than as a philosophical position), since it strives to remedy its precursor
through improved conceptual forms. Perhaps we should leave aside the question whether Cassirer’s
criticism merely replicates Marx’s, that Hegel fails to sustain the autonomy of nature from the historicity
of social forms. What interests me here is the sheer complexity of the historical engagement with the
dialectic which would question any subsequent selective appropriation that simply omits the import of
ambivalent imbrications. At the very least, the latter would require that we spare a thought not only
for what Bakhtin wrote or said at different moments but for what he was compelled not to say. Rather
than measure this with intuition (another neo-Kantian urge that crops up in Bakhtin’s formerly early phi-
losophical manuscripts) let us briefly consider this in terms of the Bakhtin Circle’s thoughts on ideology
and the aura of ideology that mediates those thoughts so construed. I will then offer further sacrilege
by connecting that displaced Leninism to what we might term a Zizekian sublime and the conditions of
possibility in the present. If the concept of ideology changes, and necessarily so, there are corresponding
symptoms that underline that a dialogical understanding of ideology yet contains a dialectical resonance.
And this is more than a philosophical predicament.
If, as Holquist puts it, dialogue knows no sublation, it is a possibility that nevertheless coruscates in
the concept of ideology. The inner sign refracts the word ideologically but not so that either stands un-
problematically as ideology. Voloshinov makes the same point about the psyche and signals an interest
that, like the dialogic and dialectics, stands in tension where the substance of Neo-Kantianism is concer-
ned. The philosophy of language that Voloshinov details and to which Bakhtin strategically (dialogically)
concurs features a materialist concept of ideology that travels (to borrow from Mieke Bal) between su-
perstructural instance and linguistic mediation. Ideology here is not the standard false consciousness

Proceedings XI International Bakhtin Conference 401


model; indeed, Voloshinov maintains that “consciousness becomes consciousness only once it has been
filled with ideological content, consequently only in the process of social interaction.” (MPL 11) The truth
of consciousness is in its purview as socially mediated, so ideology is neither merely intrinsic nor extrinsic
to consciousness–it exists in that interindividual territory, the intersubjective space of the utterance. The
second defining feature of this concept derives from the first; that is, because of ideology’s immanence
to social interaction its register is not simply monologic. True, it may aspire to monologism (“You are
either with us, or you are with the terrorists”) but ideology achieves longevity through perspicuous fle-
xibility. It has to, as Eagleton tenaciously argues, because it exists in a permanent state of competition
from potentially alternative purviews and thus the operative condition is for Eagleton, borrowing from
Bakhtin, polyphony. (Ideology 107) The third characteristic is that ideology moves between the affective,
or behavioral in Voloshinov’s parlance, and the elaborate or formal. It can encompass the manifestly
felt or experienced and the somewhat more categorical divisions of, say, the arts and sciences. And the
mode of interaction between each is dialectical in a refractive not merely reflective manner. Again, the
word is not ideology, the thing itself, but a battleground on which its claims are made and unmade.
I wish to add a fourth constituent which is not a revelation but a reminder that intellectual history
does not occur in a vacuum. While we can all have a good chuckle now about Bakhtin’s rather literal
interpretation of the word that is never one’s own we must not let the humanizing of his intellect with
all of his foibles distract us from the historicity in the moment of thought. Just as scientific discoveries,
and the odd social revolution, rendered Hegel’s speculative illusion of the Absolute a tad more proble-
matic, so any theory of ideology carries the somewhat dubious distinction of presenting its conceptual
nuance while simultaneously adjudicating its own claims vis-a-vis ideology. As Eagleton pithily puts it,
“ideology, like halitosis, is in this sense what the other person has.”(Iedology 2) Much maligned, both
ideology and dialectics have an interesting knack of precipitating debates not just on reflexivity but also
on contemporary material contradiction (“We are opposed to nation building in the name of imperial
ambition”). What this means is that while Voloshinov wags his finger at causal psychologizing he must
willingly suspend disbelief in the material conditions of his own psyche. This is what Pierre Macherey
signals by the non-said, and why all this talk about masks and Bakhtin begs the question of the political
unconscious which is not just about perceived constraint but the “generative process of signification”
(MPL 106) itself to which the individual is patently not self-consciously identical (on the occasion that
Bakhtin mentions his brother’s education when the question was about his own we are dealing with a
Freudian slip and more).
Put another way, when Voloshinov suggests that “each period and each social group has had and
has its own repertoire of speech forms for ideological communication in human behavior” (MPL 20) that
repertoire may necessarily include one that suggests that “each period and each social group has had
and has its own repertoire of speech forms for ideological communication in human behavior.” The fact
that ideology may not be divorced from the material reality of sign (MPL 21) cancels through the utte-
rance and utterance context in which it is precipitate. The case for the influence of German philosophy
on Russian thinking and the Bakhtin Circle in particular has been made, in detail and with great care,
but what is often left out is an analysis of what is left out in a move that does not square the circle, but
circles dialectically to our moment and the prospect of an Hegelian repetition. To dramatize this logic
while cleaving to the obstinately impossible in my opening gambit, I will invoke Zizek, the Zizek who not
only wants us to enjoy our symptom, but repeats Lenin in order to facilitate such excess.
Zizek’s theory of ideology boils down to a classic case of the dialectic of absence and presence but one
in which becoming is always symptomatic of a Lacanian Real, the condition of the unrepresentable that
tirelessly secretes signs of its psychic determination in everything from Eastern European sexual insults as
greetings (“mother!”/”sister!”) to the inversion of the idealist notion of the Universal in The Crying Game.
Zizek is never less than brilliant in his role, which I take to be that of a postmodern Lacanian Hegelian
in which the first term indicates a certain fragmentation and repetition in difference. His commentaries
on Schelling and Lenin, for instance, are much longer than the excerpts he frames and contain extensive
passages that are frankly (and sometimes literally) part of other arguments. There are lots of reasons,
however, why his thinking is crucially prescient in the current conjuncture: here I will only refer to a
couple of them. Zizekian critique emerges in the death throes of Yugoslavian Communism, a moment in
which the Real of theory outstripped the machinations of the State and where intricate analysis of Lacan
provides a politics for the radical intellectual in a system where symptoms otherwise are a runny nose
or a bad back. If Zizek is partial to the Bakhtin of carnival and the grotesque it is because these reveal
not only processes of culture but betray the tortured contours of the alienated intellectual’s relationship
to the State, the materialization of Denkverbot. I am not saying that the Slovenian Lacanian Circle is
the correlative of the Bakhtin Circle, but their emergence tells us something about the conditions of
possibility in revolution and the necessity for a theory of ideology in understanding them. Zizek returns
to Lenin in order to repeat him (and, perhaps repeat himself) but this is not a repetition of the Same.
The Lenin at issue is not the Lenin of What is to be Done?, the Lenin who unconsciously, no doubt, gave
totality the excuse for carpe diem, but the Lenin of State and Revolution that offered tasks of abnegation
that neither he nor his followers actively embraced. Zizek’s argument here is contentious yet also safe
in the sense that his reading stresses the lack in Lenin (and consequently the lean in Lacan) at a time
when KGB is a bar in Manhattan and a statue of Vladimir Illyich overlooks Houston Street. What is being
repeated however, is a more pointed definition of lack; that is, what Lenin failed to do. He failed to push
the dialectic beyond a bare bones reflectionist model that kept objective reality out there and unproble-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 402


matically reachable (once a few contradictions were hurdled). The name for this failure, argues Zizek, is
Leninism which, rather than abolish the State, institutes it with the Party as its iron hand. The Lenin to
be repeated, therefore, is Lenin as signifier not as origin. This is the Lenin who, rather than separate the
economic and the political, understood the necessity of the impossible: thinking them together. Zizek,
borrowing from Lacan, asserts that there is no relation between the economic and the political (taken as
a third coordinate, from the self): their autonomy is embedded or it is nothing. Ideology, which always
takes its cue from master signifiers, can fight this impossibility or confirm the beauty of the antimony.
In the years after the revolution, the Bakhtin Circle is encouraged by a kind of Hegelian meconnaissance
punctuated (or punctured) by a Neo-Kantian urge to address the state of meaning in a world of scientific
development. The place of knowledge is always already symptomatic of their place in revolutionary
turmoil and social transformation, a moment in which the Circle oscillated between Kantian Moralitat
and Hegelian Sittlichkeit. Clearly, a meconnaissance in the present is to read this as a liberal humanist
concern for dialogue and/or neoliberal claims to a path beyond class war on the basis of market-driven
consensus (thus, wherever Bakhtin writes ideology one must actually read post-ideology–etymologically
this can be done, but then, as Freud showed in his essay on the “Uncanny”, scratch most words and they
will bleed their opposite–and this reorientation is in part the context-sensitive register of dialogism too).
What I am suggesting is that the ardor with which Zizek re-reads or repeats Lenin is not to save him
from abstraction but to comprehend dialectically how that abstraction or irrelevance has been produced.
Again, ideology functions in a number of different registers, but one of them is precisely this process of
closing off the past from the present, by denying the utterance its concretization and an understanding
of its audience. Zizek’s Lenin, then, is in this sense “accented”: the repetition is about reopening or
maintaining conceptual historicity in a period when the emperor has declared “I think we agree. The
past is over.” If the dialogics of utterance must question the idealism of Hegelian dialectics, the latter
remains persuasive when the utterance is hypostatized as a ward of the State. The point is not to offer
a Lacanian Bakhtin (we already had one in Michel Pecheux) but to motivate a discussion about the place
of impossible combinations in extreme situations.
One of Marx’s significant criticisms of Hegel concerned the reduction of science to philosophy through
“speculative illusion.” It is a common misconception, Marx argues, that speculative philosophy is idealist
because it elides empirical data. Hegelian idealism actually exists in the uncritical reception of empiri-
cals facts that preserves a logical outside and is therefore patently non-dialectical. Neither Bakhtin nor
Zizek indulge in this fantasy (well, let us say that Zizek is more consistent on this point) but what if an
Hegelian impulse is a lure in moments of crisis and refers not to authorial or intellectual choice (Zizek
writes of “Lenin’s choice”) but to a constitutive philosophical and political impasse in the relationship of
the intellectual and state apparatuses? All sorts of displacements abound (the one about the grotesque
is particularly important regarding Bakhtin and Zizek) but the question of ideology assumes perhaps
a greater urgency now that the claims of actually existing socialism are no longer posited as the alibi
of democracy’s excess. If dialogical dialectics is an impossible conceit (even with referents like the
Marburg School or the Bakhtin Circle) it yet invokes a field of knowledge that includes both the logic of
such impossibility and a repressed concept, ideology, in the explication of its historicity. True, when a
sitting president suggests “If this were a dictatorship, it’d be a heck of a lot easier...just as long as I’m
the dictator...” we have moved from the grotesque to the merely obscene. Nevertheless, it may be all
the more necessary to articulate polemically the coordinates of Bakhtin’s “choices” by repeating him,
the event of Bakhtin, if only as a measure and a product of the symptoms that define our engagement,
our eventness.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 403


A ideologia em Bakhtin e em Pêcheux

Freda Indursky

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Rua Anita Garibaldi, 2340/808

90480-200 – Porto Alegre

RS – Brasil

Freda@orion.ufrgs.br

Resumo I
Historicamente, Bakhtin foi pioneiro na introdução da ideologia nos estudos da linguagem. Posterior-
mente, Pêcheux, ao conceber o quadro teórico da Análise do Discurso, também mobilizou a ideologia O
presente trabalho propõe-se a realizar um estudo contrastivo do modo como Bakhtin e Pêcheux refletem
sobre a linguagem e como concebem a ideologia, com vistas a estabelecer semelhanças e diferenças entre
ambos. São dois os propósitos deste trabalho: por um lado, mostrar como a reflexão sobre a linguagem
desenvolvida por Bakhtin se contrapunha à higienização imposta ao objeto de estudo da lingüística, e, por
outro, salientar que a reflexão de Pêcheux, mais tarde, se constrói a partir de questões semelhantes às
de Bakhtin. O segundo propósito consiste em assinalar as diferenças teóricas constatadas entre ambos,
no que tange ao entrelaçamento da ideologia à linguagem.
Resumo II
Historicamente, Bajtín fué precursor en la introducción de la ideología en los estudios del lenguage. Más
tarde, Pêcheux, cuando concebió el cuadro teórico del Análisis del Discurso, también movilizó la ideología.
El presente trabajo propone la realización de un estudio contrastivo del modo como Bajtín y Pêcheux
han reflejado cerca del lenguage y como conciben la ideología, para establecer semejanzas y diferencias
entre las proposiciones de los dos pensadores. Dos son, pués, los objetivos deste trabajo: por um lado,
mostrar como la reflexión sobre el lenguage, desarrojada por Bajtín, se contraponía a la higienización
impuesta al objeto de estudio de la lingüística, y, por otro, compararla a la reflexión de Pêcheux, que se
establece sobre las mismas interrogantes de Bajtín. El segun objetivo consiste en señalar las diferencias
teóricas existentes entre estos dos estudiosos sobre la cuestión de la ideología en el lenguage.

Contextualizando a questão
O presente trabalho propõe-se fazer uma comparação entre os dois teóricos que refletiram fortemente
sobre as questões do discurso e sua relação com a ideologia.
Antes, porém, é preciso situá-los no tempo e no espaço. Comecemos por Bakhtin. Nasceu na Rússia,
e publica seu primeiro texto, Marxismo e Filosofia da Linguagem, segundo consta, sob o pseudônimo
de Volochinov, em função da conjuntura da época, em 1929. O segundo teórico que é aqui mobilizado
para fazer um contraponto com Bakhtin, é Michel Pêcheux. Francês, publica seu primeiro texto, Analyse
Automatique du Discours, em 1969. Como é possível perceber, quarenta anos separam as reflexões
destes dois teóricos. E creio que posso avançar um pouco mais, ao observar que Marxismo e Filosofia
da Linguagem ganha sua primeira tradução, em inglês, em 1973 e, em francês, em 1977. Ou seja: a
reflexão de Pêcheux, penso poder afirmar, não sofreu influência dos escritos bakhtinianos.
Este, pois, é o propósito deste trabalho: debruçar-me sobre a obra destes dois teóricos para com-
pará-las e contrastá-las, tomando a noção de ideologia como objeto de comparação. Sobretudo o que
me move é examinar como estes dois autores entrelaçam ideologia e linguagem. Isto significa mobilizar
também outras noções que se relacionam com ideologia, tais como signo, importante para examinar a
questão em Bakthin, e sujeito, para considerar a problemática, em Pêcheux.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 404


Os precedentes determinantes
Antes de abordar esta questão específica, porém, gostaria de apontar algumas preocupações comuns
à reflexão de ambos. Para tanto, preciso recuar um pouco no tempo. Faz-se necessário ir a Saussure,
pois os dois criticaram o corte saussuriano e sua concepção de língua, já que entendiam que, para tra-
balhar com seu objeto – o de Bakhtin, o discurso literário; o de Pêcheux, o discurso social – um outro
tipo de ciência da língua, diferente daquela preconizada por Saussure, que “não só pode prescindir de
outros elementos da linguagem como só se torna possível quando tais elementos não estão presentes”
(SAUSSURE, 1974, p.23), precisava ser mobilizada. Para Bakhtin, a língua precisa dar conta das relações
sociais e interindividuais (aspecto que, em Saussure, era do âmbito do individual e não do social, e que
não pertencia à língua, mas à fala). Para Pêcheux, por sua vez, a língua deve dar conta do histórico, o
que faz com que a ambigüidade, a ambivalência, o equívoco, o mal entendido sejam parte constitutiva da
língua. Ambos recusaram-se, pois, a trabalhar com a língua sistêmica, tal como formulada por Saussure,
que exclui o sujeito e seu trabalho da/na língua.
E mais: ambos afastam-se da concepção de social, tal como formulada pelo Curso: social, no curso,
remete para o que pertence à comunidade lingüística, contrapondo-se às formulações individuais, que são
jogadas para o lugar residual da fala. Observando os escritos de Bakhtin, sua noção de social ultrapassa
a concepção de “tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma
comunidade....” (SAUSSURE, 1974, p.21), e situa-se no relacionamento entre os falantes de uma língua,
inscritos no social. Ou seja: a visão sistêmica de social, privilegia o que é comum a todos; a visão bakhti-
niana de social, convoca as relações entre sujeitos, relações estas que se estabelecem pelo viés da língua.
Parece-me, pois, que o que é social para Bakhtin situa-se bem mais no âmbito do que foi considerado por
Saussure como fala, a qual foi desconsiderada como objeto de estudo da lingüística nas formulações do
Curso. Já para Pêcheux, social não remete nem para a língua saussureana, que é sistêmica; nem para a
fala, que é individual; tampouco considera a interlocução entre indivíduos, como em Bakhtin, mas con-
voca a prática discursiva, que é eminentemente social, pois representa a interlocução estabelecida entre
sujeitos sociais, inscritos em diferentes lugares sociais. Logo, nem o lugar da interlocução bakhtiniana,
que mobiliza diferentes indivíduos inscritos no social; nem o lugar do indivíduo, que é excluído para o
lugar residual da fala; mas lugares sociais, a partir dos quais os sujeitos se relacionam, não mais em sua
dimensão de indivíduo, mas enquanto sujeitos sociais. Portanto, há interlocução, mas trata-se de uma
interlocução de dimensão discursiva. Como é possível perceber, ambos criticam a concepção da noção do
social inscrita no Curso e, ao fazerem isto, criticam igualmente a exclusão do sujeito da língua, embora
sua concepção de sujeito seja diferenciada. Ambos criticam esta exclusão movidos por questionamentos
diversos. O objeto de Bakhtin exigia a consideração das diferentes vozes sociais que o autor mobiliza
em seus textos. Com isto, Bakhtin introduziu a noção de polifonia e de dialogia em sua reflexão teórica.
Precisava, pois, mobilizar uma noção de língua que lhe permitisse trabalhar estes dois funcionamentos
enunciativos nos textos literários. Evidentemente, a noção de língua, como sistema, não dava conta de
tais funcionamentos. Pêcheux, por sua vez, interessa-se pelos processos semânticos que se instauram
na materialidade lingüística do discurso, e a língua sistêmica não dá conta desses processos.
Como é possível perceber, a comparação que aqui é feita entre os aspectos que aproximam os dois
teóricos em tela nunca é feita para estabelecer superposição entre suas reflexões, nem para pasteurizar
as diferenças que os distinguem, mas impressiona o modo como as questões que discutem se tocam.
Mas, olhar o semelhante entre os dois teóricos determina, de imediato, perceber necessariamente as
diferenças.
O passo seguinte desta exposição consiste em examinar a noção de signo saussuriano, para poder
contrastá-la com a concepção de signo em Bakhtin. Esta comparação é essencial, pois é através dessa
noção que Bakhtin mobiliza o ideológico em sua reflexões sobre a linguagem.
O signo em Saussure e em Bakhtin
Inicialmente, faz-se necessário relembrar a natureza da constituição do signo em Saussure. Para
este lingüista, o signo se constitui pela junção indissolúvel entre um significado e um significante. Desta
união é que decorre a significação. Mas é mais adiante, quando trabalha com o que designou de valor
do signo que surge o aspecto mais importante do signo lingüístico. Aí o autor vai afirmar que o valor
do signo decorre das relações e das diferenças que cada signo estabelece com todos os demais signos
pertencentes ao sistema lingüístico e, com base nisso, afirma que, no sistema, “um signo é o que o
outro não é” (SAUSSURE, p.130-141). Ou seja: cada signo se opõe aos demais. Por conseguinte, no
sistema, não há espaço para redundância, nem para superposições. Nas próprias palavras do lingüista,
“na língua só existem diferenças” (SAUSSURE, op. cit, p.139). Esta é a natureza do valor lingüístico do
signo, tal como foi formulado no Curso. Este é o espaço por ele reservado para as questões semânticas.
Decorre daí, então, que o valor lingüístico do signo mobiliza relações, mas estas relações são internas
ao sistema. Nada que lhe seja externo, tal como o locutor, o interlocutor, o contexto de situação, nada
que não pertença ao sistema pode ser convocado para participar das relações das quais decorre o valor
lingüístico.
Faremos, agora, um contraponto desta concepção sígnica com a concepção de signo em Bakhtin.
Bakhtin reflete sobre o signo em sua obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. Já no início do primeiro
capítulo, ele afirma que “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de

Proceedings XI International Bakhtin Conference 405


si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia.” (
BAKHTIN, 1981, p.31). E, mais adiante, pode-se ler que
“O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos... Ali onde o signo se encon-
tra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico.”
(BAKHTIN, 1981, p.32).

A partir dessa citação, podemos perceber que a natureza do signo bakhtiniano é absolutamente dis-
tinta daquela do signo de Saussure. Enquanto o signo saussureano não é concebido como ideológico,
mas lingüístico, ou seja, remete cuidadosamente para o interior do sistema lingüístico, no interior do
qual estabelece suas relações com os demais signos lingüísticos, evitando qualquer contato com o ex-
terior, o signo bakhtiniano remete, de imediato e de forma irreversível, para o exterior: “um signo é um
fenômeno do mundo exterior” (BAKHTIN, 1981, p.33), cuja realidade ele “reflete e refrata” (BAKHTIN,
1981, p.32).
Esta diferença fundante entre estas duas concepções de signo aponta para o modo como ambas con-
cebem a língua. Para Saussure, é preciso que o analista se afaste dos usos que dela fazem os indivíduos
para só então poder ser examinada, em sua natureza sistêmica, onde não cabem elementos que lhe sejam
externos. Para Bakhtin, a língua é constituída de signos que significam o mundo para os indivíduos que
dela se utilizam em sua comunicação. E mais: percebe-se que Bakhtin, através de sua reflexão sobre o
signo, reflete também, e de forma entrelaçada, sobre a ideologia. Em suas próprias palavras, “o signo é
criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela”. (BAKHTIN., 1981, p.37) .
Ou seja: é pelo viés do signo que o autor introduz a ideologia em seu horizonte teórico. Tanto é assim
que, um pouco mais adiante, podemos ler que:
“...o ideológico não pode ser explicado em termos de raízes supra ou infra-humanas. Seu
verdadeiro lugar é o material social particular de signos criados pelo homem. Sua especi-
ficidade reside, precisamente, no fato de que ele [o ideológico] se situa entre indivíduos
organizados, sendo o meio de sua comunicação” (BAKHTIN, 1981,35).

Ou seja: o ideológico, que se constitui de material sígnico, serve para comunicação entre os ho-
mens.
E o autor é ainda mais explícito, logo a seguir, no modo como entrelaça signo, ideologia e comuni-
cação:
“Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual.... É fundamental que esses dois
indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social):
só assim um sistema de signos pode constituir-se.” (BAKHTIN, 1981, p.35)

Como é possível perceber, o signo bakhtiniano contrasta substantivamente com o signo saussureano,
pois ambos estabelecem condições muito diversas para sua existência. Sinteticamente, podemos dizer
que, por não ser ideológico, mas lingüístico, Saussure precisa retirar o signo do espaço social, isto é, da
relação interindividual, que é da ordem da fala, a qual fica fora do objeto de investigação da lingüística.
Por esta razão, seu signo só estabelece relações sígnicas, no interior do sistema sígnico, que é puramente
lingüístico. Por outro lado, na ótica de Bakhtin,
“o signo se cria entre indivíduos, no meio social; é portanto indispensável que o objeto adquira
uma significação interindividual; somente então é que ele poderá ocasionar a formação de
um signo. Em outras palavras, não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí
deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social.” (BAKHTIN, op. cit, p. 45).

Percebe-se que o valor do signo é completamente diverso para os dois teóricos. Enquanto, para Saus-
sure, como já vimos mais acima, o valor do signo decorre das relações opositivas que se estabelecem
entre os signos de um sistema, para Bakthin, o valor do signo provém das relações que este estabelece
com o meio social, sendo, “por natureza, interindividual” (BAKHTIN, op. cit, p.45). Vale dizer, pois, que,
enquanto, para Saussure, o valor do signo, por natureza, é lingüístico, para Bakhtin, o valor do signo,
obrigatoriamente, é social.
Mais adiante, o autor introduz um aspecto extremamente importante para observar o modo como
entrelaça língua e ideologia em sua teoria. Ele salienta que
“classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em
todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contaditório. O signo se torna a arena
onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço
da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna
o signo vivo e móvel, capaz de evoluir”. (BAKHTIN, op. cit. p. 46).

Ou seja, Bakhtin retoma a discussão sobre o valor do signo lingüístico para divergir frontalmente de
Saussure. Para este autor, o valor do signo decorre justamente do fato de ser mobilizado por diferentes
classes sociais. Por conseguinte, é do uso que dele fazem que aparecem o que o autor designou de índices
de valor do signo e estes índices são eminentemente sociais e, por conseguinte, contraditórios e o são
por refletirem e refratarem os embates ideológicos que, através dele, são feitos. Para Bakhtin, o estudo

Proceedings XI International Bakhtin Conference 406


do signo permite observar o processo dialético de evolução que vai da infra-estrutura às superestruturas.
Eis como Bakhtin entrelaça língua e ideologia.
A ideologia em Pêcheux
Vejamos como este entrelaçamento ocorre na obra de Pêcheux. Para este pensador, a reflexão inicia
no corte saussureano. Discute profundamente as conseqüências deste gesto, mostrando que, com ele,
são afastados da língua a fala, o sujeito e os sentidos. Ou seja: a língua sistêmica não permite observar
o homem e o uso que este faz da língua. Por outro lado, é importante frisar que lhe interessa o uso, mas
não no nível individual (o que determinou as pesquisas de Benveniste, por exemplo), pois tem claro,
desde suas primeiras reflexões, que o uso que lhe interessa é o uso que se faz no nível do social. E mais:
se, o que lhe interessa, é o nível social, o uso que pretende examinar não se encontra nem na língua,
tal como formulada por Saussure, nem na fala, que fica com os usos individuais e acessórios da língua.
Interessa-lhe um uso social. Logo, nem a língua sistêmica, nem a fala. Em suas próprias palavras, busca
“definir um nível intermediário entre a singularidade individual e a universalidade, a saber o nível da
particularidade” (PÊCHEUX1 , 1990, p. 74). Este nível particular que vai constituir seu objeto de obser-
vação é o discurso que é social e não universal (leia-se sistêmico), nem individual (entenda-se fala), e
que só pode ser pensado pelo trabalho produzido por um sujeito, que não se confunde com o indivíduo
de que fala Saussure. Ou seja, Pêcheux busca um sujeito inscrito em um lugar social a partir de onde
vai produzir seu discurso, que é determinado pelo contexto sócio-histórico em que se encontra, ou seja,
este contexto determina suas condições de produção ( PÊCHEUX, op. cit., p.74-75). Vislumbra-se aí, já,
algumas das noções que vão ser mobilizadas por Pêcheux para produzir teoricamente seu objeto.
Para tanto, Pêcheux (PÊCHEUX & FUCHS2, 1990, p.165) inicia seu trabalho de teorização, refletindo
sobre a figura da interpelação do indivíduo em sujeito. Vejamos em suas próprias palavras:
“A modalidade particular do funcionamento da instância ideológica quanto à reprodução das
relações de produção consiste no que se convencionou chamar interpelação ou o assujeita-
mento do sujeito como sujeito ideológico, de tal modo que cada um seja conduzido, sem se
dar conta, e tendo a impressão de estar exercendo sua livre vontade, a ocupar o seu lugar
em uma ou outra das duas classes sociais antagonistas no modo de produção....” (PÊCHEUX
& FUCHS, 1990, p.165-6).

Como é possível verificar, desde o início de suas formulações teóricas, Pêcheux, tal como Bakhtin, vai
mobilizar a noção de ideologia. Mas diferentemente deste autor, vai entrelaçá-la ao campo do discurso
pelo viés do sujeito e não do signo, em primeiro lugar. E, em seguida, chama a atenção, igualmente,
nessa comparação, que, para Pêcheux, interessa o sujeito e não o indivíduo, que é a figura mobilizada
por Bakhtin (relação interindividual).
É interessante verificar, a seguir, de que modo o sujeito interpelado é conduzido a ocupar seu lugar.
De que lugar fala Pêcheux? Trata-se de lugares sociais; segundo ele mesmo, “as práticas [são] associadas
a lugares ou a relações de lugares que remetem às relações de classes, sem, no entanto, decalcá-las
exatamente”. (PÊCHEUX & FUCHS, op.cit, p. 166).
Portanto, já temos aí dois dos elos da cadeia conceitual que Pêcheux construiu para poder trazer a
ideologia para a sua reflexão. Para tanto, fazem-se necessários sujeitos interpelados (pela ideologia)
e inscritos em lugares sociais. Mas isto ainda não é suficiente para trazer a ideologia para o centro do
embate ideológico que se estabelece entre as relações de lugares. Para tanto, Pêcheux vai formular duas
noções essenciais: formação ideológica e formação discursiva. Segundo o autor,
“a formação ideológica caracteriza um elemento suscetível de intervir como uma força em
confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social
em dado momento; desse modo , cada formação ideológica constitui um conjunto com-
plexo de atitudes e representações que não são nem individuais nem universais, mas que
se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as
outras”. (PÊCHEUX,& FUCHS, op.cit. p. 166)

E é com esta instância, a formação ideológica, que a outra instância, a formação discursiva, vai se
relacionar. Nas palavras de Pêcheux,
“As formações ideológicas comportam necessariamente, como um de seus componentes,
uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser
dito a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares
....” (PÊCHEUX & FUCHS, op. cit, p. 166-7)

Considerando tudo que precede, podemos afirmar que Pêcheux não estabelece identidade entre o
discurso e o ideologia, (e este é mais um dos pontos que distingue o modo como ele e Bakhtin entrelaçam
linguagem e ideologia); mas entende que o discurso é um dos pontos através dos quais a ideologia se
manifesta. Creio poder afirmar, sem distorcer seu pensamento, que o discurso é um dos elementos que
compõem a materialidade do ideológico.

1 Este texto foi publicado originalmente em 1969.


2 Originalmente este texto foi publicado em 1975.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 407


Já vimos como o indivíduo é interpelado em sujeito; já vimos igualmente como a formação discursiva
recorta da formação ideológica os seus saberes. Resta saber como as duas instâncias ideológicas descritas
acima - sujeito e formação discursiva - se entrelaçam. Para tanto, vamos examinar alguns aspectos de
seu outro livro, Semântica e Discurso (PÊCHEUX3, 1988.). Nesse livro, encontramos uma reflexão bem
mais desenvolvida sobre a relação entre sujeito e ideologia. Vemos, igualmente, que, para isto, o autor
apóia-se em duas teses de Althusser: (PÊCHEUX, 1988, p.149):
1) Só há prática através de e sob uma ideologia;
2) Só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito
Ou seja: a categoria de sujeito é a categoria que subjaz à ideologia. Ou, ainda, não há ideologia sem
sujeito. Eis porque afirmei bem acima que o entrelaçamento entre discurso e ideologia, em Pêcheux, se
faz através da noção de sujeito. E, ao ser interpelado, o sujeito se identifica com determinados sentidos,
que lhe parecem evidentes, e não com outros. Esta identificação já é efeito da ideologia; trata-se do
“efeito ideológico elementar” (ALTHUSSER, 1970; PÊCHEUX, op. cit., p. 153). Dito diferentemente: ao
identificar-se com certos sentidos, o sujeito, de fato, está se identificando com certos saberes de uma
dada FD, ou ainda, nas próprias palavras de Pêcheux,
“os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujeito de seu discurso) pelas
formações discursivas que representam “na linguagem’ as formações ideológicas que lhes
são correspondentes”. (PÊCHEUX, op.cit., p.161)

A partir do que acabamos de examinar, pode-se afirmar que a figura da interpelação, no mesmo mo-
vimento que constitui o sujeito, constitui para este sujeito o sentido. Ou seja, a constituição do sujeito,
no âmbito da teoria do discurso, vincula inextricavelmente ideologia, sujeito e sentido.
A partir daí, a tese do “caráter material do sentido das palavras e dos enunciados”, tal como formulada
por Pêcheux, toma forma. Segundo o autor,
“o sentido de uma palavra , uma expressão, uma proposição, etc. não existe ‘em si mes-
mo’; ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo
sócio-histórico no qual as palavras, expressões, proposições, são produzidas... as palavras,
expressões, proposições, etc mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles
que as empregam, ... elas adquirem seu sentido em referência a essas posições ....
“...se uma mesma palavra, uma mesma expressão, uma mesma proposição podem receber
sentidos diferentes – todos igualmente ‘evidentes’ – conforme refiram esta ou aquela FD,
é porque elas não têm um sentido próprio, vinculado a sua literalidade . Ao contrário, seu
sentido se constitui em cada FD, nas relações que tais palavras , expressões, proposições
mantêm com outras palavras da mesma FD”. (PÊCHEUX, op. cit., p. 160-161)

A partir do que precede, pode-se entender porque Pêcheux entende que a FD é a matriz de sentido.
Ou seja: não só o sentido se constitui no âmbito de uma FD, mas também é no interior desta mesma
FD que são feitas as operações de paráfrase, de modo que o sentido vai se constituindo por diferentes
modos de dizer e redizer o mesmo. Ou seja: o sentido aí se produz e também se reproduz, mas, à força
de redizer o mesmo, acaba-se por introduzir no mesmo a possibilidade de produzir o diferente.
A ideologia em Bakhtin e em Pêcheux: uma breve comparação
Após esta passagem pelas teorias de Bakhtin e de Pêcheux, podemos verificar em que diferem estas
duas teorias, no que tange ao entrelaçamento da linguagem com a ideologia. De imediato, percebe-se
que as formulações de Pêcheux ganham um desenvolvimento teórico importante e bastante sustenta-
do, se comparadas às de Bakhtin. Em segundo lugar, constata-se que Pêcheux dispôs de uma teoria
de cunho marxista que havia pensado o sujeito e sua relação com a ideologia, o que ainda não estava
disponível à época de Bakhtin.
Mas, deixando de lado estes dois pontos, interessa apontar, como aproximação entre as duas teorias,
o desejo de entrelaçar ideologia e linguagem. E, como pontos divergentes, as diferentes pontes esta-
belecidas para esta trama: para Bakhtin, o signo; para Pêcheux, o sujeito. A partir daí, percebe-se que,
em Bakhtin, há uma superposição entre o ideológico, representado pelo signo, e a arena onde se dão os
embates, que também é o signo. Tudo fica colocado sobre o signo. Já em Pêcheux, vê-se o cuidado de
pensar o ideológico de forma independente da materialidade do ideológico, que é o discurso. Ou seja: o
discurso materializa o ideológico, mas não se confunde com ele.
Quanto ao sujeito, em Bakhtin, ele é um indivíduo que luta na arena do signo. Já, em Pêcheux, o
indivíduo é interpelado em sujeito e, a partir daí, se constitui em sujeito de seu discurso, identificando-
se com os saberes da FD em que seu discurso se inscreve e de onde retira os sentidos, os quais lhe
parecem evidentes, pelo efeito ideológico elementar. Ou seja: nessa teoria, o embate se dá, não na arena
do signo, mas na cena discursiva, constituída pelas diferentes FD que são mobilizadas pelos sujeitos em
confronto. E os sentidos entram em tensão pelo viés dos sujeitos que estão em confronto, por estarem
inscritos em FD diferentes, divergentes ou antagônicas. É daí que surge o embate. Vale dizer: disputam-
se sentidos. E o confronto entre os sujeitos ideológicos representa os diferentes litígios estabelecidos na

3 Este livro teve sua primeira edição em 1975.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 408


cena discursiva.. Esta é a grande diferença, em nível teórico, e levando em conta os conceitos que aqui
foram colocados em contato.
Quero ainda fazer uma última observação: em que pesem as diferenças observadas entre as duas
teorias, creio que ambas são produtivas. Em meu entender, a teoria de Bakhtin é fortemente produtiva
no exame do objeto literário, pois o exame da questão das condições de produção, nesta teoria, não
se apresenta com a mesma força que assume na análise no discurso social, enquanto que a teoria de
Pêcheux parece-me mais produtiva para o exame do discurso social, pois, para examinar este objeto, as
condições de produção vão certamente exigir um dispositivo de análise bastante refinado para proceder
à sua análise. Por outro lado, trabalhar o objeto literário à luz da teoria de Pêcheux é mais difícil, mas
não é impossível. Digo que é difícil porque
Em suma, abstraindo as diferenças acima apontadas, a comparação teórica destes dois estudiosos
é muito rica e ajuda a perceber que, em ambos, a ideologia é central e constitutiva da linguagem e, por
conseguinte, dos sentidos. Não é possível pensar em discurso sem considerar que este vem determi-
nado pelas condições de sua produção e que estas estão estreitamente relacionadas aos processos de
significação que nele se dão.

TEXTOS-CHAVE:
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec,
1981.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise & HAK,
Tony (org.). Por uma análise automática do discurso. Campinas, Ed. da UNICAMP,
1990.
PÊCHEUX, Michel & FUCHS, Catherine. In: GADET, Françoise & HAK, Tony (org.).
Por uma análise automática do discurso. Campinas, Ed. da UNICAMP, 1990.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Campinas, Ed. da UNICAMP, 1988.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São paulo, Cultrix,
1974.
NOMES-CHAVE: Ferdinand de Saussure, Bakhtin, Pêcheux
PALAVRAS-CHAVE: ideologia, signo, relações interindividuais, social, lugares
sociais, sujeito, interlocução discursiva
BIOGRAFIA RESUMIDA: Professora titular de Língua Portuguesa do Institu-
to de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua tanto na
graduação como na pós-graduação. Doutorou-se em Ciências da Linguagem pela
UNICAMP, em 1992. Trabalha com Análise do Discurso, ministrando aulas, orien-
tando, pesquisando e publicando à luz desta teoria. É autora do livro “A fala dos
quartéis e as outras vozes” (Ed. UNICAMP, Campinas, 1997); é co-organizadora
de “Os múltiplos territórios da Análise do Discurso” ( Sagra-Luzzatto, Porto Alegre,
1999) e de “Discurso, Memória, Identidade” ( Sagra-Luzzatto, Porto Alegre, 2000).
É autora de capítulos de livros e de inúmeros artigos. Sua pesquisa principal atual
tem como tema o “Discurso do/sobre o MST”, com vários artigos publicados.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 409


Uma abordagem educacional dialógica das teconologias
da comunicação e informação

Edson Jacinski

CEFET/PR – Unidade de Ponta Grossa

Tv. Luiz José da Silva, 55. CEP 84015-390 – Ponta Grossa – PR / Brasil

ejacinski@uol.com.br

Resumo
Este artigo pretende mostrar uma abordagem educacional dialógica das tecnologias da comunicação
e informação, explorando a concepção de linguagem do Círculo de Bakhtin, para pensá-las como novas
linguagens, representantes de uma interatividade emergente.
Nesse sentido, a introdução dessas tecnologias no contexto educacional é problemática, uma vez que
elas podem perturbar o processo pedagógico, fundado nos pressupostos iluministas da modernidade, o
qual limita a participação dialógica e pluridiscursiva dos sujeitos educacionais, levando a uma perspectiva
instrumental e reificada das tecnologias audiovisuais. Tais considerações trazem significativos elemen-
tos de reflexão no sentido de se redimensionar a perspectiva epistemológica e pedagógica das políticas
públicas de introdução das tecnologias da comunicação e informação no universo escolar.
Abstract
This article intends to show a dialogic educational approach of the information and communication
technologies, working the language conception of the Bakthin’s Circle, to think them as new languages,
representative of an emergent interactivity. In this way, the introduction of those technologies in the
educational context is problematic, because they can disturb the pedagogic process, founded on the
iluminist pressuppositions of the modernity, which limits the dialogical and pluridiscursive participation
of the educational subjects, leading to an instrumental and reified perspective of the audiovisual tech-
nologies. Such considerations bring significant reflexion elements in the sense of reconfigurating the
epistemological and pedagogic perspective of the public policies which aim an introducing the technologies
of communication and information in the school universe.

A emergência de uma cultura audiovisual, proporcionada pelo desenvolvimento tecnológico do século


XX, leva a repensar a intersubjetividade e o próprio conhecimento. Esse questionamento é crucial, uma
vez que as tecnologias audiovisuais (de informação e comunicação) – permitindo, em primeiro lugar, a
saturação da comunicação humana com a imagem e o audiovisual; e, em segundo lugar, a mixagem de
todas as linguagens – acabam por ter um significativo impacto sobre nossa sensibilidade, sobre nossos
modos de percepção do mundo e, por conseqüência, sobre nossas estratégias cognitivas, remetendo-
nos à intensificação do diálogo social, interconectando diversas camadas da subjetividade. Tal diálogo,
vale enfatizar, vem carregado de interesses e valores sociais contraditórios e nos remetem a um perene
embate discursivo e político. Assim, cada vez mais torna-se necessária uma perspectiva educacional que
possibilite uma navegação crítica, politizada e em constante negociação com essa erupção semiótica
digital. As abordagens pedagógicas tradicionais, fundadas predominantemente nos pressupostos ilumi-
nistas da modernidade, mostraram-se insuficientes ou empobrecedoras para pensar essa nova ecologia
cognitiva emergente.
Neste contexto, a abordagem dialógica de linguagem desenvolvida pelo Círculo de Bakhtin, anteci-
pando-se significativamente ao seu tempo epistêmico, contribui substancialmente para problematizar a
superprodução semiótica em expansão e a própria potencialidade interativa das tecnologias audiovisuais.
Nesse sentido, de um lado, essa abordagem resgata a complexidade (hetero)sóciossemiótica do mundo
interior, colocando em xeque teorias científicas totalizantes que pretendem prescrever soluções unilaterais
para as relações educacionais. De outro lado, auxilia para repensar o processo ensino-aprendizagem, o
conhecimento e o próprio ambiente educacional como entrecruzamento de vozes sociais que se proces-
sa em meio à circulação e à guerra de discursos heteroaxiológicos e heterocronotópicos, exigindo uma
permanente negociação de significados.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 410


A amplitude da concepção dialógica da linguagem veio mostrar que não há soluções extra-discursivas
e monológicas para as relações educacionais. As próprias tecnologias audiovisuais incorporam-se de tal
modo nas relações sociais e na subjetividade que não podem ser encaradas como meras ferramentas,
mas como novas linguagens ou novos modos de significar o mundo (JACINSKI & FARACO: 2002, p. 49).
Desse modo sua introdução no cenário escolar torna-se problemática, uma vez que elas vêm perturbar
o processo pedagógico, marcado pela tradição escolar expositiva, linear e acumulativa de um saber
enciclopédico de base escrita.
O advento das tecnologias da comunicação e informação vêm, de um lado, ampliar a relativização da
episteme moderna e sua racionalidade linear, baseada predominantemente na cultura oral e escrita e, de
outro, propiciar o advento de novas linguagens e sensibilidades que prenunciam um horizonte sócio-cul-
tural, que enseja um redimensionamento dos saberes, como enfatiza BARBERO (1999, pp.23-24): “ (...)
emerge ainda um novo projeto de saber, que questiona radicalmente o caráter monolítico e transmissível
do conhecimento, que revaloriza as práticas e as experiências, que ilumina um saber diversificado como
um mosaico: feito de objetos móveis e fronteiras difusas, de intertextualidades e bricolagens.”
Assim, essa cultura audiovisual emergente, acentuando a mixagem entre imagem, sons, escrita e
oralidade instaura um novo modo de compreender o mundo, como constatam BABIN e KOLOUMDJIAN
(1989). É necessário pensar essas novas tecnologias, portanto, a partir da linguagem audiovisual que se
constrói muito mais através do lúdico, do imaginário, do intuitivo e do não-linear, do que da racionalidade
e da linearidade da cultura escrita.
Na medida em que tal cultura digital, audiovisual, penetra todos os poros da sociedade pós-industrial,
o papel da escola e do educador precisa, sem dúvida, ser redimensionado, sob pena de se aprofundar a
dicotomia entre vida e escola. A presença dessas novas formas de comunicação e interação vem trazer
uma certa perturbação à escola, especialmente enquanto instituição submersa nos valores da moderni-
dade, que preconizam a primazia da cultura escrita, racional, linear e disciplinar. O audiovisual hipermi-
diático, com sua ludicidade, fragmentação, oniricidade já bastante presente na subjetividade das novas
gerações, vem colocar em xeque as práticas pedagógicas preconizadas pela episteme moderna, além de
alterar significativamente o próprio cronotopo escolar (1). Torna-se evidente que
está sendo construída uma nova relação entre a escolarização e a mídia [...] É que não se
trata apenas da crescente penetração da mídia no processo de escolarização, mas também,
de forma mais geral, da importância da mídia e da cultura da informação para a escolari-
zação e para formas cambiantes de currículo e de alfabetismo, com todos os problemas e
possibilidades daí decorrentes (GREEN; BIGUM,1995,p.214) .

A superprodução semiótica torna difícil uma ordenação tranqüila do conhecimento. Mais do que isso,
a idéia tradicional de um corpo de conhecimentos que propicie certas competências, de um curso, de
um diploma, são também colocadas em xeque. Esboça-se um novo ecossistema cognitivo, o qual ques-
tiona as concepções e práticas pedagógicas tradicionais, que enfatizam o aprendizado individual, linear,
seqüencial, disciplinar com relações hierárquicas, perspectiva apenas presencial, centramento cronotó-
pico do conhecimento, e aponta para novas concepções de aprendizado, não-linear, social, caótico, em
processo ininterrupto de construção.
Também é importante observar que a introdução dessas novas tecnologias no meio escolar pode ser
feita sem a devida problematização epistêmica , especialmente sobre a especificidade dessas novas
linguagens. Nesse sentido, é possível perceber uma tendência no sentido de se “moldar”, adaptar as
novas tecnologias aos processos tradicionais de ensino-aprendizagem. Ou seja, uma espécie de adestra-
mento das novas tecnologias aos fins tradicionais da educação, em que elas são utilizadas como meios
de tornar menos entediante o ensino confinado nas fronteiras da linguagem escrita (BARBERO, 1999,
p.28). Dessa forma, essa atitude defensiva acaba por desconsiderar o desafio epistêmico e cultural que
as novas tecnologias representam e a remeter o mundo audiovisual ao campo da diversão, alienação,
espetáculo ou da arte. Assim, o livro é percebido como único espaço possível para a reflexão, análise e
argumentação em meio à explosão sedutora e emotiva dos signos audiovisuais.
Como afirma BARBERO (1999, p.28), tal perspectiva enseja cada vez mais um distanciamento entre
o mundo e a escola. O livro, muitas vezes utilizado canonicamente, acaba sendo identificado pela po-
pulação como tarefa escolar distanciada da vida. A leitura e o ato de escrever, em vez de serem vistos
como atividades prazerosas e criativas, acabam sendo práticas castradoras, uma vez que o sistema
escolar acaba cobrando a reprodução ou máxima fidelidade à “hermenêutica oficial” , desconsiderando
o rico universo da cultura audiovisual na qual estão inseridos os alunos. É desnecessário dizer como os
sistemas avaliativos escolares reiteram tal prática. Por outro lado, também é possível imaginar como
os produtos audiovisuais podem ser transformados em artefatos reforçadores de tal prática. Ou seja,
produtos que vêm monologicamente estabelecer o que deve ser pensado, percebido e devolvido pelos
telespectadores passivos.
Assim, fica evidenciado que, mais do que nunca, há necessdade de problematizar-se a introdução das
novas tecnologias no universo educacional, interrogando-se até que ponto elas estão dispostas a travar
uma permanente negociação com essa nova ordem cognitiva e cultural.
Enfim, as tecnologias de comunicação e informação possibilitam novas formas de comunicação e inte-
ração social, numa dimensão planetária, sendo que não é mais possível pensar a subjetividade humana

Proceedings XI International Bakhtin Conference 411


alheia a esse novo cenário cultural. Nesse sentido, sem dúvida, torna-se importante perceber essa nova
linguagem, enquanto constituídora de uma nova subjetividade, nova episteme muito mais caleidoscópica
e labiríntica: pós-moderna .
Parece-nos, por conseguinte, que para buscar navegar nessa galáxia semiótica em erupção, torna-se
fundamental resgatar a perspectiva pós-moderna, que nos ajuda a repensar a subjetividade humana a
partir de uma nova concepção epistemológica da linguagem. Nesse sentido, podemos resgatar as dis-
cussões do Círculo de Bakhtin, o qual com uma nova percepção antropológica da linguagem, antecipou
muitas das questões levantadas pela pós-modernidade.
Desse modo, em que pese a abordagem bakhtiniana ter se detido mais especificamente no signo
verbal, sua teoria do signo, sua filosofia da alteridade e sua incursão no campo da criação estética podem
nos fornecer importantes subsídios para compreender alguns aspectos dessa nova cultura em ebulição
e suas implicações para o campo educacional.
A linguagem verbo-audiovisual numa perspectiva dialógica
Ao falarmos da linguagem verbo-audiovisual nos defrontamos com um fenômeno recente, possibilitado
pelo advento das novas tecnologias da comunicação e informação. Em nenhum momento de sua histó-
ria o ser humano se deparou com a possibilidade de mixar num mesmo cronotopo diversas linguagens,
num meio eletrônico que se desvincula da materialidade que os outros artefatos semióticos propicia-
vam. Multiplicam-se, assim, as mediações e intermediações semióticas do conhecimento e as formas
de interação social: “a integração potencial de texto, imagens e sons no mesmo sistema – interagindo
a partir de pontos múltiplos, no tempo escolhido(real ou atrasado) em uma rede global, em condições
de acesso aberto e de preço acessível – muda de forma fundamental o caráter da comunicação” (CAS-
TELLS, 1999,p.354).
Primeiramente, torna-se necessário dizer que a produção semiótica do ser humano sempre esteve
ligada ao seu caráter social e interativo. Nascemos como sujeitos socialmente organizados na corrente de
um diálogo anterior e exterior a nós. A riqueza da experiência e atividade humana desenvolveu diversas
formas de comunicação semiótica que trazem a especificidade e pluralidade de linguagens materializadas
em diversas manifestações do campo da criação cultural: a produção sonora, musical,verbal, gestual, a
atividade pictórica- visual, a produção textual escrita e impressa e, enfim, os próprios objetos e artefatos
do cotidiano, que passam a ter um significado semiótico (BAKHTIN, 1997a, p32).
Entre os vários signos que circulam no processo interativo, sem dúvida, a palavra tornou-se a principal
referência semiótica que sempre acaba acompanhando os outros signos, apesar de não os substituir,
seja por sua “pureza semiótica, sua neutralidade ideológica, sua implicação na comunicação humana
ordinária, sua possibilidade de interiorização e, finalmente, sua presença obrigatória, como fenômeno
acompanhante, em todo ato consciente”. (BAKHTIN, 1997a, p38). Tal constatação nos remete a entender
o contínuo entrecruzamento e interface das diversas linguagens, em que pese sua especificidade e até
uma certa predominância de algumas em determinados contextos sociais e históricos.
Podemos, nesse sentido, afirmar que os diferentes tipos de signos que irão constituir, ampliar, modi-
ficar a consciência humana – aqui entendida como complexo campo semiótico de entrecruzamento de
interesses, desejos, memória, imaginação, emoção, racionalidade - e materializar o campo da criação
cultural estão sempre relacionados à situação e horizonte social no qual estão inseridos os grupos humanos.
Desse modo, eles são heterocronotópicos e heteroaxiológicos, polissêmicos; ou seja, estão carregados
de diferentes valores, temporalidades, espaços e significados vinculados aos diversos grupos humanos,
suas práticas, tradições, crenças, etc. Nessa ótica, cada linguagem é gestada coletivamente , carrega
formas de recorte do real, de seleção de seus aspectos, de ponto de vista, de perspectiva, de modo
social e cultural de olhar o mundo. Dessa forma, cabe reconhecer como o mundo da criação ideológica
é também o espaço da luta “em torno de significados, identidades e narrativas”(GIROUX, 1995,p.145).
Mais do que isto, as diferentes linguagens trazem consigo diferentes possibilidades interativas , comu-
nicacionais e epistemológicas. Assim, podemos constatar com LÉVY (1993,p.77). “numa sociedade oral
primária, quase todo o edifício cultural está fundado sobre as lembranças dos indivíduos. A inteligência,
nestas sociedades, encontra-se muitas vezes identificada com a memória, sobretudo com a auditiviva”.
Memória que também é constituída por imagens que irão se materializar nas linguagens pictóricas que
antecedem a linguagem escrita. Esta, por sua vez, irá possibilitar outra forma de percepção do tempo e
do espaço: “tratava-se de transcodificar o tempo circular em linear, traduzir cenas em processos. Surge
assim a consciência histórica” (FLUSSER, 1985,p.15).
É dessa maneira que podemos perceber a importância dos signos e das linguagens na constituição da
subjetividade humana, formada pela circulação e entrecruzamento dos diversos signos, discursos, textos
e vozes sociais que irão remeter a formas culturais específicas de organização social, política, econômica,
religiosa, etc. Assim, cabe destacar a atuação das forças sociais centrífugas e centrípetas que interagem
no sentido de fixar a estabilização e hierarquia de determinados signos e seu significados, cristalizados
em determinadas criações do campo cultural. Ou seja, qualquer produção cultural vinculada às diversas
linguagens está relacionada ao contexto social e político e reflete sua densidade e tensão dialógica.
Desse modo, podemos afirmar que as diferentes linguagens entrecruzam-se, seja complemen-
tando-se, discordando, questionando-se e duelando entre si :

Proceedings XI International Bakhtin Conference 412


a nova ordem alfabética, embora permitisse o discurso racional, separava a comunicação
escrita do sistema audiovisual de símbolos e percepções, tão importantes para a expressão
plena da mente humana. Ao estabelecer - implícita e explicitamente – uma hierarquia social
entre a cultura alfabetizada e a expressão audiovisual, o preço pago pela adoção da prática
humana do discurso escrito foi relegar o mundo dos sons e imagens aos bastidores das
artes, que lidam com o domínio privado das emoções e com o mundo público da liturgia”
Sem dúvida, a cultura audiovisual teve sua revanche histórica no século XX, em primeiro
lugar com o filme e o rádio, depois com a televisão, superando a influência da comunicação
escrita nos corações e almas da maioria das pessoas...(CASTELLS, 1999, p. 353)

Assim , de um lado, podemos perceber que a convivência heterosóciosemiótica entre linguagem


escrita e visual nem sempre ocorreu de forma pacífica e harmônica: “a luta da escrita contra a imagem,
da consciência histórica contra a consciência mágica(...) A relação texto-imagem é fundamental para
a compreensão da história do Ocidente. Na Idade Média, assume a forma de luta entre o cristianismo
textual e o paganismo imaginístico; na Idade Moderna, luta entre a ciência textual e as ideologias ima-
ginísticas” ( FLUSSER 1985,p.16).
Alguns campos da criação cultural, especialmente na perspectiva da episteme moderna , privilegiaram
algumas dessas linguagens, o que acaba restrigindo a diversidade e riqueza da subjetividade humana:
“a ciência moderna, ao desautorizar a credibilidade da experiência tradicional, instaurou a fragmentação
entre o racional e o sensível, levando à exclusão da imaginação dos limites da experiência e ocasionando
um irremediável empobrecimento das formas de se chegar ao conhecimento” (JOBIM E SOUZA,1995,p.
146).
A perspectiva dialógica da linguagem audiovisual, ao contrário, deve nos remeter à compreensão das
diferentes formas de representação do real, que nos levam a diferentes textos e movem diferentes áreas
da sensibilidade e experiência humana: seja a imaginação, a memória, a racionalidade,etc.
Por outro lado, é importante perceber que a interface entre as várias linguagens, mesmo conflituosa,
não representa completa hegemonia de uma ou outra mas sim um interfaceamento contraditório, sensível
às forças sociais em ebulição. Assim , é necessário constatar que essa tensa e densa convivência das
diversas linguagens , não deve nos levar a pensá-las como incompatíveis, dicotômicas ou, ainda numa
perspectiva semiótica darwiniana, em que o advento de uma forma de linguagem levaria à eliminação
de outra. Ou seja, não podemos prescindir de qualquer de uma das formas de linguagem.
Nesse sentido é possível perceber, por exemplo, como passamos de, num primeiro momento, um
cristianismo textual, iconoclasta, para uma religiosidade verbo-audiovisual, onde as imagens vieram
cumprir um importante papel na “propagação da fé cristã “ numa sociedade iletrada e carregada de uma
cultura visual (DEBRAY, 1993). Essa constatação, no entanto, nos remete a uma percepção por demais
monológica da linguagem visual e nos leva a desconsiderar a “guerra de imagens” que se travou em
diversos contextos históricos e sociais:
Falar de imagens na América Latina significa falar de uma longa e singular batalha cultura.
Serge Gruzinski pergunta como poderíamos compreender o descobrimento e a conquista,
a colonização e a independência do Novo Mundo sem mencionar a guerra de imagens que
todos esses processo mobilizaram? Como poderíamos compreender as estratégias do domi-
nador ou as tática de resistência dos povos indígenas, desde Cortés até a guerrilha zapatista,
da instauração dos povoados zimarrones até o barroco do carnaval carioca, sem refazer
a história que nos leva da imagem didática franscana do Século 16 ao maneirsmo heróico
das imagens das independências, ou do caráter didático do muralismo à imagem eletrônica
da telenovela? Como penetrar nas oscilações e na alquimia das identidades sem auscultar
a mistura de imagens e imaginários com que os povos vencidos plamaram sua memória e
inventaram uma história própria? (BARBERO, 1999, p.31)

Também o próprio desenvolvimento científico que, no início da Modernidade, relegara a linguagem


visual e (também sonora) a um segundo plano, vem possibilitar o seu “retorno”, agora mediado pelas
tecnologias modernas da imagem: fotografia, cinema, vídeo.
O retorno “tecnológico” da imagem (e do som), deu-se num contexto cientificista e positivista(vinculado
à filosofia da consciência) , em que, com a descoberta da fotografia se imaginou que “podíamos então
segurar o tempo e , literalmente, carpe diem (segurar o dia), ou melhor, a hora – ainda melhor, o se-
gundo, capturando a essência do momento, livre da interpretação por demais humana da pintura e da
escultura” (LE GRAND, 1997, p. 285). Nessa perspectiva , as imagens técnicas e os sons se apresentam
como transparentes e capazes de realizar a pretensão mimética perseguida pela arte clássica: a repro-
dução mais fiel possível da realidade, a perseguição inelutável da verossimilhança. Nesse sentido, elas
buscam impor-se monologicamente como definitivas mostras do real e do próprio virtual.
No entanto, paradoxalmente, o próprio desenvolvimento científico e tecnológico se encarregou de
mostrar a impossibilidade dessa pretensão positivista de conhecer e reproduzir o real: seja quebrando o
paradigma do observador neutro frente a realidade e, mais especificamente, mostrando como a própria
tecnologia audiovisual torna-se mediadora e interpretadora do mundo a ser “registrado”:
Quase um século antes, os analistas haviam observado que a iluminação, o cenário, a

Proceedings XI International Bakhtin Conference 413


exposição, desenvolvimento e técnica geralmente introduzem uma tal gama de variáveis e
escolhas no processo fotográfico que a interpretação é inevitável, fazendo dela uma forma
legítima de criação. O fotógrafo escolhe apenas uma entre múltiplas realidades, capturando
em alguns casos momentos tão fugidios e vistas tão temporárias que o resultado só poderia
ser chamado de ficção ou poesia (LE GRAND, 1997, p. 286)

Para entender essa perspectiva é necessário compreender a imagem no contexto da produção


heterosóciosemiótica que se materializa sobre diferentes suportes que refletem e refratam a realidade
, ou seja, que também se revestem de um caráter semiótico, o qual deve ser pensado na perspectiva
dialógica, bilateral. Isso nos leva pensar essas novas tecnologias enquanto linguagem – tópico que
abordaremos melhor mais adiante.
Um aspecto que nos parece importante, para entender o significado da emergência do audiovisual na
nossa cultura, é compreender sua dimensão estética que resgata aspectos da complexidade do mundo
interior que a cultura de Gutemberg (CASTELLS, 1999, p.355) , baseada na linearidade do texto escrito,
pretendeu disciplinar . Em que pese a especificidade da dimensão estética no mundo da criação cultural,
esta não pode ser compreendida isoladamente:
Não há território interior no domínio cultural: ele está inteiramente situado sobre fronteiras,
fronteiras que passam por todo lugar, através de cada momento seu, e a unidade sistemá-
tica da cultura se estende aos átomos da vida cultural, como o sol se reflete em cada gota.
Todo ato cultural vive por essência sobre fronteiras: nisso está sua seriedade e importância;
abstraído da fronteira ele perde terreno , torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre
(BAKHTIN, 1998, p. 29)

Dentre as várias linguagens e interação nessa nova cultura, a imagem passa a ser percebida como
fundamental no contexto da produção das novas tecnologias: “Nossa era [...] apareceu com meios e tec-
nologias sem precedentes para reproduzir imagens” (LE GRAND, 1997, p.288) . Nesse sentido, é preciso
buscar resgatar sua especificidade para entender sua presença e interface nesse universo semiótico em
ebulição. Um aspecto importante a ser percebido é entender a força semiótica das imagens , atuando
no nosso modo de perceber o mundo :
imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre
mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O
homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função
de imagens. Não mais decifra as cenas das imagens como significados do mundo, mas o
próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas (FLUSSER, 1985, p.15).

Dessa forma, é que se torna necessário resgatar a dimensão interativa e dialógica dos signos visuais.
Eles não são reprodução ou cópia do real, e sim passam pelo processo de criação que, por sua vez, não
é individual, solitário, neutro, mecânico. Como diria LE GRAND (1997,p.289):
um trabalho de arte ‘funciona’ quando ele se distancia de nós, quando as definições não
são suficientes, quando nós não sabemos o que está acontencendo[...] Exatamente como o
mundo, a vida ou a natureza, a arte não é o lugar seguro, firme e estável que o positivismo
nos fez acreditar que era[...] ‘A verdade é apenas um momento de erro’, escreveu Mao-Ze-
Dong[...] Paradoxo, tensão e contradição são a própria base da arte.O bizarro, o estranho, o
misterioso são fontes de vida, a outra dimensão que torna o mundo vivo e capaz de sacudir
nossa estrutura mental cartesiana”.

A abordagem estética tradicional ligada aos pressupostos epistemológicos da modernidade que privile-
giam o aspecto individual do processo criativo e o papel meramente passivo dos leitores-contempladores
,acaba por estabelecer uma visão monológica da arte, além de priorizar o material e o objeto artístico
em detrimento do processo.
Tal abordagem é colocada em xeque com o advento das novas mídias, da linguagem audiovisual, da
chamada “arte eletrônica” (KAC,1999,p.1) e da pós-modernidade (HAYNES, 1995,p.161).
A estética dialógica vem, nesse sentido, oferecer um outro modo de se perceber a dimensão artísti-
ca: o evento estético pressupõe sempre a interação de, pelo menos, duas consciências distintas. Isso,
sem dúvida requer uma outra política de representação, que privilegie a alteridade e inclua as vozes e
sensibilidades múltiplas e variadas dos diversos grupos sociais e culturais. Assim, enfatiza-se sobretudo
o aspecto processual, coletivo e social: “a verdadeira noção central da pesquisa estética não deve ser
o material, mas a arquitetônica, ou a construção, ou a estrutura da obra, entendida como um ponte de
encontro e de interação entre material, forma e conteúdo” (BAKHTIN, 1997b,p.21).Tal ênfase torna-se
importante , ao perceber-se as novas potencialidades trazidas pelas novas mídias
In this scenario, images (and objects) become one among many elements in the elaboration
of dialogic situations. Visual dialogues, for example, imply the exchange and manipulation
of images in real time. In this case, we no longer speak of space as form, but instead con-
centrate on the time of formation and transformation of the image—as in speech. This, of
course, demands a revision of the most entrenched convictions of what art is, from its material

Proceedings XI International Bakhtin Conference 414


base and predominant ocularcentrism to its unilateral reception, semiological negotiation,
distribution logic, and social meaning (KAC, 1999,p.2 )

Nesse novo contexto, muitas das noções estéticas tradicionais – que apontam para uma perspectiva
narcísica, individual e auto-referente (monológicas) - precisarão ser repensadas:
We are no longer contemplating the notion of the artist as the individual who works in iso-
lation and who provides us, the audience, with a personal vision of an idea or emotion as
embodied in a rigid material composition in a system of time deferral. This model, which
affirms the primacy of individuality, simply does not have the power to suggest alternatives
to unidirectional and conventional modes of thinking and perception. It is too far remo-
ved from the reality of a networked world in a global economy. A corollary is the notion of
“expression” in art, another outmoded and anachronistic concept. It is based on the belief
that a self-centered individual has the need (and particular skills) to externalize emotions
and inner visions. This assumes that the “individual” is a discrete psychological entity and
not a dialogical subject in perpetual negotiation with others. Everyone has emotional and
cognitive needs, but it is gravely fallacious to assume that these needs and the commercial
objects that result from their “expression” are the only mode of artistic thinking deserving of
consideration. Or, as Suzi Gablik so poignantly put it: “Modernist aesthetics, concerned with
itself as the chief source of value, did not inspire creative participation; rather, it encouraged
distancing and depreciation of the Other. (KAC, 1999,p.4 )

Nesse sentido, Kac (1999, p.8) enfatiza que as artes visuais tradicionais são monológicas porque ofe-
recem formas finitas e unidirecionais de significação, além de demandar um leitor, contemplador passivo.
Tal perspectiva, fundada na filosofia da consciência, desconsidera a dimensão intersubjetiva e relacional
do existir humano e da sua dimensão estética, considerando ou ouvinte,leitor, expectador como passivo.
Contrapondo-se a essa idéia de passividade, Bakhtin, enfatizando a dialogicidade interna do discurso,
vem nos mostrar como ao penetramos na corrente da língua nos tornamos participantes ativos de um
“meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem”(BAKHTIN,1998,p.86). Assim a com-
preensão nos remete a posicionarmo-nos enquanto participantes ativos, responsivos desse diálogo social:
“compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra “(BAKHTIN,1997a , p.132). Nesse sentido,
nenhum material semiótico fala por si próprio: sua significação sucede-se intersubjetivamente: “é como
uma faísca elétrica que só se produz quando há contato dos dois pólos opostos”(BAKHTIN,1997a,p.132).
Assim, a compreensão não se reduz apenas ao seu aspecto passivo que seria apenas:
um momento abstrato[...]Permanecendo puramente passiva, receptiva, não trazendo nada
de novo para a compreensão do discurso, ela apenas o dubla,visando, no máximo, a repro-
dução completa daquilo que foi dado de antemão num discurso já compreendido: ela não vai
além do limite do seu contexto e não enriquece aquilo que foi compreendido.[...] Com efeito,
essas exigências da compreensão passiva[...] deixam o falante em seu próprio contexto, em
seu próprio círculo, sem faze-lo sair dos seus limites (BAKHTIN,1998, p.90).

Tal percepção da dialogicidade interna da linguagem nos leva a desconstruir a idéia do gênio isolado,
iluminado nos mostrando um lado absolutamente novo de um objeto, através da sua obra, o que deman-
daria uma atitude meramente passiva, “boquiaberta”, dos “receptores”. Essa tentativa que ambiciona o
retorno à consciência primitiva, à sensação pura materializou-se em alguns movimentos estéticos como
o naturalismo, impressionismo, dadaísmo e surrealismo, dentre outros (BAKHTIN, 1998,p.86)
Em contraposição a abordagem monológica da arte, iremos assistir à perspectiva que preconiza a
co-autoria, participação e intervenção do público na obra de arte:
A obra não é mais fechada sobre si mesma, fixa no seu acabamento, ela ‘se abre’. O tempo
da criação da obra e o tempo em que ela se dá a ver – o tempo de sua socialização – ten-
dem a se sincronizar. O gênio, termo romântico que cessa de ter existência, não é mais um
relógio que se adianta em relação ao momento da comunidade cultural. O artista delega ao
observador uma parte de sua responsabilidade de autor(COUCHOT, 1997,p. 137)

Tal perspectiva, preconizada pelos movimentos estéticos participacionistas dos anos sessenta (COU-
CHOT,1997, p.137) intensificam-se e ampliam-se com as novas mídias , especialmente as redes de
computadores(o que analisaremos com mais vagar na seqüência).
Além disso, há o advento da tecnologia do numérico, das relações do homem com a máquina, da
arte com a tecno-ciência. Relações essas que necessitam e devem ser problematizadas , uma vez que
cada vez mais a arte utiliza materiais “abstratos, altamente formalizados, constituídos por programas
informáticos[...] elaborados a partir de modelos tomados emprestados do domínio da ciência(da física
às ciências cognitivas e da vida, passando pelas matemáticas”( COUCHOT,1997, p.139). Isto pode acon-
tecer , na medida em que os artistas busquem um trabalho em parceria no universo das competências
tecnológicas(MACHADO, 1999,p.8). Parceria que requer uma capacidade de trabalho coletivo, negociação
de significados permanente e , enfim, o entrecruzamento produtivo, imprevisível dos diversos discursos
e competências em jogo. Nesse contexto, cada vez mais a arte deixa de ser trabalho individual, fruto de
um gênio para se transmutar em trabalho coletivo e interacional.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 415


Tecnologias audiovisuais como linguagem
Um modo tradicional de encarar as tecnologias de comunicação é no sentido de apresentá-las a partir
de uma perspectiva monológica que a concebe como um meio de comunicação produzido unilateralmente,
a partir do conhecimento científico e tecnológico, cuja efetivação se dá quase exclusivamente a partir
de emissores centralizados e receptores passivos. Tal perspectiva não consegue captar a plasticidade,
flexibilidade e interatividade dessas novas tecnologias.
Dessa forma, abordar essas novas tecnologias da comunicação e informação, especialmente vídeo,
televisão e computador numa perspectiva dialógica, leva-nos a percebê-las enquanto atividade humana
múltipla e interativa em constante processo de transformação. Ou seja, sob essa ótica, as tecnologias
não existem em um vazio e nem podem ser consideradas meros produtos ou ferramentas, ou “meios de
comunicação” que se moldam às necessidades ou objetivos, predeterminados por um sujeito racional
ou por uma “razão instrumental”. Elas precisam ser percebidas a partir da sua imersão na corrente
comunicativa humana, que enseja o entrecruzamento de diversos horizontes sociais.
É impossível separar o humano de seu ambiente material, assim como dos signos e das
imagens por meio dos quais ele atribui sentido à vida e ao mundo. Da mesma forma, não
podemos separar o mundo material – e menos ainda sua parte artificial – das idéias por meio
das quais os objetos técnicos são concebidos e utilizados, nem dos humanos que os inventam,
produzem e utilizam. Acrescentemos, enfim, que as imagens, as palavras, as construções
de linguagem entranham-se nas almas humanas, fornecem meios e razões de viver aos
homens e suas instituições, são recicladas por grupos organizados e instrumentalizados,
como também por circuitos de comunicação e memórias artificiais (LÉVY, 1999, p.22)

Assim “ao gerar significação, a tecnologia como linguagem passa a dar determinados sentidos para
as ações dos agentes sociais (passa a ser uma espécie de cimento semiótico dessas ações), bem como
cria condições para retecer as malhas das relações de poder” (FARACO, 1998, p.8). Nesse sentido, as
tecnologias audiovisuais constituem um lócus de diferentes atividades humanas – científica, técnica,
econômica, política, etc. – e gêneros discursivos que se interpenetram e produzem significativos efeitos
semióticos, cronotópicos nas diversas comunidades em que se materializam. Não é, pois, possível pen-
sar em neutralidade tecnológica. As tecnologias, como atividade humana carregada de valores, geram
significados e inserem-se como elementos atuantes nos grupos sociais, travando um encontro produtivo
com as diversas axiologias, temporalidades e epistemes
Dessa forma, o cronotopo digital vem potencializar o encontro multifocal e heteroglótico de diversos
signos, linguagens, sensibilidades, que passam a atuar na constituição da subjetividade humana. Por
outro lado, as novas tecnologias da comunicação irão potencializar muito mais o aspecto relacional do
ser humano, em que pese, muitas vezes, continuarem a ser sub-utilizados, do ponto de vista interativo
e dialógico. Trata-se, assim, de se buscar uma outra abordagem que supere formas monológicas e uni-
laterais de comunicação.
Além disso, a concepção dialógica de linguagem ajuda a vislumbrar melhor a potencialidade intera-
tiva das tecnologias audiovisuais, seja colocando em xeque a exploração monológica de interatividade
verbo-audiovisual, desenvolvida pelas mídias tradicionais, seja levando a trabalhar a interatividade
na perspectiva da co-autoria, em que os espectadores/usuários atuam como autores, com possibilidade
de intervenção na obra digital e não no papel tradicional de contempladores passivos.
É necessário constatar que interatividade e dialogismo nos meios eletrônicos nem sempre são práticas
coincidentes, como observa MACHADO (1997, p.144). Como já mencionamos anteriormente, a perspectiva
dialógica requer que redimensionemos nossa concepção de subjetividade e experiência humana. Não se
trata apenas de um novo parâmetro estético, mas sim de uma filosofia social, ética e política. MACHADO
(1997, p.145), ao comentar Raymond Willians, pondera que para ele a interatividade implicava numa
outra idéia, diferente dos termos emissor e receptor, mais estimulante de “agentes intercomunicadores”,
capazes de resposta autônoma , criativa e não prevista em audiência.
Como observa KAC, o princípio dialógico está profundamente arraigado na realidade social da cons-
ciência, do pensamento e da comunicação. É na intersubjetividade que o ser humano se constrói; os
significados não são estabelecidos aprioristicamente e sim interacionalmente, como respostas a situações
e horizontes sociais e culturais específicos, de forma provisória e sempre aberta a novas possibilidades
semânticas. Requer, assim o uso multi-direcional das novas mídias e a criação de situações que possam
promover experiência de trocas intersubjetivas entre diferentes indivíduos.
O advento da televisão, sem dúvida, representou uma revolução no campo comunicacional , incor-
porando-se ao cotidiano das diversas comunidades e fazendo emergir uma cultura midiática. Contudo,
em que pese sua organização emissiva-tecnológica ser predominantemente unilateral e monológica, o
processo comunicacional é extremamente rico e complexo, e não pode ser reduzido a categorias totali-
zantes e simplificadoras como emissão e recepção, cultura de massa, etc. Além disso, podemos dizer com
(CASTELLS,1999,p.362-365)que, a partir da década de 80, as novas tecnologias alteraram significativa-
mente o mundo da mídia, privilegiando a diversidade e complexidade da sua audiência e, mais que isto,
ampliaram a possibilidade de telespectadores ativos e produtores locais da linguagem audiovisual :
Jornais foram escritos, editados e impressos à distância, permitindo edições simultâneas

Proceedings XI International Bakhtin Conference 416


do mesmo jornal sob medida para várias áreas importantes[...] Os aparelhos tipo walkman
transformaram a seleção pessoal de música em um ambiente de áudio portátil[...] O rádio
foi se especializando cada vez mais, com estações temáticas e subtemáticas[...] Os vide-
ocassetes explodiram em todo o mundo e tornaram-se, em muitos países em desenvolvi-
mento, importante alternativa à enfadonha programação da televisão oficial[...] As pessoas
começaram a filmar seus eventos, de férias a comemorações familiares, assim produzindo as
próprias imagens, além do álbum fotográfico[...] Em muitos países, da Andaluzia ao sul da
Índia, a tecnologia de vídeo da comunidade local permitiu o surgimento da transmissão local
rudimentar[...] O desenvolvimento das tecnologias de televisão a cabo – a ser promovido
na década de 90 pela fibra ótica e pela digitalização – e o progresso da difusão direta pro
satélite expandiram drasticamente o espectro da transmissão e pressionaram as autoridades
para desregularem as comunicações em geral e a televisão em particular

Claro que tal diversificação não implica, como assinala CASTELLS (1999,p.365), “perda de controle da
televisão pelos principais empresas e governos. Na verdade, tendência oposta é que tem sido observada
ao longo da última década. Os investimento têm sido muito generosos no campo das comunicações com
a formação de megagrupos e alianças estratégicas para conseguir fatias de um mercado em completa
transformação” . De qualquer forma, tal passeio pelas inovações tecnológicas das novas mídias de comu-
nicação ajudam a perceber que, embora haja a reiteração de mecanismos de controle das novas mídias,
a efervescência dialógica e interativa da atividade humana não se curva às tentativas monológicas de
fechamento e restrição do processo comunicativo.
Por seu turno, a informática irá colocar um aporte técnico diferenciado para a discussão sobre inte-
ratividade:
As memórias de acesso aleatório dos computadores, bem como os dispoisitvos de armaze-
namentos não lineares(...)possibilitam uma recuperação interativa dos dados armazenados,
ou seja, eles permitem que o processo de leitura seja cumprido como um percurso, definido
pelo leitor-operador, ao longo de um universo textual onde todos os elementos são dados de
forma simultânea(...) A ‘obra’ agora se realiza exclusivamente no ato de leitura e em cada um
desses atos ela assume uma forma diferente, embora, no limite, inscrita no potencial dado
pelo algoritmo(...) o leitor recupera(tal como nos primórdios da narrativa oral transmitida
boca a boca) o seu papel fundante como co-criador e contribui decididamente para realizar
a obra...(MACHADO, 1997, pp.145-146)

Mais ainda, especificamente a hipermídia, possibilita uma melhor expressão para as inúmeras e
complexas associações e interações dos signos verbo-audiovisuais que ocorrem em nossa consciência
e imaginação. Além disso, possibilita resgatar o “processo genético” rico, contraditório e plural da con-
fecção textual e explorar as virtualidades inexploradas da obra. Isso leva MACHADO (1997, p.149) a
utilizar, para a hipermídia, a metáfora do labirinto, em que o que conta não é buscar “o caminho”, mas
percorrer e explorar o maior número possível de novos trajetos. Além disso, a própria leitura
provoca um efeito real sobre a imagem. E é também a imagem – cúmulo do paradoxo
– que, na medida em que é indissociável dos processos computacionais, olha o observador,
lê sua leitura. O termos observador ou espectador é ainda mais inadequado. A participação
do espectador transforma-o em ator em autor, cujas capacidades imaginativas e criativas
podem se revelar de uma complexidade, de uma riqueza notáveis, sem lhe proibir nem a
contemplação nem a meditação (COUCHOT, 1997, p.142)

Também cabe ressaltar a diferença entre “dispositivos interativos fechados ou autônomos(off-line) e


os dispositivos abertos ou interconectados(on line). Cumpre examinar, que pensando a arte do século XXI,
COUCHOT vislumbra a potencialidade dos dispositivos abertos, interconectados em rede. Estes possibilitam
uma interação diferenciada, não só entre a obra e o espectador, mas também entre a coletividade dos
espectadores, através da obras: “nas situações mais representativas, a participação do espectador que
se faz sob forma de gestos, de textos, de imagens(e eventualmente de sons) se inscreve na memória
da obra cuja identidade muda e evolui constantemente, em torno de um núcleo preconcebido pelo autor
que lhe assegura uma coerência e continuidade”(COUCHOT,1997,p.139)
Podemos ainda perceber como começam a ser transformados os modos de aprendizado, na medida
em que , na medida em que “as novas condições de acesso à informação oferecida pela interatividade
(imersão, navegação, exploração, conversação,etc.) privilegiam um visual enriquecido e ‘recorporalizado’,
fortemente sinestésico, em detrimento de um visual retiniano(linear e seqüencial) e recompõem uma
outra hierarquia do sensível ”(COUCHOT,1997,p.139).
Enfim, é necessário perceber as potencialidades interativas e sobretudo dialógicas que as tecnologias
digitais, especificamente os computadores em rede, propiciam. Potencialidades que, no entanto, não se
efetivam automaticamente, ainda mais se buscarmos pensar essas novas tecnologias no meio escolar.
Esse ainda é um cronotopo em que o discurso monológico está fortemente arraigado. Porém, por outro
lado, a abordagem dialógica da tecnologia digital nos mostra a riqueza a ser explorada na utilização das
novas mídias no processo educacional. As concepções de co-autoria, aprendizado não-linear, interativo,
complexo e labiríntico, sem dúvida , levam-nos a pensar num outro tipo de escola, aluno, professor e

Proceedings XI International Bakhtin Conference 417


conhecimento. As mudanças prenunciadas por essa ecologia cognitiva emergente podem ser melhor
percebidas com as questões transdisciplinares trabalhadas pelo Circulo de Bakhtin. Exigem, no entan-
to, o redimensionamento epistemológico e político de um espaço marcado pela hegemonia das forças
sociais centrípetas.
Desafios educacionais das tecnologias audiovisuais
Pensar a cultura audiovisual no contexto educacional nos remete ao complexo campo da atividade
humana que constrói-se discursivamente, incorporando a diversidade e fluidez da experiência humana.
As novas tecnologias participam efetivamente desse diálogo intermitente, plurivocal, reincorporando e
realçando a presença dos signos audiovisuais, que recuperam a ludicidade , emotividade do discurso
estético e nos remetem a uma outra (des) ordem cognitiva.
Nesse sentido, podemos afirmar que sua presença já acontece no universo escolar, independente da
presença de equipamentos. Ou seja as tecnologias já agem e pensam em nós, redimensionando nossas
capacidades cognitivas e comunicacionais. E, dessa forma, estão a exigir uma nova prática política-
pedagógica mais dialógica , em que a ênfase se dirija à interatividade enquanto palco da negociação
permanente de significados , gestados pela diversidade da experiência dos sujeitos educacionais . Nesse
novo ambiente os conhecimentos, informações sempre precisam ser problematizados e ressignificados.
Não existe mais uma inteligência iluminada a nos mostrar o verdadeiro caminho; o conhecimento se
produz discursivamente e em processo de co-autoria.
Contudo, a episteme que dinamiza a escola tradicional consegue, ainda que precariamente , delimitar
seu espaço fronteiriço linear, racionalista e cientificista. Nesse sentido, busca-se superar o caos discursi-
vo, textual, audiovisual propiciado pelas novas tecnologias, através do seu enquadramento , seja físico,
cognitivo,etc. nos fins racionalmente previstos e pré-estabelecidos. Como salienta BOSI (1992,p.351)
“a informatização surge então como remédio para aliviar a sensação de caos que a sarabanda de men-
sagens acorda até no mais glutão dos leitores”.
O caráter interativo e “transdisciplinar” (ABREU JR, 1996) das novas tecnologias nos leva a considerar
que sua presença enseja a erupção de uma nova cultura, midiática, audiovisual, onde se navega num
cenário povoado por múltiplos e contraditórios textos verbo-audiovisuais que interagem (concordan-
do,discordando, interpenetrando-se numa dinâmica incessante), remetendo a uma outra episteme, mais
dialógica e aberta à diversidade.
Os sujeitos educacionais já vivem na cultura midiática ,que vem redimensionar sua subjetividade, os
modos de perceber, comunicar-se, aprender e ensinar. Estamos, enfim, diante de um “novo estudante,
com novas necessidades e novas capacidades” (GREEN; BIGUM, 1995, p.209). A escola, até então, tem
permanecido isolada ou distante desse mundo audiovisual. A admissão desses problemas e da diver-
sidade desse novo universo escolar, iria exigir provavelmente rupturas significativas com a forma de
concepção, estruturação e implementação das tecnologias audiovisuais na escola (3) e, mais do que isso
uma mudança epistemológica.
É evidente que tal crítica não pretende desmerecer o conhecimento científico e tecnológico, ainda mais
num país carente de investimentos nessa área. O que é problemático é a naturalização dos conhecimen-
tos científicos e tecnológicos, numa perspectiva linear e instrumental. Essa abordagem omite o caráter
discursivo, axiológico e político dos conhecimentos em geral e conduz a uma pedagogia monológica que
determina o que deve ser aprendido e quais significados podem ser admitidos.
Desse modo, o que se pode perceber é que, ainda que se condenem as práticas tradicionais verticali-
zadas de ensino-aprendizagem, se reconheça a necessidade de uma outra postura didático-pedagógica,
e se fale de “construção de conhecimento”, “professor facilitador da aprendizagem”, “aluno ativo”, “novos
ambientes de aprendizagem”, “ecologia cognitiva”, as concepções educacionais tradicionais – filiadas à
filosofia da consciência e ao racionalismo iluminista – continuam atuando, e as novas tecnologias são
canalizadas para darem mais “qualidade audiovisual” aos conhecimentos tradicionais.
Nessa ótica, CYSNEIROS(1998) vem, com propriedade, alertar que a presença de computadores na
escola e o treinamento de professores não garantem, por si só, melhoria da qualidade do ensino. Ao
contrário, podem servir ao que ele denomina de “inovação conservadora”, em que tarefas que poderiam
ser realizadas satisfatoriamente por equipamentos mais simples são efetuadas por ferramentas sofisti-
cadas: “são aplicações da tecnologia que não exploram os recursos únicos da ferrramenta e não mexem
qualitativamente com a rotina da escola, do professor ou do aluno, aparentando mudanças substantivas,
quando na realidade apenas mudam-se aparências” (1998,p.204).
Como enfatiza KENSKI (1997, p.4), é necessário perceber-se que a incorporação das novas tecnolo-
gias não implica necessariamente o descarte da narrativa oral ou escrita. Faz-se necessária uma reflexão
didática que possibilite pensar quais seriam os meios mais adequados à especificidade do conhecimento a
ser construído, levando-se sempre em conta a reconfiguração de saberes produzidos pela nova ecologia
cognitiva emergente.
O desafio epistêmico e pedagógico trazido por esse novo mundo audiovisual parece ainda não ter
ecoado no contexto educacional. Ou seja, a dimensão instrumental e reificada das tecnologias audiovi-
suais ainda predomina no meio escolar. Essa ótica consegue, no máximo, tornar um pouco mais atraente
a monotonia das pedagogias tradicionais, abrigando então o lúdico e o audiovisual como maquiagem de
um conhecimento já pré-definido (por uma consciência auto-intitulada de autônoma e racional) e pouco

Proceedings XI International Bakhtin Conference 418


problematizado. É necessário levarmos em consideração que a imagem e os sons trazem dimensões que
extrapolam a linearidade da linguagem escrita. Sua utilização meramente ilustrativa é empobrecedora
e subestima a riqueza cognitiva do audiovisual.
Na verdade, a emergência do audiovisual vem desconstruir fronteiras entre razão e imaginação,
ludicidade e disciplina, arte, ciência e tecnologia, ficção e realidade. Evidentemente tal perspectiva im-
plica significativos descentramentos no campo cultural e cognitivo, que remetem a profundas mudanças
no campo do saber. Tal (des) ordem cognitiva leva-nos a conviver num mundo heterogêneo que não
é passível de uma descrição linear e escrita, e sim que demanda uma atitude aprendiz e exploratória
permanente, nos labirintos desse novo cronotopo digital e audiovisual em erupção. Mais do que isso, a
noção de “autoridade textual”, que é utilizada pela prática pedagógica tradicional, atuando no sentido
de “legitimar tanto o valor de uma imagem ou texto particular quanto a gama de interpretações que são
arregimentadas para compreendê-los” (GIROUX; MCLAREN, 1995, p. 146), necessita ser repensada, na
medida em que os inúmeros significados que essa nova ecologia cognitiva produz devem ser negociados
entre os sujeitos educacionais que já habitam nesse mundo audiovisual.
Enfim, o desafio pedagógico e epistêmico audiovisual enseja o descentramento cognitivo, informacio-
nal ou hermenêutico. Tal perspectiva nos remete a perceber a necessidade de desenvolver metodologias
audiovisuais que se articulem dialogicamente. Ou seja, que permitam a interatividade construída com
a contínua negociação de significados , o encontro vivo e inusitado das diferentes identidades que se
entrecruzam num mundo educacional imerso nessa nova cultura audiovisual .
Assim, recuperar o valor cognitivo da imagem exige superar a suspeita racionalista que confina a
imagem e a própria arte no campo da ambigüidade estética ou da ludicidade, magia e sedução. Essa
nova ordem cognitiva vem estabelecer novas interfaces entre as diferentes linguagens produtoras de
novos signifcados no cronotopo digital. Desse modo, a utilização pedagógica das tecnologias audiovisuais
necessita ser percebida em outros parâmetros epistêmicos e pedagógicos, sob pena de um indesejável
insulamento escolar numa cultura escrita e linear, insuficiente para navegar no universo audiovisual em
expansão.
A admissão desses problemas e da diversidade desse novo universo escolar, iria exigir provavelmente
rupturas significativas com a forma de concepção, estruturação e implementação dessas tecnologias na
escola e, mais do que isso, uma mudança epistemológica. Será necessário perceber que a introdução do
computador e da televisão na escola necessita ser pensado no contexto mais amplo da cultura audiovi-
sual em erupção, do desafio epistemológico do audiovisual e do caráter social, político e discursivo do
conhecimento e das próprias tecnologias. Ou seja, mais do que ferramentas educacionais sofisticadas,
torna-se necessário perceber que outro cronotopo adentra no universo escolar, transformando as rela-
ções sociais, políticas, culturais e a própria subjetividade e identidade dos sujeitos educacionais. Deste
modo, parece-nos tornar-se crucial uma abordagem pedagógica que seja capaz de abrigar a polissemia
das diversas vozes sociais na disputa em torno da produção de significados gerados intermitentemente
nesse novo espaço sócio-cultural fluido, labiríntico e plural.
NOTAS
1 Utilizamos aqui o termo cronotopo no sentido bakhtiniano, vislumbrado como ‘diferentes coordenadas
de espaço-tempo com as quais orientamos nossas ações. A heterocronotopia e suas virtuais dialogiza-
ções não são, segundo Bakhtin, elementos externos ao enunciado, mas constitutivos de sua organização
semântica”(FARACO, 1999,p.192). No caso, a escola , como enfatiza KENSKI(1997) materializou-se na
modernidade como a referência cronotópica do aprendizado; podemos falar, pois, de uma cronotopia
educacional ou escolar. Já com o advento da cultura audiovisual e digital, as fronteiras do espaço e do
tempo são redimensionadas a partir da velocidade cada vez maior possibilitada pelas novas tecnologias
da comunicação e informação – podemos assim falar do cronotopo digital.
2 ABREU JR(1996,p.178) considera que “a interdisciplinaridade representa um tipo de trabalho que se
faz na aproximação entre os conhecimentos, sem mexer na forma em que estão estruturados, enquanto
a transdisciplinaridade representa uma proposta de conhecimento que busca organizar-se num limite
além do já traçado pelas disciplinas tradicionais[...] com a transversalidade dos conceitos , devemos
pensar em novos modos de organização do conhecimento, ultrapassando as fronteiras tradicionais de sua
divisão por disciplinas fechadas. [...] O problema nesse terreno é como estabelecer interações criativas
entre os participantes de trabalhos transdisciplinares”.
3 Para uma visão crítica dos programas governamentais de informática e televisão na escola pública
– PROINFO e TV ESCOLA – ver respectivamente JACINSKI, 2001 e VITCOWSKI, 2000.
REFERÊNCIAS
ABREU JUNIOR, Laerthe. Educação transdisciplinar.IN Conhecimento trans-disciplinar: o cenário epistemológico
da Complexidade. Piracicaba: Editora da UNIMEP, pp.167- 183.
BABIN, Pierre; KOLOUMDJIAN, Marie-France. Os novos modos de compreender. São Paulo: Paulinas, 1989.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal . 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1979/1997.
________________. Questões de Literatura e de Estética ( A Teoria do Romance). 4.ed. São Paulo: UNESP,
1975/1998.
________________.Estética da Criação Verbal . 4.ed. São Paulo: Hucitec, ,1997b.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 419


BAKHTIN, M. & VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8. Ed. São Paulo: Hucitec, 1929/1997.
BARBERO, Jesús Martín. Novos regimes de visualidade e descentralizações culturais. IN Mediatamente! Televisão,
cultura e educação. Secretaria de Educação à Distância. Brasília: Ministério da Educação, SEED, 1999, pp.17-40.
(Série de Estudos. Educação à Distância, v 11)
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras,1992.
CASTELLS, Manuell. A sociedade em rede. Vol. 1 .São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CYSNEIROS, Paulo G. . Novas Tecnologias na Sala de Aula: Melhoria do Ensino ou Inovação Conservadora?
IN IX Endipe - Encontro nacional de Didática e Prática de Ensino, Anais II, vol. 1/1,. Águas de Lindóia (SP),1998,
pp. 199-216.
COUCHOT, Edmond. A arte pode ainda ser um relógio que adianta? O autor, a obra e o espctador na hora do
tempo real. IN DOMINGUES, D.(org.) A arte no século XXI. São Paulo: UNESP,1997,pp. 135-143.
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente.Petrópolis,RJ : Vozes, 1993.
FARACO, Carlos A Tecnologia e Linguagem. IN BASTOS, João Augusto S. L.(org.) Tecnologia & Interação, Curitiba:
CEFET/PR, 1998, pp.5-10.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
GIROUX, Henry A. & MCLAREN, Peter L. Por uma pedagogia crítica da representação. IN SILVA, Tomaz Tadeu
& MOREIRA , Antonio F. (orgs.) Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. São Paulo:
Vozes, 1995, pp.144-158.
HAYNES, Deborah J. Bakhtin and the visual arts. Cambridge: University Press, 1995.
JACINSKI, Edson. Linguagem audiovisual na informática educativa: uma análise dialógica do PROINFO. Dis-
sertação de mestrado. Curitiba, CEFET/PR – Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, 2001.
JACINSKI, Edson & FARACO, Carlos Alberto. Tecnologias na Educação: uma solução ou um problema pedagógico?
IN COSTA, Antônio C. da Rocha (org.). Revista Brasileira de Informática na Educação – volume 10, n.2, set.2002.
Porto Alegre: UCPEL,2002.
JOBIM E SOUZA, Solange . Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamim. 2.ed. Campinas: Papirus,
1995.
KAC, Eduardo . Negotiating meaning: the dialogic imagination in electronic art. IN Originally appeared in Procee-
dings of Computers in Art and Design Education. Conference, University of Teesside, UK, 1999 Referência obtida via
base de dados, 2000. Disponível na internet. http.www.ekac.org/index.html.Acesso em 20.05.2000.
KENSKI, Vani Moreira. O ensino e os recursos didáticos em sociedade cheia de tecnologias. IN VEIGA, Ilma Alenca
stro(org.).Didática: o ensino e suas relações. SãoPaulo: Papirus, 1995, pp.129-147.
LE GRAND, Jean-Pierre. Questionando Mona Lisa. IN DOMINGUES, D. (Org.). A arte no século XXI. São Paulo:
UNESP, 1997, pp.282-292.
LÉVY, Pierre . Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1997/1999.
__________ . As tecnologias da inteligência. São Paulo: Editora 34, 1993.
MACHADO, Arlindo. Repensando Flusser e as Imagens Técnicas. São Paulo: PUC/SP,1999.
_______________. Hipermídia: O Labirinto como metáfora. IN DOMINGUES, Diana(org.)
A arte no século XXI. A humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP,1997.
VITCOWSKI, José R. O paradigma emergente e a integração das novas tecnologias no Projeto Tv Escola.
IN OLHAR de professor. Ponta Grossa: UEPG, 2000, pp. 151-168.
Textos chave:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal . 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1979/1997.
________________. Questões de Literatura e de Estética ( A Teoria do Romance). 4.ed. São
Paulo: UNESP, 1975/1998.
________________.Estética da Criação Verbal . 4.ed. São Paulo: Hucitec, ,1997b.
BAKHTIN, M. & VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8. Ed. São Paulo: Hucitec,
1929/1997.
JACINSKI, Edson. Linguagem audiovisual na informática educativa: uma análise dialógica do
PROINFO. Dissertação de mestrado. Curitiba, CEFET/PR – Programa de Pós-Graduação em Tecnologia,
2001.

Palavras chave: tecnologias da comunicação e informação, linguagem audio-


visual, dialógico
EDSON JACINSKI nasceu em Ponta Grossa/Paraná. É mestre em Tecnologia pelo
CEFET/PR. É professor do CEFET/PR, Unidade de Ponta Grossa, no Ensino Médio
– Filosofia – e nos cursos superiores de Tecnologia – Ética Profissional. Participa
de dois grupos de pesquisa (CNPQ/CAPES) no CEFET/PR: “Ciências Humanas
e Tecnologia” e “Grupo de estudos e apoio pedagógico”. Publicou “ Linguagem
audiovisual na informática educativa: uma análise dialógica do PROINFO” (cd do
IV Simpósio Brasileiro de Comunicação e Educação, 2002) e com Carlos Alberto
Faraco “Tecnologias na Educação: uma solução ou um problema pedagógico?”
(vide refer.)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 420


How Can We Understand the Processes of Culture
at the End of the 20th c. (And What Relevance Can We
Discover on the Topic in Mikhail Bakhtin’s Reflections?)

Miha Javornik

Filozofska fakulteta, Ljubljana, Slovenia

The question how to understand the evolutionary processes in the 20th c.1 culture must be connected
to the question of boundary. M. Bakhtin very perceptively observed that the boundary is the area of
the greatest friction of ideas and ideologies—the sphere where the most productive processes in culture
originate—it is the area where the dialogue begins.2
In considering the role of boundary in culture it is necessary to refresh the thought of structural an-
thropologists and cultural specialists (Toporov 1990) that in cultural development the boundary has a
symbolic function, that in one way or another resurrects the meaning of confrontation. It is this particular
motif to which Bakhtin unequivocally attributes positive meaning as he characterizes it as a constant
of cultural evolution (Bakhtin 1975). Readiness for confrontation means openness, willingness to face
differences and/or diversity, which always implies the concept of boundary.
When speaking of the positive values of boundary, it is necessary in the same breath to point out that
in one’s imagination the expression “boundary” creates mostly feelings of fear and uneasiness, rather
than of something that represents an a priori value and is connected with a feeling of comfort. In our
understanding this uneasiness, which always appears as a transition from the “domestic” to “foreign,”
needs to be placed in the broader symbolic contrast of “I” vs. “The Other,” where spatial coordinates
play an important role. Here, too, the motif of confrontation as a contact of physical bodies representing
closeness, plays an important role.3 The action of an unknown or unexpected, i.e., foreign, force in one’s
proximity means the destruction of psychophysical equilibrium; Bakhtin illustrates this situation with the
concept of “threshold.” In his analysis of the novelistic chronotopes the Russian scholar emphasizes that
the main character must overcome the boundary situation (i.e., the threshold), leave the sphere of the
“domestic,” overcome the challenges standing in his path, thus reestablish equilibrium. The challenge in
his path means nothing but confrontation with something foreign; this confrontation essentially speaks
of the cognizance of one’s own boundaries. It is obvious that ambivalence is characteristic of both mo-
tifs, i.e., confrontation and boundary. While they mean an opportunity for change and thus at least in
principle pave the way for change in the dialogue with something else, unknown, at the same time they
raise uneasiness and fear, i.e., they have a more or less negative connotation.
This simple and universal fact, which is typical not only of the novelistic chronotopes that Bakhtin
speaks of, but of communication in general, is also discussed in studies of other theoreticians. In the
context of this discussion of particular interest are Deleuze-Gauttari’s reflections on Kafka, also em-
phasizing the value of spatial relationships in the author’s opus (Deleuze, Guattari 1995). The French
scholars view them as the intertwining of (re)territorialization and deterritorialization processes, leading
Kafka’s “heroes” to an ever-changing quality in their cognizance of the world.4 The never-ending and
contextually different exchange of de- and reterritorialization should be understood as a dynamics in the
cognizance of boarder, where Kafka’s characters are always accompanied by the feeling of uneasiness. If
on the one hand a character manages to at least temporarily overcome this feeling, on the other hand,
in new contextualizations (confrontations) a boundary in different form is drawn, only to give rise to a
different kind of uneasiness.

1 The paper is limited to the phenomena related to so-called digitalization of culture. The focus is on discovering principles of computer development and
most of the discussion is devoted to Internet Communication.
2 Here it must be noted the value that Bakhtin in his analysis of F.M. Dostoevsky’s creative work places on threshold, which in itself implies the idea of
borderline situation. Similarly, the dialogue as the intersection of various perspectives inevitably implies the presence of boundary. The major question is
how the boundary is established.
3 In this context Bakhtin’s expression “chronotopicality” must be mentioned. It involves the process of condensing time in space. In his article “The Forms
of Time and Chronotope in the Novel” he perceives the chronotope as materialization of time, evident in emphasizing the values of spatial dimensions. He
clearly points this out in his monograph about Dostoevsky (particularly in the revised version) The Issues in Dostoevsky’s Poetics, where he attributes special
meaning to the so-called “carnival” market and threshold.
4 Deleuze-Gauttari explain Kafka’s opus as rizom. They begin the analysis with The Transformation, where they found parameters representing the basis for
building the so-called schizo-analytic interpretation. They consider the category of desire the motive power of Kafka’s work and around it they build a kind of
equation. They speak of blocked desire referring to childhood memories. These memories are characterized by minimal connections, related to the concept
of territoriality or, rather, re-territoriality, which means imitation, implies a return to archetypical images, and establishes mythologicness. The opposite of

Proceedings XI International Bakhtin Conference 421


Deleuze-Guattari’s observations, which can be paralleled to Bakhtin’s thoughts on the meaning of
threshold in the life of culture and/or man in general, direct the reflection into the search for generali-
zations. In this search it turns out that in the evolution of culture one can discover repeatable and/or
constant relationships that continually attest to the meaning of borderline situations.
If the threshold can be treated as a borderline situation in the alternation of deterritorialization and
reterritorialization processes, speaking of the effort to overcome a certain boundary, it may be interesting
to pause upon the question of the meaning of nearly programmatic tendencies in the culture of the last
third of the 20th c. to overcome, erase, or at least blur the manifestations of boundary. On the level of
principle these attempts are expressed as so-called globalization processes, the way to which is paved by
postmodern aspirations to abolish the traditional oppositional relationships (e.g., high art vs. mass pop
culture, canonical vs. profane, etc.) or, rather, they speak of blurring symbolic relationships indicating a
constant in culture in general (e.g., relationship high vs. low, foreign vs. domestic, etc.). It is worth noting
here at least one of the most radical attempts in the postmodern overcoming of barriers, i.e., body art,
which is an attempt to materialize former avant-garde tendencies in tearing down barriers between art
and life. From the semiotic point of view this experiment with the human body that is changing into an
act of art is nothing but an attempt to overcome the boundary between the signifier and the signified—the
process, that has an important role in the evolution of culture.5 A peculiar parallel to this type of “artistic”
experiments in poststructural discourse6 is involvement with the category of “corporeality.”
To examine theoretical views of corporeality, one must know that this—if terminologically uncoor-
dinated concept taking shape in the era of general sexualization of the contemporary theoretical and
aesthetic cognizance—means conceptually founded possibility to discuss subject or, in more precise
terms, to reflect on depersonalization of subject in postindustrial society. These kinds of considerations,
as a consequence, again open the question of blurring the boundary. If classical philosophical thought
connected the autonomous and sovereign subject with the concept of spirituality that opposes everything
corporeal, the efforts of contemporary poststructural theoreticians are developing into an attempt to
prove the postulate of the inseparable connection between the spiritual and corporeal in findings about
the so-called “corporeality of consciousness” (M. Merleau-Ponty, J. Kristeva, R. Barthes, G. Deleuze, M.
Foucault).7 The finding clearly indicates the desire to overcome the binary opposition—the common tragic
relationship between the oppositional pairs, that have in (Christian) civilization a constitutive role and
continuously indicate the existence of the boundary as an important distinctive property.8
If until now the category of boundary has been related to the feeling of uneasiness, the poststructura-
list understanding of corporeality can be interpreted as an attempt to overcome or at least decrease the
anxiety created in the “sphere of boundary” or, rather, in the area of so-called threshold. However, we
have also noticed that overcoming or eliminating the boundary means the disappearance of the sphere
in which (according to Bakhtin) the most productive dialogue takes place, that has throughout history
manifested itself in constant, often traumatic, efforts to connect the body and mind. As a consequence,
this brings up the idea that could be best represented by the syntagm: Where there are no boundaries
there is no dialogue. The opposite should be true as well: Where there is dialogue, there are boundaries
and uneasiness. Does therefore the postmodern tendency toward blurring the boundary in the extreme
consequence lead to the devaluation of dialogue?
To shed more light on the equation above and as a point of departure in finding an answer to the
question, it seems appropriate to compare Gauttari-Deleuzovsky’s thoughts on the intertwining of de-
territorializing and reterritorializing processes with Bakhtin’s theory of carnivalization. If carnivalization
or, rather, the repeatable interlacing of de- and reterritorializing processes is to mean a specific and
repeatable unity of opposites in which the boundary is eliminated by the change of value signs, then this
also means that every time new manifestation of boundary is drawn. Only this is the real evidence of the
idea about never-concluded dialogue, which also carries the feeling of uneasiness with it.9
In continuing the discussion on the question of boundary, corporeality, and utterance/dialogue, one
needs to have a closer look at Bakhtin’s understanding of them. It is interesting that the Russian thinker

5 The body on stage is not a mere imitation of physical reality, in the “artistic” experiment the actor inflicts on himself real pain, i.e., he does not imitate nor
simulate. The stage becomes life, the sign becomes the signified. Body-art experiments display characteristics of syncretic thought, that semiotics discover
in the so-called pre-reflexive phase of consciousness (KLE 1967: 876-882). How syncretism is materialized in modern forms of communication is one of the
questions posed in the discussion.
6 In this context Lacan’s notion of floating signifier must be mentioned, which is often implied in the discussions about culture by poststructural theory.
7 Cf. Il’in 2001: 298-303.
8 It seems that in the context just mentioned it would be possible to discuss interdisciplinary tendencies in science and art, leading to a holistic unders-
tanding of the world.
9 A look at the modern social and cultural situation, marked with so-called globalization tendencies, supports this idea. Approaching a common, in principle
dialogically organized, global social community, where boundaries between individual or national-cultural differences are blurred to the greatest extent pos-
sible, ever more often brings forth the question of how to preserve independence and ethnic originality. This raises the question whether, in fact, “freedom
of choice” exists. In other words, between the desire to be as close as possible to The Other (“inside” the circle of democratic and economically developed
countries) uneasiness appears, conceived of the fear that this process leads to loss of one’s own identity. There is an ever-increasing need to protect one’s
own interest and subjectivity, in fact, to stay “outside” and be able to draw a line in due course between what is common, but not “ours,” local. One of the
most noticeable manifestations of this uneasiness is the (legally regulated) attempt to protect language, this treasury of historic and cultural memory as
“something physical” (i.e., like a “body”) against encroachment of the global language—English. Last, but not least, it must be noted that it is possible to
speak of globalization only when social and national communities follow its rules and regulations. The essential prerequisite for this is economic and cultural
development (mainly tied to Christianity), which allows the community to overcome its own previous manifestations of boundary. Everyone else, the so
called Third World, remains “outside,” thus (paraphrasing S. Žižek) in a subversive way undermining the philosophy of games without borders within the
simultaneous game of globalization (a good example of subversion is the 9/11 attack on WTC). Such discussion of modern persistent attempts to abolish
boundaries separating “Me” from “The Other” logically grows into questions about the location and method of rebuilding the boundary, which on both concrete
and symbolic levels means the constitutive and determining category in dynamics of cultures.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 422


in various creative phases devoted his thought to the relationship between speech/utterance and corpo-
reality—the interest in it is already shown in his early works (The Author and the Hero in the Aesthetic
Activity), and through Marxism and the Philosophy of Language is realized in the ideas about grotesque
order of the world, that Bakhtin was developing as early as the 1930’s and 1940’s in his work F. Rabelais
and the Folk Culture of Laughter. More interesting than his early reflections on how the boundary between
the subject and The Other (cf. Tixanov 2001, 204) is created, are the ideas from the mature phase in
which there is an attempt to abolish this boundary. From the book on F. Rabelais it can be discerned that
Bakhtin sees the opportunity for overcoming the eternal and repeatable conflict (between the utterance
and the body and, as a consequence, between the subject and The Other) in the folk culture of laughter,
which in his view embodies the values of everything elemental, organic, and natural. In this returning to
“the collective folk body” carnivalizing processes should have a particular value and the transition itself
should be most unambiguously realized in the carnival. Hence the overcoming of boundary—so typical
of carnival perception of the world—repeatedly means returning to the roots of the culture, to myth,
where the notion of a “collective body” was conceived. As if every attempt to overcome the boundary
meant resurrection of collective consciousness, in which an important role is played by mythic logic with
no boundary between the signifier and the signified.10
The founder of Russian poetics, A. Potebnya, already notes that there is a close connection between
myth and language (Potebnya 1976). Bakhtin was evidently aware of this as well, as he found that the
(collective) body and the utterance are inseparably connected. A logical question emanating from this
and also asked by Bakhtin leads to consideration of whether the body has the function of a social sign.
If Marxism and the Philosophy of Language are still dominated by the thought that the body does not
have anything in common with ideology (cf. also Tixanov 2001: 201), in F. Rabelais Bakhtin attributes a
social role to the body. It is evident that he, in fact, understands the body as something ambivalent—on
the one hand it should be constantly on the border between self-sufficiency following the imperative of
physical needs, on the other hand it has the meaning of some abstract identity, discovering powers of
the higher order. This duality actually speaks of evolution in Bakhtin’s thought, and in it the conception of
carnivalization is being outlined, i.e., from The Author and the Hero in the Aesthetic Activity, where the
body represents verifiable physicality, to Rabelais, where the corporeal gradually begins to represent the
spiritual, yet it continues to have the attributes of the physical. It is increasingly obvious that Bakhtin’s
understanding of the ambivalence of the body “ruptures” into reflection about the grotesque world order
as a motive power of cultural evolution, which is rooted in the collective, mythic consciousness.
To recapitulate: as a repeatable manifestation of the grotesque world order, the carnival is to be of
special value. The carnival realizes the feeling of unity of opposites, based on archaic, collective notions
of the duality of the world, yet at the same time it constantly brings forth the conflict (dialogue) as a
dynamic principle in cultural evolution. As was very perceptively pointed out by M. Ryklin (Ryklin 1990),
carnival in its ability to be repeated is therefore every time only a temporal act, which in the moment
when its rules are suspended, brings forth some standard, canonized (collective) notion of the world
order.11 It should be noted that this notion, because of its “carnivalesque” character, now becomes dyna-
mic. The boundary that represents the difference between the world and the “upside-down world,” the
spirit and the body, is thus not demolished, in the perpetually unstoppable dynamics the boundary does
not disappear; rather, this only leads to its never-ending shifting.12
If one accepts the interpretation of Bakhtin’s understanding of the grotesque world order as one of
the guidelines for reflection, the question of how to interpret postmodern statements on the erasure of
boundaries resurfaces. It seems that this, arguably preoccupation with bias means only a phase in the
dynamics of culture, in which the actualization of the archaic notion appears. This brings forth change in
our understanding of boundary, but it certainly does not mean its abolishment. The idea will be explai-
ned on the example of Internet Communication (IRC), which clearly realizes postmodern feeling, but at
the same time it only entails a new method that is intended to lead to an ever-topical “confrontation of
bodies.” This discussion will focus on the relationship corporeality vs. utterance/language and point out
how in the “free” world of virtual communication a new manifestation of boundary is established.13
First, one must point out two important differences separating the dominant modeling methods in
the second half of the 20th c. (film, television, video) from Internet Communication: (1) If the classic
methods involve approaching objective reality or some previously built model, the Internet involves
building a new reality that does not exist as physical reality.14 Referring to the researchers of modern
media (Jameson 1999, Baudrillard 1999), one can conclude that Internet communication represents a
transition from imitation to simulation. (2) If contemporary media (television, video, computer) with
increasing aggressiveness speak of the dominance of the visual, Internet Communication (e-mail, IRC)

10 The broken relationship between the signifier and the signified is the fundamental characteristic of pre-reflexive reflection, i.e., myth, in which, according
to the founders of Russian poetics (Veselovsky, Potebnya), the culture arises as a form of reflexive consciousness (cf. Averincev, KLE 1967).
11 M. Ryklin sees in Bakhtin’s carnival a specific form of terror, since by striving for affirmation of the collective he prevents actual individualization of the
body. It is interesting to note that B. Grojs points out parallels between the Stalin trials and the apology of the carnival, i.e., both were aimed against all
forms of individualization.
12 This is as if dealing with the idea which could be put in the context with poststructuralist thought of the so-called floating signifier. Considering the
presented characteristics of the carnival attitude towards the world, the connections with Deleuze-Guattari’s understanding of re- and deterritorialization
are more than obvious.
13 For more on freedom of choice in the world of virtual communication see Javornik 1998.
14 It is also known that there is nothing “physical” behind virtual reality, except for the network of intricately organized connections with wires between
them.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 423


is still based on verbal sign (grapheme).15 For now, however, this sign has proven to be a convenient
option for simulation of the nonexistent,16 similarly to a digitally created image. It is symptomatic that
in virtual communication one accepts the utterances of the real (physical) user on the other side of the
line as reality, but it eventually turns out that these utterances are only a new method of masking or,
rather, modeling reality. In the context of discussion about the intertwining of the utterance and body
it is possible to say that the “body” of the user that in reality exists on the other side of the line, when
it comes to physical contact, does not appear the same as it is “embodied” by utterances. However, in
virtual communication these utterances are the only “material” on the basis of which the user builds
his image of the body. If the Internet utterance as a “mask” of the body establishes the difference from
the actual body, i.e., the physical subject, it needs to be pointed out again that the user is not aware of
this boundary, or, rather, he is “unwilling” to be aware of it and begins to materialize the utterance or to
change it into the “body.” The consequence is two-fold and entirely expected: (1) the user, who, based
on utterances, builds the image of the corporeality, simulates corporeality, i.e., the boundary between the
actual (body) and the utterance, manifested as a body, begins to blur, which leads to ambivalence; (2)
the user’s attempts to materialize the virtual body as physical, in the actual, i.e., physical, contact most
often turn out to be unsuccessful. S. Turkle, one of the leading American researchers of the psychologi-
cal characteristics of virtual communication warns that the actual, face-to-face confrontation of physical
bodies most often means the end of any communication (Turkle 1995). In other words, the expectation
born in the process of “embodying the utterance” in the contact with the actual body collapses, i.e., a
new boundary is set up.
The schematic outline above leads to the realization that virtual communication involves the kind of
ambivalence that is typical of Bakhtin’s understanding of carnivalization and/or the grotesque world or-
der. The carnival costume (mask) brings down set boundaries, but does not mean their elimination, but,
rather, a form of deterritorialization, where a participant temporarily accepts the “upside-down” world
as the only reality. Similar process takes place in Internet Communication. The sign that is created in
the interaction of real users with an interface as intermediary creates the feeling of an actually possible
reality and, consequently, becomes reality itself, i.e., physical reality (body) is replaced by virtual reali-
ty. S. Turkle quotes numerous examples where real users accept virtual reality as actual reality (Turkle
1995: 186-210). As has been pointed out, the boundary that begins to become blurry at virtual contact,
is not restored until the physical bodies meet.
This shows that interactive virtual communication must be discussed from two aspects and, in doing
that, one needs to pay attention to the following: (1) on the one hand, in modern culture the importance of
visualization is increasing, on the other hand IRC is based on verbal activity, manifesting one of the basic
postmodern postulates about self-sufficient discourse, completed in itself, that does not refer to anything
but itself (utterance = body). This abolishment of the boundary between the internal and external (one’s
own and foreign, utterance and body) must be discussed in the context of the symbolic relations that
establish the difference and are thus important for establishing one’s own subjectivity. This difference,
that at least seemingly begins to collapse in the era of digitalization¯which is well illustrated by P. Virillo’s
idea about the changing of socially founded life images in virtual communication (Virillo 1996)¯blurs the
image of The Other; (2) the initial feeling of virtual-verbal freedom, where the user should not encounter
the boundaries set by speech (Javornik 1998), in an effort to “embody” the discourse of The Other, is
replaced by cognizance of being determined with language or of being “captured” inside language. Here
a major split begins, caused by the previously mentioned ambivalence in virtual communication, i.e.,
the discord between the physical body and the body-text leads the user into ever-new searches, which
are in the final consequence intended to lead to a merger of real and virtual bodies. Since that does
not happen, the user in his cognizance of the “actual-virtual” increasingly more “diffused,” peculiarly
fragmented in his uneasiness before materialization of the virtual. The feeling of endless possibilities
of choice turns into the inability to choose, i.e., the user most often remains inside the utterance-body
and does not materialize his desire in physical reality precisely because of the uneasiness caused by the
fact that virtual and physical reality do not merge. From this it can be concluded that cyberspace, which
offers the possibility of endless changes, in effect, hides its opposite, its finiteness, as it exactly deter-
mines the limits of “corporeality” with the text (utterance). In other words, “corporeality” is determined
only by the use of language. This use (referring to Bakhtin/Voloshinov), which is completely dependant
on cultural-ideological codes, speaks of the unsurmountability of (symbolic) relationships, in which the
phenomenon of boundary is included as a differentiating feature. In conclusion, “virtual carnivalization”
leads from the initial phase, in which the set norms are abolished, to new cognizance about being a part
of a symbolic network, where the boundary is reestablished. As if the possibility of choice gave rise to
new forced choice, which appears as a non-choice.
II.
As in the continuation I attempt to generalize the observations about virtual communication and in-
clude them in the context of the discussion of the dynamics in the evolution of culture, I again proceed

15 Note forms of Internet conferencing, where image begins to replace verbal sign. They are not discussed here in detail, as technological limitations do not
allow sufficient speed in flow of information and these forms do not represent generally accessible method of communication.
16 It must be noted that the development of computer technology also leads to the use of simulation means in movies, which blurs the boundary between
imitation and simulation. Images are created which do not speak of concrete corporeal/physical manifestation, i.e., the actor is replaced by a digital cha-
racter.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 424


from Bakhtin’s and Deleuze-Guattari’s understanding and I prove that postmodern and poststructural
findings on abolishment of boundaries mean new impetus for the forces leading toward the creation of
different manifestations of boundary. An additional incentive in argumentation are reflections by Y. M.
Lotman, the main representative of the Moscow-Tartu School of Semiotics, which developed in cons-
tructive dialogue with M. Bakhtin. Particularly noteworthy are Lotman’s studies on dynamic processes
in evolution of culture, as they can be in many ways compared with Bakhtin’s views; also, parallels with
observations of French poststructuralists can be found.
In trying to summarize Lotman’s ideas, one realizes that the Russian semiotic sees the development
of culture as an alternation of linear and cyclic processes (Lotman 2000).17 Speaking of linearity, he refers
to a process that builds and strengthens the image of a particular systematicity, thus indirectly pointing
out the value of boundary that is in culture drawn by every normative image as it attempts to establish
its value. Additionally, he establishes the difference between the two modeling modes.18 In the linear
process the concentration of successively organized signs (syntagmatic series) plays an important role,
as they clearly establish the boundary between different manifestations/phenomena. It must be poin-
ted out that every individual construction at the same time follows the existing modes of modeling the
world, canonized cultural forms and images, that are evidence of the previously existing manifestations
of differentiation in culture.19 The linear processes are intertwined with the cyclical ones: the meaning
of individual semiotic categories as text as a whole is always created in the relationship with previous
texts, schemes, or models (paradigmatic series); successive organization of signs gives rise to a form
of simultanism.20 As is well known, similarity with or differentiation from the existing cultural-historical
(communicative) forms (in confrontation with the so-called historical memory) perpetually strengthens
the image of (new) systematicity, which results in the canonization of images about differentiating fea-
tures, i.e., the meaning of boundary is actualized. It must be noted that in the initial phases of various
modeling methods the signifier attempts to identify with the signified, i.e., to become the “content itself.”
This process, which is also noticed in Internet Communication, is reminiscent of the characteristics of
the primary cultural forms or schemes, which are characterized by mythic logic. The characteristics of
“mythological thinking” (Meletinski 1976: 291–296) that occur in highly developed forms of consciousness,
must be understood as a symptom of cyclical process, leading to the enforcement of a new dominant in
the evolutionary process of culture.
In the constant intertwining of the linear and cyclic processes discussed by Lotman, one can see the
connection with Bakhtin’s understanding of carnivalization as the never completed unity of opposites. To
better illustrate this phenomenon, one may borrow the terminology from physics and present this unity
as interdependent action of the centripetal and centrifugal forces. However, these phenomena only par-
tially correspond to Lotman’s understanding. Systematicity is built through the intertwining of the linear
and cyclical processes. In the beginning phase of the modeling mode the centripetal force is prevalent,
where the cultural processes develop according to the immanent rules (linearity), and at the same time
the reflection towards the systems and modeling modes formed in the previous cultural-historical perio-
ds is evidence of the importance of the cyclical principle. It is logical that in this phase one notices the
tendency that the signifier comes as close to the signified as possible (aesthetics of identity).21 Simul-
taneously with these processes the opposite tendencies arise, gradually leading to predominance of the
centrifugal force. With its affirmation the image of the monolithic and “perfect” modeling mode begins
to collapse, which leads to a decreased significance of the centripetal forces. The dialogic mode arises,
relativizing systemic images, introducing notions into the culture about the meaning of differentiation,
which establishes the image of boundary and makes it dynamic.
Turning to Bakhtin’s understanding again, it is not surprising that in his theory it is the dialogue that
has a special value; i.e., so-called forms of speech within speech and speech about speech (stylization,
parody, polemics), that mean the demolition of monolithicness or, rather, they materialize the carnivali-
zation principle in the evolution of culture. It should be emphasized that it is precisely the dialogue that
embodies the centrifugal force as a dominant in the phase of the development of the modeling mode
when systematicity begins to collapse and disintegrate into new, stylizing and parodic manifestations,
which, evolutionary speaking, again become the foundation of building a new or, rather, different sys-
tematicity.
From this it can be discerned that centripetality includes the beginnings of centrifugality: they in-
dicate the direction of the disintegration of the systemic images, which also carries with it the image
of the demolition of boundary. According to the logic of dynamics of opposites and in the centrifugality
itself there is the very beginning of new systematicity where again a centripetal principle appears as a
motivating force.22
To return to the computer or, rather, Internet, communication, in their development one can observe
similar combination of centripetality and centrifugality as other modeling modes have undergone. As the
17 Referring to two of Lotman’s articles: “Êóëüòóðà è âçðûâ” and “O äèíàìèêå êóëüòóðû.”
18 According to Lotman’s typology, the so-called aesthetics of identity corresponds to this.
19 The following does not mean only imitation of the existing models, but, rather, at the same time their negation. The term in Lotman’s terminology for
this is “minus process” (ìèíóñ ïðèåì).
20 The division mentioned can be compared with Tynjanov’s concept of constructive function (synfunction and autofunction). Equally productive is his idea
on the exchange of systems in the evolution of literature and culture. (Tynjanov 1977: 270-282).
21 Despite the frequent declarative negations of previous systems or, rather, modeling modes (typical of the so-called aesthetics of oppositions) the new
modeling mode breaks with the characteristics of other, already developed, systems. This leads to cyclicization and indirectly it outlines the paradigm of
culture.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 425


development of computer technology can be discussed in terms of the transition from linear (monologic
in their character) processes in the beginning of computer technology (DOS), to simulative processes in
the Windows environment23―the Internet is undergoing similar development with its transition from FTP,
Gopher protocols, e-mail to interactive virtual communication (IRC). However, in the context of this
study, a more interesting topic than the overview of developmental characteristics would be to address
another "carnivalization" characteristic, that is not only an accompanying constant feature of the
computer evolution, but an important process in the evolution of various modeling modes. This process is
familiarization, the so-called process of "domesticization" of everything high, distant, authoritarian,
absolute, which also leads to blurring the boundary between the authoritarian, i.e., monologic, utterance
and dialogically oriented utterances and indicates the replacement of the centripetal dominant in the
development with centrifugally oriented forces. Importantly, the effort that everything high be
incorporated in life as an entirely usual part leads to change in spatial relations and, as a consequence, in
value judgement of systematicity. This process, which must be understood as a manifestation of
deterritorialization, thus plays an important role in the development of computer communication as well.
One must keep in mind that these days a computer user can choose in home environment with whom
and how he will communicate via computer. This spatial distance, which is seemingly paradoxically set up
by familiarity, enables the user to mask his identity with various virtual markers, leading to blurring one's
own identity. Hence the familiarization, which in virtual communication leads in self-relativization, speaks
of the change in the dynamics of culture where the centripetal force (transparent reflection) is replaced
by centrifugal natural processes (diffusion, the "weak" subject).
At the conclusion of the discussion on the dynamics of cultural evolution a few thoughts arising in
observation of characteristics of the computer/Internet communication:
(1) If in this discussion one follows Bakhtin's, Deleuze-Guattari's, and Lotman's idea about the
uniformity of dynamic contrasts, (s)he searches in centrifugality for a new manifestation of centripetality,
which is shown as a method used to create a new boundary. Most likely the new monologicness and
monolithicity are established by technology or, rather, by those who have it at their disposal. It is a well-
known fact that modern technologies allow complete control of computer communication with IP identity
check.
(2) In the circumstances of technologically formed space (cyberspace), where there is an image of
complete freedom, where everything is allowed, there is a new manifestation of text, i.e., the user is not
only the author of the text, but he also becomes a "character" in it. In the consciousness of the user this
text develops into one of the actually existing realities. Hence the process involved here again leads to
uniformity of sign and content—this is the beginning of cyclicization. Virtual communication is thus
returning us to the beginning and reviving the features of mythological logic, where the dominant is the
centripetal force. If this is true, the Internet can be treated as the beginning of a new phase, i.e., a new
mythologization where the technology plays an essential role as the only actual Author of yet-to-be-
written texts.
(3) Simulation mechanisms, which are constantly perfecting the means for achieving pleasure, similar
to the pleasures of real-physical world, create a new reality, which as typically schizoid manifestation is
worked into the world of physical reality that is increasingly difficult to recognize.24 The question that is,
as a consequence, being asked, is entirely logical: how to build the boundary into the universe of
postmodern relativism, how to conceal the split between what is called "reality" and the cyberspace—in
S. Žižek's view the emptiness of Reality, marked by fantasmagorical content—this elusive, inaccessible
gap that preserves "reality"? (Žižek 1996: 125)
(4) In front of the user of virtual communication, amidst "freedom of endless choices," a new
manifestation of boundary is drawn—boundary-language, where in endless repeatable dialogues (s)he
asks the question when and where the confrontation with The Other will occur "beyond the boundary of
language." This is, naturally, possible only when we are aware of the boundary—only beyond it the
realistic pleasure of The Other comes to light.
References:
М. БАХТИН‚ 1975: Вопросы литературы и эстетики. Москва.
M. БАХТИН, 1963: Проблемы поэтики Достоевского. Москва.

22 With the idea of the unified action of centripetal and centrifugal processes, where actualization of various principles alternates, one actualizes the value of
Bakhtin's concept of grotesque realism as a dynamics of unity of bi-polar opposites. His understanding of bi-worldness (двумирность) offers a productive
option in the search for the developmental characteristics of various semiotic modeling modes.
23 Note so-called user friendly computer technologies. More on that see in: Javornik 1998.
24 A good example of the mechanisms just mentioned is the virtual sexodrome in Cologne: "virtual partners," dressed in clothing capable of changing electric
stimuli into sensations of (dis)pleasure, adopt bodies of chosen characters on the stereometric screen and via the screen make connections with other
"bodies." Needless to say, the sensations of virtual socializing are entirely real (cf. Man'kovskaya 2000: 321-322). Note that theoreticians often connect
postmodernism with schizoid denotation (cf. Smirnov 1994: 317.332).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 426


M. БАХТИН, 1965: Творчество Франсуа Рабле, Москва.
M. BAHTIN, 1999 Estetika in humanistične vede, Ljubljana.
M. БАХТИН, 1979: Эстетика словесного творчества. Москва.
J. BAUDRILLARD, 1999: Simulaker in simulacija, Popoln zločin. Ljubljana.
G. DELEUZE / F. GUATTARI, 1995: Kafka. Ljubljana.
И. ИЛИН, 2001: Постмодернизм. Словарь терминов. Москва.
F. JAMESON, 1999: Postmodernism or The cultural logic of late capitalism. London, New York.
M. JAVORNIK, 1998: From the book to the Internet : (and what does Bakhtin have to do with it?). Slavica
Tergestina (6). Trieste.
Краткая литературная энциклопедия, 1967. т.4. Москва.
Ю. М. ЛОТМАН, 2000: Семиосфера. Санкт-Петербург.
Н. МАНЬКОВСКАЯ, 2000: Эстетика постмодернизма. Санкт-Петербург.
Е. М. МЕЛЕТИНСКИЙ‚ 1976: Поэтика мифа. Москва.
A. A. ПОТЕБНЯ, 1976: Эстетика и поэтика. Москва.
M. РЫКЛИН, 1990: Тела террора (тезисы к логике насилия). Бахтинский сборник I. Москва.
И. СМИРНОВ, 1994: Психодиахронологика. Москва.
G. TIXANOV, 2001: Telo kot kulturna vrednota: opazke k zgodovini ideje in ideji zgodovine v Bahtinovih
spisih. Slavistična revija XLVIIII/3.
В. Н. ТОПОРОВ, 1990: Проблемы культурного рограничья. Советское славяноведение1.
Sh. TURKLE, 1995: Life on the Screen. Simon&Schuster.
Ю. Н. ТЫНЯНОВ, 1977: Поэтика, История литературы, Кино. Москва.
P. VIRILLO, 1996: Cybermonde, la politique du pire. Paris.
В. Н. ВОЛОШИНОВ, 1929: Марксизм и философия языка. Ленинград.
S. ŽIŽEK, Kiberprostor ali neznosna zaprtost bivanja. Razpol 9 /Problemi XXXIV/7-8 (1996).

Miha Javornik is Professor of Russian Literature in the Faculty of Arts


at the University of Ljubljana. His research interests include Russian
literature of the nineteenth-century (Pushkin, Gogol´) and the
twentieth-century (the avant-garde, Russian postmodernist prose),
and contemporary forms of communication (IT, the Internet,
cyberliterature). He is principal editor of Bahtin in humanistične vede
(Zbornik prispevkov z mednarodnega simpozija v Ljubljani, 19-21
oktobra 1995/Bakhtin and the Humanities (Proceedings of the
International Conference in Ljubljana, October 19-21 1995) (1997),
and author of numerous articles on Russian literature, including
'Mikhail Bakhtin i OBERIU' published in Dialogism 2002 (2001).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 427


La observación del dialogismo en los procesos de traducción.

Marilei Jorge

Universidade Presbiteriana Mackenzie

marilei@mackenzie.com.br

Rua Da. Antonia de Queiroz, 183 / 1010

São Paulo. SP CEP 01317-010

Resumo I
A partir de um texto de divulgação científica, são observados mecanismos de construção do simulacro
de objetividade que têm por objetivo dissimular uma determinada posição ideológica. O signo lingüístico,
ponderado no dialogismo constitutivo do texto, observado como resposta a vozes “do outro”, deve confi-
gurar metas para uma tradução adequada, em que o mundo fabricado pela língua-de-origem prevaleça.
Para tanto, parte-se da observação do léxico, buscam-se pistas por meio das quais o eu acaba por se
mostrar, tomando o texto em seus mecanismos de construção argumentativa, que fazem crer além de
fazerem saber, circunscrevendo-se ao gênero divulgação científica. Notar os mecanismos da língua-de-
origem, buscando verificar como a tradução constrói a imagem do enunciador do texto original, para que
se mantenha o tradutor na sombra, pode fazer com que os princípios dados pelo dialogismo bakhtiniano
contribuam para a teoria que se debruça sobre problemas de tradução.
Resumo II
A partir de un texto de divulgación científica, son observados mecanismos de construcción del simulacro
de objetividad, que tiene por objetivo disimular una determinada posición ideológica. El signo lingüístico,
ponderado en el dialogismo que constituye el texto, observado como respuesta a las voces “del otro”,
debe configurar metas para una traducción adecuada, en que el mundo fabricado por la lengua-de-ori-
gen prevalezca. Para tanto, se observa el léxico y se buscan pistas por medio de las cuales el yo acaba
por mostrarse, tomando el texto en sus mecanismos de construcción argumentativa, que hacen creer,
además de hacer saber. Percibir tales mecanismos de la lengua-de-origen, buscando verificar como la
traducción construye la imagen del enunciador del texto original, para que se mantenga el traductor en
la sombra, permite que los principios dados por el dialogismo bakhtiniano contribuyan para la teoría que
se dedica a los problemas de traducción.

Este trabalho foi realizado a partir de um texto de divulgação científica escrito em Língua Francesa e
publicado na Revista “La Recherche”, versando sobre dejetos nucleares. Ele se fundamenta na convicção
de que uma boa tradução deve manter uma correspondência ética entre o texto-base e o texto traduzido
e, para isso, toda e qualquer tradução deve buscar uma proximidade com o discurso e não com os ele-
mentos lingüísticos. A literatura a respeito do assunto demonstra abundantemente que não há fidelidade
entre a sintaxe ou mesmo entre os lexemas de uma língua para outra.
Entretanto, podemos buscar essa fidelidade no discurso, por exemplo, na voz do eu – que se manifesta
tanto em um texto literário, quanto em um texto científico ou de divulgação científica – ou reproduzi-la
através da similitude do estilo que caracteriza o texto a ser traduzido.
Isso não significa que a lingüística, ou a descrição de fatos da língua, não tenha qualquer interesse
para o tradutor. Entretanto, o tipo de análise que se propõe aqui vai ultrapassar os elementos lingüísticos
do texto, embora faça uso deles enquanto elementos de compreensão da organização textual.
Dentre os aspectos que podem ser recuperados na tradução de qualquer tipo de texto e que vão além
das características lingüísticas que o compõem está a observação do signo lingüístico, ponderado no
dialogismo constitutivo do texto, entendido como resposta às vozes do “outro”, e que permite configurar
metas para uma tradução adequada, em que o mundo fabricado pela língua do texto-base prevaleça.
“Não há e nem pode haver quaisquer relações dialógicas na linguagem, enquanto objeto da lingüística”
uma vez que esta ciência só pode tratar dessas relações no plano da língua, diz Bakhtin (1997, p. 182).
Assim sendo, como a tradução diz respeito à relação do eu com o outro, confirmando o dialogismo do

Proceedings XI International Bakhtin Conference 428


discurso, não pode o tradutor se circunscrever aos fatos da língua. Importa buscar as relações presentes
no campo do discurso, enquanto comunicação dialógica que se concretiza nos enunciados, indicando as
posições assumidas pelos diferentes sujeitos.
Neste trabalho parte-se da premissa de que os estudos sobre o texto privilegiam o significante, ou
seja, a expressão, o produto, o estudo da aparência. Por outro lado, os estudos que tratam do discurso
analisam o conteúdo, portanto, o processo, a imanência do sentido, onde se movem as vozes, represen-
tações dos pontos de vista sobre o mundo.
É nesse sentido que não importa se o tradutor tem diante de si um texto literário ou não. Seu traba-
lho primordial é o de observar a voz ou as vozes presentes no texto, os mecanismos empregados para
afirmar ou negar determinados juízos, para concordar ou discordar de determinada asserção, implícita
embora em todo e qualquer texto.
Pretende-se aqui a observação das figuras do discurso, uma vez lexicalizadas. A observação do lé-
xico serve, então, de ponto de partida para a análise, que irá tomar o texto nos seus mecanismos de
construção argumentativa, empregados com o objetivo de fazer crer, além de fazerem saber, mesmo se
circunscrevendo ao gênero “divulgação científica”.
Tal gênero sofre coerções que constroem um efeito de objetividade para a enunciação que necessita
parecer distante do próprio enunciado, para melhor convencer. Essa distância pressupõe, entretanto, a
presença de várias vozes, seja para refutar, seja para reforçar determinadas afirmações, como ocorre no
texto analisado, o que se confirma como um caso de inter-relação dialógica entre palavras diretamente
significativas dentro de um contexto (cf. Bakhtin 1997, p. 188). Essa distância estabelece uma relação
dialógica mais ampla, como a relação de acordo, desacordo, refutação entre enunciações, tanto em
função do próprio gênero, quanto em função da tradução de um texto de tal gênero.
Interessa destacar que, dessa forma, as palavras que se referem a um mesmo tema não se encontram
dispostas no texto como objetos. Não se trata de mera exposição das idéias propostas pelo sujeito, ou
pelos vários sujeitos que possam estar presentes no texto. Elas devem ser entendidas como orientadas
para um fim e é, dessa maneira, que são manipuladas pelo autor, que as emprega sem lhes mudar o
sentido e o tom, e passam a integrar um mesmo discurso objetificado, como se fosse um único discurso,
de uma só voz. Eis como se dá a tradução de um texto do gênero “divulgação científica”.
Para o leitor desavisado, porém, só uma voz é audível e o texto ganha a ilusão de uma unidade. Para
o analista do discurso, ou para o tradutor que vai se servir dessa análise para dar maior confiabilidade
ao seu trabalho, é necessário perceber o processo dialógico que se instaura.
O narrador, ao integrar no seu texto uma outra enunciação, reelabora regras sintáticas, estilísticas
e composicionais, o que permite assimilar a enunciação do texto-base e manter, em pelo menos algum
aspecto, a autonomia do discurso do outro, condição para que possa ser realmente apreendido.
Esse discurso deverá ser recuperado e reorganizado de acordo com as regras da nova língua. Portanto,
é o discurso que deverá ser traduzido, incluído aí o estilo proposto pelo texto-base, com isso, o modo
de presença da enunciação do texto-base é o que deve prevalecer.
A língua é o reflexo “das relações sociais estáveis dos falantes” (Bakhtin 1992, p. 147). Essas rela-
ções, em função dos objetivos do contexto da tradução, expõem formas que variam segundo a época
ou os grupos sociais. Assim, mesmo que se pretenda traduzir Voltaire, por exemplo, mantida uma cor-
respondência ética com a obra e não fazendo uma adaptação das idéias daquele autor, deve-se buscar
expressões da época em que a tradução está sendo realizada, mas que correspondam ao estilo empregado
na época em que a obra foi escrita, para que a leitura não se torne árdua e confusa sem, no entanto,
perder de vista que é uma obra escrita no século XVIII, e encontrando soluções que permitam ao leitor
da tradução lembrar-se disso.
O processo de interação social na constituição do signo, e, por conseguinte da significação, proposto
por Bakhtin, leva em conta a noção de ideologia e embora esse autor não tenha constituído uma me-
todologia de análise do discurso, suas propostas vêm ao encontro de muitas das idéias aplicadas pelos
atuais desdobramentos da Análise do Discurso de linha francesa (Jorge, 2002).
Cada figura do discurso, vista como unidade semântica, precisa ser entendida em função do movimento
enunciativo que a gerou, influenciada pelo dito e o dizível e em concordância com o interdiscurso, isto
é, o discurso influenciado pelo discurso do outro ou por um discurso virtual.
Através da enunciação o sujeito define sua posição no discurso, por meio de índices que Maingueneau
(2000) define como embreantes, cuja função é articular o enunciado à situação de enunciação e cujo
valor referencial varia em função dessa mesma situação. Daí a importância de se observar o sujeito e
sua relação com o discurso e questões como lugares, gêneros do discurso, deixis discursivas, ethos e
arquivo.
Portanto, o trabalho de tradução que se apóia na Análise do Discurso, passando pelas idéias propostas
por Bakhtin, que antecede e quase propõe essa disciplina, realiza-se no nível do discurso, sem abandonar
o nível da manifestação, onde atuam as coerções do material, ou seja, o sistema da língua do texto-base
e o da língua da tradução ou Língua de Chegada, uma vez que a tradução se realiza entre duas línguas
naturais (Jorge, 2000, p. 58).
É nesse nível da manifestação que se dá a textualização, sendo agregados ao discurso novos signi-
ficados. É também nesse espaço, o da textualização, que o tradutor atua, ou seja, em relação à forma

Proceedings XI International Bakhtin Conference 429


com a qual ele organiza o seu discurso. Entretanto, a liberdade discursiva do tradutor é pequena, desde
que ele deseje manter uma proximidade entre sua tradução e o texto base. Ele sofrerá coerções quanto
ao tema, às figuras, às formações discursivas do texto-base e, sobretudo, estará limitado pela própria
ideologia, tendo, portanto, de abdicar de si mesmo, enquanto sujeito que fala por meio de crenças pró-
prias, ainda que na verdade ditado por elas.
Uma vez que considero que a função do tradutor é construir a imagem do simulacro da convergência
ética, para criar essa ilusão é necessário que o tradutor realize uma análise capaz de revelar os recur-
sos persuasivos e estratégicos da nova enunciação, fazendo convergir cenografias e vozes ideológicas,
criando, assim, uma nova enunciação em que estejam presentes recursos de imitação e captação do
texto em que se baseia a tradução.
Por outro lado, como aponta Coracini (1991, p. 186), tanto o texto que resulta da tradução, quanto
aqueles que os diferentes leitores irão produzir são constituídos pelas vozes que estão presentes na própria
constituição desses sujeitos. Essas vozes dialogam entre si para a constituição do sentido e possibilitam
a compreensão dos textos, sejam eles literários ou científicos.
Para Vigner (1979) o que caracteriza um texto científico é a ausência de um sujeito, enquanto agente
histórico e socialmente determinado do processo de pesquisa, através da neutralidade no que se refere
à apreciação pessoal, à subjetividade, pressupondo-se que qualquer que seja o pesquisador o resultado
será sempre o mesmo. A missão do discurso científico seria a de transmitir um conteúdo de sentido
relativo a atividades cognitivas que não permita a perda de informações, nem permita ambigüidades
na interpretação da mensagem. Ao invés das marcas do sujeito enunciador coloca-se em destaque a
exposição dos dados, da pesquisa e dos resultados.
Ora, sabemos, através da Análise do Discurso e da própria noção de dialogismo, que não é exatamente
isso que ocorre. Existe sim um sujeito enunciador e enunciatário em qualquer texto, seja ele literário,
científico ou de divulgação científica. Somente, nos dois últimos casos, ele está disfarçado, procura não
se fazer notar, criando o simulacro da não-pessoa. Para isso o autor lança mão de recursos que lhe per-
mitam construir o efeito de objetividade.
Assim, no texto analisado aqui nos limitamos a alguns aspectos que se sobressaem e permitem
observar o que caracteriza o discurso ao qual um tradutor deveria se reportar. Partiremos do plano de
expressão do texto onde se observa a funcionalidade da gramática na construção desse efeito de obje-
tividade através de uma enunciação que deve, de acordo com coerções do gênero divulgação científica,
parecer distante do próprio enunciado para melhor convencer. Observa-se a ausência de metáforas e é
empregada uma sintaxe onde predomina a voz passiva analítica, sendo que, na maior parte dos casos,
ocorre a eliminação do agente da passiva, o que reforça a imagem de distância.
No texto em questão, podem ser observadas cerca de quinze frases na voz passiva, presentes em
todos os parágrafos, sendo que o agente da passiva está presente em apenas três delas:
1. Un dossier récent réalisé par la revue Phisyc Today...
“Um estudo recente realizado pela revista Phisyc Today...”
2. La contamination des sols est évalué par l’Administration ...
3. “A contaminação do solo é avaliada pelo Governo...” les choix faits ou envisagés par
l’Administration...
“... as escolhas feitas ou consideradas pelo governo...”.
Em dois desses casos, o 1 e o 3, a passiva sofre até mesmo a elipse do verbo ser, constituindo-se
através da frase nominal apoiada no particípio passado:
Ainda nessa mesma dimensão, outro exemplo da sintaxe da frase é o emprego do pronome om, que
se utiliza em francês como forma de indeterminar o sujeito, o que cria o simulacro da não pessoa, se-
gundo as regras do gênero que se está estudando. Esse pronome, em vários contextos, pode até mesmo
transmitir uma idéia de ação passiva, sem a presença do agente e reforçando a impessoalidade das ações
e da enunciação e confirmando a imagem de distância, fato presente neste texto.
De acordo com Maingueneau (1993), o on pode ter uma interpretação genérica, da mesma forma que
remeter à subjetividade enunciativa e, dessa forma, sem qualquer ruptura narrativa é possível passar da
singularidade à expressão da generalidade. É por essa razão que, no gênero em questão, o on se presta
admiravelmente ao papel de dissimulador do sujeito enunciador.
Esse pronome surge, pela primeira vez, no meio do texto, numa espécie de clímax técnico, onde se
afirma a quantia necessária para resolver o problema em questão: os dejetos radioativos:
· On estime à un milliard de dollars l’argent qui serait nécessaire...
“Estima-se em um bilhão de dólares o dinheiro que será necessário...”
O segundo emprego é quase no final do texto, ao introduzir uma solução proposta para a questão:
· Un groupe de parlementaires a proposée qu’on se construise ...
“Um grupo de parlamentares propôs que se construa...” - (que seja construído...)
E, finalmente, ele é empregado no último parágrafo, na frase que apresenta a solução proposta para
resolver o problema:
· On s’attend à ce que l’Etat fédéral soit obligé...

Proceedings XI International Bakhtin Conference 430


“Espera-se que o Governo federal seja obrigado...”
Em nenhum momento o sujeito-autor se identifica por um “eu”, ou nós. Os sujeitos presentes nas
frases na voz ativa são referenciais:
1. Les États Unis Os Estados Unidos
2. certains conteneurs alguns bujões
3. L’AdministrationO governo
4. Nombre d’hommes politiquesInúmeros homens políticos
5. Le stockage des déchetsO armazenamento dos dejetos
6. Le site de Yucca Mountain A área de Yucca Mountain
7. La pluplart des experts compétentsA maioria dos especialistas competentes
8. Un groupe de parlementairesUm grupo de parlamentares

O autor se serve desse sujeitos para expor os fatos - exemplos 1, 2, 3, 5, 6 – e para reforçar as
idéias propostas, que ganham crédito pelas vozes outras pessoas de importância incontestada, como os
especialistas competentes, os parlamentares, disfarçando, assim, sua própria opinião.
Elas podem, entretanto, ser identificáveis, ainda, pelo uso de advérbios ou locuções adverbiais de
intensidade, que permitem ao analista perceber a importância que ele quer dar ao assunto:
· encore plus conséquentainda mais séria
· en profondeurprofundamente
· rien queapenas
· sans finsem fim

· Podemos, ainda, observar a enunciação que se esforça por fazer crer, nas orações ou expressões
comparativas, que ressaltam a importância do que está sendo dito. A primeira termina, inclusive, por um
ponto de exclamação:... presque autant que le coût cumulé du programme nucléaire américain depuis
la Seconde Guerre Mondiale!
“...quase tanto quanto o custo acumulado do programa nuclear americano desde a Segunda
Guerra Mundial!”

· L’un des problèmes les plus urgents...”Um dos problemas mais urgentes...”

Portanto, encontramos a ênfase da argumentação baseada na escolha das figuras que se lexicalizam
de maneira própria, no emprego dos advérbios, na citação de outros para validar o que é dito – revista
científica, especialistas, parlamentares - na ênfase da argumentação baseada em números e porcenta-
gens, de maneira a se desvendar uma voz que toma partido, desfazendo a ilusão falsa de “objetividade”.
Concomitante a tais fenômenos, os embreantes que introduzem as orações, a própria ordem dos termos
da oração, a escolha de determinada variante lingüística e, voltando ao léxico, o peso da subjetividade
dado pelos adjetivos, como se pode observar no próprio título, devem remeter a uma enunciação ansiosa
por fazer crer, apesar de dissimular-se, como compete ao gênero do texto.
Ao realizar a tradução, portanto, o profissional atento deve entender o texto em toda sua imanência
e aparência, ter em mente a necessidade de imitar os processos de construção do texto-base, de criar
um verdadeiro simulacro do outro, o que no caso de uma tradução do francês para o português é fa-
cilitado pela proximidade de estruturas gramaticais e sintáticas que permitem um efeito de sentido de
relativa similaridade. Romper com essa forma e produzir um texto que não corresponda ao discurso, ao
estilo proposto pelo autor do texto-base significa falar do mesmo tema, porém não significa fazer uma
tradução.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV), Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1992.
__________________Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
CORACINI, M.J., Um fazer Persuasivo. Campinas, São Paulo : Pontes, EDUC, 1991.
La Recherche: États-Unis: un lourd héritage. Paris, No. 301, p.67, 1997.
MAINGUENEAU, D. Análise de Textos de Comunicação. Cortez. São Paulo. 2000.
__________________ Éléments de linguistique pour le texte littéraire. Paris. Dunot, 1993.
VIGNER, G. Lire : du texte au sens. Paris. CLÉ International, 1979.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 431


Texto chave: ÉTATS-UNIS: UN LOURD HÉRITAGE
Avec 109 des 436 centrales nucléaires com- merciales existant dans le mon-
de, les États- Unis ont accumulé près de 20% des déchets Nucléaires civils de la
planète. Mais comme l’indique un dossier récent réalisé par la revue Physics Today1,
le volume des déchets issus du programme militaire est encore plus conséquent.
Au total, déchets civils et militaires cumulés représentent 5,5 millions de m3 et 31
milliards de curies. Les sites militaires ont été contaminés en profondeur. La con-
tamination des sols est évaluée par l’administration à 200 ou 200 millions de m3.
Les nappes phréatiques ont été atteintes: plus de 2 trillions (1012) de litres d’eau
sont contaminés – soit l’équivalent de deux semaines d’alimentation en eau des
Etats-Unis. Les combustibles issus des réacteurs militaires ont été retraités, si bien
que les Américains se trouvent comme les français confrontés aux déchets issus du
retraitement. Sur les sites des anciens centres de fabrication d’armes nucléaires,
les déchets de “haut niveau d’activité”, notamment ceux issus du retraitement,
sont stockés sous terre dans des conteneurs dont certains fuient et dont le contenu
n’est souvent pas répertorié. On estime à un milliard de dollars l’argent qui serait
nécessaire rien que pour identifier le contenu des 177 conteneurs stockés sur le
seul site de Hanford. L’administration envisage plutôt de pomper ce contenu pour le
renverser dans des réservoirs de nouvelle génération afin de l’analyser plus commo-
dément. Au total le coût du “nettoyage” des sites du complexe militaire Américain
est évalué à une fourchette comprise entre 189 et 265 milliards de dollars... soit
presque autant que le coût cumulé du programme nucléaire militaire américain
depuis la Seconde Guerre mondiale! L’opinion publique est particulièrement sen-
sibilisée. Nombre d’hommes politiques contestent les choix faits ou envisagés par
l’administration pour le stockage à long terme. Même le stockage des déchets de
faible activité pose des problèmes politiques locaux pour l’instant insurmontés.
Les projets de stockage définitif des déchets de haute activité font de querelles
sans fin, y compris dans les milieux scientifiques. Le site de Yuca Mountain, en
particulier, dans le désert du Nevada, est la source d’une abondante littérature.
La plupart des experts compétents ont le sentiment que globalement le dossier
des déchets nucléaires aux Etats-Unis est bloqué pour longtemps. Un groupe de
parlementaires a proposé qu’on construise à Yucca Mountain au moins un site de
stockage provisoire, mais le président Clinton a fait savoir qu’il opposerait son veto.
L’un des problèmes les plus urgents est que la capacité de stockage des centrales
est en train d’atteindre ses limites. On s’attend à ce que l’Etat fédéral soit obligé
de prendre les choses en main. Les projets de transmutation sont jugés technique-
ment concevables mais irréalistes, compte tenu du coût de la filière retraitement.
O.P.-V. (1) juin 1997.
Palavras chave: tradução, análise do discurso, mecanismos de tradução.
Biografia: Marilei Jorge, Mestre em Lingüística Aplicada pela PUC, SP e Doutora
em Comunicação e Artes pela UPM. Foi professora da Rede Estadual de Ensino de
São Paulo por 25 anos e Chefe do Departamento de Letras e Línguas Estrangeiras,
de agosto 1999 a agosto 2003, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde
é Professora Língua Francesa e Tradução. É Tradutora e Intérprete Juramentada
do Estado de São Paulo, também tradutora, sobretudo de textos técnicos. Possui
diversos artigos publicados em revistas científicas, entre elas a Revista Todas as
Letras da UPM e Synergies Brésil, da UFSC, grupo GERFLINT.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 432


Cantando desde la entraña: Bajtín, Zubiri, Lorca
(la estética lírica del antílogo)

Christina Karageorgou-Bastea

Para M-P. M.

Abstract
In this paper I present an approach to the architectonic form of the lyric, first from a theoretical point
of view and then analyzing a poem from Lorca’s Poema del cante jondo (1931). Using Xavier Zubiri’s
concept of space as a system of spatial notes, always active, dynamic and relative, which evokes Bakhtin’s
exotopy, I draw the map of individuals or groups at odds in the “Baladilla de los tres ríos”. Through lyric
discourse these entities strive for supremacy within the boundaries of Andalusian geography and col-
lective memory. Against Bakhtin’s a-spatial conception of the lyric genre, in this paper I am particularly
interested in the constitution of a lyric agent as presence endowed with spatial concretion in terms of
interiority and intimacy.

El Poema del cante jondo transcurre en Andalucía1. Lorca no intentó sembrar dudas al respecto:
menciona ciudades, ríos, géneros musicales típicos del mundo andaluz, personajes del flamenco, cafés
cantantes, paisajes, leyendas locales. De tan obvio, el espacio del poemario no ha aparecido problemá-
tico para la crítica, que, por una parte, funda en él el tradicionalismo y gitanismo del poeta granadino,
mientras por la otra, adjudica a la geografía un valor metafórico2. El topos del poemario se ha explicado
como una escenografía. A veces es un objeto, como la caja de resonancia de la guitarra o la castañuela-
crótalo, orígenes metonímicos de la tradición flamenca. En otras ocasiones el espacio es un pliegue del
desierto por el que vino el gitano errante. El libro de Lorca abre con la “Baladilla de los tres ríos”; una
de sus secciones se llama “Tres ciudades”; incluye títulos como “Paisaje” (157), “Pueblo” (168), “Encru-
cijada” (170), “Cueva” (174), “Balcón” (185), “Camino” (190), “Barrio de Córdoba” (212). No obstante
la riqueza y la recurrencia de las menciones a esta geografía siempre presente, nula atención se ha
dado a las implicaciones de la densidad espacial para la lírica, considerada como discurso a-espacial por
excelencia.
Ni la interpretación tropológica del espacio, en tanto medio para crear un isomorfismo entre palabra
y geografía, ni la acepción de que el espacio es una manera de tematizar la tradición, llevarían más allá
del plano material o del debate temático. Ninguno de estos enfoques daría cuenta de la forma lírica que
el poeta persigue. Propongo entonces entender el espacio del Poema del cante jondo como el lugar de
donde emanan el grito, el cante, la poesía, el discurso. Esto es, ver el espacio no como escenario, sino
como lugar de enunciación. Dando un giro al cronotopo bajtiniano, propongo analizar cómo en la lírica
lorquiana el yo que enuncia se hace audible -esto es, se le distingue de las demás voces- por su posición
en el espacio. La ubicación en el espacio se vuelve significativa en la medida del acto que la voz lleva a
cabo: cantar sobre algo. La identidad, pues, es una dación de la posibilidad de hacer audible un acento
sobre un tema, desde un punto en el espacio. Por eso, ocupar un punto poéticamente es un privilegio;
se trata siempre y ante todo de un lugar disputado por diferentes fuerzas que pugnan por expresión y
supremacía3.
1 Lorca empieza a escribir el libro entre 1921-22. Lo deja reposar nueve años durante los cuales escribe la mayor parte de su obra lírica, y acaba por pu-
blicarlo en mayo de 1931, al regreso de su primer viaje a América. Es digno de ser analizado -sin que esto signifique que alguien se haya preguntado sobre
el asunto- el por qué Lorca cede a las peticiones de los editores, y deja ir sus manuscritos del Poema del cante jondo, revisados por Martínez Nadal, a las
ediciones Ulises. Después de Poeta en Nueva York, El público y Viaje a la luna, que hasta 1931 son sus obras de poética más vanguardista, García Lorca
regresa a una estética casi modernista que, inclusive en su colorismo local, parecería ya rebasada por el Romancero gitano. Mi hipótesis es que Lorca va
forjando en este poemario juvenil una suerte de yo lírico para renovar la tradición que ha heredado. Este yo lírico es híbrido: culto y tradicional, poético y
pictórico, pero también musical, histórico y utópico. Para cotejar la evolución de la poética lorquiana en el libro sobre el canto andaluz véase Rafael Martínez
Nadal, “Prólogo”, a Federico García Lorca, Autógrafos I, edición de —, (The Dolphin Book, Oxford, 1975). Todas las citas al Poema del cante jondo son de
Federico García Lorca, Obras completas, tomo I, recopilación, cronología, bibliografía y notas de Arturo del Hoyo, prólogo de Jorge Guillén, (Aguilar, Madrid,
3 vols., 1986, tomo 1; y se darán con el número de página entre paréntesis en el cuerpo del texto).
2 Sobre la interpretación metafórica del espacio en el Poema del cante jondo véase Gonzalo Correa, La poesía mítica de Federico García Lorca (Gredos,
Madrid, 1970), p. 21; Pedro Córdoba Montoya, “Lorca teórico del lenguaje o el origen sentimental de las palabras”, en AA.VV., Homenaje a Federico García
Lorca, (Université de Toulouse-Le Mirail Service des Publications, Toulouse, col. Travaux de l’Université, Série A- nº XX, 1982), p. 142. Sentidos universales
en lo espacial encuentra también David K. Loughran en su libro Federico García Lorca. The Poetry of Limits, (Tamesis London, Books Limited, 1978), pp.
57, 67, 69.
3 Las voces no ocupan un lugar de autoridad, por lo menos no a la manera de fuerzas socioculturales, como pasa en la novela. Sin embargo, en cuanto a
acceso al poder de la palabra, los sujetos audibles en el mundo del poema son privilegiados respecto del coro de voces del que han salido. Por ejemplo, en
el Poema del cante jondo los gitanos y las mujeres se hacen oír. Su espacio de enunciación no corresponde al de la autoridad; sin embargo, su manera de
trascender sobre el espacio -esto es, sobre las demás voces - implica una posición privilegiada para el sesgo que toma el acontecimiento lírico.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 433


Para Bajtín, “[l]a lírica excluye todos los momentos de la expresividad espacial del hombre, no localiza
ni delimita al héroe totalmente en el mundo exterior y, por consiguiente, no ofrece la sensación de la
finitud del hombre en el mundo […]”4. Si el cronotopo se vuelve rector de la imagen posible del hombre,
por delimitar desde la literatura su espaciotemporalidad histórica, quisiera aquí abogar por una imagen
cronotópica de la lírica: en ésta el agente del discurso y el espacio de la enunciación se construyen y se
abren a la historia recíproca y simultáneamente. La voz lírica se articula para romper el silencio que le
impide relacionarse con los demás: el silencio, como la oscuridad, hace al otro invisible en la lírica; la
palabra ocurre en el espacio iluminándolo, haciendo visible la posición ajena, y audible su voz. Así se
llega a la siguiente resistencia de Bajtín con respecto a la lírica: el monologismo de la palabra poética5.
La no espaciosidad del héroe lírico, su fragmentación, la ausencia de argumento, la imposibilidad de
movimiento, y la coincidencia de autor y héroe en la lírica son las razones por las que Bajtín no reconoce
en la lírica de raíz romántica sino una y sola voz. Considero que cada uno de estos elementos nace de la
falta de espaciosidad, y que una aproximación nueva a ésta podría dejar que se oyeran más nítidamente
las diferentes voces que resuenan en la lírica.
El topos lírico no es el de la acción solitaria, ni el de la contemplación. Es el destino final del movi-
miento respectivo que los puntos de una estructura emprenden al reaccionar hacia un tema; es el cam-
po de batalla para ocupar un lugar en un tiempo: el de la enunciación. Sin embargo, no se trata de un
espacio escenográfico, constituido a partir de puntos visibles antes que la voz surja. El espacio lírico es
una construcción de presencias y discursos en capas. Esta estructura geo- genealógica es particular del
discurso lírico. No las coordenadas de extensión, sino los estratos y sedimentos, las vetas solapadas dan
al volumen de la memoria y a la capacidad de evocación una sede lírica específica. En el timbre de la voz
que canta se recupera una gama de ecos moradores. Estar en este espacio otorga identidad; sobresalir
como un acento particular del rumor de la batalla es ser. El espacio lírico es una estratificación del tiempo
ordenada por la voz. Cada voz que ocupa el lugar de enunciación propone una estructura distinta del
pasado, una geo- genealogía particular. En este sentido, el cronotopo lírico lorquiano se crea por puntos
espaciales, cada uno de los cuales constituye el destino de una línea temporal que hunde sus raíces en
la tradición, y emerge a la superficie para formar parte de un sistema de presencias.
La idea de locus como estructura de puntos viene de Xavier Zubiri quien, en 1973, define como tal la
construcción trascendental del espacio. Para el filósofo español, la calidad del espacio en cuanto realidad
es la espaciosidad: el excedente de lo que es en la realidad del espacio. Construida a partir de diferentes
puntos o notas, que se encuentran en el espacio, la realidad se basa en la espaciosidad y, en tanto tal
es respectiva, porque se rige por un dentro y un fuera-de; activa, porque siempre da de sí; y dinámica,
porque es cambiante. Toda nota de la estructura del espacio está fuera de las otras, y dentro de sí mis-
ma; es siempre nota-de6. Zubiri distingue entre el espacio geométrico y el físico, y considera la ficción
una construcción posible del espacio geométrico, una estructura sentida, imaginada, una distribución
posible, aunque no aprehendida como real7. Propongo que, en materia lírica, la espaciosidad de la voz
se entienda como respectiva en función de la memoria que asume como responsabilidad frente a otras
memorias insinuadas o sentidas, siempre emergentes de puntos distintos en el espacio; como activa
porque siempre excede su propio discurso presente al remitirlo al pasado; y como dinámica porque re-
mite al punto de un oyente siempre diverso. Por lo demás, las tres características de la enunciación lírica

4 Y prosigue el filósofo ruso: “[…] (la fraseología romántica acerca de la infinitud del espíritu es sobre todo compatible con los momentos de la forma
lírica); luego, la lírica no define ni delimita el movimiento vital de su héroe mediante una fábula acabada y concisa; y, finalmente, la lírica no tiende a la
creación de un carácter acabado de héroe, no traza una frontera precisa de la totalidad del alma y de toda la vida interior del héroe (sólo tiene que ver con
un momento de este todo, con un episodio del alma) [...] el primer momento de parte del héroe hace evidente su posesionamiento interior por la postura
valorativa del otro igualmente interna”, Mijaíl M. Bajtín, Teoría y estética de la novela. Trabajos de investigación, tr. Helena S. Kriúkova y Vicente Cazcarra,
(Taurus, Madrid, 1989), pp. 148-149. Bajtín ve la conciencia del héroe lírico como un proceso concluido desde la voz del autor, desde afuera, nunca como
un proceso orquestado en el que el yo participa. Cfr. la construcción del héroe en Dostoievsky en Mijaíl M. Bajtín, Problemas de la poética de Dostoievsky,
tr. Tatiana Bubnova, (F. C. E., México, 1986), pp. 71-111. Para una argumentación en contra del monologismo que Bajtín adjudica a la lírica, desde el punto
de vista del concepto de responsabilidad, también bajtiniano, véase Michael Eskin, Ethics and Dialogue in the Works of Levinas, Bakhtin, Mandel´stam and
Celan, (Oxford University Press, Oxford, 2000), pp. 115-116. Eskin parte del propio Bajtín; una vez considerada la palabra como acto, y la responsabilidad
inalienable creada siempre entre el yo y el otro, se niega de manera orgánica la voz única de la lírica.
5 Frente a la palabra en la novela, el discurso lírico “[…] no conoce la sensación de marginación, ni la de historicidad, ni la de determinación social y es-
pecificidad del propio lenguaje [...] El lenguaje se autorrealiza en la obra poética como evidente, incontestable, y universal [...] El lenguaje del género
poético es un universo ptolomeico unitario y único, fuera del cual no existe nada y no se necesita nada [...] El universo de la poesía, sea cual sea el número
de contradicciones y conflictos irresolubles revelados por el poeta, se ve siempre iluminado por la palabra única e incontestable. Las contradicciones, los
conflictos y las dudas, se quedan en el objeto, en los pensamientos y en las emociones; con otras palabras, en el material; pero no pasan al lenguaje [...]
La responsabilidad igual y directa de toda la obra frente al lenguaje (como lenguaje propio), la plena solidaridad con cada elemento suyo, con cada tono y
matiz, es una exigencia fundamental del estilo poético [...] El poeta no puede oponer su conciencia poética, sus intenciones, al lenguaje que utiliza, porque
se encuentra íntegramente en él [...] La unidad y unicidad del lenguaje son condiciones indispensables para la realización de la individualidad intencional
directa (y no objetual característica) del estilo poético y de su consecuencia como monólogo [...] Como resultado de las condiciones que hemos analizado
el lenguaje de los géneros poéticos [...] se convierte frecuentemente en autoritario, dogmático, conservador, enclaustrándose para protegerse de los dia-
lectos sociales, extraliterarios.” M. M. Bajtín, Teoría y estética..., pp. 102-105, cfr. con “La forma lírica es especialmente sensible a la posición del oyente.
La condición principal de la entonación lírica es la inquebrantable confianza en la simpatía de los oyentes. Apenas una duda penetra en la situación lírica,
el estilo de la lírica cambia violentamente”, y “[c]uanto más el poeta está separado de la unidad social de su grupo, tanto más se inclinará por tomar en
cuenta las exigencias externas de un público determinado. Sólo un grupo social ajeno al poeta puede determinar desde el exterior su obra. Su propio grupo
no requiere una semejante definición externa: se manifiesta en la propia voz del poeta, en su tono principal, en sus entonaciones, lo quiera o no el propio
poeta”, Valentín Voloshivov (M. M. Bajtín), “La palabra en la vida y la palabra en la poesía. Hacia una poética sociológica”, en Mijaíl M. Bajtín, Hacia una
filosofía del acto ético, tr. Tatiana Bubnova, (Anthropos, EDUPR, Barcelona, 1997), pp. 134. Bajtín se muestra incapaz de oír los acentos del discurso lírico
porque la solidaridad de clase que la voz única implica lo hace sordo a todos los demás acentos que se pueden oír en la lírica: desde las voz del género
hasta la voz de la edad, desde la voz del conocedor o del lego, hasta la voz del rebelde y del opresor se abren matices de identidad que sólo cobran sentido
en diferentes momentos de la historia. Lo que la lírica nos obliga a hacer, en casos en los que quiere llevarnos a oír otros acentos, es delimitar la estructura
espacial de la superficie del discurso, la distribución de los puntos de enunciación en el espacio en función de los hilos de tradición y memoria que cada uno
de los acentos implica. Esto sucede tanto en un mismo poema, como en poemas con nexos intratextuales. Bajtín menciona que cierta pluralidad de acentos
se puede oír en el lenguaje de los géneros poéticos bajos, en la poesía prosaica del siglo xx, y que a veces los personajes de las obras poéticas pueden
utilizar un discurso distinto al del autor, pero cosificado dentro de la unicidad que lo engloba, M. M. Bajtín, Teoría y estética..., p. 104.
6 Xavier Zubiri, Espacio. Tiempo. Materia, (Alianza, Madrid, Fundación Xavier Zubiri, 1996), pp. 127-159.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 434


constituyen condición sine qua non de la forma arquitectónica de la lírica como totalidad8.
Según Zubiri, la espaciosidad del ser humano le es exclusiva, ya que por medio de su inteligencia éste
está en el espacio, y por estar, es; los objetos o inclusive los animales ocupan el espacio. El ser humano
tiene su propia espaciosidad, en cuanto a que su modalidad de existir implica una estructuración ejemplar
del excedente del ser, es decir, de lo trascendental en todo lo que es en la realidad: “El hombre es algo
interno, interior e íntimo frente a lo que es externo, exterior y éxtimo. Y la manera de ser real en cada
uno de estos aspectos es estarlo excediéndolo para ser real según el otro”9. En cuanto al análisis del
texto lorquiano, la estructura concéntrica de la espaciosidad del ser me servirá para discernir los distintos
entes a raíz de la enunciación interna, correspondiente a una interioridad, y reveladora de intimidad. La
espaciosidad de la voz lírica -su ser- es el excedente de decir o dejar oír desde un espacio que a pesar
de parecer unidimensional y transparente, revela sus estratificaciones por medio de ecos concéntricos
en los que se oye la voz desde la memoria.
¿Cuál es la importancia del espacio para los cincuenta y tres textos del Poema del cante jondo? ¿Qué
elementos, más allá de los nombres, hacen que el lector tenga la sensación de estar frente a una geografía
vivificada, concreta, reconocible en su singularidad, a pesar de la fragmentación de acontecimientos y de
la opacidad temporal? ¿En qué medida, al decir Andalucía, se pasa de la arbitrariedad del nombre propio
a la palabra poética motivada, por la que se otorga sentido causal a un espacio arbitrario y heterogéneo?
Mi hipótesis es que sólo gracias a su espaciosidad se vuelven audibles los agentes de enunciación del
poemario. El espacio lírico del Poema del cante jondo propicia un tipo de actitud discursiva -de acumu-
lación-, en la que el tiempo se mide en términos de memoria inscrita, de ecos que pueblan su trayecto
desde las entrañas de la tierra, habitadas por la historia, hasta la superficie donde la voz se despliega. El
discurso lírico del Poema del cante jondo es anamnesis transitada: de la remembranza oculta en el eco a
la permanencia de la escritura, del temblor interno al gesto desenvuelto, de la colectividad al individuo,
de ser memoria a ser hecho memorable.
Lo anterior, no es un resultado, sino un proceso para cuya realización es imprescindible más de un
yo lírico. De lo que se trata en el Poema del cante jondo es de representar aquellas voces interlocutoras
que han ido construyendo el entorno cultural del poeta. La enunciación emana del cronotopo andaluz,
gracias a él se pueden reconocer ecos y acentos que entran en diálogo, a pesar de la distancia histórica
que los separa: así los gitanos sedentarios de 1922 hablan con sus antepasados nómadas, las mujeres
de hoy con los reyes de ayer, el cantaor con el cronista medieval, el río- mercante con el río-enamorado,
el poeta con el pájaro cantor, el cofrade con el guerrero. Las voces en interacción se acumulan en el
paisaje lírico conforme animan la vehemencia o desmayo de matices en la voz individual.
La misma historia se cuenta líricamente varias veces en este libro. Los entes se van cercando y de-
finiendo por la colectividad. La diferencia entre versiones y rostros no se puede justificar sin tomar en
cuenta la plenitud espacial de quienes enuncian, pero tampoco sin oír a quienes sólo resuenan al filo de la
muerte. La versión memorable de una historia en el Poema del cante jondo es inconcebible sin su arraigo
en el espacio de enunciación. Éste se constituye doblemente: con respecto al recuerdo que salva de la
voracidad del tiempo y del olvido; y en función del espacio que ocupan sus oyentes. Entre ellos hay que
contar herederos y rivales de esta memoria. En el libro no existe un yo y un coro homogéneo; más bien
el lector se encuentra con una multitud disonante, cuyos individuos compiten desde derroteros distintos
por primacía o supervivencia. Entre ellos algunos luchan también por la cohesión.
Para obtener un mapa estético de la espaciosidad del Poema del cante jondo hay que entender la
axiología por la que se estructura esta ficción; por la que sus objetos o seres, las notas individuales
de su mapa, se privan o se dotan de vida interior e íntima. En 1922, la correspondencia entre discurso
y grupo cultural había estilizado el mundo andaluz. En otras palabras: se había sustraído la vitalidad
de este mundo del espacio estético que Lorca habita como poeta. Se necesitaba un nuevo sistema de
valores para hablar de Andalucía. ¿Cómo se podría lograr esto? Potenciando aquellas estructuras histó-
ricas ocultas tras capas de memoria fosilizada, a las que no había acceso para la palabra individual del
escritor culto; mezclando el registro culto con el decir y ponderar de la tradición. Al dotar de realidad
espacial objetos, mitos, arquetipos o géneros musicales, esto es, ponerlos en relación estructural entre
sí y con el entorno cultural del momento, Lorca pretende señalar el excedente de ser real de todos ellos;
su espaciosidad, su capacidad de ser fuentes de enunciación, agentes de un proyecto estético vigente.
De la geografía sin sentido pasamos en el Poema del cante jondo a un mundo palpitante de presencia
y memoria, palabra e inscripción, paisaje y movimiento, escenografía y acto. Es esta acumulación de
elementos identificatorios que dan sentido específico a nombres propios y lugares genéricos, y que al
cabo hace reconocible el espacio de Andalucía como el lugar poblado de voces.
“Baladilla de los tres ríos” (pp. 153-154), texto inaugural, pone en abismo la manera como el Poema
del cante jondo se crea ante todo como una forma de diálogo. Se trata de un diálogo evidente entre
formas poéticas: cuatro cuartetas de octosílabos y seis dísticos de endecasílabo roto ponen en contacto
la poesía narrativa y la lírica, la literatura oral y la culta, mientras la rima se convierte en otro hilo con-
ductor de unidad entre las formas de versificación dispares. Si por una parte los ríos tienen característi-

8 No se trata aquí de la totalidad como característica temático-argumental contraria a la fragmentariedad. Ésta siempre existe en cualquier tipo de discurso.
Es más, siendo un rasgo fundamental de elección de medios y propósitos, la fragmentariedad siempre es relativa al sistema de valores que un texto propone.
La totalidad a la que aquí me refiero es un elemento arquitectónico que aboga por una imagen completa del personaje lírico, ya que ante todo éste es la
medida del acto lírico principal: la enunciación. Sobre la forma arquitectónica véase Mijaíl M. Bajtín, Teoría y estética..., pp. 60-75.
9 Xavier Zubiri, op.cit., p. 189.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 435


cas humanas, actúan (“van”, “bajan”, vv. 2 y 4), tienen barbas (v. 8), suspiran (v. 14), en las cuartetas
hasta el verso 18, una voz los describe y recrea: el Guadaliquivir es la imagen de la felicidad, mientras
el Dauro y el Genil destilan dolor y tristeza. Los ríos parecen no tener sino una interioridad ekfrástica,
de imagen externa, propicia a la eterna metaforicidad de la poesía. En el verso 19, la voz apostrofa los
ríos: “Guadalquivir, alta torre/ y viento en los naranjales./ Dauro y Genil, torrecillas/ muertas sobre los
estanques”10. La identidad entre nombre propio y río pierde su uniformidad, y da lugar a otras identi-
ficaciones (“torre”, “viento”, “torrecillas muertas”). Lo que los ríos pueden ser o hacer se vuelve razón
existencial. El nombre propio se traduce, y la identidad de los ríos se pierde y se encuentra en la histo-
ria. Guadalquivir, siempre alegre y orgulloso, los otros, mortíferos y achaparrados. Las características
contagian las ciudades andaluzas, aunque es también la cartografía selectiva de ellas la que da carácter
emotivo a sus ríos (las torres altas y los naranjales de Sevilla; los estanques de agua inmóvil de Grana-
da). Así tenemos un nivel más de identificación que es la teleología interdependiente que existe entre
las ciudades y los ríos: por consaguinidad ciudades y ríos se identifican mutuamente. Mientras, Sevilla y
Granada dejan también su nominalismo y se cargan de razones por las que se vuelven espacios felices
o desgraciados. Lo que sí parece no cambiar, en todo caso, es la polarización espacial y emotiva de la
geografía andaluza.
El espacio se forja hasta el verso 25 en las cuartetas, pero la armonía polarizada entre Sevilla y Gra-
nada se encuentra constantemente interrumpida e interpelada por los dísticos que contaminan de diálogo
la descripción ordenada de la geografía. Los versos en cursiva insinúan la interpelación del verso 19, y
el todavía más profundo diálogo que ocupa los versos 25 y sucesivos. Hasta llegar a “¡Quién dirá que el
agua lleva/ un fuego fatuo de gritos” (vv. 25-26), la entidad discursiva de las cuartetas se ha configu-
rado desde su procedencia de un espacio panóptico, pleno de conocimiento, autosuficiente. A partir del
verso 25 la situación cambia. Con la exclamación se entra en diálogo. El uso del futuro -“dirá”- implica
incertidumbre y hasta pregunta implícita hacia un oyente. También se puede entender estos versos
como duda sobre la existencia de quien tenga la capacidad de oír los ríos. El sustantivo “fuego” susti-
tuye la sonoridad con la imagen y remite a la página en que se lee: a la grafía distinta de los dísticos,
a su orientación discursiva completamente ajena a la de las cuartetas. El adjetivo “fatuo” es en sí una
descalificación que no se sabe todavía si opina sobre la fatuidad del fuego o la fatuidad de la dicción en
sí. La exclamación subraya la duda sobre la enunciación de los ríos. Así se construye el testimonio de
una voluntad: negar el discurso adolorido del Guadalquivir, el Dauro y el Genil. El sentido aseverativo de
las cuartetas se contrapone a la queja de los dísticos, su sobriedad casi parece querer imponer un tono
autosuficiente que tiende a suprimir la lógica de las cursivas.
Con “¡Quién dirá [...]!”, también se insinúa otra entidad presente en el universo poético: en un momento
de implícita triangulación discursiva, alguien ha denunciado la negación de la voz principal a prestar oídos
a lo que los ríos hacen, a saber, generar geografía, cartografiar por medio su discurso amoroso el espacio.
Este tercero no registrado en la escritura, tampoco está fuera de la creación poética. En esta presencia
casi espectral se advierte la recuperación del origen oral de la lírica que Lorca busca más allá de la forma
o la temática: el que no se oye se incorpora en el poema por su reacción a él: es el oyente que interpela
al trovador, con un gesto que no se registra sino en la orientación volitiva final del poema11.
Las voces de cuartetas y dísticos entran en conflicto ante los ojos del lector: contestar aquí significa
reconocer la existencia de un contra-discurso, de un antílogo, que obliga a la voz principal a reubicar su
estrategia. Un indicio de esto es que de la oposición entre los tres ríos, la voz de las cuartetas subsuma
los ríos en la palabra genérica “agua” (v. 25). Y más adelante se reconoce la fuerza restauradora del
orden: la polarización se deshace en el nombre genérico de Andalucía, y se vuelve a una imagen feliz y
global de ésta: “Lleva azahar, lleva olivas,/ Andalucía, a tus mares” (vv. 29-30). Ya no son los ríos que
bajan, van, reman, llevan, mueren, sino una voz que conmina la misma Andalucía a seguir en su trajín
comercial (“olivas”) y sensiblero (“azahares”).
Desde un punto espaciotemporal privilegiado, la geografía andaluza que Lorca sondea quiere fundarse
en el contraste semiótico de sus ríos. El rumor de los dísticos, sin embargo, contraría esta visión bino-
mial. El murmullo es resistente; y el desafío discursivo de los gritos es al cabo reconocido. Si el curso
de las aguas tiene el fin de desembocar en el mar, cargado de productos, el poema no desemboca en el
mismo lugar, sino ahí donde se oye la obsesiva insistencia del susurro; en desacuerdo apasionado con
la entidad que enuncia las cuartetas. “¡Ay, amor/ que se fue por el aire!” y “¡Ay, amor/ que se fue y no
vino!” son la expresión de la corriente de agua que une en su caracterización de lamento los tres ríos,
superando las oposiciones pretendidas en las cuartetas y justificando plenamente el título, no de canto
a ellos, sino de “Baladilla” suya.
Quien quiso presentar matices cómodos en una oposición entre aquella Sevilla feliz, y su contraria
Granada triste, no contó con la resistencia de los ríos, que en tanto actitud reconocible y enunciación de
un punto espacial distinto, es calidad de ser más bien que de estar. La voluntad de los ríos se cristaliza en

10 El apóstrofe además de ser el tropo poético más visitado para transformar lo inanimado o animal en humano, da un sentido de presencia activa; sobre
esto véase Jonathan Culler, “The Pursuit of Signs, (Cornell University Press, Ithaca, 1985), pp. 135-154.
11 La oralidad es siempre performance, y en tanto tal se orienta hacia la recepción activa. La presencia espaciotemporal no separa trasmisor y receptor en
cuanto a la actividad estética formadora de la que se encargan: ambos interfieren en la creación. Pero los participantes no son sólo los que se incorporan
en la transmisión, en el acto comunitario por voluntad propia. La performance de la oralidad implica un cronotopo englobante en el que la imagen del
hombre emerge de todo lo que sucede en el alrededor, de todo lo que, casual o deliberadamente, interfiere en la actividad estética: ruidos, voces ajenas
a la circunstancia, interrupciones de silencio o error, gritos, etc. Sobre esto véase Paul Zumthor, Introducción a la poesía oral, tr. María Concepción García.
Lomas, (Taurus, Madrid, 1991), pp. 155-166.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 436


el interior de su curso, desde sus obsesivos versos en cursiva, que se enfrentan con la definición desde
afuera, y detienen su conclusión descriptiva. Si la interioridad se revela como posibilidad de enunciación,
la intimidad se proyecta como el acto de amar. Los ríos quedan dotados de un intra -su nombre-historia-,
un interior -sus versos- y una intimidad -su pena de amor-; logran separarse de esta Andalucía tópica
de “azahares y olivos” que la voz de las cuartetas propone como espacio total y homogéneo. El proceso
de identidad de los ríos, pero también de la misma Andalucía, es el paso de un nivel de ser a otro, paso
incitado por el enfrentamiento, es decir, por la espaciosidad respectiva, dinámica y activa de las distintas
voces, que se logra en la interacción dialógica. La Andalucía fraguada sobre el lugar común no será el
espacio en el que se desplegará la historia de Lorca, ni el yo lírico desde ninguna parte será el vehículo
único de este relato. Es más, entre los diferentes puntos que forjarán la geografía el lector ha de inter-
venir con un gesto que se inscribe en la textualidad como silencio en desacuerdo.
La multiplicidad de voces y su espaciosidad serán constantes de creación en el poemario. Lorca bi-
furcará su discurso en el mismo poema; en ocasiones sólo insinuará la existencia de más de una voz.
Otras, los poemas correrán sobre ésta voz en contra de otra o de un eco lejano, dejado atrás, hostil o
amigo, coral o individual, distinto por sus coordenadas y su manera de habitar el espacio, las honduras.
Estas existencias múltiples y alternas, atadas al espacio, darán a la geografía un sentido de coto. Por
la estructura del Poema del cante jondo, libro separado en secciones que parecen ciclos de poemas en
los que se cuentan historias, se da el fenómeno de la acumulación temporal en el espacio. Las múltiples
fuentes de enunciación van surgiendo a poco, trazando un proceso de maduración e introspección. Así,
se pasa de una noticia sobre una presencia sonora a la constatación de la naturaleza de quien habla.
Para esto se le delimita en espacio, con tal de que sea audible al final. Los poemas se suceden fabricando
razones suficientes para discernir entre las voces que participan en la hechura de la historia. Cada una
con su timbre informa sobre un portador que además de calificarse por lo que dice, por su tono, por su
ubicación espacial, se manifiesta con un gesto que señala su actitud hacia lo que las demás voces han
contado. A veces el lector siente que el texto lírico se va deslizando hacia una performance, donde re-
tórica y pantomima entran en un proceso de equivalencias. En estos casos, a la manera del cine mudo
por el que Lorca experimentó gran afición durante la década de los 20, la voz es sólo la insinuación de
una imagen, información sobre el movimiento de unos labios cuyas palabras es imposible oír, pero cuya
cancelación deja su huella en el gesto rotundo.
Conclusiones
La construcción acumulativa del espacio en el Poema del cante jondo implica más de una voz, más
de una actitud discursiva, que van en contra tanto de la no espacialidad como del monologismo al que
Bajtín confina la lírica. Lorca opone al tiempo lineal de la escritura, a su progresión unidimensional y a su
falta de simultaneidad, la creación y lectura de un mapa que no se puede descifrar sin sus antecedentes
memoriales. Éstos se ubican en el espacio como las capas geo- genealógicas del mundo andaluz, diverso
e imposible de revelar por vía de la nomenclatura o la simple acumulación de sus tradiciones, la oral y
la culta. Pero tampoco un acopio de modulaciones vocales o un corte transversal en la historia pueden
abrir a la recepción estética la tierra dadora de identidad; ninguna abstracción esencialista o muestrario
positivista cubriría de sentido los nombres conocidos. El espacio andaluz como sistema de puntos en
correlación requiere del enfrentamiento dialógico.
Esto se logra al dotar a las voces de razones suficientes para entrar en intercambio, lo cual implica
dotarlas de memoria, hacerlas enfrentarse por sus recuerdos. Desde lo más hondo, el espacio que ocu-
pan las voces se vuelve hilo conductor a la vez que prueba de esta cosmogonía mínima, en la que se
ensaya la historia de los seres y las tradiciones estéticas que confluyeron en Andalucía. Las voces del
poemario ocupan el lugar que enuncian, se enfrentan entre sí precisamente por estar en él; lo habitan y
lo tematizan; ahondan en él. En muchas ocasiones, los poemas no parecen contar historias, ni siquiera
engloban dos puntos espaciales; en estos casos, una contrapropuesta que Lorca sostiene en otro poema,
en otra sección del libro, es la otra voz, el otro espacio desde el que se apela a la memoria misma del
poemario. Éste es el caso de la Parrala y la figura de Amparo, en “Café cantante” y “Amparo”. El erotismo
decimonónico y cursi de esta última se estrella contra la sensualidad mortal que surge entre la cantaora
y la muerte, y en esta colisión se leen dos tipos de andaluzas, dos resultados de educación estetica y
sentimental, dos versiones de feminidad.
Otra estrategia que Lorca utiliza es definir una y otra vez espacios, actos y personajes del mundo jon-
do: Sevilla, la guitarra, Córdoba, un candil, el grito, el Guadalquivir, el balcón, la Lola, aparecen móviles;
cobran continuidad en el tiempo y son en la medida que están en distintos espacios. A veces el locus de
enunciación se pone a prueba: se configura por medio de versiones de un mismo acto, separadas por el
pasar del tiempo; un tiempo significativo porque en él cambió radicalmente el mundo en el que los seres
viven. Esto pasa entre el primero y el último poema de “Gráfico de la petenera”, titulados respectivamente
“Campana” y “Clamor”. El segundo poema es repetición del primero en plural, con la añadidura de una
estrofa en la que la muerte pasa y canta. Los dos tipos de sonoridad -de campana y clamor- entran en
pugna, en una temporalidad contigua, revelando el paso trascendente de la muerte.
Las técnicas que usa Lorca son múltiples, pero el resultado es unívoco, la creación de un mapa he-
terodoxo e incompleto, en el que el lector ha de definir su propio punto espacial de escucha y, así forjar
la relación que mantiene con las demás voces de la geografía. En la medida que no somos capaces de
salir de la idea de una lírica monológica, encerrada en su tradición a-espacial, nunca podremos oír sino

Proceedings XI International Bakhtin Conference 437


a un interlocutor lírico cuya posición pudiéramos ocupar como idénticos o impostores. Pero así, no habría
manera de responsabilizar al yo lírico de su acto de enunciación, de salvarlo de su soledad e intrascen-
dencia. Si bien no dudo de que estas voces solipsistas existan, el concepto de una lírica como Bajtín la
concibió hace poca justicia a ciertos poetas, entre los cuales Lorca, y en particular su Poema del cante
jondo son paradigmáticos.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 438


The Aesthetic of Vulgarity: Carnival’s Suppression in
Henry James’s The Spoils of Poynton

Brian Kennedy, PhD

Pasadena City College, Pasadena, CA

bpkennedy@pasadena.edu

Introduction
American-turned-British writer Henry James became renowned for his tight control over his narrators,
and through them, on the presentation of his plots. His goal, expressed in his famous essay, “The Art of
Fiction” and elsewhere, was to focus the narration to a single point, allowing no extraneous impressions
to ruin his intended effect. The result, as critics of his time and later have understood his work, is not
just technical precision, but an unwillingness to stray into areas of life which might be seen as messy
or, to use a favorite word of several, “vulgar” (Bell EP1 cf. “Alchemy” EP 1).
However, a closer look at his novel The Spoils of Poynton (1897) might indicate that James’s fiction is
not so sanitized as has been assumed, but instead portrays in its narration moments which might best be
described as fragments of carnival events. These moments are most vivid early in the narrative, when
the disposal of a houseful of art treasures owned by a Mrs. Gareth is most at question. They gradually
taper off as the book progresses and the likelihood of a marriage between Fleda Vetch, Mrs. Gareth’s
choice to succeed her as guardian of the “spoils,” and Owen Gareth, her son, becomes less and less. In
turn, the narration in the novel tightens up as James exercises his famous control over narrative point
of view with greater precision as Fleda becomes the sole narrative voice. As the plot moves forward
towards its resolution, in other words, the technique gets “neater,” and the carnival elements are pushed
to the fringes before finally disappearing altogether. This economy is disrupted, however, in a grand final
scene. As such, James ends by corrupting the text, invoking a greater sense of vulgar materiality than
even the focus on the spoils themselves suggests, and in so doing, perhaps may be seen to be calling
into question the precise schema of narrative control which places Fleda as the central voice and bearer
of the text’s presumed moral message.
Foundations
Criticism of The Spoils of Poynton has often proceeded on the assumption that the vulgar characters
are those who seek the gratification of objects without understanding their spiritual meaning, whereas
others appreciate the beauty and wholeness of a collection like that at Poynton. This, in turn, is reflected
in the form of the novel itself, which Millicent Bell, contemporary representative of this staid critical line,
calls “a literary composition to which nothing may be added or subtracted without damage to the form
as a whole” (EP4). The Spoils of Poynton, in short, “may appear simply to reflect James’s repugnance
for the low taste and acquisitive motive which threatened to take over his house, the House of Fiction”
(Bell EP 5, emphasis original).
On the other hand, other recent readings of the text suggest an opposite viewpoint. David McWhirter
uses Perry Meisel’s notion of the ways in which materiality is represented through language to make the
point that James, despite his contemporary critics’ misunderstanding, was writing about the material
world in ways he had not before, taking on topics “worthy of Oprah, at times even of Ricki Lake” (EP2).
Eric Savoy employs Baudrillard to make the case that James in this novel “explores the collision betwe-
en what might be called ‘extreme collecting’ and other sorts of values and ethical demands” (EP2). In
Studies in the Novel, a third critic uses Lacanian terminology to describe the role of Fleda in the novel
as negotiating between possession and agency as she attempts to “transcend the vulgarity of her ori-
gin in the things, even while they appear to ground her in the material world of empirical observation”
(“Alchemy” EP5).
This sounds distinctly similar to the ways in which Bakhtin describes Rabelais’work in Rabelais and
His World. There, Bakhtin claims that “Rabelais’ images have a certain undestroyable nonofficial nature.
No dogma, no authoritarianism, no narrow-minded seriousness can coexist with Rabelaisian images” (3).
Instead, they are as life on the street was in his time—messy, dirty, and vulgar.
Speaking of the medieval carnival, Bakhtin suggests that it was nothing if not violent. The langua-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 439


ge, for instance, is a “combination of praise and abuse” (166), including “oaths” which are thematically
based “mainly [on] the rending of the human body,” which he names “[t]he dismembered body” (192,
193). Further, carnival play is based on “symbolic actions” in which “thrashing and abuse” as well as
“uncrowning” and “travesty” are the key elements (197, 198). “The one who is thrashed or slaughte-
red is decorated,” further (203). Finally, there are fights in which “[t]he blows have . . . a broadened,
symbolic, ambivalent meaning; they at once kill and regenerate” (205). He summarizes by saying that
“Bloodshed, dismemberment, burning, death, beatings, blows, curses, and abuses—all these elements
are steeped in ‘merry time,’ time which kills and gives birth” and which therefore leads to regeneration
(211). None of this is new or news to those familiar with Bakhtin’s work, but neither does any of it sound
like what critics typically expect to find in a Henry James novel.
Bakhtin further explains that as the centuries unwound following Rabelais’ time, carnival as a cele-
bration declined, though “Even during its later development in the eighteenth and nineteenth centuries
it still preserved certain fundamental traits in a quite clear, though reduced, form” (218). Carnival, by
this time, had become a repository which could only “preserve fragments of an immense, infinitely rich
world” (218). Because of the passing of this world, he goes on to suggest a new term to characterize the
nature the celebration: “’carnivalesque,’” he says, we may “interpret . . . not only as carnival per se in its
limited form but also as the varied popular-festive life of the Middle Ages and the Renaissance” (218).
However, whereas “in all the great writings of the Renaissance we clearly sense the carnival atmos-
phere” and particularly in Rabelais (275), as time went on, the “festival element did not die” but “it was .
. . narrowed down” (276). Bakhtin laments that “this novel [of Rabelais] stands out . . . sharply against
the background of the humdrum solemn literature of the following periods, especially of the nineteenth
century” (276), which returns us to the time of Henry James.
James’s novel, I will argue, has an “aesthetic of vulgarity,” similar to that in Rabelais, with which it
portrays the pursuit of material goods. As such, the book’s placidity, read by critics as James’s control
over the narrative, is actually undone by eruptions of carnivalesque vulgarity which the main characters,
but particularly Fleda Vetch, quickly attempt to suppress. This attempt to suppress the vulgar, however,
far from portraying James’s moral focus in the book, implicates Fleda herself in the pursuit of the fetishi-
zed objects, spoiling her just as much as it does the other characters and thus dislocating the novel’s
moral purpose from a valorization of the possibility for material objects, rightly seen, to have potential
for aesthetic beauty in and of themselves and instead exposing the desire for those objects, no matter
how it is expressed, as vulgar.
The Case of Henry James
James says in the “Preface,” added for the New York Edition of 1908, that “most of the stories straining
to shape under my hand have sprung from a single small seed” and that “one’s subject is the merest
grain, the speck of truth, of beauty, of reality, scarce visible to the common eye” (xxxix). James says
that “the artist finds in his tiny nugget, washed free of awkward accretions and hammered into a sacred
hardness, the very stuff for a clear affirmation, the happiest chance for the indestructible” (xl). This
restatement of his famous idea of the “donnee” for a work of fiction, the single scene from which a whole
story may grow, sounds polite to a fault. It eliminates the possibility for art to be messy in technique,
and suggests a purification of subject matter which seems entirely the opposite to Bakhtin’s description
of Rabelais’s carnival.
However, James does not stop there. He goes on to say that the reason the artist’s “germ” seems
so pure is that life, by contrast, is characterized by “nothing but splendid waste,” here reminding one
very much of the Bakhtinian focus on, for example, excrement in his discussion of Rabelais (xl; Bakhtin
147).
James’s language becomes even more highly suggestive of the vulgar when he begins to account for
the genesis of the story that prompted Spoils. He tells of overhearing a conversation at a Christmas Eve
party about a family involved in a dispute over the inheritance of the contents of a house. His imagination
immediately offers him what might be read as carnival images, and he explains that “I ‘took’ in fine, on
the spot, to the rich bare little fact of the two related figures, embroiled perhaps all so sordidly and for
reasons of which I could most probably have given at the moment no decent account” (xlii). “Decent”
being understood as “adequate,” this sentence has one meaning. But take it to mean “proper,” in the
sense of polite, and the sentence has a whole new resonance. His description has traces of Bakhtin’s
marketplace scene, as he describes it when talking about the “merry banquet during which Gargantua’s
miraculous birth takes place” (220), wherein Gargamelle gives birth, her labor beginning “precisely at
the moment when her right intenstine fell out due to the overeating of tripe” (221). In this episode,
“the bodies are interwoven and begin to be fused in one grotesque image of a devoured and devouring
world. One dense atmosphere is created, the atmosphere of the great belly” (221). James similarly says
of his subjects that they stood there, “in that stark nudity, to say nothing of that ugliness of attitude”
(xlii). What’s interesting is that Bakhtin goes on to claim that the “theme of productivity and growth”
here introduced “is developed in the images of abundance and fullness of material goods” (222), thus
creating a tie between carnival and plenty in material goods.
I will later show how James seems to reaffirm this in his novel, but at least in his “Preface,” he does
not seem to see it that way. Instead, turning to a discussion of the novel itself, he claims that Spoils
achieves a precise narrative focus by being centered in the character of Fleda Vetch. About her, he says

Proceedings XI International Bakhtin Conference 440


in the “Preface” that she serves as the person who “almost demoniacally both sees and feels, while the
others but feel without seeing” (xlviii). These are the “fools who minister, at a particular crisis, to the
intensity of the free spirit engaged with them” (xlviii-xlix). Fleda, by contrast to these carnival jesters,
remains separate from the group (xlix). Reading James in terms of Bakhtin, we might say that James
wants to see her, consequently, as serving at once as narrative consciousness and moral center, because
to James’s way of thinking, she gradually unfolds as the story’s ethical foundation through her attempts to
act as a mechanism which controls the eruptions of carnivalesque action as the novel moves forward.
The Gradual Containment of the Carnivalesque in Spoils
The first clue to James’s “vulgar” intent in the novel might be in the selection of the title itself. While
the subject of the book is the antiques Mrs. Gareth has spent a lifetime collecting, which she describes
as “our [her and her husband’s] religion, . . . our life, . . . us” (20), and while in the book the goods
are variously referred to as “’those beautiful things’” (10) and “the collection” (179), James selects for
his title a word, “Spoils,” which reflects both the booty of warfare and the rotting food left over after a
carnival feast. Think for instance of the scene after the birth of Gargantua. Thousands of oxen were
slaughtered, so many that all the people of the neighboring villages had to be invited so that the food
could be consumed, since it could “not be preserved a long time” (222). Gargamelle eats so much that
her bowels are ready to explode, and Bakhtin says that this closely relates the theme of plenty to that
of dung (223). One may only imagine the aftermath of such a feast. The spoils would be everywhere,
with no one being unmarked by participation in the carnival.
The action of the novel proper begins with Mrs. Gareth deciding that Fleda will serve as the mediator
between herself and her son, Owen, possibly marrying him as a way to ensure that the goods, if Mrs.
Gareth must surrender them, will at least go to good hands. Standing in the breakfast room, Mrs. Ga-
reth confronts her son about the disposition of his current fiancé, Mona Brigstock, regarding the goods.
As she does, the narrator tells us that “Mrs. Gareth, with an odd wild laugh, held [Fleda] so hard as to
hurt her” (20). She proceeds to declare that she almost starved to acquire some of the goods, and then
she “suddenly inflict[s] on Fleda a kiss intended by every sign to knock her into position” (20). Both the
violence and the physicality of these actions are surprisingly carnivalesque.
She next claims that she will do anything to avoid the collection falling into the hands of Mona, even
to the point of “defac[ing] them with my own hands.” Suggesting a kind of orgy of anger, she says,
“’Can’t you see me, Fleda, and wouldn’t you do it yourself?’—she appealed to her companion with glitte-
ring eyes” (20), and here we might compare Bakhtin’s descriptions of the carnival crowd, “the pressing
throng” which gathers all into one; “the people become aware of their sensual, material bodily unity and
community” during this time (255).
Fleda doesn’t know how to react to this “eddy” of emotion, and so she laughs, embarrassedly, and
tries to diffuse the situation by looking at Owen for a reaction, but all she sees is what might be des-
cribed as a clown, the narrator telling us that she “feel[s] herself more passionately caught up and . .
. thrust down the fine open mouth (it showed such perfect teeth) with which poor Owen’s cerebration
gaped” (21). The two of them, Owen and his mother, are living a carnival moment. However, James’s
propriety doesn’t allow him to carry it any further within the view of the reader. Instead, Fleda’s point of
view takes over, and the chapter ends promptly with a description of Mrs. Gareth collapsing on Fleda’s
neck in tears.
The next scene begins by filling the reader in on what happened immediately following, but again, the
real action is shielded from the reader, and we merely find out that when Fleda had gone in to breakfast,
she had seen “at a glance that there had been a further passage, of some high colour, between Owen and
his mother” (22). Was this an argument conducted at fever pitch, froth coming from the mouths of each
of them as if they were yelling for the ritual crowning and uncrowning of the carnival clown, to invoke a
Bakhtinian image? We won’t know. But my argument is that we ought to let our imaginations fill in the
gap, because James, while locating the carnival offstage, certainly leaves room for us to speculate on
the events that he refuses to describe.
This is reinforced by Fleda’s commentary on her hostess’s motivations, in which she describes Mrs.
Gareth’s offering of her to Owen as a “sacrifice . . . to the supremacy of a high standard.” She further
says that Mrs. Gareth cares for her “only as a priestess of the altar,” which leaves her with a “bruised
dignity,” forcing her to “accept . . . the shame” of the situation (24). She summarizes this way: “[A]ll
Mrs. Gareth’s scruples were on one side and . . . her ruling passion had in a manner despoiled her of her
humanity” (24). On the contrary, if we see Mrs. Gareth’s actions as the ritualized ones of carnival, we
might say that she is not despoiled of her humanity, but humanized by the process of despoiling Fleda.
And this a character like Fleda begins to be irresistibly drawn into the fray, unable to push back the car-
nival crowd, something which would have gone completely against her sensibilities. It is because she
senses this that she digs in her heels in a desperate attempt to resist, and it is in this resistance, rather
than because of her moral superiority as one with a special capacity to view the objects in the house as
spiritual, which the action of the plot is driven.
Owen’s next move in the battle for the goods is to threaten legal action. To this, his mother responds
by saying that she will not take the safe course, giving up the contents of the house. Rather, she avows
that “’I want constables and dragging.’” “’I want to make Owen and Mona do everything that will be most
publicly odious’” (32). The narrator’s comment is that “she now showed . . . little distaste for the world’s

Proceedings XI International Bakhtin Conference 441


hearing of the broil” (32). Of course not. She’s spoiling for a carnival. Fleda tells us that she “made in
short as little as possible a secret of the injury, the bitterness she found in it” (32). She is offended by
the fact, most of all, that Owen hasn’t crowned her the queen of his life. One’s mother, after all, “ought
to be . . . a subject for poetry, for idolatry,” and what’s interesting is that we find out that “Mrs. Gareth
would have given again and again her complexion, her figure, and even perhaps the spotless virtue she
has still more successfully retained, to have been the consecrated [one]” (33). This sounds very much
like what happens to the carnival figure who is crowned and then debased, as Bakhtin describes that
person. In fact, Fleda, it is shortly reported, “had an imagination of drama, of a ‘great scene’, [sic] a
thing, somehow, of indignity and misery, of wounds inflicted and received” (37).
But if at this early stage of the novel it seems like at any moment a Rabelaisian scuffle will break out,
Fleda tells us that “It was absurd to pretend that any violence was probable—a tussle, dishevelment,
pushes, scratches, shrieks” (37), words which suggest carnival even while closing down the possibility of
its happening. Instead, she says, she holds “the confused, pitying vision of Mrs. Gareth with her great
scene left in a manner on her hands, Mrs. Gareth missing her effect and having to appear merely hot
and injured and in the wrong” (37). Fleda here has won the first battle to contain the action, diffusing
the potential for an eruption of what she would see as the vulgarity of carnival.
Fleda leaves Poynton, and shortly the narrator reports that “not a sound had reached her of any su-
preme clash” (46). But again, the real action has taken place offstage, and Fleda, on going to visit her
friend, finds out that Mrs. Gareth has hijacked all of the spoils and had them transported to Waterbath,
where she is now living (47).
Upon learning of the theft, Owen attempts to pull Fleda into the action, asking her “Do you mean to
say you’ll have a regular kick-up with her?” commenting about the taking of sides in the matter of the
spoils (65), but Fleda asserts that she doesn’t understand him, responding, “I don’t exactly know what
you mean by a regular kick-up. We shall naturally have a great deal of discussion . . .” (65).
Owen refuses to accept her answer, asking her again, “But if you do have a set-to with her?” (66).
And again, Fleda says, “I don’t think I know what you mean by a set-to” (66). Owen responds, “Well, if
she calls you names” (66), and Fleda says, “I don’t think she’ll do that” (66). Here Fleda is continuing
to exert her civilizing control over the events and other characters in the text. Owen carries on by
asserting that his mother is “so different, so ugly and vulgar, in the light of this squabble” (67). Days
later, when Mrs. Gareth finally gets to weigh in on the continuing struggle over the spoils and what the
fight means to her, she asks, “Did he abuse me?” again reminding one of the ritual language of abuse
featured in Rabelais’ version of carnival (77; Bakhtin 166). But if she is ready for a carnivalesque row,
Owen by this point is not. The narrator says that “His fitness to fight his mother had left him—he wasn’t
in fighting trim” (64).
Shortly after, we learn that the “crisis . . . now put forth big encircling arms—arms that squeezed till
they hurt” (89). Fleda’s description of the problem immediately following sounds like Bakhtin talking
about Rabelais: “It was as if everything had been poured into a common receptacle, a public ferment of
emotion and zeal, out of which it was ladled up, with a splash, to be tasted and talked about” (89). It
seems that carnival finally will erupt onto the main stage of the novel. But the plot takes a turn.
Fleda takes over center stage, debating with Owen on several occasions over the goods and his re-
lationship with his mother and seeming to adopt wholeheartedly the notion that she ought to pursue
Owen, and thus to save the treasures for his mother. As the narrative succeeds in establishing Fleda
and her notion of the proper moral outcome of the battle for the spoils as the central focus in the story,
James focuses less and less on images of violence, and finally turns from the public display of carnival
to a moment of private intimacy (129), portraying an embrace between Owen and Fleda which prompts
Fleda to imagine them “together without a veil” with Fleda feeling like “[s]he had not a shred of a secret
left” (129). Thus the possibility of a ritual public ceremony is dislocated by the economy of the private
and Fleda’s control over the events of the novel is complete.
Owen is not good to his word, however, and instead of freeing himself, he marries Mona Brigstock.
When it turns out that nothing will come of his promise to confront and reject Mona, Fleda submits to her
older friend with a silent promise, which “committed her as solemnly as the vow of a nun” (168). Here
she has created of herself the exact opposite of the carnival clown, and at this moment, the possibility
of resolving the problem of the spoils has vanished. There will be no carnival, no ritual crowning and
debasement, and no resolution which sees Mrs. Gareth’s hopes of retaining the spoils fulfilled. Fleda
has done what she wished by containing the outburst of the vulgar, and with it has renounced mate-
rialism, thus making her anti-carnival stance equivalent to her act of moral renunciation of greed over
the goods.
However, if it seems that the book has neatened up, tightened up, achieved its focus, with the narra-
tive consciousness of Fleda now neatly doing its work even as her interactions with the other characters
suppress the potential eruption which threatens the propriety of their world, the ending of the text more
than reintroduces the carnivalesque, for the spoils don’t end up in Owen and Mona’s possession. Instead,
they are consumed in a fire, as Fleda discovers upon disembarking from a train at Poynton station in
order to proceed to the house and claim an item from the collection for her own, as Owen has insisted
that she do (179).
The event of the fire more than meets all the criteria Bakhtin sets down as defining the medieval

Proceedings XI International Bakhtin Conference 442


carnival. It is messy, wet, uproarious; it encompasses everybody in town, even to the station master
(183). Further, it leaves in its wake a leveling effect, because after it, neither Fleda, or Mrs. Gareth, nor
Owen and his hated and avaricious wife will have the spoils.
Indeed all that is left is spoils, in the literal sense. If the book dramatizes the failed potential for
carnival, the ending is truly representative of the day when everyone returns to normal life, turning
their attentions away from the great ceremony which has absorbed them during “carnival time.” Fleda,
standing on the platform in the novel’s last scene, is left only with what many participants in carnival
must have felt in the days following the celebration, “the raw bitterness of hope that she might never
again in life have to give up so much at such short notice” (184).
The question of what to do with all the stuff turns into its opposite here: not how can Fleda save the
spoils, but how have the spoils ruined her? For even in her attempts to defend them, Fleda has come to
be caught in the snare of their desire, and thus it is that the text illustrates not the potential for things
to have aesthetic beauty in and of themselves, not even in their apprehension by a superior moral cons-
ciousness, which James presumed Fleda to be, but the futility of a life lived in pursuit of material goods,
an occupation which leads only to a fetishizing of those commodities which costs everything, including
the potential for the liberating relief that carnival might have provided.
Works Cited
“Alchemy and Appreciation: The Spoiling of the Real in Henry James’s The Spoils of
Poynton.” Studies in the Novel 30.1 (1998): 35-49 [electronic database
pagination 1-10].
Bakhtin, Mikhail. Rabelais and His World. Trans. By Helene Iswolsky. Bloomington:
Indiana UP, 1984.
Bell, Millicent. “James, the Audience of the Nineties, and The Spoils of Poynton.” The
Henry James Review 20.3 (1999): 217-26 [electronic database pagination 1-7].
James, Henry. “The Art of Fiction.” The Portable Henry James. Ed. Morton Dauwen
Zabel. New York: Penguin, 1977: 387-414.
—. “Preface (1908)” to The Spoils of Poynton by Henry James. Oxford: Oxford UP,
2000: xxxix-l.
—. The Spoils of Poynton (1897). Oxford: Oxford UP, 2000.
McWhirter, David. “’Saying the Unsayable’: James’s Realism in the Late 1890s.” The
Henry James Review 20.3 (1999): 237-43 [EP 1-6].
Savoy, Eric. “The Jamesian Thing.” The Henry James Review 22.3 (2001): 268-77 [EP
1-8].

Proceedings XI International Bakhtin Conference 443


“Sacode, desacomoda, puxa: visões de mudança em educação e o conceito
de ambivalência dialética em Bakhtin”

Sonia Kramer

PUC – RIO de Janeiro

Av. Nossa Senhora de Copacabana no 1344 ap 1001 cep 22070-010

sokramer@edu.puc-rio.br

Resumo
Este texto - escrito a partir de entrevistas coletivas realizadas na pesquisa “Formação de profissionais
da educação infantil no Estado do Rio de Janeiro: concepções, políticas e modos de implementação”
- tem seu foco no referencial teórico-metodológico e no tema da mudança. O referencial teórico se ba-
seia na concepção de linguagem de Bakhtin, preciosa para a compreensão da originalidade com que o
tema da mudança foi abordado pelos participantes: a metáfora de sacudir. Conceitos de ambivalência
dialética e dialogismo revelaram-se ferramentas teóricas fundamentais para a pesquisa. A idéia de que
é preciso mudar acompanhada pelo desejo de mudar emergiu em quase todas as entrevistas. Mas foi
em uma entrevista feita com nove professoras que a mudança foi mencionada como se constituísse a
ação educativa: uma das professoras entrevistadas relatou que não concordava com a prática vivida e
resolveu dar um sacode no pedagógico.
Abstract
This text is based on collective interviews made for the research “Early childhood teacher edu-
cation: Conceptions, policies and ways of implementation – a study in the State of Rio de Janeiro”.
The theoretical basis stands from Bakhtin’s conception of language, which was very important to the
comprehension of the original conception of “change” as discussed by the participants: the metaphor
of “shaking up”. Conceptions of dialectical ambivalence and dialogue turn out to be crucial theoreti-
cal tools for the research. The idea that it is necessary to change comes with the desire for change
in almost all of the interviews. However it was in this specific interview – developed with nine tea-
chers - that ”change” was mentioned as if it constituted educational action. One of the interviewed
teacher reported that she did not agree with what she experienced and “decided to
give a shake up in educational practices”.

A TÍTULO DE INTRODUÇÃO

“Todas as relações têm caráter lógico, enquanto eu em tudo ouço vozes e relações dialógicas entre
elas”. (BAKHTIN, 1982: 392)
O objetivo deste trabalho é apresentar uma apropriação teórico-metodológica de conceitos de Mikhail
Bakhtin, que tem sido feita no interior da pesquisa “Formação de profissionais da educação infantil no
Estado do Rio de Janeiro: concepções, políticas e modos de implementação”, realizada com apoio do
CNPQ e da FAPERJ. Inicialmente, sintetizo as principais questões do referencial teórico da pesquisa. Em
seguida, me detenho em aspectos metodológicos, em particular as entrevistas. No terceiro momento,
focalizo um aspecto que emergiu em uma das entrevistas coletivas – a concepção de mudança – e analiso
como o conceito de ambivalência dialética de Bakhtin me ajudou a compreendê-lo e problematizá-lo.
Explicito, pois, que meu interesse pela teoria de Bakhtin é filosófico e epistemológico. Interessam-me
seus estudos pelas contribuições que oferecem à pesquisa nas ciências humanas e sociais. Em anexo
está apresentado um breve perfil das entrevistadas.
1. O referencial teórico – linguagem, narrativa e experiência
“Até o momento em que foi apropriado, o discurso
não se encontra em uma língua neutra e impessoal
(pois não é do dicionário que ela é tomada pelo fa-
lante!), ela está nos lábios de outrem, nos contextos
de outrem e a serviço das intenções de outrem: e é
lá que é preciso que ele seja isolado e feito próprio”.
(BAKHTIN, 1988, p. 21)
Proceedings XI International Bakhtin Conference 444
O compromisso desta pesquisa, com as ciências humanas, é o de encontrar aquilo que se perde quando
o homem é transformado em objeto e as histórias das pessoas são esquecidas. Isso significa perceber as
pessoas se reconstituindo como sujeitos, reconstituindo nesse processo sua cultura e história, escutando
o que não pode ser expresso e levando em consideração o que foi deixado de fora. Histórias de vida são
consideradas como memória coletiva do passado, consciência crítica do presente e premissa operativa do
futuro. De acordo com Bakhtin (1988), produção e recepção de significados é o que constitui a linguagem
que tem dimensões dialógicas e ideológicas historicamente determinadas. Toda palavra tem intenções,
significados; para entender o discurso (o texto falado ou escrito) o contexto precisa ser entendido. A
compreensão implica não só a identificação da linguagem formal e dos sinais normativos da língua,
mas também os sub-textos, as intenções que não se encontram explicitadas. “Não são palavras o que
pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais,
agradáveis ou desagradáveis... A palavra está sempre carregada de um conteúdo e um sentido ideológico
e vivencial” (Bakhtin, 1988, p, 95). O discurso tem sempre um significado e uma direção que são vivos;
as palavras contêm valores e forças ideológicas: aqui se situa a abordagem histórica da linguagem. Por
outro lado, a comunicação de significados implica em comunidade; sempre nos dirigimos ao outro, e o
outro não tem apenas um papel passivo; o interlocutor participa ao atribuir significado à enunciação.
Bakhtin entende que a linguagem é social; ela é essencial para a existência humana. De acordo com a
sua teoria, não é a experiência que organiza a expressão; na verdade, a expressão precede e organiza
a experiência, dando-lhe forma e direção.
Outra importante referência para o arcabouço teórico da pesquisa, pode ser encontrada nas idéias
filosóficas de Walter Benjamin e particularmente no conceito de experiência, onde ele discute o declínio
da arte de narrar no mundo moderno: “o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se ‘dar
conselhos’ parece hoje algo de antiquado é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis.
Em conseqüência, Não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos
responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo
narrada.” (1987a, p. 200).
Resgatar o passado significa ter uma compreensão diferente da história; o passado é importante para
rever o presente, para colocá-lo numa condição crítica, conferir-lhe nova significação. E a história huma-
na é baseada nesta descontinuidade; somente os seres humanos têm história e por isso a linguagem é
necessária. Como o homem é gerado na cultura da mesma forma que a produz, ele pode fazer e contar
a história. Podemos, então, repensar o passado para dar um novo significado à história. Por outro lado,
nos seus escritos, Benjamin se refere a dois personagens centrais na modernidade que contribuem para
pensar a tarefa do pesquisador: o cronista e o colecionador. “O cronista que narra os acontecimentos,
sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia
aconteceu pode ser considerado perdido para a história.” (1987a, p. 223). E como um colecionador, o
pesquisador procura, observa, registra, fotografa, reúne as interações humanas, para investiga-las, quer
dizer, para colecioná-las, a relação dialética entre ordem e desordem precisa ser estabelecida. Falando
de outro lugar (o da literatura), Clarice Lispector dirá: “Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como
vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos” (1973, p. 87). Ou: “Um instante me leva insensivelmente
a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas
num caleidoscópio.” (Lispector, 1973, p. 16).
Como pesquisadora de um campo das ciências humanas – a educação – considero importante escu-
tar/ouvir e observar/ver considerando tanto a racionalidade e a sensibilidade, a fim de compreender a
história. A teoria crítica nos ajuda a ver a cultura de uma maneira diversa, a contrapelo – como ele diz;
ajuda a estabelecer outras relações e a perceber ambigüidades. Assim como ela, também a concepção
de linguagem de Bakhtin fornece o arcabouço teórico para entender as relações na sua ambivalência e
pluralidade.
2. A pesquisa, seu contexto, e procedimentos.
“O texto só vive em contato com outro texto (contex-
to). Somente em um ponto de contato é que surge a
luz que aclara para trás e para frente, fazendo com
que o texto participe de um diálogo... Por trás desse
contato, há o contato de pessoas e não de coisas”.
(BAKHTIN, 1992, p. 404-405)
A pesquisa, desenvolvida desde 1999, tem quatro estratégias metodológicas:
1. Um Questionário foi enviado a todos as secretarias de educação dos municípios, solicitando dados
sobre condições da educação infantil pública, programas de formação de professores que eram imple-
mentados e problemas ou dificuldades enfrentados tanto na educação infantil quanto na formação de
professores. O Questionário, organizado em 75 quesitos, foi respondido por profissionais responsáveis
pela educação infantil. A análise dos dados coletados foi concluída e os resultados sistematizados em
um relatório, apresentados aos responsáveis pela educação infantil dos municípios e distribuídos para
todas as secretarias de educação. (Kramer et alii, 2001)
2. Entrevistas foram realizadas com o objetivo de conhecer as histórias de vida e de formação dos
profissionais. Entrevistamos professores que são responsáveis pelas políticas públicas de educação infantil
em dez cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Estes municípios foram também convidados

Proceedings XI International Bakhtin Conference 445


para as entrevistas coletivas realizadas posteriormente.
3. Textos de documentos oficiais e propostas curriculares foram reunidos e analisados (Nascimento,
2001). Neste procedimento, ao buscar conhecer as propostas, tentamos identificar concepções teóricas
(de infância, educação infantil e formação de professores), políticas e modos de implementação das
ações projetos de educação infantil e de formação.
4. Estudos de caso vêm sendo realizados em creches, pré-escolas e turmas de educação infantil que
funcionam em escolas, como monografias de especialização, dissertações de mestrado e teses de dou-
torado. Nesta vertente, têm sido produzidos trabalhos acadêmicos que focalizam municípios do Estado
do Rio de Janeiro e de outros estados da federação.
O presente texto aborda as entrevistas, centrando-se em uma entrevista coletiva.
Entrevistas individuais e coletivas
Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e
que penetra em minha consciência, vem-me do mundo
exterior, da boca dos outros (da mãe), etc, e me é dado
com a entonação, com o tom emotivo dos valores de-
les. Tomo consciência de mim, originalmente, através
dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom
que servirão a formação original da representação que
terei de mim mesmo. (BAKHTIN,1992, p.278).
Dois tipos de entrevistas foram realizados: individuais e coletivas. Tal estratégia permitiu observar
uma significativa diferença no que diz respeito à diversidade, hierarquia e distribuição de poder. Nos
dois tipos de entrevistas, o compromisso e desejo eram garantir os diálogos. Sabendo da uma forte
ligação entre história de vida, subjetividade e narrativa, conduzimos as entrevistas como espaço de
narrativa entre os profissionais entrevistados e pesquisadores. Percebemos que a posição estabelecida
entre pesquisador e pesquisados – o lugar de onde falam – é muito diferente nos dois tipos. Durante as
entrevistas coletivas, o diálogo, a narrativa da experiência e a exposição de idéias divergentes ocorreram
com intensidade muito maior, na medida em que professores puderam falar e também escutar uns aos
outros. Além disso, como não só o pesquisador detém autoridade para fazer perguntas ou comentários
sobre a fala dos entrevistados, a influência do poder e da posição hierárquica forma minimizados; pro-
blemas foram apresentados, o conhecimento foi compartilhado e confrontado, a diversidade percebida
face a face. Entrevistas individuais e coletivas ofereceram diferentes condições de produção de discurso e
favoreceram a pesquisadores e pesquisados tivessem um diferente lugar e ponto de vista. Nas entrevistas
coletivas, a situação dialógica foi enriquecida, análises foram mais profundas e substanciais e, acima de
tudo, a perplexidade foi expressa: professores com diversas ou opostas condições de trabalho e políticas
públicas de infância mais ou menos favoráveis precisaram lidar com essa diversidade e encarar as falhas,
os fracassos e a precariedade dos outros e precisaram se deparar com a sua própria fragilidade.
Entrevistas coletivas: sua contribuição para aprender com a diversidade e com o outro.
“Tudo o que dá valor ao dado do mundo, tudo o que
atribui um valor autônomo à presença no mundo,
está vinculado ao outro...: é a respeito do outro que
se inventam histórias, é pelo outro que se derramam
lágrimas, é ao outro que se erigem monumentos;
apenas os outros povoam os cemitérios; a memó-
ria só conhece , só preserva e reconstitui o outro...”
(BAKHTIN, 1992, p. 126)
Todas as entrevistas seguiram um planejamento. Cada entrevista reuniu profissionais de sete ou oito
municípios; de cada Secretaria Municipal de Educação, dois educadores – responsáveis pela educação
infantil – foram convidados. Dois profissionais da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro
foram também convidados para cada entrevista coletiva. A interação entre pesquisadores e participantes
foi intensa e amena; este clima parece ter influenciado positivamente esta metodológica. Como os pro-
fissionais foram convidados, isso pode também ter contribuído para o ambiente dialógico. A estratégia
pode ter assegurado ao discurso seu caráter de acontecimento (Bakhtin, 1988).
No caso desta pesquisa, a interação nas entrevistas coletivas constituiu importante experiência para
pesquisadores e participantes. Tendo como objetivo identificar pontos de vista dos entrevistados; reco-
nhecer aspectos polêmicos (a respeito de que não há concordância); provocar o debate, estimular os
participantes a tomarem consciência de sua situação e condição e a pensarem criticamente sobre elas,
as entrevistas coletivas favoreceram que certos temas fossem colocados em discussão, problematizan-
do o objeto da pesquisa (que é sempre, nas ciências humanas, um sujeito que fala). Enfrentamos com
essa estratégia metodológica a delicada questão da alteridade, do conhecimento do outro. Como diz
Bakhtin,
“Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes
concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois , não coincidem. Por mais perto de
mim que possa estar esse outro, sempre serei e saberei algo que ele próprio, na posição que
ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver.” (Bakhtin, 1992: 43)
Proceedings XI International Bakhtin Conference 446
As entrevistas coletivas ajudaram a identificar conflitos sem esconder idéias divergentes ou posições
antagônicas. Durante as entrevistas, os pesquisadores procuraram explicitar palavras, expressões ou
conceitos usados com significados conflitantes ou ambíguos, a fim de gerar – entre participantes e pes-
quisadores – processos de ressignificação, redefinindo conceitos. Assim, os grupos puderam refletir sobre
idéias compartilhadas e histórias que foram contadas, repensando seus sentidos e revendo atividades,
problemas e iniciativas cotidianas. Após cada entrevista, pudemos analisar as questões controversas e
ambigüidades encontradas.
Como destacamos em outros textos (Kramer, 2003; Kramer et alii, 2002) nas entrevistas coletivas,
mais que nas individuais, as pessoas falaram e se escutaram; a influência institucional pareceu diluir-se ou
diminuir; a linguagem produzida (o discurso) parece revelar maior autenticidade, favorecendo a dimensão
pessoal ao lado da profissional; problemas e valores estiveram mais presentes nas coletivas. Este foi
um importante aspecto já que as entrevistadas eram pessoas que ocupavam cargos hierárquicos como
responsáveis pela educação infantil nas secretarias municipais e estadual de educação. Nas entrevistas
individuais, a linguagem pareceu mais limpa, como se o entrevistado precisasse expor a realidade que
ele acreditava (ou desejava) existir, escondendo ou omitindo falhas, faltas, erros. Nos grupos, os relatos
traziam dificuldades e frustrações, como se a pessoa entrevistada sentisse maior confiança na audiência
coletiva; além disso, nas coletivas, uns entrevistados faziam perguntas a outros, mudando de lugar e
assumindo o papel do entrevistador. Isso fez com que o entrevistador pudesse aprofundar a análise de
problemas complexos, e evitou o constrangimento do pesquisador ouvir relatos de práticas que sabia não
serem reais ou que tinham sua relevância aumentada, e mesmo exageros quanto ao impacto de medidas
locais e episódicas, como aconteceu nas individuais. Entrevistas coletivas ofereceram aos participantes
a oportunidade de se manifestar e trocar. No contexto de tais contradições, as condições de produção
desses discursos – além de diferentes do ponto de vista do lugar em que estavam os interlocutores
– foram diferentes por conta da situação dialógica das entrevistas coletivas: as histórias de formação
contadas ganharam novos sentidos para quem contava e para quem escutava.
Ora, durante o processo da pesquisa, vivi como pesquisadora um dilema teórico-metodológico, em
relação ao material empírico disponível a partir das entrevistas coletivas. Do ponto de vista teórico, a
necessidade de fundamentar a utilização da entervista coletiva como estratégia metodológica, levou-me
a recorrer a Bakhtin buscando fundamentos para lidar com diversidade, hierarquia e poder na pesquisa
em ciências humanas: de acordo com sua concepção de linguagem, para entender o que é dito é preciso
conhecer não só o enunciado, mas fundamentalmente o contexto da enunciação. Esta concepção e os
conceitos apresentados por Bakhtin em muitas de suas obras (1982, 1988a, 1988b, 1992, entre outras)
permitem entender que, na produção dos discursos, os lugares que as pessoas ocupam interferem no
significado produzido. Ou seja, o contexto é importante para entender o texto. Na enunciação, os lugares
e as condições de onde são proferidas as palavras produzem sentidos. A entoação dos discursos, fala.
A decorrência metodológica desta concepção de linguagem é a de que a totalidade do discurso (o
contexto da enunciação) não pode ser perdida. Nesse sentido, o texto de cada entrevista precisa ser
analisado na sua integridade e unidade, sem cortes; o texto transcrito a partir de cada entrevista gravada
é considerado peça importante na análise das falas. Para delinear esse contexto, foi também elaborado
– a partir dos relatos - um breve perfil de cada uma das 57 professoras entrevistadas, contendo alguns
aspectos de sua trajetória, formação e escolaridade. Essa estratégia nos permitiu dar visibilidade aos
tópicos da fala que emergiram nos relatos dos professores, fazendo uma apropriação dos que nos pare-
ceram os principais tópicos do material das entrevistas, tomadas na sua profundidade. Ouvindo as falas,
mergulhando nos textos, atravessando cada transcrição, procuramos captar, compreender, explicitar
significados.
É minha intenção, neste terceiro item focalizar uma das entrevistas coletivas.
3. é preciso dar um sacode no pedagógico: profissionais entrevistadas, suas trajetórias e suas concep-
ções de mudança.
O tema da mudança em educação tem acompanhado o debate educacional em várias esferas da vida
social, da gestão na sua relação com o Estado até as iniciativas nas escolas. ‘Conservar ou transformar?’
é uma pergunta presente nos manuais de sociologia da educação ou teoria política. Da mesma maneira,
palavras de ordem relativas à mudança são freqüentes em plataformas eleitorais e agendas de partidos;
diretores e coordenadores ao assumirem suas funções estabelecem seu compromisso com o “novo”.
Essa tônica fica acentuada, na sociedade contemporânea, onde tudo muda muito rápido, o descartável
é valorizado, como se no novo que está por vir, pudessem ser encontradas formas de mudança, de fa-
zer diferente, respostas, soluções. Todos falam que querem mudar; ninguém quer ser identificado com
a manutenção do status quo, ninguém quer ser conservador. Vários trabalhos destacam que o ideário
pedagógico tem sido marcado por esta idéia. Para muitos responsáveis pela educação pública ou parti-
cular, parece que a mudança do professor ocorre como reciclagem, como se fosse possível jogar fora o
superado ou que não é mais desejável ou adequado, assumindo uma posição, teoria ou proposta que,
por ser nova, é considerada portadora de uma boa nova.
A idéia de que é preciso mudar acompanhada pelo desejo de mudar emergiu em quase todas as
entrevistas. Mas foi na entrevista coletiva aqui analisada, feita com nove professoras responsáveis pela
educação infantil em municípios de área metropolitana que o tema emergiu de forma peculiar e a mu-
dança foi mencionada como se constituísse a ação educativa.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 447


Ao entrar para a rede pública, em 1986, uma das professoras entrevistadas percebeu que naquele
contexto índios têm que ser da mesma cor; os trabalhos têm que ser bem parecidos; cuidado com o
mural...” Não concordando com aqueles princípios, resolveu:
vasculhar isso, dar uma mexida nas nossas propostas.... para dar um sacode no peda-
gógico que lá no município só tinha auxiliares de creches, não tinha professores nessas
unidades... nós fomos para lá com a intenção realmente do remexer... a gente che-
gou lá para dar esse atendimento, esse remexer pedagógico. E com isso nós fomos
crescendo. (Rosane).

Nessa fala parece estar expressa a idéia de que é possível, ao olhar o velho, ver suas possibilidades de
transformação. Mas se a primeira se refere à necessidade de sacudir, outra entrevistada - representante
da Secretaria Estadual - fala da importância de ser puxada:
meu perfil profissional é um perfil pedagógico, então eu venho desde... os primeiros anos
do magistério trabalhando pela Educação Infantil, trabalhei com alfabetização..., trabalhei
na roça, zona rural, depois... o perfil da supervisora foi crescendo. Eu entrei para cargos de
Orientação Pedagógica, depois fui para a Secretaria. Na Secretaria, ... eu estou sempre na
parte pedagógica... desenvolvimento curricular, orientação pedagógica para a nossa rede,
que é a rede estadual. Então... trabalhando mais naquela linha e tal, tal, tal, tal, de repente
você é puxada para uma opção maior. (Elena)

Por outro lado, o relato da trajetória da Coordenadora de Educação Infantil de um município emanci-
pado há três anos traz outra possibilidade de engendrar a mudança do processo; relaciona-se à idéia
de ajudar as professoras a trabalhar:
a creche é um espaço muito ... delicado... Enquanto grupo, nós procuramos fazer um
trabalho de ajudar esse processo... de formular propostas pedagógicas e ajudar
as professoras a trabalhar; então, nós, do grupo da educação infantil é que vamos lá e
procuramos ajudar. (Carminha)

Outro aspecto a que a mudança parece estar ligada é a ação que se desempenha ao ser professora.
Este aspecto esteve (tanto nesta entrevista quanto nas outras) relacionado à paixão, ao caminhar,
à vontade de crescer, ao sonho. Em muitos depoimentos, as professoras reconhecem o desafio que
significa permanecer no trabalho com a criança pequena, porque nele se cresce; fica visível também a
relevância do papel exercido pela coordenadora de educação infantil de seu município. Outro aspecto
diz respeito à paixão que esteve presente de forma marcante nas falas das entrevistadas: ainda que
com freqüência este discurso não se fizesse acompanhar por projetos de fato, como se o amor suprisse
a competência, a paixão apareceu entremeada ao compromisso, ao envolvimento profissional e políti-
co, constantes na área da educação infantil. Paixão e mudança se aproximariam, assim, seriam ambos
contrários à paralisação. No caso desta professora, foram os estudos, os textos e as inquietações que
mobilizaram o grupo a buscar conhecimento e a desfazer a visão corrente de que para trabalhar com
criança, basta gostar. No seu relato, aparece ainda a importância do mexer:
(ela) foi falando dos estudos que ela vem fazendo e foi mexendo com o grupo e foi levando
texto, e foi envolvendo. E isso fez com que os professores também estudassem. Porque é
uma visão que se tem da educação Infantil, infelizmente em alguns locais, é que “ah é uma
pessoa que tem que gostar de criança”, não se vê a formação dessa pessoa. (Elvira)

Mexer (como sacudir) e crescer (se envolver, deslocar para cima, ampliar, estender) se apresentam
assim, também para estas profissionais, como metáforas da mudança. Mas ainda duas professoras, de
outro município onde coordenam a área de educação infantil se manifestam e contam suas trajetórias.
Falam de busca e de como esbarram em problemas: “comecei a esbarrar nas questões da pré-escola
- onde se começa a alfabetização, onde se começa a aprender, o que é a construção do conhecimento.
Fui buscando essas pesquisas. Fui buscando esse conhecimento... procurei os caminhos... (Ira-
cema). Essa mesma professora diz que está procurando um caminho de qualificar o profissional, de
embasá-lo teoricamente (Iracema), enquanto outra pondera que já estava no momento de mudar e
fazer alguma coisa (Soraia) e acrescenta:
E a gente está tentando... seguir um caminho dentro dessa filosofia de projeto. Eu fiz...
Nós fizemos o projeto Repensando a Pré-escola... (Soraia).

Essa forma “eu fiz... nós fizemos” reapareceria em outros depoimentos, nesta e em outras entrevistas,
como a indicar uma visão, ainda que intuitiva, de que individual e coletivo se entrecruzam. Além disso,
ao falar das dificuldades que professores enfrentam para se atualizar, a mesma professora se mostrou
angustiada com essa situação e intimamente ligada aos professores. E falou sobre seu próprio papel:
...quando a gente está aqui meio que embolada, cheia de interrogações... é meio com-
plicado, parece que vai explodir... a gente vai tentado acalmar, tranqüilizar esse professor
através dessas oficinas, dessas palestras, desse estudo... (Soraia).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 448


Embolação, interrogação, explosão significam mudança? Aqui, o conceito de conhecimento como
relâmpago e iluminação de Benjamin (1987) pode ajudar a compreender este sentido de mudar, não
como passo linear, mas como algo que se sacode, que oscila, trepida. Tal como as mudanças de um
caleidoscópio, os fragmentos permanecem os mesmos, mas (re)combinam-se em novas e surpreenden-
tes configurações. Da mesma forma, a visão de mudança presente nas falas das entrevistadas parece
aproximar-se do conceito de ambivalência dialética de Bakhtin. Vejamos porquê.
Uma das idéias fundamentais introduzidas por Bakhtin sobre a literatura é a ambivalência. Em oposi-
ção à unidade dos contrários, a ambivalência carnavalesca reúne o que é aparentemente incompatível:
o riso e o choro, sério e o grotesco, o profano e o sagrado, a vida e a morte, o homem e a besta. Essa
ambivalência cultural se originaria para Bakhtin no fim da Idade Média e início do Renascimento, no
carnaval enquanto acontecimento ao mesmo tempo popular e crítico. Se a cultura oficial só reconhecia a
diferença absoluta e o monólogo, o carnaval põe em cena a coexistência dos opostos. A polifonia, onde
todo discurso aparece como relativo, substitui o discurso monológico dos dominantes (Bakhtin, 1999).
Enquanto a dialética hegeliana propõe a superação de tese e antítese numa síntese dos contrários, a
dialética bakhtiniana supõe que a ambigüidade se mantêm: trata-se de uma dialética dialógica onde a
atitude com o outro, com o diferente, com o inverso, é de aceitação e tolerância. As contradições per-
manecem vivas e tensas; ao invés de evolução, temos a explosão, um piscar de olhos onde tudo perma-
nece e ao mesmo tempo muda. A ambivalência toma, nos escritos de Bakhtin um sentido crítico, que se
opõe ao monólogo, ao discurso autoritário. Contra a idéia de que é possível optar entre isto ou aquilo,
em Bakhtin o discurso crítico é ambivalente, comportando simultaneamente isto e aquilo, e aqui reside
seu elemento libertador e positivo. No que se refere à educação, esta maneira de entender a mudança
parece-me humana e viável por pressupor que o velho e o novo convivem sem que a teoria ou a concep-
ção hegemônica de um determinado momento sufoque a prática. A mudança se dá pela coexistência de
posições teórico-práticas diversas que se encontram, chocam, dialogam e não por uma evolução linear
e autoritária em que, por decreto, o velho seria dispensado e o novo adotado.
PROVISÓRIO, INSTÁVEL, ACOMODADO: PONTOS POSITIVOS E PROBLEMAS

“Quando estamos nos olhando, dois mundos diferen-


tes se refletem na pupila dos nossos olhos. Graças
a posições apropriadas, é possível reduzir ao mínimo
essa diferença dos horizontes, mas para eliminá-la
totalmente, seria preciso fundir-se em um, tornar-se
um único homem”. (Bakhtin, 1992: 43)
Reunidas em grupos, as entrevistadas analisaram os problemas e conquistas da educação infantil e
discutiram seus pontos de vista. Os relatos, logo após essas discussões, permitem-nos perceber os tópicos
levantados. Entre outros temas, as professoras falam da provisoriedade e instabilidade da própria
prefeitura – “acontece (na) gestão municipal ou estadual: hoje é um prefeito, amanhã, outro” (Élen)
– e da provisoriedade e instabilidade da condição do professor da educação infantil:
o nosso problema enquanto qualificação do profissional, da formação do professor é que da
Educação Infantil – é que ele não é professor da Educação Infantil, das redes públicas
ele está. Então hoje, se investe nesse professor... se faz um trabalho de um ano inteiro de
qualificação, ... e ano que vem esse professor muda de turma. (Iracema)

E a mesma entrevistada que trouxe o tema da mudança falando de “sacode”, ressalta a busca e o
valor da reflexão sobre a prática. Diz:
esse momento de reconhecimento da qualidade desse trabalho, que a gente está tão pre-
ocupado, ele não pode se perder nunca dos dados históricos. O professor tem que estar
buscando na história sempre alguma coisa referente à educação infantil... O profissional
que tem a possibilidade de estudo reflete sobre o seu pensar pedagógico . Valorizado,
tendo tempo para estudo ele reflete, com certeza, todo seu pensar pedagógico. (Rosane)

Como no início da entrevista, ela volta a falar sobre o sacode, relacionando-o agora a compromisso.
E compromisso parece implicar também em liberdade.
não adianta dizer “aqui está bonito, então eu vou plantar mais uma florzinha para ficar me-
lhor”. Não, tem que ter uma situação efetiva mesmo de amparo. De amparo legislativo,
mas de amparo financeiro também... que a gente tem que estar se virando...tem que
estar se sacudindo para organizar.... tem que ter um compromisso efetivo, não pode
ser um compromisso estritamente legislativo. Tem que ter uma proposta maior. (Rosane)

No contexto discursivo da entrevista, parece que ao mesmo tempo em que é preciso sacudir e bus-
car, é preciso amparar e se virar! Nessa mesma linha, compromisso pressupõe também desacomodar,
alterar o lugar das coisas:
tem aquele que tem informação, que sabe e cai no comodismo.. é muito mais fácil.
Porque tem uma carga enorme de família, de filho, de outro trabalho, de outro tudo. Vou
ter que chegar aqui, ainda sentar, botar um pouquinho para cá “ah, isso vai me dar muito

Proceedings XI International Bakhtin Conference 449


trabalho!”. Pronto. Pega essa folhinha, dá um deverzinho, massinha, dá massinha, deixa ele
meia hora ali... Ele sabe,tem conhecimento, ele sabe a responsabilidade nem que aquilo lá
no fundo doa ele, mas naquele momento para ele é mais cômodo, é mais cômodo não
pôr aquilo tudo que ele sabe... em prática. (Soraia)
lá na nossa realidade eu tenho observado bastante, as pessoas que têm medo de agir.
Eu acho que pode estar embutido num comodismo sim. (Iracema)
é mais fácil eu acho não saber porque aí eu tenho pouca responsabilidade (So-
raia)
às vezes eles não falam, não é porque não tem vontade, não tem interesse. Não está pres-
tando atenção... ainda não se apropriou da liberdade de estar falando. (Rosane)

Esse depoimento sobre o professor como alguém que precisa se apropriar da liberdade evoca cla-
ramente Paulo Freire (1982). Por outro lado, as entrevistadas trouxeram aqui a questão polêmica da
relação entre a teoria e a prática. Sua abordagem oferece elementos interessantes para a reflexão, na
medida em que levantam modos alternativos de olhar a prática e sugerem que um professor pode: (1)
ter a teoria, compreender os textos lidos, mas não se mexer, por comodismo; (2) compreender mas
ter medo de agir por falta de compromisso; (3) não saber, não conhecer a teoria; (4) não conseguir
pronunciar a sua palavra; não se apropriar da liberdade de dizer. A pouca formação foi criticada; mas as
entrevistadas questionaram também a formação que expropria o professor da sua prática. Entendemos
que a crítica se dirige à ausência de práxis, da teoria como reflexão sobre e para a prática, feita com
o outro, como leitura do mundo, crítica e ativa, que reúne saber, fazer e falar. Além disso, percebemos
nestas falas que mudar parece ainda se vincular a desestabilizar. Como quando a Soraia diz: que alguém
está tirando o chão concreto dele...
Ao mesmo tempo, foram apontadas muitas dificuldades para mudar. Dentre elas, chama atenção os
relatos de professoras entrevistadas que, por várias vezes, reafirmam existirem professores que se re-
cusam a transformar a prática, apesar de atualizados com as discussões mais recentes. Uma diz que “às
vezes há uma resistência... histórica, ao novo conhecimento. Que quando a gente conhece a gente paga
um preço para aquilo, é uma responsabilidade de fazer aquilo que as outras pessoas não aprenderam”.
Outra pondera que “até ousar, se expor, investir e fazer alguma coisa que seja novo para você, e se
der errado?” Ainda outra professora indaga: e se der certo?, criticando aqueles que têm medo de fazer,
e que julgam que a ousadia de mudar traz resultados negativos, nunca positivos. Questiona também
aquele professor que tem a teoria, que sabe, que entende [mas], na prática ele não consegue
desenvolver. Ele não faz (Soraia)
a gente tem a cultura do “se der errado?”, sempre. A gente não pensa nunca que vai
dar certo, mas “se der errado”. Aqui é o diretor vai me chamar a atenção, o pai não vai
gostar, o outro... então eu prefiro nem ousar. (Soraia)

Relacionando a questão ao momento político do país, outra entrevistada comenta:


nós estamos dentro de uma roda. E nosso país tem caminhado muito por uma linha...
de desesperança, de confusões... isso também afeta muito... O professor parece desacre-
ditado do seu trabalho quando ele diz que não vai fazer e o nosso compromisso é também
lutar contra esse caminho de desesperança que a gente tem vivido.... Na rua, na televisão,
todo tempo a mensagem que é passada para nós é esse caminho tortuoso que a gente tem
à frente de lidar com as crianças, com as suas necessidades, as dificuldades financeiras, o
salário que é pequeno e uma porção de coisas que, sem estrutura, a gente acaba convivendo
nessa roda. (Carminha)

Diante desse depoimento, outra pondera:


Eu gosto muito de uma frase... eu sempre falo para eles: quando você era menino [per-
guntavam] o quê, menino, você vai ser quando crescer? Eles respondem assim: se me
perguntassem isso agora, na idade adulta, eu responderia que eu gostaria de ser menino.
Então o professor, principalmente da educação infantil... ele tem essa facilidade de virar
esse menino. Inclusive tem essa facilidade de ter a vontade de voltar. (Rosane)

Ao fazê-lo, essa professora parece evocar o conceito de infância em Walter Benjamin (1987b), cate-
goria central da história como possibilidade de refazer e de voltar.
a título de conclusão: ambigüidades da mudança
Sacudir, remexer, desacomodar: evocam ebulição e, de algum modo, podem ser compreendidos como
metáforas de mudanças sem deslocamento visível de tempo. Sugerem explosão. Lembram a dialética
do instante de Walter Benjamin ou dialética imobilizada (1987); a tensão ou ambivalência dialética de
Bakhtin. Configuram-se como pequenos deslocamentos de lugar e têm significado diferente de outras
concepções de mudança – mais freqüentemente encontradas ou ouvidas na área da educação – tais como
as implícitas nas idéias de buscar, procurar, passagem, transição e que evocam metáforas de deslocamen-
tos mais amplos de lugar; mudanças que são introduzidas de fora para dentro, projetos elaborados em

Proceedings XI International Bakhtin Conference 450


outros contextos ou momentos históricos e que seriam uma resposta se aplicados ou implantados aí.
Mexer, sacudir, ser puxada. Cobrar, acomodar-se, exigir, mudar. Querer mudar. Ser como criança.
Voltar. Sacudir e mexer parecem se relacionar a mudanças nas práticas pedagógicas mais tênues, im-
perceptíveis, mas fortes. “Sacudir e amparar, ajudar”; “mexer, remexer e apoiar” são aspectos interes-
santes nesse contexto. Dão, inclusive, importantes lições, pois escapam de jargões comuns no ideário
pedagógico, freqüentemente marcado pelo discurso do novo como ‘novo conhecimento’, ‘nova concepção’,
‘novo olhar’. Sacudir parece interessante, enquanto concepção de mudança, porque embora suponha que
o outro age sobre a realidade, incorpora o que já existe e é feito. Diferentemente da idéia de mudança
ligada à continuidade, à linearidade presente-passado-futuro, comum no campo da educação onde com
freqüência se atribui ao passado a origem do problema e se joga a solução ou a mudança para o futuro,
deixando intocado o presente, as metáforas de alterar o lugar (sacudindo) parecem presentificar a pos-
sibilidade de mudar, de fazer diferente, de deslocar. É interessante notar que não constatamos, nesta
entrevista, expressões como ‘nova prática’ ou ‘nova teoria’. Talvez, na visão dessas professoras, a mu-
dança nas práticas, nos modos de fazer, só se torna possível quando se sacodem as estruturas. Talvez,
para além do aparente ou para além do discurso esperado, a transformação signifique encontrar-se no
chão, amparada, mas estando ali – simultaneamente - em movimento intenso. Manter-se na roda, sem
tirar o chão do outro, sem perder seu próprio chão, sendo puxada, incentivada, acionada, para cima,
continuando no lugar, vibrando, mantendo-se em mudança, embora imperceptível, sem estardalhaço,
sem holofote nem espetáculo. Parece ser essa a mudança de que precisamos. O que essa entrevista
ensina é que é preciso mexer, movimentar o pedagógico de modo que a mudança, possa garantir que as
pessoas continuem crescendo e permaneçam humildes, isto é, humanas, sem alardear o conhecimento
científico supostamente novo como se fossem medalhas. Não se trata de mérito, mas da luta de muitos.
Luta diária, quieta. O conceito de ambivalência dialética (Bakhtin, 1981, 1999) ofereceu a chave para a
compreensão dessa forma ambígua de compreender a mudança.
Esse movimento para a mudança parece se relacionar a outro aspecto também presente nas entre-
vistas, e que analisamos em outro texto: a paixão. Política e paixão se entrecruzam nos depoimentos.
Ora enfatizando o compromisso profissional, com a criança ou com a cidade, ora contando dos obstáculos
que tiveram de enfrentar para estudar e da luta por melhores condições para o trabalho, as entrevistadas
falarem de engajamento profissional e entusiasmo no trabalho, necessidade de mudança e envolvimento.
Além disso, há que considerar, no que diz respeito às condições de produção destes discursos (Bakhtin,
1988), que estavam presentes nesta entrevista não só coordenadores de educação infantil dos municípios
(convidamos por nós), mas também duas representantes de instâncias da sociedade civil, indicados pela
Secretaria de Educação para representá-la, além de duas profissionais de um município recém emancipa-
do, visivelmente motivadas por sua possibilidade de começar. O lugar de onde foram pronunciados estes
discursos, o contexto de sua enunciação determinou, portanto, as palavras proferidas e seus significados.
É preciso considerar também a quem esse discurso se dirige, quais são seus destinatários, como aborda
Bakhtin: neste caso, são professores e alunos de uma Universidade conceituada, situada em uma grande
cidade do Estado, desenvolvendo uma pesquisa. Será que o discurso sobre a mudança não foi construído
também a partir do que os entrevistados julgaram que os entrevistadores esperavam ouvir?
Enfim, as entrevistas coletivas ofereceram aos participantes a oportunidade de se manifestar e pro-
nunciar a sua contrapalavra. Nesta entrevista, aqui analisada, o tema da mudança foi abordado de modo
original – a metáfora de sacudir e os conceitos de ambivalência dialética e dialogismo forneceram um
interessante instrumento conceitual para a análise. Na pesquisa, a idéia de que é preciso mudar junto
com o desejo de mudar emergiu em quase todas as entrevistas, mas foi nesta entrevista com nove
professoras que a mudança emergiu como se constituísse a ação educativa. Ao relatar que não concor-
dava com a prática vivida e resolveu dar um sacode no pedagógico, a professora forneceu a chave para
a escrita deste texto, que se constitui apenas em uma dentre as muitas aproximações possíveis que
temos feito dos discursos das entrevistadas.
Notas:
1 Trabalho apresentado na XI Conferência Internacional sobre Bakhtin. Curitiba, 2003.
2 Apoio CNPq e FAPERJ
3 As cinco entrevistas coletivas foram planejadas e preparadas cuidadosamente. Os participantes foram convidados por carta e por telefone. A carta expli-
cava os objetivos e procedimentos da pesquisa.
4 Foram convidados responsáveis pela educação infantil das secretarias municipais e estadual de Educação. As entrevistadas eram: três professoras; um
membro da Comissão de Educação Infantil do Município, um assistente de Coordenação de Educação Infantil; duas Coordenadoras de Educação Infantil e
dois representantes da Secretaria Estadual de Educação.
5 Um breve perfil das entrevistadas, com dados retirados dos seus relatos, pode ser encontrado no ANEXO 1. Todos os nomes são fictícios.
6 Sobre a paixão das falas de profissionais da educação infantil, ver Figueiredo, Kramer, Nascimento, Pedroza, Vargens (2002).

Bibliografia:
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro. Bakhtin e as Ciências Humanas, Rio de Janeiro, Ed. Musa, 2001
BAKHTIN, Mikhail, Estética da Criação Verbal, São Paulo, Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, Mikhail (VOLVOSHINOV). Marxismo e Filosofia da Linguagem, São Paulo, Ed. Hucitec, 1988a.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renscimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo,
Hucitec, 1999.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense Universitária 1981.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 451


BENJAMIN, Walter.Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política, São Paulo, Ed Brasiliense, 1987a
BENJAMIN, Walter.Obras Escolhidas II: Rua de Mão Única, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987b.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
GOODSON, Ivor, F. Studying Teachers lives, London, Routledge,1992
KRAMER, S. Por entre as pedras: arma e sonho na escola: leitura, escrita e formação de professores. São Paulo,
Ática, 1993.
KRAMER, S. e JOBIM e SOUZA, S. (org) Histórias de professores: leitura, escrita e pesquisa em educação, São Paulo,
Ática, 1996
KRAMER, S. Alfabetização, leitura e escrita: formação de professores em curso. São Paulo, Ática, 2001.
KRAMER, S., NASCIMENTO, A., FIGUEIREDO, F., PREDOZA, G., VARGENS, Paula. Nos relatos de professores, conquistas
e ambigüidades da educação infantil. PUC-Rio, Cadernos do Departamento de Educação, no 62, 2002.
KRAMER, S. Entrevistas coletivas: alternativa para lidar com diversidade, hierarquia e poder na pesquisa em ciências
humanas. In: FREITAS., KRAMER, JOBIM e SOUZA, S. (org). Ciências humanas e pesquisa: leituras deBakhtin. São
Paulo, Cortez 2003.
LÉLIS, I.A. A polissemia do magistério: entre mitos e histórias. Tese de Doutorado em Educação, PUC-RIO, 1996.
LISPECTOR, Clarice, Água Viva, Rio de Janeiro, Antenova, 1973.
NÓVOA, Antonio. Profissão: professor, Porto, Porto Ed. 1991.
NÓVOA, Antonio. Vidas de professores, Porto, Porto Ed. 1992.
ZIMA, Pierre. L’ambivalence dialectique: entre Benjamín et Bakhitne. In: Revue d’Esthétique, Nouvelle Série, no 1,
1981, Paris Centre National de la Recherche Scientifique, p. 131-140.

ANEXO 1 – Breve perfil das entrevistadas


Rosane - (Prof. Orientadora; Comissão de Ed. Infantil) Entrou para o município em 1986. Começou
a fazer parte da equipe de creches “para dar um sacode no pedagógico... nós fomos para lá com a in-
tenção realmente do remexer”. Hoje, trabalha em uma unidade de educação infantil e veio à entrevista
por fazer parte da Comissão de Educação Infantil do seu município que é composta de professores (como
ela), de diretores, auxiliares de creche e supervisores. Atua em escola particular.
Élen - (Prof. Orientadora; Comissão de Ed. Infantil) “Eu não sou da Secretaria de Educação, eu sou
de pré-escola”. Faz parte da equipe técnico-pedagógico e atende a Educação Infantil da sua escola.
Já trabalhou em escolas particulares. Veio por estar na Comissão de Educação Infantil do Município.
Trabalha há 22 anos com educação infantil e ensino fundamental; “hoje só com a educação infantil...
porque realmente é assim uma questão, assim, de sedução, é uma questão de paixão. Sou vidrada na
educação Infantil...”.
Iracema – (Ass. Coord. de Educação Infantil/SME) Trabalha junto à coordenação de educação infantil
de seu município. Está na rede há quase 15 anos; trabalhou em escola particular. Sua maior experiência
de magistério é em alfabetização. “Aquela grande paixão”. Atuou 3 anos em pré-escola do Mobral. Fez
Pedagogia e “continuei percorrendo a alfabetização, buscando os caminhos da alfabetização; comecei
a esbarrar nas questões da pré-escola, onde se começa a alfabetização, onde se começa a aprender, o
que é a construção do conhecimento... aonde eu cheguei novamente? Pré-escola, onde eu estou agora.
Hoje, eu acho que o caminho é a qualificação do profissional”
Soraia - (Ass. Coord. de Ed. Infantil/SME)Trabalha com educação infantil há 15 anos. Considera que “a
nossa realidade está, assim, gritante. O município precisa de... investimento... de ajuda, para... atender
a uma quantidade maior de crianças”. Para ela, a pré-escola tem aquela imagem de que é a turma que
ninguém quer... é a pré-escola e a alfabetização.... É o castigo”. Faz o curso da FIOCRUZ, porque sentiu
necessidade de se aprofunda e de buscar novos caminhos.
Carminha – (Coordenadora de Educação Infantil) Trabalha com Educação Infantil desde antes da
emancipação do seu município. Lá, “só existia uma sala, onde se trabalhava com educação infantil, eu e a
outra educadora”. Assumiu a coordenação, ao concluir graduação em Pedagogia. Fez o curso de formação
de educadores de creches na FIOCRUZ, há um ano: “me dei conta de que precisava rever também...
meu embasamento teórico, a questão da prática para que eu pudesse ajudar as professoras. Diz que
seu trabalho de coordenação pedagógica não parte dela para o grupo: “é uma construção do grupo para
poder resolver as questões... do dia a dia”. Fez Pós-Graduação em Educação Infantil.
Elvira - (Professora de Educação Infantil). Não queria ser professora; um dia substituiu a irmã (pro-
fessora) e daí em diante “nunca mais larguei a sala de aula”. Depois do curso de formação (1997), entrou
para a rede particular. “Ali eu comecei a paixão por criança, e fui buscar conhecimento... a sensibilidade
que desse tempo todo até agora eu peguei das crianças”. No município sempre atuou na educação infantil.
“Estar na sala de aula... com a criança,... é um prazer muito grande... um privilégio. Ali você cresce”.
Ela critica a visão de que na educação infantil basta gostar de criança, porque essa visão não dá valor
à formação, ao estudo teórico.
Joice - (Professora) Trabalha de 5ª à 8ª série e já trabalhou de 1ª à 4ª. É supervisora educacional. Não
está trabalhando diretamente a Educação Infantil. “Estou aqui porque as meninas que ... fazem parte
da educação infantil estão fazendo uma capacitação... no município e, ... foi me pedido que eu viesse
para representar o município”.
Elena - (SEE) Desde o início do magistério atuou na Educação Infantil e alfabetização, na zona rural;

Proceedings XI International Bakhtin Conference 452


quando veio para a acidade e “o perfil da supervisora foi crescendo”. Exerceu cargo de Orientação Peda-
gógica e na Secretaria de Educação sempre atuou na parte pedagógica (educação profissional, orientação
de cursos técnicos, no desenvolvimento curricular, orientação pedagógica da rede estadual).
Fernanda – (SEE; Coordenação de Ensino Normal) Responsável pelo curso normal de nível médio
na Secretaria do Estado de Educação. Segundo seu depoimento, o curso normal “está reestruturado, ele
tem uma matriz curricular nova e agora nós estamos preparando também o professor para a Educação
infantil. Eu acho que isso foi um ganho, isso foi um espaço que a gente conseguiu concretizar, uma luta
muito grande”.

textos chave:
nomes chave:
palavras chave: educação infantil, Bakhtin, mudança
Biografia resumida: Sonia Kramer é professora do Departamento de Educação
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde coordena o Curso de
Especialização em Educação Infantil e desenvolve pesquisa sobre infância, políticas
públicas de educação infantil e políticas, formação de professores e alfabetização,
leitura e escrita. Participa de consultorias e formação na área de educação. Entre
outros trabalhos publicou A Política da Pré-escola no Brasil: a arte do disfarce (Cor-
tez), Por Entre as Pedras: arma e sonho na escola (Ática), Alfabetização Leitura e
Escrita: formação de professores em curso (Ática), Infância, educação e direitos
humanos (Cortez) .

Proceedings XI International Bakhtin Conference 453


Ironia e polifonia em “Sweet home”, de Carlos Drummond
de Andrade
Luiz Camilo LAFALCE

O dialogismo bakhtiniano, como se sabe, afastou-se da perspectiva teórica da Lingüística clássica,


apreendendo a língua em seu funcionamento concreto e elegendo o texto (ou discurso) como objeto de
investigação “translingüística”. Sua base conceitual apóia-se na concepção da heterogeneidade consti-
tutiva da enunciação, tanto no que se refere à construção do sentido – condicionada pelo dinamismo da
relação Eu / Outro – como também no tocante ao processo mesmo de organização textual – marcado
pelo movimento de assimilação contratual ou polêmica de outros discursos. (BARROS, 2001, p.27-38)
É esse aspecto interativo da linguagem que determina a inserção do ato de fala na História, permitindo
que o ato de fala se faça ele mesmo História.
O princípio dialógico, constitutivo da linguagem, por sua vez, está imbricado em outro: o da hetero-
geneidade do sujeito da enunciação. À idéia clássica, cartesiana, de um sujeito marcado pela ilusão de
identidade, unidade, não contradição (BRANDÃO, 2001, p.283) opõem-se formulações teóricas de cuja
perspectiva
o conceito de subjetividade não pode estar centrado num Ego enquanto entidade única e fonte
toda-poderosa de sua palavra, mas num sujeito que se cinde porque átomo, partícula de um
corpo histórico-social no qual interage com outros discursos de que se apossa ou diante dos
quais se posiciona (ou é posicionado) para construir sua fala. (BRANDÃO, 2002, p.54)

O sujeito da enunciação, inserido na dinâmica psico-social, pode assumir diferentes vozes – ou posi-
ções ideológicas – no interior do discurso, pois o que o caracteriza justamente como ser psico-social é o
feixe de relações discursivas que o atravessa e o constitui. A consciência subjetiva é sempre de natureza
semiótica e, portanto, ideológica. Para Bakhtin,
A única definição objetiva possível da consciência é de ordem sociológica. A consciência
adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas
relações sociais. (...) Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico,
não sobra nada. (BAKHTIN, 1999, p.33-34)

Pode-se entender, assim, que a dispersão do sujeito é reflexo da descontinuidade de lugares de onde
fala, ou seja, de diferentes e conflitantes posições ideológicas que assume.
O problema da descentralização – explícita ou implícita – do sujeito discursivo, aqui entendido como
uma instância da enunciação, estudado, por exemplo, por Jacqueline Authier-Revuz, é, na atualidade, uma
das questões axiais nos estudos ligados à Análise do Discurso, que se funda, por sua vez, nos estudos
bakhtinianos sobre a relação do signo com a ideologia, com outro signo, com seu exterior, enfim.
É nesse quadro teórico que se inserem também atuais reflexões sobre o fenômeno da ironia, não
mais concebida do ponto de vista da retórica clássica – como simples antífrase –, mas como fenômeno
discursivo privilegiado de captura do caráter heterogêneo do sujeito e do caráter polifônico da enunciação.
No discurso irônico o dialogismo se evidencia de forma exemplar. Maingueneau, por exemplo, apoiando-
se nas idéias de Oswald Ducrot, afirma que
na ironia faz-se ouvir uma voz distinta daquela do locutor: nessa perspectiva, uma enunciação
irônica põe em cena uma personagem que enuncia algo de deslocado e do qual o locutor se
distancia por seu tom e sua mímica. (MAINGUENEAU, 1996, p.95)

Segundo o pesquisador, o fenômeno irônico realiza-se com a presença concomitante de duas


vozes que manteriam no texto uma relação de oposição: a de um locutor, responsável pelo sentido do
implícito, e a de um enunciador, responsável pelo sentido do explícito. O locutor construiria uma espécie
de farsa enunciativa, imitando, de uma perspectiva crítica, a voz/discurso incongruente de um enunciador,
para dele se afastar ideologicamente.
Meu objetivo neste trabalho é justamente problematizar essa questão, analisando a forma de presença
e a função da ironia no poema “Sweet home”, de Carlos Drummond de Andrade, tendo como base teórica
não apenas as formulações de Maingueneau, como também as instigantes reflexões de Linda Hutcheon,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 454


presentes na obra Teoria e política da ironia (2000).
O poema “Sweet home”, dedicado ao poeta “penumbrista”, escritor e diplomata Ribeiro Couto, faz
parte do primeiro livro de Drummond, Alguma poesia, publicado em 1930. Nele já estão presentes índices
da contenção emotiva e do falar irônico, marcas do percurso poético do poeta itabirano, que, por um
lado, absorveu os pressupostos estético-ideológicos preconizados pelos modernistas de 22 e, por outro,
soube dar continuidade inovadora a essas mesmas conquistas, no momento em que se vislumbrava, no
Brasil, um novo panorama sócio-político-cultural.
Eis o poema:
Sweet home

A Ribeiro Couto

Quebra-luz, aconchego.
Teu braço morno me envolvendo.
A fumaça de meu cachimbo subindo.

Como estou bem nesta poltrona de humorista inglês.

O jornal conta histórias, mentiras ...

Ora afinal a vida é um bruto romance


e nós vivemos folhetins sem o saber.

Mas surge o imenso chá com torradas,


chá de minha burguesia contente.
Ó gozo de minha poltrona!
Ó doçura de folhetim!
Ó bocejo de felicidade!

(DRUMMOND DE ANDRADE, 1992, p.18)

As vozes que compõem o texto drummoniano estão de tal forma amalgamadas, que só por esforço
analítico podem ser desmembradas. O enunciador, responsável pelo sentido literal do texto, e o locutor,
que assume a postura crítica, subvertendo o sentido literal, confundem-se ambiguamente no discurso.
Na verdade, os dois falam ao mesmo tempo e só o artifício da análise permite essa abordagem “recor-
tada” que apresentarei a seguir, examinando, inicialmente, como se constrói o discurso do enunciador,
identificado no poema como um “burguês contente”.
À primeira leitura, o título em inglês “Sweet home”, uma lexia complexa, estereotipada e meta-
fórica, aponta para um recorte temático relacionado a um modo de presença no mundo, caracterizado
menos pela idealização de um lugar físico, mas principalmente pela idealização de um lugar psíquico:
a vida circunscrita a uma espécie de paraíso terrestre, o “Lar doce lar”. E a voz que se apresenta em
primeira instância ao leitor, a voz de um enunciador identificado ideologicamente como membro de uma
burguesia contente ( v.9 ), descreve, euforicamente, a um interlocutor inscrito no próprio enunciado
– Teu braço morno ... ( v. 2 ) – , aspectos de uma vivência que justificaria o sentido do título do poema.
Do ponto de vista desse enunciador, a existência circunscrita ao ambiente do lar é, mais que prazerosa,
uma existência de plenitude, de gozo, como prova o sentido literal dos versos finais, marcados pelas
interjeições e exclamações, e pelo uso, em especial, do substantivo gozo. Nesse quadro de felicidade
doméstica, destacam-se: o ambiente acolhedor à meia-luz, a poltrona confortável, o cachimbo, o jornal
diário e o chá com torradas. Descreve-se um lugar privilegiado, infenso à agitação, competitividade e
ansiedade do mundo externo que, como por encanto, permanece excluso. O eu enunciador nos fala de
uma ilha paradisíaca. O jornal, que em princípio poderia estabelecer um vínculo comunicativo entre o
mundo doméstico, fechado, e o mundo externo, é avaliado com desdém: conta histórias, mentiras ...
(v. 5 ) . Não há compromisso com a vida, pois, de acordo com esse enunciador – Ora afinal a vida é um
bruto romance / e nós vivemos folhetins sem o saber. (v. 6 e 7) – a história dos homens já está pré-
determinada e nós somos meros personagens romanescos. O momento especial do texto que permitiria
uma reflexão mais profunda sobre a existência dos homens – a leitura do jornal, janela para o mundo
– é imediatamente quebrado pela conjunção Mas do verso 8 que anuncia, em oposição à possibilidade
de questionamento, a coroação do instante pela presença mágica – quem o trouxe ? – do alimento. O
conector Mas funciona, assim, como marca de argumentação, na medida em que traz o argumento de-
finitivo para que a consciência se desligue de qualquer questionamento. Plenamente satisfeito – corpo
e espírito saciados – o enunciador atinge o clímax da euforia nas expressões finais que selam o êxtase
do momento.
Há que se mencionar também que o refúgio construído pelo discurso traz as marcas de uma
cultura estrangeira, mais especificamente a cultura inglesa: o idioma do título, o uso de cachimbo, a

Proceedings XI International Bakhtin Conference 455


poltrona inglesa e o chá com torradas. Essas escolhas têm sua razão de ser: apontam para o berço da
cultura burguesa contemporânea – a Inglaterra, precursora da Revolução Industrial do século XVIII – e
para o conseqüente imperialismo econômico, político e cultural inglês, hoje transfigurado em imperialismo
norte-americano. São marcas ideológicas importantes, cujo significado se reflete em outro aspecto da
alienação do enunciador: sua ilha paradisíaca é estrangeira também no sentido de ser “extraordinária,
fora do comum”, distante, portanto, de uma realidade brasileira. As palavras em que se apóia para a
reflexão sobre a vida – bruto romance, folhetins – , por sua vez, nos remetem ao mundo cultural do
século XIX, marcado pela estética romântica que, como se sabe, teve também origem na Inglaterra,
atendeu principalmente aos interesses da classe burguesa e, além disso, privilegiou uma visão de mundo
de base fantasiosa, imaginária, em detrimento de uma postura analítica frente à vida. O texto recupera,
assim, não só aspectos da idealização de um modo de presença no mundo, cujas marcas são a futilida-
de, a ociosidade e o conforto doméstico, mas também a própria história contemporânea da sociedade
burguesa.
A voz desse enunciador, entretanto, não é a única no texto. Ela vem mesclada à voz, não tão
explícita, de um locutor, cujo discurso, construído pelo não-dito, se opõe ao do enunciador. Mas esse
discurso não-dito, meio escondido, precisa estar apoiado em alguns índices do enunciado que possibilitem
a percepção da dissociação enunciativa, caso contrário a ironia poderia não acontecer.
No terceiro verso, por exemplo, o eu enunciador afirma estar confortavelmente instalado na poltrona
de humorista inglês. Ora, no jogo metonímico que o verso instaura, ocupar um lugar de um humorista
inglês é identificar-se com esse humorista, assumir sua postura frente à vida e, portanto, construir um
humor inglês, fleumático, sutil, irônico, marcas do próprio discurso drummoniano. As reflexões de Main-
gueneau vêm, aqui, a calhar. Esse humorista é o locutor que imita o enunciador burguês, forçando-nos
a outro percurso de leitura, na medida em que, desse verso, pode-se lançar um olhar desconfiado para
todo o discurso do enunciador. A presença do oxímoro no verso final do poema, Ó bocejo de felicidade,
por sua vez, abre também perspectiva para o outro sentido: a felicidade que o burguês anuncia, do
ponto de vista do locutor crítico, corresponde ao vazio de sua vida, cujo significante é o tédio do bocejo.
Assim, a euforia da primeira voz esconde e, ao mesmo tempo, revela a disforia enunciativa. E o discurso
do enunciador vai, aos poucos, mostrando sua ambigüidade, como uma farsa discursiva montada pelo
locutor.
Uma ambigüidade que permite emprestar sentidos especiais a outros índices dessa estratégia de
esconde-esconde. O ambiente descrito no texto é caracterizado justamente pelo chiaroscuro, pelo meio
tom: a penumbra do Quebra-luz. Essa atmosfera lábil do espaço é acentuada pela fumaça de um cachim-
bo, e mais, pela fumaça de um cachimbo subindo, construção sintática que por si só pode se prestar ao
sentido ambíguo. Da mesma forma pode-se ler o segundo verso, cujo pronome possessivo de segunda
pessoa – Teu – funciona como um dêitico incômodo para o leitor, na medida em que se torna difícil sua
decifração. As marcas do referente, portanto, assim selecionadas e organizadas no discurso, refletem
a ambigüidade do jogo polifônico da linguagem. Ainda nesse sentido é possível atribuir um significado
metafórico à expressão Quebra-luz : a evidência de sentido do discurso do burguês é literalmente “que-
brada” pela voz crítica.
O chá com torradas é, estranha e hiperbolicamente, caracterizado como imenso, numa avaliação no
mínimo incomum. Da mesma forma, estranho é o uso do sintagma bruto romance. E, num plano mais
sutil, pode-se ouvir inclusive um chiado desagradável produzido pela recorrência das fricativas e das
laterais: aconchego, cachimbo, folhetins, surge, chá, fumaça, gozo, bocejo ... Essas fissuras discursi-
vas, marcas de uma descontinuidade e ruptura no discurso eufórico do sujeito enunciador, revelam a
outra voz, identificam um outro sujeito, o locutor trocista que, na enunciação, sela negativamente as
interjeições e as exclamações finais. Essas fissuras, portanto, são os índices lingüísticos que constroem
o deboche contido do locutor humorista, que marca a distância ideológica com relação à fala descabida
do nosso doméstico burguês.
O que esse locutor, em sutil derrisão, nos diz? Que esse bem-estar do burguês, circunscrito a uma
vivência autocentrada, narcísica, acomodado na alienação de uma vida / discurso, isto é, na expressão
estereotipada “Sweet home”, imobilizado em sua poltrona confortável, plenamente satisfeito apenas com
a saciedade do apetite orgânico, esse bem-estar é, na verdade, um malestar, na medida em que essa
existência tem o seu sentido esvaziado no bocejo final. E o título em inglês passa a funcionar também
como camuflagem/revelação dessa voz crítica. Sua possível tradução, na perspectiva do locutor humo-
rista, seria amargo lar.
Teríamos, assim, em princípio, um discurso em que se revelam duas vozes: a voz instaurada pelo dito
e a voz instaurada pelo não-dito: a primeira, a do enunciador, é responsável pelo sentido literal do texto,
ou seja, a avaliação positiva dessa vida burguesa e a segunda, a do locutor, responsável pelo sentido
crítico, ou seja, pela avaliação negativa dessa mesma vida. Nas palavras de Maingueneau, o locutor – re-
presentando a voz crítica do não-dito – imita a postura do burguês/enunciador para ridicularizá-lo e dele
se afastar ideologicamente. Na tradição da retórica clássica, o segundo sentido é chamado de irônico, e
substitui o sentido literal, considerado incongruente, deslocado. A segunda voz anularia a primeira.
Entretanto, uma questão se coloca: qual a vantagem, em termos econômicos mesmo, desse falar
irônico, já que o dito será substituído pelo não-dito? Até que ponto o sentido irônico se impõe em detri-
mento do sentido literal, obliterando-o?

Proceedings XI International Bakhtin Conference 456


Se considerarmos essa construção discursiva dialógica e, mais ainda, polifônica, instaurada não
pela voz de um sujeito centrado, monolítico, mas por um sujeito em movimento que, simultaneamente,
assume as duas vozes para construir no discurso o choque ideológico, podemos admitir para o texto um
sentido oscilante, dinâmico, que, como uma corrente elétrica, perpassa continuamente os dois pólos
constitutivos do discurso. De um lado, a avaliação positiva de uma visão de mundo burguesa e, de
outro, a avaliação negativa dessa mesma visão constituiriam, assim, deslocamentos semânticos com-
plementares, no jogo da bi-isotopia.
Nesse sentido, o texto revela-se exemplar para se entender a linguagem como arena de conflitos:
os mesmo signos, compondo um único ato de fala, concentram valores díspares, modos opostos de pre-
sença no mundo. Na realidade, todo signo ideológico vivo tem, como Jano, duas faces. Toda crítica viva
pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras.
(BAKHTIN, 1999, p.47)
A pesquisadora canadense Linda Hutcheon, em Teoria e política da ironia ( 2000, p. 91-93 ), ao de-
fender que na ironia o sentido é inclusivo, assim se coloca:
Uma das maneiras que eu tenho tentado pensar sobre o caráter inclusivo do significado
irônico tem sido por meio de um número sugestivo de imagens. (...) Uma dessas imagens é
o exemplo conhecido (...) – usado por Wittgenstein (...) – da figura que se pode interpretar
como um pato ou um coelho, dependendo se você vê um bico de ave ou um par de orelhas
compridas na forma que se estende a partir de uma massa central. (...) Ao interpretar a ironia,
nós conseguimos oscilar e oscilamos muito rapidamente entre o dito e o não dito.(...) Mas
(...) não são os dois ”pólos” em si que são importantes; é a idéia de um tipo de movimento
perceptual ou hermenêutico entre eles que torna essa imagem sugestiva e produtiva para
se pensar sobre a ironia. Ainda que ela não me permita entender o fato de que o não dito
é o que tem mais peso ou privilégio na mistura de significados semânticos que constituem
a ironia, essa imagem (ou, melhor, a idéia de sua percepção) permite que se pense sobre
o significado irônico como algo em fluxo e não fixo.

Ou seja, o significado irônico não está em um dos pólos do jogo polifônico e tampouco estabelece
uma relação de excludência com o significado literal. Ele se constrói na relação inclusiva que a malha dis-
cursiva estabelece entre as duas vozes. Corresponderia ao que Linda Hutcheon denomina, numa analogia
com a teoria musical, a terceira nota, a fusão de duas notas musicais tocadas simultaneamente. Uma
terceira voz. É uma especial construção de sentido que procura apreender, em seu movimento dialético,
a multiplicidade de enfoques avaliadores da vida social, rejeitando, assim, uma verdade dogmática e
monolítica, em favor de uma verdade múltipla e dinâmica.
Com relação ao poema de Drummond, podemos dizer que as duas avaliações coexistem no dis-
curso, uma relativizando a outra. Afinal, os aspectos da vida burguesa, apontados pelo enunciador como
positivos, não são tão medíocres e redutores, se considerarmos que, até certo ponto, conforto doméstico
e ociosidade fazem parte não só de nossos anseios, mas correspondem, no fundo, a um direito de todos
nós.
A voz drummoniana, essa terceira voz que emerge da fusão das duas, na avaliação do mundo atual,
não faz crítica ingênua e maniqueísta. Seu discurso polifônico reconhece que o homem contemporâneo,
inserido na ideologia burguesa, apesar de crítico, vive também fantasias narcísicas, consciente ou in-
conscientemente. Negar isso seria ingenuidade. A voz crítica vem para mostrar que a vida humana não
pode restringir-se à idealização de uma ilha edênica. Não se deve transformar comodidade e bem-estar
em paralisação alienante e tediosa.
O poema parece-me, assim, exemplo vivo da manifestação dialógica do discurso que faz dele esse
campo de combate, ou arena de luta. Sua construção é prova de que a linguagem em situação é sempre
de natureza instável, mesmo que essa instabilidade fique muitas vezes camuflada no discurso monofônico
de uma ideologia dominante, já que em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contradi-
tório. (BAKHTIN, 1999, p.46) A voz de Drummond vem justamente desmascarar a pretensa monologia
de um modo fixo, paralisante, de presença no mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. “Contribuições de Bakhtin às teorias do discurso”. In: BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo
e construção do sentido. Campinas, SP: Unicamp, 2001.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. “Escrita, leitura, dialogicidade”. In: BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção
do sentido. Campinas, SP: Unicamp, 2001.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas, SP: Unicamp, 2002.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 457


On Voloshinov’s and Iakubinskii’s Critique of Saussure1

Mika Lähteenmäki

Department of Languages

University of Jyväskylä

1. Introduction
Ferdinand de Saussure’s seminal work Cours de linguistique générale which has become, perhaps,
the landmark of modern linguistics aroused common interest also in Soviet Russia and the early Soviet
Union. The Cours was translated into Russian in 1933, but it was widely discussed right after its appe-
arance in 1916 and thus exerted a formative influence on the development of Soviet linguistics. One of
the earliest proponents of Saussure’s views in Russian/Soviet linguistics was Sergei Kartsevskii who had
studied in Geneva for several years. After his return to Russia in 1917, Saussure’s ideas became popular,
albeit not uncritically accepted, among the representatives of the formal approach of OPOIaZ and the
Moscow Linguistic Circle. Despite the fact that Saussure was an important figure in the development of
Russian formalism, he was also read as a prominent exponent of a sociological approach to language in
the early Soviet state. Thus, a characteristic feature of the Soviet reception of Saussure is that his ideas
were interpreted and appropriated from two different perspectives that emphasised different aspects of
his legacy.
An influential early critique of Saussure can be found in Valentin Voloshinov’s 1929 book Marxism
and the Philosophy of Language. Given the wide-ranging impact of Saussure’s ideas, it is necessary to
situate Voloshinov’s discussion of Saussure in the context of the early Soviet language studies in order
to fully appreciate its significance. The present article discusses Voloshinov’s critical views in relation to
the critique presented by Lev Iakubinskii, both characterised by their extremely critical attitude towards
Saussure’s theorising. Comparison of their interpretations of Saussure is made relevant by the coinciden-
ces in their biographies (for a detailed discussion, see Ivanova 2000). Iakubinskii worked as a Professor
at the University of Petrograd while Voloshinov studied there in 1922-1924. Later on they both worked
at the ILIaZV (The Institute for the Comparative Study of Literatures and Languages of the West and
East) and collaborated in Maksim Gor´kii’s journal Literaturnaia ucheba. Given the biographical facts, it
would seem safe to assume that Voloshinov must have been familiar with Iakubinskii’s linguistic views.
The aim of this article is to investigate the argumentative strategies used by Voloshinov and Iakubinskii
in their respective critiques of Saussure and to find out whether and to what extent Voloshinov’s critical
reading of Saussure is compatible with Iakubinskii’s critical views.
2. Saussure and the sociological approach to language in the early Soviet language studies
The early period of Soviet language studies was characterised by a special emphasis on questions of
language and society. Several reasons can be adduced to why this was the case. The ‘sociological turn’ was
connected to the massive literacy campaign (likbez) launched in the early Soviet Union. The aim of the
campaign was to raise the literacy of the citizenry, which required – in addition to a massive educational
programme – linguistic codification and the creation of alphabets for languages without a written form
(see Grenoble 2003). As a result of the official language policy linguists working in various institutions
were involved in practical field-work as well as discussed the theoretical problems associated with the
literacy campaign. The emergence of the sociological approach to language can also be explained by the
new political and ideological circumstances of the Soviet state, which called for a ‘sociological’ approach
to the study of language based on Marxist social theory.
Another significant factor in the formation of the sociological approach in early Soviet linguistics was
the French sociological approach, the most influential representatives of which were Antoine Meillet and
Joseph Vendryes (for a discussion, see Desnitskaia 1991: 474). Their works together with Saussure’s
Cours became growingly popular among linguists interested in questions of language and society (see
e.g. Shor 1926). The study of the social variation of language also had its roots in the older dialectolo-
gical tradition of Russian linguistics in addition to which there also existed a strong Russian sociological
tradition, of whom the most prominent early exponents were the outstanding linguists Jan Baudouin de
Courtenay and Aleksei Shakhmatov whose work was then continued by the younger generation of the
1 The present article is based on research carried out with the support of a grant from the Academy of Finland (grant n:o 203553).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 458


so-called Leningrad School (for a recent discussion, see Brandist 2003). Given the prominent role of the
questions relating to language and society in the works of the representatives of the so-called Leningrad
School, it is perfectly legitimate to regard their activity as ‘proto-sociolinguistics2. As Brandist (2003)
has demonstrated, the sociological approach of the Leningrad School – represented most notably by Lev
Iakubinskii, Viktor Zhirmunskii and Boris Larin – anticipated the later developments in sociolinguistics
proper that took place in USA in the 1960s.
The popularity of Saussure’s ideas was also noted by Voloshinov (1973 [1929]: 58-59) who claimed
that ‘the majority of Russian thinkers in linguistics are under the determinative influence of Saussure
and his disciples’. He mentions Rozaliia Shor and Viktor Vinogradov as followers of the so-called Geneva
School in addition to which, in his view, the linguistic formalism represented Baudouin de Courtenay,
Nikolai Krushevskii and Filipp Fortunatov is on a par with the Saussurean approach to language (Vo-
loshinov 1973 [1929]: 59). Voloshinov also refers to Mikhail Peterson’s (1923) exposition of Saussure’s
‘sociological’ ideas in which the Moscow linguist gives a positive evaluation of both Saussure’s contribu-
tion and the views held by the representatives of the French sociological approach. However, the most
enthusiastic proponent of the French sociological approach and Saussure’s ideas in Soviet linguistics was
perhaps Shor (1926, 1927) who – despite her occasional critical remarks – emphasised the significance
of Saussure’s contribution to the study of language as a social phenomenon in her 1926 book Language
and Society and in the 1927 article ‘Crisis of Contemporary Linguistics’ also mentioned by Voloshinov.
For Shor (1927), the importance of Saussure mainly lies in the fact that he emphasised the traditional
and socio-cultural dimension of language and put an end to the type of linguistics in which language is
seen in terms of a psycho-physiological process within the consciousness of an individual. She also finds
Saussure’s demarcation of langue significant, for it presupposes that the relation between the signifier
and signified is pre-determined by the social system of language instead of being established in the act
of individual creation. Shor’s enthusiasm was also noticed by Voloshinov (1973 [1929]: 59) who cha-
racterised Shor as ‘an ardent apologist of Saussure’s basic ideas’. Similarly, Iakubinskii (1986 [1931]:
75) addressed a word of warning to those ‘who are ready to applaud to any “sociological” method and
consider Saussure almost as the father of sociological linguistics’.
The above comment made by Iakubinskii is symptomatic in the sense that while Saussure’s sociolo-
gism was rather well-received in Moscow, the attitude of the linguists working in Leningrad was much
more reserved. Despite the fact that Saussure emphasised the social nature of language, his contribution
was by no means regarded as groundbreaking or revolutionary by the Leningrad linguists. According to
Desnitskaia (1981: 82), the influence of Saussure on the new generation of Soviet linguists remained
rather limited for the reason that they already knew Baudouin de Courtenay’s ideas and therefore did not
see anything especially innovative in Saussure’s sociologism. This is illustrated by a comment by Evgenii
Polivanov (1968 [1929]: 185) according to whom ‘Saussure’s book does not contain any new positions
that would not have already been known to us from Baudouin de Courtenay’s teachings’. Similarly, in his
polemical remark to those who only acknowledge ‘ideas with a foreign label’, Shcherba (1988 [1945]:
62) states that many of Saussure’s ideas that aroused common enthusiasm after the appearance of the
Cours were well-known to the new generation of Soviet linguists influenced by Baudouin de Courtenay’s
ideas long before the year 1916.
3. Voloshinov’s critique of ‘abstract objectivism’
A detailed critical discussion of Saussure’s ideas can be found in Voloshinov’s 1929 book Marxism and
the Philosophy of Language. Despite the fact that Voloshinov was certainly not the only one to criticise
Saussure in Soviet linguistics in the 1920-30s, he has undoubtedly become one of the most influential
Russian/Soviet critics of Saussure in the West. It seems that in Western linguistics Marxism and the
Philosophy of Language has been primarily read as a powerful critique of Saussuren-style structuralist
theorising of language which provides a sound metatheoretical basis for those fields of language studies
which do not take the abstract language system as their starting point.
Voloshinov’s criticism of the modern state of ‘abstract objectivism’, as he calls it, is aimed at Saussure,
the most prominent exponent of the trend. Despite his severe criticism, Voloshinov (1973 [1929]: 58)
admits that Saussure’s ideas ‘have been endowed with amazing clarity and precision’ and, accordingly,
his theoretical formulations ‘can well be accounted classics of their time’. Voloshinov’s major objection to
Saussure’s theorising of language is the categorical distinction between langue and parole which Saussure
posits in order to demarcate the object of linguistics proper. For Voloshinov (1973 [1929]: 61), the proton
pseudos of Saussure’s conception lies in his assumption that in distinguishing the system of language from
actual acts of speaking we simultaneously distinguish what is social from what is individual. Voloshinov
argues that contrary to Saussure’s assumption the utterance is not an outcome of individual linguistic
creation, but ‘a two-sided act’ mutually constructed by the socially organised interlocutors.
Voloshinov considers two possible ways in which Saussure’s langue could be said to exist as a system
of self-identical forms. Firstly, a language can be viewed from a ‘truly objective’ point of view, when ‘we
find ourselves witnessing the ceaseless generation of language norms’ (Voloshinov 1973 [1929]: 66).
Secondly, a language can be approached from the point of view of the subjective consciousness of an
individual speaker of that language. Voloshinov (1973 [1929]: 67) accuses representatives of ‘abstract

2 Despite the fact that Leningrad eventually became the centre of early Soviet sociology of language, the sociological approach was also argued for by such
Moscow linguists as Peterson, Shor, and Evgenii Polivanov.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 459


objectivism’ of not giving a clear-cut definition of what they mean by ‘objectivity’ of the system of lin-
guistic norms. He argues that, although none of the representatives of abstract objectivism would ascribe
spatio-temporal reality to langue, they nevertheless fail to specify whether the objectivity of langue is
unmediated or whether it is an objective fact from the point of view of the subjective consciousness of
a speaker of a language.
According to Voloshinov (1973 [1929]: 66), when language is looked at from an objective point of
view, that is, ‘from above’, there is no such thing as an invariant synchronic system of linguistic forms
that would correspond to any real moment of a given language. Thus, Voloshinov concludes that the
notion of langue cannot capture the “immediate givenness” of language and is, at its best, a useful
abstraction created by a linguist who distances himself from the actual reality of language. Voloshinov
is of course right in arguing that a language does not represent a series of synchronic states, but is a
dynamic phenomenon which is in a constant process of becoming. This, however, cannot be regarded
as a valid argument against Saussure, for in his conception the study of language as a spatio-temporal
historical phenomenon belongs to the linguistics of parole, whereas the notion of langue is identified with
the synchronic, or better, achronic point of view which excludes the dimension of time.
What is more, Saussure himself insists that when a language is viewed as a historical phenomenon,
it becomes evident that it changes in time. To quote Saussure:
language changes, or rather evolves, under the influence of all the forces which can affect
either sounds or meanings. The evolution is inevitable; there is no example of a single lan-
guage that resists it. (Saussure 1966 [1916]: 76.)

Although Voloshinov rejects the idea that langue would correspond to any moment of a particular
language, he nevertheless admits that langue might be argued to exist objectively from the point of
view of the subjective consciousness of an individual speaker (Voloshinov 1973 [1929]: 66). This is
because linguistic norms are social in nature and all social norms exist with respect to the subjective
consciousness of the members of a community. Yet Voloshinov rejects this alternative and argues that
the attention of interlocutors is not focused on the production and identification of normative linguistic
forms (Lähteenmäki 1998: 57). On the contrary, a speaker is interested in what she can do with a given
expression in a particular social context. A language does not exist for the subjective consciousness as a
system of normatively identical forms, but as changeable and adaptable signs filled with ideology which
can be used to express various meaning positions. Saussure, too, rejects the idea of langue as a fact of
individual consciousness and instead sees it as a social fact. According to him (1966 [1916]: 14), langue
‘is not complete in any speaker; it exists perfectly only within a collectivity’. Thus, langue is a system of
linguistic signs that, on the one hand, are based on collective agreement and, on the other hand, are
psychological ‘realities that have their seat in the brain’ (Saussure 1966 [1916]: 15).
As a response to the Romantic idea according to which language is conceived of as individual creation
Saussure insists that an individual is not free to create her own language, but that a language is inherited
from the previous generations and ‘is the product passively assimilated by the individual’ (Saussure 1966
[1916]: 14). Voloshinov rejects this view and argues that from the idea of langue as an incontestable
system of linguistic norms it automatically follows that
[t]he individual must accept and assimilate this system entirely as is; there is no place in
it for evaluative, ideological discriminations – such as whether something is better, worse,
beautiful, ugly or the like. From the individual’s point of view, linguistic systematicity is arbi-
trary, i.e., utterly lacking any natural or ideological (for instance, artistic) comprehensibility
or motivation. (Voloshinov 1973 [1929]: 54.)

What is more, in Voloshinov’s view, Saussure’s distinction between langue and parole also distorts
our understanding of the mode of existence of a language as a historically evolving phenomenon. This is
because in Saussure’s account of the logic of language as a system and the logic of its historical evolution
have nothing in common, but are based on entirely different principles (Voloshinov 1973 [1929]: 56).
Voloshinov (1973 [1929]: 54) also argues that abstract objectivism assumes ‘a special kind of discontinuity
between the history of language and the system of language’. It should be pointed out that Saussure
was criticised on the same grounds by Russian formalists who did not accept his notion of langue which
presupposed a clear-cut distinction between the synchronic state and the evolution of language (see
Tynianov & Iakobson 1982 [1928]). Voloshinov clearly assumes that, for Saussure, the historical deve-
lopment of a language can be conceived of in terms of a succession of unconnected synchronic states,
as a consequence of which there is no connection between the system and its history. Thus, Saussure’s
view that langue is characterised by its immutable unity at any given point of time seems to contradict
the undeniable fact that languages do change all the time.
It is true that Saussure makes a categorical distinction between the synchronic and diachronic study
of language and holds that in the synchronic study of a language its historical or evolutionary dimension
is irrelevant. However, the distinction between the synchronic and diachronic points of view is a metho-
dological one and does not as such constitute an ontological claim. On the contrary, Saussure argues on
several occasions that a language conceived of as langage, that is, as language in its totality, comprises
both an established system and an evolution. To quote Saussure,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 460


[t]o distinguish between the system and its history, between what it is and what it was,
seems very simple at first glance; actually the two things are so closely related that we can
scarcely keep them apart. (Saussure 1966 [1916]: 8.)

As this quotation shows, for Saussure, linguistic structure and its history are ontologically intercon-
nected, that is, the synchronic structure is always the product of the past. However, linguistics studies
the values that hold between the elements of a system, and sciences that study values must make ‘a
distinction between the system of values per se and the same values as they relate to time’ (Saussure
1966 [1916]: 80). Moreover, Saussure does not accord to the study of the evolution of a language less
importance than the study of the synchronic system. Diachronic or evolutionary linguistics and synchronic
or static linguistics simply represent different and complementary perspectives on language.
Voloshinov’s polemical discussion does not always do justice to Saussure and, in fact, there are points
where Voloshinov clearly misrepresents Saussure’s views. The most striking example of Voloshinov’s
misunderstanding of Saussure is his discussion of the notion of langue. For Voloshinov (1973 [1929]:
57) the idea of language as ‘a stable, immutable system of normatively identical linguistic forms’ is to
be seen as a characteristic feature of ‘abstract objectivism’. He also argues that Saussure’s ‘contention
is that language as a system of normatively identical forms must be taken as the point of departure’
(Voloshinov 1973 [1929]: 60). The crucial point here is that throughout his discussion Voloshinov refers
to langue as ‘a system of forms’ or ‘a system of normatively identical forms’, although Saussure does
not conceive of the system of language in terms of forms, but in terms of values. His understanding
of the system of language as a relational entity derives from his conception of the sign as a union of a
concept and a sound-image. Thus, for Saussure, the linguistic sign is not just the linguistic form, but ‘a
two-sided psychological entity’ characterised by its ‘unified duality’. That Voloshinov characterises langue
as ‘a system of forms’ strongly suggests that he has profoundly misunderstood Saussure’s conception
of the linguistic sign, which comprises both the signified and the signifier, by mistakenly identifying it
with linguistic form.
4. Iakubinskii: on the possibility of linguistic politics
In October 1929 Iakubinskii delivered a paper titled ‘Ferdinand de Saussure on the impossibility of
linguistic politics’3 at the Institute of Discursive Culture, formerly known as ILIaZV. His polemical discus-
sion of Saussure is directly related to the literacy campaign that was taking place in the Soviet Union at
that time. Despite the fact that unlike many other important linguists Iakubinskii did not participate in
the practical language construction work, he discussed the theoretical aspects of language planning in
order to provide theoretical support for those involved in the creation of alphabets and construction of
written standards for languages without a written form.
Iakubinskii’s discussion of Saussure is based on his critical reading of the chapter ‘Immutability and
mutability of the sign’ of the Cours in which Saussure argues that the linguistic sign is simultaneously
characterised by two apparently contradictory properties, namely stability and dynamics. As pointed out
by Bally and Sechehaye (Saussure 1966 [1916]: 74n), Saussure’s position amounts to the view that
‘language changes in spite of the inability of speakers to change it’ and thus language is ‘intangible but
not unchangeable’. According to Iakubinskii (1986 [1931]: 72), Saussure’s conception boils down to the
claim that a language inevitably changes in time for objective historical reasons, whereas the subject of
language, that is, an individual speaker or the linguistic community are unable to change the language.
Indeed Saussure (1966 [1916]: 72) holds that speakers of a language are ‘largely unconscious of the
laws of language’ and thus unable to modify it. Iakubinskii argues that from Saussure’s thesis according
to which langue is a supraindividual system of signs inherited from previous generations it follows that the
language system would remain unaffected by the actual linguistic behaviour of the members of linguistic
community and their conscious attempts to change language. According to Iakubinskii (1986 [1931]:
74), this position must be mistaken, for both written language and spoken vernaculars do change. This
is illustrated, for instance, by the linguistic behaviour of Russian peasants who consciously change their
phonetics and grammar in order to bring their language closer in form to the variant spoken in towns.
Iakubinskii argues that Saussure approaches language from a formal and logical point of view and
ignores its connections to concrete reality and to the contexts in which it is used. His main objection to
Saussure’s approach to language is the notion of langue as a supraindividual inaccessible system passi-
vely inherited from the previous generations. For Saussure, members of a linguistic community cannot
freely choose the relation between the signifier and the signified, but the relation is imposed on linguistic
community. According to Saussure (1966 [1916]: 71), no individual speaker is able to ‘modify in any way
at all the choice that has been made; and what is more, the community itself cannot control so much as
a single word; it is bound to the existing language’. Thus, langue is a supraindividual system produced
by historical facts which pre-determines what choices the members of a linguistic community can make.
Iakubinskii rejects this view, for it would seem, by definition, to exclude the possibility of linguistic policy
and language planning. This is because language planning, the aim of which is to change the linguistic
situation of a community, presupposes the possibility of conscious intervention in the language by specia-
lists. Iakubinskii argues that if conscious intervention were impossible, as Saussure assumes, linguistics
would be useless and methodologically inadequate, because the validity of the theoretical achievements

3 This paper was published as an article in 1931 in Iazyk i materializm (vyp.2, 91-104).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 461


of linguistics is determined by whether they are applicable in practice and have practical consequences.
Thus, given the inseparability of the theoretical and practical aspects of language studies, Saussure’s views
are not only theoretically important, but also have serious social and political consequences (Iakubinskii
1986 [1931]: 73). Iakubinskii argues that Saussure’s postulate of the inaccessibility of langue is refuted
by the fact that there are numerous examples of the implementation of language planning in the Soviet
Union and other countries which have eventually resulted in linguistic reform.
In order to account for the immutability of the linguistic sign, Saussure considers four different points
which are critically examined by Iakubinskii. For Saussure, the immutability of the linguistic sign has to
do with its arbitrary nature. The linguistic sign is arbitrary in the sense that there is no natural connec-
tion between the signifier and signified. In this, language differs from other human institutions which,
according to Saussure (1966 [1916]: 75), ‘are all based in varying degrees on the natural relations of
things’. On the one hand, the arbitrary nature of the sign makes variability possible, for there is no na-
tural reason why this or that sound complex should be used to signify a certain concept. In other words,
linguistic signs are not motivated. On the other hand, the principle of arbitrariness of the linguistic sign
also seems to protect a language from change. This is because nothing can be achieved by replacing
one signifier with another. From the fact that there is no natural connection between the signifier and
signified it follows that members of a linguistic community lack ‘the necessary basis, the solid ground
for discussion’ of potential linguistic change (Saussure 1966 [1916]: 73).
Iakubinskii (1986 [1931]: 76) accepts the idea of the arbitrary nature of the linguistic sign, but
challenges Saussure’s conclusion according to which the absence of a rational connection between the
signifier and signified would imply that members of a linguistic community have no rational reasons for
preferring one linguistic form to another. As a counter example he quotes an incident from the history
of the Czech language discussed by Meillet. When the words of German origin were replaced by new
artificial words formed from Slavic elements, the word divadlo came to signify ‘theatre’. Meillet’s detailed
discussion of what sound complex would be the appropriate expression for the concept ‘theatre’ in Czech
demonstrates that reasons can be found for preferring one signifier to another. Iakubinskii (1986 [1931]:
77) emphasises that the linguistic sign is contradictory in its nature because, as well as being internally
arbitrary, as Saussure rightly argues, it is also intimately connected to various aspects of social life. In
his view, Saussure fails to see that these connections – whether rational or irrational – are open to de-
bate, because he approaches language from an abstract formal-logical point of view. Thus, contrary to
Saussure, Iakubinskii (1986 [1931]: 77) argues that numerous reasons can be found for preferring one
signifier to another which can be either linguistic or non-linguistic in nature.
For Iakubinskii, the Saussurean approach is inadequate, for it exclusively concentrates on the rela-
tions that hold between the signs within the sign system and thus ignores the relation between language
and extradiscursive reality. For Iakubinskii (1986 [1931]: 77), the interconnectedness of language and
reality is illustrated, for instance, by the fact ‘a peasant transforms his system of linguistic signs depen-
ding on and on the basis of the re-organisation of technology, way of life and thought’. In Iakubinskii’s
view, language and society are intimately connected, as a consequence of which a language reflects the
characteristics of the society in which it is spoken. Thus, Iakubinskii subscribed to the Marrist position
according to which language is a part of superstructure and directly reflects the characteristics of the
base. This idea was originally put forward by Nikolai Bukharin (1921) in his popular text-book Historical
Materialism: A System of Sociology and later adopted by Nikolai Marr in his discussion of the class-cha-
racter of language4.
Saussure also considers ‘the multiplicity of signs necessary to form any language’ as a factor that pro-
tects a language from a change. Iakubinskii’s discussion of this point reveals his total misunderstanding
of Saussure’s argument. To illustrate this it is necessary to quote Saussure at some length.
Another important deterrent to linguistic change is the great number of signs that must
go into the making of any language. A system of writing comprising twenty to forty letters
can in case of need be replaced by another system. The same would be true of language if
it contained a limited number of elements; but linguistic signs are numberless. (Saussure
1966 [1916]: 73.)

Iakubinskii maintains that the above argument would amount to the claim that written language
is tangible whereas spoken language is intangible. He insists that since the signs of both spoken and
written language are equally arbitrary, it follows that Saussure contradicts his first argument – i.e. that
all arbitrary signs are intangible – by admitting the tangibility of written signs. However, Saussure does
not argue for tangibility of written signs, but simply points out that while alphabets comprising a finite
number of letters could easily be replaced with one another, a language the linguistic signs of which are
numberless could not be replaced by another language. Moreover, Iakubinskii also argues that Saussure is
wrong in assuming that because it is an open system, a language can not be partially changed. Contrary
to Iakubinskii’s claims, Saussure is not arguing here against partial change, but saying that a language
is an open system comprising a limitless number of elements and therefore it is impossible to replace
the whole system with another one. Iakubinskii also finds Saussure guilty of claiming that written lan-

4 Marr explicitly used Marxist symbols and placed language in the superstructure for the first time during his 1927 Baku course on The New Theory of
Language (Cherchi & Manning 2002: 11).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 462


guage represents a closed system whereas spoken language is an open system, which he clearly is not
saying. According to Iakubinskii, Saussure must be wrong, because spoken language does not consist of
an infinite number of speech sounds, but of a finite number of phonemes. However, Saussure does not
even mention speech sounds or phonemes, but refers instead to the infinite number of linguistic signs,
words in a language. Having failed to grasp the point of Saussure’s argument, Iakubinskii (1986 [1931]:
78) arrogantly concludes that ‘Saussure ascribes to language such qualities that it does not possess and
palms off naïve hyperboles and confusion instead of evidence’.
The third point considered by Saussure is ‘the over-complexity of the system’. According to Saussure
(1966 [1916]: 73), a language constitutes a complex system which is partly governed by logic and ‘can
be grasped only through reflection’. Consequently, language changes remain largely unnoticed and a
speaker of a language only becomes aware of a change through the intervention of a specialist, although
‘experience shows us that all such meddlings have failed’ (Saussure 1966 [1916]: 73). Iakubinskii rightly
points out that Saussure is presenting two separate arguments in this passage. First, Saussure argues
that the speaking masses who use the language are ignorant of it and thus unable to transform their
language. According to Iakubinskii (1986 [1931]: 79), it is wrong to assume that an average speaker of a
language is automatically ignorant of her language, if she does not conceive of it as an abstract linguistic
system. Iakubinskii makes an important point by arguing that speakers of a language are aware of their
language and conceive of it as ‘language in action’. Moreover, the coexistence of various language forms
(e.g. social registers, regional dialects) within a linguistic community promotes the language awareness
of its members and thus provides them with grounds for transformation. Thus, according to Iakubinskii,
Saussure mistakenly assumes that a language can be grasped through reflection only, that is, from out-
side, and ignores the role the speaking subject and linguistic community.
However, Iakubinskii’s interpretation of the second part of Saussure’s argument, namely his scep-
ticism about ‘the meddlers’, is more problematic. Iakubinskii seems to understand Saussure’s remark
as a generalising statement the aim of which is to categorically deny the possibility of language plan-
ning. He argues that even if earlier attempts had failed, it does not follow that future attempts would
automatically also be doomed to failure. This is true, but it seems that Iakubinskii fails to recognise the
appropriate context of Saussure’s sceptical remark about ‘the meddlers’. It can be argued that it is not
directed against the possibility of language planning as such, but refers to particular cases he addresses
in his earlier discussion of the discrepancy between writing and pronunciation and the ramifications of
the failed attempts at orthographic reform in France (Saussure 1966 [1916]: 28-31)5. Saussure’s point
is that languages as well as other semiological systems cannot be changed at will, but evolve and are
transformed according to autonomous semiological laws. Saussure (1966 [1916]:76) makes the same
point when he argues that although Esperanto is a man-made artificial language, it will nevertheless be
transmitted ‘according to laws which have nothing in common with those of its logical creation’.
Finally, Saussure assumes that ‘collective inertia toward innovation’ characteristic of all linguistic
communities protects a language from a change. For him, a language is distinguished from other so-
cial institutions by the fact that in language ‘everybody participates at all times, and that is why it is
constantly being influenced by all’ (Saussure 1966 [1916]: 74). Accordingly, language is simultaneously
conservative and democratic in its nature, which makes a linguistic revolution impossible, for a langua-
ge belongs to everyone who uses it. Iakubinskii rejects the idea that all linguistic innovations would be
resisted by collective inertia of the linguistic community. In his view, Saussure’s idea that there exists a
homogeneous speaking mass is incorrect, for it ignores the social stratification of a society, thus neglec-
ting the dialectical nature of the development of a language. Iakubinskii rightly argues that all linguistic
communities consist of different social classes which differ in how inert or active they are regarding va-
rious linguistic issues (Iakubinskii 1986 [1931]: 80). Thus, Iakubinskii sees the existence of a language
as a constant dialectical interaction between competing language-forms associated with different social
classes. Iakubinskii’s critique of Saussure’s view of a speech community as an indifferent homogeneous
mass found empirical support in his own sociolinguistic research devoted to the social stratification of
the Russian language.
It can be questioned whether the point of Saussure’s argument that any language inevitably changes
in time but it is unalterable at will by either an individual speaker or the linguistic community actually is to
deny the possibility of linguistic policy, as Iakubinskii maintains. As argued above, Iakubinskii’s polemical
discussion of Saussure is characterised by its proclaimed nature and in some cases he simply misunders-
tands – or at least misrepresents – Saussure’s arguments. Notwithstanding Iakubinskii’s claims Saussure
clearly does not argue against the possibility of linguistic policy and language planning. In fact, this would
have been rather obscure, given his discussion of the reform of French orthography which constitutes a
case of language planning. The point of his discussion is that there is no natural connection between the
signifier and signified from which it follows that there is nothing in the physical properties of a particular
word that would it a better signifier for a certain concept. Thus, there are no linguistic reasons for prefer-
ring one sound complex to another. However, issues of linguistic policy are rarely purely linguistic in the
sense that they could be seen as belonging to the study of langue as defined by Saussure. This is also
made explicit by Iakubinskii (1986 [1931]: 77) himself, who admits that the reasons for preferring one
signifier to another can also be non-linguistic in nature. As Harris (see Saussure 1990: 73) points out,
it is perfectly possible to give a reason why one should not use sexist expressions like chairman instead
5 I would like to thank John E. Joseph for pointing this out to me.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 463


of neutral ones like chairperson, but the reason is not linguistic. Similarly, a reason can be given why
one should use a particular grammatical form by referring to a corresponding norm. However, it is the
existence of the norm that counts as a reason, not the physical properties of the linguistic expression.
Conclusion
Voloshinov’s and Iakubinskii’s discussions of Saussure appeared in 1929 and are both characterised
by their extremely critical attitude towards the Saussuren conception of language. In this, it can be ar-
gued, they are symptomatic of the intellectual climate of the early Soviet language studies. Despite the
fact that Saussure was widely read and his conception of language exerted a formative influence on the
development of the ideas of structurally oriented linguists, he was officially regarded as a reactionary
thinker who was criticised for his ‘sociologism’ up till the 1950s (Sliusareva 1990: 9). Accordingly, it was
politically correct to argue against Saussure’s unorthodox views on the relation of language and socie-
ty, which made him an easy target for criticism in the context of early Soviet language studies, as our
discussion clearly illustrates. In addition to their polemical tone, Voloshinov’s and Iakubinskii’s accounts
of Saussure are also characterised by their partial misunderstanding of Saussure’s views, from which it
follows that they do scant justice to his theorising. On the contrary, given the programmatic and pro-
claimed nature of Voloshinov’s and Iakubinskii’s critiques, it is difficult to avoid the impression that they
only used Saussure as a straw-man to make their own points.
Both Voloshinov and Iakubinskii find the Saussurean approach to language severely inadequate, for
it ignores the ideological dimension of language as well as its historical actuality. Voloshinov insists that
langue is to be seen an abstraction only, for it does not correspond to any real moment of a particular
language nor does it exist objectively from the point of view of the subjective consciousness of an indivi-
dual speaker. One of the ramifications of Saussure’s demarcation of langue is that an individual passively
acquires a preexisting neutral language system and accept it as given. This position was also criticised by
Iakubinskii who maintains that the idea of langue as an inaccessible system of linguistic norms excludes
the possibility of conscious language change and thus linguistic policy.
Despite the parallels that can be shown to exist between Voloshinov’s and Iakubinskii’s argumen-
tative strategies, it is difficult to explicate the exact nature of their interaction. It is even more difficult
to try to pinpoint specific textual passages that would count as evidence for Iakubinskii’s influence on
Voloshinov’s views on Saussure. Rather, it seems that their discussions of Saussure exhibit a certain
family resemblance which can be explained by the fact that they were working in the same intellectual
context within the same paradigm and sharing certain background assumptions concerning the nature of
language. This suggests that Voloshinov’s critique of Saussure, which was then restated by Bakhtin, did
not emerge from an intellectual vacuum, but was sensitive to contemporary linguistic discussions. This is
further supported by the fact that a similar line of argumentation can also be found, for instance, in the
writings of such Leningrad linguists as Shcherba and Polivanov. Thus, Voloshinov cannot be regarded as
an isolated critic of mainstream linguistic formalism, but must be seen, as his biography clearly suggests,
as one of the representatives of the so-called Leningrad School.
References
Brandist, C. 2003. The Origins of Soviet Sociolinguistics. Journal of Sociolinguistics, 7/2, 213-231.
Bukharin, N. I. 1921. Teoriia istoricheskogo materializma: populiarnyi uchebnik marksistskoi sotsiologii. Moscow:
Gosudarstvennoe izdatel´stvo.
Cherchi, M. & Manning, H. P. 2002. Disciplines and Nations: Niko Marr vs. His Georgian Students on Tbilisi State Univer-
sity and the Japhetidology/Caucasology Schism. The Carl Beck Papers in Russian & East European Studies, 1603.
Desnitskaia, A.V. 1981. O traditsiiakh sotsiologizma v russkom iazykoznanii. In Avanesov, R.I., Bondarko, L.V., Zinder,
L.R., Ivanov, V.V., Nikolaeva, T.M. & Iartseva, V.N. (eds) Teoriia iazyka, metody ego issledovaniia i prepodavania. K
100-letiiu so dnia rozhdeniia L’va Vladimirovicha Shcherby. Leningrad: Nauka, 79-87.
Desnitskaia, A.V. 1991. Frantsuzkie lingvisty i sovetskoe iazykoznanie 1920-1930-kh godov. Izvestiia Akademii nauk
SSSR, seriia literatury i iazyka, tom 50, n:o 5, 474-485.
Grenoble, L. A. 2003. Language Policy in the Soviet Union. Dordrecht, Boston, London: Kluwer Academic Publi-
shers.
Iakubinskii, L.P. 1986 [1931]. F. de Sossiur o nevozmozhnosti iazykovoi politiki. In Izbrannye raboty: iazyk i ego
funktsionirovanie. Moscow: Nauka, 71-82.
Ivanova, I.S. 2000. Kontseptsiia dialoga v rabotakh L.P. Iakubinskogo i V.N. Voloshinova (k voprosu o vzaimosviazi).
Iazyk i rechevaia deiatel’nost’, tom 3, 285-304.
Lähteenmäki, M. 1998. On Dynamics and Stability: Saussure, Voloshinov and Bakhtin. In Lähteenmäki, M. & Dufva,
H. (eds) Dialogues on Bakhtin: Interdisciplinary Readings. Jyväskylä: Centre for Applied Language Studies, 51-69.
Peterson, M.N. 1923. Obshchaia lingvistika. Pechat’ i revoliutsiia, 6, 26-32.
Polivanov, E. D. 1968 [1929] Krug ocherednykh problem sovremennoi lingvistiki. In Stat´i po obshchemu iazykozna-
niiu. Moscow: Nauka, 178-186.
Saussure, D. de. 1966 [1916]. Course in General Linguistics. Translated by W. Baskin. new York, Toronto and London:
McGraw-Hill Book Company.
Saussure, F. de 1990. Course in General Linguistics. Translated and annotated by R. Harris.London: Duckworth.
Shcherba, L.V. 1988 [1945]. Ocherednye problemy iazykovedeniia. In Berezin, F.M. (comp.) Istoriia sovetskogo ia-
zykoznaniia, Nekotorye aspekty obshchei teorii iazyka. Khrestomatiia. Moscow: Vysshaia shkola, 57-73.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 464


Shor. R.O. 1926. Iazyk i obshchestvo. Moscow: Rabotnik prosveshcheniia.
Shor. R.O. 1927. Krizis sovremennoi lingvistiki. Jafeticheskii sbornik V. Leningrad: Izd. Akademii nauk SSSR, 32-71.
Sliusareva, N. A. 1990. O zametkakh F. de Sossiura po obshchemu iazykoznaniiu. In Sossiur, F. de Zametki po obshchei
lingvistike. Moscow: Progress, 7-28.
Tynianov, Iu. N. & Iakobson, R. O. 1982 [1928]. Problemy izucheniia literatury i iazyka. In Kirai, D. & Kovach A. (eds.)
Poetika: Trudy russkikh i sovetskikh poeticheskikh shkol. Budapest: Tankönyvkiado, 159-182.
Voloshinov, V.N. 1973 [1929]. Marxism and the Philosophy of Language. Translated by L. Matejka and I.R. Titunik.
New York and London: Seminar Press.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 465


Entre a Irreverência e a Seriedade:
O Espaço ambivalente, sem fronteiras de As I Lay Dying.

Vera Lucia Lenz

Universidade Federal de Santa Maria

Centro de Educação, Biologia e Letras, Prédio16

Campus de Camobi, Santa Maria, Camobi, RS, Brasil, 97.105-900

Resumo I
Desde sua publicação, As I Lay Dying, romance do escritor norte-americano William Faulkner, vem
desafiando a crítica literária devido ao grau elevado de assimetrias que caracteriza a estrutura de sua
narrativa. A interessante arquitetura do texto composta de 59 segmentos narrativos, cada um interrom-
pido e intercalado por um novo segmento, retarda a apreensão do sentido global do texto, acentuando
a natureza heterogênea e ambivalente do romance. Este estudo analisa a obra de Faulkner a partir dos
conceitos sobre Carnavalização e Literatura Carnavalizada desenvolvidos por Mikhail Bakhtin. Através do
estudo da complexidade formal e simbólica do romance, procura-se mostrar o parentesco do texto com
uma powerful and multibranched tradition, ou seja, uma tradição carnavalesca como Bakhtin a denomi-
na. Destaca-se a composição do enredo, a fala das personagens e o modo de focalização entre outros
aspectos, na tentativa de apreender o universo carnavalizado e sem fronteiras de As I Lay Dying.
Resumo II
As I Lay Dying has provoked heated discussion and divergent readings within the literary academy
due to the high degree of asymmetries and discontinuities that characterize its narrative structure. The
59 multifaceted episodes which constitute the text’s framework yield to a retardatory strategy concerning
the apprehension of the meaning of the text, emphasizing its open and incomplete nature. The present
study investigates William Faulkner’s novel in the light of Mikhail Bakhtin’s concepts of Carnivalization
and Carnivalized Literature. The analysis points out the kinship existing between the text and a powerful
and multibranched tradition, that is to say, a carnivalistic tradition as Bakhtin’s studies about the story of
the genres has demonstrated. The development of the text’s plot, the narrators’voices and the mode
of focalization are examined here in an attempt of grasping the complex formal and symbolic structure
of As I Lay Dying’s carnivalized universe.

INTRODUÇÃO
As I Lay Dying, ou Enquanto Agonizo, título que o romance recebe em sua tradução para o Português,
é uma obra do escritor norte-americano William Faulkner. Caracterizado por assimetrias e a reunião de
elementos heterogêneos, As I Lay Dying desafia o leitor a encontrar um pouco de unidade e lógica em
meio a uma aparente desordem.
As I Lay Dying apresenta uma montagem interessante de 59 segmentos narrativos, cada um tempora-
riamente interrompido e intercalado por um outro segmento, de modo que a seqüência é continuamente
quebrada e o leitor submetido a uma estratégia que retarda a apreensão do sentido do texto. A cada
novo segmento novas sugestões e pontos de vista são oferecidos, uma vez que cada personagem é o
próprio narrador de seu relato. Essa dinâmica acentua a complexidade do texto, uma vez que a visão
dos diferentes narradores sobre os fatos narrados não coincidem.
A análise aqui desenvolvida leva em consideração a teoria da carnavalização proposta por Mikhail
Bakhtin. Tenta-se demonstrar como o romance está impregnado de imagens, gestos e acontecimentos
que só podem ser entendidos à luz da teoria da carnavalização. Desse modo, as irregularidades do texto
resultam de uma dinâmica cujas raízes estão sedimentadas na tradição carnavalesca. Em Rabelais and
His World, BAKHTIN (1884:6-10) discute o aspecto duplo do mundo e da vida humana desde os primeiros
estágios do desenvolvimento cultural, apontando a existência de cultos e rituais cômicos e abusivos ao
lado de celebrações oficiais, sérias. Dessa forma, a experiência humana era vivenciada através de duas

Proceedings XI International Bakhtin Conference 466


dimensões – uma que celebrava as verdades predominantes, a institucionalização da ordem, e outra que
se opunha à rigidez das convenções, ou seja, uma dimensão lúdica, carnavalizada.
Os estudos de Bakhtin sobre a estória dos gêneros literários, demonstram a enorme influência da
percepção carnavalesca de mundo na literatura através dos séculos. O teórico postula que a literatura
carnavalizada ao se organizar a partir dos gêneros menores e populares, ao contrário dos gêneros clás-
sicos, oferece uma visão de mundo às avessas, visão onde a linguagem e a estrutura da obra artística
exprimem uma complexidade simbólica e formal na percepção de um mundo invertido. Ao contrário das
obras clássicas, a literatura carnavalizada se apóia na deshierarquização da sociedade, relativisando e
desestabilizando a seriedade das convenções sociais. A carnavalização, ou seja, a transposição de toda
a simbologia e a linguagem do carnaval para a linguagem da literatura, promoveu o surgimento de con-
trastes bruscos, tom ambíguo e todo o tipo de excentricidades . Assim, Bakhtin argumenta que o espírito
carnavalesco de mundo permitiu o aparecimento de paradoxos não apenas em relação à lógica da vida,
mas também em relação à lógica do texto literário. Referindo especificamente à característica estrutural
da imagem do carnaval, BAKHTIN (1987:176) enfatiza a presença de dois planos que a compõe, ou seja,
o plano da afirmação e o da negação. A partir dessa ótica, a imagem carnavalesca ora acentua o riso, o
grotesco, ora acentua o sério, o sagrado.
Ao enfatizar questões relativas ao enredo, à focalização e ao discurso das personagens, esse estudo
tenta colocar em evidência o ‘parentesco’ entre o romance de William Faulkner e a literatura carnava-
lizada.
ENREDO
A estória inicia e Addie Bundren está agonizando. Ela morre, e após a cerimônia fúnebre, seu marido
e filhos transportam o seu caixão para a carroça da família. A viagem até o lugar em que Addie havia
pedido para ser enterrada começa. Durante o trajeto, a família encontra todo o tipo de dificuldades.
A saga dos Bundrens assemelha-se, por vezes, a uma aventura ‘quixotesca’, onde heroísmo e loucura
caminham lado a lado. À maneira dos textos carnavalizados, a jornada de 10 dias que os membros da
família enfrentam, revela gradativamente, a natureza inapropriada e mesmo escandalosa da maioria dos
eventos que ocorrem ao longo do caminho. Há traços de loucura na manipulação do corpo de Addie, por
exemplo. Sem ter sido embalsamado, o caixão começa a ser acompanhado por abutres. Há traços de
heroísmo, em relação à tentativa desesperada de um de seus filhos de salvar o caixão da mãe durante
os episódios relativos ao fogo e à enchente.
Durante o cortejo fúnebre, os Bundrens tentam valorizar sua identidade enquanto família e enquanto
indivíduos, e cada um deles desenvolve uma noção diferente sobre si próprio e sobre os outros. Inúmeras
falhas ocorrem em nível tanto coletivo, pela maneira grotesca com que conduzem o cortejo fúnebre,
como em nível individual, através dos pequenos e grandes infortúnios que atingem cada um dos mem-
bros da família: Jewel, o homem de ação, perde seu único bem, o cavalo, acabando a pé; Dewey Dell,
a garota inocente, engravida; Vardaman vê seu sonho de ganhar o brinquedo tão desejado, frustrado e
Darl, o filho sábio, é julgado louco e trancafiado num asilo. A única exceção, é Anse, o chefe da família,
que mesmo enlutado, adquire sua cobiçada dentadura e acaba a viagem com uma nova Mrs. Bundren.
O rumo inesperado dos acontecimentos que afetam a família Bundren, destaca a relação do texto com a
literatura carnavalizada , que, de acordo com o pensamento Bakhtiniano, apresenta personagens cujas
ações são caracterizadas por alterações repentinas e excêntricas. A combinação de um certo grau de
aventura, a indagação de questões referentes ao significado da existência humana, o enfrentamento de
situações limites, a intercalação entre passagens trágicas e passagens cômicas, aproximam a estrutura
do enredo a um passado. Passado esse vinculado a uma “powerful and multibranched generic tradition”,
como define Bakhtin, ou seja, uma tradição carnavalesca iniciada na antiguidade e que alcançou nossos
dias.
Considerando a influência do carnaval, pode-se, então, entender as inconsistências existentes no
texto, como a presença de elementos heterogêneos, a aproximação de opostos e as mudanças brus-
cas em relação ao rumo dos eventos narrados. Dessa forma, pode-se dizer que a saga dos Bundrens
é veiculada através da articulação de dois planos distintos; um plano sagrado e outro profano que se
encontram intercalados no decorrer da narrativa. O plano sagrado diz respeito à morte de Addie e ao
desejo da família de conferir seriedade ao cortejo fúnebre. Por outro lado, a teimosia dos Bundrens em
não reconhecer as transgressões que eles cometem ao longo da jornada constitui a dimensão profana
do texto. Do mesmo modo, o desejo secreto e particular que motiva quase todos os membros da família
a dar continuidade à jornada, tornam suas ações destituídas de valor moral e religioso, destacando a
dimensão profana do texto.
FOCALIZAÇÃO
Faulkner apresenta aqui um modo original de focalização que expande e enriquece as possibilidades
de narração. Ao fragmentar a estória em várias partes, cada uma delas apresentando uma consciência
distinta, Faulkner justapõe vários pontos de vista. Ao mesmo tempo em que estas visões de mundo são
aproximadas, elas se contrapõem, uma vez que cada uma delas representa uma ideologia de mundo
singular. Embora a morte de Addie seja um dos incidentes que o texto narra em primeira mão, o apareci-
mento de sua voz, a dois terços do desenrolar da estória, causa um impacto no leitor, surgindo como uma
revelação. O seu segmento esclarece muitas alusões feitas anteriormente sobre a personagem. Mesmo

Proceedings XI International Bakhtin Conference 467


assim, a compreensão do seu relato necessita da visão de conjunto oferecida pelos demais segmentos,
sendo obtida efetivamente, na interação com os outros segmentos. O surgimento da voz de Addie bem
depois do leitor ter acompanhado os preparativos de sua morte , é sem dúvida um elemento que relaciona
a estrutura do texto à uma estrutura carnavalizada, caracterizada pela abolição da lógica. A narrativa
dessa personagem surge como uma espécie de confissão à medida em que ela expõe seus sentimentos,
descrevendo coisas que ela jamais havia dito para outras pessoas ou para a sua família .
Observa-se que a voz das personagens emerge de um espaço narrativo polifônico, uma vez que
Faulkner concede autonomia para que cada consciência desenvolva e preserve sua integridade sem a
interferência de um narrador de fora. Devido à multiplicidade de vozes que se manifestam no texto, o
discurso se torna plurivocal, no sentido de que a maioria das personagens escuta umas as outras, e o
entendimento nunca ocorre de maneira subjetiva, mas a partir do entrelaçamento de vários pontos de
vista. Tanto Addie como seu filho Darl, por exemplo, dialogam e polemizam a palavra alheia, contra-
pondo-a aos seus próprios pensamentos. Ao articular visões de mundo divergentes, colocando-as lado
a lado, As I Lay Dying se torna um palco carnavalizado de vozes reivindicatórias, não excludentes, que
articulam uma espécie de diálogo inconcluso.
DISCURSO NARRATIVO
As excentricidades encontradas em As I Lay Dying, também se manifestam através do discurso das
personagens. Embora predomine o emprego do dialeto – ‘a country folk dialect’ – ocorre, por vezes, uma
alteração. A linguagem limitada, rústica que caracteriza a fala dos membros da família Bundren, adquire,
em certos momentos, um tom filosófico, poético. Os Bundrens, pessoas comuns, semi-analfabetas, oca-
sionalmente são capazes de expressar seus sentimentos com eloqüência e lirismo. São essas mudanças
no discurso das personagens que permitem ao leitor sentir a presença autoral. Embora os protagonistas
gozem de certa liberdade no cenário ficcional, com a influência e controle do autor mantidos a uma certa
distância, momentos transitórios como esses, apontam uma mudança que não chega, entretanto, a se
caracterizar como uma intrusão. Como BROOKS (1983:82) observa, essas passagens ajudam a penetrar
na profundeza da alma dessas pessoas humildes e devem ser analisadas como “a articulação de emoções
genuínas através de palavras que fazem jus a autenticidade de seus sentimentos”.
Nessas ocasiões, a ideologia da voz autoral aflora e um novo ‘insight’ em relação ao universo dos
Bundrens é iluminado; a questão estética funde-se com questões de ordem social e ética. Em momen-
tos como esse, o autor cria condições de subverter a percepção por vezes estereotipada que se tem em
relação à pessoas marginalizadas, pobres como a família em questão.Os Bundrens tornam-se, então,
mais humanizados a despeito do ambiente hostil que enfrentam e das ações intempestivas, por vezes
tolas, que adotam. Ao se deixar aproximar do mundo dos protagonistas, Faulkner acrescenta significado
social ao mundo ficcional. É oportuno lembrar que uma das funções básicas do carnaval é a subversão da
ideologia dominante. O universo carnavalizado de As I Lay Dying, assume, de certa forma, essa função
ao sacudir nossa visão embaçada, preconceituosa sobre pessoas socialmente destituídas, sensibilizando-
nos em relação ao seu infortúnio, mesmo que por vezes o drama da família pareça grotesco.
Considerações Finais
Finalizando, podemos afirmar que a preservação e a combinação de elementos heterogêneos, como
por exemplo a reunião do sagrado e do profano, do sublime e do insignificante, da sabedoria e da igno-
rância, conferem vitalidade ao projeto artístico de As I Lay Dying. Graças à carnavalização dos gêneros
que ocorreu within the realm of the serio-comical, after the manner of carnival, being evinced first and
foremost through its ambivalence, como BAKHTIN (1987:132) assinala, o universo carnavalizado deste
romance derruba a fronteira entre o bem e o mal, apresentando uma dialética entre ordem e desordem.
Ao apresentar uma suspensão em relação à ordem tradicional e uma visão de mundo à l’en vers, a odis-
séia da família Bundren pode ser vista, em última análise, tanto como uma vitória perante à adversidade
ou um empreendimento grotesco e absurdo.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Trad. Caryl Emerson. 3ed. Minneapolis: University of Minessota
Press, 1987.
. Questões de Literatura e Estética:A Teoria do Romance. Trad. Aurora Bernardini. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
. Rabelais and His World. Trad. Hélène Iswolsky. Bloomington: Indiana University Press, 1984.
BERNSTEIN, A. Michel. When Carnival turns Bitter. In: MORSON, S. Gary. Bakhtin: Essays and Dialogues on His
Works. 6ed. Chicago: The Chicago University Press, 1986.
BROOKS, Cleanth. William Faulkner: First Encounters. New Haven:Yale University Press, 1983.
FAULKNER, William. As I Lay Dying. 16ed. NewYork: Penguin Books, 1986.
HARRINGTON, Gary. Faulkner’s Fables of Creativity: The Non-Yoknapatawpha Novels. Athens: University of Georgia
Press,1990.
WOLF, Sally and WATKINS, Floyd. Talking about William Faulkner: Interviews with Jimmy Faulkner and others. Baton
Rouge: Louisiana State University, 1996.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 468


Textos chave:
As I Lay Dying; William Faulkner
Problems of Dostoevsky’s Poetics; Mikhkail Bakhtin
Questões de Literatura e Estética : A Teoria do Romance; Mikhail Bakhtin
Rabelais and His World; Mikhail Bakhtin
William Faulkner: First Encounters; Cleanth Brooks
Talking about William Faulkner: Interviews with Jimmy Faulkner and others;
Floyd Watkins.
Nomes chave:
Mikhail Bakhtin
William Faulkner
Cleanth Brooks
Floyd Watkins
Palavras chave: Carnavalização, literatura carnavalizada, heterogeneidade,
ambivalência
Biografia resumida: A autora é Professora Ajunto da Universidade Federal de
Santa Maria, RS, atuando junto ao Departamento de Letras Estrangeiras na área
de Literatura Comparada e Língua Inglesa. É Especialista em Língua Inglesa pela
UFSM, Mestre em Literatura Anglo-Americana pela UFRGS e Doutora em Literatura
Comparada pela UFRGS. Atualmente desenvolve pesquisa junto ao Laboratório
CORPUS, GRPESQ/CNPq: Discurso, História, Gênero e Identidade.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 469


“Lá na América Latina...” _
uma reflexão sobre as identidades culturais na sala de espanhol LE

Giane da Silva Mariano Lessa

Universidade Federal do Rio de Janeiro – Mestranda

Rua Visconde de Taunay, 7 / apt. 301

Méier – Rio de Janeiro

Cep.: 20720-210

Resumo I
Este trabalho é fruto de uma inquietação, como professora de espanhol LE, durante onze anos: a
constatação de uma imagem negativa apresentada pelos alunos sobre o mundo hispano-americano; a
falta de informação e desinteresse sobre a América Latina.
Para entender como ocorre esse processo de distanciamento, recorri a um estudo interdisciplinar so-
bre discurso e identidades culturais, dentro da metodologia interpretativista, realizando uma etnografia
com meus alunos.
Seguindo a visão socioconstrucionista do discurso e das identidades culturais, entendo que a conversa
entre os participantes de uma interação discursiva está marcada sócio-historicamente e carrega marcas
culturais, raciais, institucionais etc.
Inicialmente focalizo a natureza social e dialógica da comunicação humana e os discursos como cons-
trutores e constituintes da realidade social. Logo, caracterizo a linguagem como fenômeno ideológico e
explico como os significados que circulam no corpo social são legitimados. Depois, caracterizo o contexto
institucional da sala de aula. Finalmente analiso dados coletados.
Resumen II
Este trabajo resulta de la inquietación, como profesora de espanhol LE, durante once años: la consta-
tación de una imagen negativa presentada por los alumnos sobre el mundo hispano-americano; la falta
de información y desinterés sobre la América Latina.
Para entender como ocurre ese proceso de alejamiento, recurrí al estudio interdisciplinar sobre discur-
so e identidades culturales, que se insere en la metodología interpretativista, realizando una etnografia
con mis alumnos.
Siguiendo la visión socioconstrucionista del discurso y de las identidades culturales, entiendo que el
debate entre los participantes de una interacción discursiva está marcada sócio-históricamente y lleva
huellas culturales, raciales, institucionales, etc.
Inicialmente focalizo la naturaleza social y dialógica de la comunicación humana y los discursos como
constructores y constituyentes de la realidad social. Luego, caracterizo el lenguaje como fenómeno ideoló-
gico y explico como los significados que circulan en el cuerpo social son legitimados. Después, caracterizo
el contexto institucional de la sala de clase. Finalmente analiso datos colectados.
Dialogia, alteridade e relações de poder
De acordo com Bakhtin, a linguagem é essencialmente veículo da comunicação humana. Sua realização
se faz pela necessidade dos seres humanos de se comunicarem uns com os outros, caracterizando-se,
assim como um fenômeno social.
Para Bakhtin, não faz sentido, portanto, falar em linguagem sem que se pressuponha a dialogia, pois,
segundo esse autor, toda palavra, toda enunciação se dirige a alguém. A comunicação verbal se concre-
tiza no diálogo, que para Bakhtin tem um sentido bastante amplo, vai muito além da comunicação face
a face e, sobretudo, não implica o consenso e sim a negociação.
Se toda palavra se dirige a alguém, o enunciado “deve ser considerado acima de tudo como uma
resposta a enunciados anteriores” (Bakhtin, 1992 p. 316) e, como o ser humano não vive isolado sem
contato com outros seres humanos, sua fala está “repleta de ecos e lembranças de outros enunciados”
(Ibidem, 1992 p. 316).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 470


O diálogo é formado por um conjunto de enunciações, sendo o enunciado, “a unidade real da comu-
nicação verbal” (Bakhtin, 1992 p. 293), que se configura, conseqüentemente como “um elo na comuni-
cação verbal (Ibidem, 1992 p. 308). Sob essa ótica, a comunicação humana pode ser considerada como
um grande tecido de enunciações, constituído por uma trama sem princípio nem fim, que configura um
imenso e interminável diálogo humano. Uma trama de sentidos e significados criados e compartilhados
pelos indivíduos que compõem a sociedade, significados que estão nas possibilidades infinitas do uso da
língua e da linguagem, dos discursos por elas gerados, sempre na interação discursiva.
Dessa forma, os discursos que circulam na sociedade, nos mais variados contextos sociais constroem
e constituem a realidade social (Fairclough, 2001), pois o discurso é o meio pelo qual se realizam as prá-
ticas sociais: “maneiras habitualizadas, ligadas a determinadas épocas e lugares, nas quais as pessoas
utilizam recursos (simbólicos ou materiais) para agir no mundo” Chouliaraki e Fairclough (1999 p. 21). É
por meio do discurso, portanto, que as pessoas agem dentro da sociedade; que constroem conhecimento
e significados sobre o mundo e, por conseguinte, constroem suas identidades culturais.
Acontece que, como adverte Bakhtin (1992), a dialogia discursiva e, conseqüentemente, toda sorte
de práticas sociais se dão em relações sociais assimétricas. Para esse autor, a fala é essencialmente
ideológica, ainda que os participantes envolvidos em determinada prática discursiva, em contextos socio-
históricos específicos, não tenham consciência desse fato (Fairclough, 2001).
Para Fairclough (2001 p. 117) ideologias são: “significações/construções da realidade (o mundo físico,
as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos
das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou transformação das relações
de dominação”.
Tal conceito de ideologias tem suas bases fundamentadas na teoria de ideologias de Althusser, que
caracterizou-as “não como um reino nebuloso de ‘idéias’, mas como ligadas a práticas materiais embe-
bidas em instituições sociais (como ensinar está organizado em salas de aula, por exemplo)” (Fairclough
e Wodak, 1997 p. 261). Isto quer dizer que todas as organizações e práticas sociais estão embebidas
em ideologias, assim como os discursos que as efetivam.
Se as relações sociais são assimétricas, nelas estão implicadas relações de poder, que por sua vez,
se dão de acordo com as identidades sociais e culturais dos agentes nelas envolvidos.
Como bem sugere Foucault (2000b: 10) “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar”, em outras palavras, as práticas discursivas configuram, conseqüentemente, práticas situadas
de dominação e poder.
É pois, na trama dialógica, que as mais variadas práticas de dominação acontecem e se consolidam
no corpo de verdades e de saberes humanos, alinhavados no tenso e assimétrico jogo da negociação
discursiva: o poder está relacionado, portanto, à produção de conhecimento dentro das sociedades
(Foucault, 2000a).
Essa negociação vai gerar o que Foucault (2000a p. 7) chamou de “efeitos de verdade”, que são le-
gitimados e institucionalizados e que estipularão, por exemplo, as regras que determinado grupo social
seguirá. Foucault (2000a p. 14) considera verdade “um conjunto de procedimentos regulados para a
produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados”. Sendo assim, a verdade,
dentro do corpo social “está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apóiam, e a
efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem” (Foucault, 2000a p. 14), que por sua vez se expres-
sam nas práticas de poder naturalizadas socialmente configurando os regimes de verdade.
Os regimes de verdade podem ser descritos como todo o corpus de regras e construtos sociais que
legitimam toda sorte de práticas e valores que se realizam em determinada sociedade; são práticas
naturalizadas e aceitas sem questionamento. É dentro dos regimes de verdade que se produzem meca-
nismos de inclusão e exclusão social; escolhas sobre o que pode ser aceito e o que deve ser rejeitado:
“em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar poderes e perigos, dominar
seu conhecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 2000b ps. 8;9).
Sem que haja algum questionamento, então, “o poder se oculta como norma” Skliar (2002 p.88).
Conseqüentemente, os abusos de poder, a coerção, a intimidação, junto a todos os processos de exclu-
são e dominação sociais são normalizados e exercidos na sociedade como parte de uma prática aceita
e naturalizada. Do mesmo modo se (re)constroem as identidades sociais e culturais, as assimetrias e a
hegemonia: “ o poder sobre a sociedade como um todo de uma das classes economicamente definidas
como fundamentais em aliança com outras forças sociais, mas nunca atingindo senão parcial e tempora-
riamente, como um ‘equilíbrio estável’. Hegemonia é a construção de alianças e a integração muito mais
do que simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões ou meios ideológicos
para ganhar seu consentimento” Fairclough (2001 p. 122).
Os valores e saberes hegemônicos perpassam o senso comum que circula pela sociedade. É dessa
maneira que discursos hegemônicos são consumidos e reproduzidos sem questionamentos, consumando
e consolidando um estado de coisas.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 471


A alteridade latino-americana na dialogia colonial
A alteridade latino-americana nasce com a conquista e com os processos de colonização, na relação
dialógica e assimétrica que o colonizador estabelece com o colonizado. Nesse contexto específico regimes
de verdade começam a ser criados a partir das ideologias dominantes. O colonizador não só (re)nomeia a
terra e os seres humanos com que se deparam, como também inicia a (re)construção do outro colonizado
segundo seus parâmetros, sua situação socio-histórica, suas culturas e temporalidade.
A alteridade colonial se constrói a partir: 1) de “um conjunto de mitologias criadas sobre o outro”
(Skliar, 2002 p. 88); 2) dos discursos permitidos e legitimados pelo colonizador; 3) do silêncio discursivo
sobre as identidades do outro colonizado; 4) do silenciamento de suas narrativas históricas: “a coloniza-
ção não se satisfaz meramente com a manutenção de um povo sob seu domínio e com o esvaziamento
dos cérebros nativos de toda forma de conteúdo. Por meio de uma lógica perversa, ela se volta para o
passado dos povos oprimidos e o distorce, desfigura e destrói” (Fanon, 1963 apud Hall 2002 p. 51) e 5)
do emudecimento da voz do colonizado.
A dialogia colonial, em vez de conter em si a pluralidade de vozes e os ecos dos mais variados discursos,
passa a ser um discurso monofônico, pois o discurso autoritário também congela os signos lingüísticos,
sua dinamicidade e suas significações. A voz do outro colonizado só é ouvida se contiver em sua fala o
eco da voz do colonizador. Sendo assim, a alteridade colonizada adquire uma identidade negativa fixa
que deve ser assegurada e reafirmada constantemente, pois “o processo de colonização aniquila a crença
que o povo tem em seus nomes, na sua língua, no seu meio ambiente, na sua herança cultural, na sua
unidade, em suas capacidades e, finalmente, neles mesmos. Isso faz com que vejam seu passado como
um deserto, como uma terra inculta de fracassos e faz com que se distanciem desse deserto” (Thiong’o
apud Southard, 1997).
Como o diálogo pressupõe o outro, e é nesse outro (re)construído como negativo que o colonizador
se (re)constrói como possuidor de valores positivos. Então, o outro colonizado deve sempre coincidir com
o que o colonizador espera dele e se essa coincidência não acontece, “a invenção e a espera tornam-se
mais destrutivas, mais violentas e, finalmente, mais genocidas” (Skliar, 2002 p. 87).
Sendo assim, a alteridade colonizada tornou-se naturalmente negativa e as vozes colonizadas foram
naturalmente silenciadas e se tornaram naturalmente o espelho das vozes colonizadoras que falavam
em uníssono. As práticas colônias têm feito ao longo dos últimos séculos com o distanciamento dos
habitantes das regiões colonizadas em relação às suas origens nativas, fazendo com que absorvam e
reproduzam as culturas européias e, mais recentemente, estadounidense, e, conseqüentemente, os
discursos que as legitimizam.
A sala de aula de espanhol LE
Se pensarmos que ao longo, pelo menos, dos últimos 30 anos o ensino de inglês como língua hege-
mônica teve supremacia nas escolas brasileiras e que, com ele, reproduziu-se muito mais os valores da
cultura estadounidense (Moita Lopes, 1996), dando continuidade a uma (re)afirmação das identidades
latino-americanas como negativa: marcada pelo fracasso (sob os parâmetros das sociedades ditas desen-
volvidas), subdesenvolvida, sem recursos etc, o ensino de espanhol pode ser uma grande oportunidade
de contestação desses valores e da (re)construção das identidades culturais latino-americanas.
O contexto institucional da sala de aula de espanhol LE é visto aqui como um lugar onde professores
e alunos constroem significados sobre o mundo; onde se formam identidades culturais; onde se repro-
duzem e se legitimam discursos e conhecimentos hegemônicos ou onde tais discursos e conhecimentos
podem ser questionados e contestados (Moita Lopes, 1998).
Esse olhar, entende que eventos de leitura na aula de língua instrumental, são marcados sócio-his-
toricamente e possuem um caráter transformador. Os agentes envolvidos num evento de leitura podem
mudar sua concepção da realidade que os cerca, sua maneira de ver e de lidar com os mais variados
aspectos sociais , culturais e políticos (Soares, 2000).
Desse modo, as identidades latino-americanas podem ser (re)construídas na negociação discursiva,
feita por professora e alunos, sobre os significados dos textos lidos.
É importante ressaltar a sala de aula como um lugar de prestígio social e a figura do professor como
autoridade cuja relação com os alunos se configura, por essa mesma razão, como uma relação assimé-
trica. Nesse sentido, o professor ocupa um lugar de poder e, conseqüentemente, de possibilidade de
influência na formação dos alunos. Está nas mãos do professor a escolha de textos, e de como conduzir
os debates sobre os mesmos. Dentro dessa perspectiva, é preciso que o professor tenha consciência de
seu papel e de suas opções na sala de aula.
Passo agora à análise de uma microcena gravada na minha sala de aula de espanhol LE, em uma
universidade particular do Estado do Rio de Janeiro e, posteriormente, de redações escritas pelos alunos
no final do período letivo de um semestre.
“Lá na América Latina...”
A seqüência que se segue é um fragmento de aula de leitura, em que conversamos sobre o texto:
“Los Cien Nombres de Nuestra América” de Tito Drago extraído da Internet.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 472


Microcena 1

1: T - ...mas teve uma outra expressão, a Indo-América que foi criada, né, (...)
2: P – E qual o problema da Indo-América?
3: T – O problema, no caso, é porque lá não tem só indígenas, lá também tem os africanos
também e...
4: P – Lá aonde?
5: T – Lá na América Latina// não, na Hissspano-América...
6: P – Mas é lá?
7: T – Não, é aqui [risos], é aqui...
8: C – É o nosso continente...
9: T – É, é o nosso continente...
10: P – Isso é interessante, parece que é lá.
11: M – [(...)]excluir o Brasil [(...)].
12: H – [(...)] a nossa língua ser o português e não o espanhol, fica até engraçado que não
seja...
13: T – Não, não é nem engraçado, é mais questão de colonização mesmo, né

Nesse fragmento de aula, a aluna T (linha 3) se posiciona com um distanciamento como se a suposta
Indo-América estivesse num lugar que não corresponde ao lugar que ela está. Esse distanciamento se
confirma na linha 5 quando ela diz “lá na AméricaLatina” e tenta corrigir depois de minha pergunta (linha
4) como se o meu questionamento se referisse ao nome e não ao fato de ela colocar-se num contexto
fora da América Latina. Em outras palavras, a aluna se posiciona fora de seu contexto sócio-histórico,
não se reconhecendo como pertencendo à América Latina.
Não interpreto essa fala como a de quem ignora a localização geográfica de seu próprio país. No
reconhecimento como não pertencente à América Latina, está implícito o fato de pertencer a uma outra
comunidade cultural, que, entretanto, não sabemos qual é. Porque, se por um lado a aluna não explicita
com que comunidade se identifica, por outro lado, é patente que seu olhar está no exterior, no lado de
fora da América Latina.
Se a aluna se posiciona na sua fala como não pertencendo à América Latina, e, se toda enunciação
discursiva traz em si o eco de outras enunciações, como diz Bakhtin (1986), é possível que essa fala
contenha o eco de enunciações daqueles que não pertencem à América Latina, ou seja, dos discursos
produzidos pelos processos colonizadores na América Latina.
Interpreto que na fala dessa aluna ressoam as muitas vozes que colonizaram e outras que dão conti-
nuidade ao processo de colonização da América Latina. Essas vozes que se desdobram nos mais variados
discursos que circulam na nossa sociedade, e que colaboram para a construção de uma imagem negativa,
enfraquecida, e distanciada, fazendo com que alunos brasileiros não se percebam como latino-americanos
e com que, a América Latina seja esquecida.
Tal esquecimento é patente nos livros históricos, didáticos, e muito freqüentemente, nas aulas de
espanhol LE. Como alguns exemplos desse esquecimento e de uma imagem negativa, coloquei em anexo
algumas figuras. A primeira delas, é a página do livro didático Vem 2, editado pela editora espanhola
Edelsa (anexo 1), onde é possível ler um diálogo entre turistas espanhóis em Cusco que depreciam os
serviços turísticos dos hotéis dessa cidade. Eu pergunto: será que imagem tão negativa era tudo o que
os autores poderiam falar de uma cidade como Cusco? A segunda (anexo 2) e a terceira (anexo 3), ilus-
tram o apagamento da América Latina: são capas de vídeos, um argentino, outro cubano (entre outros
que lá havia), de uma locadora do centro do Rio de Janeiro, que os classificou em suas prateleiras como
EUROPEU.
Esses exemplos ilustram, ao meu ver, em primeiro lugar, a imagem negativa que circula sobre a
América Latina classificando serviços turísticos como ineficazes, dando a idéia de fracasso, inadequação,
ineficiência etc. Em segundo lugar, o apagamento: a etiqueta EUROPEU apaga as origens argentina e
cubana.
É possível que esses olhares marquem a distância daquilo que não se quer ser, pois identificar-se
com a América Latina pressupõe a identificação com as marcas de um suposto atraso, da pobreza, da
inadequação como apontam Fanon e Thiong’o (citados anteriormente). E como disse Skliar (também
citado), a voz do colonizado acaba por se refletir como o espelho da voz do colonizador.
A seguir, analiso brevemente algumas redações feitas por meus alunos.
Análise de algumas redações feitas no final do curso
Durante o semestre em que coletei dados para minha dissertação, vários textos foram lidos e debati-
dos em sala de aula. No final do curso, pedi aos alunos que escrevessem uma redação em que fizessem
qualquer tipo de comentário sobre o curso, sobre os textos lidos etc.
Na primeira redação (anexo 4), o aluno se refere à fala da aluna T (microcena 1, linha 5) onde ela

Proceedings XI International Bakhtin Conference 473


diz “lá na América Latina...”, dizendo-se surpreso com tal distanciamento, mas reconhecendo que teria
dito o mesmo. Esse aluno também questiona “que concepção de Brasil é essa” que desconsidera sua
situação sócio-histórica.
Na segunda redação (anexo 5), a aluna diz que o curso de espanhol pôde fazê-la pensar sobre ques-
tões que até então ela não havia pensado. Talvez, porque a visão sobre a América Latina que perpassa
o senso comum esteja tão naturalizada e seja, portanto, aceita como normal.
Na terceira redação (anexo 6), a aluna diz que com o curso pôde “crescer como pessoa e como cida-
dã”, reconhecendo a sala de aula como um espaço que pode proporcionar o desenvolvimento dos alunos
como cidadãos.
Considerações Finais
Creio que, no decorrer desse curso, foi possível um questionamento e uma (re)construção de signi-
ficados sobre a América Latina, sobre suas múltiplas culturas, sobre o que vem a ser latino-americano
e sobre seus aspectos históricos e políticos.
Dessa maneira, acredito que o trabalho contribuiu para uma (re)construção de uma imagem mais
positiva da América Latina entre os alunos e para uma conscientização de suas identidades culturais como
passíveis de serem olhadas, entendidas e sentidas nessa perspectiva dinâmica da reconstrução.
Acredito também que o papel do professor é fundamental nesse processo. E, finalmente, advogo a
importância dessa (re)visão num momento em que vivemos de grande dinamismo intercultural. Nesse
sentido, espero poder contribuir para que a sala de aula de espanhol LE possa fazer visível a multiplicidade
cultural e tornar audível as vozes apagadas e excluídas das sociedades latino-americanas.

Textos chave – “Los cien nombres de nuestra América” Tito Drago www.
comunica.es
Nomes chave – América Latina
Palavras chave – identidades culturais; alte-
ridade; discurso; poder; hegemonia; apagamento
Biografia resumida
BAKHTIN, M. (1986) Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: HUCI-
TEC.
BAKTHIN, M. (1979/1992) Estética da Criação Verbal. Versão utilizada: tradu-
ção,1992. Martins Fontes.
FAIRCLOUGH, Norman. 2001. Discurso e Mudança Social. Editora Universidade
de Brasília.
FOUCAULT, Michel. (2000) A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. 295
p.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. (1996) Oficina de Lingüística Aplicada. Campinas:
Mercados de Letras.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. (1998) “Narrativa como processo de construção da
identidade Social de raça em uma sala de aula de leitura de língua materna” na
International Conference on Storytelling. St. Catharines. Canadá. (mimeo)
SKLIAR, Carlos. (2002) ¿Y si el otro no estuviera ahí? Buenos Aires: Miño y
Dávila.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 474


Anexo 1

Proceedings XI International Bakhtin Conference 475


Anexo 2

Proceedings XI International Bakhtin Conference 476


Anexo 3

Proceedings XI International Bakhtin Conference 477


Anexo 4

Proceedings XI International Bakhtin Conference 478


Anexo 5

Proceedings XI International Bakhtin Conference 479


Anexo 6

Proceedings XI International Bakhtin Conference 480


O realismo grotesco em Memórias Póstumas de Brás Cubas

Clarice Lottermann

Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste

(lottermann@oel.com.br)

RESUMO
Partindo dos pressupostos elaborados por Bakhtin nas obras A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais e Problemas da poética de Dostoievski, o presente estudo
objetiva averiguar em que medida esses podem ser encontrados na obra machadiana Memórias Póstumas
de Brás Cubas (MPBC). Considerando-se que, na obra de Machado de Assis, é um narrador defunto que
conta a sua história, depois de ter seu corpo já corroído pelos vermes, observa-se como a orientação
para o baixo, o olhar de trás para a frente, o movimento da morte para o nascimento são enfaticamente
marcados. Com base nos estudos de Bakhtin, pode-se observar como o narrador defunto que interrompe
a barreira definitiva entre a vida e a morte, estabelecendo uma continuidade, apresenta um discurso
em que o rebaixamento das coisas elevadas (virtudes, valores morais, senso de justiça e solidariedade)
é constante. Entretanto, deve-se realçar que, ao contrário da perspectiva bakhtiniana, não há, na obra
machadiana, possibilidade de re-elevação da condição humana, visto que o narrador, além de dedicar a
obra aos vermes que roeram as marcas da sua existência, ao fazer um balanço da vida, tem como único
saldo positivo o fato de não deixar descendência.
ABSTRACT
From the presuppositions elaborated by Bakhtin in the works A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais and Problemas da poética de Dostoievski, the present
study aims at verifying in what extend those presuppositions can be found in Machado de Assis’s Me-
mórias Póstumas de Brás Cubas (MPBC). Taking into consideration that, in Machado de Assis’s work,
it is a dead narrator who tells his story after having his body been already corroded by warms, it can
be observed how the down orientation, the look from back to front, the movement from death to birth
are emphatically noticeable. Based on Bakhtin studies, it can be observed how the dead narrator who
ceases the definite barrier between life and death, establishing a continuity, presents a discourse where
the lowering of lofty things (virtues, moral values, sense of justice and solidarity) is constant. However,
it should be emphasized that, contrary to bakhtinian perspective, in Machado de Assis’s work there is
no possibility of re-elevation of human condition, since the narrator, besides dedicating his work to the
warms which gnawed the marks of his existence has, when pondering about life, as the only positive
balance the fact that he does not leave descendants.

Memórias Póstumas de Brás Cubas (MPBC), do escritor brasileiro Machado de Assis, foi, originalmente,
publicado na “Revista Brasileira”, a partir de março de 1880 e, em 1881, reeditado na forma de livro. É,
ainda hoje, uma obra que provoca estranhamento por suas características que o afastam da literatura
de sua época (realista/naturalista), por sua visão radicalmente crítica, pelo ceticismo, pela estrutura
narrativa, pelo tom de galhofa e pela dificuldade de se enquadrá-lo.
O trabalho aqui apresentado consiste, basicamente, numa leitura de Memórias Póstumas, à luz dos
estudos de Mikhail Bakhtin relativos ao realismo grotesco e à sátira menipéia, constantes nas obras A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais e Problemas da
Poética de Dostoievski. Para tanto, iniciamos chamando atenção para um texto de José Guilherme Mer-
quior – publicado em caráter introdutório à obra machadiana – intitulado “O romance carnavalesco de
Machado”1.
No referido texto, José Guilherme Merquior destaca o “tom cáustico” do livro que, à época em que foi
publicado, o “afastava muito dos exemplos nacionais de idealização romântica, enquanto seu humorismo

1 Esse texto encontra-se na edição: ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 9.ed. São Paulo: Ática, 1982. Todas as citações do romance
referem-se a esta edição.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 481


ziguezagueante, a sua estrutura insólita impediam qualquer identificação com os modelos naturalistas”2.
Ao discutir as possíveis influências de Sterne na obra machadiana, Merquior afirma que “essa ‘fusão’ de
humorismo filosófico e fantástico nos permite atinar com o verdadeiro gênero do romance; com efeito,
Brás Cubas é um representante moderno do gênero cômico-fantástico”. Arrola, ainda, características da
sátira menipéia que, segundo ele, estariam presentes na obra de Machado:
ausência de qualquer enobrecimento dos personagens e de suas ações (...), mistura do
sério e do cômico, com abordagem humorística das questões mais cruciais (...), absoluta
liberdade em relação aos ditames da verossimilhança (...), a freqüência da representação
de estados psíquicos aberrantes (...), uso constante de gêneros intercalados3.

Merquior salienta que o fator decisivo de aproximação da obra machadiana ao gênero cômico-fantástico
se deve às “analogias de concepção e estrutura (...) Brás Cubas é um caso de novelística filosófica em
tom bufo; um manual de moralista em ritmo foliônico. Quase nenhum sentimento, crença ou conduta
escapam nesse livro, à chacota corrosiva, ao ânimo de sátira e paródia”4.
Ao caracterizar a sátira menipéia, Bakhtin salienta que, neste gênero, “teve grande importância
a representação do inferno, onde germinou o gênero específico dos ‘diálogos dos mortos’, amplamente
difundido na literatura européia do Renascimento, dos séculos XVII e XVIII”5. Merquior registra que “pe-
las citações do próprio Machado, sabemos que ele conhecia e apreciava a obra de Luciano [Luciano de
Samósata, autor dos Diálogos dos Mortos] e de seus imitadores (...) Luciano possui até um personagem
(o filósofo Menipo) que gargalha no reino do além-túmulo – em situação idêntica à de Brás Cubas”6.
Podemos, sem dúvida, observar tais características na obra machadiana. Contudo, parece-nos
que a aproximação do romance com os apontamentos bakhtinianos carecem de maior problematização.
O próprio Bakhtin faz ressalvas no que diz respeito às ressonâncias do realismo grotesco na literatura
pós-renascentista:
O campo da literatura realista dos três últimos séculos está praticamente juncado de destroços
do realismo grotesco, destroços que às vezes, apesar disso, são capazes de recuperar sua
vitalidade. Na maioria dos casos, trata-se de imagens grotescas que perderam ou debilitaram
seu pólo positivo, sua relação com um universo em evolução. É apenas através da compre-
ensão do realismo grotesco que se pode entender o verdadeiro valor desses destroços ou
dessas formas mais ou menos vivas7.

E acrescenta:
As imagens grotescas do Renascimento, diretamente ligadas à cultura popular carnavalesca
(em Rabelais, Cervantes e Sterne), influíram em toda a literatura realista dos séculos se-
guintes. O realismo em grande estilo (Stendhal, Balzac, Hugo, Dickens, etc.) esteve sempre
ligado (direta ou indiretamente) à tradição renascentista, e a ruptura desse laço conduziu fa-
talmente ao abastardamento do realismo, à sua degeneração em empirismo naturalista8.

Considerando-se, portanto, a obra de Machado de Assis, convém averigüar como esses “destroços”
do realismo grotesco se realizam; como a concepção de mundo própria do realismo grotesco aparece
– diluída ou negada – nessa obra-prima da literatura brasileira do século XIX.
Segundo Bakhtin, o princípio artístico essencial do realismo grotesco é o rebaixamento:
Todas as coisas sagradas e elevadas aí são reinterpretadas no plano material e corporal. Já
falamos da gangorra grotesca que funde o céu e a terra no seu vertiginoso movimento: a
ênfase contudo se coloca menos na subida que na queda, é o céu que desce à terra e não
o inverso9.

O conceito de rebaixamento – degradação – é essencial na abordagem bakhtiniana. Todas as coi-


sas sérias, elevadas, sagradas, espirituais e abstratas são submetidas ao elemento corpóreo e ao riso,
ao baixo.O riso as destitui de sua aura de sacralidade e de grandeza; torna-as humanas e, por isso,
passíveis de chacota, contestação, crítica. Para o estudioso russo, “o baixo absoluto ri sem cessar, é a
morte risonha que engendra a vida”10. Nesse contexto, a morte e os elementos corporais não são vistos
de forma negativa. Pelo contrário: é deles que emerge a vida. A morte dá lugar a uma nova vida, ao
renascimento. Nas palavras de Bakhtin,

2 MERQUIOR, José Guilherme. O romance carnavalesco em Machado. In: ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 9.ed. São Paulo: Ática,
1982. p.5.
3 Id. Ibid.p.6.
4 Id. Ibid.p.6.
5 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. p.100.
6 MERQUIOR, Op.cit. p.6.
7 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Viera. São Paulo: HUCITEC;
Brasília: E. da Universidade de Brasília, 1987, p.21.
8 Id. Ibid. p. 45.
9 Id. Ibid. p.325.
10 Id. Ibid. p.20

Proceedings XI International Bakhtin Conference 482


Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre
e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto,
a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o tú-
mulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor
destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo
tempo negação e afirmação11.

No romance machadiano, a começar pela dedicatória, há uma referência explícita à condição do


narrador defunto e à degradação do corpo, roído pelos vermes: “Ao verme que primeiro roeu as frias
carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. (MPBC, p.11). Na
apresentação ao leitor, tal condição é enfatizada pela observação de que se trata de uma “obra de fina-
do”, escrita com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. (MPBC, p.12). A opção do narrador pelo
fim, ou seja, por começar a narrativa não pelo seu nascimento e sim pela morte, é reiterada no título do
primeiro capítulo – “Óbito do autor” – no qual são dadas informações sobre a sua morte: “... expirei às
duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi.
Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui
acompanhado ao cemitério por onze amigos”. (MPBC, p.13). Observa-se, já no início da narrativa, como
a orientação para o baixo, o olhar de trás para a frente, o movimento da morte para o nascimento são
enfaticamente marcados.
De acordo com a concepção do realismo grotesco,
a morte é considerada uma entidade da vida na qualidade de fase necessária, de condição
para a sua renovação e rejuvenescimento permanente. A morte está sempre relacionada
ao nascimento, o sepulcro ao seio terreno que dá à luz. (...) No sistema de imagens gro-
tescas, portanto, a morte e a renovação são inseparáveis do conjunto vital, e incapazes de
infundir temor12.

Ao rememorar os momentos que antecedem sua morte, Brás Cubas diz que sentiu “um prazer satânico
em mofar dele [do mundo], em persuadir-me que não deixava nada” (MPBC, p.18). Encaminhou-se para
o reino desconhecido “pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido”.
(MPBC, p.13). Tal observação revela a tônica da vida de Brás Cubas: o aborrecimento e o tédio – “flor
amarela, solitária e mórbida” – são marcas indeléveis que o acompanham não apenas na vida como na
morte. Para burlar a melancolia e o tédio, somente a recriação ficcional de sua vida se lhe apresenta:
“Saber que se morre, viver a experiência da morte, não ter ilusões é o lúdico exercício de recriação
ficcional da vida por meio do qual o ‘defunto autor’ aprende a desfolhar a ‘flor amarela de hipocondria’
para burlar a morte e a melancolia”13.
Assim, na condição de defunto, Brás Cubas desanda a tecer críticas e comentários irônicos sobre
tudo, justificando sua franqueza (com relação à própria mediocridade) como uma das qualidades de
defunto:
... a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste
dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os
rasgões e os remendos (...) Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como
a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se,
desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! (MPBC, p.46)

Para Roberto Schwarz, através de tal atitude, “menos que afirmar outro mundo, Brás quer destratar
o nosso, que é dele também, isto para infligir-nos a sua impertinência”14. Desta forma,
Deslizando entre a “campa” e o “berço”, um Brás redivivo situa-se num privilegiado entre-
lugar, que lhe confere a prerrogativa de ser um e outro ao mesmo tempo. Enquanto um
pode sustentar o sistema ideológico de que, enquanto vivo, ele foi usuário e mantenedor;
enquanto outro pode desferir suas farpas contra esse mesmo sistema. Ao se dotar dessa
dupla mirada, ele possui a mobilidade de colocar-se, concomitantemente, dentro e fora da
vida. Assim, enquanto doublé de morto e vivo, ele tem um pé na cova e outro numa vita
nuova; um olho posto na tradição e outro na modernidade”15.

Ao iniciar o romance pelo fim, ou seja, pela narrativa de sua morte, Brás Cubas evidencia que o fim
é o começo: “Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a
adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto
autor, para quem a campa foi outro berço” (MPBC, p.13). Narra sua morte dizendo que “foi muito menos
triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa.” (MPBC, p.14).
O texto é estruturado de tal forma que, depois de narrar o delírio que antecede a sua morte, Brás

11 Id. Ibid. p.19.


12 Id. Ibid. p.43-44.
13 SCARPELLI, Marli Fantini. Narrar para não morrer: memórias póstumas de Brás Cubas. In: MOTA, L. D. e ABDALA Jr, B. (orgs) Personae: grandes per-
sonagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001. p.35-67. p.67.
14 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 2000, p.19.
15 SCARPELLI, Op. cit. p.37.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 483


Cubas passa, quase sem transição, a narrar fatos sobre o próprio nascimento. Aproxima, desta forma,
os pólos morte/vida, pois, após o distanciamento provocado pela morte, ele pode reavaliar, de forma
crítica, tanto a mediocridade da sua vida quanto a de seus contemporâneos de vida:
Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão-pecado da
juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como
chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. (MPBC, p.24).

A aproximação de vida e morte também pode ser encontrada em outras passagens do romance. Ao
comentar a morte de um tio de Virgília, diz que
o melhor de tudo era esquecer o defunto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar de coisas
alegres; o nosso filho por exemplo... (...) Esta era a minha preocupação exclusiva daquele
tempo. Olhos do mundo, zelos do marido, morte do Viegas nada me interessava por então,
nem conflitos políticos, nem revoluções, nem terremotos, nem nada. Eu só pensava naquele
embrião anônimo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. (MPBC,
p.101).

Virgília, por sua vez, nessa mesma época, angustiava-se com o vexame da gravidez (aborrece-a a
idéia de ter que deixar de freqüentar a sociedade) e o medo do parto: “Padecera muito quando lhe nasceu
o primeiro filho; e essa hora, feita de minutos de vida e minutos de morte, dava-lhe já imaginariamente
os calafrios do patíbulo.” (MPBC, p.104). Para a amante de Brás, a maternidade não é idealizada como
condição de vida: o tão apregoado “instinto maternal” e a reprodução como justificativa para relações
sexuais não são consideradas por Virgília. Pelo contrário, o que Virgília quer do seu amante são os en-
contros em que estão em jogo os prazeres da carne (que se inserem no plano do baixo e que, portanto,
dessacralizam a idéia da maternidade). Ela quer, e muito, os prazeres da carne, mas não quer que estes
se convertam em um filho e empanem sua imagem social.
A sucessão de mortes e nascimentos é vista como um processo no qual uns sucedem a outros, em
que a vida sucede a morte: “Meu tio cônego morreu nesse intervalo; item, dois primos. (...) Foi também
por esse tempo que nasceu minha sobrinha Venância, filha do Cotrim. Morriam uns, nasciam outros: eu
continuava às moscas.” (MPBC, p.117).
No capítulo em que narra o delírio que o acomete antes de morrer, Brás Cubas se vê arrebatado por
um hipopótamo que o leva à origem os séculos. Chega a uma planície branca de neve, fria, cujo silêncio
era “igual ao sepulcro”. É um caso raro em que o narrador pode falar com propriedade do sepulcro, visto
já estar sepultado. Diante dele surge uma figura de mulher, com olhos rutilantes como o sol. “Tudo nessa
figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque
os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano.” (MPBC, p.20-
21). Tal figura apresenta-se como sendo a Natureza ou Pandora, sua mãe e sua inimiga. Novamente se
está em presença de opostos que não são excludentes, pelo contrário, se completam. Da mesma forma,
a figura de mulher lhe diz: “eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a de-
volver-me o que te emprestei.” (MPBC, p.21). Se a vida é emprestada, depreende-se que é passageira,
não é definitiva. Na natureza, tudo cumpre um ciclo: para que haja renovação, uma forma de vida dá
lugar a outra, ininterruptamente.
A Natureza/Pandora leva Brás Cubas para o alto de uma montanha e o obriga a olhar para baixo,
assistindo ao desfilar de todos os séculos. Nessa passagem, pode-se observar ressonâncias de outra
característica da sátira menipéia:
Na menipéia surge a modalidade específica do fantástico experimental, totalmente estranho
à epopéia e à tragédia antiga. Trata-se de uma observação feita de um ângulo de visão
inusitado, como, por exemplo, de uma altura na qual variam acentuadamente as dimensões
dos fenômenos da vida em observação16.

Diz o narrador:
Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas,
todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição
recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo (...)
eu via tudo o que passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa coisa que se
chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e
via a miséria agravando a debilidade. (...) cada século trazia a sua porção de sombra e de
luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e os seu cortejo de sistemas, de idéias
novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e
amareleciam depois, para remoçar mais tarde. (MPBC, p.23)

Nesse desfile, em alta velocidade, de todos os séculos da história da humanidade, marcada por ciclos
de morte e vida, de primaveras que sucedem invernos e que dão origem a novos invernos e assim su-
cessivamente, o ser humano – visto do alto – aparece em toda a sua miséria e degradação.

16 BAKHTIN, Problemas... p.100.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 484


Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma
figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de imprová-
vel, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa
figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixa-
va-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio,
e sumia-se, como uma ilusão. (MPBC, p.22)

Mas a morte não tem apenas uma faceta negativa, também é vista como potencial de vida. Segundo
Bakhtin, “o tema da imortalidade relativa da semente está indissoluvelmente ligado ao do progresso
histórico da humanidade. A cada geração, o gênero humano não se contenta em renovar-se; de cada
vez, ele galga um novo grau da sua evolução histórica.17”
Em seu delírio, Brás Cubas toma a forma de um barbeiro chinês, escanhoando um mandarim (que
pagava o serviço com beliscões e confeitos); depois, a da Summa Theologica de S. Tomás, “encadernada
em marroquim, com fechos de prata e estampas”. Nestas imagens há muito do burlesco, vinculado ao
físico e material, mas também alusão ao eterno desejo humano de se perenizar no tempo por meio do
mundo das idéias. Transformar-se na Summa Theologica é perenizar-se ao longo do tempo. Por último,
restituído à forma humana, é arrebatado por um hipopótamo e levado numa viagem, de modo vertiginoso
e aparentemente sem destino. Ao final do delírio, o hipopótamo diminui até chegar ao tamanho de um
gato: “Era efetivamente um gato.(...) Era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma
bola de papel...” (MPBC, p.23). O gato que brinca com a bola-mundo faz parte desse conjunto de ima-
gens insólitas em que o humano dá lugar a um objeto (livro), para em seguida voltar à forma humana
e fazer uma viagem alucinante (delírio) em que o grotesco se sobrepõe.
Segundo Bakhtin,
A particularidade mais importante do gênero da menipéia consiste em que a fantasia mais
audaciosa e descomedida e a aventura são interiormente motivadas, justificadas e focalizadas
aqui pelo fim puramente filosófico-ideológico, qual seja, o de criar situações extraordinárias
para provocar e experimentar uma idéia filosófica. (...) Cabe salientar que, aqui, a fantasia
não serve à materialização positiva da verdade mas à busca, à provocação e principalmente
à experimentação dessa verdade. Com este fim, os heróis da “sátira menipéia” sobem aos
céus, descem ao inferno, erram por desconhecidos países fantásticos, são colocados em
situações extraordinárias reais18.

No auge da angústia (“... fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e idiota”), Brás Cubas
volta-se para Pandora e pede a ela que o devore: “Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a
coisa é divertida, mas digere-me” (MPBC, p.22). Essa imagem do grande ventre que devora também
aparece noutra circunstância. Trata-se do episódio no qual o narrador fala sobre a morte e sepultamento
da mulher do capitão, na viagem que o levaria a Portugal: “A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo,
fechou-se” (MPBC, p.41). O ventre que se abre para dar vida (dar à luz), também se abre para abrigar
a morte. O corpo da mulher é lançado ao mar, “à cova que nunca mais se abre”. (MPBC, p.41). Essa
dupla imagem do ventre que se abre para gerar vida e abrigar a morte caracteriza bem o que Bakhtin
chama de gangorra grotesca que funde o céu e a terra, lembrando que antes é o céu que desce à terra
do que o contrário.
É importante destacar, nesta leitura da obra machadiana, o processo de decomposição de tudo que
é elevado, solene, sério. Nessa perspectiva, até a suposta origem da família Cubas é submetida a um
processo corrosivo, por parte do próprio narrador, que destaca o fato de o pai ter muita imaginação. Aliás,
como é característico da maioria das famílias que, ao ascender socialmente, fazem uma espécie de cirurgia
plástica no passado, emprestando-lhe uma grandeza que, na maioria das vezes, ela não tem. Descendente
de um “reles tanoeiro”, o pai de Brás Cubas inventa para si uma origem mais enobrecedora:
Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bis-
neto do Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em
prêmio da façanha que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros.(MPBC, p.15)

No rebaixamento, traço marcante do realismo grotesco, há “a transferência ao plano material e


corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e
abstrato”19. Este é um traço marcante da obra machadiana. Brás Cubas profana e rebaixa todas as vir-
tudes: interesseiro, mesquinho, egoísta, movimenta-se apenas em função de se projetar socialmente ou
para burlar o tédio. Todas as suas pífias tentativas de empreendimento (dedicação a uma causa social,
criação de um jornal, um cargo como deputado) naufragam. As virtudes revelam-se vícios, e o que
poderia ser tomado como qualidade tem, em seguida, seu caráter abjeto revelado. Da mesma forma,
para afastar a consciência de uma ação indigna, ele inventa uma virtude que a faça ser esquecida. Tal
é o caso da “equivalência das janelas”. Depois de um ato considerado indigno, areja-se a consciência
abrindo outra janela. Brás restitui uma moeda de ouro que encontra à porta de sua casa e, com isso,

17 BAKHTIN, A cultura... p. 283.


18 BAKHTIN, Problemas... p.98.
19 BAKHTIN, M. A cultura... p.17

Proceedings XI International Bakhtin Conference 485


areja a consciência (atormentada, se é que se pode usar esta palavra em se tratando de Brás Cubas...)
por ter valsado com Virgília:
Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada, sem respiração;
mas a restituição da meia dobra foi uma janela que se abriu para o outro lado da moral; en-
trou uma onda de ar puro e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências! Não vos
digo mais nada. (...) Assim eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência
das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim
de que a moral possa arejar continuamente a consciência. (MPBC, p.68).

Desta forma, pela lei da compensação, o narrador vai burlando e escamoteando a “consciência sufo-
cada” pelo peso da moral. Mas, o mesmo Brás Cubas que, para arejar a consciência, devolve a moeda,
não faz o mesmo com os cinco contos que encontrara num embrulho na praia: “Crime é que não podia
ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem. (...) hei
de emprega-los em alguma ação boa, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra coisa assim...
hei de ver...” (MPBC, p.69). Mas o dinheiro vai, mesmo, é para o Banco do Brasil e não se toca mais
no assunto. “Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com muitas e delicadas
alusões ao caso de meia dobra, (...) louvaram-me então a modéstia, – e porque eu me encolerizasse,
replicaram-me que era simplesmente grande.” (MPBC, p.69).
Nesse último trecho, o narrador é particularmente irônico: desmascara sua própria hipocrisia e, quanto
mais recusa ter louvada a boa ação por ter devolvido a moeda de ouro, mais acentua seu caráter inte-
resseiro. Há, portanto, um completo rebaixamento das virtudes, dos valores morais, das boas intenções
que, no fundo, revelam apenas interesses próprios.
No universo de Brás Cubas, as pessoas, assim como os sentimentos, se decompõem.Virgília, seu
amor da juventude – uma mulher esplêndida – transforma-se em “ruína, uma imponente ruína” (MPBC,
p.17); a linda e sedutora Marcela, a quem dedicara seus primeiros beijos (e uma pequena fortuna em
jóias...), transforma-se num rosto amarelo e bexiguento, com olhar repugnante, e, ao morrer, está
“feia, magra, decrépita...” (MPBC, p.143). O próprio amor é ironizado, pois Marcela amara-o “duran-
te quinze meses e onze contos de réis” (MPBC, p.36). Tudo que é lindo, pleno de vida, é tomado pela
morte, pela decadência. O mesmo ocorre com Eugênia, “a flor da moita”, por quem o narrador nutre
um certo interesse, que vem a se desfazer por descobrir ser a moça “coxa de nascença”. Ao comentar
sobre seus passeios e conversas, sobre o enleio em que se deixava levar, contraposto ao horror de vir a
amar deveras e a desposá-la, diz que “não havia ali a atmosfera somente da águia e do beija-flor; havia
também a da lesma e do sapo”. (MPBC, p.55). Nota-se, particularmente nessa passagem, a extrema
crueldade de Brás ao enfatizar o “defeito” físico da moça, sugerindo que, o fato de Eugênia ser coxa, é
uma espécie de materialização física da “imoralidade” da sua concepção. Em linguagem popular, a “flor
da moita” seria a filha da macega, sem direitos e sem espaço social. Bonito e feio, alto e baixo, virtude
e vício, admiração e desprezo fazem parte, portanto, da mesma atmosfera, das mesmas circunstâncias,
deste todo que é a vida.
Esta aproximação do que é feio e desprezível ao que é bonito e virtuoso é encontrada, também, na
passagem em que Brás Cubas faz comentários sobre o comportamento de Dona Plácida (que favorecia
seus encontros – adúlteros – com Virgília): “Se não fossem os meus amores, provavelmente Dona Plácida
acabaria como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vício é muitas vezes
o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã.” (MPBC, p.89). Da
mesma forma, do pântano nasce a flor (Nhá-loló, a quem o narrador resolve desposar, mas que vem a
morrer de febre amarela antes do casamento), do baixo brota o elevado, da morte, a vida.
No enterro de Lobo Neves (marido de Virgília), Brás comenta que “Virgília traíra o marido, com since-
ridade, e agora chorava-o com sinceridade.” E encontra a explicação para isso na “moeda de Vespasiano”:
“A taxa de dor é como a moeda de Vespasiano [dinheiro não tem cheiro] ; não cheira à origem, e tanto
se colhe do mal como do bem.” (MPBC, p.140)
Considerando-se as muitas mortes que permeiam o romance – de falecimentos (da mãe, do pai,
de Marcela, de dona Plácida, de Lobo Neves, de Quincas Borba, de Eulália, do filho abortado) a perdas
emocionais e fracassos –, é possível afirmar que, na trajetória de Brás Cubas, impera o processo de
“decomposição dos seres e das experiências: a beleza de Marcela, o seu amor por Virgília, a sua ternura
pela própria irmã, tudo se esvai, tudo apodrece”20. O livro “cheira a sepulcro” e o último capítulo funciona
como um “atestado de óbito”, ou seja, como sempre, a morte sai vitoriosa. Tudo se resume a uma grande
negativa: “Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplastro, não fui
ministro, não fui califa, não conheci o casamento”. (MPBC, p.144). Contudo, no “inventário”, ladeando as
perdas, há ganhos e um pequeno saldo: “... ao chegar a este outro lado do mistério; achei-me com um
pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti
a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” (MPBC, p.144).
Vê-se, portanto, que a morte, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, não engendra outra vida. “Não
tive filhos”. Tudo é falência. Brás Cubas é o mesmo, vivo ou morto. Morto, ele continua olhando a vida
como alguém da classe dirigente, lembra-se do passado e não muda de lugar. Embora, para ele, a morte
seja uma festa (diverte-se zombando de si e dos outros), não há abolição de fronteiras, não há abolição

20 MERQUIOR, Op.cit. p.7.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 486


de diferenças e barreiras hierárquicas. Ele escarnece de si próprio, sem dúvida. Mas não se renova com
a morte.
Essa é uma das diferenças essenciais que separam o riso festivo popular do riso puramente
satírico da época moderna. O autor satírico que apenas emprega o humor negativo, coloca-
se fora do objeto aludido e opõe-se a ele; isso destrói a integridade do aspecto cômico do
mundo, e então o risível (negativo) torna-se um fenômeno particular. Ao contrário, o riso
popular ambivalente expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual
estão incluídos os que riem21.

É um caso complexo: Brás Cubas se inclui nesse universo risível mais do que a qualquer um. Mas
não se trata do riso popular, que pelo riso destitui, rebaixa, profana e cria nova vida. No caso de Brás
Cubas, trata-se do riso de uma classe burguesa que ri da própria desgraça, que ri um riso nervoso, um
riso que não cria possibilidade de um mundo novo e diferente. Pelo contrário, é um riso que acentua a
decadência. Brás fala do lugar da morte, mas isso não implica em mudança de valores.
O próprio Bakhtin já acentuara, ao traçar um panorama do riso, que
O século XIX burguês só tinha olhos para a comicidade satírica, o riso retórico, triste, sério
e sentencioso (não admira que tenha sido comparado ao látego ou aos açoites). Admitia-se
ainda o riso puramente recreativo, despreocupado e trivial. O sério tinha que permanecer
grave, isto é, monótono e sem relevo22.

E, Bakhtin, ao comparar o grotesco medieval e renascentista com o grotesco romântico, chama aten-
ção para o fato de que “(...) no grotesco romântico o riso se atenua, e toma a forma de humor, ironia ou
sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso reduz-se ao mínimo.”23
Tais considerações podem ser tributadas à obra machadiana em questão. Assim como as considerações
sobre o corpo no novo cânon:
O corpo no novo cânon é um único corpo; não conserva nenhuma marca de dualidade;
basta-se a si mesmo, fala apenas em seu nome; o que lhe acontece só diz respeito a ele
mesmo, corpo individual e fechado. Por conseqüência, todos os acontecimento que o afe-
tam, têm uma única direção: a morte não é mais do que a morte, ela não coincide jamais
com o nascimento; a velhice é destacada da adolescência; os golpes não fazem mais que
atingir o corpo, sem jamais ajudá-lo a parir. Todos os atos e acontecimentos só têm sentido
no plano da vida individual: estão encerrados nos limites do nascimento e da morte indi-
viduais desse mesmo corpo, que marcam o começo e o fim absolutos e não podem jamais
se reunir nele24.

Tudo isso mostra a complexidade da obra de Machado de Assis. Se, por um lado, há características
que permitem aproximá-la – como uma ressonância – da sátira menipéia, inclusive por abarcar “(...) o
tema da indiferença absoluta a tudo o que há no mundo, tema muito característico da menipéia cínica
e estóica”25, por outro, uma característica essencial – a morte engendra outra vida – é negada. Brás
Cubas não teve filhos e este é, em última instância, seu grande feito: não ter transmitido a ninguém o
legado da miséria humana. Tem-se, aí, a negativa das negativas.
A menos que se considere sua narrativa como o filho que ele não teve. Filho este que é gerado, aliás,
quando o narrador já está morto. A menos que se veja na arte uma forma de continuidade da sua vida.
A arte é, por excelência, uma forma de deixar rastros, pegadas, marcas e vestígios que se prolongarão
– como a Summa Theologica - naqueles que permanecerem. Tais marcas se eternizam na memória como
forma de “ressurreição simbólica”, já que nada é durável.
Nada se fixa, nada escapa à mudança, à degeneração e à morte. Não apenas a existência
sensível, os afetos e os desafetos, filhos, sobrinhas, amadas, pais, rivais, mas também os
filósofos e as filosofias, as concepções de mundo, a verdade, os valores, tudo está sujeito
às inexoráveis leis da evolução26.

O que, em última instância, sobra para Brás Cubas, para além do seu inventário de negativas, é o
narrar. Brás Cubas narra para não morrer. E, desta forma, permanece inscrito na memória das gentes
e imortaliza-se através da arte: “Através de suas próprias ‘memórias póstumas’, lança a seus leitores
futuros (...) seu legado estético: fora da arte, a vida não tem visibilidade; a não ser através da arte, o
curso da vida é incapturável”27. Trata-se da imortalidade, senão da semente, “do nome, das ações e da
cultura humanas. A proclamação dessa imortalidade relativa e sua definição são tais, que a imortalidade
da alma fora do corpo se torna totalmente desprezada”28.
21 BAKHTIN, A cultura... p.10-11.
22 BAKHTIN, A cultura... p.44.
23 BAKHTIN, A cultura... p. 33.
24 BAKHTIN, A cultura... p.281.
25 BAKHTIN, O problema... p.131.
26 SCARPELLI, Op. cit.. p.48.
27 Id. Ibid.. p.35.
28 BAKHTIN, A cultura... p.355.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 487


Excetuando-se a arte, para Brás Cubas, além de tudo ser relegado ao plano do baixo, o maior
mérito está na dissolução e no apagamento de qualquer lastro de continuidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 9.ed. São Paulo: Ática, 1982.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. de
Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1981.
MERQUIOR, J. G. O romance carnavalesco de Machado. In: ASSIS, M. de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 9. ed.
São Paulo: Ática, 1982.
SCARPELLI, Marli Fantini. Narrar para não morrer: memórias póstumas de Brás Cubas. In: MOTA, L. D. e ABDALA Jr, B.
(orgs) Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001. p.35-67.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 2000.

TEXTOS CHAVE:
Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis)
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais (Mikhail Bakhtin)
Problemas da poética de Dostoievski (Mikhail Bakhtin)
NOMES CHAVE:
Machado de Assis
Mikhail Bakhtin
PALAVRAS CHAVE: Realismo grotesco; romance machadiano
BIOGRAFIA: Clarice Lottermann é docente na Universidade Estadual do Oes-
te do Paraná – Unioeste, no campus de Marechal Cândido Rondon, e doutoranda
em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná. É membro do grupo de
pesquisa Literatura, Sociedade e Mito (credenciado junto ao CNPq) e vem desen-
volvendo pesquisa na área de Literatura Infanto-juvenil.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 488


Identidade do professor PLM: uma profusão de vozes

Carmen Teresinha Baumgärtner Maciel

Universiddade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Cascavel-Paraná

kbaumgartner@zipmail.com.br

RESUMO
Este artigo apresenta resultados parciais de uma investigação sobre aspectos históricos, ideológicos
e discursivos presentes nos discursos de professores, neste caso do professor de português como língua
materna (doravante professor PLM). O recorte de nossa pesquisa diz respeito à questão da identidade do
professor de língua materna. Assim, realizamos um estudo sobre as produções discursivas de professores
PLM, considerando as representações que os mesmos fazem de seu “eu profissional” (Nóvoa, 1992, p.
15). Este estudo é orientado pelo princípio dialógico (como constitutivo da linguagem e do discurso),
proposto por Bakhtin (1992) - para o qual o homem das Ciências Humanas é um ser de linguagem, é
um homem que produz textos1, através dos quais ele se constrói e se dá a conhecer – e pela Análise
do Discurso (AD de linha francesa), que vê o sujeito como clivado, cindido, heterogêneo, habitado por
vozes que remetem a discursos anteriores, que são retomados e reinterpretados no momento de sua
atualização.
ABSTRACT
This article presents partial resulteds of an inquiry on historical, ideological and discursives aspects
gifts in the discourses of portuguese teachers (PLM teacher). The clipping of our research says respect
to the question of the identity of this professional. Thus, we carry through a study on the discursives
productions of PLM teachers, considering the representations that they do about himselves and about
their profession? (Nóvoa, 1992, p. 15). This study is guided by the dialogic principle (as a constituent of
the language and the speech) proposed by Bakhtin (1992) - for which the man of the Human Sciences is
a man that produces texts, with whom he constructs himself, and with whom he shows his construction
– and by the Discourse Analysis (French AD), that sees the subject like a heterogeneous being, inhabited
by voices that send to a previous discourses that are retaken just at the moment of its update.

1. Introdução
Este artigo apresenta resultados parciais de uma investigação sobre os aspectos histórico, ideológico
e discursivo concernentes à questão da formação de professores, neste caso do professor de português
como língua materna (doravante PLM). No que diz respeito à questão da formação de professores, a
tendência atualmente volta-se para os processos de formação permanente, a partir de duas modalida-
des, quais sejam, a formação inicial e a formação continuada. Segundo o Ministério da Educação (1999),
a melhoria da qualidade da educação brasileira depende, em grande parte, da melhoria da qualidade
do trabalho do professor. Muitas pesquisas estão sendo realizadas, não só voltadas para os cursos de
formação, mas também para o universo da sala de aula, lugar de confronto de crenças, de valores, de
culturas, tanto do professor quanto dos alunos e dos demais elementos que interferem no processo de
ensino e de aprendizagem, portanto, no processo de formação desses sujeitos.
O recorte de nossa pesquisa diz respeito à questão da identidade do professor de língua materna.
Segundo Coracini (2000), deve-se olhar para o professor, levando-se em conta não somente a sua prática
pedagógica, mas também a sua constituição sócio-histórica, como um sujeito que se funde e se funda
com o outro, com a alteridade.
Assim, realizamos um estudo sobre as produções discursivas de professores PLM, considerando as
representações que os mesmos fazem de seu “eu profissional” (Nóvoa, 1992, p. 15). A razão desse estudo
é a ampliação de conhecimentos disponíveis a respeito da formação docente, na perspectiva do discurso
e da constituição de sujeitos, observando-se o jogo de imagens, as representações como produtos de
uma certa posição sócio-histórica e ideológica, considerando que tais conhecimentos poderão fornecer

1 Bakhtin (1992) entende que o objeto das Ciências Humanas é o texto, definido por ele como objeto de significação, como produto social, como constitu-
tivamente dialógico (resultante do diálogo entre interlocutores e do diálogo entre discursos) e como objeto único, irrepetível.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 489


subsídios a futuras discussões voltadas a políticas de formação de professores PLM.
Este estudo é orientado pelo princípio dialógico (como constitutivo da linguagem e do discurso),
proposto por Bakhtin (1992) - para o qual o homem das Ciências Humanas é um ser de linguagem, é
um homem que produz textos, através dos quais ele se constrói e se dá a conhecer – e pela Análise do
Discurso (AD de linha francesa).
Para estudarmos sobre a identidade desse professor, na perspectiva de sua formação profissional,
evocamos o caráter histórico como rede de sentidos, e consideramos também o aspecto social e ideoló-
gico como componentes discursivos e, portanto, como constitutivos desses sujeitos. Assim, não podemos
conceber o discurso fora do sujeito e o sujeito fora da ideologia, uma vez que esta lhe é constitutiva e que
se reflete também em sua formação profissional. A essa noção de sujeito social, histórico e ideológico,
a psicanálise acrescenta o conceito de sujeito como efeito de linguagem cuja constituição heterogênea é
conseqüência de um sujeito dividido entre o consciente e o insconsciente (Brandão, 1997, p. 54). Nesse
sentido, o professor de português LM insere-se em formações discursivas (Foucault, 1997), que governam
sua vida profissional, e é constituído com a linguagem, na qual deixa marcas desse processo. Entende-
mos, conforme Pêcheux (1993), que o sujeito não é a fonte do sentido, por existir socialmente e por ser
interpelado ideologicamente, o que traz para o interior de seu discurso, outras vozes, imprimindo-lhe a
característica da heterogeneidade (Authier-Revuz, 1990). Nosso olhar sobre o corpus é orientado pela
noção de sujeito pós-moderno que, segundo Hall (1997), não possui uma identidade fixa, mas móvel,
devido a sua definição histórica. Esse autor entende a identidade como um processo em andamento, no
qual o sujeito tenta preencher as lacunas de si, a partir de seu “eu” exterior.
2. Metodologia e Análise do Corpus
Tendo em vista a perspectiva que norteia nosso olhar sobre os discursos dos sujeitos professores,
desenvolvemos uma pesquisa de cunho etnográfico (Erickson, 1988), em que adotamos a história de
vida como instrumento de coleta de dados. Um grupo de seis professores foi estimulado a falar de sua
profissão docente. As entrevistas, semi-dirigidas, gravadas em áudio e posteriormente transcritas com-
põem o corpus desse estudo. A seguir, apresentamos alguns trechos analisados (as letras P1, P2, P3, P4,
P5 e P6 servem para identificar os sujeitos entrevistados; barras simples= pausa menor; barras duplas=
pausa maior; reticências= outro turno da fala). Nesse recorte, os professores falam a respeito de espe-
lhamento, ou seja, de modelos-professores que lhes tenham servido de inspiração. Vejamos:
P1: eu tenho a minha irmã que dá português/ então muito de como eu trabalho vem dela...
não da faculdade

O modelo é o que se entende por ideal. Nesse sentido, para P1, o modelo é a irmã, que “dá” portu-
guês. Seu fazer docente expressa o fazer desse modelo, o que explicita em muito de como eu trabalho
vem dela. Ocorre aqui o processo de identificação, no dizer de Lacan, de B para A, ou seja, aquilo que
o sujeito diz que “buscou” no outro era exatamente aquilo que já o constituía: o autoritarismo, a abne-
gação, a doação, conforme veremos adiante.
Ao enunciar não da faculdade, esse sujeito apresenta o outro, na teia discursiva. Há uma voz que
diz que a prática docente deve ser determinada pela academia. Nesse excerto, ocorre uma espécie de
negociação entre o sujeito locutor e a heterogeneidade que lhe é constitutiva. Ao negar essa presença,
segundo Authier-Revuz (1990, p.33) opera-se um retorno à segurança, um reforço do domínio do sujei-
to, da autonomia do discurso, mesmo em situações que lhe escapam. Percebe-se a presença de outros
discursos como aspecto fundador do dizer de P1, isto é, o discurso fundando-se no interdiscurso.
P2: letras...por causa do inglês e não por causa do português porque eu tinha uma profes-
sora de inglês... excelente...maravilhosa...e português eu resolvi fazer porque eu tinha uma
professora no 20 grau...que era muito chata...terrivelmente chata...eu achava errado a forma
que ela me avaliava// então eu disse não/ eu vou fazer português// vou ser bem crânio em
português para mostrar para ela ((risos)) que eu sou capaz ...foi muito positivo...ela me fez
eu seguir esse caminho...foi um fator positivo...superar essa dificuldade.

P2 espelhou-se em uma ex-professora de inglês, maravilhosa, excelente, e em uma de português,


que em seu discurso figura como muito chata...terrivelmente chata. Enquanto a primeira é vista como
modelo de boa professora, a segunda representa um desafio que deve ser vencido. P2 espelha-se tanto
na primeira docente quanto na segunda. A segunda imagem projetada em seu espelho revela o desejo
de corresponder à imagem boa de si mesma. Ao afirmar eu achava errado a forma que ela ((professora
de português)) me avaliava, P2 enuncia que não aprova pelo menos um dos aspectos do fazer pedagógico
da professora de português. Em outro turno de sua fala, diz que foi muito positivo...ela me fez eu seguir
esse caminho...foi um fator positivo...superar essa dificuldade, aprovando a atitude da professora, uma
vez que despertou, nesse sujeito, o desejo de superação, para mostrar que é capaz, construindo, dessa
forma, uma imagem positiva de si. Então não aprova (mas) e aprova a atitude da professora. Isso ex-
pressa uma aparente contradição em sua fala. Foucault (1997) entende que a contradição é constitutiva
do sujeito, atuando como ilusão de unidade, cujo lugar de manifestação é o espaço entre a consciência
e o inconsciente, o pensamento e o texto (p.172). Mesmo negando a atitude da professora, P2 a reafir-
ma ao tentar superar-se. Segundo Bakhtin (1979), o ser humano é inconcebível fora das relações que
o ligam ao outro, já que a consciência de si se dá através do outro. Assim, entrelaçados nos fios de seu

Proceedings XI International Bakhtin Conference 490


discurso tecem-se fios de outros discursos. Esse tecido polifônico, esse jogo de vozes nos revela um
sujeito participante de um corpo sócio-histórico interagindo com outros discursos dos quais se apossa
ou toma posição.
P3: a professora XX...ótima// que tem/tenho até hoje guardado muito material que ela
passava pra gente...ela era talvez um pouco diferente para a época/ ela tinha um dinâmica
diferente de ensinar...a ((professora)) XX... inclusive eu aprendi análise sintática com ela/
que era livros e livros/ e que eu não arre[pendo de ter aprendido daquela forma com ela//
porque através dessa/desse conhecimen/até hoje eu ainda uso...é mas eram critérios tra-
dicionais//gramática da forma bem tradicional// e essa última// ela adotava uma postura
assim de tradicional/ mesmo// eu acredito que dentro da época em que elas estavam elas
cumpriram com o pape...eu acho que a gente tem que acompanhar a época

Os modelos de P3 foram duas professoras de português. A primeira trazia mensagens de otimismo,


em cuja prática espelhou-se, tanto que diz ter até hoje guardado muito material que ela passava. Esse
modelo de professora, presente no imaginário de P3, reflete a imagem do professor que, ao lado da ta-
refa de transmitir conhecimentos, desempenha também o papel de motivador. Nas palavras de Coracini
(2000, p.151), trata-se de uma imagem idealizada de professor sempre disposto a salvar o aluno não
apenas das doenças do intelecto...como também das doenças da alma. Em outras palavras, o professor
se investe do papel de modificador de destinos (op. cit.). P3 considera que ela era talvez um pouco di-
ferente para a época. Na imagem feita pela posição de professor que ocupa, essa diferença localiza-se
na dinâmica adotada pela professora, em que estava presente o fator afetividade, como uma forma de
motivar para a aprendizagem, e não uma teoria, distinta do tradicional. Outro espelhamento está na
professora com a qual o sujeito diz ter aprendido análise sintática. Ao dizer eu não me arrependo de ter
aprendido daquela forma com ela...eram critérios tradicionais//gramática da forma bem tradicional, esse
sujeito, identificando-se com esse modelo, não só aceita, como valoriza a prática e a teoria em questão.
Isso fica mais evidente quando diz que, dentro da época...elas cumpriram com o papel e que a gente
tem que acompanhar a época. Ao dizer a gente tem que, o sujeito-professor identifica-se com o discurso
da FD dominante. Segundo Pêcheux (1993), sujeito e sentidos são constituídos no discurso. Situando
o seu discurso na relação com o discurso do outro, o sujeito, nessa perspectiva, não pode ser centro,
nem origem do que diz. O sujeito-professor repete um discurso já instituído, incorporado ao longo de
sua formação. Ao dizer a gente tem que, aflora, no discurso, a marca de discursos que o antecederam, o
pré-construído, um dos elementos do interdiscurso, o sempre-já-dito (Pêcheux, 1995, p. 164), resultante
da interpelação ideológica. Esse aspecto marca a relação de P3 com outros discursos em circulação.
A forma “até”, em tenho até hoje guardado, exprime uma informação que o enunciador considera
relevante. Nesse caso, a expressão “até” serve para estabelecer uma relação de implicação com o enun-
ciado anterior e com o posterior: a ex-professora de que fala (de 5a e 6a série) era tão boa, ótima, o que
justifica ter, até hoje guardado, algum material que ela passava para os alunos, o qual parece continuar
atual, e com a mesma possibilidade de aplicação, uma vez que o sujeito-professor P3 diz de vez em
quando até eu trago um texto daqueles, para a sala de aula. Assim, identificando-se com a imagem da
ex-professora, esse sujeito professor não só incorporou o seu discurso, como também o seu fazer docen-
te, já que diz repetir práticas pedagógicas exercidas por esse outro. Isso equivale a dizer que a imagem
de professor modificador de destinos pode ser atribuída a ambos os sujeitos, à professora-modelo, e ao
sujeito-professor P3. A expressão inclusive, expressa em inclusive eu aprendi análise sintática com ela,
é um marcador que traz uma informação considerada relevante para quem enuncia, por ser nova para o
enunciatário. Ao dizer inclusive, o sujeito-professor mostra a importância desse modelo, em sua formação.
Essa valorização é tomada pelo enunciador como positiva, pois mais à frente afirma que até hoje eu ainda
uso muita coisa disso no caminho. Ao dizer que eram livros e livros e que eu não arrependo ter apren-
dido daquela forma, o sujeito-professor desliza da posição de sujeito-aluno para a de sujeito-professor.
Quando diz eu não ((me)) arrependo, há um implícito negando esse tipo de ensino e de aprendizagem.
Essa voz pode ser identificada àquelas veiculadas nos cursos de formação docente, mais precisamente
a partir da década de 80, quando o ensino gramatical foi considerado como inadequado. Mesmo assim,
na fala desse sujeito-professor, esse tipo de ensino ainda está presente. Orientando-nos com Bakhtin,
os sujeitos constroem sua identidade na relação com o outro, na inserção de uma alteridade que define
os contornos do espaço discursivo no movimento da história. Vejamos agora o sujeito-professor P4.
P4: tive uma professora de matemática e duas de português// uma...me cobrava muito...
a fibra eu acho que eu herdei um pouco dela a fibra// cobrar// do aluno/ mas na hora que
ele precisar falar/ ouvir...essa do 20 grau/ eu achava ela muito dinâmica// ela falava...fazia
com que você prestasse atenção// quando ela estava explicando

O sujeito-professor P4 diz ter se espelhado em uma professora de matemática...e ((em)) duas de


português. A professora de matemática é mencionada, mas P4 não tece nenhuma consideração a seu
respeito. Ao que parece, esse sujeito, nesse momento, identificou-se mais com as professoras de por-
tuguês, pois, em sua fala, elas é que são rememoradas. A professora de 5a a 8a série é lembrada por-
que cobrava muito, e é de quem esse sujeito-professor diz ter herdado a fibra// cobrar do aluno, mas
na hora que ele precisar falar/ouvir...A ex-professora de 2º grau é caracterizada como dinâmica...ela
falava...fazia com que você prestasse atenção. P4 identifica-se com a energia, com a firmeza e com a

Proceedings XI International Bakhtin Conference 491


dinamicidade dessas suas duas ex-professoras, porque isso já a constitui. No caso do segundo modelo,
o dinamismo da professora está voltado ao poder de fazer os alunos prestarem atenção. A imagem que
o sujeito-professor P4 faz dessas professoras está fortemente relacionada à idéia de poder, de controle,
em que o aluno só poderia falar quando precisasse. Para esse sujeito, o aluno não deve falar quando
quer, quando deseja, mas apenas quando for preciso, ou seja, falar apenas quando (o professor) achar
necessário. No trecho introduzido pelo marcador de oposição argumentativa “mas”, em mas na hora
que ele precisar falar/ ouvir, aparecem diferentes posições assumidas por esse sujeito. A do professor
tradicional autoritário, que é quem fala no contexto de sala de aula, e a cujos alunos cabe a tarefa de
ouvir; e a do professor que tenta romper com essa relação unilateral, através da concessão de voz ao
aluno. Há um sujeito que assume o ponto de vista rejeitado, e um que rejeita esse ponto de vista. As
vozes em oposição são a da posição-sujeito professor autoritário, concebido pelas teorias de ensino
tradicionais, e a da imagem de professor não-autoritário, que possibilita a troca de turnos da fala em
sala de aula, veiculada pelas propostas de ensino pós-tradicionalistas. No entanto, percebe-se que,
mesmo dando voz ao aluno, a relação professor/aluno não chega a ser alterada significativamente. Se
concordamos que o discurso é basicamente interdiscurso, então, como afirma Possenti (1994), deve-se
aceitar que falar é em grande parte deixar falar (p. 36), ou seja, ensinar a partir do funcionamento real
da linguagem (p. 37). As representações de aluno e de professor, “naturalizadas” no ritual do cotidiano
escolar, escamoteiam a hierarquia dos lugares que esses sujeitos ocupam nesse segmento institucional.
Já o olhar de Bakhtin aponta para uma relação dialógica entre o sujeito-professor e o sujeito-aluno, em
que a aprendizagem ocorreria a partir da interação entre ambos. No fio do intradiscurso do sujeito-pro-
fessor, mostra-se o interdiscurso, explicitado pela presença do marcador lingüístico “mas”. As diferentes
posições-sujeito marcam a dispersão desse sujeito. A presença do outro, manifesta no interdiscurso,
dissipa-se no dizer desse sujeito, possibilitando-lhe a ocupação, no interior da FD a que está inscrito, de
várias posições-sujeito. Este é o resultado, segundo Bakhtin (1992), da polifonia das vozes sociais que
cada indivíduo recebe, mas que pode reelaborar pois o ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete,
mas também se refrata (p. 46). Para Pêcheux (1995), a produção do discurso dá-se pelo seu interior,
pelo interdiscurso, em que entram em jogo o que já se sabe, o pré-construído, ou seja, o pensamento
de um sujeito universal, e as articulações – determinantes da forma-sujeito - que dizem respeito ao que
em uma situação dada pode ser construído. Observemos, agora, a fala de P5.
P5: eu sempre gostava né/ principalmente de inglês/ né/ e eu gostava bastante/a visão
que a minha professora era bem/...era mais de explicar// mas eu gostava do jeito que ela
explicava a gramática né/ sempre via ela como um modelo// minha irmã também ((a irmã
é professora de matemática)) no primário uma professora...eu sempre admirei ela/ pela
calma/ pela paciência/ o carinho...ela... me marcou bastante...eu acho que era a maneira
de explicar...a paciência e a calma// até a gente procura ser assim

Os espelhos do sujeito-professor P5 foram, segundo seu depoimento, além da irmã, que é professora
de matemática, uma ex-professora de inglês e uma ex-professora do curso primário. Ao falar de suas
ex-professoras, estas são lembradas com expressões como calma, paciência, carinho, a maneira de ex-
plicar. Nesse recorte, quando se refere à professora de inglês, P5 diz eu gostava bastante/ a visão que
a minha professora de inglês era bem// mas só que naquela época não era muito de falar/ era mais de
explicar// mas eu gostava do jeito que ela explicava a gramática. O uso da forma adverbial “bastante”,
como modificadora do verbo “gostar”, expressa a apreciação do sujeito, em relação ao conteúdo dessa
proposição. Na seqüência mas só que naquela época não era muito de falar, entram em jogo diversas
vozes: uma que remete, possivelmente, à abordagem comunicativa do ensino de línguas estrangeiras,
outra que aceita esse tipo de abordagem como adequada para o ensino, e uma terceira que diz que
hoje se fala mais nas aulas de língua estrangeira, isto é, que a comunicação oral é mais valorizada, em
detrimento do ensino gramatical. A voz dos formadores de professores, através da referência ao ensino
comunicativo, mostra o aspecto de verdade irrefutável atribuído às teorias lingüísticas e de ensino e de
aprendizagem de línguas. Há uma voz que aceita a aplicação desse modelo teórico, mas que não partiu
do sujeito em si, mas da imagem que faz do professor ideal, sugerido por essa teoria, ou seja, o sujei-
to-professor diz aquilo que pode e deve ser dito (Foucault, 1987, Pêcheux, 1995) pela posição sujeito
que ocupa na FD a que se filia no momento. Dessa posição, o sujeito resvala para aquela que valoriza o
ensino da gramática, identificando-se com ela, o que pode ser observado na seqüência mas eu gostava
do jeito que ela explicava a gramática. O ensino da gramática passou a ser visto como ineficaz aos olhos
dos formadores de professores e até de lingüistas aplicados, o que equivale a dizer que não se deveria
dar espaço, em sala de aula, a estudos dessa natureza. Assim, parecia inadequado ensinar gramática,
bem como aprendê-la. Dirijamos nosso olhar ao próximo excerto.
P6: na faculdade tinha um padre que era meu professor...sonhador// e que fazia você/
ver que para tudo tem uma solução...o que mais me admirava no professor era o compro-
misso que ele tinha/ não sei se é porque ele era padre/ não em relação assim ao receber
por exemplo/ eu não posso dizer que eu vou ser assim fazer o magistério como vocação/
trabalho voluntário/ não mas ele passava para a gente uma idéia que se você pensar que
vai receber 200 reais no final do mês e vai chegar lá na sala de aula e vai sentar...porque
você ganha mal/ é melhor você desistir aqui na faculdade...você tem que ver que o aluno
ele está esperando/ mesmo que você ganhe pouco/ ele está esperando mais alguma coisa

Proceedings XI International Bakhtin Conference 492


de você...ele tinha uma visão assim muito grande do mundo/ de mudança/ sabe...buscar
mudanças/ não aceitar as coisas prontas como estão

Conforme a fala de P6, dois modelos lhe serviram de referência. Um deles, um padre que era meu
professor. Observemos que a organização sintática desse enunciado revela que, pela ordem que essas
lembranças foram verbalizadas, esse professor era um padre que era também professor. O sujeito P6
lembra dele como “padre-professor” e não como “professor-padre”, tampouco somente como “professor”.
Essa seqüência léxico-sintática, composta de um nome, padre, cujo sentido é modificado por que era
meu professor, sugere, no discurso de P6, que uma parte desse padre era o professor. A identificação
do sujeito P6 dá-se primeiro com a imagem do padre, de um padre que era meu professor. Ao se evocar
a imagem do padre, associam-se a ela elementos ligados ao sacerdócio, o que se pode observar em
o compromisso que ele tinha/ não sei se é porque ele era padre...ele passava isso pra gente...o aluno
está esperando/ mesmo que você ganhe pouco. Nesse sentido, o professor P6 expressa sua identificação
com a representação de professor “missionário”, que tem uma missão a cumprir, remetendo à idéia de
doação. Segundo Coracini (2000), a imagem de professor associada à imagem de ser vocacionado, de
missionário, possivelmente resulta do fato de que, em nosso país, a educação esteve, historicamente,
relacionada aos religiosos (clero). Os padres, principalmente os jesuítas, estavam incumbidos da tarefa
de ensinar (evangelizar). Essa tradição ainda faz eco na atualidade, haja vista o número de estabeleci-
mentos escolares que estão nas mãos dos religiosos. É à figura do padre-professor que se relaciona a
do professor missionário. O sujeito P6 também se identifica com alguns traços de seu ex-professor, tais
como a visão de mundo/ de mudança, o conhecimento que ele tinha em relação à filosofia. Além disso,
o sujeito professor P6 entende que, hoje, falta questionamento/ o pensar/ o refletir, atitudes que via
em seu modelo. E buscar mudanças/ não aceitar as coisas prontas como estão, são características que
P6 associa à imagem que faz do padre-professor. No entanto, observa-se uma aparente contradição na
constituição de seu discurso: a imagem do padre-professor está relacionada à de busca por mudanças, à
não aceitação do status quo, mas ao mesmo tempo, à de passividade. Ou seja, mesmo que você ganhe
pouco, deve prosseguir com sua missão. Resvala, aí, o sentido de que a mudança que deve ser busca-
da não é a que diz respeito ao professor e à sua profissão, mas a que se refere ao aluno, como se um
e outro não estivessem histórica, social e ideologicamente implicados. Isso reforça a idéia de vocação
incondicional, que sugere que a profissão de professor deve ser desempenhada com amor, com paixão,
mas principalmente com doação. Essa idealização de professor quase o desmaterializa, aproximando-o
da abstração, ou talvez, da divindade. Analogamente, pode-se associar a essa representação, a imagem
do professor sonhador. Aquele que sonha com mudanças, mas que não necessariamente as produz.
Considerações Finais
As produções discursivas de cada um desses sujeitos evidenciam que, em seu processo de formação
profissional, está presente a imagem de professores que lhes serviram de modelo, formando um pa-
tchwork, ou um manteau d’arlequim (cf. Serres, 1992). E mais, esse modelo pode ser um professor de
matemática, mas regularmente foi um profissional da área da linguagem: de inglês ou de português.
Vale ressaltar que as idades desses sujeitos variaram entre 25 e 42 anos. Embora se pudesse supor que
esses profissionais, dada a diferença de faixa etária, em seus percursos de formação, poderiam ter tido
diferentes modelos de professor, em nosso estudo observamos que tal fato não se confirma. O espelha-
mento desses sujeitos ocorreu com imagens de professores que estavam inscritos no modelo tradicional
de ensino, que define a figura do professor como autoridade máxima da sala de aula. Queremos lem-
brar também que, à exceção do sujeito-professor P6, que teve seu espelhamento em um professor (um
padre que era professor) da academia, a referência dos demais sujeitos remonta à sua formação de 1ª
a 8ª série do Ensino Fundamental (sujeitos P3, P4 e P 5) e de 2º Grau (P2, P3, P4 e P5). A identificação é
marcada, pelos entrevistados, a partir de traços existentes também nos professores que, possivelmente,
mais proximidade permitem na relação com o aluno, professores mais próximos de pré-adolescentes
e adolescentes. No momento em que esses discursos, objeto de nossa pesquisa, foram produzidos, os
professores identificaram-se com esses modelos-professores. Não significa dizer que em outros mo-
mentos, esses sujeitos não poderão se identificar com outros modelos presentes em seu imaginário. Ao
rememorarem seu passado, foram esses os que emergiram. Em outro momento podem ser outros, ou
até os mesmos, vistos numa outra perspectiva. Isso porque o processo identificatório é cambiante, mas
não anárquico. Nas representações desses sujeitos-professores, não unitários, mas dispersos, quando
aparecem traços que poderiam apontar para uma outra perspectiva de ensino, diferente da acima expli-
citada, referem-se ao jeito do professor (sujeitos P2 e P5), à dinâmica diferente de ensinar (sujeito P3),
ou seja, não se trata de uma outra base teórica, ou de uma outra abordagem de ensino de língua, mas
tão somente de procedimentos, de técnicas adotadas pelo professor, em sala de aula, o que lhes dá uma
aparência de inovação. Assim, os modelos desses sujeitos foram imagens que fizeram de professores
inseridos no modelo de ensino tradicional.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso; identidade; alteridade.


Referências Bibliográficas
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos do estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de estado. Evangelista & Castro
(Org). 2a ed., Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 493


AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cad. Est. Ling., 19, 1990; 25-42
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
CORACINI, M. J. R. de F. Subjetividade e identidade do professor de português (LM). Trabalhos em Lingüística Apli-
cada, 36; 2000; 147-158.
ERICKSON, F. Metodos cualitativos de investigación sobre la enseñanza. In: WITTROCK, M.C. La investigación de la
enseñanza, II. Métodos cualitativos y observación. Buenos Aires: Paidós, 1988. p. 195-301.
FOUCAULT, M. (1969) A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 5a ed., Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 1997.
_____(1975) Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Ramalhete (Trad.), Petrópolis: Vozes, 1987.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Silva & Louro (Trad.). Rio de Janeiro: DP&A Ed., 1997.
NÓVOA, A. (Org.). Vidas de professores. 2a ed. Porto: Porto Editora, 1995.
PÊCHEUX, M. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Gadet & Hak (Org.);
2a ed., Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.
_____(1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Orlandi (Trad.). 2a ed., Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 1995.
_____ (1988) O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi, 2a ed., Campinas, SP: Pontes,
1997.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 494


Linguagem e representação no Catatau

Cláudio Mello1

Comparecemos no congresso Bakhtin para fazer uma comunicação sobre o Catatau (1975) na tradi-
ção literária latino-americana, mostrando que o romance do autor curitibano coaduna com outras obras
que fazem uma desconstrução da literatura canônica nomeadamente européia, afrontando a cultura do
colonizador por meio da atitude antropofágica. Utilizando o critério de diferença para dar valor à nossa
literatura, o Catatau - assim como, dentre outros, o Concerto barroco, do cubano Alejo Carpentier -,
incorpora essa abordagem política ao barroco histórico, para conformar uma estética essencialmente
ideológica, que se traduz no neobarroco, próprio da América Latina.
Entretanto, durante o congresso, assistindo a palestras e conversando com outros estudiosos, sen-
timos a necessidade de acentuar outra discussão, de viés também político, só que mais cosmopolita,
da abordagem bakhtiniana na leitura de Leminski, e resgatar do teórico russo a perspectiva marxista
existente no livro sobre a filosofia da linguagem (Bakhtin/Voloshinov), necessária para refletir sobre
algumas questões latentes no livro do poeta, com o intuito de justamente valorizar a dimensão ideoló-
gica da estética. Por esta razão, este texto vai mostrar que o Catatau congrega uma série de questões
estéticas e filosóficas próprias do século XX, das quais fazemos um recorte para discutir aqui aquelas
relacionadas à teoria do conhecimento na literatura, a linguagem e o problema da representação, com
o objetivo de explicitar a visão de mundo existente na obra.
Catatau
O romance-idéia (subtítulo da 2a. edição) de Leminski é uma narrativa voltada para o seu processo
de construção: a ação se restringe a uma espera, a um não-acontecer. Trata-se de Renatus Cartesius
- narrador auto-diegético, instalado em plena natureza tropical, aguardando o tempo todo que seu
conterrâneo europeu Artichewski apareça para lhe explicar o que se passa à sua volta -, que faz uma
representação completamente caótica dessa realidade, situação que é agravada pela atuação do tercei-
ro personagem, Occan, uma entidade virtual que vive apenas na linguagem de Cartesius: trata-se de
um personagem sem existência material, mas apenas lingüística, semiótica. Por essa síntese, pode-se
inferir que a narrativa de Leminski de fato se afasta radicalmente do “modo tradicional” de composição
romanesca, pois o que está em pauta não é a representação ficcional de uma realidade empírica, mas
sim uma obra construída com elementos da estrutura narrativa - há um discurso narrativo, personagens,
ações que se passam em um espaço-tempo - centrada em seu próprio fazer estético, questionando a
capacidade de representação, tornando-se, assim, uma narrativa-ensaio que incorpora essa discussão
em sua forma. Um pequeno fragmento poderá dar noção da natureza da obra:
Aqui, pesadelo de camaleão é que tem só uma cor. O ouro é mais velho que Deus, os pri-
meiros deuses já vinham em ouro: não é só isso, é tudo isso, a única coisa que quer ouvir
Occam. Mas advirta que a tortura não deve chegar aos ossos, osso já não é gente: torturar
com raiva, sim, - mas os mestres são calmos, por onde pois para eles não existe perdão.
Artscherk dorme ainda e sempre, rede parada e quieta, uma eça, dúnia nox! - sangue nos
sonhos, mãos e olhos: camaleão depois de morto vira camaleão, o que não altera muito o
que se verá a seguir. Microcosmodilo! A um ramo que caiu com o peso de sua fruta - pulam
sementes pelo chão: água exala luz. Não quero ter que ver com a vida dos outros, já tem
gente demais na minha, e não estão lá fazendo nada! O fininho saiu de finório. Fazurka!
Não me vem com essa, que eu vou com outra nossa! A sopa, num upa, está supimpa! Até
o respectivo fazer bico, é muito no cu dum só: vai tomar café nos cafundós de jundiaí! (p.
99-100)

Linguagem
Já que não é uma leitura linear do Catatau que nos dará a chave para a sua compreensão (para “ten-
tar entender o enredo”), em função de sua forma, fragmentária, de inspiração joyceana, melhor buscar
os entendimentos possíveis a partir de uma visão mais sistêmica da narrativa, e nela focalizar questões
de ordem mais genérica, de cunho filosófico, que sustentam a cosmovisão do livro de Leminski, o que

1 Doutorando em Letras pela Unesp-Assis, bolsista da Capes. hidalgo@uel.br.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 495


fazemos aqui com a concepção de linguagem.
Partiremos do discurso do narrador, às vezes totalmente obscuro:
O madraganão segerbergem, jornadagorda, luagaia axistrono. Amansalandrorová. Alicárceres
não morrerrámorram. Bocabilgoquê, garanhamão o pentecostume.

Em outros momentos, nem tanto:


Cartésio: Nosso homem em Brasília. Dizer que fui quase cartuxo, o fantoche. Filosofia ba-
rata, apenas uma vítima do perigo: bafo maroto de arroto batavo num prato de pó de arroz
movido a feijão mascavo. Arquipélagos de marcos, Lucas e setas. Mete na cabeça que só
pode ser assim: batata: não é bem assim. Resta saber. Ainda não. Assim mesmo. Muito que
bem. Já, mas não ainda.

De qualquer maneira, essa torrente de discurso caótica, vista do conjunto do livro, “como um todo”,
dá à linguagem um estatuto absoluto, refutando o seu papel fundamental de comunicação, de um lado, e
de representação da realidade, de outro - em ambos os casos, como se ela ou fosse uma pura abstração
usada pelo sujeito ou uma construção do individualismo subjetivista. A própria linguagem se projeta como
sendo um a priori, ou seja, há uma primazia da linguagem sobre a prática (base, realidade concreta),
como, aliás, o próprio Leminski disse em seus Ensaios e anseios crípticos (1997).
Diante de um romance histórico que coloca em primeiro plano o ato da enunciação; da radicalidade
com que isso acontece na narrativa; e de o seu discurso ser proferido por um duplo de Descartes, o
filósofo que buscou um método para a Verdade - , o Catatau invoca a discussão sobre a teoria do conhe-
cimento, necessária para compreendê-lo como um gênero que justamente coloca em questão o problema
da representação e cria um embate entre história e ficção.
Ficção versus história
Por se tratar de uma narrativa fragmentária, sem limites definidos, as referências históricas presentes
no romance-idéia não são diretas nem precisas; ao contrário, são relidas pelo tratamento estético que
impregna a obra, sob o clima da metamorfose. Ainda assim, não resta dúvida de que os três personagens
citados remetem a personalidades históricas, o que lhes dá uma dimensão mais ampliada. A primeira
delas diz respeito a René Descartes, filósofo racionalista cujo pensamento central estava centrado na
busca da verdade, que só poderia ser alcançada por meio de um método seguro. Como o homem é a
criação mais perfeita de Deus, guiado pela sua inteligência racional, o método para a verdade deveria
pautar-se em uma lógica apoiada na razão. Quanto a Occan, parece haver uma referência histórica
bastante direta a Guilherme de Ockhan, pensador nominalista cuja tese, contrária às correntes filosó-
ficas em voga na segunda metade da Idade Média européia, recusava a essência, as idéias gerais, que
seriam apenas palavras aplicadas indistintamente a qualquer referente; para o nominalismo, portanto,
tudo são signos, e os sentidos é que determinam o conhecimento - em vez da razão, como acontece no
cartesianismo. Por último, aquele que remete ao coronel Kristovf d’Artischau Arciszewski, integrante do
poderio holandês a serviço da Companhia das Indias no Brasil (Salvino, 2000, p. 69). O personagem
homônimo (ou heterônimo, aparecendo no texto como Artyczewski, Artiszewskf, Arciszewski, dentre
outros) que remete a ele tem papel importante na paródia do pensamento cartesiano, pois Cartesius
o espera durante toda a narrativa, na esperança de que ele o auxilie a compreender o caos em que se
encontra. Entretanto, Artycheski só aparece nas últimas três linhas na narrativa, completamente fora de
si: “AUMENTO o telescópio: na subida, lá vem ARTYSCHESWKI. E como! Sãojoãobatavista! Vem bêbado,
Artyscheswski bêbado... Bêbado como polaco que é. Bêbado, quem me comprenderá?” (p. 213).
Está claro que o Catatau não é um romance histórico tradicional, de linhagem scottiana, o qual se
colocava a missão de apresentar a história por meio da ficção, reconstruindo-a. A fórmula de Scott
constituía-se de alçar a história “real” para um segundo plano, e trazer para o primeiro uma narrativa
“totalmente ficcional”, que se harmonizava àquela. A ação narrada se dava em um passado distante o
bastante para reconhecer-se o poder supremo do narrador como aquele que iria organizar e dar coe-
rência aos fatos.
O romance de Leminski, por outro lado, é um novo romance histórico, gênero pós-moderno que, mais
do que o fazer histórico, possui a preocupação central de justamente problematizar essa construção,
em vista de sua essencial desconfiança no relato. No Catatau, em que não se encontra a representação
mimética da natureza na qual o narrador está inserido, a linguagem é colocada em primeiro plano, cha-
mando a atenção para a sua mediatização no processo de conhecimento da realidade.
A glória do nome: nada mais mingau e pelado da verdadeira natureza que os desmandos
das coisas em volta de sua presença! (...) Relação entre Coisa e Nome: entre medida e
medido! Nada me interessa mais: um palavra dita aqui dista de mim tanto quanto até ali.
(Leminski, 1975, p. 164-165)

Essa concepção da linguagem, pensada a partir de sua função especulativa, presente no Catatau, é
explicada pela hermenêtica como um espelho que mostra a realidade, estabelece a “Relação entre Coisa
e Nome”, como aparece na citação acima. Conforme Gadamer (1997), o conhecimento humano se dá
sempre a partir dos conhecimentos prévios de cada época, a partir do diálogo existente com o intérprete

Proceedings XI International Bakhtin Conference 496


e o objeto. Para o filósofo alemão, o objeto é importante, pois é ele que vai direcionar a compreensão;
mas a supremacia é do sujeito, que vai confirmar ou não seus conhecimentos prévios ativados pelo ob-
jeto. Como estes são diferentes em cada sujeito, tem-se o fim da Verdade absoluta. A tradição, conjunto
de conhecimentos humanos, só ganha vida nesse processo de atualização que o sujeito opera, aplicando
nela a visão possível de sua época, que é social, a partir de sua experiência individual. O mundo - um
objeto, um texto - só ganha sentido quando um sujeito o interpreta, o que mostra a significação do ob-
jeto vem da perspectiva que o intérprete projeta nele, por meio sempre da linguagem, mesmo quando o
contato é feito com um objeto não verbal, como uma arte abstrata, por exemplo. Assim, toda experiência
humana só se dá na linguagem, concebida então como um medium no qual se dá a relação entre o eu
e o mundo externo - sem ela, não há compreensão.
Como vimos, no romance-idéia é marcada essa primazia da linguagem no processo de conhecimento
(em detrimento da realidade, que não é apresentada racionalmente: “Este mundo é o lugar do desvario,
a justa razão aqui delira”, p. 20), ressaltando a mediatização na relação do homem com o mundo. No
Catatau, o mundo acaba sendo tragado pela linguagem:
O mundo de Axstychsky, o mundo de Ihstychsky. De Xostakowitsch, de Xoxitlistichl. O mundo
de Xxstyshsky. O mundo de Xxxxxxx. O mundo de Xxxxxxx. O mundo de Xxxxxxx. Xxxxxxx.
Xxxxxxx. Xxxxxxx. O mundo, Xxxxxxx. (Leminski, 1975, p. 203)

Em vista dessa relativização do conhecimento, o Catatau, filiando-se assim à corrente de pensamento


pós-moderna, prefere questionar o poder do homem de construir a sua história. Como, sobretudo até o
século XIX, a história registrada é predominantemente a oficial, os romances dessa linha de pensamen-
to, própria do século XX, voltam-se para o seu próprio mecanismo de construção (auto-reflexividade),
explicitando a precariedade do relato, e que a Verdade não passa de um constructo humano elaborado
por determinadas pessoas, com seus interesses e suas ideologias. É o que Linda Hutcheon (1991, p.
106), na Poética do pós-modernismo, diz:
a arte da enunciação sempre inclui um produtor enunciativo, bem como um receptor da
enunciação, e por isso suas inter-relações constituem parte relevante do contexto discur-
sivo. Esse aspecto só precisa ser mencionado porque, em nome coletivo da universalidade
científica (e da objetividade), do realismo no romance e de vários formalismos críticos, é
essa entidade enunciativa que tem sido suprimida.

É sob esse prisma que vemos no Catatau a relativização da verdade, em muitas passagens: “A velo-
cidade da lógica ultrapassa o limite da linguagem, atrás da linguagem, na frente de quê?”. (p. 22);.
No caso da América Latina, que tem uma história de colonização, dominação e de dependência eco-
nômica, esses romances encontraram espaço para se desenvolver. No Catatau, o desvirtuamento do
discurso do narrador mostra a incapacidade de “Descartes” de compreender o Novo Mundo, o qual não
pode ser entendido sob a lógica européia: “Cartésio: Nosso homem em Brasília. Dizer que fui quase
cartuxo, o fantoche. Filosofia barata, apenas uma vítima do perigo: bafo maroto de arroto batavo num
prato de pó de arroz movido a feijão mascavo” (Leminski, 1975, p. 198). Portanto, nessa paródia temos
uma antropofagia operada pela natureza brasileira e também pela ação de Occan sobre o europeu.
É nessa perspectiva do rebaixamento e da transgressão que vemos a carnavalização, no romance-idéia
usada como princípio de composição, tal como Bakhtin (1999) identificou na obra de François Rabelais,
como sendo uma maneira política de contestação e superação do dogmatismo da cultura oficial. No
contexto da Idade Média, esse poder se afastava da situação de vida real das pessoas do povo, que não
viviam sob a sombra do poder, veiculava valores que não condiziam com os interesses destas, e, portanto,
tinha uma dimensão abstrata e estéril. Em contraposição, ao invés do clima sério, rígido, cerimonioso
da elite, no carnaval, a festa do povo, vigora o ambiente festivo e alegre, favorecendo a inversão do que
ocorre na sociedade, sendo, portanto, permitida toda sorte de transgressões, como acontece no Catatau.
A começar pela língua - enquanto o discurso oficial era proferido em latim, Rabelais inaugura as narra-
tivas em francês popular, a língua falada nas ruas, verbal e não escrita, usada nos contextos cotidianos,
reais. Como a liberdade é irrestrita, prolifera a linguagem chula e os impropérios, como no romance de
Leminski (1975, p. 12): “Toda vespa quer pôr sua agulha, toda besta sua bosta, toda cobra sua peçonha,
todo tupinambaouts sua seta: calma, Messieurs, haverá para todos. Ora, senhora preguiça, vai cagar na
catapulta de Paris”. Observar que, no carnaval, as ofensas são realizadas sempre em tom lúdico, o que
contrasta com a seriedade da classe dominante, daí o humor que perpassa a obra.
Para fazer oposição à dimensão abstrata dos valores oficiais, na carnavalização há com freqüência o
uso do grotesco, que consiste em mostrar o aspecto concreto na vida humana, o processo biológico de
sobrevivência, por meio da alimentação (alimentos e excrescências) e da reprodução: “Pretendo a Ex-
tensão pura, sem a escória de vossos corações, sem o mênstruo desses monstros, sem as fezes dessas
reses, sem as besteiras dessas teses, sem as bostas dessas bestas” (Leminski, 1975, p. 27); às vezes,
isso acontece na mesma palavra, como em “merendamerda” (p. 196).
Esse poder de destronamento, de subversão, de questionamento do status quo faz da carnavalização
uma poderosa arma nos romances pós-modernos.
Rebatendo críticas ao pós-modernismo, Linda Hutcheon (1991) diz que ele de fato questiona todo
fazer histórico e não coloca nada no lugar, mas é porque não pode: tudo é representação. É por isso

Proceedings XI International Bakhtin Conference 497


que as metaficções historiográficas, termo cunhado pela autora canadense, enfatizam a proximidade
entre ficção e história: ambas necessariamente utilizam a linguagem (e aí todos os desdobramentos já
referidos e aos quais voltaremos abaixo); ambas usam categorias narrativas para a sua construção (há
sempre um narrador, personagens, espaço, tempo etc.); ambas trabalham com um distanciamento épico
(a ação narrada, por mais próxima, está sempre no passado).
Na teoria do pós-modernismo, essa explicitação constitui-se uma atitude política, na medida em que
escancara a falsidade da representação da história oficial.
Filosofia da linguagem em Bakhtin
Para debater com essa concepção pós-moderna da linguagem - que conforma a mundividência do
Catatau - como mediadora do conhecimento, porém não como um produto dialético da dinâmica concreta
da práxis, trazemos aqui a contribuição crítica de Bakhtin em seu estudo sobre a filosofia da linguagem,
especificamente as duas tendências lingüísticas criticadas por ele, o subjetivismo idealista e o objeti-
vismo abstrato, que, a nosso ver, guardam estreitas relações com a concepção pós-moderna, por não
considerar o real na composição do conhecimento (conforme o conceito de práxis). Conforme Bakhtin, o
objetivismo abstrato, que, na época contemporânea, culmina na escola de Genebra, com Ferdinand de
Saussure, tem suas raízes no racionalismo dos séculos XVII e XVIII. Para o pensador russo, “há um elo
interno que une em profundidade a segunda orientação [objetivismo abstrato] ao pensamento cartesiano
e à visão geral do mundo do neoclassicismo com seu culto da forma fixa, racional e imutável” (Bakhtin,
2002, p. 83). Assim, pode-se perceber melhor a dimensão ideológica que tem a intervenção de Occan no
pensamento e na linguagem de Cartesius: trata-se da linguagem (o monstro semiótico, abstrato), com
vida própria, autônoma, imaterial, atuando sobre o narrador. Diz Bakhtin (2002, p. 83):
Ao espírito orientado para a matemática, dos racionalistas, o que interessa não é a relação
do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo que o engendra, mas a relação
de signo para signo no interior de um sistema fechado, e não obstante aceito e integrado.
Em outras palavras, só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de signos; este
é considerado, assim como na lógica, independentemente por completo das significações
ideológicas que a ele se ligam.

Bakhtin argumenta que a língua não é um sistema normativo na consciência do locutor - esse sistema
objetivo é pura abstração. O locutor não se usa da língua como um sistema fechado de normas, mas sim
serve-se das formas normativas para adequá-las a um contexto concreto, prático, que é sempre novo,
ímpar. Para dar vida a essa forma, é preciso que ela seja atualizada na concretização da necessidade
do momento, configurando-se aí, pois, num processo de vivificação da forma lingüística (a qual, fora
de contextos, é morta, servindo apenas para estudo de língua, de forma abstrata, portanto). Daí que,
para o locutor, o que interessa é exatamente a novidade em cada forma lingüística, e não o sinal fixo e
invariável da norma abstrata (Bakhtin, 2002, 92-3).
No caso da recepção, a idéia é a mesma. Há que separar a descodificação (do signo) da identificação
(do sinal, que é fixo e invariável, como um sinal de trânsito, por exemplo). Mas “o elemento que torna a
forma lingüística um signo não é sua identidade como sinal, mas sua mobilidade específica”. Da mesma
forma, no processo de descodificação não se trata de ver no signo o sinal que ele representa, mas sim
de perceber sua significação de acordo com o contexto em que está inserido, convertendo-se, assim,
num processo dinâmico que se opõe ao imobilismo (Bakhtin, 2002, p. 94).
Quanto ao subjetivismo idealista, Bakhtin aponta um afastamento da vida concreta, na medida em que
nessa vertente há uma dualidade entre interior e meio de expressão, com predomínio do primeiro sobre
o segundo: para essa corrente, é a partir da consciência individual que o sujeito cria a representação,
dá-lhe forma e a exterioriza, por meio da expressão. Para o teórico russo, entretanto, tudo isso é falso:
não há distinção qualitativa entre o interior e o exterior, pois não existe atividade mental sem expressão
semiótica. “É a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação”.
Assim, Bakhtin (2002, p. 112) enfatiza a preponderância do concreto e do social sobre o interior do
indivíduo, condenando a existência idealista de um espírito absoluto - constantemente parodiado no
Catatau (p. 201): “Todo esse esforço em me tornar puro espírito, e agora vem os especialistas dizer que
não resisto ao próximo espetáculo”.
Essas tendências estabelecem uma dualidade entre o pensamento e a prática, entre o coletivo (meio
social) e o indivíduo (consciência), com implicações diretas na sua capacidade de representação do
real.
Materialismo dialético
Para romper com essa dualidade, e em acordo com o pensamento marxista de Bakhtin, desenvol-
veremos de forma sintética o processo de construção do conhecimento pelo método do materialismo
dialético, dividido (apenas didaticamente) em quatro etapas. A primeira delas, o ponto de partida de
todo pensamento, é o que Marx denomina de concreto real, esfera não caótica existente independente
do pensamento - é a realidade material, empírica; a segunda etapa é o concreto sensorial, que é a apre-
ensão da primeira por meio dos sentidos, e se caracteriza pela desordenação caótica, uma vez que ainda
não está trabalhada pelo intelecto, como ocorrerá a seguir; a terceira fase é a de coleção das abstrações
simples, em que se organizam os componentes significativos do real investigado; e, por último, o con-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 498


creto pensado, como resultado do conhecimento, que representa o inteligível - a síntese, expressão da
teoria, reproduz a totalidade real (empírica). As duas primeiras etapas constituem o processo de produção
(material), enquanto que os segundo, terceiro e quarto estágios perfazem o processo de elaboração do
conhecimento (fase mental) (Germer, 2003). Esse esboço mostra que o processo de conhecimento não
pode prescindir da prática, que teoria e prática são atividades interdependentes. Portanto, a consciência
é formada pela realidade, pela prática, pelo social.
Em face do exposto, temos uma polarização de duas concepções do conhecimento: o pós-modernismo
e o marxismo. O primeiro nega a totalidade, prega o relativismo, a impossibilidade da Verdade absoluta
e o fim das grandes narrativas; o segundo, a que nos filiamos, registra que há, sim, a possibilidade de
uma verdade, e que isso depende de uma questão de método - o materialismo histórico dialético, que
tem condições de compreender a totalidade, desde que o trabalho de construção do conhecimento afas-
te-se de vertentes que mistificam a realidade e execute um processo que parta do real para chegar ao
concreto pensado, conforme expusemos acima. Quanto à linguagem, esta segunda concepção revela
que ela não é o mundo, é uma representação dele, mas que não pode prescindir do concreto - e, nesse
sentido também é formada por ele, num movimento dialético.
As implicações dessa discussão para a compreensão da noção de representação, objeto deste estu-
do sobre um romance histórico, é evidente. Mesmo Terry Eagleton (1998), um grande crítico marxista,
reconhece a importância que os romances pós-modernos tiveram em determinado momento histórico,
em que era mesmo necessário questionar a voz autoritária da história oficial. Entretanto, o crítico inglês
ressalva que essa relativização absoluta se coloca no mesmo lugar daquilo que ela questiona, e também
acaba por se transformar no algoz da história.
Sintetizando
Para concluir, podemos agora retomar alguns motivos desenvolvidos nos procedimentos estéticos do
Catatau, para ver neles a concepção de linguagem e de representação presente na obra, objeto deste
estudo.
Tendo em vista: o caráter plástico da linguagem (a narrativa coloca seu próprio discurso como sua
temática em primeiro plano, na medida em que não consegue transmitir uma informação e, nesse sen-
tido, perde a sua finalidade imediata para chamar a atenção para o ato da enunciação); a abdicação da
capacidade da linguagem de representar o mundo exterior; o narrador, duplo de um pensador racio-
nalista - que buscava um discurso e um método para alcançar a Verdade -, tomar atitudes opostas à
personalidade que lhe inspira; e tendo em conta ainda o tratamento formal dado à composição da obra,
em sintonia com esses procedimentos discursivos - fluxo narrativo caótico, tempo sem um antes e um
depois, ação sem causalidade -, tudo isso coloca em xeque o poder de representação da linguagem, de
forma irreconciliável.
Essa concepção pós-moderna da linguagem e da representação, que performa e sustenta a cosmovisão
do Catatau, entra em confronto com a perspectiva marxista de que a realidade existe e há um meio de
representá-la - um processo de conhecimento que tome como fundamento o método do materialismo
dialético, porque considera o movimento concreto da realidade como base das transformações históricas,
incluindo a linguagem. ccc
Paradoxalmente, o Catatau, que parodia a idéia cartesiana do espírito absoluto (“Recuso-me termi-
nantemente a ser puro espírito, também precisa, no derrapadeiro dia, ser sã e ser salva a carne”, p.
203-4), é uma narrativa que, por sua vez, também adota uma concepção de linguagem abstrata, na
medida em que o universo ficcional é constituído por palavras que essencialmente significam a si pró-
prias, minimamente representativas, sem correspondência com o mundo exterior, manifestando a sua
incapacidade consciente de representação.
O que é uma contradição - outra característica pós-moderna -, aliás, coerente com o princípio de
composição da obra.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHÍNOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. 10.
ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. 4. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
EAGLETON, Tery. As ilusões do pós-modernismo. Trad. Elisabeth Barbosa. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Trad. Flávio Paulo Meurer. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
GERMER, Claus Magno. A relação abstrato/concreto no método da economia política. Curitiba: (Mimeo-UFPR),
2003.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago,
1991.
LEMINSKI, Paulo. Catatau. Curitiba: Ed. do autor, 1975.
____________. Ensaios e anseios crípticos. Alice Ruiz e áurea Leminski (introd. e org.). Curitiba: Pólo Editorial do
Paraná, 1997.
SALVINO, Romulo Valle. Catatau: as meditações da incerteza. São Paulo: Educ, 2000.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 499


Computing in Circles: Some issues concerning Dialogism

Luiz Ernesto Merkle

Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná - CEFET-PR

Programa de Pós-Graduação em Tecnologia - PPGTE

Departamento Acadêmico de Informática - DAINF

Av. Sete de Setembro, 3165 – Curitiba PR – 80230-901 Brasil

merkle@ppgte.cefetpr.br www.dainf.cefetpr.br/~merkle

[There] are complex visible signs of historical time in


the strict sense of the word. These are visible vestiges
of man’s creativity, traces of his hands and his mind:
cities, streets, buildings, artworks, technology, social
organizations, and so on. The artist perceives them the
most complex designs of people, generations, epochs,
nations, and social and class groups.1

Abstract
Wandering through the meanders of the Bakhtin Circle related work, I felt often puzzled by dichotomous
streams drifting topics related to Computing. Through one stream, computing science and technology
tended toward examples of the monologic. Through another stream, products of or related to compu-
ting science and technology, such as the Internet and other interactive media, drifted toward to what is
considered polyphonic. Monologised heteroglossia, a concept symmetrical to dialogised hereroglossia
introduced here, attempts to transcend this dichotomization in order to describe Computing professional
(authoritative) technical deeds. Linear and spiral sets of design process models, which prescribe patterns
of articulated technical deeds, exemplify the centripetal and centrifugal forces present in Computing
process models. A third more encompassing process model is proposed, and then illustrated with the
Lorenz attractor, a curve borrowed from Complex Systems. The mapping of design typical deeds onto
the proposed process model supports a description of Computing as a heterogeneous discipline with
monologic tendencies, but open to refraction, to the plural, even if in limited ways.
Resumo
Neste artigo é discutido o conceito de heteroglossia monologizada – simétrico ao de heteroglossia
dialogizada. Segue então com uma análise de dois típicos modelos de design de processo: o cascata e
o espiral. Um modelo mais inclusivo é proposto, e então ilustrado com auxílio do attrator de Lorenz. O
mapeamento de atividades de design no modelo proposto dá supporte a uma descrição da Computação
como uma disciplina heterogênea, mas com tendências monológicas, illustrating a heteroglossia mono-
logizada.

Computing as a domain of culture and as actually lived and experienced life


People design and use computational artefacts. It is important, however, to be cautious with non-inter-
secting classifications of professionals in computing and people in other professions who design and use
computers. Their non-intersecting properties usually reinforce actually lived and experienced computing
related activities into dichotomous roles, which are usually reified into designers and users. I assume
that the design demands use, and vice-versa. Indeed, the aim of this article is to introduce theoretical
scaffold rich enough to describe activities of use and design as intermingled, but aware that forces drag
them apart and drift them closer in different situations or historical periods. For Bakhtin, an
1 BAKHTIN (1986) p. 25

Proceedings XI International Bakhtin Conference 500


act of our activity, of our actual experiencing, is like a two faced Janus. It looks in two opposite
directions: it looks at the objective unity of a domain of culture and at the never-repeatable
uniqueness of actually lived and experienced life”2.

Computing is not an exception. It is constructed and construed as an objective domain of culture in


some ways, and it is actually lived and experienced in other ways. Within it, a plurality of areas, profes-
sions, of rules, objectives, points of view, interests, come into contact. As traditions in the Computing
profession push it in convergent directions, actual uses pull it in other divergent directions, in a constant
struggle. As a domain of culture, it is commonly praised as consolidated and successful academic and
industrial fields. As actually lived, it encompasses never repeatable experiences; ranked from distress
to joy; with optimism and pessimism.
As a domain of culture, established academic fields in Computing deal in some way or another with
information and communication technologies (ICT), but separate professional niches dedicated to the
construction (hardware), the programming (software), and the deployment (systems) in organisation3,
developed apart, each with its own organised communities and sub-fields. In North America, Computing
include, among other fields, Computer Engineering, Computing or Computer Science, Information Sys-
tems. These fields are usually housed in Faculties of Engineering, Science, and Administration, respec-
tively. In Europe, the Computing Science and Information Systems are less distinguished. Information
Processing abridges them.
It is possible to say that for a long period in their development, these traditional fields tended to
construct their identities focused on computational artefacts, rather on the activities that demanded
them, with some exceptions. Computer Science in particular has its professional identity consolidated
around the concept of software, both concretely in the form of a myriad of programming languages, and
abstractly in the form of automata and formal grammars. This was in great part possible in function of
the cross-fertilisation between Linguistics and Computing, which enabled both the construction of high
level programming language compilers and the delimitation of Computer Science focus on software and
on algorithms. Concomitantly, Computer Engineering co-developed around hardware, and Information
Systems around systems deployment. As long as their scope was successful, neither this division of
labour was questioned, nor its rules.
As a side effect of this stratification in Computing, there was a streaming of large part of the pro-
fessional community to understand programming languages and program computers mostly from a
syntactical point of view. For a quite long period during the 1970s and 1980s, mainly coincident with
the establishment of Computer Science schools across North America, this perspective prevailed over
others. Although there have been various attempts to augment this restricted focus, programming or
its abstract counterpart, formal languages, continue to be the key visions that describes what computer
scientists do. Even the scope of semantics in Computing, without generalising, is usually restricted to
the boundaries of computational artefacts.
Library and Information Science (LIS) although established in academia and dealing with related
phenomena, information, is not traditionally classified within as a field of Computing. It is considered and
application area; a use. The reasons are historical, and are related to the fact that Information Science
emerged and consolidated differently than Information Processing, sustaining stronger links with the
human sciences. It is not an exception, however. Other areas such as Human Computer Interaction,
Interaction Design (including Web design), Computing and Law, Computing and Health, Computing and
Literacy, Computing and Public Policies, which emerged more recently, have not yet a consolidated do-
main within Computing. Related issues studied by these fields have always been present in Computing,
but only isolated researchers, groups, or companies usually raised or explored them.
Recently, these recent fields have acquired a higher visibility probably in response to the unique expe-
riences found across information technology footprint in current societies, and to the inadequacy of the
answers being delivered by traditional Computing fields. Indeed, these experiences are pushing Com-
puting as whole and established fields in particular, to a revaluation of their disciplinary boundaries and
to a disciplinary reorganisation. Without doubt, the diffusion of issues related with the Human Sciences
within traditional Computing has been slow, and with the Arts and Humanities even slower.
The streaming of these fields, the apparently different communities, should not be taken as isolation.
Indeed, the tendency to a relative autonomy of these fields in Computing holds them together, through
the prescription of specific professional roles within a broader division of labour, be it acknowledge or
not. This is partially in agreement with Bakhtin. In the few passages where Bakhtin directly addressed
technology, he said that the
detached content of the cognitional act comes to be governed by its own immanent laws,
according to witch it then develops as if it had a will of its own. [...] This is like the world of
technology: it knows its own immanent law, and it submits to that law in its impetuous and
unrestrained development, in spite of the fact that it has long evaded the task of understan-
ding the cultural purpose of that development, and may serve evil rather than good.4
2 BAKHTIN (1993) p. 2, added italics
3 MERKLE (2003) explores the increasingly narrow focus that Computer Science has developed between 1960 and 1980 based on information gathered in
the ACM Curricula Recommendations. Since then, it has been expanding, overlapping with other areas in Computing.
4 BAKHTIN (1993) p. 7.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 501


This passage written by Bakhtin in the beginning of the twentieth century should be read carefully. It
makes a critique, but it also demands a response, as every utterance. The critique may be not that en-
couraging for those who seek a cross-fertilisation between the works of and about the Bakhtin Circle and
works in Computing, but adequate responses may drive interesting trends in their future development.
Questions still waiting for responses concern the answerability of Computing. On one hand, it is un-
deniable that the conceptual forces that drive Computing have contributed to the consolidation of both
its disciplinary boundaries and its current sustained roles in societies. In this sense, Computing grew
through a consonance of theories and practices revolving around centred values. The many cited fields,
and their relations, are examples. Although it is heterogeneous, it apparently behaves monologically, as
in a choir where many voices are heard as one. On the other hand, the uses of Computing in everyday
life simultaneously change peoples practices, values, relations of power, perspectives, and identities. I
should reinforce that these changes are not restricted solely to the use of Computing. Indeed, Computing
professionals feel the constant pressure to re-educate themselves, becoming quickly outdated otherwi-
se. In this sense, the alterity found beyond the reified academic and industrial established domains is
inherently a part of Computing. Use contributes to its development, if not drives it.
Computing as monologised heteroglossia
If tending to the singular or to the plural, if having a centralised or a distributed axiology, the chasm
that separates Computing as a cultural established project and as actual cultural phenomena remains
largely unexplored. I assume, however, that its further development could benefit from a better unders-
tanding of their intermingling.
In my understanding, the monologic and the polyphonic are not the best concepts to start a discus-
sion, for several reasons. Firstly, descriptions of science and technology simply as monologic imply a
certain reductionism, as if any scientific endeavour were cursed to exile from everyday life, permanently.
If this would be the case, it would not be worthwhile to even attempt to explore Computing through the
perspective of Dialogism, or any other endeavour involving both science and the humanities. Secondly,
classifications of artefacts such as the hypertexts and the Internet as polyphonic, as determining new
genres, per se, are also problematic. Equally, being polyphonic, a state of grace would already be granted
by computational artefacts, and it would be not necessary to explore the Bakhtin Circle in Computing.
This bears an unacceptable technological determinism.
Closer readings of Bakhtin, may be biased through my goals, point to another direction. In contrast
to these dichotomous tendencies, Bakhtin clearly expressed that even what is considered monologic is
not a detached world. In his own words:
The world as the content of scientific thinking is a distinctive world: it is autonomous world,
yet not a detached world, but rather a world that is incorporated into the unitary and once
occurrence event of being through the mediation of and answerable consciousness in a
actual deed.” 5,6

In a second passage bakhtin also wrote that,


a firm monologic voice presupposes a firm social support, presupposes a we - it makes no
difference whether is acknowledge or not.7

Under the risk of becoming repetitive, the apparent autonomy of Computing’s practices is also firmly
anchored on cultural and historical scaffolds. Computing includes several areas and has an established
role in some cultures or subcultures. It is not a detached world, it presupposes a we, a manifold of
communities and worldviews. But despite its multivoicedness and cultural anchor, it tends to behave
monologically. Therefore, Computing is in between the monologic and the polyphonic.
In heteroglossia, another concept developed by Bakhtin which imply diverity in a plurality of voices,
alterity is the norm rather than the exception. Bakhtin stressed that
the authentic environment of an utterance, the environment in which it lives and takes
shape, is dialogised heteroglossia, anonymous and social as language, but simultaneously
concrete, filled with specific content and accented as an individual.8

However, dialogised heteroglossia would also be problematic to characterise Computing, because it


would be in contradiction with the monologic tendencies of its fields. In an analysis of the novel, Bakhtin
himself suggested a hint to solve this apparent contradiction. In his description of the authoritative dis-
course, he expressed that a monologue could also be dialogised. He wrote:
Authoritative discourse may embody various contents: authority a such, the authoritativeness
of tradition, of generally acknowledge truths, of the official line and other similar authorities.
These discourses may have a variety of zones (determined by the degree to which they are
distanced from the zone of contact) with a variety of relations to the presumed listener or
5 BAKHTIN (1993) pp12-13.
6 See MCCARTHY and WRIGHT (2003) for a related quote and example.
7 BAKHTIN (1984) p. 281
8 BAKHTIN (1981) p. 272

Proceedings XI International Bakhtin Conference 502


interpreter (...).
In the history of literary language, there is a struggle constantly being waged to overcome
the official line with this tendency to distance itself from the zone of contact, a struggle
against various kinds and degrees of authority. [...] What confronts us is the complex pro-
blem present by forms capable of expressing such a (dialogised) monologue” 9

With that in mind, I am suggesting here the term monologised heteroglossia in response to the alterity
and multiplicity I recognise in Computing science and technology. I prefer monologised heteroglossia
over (dialogised) monologue in order to stress the plural as the norm, rather than the exception. It also
has a certain symmetry with dialogised heteroglossia.
Similarly to what Bakthin wrote, I would paraphrase him saying that the authentic millieu of a technical
deed, the situations in which it develops and takes form, is monologised heteroglossia, anonymous and
social as programming languages and graphic interfaces, but concomitantly concrete, filled with specific
content and tailored to a particular use.
In cultural studies, the “technical” usually qualifies media such as photography, video, and cinema as
in “technical images”. In the lack of a better word, I am using “technical deed” to refer to those actions
with strong technical or technological tone as the ones involved in design activities, such as tracing or
outlining a project, or using a product differently than specified.10
Monologised heteroglossia pulls towards the centre, to what is formal, abstract, and universal, towards
a delimited domain of culture. It tends to reflect more than to refract. Fuelled by material, semiotic, and
axiological resources, it attempts, but it does not grant, a detached world. Correspondingly, dialogised
heteroglossia pushes towards what is peripheral, informal, concrete, and individual. Although it tends more
to refract than to reflect, it does also not grant a connected world, equally. Within this broad spectrum,
the scientific and the technological tend toward the monologic, but are not bounded by it.
Contrariwise, interactive media may tend toward the dialogic, but they would be better described
as punctual archetypes of dialogised heteroglossia, if appropriate. In this fremework, either the pure
monological and the pure dialogical are hypothetical states, mostly target as utopic or dystopic orders,
to be pursued or avoided. The difference between monologised and dialogised heteroglossia, therefore,
is one of a degree, as illustrated in FIGURE 1.

FIGURE1 – Monologised and dialogised heteroglossia

If accepted that monologised hereteroglossia better describes Computing, its no longer possible to
describe it as homogeneous and universal. Its practices would be subject to both centripetal and centri-
fugal forces, to reflection and refraction, to maintenance and transformation. This will also implies that
both what is particular and different in each case will demand consideration. Bakhtin’s appropriation of
the chronotope seems well suited to ground a description of activities of design in Computing.
Chronotopes of Computing Design Processes
Bakhtin borrowed “almost entirely”11 the concept of the chronotope from the Theory of Relativity as a
metaphor to be used as a formal category in his studies in literature, which he called historical poetics.
Meaning “space time”, the appropriation he made of the chronotope enabled the definition of genres and
generic distinctions across literary studies.
I am borrowing the chronotope back, impregnated with bakhtinian values, in order to explore recur-
rent patterns and tendencies across different activities of design. A re-appropriation of the chronotope
intends to support a differentiation of some patterns of professional articulated activities that structure
Computing12. For example, although computer scientists and information technologists have not interacted
much in academia, the usual professional articulation assumes that an artefact is developed, deployed,
and used, in this strict order.
The resonance found among development, deployment and use, and their articulation, illustrates
how heteroglossia can be monologised. There are many voices, and they tend to agree as long as the
production chain flows smoothly. Symmetrically, the dissonance among the different professional pat-

9 BAKHTIN (1981), pp 344-345, added italics.


10 Technical deeds are not essentially different from other mediated deeds. Technical acts are as other answerable deeds, which are impregnated with values,
interests, restrictions, etc. It stresses the human agency in performing an activity.
11 BAKHTIN (1981) p 84.
12 I prefer patterns to genres to avoid the risk of misappropriation of the latter in Computing. Following Bakhtin’s advice about the study of the novel, I
understand that it is somehow too soon to pursue a study of genres of the production of computational artefacts, to compare genres in Computing and in
Literature, or even to propose or preview the existence of new ones.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 503


terns of activities dialogises Computing. In a breakdown, some contradictions across this organisation
may appear. In this sense, both design and use, understood as patterns of technical utterances, which
are subject both to orthodoxy and heterodoxy.
Grounded in Bakhtin analysis of the relation between author and hero, I suggest that for the adequate
comprehension of a designer’s stable and dynamic relationship to an artefact, the “essentially necessary
foundation” of that relationship and the diverse individual characteristics that it assume in particular au-
thors [designers] and in particular works”13 should be taken into account. This scaffold bridges two poles,
as italicised. The essentially necessary foundation corresponds to design process models. But models do
not capture the diverse individual characteristics of each instance of a design process.
I am only supposing that Bakhtin’s work on the relationship between author and hero, developed
through the chronotope, enables a more refined understanding of the relation between activities of design
as found in Computing.14 I have not carried an empirical study to validate it.
Within the above mentioned production chain, most of activities included in process models developed
in Computer Science are still related mostly to the structural development of software. They do not di-
rectly encompass, for example, activities associated with the necessary hardware, their deployment in a
specific setting, and their actual use, breakdown or abandonment, at least in most systems. It is enough
to remember how quickly computers become outdated. Indirectly, however, a set of concepts such as
portability, device independence, and others, aid a relative autonomy of software over hardware. This
restricted focus was and still is only possible because someone else was or is still answering de demands
associated with hardware, deployment, and use. In other words, the formal, the claimed universal, is
only possible with the existence of cultural support made of other professionals and stakeholders who
supplement the established order, be they acknowledge or not.
Design Process Models
Design process models can be construed as generalisations of technical deeds. Also called life cycles,
design process models encompass recurrent prescriptive patterns of activities that guide the organisation
and scheduling of the development of a product in time and space. Prescribing abstractly the time and the
scope of a specific design activity, their foci are on process. Products are their aimed outcomes, desirable
traces of articulated technical activities. They are prescriptive, and sometimes normative chronotopes.
A few comments are important for the reader without a background in Computing. Firstly, the graphic
language used in process models is in consonance with the graphic languages used in systems theory.
Similar languages have been currency in Cybernetics, the science of control, in communication, and in other
engineering fields. They usually come in the form of input/output boxes or of trajectory spaces. Secondly,
these kind of diagram may appear too detailed for an article as this one, presented in a conference on
Bakhtin. Considering only the immediate target audience, indeed they are. However, this grain of detail
intends to illustrate the kind of diagrammatic content that will have to be pursued if someone intends to
develop an alternative model to a second target audience, the one of Computing. If cross-pollination with
the work of the Bakhtin Circle intends to actually refract Computing as a discipline, affecting its theories
and practices, this grain of detail, or more refined ones, is and will be necessary.
A few remarks on the historical development of design process models are also pertinent. In mid
Twentieth Century, the not yet established field of Computing was a too young emerging discipline to
have already systematised its best practices of design. Later on, as it consolidate as a field apart from
engineering, mathematics and administration, the proposition of design process models started appear
in academia and industry. FIGURE 2 and 3 illustrates some traditional models and their historical rela-
tionships. After the successful introduction on computer programming languages, during the 1950s and
60s, the size of most software was small enough for a programmer to develop it alone, supposing it had
the infrastructure and personnel available.
As Computing, and in particular Computer Science, developed, a demand for even more systemati-
sed approaches to the design of computing systems urged some segments of the community to explore
alternative practices, in the hope that they would lead to more successful outcomes than existing ones.
An example of such a practice prescribed that before coding, people should design, as illustrated in FI-
GURE 2a.
Without generalising, a response to this demand grew in the form of longer and linear sequences of
activities, mostly lead by an area denominated Software Engineering. Software engineers stressed the
necessity of knowing exactly what was going to be designed, and if what was going to be delivered was
correct or not - in this order. These formal process models have been frequently based on the assump-
tion that the development of an artefact flows linearly from the abstract to the concrete. Among other
possible reasons, the graphic illustration enabled the community to call theses linear process models
waterfalls. FIGURE 2b shows an example of a waterfall process model.
With the further refinement and augmentation of the waterfall model, additional phases and activities
were introduced. FIGURE 2c shows a framework later known as the v-model, introduced by Glenford

13 BAKHTIN (1990) p 4, added bold.


14 If the author has been considered dead in some trends of Theory and Criticism, I would dare to say that in Science and Technology in general, and in
computing in particular, he or she is still waiting to be born. Only recently, circa mid nineteenth eighties, within a movement labelled “user-centred design”,
designers and other stakeholders started to appear explicitly in methodologies of software development.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 504


FIGURE 2: Historical development of linear process models of software development
J. Myers in mid 1970s in response to different demands he envisioned in software testing. It included
broader strata and a longer horizon were activities of testing should be carried in accordance with earlier
phases.15
A second demand not addressed by waterfall like process models was connected to the need for re-
working or repeating an activity when achieved outcomes were not adequate. In response to this de-
mand, which is sketched in FIGURE 3a, a second lineage of process models emerged in the literature in
the late 1980s. Flowing in this tread, Barry Boehm introduced a spiral process model that became very
diffused in the Computer Science and Software Engineering communities, and had a spiral illustration.16
It is sketched on FIGURE 3b. Boehm’s spiral process modelled the recurrence identified in some design
processes and added risk analysis and prototyping to the prescribed set of activities. However, Boehm’s
model was still focused on software construction and it ended, in the broader spiral segment, with similar
activities prescribed by the v-model, described earlier.
It is interesting to note that Barry Boehm also introduced a second alternative process model deno-
minated Win-Win17 also in the late 1980s, depicted in FIGURE 3c. The graphic illustration of the Win-
Win model is less detailed but it has more phases than the traditional spiral, adding the identification
of stakeholders and their target win conditions. Until today, the win-win model is not as diffused as the
other one.
Today, Boehm’s spiral models are considered the precursors what became known as processes of
rapid application development, agile development, and extreme programming, trends that differentiate
distinct movements in the production of software. These process models usually foster a close colla-
boration with users in the design of computational artefacts, but still lack phases or activities of actual
use within them. FIGURE 3d illustrates a model proposed in an area recently denominated Interaction
Design.18 Both waterfall and spiral family of models, despite their grain of detail and scope are usually
focused on software design. They usually assume, in different degrees, the independence of software
from the specificity of hardware system and operating system (portability), as well as from the particu-
larities of artefact use.
As Vološinov wrote, “[a]ny utterance, no matter how weighty and complete in and of itself, is only
a moment in the continuous process of verbal communication.”19 Similarly, process models may appear
complete but are only phases in a continuous process of the making and using of the artificial. Currently,
however, professionals and researchers are still searching for more encompassing patterns to describe
and prescribe and process models in Computing. Each area in computing often focuses the activities that
their field encompasses, devising partially intersecting process models.
Systematically, despite being referred as life cycles, it is possible to say that both linear and spiral
models have been drifting out of the design and towards the use of computing, but still do not directly
15 See MYERS (1979) p109.
16 The actual spiral process model introduced by BOEHM(1988) em sketched on FIGURE 3b is more detailed.
17 See Barry BOEHM and R. ROSS (1989)
18 See PREECE, ROGERS and SHARP (2002), pp 165-197 for more detailed examples and additional models.
19 VOLOŠINOV (1973) p95

Proceedings XI International Bakhtin Conference 505


FIGURE 3 Historical development of cyclic process models of software development, including: (a) Conception and
Production (b) Spiral model (d) rapid application development typical model

encompass phases of breakdown or disposal. It is as if, despite the contrary evidences in everyday life
where it is undeniable that a product reached its end of life or became inadequate compared to other
alternatives, software went through a series of challenges to be developed and delivered, but theoreti-
cally it is still immune to time. It is as if the concept of software sustained in Computing were an eternal
young hero. Maybe in the future it will be possible to talk about technical genres in Computing.
Toward more encompassing design process models
As illustraded by these few examples, software process models usually prescribe linear, circular,
spiral patterns of activities. As already mentioned, they usually do not include phases dedicated to use,
breakdowns, or discard.
A more inclusive process model, however, comes from the field of Natural Resource Management,
where a policy, if not updated, quickly triggers other ecological problems. C. S. Holling drew on adaptive
dynamic cycles developed in the context of complex systems to grasp more encompassing models.20
According to him, the flow of events in an ecosystem can be described through a four-phase cycle of
events as depicted in FIGURE 4a.
Holling’s four phase cycle reflects the transformations of two attributes of a dynamic system: (a) the
amount of accumulated capital (nutrients, carbon) stored in variables at the moment (vertical dimen-
sion) – and (b) the connectedness among the variables (horizontal dimension). The entrance/exit from
the cycle depicted at the top-left corner suggests the transformations that lead to the emergence and
senescence of a productive and organised system with an established dynamics. The distance between
the arrows depicted in the eight-shaped cycle in FIGURE 4a intend to give an idea of the pace at which
transformations occur. The closer the arrows, the faster the transformation is, as in the release and re-
organisation phases. The further the arrows are, the slower the transformation is, as in the exploitation
and conservation phases.
The implications of Holling’s model to natural resource management supported the identification of five
main processes within institutional cycles by Gunderson et al.21 First of all, (i) resources must be availa-
ble to start the process. Once it emerges, (ii) alternatives are searched, (iii) development is made, (iv)
deployment takes place, (v) and a crisis is reached. Several main roles within the established dynamics
link these four phases: (i) The role of visionaries is key, because they establish the cycle. (ii) Once the

20 See HOLLING (1993)


21 See GUNDERSON et al (1995)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 506


dynamics are established, decision-makers, strategists, or designers, broadly understood, develop and
filter alternatives in order to start (iii) the development phase. The phases associated with alternatives
and development have a weak connectedness in the sense that they are not yet crystallised in the social
structures across which the technology, or policy, would be diffused. (iv) Bureaucracy/Sales plays a key
role in taking what has been developed to deploy it. Once deployed, it remains a gap, however, between
what is deployed and people’s expectations. Consequently, as people expectation change there may be
a point at which it may become undeniable that an implementation is inadequate and then (v) a crisis or
breakdown is reached. Activists and sceptics play a key role in this phase. (vi) If catalysts or brokers are
able to reorganise the available resources a new full cycle may start, otherwise the dynamics vanish.
In the case of circular process models, their illustration follow always the same path, without showing
what has changed during a cycle. Spiral process models diverge, but only in one direction, following a
pattern that is as restrictive as the linear one. Similarly, Holling’s four phase model depict breakdowns,
but similarly, it does not represent the differences achieved during a four phase cycle.22
With a curve developed in 1963 by Edward N. Lorenz23, an MIT meteorologist, it is possible some of
these shortcomings. This curve, commonly known as the Lorenz attractor, is depicted in FIGURE 4c. This

FIGURE 4 Adaptive Cycle and the Lorenz Atractor


22 Indeed, these differences partially reside in the different languages that they encompass. When circular models use input/output boxes, spiral and the
four-phase use trajectory spaces.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 507


application of the Lorenz curve is a scaffold to guide professional action; it is only a metaphor. The use
of the Lorenz attractor certainly brings contextual sensitivity to design process models, which generally
tend to suppress divergent trajectories.
It enables the illustration of two “spirals’’ within one cycle in a continuous process of change. The
x, y, and z co-ordinates depicted in FIGURE 4c are a function of a variable t, which represents the si-
mulation time. The values attributed to x (t) revolve around a point a number of times, establishing
a disc pattern, and then flip to revolve around another point, forming a second disc. After a few loops
revolving around this second point, they flip back to a trajectory that revolves around the initial point.
This continues indefinitely.
Its conjoint use with Holling’s four phase model is attractive because it illustrates that a small difference
in opinion or action, be in design be in use, may have a significant impact in the life span of an artefact.
The three dimensional space where it is drawn could be used to describe individual developmental paths.
It does not prescribe where to go, but where it is possible to go.
The two disks would correspond to niches usually associated with traditional design (alternatives+design)
and traditional use (deployment and crisis). In addition, the three dimensional nature of Lorenz’s curve
enables the subdivision of the connection found in a setting into a human connectedness and a technology
connectedness. In drawing it, I assumed that the higher diffusion of an artefact, and the large number
of stakeholders involved, the higher is the connectedness represented on the diagram. The pace of the
arrow paces described in Holling’s original four phase cycle is now mapped directly onto the distance
travelled within a trajectory.
Some of Bakhtin’s concepts can also be depicted in the proposed process model. For example, FIGURE
5 depicts centripetal and centripetal forces on one side, and reflection and refraction on the other. Their
places are only illustrative and do not mean that they are restricted to those regions. Centripetal forces
pull a certain trajectory toward the centre, and centrifugal toward periphery.

FIGURE 5 Centripetal and Centrifugal forces across a hypothetical chronotope for technological deeds

This is the case, for example, with formal approaches in Computer Science and Software Engineering.
Formal methods usually exclude the particular to stress the universality of a method, of a theory. Pure
reflection would only occur if centripetal and centrifugal forces were perfectly balanced. It would sustain
a circular trajectory around one of the centres. But centrifugal forces pushes toward the periphery. This
is the case of empirical methods in Software Engineering. For example, the increasingly broader scope
of the spiral model illustrates this tendency. It is circular with a constant prevalence of the centripetal
over the centrifugal. Similarly, pure refraction would exist only if either centrifugal or centrifugal forces
did not exist.
This curve is adequate to represent some of the dynamics found in design technical deeds. It assumes
that design in technology is also subject to both centrifugal forces and refraction. This may be trouble-
some for those who support a dichotomization between design and use; between science/technology
and its applications.
An analysis of reflection and refraction is found, for example, in Medevedev, another member of the
Bakhtin Circle. I should stress that he was analysing the formal method in literary scholarship, and not
science or technology. He wrote that the
difference between ideological objects, which signify, reflect, and refract reality, from ins-
truments of production should be assimilated and conclusively proved. It is necessary do
understand and study the special forms taken by ideological material, forms which sharply
differ from and cannot be reduced to any production technique whatsoever. 24

Although of interest, the implications of such a model to Bakhtin’s work reamains to be explored.
Revisiting traditional process models
FIGURE 6 describes some common technical deeds related to Computing. On the left side, I plotted
activities such as specification, requirements, programming and testing. Their order is only illustrative.

23 See LORENZ (1993) p 139-194


24 See Medvedev (1978) p10

Proceedings XI International Bakhtin Conference 508


FIGURE 6 Illustrative Computing design activities and their common loci within the proposed model

Usually, however, computer scientists first define the computer for which they will develop a program.
It is a requirement. After developing a program, they occasionally test it. Most of their activities would
be plotted on the left disk. The traditional waterfall model, for example, covers only a small segment of
the lower left disk. Most activities prescribed by Boehm’s models, such as prototyping and negotiation
with users are depicted on the left side of the FIGURE 6. In this model, the activities prescribed in the
waterfall model indeed form a chain, including specification, requirements, coding, testing, deployment,
etc. Refraction is usually not modelled, therefore is not prescribed. Alternatively, this use of the Lorenz
attractor explicitly shows that in each activity, at any time or space, refraction is not only allowed, but
also is part of the process.
Depicted on the right disk, deployment, maintenance and use traditionally fall outside computer
scientists and software engineers’ interests. Occasionally, maintenance is included as the last of the
activities performed by Computing professionals. Currently, however, movements such as user centred
design and usability evaluation stress the importance of including these activities in broader construed
design processes.
Traditionally, however, activities carried by professionals in Information Systems, and Information
Science, are on the right side of FIGURE 6. For example, after being delivered by information technologists,
information scientists deploy it in libraries, and people use it. Breakdowns, which are not usually covered
by traditional process models, are depicted on the lower right side. If maintenance is able to recover the
trajectory, the artefact continues in use. If not, the process finishes or continues its trajectory continues
back in the left disk, where designers will develop a newer set of alternatives, and so on.
A second illustration may aid the understanding of the proposed model. FIGURE 7 illustrates two va-
riables of a Lorenz attractor plotted as function of the simulation time. The two curves, in red and blue,
represent the accumulated capital; the human and the artificial. I have chosen this particular segment
because it is possible to show several traditional software process models in the same illustration. The
upper part corresponds to the right disk of the attractor, that is, it correspond to the use of a certain
technology. It usually involves a larger number of people and artifacts. The lower part corresponds to
the making of it.

FIGURE 7 Process models in relation to making and using of artefacts

It is important to point that traditional process models established in Computing do not usually sup-
port even already established practices of software production. For example, Jonathan Grudin identified
three main scheduling patterns associated with the activities of developers and users.25
According to Grudin, developers are identified before users in product development; users are identified
before developers in contract development; and both users and developers are identified simultaneously
in in-house and custom development. Using Grudin’s illustrations represented as black arrows, the three
types of development are depicted sequentially in FIGURE 8, from left to right. The Lorenz attractor is
rich enough to depict these processes.

25 (GRUDIN, 1998, p 5).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 509


FIGURE 8 Contract, product and in-house development

Final remarks
The objective of presenting different process models is the identification of the domain of each Com-
puting field, its main tendencies, and the interrelationships between its different practices. Most of them
are still tangential, restricted to a small part of a broader process. Subject to other forces, not usually
originated in their common disciplinary venue, they are strongly dependent of the others, which scaffold
and sustain their only apparent autonomy. Resuming, monologised heteroglossia is still a strong tendency
in Computing. It is sustained by a traditional professional division of labour, forming a chain of practices
reflected into traditional process models. In the historical transformation of these models, which deserve
more attention, it is possible to identify traces of dialogisation. Dialogised monologised heteroglossia.
When current process models are on course for some, they are a curse for others.
References
Mikhail BAKHTIN (1981) The Dialogical Imagination. The University of Texas Press.
________________ (1984) Problems of Dostoevsky’s Poetics. The University of Minnesota Press.
________________ (1986) Speech Genres and Other Late Essays. The University of Texas Press.
________________ (1990) Art and Answerability. The University of Texas Press.
________________ (1993) Toward a Philosophy of the Act. The University of Texas Press.
Barry BOEHM (1988) A spiral model of software development and enhancement. Computer p61-72.
Barry BOEHM and R. ROSS (1989) Theory W Software management: Principles and examples IEEE Transactions on
Software Engineering, 15(7): 902-916, July
Barry BOEHM and Wilfred J. HANSEN (2000) Spiral Development: Experience, Principles, and Refinements.
Carnegie Mellon - Software Engineering Institute CMU/SEI-2000-SR-008
Carlos A. FARACO (2003) Linguagem e Diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin”, Criar Curitiba:
Edições, 2003
C. S. HOLLING (1993) Investing in research for sustainability. Ecological Applications, 3: 552-555
Jonathan GRUDIN (1998) CSCW and Groupware. Their History and Trajectory. In Yukata Matsushita, Editor. Designing
Communication and Collaboration Support Systems, Gordon and Breach Science Publishers, pp 1-15
Lance H. GUNDERSON, C. S. HOLLING, Stephen S. LIGHT, editors (1995) Barriers and Bridges to the Renewal of
Ecosystems and Institutions. Columbia University Press, New York, NY, USA
Edward N. LORENZ (1993) A Essência do Caos Editora Universidade de Brasília.
John MACCARTHY and Peter WRIGHT (2003) Bakhtin, Novelistic Imagination, and HCI Experience in HCI, The arts and
the Humanities: a new community exploring the academic borderlands. 21st July, King’s Manor, University of York.
Available at http://www.hiraeth.com/conf/HCI-arts-humanities-2003/
P. N. MEDVEDEV (1978) The Formal Method in Literary Scholoarship: A critical introduction to sociological
poetics. The John Hopkins University Press
Luiz Ernesto MERKLE (2002) Disciplinary and Semiotic Relations across Human-Computer Interaction. unpublished
Ph.D. Thesis. The University of Western Ontario, Graduate Program in Computer Science, London, Ontario, Canada.
Carl MITCHAN (1994) Thinking through technology: The path between Engineering and Philosophy. The
University of Chicago Press.
Jennifer PREECE; Yvonne ROGERS and Helen SHARP (2002). Interaction Design: beyond human-computer interaction.
John Wiley & Sons.
Glenford MYERS (1979) The Art of Software Testing, Jon Wiley & Sons, New York
V. N. VOLOŠINOV (1973) Marxism and the Philosophy of Language Harvard University Press

Key Names: Mikhail Bakhtin, Barry Boehm


Key Words: Computing, heteroglossia, chronotope, dialogised heteroglossia,
monologised heteroglossia, design process models, software engineering, spiral
process.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 510


El cronotopo del burdel en la literatura latinoamericana

Martha Elena Munguía Zatarain

Universidad Autónoma del Estado de Morelos

Incansables veces, hombres y mujeres profieren la palabra puta y con en ese solo acto de enunciaci-
ón se construye un completo universo imaginario que moviliza lo lúdico y lo reprobatorio. Casi ninguna
palabra de nuestro idioma condensa tanto sentido ético, político, juguetón y acusador a la vez. Es insulto
que traza fronteras entre dos universos opuestos que se niegan uno a otro: de un lado, la mujer buena,
respetable, de su casa, sumisa y silenciosa, y del otro, las de la calle, de la vida, de la vida alegre, de
la vida airada, denominaciones todas que instauran con mucha precisión el lugar que la prostitución
ocupa en la imaginación popular, pues obsérvese cómo, con ser todos nombres y adjetivos positivos
dado que se inscriben, literalmente, en el campo semántico de la alegría, de la felicidad, de la vitalidad,
se cargan, contradictoria o hipócritamente, de un peso reprobatorio, degradante, de tal modo que nadie
puede sentirse halagada si es interpelada con tales vocablos. El contraste se hace más claro aun entre
mujer pública y hombre público, donde el mismo adjetivo aplicado a la mujer es degradante y aplicado
al hombre, se hace positivo.
La prostitución constituye un universo referencial lleno de recovecos, contradicciones y turbiedades,
traza los perfiles de la sexualidad masculina y por oposición, de la femenina; si para los adolescentes es
horizonte de ensoñación, para el ejército de mujeres hambreadas es callejón sin salida. La prostitución
es “el espacio social, cultural y político de la sexualidad prohibida, la sexualidad estéril, no fundante de
futuro”1, en esta medida es que no se reduce a un mero oficio; es una forma de vida que toca lo moral,
atenta contra a la vez que asegura la organización social, niega y afirma; por ello se busca siempre cir-
cunscribirla a un territorio, con nítidas fronteras: se le fijan horarios, se asegura la vigilancia sanitaria y
policiaca y se le ubica éticamente al borde de lo prohibido, de la transgresión, en peligrosa colindancia
con el crimen.
En el seno de este territorio condenado y atractivo emerge el perfil de la mujer que perturba porque
se denigra ofreciendo placer por dinero, a la vez que se la imagina en plena posesión de su cuerpo; la
mujer que inquietantemente disocia en su cuerpo el erotismo y la maternidad; mujer a la que se quiere
víctima pero a la que es necesario imaginar innatamente mala. Sobre ella se ha predicado casi todo,
desde casi todos los foros: la han hecho objeto de discurso los sacerdotes de la iglesia, los científicos del
alma y del cuerpo, los políticos, los moralistas, los antropólogos, los sociólogos, los redentores y también
los artistas, particularmente pintores y escritores.
Casi paralelo a la emergencia del discurso médico y legal sobre la prostitución y la prostituta, a finales
del siglo XIX –momento en el que se empieza a dar la urbanización de las ciudades latinoamericanas—,
surge un inusitado interés por recrear ese mundo en la literatura. Las dos construcciones discursivas se
complementan una a otra, replican, discurren y confluyen en el orden moral más o menos compartido por
los hombres de la clase media ilustrada. En Francia e Inglaterra, donde la prostitución se volvió cuestión
de Estado, problema nacional, el discurso médico consideraba poco relevante el factor miseria en la vida
de la mujer proletaria, sin educación ni posibilidades de aprender oficios, y adjudicaban el ejercicio de la
prostitución a factores hereditarios y la natural orientación de la mujer al vicio, a su pereza y su debilidad
intelectual2. Desde el horizonte de los poetas, herederos del romanticismo, era posible desafiar el orden
burgués cantándole a la ramera y se recurría a su figura para celebrar el placer y el gozo efímero, a la
vez que se borraban los rastros del drama social que esas mujeres encarnaban.
América Latina apeló también a los incontestables descubrimientos hechos en Europa: “La ciencia
ha llegado a demostrar que la prostitución es un estado de inferioridad psicológica y social, una dege-
neración, como lo es la vagancia, como es la mendicidad, la criminalidad, como lo son todas las formas
de parasitismo, desde los audaces predatores hasta los holgazanes rentistas”3 y a la natural propensión
al mal de las mujeres se unía la inferioridad de clase: “Las mujeres menos cultas, más pobres, que son
indudablemente menos bien dotadas y menos defendidas con las causas ocasionales, son las que en

1 Marcela Lagarde, Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas, UNAM, 3ª ed., México, 1997, p. 563.
2 Véase Erika Bornay, Las hijas de Lilith, Cátedra, Madrid, 1998, pp. 53-66.
3 Luis Lara y Pardo, La prostitución en México, Librería de la viuda de Ch. Bouret, México, 1908, p. 108.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 511


mayor número van a formar entre las filas de esa falange de seres desdichados[...]”4. Y de este modo
la prostitución se volvía un argumento para dejar firmemente demostrada la inferioridad natural de las
clases populares, lo que se agudizaba en la mujer.
Explicado científicamente el origen del problema, quedaba la tarea de controlar y sancionar el ejercicio
de la prostitución. Con este fin se expidieron en casi todos los países latinoamericanos reglamentos, por
ejemplo en México se expidió el primero en 1867 y se le hicieron correcciones y adiciones constantemente.
Había una razón fundamental que justificaba esos intentos de control: la salud social amenazada por la
sífilis que cundía como la peste. Esta justificación ha sido problemática, dado que la política sanitaria,
en todas partes, se orientaba a la protección de la población masculina y no a la prostituta, a quien se
consideraba el agente transmisor del mal y por tanto, culpable. Otro lado del espíritu reglamentador era
la faceta moralista: había que evitar la visibilidad de la prostituta, confinándola a lugares reservados y
discretos, porque la prostitución también era un mal contagioso que invitaba a otras mujeres a iniciarse
en esa vida y sobre todo, empujaba a los hombres a caer en la tentación.
Si, por un lado, se reconocía en la prostitución el origen de muchos males sociales –crecimiento de la
criminalidad, expansión de la sífilis y otras enfermedades venéreas, peligrosa tendencia a la disolución
de los valores morales, etc.—, por otro lado, se le consideraba necesaria, sostén del sistema social y
moral de la sociedad, por eso se le toleraba5. Pero toda esta profusión discursiva dejó huellas que van
más allá de lo sanitario, de lo legal y de lo religioso:
Este despliegue discursivo contribuyó a la construcción de un arquetipo de alteridad social,
representado en la figura de la prostituta y del ambiente prostibulario. En este sentido, la
definición de la prostituta como un ser psicológicamente inferior y moralmente degenerado
tuvo sentido en la medida en que existió un opuesto complementario, representado por la
castidad y virtuosismo atribuido a madres, esposas e hijas6.

Así quedaban claramente asentados esos dos universos irreconciliables, el uno amenazante y seductor,
el otro seguro y protector. Por ello ha sido tan atractivo el ámbito burdelero para la recreación literaria:
las fantasías del hombre rebelde, romántico, que intenta contestar la moral de su época, no pueden
encauzarse hacia la imagen de la mujer casta que cumple cabalmente su función de madre y esposa.
No hay mejor y más clara comprobación de las teorías sexófobas que la encarnación de lo corruptor y
lo transgresor en el cuerpo de la mujer que se prostituye.
Hay otro aspecto que es importante tener en cuenta para entender el sentido y la función que
cumple el burdel en la novela moderna: es la naturaleza que adquirió ese espacio en el seno de la socie-
dad clasista y jerarquizada. Dice Erika Bornay: “Otro aspecto no desdeñable, y de una ironía paradójica
en aquella sociedad de clases, es que fue precisamente el sexo, por la vía de la prostitución –desde la
remera callejera hasta la cortesana de los salones—el único nexo de unión entre los estrictos comparti-
mientos de las clases sociales alta y baja”7. En la medida en que la prostitución se ubica en las fronte-
ras de lo tolerado y lo reprobado, se constituye en un espacio de cruce, de encuentro, de semejanza e
identidad para ricos y pobres. La posesión de unas monedas asegura, sin distinción, la posesión de un
cuerpo al que puede sometérsele sin resistencias. En ese cuerpo alquilado se halla la encarnación del
paraíso prometido por las leyes del mercado. Todos estos rasgos han hecho del burdel, en cualquiera
de sus modalidades —café, cabaret, salón de baile, zona de tolerancia—, un ámbito privilegiado para la
recreación literaria, un lugar para atisbar la vida humana, para comprender y aprehender las pulsiones
más secretas y negadas de los hombres, un espacio donde concurre y se condensa el tiempo histórico
concreto, un horizonte de enunciación y de afirmación, un punto en el que ocurren acontecimientos que
es posible trabar en líneas argumentales, de donde emergerán imágenes artísticas del hombre y de la
mujer, imágenes marcadas por el sello de su época. En esta medida puede pensarse el burdel como un
cronotopo particular creado por la novela europea decimonónica y continuado, actualizado y radicalmente
modificado por la literatura latinoamericana. Este cronotopo ha sido muy productivo y ha generado toda
una especie literaria que sigue dando frutos en nuestros días8.
Casi me atrevería a afirmar que son raras las novelas latinoamericanas escritas a fines del si-
glo XIX y a lo largo de todo el siglo XX que no hagan al menos alusión al burdel o a la prostituta, si no
construyen todos sus nudos argumentales a partir de este ámbito. Desde que en 1903 Federico Gamboa
publicó la paradigmática Santa, no ha dejado de producirse una copiosa literatura que recrea el sórdido
ambiente del burdel y sus nefastas consecuencias en la vida de la mujer pecaminosa, novelas que van
desde Nacha Regules, pasando por Juana Lucero, hasta llegar a la contemporaneidad nuestra con La
increíble y triste historia de la cándida Eréndira y de su abuela desalmada, Juntacadáveres, Pantaleón y
las visitadoras, El Señor Presidente, Las muertas, o incluso las más actuales como La novia oscura o la
4 Ibid, p. 110.
5 Todavía pueden encontrarse expresiones como la siguiente en el discurso de un fervoroso moralista: “La prostitución sólo podría desaparecer cuando la
humanidad llegue a un grado de perfección moral, que no es dado ni soñarlo. Pero en la humanidad tal cual es, mientras sufra la ciega influencia de los
instintos y los ímpetus sensuales, la prostitución tiene que existir, y más aún, es indispensable para conservar el orden y la tranquilidad pública; sin ella, sin
ese vergonzoso vicio social la pureza de las costumbres no tardaría en desaparecer, y la moral pública se trastornaría sensiblemente” (Xorge del Campo, La
prostitución en México, Editores Asociados, México, 1974, p. 61).
6 Jorge Bracamonte Allaín, “Sin honra ni decencia. Discurso y representación sobre la prostitución en México: 1890-1910”, Allpanchis 52 (1998), p. 161.
7 Erika Bornay, op. cit., p. 62.
8 Obviamente la figura de la prostituta no aparece con la literatura del siglo XIX; hay en el mundo hispánico varios textos literarios que recrean esa imagen,
recuérdese por ejemplo, La Celestina y La lozana andaluza. Pero en el siglo XIX es cuando se empiezan a delinear los perfiles del burdel como cronotopo y
así, el ámbito se vuelve punto de referencia para configurar la representación artística de la prostituta.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 512


parodia escrita por Cristina Rivera Garza, Nadie me verá llorar. Y no las menciono con pretensiones de
exhaustividad, debe de haber muchas otras, además de las que sólo aluden pasajeramente al hecho de
la prostitución.
La novela del burdel alimenta el arquetipo de la prostituta, de la lenona, del proxeneta; la no-
velización de ese mundo se volvió referencia inevitable, no sólo para la imaginación popular, sino que
el propio discurso médico debió incorporar el debate con los textos literarios de la época para sentar
su visión científica como la única autorizada. Así se expresa con mucha elocuencia Luis Lara y Pardo, a
propósito de Gamboa y su novela Santa:
Y no solamente los novicios, los forasteros, los inexpertos, tienen la tendencia a rodear de
una aureola de poesía, y embellecer y purificar ese tipo femenino. ¿Acaso uno de nuestros
intelectuales, que es al mismo tiempo un reveur impenitente y un literato de gran talento,
no ha revestido, en una de sus más deliciosas novelas, de una vestidura exquisita a dos de
los personajes que vegetan como en un invernadero, en el ambiente de perversión moral
de un prostíbulo?9

De esta manera, el vigilante médico debía resguardar la salud de los enfermos de pecado no sólo
denunciando la perversión moral del burdel, sino también combatiendo el formidable peligro que podía
ser la literatura para los incautos.
Para entender lo que ha hecho la novela latinoamericana con el mundo prostibulario es preciso
descartar la vía de entrada más fácil que sería la identificación de una temática común a un conjunto
de textos. Voy a tratar de analizarlo como un cronotopo pleno en el sentido que tiene la noción en la
propuesta bajtiniana; un cronotopo que nos permite entender un problema de poética histórica en la
conformación de la novela, en la medida en que ha sido dinámico, en constante proceso de reformulación
y ha sido propicio, incluso, para la parodia y la radical reorientación ideológica y estética del mismo. En
este trabajo sólo me detendré en algunos de los elementos esenciales que definen el cronotopo para
entender cómo se conforma y qué ha implicado en el desarrollo de la narrativa latinoamericana.
Las novelas que han intentado configurar una imagen más o menos totalizadora de la ciudad y
de la época que pretenden recrear, frecuentemente apelan al burdel como un espacio privilegiado para
aprehender desde ahí el ser nacional, sus problemas, su identidad, sus diferencias, porque el burdel es
un punto de encuentro fortuito y fugaz. Se configura como un microcosmos que condensa la historia de
una ciudad e, incluso, de una raza pecaminosa. Así lo sintetiza Gamboa:
Una noche excepcional, en que Santa considerábase reina de la entera ciudad corrompida;
florescencia magnífica de la metrópoli secular y bella, con lagos para sus arrullos y volcanes
para sus iras, pero pecadora, pecadora, cien veces pecadora; manchada por los pecados
de amor de razas idas y civilizaciones muertas que nos legaron el recuerdo preciso de sus
incógnitos refinamientos de primitivos; manchada por los pecados de amor de conquistadores
brutales, que indistintamente amaban y mataban; manchada por los pecados de amor de
varias invasiones de guerreros rubios y remotos, forzadores de algunas de sus trincheras
y elegidos de algunas de sus damas; manchada por los pecados complicados y enfermizos
del amor moderno... noche en que Santa sentíase emperatriz de la ciudad históricamente
imperial, supuesto que todos sus pobladores hombres, los padres, los esposos y los hijos la
buscaban y perseguían, la adoraban, proclamábanse felices si ella les consentía arribar, en
su cuerpo de cortesana, al anhelado puerto, al delicioso sitio único en que radica la suprema
ventura terrenal y efímera...10

Nótese así, cómo incluso se borran las fronteras entre las generaciones y todas se encuentran unidas
en el mismo punto del pecado. En el cuerpo alquilado de la cortesana van a desembocar los ríos de la
historia de la lascivia y la violencia que ha ejercido ancestralmente el conquistador. Este tratamiento del
burdel o la zona de tolerancia como un microcosmos en el que se sintetiza la vida de toda una ciudad
y la historia de la humanidad se da en otras novelas, no importa cuán lejanas estén de la estética y de
la ideología del Gamboa porfirista. Recuérdense las inmensas colas formadas fuera de la carpa donde
la abuela desalmada esclavizaba a su nieta Eréndira, un mundo integrado por hombres de toda laya y
condición.
Una de las razones que hace el burdel tan atractivo para dar una completa imagen artística de una
ciudad y una época es que es justamente el sitio donde se une el dinero con lo más personal e íntimo
del ser humano y la conjunción de estos dos elementos aparentemente contrapuestos lo convierte en un
punto de iluminación de la condición humana y del tiempo histórico en el que se vive la experiencia. El
burdel es así, sobre todo, un espacio de confluencia polémica de casi todos los discursos posibles de una
época. No hay institución que detente algún poder y que no se pronuncie sobre el “problema”. En esta
medida, se vuelve un espacio privilegiado para el novelista que intenta recrear la faz más compleja de su
momento. Tomar el burdel como espacio de creación da, de entrada, la posibilidad de trabajar con todos
estos discursos en pugna; por ello casi no hay novela que no incorpore el choque de la prostituta con la
iglesia, la amenaza constante de la institución sanitaria controlada por el Estado, la cárcel, la policía y sus

9 Luis Lara y Pardo, op. cit.,, p. 54.


10 Federico Gamboa, Santa, ed. Javier Ordiz, Cátedra, Madrid, 2002, p. 166.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 513


prácticas de extorsión. El prostíbulo funciona como una especie de caja de resonancia de los múltiples y
variados discursos sociales sobre los acuciantes problemas de una determinada época. Ahí se dirime la
naturaleza del matrimonio, se definen los perfiles del amor, del verdadero y del comprado; asoman los
dilemas que implican las distintas formas de vivencias de la sexualidad, incluso las más transgresoras y
tradicionalmente silenciadas como la homosexualidad femenina. Hasta esos territorios puede inmiscuir-
se el autor, aunque sea en los tonos más severos y reprobatorios. A pesar de todo, antes de Gamboa,
difícilmente podríamos encontrar en la literatura latinoamericana alusiones tan claras al “nefando vicio”
en el que también las mujeres podían incurrir.
Los avatares de una vida prostituida abren la posibilidad para que la novela se convierta en el territorio
donde disputan dos éticas que se rechazan violentamente una a otra. Aunque la visión moralizante de los
autores de principios de siglo –Federico Gamboa, Manuel Gálvez, por ejemplo— impidió que se exploraran
a fondo las posibilidades artísticas de un verdadero enfrentamiento, en igualdad de circunstancias, entre
sus personajes y la ética que ellos detentaban, alcanzaron a dejar huellas de las pugnas, huellas que a
pesar de su precariedad, resultan reveladoras y es impensable encontrar en otro tipo de ficciones, inclu-
so las realistas. En la novela de los últimos años, no casualmente escrita por mujeres, se despliega con
mayor amplitud y resonancia esa polémica y la voz narradora no se propone como punto de referencia
único en esa disputa, sino que deja que la diferencia aflore dentro del propio horizonte de las prostitutas.
Así, constantemente oímos en La novia oscura fragmentos de diálogos como el siguiente:
-Rosa la Rosse siempre me sonó tan dulce... –suspiró la Olguita-. ¡Me hubiera gustado lla-
marme así. Pero me fui enredando en este oficio sin darme cuenta y cuando vine a abrir los
ojos ya era puta consagrada y me seguía llamando Olguita, como cuando era buena. Dicen
que Dios no perdona a las que trabajan con nombre dado en pila bautismal. Dicen que es
enlodar el santo nombre y mentarlo en vano.

Y enseguida entra una voz que ironiza todo ese horizonte discursivo de la religión:
-Dios ya se hizo viejo y aún no acaba de inventar pecados11.

El juego desenmascarador de la ironía y de la inversión ha sido muy bien aprovechado por la novela
burdelera de las últimas generaciones. Escritoras como Laura Restrepo o Cristina Rivera Garza incorpo-
ran a sus argumentos el incesante dilema de conciencia de la prostituta y son frecuentes las alusiones a
ideas y valores que corresponden al rígido universo moralista y represivo, pero a los que se les incluye
en contextos contrapuestos por lo que sufren una radical reorientación ética: “[...] que de la putería,
si se ejerce con honestidad, nadie sale jubilado”12, dice por ejemplo, uno de los personajes de La novia
oscura, con un sentido del humor imposible de encontrar en los escritores de principios de siglo.
La presencia y el juego con las diversas temporalidades es un rasgo caracterizador de la novela del
prostíbulo. Además del fluir de un tiempo histórico real, concretado en esas pugnas discursivas absolu-
tamente enlazadas a las visiones de cada momento, el cronotopo del burdel implica la vivencia de una
temporalidad subjetiva, interna, que polemiza con ese tiempo histórico real. El tiempo de adentro no
parece concordar con el tiempo de fuera, de la cotidianidad. El tiempo mismo de la vivencia prostibula-
ria implica la negación de lo cotidiano social, pues se vive de noche. La vida parece una a la luz de los
candiles y es otra bajo la ciudad diurna del trabajo, de las obligaciones y deberes ciudadanos. El burdel
parece constituirse así en una paraje sustraído al fluir temporal. Ahí se atrapa la conciencia de la tem-
poralidad, dentro de las cuatro paredes se ahuyenta la angustia del devenir y cada noche es igual a la
noche anterior y la prostituta es tan joven y radiante como la noche de cinco años atrás por el efecto
de la teatralización.
Y a propósito de esto, aquí encontramos un elemento sumamente importante para entender cómo
se conforma este cronotopo sobre la base de las relaciones humanas que se establecen en el burdel
en tanto espacio de socialidad marcado por el artificio. Para que funcione como tal, el prostíbulo debe
construirse como un decorado teatral, única manera de crear el efecto ilusorio de que se trata de un
ámbito sacado del fluir de la vida ordinaria. Es el modo de resguardar incontaminado el espacio civil,
cotidiano. Si el burdel es realista, no se opera la magia de la liberación de las energías reprimidas; para
que cumpla con su función social tiene que parecer lo opuesto de la casa burguesa de cada día, donde
el hombre sufre las mezquindades y se enfrenta a su aburrimiento matrimonial. El burdel debe incitar la
fantasía, debe transfigurar el orden normal y no hay otro modo más eficiente que el de la creación de la
ficción. La prostitución se conforma como uno de los espectáculos por excelencia. De hecho, no puede
olvidarse que la prostitución ha estado culturalmente asociada al mundo teatral, en tanto ámbito que
invita al goce, a la participación, pero con fronteras claramente delimitadas entre ficción y realidad13,
11 Laura Restrepo, La novia oscura, Norma, Santa Fe de Bogotá, 1999, p. 61.
12 Ibid., p. 24.
13 Vale la pena copiar la siguiente cita sobre la vida teatral en España a principios del siglo XX porque no es tan ajeno al fenómeno como se vivía en las
grandes ciudades de América Latina: “Los espectáculos, la escena y todo lo que la rodea o acompaña, son los lugares por excelencia donde se cristalizan todas
las tensiones, las crisis, son los lugares de la “puesta en escena” social y cultural de la expansión burguesa y de sus contradicciones. La escena representa
la faceta cultural (visible, “espectacular”) de lo político. Todos los teatros, cafés cantantes, cabarets y demás establecimientos dedicados a los espectáculos
están vinculados con la prostitución, con el consumo sexual, con la cultura prostitucional más o menos encubierta, pero real. Los teatros “tradicionales” o
burgueses (ópera incluida) siempre han servido para operaciones matrimoniales, enlaces o encuentros (es decir, son una institución tradicionalmente útil
para la vida privada y afectiva) y las actrices o cantantes –las jóvenes y atractivas, evidentemente—siempre se han dedicado lo que se sigue llamando hasta
la guerra “galantería” o “coqueteo”: es el lugar de las “cocottes”, de las “demimondenes”, de las señoritas “protegidas”, etc. Con la zarzuela y el cuplé, las
tiples, vicetiples, señoritas del coro, la galantería se “democratiza” y se pone al alcance de las clases acomodadas de todo el país” (Serge Selaün, “Política
y moral en el teatro comercial a principios del siglo XX”, Boletín de la Fundación Federico García Lorca, 19-20 (1996), p. 44).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 514


donde no puede confundirse ni mezclarse una con la otra.
El efecto de la teatralidad no se reduce a la mera decoración del espacio con luces de colores, cor-
tinajes, terciopelos, música, humo, ruido de copas y carcajadas, sino que toca lo más profundo de las
personalidades que actúan en ese marco. La prostitución implica un pacto de ficcionalización del amor,
de la belleza. Los personajes son actores y en su propio mundo les está vedada la verdad, el sentimien-
to. Por ello, son frecuentes las alusiones a los personajes como si fueran meros actores, en particular
la prostituta. La literatura ha trabajado insistentemente esta imagen de la cortesana en tanto actriz
cumpliendo un papel artificioso, codificado: maquillajes, peinados, medias de seda, zapatos de tacón,
vestidos fastuosos, perfumes, caros o baratos pero esencias que diluyan la mala sensación del tiempo
que se escapa:
Hacia las siete iban llegando las mujeres al Dancing Miramar en grupos de a dos, de a tres,
solitarias algunas. Todas irreconocibles, a leguas de distancia de su cotidianidad, convirtien-
do en promesa de colores esas carnes que querían escapar del atuendo de rasete azul, de
satén verde esmeralda, de rayón tornasolado; reluciente el cuello y las orejas con engaños
de bisutería y falsos diamantes; rojísima la boca Elizabeth Arden como un as de corazón.
Pintadas, dramáticas y travestidas, en manada ávida y coqueta de gatas no del todo mansas.
Zorras ahora sí: tomando plena conciencia de ser putas, como es torero el torero sólo en el
momento en que pisa la arena, o el sacerdote cuando ofrenda el sacrificio en el altar14.

Laura Restrepo ha tematizado así el desdoblamiento de la personalidad que lleva la iniciación en la


vida “galante”, de tal modo que el ser de la prostituta se configura en su disfraz de actriz del placer, en
la atribución de un nombre de batalla, en un aprendizaje corporal y un actuar limitado a las horas de la
función prostibularia: el baile y el comercio con el cuerpo. Cuando se cierra la función está la mujer de
cada día, ordinaria y prosaica; sin embargo, no abundan las novelas que escarben en lo profundo del alma
ni en la vida de la prostituta detrás de su actuación. El cronotopo del burdel posibilita la configuración de
una protagonista carente de heroicidad pero ambigua porque se le toca con el aura de lo extraordinario,
lo exótico, lo inaprehensible. Todas las prostitutas de novela son antiheroicas, pero todas poseen una
belleza excepcional, un alma misteriosa e insondable; son extrañas y fundamentalmente ajenas, incluso
a sí mismas: o llevan en sí el sello de la fatalidad o conservan una pureza intocada. Así es Santa y así
es Sayonara; así Nacha Regules e incluso Eréndira.
En estrecha relación con lo anterior, se puede reconocer otro rasgo que define la forma de configu-
ración de este cronotopo. Si la prostituta debe pasar por un período breve de aprendizaje y adaptación
al ambiente, que en general los narradores se detienen a recrear, parece que la mujer que se inicia en
el oficio no tuviera anclas con un territorio distinto y un mundo dejado a sus espaldas. La extrañeza del
personaje surte efecto en gran parte gracias a la preterición de la memoria. La prostitución se finca en
la negación de un nombre, de una historia familiar. Aunque ahí están las claves para comprender las
razones de una trayectoria vital, la consigna es tirar la llave que da acceso a ese pasado. Sin embargo,
el narrador siempre se ingenia un modo para entrar a chaleco en esa casa clausurada y no se le niega
al lector la explicación meticulosa y razonada de los pasos que llevaron a la cortesana a la situación en
la que ahora la encuentra: una seducción, un castigo, una escapatoria al hambre y a la falta de expec-
tativas laborales. Y estos elementos constituyen los principales hilos argumentales con los que se urden
las tramas de estas novelas.
Los argumentos generalmente se tejen alrededor del proceso de una vida enlazada por los siguien-
tes motivos: pasado negado, pero siempre traído al presente por las argucias del narrador; caída de la
muchacha e iniciación con todo el proceso de aprendizaje; momento de gloria y triunfo, donde la corte-
sana resulta la favorita, asediada por los más pudientes, principal atracción de la casa; enamoramiento
desgraciado; sucesivos tropiezos, entre los que siempre figura el intento de redención por matrimonio
o amancebamiento que acaba irremediablemente en fracaso y en vuelta al burdel; descenso a las es-
calas más bajas en burdeles de ínfima categoría; enfermedad, muerte o resurrección por redención de
la prostituta. Así, la novela del prostíbulo parece asumir a ratos la forma de las biografías, incluso la
hagiografía invertida, en la medida en que se concentra en el intento de aprehender el trayecto de una
vida, condensando, comprimiendo, dando pasos largos, elipsis, a la vez que se juega con el detenimiento
pausado en momentos significativos, como el de la gloria y el amancebamiento o matrimonio. Entonces,
paralelamente a ese intento de suspensión del fluir temporal en la noche ataviada, el tiempo parece
tener prisa por correr para alcanzar el desenlace fatídico previsible. Casi todas estas novelas acaban con
la muerte o la desaparición de la prostituta, en todo caso, la disolución del mundo del burdel por diver-
sas razones: encarcelamiento y crimen (Las muertas de Jorge Ibargüengoitia); cierre del burdel por la
presión moral del pueblo (Pantaleón y las visitadoras de Vargas Llosa o Juntacadáveres de Juan Carlos
Onetti); huida o muerte de la prostituta (Santa de Gamboa, La increíble..., de García Márquez, La novia
oscura de Laura Restrepo); regeneración moral (Nacha Regules de Manuel Gálvez).
Tal vez uno de los rasgos que más rápido salta a la vista es la diferente función composicional que
la prostituta, como personaje, ha adquirido en la novela latinoamericana, frente a la tradición europea
que ya el propio Bajtín había reconocido: “Una posición análoga a la del criado (en cuanto a funciones),
la ocupa en la novela la prostituta y la cortesana (véase, por ejemplo, Moll Flanders y Lady Roxana de

14 Laura Restrepo, op. cit., p. 154.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 515


Defoe). Su situación es también enormemente ventajosa para observar y escuchar a escondidas la vida
privada, sus secretos y sus resortes íntimos. La misma significación pero en calidad de figura secundaria,
la tiene la celestina; aparece, generalmente, en calidad de narrador”15. Pero no es ésta la función que
cumplirá la prostituta porque entró a la literatura latinoamericana destinada a ser la encarnación de un
mal moral, digna de ser estudiada. Es el conocimiento de su alma, sus motivaciones y su turbiedad la que
puede echar luz sobre el proceder humano o femenino en concreto y no viceversa. Ella no se constituye
como un punto de visión, desde donde pueda enunciarse. A ella se dirigen las luces del análisis.
La prostituta de la novela latinoamericana no posee voz propia, pues aunque el autor le conceda
ocasionalmente la palabra, ésta es una palabra objetual que no expresa una conciencia, una visión
particular de la vida y de sí misma. La voz de la prostituta no es más que la continuación del discurso
social vertido sobre ella y su imagen es sólo el resultado de las múltiples figuraciones que sobre ella se
han hecho los otros. El silencio de la prostituta revela la estrecha relación de la novela con la ideología
de su tiempo porque se le niega la voz no solamente porque sea mujer, que ya es razón suficiente para
hacerla callar, sino porque sus ojos han visto demasiado y su palabra sería el yo acuso más fuerte que
pudiera pronunciarse contra todo el hipócrita sistema burgués. Porque la prostituta sería una voz feme-
nina hablando sobre los hombres; porque sería inevitable que hablara de ascos pero también de gozos
y placeres siempre negados a la mujer.
Y a propósito de los silencios, vale también la pena consignar el casi unánime silencio alrededor de la
prostituta callejera, la prófuga de todas las formas de control institucionalizado: la estadística, el control
de sanidad, la especulación de los dueños del burdel y que, en cambio, enfrenta cotidianamente el asedio
de la policía, la enfermedad, la violencia, también parece haber escapado a los intentos de control de los
escritores pequeño burgueses que se han ocupado de las lacras sociales. A esos demarcados espacios
citadinos donde fichan las prostitutas de última categoría confundidas con los travestis, sólo parecen
haberse aventurado los escritores que buscan plasmar la imagen del homosexual travestido. Por esto la
importancia del cronotopo del burdel en la novela latinoamericana radica en otro aspecto, no tanto en
el del personaje.
La situación marginal que la zona de tolerancia ocupa en las ciudades, la invisibilidad del burdel, hallan
su correspondencia en el trabajo artístico que permite atisbar el mundo, sus rincones oscuros, desde la
frontera con lo prohibido. Es, a pesar de todo, un punto de vista sobre la sociedad de su tiempo. El mundo
del burdel que ha configurado la novela latinoamericana ha sido un punto de referencia inevitable para
todos los discursos sobre el tema; ha sido una fuente creadora de imágenes artísticas sobre la mujer y
su sexualidad, ha alimentado la imaginación popular y ha logrado erigir de la antiheroicidad que encar-
na la prostituta, acaso una de las figuras más degradadas socialmente, una imagen elevada, asociada
a lo extraordinario y lo exótico. Y acaso lo más importante, la novela del burdel abrió las puertas a la
posibilidad de nombrar lo antes innombrable, aunque fuera en nombre de la moral: la carne, el deseo,
la lujuria, la homosexualidad femenina.
El lector de la novela burdelera en América Latina tuvo la posibilidad de asistir vouyerista al mundo
negado del pecado; pudo atisbar el devenir de una vida marcada también por lo extraordinario y asistió,
desde la tranquilidad de su hogar burgués, al descenso y castigo del cuerpo transgresor. La novela del
burdel ha sido la innegable comprobación de que al fin habíamos llegado al mundo de la ansiada moder-
nidad y podíamos huir del tedio provinciano.
Por último, quiero insistir en la productividad del cronotopo del burdel que ha permitido la creación de
novelas contemporáneas que no sólo construyen un punto de vista crítico sobre el mundo desde el interior
de la vida transgresora y festiva del prostíbulo, sino que también recuperan la tradición literaria, polemi-
zan con ella y la parodian. Así lo hace Matilda, personaje de Nadie me verá llorar, cuando trabaja como
prostituta y lee Santa en compañía de su amante, La Diamantina, y no pueden aguantar las carcajadas
ante el titubeo de Gamboa para hablar de la pasión de la Gaditana por Santa; las dos lectoras terminan
por hacer el amor sobre las páginas del libro y se oye la siguiente exclamación llena de conmiseración:
“¡Ay, pobre embajador Gamboa, tan cosmopolita y tan falto de imaginación”16.

15 Mijaíl Bajtín, “Las formas del tiempo y del cronotopo en la novela” en Teoría y estética de la novela, trad. Helena S. Kriúkova y Vicente Cazcarra, Taurus,
Madrid, 1989, p. 278.
16 Cristina Rivera Garza, Nadie me verá llorar, Tusquets, México, 2003, p. 143.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 516


Um olhar sobre os gêneros do discurso em livro(s) didático(s)
para o ensino médio

Luzinete Carpin Niedzieluk

PG-Universidade Federal de Santa Catarina

Rua Reinaldo Consoni, 550

Florianópolis - SC

CEP: 88037-100

RESUMO I
Esta pesquisa apresenta uma análise de reconhecimento de gêneros textuais/discursivos em um livro
didático para o Ensino Médio. Como referencial teórico adotamos a teoria bakhtiniana e os pressupostos
difundidos nos PCNs.
RESUMO II
This research develops an analysis of some text/discourse genres as they appear in a high school
guidebook is presented, according to a theoretical framework based on Bakhtin´s theory and National
Curriculum Parameters in Brazil (NCPs).
0. Introdução
Esta pesquisa apresenta uma análise de reconhecimento de gêneros textuais/discursivos1 em
seus aspectos formais e sócio-comunicativos em um livro didático do aluno denominado Português para
o Ensino Médio. Língua, Literatura e Produção de Textos – Série Parâmetros da Ed. Scipione dos seguin-
tes autores: Nicola, Floriana, Ernani, sendo um lançamento de 2002, tendo 605 páginas e apresenta-se
subdividido em quatro unidades.
Adotaremos a teoria bakhtiniana para abordar concepções como as de gênero, língua e socie-
dade, enunciado e texto/discurso para explicitarmos seus funcionamentos como prática sócio-histórica
na e pela linguagem, pois para Bakhtin (1997) a comunicação verbal só é possível por algum gênero
textual/discursivo.
Também observaremos se o livro didático está em consonância com o que propõem as políticas lin-
güísticas em os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino de língua portuguesa, especifi-
camente, os gêneros discursivos no segundo grau.
1. A linguagem e sua natureza sócio-ideológica.
No livro Marxismo e filosofia da linguagem2 (1999), Bakhtin busca a origem e o desenvolvimento da
linguagem no campo das relações sociais distanciando-se das teorias da informação e da perspectiva
do objetivismo abstrato vigentes na época. O autor considera a comunicação como uma inter-relação
produtiva e semiótica, ou seja, como interação.
Desta forma, a linguagem passa a ser entendida como a forma materializada da comunicação social,
sendo a sua existência consistida como signo, refletindo nos seus elementos a organização econômica
e sócio-política da sociedade que a gerou. Os signos se realizam no processo das relações sociais, de-
terminados e marcados pela organização social dos indivíduos e pelas condições de produção em que a
interação acontece (realidade), porém eles também refletem e refratam uma outra realidade que lhe é
exterior (a ideologia). Para Bakhtin tudo o que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia.
E, tudo que é ideológico possui um valor semiótico (1999, p. 31-2).
Sendo assim, todo signo ideológico tem uma encarnação material (som, massa física, cor) e é um
fenômeno do mundo exterior, portanto a linguagem exerce um papel enorme na vida social e na cons-

1 Optamos pela opção gêneros textuais/discursivos na contramão de muitos estudiosos da linguagem, apesar de termos bem clara a problemática quando
se fala em texto, pois se tem várias concepções de texto e inúmeras tipologias.
2 Embora a autoria deste livro seja creditada também a Volochinov, no corpo do texto optamos por citar apenas Bakhtin.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 517


ciência de cada homem. Para o autor, a própria consciência só adquire forma e existência em signos
produzidos por indivíduos no curso de suas relações sociais. Isso vai de encontro a filosofia idealista e a
visão psicologista da cultura, que reduziam os fenômenos ideológicos à consciência e ao psiquismo.
Bakhtin (1999) ao analisar a língua e a palavra como signos sócio-ideológicos, critica as duas orien-
tações vigentes na época que chamam de “subjetivismo idealista” e o “objetivismo abstrato”. Essas
orientações apontam para direções teóricas distintas: de um lado, as teses do subjetivismo idealista
enfatizando a fala e, de outro, as antíteses do objetivismo abstrato priorizando a língua. Ambas des-
consideram o caráter dialógico da linguagem (linguagem como forma de interação) e a sua natureza
sócio-histórica e ideológica.
2. O enunciado
No texto El problema de los géneros discursivos (1952-3), Bakhtin parte do pressuposto de que o uso
da língua é concretizado em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e singulares da comunicação
discursiva/verbal. Nesse sentido, o enunciado é uma unidade concreta e real da comunicação discursiva,
dado que o discurso só pode existir na forma de enunciados concretos e singulares pertencentes aos
sujeitos discursivos de uma ou outra esfera da atividade e comunicação humanas.
Sendo assim, o enunciado não pode ser repetido, mas sim citado, porque ele ao ser proferido consti-
tui-se em um novo acontecimento, em novo evento sendo “uma postura ativa do falante dentro de uma
ou outra esfera de objetos e sentidos.”3
Por outro lado, o enunciado representa um elo na cadeia complexa e contínua da comunicação dis-
cursiva. Todo enunciado já é resposta a outros enunciados, é um elo da cadeia dos atos de fala, portan-
to não pode ser nem o primeiro nem o último e, em seu horizonte estão os enunciados que o seguem
porque o discurso é dialógico, portanto dirigido ao outro participante da interação verbal, e conta com
a compreensão ativa do ouvinte/participante.
Há um vínculo entre o enunciado e a situação social, ou seja, a situação constitui-se como uma parte
do enunciado, indispensável para a compreensão do seu sentido, tanto enunciado quanto o discurso
podem ser interpretados como acontecimentos sociais de natureza dialógica.
2.1. O enunciado e suas características específicas
O enunciado como um todo de sentido não se limita apenas a sua dimensão lingüística (materializa-
da), para além desta, fazem parte do enunciado, como elementos necessários a sua constituição e a sua
compreensão total (do seu sentido), outros aspectos constitutivos do enunciado, que se pode denominar
como a sua dimensão extraverbal, ou a sua dimensão social constitutiva. Aquilo que não é expressado
lingüisticamente mas “subentendido.”
Em Marxismo e filosofia da linguagem (1999, p. 125-6), Bakhtin refere-se à dimensão extraver-
bal, em seu princípio objetivo e material dizendo que esta é composta pela situação e pelo auditório do
enunciado4. Esta situação que organiza um enunciado leva em conta os seus participantes, possui um
“auditório organizado”, isto é, o auditório do enunciado. A cada constituição do enunciado é-lhe dado
um valor. Essa concepção de valor veicula uma significação objetiva e social, correspondente aos valores
ideológicos de um determinado grupo social em um determinado tempo sendo um índice intersubjetivo
de valor sócio-ideológico.
Na verdade, o horizonte extraverbal do enunciado, formado pela situação junto com seu auditório5,
por um processo de abstração, pode ser decomposto em três elementos constitutivos que aparecem no
texto La construcción de la enunciación (p.260) e que são: a) horizonte espacial e temporal que corres-
ponde ao onde e quando do enunciado; b) horizonte temático que corresponde ao objeto, ao conteúdo
temático do enunciado (aquilo de que se fala); c) horizonte axiológico que é a atitude valorativa dos
participantes do acontecimento (próximos, distantes) a respeito do que ocorre (em relação ao objeto do
enunciado, em relação aos outros enunciados, em relação aos interlocutores).
Quanto às características específicas do enunciado no que se refere a sua extensão, conteúdo,
composição, em função das diferenças sócio-ideológicas das variadas esferas da comunicação social,
todos os enunciados têm propriedades composicionais comuns e fronteiras bem definidas. Essas proprie-
dades são apresentadas também no texto La construcción de la enunciación (p. 247), juntamente com
as fronteiras formam características constitutivas específicas do enunciado que lhes asseguram o lugar
de unidade real da comunicação discursiva contínua. Essas características são:
a) a alternância dos sujeitos discursivos;
b) a sua expressividade;
c) a sua conclusividade.
2.1.1. A alternância dos sujeitos discursivos
Todo enunciado é uma unidade singular da comunicação discursiva, possui um início e um fim
absolutos, que o delimitam de outros enunciados, os anteriores e os enunciados resposta. E as fronteiras
3 Tradução nossa. Ver: El problema de los géneros discursivos, p. 274
4 Também no texto La construcción de la enunciación Bakhtin/Voloschinov chamam “Auditório de la enunciación a la presencia de los participantes de la
situación” (p.247).
5 Ver La construcción de la enunciación, p.247-8

Proceedings XI International Bakhtin Conference 518


de cada enunciado se delimitam pela alternância/troca dos sujeitos discursivos. Essa constitui-se pelo
fato de que o falante conclui o que objetivava dizer, terminando seu enunciado, e , assim pede a palavra
ao outro, o interlocutor, para dar lugar a sua compreensão ativa, a sua reposta.
2.1.2. A expressividade do enunciado
O segundo aspecto do enunciado que determina sua composição e estilo é o momento expressivo,
isto é, uma atitude valorativa do falante e de outros participantes.
Tanto o estilo quanto a composição dos enunciados se definem “pelo compromisso (ou intenção)
que adota um sujeito discursivo (ou autor) dentro de certa esfera de sentidos”6e pela atitude emotiva-
valorativa do falante frente ao objeto de seu discurso e frente aos outros participantes da comunicação
discursiva e seus enunciados (já-ditos).
Segundo Bakhtin, o aspecto expressivo do enunciado é uma característica própria sua que não
pode ser considerada como uma propriedade da língua (sistema abstrato). A língua possui vários recursos
lingüísticos (léxico, morfológicos e sintáticos) para manifestar a atitude emotivo-valorativa, mas, sendo
recursos apenas, são neutros no que se refere ao acento de valor.
Tanto o aspecto emotivo-valorativo quanto a expressividade não são considerados próprios da
palavra, da oração; se manifestam apenas em enunciados concretos. Ambos se expressam na seleção
dos recursos lingüísticos (estilo), na seleção dos procedimentos composicionais (composição) e na en-
tonação do enunciado, por exemplo, em uma oração como: Que tristeza!
Convém ressaltar que os gêneros incluem na sua constituição, uma expressividade própria, típica
da sua relação com determinadas situações sociais e que o processo de construção do enunciado por
si só, já é expressivo, porque ao construir o discurso, a totalidade do enunciado já antecede o falante,
tanto na forma de uma intenção discursiva individual como na forma de um plano genérico (de gênero)
determinado.
2.1.3. A conclusividade do enunciado
Bakhtin (1985), especificamente, no texto El problema de los gêneros discursivos diz que o caráter
de conclusividade/acabamento do enunciado representa a manifestação da alternância dos sujeitos dis-
cursivos vista do interior do enunciado. Essa alternância dos sujeitos discursivos constitui-se pelo fato
de que o falante/ou autor em um determinado momento disse ou escreveu tudo aquilo que queria dizer.
O interlocutor ao ouvir e ou ler o enunciado, percebe o dixi conclusivo do falante e pode tomar uma
postura de resposta contestando ou não, cumprindo determinada ordem ou simplesmente respondendo
verbalmente.
O caráter próprio do enunciado de se constituir em uma totalidade discursiva conclusa que lhe
assegura a possibilidade de resposta se determina por três momentos que se relacionam entre si na
totalidade orgânica do enunciado. São eles:
1. O esgotamento de sentido do objeto do enunciado7;
2. A intencionalidade discursiva do falante;
3. As formas típicas, genéricas e composicionais/estruturais, de conclusão do enunciado.
O primeiro momento que assegura o caráter de um todo concluso de sentido é o do esgotamento do
sentido do objeto. Na verdade, o objeto é inesgotável, mas quando se converte em tema do enunciado
como, por exemplo, um ensaio ou uma tese, adquire um caráter relativamente concluído em determi-
nadas condições e enfoque do problema, em um material dado e nos propósitos que busca alcançar o
autor, isto é, nos limites de sua intenção.
O segundo fator diz respeito à intenção/vontade discursiva do falante e é relacionado com o
primeiro. Em cada enunciado, desde uma reposta cotidiana (pode ser apenas uma palavra) até em enun-
ciados mais extensos, como obras científicas ou literárias, abarcamos, sentimos a vontade discursiva do
falante que representa o momento subjetivo do enunciado, mede-se o caráter de sua conclusividade.
A vontade discursiva determina também a seleção do gênero discursivo no qual se construirá o
enunciado, sendo este o terceiro momento do enunciado e o mais importante para Bakhtin. Segundo
o autor, a seleção do gênero discursivo se define pela especificidade de uma esfera discursiva, pelas
considerações do sentido do objeto ou temáticas, pela situação concreta da comunicação discursiva e
pelos seus participantes.
3. A concepção de gênero discursivo
Segundo Bakhtin (1985), o discurso só pode existir na forma de enunciados concretos e singulares,
que por sua vez, são construídos em um determinado gênero do discurso. Estes gêneros são conside-
rados pelo autor como tipos relativamente estáveis e normativos de enunciados que se constituíram
historicamente nas diferentes interações sócio-discursivas, também relativamente estáveis. Convém
ressaltar que o conceito de tipo corresponde a uma forma concreta e histórica e não a uma concepção
de caráter teórico abstrato.

6 Tradução nossa. Ver: BAKHTIN, Mikail. Estética de la creación verbal. 2. ed. México: Siglo Veintiuno, 1985, p. 274
7 Pelo fato de estar seguindo a tradução mexicana, optamos pelo termo esgotamento = “agotamiento del sentido” p. 266, entretanto a opção brasileira da
tradução é “tratamento exaustivo”.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 519


Para o autor, nos expressamos mediante determinados gêneros discursivos, isto é, todos nossos
enunciados possuem formas típicas, relativamente estáveis, para estruturação da totalidade discursiva.
“Na prática os utilizamos com segurança e destreza, mas teoricamente podemos não saber nada de sua
existência.”8
Nesse sentido, para além das formas da língua (léxico, gramática), são necessárias, para a intera-
ção verbal, as formas do discurso, ou seja, os gêneros, que são manuais de organizar a informação
em determinada composição e estilo. Ambas (formas da língua e do discurso) são necessárias para
a intercompreensão, entretanto, os gêneros são mais flexíveis e combináveis, mais sensíveis e ágeis
às mudanças da comunicação social do que as formas da língua. Tanto as formas da língua quanto as
formas do discurso se adquirem conjuntamente porque aprender a falar significa aprender a construir
enunciados e construí-los em determinada forma genérica (gênero).
3.1. Aspectos constitutivos dos gêneros
Bakhtin aponta três aspectos constitutivos dos gêneros que são: o conteúdo ou seleção dos temas;
o estilo verbal ou a escolha dos recursos lingüísticos (seleção dos recursos fraseológicos, léxicos e gra-
maticais da língua); e a construção composicional (seleção dos procedimentos composicionais para a
organização, disposição e acabamento da totalidade discursiva e para levar em conta os participantes
da comunicação discursiva).
3.2. Distinção bakhtiniana: gêneros primários e gêneros secundários
Como já vimos, gêneros correspondem a situações de interação verbal típicas (mais ou menos esta-
bilizadas e normativas) da comunicação social e, como tal, apresentam, na sua constituição a finalidade
e as condições da esfera ao qual pertencem.
Para Bakhtin “Em qualquer esfera existem e se aplicam os seus próprios gêneros, que respondem a
condições específicas de uma esfera dada; aos gêneros lhes correspondem diferentes estilos”9 (1985,
p. 252).
Nesse sentido são as funções e as condições determinadas e específicas para cada esfera da
comunicação discursiva que geram determinados gêneros, com isso temos uma variedade grande de
gêneros porque as possibilidades da atividade humana são inesgotáveis e cada esfera tem um reper-
tório próprio de gêneros pré estabelecidos que se diferenciam à medida que esta esfera se desenvolve.
Vejamos alguns exemplos:
a) na esfera do trabalho: a ordem, padronizada e normativa;
b) na esfera íntima: o diálogo, marcado pela relação assimétrica entre os interlocutores;
c) na esfera literária: o romance, em que um estilo individual faz parte do seu objetivo;
d) na esfera jornalística: a carta do leitor, curta, orientada para a editoria e os leitores.10
Após observarmos estas formas de gênero, temos a dizer que Bakhtin não formaliza tipologias
classificatórias, porém faz uma distinção entre duas classes de gêneros: gêneros primários (simples) e
gêneros secundários (complexos). Esta discussão aparece no texto “El problema de los géneros discur-
sivos (1985)”.
Convém ressaltar que segundo o autor, esta diferenciação não é de ordem funcional mas sim está
assentada em um princípio sócio-histórico.
Os gêneros primários (conversação oral cotidiana, cartas, diários íntimos, relatos cotidianos etc.) são
constituídos em circunstâncias de comunicação discursiva espontânea.
Os gêneros secundários (romances, editoriais, discurso científico) aparecem nas condições da comuni-
cação cultural mais “complexa”, relativamente mais desenvolvida, principalmente escrita: na comunicação
artística, científica, sócio-política etc.
4. Os Parâmetros Curriculares Nacionais e os gêneros textuais/discursivos
Os Parâmetros Curriculares Nacionais doravante (PCNs) foram elaborados objetivando apresentar
uma referência curricular nacional para o ensino fundamental e médio, buscando a reflexão que se faz
necessária face as transformações sociais, que exigem da escola a formação de cidadãos para o mundo
contemporâneo. Neste sentido, o debate se impõe, envolvendo a instituição escola, os pais, o governo e
a sociedade. Convém ressaltar que estamos trabalhando com os PCNs para o Ensino Médio.
Organizados em áreas de conhecimento, em conformidade com a Lei Diretrizes e Bases da Educação
n. 9394/96, os PCNs procuram evidenciar a dimensão social da aprendizagem, na construção da cida-
dania.
A área de conhecimento a ser estudada no presente trabalho é a de Língua Portuguesa, especi-
ficamente, os gêneros textuais/discursivos. Entretanto, antes de adentrarmos ao assunto propriamente
dito, devemos apresentar alguns aspectos importantes para o estudo, como a concepção de ensino-
aprendizagem e a concepção de língua e linguagem que fundamentam a organização desse assunto nos
PCNs.
8 Tradução nossa. Estética de la creación verbal , 1985, p. 267
9 Tradução nossa.
10 Exemplos retirados de Rodrigues, 2001, p. 50

Proceedings XI International Bakhtin Conference 520


Ao definir a concepção de língua, os PCNs trazem a de comunicação entrelaçada a ela.
“Comunicação aqui entendida como um processo de construção de significados em que o
sujeito interage socialmente, usando a língua como instrumento que o define como pessoa
entre pessoas. A língua compreendida como linguagem que constrói e ‘descontrói’ significa-
dos sociais. A língua situada no emaranhado das relações humanas, nas quais o aluno está
presente e mergulhado. (...) Sendo ela dialógica por princípio, não há como separá-la de
sua própria natureza, mesmo em situação escolar.” (p. 17).

Como concepção de linguagem temos


“a linguagem é considerada aqui como a capacidade humana de articular significados coleti-
vos e compartilhá-los, em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com
as necessidades e experiências da vida em sociedade. A principal razão de qualquer ato de
linguagem é a produção de sentido” e “não há linguagem no vazio, seu grande objetivo é a
interação, a comunicação com um outro, dentro de um espaço social...”(p.5).

Sob este ponto de vista, é através da linguagem que podemos significar o mundo e a sociedade porque
ela é um sistema de signos histórico e social. Os PCNs adotam os postulados de Bakhtin ao referir-se a
linguagem, pois para ele, o espaço de produção de sentidos nas práticas sociais é simultâneo é “a arena
de luta daqueles que procuram conservar ou transgredir os sentidos acumulados são as trocas lingüís-
ticas, relações de força entre interlocutores” (PCNs p. 6). Com isso, observa-se que o caráter dialógico
das linguagens oferece uma visão além do ato comunicativo superficial e imediato.
No processo ensino-aprendizagem os PCNs propõem ao longo do Ensino Médio que sejam de-
senvolvidas algumas competências, sem as quais os alunos desse nível de ensino teriam dificuldades
para prosseguir seus estudos. Não as citaremos por questões de espaço adentraremos na análise do
livro didático.
5. Resultados da análise
Apresentaremos uma sumarização do que a análise nos proporcionou.
Com relação a primeira unidade: Linguagem e Linguagens
• A escolha dos textos a serem trabalhados pelos alunos abarca vários gêneros textuais/discursivos
como, por exemplo, legenda, reportagem, poema, slogan, quadrinhos, verbetes, obras de arte (pintura),
e outros mais, porém estes textos/discursos são usados apenas como suporte para atividades de análise
lingüística e não para se trabalhar do ponto de vista do gênero;
• O texto “Decifrando a escrita da vida” de Moacyr Scliar faz uma analogia entre o científico, o mítico
e o ficcional, seu autor é médico e escritor, a partir dessas informações, o professor poderia trabalhar o
discurso científico e literário, mostrando no próprio texto esta intercalação, no entanto, nesse texto são
trabalhadas apenas questões de análise lingüística;
• O fragmento do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis relata o clí-
max amoroso de Brás Cubas e Virgília em forma de diálogo, novamente há intercalação de um gênero
em outro e isso não é mostrado aos alunos, pelo contrário, são trabalhadas questões de pontuação no
texto;
• Para os autores, “a linguagem verbal” tem como base o signo lingüístico e num primeiro momento
se aprende a decodificá-lo e a seguir “vamos nos familiarizando com diferentes modos de organização
desse código em unidades de sentido mais complexos: frases, períodos, parágrafos, textos, diversos
tipos de textos, sua coesão e coerência, etc.” (p.22) Parece que tanto a linguagem como os gêneros
textuais/discursivos são compreendidos pelos autores como seqüências textuais, isto é, linguagem como
instrumento de comunicação e não como interação, como entidade sócio-histórica, conforme proposta
por Bakhtin;
• Os autores se utilizam dos gêneros poemas e quadrinhos objetivando mostrar a diferença da
linguagem verbal e visual, entretanto como exercício solicitam a escritura de um novo gênero textual/
discursivo que sequer foi mostrado: a reportagem;
• Outros gêneros como notícia, cartas ao leitor, carta argumentativa e debate são usados como
suporte para os alunos compreenderem as funções da linguagem;
• Na intertextualidade há como exemplos um texto crítico (artigo de opinião) e um texto histórico
(ensaio didático) e estes dois gêneros não são enfatizados, as questões referentes a eles são de inter-
pretação e de comparação entre ambos, outras são sobre tempos verbais;
• Os autores adotam a concepção de discurso de Fiorin (1996), para eles o encontro do que se
quer dizer (plano do conteúdo) com o como dizer (plano da expressão) constitui o discurso, no entanto,
o livro didático diz estar de acordo com os PCNs e a concepção proposta pelos parâmetros é outra, é a
proposta por Bakhtin;
• Os gêneros cartas comerciais, textos históricos/científicos, artigos da constituição e textos in-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 521


formativos aparecem no subitem “Níveis da linguagem e os diversos tipos de texto” para mostrar que
todos privilegiam a norma culta.
• Na parte de produção textual, os exercícios, normalmente, são tirados de vestibulares.

Com relação a segunda unidade: A linguagem verbal: suas estruturas e recursos expressi-
vos
• Esta unidade trata de aspectos gramaticais, novamente os gêneros poema, poema-letrado, tira,
texto jornalístico (notícia), verbetes, manuais de instrução etc., são usados como suporte para classifi-
cação de palavras, análise sintática, agramaticalidades;
• No item Os mecanismos de combinação e seleção, é mostrado o caráter pragmático da lin-
guagem (extra-verbal) levando em consideração o enunciador, o interlocutor, o tempo e lugar. A partir
destes elementos, o professor deve preencher a lacuna existente e ir para além do caráter pragmático
mostrando a ideologia do signo lingüístico e aspectos referentes ao gênero textual/discursivo conforme
a teoria bakhtiniana. No caso da notícia, o professor deveria levar em conta os elementos de produção
que são: - Em que jornal a notícia será publicada? – Qual o tipo de leitor suposto? – Qual o objetivo
maior desse jornal? – Qual o posicionamento ideológico mais geral desse jornal? – É possível relatar
fatos de forma totalmente neutra? – Quais fatos viram notícia e por quê? Por que o lead adquiriu essa
forma padronizada?
• No item A hierarquia das palavras temos o texto “Adolescência” de Marta Suplicy e o enun-
ciado do primeiro exercício referente a este texto é o seguinte: “1. A área que se insere esse texto é a
da transmissão de saberes; seu gênero, o expositivo,11 o que determina o tipo de linguagem utilizado
pela autora. Em vista disso, responda: qual a função da linguagem predominante no texto?” (p. 151)
Com isso, fica claro que os autores do livro didático estão entendendo por gêneros, “tipos de discurso”,
ou seja, seqüências textuais como descrição, narração, dissertação, exposição porque dizem que esse
texto é do gênero expositivo. Na verdade, os autores estão influenciados pela Escola de Genebra (Dolz,
Schneuwly, Bronckart, 1996) que propõem para os gêneros agrupamentos do narrar, do relatar, do expor,
do argumentar e do descrever;
• O item A frase traz o texto “VII”, poema de Manoel de Barros e o enunciado da primeira questão
é : “1. Considerando os três gêneros básicos da composição de texto – descrição, narração, dissertação
-, como você classifica o poema?” (p.183) Mais uma vez percebemos que os autores estão tratando
como gêneros textuais/discursivos os tipos básicos da composição de texto: descrição, narração, disser-
tação;
• Demais unidades tratam nos exercícios de questões de análise lingüística, sem abordar a lingua-
gem como discurso.
• A coesão textual é tratada nesta unidade e há pouca solicitação de produção textual nela.

Com relação a terceira unidade: Literatura: a arte da palavra


• Esta unidade retrata a história da literatura e seus pressupostos teóricos. É preciso esclarecer
que os gêneros textuais/discursivos, segundo Bakhtin, são tipos sócio-históricos, e os gêneros literários
no livro didático seguem a seguinte classificação: gênero lírico – poemas; gênero dramático – tragédia,
comédia, tragicomédia e farsa; gênero épico – epopéia (narrativa em forma de versos) e gênero narrativo
– romance, novela, conto, crônica, fábula (esta se é com personagens inanimados é chamada de apólogo).
Na verdade, estes gêneros não deixam de ser tipos sócio-históricos, mas são trabalhados no campo da
literatura, do ponto de vista dos seus conceitos internos. São analisados nestes textos/discursos, seus
aspectos formais, figuras de linguagem, tipos de narrador, eu-lírico, rima, escansão e outros mais;
• Nas questões propostas, em uma grande parte dos conteúdos de literatura são trabalhadas
também questões de análise lingüística como, por exemplo, análise sintática (p.340, 420, 462,494),
classe de palavras (p. 324, 373, 345, 483), pontuação (p. 348, 412 ). Vejamos alguns exercícios sobre
Os Lusíadas – Episódio do Velho Restelo (estrofes 89-93 do Canto IV) de Luís de Camões (p. 340):

11 Grifo nosso.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 522


Os PCNs, como já dito, postulam que o estudo dos textos literários devem recuperar as condições
de produção/interpretação dos enunciados; espaço/temporal determinados pelos contextos de usos da
língua e não apenas ficar no estudo dos aspectos formais.

Com relação a quarta unidade: Os gêneros textuais


• Os conteúdos trabalhados são: O texto e sua coerência, Persuasão e argumentação, As várias
vozes presentes nos textos, A narração e seus elementos básicos, A descrição, A dissertação, A corres-
pondência e suas linguagens. Os gêneros são apenas suporte para o trabalho com esses conteúdos.
• Os tipos de composição de texto – descrição, narração e dissertação são mostrados a partir de
seus aspectos estruturais e as propostas de atividades sobre eles exploram tanto questões lingüísticas
(classificação de palavras, análise sintática) quanto questões do campo da literatura (aspectos formais
dos textos, figuras de linguagem, tipos de discurso);
• O livro didático mostra vários gêneros textuais/discursivos distribuídos em todas as suas uni-
dades (notícia, fragmento de uma peça teatral, tira, ensaio crítico, obras de arte, anúncio, entrevista,
reportagem, conto, gráficos, mala direta da telefônica, artigo de opinião, música, carta argumentativa,
bilhete, requerimento, e-mail, telegrama), porém não os trabalha do ponto de vista do gênero seguin-
do os postulados de Bakhtin em que gêneros são entendidos como tipos sócio-históricos. Vejamos um
exemplo de como o gênero textual/discursivo carta é trabalhado e, em seguida, um exemplo de produção
textual.

(p. 599)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 523


(p. 551)

Com relação aos PCNs do Ensino Médio e o livro didático:


• A concepção de língua e linguagem dos PCNs é a proposta por Bakhtin “a linguagem é considerada
aqui como a capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-los, em sistemas arbitrá-
rios de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade.
A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido” e “não há linguagem no vazio,
seu grande objetivo é a interação, a comunicação com um outro, dentro de um espaço social...”(p.5),
enquanto que, no livro didático a concepção de linguagem é voltada para semiótica greimasiana, via
Fiorin (1996);
• Quanto a concepção de gêneros textuais/discursivos e a seleção de gêneros como objeto de en-
sino-aprendizagem, não aparecem com clareza nos PCNs do Ensino Médio, pressupõe-se que o professor
deva ter lido os PCNs do Ensino Fundamental onde eles estão melhor explicitados;
• Os PCNs do Ensino Médio criticam os livros didáticos, em geral, por apresentarem a divisão ou
a compartimentalização língua, literatura e produção textual. Entretanto, o livro didático, em questão,
diz estar de acordo com os parâmetros e permanece dividindo os conteúdos e explorando-os do ponto
de vista estrutural e não do ponto de vista discursivo apresentando-se como um “horizonte de expecta-
tivas”. Seu próprio título mostra isso: Português para o Ensino Médio: Língua, Literatura e Produção de
Textos.
Referências
BAKHTIN, Mikhail M. Estética de la creación verbal. Trad. Tatiana Bubnova. 2. ed. México: Siglo Veintiuno, 1985
_____ . Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999
BRASIL SEF. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa.
Brasília: MEC/SEF, 1998
_____. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Disponível em: www.mec.gov.br Acesso em: 13 ago.
2002.
DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita. Elementos para reflexões
sobre uma experiência suíça. Trad. Roxane Rojo (mimeo), 1996
NIEDZIELUK, Luzinete Carpin. Formas para trabalhar com os gêneros notícia e entrevista em sala de aula. In: 5º
Encontro do Celsul, 2002 CD Room no prelo.
RODRIGUES, Rosângela Hammes. A constituição e o funcionamento do gênero jornalístico artigo: cronotopo e dia-
logismo. 2001. 347f. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem) Programa de Estudos Pós-
Graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo.
TERRA, Ernani & NICOLA, José de & CAVALETTE, Floriana Toscano. Português para o ensino médio: língua, literatura
e produção de textos: volume único. São Paulo: Scipione, 2002

Proceedings XI International Bakhtin Conference 524


TEXTOS CHAVE: Marxismo e filosofia da linguagem; Estética de la creación
verbal; PCNs.
NOMES CHAVE: Mikhail Bakhtin; José de Nicola; Ernani Terra.
PALAVRAS CHAVE: Gêneros do discurso; PCNs; enunciado; linguagem.
BIOGRAFIA: Luzinete Carpin Niedzieluk. Nasceu em Curitiba. Transferiu-se
para Florianópolis, em 1983. Estudou na UFSC (licenciada em Língua Portuguesa e
Literaturas de Língua Portuguesa) e na UDESC (Licenciada em Artes Plásticas). É
mestre em Lingüística Aplicada e professora de língua portuguesa, produção textual
e filologia na Faculdade Barddal de Letras. Atuou também como professora na UFSC
e no Colégio Adventista de Florianópolis, neste, em 2001, criou o Atelier de Leitura
e Produção Textual/Discursiva. Tem poemas e ensaios publicados em antologias e
em anais de congresso. É membro da Associação dos Cronistas, Poetas e Contistas
Catarinenses (ACPCC). Autora de Labirintos (poesia). Atualmente é doutoranda em
Lingüística Aplicada na UFSC.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 525


Dialogismo e pedagogia: um encontro com Bakhtin1

Maria Bernadete Fernandes de Oliveira

UFRN

1.INTRODUÇÃO
Na contemporaneidade, as Teorias Pedagógicas Críticas e Radicais vem ganhando espaço e despontando
como âncora para várias pesquisas e propostas que se realizam no campo pedagógico, principalmente,
em função daquilo que propõem como princípio básico ao fazer pedagógico, qual seja, o “modo dialógico
de operar”, respaldado, em sua grande maioria, nas formulações dos pensadores Jürgen Habermas e
Paulo Freire.
A discussão sobre o diálogo como modo de ação, no entanto, já estava colocada, no campo das
ciências da linguagem, desde os anos 20 do século passado, sendo temática privilegiada na produção
intelectual de M.Bakhtin e dos autores do seu círculo, embora, sua divulgação, tanto no Brasil como no
exterior, tenha se dado tardiamente, mais propriamente, a partir dos anos 70 e, quase que exclusiva-
mente cingindo-se aqueles que investigam a linguagem verbal e a área de literatura.
Nesse trabalho, a tese que defendemos é que o “modo dialógico de operar”, como procedimento
metodológico a ser adotado em uma proposta pedagógica emancipatória, não pode ser pensado inde-
pendentemente do funcionamento dialógico da linguagem verbal e, neste sentido, é que entendemos ser
relevante discutir o conceito de diálogo em M.Bakhtin, confrontando sentidos com aqueles presentes
nos trabalhos de Paulo Freire e de Habermas.
Inicialmente se faz necessário esclarecer que não desconhecemos as distâncias espaciais e temporais
entre esses três pensadores, de tal forma que, enquanto Habermas e Paulo Freire nasciam, Bakhtin já
produzia, juntamente com autores de seu círculo, suas primeiras obras. O que teriam em comum, pois,
estes três personagens, formuladores de discursos fundantes e estruturantes do século que findou e
daquele que se inicia?Autores, como dissemos, distanciados espacial e temporariamente, que se dedica-
ram a compreender e fazer propostas para a sociedade que viviam(Freire e Bakhtin)/ vive ( Habermas)
e, para além dela, a partir de discordâncias, de um lado, com às leituras reducionistas do marxismo,
principalmente no tratamento dado ao universo no qual circulam os signos, o mundo dos valores, das
idéias, da cultura em geral e, de outro, com os desdobramentos do processo de “desencantamento
do mundo”, inspirado nos ideais do iluminismo.
Em comum, portanto, o fato de que visam, todos eles, superar o paradigma da “disjunção” (Morin,
1986), materializado no pensamento dicotômico e no primado da objetividade, buscando abrir espaço
para novas abordagens, resgatando a natureza social, histórica e cultural do ser humano. E, esta a razão
porque estes autores vêm povoando o imaginário coletivo de uma certa fração de pesquisadores/inte-
lectuais que trabalham no campo das ciências humanas e sociais.
2. A CONCEPÇÃO DE DIÁLOGO EM BAKHTIN
Bakhtin, um pensador europeu, da primeira metade do século passado, filiado a uma vertente não-
cartesiana do pensamento filosófico, aventura-se pelo mundo da cultura, o mundo no qual circulam
valores, conferindo, neste percurso, estatuto privilegiado, a linguagem verbal, materialidade específica
daquele mundo, no qual se produzem, se trocam e se fazem circular signos, plenos de valores e de sig-
nificações. Uma das características essenciais do pensamento bakhtiniano, no dizer de Ponzio (1998),
é o de apresentar sempre “outras palavras” face àquelas hegemônicas em seu tempo histórico, outras
palavras que se encontram visceralmente relacionadas ao seu dialogismo, concebido como inseparável
dos mundos da vida, da cultura e da necessária alteridade.
O diálogo permeia todos os trabalhos de Bakhtin. Diálogo que se opõe ao monólogo, em vários sentidos.
Um dos sentidos do monólogo, ao qual o dialogismo bakhtiniano vai se opor é aquele que conhece ape-
nas uma modalidade de interação cognitiva entre as consciências, aquela na qual o sujeito cognoscente
domina a verdade e institui-se como mestre daquele que não é cognoscente, estabelecendo-se desta

1 Trabalho apresentado na XI Conferência Internacional sobre Bakhtin. Curtiba/2003

Proceedings XI International Bakhtin Conference 526


forma um relação sistematicamente assimétrica entre o mestre e o discípulo, em relações pedagógicas,
configuradas como relações de dominação. Uma forma de pensamento, tendente ao dogmatismo, que
nega aos sujeitos o direito de dizer, reificando-os e, que se fortaleceu pelo culto da razão única e una, pela
busca da verdade universal, penetrando em todos os campos da vida ideológica (Bakhtin, 1997).
Esta a concepção de monólogo que Bakhtin vai combater tenazmente, encontrando no discurso da
arte, no romance, a expressão literária por excelência do Estado Moderno Europeu, o locus privilegiado
para identificar momentos de ruptura com esse pensamento monológico.Em especial, aqui, nos referi-
mos ao tipo de dialogismo que ele encontrou nos escritos de Dostoievsky e naqueles de Rabelais. Em
Dostoievski, encontrou um discurso portador de uma característica especial, isto é, de uma natureza
polifônica, sintetizada na idéia de que seus personagens, em relação ao autor não são escravos mudos
e sim pessoas livres, capazes de colocar-se “... lado a lado com seu criador...” ( Bakhtin, 1997:4), dele
discordar, rebelando-se até . O mundo retratrado por Dostoievsky é pois um mundo no qual existem
sujeitos, investidos de plenos direitos, diríamos um mundo de cidadãos, não um mundo no qual os
indivíduos são reificados, tratados como objetos. No romance polifônico, dialogam vozes, entendidas
como convicções, pontos de vista sobre o mundo, sobre sistemas de referência (Bakhtin, 1997). Em
um outro escrito, Bakhtin (1992) reafirma esta sua idéia de polifonia, sempre associada à um estatuto
especial dos sujeitos, como um tipo de diálogo sobre as grandes questões, o que faz-nos entender o
porque da natureza “inacabada” do diálogo polifônico. Situa a polifonia na ordem dialógica de uma grande
temporalidade , para além dos problemas que se circunscrevem aos limites de uma época. Ou seja, os
sujeitos éticos, dialogando em “pé de igualdade”, sobre grandes temas/problemas não se colocam no
eixo de uma temporalidade marcada. Cruzam-se, portanto, nesta compreensão de polifonia as idéias de
vozes múltiplas, de sujeitos éticos e de uma temporalidade ilimitada.
Este diálogo, reconhecido na arte e na vida, por Voloshinov (1981) e por Bakhtin(1982), vai fortale-
cer a compreensão da relação constitutiva entre linguagem e realidade e o entendimento de que o ser
humano é um ser de linguagem, sustentado na afirmação bakhtiniana de que é através dos enunciados,
concretos e únicos que a língua “... penetra na vida...” (...) e, é também (...) através dos enunciados
concretos que a vida penetra na língua...” (Bakhtin, 1992: 279). Ou seja, a entrada da vida na língua
processa-se através de relações sociais, nos limites do horizonte social da época, dos contextos mediatos
e imediatos, nos quais se travam relações dialógicas sejam nas esferas públicas ou privadas. E, como
nos afirma Bakhtin (1992), a época, o mundo social, o microuniverso, no qual o ser humano cresce e
vive, possui os enunciados que dão o tom, que servem de norma e, também, aqueles que transgridem,
que, em determinados momentos, constituem-se como elementos de ruptura.
É, pois, nesse mundo semiótico, que a experiência verbal individual do ser humano toma forma e
evolui, continuamente, na interação com o enunciado alheio.Compreender portanto como se opera o
modo de funcionamento dialógico da linguagem, esta materialidade semiótica necessária e constitutiva,
complementa/completa a noção de diálogo em Bakhtin, configurada na idéia de que a palavra está
sempre orientada para o discurso do outro, em diferentes formas e graus de orientação dialógica. Esta
orientação dialógica para o discurso alheio é chamada de dialogismo “intrínseco da linguagem”(Bakhtin,
1991), o modo próprio de constituição e funcionamento do discurso, o qual se realiza no espaço entre
o Eu e o Objeto/tema do discurso, espaço habitado por vozes que “iluminam” ou obscurecem”, o tema
em questão. Vozes plenas de sentido e de valores, entre as quais se processam diálogos, nos planos do
já-dito. E,de outro lado, no plano do devir, a outra arena de encontros com o discurso alheio, desta vez
com o círculo subjetivo do ouvinte, a cuja resposta, ainda não dita, o falante/escrevente antecipa-se.
Neste movimento, constrói-se o discurso, no entremeio das palavras alheias, as quais são assimiladas
em graus variáveis, em processos conscientes ou não. O acesso a este funcionamento dialógico, nos diz
Bakhtin, processa-se pelo reconhecimento e compreensão das vozes e de suas relações dialógicas, de
seus confrontos e acordos, que , para serem estudadas “... devem personificar-se na linguagem, tornar-
se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos (...), para que entre eles possam surgir
relações dialógicas...” ( Bakhtin, 1997: 183) .
Entre as várias formas e tipos de relações dialógicas, destaca-se a concordância,como uma de suas
formas mais importantes. Uma concordância, rica em matizes, em diversidade, uma concordância que
não significa identificar-se, tornar-se igual ao outro, nem ocupar o lugar deste outro em detrimento do
seu próprio. Uma concordância que se assenta no respeito às posições alheias, cujas relações dialógicas,
entre os participantes do diálogo, não se configuram como relações de dominação. Por outro lado, as
relações de discordância, quando não dogmáticas, são, também, extremamente salutares à interação
entre as consciências, pois, a palavra, “...ela própia seria um exemplo de resistência no confronto com
o pensamento monológico” (Bakhtin, 1992:394).
Um exemplo clássico de discordância, nos limites da transgressão e da resistência, pode ser encon-
trado na obra de Rabelais (Bakhtin, 1985), na qual um sistema de referências, a cultura popular e suas
vozes, confrontam-se com a cultura tradicional e hegemônica da época. Nesta obra, o fenômeno da car-
navalização apresenta-se como um rompimento temporário da ordem, a ordem do sério, do dogmático,
da visão única, parodiada pelo riso, que contava e cantava nas praças outras histórias, outras idéias,
outras vozes sociais, outras palavras sobre a vida( do outro). O diálogo metaforizado no riso opõe-se
ao monólogo, o espaço do sério, do oficial. O diálogo aqui como “ trasngressor”, materializando a vida
que, no carnaval, diz Bakhtin (1997), sai de seus limites legais e consagrados e penetra no campo da
utopia libertária.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 527


Estas duas formas de manifestação do pensamento dialógico, em Dostoievsky como espaço da
liberdade, em Rabelais como forma de transgressão/resistência, reforçam a afirmação recorrente e
presente em todos os textos de M.Bakhtin, dos diferentes graus das relações dialógicas e, o fato de
que diálogo não é apenas consenso. Ou seja, as relações dialógicas”... nem sempre são harmoniosas,
consensuais ou desprovidas de conflito, embora não se restrinjam a procedimentos de controvérsias
(Bakhtin, 1992: 354).
Há ainda em Bakhtin, uma outra referência ao monológo, ou melhor dizendo, ao enunciado monoló-
gico. Em seus textos, “Os gêneros do Discurso” e o “Problema do Texto”, presentes no livro “Estética da
Criação Verbal”, aquele autor refere-se ao enunciado do tipo monológico como aquele que se apresenta
como expressão de uma única consciência e, que, neste caso, perderia sua natureza de “enunciado”,
assumindo as características da “oração”. Voloshinov (1976) também refere-se a “enunciados monoló-
gicos”, ao tecer sua crítica aos modelos lingüísticos dominantes na época, afirmando que, naqueles dois
modelos, o conceito de enunciado descola-se do diálogo, no caso do Subjetivismo Individualista pelo
fato de que a origem do enunciado reside em um ato cognitivo individual e, no caso do Objetivismo
Idealista, por desconsiderar a relação língua e realidade, privilegiando-se apenas as relações internas
entre os signos, em um sistema semiótico dado.
Em síntese, em Bakhtin encontramos, principalmente nos seus primeiros escritos, uma noção de di-
álogo, bastante ampla, focalizando a questão do pensamento dialógico e suas formas de contraposição
ao pensamento monológico, aquele reifica um dos interlocutores, trazendo em si, diríamos o germe
do pensamento único. De outro, a partir de seu entendimento da relação constitutiva entre linguagem,
pensamento e realidade encontramos, uma concepção da natureza intrinsecamente dialógica do funcio-
namento da linguagem. Isto é, por mais monológico que seja, o enunciado – unidade da comunicação
verbal – ( Bakhtin, 1992), não pode deixar de ser também uma resposta ao que já foi dito sobre o
mesmo objeto do discurso e, assim constituindo-se como “elo” na cadeia da comunicação verbal. Desta
dimensão dialógica da linguagem, entendemos, não há como escapar. Do pensamento monológico, talvez,
pela transgressão ou pela “utopia polifônica”, como dizem Faraco (2003) e Tezza (2001).
3. O DIALOGO PARA FREIRE E HABERMAS: confrontando sentidos
E, para Freire e para Habermas, como se apresenta o diálogo ?
Freire um pedagogo, cristão, com suas raízes assentadas no terceiro mundo, na América Latina, mun-
do subdesenvolvido, paraíso do capitalismo selvagem, da exploração, da exclusão, tendo dedicado sua
vida acadêmica e profissional a pensar possibilidades de escapar desse ritual de dominação. Seguindo
uma tradição humanista, apoiado na teologia da libertação, entende que a democracia exige sujeitos
agentes éticos, capazes de escolher. O diálogo para Paulo Freire (1970) apresenta-se como a essência
de uma educação emancipatória, educação como prática de liberdade, atribuindo ao aluno sua condi-
ção de agenciamento. O dialogo surge como um dispositivo pedagógico básico, implica na palavra, cuja
composição - ação e reflexão - faz corresponder uma concepção de linguagem entendida como uma
prática discursiva. O diálogo, que não se esgota na relação entre um eu e um tu, não se reduz a uma
conversa casual entre interlocutores quaisquer. O diálogo implicando na concretização do “direito de
dizer”, caminho a ser (per)seguido pelos seres humanos, na busca de tornarem-se sujeitos de seu dizer,
assumindo, neste processo, o estatuto e a significação do conceito de humanidade.
Diálogo, na visão freiriana, não se confunde com discussão nem com polêmica, realizando-se apenas
entre pessoas que se comprometem com a “pronúncia do mundo”, ou seja, com a desmistificação da
naturalização do social. Não há diálogo com aqueles que impõem sua verdade como a única. Portanto
não existe diálogo onde persistem situações de dominação, de “conquista”, de divisão, de manipulação
do outro. Nestas situações, esvazia-se a palavra, esvaindo-se junto seu potencial de “denunciar o mun-
do”. A palavra supervalorizada, descolada de uma reflexão, impossibilita o diálogo. O diálogo em Freire
pressupõe sujeitos livres para dizer, para pronunciar o mundo ( Freire, 1970) e, é com estas caracte-
rísticas que se transforma em instrumental pedagógico, no modo de operar dialógico, fundamental a
uma pedagogia emancipatória, exemplificada no processo de alfabetização de adultos, conhecido como
método Paulo Freire.
Habermas, por sua vez, um pensador europeu, herdeiro da chamada tradição frankfurtiana, produ-
zindo na segunda metade do século passado, tenta resgatar o primado da razão, no meio da desilusão
consumada com o iluminismo. Propõe a esfera pública como a arena das relações discursivas, um teatro
para o debate e para a deliberação, superando uma visão de mundo, que, centrada apenas no mundo
do trabalho, obscurece e ignora o mundo da vida. Para ele, a partir de uma racionalidade assentada
em um agir comunicativo, que faz uso de estratégias discursivas argumentativas/persuasivas é possível
atingir-se um consenso entre interlocutores, resolvendo problemas, dispensando relações de dominação
( Habermas, 1987).
Em Habermas, o diálogo, a interação mediatizada pelo discurso, surge, no bojo de seu conceito
de uma racionalidade comunicativa, que possibilita ações baseadas em normas e valores estabelecidas,
reconhecidas por consenso entre os diversos grupos existentes em uma dada sociedade. Este agir co-
municativo pressupõe sujeitos, os quais articulam os mundos subjetivo, objetivo e social, recuperando
pelo e no discurso, a razão perdida, mitificada. A razão comunicativa exige, portanto, uma constante
revisão da função da pedagogia e de seus agentes, no sentido de orientar ações baseadas na intersub-
jetividade, ou seja, na relação comunicativa/dialógica entre sujeitos.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 528


4. Considerações finais
O olhar que dirigimos ao pensamento dos três autores citados, com relação ao seu entendimento
sobre o conceito de diálogo, reforça nossa afirmação inicial de que todos eles partilham de alguns pres-
supostos comuns, de cunho teórico e epistemológico, os quais, refletem-se em um conceito amplo de
diálogo compreendido como uma relação intersubjetiva instauradora de sujeitos, cujo processo é rompido
quando o direito de dizer é negado. Ou seja, aquilo que para Freire materializa-se na impossibilidade
de “pronunciar o mundo”; para Habermas no predomínio do modo de agir instrumental; para Bakhtin
na reificação do outro, estabelecendo-se, portanto, relações de poder, sistematicamente assimétricas,
que possibilitam o surgimento do pensamento monológico, germe, como já dissemos, do pensamento
único.
Algumas particularidades, contudo, merecem destaque. Uma delas é que em Freire, o diálogo rea-
liza-se apenas entre sujeitos que defendem o mesmo ponto de vista, portanto, uma noção de diálogo,
na qual predominam relações dialógicas de concordância entre aqueles que participam de uma mesma
visão de mundo. Em Habermas, por sua vez, pelo fato de que a noção de diálogo, que sustenta o agir
comunicativo, está ancorado em processos argumentativos, as relações dialógicas travam-se entre
interlocutores que não, necessariamente, comungam do mesmo ponto de vista, embora, o objetivo
final seja sempre o de atingir um consenso entre partes, em relação a um dado problema ou temática.
Assemelha-se ao que Bakhtin, chama de Retórica Superior, aquela retórica que busca “... resolver um
problema que pode receber uma solução histórica temporal,...” e, que embora contraponha-se a noção
de uma “... retórica inferior”, cujo objetivo seria aniquilar o adversário, permanece impraticável para “
... resolver os grandes problemas...”( Bakhtin, 1992: 394).
Diferem, pois, estes dois autores do conceito de Bakhtin, para quem, o diálogo não se restringe a
relações dialógicas, necessariamente, de concordância entre sujeitos que assumem as mesmas posições,
nem também limita-se a ter como objetivo a perseguição de um consenso.
Contudo, de nosso ponto de vista, a especificidade da diferença entre aqueles autores e Bakhtin,
reside no fato de que, para este último, o conceito de diálogo apenas pode ser pensado em sua relação
intrínseca com a linguagem. Linguagem que, repetimos, constituída nas relações sociais intersubjetivas e
destas relações sendo constitutiva, porta valores e significações múltiplas, diferenciadas, contraditórias,
que transitam no funcionamento discursivo, entre o “já-dito” e o “ainda não-dito”, estabelecendo-se entre
a pluralidade de vozes instauradas, relações dialógicas as mais diversas possíveis.
É, este modo de particular de compreender a linguagem e seu funcionamento que, em nossa tese,
consideramos como indispensável à uma pedagogia que se quer orientar por um modo dialógico de
operar.
Isto porque, é essa compreensão de diálogo que vai conferir, aquele modo de operar, a possibilidade
de reconhecer, compreender, interpretar as vozes sociais e suas relações dialógicas, constitutivas dos
pensamentos monológicos ou dialógicos, estes últimos de natureza polifônica ou trangressora, que se
fazem presentes nos saberes, conhecimentos, textos, práticas sociais, circulantes no espaço escolar, do
macrouniverso institucional ao cotidiano da sala de aula.
BIBLIOGRÁFIA
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo.Hucitec. 1985.
Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro.Forense Universitária.1997. 2a.ed.
Estética da Criação Verbal. São Paulo. Martins Fontes. 1992
Estética de la creación verbal.México, Siglo XXI. 1982.
O discurso no romance. In. Questões de Estética e de Literatura São Paulo.Martins Fontes. 1991
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba. Criart. 2003
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro.Paz e Terra. 1970
HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa.Madrid. Taurus. 1987
MORIN, E . Para sair do século XX. Rio de Janeiro.Editora Nova Fronteira.1986
PONZIO, A .La Rivoluzzione Bachtiniana. Bari.Levante. 1998
TEZZA, C. A Polifonia como uma categoria ética. The tenth International Bakhtin Conference. Gdansk. 23-27, July.
2001
VOLOSHINOV, V. El signo ideológico y la filosofia del lenguaje. Buenos Aires. Ediciones Nueva Visión. 1976
Le discours dans la vie et le discours dans la poésie. In. T.Todorov (org). Mikhail Bakhtine, le principe
dialogique. Paris. Éditions du Seuil. 1981

Proceedings XI International Bakhtin Conference 529


Escrita e autoria entre dois pontos: subjetividade e alteridade*

Maria do Socorro Oliveira

UFRN/PPgEL

msroliveira@yahoo.com

Resumo
Este estudo objetiva discutir a questão da autoria no ato de escrever, argumentando que não se
pode pensar em escrita apenas como um produto e/ou uma entidade autônoma e transparente. Há de
se vê-la de modo pluridimensional, perseguindo-se a marca, a letra, para se desvendar o processo e o
sujeito que nela estão atravessados. Ao lado dessas reflexões, o estudo pretende, também, trazer à tona
contribuições para a prática escolar, orientando o professor para “como ler os textos dos alunos”.
Abstract
The aim of this study is to discuss the authorship issue in the writing act, establishing that one cannot
think about writing just as a product or/and as an autonomous and transparent entity. It is necessary
to regard it in a pluri-dimensional way, chasing the mark, the letter, in order to disclose the involved
process and subject. Beside these reflections, the study also intends to bring up contributions for the
scholar practice, orienting the teacher about “how to read the students’ texts”.
0. Introdução
Os estudos tradicionais sobre a escrita têm-na reduzido, exclusivamente, às dimensões de superfície,
olhando-a, inclusive, como uma atividade monológica, produto da inspiração do escrevente e do domí-
nio que ele possui dos mecanismos gramaticais da língua. Nessa perspectiva, o foco de reflexão são as
marcas do processo de elaboração da textualidade, tendo-se em vista padrões de organização textual,
sem que seja levada em consideração a figura do sujeito escrevente, incluindo a sua experiência de vida
e de letramento.
Contrariando essa abordagem, este estudo objetivo discutir a questão da autoria no ato de escrever,
argumentando que não se pode pensar em escrita apenas como um produto e/ou uma entidade autô-
noma e transparente. Há de se vê-la de modo pluridimensional, perseguindo-se a marca, a letra, para
se desvendar o processo e o sujeito que nela estão atravessados. Nessa travessia, dois pontos hão de
se cruzar: a subjetividade expressa na letra e a natureza da alteridade que constitui essa subjetividade.
Isso implica considerar o sujeito como atuante no processo de significação, admitindo, também, que o
“eu” se constrói na atividade social, estando a escrita conectada indissoluvelmente à vida. Além dessas
especulações de ordem teórica, o estudo pretende, também, trazer à tona contribuições para a prática
escolar, orientando o professor para “como ler os textos dos alunos”.
Com vistas a essa reflexão, focalizaremos nossa atenção na análise de um texto produzido por uma
aluna da Casa Renascer, a escrevente “M”. Esse texto faz parte de uma coletânea - De ponto em ponto
se faz um conto II - organizada por essa instituição como produto de uma das suas atividades de letra-
mento.
Esta pesquisa é informada por estudos que discutem a natureza dialógica e polifônica da linguagem
(Bakhtin, 1988 e 1992; Faraco, 2001), o caráter sócio-cultural das práticas de letramento (Heath, 1983;
Barton, 1993), as relações que se tecem nas interações sociais (Fairclough, 1992), a relação sujeito/
linguagem (Ducrot, 1985; Benveniste, 1988; Orlandi, 1988; Maingueneau, 1998; Foucault, 2000) e as
noções de alteridade, identidade, estilo e autoria (Possenti,1993; Dunley Jr, 1996; Vidal, 2000; Silva,
2000; Peres, 2001)
1.Refletindo sobre a noção de autoria: premissas estabelecidas
A tarefa de discutir textos, seja a partir de um ponto de vista teórico seja levando-se em consideração
aspectos pedagógicos, conduz, necessariamente, a uma tomada de decisão do analista no que se refere
à questão: o que é um texto? Nesse sentido, há que se explicitar para o leitor o que entendemos por
essa unidade de análise. Trata-se de um produto resultante de um processo de elaboração revelador

Proceedings XI International Bakhtin Conference 530


das decisões discursivas do escritor, as quais decorrem, por sua vez, de contingências contextuais ou
sócio-históricas. A adoção dessa entidade lingüística nesse sentido leva-nos a pressupor que, ao lermos
um texto, elementos de ordem interna (cognitiva) cruzam-se com outros de natureza externa (contexto
social, cultural e histórico), e isso é fundamental para qualquer apreciação sobre esse objeto de especu-
lação. É dentro desse quadro epistemológico que refletiremos sobre a questão da autoria.
Teoricamente, refletir sobre a noção de autoria implica, necessariamente, trazer à tona outras noções
como as de: subjetividade, alteridade, identidade, expressividade, estilo. No que se refere, po-
rém, à prática pedagógica, a questão conduz a se pensar na forma como as práticas de letramento são
instituídas, considerando-se também o processo de construção do sujeito/autor na escola.
Conforme observa Maingueneau (1998), é praticamente impossível encontrar um texto que não deixe
aflorar a presença do sujeito. Mesmo que essa presença seja pouco visível ou praticamente apagada,
marcas de subjetividade se inscrevem em todo enunciado, evidenciando-se como as tomadas de posição
do enunciador ou como a capacidade do locutor para se propor como sujeito (Benveniste, 1988: 286).
Ao tratar das formas de representação do sujeito, Orlandi (1988) observa que os diferentes modos
pelos quais o sujeito se inscreve no texto correspondem a diferentes funções enunciativo-discursivas. Para
explicá-las, a autora se reporta a Ducrot (1985, apud Orlandi, 1988) segundo o qual o sujeito ocupa as
funções de locutor e enunciador. Para ele, através da função de locutor o sujeito se representa como eu
no discurso; estando a de enunciador vinculada às perspectivas que esse eu constrói. A essas funções
do sujeito, Orlandi (1988) acrescenta a de autor, que é a função que o eu assume enquanto produtor
de linguagem.
A subjetividade envolve pensamentos e emoções conscientes e inconscientes que constituem a com-
preensão que temos de nosso eu. Vale destacar, todavia, que, como essa subjetividade é vivida em um
contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência, as posições que assumimos
e com as quais nos identificamos estão em constante conflito e fluxo, o que indica que ela (a subjetivida-
de) é fragmentada e dividida, ou seja, dilui-se na relação do eu com o outro. Essa compreensão exige,
em contrapartida, que um exame da alteridade seja estabelecido na relação intersubjetiva.
Uma sinuosa arquitetura do outro tem sido desenhada por diversos filósofos. Todavia, em razão de
essas contribuições advirem de lugares antagônicos e estarem engendradas a partir de posições dialé-
ticas, o conceito de alteridade define-se como um estatuto paradoxal, na medida em que tanto o outro
quanto o eu se co-determinam, se constituem duplamente, entendendo-se esse “duplamente” como um
movimento bidirecional.
Embora se possa pensar que a figura do outro possa estar ligada a uma entidade corpórea, esta
entra pela porta da diferença, ou seja, daquilo que constitui o não-eu. Além disso, essa diferença não é
um traço acessório. Ao contrário, ela é constitutiva do eixo da subjetividade, ou melhor, da intersubjeti-
vidade. Nesse sentido, estamos desvinculando a alteridade do conceito de outro corpo, de outra pessoa,
para entendê-la como um processo que é, inclusive, interior ao sujeito. Haveria, noutras palavras, uma
diluição de fronteiras entre o sujeito como si-mesmo e como os outros, conforme já afirmava Heidegger
(1967, apud Dunley Jr. 1996: 39): “Os outros” não quer dizer o mesmo que a totalidade dos restantes
fora de mim da qual se destaca o eu; os outros são, antes, aqueles dos quais o próprio sujeito não pode
distinguir-se, entre os quais é também um.
Nesse mesmo sentido afirma Bakhtin (1992: 35-36): a alteridade define o ser humano, pois o
outro é imprescindível para sua concepção: é impossível pensar o homem fora das relações que o ligam
ao outro.
Com isso, o outro deixa de ser uma entidade fora do eu para significar um lugar de relação, conforme
também compreende Entralgo (1983: 252, apud Dunley Jr. 1996: 40), ao afirmar: antes de encontrar-
me com o outro, sou com ele.
Nesse espaço de relação, explicitado a partir do “sou com ele”, a figura do outro torna-se central
para a definição da diferença. Em oposição à mesmice, a outridade vai se constituir naquilo que está
fora do sujeito, da coisa, assumindo variadas significações: o outro é a outra classe social; é aquele que
eu gostaria de ser; é aquele que tem o que eu não tenho, etc.. Nesse contínuo de relações, a alteridade
requer, naturalmente, a exterioridade. E é nessa teia constituída pela relação do eu com a exterioridade
que o sujeito constrói a sua identidade.
A identidade, dessa forma, não é vista de maneira naturalista, unificada, acabada. É antes algo
relacional, instável, fragmentado, marcado por um processo de produção que está ligado a estruturas
discursivas e narrativas, a sistemas de representação e de classificação, a condições sociais, culturais e
históricas e a relações de poder, entre outros aspectos (Silva, 2000).
Essas postulações acerca de subjetividade, alteridade e identidade, além de estarem intimamente
ligadas, relacionam-se, de forma direta, com o discurso e a expressividade que, por sua vez, definem
o estilo e o processo de autoridade do escritor, na medida em que podem explicar de que maneira o
imaginário afeta o processo de criação.
A noção de estilo está usualmente vinculada ao aspecto do revestimento formal (forma expressiva),
à maneira original de falar ou escrever, à questão do desvio de uma norma ou, simplesmente, ao ato
de “bem escrever”. Ao lado dessas concepções, há também uma expressão clássica que diz: o estilo
é o homem. Essas formulações levam em consideração dois pontos: 1) o estilo restringe-se à maneira

Proceedings XI International Bakhtin Conference 531


de escrever e 2) não há como deixar de lado o sujeito ao se pensar em estilo. Com relação ao primeiro
aspecto, julgamos que para entender a palavra não é mais possível resgatar apenas o seu sentido figu-
rado. O estilo é mais do que a maneira de escrever; é o traço que se deixa ao escrever. Referentemente
ao último, é necessário que se compreenda também que o estilo, embora se enderece ao sujeito, este
não se restringe a um sujeito histórico ou coletivo. O estilo diz respeito à singularidade e particularidade
de um sujeito; um sujeito desejante, evanescente, no dizer de Peres (2000: 83).
Conforme comenta Vidal (2000: 76-77), o escritor inscreve o escrito (a letra) num laço social, convo-
cando o sujeito a colocar algo de si. A partir dessa perspectiva, o escrito constitui um endereço chegando
ao destino em que se efetua a textualidade, por isso, não se reduz a uma marca inerente ao texto, mas
aponta ao endereço que comanda.
Ainda para Vidal (2000: 69), o estilo traz na sua etimologia a função de uma cunhagem sobre uma
superfície, uma marca indelével elevada à dimensão de traço da diferença. E é exatamente esse traço
da diferença que identifica o texto como único, como singular. Dito de outra forma, se o sujeito (escri-
tor) procura se constituir naquilo que falta ao outro, conforme observa Peres (2000: 83), é o traço da
diferença que marca o seu estilo, a sua identidade enquanto escritor. Na verdade, a marca, o traço que
o homem imprime ao texto é o seu estilo.
É necessário acrescentar que essa impressão marcada pelo escritor efetivamente se dá como fruto de
uma escolha. Embora saibamos que o usuário da língua não está livre das regras lingüísticas nem das
normas sociais, sabemos também que as regras lingüísticas lhe permitem espaços e as normas sociais
lhe permitem rupturas. É exatamente nesses espaços de fissura que a subjetividade se manifesta de
forma ativa e não assujeitada (Possenti, 1993: 198) que reside o estilo.
Reexaminado, assim, à luz de reflexões mais recentes, o estilo carrega mais que o traço da expressi-
vidade. É um processo de re-invenção, de trabalho, de escolha do sujeito em face de múltiplos recursos.
Esse trabalho singular do sujeito vai naturalmente referendar a autoria.
Ao tratar da questão da autoria, Orlandi (1988: 79) afirma que o falante é o sujeito dividido em suas
várias posições no texto – a de locutor, a de enunciador e a de autor. A esse respeito, ela esclarece: não
basta “falar” para ser autor; falando, ele é apenas falante. Não basta “dizer” para ser autor; dizendo, ele
é apenas locutor. Também não basta enunciar algo para ser autor. Para se constituir como autor, é preciso
que o sujeito assuma uma posição sócio-histórica, ou seja, marque discursivamente a sua inserção na
cultura, identificando-se como indivíduo e escritor. Autor é, pois, o sujeito que, tendo o domínio de certos
mecanismos discursivos, representa esse papel na ordem social em que está inserido.
2. Construindo a condição de autor
Iniciamos a discussão da questão, tomando como base o texto que segue:

ADVOGADA
“Por que eu quero ser uma advogada de defesa dos direitos da mulher, o motivo é que sendo uma
defensora dos nossos direitos podemos mudar alguns problemas que o nosso Brasil sofre como discrimi-
nação, exploração sexual, e outro caso bem pessoal como o de sobrevivência entre o marido e esposa
etc.
A advogada com o seu papel deve agir de forma certa que no caso me refiro, a ver quem está com
a razão e quem não está tem que ser justa com a vítima e com si mesma é útil mostrar a realidade dar
conselho e resolver os problemas de algumas pessoas, pode ajudar o nosso mundo se tornar melhor.
Por isso que quero ser uma advogada. Fazer um mundo melhor para que no futuro tenhamos um modo
de vida melhor.
(Escrevente “M” – 13 anos)

Solicitada a escrever, “M” apressa-se para atender à tarefa, iniciando o seu texto com uma pergunta
indireta, seguida imediatamente pelo motivo por que pretende ser uma advogada. Esse recurso argu-
mentativo, usado como uma forma de abertura do dizer, evidencia explicitamente a necessidade que “M”
tem de falar sobre si mesma, de contar a sua história. Como ela mesma expôs, em depoimento para a
pesquisadora: “o texto tem tudo a ver com a gente, com o nosso dia-a-dia. A gente acaba buscando nas
lembranças coisas que a gente já viveu”.
Marcada por diversas tensões, a preocupação mais forte de “M”, ao tecer o texto, reside em se
colocar em várias posições. Ela não se age apenas como o sujeito que fala de si ou de outro objeto. Ela
é também aquela que enuncia, a partir de um outro lugar, as expectativas que ela constrói de si, do
seu papel e do outro, da sua exterioridade. Com vistas a esse propósito, ela desliza no uso do “eu” e do
“nós”, querendo expressar que o direito do outro (no caso, o direito da mulher) é também o dela, pelo
fato de ela ser mulher. Paralelamente a esse jogo de aproximação, em que “M” se inclui no que ela diz
a respeito do outro, há também no texto formas de distanciamento, reveladas quando “M” afirma que é
o Brasil que sofre discriminação, exploração sexual e problema de sobrevivência entre marido e mulher
(e não ela). Ao deslocar-se para o lugar de quem está fora, “M” tenta apagar a sua história, mascarar

Proceedings XI International Bakhtin Conference 532


os problemas por ela mesma vividos.
Assumindo o papel da advogada, “M” vive a metáfora da espacialidade; descentra-se da sua
condição de “pouca valia” e atinge o patamar de quem pode julgar (ver quem está ou não com a razão),
sugerir formas de ação (aconselhar) e resolver problemas (dos outros). O afastamento do plano real
outorga a “M” a possibilidade de se imaginar na figura do outro, realizando o seu desejo de ascensão
social. A partir desse jogo metonímico, em que há uma substituição de signos simbólicos, “M” coroa a
relação entre o que não-é-possível (para ela) e o que é-possível (para a advogada,). Observa-se, por
assim dizer, uma espécie de relação dual em que o eu se espelha no outro para poder falar de si, mesmo
que ilusoriamente, já que se colocar no plano do imaginário remete, naturalmente, para a ordem da
fantasia.
Mesmo se identificando com a advogada, “M” declara o que espera de si mesma. Assim sendo,
o rosto por ela criado (o da advogada) apenas serviu-lhe de máscara para que conseguisse fazer valer
a sua palavra. Na verdade, “M” procura na advogada sua própria fisionomia, numa vontade de reformar
a própria face e de ter, doravante, um futuro mais promissor.
A autoria ganha forma a partir de um dizer que se impõe através de uma escrita comprometida, com
responsabilidade de transformação. Por mais que as escolhas discursivas demonstrem uma clivagem de
outras vozes, o texto possui passagens em que a alma da escrevente triunfa. Expressões como: “explo-
ração sexual”; “sobrevivência entre marido e esposa”; “ser justa com a vítima e com si mesma”; “dar
conselhos”; “futuro”, entre outras, resgatam acontecimentos únicos da vida de “M”.
Trata-se de um texto em que a singularidade manifesta-se a partir de diversos mecanismos discur-
sivos:
a) a escrevente apropria-se do gênero argumentativo não só para expor, mas também para defender
os seus pontos de vista;
b) o tópico é perseguido e recriado progressivamente, denunciando coerência temática;
a) o recurso à contextualização evidencia elementos de natureza social e cultural, os quais situam
a informação;
b) a inserção de expressões extraídas do dia-a-dia da escrevente revela o seu quadro existencial,
a sua história de vida;
c) a utilização de recursos de acomodação e de resistência ideológica, manifestados a partir do
jogo de opiniões sobre fatos da vida, rompe com o estilo bem comportado - aquele que se amolda às
convenções do discurso escolar (por exemplo: minha escola é bonita, eu gosto de estudar, etc.);
f) os traços de individualidade marcados no texto evidenciam a forma como o sujeito/escritor age
discursivamente.
Ao fugir das expectativas geralmente encontradas em textos de escreventes que se enquadram nesse
contexto e nível de produção, “M” coloca-se como uma produtora de discurso. Suas decisões discursivas
são produto de um trabalho com a linguagem; são frutos da forma como ela se imagina no mundo e,
por isso, definidoras da sua posição de autora.
3. Implicações para a prática pedagógica
Se essas escolhas discursivas podem ser reconhecidas como legítimas no plano do processo de cria-
ção, no plano pedagógico a questão não é tão tranqüila.
No que diz respeito ao comportamento do professor, a resposta ou a leitura que é conferida a um
texto desse tipo pode ser traduzida como um olhar de autoridade no sentido de que se restringe apenas
à forma como o texto se acomoda ou não às convenções da norma gramatical ou atende ao comando da
tarefa. E, nesse sentido, o professor ao invés de promover o processo de criação ou de expressão textual
com vistas às necessidades e objetivos comunicativos de quem escreve, trabalha como um reprodutor
de modelos textuais. Nessa perspectiva, a postura adotada pelo professor é a de quem procura o “erro”
para testar domínio.
Para se compreender esse assunto, faz-se necessário, assim, retomar a forma como se trabalha a
produção textual na escola, perguntando-se: Como se caracterizam as situações de escrita no contexto
escolar? Que condições de escrita são empreendidas nos eventos de letramento? Como se comportam
professor e aluno nessa tarefa?
Conforme a concepção de língua adotada na escola, a escrita é entendida como produto (matéria lin-
güística a ser analisada), estando vinculada a uma filosofia de ensino reprodutora (e não transformadora)
na qual o sujeito é anulado. Em decorrência disso, pouca atenção se dá à relação escrita e subjetividade
e ao trabalho discursivo composto (tecido) na escritura.
Um trabalho voltado para essa perspectiva haveria de se questionar sobre o que é ser autor na es-
cola?
Conforme defende Orlandi (1988: 79), é necessário para tanto fazer a passagem da função de sujeito-
enunciador para a de sujeito-autor (responsabilidade e coerência). Para ela, não se trata de tematizar
a noção de sujeito em si, nem de discutir acerca da sua liberdade, mas de refletir sobre a manifestação
do problema da subjetividade na relação com a escrita. Nesse sentido, a escola, enquanto espaço de
reflexão, é o lugar fundamental para a elaboração dessa experiência - a da autoria.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 533


É necessário também favorecer pela ação pedagógica a própria transformação do professor e do
aprendiz. A condição de autoria só pode ser compreendida na dimensão da prática, a partir do processo
de produção e não do produto.
4. Considerações finais
A análise evidencia que a condição de autor resulta de um trabalho de intimidade do escritor com o
seu texto a partir de suas experiências de vida, revelando-se, também, como uma tomada de conscien-
tização do sujeito através da linguagem.
Entendemos que a escrita é uma prática social e, por isso, devemos ter em vista inserir os nossos
alunos em atividades de linguagem que atendam às suas necessidades comunicativas. A escrita é uma
atividade inerente à vida humana. Com ela nós nos expressamos, exigimos nossos direitos, cumprimos
nossos deveres e, acima de tudo, transformamos as relações humanas que, desde sempre, movimentam
o mundo. Para tanto, é preciso mostrar ao aluno que ele é um ser atuante, ativo e que o seu dizer tanto
incorpora outros dizeres como, também, constitui o do outro. Nesse sentido, a escola, por ser o lugar
das reflexões, é o espaço mais adequado para propiciar experiências com a linguagem que resultem na
formação de autores. Autores e não, necessariamente, escritores.
Keywords: Writing; subject; authorship.
Nota
* Este estudo se insere num projeto de pesquisa mais amplo desenvolvido pela base de pesquisa “Le-
tramento e Etnografia”, pertencente ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – UFRN.
Vincula-se, também, ao projeto de Extensão “A linguagem escrita como instrumento de legitimação da
cidadania”, desenvolvido pela UFRN junto à Casa Renascer, uma Organização Não-Governamental, situada
na cidade de Natal/RN, que atende a crianças e adolescentes do sexo feminino em situações de risco.
Referências
BAKHTIN, Mikhail (1988) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.
________________ (1992). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes.
BENVENISTE, Émile (1988) Problemas de Lingüística Geral I. Campinas, SP: Pontes.
DUNLEY JR., José Paulo Coutinho (1996) O outro na relação intersubjetiva: antecedentes filosóficos. Pro-posições,
7 (2) : 29-42.
FARACO, Carlos Alberto, TEZZA, Cristóvão e CASTRO, Gilberto de (orgs.) (2001) Dialógos com Bakhtin. Curitiba:
UFPR.
FAIRCLOUGH, Norman. (1992) Discourse and Social Change. Cambridge: Polity Press.
FOLCAULT, Michel (2000) O que é um autor? Vega: Passagem.
FREIRE, Paulo (1973) Education for critical consciousness. New York: Seabury Press.
GIROUX, Henry. A. (1997) Os professores como intelectuais. Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto
Alegre: Artes Médicas.
HAMILTON, Mary; BARTON, David; IVANIC, Roz (1993) Worlds of Literacy. Clevedon: Multilingual Matters Ltda.
HEATH, S.B. Ways with Words. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
MAINGUENEAU, Dominique (1998) Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
ORLANDI, Eni P. (1988) Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez.
PERES, Ana Maria Clark (2000) O estilo enfim em questão. In Lúcia Castelo Branco e Ruth Silviano Brandão (orgs.)
A força da letra: estilo, escrita e representação. Belo Horizonte: UFMG.
POSSENTI, Sírio (1993) Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes.
VALLEJO, Américo e MAGALHÃES Lígia C. (1979) Lacan: operadores da leitura. São Paulo: Perspectiva.
VIDAL, Eduardo (2000) O estilo é o objeto. In Lúcia Castelo Branco e Ruth Silviano Brandão (orgs.) A força da letra:
estilo, escrita e representação. Belo Horizonte: UFMG.
SILVA, T. T. da (2000) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. RJ, Petrópolis: Vozes.

Biografia resumida: Maria do Socorro Oliveira - Professora do Departamento


de Letras da UFRN. Fez Mestrado em Letras (1980 - UFPB) e Doutorado em Lin-
güística (1994 - UNICAMP). Ministra as disciplinas lingüística e lingüística aplicada
no Curso de Letras e no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem
(UFRN). Tem várias publicações na área de Lingüística Aplicada. Organizou em
parceria com Luis Passeggi o livro “Lingüística e Educação: gramática, discurso
e ensino”, publicado pela Terceira Margem, em 2001. É coordenadora da base de
pesquisa “Letramento e etnografia”. E-mail: msroliveira@yahoo.com

Proceedings XI International Bakhtin Conference 534


Excessive Eyes: Looking and Gazing in(to) “The Real Me”

Esther Peeren

Amsterdam School for Cultural Analysis (ASCA)

University of Amsterdam

Spuistraat 210

1012 VT Amsterdam

The Netherlands

Abstract I (English)
Through an analysis of an episode of the popular American television series Sex and the City, entitled
“The Real Me,” which centres on seeing and being seen, this paper explores the links and tensions between
Bakhtin’s notion of the other’s excessive look and the intersubjective psychoanalytic theories developed
by Kaja Silverman and Jessica Benjamin. On the one hand, Bakhtin’s positing of the consummating
self-other relationship as one of exterior aesthetic activity is paralleled by Silverman and Benjamin’s
insistence on identification at a distance against identification as internalisation. On the other hand, the
work of Silverman and Benjamin comes some way in correcting Bakhtin’s neglect of oppressive self-other
relationships, as well as his refusal to enter into the psychological dimension of subjectivity.
Abstract II (Spanish)
Analisando un capitulo de la serie Americana “Sexo y la Ciudad” (se titula “El verdadero Yo”), con
el tema de ver y de viendose, este articulo examin los conexiones y la tension entre el concepcion de
Bakhtin (viendo el otro demasiado) y las teorias psicoanaliticos de Kaja Silverman y Jessica Benjamin.
En un lado la teoria de Bakhtin propone como principio que el relacion si mismo el otro es un actividad
exterior y estetico. Este relacion sea paralelo a la teoria de Silverman y Benjamin que insiste en identifi-
cacion de distancia contra la identificacion interna. En otro lado la obra de Silverman y Benjamin rectifica
el descuido de Bakhtin, principalmente en los relaciones opresivos entre si mismo y el otro y denegacion
de considerar la dimension psicologico de la subjectividad.

Excessive Eyes: Looking and Gazing in(to) “The Real Me.”


My focus in this paper will be on the fundamental role of the other’s look, or, as Bakhtin terms it, the
other’s excess of seeing, in the process of embodiment and the attainment of a coherent self-image.
Throughout, I will argue for a view of subjectivity as the product of the continuous dynamic interaction or
interface between the situated, embodied look and the disembodied gaze.1 My exploration of the seeing
other will proceed through an analysis of “The Real Me,” an episode of the popular American television
series Sex and the City, which revolves around the sexual lives of four single women in Manhattan.
The episode stages the fundamental discrepancy between the way we see ourselves and the way
others see us. Framing the episode is the following distinctly Bakhtinian question, posed in voice-over
by Carrie, one of the main characters of the show:
I got to thinking about Narcissus, a man so consumed with his own image he drowned in
it. Did he have no friends to mirror back a healthier view of himself? And why is it that we
see our friends perfectly, but when it comes to ourselves, no matter how hard we look, do
we ever see ourselves clearly?

This question falls into two parts: the first concerning the content of the image and its value (is the
image deadly or healthy?), the second addressing the accuracy of vision itself, with particular reference
to intersubjectivity (can we see perfectly and clearly in relation to ourselves and to others?)
1. I borrow the term interface from Elizabeth Grosz, who uses it in Space, Time, and Perversion to signify a two-way linkage of mutual definition and es-
tablishment (1995: 108).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 535


By asking whether Narcissus had no friends to mirror back a healthier image of himself, Carrie pro-
poses that the fatal consequences of his infatuation with his own reflection are due not to its being a
representation, but to its being a representation attained in isolation, away from other subjects. She
implies that the unhealthy image could have been warded off, cured even, by others, by friends who
are literally asked to become mirrors in order to supply a more wholesome representation (but still a
representation). Put differently, Carrie institutes a valuated contradiction between the mirror as object
and the mirror-function, verb instead of noun, emanating from a living other. While the impersonal mir-
ror image posits the mirror as the fatal instrument of self-absorption, the anthropomorphized mirroring
of the friendly other acquires a medicinal, curative function. These evaluations stem from a perceived
difference in the accuracy of vision itself. The assertion is that we can see others perfectly (with perfect,
unimpaired vision), but can never see ourselves with the same clarity, no matter how hard we try.
Carrie’s reading of Narcissus contradicts Ovid’s well-known account of the myth. There, Narcissus is
not alone by the pool, but is witnessed by Echo, the nymph whose love he rejected. She is incapable
of mirroring back a “healthier” image to him not just because she can only repeat his words, but more
importantly, because her image of Narcissus is no different from the one he sees in the water. As Ovid
tells it, “all he admires [is] that all admire in him” (63). Narcissus’s true predicament is that he sees
himself as clearly and as perfectly (in both senses of the word) as others see him.
What Carrie’s reading does accord with, in its positioning of our fundamental need for the other’s sym-
pathetic outside vision, is Bakhtin’s theory of seeing. In “Author and Hero in Aesthetic Activity” Bakhtin
argues that neither mirrors nor photographs can give us a direct perspective on ourselves, since they do
not involve a truly other human being, but only a presumed third party or implicit other. Whenever we
try to contemplate our own exterior, our own bodies, we end up producing an “optical forgery” or “soul
without a place of its own” that provides access not to our true face, but to our “mask-face” only (32).
Mirrors and photographs yield only narcissistic images “created for one’s own selfish purposes from the
position of a possible other who lacks any standing of his own” (35). In order to achieve a view of our-
selves as whole living beings in space-time, the “screen of the other’s living reaction must be bodied and
given a founded, essential, authoritative independence and self-sufficiency” (32). Like Carrie, therefore,
Bakhtin privileges subject-images over selfish object-images. What he does not consider is what happens
when the image others see us as is as forged and fatal as the one we see in the mirror, as is the case
with Narcissus and Echo. Where does the cure lie then?
Gayatri Spivak has suggested that Echo could have represented an opportunity for Narcissus’s rescue if
her words had been allowed to mark différance, Derrida’s term for the inevitable, unintentional presence
of alterity in repetition.2 Such a marking of différance – an exploitation of the “risk” or “catachresis” of
response - could have transformed fugis (interrogative: why do you fly from me?) into fugi (imperative:
fly from me!), potentially dispelling Narcissus from the pool and turning Echo into “an unintentional vehicle
of a possible cure” (Spivak 185). Much like Carrie, therefore, Spivak constructs the story of Narcissus
in terms of illness and cure. And she too places the possibility of the cure with the other, conceiving the
myth of Narcissus as “a tale of the aporia between self-knowledge and knowledge for others” (178).
However, although she locates the cure with the other, Spivak separates it from this other’s intention.
Her interpretation of the Narcissus myth implies that the friendly or loving other is not necessarily able to
see or speak differently at will, but that his or her words and visions might nevertheless contain a seed
of difference. Echo’s response can be misheard and as such contains, in excess of her will, the potential
for a different outcome; for an escape from the selfish, autoerotic mirror-image.
In privileging the other as the site of the cure, Spivak, Bakhtin and Carrie all in different ways con-
tradict that most modern of myths about the mirror; that of the Lacanian mirror-stage, where the image
produced is the quintessential selfish object-image. In the mirror-stage, the child is seen to overcome the
support of the other – the mother – to (mis)recognize itself in a self-image that is narcissistic, fictional,
orthopaedic and inherently aggressive towards the other (Lacan 1977: 1-6). As William R. Handley noted,
in Lacan, “the baby’s initial experience of itself in the mirror gives the baby a false sense of wholeness, a
representation of its somatic integrity that in Bakhtin’s terms is a false sense of outsideness or exotopy”
(150). Not only does the child (mis)recognize itself in a non-fragmented ideal-image it can never live
up to, this image’s seductive wholeness also renders all others inadequate to it. As in Ovid’s myth, it is
not just Narcissus himself who cannot approach the image; it can be approximated by nobody, or more
precisely, by no body that is truly other.
If Bakhtin’s possible other, that “optical forgery” with no standing or body of its own somehow evokes
the Other of Lacanian psychoanalysis, source not of the friendly look, but of the impersonal, omnipre-
sent gaze, then how do the gaze and the look relate to each other in the process of subjectivation, of
embodiment, of self-image? “The Real Me” provides four possible answers to this in the form of the four
main characters’ storylines. All four put a different spin on Carrie’s framing question, prompting a re-
assessment of the ability (and duty) Carrie assigns to the other to see in a “healthier” way, which, in
relation to Narcissus, surely implies de-idealization. Each storyline deals with the relation between vision
and embodiment, “embodying,” as it were, these theoretical concepts in the manner of a literalizing or
thematizing metaphor. The narrative action of the episode functions as a concretization of the conceptual
metaphors of embodiment, the look, and the gaze. Each storyline provides a narrativization of the relation
between vision and embodiment, highlighting a particular aspect of their complex intertwinement.
2. For Derrida’s theory of différance and performative iteration, see Limited Inc.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 536


Samantha
The first storyline is that of Samantha, who tells her friends she is having nude photographs taken,
not for a man, but “just for me, so when I’m old and my tits are in my shoes, I can look at it and think,
‘Damn, I was hot!’” The apparent self-sufficiency of her self-image is undermined when she takes the
finished photograph to be framed: now, the other’s approval is shamelessly solicited. We see Samantha
pressing the male shop assistant for an authentication of her self-image. She literally guides his eyes
over her image, all the time emphasizing that it is indeed hers: “The mat should stop about an inch away
from my breast. Right here. See my breast? And then stop right around here near my ass. See that?
Right near my ass?” The shop assistant’s lack of response leaves her furious with disappointment.
Here, contrary to the thrust of Carrie’s question, the need is not for someone to mirror back a
“healthier” image – one less concentrated on her ability to conform to dominant prescriptive images of
the attractive female body – but precisely for someone to confirm her as the ideal-image, as adequate
to it. In a reversal of Samantha’s earlier confidence in the accuracy of her self-image, she now feels the
need to enlist the other to corroborate that she is not mis-recognizing herself in the ideal. In much the
same way the Lacanian child requires the mother to prop it up in front of the mirror and confirm the
identification, Samantha needs the other to guarantee that she is the image and that the image is whole
and perfect. Samantha does not want the other’s vision to exceed her own, but to replicate it. As such,
she attempts to evade the external embodied look Bakhtin propagates as the only productive one.
At the end of the episode, the required guarantee arrives when a hamburger deliveryman compli-
ments the way she looks in the photograph, which is now on prominent display in Samantha’s apartment.
There is in this case no real interaction with the other and no interest in the other’s vision as different
from the subject’s own. Once Samantha’s vision is confirmed, the other becomes dispensable (the deli-
veryman is sent off with a generous tip). Again, what she solicits is an accurate echo of her self-image,
not one containing différance.
In this manner Samantha’s storyline undermines the straightforward opposition of healthy and unhe-
althy images established in Carrie’s framing question, as well as the link between the other and the cure.
The storyline raises the question what a healthy image really is: Is the Lacanian child’s false image of
unity necessary to emerge and survive as a subject or is it unhealthy and pathological in its narcissism
and exclusion of the embodied other? Is Samantha’s idealized self-image necessarily unhealthy? While her
confidence in her own beauty is not portrayed as negative per se (let alone fatal), it is seen to preclude
a questioning of the culturally produced ideal-images of femininity. In seeking to freeze her body in its
present state of social acceptability, Samantha simply reconfirms the Manhattan ideal of eternal youth.
Samantha’s plot also leads us to query whether the visions of others, who may simply affirm the
self-image and collude with it, are indeed always healthier. If they simply see what we (want to) see,
then what happens to excessive vision? Both Carrie and Bakhtin may be mistaken in assuming that only
the other has access to our “real” face, as opposed to the “mask-face” staring back at us from mirror or
photographs. Perhaps, as Slavoj Žižek has argued, all there is are mask-faces, so that nobody ever sees
anybody else or themselves clearly and perfectly.3 If that is true, should we really accept other people’s
visions as necessarily more complete and healthier than our own, or should we instead push others to
validate an existing, exalted self-image that makes us feel good, as Samantha ends up doing?
Despite raising these questions, however, Samantha’s storyline still attests to our fundamental need
for the external vision of what Bakhtin calls “a pure and whole other human being” (1990: 34). Whichever
image we choose to identify ourselves with (whether normative or counternormative, whether mask-face
or true face), it requires corroboration from an outside other; our self-image is never self-sufficient. This
requirement is central to Kaja Silverman’s re-interpretation of the Lacanian mirror-stage in The Acoustic
Mirror, where the mother is not merely a passive support to be overcome but, through look and voice,
fulfils the function of “defining and interpreting the reflected image, and ‘fitting’ it to the child” (1988:
100). A definition, interpretation, and fitting of the photograph to her body is precisely what Samantha
is aiming for and there is clear irony in the fact that the framer, the one who will literally “fit” her image
to a frame, is also the one who refuses to “fit” it to her symbolically.
The outsideness (or exotopy) of the other is crucial to Bakhtin’s theory of excessive vision and also
appears in recent attempts to develop an intersubjective psychoanalysis. In The Threshold of the Visible
World, Kaja Silverman focuses attention on the positive value of exteriority by privileging Freud’s notion
of heteropathic or excorporative identification over the internalizing, objectifying model, where the other
is negated. As with Bakhtin’s excess of seeing, this does not mean one becomes the other, but that one
puts oneself in the other’s place from a distance, from a position of sustained exteriority. Silverman is not
arguing that from a distance one can see “perfectly,” but rather that it is precisely from a distance that
the representational, constructed nature of all images (including our self-image) is rendered apparent:
To bring an image “closer” is also to “liquidate” its specificity, to standardize it, to strip it of
its particularity…Distance, by contrast, would seem to necessitate a foregrounding of the
frame separating the image from the world of objects, and the marking of it as a represen-
tation (1996: 99).

3. Žižek considers the notion that there is a truth beyond the mask as an illusion: “There is more truth in the mask we wear, in the game we play, in the
‘fiction’ we obey and follow, than in what is concealed beneath the mask” (1999: 153).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 537


In Samantha’s case, the drive to bring the image close, to liquidate its particularity as a random indi-
cation (an icon not of Samantha’s entire being, but of her appearance at a particular moment in time),
reigns supreme. The distancing effected by the frame is explicitly negated by Samantha’s insistence that
she is the image, evidenced in her proprietary language: my breasts, my ass. Rather than allowing the
other to see her from a position of exteriority, she attempts to draw him in close.
In the work of Jessica Benjamin, too, the other is no longer the passive internalized object of the self’s
needs, drives and desires, but is required to possess “a separate and equivalent center of self” (1995:
30). For a constructive relationship and self-image to develop, it is imperative that the other maintains
this self-sufficient exteriority in the face of the self’s actions. To be productive, to help frame the self,
the encounter with the other should leave both parties intact as separate, but interacting subjects. Both
Silverman and Benjamin thus reiterate Bakhtin’s emphasis on the need for the other to remain a separate
subject, looking from a distance, if she is to creatively re-form the self.
What Samantha’s plot-knot bears out is that our need for the validating other does not end in chil-
dhood, but continues through life. Moreover, it suggests that this need is not always general (any other
will do), but may be particularized: gendered, as it is here, raced, classed, or otherwise specified. Of
course, in positing a need for the other’s corroborating vision, this other is given great power in relation
to self-image and embodiment. After all, the other may choose not to play along, in the manner of the
shop assistant, prompting a (temporary) doubting of Samantha’s identification with the image. A more
permanent loss of identification may occur if the other explicitly rejects the validity of the identification.
This power dimension is absent in Bakhtin, where, as Ann Jefferson astutely points out, the power dimen-
sion is neutralized by rendering the self (or hero) utterly passive in relation to the other’s (or author’s)
actively consummating vision: “the hero will not take any active interest in the gift which the author
makes of him and to him” (157). Samantha refuses such a passive acceptance of the other’s vision and
takes an active stance: far from resigning herself to the shop assistant’s indifference, she searches out
an alternative vision that accords with her own, getting her own way after all.
Charlotte
In Charlotte’s storyline the need for outside validation of the self-image is once again central, but
the chronology of vision and power is reversed. Samantha first created a self-image and then recruits
an other to confirm the identification. Charlotte, on the other hand, requires the other’s approval before
she is able to establish identification. Where Samantha’s plotline stages the way in which self and other
may unite to frame the subject in complicity with cultural normativity, Charlotte’s plotline presents an
example where the other actively contributes to the establishment of a self-image that circumvents the
normative interpretation of the female body. In Silverman’s terms, her storyline stages an actualization
of the “active gift of love.”
When her gynaecologist tells her that her vagina is depressed, Charlotte is horrified. At lunch with her
friends, she is embarrassed and admits that she has never looked at her vagina up close, because she
believes it is ugly. Her friends implore her to take a look, and at the end of the episode we see Charlotte
alone in her apartment finally facing the dreaded organ head-on in a hand-mirror. While we witness
Charlotte’s facial expression change from disgust to delight, we hear Carrie’s voice-over: “Charlotte faced
her fear of seeing herself. And just like Narcissus before her, Charlotte became so mesmerized by what
she saw that…” At this point, we hear a loud thump as Charlotte falls over.
Despite Carrie’s reference to Narcissus, Charlotte’s looking at herself is construed as neither unhealthy
nor deadly. Rather, it is her initial refusal to see and name her vagina that is linked to illness and depres-
sion. Charlotte’s epiphany can be seen as a belated re-staging of the Lacanian mirror-stage, evoking its
orthopaedic function in particular. In the story of her initial rejection (even denial) of the sexual organ
as part of her body and her later pleasurable acceptance of its beauty and belonging, we may discern
the movement “from a fragmented body-image to a form of its totality,” which Lacan considers essential
to the processes of identification and embodiment (1977: 4).
Of course, Charlotte is not the Lacanian child and, therefore, what is staged is not the mirror-stage
as the infant’s original, definitive identification with a non-fragmented imago or gestalt, but rather an
instantiation of the mirror-stage as Kaja Silverman has reformulated it; as “the temporary integration
of the visual imago with the sensational ego” (1996: 20). The visual imago is the representation we re-
cognize ourselves in (at any one point of our lives), while the sensational or proprioceptive ego consists
of our “non-visual mapping of [our] body’s form” (1996: 16). In Charlotte’s case, although she senses
her vagina to be part of her body proprioceptively, she has refused to recognize it as part of her visual
imago because she considered it incompatible with ideality. Only when her friends ensure her there is
nothing to fear or be ashamed of, is she finally able to achieve – at least for a moment – an integrated
body-image.4
In a quite literal manner, Charlotte’s storyline corroborates Bakhtin’s belief in the power of the other’s
external vision to consummate or “complete” the self. Moreover, it suggests that oppressive cultural
representations may be circumvented, cured if you will, with the help of the trusted other. Her friends’
redefinition of the vagina as something beautiful challenges and reconfigures the hegemonic cultural

4. Charlotte’s disavowal of her vagina might also be described as a mild case of agnosia, defined by Elizabeth Grosz as “the nonrecognition of a body part
that should occupy a position within the body image” and associated with “a forgetfulness, a refusal, a negative judgment” (1994: 89).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 538


mapping of the female body. This indicates how the other’s excessive vision is especially important in
cases where the self-image has to overcome negative cultural representations – optical forgeries cre-
ated not by the self, but construed and supported by the culture as a whole. In this case, the cultural
definition of the vagina as a somehow ugly, shameful organ is overcome by the collective, embodied,
and loving look of Charlotte’s friends, whose vision is emphatically presented as “healthier” than that of
herself and her culture.
Carrie
Carrie’s storyline initially appears as a flawless staging of Bakhtinian excess of seeing. When her gay
friend Stanford doubts his attractiveness and complains “I know what I look like,” Carrie’s retort – “Then
you can’t see what I see” – explicitly refers to her ability to see more of him than he can. An exact reversal
of this scene occurs later in the episode when Carrie is asked to participate in a fashion show. When she
argues that she is not a model, Stanford answers: “Then you can’t see what I see.” These two identical,
but reversed exchanges insinuate the reciprocity and responsibility of friendly consummation, the way
in which two subjects may generously strive to frame or author each other in a more positive image.
However, Sex and the City is not blind to the mediated nature of friendship. Both Carrie and
Stanford take the other’s affirmation with a grain of salt, realizing that their respective visions are far from
unimpaired, coloured as they are by the duties of friendship. By pointing to the fact that even friendship
is not without its power dimension, “The Real Me” lights up the shortcoming of Bakhtin’s presumption of
sympathy between self and other. Bakhtin has little eye for the power dynamics invoked by the other’s
excessive look: relations of oppression and objectification, though reluctantly acknowledged, are simply
dismissed as aesthetically unproductive. As Michael Gardiner notes, the paradox of Bakhtinian intersub-
jectivity lies in the fact that “whilst we need the other to be a complete social being, this other also has
the capacity to circumscribe our thoughts and words, to exercise power over us” (97). Or, as Deborah
Haynes puts it, “the power to enframe is dangerously close to the power to imprison” (92).
Both Benjamin and Silverman offer ways to remedy Bakhtin’s disregard for the dark side of intersub-
jectivity. Instead of assuming reciprocal sympathy between self and other, Benjamin stresses the subject’s
inherent desire to dominate over others and establish itself as the center of the world. This narcissistic
drive to omnipotence can only be overcome after the other, in a direct confrontation, is seen to survive,
thus “proving” herself as a separate subject with her own wishes and desires. The initial confrontation
of wills is not a negative, but a necessary step towards true intersubjectivity, which features a balance
between self-assertion and recognition of the other. Only when this balance is definitively disturbed
does intersubjectivity lose its productivity and is the other negated. Benjamin thus avows the psychic
drive toward domination and objectification without turning it into a necessary condition of all self-other
relationships.
Silverman, on her part, effects a reversal of Bakhtin’s assumption that sympathy precedes the
consummating look by stressing that sympathy and love follow on the active, exterior look and that they
do so only after enormous effort and always after the fact, “according to the logic of a deferred action,
or Nachtraglichkeit” (1996: 80). Learning to see differently – against the grain and in excess of the re-
presentations of cultural normativity – emerges as a constant struggle against our impulse to swallow
the other and fall back into negating idealizations.
The reason Bakhtin’s notion of excess of seeing can so easily be abstracted from power relations
is its apparent reliance on a concept of vision as unmediated transparency, of vision as knowledge and
truth. Galin Tihanov speaks of a “utopian interpretation of seeing” that “proves to be endowed with the
gift of uncovering, or even generating, the true human meaning of the object” (237). The same problem
underlies Carrie’s framing question, where it is taken as self-evident that the other’s outside look sees
“perfectly.” Bakhtin fails to adequately explore the nature of the look as a culturally mediated represen-
tation and interpretation, rather than a purely individual creative, formative act. To see something or
someone is always at the same time to interpret, to see not directly but through a veil – or, as Lacan
would say, a screen – of cultural prejudices, expectations and norms.
This screen is not the creation of the individual I/eye, but is established through the cultural gaze.
Subjectivity is not just a question of being seen, but of being given-to-be-seen to the world as a whole.
While Lacan’s basic premise – “I see only from one point, but in my existence I am looked at from all
sides” (1979: 72) – accords with Bakhtin’s idea about the fundamental difference between the way the
self sees itself and the way it is seen by the other, the Lacanian subject is not looked at by individuals,
but by the entire world through which these individuals look. As such, the gaze is split from the eye,
from the embodied look.
This split, however, is not irrevocable. As Kaja Silverman points out, the gaze is always to some
extent dependent on the look for perpetuating its reign over the scopic field, since the look acts as its
most tangible functionary. Consequently, the look, particularly when collectivized, is potentially able to
transform the gaze and the screen of normative cultural representations through which the gaze “photo-
graphs” the subject. We saw an example of this in Charlotte’s storyline. Significantly, Silverman assigns
the re-territorializing power of the look to the look’s physicality: “precisely because the look is located
within desire, temporality and the body, it can reanimate and open to change what the camera/gaze

Proceedings XI International Bakhtin Conference 539


would both mortify and memorialize” (1996: 160). It is because the look originates in a subject with a
defined bodily presence in time-space – Bakhtin’s unique coordinate – that it can see differently from the
cultural gaze – or rather, in excess of it. It is the specificity and materiality of the look’s place in time-
space that renders it capable of circumventing or amending normative representation, of escaping it by
nestling in its gaps and fissures.
Carrie’s storyline ends up staging such a circumvention of the gaze. “The Real Me” follows her as she
attempts to scale the heights of Manhattan’s representational hierarchy. By participating in a fashion
show she seeks not to destabilize the culturally established dichotomy between models and so-called
“real people,” but rather to confirm it by ceasing to be a real person and becoming the ideal-image. At
the fashion show, Carrie walks down the runway and for one moment she merges completely with the
ideal-image as everything – her look, the stage, the audience, the cameras – conspires to compose the
ideal-image and “fit” her to it. But then she trips and falls over. She lies on the floor, helpless, but after
a few seconds, takes control again and gets up. In voice-over, she comments: “I had a choice. I could
slink off the runway and let my inner model die of shame. Or I could pick myself up, flaws and all, and
finish. And that’s just what I did. Because when real people fall down they get right back up and keep
on walking.”
Paradoxically, it is at the very moment when Carrie re-categorizes herself as a real person that
she finally also becomes a model. Not in the normative sense, but in her own way. It is when she no
longer takes the model-ideal seriously that she manages to effectuate its transformation. Her physical
fall from the ideal-image brings into play what Silverman calls the “good enough.” Taken from Winni-
cott, the good enough is opposed to the oppressive binaries of sufficiency/insufficiency and ideal/failure
and entails a looking at the other that is capable of forgiving (overlooking) flaws and imperfections in
relation to the cultural screen of dominant representations. It “represents a crucial device for putting us
at a productive distance from the screen, and for teaching us how to ‘play’ with it” (1996: 226). Such
playing with the screen of normative representations, of which the model ideal-image is an integral part,
is precisely what occurs when Carrie continues her run.
She gets up to thunderous applause and resumes her walk down the stage; this time smiling and
looking around. At the end of the stage, she poses, throwing her hair back in what has now become a
parody of conventional modelling. Carrie is no longer trying to play up to the ideal, but is playing with it.
It is when Carrie walks the stage as a real woman (an identification reinforced by the “it’s gotta be real”
lyrics played over the image) that the ideal model-image is resignified. Later, we see Carrie strutting
through her apartment in her underwear, no longer in a studied approximation of the model ideal, but
as a joyful performance, a role-playing available to “real women” too.
Of course, the only reason Carrie is able to attain the mode of the good enough is because she so
dramatically and so physically fell from the ideal-image. Had her run been without incident, no reconsi-
deration of the model-ideal would have taken place. Here, the reframing of the subject is achieved not
by the self or the other, but unintentionally through the différance introduced by the physical fall, by
the variation in repetition that is an inherent (unintentional) possibility in all performative reiterations
of normative identity positions.5 However, this différance still has to be taken up to have an effect. It is
ultimately the new perspective Carrie sees reflected to her, as she lies on the floor, in the camera of one
of the photographers, who keeps shooting pictures of her up-close, that incites her to look at herself di-
fferently. The moment she tells the photographer to stop taking pictures, she sidelines the gaze, rejecting
its “optical forgeries” and disavowing – at least for a moment – its power over her self-image.
Returning to the myth of Narcissus and Spivak’s interpretation of Echo as a possible cure, Carrie’s
storyline introduces a complication: it is not enough for Echo’s utterance to merely contain the possibi-
lity of a mishearing; the element of différance has to be picked up on by the self for it to have a radical
effect, for it to dispel Narcissus from the pool, or for it to propel Carrie back onto the catwalk. And even
then there remains a need for outside validation. Carrie’s continuation of her catwalk run is supported
by the audience, which also chooses to see her differently at that moment, cheering her on. In the end,
Carrie’s new vision of herself, prompted by the accidental appearance of différance, only becomes really
productive when it is supported by the external other. Without the audience’s support, she could have
ended up looking merely ridiculous in her play on the model ideal-image.
Miranda
The difficulties involved in re-directing the cultural gaze are also illustrated by Miranda’s storyline.
When an attractive man tells Miranda he finds her sexy in her sweaty gym outfit, she is skeptical. But
when he persists, Miranda starts to believe him. Perversely, however, she internalizes his perspective
not in the form of “you are sexy as you are,” but in the form of “you can approximate the ideal-image
of sexiness.” Consequently, on their next date, Miranda assumes the traditional trappings of sexiness:
excessive make-up, a skimpy dress and a posture of icy inapproachability. To her great surprise, as soon
as she starts acting in what Carrie’s voice-over describes as a “confident and sexy” manner, her date loses
all interest. When Miranda demands an explanation, he tells her: “you seemed a little full of yourself.” In
becoming enamored with her own image (like Narcissus), Miranda loses the chance to resignify, re-see
and re-visualize the normative image of sexiness in the mode of the good enough. Resisting the male
other who tries to see her differently, Miranda instead chooses to reaffirm accepted normative notions
5. See Judith Butler’s theory of gender performativity in Gender Trouble and Bodies that Matter.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 540


of femininity.
What Miranda’s plotline demonstrates is the discrepancy that may occur between the other’s outside
vision and the version of this vision internalized by the self. It shows up the existence of what Bakhtin
calls a loophole out of the other’s vision: a perverse one in this case. Moreover, it links to Bakhtin’s idea
that to be accepted, the other’s vision needs to be “inwardly intelligible.” If the self is complicit with the
cultural gaze, those images that resonate with it will seem more “inwardly intelligible” than dissenting
visions and will therefore be taken on board far more readily.
I should, however, note a possible different interpretation of Miranda’s plot-knot, which would see it
as reaffirming traditional gender roles rather than undermining them. It is an interpretation that centers
not on visual but on discursive control. On their first date, Miranda is still so stunned that the man views
her as sexy that she lets him do most of the talking, quietly and gratefully accepting his compliments.
On the second date, however, Miranda takes the initiative and starts talking about herself in a very con-
fident manner: “I like my life, I love my job, I love my friends, and I love meeting new people like you.”
Then, she leans in for a kiss but is roughly rebuked as he finds her too full of herself. This behavior could
easily be construed as patriarchal: everything was fine when he was the dominant discursive partner
and she needed his validation, but he is unable to deal with her when she comes to believe she is sexy
on her own and starts acting more aggressively sexual. When we take this alternative interpretation into
account, Miranda’s plot-knot becomes an illustration of the way it is often very difficult to tell whether
the other’s vision (or the other’s linguistic image, for that matter) is “healthier” or “unhealthier” than
our own and whether it is “healthier” or “unhealthier” than the images validated by the cultural gaze.
Ultimately, it may be precisely this ambiguous quality of the looks emanating from embodied, external
others that opens up room within us for negotiation with the proffered images and that makes these
images potentially destabilizing in relation to the much more unequivocal visions imposed upon us by
the cultural gaze.
Conclusion
While Carrie and Charlotte’s stories stage the hard, but ultimately rewarding road to seeing differen-
tly, to looking at self and other in the mode of the “good enough,” the two other storylines underscore
how look and gaze are drawn into complicity. Often, instead of proposing a “healthier” vision even the
friendliest look strives to consummate in line with the prevailing cultural gaze, acting, as it were, to push
Narcissus into the pool rather than encouraging him to flee it. Moreover, in those rare cases where the
friendly other does offer up an alternative vision that exceeds the gaze, the self’s complicity with the
gaze may lead to its dismissal.
By analyzing the episode’s staging of the interplay between the look and the gaze and by referring to
the work of Jessica Benjamin and Kaja Silverman, I have attempted to complicate the scene of Bakhtin’s
excess of seeing without undermining its fundamental tenets. What remains crucial is Bakhtin’s empha-
sis on the formative and reformative power of the embodied, external look. In proposing that the other
sees differently from, or in excess of the self, Bakhtin opens the way for an account of the other’s vision
as emancipating. Also, Bakhtin’s focus on our position in concrete space-time surrounded by empirical
others rather than captured in an abstract visual field, makes subjectivity an open-ended process, where
our self-image is subject to constant reformulation in the light of others’ visions. The fundamental reci-
procity of his model ensures that the other’s vision of the self is not necessarily adopted in full without
modification. Bakhtin gives us the important awareness that neither the self nor the other is capable
of closing off the subject’s development and locking it into one definitive form. In sharp contrast to the
rigid determination of the child in Lacan’s mirror stage, the Bakhtinian subject is posited as a yet-to-be
futurity, constantly developing in a necessarily intersubjective mode.
References
Bakhtin, M.M. “Author and Hero in Aesthetic Activity.” Art and Answerability: Early Philosophical Essays by M.M. Bakhtin.
Eds. Michael Holquist and Vadim Liupanov. Austin: University of Texas Press, 1990, 4-256.
Benjamin, Jessica. Like Subjects, Love Objects. New Haven: Yale UP, 1995.
—. Shadow of the Other: Intersubjectivity and Gender in Psychoanalysis. New York: Routledge, 1998.
Butler, Judith. Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex.” New York and London: Routledge, 1993.
—. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1999.
Derrida, Jacques. Limited Inc. Trans. Samuel Weber. Evanston: Northwestern UP, 2000.
Gardiner, Michael. The Dialogics of Critique: M.M. Bakhtin and the Theory of Ideology. London: Routledge, 1992.
Grosz, Elizabeth. Volatile Bodies: Toward a Corporeal Feminism. Bloomington and Indianapolis: Indiana UP, 1994.
—. Space, Time, and Perversion: Essays on the Politics of Bodies. New York and London: Routledge, 1995.
Haynes, Deborah. Bakhtin and the Visual Arts. Cambridge: Cambridge UP, 1995.
Jefferson, Ann. “Bodymatters: Self and Other in Bakhtin, Sartre and Barthes.” Bakhtin and Cultural Theory. Eds. Ken
Hirschkop and David Shepherd. Manchester: Manchester UP, 1989, 152-77.
Lacan, Jacques. “The mirror stage as formative of the function of the I as revealed in psychoanalytic experience.”
Jacques Lacan: Ecrits, A Selection. Ed. Alan Sheridan. London: Tavistock Publications, 1977, 1-7.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 541


—. The Four Fundamental Concepts of Psycho-Analysis. Harmondsworth: Penguin, 1979.
Ovid. Metamorphoses. Trans. A.D. Melville. Oxford and New York: Oxford UP, 1986.
Sex and the City: The Complete First Season. DVD. HBO/Paramount, 1998.
Silverman, Kaja. The Acoustic Mirror: The Female Voice in Psychoanalysis and Cinema. Bloomington and Indianapolis:
Indiana UP, 1988.
—. The Threshold of the Visible World. New York and London: Routledge, 1996.
Spivak, Gayatri Chakravorty. “Echo.” The Spivak Reader. Eds. Donna Landry and Gerald Maclean. New York and Lon-
don: Routledge, 1996, 175-202.
Tihanov, Galin. The Master and the Slave: Lukacs, Bakhtin, and the Ideas of their Time. Oxford: Clarendon Press,
2000.
Žižek, Slavoj. “Courtly Love, or Woman as Thing.” The Žižek Reader. Eds. Elizabeth and Edmond Wright. Oxford:
Blackwells Publishers, 1999, 148-173.

Key Names: M.M. Bakhtin, Kaja Silverman, Jessica Benjamin.


Key Words: Excess of seeing, Intersubjectivity, Embodiment, Gaze/Look,
Outsideness
Biographical Statement: Esther Peeren completed two undergraduate degrees
– in English and Comparative Literature – at the University of Groningen and a M.St.
in Women’s Studies at the University of Oxford. Currently, she is a PhD candidate
at the Amsterdam School for Cultural Analysis (University of Amsterdam) under the
supervision of Professor Mieke Bal, working on a dissertation provisionally entitled
Bakhtin and Beyond: Intersubjective Identity Construction and Deconstruction
in Popular Culture. Each chapter of the dissertation takes a theoretical concept
from Bakhtin’s work – chronotope, excess of seeing, dialogism, speech genres,
translation – and explores the way this concept functions in relation to individual
and group identities in artifacts of popular culture (television series and films)
and how it correlates with other theoretical frameworks, such as psychoanalysis,
poststructuralism, feminism and cultural studies.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 542


Dialogia, escrita e subjetividade1

Alba Maria Perfeito

Universidade Estadual de Londrina – UEL

Campus Universitário – Fone (43) 3371-4428 – Caixa Postal 6001

CEP 86051-990 – Londrina – PR

Resumo
Este texto aborda narrativas escritas, construídas por um sujeito de 10 anos, considerando o texto
escrito como um gênero discursivo secundário, criador de espaço para ampliação da subjetividade, em-
bora perpassado pelo dialogismo da linguagem.
Nesse contexto, analisa uma paráfrase reprodutiva, uma paráfrase criativa e um texto de criação,
levando em conta aspectos relativos à interlocução; à heterogeneidade do sujeito, em função dos papéis
discursivos assumidos e dos mundos nos quais os conteúdos são veiculados; além da designação da
partilha de referências e significações, traduzida pela coerência textual.
A subjetividade será observada no surgimento de singularidades textuais, lexicais e gramaticais,
veiculadas pela seleção e mobilização de subgêneros discursivos no texto escrito.
Abstract
This paper examines written narratives, produced by a 10 years old subject, taking on consideration
the written text as a secondary genre that can broaden subjectivity, among the linguistic dialogism. In
order to that analyses a reproductive paraphrase, a creative paraphrase and a creative text, taking into
account the aspects related to the interlocution; to the heterogeneity of the subject, regarding to the
assumed roles and worlds where the contexts are presented. It will also be considered the designation of
shared references and meanings translated by textual coherence. The subjectivity will be shown through
the raising of textual and lexical-grammatical resources, produced by the selection and mobilization of
discoursive subgenres.

0. Introdução
Ao levar em conta a primazia do diálogo2 e de sua anterioridade em relação ao discurso interior, Bakhtin
afirma (1988) que o centro organizador da atividade mental não está no interior do sujeito, mas no seu
exterior, no processo de interação verbal. Em conseqüência, postula que o sentido de qualquer texto,
resultado dos processos interativos, manifestado no momento único e não-reiterável da enunciação, só
pode expressar uma situação na cadeia de textos que o precederam e que o sucederão.
O texto escrito, caracterizado pelo autor (1992) como um ato de fala impresso, participante de uma
discussão ideológica em alta escala, porque responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as res-
postas e objetivos potenciais, procura apoio, etc., é considerado um gênero do discurso secundário, por
aparecer em circunstância de comunicacão relativamente mais avançada, correspondente ao conjunto
dinâmico e complexo, constituído pelos modos de dizer, em constante evolução.
Ao veicular gêneros discursivos à forma e ao estilo da enunciação, Bakhtin (op. cit.) assinala que o
enunciado oral ou escrito reflete a individualidade daquele que fala ou escreve. Embora os signos sejam
criados coletivamente, só são lidos ou ouvidos em forma de enunciados individuais, segundo o gênero a
que pertencem e em função do contexto único e não reiterável da enunciação3. Assim, para o autor, ao
1. Este texto foi elaborado, parcialmente, com elementos da tese de doutorado da autora. Algumas análises também fazem parte do artigo “Emergência de
autoria”, a ser veiculado em Estudos Lingüísticos. v. 2. São Paulo: Revista Eletrônica (no prelo).
2. Ao considerar que toda enunciação é dialógica, unidade de interação social, Bakhtin (1988) aponta que é nesta interação, a qual a língua estabelece com
a realidade, com o sujeito falante e com outros enunciados posteriores e anteriores, que a palavra então se torna real. Ou seja, a concretização da palavra,
como signo social, está intrinsecamente ligada ao caráter ideológico das alterações sociais.
3. Nesse sentido, reiteramos as palavras de Faraco (2003, p. 121), sobre a concepção de Bakhtin e seu Círculo: “Ao assumirem a linguagem como uma
realidade social infinitamente estratificada, abrem espaço para o individual (...)
É por esse caminho que podemos entender a argumentação daqueles autores, segundo a qual a elaboração estilística da enunciação é uma atividade de
seleção, de escolha individual, mas de natureza sociológica, já que o estilo se constrói a partir de orientação social de caráter apreciativo (...)”.
selecionar e combinar determinados gêneros, de acordo com os interlocutores, as esferas de atividade
em que são realizados e a relação valorativa com objeto de sentido, o sujeito escolhe, também, os re-
cursos léxico-gramaticais.
No que diz respeito, especificamente, à produção de histórias, François (1996a), caudatário dos
estudos bakhtinianos, postula a heterogeneidade organizativa desse gênero. Argumenta, então, que,
isolando-se a trama das histórias, isola-se os seus modos de dizer, os quais ele concebe como a base
inteligível das narrativas. Ainda, conforme o autor (1996b), toda narrativa comporta duas partes: uma
trama parafraseável que vai ser alimentada e tornar-se interessante por elementos não parafraseáveis
e não diretamente cronológicos, os subgêneros discursivos, mais ou menos equivalentes aos atos de
fala, produtores de diferentes pontos de vista.
Nesse sentido, o sujeito que conta deve ser considerado um sujeito heterogêneo, o qual muda o modo
de organização das narrativas em função dos conteúdos, assim como de sua capacidade de retomada-
modificação, do movimento em que novos sentidos, somados a sentidos anteriores, são reafirmados ou
deslocados, no momento da enunciação. Sob tal enfoque, no processo de construção de histórias, ao
invés de se falar em estrutura, dever-se-ia relacionar os modos de dizer aos mundos diferentes e aos
papéis discursivos assumidos pelos seus contadores.
Já Fiad (1997), pensando em autores não literários e estudantes, defende, segundo Bakhtin, que a
escolha dos gêneros e dos recursos lingüísticos nas produções textuais escritas, são decorrentes de que
cada enunciado tem autor e destinatário. Em vista disso, enfatiza a existência de índices de subjetividade
na escrita, relacionando o domínio que se tenha de determinado(s) gênero(s) ao trabalho que se realiza
com/sobre a linguagem. E, finalmente, Orlandi (1993), sob o ótica da Análise do Discurso, ao discutir
a questão da autoria, procura dessacralizar essa noção, levando-a para o uso corrente, enfatizando a
coerência no preenchimento da função-autor.
Isso posto, consideramos neste trabalho as marcas de individualidade na escrita de um sujeito de 10
anos, estudante de 5ª série, imersa em um mundo da escrita, a partir do domínio que apresenta das
variadas configurações textuais de narrativas curtas, em função dos conteúdos veiculados, dos mundos
nos quais se insere e dos papéis discursivos assumidos. Dessa forma, tal domínio manifesta-se pelas
marcas pessoais impressas em seus movimentos textuais e léxico-gramaticais, organizados com unidade
de sentido.
1. Procedimentos adotados na coleta de dados
Para analisar as singularidades nos encadeamentos textuais das diferentes narrativas escritas por I.,
valemo-nos da categorização didaticamente formulada por Meserani (1995), no que tange à prática de
produção de textos: reprodução; paráfrase reprodutiva e criativa; criação. Interessou-nos, particular-
mente, as categorias de paráfrase e criação, visto que, para o autor, reprodução eqüivale ao mesmo, à
cópia, à transcrição.
Segundo Meserani (op. cit.), a paráfrase reprodutiva traduz, em outras palavras, um texto original e
a proposta de recontar serve de apoio à possibilidade de mostrar como o texto-fonte é compreendido
e quais os modos de recontá-los. Para este tipo de produção, utilizamos a narrativa do livro Histórias
para acordar, de Diléa Frate (1996), que aborda, em único parágrafo, temas contemporâneos com
leveza, humor e concisão. A autora compõe histórias curtas, por meio de curiosa mistura de subgêneros
discursivos, tornando-as interessantes, pelos modos de contar.
A paráfrase criativa, elaborada após leitura de textos originais, serve de pretexto, motivo ou pata-
mar para que o sujeito produza um texto com maior grau de deslocamento de sentidos. A narrativa
desta categoria foi elaborada a partir da leitura de textos da Folhinha, do jornal Folha de S. Paulo, de
21/11/1997, relativos ao Natal de crianças pobres, visto que estávamos no final do ano.
Por fim, as atividades de criação, caracterizadas pela diferença, pelo novo, são aquelas nas quais
o indivíduo deve produzir um texto com maiores marcas de originalidade, articulando o que dizer ao
como dizer. Para a realização deste tipo de atividade, propusemos o relato de experiências vivida com
o tema: um momento de grande felicidade.
A coleta destes dados foi realizada em três encontros (texto de criação, paráfrase reprodutiva, pará-
frase criativa) na residência da pesquisadora, entre novembro e dezembro de 1997. O sujeito elaborou
seus textos através de instruções de que os planejasse (mesmo que mentalmente), os escrevesse a
lápis e os relesse (lançando mão de reelaboração total dos textos ou de inserções, apagamentos, subs-
tituições, etc.).
2. As produções de I.

2.1.Texto de criação
No primeiro encontro com I., após breve interlocução, nós solicitamos a construção de um texto sobre
um grande momento de felicidade, uma narrativa de experiência vivida, na qual a subjetividade é
privilegiada e o sujeito ocupa um lugar, do ponto de vista discursivo “...para falar de si mesmo, de suas
experiências, de seu conhecimento de mundo, dos sentimentos...” (Tfouni, 1995:74).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 544


Uma saudade inexplicavelmente inexplicável
1. Minha mãe foi pra Europa em julho de 1995 e eu fiquei triste, pois ela
não me levou junto, porque ela fez uma “renovação de Lua de Mel” e eu fiquei
com minha tia e minha vó, foi muito bom.
2. Quando minha mãe me aparece no aeroporto, eu fiquei feliz, mas tão
feliz, uma saudade inexplicavelmente inexplicável, era o que eu estava sentindo
naquele momento.
3. Chegamos em casa, abrimos a mala e começou a fala mais ou menos
assim: isso é pra quem? Pra mim né, claro que não, é pra mim.
4. Mas enfim foi o dia mais “delicioso” de minha vida..

Nesta produção, I. ocupa o lugar discursivo de filha – da mãe, que viajara por prazer, deixando-a
em companhia de outros familiares –, colocando-se no mundo de sua realidade, de menina de classe
média-alta, evocando, conforme o tema proposto, lembranças de situações vivenciadas e narrando, por
isso, em primeira pessoa.
O título de sua narrativa evoca sentimento, num jogo de palavras, por meio do qual ele é caracteri-
zado (explicável) e modalizado pelo advérbio (inexplicavelmente), com I. demonstrando certo domínio
do processo de formação de palavras, através da incorporação de prefixos e sufixos.
No primeiro parágrafo, aparece, devidamente circunstancializado espácio-temporalmente, o elemento
complicador de sua história (Minha mãe foi para a Europa em julho de 1995... e eu fiquei com minha tia
e minha vó...), que é intermediada por evocação de sentimento (...e eu fiquei triste...) e por explica-
ções/justificativas (...pois ela não me levou junto, porque ela fez uma “renovação de Lua de Mel...”). I.
faz uso de aspas, certamente, para criar um valor enfático para esta expressão, que é realçada pelo uso
de iniciais maiúsculas em Lua de Mel. Depreendemos, ainda, neste parágrafo, a avaliação realizada pelo
fato de ter ficado (...foi muito bom...), contradizendo seu sentimento anterior (...eu fiquei triste...): é a
concessão feita a sua interlocutora, agora a tia, não a pesquisadora.
O acontecimento notável aparece como resolução do conflito – o reencontro com a mãe – que é
circunstancializado temporal e espacialmente (Quando minha mãe me aparece no aeroporto...). Neste
momento, relembrando-se, emotivamente, das situações vividas, I. presentifica o passado e utiliza par-
tícula expletiva, o pronome oblíquo me, provavelmente como forma de realce. Ao acontecimento notável
é encaixada a evocação de sentimento, que é refletida, intensificada, antecedida de outra partícula de
realce (...eu fiquei feliz, mas tão feliz...). Este sentimento é a antítese daquele revelado na época da
separação, narrada no primeiro parágrafo. Em seguida, ela evoca outro sentimento – retomando o título
– circunstancializando-o, modalizando-o, descrevendo-o, explicando-o, expondo o clímax de sua felicida-
de (...uma saudade inexplicavelmente inexplicável, era o que eu estava sentindo naquele momento...).
Todo o parágrafo com o uso do presente histórico, da locução perifrástica verbo estar no imperfeito +
sentir, no gerúndio, cria o efeito do retorno de I. ao passado, como que revivendo-o intensamente. O
aspecto durativo, revelado pelo uso destes tempos verbais, parece demonstrar, também, sua ansiedade
pelo reencontro com a mãe.
No terceiro parágrafo, temos o desfecho da história, através da sucessão de ações das personagens.
Embora já tendo se referido à mãe e a si própria, o nós parece comportar a existência de mais partici-
pantes no evento, o que é evidenciado via sobreposição de vozes – sem uso de aspas ou travessão, na
colocação dos discursos alheios – que, aqui, cria um efeito discursivo interessante, remetendo o leitor à
confusão no momento de entrega dos presentes (Chegamos em casa, abrimos a mala e começou a fala
mais ou menos assim: isso e para quem? Para mim, né, claro que não, é para mim.).
Se no parágrafo anterior há o fechamento da história, no último aparece o fechamento do texto, intro-
duzido pelo coesivo seqüencial enfim, antecedido, novamente pelo uso de mas como partícula enfática.
I. utiliza novamente o recurso das aspas, para dar maior expressividade e ênfase ao termo. Podemos
considerar o enunciado como uma avaliação da história vivenciada (Mas enfim foi o dia mais “delicioso”
de minha vida.).
Apesar de marcas formais de oralidade – síncope do a em pra; aférese em vó; falta de travessão;
repetição do e e de mas – o texto de I. demonstra domínio da escrita, como gênero discursivo secun-
dário, pelo fato de misturar e encaixar os subgêneros discursivos de forma concisa, distribuindo-os em
quatro parágrafos. Isso é produzido, inclusive, por meio do uso de conetivos, para introduzir explicações/
justificativas (pois, porque), ou para dar fecho ao texto (enfim). O texto em questão é marcado pelo uso
do presente histórico, pela sobreposição de vozes, pela utilização das aspas, para produzir certos efeitos
de sentido, por partículas de realce, etc...
2.2. As paráfrases reprodutivas
Após ler o texto original, Dia D4, o quanto fosse necessário para recontá-lo por escrito, I., sem interlo-

4. Dia D parece-nos uma alusão ao dia da invasão da Normandia, pelas tropas aliadas, que acabou pondo fim à Segunda Guerra Mundial. Certamente, o título
da narrativa, juntamente com a expressão Hora D, em meio ao texto, sugerem efeitos de sentidos como: dia/hora decisivos, marcados, combinados...

Proceedings XI International Bakhtin Conference 545


cução posterior, foi convidada a escrever o que lera, como um modo de ser “ativa”, no ato de recontar/in-
terpretar a história lida, em função da mobilização dos subgêneros discursivos e dos recursos lingüísticos
no ato de escrever; pelas inferências realizadas e pelo preenchimento das lacunas textuais. Enfim, para
que pudéssemos analisar sua capacidade de “retomada – modificação” (François, 1996:33).
O texto Dia D possui uma configuração mais complexa que a narrativa anterior, mais usual, canô-
nica.
A apresentação de personagens genéricos – os da rua de baixo e os da rua de cima – é realizada
através do uso de catáfora, idiossincrático da autora, e de antítese. As atitudes das personagens são
colocadas por meio de circunstancialização temporal e uso do imperfeito, indicando suas ações costumei-
ras, freqüentes. Com a utilização do discurso direto, mas apresentado como manifestação usual, Diléa
Frate encaminha o leitor para a deflagração do conflito – a declaração de guerra.
O conflito – a guerra – então é desdobrado, com a deflagração e demarcação temporal da primeira
batalha.
A seguir, é apresentada uma personagem específica, seus sentimentos e suas atitudes em relação à
batalha.
No dia D, acontecimento notável, é descrito o início do litígio e na resolução deste conflito é colocada,
de forma repentina, um novo conflito – a falta de bandeira branca para o pedido de trégua – permeado
por comentários da autora.
O desfecho da história – a resolução do segundo conflito – é atravessada pelo discurso direto utiliza-
do por personagem não identificada – o sujeito é indeterminado – e pela apresentação do comentário
final.
Para efeito comparativo, subdividimos o texto em oito organizadores dominantes:
- apresentação de personagens genéricos e de suas atitudes usuais;
- introdução do conflito;
- o desdobramento do conflito;
- a apresentação de uma personagem específica; a evocação de sua atitude e sentimento;
- o acontecimento notável;
- a resolução da complicação;
- a apresentação de novo conflito;
- a resolução deste conflito e o comentário final.

Texto-Fonte. Texto de I.
Eram meninos sapecas: os da rua de cima e Eram meninos sapecas: Quando os meninos da
os da rua de baixo. Quando os da rua de baixo rua de baixo iam para a rua de cima eles gritavam:
ousavam ir para a rua de cima, os da rua de cima Alto lá!, invasor e vice-versa.
gritavam: “alto lá! Território inimigo!” O mesmo
acontecia com os da outra rua.

Por causa disso, foi declarada uma guerra. A Certo dia eles resolveram declarar GUERRA.
primeira batalha foi marcada para logo depois da
aula.

Nelio, um dos meninos, chegou a tirar zero em Nélio levou um O na prova de matemática, pois
matemática, tão preocupado estava em armazenar preferiu juntar caroços de jaboticaba para a guerra
o caroços de jabuticaba que ia usar como arma. que iria ser depois da aula.

A hora D chegou e, armados com seus caroços, Todos os preparativos, e a guerra começou
eles esperaram o sinal, um pum do gordo Oscar. quando o pum do gordo Oscar saiu.

A batalha terminou quando acabou a munição


de caroços do pessoal da rua de cima.

Foi aí que perceberam que não tinham levado Nisso os meninos da rua de cima se tocaram que
a bandeira branca para pedir trégua ou paz tanto não haviam levado a bandeira Branca para pedir
faz! trégua ou paz tanto faz.

Alguém teve a idéia “Vamos ver quem tem a Tiveram a idéia de mostrar a “bunda” mais
bunda mais branca, e quem tiver mostra”. Nélio, branca como bandeira.
coitado, foi o escolhido. E naquele dia, além do zero,
ele ganhou uma cusparada certeira bem ardida na No final das contas, Nelio teve que passar
traseira. Até agora está doendo. 2 vergonha: 1 – de tirar 0 na prova 2 – de mostrar
a bunda como bandeira e levar algumas cuspidas
certeiras no trazeiro Seu trazeiro está doendo até
hoje.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 546


O texto de I., em seis parágrafos, apresenta as personagens de forma semelhante à autora, catafori-
camente, mas logo remete-nos às atitudes usuais dos meninos, inclusive com suas falas (Eram meninos
sapecas: Quando os meninos da rua debaixo iam para a rua de cima eles gritavam. Alto la! Invasor e
vice versa.). É provável que tenha ficado introjetado em I. o uso dos dois pontos do texto-fonte, pois
o emprego da maiúscula, a seguir, denota que ela, na verdade, não descreve/localiza as personagens,
como originalmente foi feito, mas já começa a apresentar o comportamento habitual dos meninos.
Percebemos algo próprio de I., a falta de colocação de aspas na introdução do discurso direto, re-
tomado por ela com modificações – Território inimigo é substituído por invasor. Ela utiliza um sucinto
vice-versa, sintetizando o enunciado em que Diléa Frate refere-se à atitude recíproca das personagens
da outra rua.
O conflito para I. é a guerra – que, enfaticamente, retoma em caixa alta – não distinguindo-a, porém,
de batalha, a qual é marcada, de forma indefinida, para certo dia, e não para depois da aula, como no
texto original (Certo dia eles resolveram declarar GUERRA.). I. aspectualiza o enunciado via locução
verbal resolver + declarar, caracterizando uma situação que cursa para um término.
A personagem específica é apresentada por meio da evocação de seus sentimentos e atitudes. Aqui
I. circunstancializa temporal e especificamente o momento da guerra, por intermédio do uso de oração
adjetiva. Na mobilização de recursos lingüísticos, retoma armazenar por juntar, mais coloquial (Nélio
levou um 0 na prova de matemática, pois preferiu juntar caroços de jaboticaba para a guerra que iria
ser depois da aula.).
O acontecimento notável, a hora D, é subsumido por I. como a guerra começou e, armados com seus
caroços retomado-modificado, mais abstratamente, por todos os preparativos. O mecanismo acionador
do início da guerra é colocado através de uma oração circunstancializadora temporal (Todos os prepa-
rativos, e a guerra começou quando o pum do gordo Oscar saiu.). I realiza, nesse momento, perfeita
combinação, mistura dos subgêneros discursivos.
O fim da batalha é omitido por ela e outro conflito – a falta de bandeira branca que concretiza o des-
fecho do litígio – é apresentado com a retomada quase integral do texto-fonte, até com o comentário
de Diléa Frate (Nisso os meninos da rua de cima se tocaram que não haviam levado a bandeira Branca
para pedir trégua ou paz tanto faz.). As modificações mais expressivas realizadas por I. foram a substi-
tuição do verbo perceberam pelo coloquial se tocaram e a colocação da inicial maiúsculo em Branca, que
apreendemos no sentido de enfatizar a simbologia – e importância – da cor no contexto.
O desfecho da história, como resolução do problema, é resumido por I. sem o uso do discurso direto
colocado no original (Tiveram a idéia de mostrar a “bunda” mais branca como bandeira.). Ela parece
subsumir o significado da indeterminação do sujeito, no texto-fonte, com a utilização do verbo na 3ª
pessoa do plural, realizando elipse do termo os meninos, colocado no seu enunciado anterior; e, como
lhe é habitual, usa aspas, para enfatizar, ou como “desculpa”, pelo uso de um termo mais “vulgar”.
O restante da narrativa, manifestado como moral da história, é apresentado conclusiva e coloquial-
mente pela expressão no final das contas. I. resgata a informação da escolha da “bunda” de Nélio como
bandeira, discorrendo sobre situação desta personagem, que é desdobrada em tópicos. (No final das
contas, Nélio teve que passar duas vergonhas:
1 – de tirar 0 na prova
2 – de mostrar a bunda como bandeira e levar algumas cuspidas certeiras no trazeiro).
Em seguida, no mesmo parágrafo, I. retoma o comentário da autora, repetindo a palavra traseiro
- mencionada também logo antes e invertendo, num enunciado mais longo, a posição sintática da cir-
cunstancialização temporal, em relação ao texto-fonte (Seu trazeiro está doendo até hoje.).
Mesmo não distinguindo, no texto original, o sentido mais genérico de guerra em relação à batalha,
e apresentando pequenos problemas de ordem formal, I. colocando-se como leitora, num mundo fic-
cional, demonstra ter apreendido/preenchido/, inferido sentidos num texto curto, de configuração mais
complexa. Tal domínio, por certo, é revelador de seu contato, num ambiente letrado, com textos em que
circula diversidade de modos de contar.
Na produção escrita, retoma, de forma própria, concisa, quase todos os organizadores dominantes
mobilizados por Diléa Frate, mas veicula-os, quase sempre,numa seleção e mobilização própria dos
subgêneros.
O arranjo textual construído na moral da história coloca-se como demonstração evidente de sua ca-
pacidade de retomada-modificação da narrativa fonte, mantendo a sua coerência textual.
2.3 As paráfrases criativas
Conforme já explicitado, nas paráfrases criativas o texto-fonte, usado como pretexto ou patamar
para nova produção textual, desdobra-se e expande-se em novos significados, distanciando-se, assim,
do original.
Neste sentido, nossos sujeitos receberam como suporte para elaboração de suas narrativas, cujo tema
era O Natal das crianças pobres, a leitura de três textos publicados pela Folhinha, do jornal Folha de S.
Paulo, divulgando sonhos/pedidos de Natal, feitos ao Papai Noel, por crianças ligadas ao Projeto Somar.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 547


Tal projeto supre alimentação e oferece reforço escolar, uniforme, assistência médica e odontológica,
além de outras atividades, a crianças de 7 a 12 anos, filhos de lavradores, na região de Matão – SP. O
texto Sonhos viram livro, de caráter mais narrativo, relata as respostas das crianças ao convite feito para
escreverem cartas, solicitando algo ao Papai Noel. O texto Presente é o pai parar de bater apresenta-
se em destaque, informando, constatando a grande distância entre os pedidos das crianças pobres do
Projeto Somar e das outras, provavelmente da classe média para cima. O terceiro texto Pais trabalham
na roça informa ao leitor do que se trata o Projeto Somar.

Sonhos viram livros Presente é o pai parar Pais trabalham na roça Mais 1 Desejo realizado
de bater

Quando as crianças do Enquanto muitas As 98 crianças do 1. Em uma favela no


Somar forma convidadas crianças pedem ao Papai projeto Somar recebem subúrbio de São Paulo,
a fazer um pedido ao Pa- Noel video-game, bicicle- quatro refeições todos morava uma família po-
pai Noel, as pessoas que ta ou carrinho de controle os dias. Quando saem da bre, João, o pai, era um
cuidam delas no projeto remoto, outras querem o escola, eles vão para o aposentado catador de
queriam descobrir real- fim da fome, no Brasil, Somar. Lá, aprendem a papelão, Dina, a mãe era
mente qual era o verda- uma maça e até parar cozinhar, costurar, fazem faxineira de um colégio
deiro sonho de cada uma. de apanhar do pai. Esses ginástica, desenham e público, Henrique o filho
Elas escreveram cartas foram os desejos que até cuidam da horta. Isso mais velho era vendedor
e desenharam. “Essas algumas das 98 crianças tudo depois de fazer a ambulante de chicletes, e
crianças têm consciência do projeto Somar fizeram lição de casa. As dúvidas Pedro era um estudante,
dos problemas sociais do para este Natal. Além do da escola são tiradas nas ele estava na 2ª série. 2.
país”, diz a artista plástica fim da fome no Brasil, aulas de reforço escolar Viviam na miséria, passa-
Rita Ferari Magalhães. O José, 12, que está na 3ª do projeto. As crianças vam fome e à uns 13 dias
Somar selecionou dese- série, pediu que Papai também ganham todo o não comiam. 3. O Natal
nhos e textos que retra- Noel terminasse com as material para estudar e se aproximava e Pedro
tam o sonho das crianças. guerras e também com ainda os uniformes para tinha um desejo, que
O resultado foi trans- as lutas de boxe. Ana, 11, frio e calor. Quando elas sua família não passasse
formado em livro, que que estuda também na 3ª têm problemas de saúde fome nunca mais. 4. Es-
está sendo distribuído série, não quer ganhar são atendidas por um creveu uma carta para o
por empresas brasileiras uma boneca. Pediu para médico. Elas ainda rece- Papai Noel e pediu para
como cartão de Natal no o Papai Noel fazer com bem tratamento dentário. que seu desejo se rea-
Brasil, Europa e EUA. que seu pai pare de bater O objetivo do projeto é lizasse. 5. Falou ao seu
nela. Essas crianças são evitar que as crianças pai para por a carta que
filhas de trabalhadores abandonem a escola e co- havia escrito no correio
rurais e estudam no So- mecem a trabalhar cedo municipal antes do dia
mar, projeto desenvolvido nas fazendas da região. 25 de dezembro. 6. João
nas fazendas Cambuhy e Enquanto elas ficam na foi até o correio, pesou e
Marchesan, em Matão (a escola e no projeto, seus pagou 15 centavos para
305 quilômetros de São pais trabalham na roça. enviar a carta ao Papai
Paulo). Júlio, 7, que está Algumas dessas crianças Noel. 7. Passou 23 dias,
na 1ª série, preferiu pedir demoraram para entrar já era véspera de Natal
uma maçã. Elto, 7, da 1º na escola porque iam tra- e um som se ouvio de
série, resolveu não pe- balhar junto com os pais. alguém batendo palma
dir nada. Simplesmente Muitos pais levavam os na porta de sua casa. 8.
agradeceu ao Papai Noel filhos porque não tinham Abriram a mesma, rece-
por estar aprendendo a onde deixá-los. O Somar beram dinheiro do Papai
escrever. é desenvolvido desde Noel (que na verdade
1994, com o apoio de era o Prefeito) e tiveram
algumas fábricas de suco como se alimentar pelo
de laranja e de outra que resto do ano, e agora,
fabrica máquinas para o todo ano Pedro faz o
campo. Todas as crian- mesmo pedido, mesmo
ças, a maioria com idade continuando a morar na
entre 7 e 12 anos, são favela. ___
filhas de trabalhadores
rurais. Seus pais colhem
laranja, dirigem tratores
e caminhões nomeio das O QUE IMPORTA É QUE TE-

fazendas e cortam cana. NHAM SAÚDE E BOA ALIMENTAÇÃO


E MÁ MORADIA, DO QUE QUANDO
TEM BOA MORADIA, E PASSAM
FOME.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 548


Elegemos, em primeiro lugar, como fios condutores de nossa análise as possíveis retomadas-mo-
dificações realizadas nas narrativas dos sujeitos, em relação aos textos-fonte, ou seja, quais sentidos
foram intertextualizados, via processo de leitura, na construção de suas produções escritas, em seus
“saltos de imaginação”.
O título da produção de I., Mais 1 desejo realizado, remete ao tema perpassado nos textos lidos. Ela
coloca-se no mundo ficcional, como narradora em 3ª pessoa, observadora de uma situação, conforme
solicitado pela pesquisadora, diferente da sua, de menina de classe média-alta.
Nos três primeiros parágrafos, caracterizando a situação de pobreza – certamente em atendimento ao
tema proposto – e com o uso do verbo no pretérito imperfeito, ela apresenta o local; a família; as per-
sonagens familiares de forma detalhada; a complicação e a evocação do desejo de uma personagem.
No primeiro parágrafo, circunstancializado espacialmente, introduz a família e as personagens, ca-
racterizando-as. Descreve pormenorizadamente as atividades dos membros familiares e suas relações
de parentesco, enfatizando sua situação sócio-econômica. (Em uma favela no subúrbio de São Paulo,
morava uma família pobre, João, o pai, era um aposentado catador de papelão, Dina, a mãe era faxineira
de um colégio público, Henrique o filho mais velho era vendedor ambulante de chicletes, e Pedro era um
estudante, ele estava na 2ª série.).
No parágrafo seguinte, ela apresenta o conflito, como uma situação durativa, freqüente, com o em-
prego do imperfeito, utilizando ainda o recurso lingüístico da gradação para enfatizar a dramaticidade
do problema (Viviam na miséria, passavam fome e à um 13 dias não comiam.). Percebemos uma certa
incoerência na visão/conhecimento de mundo de I. – o fato de todos trabalharem e do pai ser aposen-
tado e, mesmo assim, terem ficado treze dias sem comer. Além disso, com treze dias de fome absoluta,
como poderiam continuar, em pé, trabalhando?
Depois, no terceiro parágrafo, circunstancializando, ela evoca o desejo de uma das personagens. (O
Natal se aproximava e Pedro tinha um desejo, que sua família não passasse fome nunca mais.). Aqui
aparece explícita intertextualização do texto-fonte: os desejos das crianças do Projeto Somar. I. realiza
um movimento catafórico neste enunciado, embora use vírgula, em lugar de dois pontos para explicitar
o desejo do menino.
A tentativa de resolução do conflito – que ela coloca no pretérito perfeito – aparece nos três pará-
grafos seguintes, numa série de ações das personagens, devidamente circunstancializada e explicitada
(Escreveu uma carta para o Papai Noel e pediu para que seu desejo se realizasse./ Falou ao seu pai
para por a carta que havia escrito no correio municipal antes do dia 25 de dezembro / João foi até o
correio, pesou e pagou 15 centavos para enviar a carta ao Papai Noel.). O processo de intertextualização
aparece através do pedido ter sido feito por uma criança, via carta. Observamos, nesses enunciados,
que I. transfere sua visão de sujeito superprotegido de classe média-alta à situação do filho de Pedro
– mesmo tendo que andar quilômetros numa atividade desgastante, o pai teve tempo para atender ao
“capricho” do filho. Também revela domínio do funcionamento do processo de envio de cartas no correio,
esmerando-se nestes detalhes.
No sétimo parágrafo, circunstancializando temporalmente, pela primeira vez no pretérito perfeito e,
pela segunda vez, mobilizando, novamente o imperfeito – que ela continua, depois, usando em todo o
enunciado, acrescentado pelo gerúndio – expressa, então, um movimento de expectativa, provocando
efeito-suspense no texto. (Passou 23 dias, já era véspera de Natal e um som se ouvio de alguém baten-
do na porta.). Emprega, também, o recurso expressivo já, ao introduzir o segundo circunstancializador,
indicando a iminência temporal na “...direção de um fim que se coloca (...) como a expectativa desejada”.
(Costa, 1997:86). I. usa a voz passiva analítica para criar efeito suspense.
A resolução do problema aparece no parágrafo seguinte, inclusive com uma ressalva, colocada en-
tre parênteses para tornar a situação mais verossímil (Abriram a mesma, receberam dinheiro do Papai
Noel (que na verdade era o Prefeito) e tiveram como se alimentar pelo resto do ano, e agora, todo ano
Pedro faz o mesmo pedido, mesmo continuando a morar na favela.). I. demonstra dominar o processo
coesivo de retomada, substituindo a palavra porta, utilizada no parágrafo anterior, por a mesma. Retoma
o presente, para informar uma ação que se tornou habitual e faz outra ressalva no seu final do texto,
reveladora de uma situação que se perpetua, com o uso de gerúndio.
Então, em caixa alta, coloca explícita e intencionalmente, a moral da história, que está relacionada
à ressalva, apresentada no desfecho de sua narrativa, demonstrando, assim, uma certa visão ingênua
de criança e, também, a concepção assistencial da classe média. Já que tudo não pode ser resolvido...
(O QUE IMPORTA E QUE TENHAM SAÚDE E BOA ALIMENTAÇÃO E MA MORADIA, DO QUE QUANDO TEM
BOA MORADIA, E PASSAM FOME.).
I., apesar de ter apresentado algumas incoerências relativas ao seu conhecimento de mundo, con-
seguiu descentrar-se, relativamente, de seu ambiente vivencial, mobilizando, com eficiência, recursos
textuais, gramaticais e lingüísticos na construção de uma narrativa ficcional sobre um drama social
brasileiro. Diferentemente dos textos anteriores em que ela é personagem ou em que parafraseou um
texto “engraçado” e, também, devido ao tema, suas estratégias de dizer comportaram um caráter mais
formal, menos lúdico. Movimentou, como habitual, recurso expressivo que superlativiza as situações,
através da gradação, o uso de parênteses, empregados na ressalva, e a voz passiva analítica, para criar
suspense. Resgatou dos textos originais elementos referentes à pobreza, Natal, criança, escola, pedido,
carta e Papai Noel. Os três primeiros também relacionados ao tema proposto, além de organizar de forma
adequada e criativa a seleção/mobilização dos modos de dizer.
Proceedings XI International Bakhtin Conference 549
À guisa de conclusão
De acordo com François:
“se existem diferenças sociais entre crianças de classes sociais ou de grupos sociais dife-
rentes é mais, sem dúvida, no plano dos tipos de uso da linguagem, dos gêneros... Pres-
crevemos e proibimos, sem dúvida, a todas as crianças. Há certamente, crianças a quem
damos argumentos e a outras não. Há crianças que habituamos ao monólogo, ao prazer da
história contada e outros não. Enfim, não é tanto a língua na abstração dos lingüistas que
pode diferenciar as crianças; mas muito mais os modos diferentes de cultura de linguagem,
produzidas antes de tudo pelos gêneros” (1996, p. 120).

Embora admitindo um “continuum” entre linguagem oral e escrita, nós completaríamos a afirmação
do autor, postulando, que há sujeitos a quem foi dada a possibilidade desde a tenra infância, de maior
contato com a escrita, como um outro modo de funcionamento da linguagem via gênero discursivo
secundário, que influencia a própria fala (Kato, 1996; Rego, 1992) – a outros não (leitura de livros de
histórias, presença de jornais, revistas, outros livros, internet, etc., além das muitas vozes sociais orais,
perpassadas pela escrita, como os diálogos no próprio ambiente familiar).
De certa forma, podemos concluir que I., vivendo imersa em um mundo letrado, com uma situação
sócio-econômico-cultural privilegiada, começa a manifestar, com certa facilidade, em meio à heterogenei-
dade discursiva, sua subjetividade na escrita de textos narrativos, assumindo diferentes papéis discursivos,
de acordo com os temas propostos, aos conteúdos mobilizados e aos mundos onde são produzidos. Ela
os apresenta, inclusive, com unidade de sentido na seleção e articulação dos modos de dizer e, ainda,
movimenta com propriedade recursos lexico-gramaticais na produção de sentidos.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. (Voloshinov V.N). Marxismo e filosofia da linguagem. 4ed. Trad. M. Lahud e Y. F. Pereira. São Paulo:
Hicitec, 1988.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. M. & G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
COSTA, S.B.B. O aspecto em português: semântica do verbo, aspecto e tempo, perífrases verbais. São
Paulo: Contexto, 1997.
FARACO, C.A. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: CRIAR EDIÇÕES,
2003.
FIAD, R.S. Reescrita e estilo. In: Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Abaurre,
M.B., Fiad, R.S. e Mayrink-Sabinson, M.L. (orgs.). Campinas: Mercado de Letras, 1997.
FOLHA DE S. PAULO. Natal. Presente é o pai parar de bater. Sonhos viram lixo. Pais trabalham na roça. In: Folhinha.
São Paulo: Folha da Tarde S/A, 29/11/97. p. 5.
FRANÇOIS, F. Práticas do oral. Trad. de L.E. Melo. São Paulo: Pró-Fono, 1996a.
__________. Anotações de aula do curso. A linguagem criança-adulto. São Paulo: FFLCH/USP, 6 a 21 de novem-
bro, 1996b.
FRATE, D. Histórias para acordar. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1996.
KATO, M. Aprendizado de leitura. 2ed. São Paulo; Martins Fontes, 1997.
MESERANI, S. O intertexto escolar: sobre leitura, aula e redação. São Paulo: Cortez, 1995.
ORLANDI, E.P. Discurso e leitura. 2ed. São Paulo: Cortez, 1993.
PERFEITO, A.M. Leitura e produção de textos: maneira de ver, maneiras de dizer... Tese de doutorado. São Paulo,
FLCH/USP, 1999.
__________. Emergência de autoria. In: Estudos Lingüísticos. v. 2. São Paulo: Revista Eletrônica (no prelo).
REGO, L.B. Descobrindo a escrita antes de aprender a ler: algumas implicações pedagógicas. In: A concepção da
escrita pela criança. 2ed. Kato, M. (org.). Campinas: Pontes, 1992.
TFOUNI, L.V. Letramento e alfabetização. Campinas: Cortez, 1995.

Textos-chave
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de M. & G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FRANÇOIS, F. Práticas do oral. Trad. de Lélia E. Melo. São Paulo: Pró-Fono, 1996.
__________. Anotações de aulas do curso A linguagem adulto-criança. São Paulo: FLCH/USP, 6 a 21/11/96.
FIAD, R.S. Reescrita e estilo. In: Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Abaurre,
M.B., Fiad, R.S. e Mayrink-Sabinson, M.L. (orgs.). Campinas: Mercado de Letras, 1997.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 550


Nomes-chave: Mikhail Bakhtin; Frédéric François; Raquel Salek Fiad.
Palavras-chave: narrativas escritas; dialogismo; heterogeneidade discursiva;
marcas singulares; mundos; temas/conteúdos; papéis discursivos; gêneros/subgê-
neros discursivos.
Key words: written narratives; dialogism; discoursive heterogeneity; individual
features; worlds; themes/contents; discoursive roles; descoursive genres/sub-
genres.
Biografia resumida: Alba Maria Perfeito é doutora em Lingüística pela USP/SP,
1999. Foi professora de Língua Portuguesa da rede estadual, entre 1973-1994.
Atua, desde 1990, na Universidade Estadual de Londrina ministrando aulas/super-
visionando estágios/orientando alunos nos cursos de Licenciatura em Letras e no
programa de Mestrado/Doutorado em Estudos da Linguagem. Tem artigos, nas áreas
de Lingüísticas/Ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, publicados em várias
revistas especializadas e em dois livros. Está co-organizando a obra “Contando e
recontando histórias: um estudo sobre narrativas escolares”. Coordena, atualmente,
o projeto de pesquisa, em Lingüística Aplicada, “Escrita e ensino gramatical”.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 551


As fronteiras do eu na constituição da memória: uma extensão de
O autor e o herói, de M. Bakhtin, à teoria da história

Deise Cristina de Lima Picanço

Profª do Dep. de Teoria e Prática de Ensino da UFPR;

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR.

Endereço postal: Rua José Ananias Mauad, nº 200, apto 410,

Jardim Botânico, Curitiba/Paraná/Brasil Cep. 80210-130

e-mail: dedeclp@terra.com.br

Resumo
Este trabalho busca mostrar que a concepção dialógica de linguagem do Círculo de Bakhtin pode tornar-
se um dispositivo teórico importante para explicar a memória como constituída por elementos individuais
e coletivos ao mesmo tempo. Parte de uma reflexão sobre a relação da consciência com o tempo passado
através da apropriação do conceito de exotopia elaborado por Bakhtin em Para uma Filosofia do Ato e O
autor e o herói. Tratando a memória como composição multidimensional de vozes busca estabelecer um
diálogo entre os estudiosos do Círculo de Bakhtin e os historiadores. Nesse sentido, levanta questões
de linguagem que permeiam o fazer historiográfico, que nem sempre são levadas em conta, tentando
evidenciar que, tanto a experiência vivida quanto a produção estética compartilham parte do mesmo
processo de significação, fazendo do trabalho do pesquisador-historiador um gesto interpretativo que se
realiza nas fronteiras do eu e do outro.
Resumen
Este trabajo busca evidenciar que la concepción dialógica del lenguaje del Círculo de Bajtín puede
volverse un dispositivo teórico importante para explicar la memoria como constituída por elementos in-
dividuales y colectivos al mismo tiempo. Parte de una reflexión acerca de la relación de la conciencia con
el tiempo pasado a través de la apropiación del concepto de exotopía, desarrollado por Bajtín en Hacia
una Filosofía del Acto Ético y El autor y el heroe. Tratando la memoria como composición multidimen-
sional de voces, busca establecer un diálogo entre los estudiosos del Círculo de Bajtín y los historiadores.
En ese sentido, propone cuestiones de lenguaje que permean al trabajo historiográfico, que muchas
veces dejan de ser llevadas en cuenta, intentando evidenciar que, tanto la experiencia vivida, cuanto la
producción estética comparten el mismo proceso de significación, haciendo del trabajo del historiador
un gesto interpretativo que se realiza en las fronteras entre el otro y el yo.
.
As recentes discussões sobre o uso da memória como fonte historiográfica têm se deparado com a
dificuldade de se entender o que é individual e o que é coletivo na construção de interpretações do tempo
passado. De acordo com tais debates, a (re)constituição do passado como resultado da interpretação do
historiador se dá pela seleção, organização e interpretação de uma dispersão de documentos/monumentos,
que devem ser compreendidos na forma de uma apreensão, pelo pesquisador, do ambiente sócio-histórico
em que estes arquivos são elaborados. Por outro lado, apropriar-se daquilo que constitui a memória, em
cada momento, é, também, apropriar-se das regras de retórica que compõem os depoimentos daqueles
que viveram como presente aquilo que tentamos interpretar como passado. Caminhando nessa via de
mão dupla, só podemos entender a memória como resultado tanto do trabalho do historiador quanto da
atividade seletiva de quem organiza suas lembranças, tornando-se uma composição multidimensional;
ou seja, só podemos entender a memória como produto de duas consciências descentradas, povoadas
pelos signos e pelas vozes alheias que dão a elas o acabamento necessário à sua constituição.
Levando em conta o aspecto discursivo que compõe o texto da memória, devemos buscar, nos deba-
tes sobre as teorias do discurso, uma fonte teórica que dê conta de explicar como os discursos alheios
compõem a rede de significações que dão sentido àquilo que construímos como arquivos da memória.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 552


Com esse intuito, poderíamos tentar encontrar na noção de inconsciente um dispositivo teórico que
explicasse a idéia de que a memória é uma composição multidimensional. No entanto, embora a contri-
buição de Lacan tenha sido fundamental para se pensar sobre o descentramento do sujeito pela noção de
inconsciente, não será dela que vamos tratar aqui, primeiro porque nos falta o devido aprofundamento
teórico sobre as idéias do autor, e, segundo, porque nosso intuito é mostrar a plasticidade do pensa-
mento bakhtiniano propondo uma extensão de algumas de suas idéias para o debate sobre memória
na pesquisa historiográfica. O propósito deste trabalho, portanto, é trazer para o debate um dispositivo
teórico encontrado na concepção bakhtiniana de linguagem como composição multidimensional de vozes.
É nesse sentido que falamos em descentramento do sujeito, da consciência e portanto da constituição
da memória.
Como o nosso propósito é mostrar que a concepção dialógica de linguagem do Círculo de Bakhtin,
como elemento constitutivo de uma teoria da apropriação da palavra alheia, pode nos ajudar a explicar
de que forma a memória é constituída por vozes e signos ao mesmo tempo individuais e coletivos, esta-
mos propondo uma reflexão sobre a relação da consciência com o tempo passado a partir da noção de
exotopia elaborada por BAKHTIN em seu textos de juventude: Para uma filosofia do ato e O autor e o
herói. Embora tenham permanecido inacabados, estes trabalhos oferecem uma reflexão que transcende
a preocupação puramente estética em busca de uma apreensão da relação ética entre duas consciências,
uma dando acabamento à outra. Dessa forma, podemos crer que, ainda que BAKHTIN tenha se debruçado
sobre o processo de significação estética, a capacidade heurística de sua obra nos permite fazer uma
extensão a outros processos de (re)significação, como o que estamos propondo.
Da mesma forma, é importante lembrar que o debate sobre a memória, no campo historiográfico,
começou a ganhar alguma importância a partir da segunda metade do século XX. De acordo com o ensaio
de Jacques LE GOFF(1996, p. 423), “a memória, como propriedade de conservar certas informações, re-
mete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar
impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”, levando-nos a considerar o
aspecto biológico da memória. No entanto, “diversas concepções recentes da memória, que põem a tônica
nos aspectos de estruturação, nas atividades de auto-organização”, consideram que “os fenômenos da
memória, tanto nos seus aspectos biológicos como nos psicológicos, mais não são do que os resultados
de sistemas dinâmicos de organização e apenas existem ‘na medida em que a organização os mantém
ou os restitui”(LE GOFF, 1996, p. 424). Por isso, segundo LE GOFF, muitos pesquisadores foram levados
a aproximar a memória de fenômenos diretamente ligados à esfera das ciências humanas e sociais.
A reflexão de Maurice HALBAWACHS, que foi um dos primeiros historiadores a se preocupar, nesse
período, em elaborar um conceito de memória, abriu espaço para que se discutisse a relação entre a
história individual e a história coletiva. Para HALBAWACHS (1990, p. 26), a memória é coletiva porque
a consciência é coletiva, “porque, em realidade, nunca estamos sós”. A memória coletiva, para ele, se
revela uma corrente de pensamento contínua porque mantém estreita relação com os acontecimentos
que permanecem vivos para o grupo no qual ela se constitui, não ultrapassando, no entanto, os limites
desse grupo.
Mais recentemente, outros autores dedicados ao fazer historiográfico têm se debruçado sobre o pro-
blema da memória. A perspectiva assumida pelo sociólogo Michael POLLAK, por exemplo, modifica o
conceito de memória acrescentando-lhe aspectos da situação social mais imediata, do momento de inte-
ração entre locutor e ouvinte/leitor ou pesquisador e depoente. Para ele, além de ser seletiva, a memória
também é construída e sofre as determinações sócio-históricas desses momentos de interlocução.
No campo discursivo, a memória também é um espaço de interação e de conflitos, isto é, de disputas
entre os sujeitos que dizem o seu passado. Para Michael PÊCHEUX (1999, p. 50), a memória é “necessa-
riamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos, réplicas, polêmicas e contra-
discursos”, e “o fato de que exista assim o outro em toda memória é [...] a marca do real histórico como
remissão necessária ao outro exterior, quer dizer, ao real histórico como causa do fato de que nenhuma
memória pode ser um frasco sem exterior”. Ou seja, ela sempre se dirige ao outro, a memória busca sua
remissão no outro que lhe dá acabamento (usando aqui um termo bakhtiniano).
A idéia de vinculação da consciência à experiência vivida é um dos elementos centrais da concepção
de linguagem do Círculo de Bakhtin. Em Discurso na vida, discurso na arte, VOLOSHINOV afirma que, “na
vida, o discurso verbal é claramente não auto-suficiente. Ele nasce de uma situação pragmática extra-
verbal e mantém a conexão mais próxima possível com essa situação não podendo dela ser divorciado
sem perder parte de sua significação”1.
Portanto, acreditamos que dois fatores tornam-se centrais para entendermos o que seria a memória
como composição multidimensional de vozes: a não desvinculação do sentido em relação à história, e a
alteridade como fator de descentramento do sujeito. Para os autores do Círculo, a natureza da lingua-
gem está na interação social; dito de outro modo, ela está no processo dialógico de interlocução, que
torna a palavra bivocal, e é entendido como uma metáfora do funcionamento das línguas humanas. No
entanto, para que o aspecto dialógico da linguagem a faça funcionar, é preciso que ele se torne uma
força produtiva movida pelos conflitos e divergências individuais, marcados pela estratificação social da
linguagem que constitui a heteroglossia. Portanto, poderíamos dizer que a composição multidimensional
1 VOLOSHINOV, 1926, Slovo v zhizni i slovo v poesie. A citação foi retirada da tradução feita por FARACO e TEZZA, para uso didático (p. 113), que tomou
como base a tradução inglesa de I. R. Titunik (“Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics”), publicada em V. N. Voloshinov,
Freudism, New York, Academie Press, 1976.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 553


de vozes é o efeito do dialogismo movido pela heteroglossia.
Bakhtin começa seus estudos sobre linguagem a partir de sua preocupação com uma noção de Ser
orientada por uma atitude emocional-volitiva que só tem sentido no acontecimento aberto da vida, ou
seja, na sua eventicidade. Em seu texto Para uma Filosofia do Ato encontramos uma reflexão sobre
a determinação do Ser em que não há coincidência possível entre um ser e qualquer outro em sua
existência no mundo. Por isso, para Bakhtin, nós ocupamos um único lugar no espaço e no tempo da
existência e não podemos olhar para esse lugar senão deslocados no tempo e no espaço, pois o lugar
que ocupamos só se concretiza para nós no ato ético de estar no mundo. Isto quer dizer que, embora
ninguém possa coincidir comigo, com o lugar que ocupo no mundo, eu mesmo não sou capaz de deter-
minar com exatidão os contornos da minha existência. Eu só posso conhecê-la do interior da experiência
vivida, na eventicidade do meu ato, e não posso conhecê-la do exterior sem deturpar minha relação com
minha própria existência. Só o outro, por não poder coincidir comigo, pode ter os contornos de minha
existência no mundo.
BAKHTIN encontrará, no desenvolvimento de sua reflexão sobre a eventicidade do ser na atividade
estética, um mundo que ele define como “concreto e pleno de tons emocionais e volitivos, [que] se en-
contra, entre todos os mundos culturalmente abstratos [...], mais próximo do mundo único e singular
do ato ético”2 (BAJTIN, 1997, p. 67). Ou seja, para o autor, o mundo da atividade estética, entre todas
as atividades culturalmente organizadas, é o que mais se aproxima da existência como ato ético e da
relação do ser com o outro. Não é nosso propósito discutir filosoficamente a questão do ser em BAKHTIN,
mas entendemos que ela pode nos ajudar a compreender o problema da memória na relação do o eu-
da- existência com o outro-do-passado.
Ao discutir sobre o corpo e sua existência exterior e interior, no texto sobre O autor e o herói, BAKHTIN
(1992, p. 137) afirma que “minha autoprojeção nunca é realista, não conheço a forma do dado a respeito
de mim mesmo: a forma do dado deturpa radicalmente a imagem de minha existência interior”. Mais
adiante, ele diz que “minha determinação de mim mesmo não me é dada nas categorias da existência
temporal, mas nas categorias do que é ainda–in-exitência, na categoria das finalidades e do sentido,
no futuro do sentido, hostil a qualquer forma de minha atualidade no passado e no presente. Ser, para
mim mesmo, significa estar ainda por-vir (deixar de ser por-vir para si mesmo, ser- aqui-já por inteiro
significa morrer espiritualmente)”(BAKHTIN, 1992, p. 137).
Para BAKHTIN, essa espécie morte espiritual é o que dá acabamento ao ser. Só com a morte minha
existência pode ser determinada, acabada, dada efetivamente. Saber que o outro também é refém de si
mesmo e de seu ainda por-vir, o excedente de minha visão sobre o outro, desde o lugar que ocupo em
minha própria eventicidade, permite que eu veja nele aquilo que ele não pode ver do lugar que ocupa.
Portanto, para o autor, somente na relação com o outro é que a minha vivência pode ter um certo aca-
bamento, pois só o outro possui o excedente de visão necessário a esse acabamento, exatamente por
não coincidir com o meu eu no espaço-tempo que ocupo. Somente sua condição exotópica é capaz de
produzir este acabamento sobre o acontecimento aberto da vida. Na atividade estética, é essa condição
exotópica que permite ao outro ser herói, ser acabado, dado definitivamente. Nas palavras de BAKHTIN,
“o outro coincide consigo mesmo, e eu o enriqueço de fora em virtude dessa coincidência – integridade
que lhe assegura um acabamento positivo, sendo assim que ele fica esteticamente significante, fica
herói”(1992, p.143). Da mesma forma, considerando que só a condição exotópica me permite a heroi-
cização, só posso tornar-me o herói de mim mesmo se eu me tornar um outro–para mim, isto é, se eu
sofrer uma espécie de morte espiritual que me permita um certo acabamento de mim mesmo.
Portanto, se, na vida, a exotopia é uma realidade concreta, ou seja, não coincidimos com ninguém,
nem física nem mentalmente, na atividade estética ela deve ser uma batalha travada entre o autor e o
herói. Por isso, acreditamos que a constituição da memória funciona de forma semelhante, ou seja, ocorre
uma batalha entre o eu-para-mim e os outros-para mim, mesmo que este outro seja meu próprio eu,
num espaço-tempo distinto. Essa exotopia espaço-temporal permite que eu, como outro-para mim, e os
outros-para-mim, possamos sofrer um tipo de morte espiritual, de heroicização. Isso quer dizer que a
constituição da memória exige uma condição exotópica em relação ao ser do passado, uma heroicização
do outro-outro e do outro-eu.
Ao considerarmos a noção de exotopia como um elemento produtivo na interpretação da consciência,
e dos fatos da consciência - estéticos ou não -, propondo uma extensão do termo numa tentativa de
compreender os processos de constituição da memória como fonte de pesquisa, estamos pressupondo
que, nesses processos existam duas consciências que não coincidem. Nas palavras de BAKHTIN(1992,
p. 45),
o excedente de minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar
requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me
com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo co-
locar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo
o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente
que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de
meu sentimento.

2 tradução nossa da versão em espanhol

Proceedings XI International Bakhtin Conference 554


No entanto, para que se estabeleça a condição exotópica, isto é, para que eu possa fazer o movi-
mento de volta à minha consciência é necessário que antes tenha ocorrido uma espécie de morte como
forma de acabamento. Para BAKHTIN (p. 144), “a antecipação da morte tem essencial importância para
o acabamento estético da pessoa”, pois,
Para uma abordagem estética da existência interior do outro, é preciso, em primeiro lugar,
não crer ou ter esperanças nele, mas aceitá-lo em seus valores; é preciso não estar com
ele e nele, mas de fora (pois nele, dentro dele, não há outra dinâmica além da fé e da es-
perança). A memória, que reúne e acaba, põe-se de pronto em ação no mesmo momento
em que o herói aparece: este é engendrado por essa memória (da morte); o processo de
formação é um processo de recordação.

O processo de formação do outro como herói deve ser visto como um processo de reconhecimento,
ou seja, não podemos reviver o que já foi vivido no outro, mas validar a experiência vivida através do
reconhecimento dos valores do outro. Para BAKHTIN (p. 145), isso significa que,
Desde o início devemos determinar, às apalpadelas, as fronteiras de seu sentido, admirar
a qualidade formal de seu acabamento e não esperar dele revelações de sentido; desde
o início devemos vivenciá-lo por inteiro, lidar com seu todo, e, no sentido, ele deve estar
morto para nós, formalmente morto. É isso que permite dizer que a morte é a forma estética
de acabamento da pessoa. A morte enquanto falência de uma validação, enquanto fracasso
do sentido, contabiliza o sentido, coloca um problema e propõe métodos para a validação
estética efetuada fora do sentido. Quanto mais perfeita for a encarnação melhor ouvire-
mos os sons intensos do acabamento operado pela morte, ao mesmo tempo que a vitória
estética sobre a morte, o combate da memória contra a morte (a memória entendida como
tensão que se exerce sobre os valores e como fixação e aceitação que se operam sem levar
em conta o sentido).

A memória portanto é o resultado do processo de validação, aceitação, recordação e acabamento


do outro-herói por um eu-autor. De acordo com BAKHTIN, “depois do enterro, depois da lápide funerária,
vem a memória. Possuo toda a vida do outro fora de mim e é aí que começa o processo estético signi-
ficante em cujo fim o outro se encontrará fixado e acabado numa imagem estética significante”(p.121).
Por isso, “a contemplação da minha própria vida não é mais que antecipação da recordação que essa
vida deixará na memória dos outros” (p. 167)
Bakhtin descreve, numa espécie de tipologia, os diversos graus de relação do autor com o herói,
mostrando de que forma essa relação modifica as condições de exotopia e acabamento. Nessa tipologia
entram a introspecção-confissão, a (auto)biografia, o herói lírico, o de caráter, o tipo e a hagiografia.
Na verdade, mais do que tipos muito bem delimitados, essas formas de relação entre o autor e o herói
ocorrem de modos variados dentro de uma obra. A batalha entre eles, que ora se confundem, ora se
separam, implica, quase sempre, no acabamento da obra, uma separação nítida e a vitória do autor.
Dentre as possíveis relações entre o autor e o herói, descritas por BAKHTIN, as que mais nos
interessam para esse trabalho estão na biografia - ou autobiografia - por serem mais exemplares para
a reflexão que estamos fazendo em torno da memória. De acordo com o autor,
Não existe em princípio uma demarcação nítida entre a autobiografia e a biografia, e este é
um ponto essencial. A distinção existe, claro, e pode até ser considerável, mas não se situa
no plano de valores da orientação da consciência. Na biografia ou na autobiografia, a relação
consigo mesmo – com o eu-para-mim – não é um elemento constitutivo e organizador da
forma artística.

Entendo por biografia ou autobiografia (narrativa de uma vida) uma forma tão imediata
quanto possível, e que me seja transcendente, mediante a qual posso objetivar meu eu e
minha vida num plano artístico.(p.165)

No entanto, é importante ressaltar que a existência de elementos autobiográficos em uma obra não
a leva a compor um valor biográfico, ou seja, faltam-lhes os elementos específicos daquilo que constitui
a obra autobiográfica. Para BAKHTIN(1992, p. 166),
No que se referem aos elementos autobiográficos dentro de uma obra eles podem variar
ao infinito e relacionar-se seja com a confissão, seja com a exposição prática, puramente
objetiva que expõe um ato (ato cognitivo, especulativo, político, prático, etc) ou, enfim,
podem ser líricos; eles só nos apresentam interesse quando são precisamente biográficos,
ou seja, quando servem para realizar o valor biográfico.

E sobre isso ele explica que:


O valor biográfico é entre todos os valores artísticos, o menos transcendente à autoconsci-
ência; por isso o autor, na biografia, como em nenhum outro lugar, situa-se muito próximo
de seu herói.(...) O valor biográfico pode ser o princípio organizador da narrativa que conte
a vida do outro, mas também pode ser o princípio organizador do que eu mesmo tiver vivi-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 555


do, da narrativa que conta minha própria vida, e pode dar forma à consciência, à visão, ao
discurso que terei sobre a minha própria vida.

Como, então, a memória, como um tipo de texto composto pelo valor biográfico pode ser constituída
individual e coletivamente? Para BAKHTIN, boa parte do que nós sabemos de nós mesmos vem do que os
outros nos dizem sobre nós. Nosso nascimento e nossa morte, por exemplo, não são eventos da nossa
vida, pois pertencem à existência do outro, que é o único capaz de ver o que nos é negado perceber
sobre nós mesmos. Somente na condição de ser um eu-outro é que posso falar destes acontecimentos,
pois eles foram vivenciados no mundo dos outros. Por isso, “o outro estabelecido por minha livre e es-
pontânea vontade em mim mesmo, com toda a sua autoridade, serve-me de orientação e não me sirvo
dele como de um meio (não é o mundo dos outros em mim, sou eu no mundo dos outros, um eu que
participa desse mundo)”(p.168)
Portanto, assim como na obra biográfica, a memória depende não só de uma condição de exotopia,
mas também de que essa condição seja alimentada pelo valor biográfico, composto, por sua vez, pelos
valores do mundo dos outros. “Logo, é com a condição de participar dos valores do mundo dos outros que
uma objetivação biográfica pessoal poderá ter autoridade e ser produtiva”(p.169). Por isso, o eu-autor,
para garantir a condição exotópica, deve retornar ao seu lugar e, “em seu ato criador, deve situar-se na
fronteira do mundo que está criando, porque sua introdução nesse mundo comprometeria a estabilidade
estética deste”(p. 205). Isso porque, como já dissemos anteriormente, minha autodeterminação não se
faz sem deturpar a imagem de minha existência interior, sem que algo se perca dessa existência.
Embora sempre esteja levando em conta a estabilidade estética da relação autor-herói é importante
ressaltar, para o propósito que assumimos nesse trabalho, que, para BAKHTIN, “a forma biográfica é a
forma mais ‘realista’, pois é nela que de fato transparecem menos as modalidades de acabamento, a ati-
vidade transfiguradora do autor, a posição que, no plano dos valores, situa-o fora do herói - limitando-se
a exotopia a ser quase que só espacio-temporal”(p.166). Mais adiante ele diz que “os valores biográficos
são valores comuns compartilhados pela vida e pela arte; em outras palavras, eles podem determinar os
atos práticos e suas finalidades; são as formas e os valores de uma estética da vida”(p.166). É por isso
que a biografia, como um tipo de relação estética entre o eu- autor e o outro-herói, pode nos interessar
também na pesquisa historiográfica, pois elas compartilham o mesmo modo de relação entre forma e
conteúdo numa estética da vida.
Para o pesquisador-historiador, diante do texto da memória, é importante levar em conta esse mo-
vimento de ida e vinda do autor nas fronteiras que estabelece com o herói, algumas mais nítidas outras
menos. Por isso a noção de exotopia como condição do texto da memória, pode ser tomado com um
dispositivo teórico importante no momento de se estabelecer o distanciamento do pesquisador, diminuindo
o risco de que se confundam as vozes e se percam as fronteiras. Embora estejamos sempre correndo
riscos no gesto interpretativo, o que mais compromete a qualidade do nosso gesto é o de tomar a lin-
guagem com transparente, e interpretar o texto da memória levando em conta somente o seu conteúdo,
como se fosse proferido por uma única voz, resultante de uma consciência auto-centrada. Ou seja, o
pesquisador-historiador deve levar em conta o todo do processo de composição que constitui qualquer
produto da consciência, em que entram em jogo tanto o conteúdo do que se diz, quanto o material e a
forma desse dizer. É preciso estar atento, por exemplo, e entre outras coisas, às formas de apropriação
da palavra alheia na composição da relação entre o autor e o herói.
Ao propormos esta reflexão sobre a memória como composição multidimensional de vozes, preten-
demos abrir um espaço a mais na interlocução entre os estudiosos do Círculo de BAKHTIN e os historia-
dores. Nosso propósito, além de fazer uma reflexão sobre uma possível extensão da noção de exotopia,
foi levantar questões de linguagem que permeiam o fazer historiográfico e que nem sempre são levadas
em conta pelos que se dedicam a ele. Para nós, é importante que o pesquisador, enfim, trabalhe com
a idéia de que o homem e seu mundo formam o centro irradiador da visão estética que produz certos
tipos de organização conteúdo/forma que se fundamentam na relação entre o eu e o outro, evidencian-
do que tanto a experiência vivida, quanto a produção estética, compartilham parte do mesmo processo
produtivo/interpretativo. Portanto, o trabalho do pesquisador-historiador é um gesto interpretativo que
se faz nas fronteiras do eu e do outro.
Enfim, para encerrar, lembramos que, para BAKHTIN,
Cumpre compreender que tudo o que dá valor ao dado do mundo, tudo o que atribui um
valor autônomo à presença no mundo, está vinculado ao outro que é seu herói, fundamen-
tado em seu acabamento: é a respeito do outro que se inventam histórias, é pelo outro que
se derramam lágrimas, é ao outro que se erigem monumentos; apenas os outros povoam
os cemitérios; a memória só conhece, só preserva e reconstitui o outro; e tudo isso é feito
a fim de que minha própria memória das coisas do mundo e da vida se torne, por sua vez,
memória estética (p.126)

Referências:
BAJTIN, M. M. Hacia una filosofía del acto ético. De los borradores y otros escritos. San Juan: Universidad de
Puerto Rico, 1997.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 556


HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996.
PÊCHEUX, M. (1983). Papel da Memória. In ARCHARD, P. [et al.] Papel da memória. Campinas, SP: Pontes, 1999,
p. 49-56. Tradução e introdução José Horta Nunes.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos: teoria e história, Rio de Janeiro, vol. 5,
n10, 1992, p.200-212.

Textos chave: Por uma filosofia do ato; O autor e o Herói; História e memó-
ria
Nomes chave: Bakhtin, Le Goff, Pêcheux
Palavras chave: memória, exotopia, biografia, história
Biografia resumida: Professora de Língua Portuguesa e Espanhola do Ensino
Fundamental e Médio, Curitiba (Paraná -Brasil), de 1992 a 1998. Professora de
Metodologia e Prática de Ensino de Línguas Estrangeiras Modernas da UFPR (Uni-
versidade Federal do Paraná), em Curitiba, desde 1996. Mestre em Educação, pela
UFPR, em 2001. Doutoranda em Análise do Discurso, desde 2002, sobre as relações
entre as Teorias da História e as Teorias do Discurso, pela mesma universidade.
Autora do livro História, memória e ensino de espanhol (1942-1990), sobre as re-
lações entre teorias de linguagem, metodologia, procedimentos e livros didáticos
no ensino de espanhol como língua estrangeira no Paraná.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 557


A teoria da enunciação em Bakhtin ou o princípio dialógico
como superação dialética

Vera Lúcia Pires

UFSM

R. Santana, 998/502. 90040-371-Porto Alegre-RS

Resumo I
A filosofia do diálogo ou da relação, do filósofo austríaco M. Buber, foi a base do dialogismo bakhtiniano.
Essa filosofia afirma a palavra como um meio de relação entre os seres humanos e funda a experiência
da interação. A palavra realiza um movimento entre-sujeitos. A base fenomenológica do pensamento de
Buber parte do princípio do homem como ser situado no mundo com os outros. O homem é uma relação
dialógica entre eu-tu e não um ser individual. O tu é condição de existência do eu, pois a realidade do
homem é a realidade da diferença entre um “eu” e um “tu”. O “eu” não existe individualmente, senão
como abertura para o outro. Origina-se aí a constituição do par fundador - eu-outro.
Palavras chave: dialogismo, enunciação, interação.
Resumo II
Bakhtin’s dialogism sprang from M. Buber’s Philosophy of the dialogue. Such a Philosophy sees the
word as a means of relationship among human beings and it originates the experience of interaction. The
word moves in between the subjects. The phenomenological basis of Buber’s thoughts considers man
as a being situated in the world among other people. Man is seen in his dialogic relationship between
I /you, rather than as an individual being. The ‘you’ is a condition for the existence of the ‘I’, as man’s
reality signifies the reality of the difference between ‘I’ and ‘you’. The ‘I’ does not exist by itself; only in
so far as it opens up in the direction of the ‘other’. This way, the set I /other is constituted.

É uma ousadia escrever sobre Mikhail Bakhtin. Grandes nomes já o fizeram. É também um desafio,
aquele de não apenas repetir o que já foi dito. Entretanto, cada um que encontra o pensamento bakhti-
niano e dele se aproxima, parece ficar com a necessidade de expressar alguma opinião, de igualmente
contribuir com o debate em torno de suas idéias.
A contribuição que pretendo fazer é orientada por uma posição teórico-filosófica humanista e moderna,
concernente a uma concepção de vida decisivamente influenciada pela obra de Bakhtin, que definirei,
usando os termos de M. Berman, de humanismo moderno1, cujos eixos centrais são a cultura do diálogo
e o estudo das manifestações do cotidiano.
Mikhail Bakhtin foi, no meu entender, um dos precursores do humanismo moderno, pois muitas dé-
cadas antes dessa nomeação, enquanto a lingüística tradicional, ao encarar o estudo da língua como
representação objetiva do real, referendava a filosofia humanista clássica – cartesiana -, priorizara, em
seus estudos, a intersubjetividade, considerando a relação sócio-histórica e dialógica entre sujeitos o
cerne do processo de constituição do discurso.
Para Bakhtin (1929)2, a linguagem não deveria ser somente um objeto de estudo da ciência lingüística,
mas deveria ser vista como uma realidade definidora da própria condição humana, uma vez que envolve,
como prática social cotidiana, a experiência do relacionamento entre os seres humanos.
Esse processo interativo entre sujeitos baliza a enunciação e edifica o princípio dialógico como ele-
mento essencial na teoria bakhtiniana.
A filosofia do diálogo ou da relação de M. Buber3 foi a base do dialogismo bakhtiniano. Todorov
(1981:52;151) confirma a admiração de Bakhtin pela obra do filósofo austríaco. Essa filosofia afirma a
palavra como um meio de relação entre os seres humanos, ao realizar um movimento entre-sujeitos, e
funda a experiência da intersecção ou interação. A base fenomenológica do pensamento de Buber parte
1 O termo foi cunhado por Marshall Berman em 1982.
2 As datas são referentes à publicação original.
3 Filósofo austríaco, publicou em 1923 sua principal obra: Ich und du, traduzida em 1977, pela Editora Moraes, com o título Eu e tu.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 558


do princípio do homem como ser situado no mundo com os outros. O homem é uma relação dialógica
entre eu-tu e não um ser individual. O tu é condição de existência do eu, pois a realidade do homem é a
realidade da diferença entre um “eu” e um “tu”. O “eu” não existe individualmente, senão como abertura
para o outro. Origina-se aí a constituição do par fundador - eu-outro.
O fundamento de toda a linguagem é o dialogismo, essa relação com o outro. A vida é dialógica por
natureza. Viver significa participar de um diálogo (Bakhtin, 1961: 293). Tudo o que me diz respeito vem-
me do mundo exterior por meio da palavra do outro. Todo enunciado é apenas um elo de uma cadeia
infinita de enunciados, um ponto de encontro de opiniões e visões de mundo. Nessa rede dialógica que é
o discurso - a linguagem em sua totalidade concreta e viva (Bakhtin, 1963:181) -, instituem-se sentidos
que não são originários do momento da enunciação, mas que fazem parte de um continuum. Um locutor
não é o Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais ele é o primeiro a nomear
(Bakhtin, 1979: 319). Dito de outra maneira, o indivíduo não é a origem de seu dizer.
Na produção de nossos discursos, somos intermediários que dialogam e polemizam com outros discursos
existentes na sociedade. A relação dialógica é sempre polêmica, não há passividade. Nela, o discurso é
um jogo, é movimento, tentativa de transformação e subversão de sentidos arraigados. O sentido de uma
palavra jamais é o derradeiro. O que faz evoluir o diálogo entre enunciados é essa possibilidade infinda
de sentidos esquecidos que retornam à memória, provocando sua renovação em outros contextos.
Conforme Todorov (1981:8), Bakhtin esboçou uma nova interpretação da cultura que a coloca como
uma composição de discursos que retêm a memória coletiva e em relação aos quais é necessária uma
tomada de posição. Derivado do princípio da relação dialógica polêmica, estabelecido pelo sujeito produtor
de discursos em um contexto social, Bakhtin instituiu um método para seu trabalho: a interpretação ou
a compreensão responsiva ativa.
Toda compreensão é um processo ativo e dialógico, portanto tenso, que traz em seu cerne uma respos-
ta, já que implica sujeitos. O ser humano, juntamente com seu discurso, sempre presume destinatários
e suas respostas. A compreensão de um enunciado vivo é sempre prenhe de respostas. A cada palavra
da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras
nossas, formando uma réplica (Bakhtin, 1929: 132). O sujeito que produz um discurso não quer uma
compreensão passiva que somente levaria à repetição de seu pensamento, mas almeja respostas que
evidenciem adesão, concordância ou, contrariamente, objeção às idéias expostas. O sujeito bakhtiniano
gera respostas, toma atitudes, constituindo-se um sujeito não totalmente interpelado.
O enunciado, essa unidade concreta produzida pelo ato enunciativo, é definido por Bakhtin como uma
expressão lingüística orientada para o outro. Assim, a construção de um discurso levará em consideração
a representação que um sujeito tem de seu destinatário, bem como a ressonância dialógica produzida
por seus enunciados já proferidos e todos os enunciados de outros sobre o mesmo assunto, retidos em
sua memória. Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado
(Bakhtin, 1979: 325).
Faz parte da “orientação social” do enunciado em direção a um outro sujeito colocar em evidência
a questão dos valores, que é também uma questão ideológica. Viver significa ocupar uma posição de
valores em cada um dos aspectos da vida (Bakhtin, 1979: 201), já que as categorias fundamentais de
valores são o eu e o outro.
Da parte do autor do enunciado, esse avaliará seu destinatário e por aí modelará a forma e o modo
de produção de seus enunciados, que serão diversos conforme a situação social e importância de seu
interlocutor, bem como suas posições, convicções e pontos de vista.
É no enunciado que se dá o contato entre a língua e a realidade. A escolha das palavras para a sua
construção leva em conta outros enunciados de outros sujeitos, em relação aos quais o locutor se posicio-
na. De tal modo, quando reproduzimos o discurso do outro, nele podemos captar uma dupla expressão:
a original, do outro, e a expressão atualizada que é por nós introduzida no enunciado do qual vai fazer
parte (Bakhtin, ibid.).
O significado de diálogo em Bakhtin é estabelecido como um princípio geral da linguagem, de comu-
nhão solidária e coletiva, mas sem passividade, e não apenas como a comunicação ou a troca de opini-
ões vis-à-vis entre parceiros. Em decorrência disso, é necessário encarar o homem em relação aos (e
com) outros homens e afirmar que o indivíduo é social e somente constitui-se verdadeiramente humano
na relação viva, ou seja, cotidiana e social, com os outros seres humanos, uma vez que a experiência
verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com
os enunciados individuais do outro (Bakhtin, 1979: 313). O fenômeno social da interação é a realidade
fundamental da linguagem, realizando-se como uma troca de enunciados, na dimensão de um diálogo
e através da enunciação (Bakhtin, 1929, 1930 e 1979).
O objeto de estudo de Bakhtin é, portanto, a enunciação. Não apenas como realidade da linguagem,
mas também como estrutura sócio-ideológica. A enunciação não parte de um sujeito individual, conside-
rado isoladamente, mas é produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e do contexto
da situação social complexa em que aparece (Bakhtin, 1927 e 1929).
A enunciação é definida pela situação social imediata e pelo meio social, sendo organizada, no que
diz respeito ao seu conteúdo e significação, fora do indivíduo pelas condições extra-orgânicas do meio
social. Ela é, deste modo, um produto da interação social (Bakhtin, 1929: 121).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 559


A natureza social da linguagem é diretamente percebida no estudo dos discursos cotidianos – os gêneros
da vida cotidiana – pois neles é visível a relação entre o enunciado e o meio social circundante. Situação
de enunciação (contexto extraverbal, condições sociais reais) e enunciado são essenciais um ao outro,
já que de sua união depende seus sentidos. Conseqüentemente, a realidade faz parte do sentido.
Outro fator, salientado como essencial nos discursos cotidianos, é a interação que une os participantes
de uma mesma situação e que os faz dividirem uma unidade de condições reais de vida, tornando-os
solidários e levando-os a apoiar a intersubjetividade verbal em um “nós” discursivo. Esse nós coletivo
elabora avaliações sociais, que ressoam, organizando ações e condutas passíveis de se tornarem um
dogma indiscutível, pertencente à memória histórico-coletiva de uma sociedade.
Contudo, como a avaliação passa sempre pela questão ideológica da representação de visões de mun-
do, institui-se no interior do discurso um jogo dramático de vozes, estabelecendo uma tensão dialética.
Como os enunciados são, comumente, impregnados de subentendidos e não ditos, qualquer que seja o
sentido corrente ou a significação do discurso cotidiano, não há coincidência plena com sua constituição
puramente verbal. (Bakhtin, 1926:192-2).
O trabalho de sentidos nos enunciados pode transgredir e subverter aqueles arraigados e instaurar
outros. O enunciado não é puro reflexo do que existe fora dele. Ele sempre cria algo que, antes de seu
acontecimento, não existia, algo novo e irreproduzível relacionado ao elemento axiológico. Dialetica-
mente, entretanto,
qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é dada (a língua, o fenômeno
observado na realidade, o sentimento vivido, o próprio sujeito falante, o que é já concluído
em sua visão do mundo, etc.). O dado se transfigura no criado (Bakhtin, 1979: 348)

Mesmo havendo uma tentativa de reprodução, releitura e até citação, o enunciado será uma recriação,
uma singularidade, visto que produzido por um outro sujeito, em um outro momento. O acontecimento
na vida do texto, seu ser autêntico, sempre sucede nas fronteiras de duas consciências, de dois su-
jeitos (Bakhtin, 1979: 333). O enunciado manifesta, portanto, a história do pensamento em direção ao
pensamento e ao sentido dos outros.
As condições reais da enunciação geram os sentidos dos enunciados que se distribuem entre as di-
versas vozes que habitam o tecido da linguagem. Estabelece-se, assim, um relacionamento dialógico de
sentidos entre enunciados confrontados. As relações dialógicas são relações semânticas entre todos os
enunciados na comunicação verbal. (Bakhtin, 1979: 345).
E não poderia ser diferente, visto que a linguagem é um processo determinado pela vida social, estando
em permanente evolução. É isso que faz do enunciado um continuum no fluxo incessante da interação
verbal, ligado ao movimento perene da vida social e da história.
O suporte do sujeito é um “nós”, pois ele não coincide jamais consigo mesmo, sendo inesgotável em
sua significação. Eu só pode se realizar no discurso, apoiando-se em nós (Bakhtin, 1926: 192). O ser
humano não existe para si, senão na medida em que é para os outros. Certos acontecimentos da vida
de um indivíduo, conforme interpretava Todorov (1981:151) sobre essa questão, somente são expe-
rimentados pelos outros: o próprio nascimento ou a morte. Tal fato comprova a impressão de sermos
também continuum, ou seja, começarmos e terminarmos nos outros.
A consignação da relação eu-tu, que emerge da concepção dialógica, deve ser entendida como um
deslocamento do conceito de sujeito. O sujeito centrado é substituído pelas diferentes vozes sociais que o
tornam um sujeito histórico e ideológico. Sendo assim, o dialogismo é principio constitutivo tanto do ser
humano como da linguagem. No discurso, tal reflexo dá-se através das palavras empregadas, que são
sempre habitadas por outros discursos. A percepção do dialogismo, pioneiramente, abala a concepção
clássica do sujeito cartesiano uno, uma vez que seu sujeito torna-se solidário às vozes, às alteridades
de seu discurso (Pessoa de Barros, 1994 e Dahlet, 1997). Em Bakhtin, a intersubjetividade é anterior
à subjetividade, uma vez que o pensamento, enquanto pensamento, nasce no pensamento do outro
(Bakhtin, 1979:4 329). E a enunciação como uma experiência social, dialógica, ativa e interativa passa
a ser o centro da interlocução.
O princípio dialógico edifica a alteridade como constituinte do ser humano e de seus discursos. Reconhe-
cer a dialogia é encarar a diferença, uma vez que é a palavra do outro que nos traz o mundo exterior.
Nossa fala, isto é, nossos enunciados (...) estão repletos de palavras dos outros. (Elas)
introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestrutu-
ramos, modificamos. (...) Em todo o enunciado, contanto que o examinemos com apuro,
(...) descobriremos as palavras do outro ocultas ou semi-ocultas, e com graus diferentes
de alteridade. (Bakhtin, 1979: 314/318).

Uma mesma língua, afirma Bakhtin (1975)5, é coabitada por falares diversos, linguagens sociais di-
nâmicas, que se cruzam, atravessadas pelo social e pela história. São linguagens do plurilingüismo em
que estão inscritos pontos de vista inseparáveis das transformações da experiência cotidiana. É esse

4 Referências relativas ao texto Gêneros do discurso, escrito originalmente entre 1952 e 1953.
5 Os originais foram escritos entre 1934 e 1935.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 560


movimento dinâmico de práticas linguageiras plurais da vida cotidiana que é capaz de romper o aprisio-
namento do sentido no signo lingüístico, libertando-o para novos significados.
A alteridade intervém sempre. A identidade é um movimento em direção ao outro, um reconhecimen-
to de si pelo outro, que tanto pode ser a sociedade como a cultura. E o elo de ligação é a linguagem.
Através da palavra, defino-me em relação ao outro, em última análise, em relação à coletividade. (...)
A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (Bakhtin, 1929: 113).
Ressaltamos, para finalizar, a essencialidade da teoria bakhtiniana para os estudos que envolvem a
enunciação, porquanto expressa de forma clara, engajada e coerente a relação sujeito-linguagem-história-
sociedade, considerando a enunciação o verdadeiro fundamento dessa relação. Em outras palavras, pela
enunciação, Bakhtin recuperou o sujeito para o discurso e instituiu um processo de intersubjetividade no
qual a identidade passa pelo reconhecimento desse sujeito através do outro.
O pensamento de Bakhtin é multifacetado, todavia há nele uma coerência que perpassa toda a sua
obra e que foi expressa nas ligações que embasaram sua proposta teórica e seu método de pesquisa à
sua filiação filosófica. Como tão bem apontou Faraco (2001:118), não há, no pensador russo, um mo-
delo formalizado nos termos com que a academia se acostumou, mas um sistema ou uma antropologia
filosófica6. Nela, o que importava para Bakhtin era a investigação do ser humano, social e público, em
permanente relação intersubjetiva - de alteridade, através da compreensão de seu discurso.
Por influência do pensamento bakhtiniano, optei, conforme salientado anteriormente, pelo humanismo
moderno, por acreditar no sujeito ativo, produtor de gestos e práticas sociais, capaz de escolhas efetivas
que, às vezes, transformam a sua vida e a dos outros. Um sujeito moderno que tem como símbolo a
contradição e o movimento em direção à alteridade. Sujeito que se identifica, reconhecendo o outro e
nele reconhecendo-se, porém sem se assujeitar.
A necessidade de expressar esse posicionamento epistemológico pelo humanismo deve-se ao fato
de que, muitas vezes, a tradição lingüística estruturalista, bem como a pós-estruturalista, afastou-se
do humanismo, privilegiando a forma acabada em detrimento do processo de intervenção do sujeito
criador de linguagem.
Ora, sou de opinião que existe uma consciência e uma liberdade, não totais, mas possíveis. Possíveis
escolhas e decisões, tensionadas entre nossa liberdade e as condições - naturais, culturais, psíquicas
- que nos determinam.
Desejando manter uma atitude histórico-crítica, oponho-me a algumas tendências empírico-formalistas,
em voga desde os anos 80, que não encontram mais eco em algumas certezas e idéias, aquelas baseadas
na ética - como humanidade, igualdade, solidariedade -, simplesmente porque alguns muros caíram.
Esqueceram-se que foram precisamente essas idéias a tornar possíveis certas práticas de produção de
discursos, que refletem as transformações ocorridas na maneira de encarar o mundo.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. (1926) Le discours dans la vie et dans la poésie. In: TODOROV, T. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialo-
gique. Paris: Éditions du Seuil, 1981.
___. (1930) La structure de l’énoncé. In: TODOROV, T. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique. Paris: Éditions
du Seuil, 1981.
___. (1963) Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
___. (VOLOCHÍNOV) (1929) Marxismo e filosofia da linguagem. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
___. (1961) Towards a reworking of the Dostoievsky book. In: Problems of Dostoievsky’s poetics. (1963) 3. ed. Min-
neapolis: University of Minnesota Press, 1987.
___. (1963) Problems of Dostoievsky’s poetics. (1963) 3. ed. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987.
___. (1975) Questões de literature e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1988.
___. (1979) Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BERMAN, M. (1982) Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986.
BUBER, M. (1923) Eu e tu. São Paulo: Ed. Moraes, s.d.
DAHLET, P. Dialogização enunciativa e paisagens do sujeito. In: BREIT, B. (org.) Bakhtin, dialogismo e construção do
sentido. São Paulo: Ed. da Unicamp, 1997.
FARACO, C. A. O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In:FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G.
(orgs.) Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Ed. da UFPr, 2001.
PESSOA DE BARROS, D. L. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: PESSOA DE BARROS, D. L.; FIORIN, J. L. (orgs.)
Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1994.
TODOROV, T. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique. Paris: Éditions du Seuil,1981.

6 Este termo foi usado por Buber com um sentido semelhante ao empregado por Bakhtin, de dialogismo. Conferir em Todorov(1981:151).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 561


Biografia resumida: Vera Lúcia Pires. Doutora em Letras pela PUCRS e Mes-
tre em Educação Brasileira pela UFSM. Docente nos Cursos de Letras, Espanhol
e Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM. Orientadora
de pesquisas nas áreas de Enunciação, Análise de discurso e Teorias do gênero.
Autora de artigos em livros e revistas das áreas de estudos lingüísticos e estudos
do gênero, entre os quais: Discurso e sociedade: Práticas em análise do discurso
(Pelotas-RS: Educat, 2001), Bakhtin: diálogos inconclusos (Coleção Ensaios, nº
5: Programa de Pós-graduação em Letras da UFSM: 2003) e Representações do
feminino (Campinas-SP: Átomo, 2003).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 562


Sujeito e sentido em Bakhtin e Benveniste: os pontos de contato

Vera Lúcia Pires

UFSM

R. Santana, 998/502. 90040-371 – Porto Alegre-RS

Resumo I
M. Bakhtin e E. Benveniste relevaram a relação dos sujeitos com a língua, balizando a presença da
subjetividade no discurso. Busca-se, neste texto, aproximar o pensamento de ambos os autores, no que
concerne à teoria da enunciação, destacando alguns pontos de convergência, a saber, aqueles ligados à
soberania do sujeito e à questão da forma e da substância lingüísticas.
Palavras chave: enunciação, subjetividade, sentido.
Resumo II
M. Bakhtin and E. Benveniste revelead the relationship of the subjects with language, demar-
cating the presence of subjectivity within discourse. It is attempted, in this study, to bring the thoughts
of those authors together, emphasizing some aspects of similarity between them, that is to say, those
aspects related to the subjects-sovereinty and the problems of Linguistic form and matter.

Qui dit homme, dit langage et qui dit langage, dit so-
ciété. (Lévi-Strauss)

A Lingüística tradicional, no início do século XX, postulava a língua como uma representação evidente
e objetiva da realidade. Posteriormente, autores como Benveniste (1966)1 e Jakobson (1963) reivindi-
caram para a linguagem, ao analisarem seu funcionamento, o lugar da constituição da subjetividade do
indivíduo.
Muito tempo antes (por volta de 1920), todavia, Mikhail Bakhtin, dentro da tradição humanista (não
cartesiana), vira na relação sócio-histórica e dialógica entre sujeitos o cerne do processo de constituição
dos discursos.
Desde que Kant colocou em dúvida o preceito filosófico cartesiano da consciência (razão pura), o
sujeito viu-se na contingência de encarar a precariedade da identidade, negada pelo outro.
Herdeiros da filosofia kantiana, tanto Bakhtin quanto Benveniste, cada um a seu modo, enfatizaram
a relação dos sujeitos com a língua, relação esta que determina a enunciação e marca a presença da
subjetividade no discurso.
Meu interesse neste trabalho será, precisamente, aproximar o pensamento de ambos os autores,
no que diz respeito à teoria da enunciação, destacando seus pontos de convergência2. Neste sentido,
interessam-me conceitos precisos, a saber, sujeito e sentido. Mais especificamente, evidencio como os
autores lidam com temas cruciais como a soberania do sujeito e a questão da forma e da substância
lingüísticas, refletindo sobre a dicotomia exterior/interior de maneira dialética, evitando uma leitura
reducionista. O resultado de tal esforço são muitas interrogações e quase nenhuma convicção, em uma
análise preliminar que pretendo aprofundar posteriormente.
Já no final dos anos 20, Bakhtin (1929) defendia a necessidade de uma teoria lingüística da enuncia-
ção, por ver nela o único meio de dar conta da compreensão real das formas sintáticas. Em sua opinião,
as análises sintáticas dos elementos do discurso constituem análises do corpo vivo da enunciação (pois)
as formas sintáticas são as que mais se aproximam das formas concretas da enunciação, além de es-
tarem ligadas às condições reais da fala (Bakhtin, 1929: 139). A partir de então, ele passou a estudar
as formas sintáticas que representavam, no interior de um discurso, o discurso de outros, via discurso
relatado e suas variantes.
Antecedendo em décadas certas reflexões das teorias modernas da linguagem, o filólogo russo pregava
1 As datas apresentadas são as das obras originais.
2 Mais adiante, talvez, escreva sobre os pontos divergentes. Tantos já o fizeram que é possível não haver mais o que dizer.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 563


a necessidade de se encontrar um elo entre a forma material exterior e o elemento semântico-ideológico
interior que os mantivesse em equilíbrio. O elemento de ligação entre a forma e o sentido seria, em seu
entender, a enunciação. Ao trabalhá-la como substância da língua, Bakhtin superou a dicotomia forma-
conteúdo e integrou a experiência social à organização lingüística.
O autor considerava a linguagem uma prática social que tem na língua a sua realidade material. A
língua é entendida não como um sistema abstrato de formas lingüísticas à parte da atividade do falante,
mas como um processo de evolução ininterrupto, constituído pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação, que é a sua verdadeira substância (Bakhtin, 1929: 127). Diferentemente
de Saussure e de seu objetivismo abstrato, o autor russo valoriza a fala, que não é individual, senão
social, estando estreitamente ligada ao momento da enunciação que, ao instaurar a intersubjetividade,
instaura igualmente a interação.
Devido à natureza social e não individual da linguagem, a língua, bem como os indivíduos que a
usam, deve estar situada em um contexto sócio-histórico. A língua penetra na vida através dos enuncia-
dos concretos que a realizam (Bakhtin, 19793: 282), da mesma forma que, através deles, a vida penetra
nela.
O verdadeiro interesse de Bakhtin, diferentemente de Benveniste, não era o sistema, mas a
linguagem enquanto uso e em interação social. Ele via na enunciação - momento de uso da linguagem
-, um processo que envolve não apenas a presença física de seus participantes como também o tempo
histórico e o espaço social de interação. Sua crítica à Lingüística tradicional, enquanto teoria da língua
como uma abstração, foi sempre nesse sentido, o de faltar a ela (Lingüística) uma abordagem da enun-
ciação, que desse conta do que, no seu entender, era o discurso, ou seja, a linguagem em sua totalidade
concreta e viva (Bakhtin, 1963: 181).
A língua em Bakhtin, elemento não abstrato, porém da ordem do social, é passível de ser estudada
por meio de uma metodologia que levaria em conta, primeiramente, as formas e os tipos de interação
verbal em conjunto com suas condições de produção; a seguir, as diferentes formas de enunciações,
ligadas a sua interação nos discursos do cotidiano aos quais pertencem e, finalmente, o exame das for-
mas da língua na sua interpretação lingüística habitual. (Bakhtin, 1929: 124).
Superando a dicotomia clássica língua/fala em favor da interação dialógica, base da enunciação,
o lingüista russo (1929: 179) afirmava que não há ruptura metodológica entre as formas lingüísticas e
as figuras de pensamento, entre a língua e a fala: elas estão na verdade, intrinsecamente ligadas na
realidade viva da língua.
Tendo a enunciação como a marca de um processo de interação entre sujeitos, uma vez que a
palavra tem duas faces, isto é, parte de alguém com destino a outro alguém, Bakhtin instituiu o princípio
dialógico para o estudo de seu objeto.
É importante atentar para o significado de diálogo, em Bakhtin, como um princípio geral da linguagem,
de comunhão solidária e coletiva, porém sem passividade. O grande mérito de Bakhtin, para os estudos
do discurso, foi resgatar o sujeito e seu contexto social via dialogismo interativo, trazendo com eles a
história. O sujeito bakhtiniano constitui-se, desse modo, como um ser social, histórico e ideológico.
No que diz respeito a Benveniste, ao reformular as dicotomias saussurianas – sem com isto afastar-se
do mestre – promove, ele também, uma superação, abrindo a análise da linguagem para a enunciação
e resgatando, por meio desta, o sujeito excluído da linguística.
Segundo o autor (1974:83), depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instância de discurso,
que emana de um locutor, chega ao ouvinte e suscita outra enunciação como resposta. É a estrutura
do diálogo que Benveniste sustenta, quando ressalta: o que em geral caracteriza a enunciação é
a acentuação da relação discursiva com o parceiro (...) Duas figuras na posição de parceiros são
alternativamente protagonistas da enunciação. (Id., ibid.:87).
Quando o lingüista francês formula que bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para
viver (pois) à falta de linguagem não haveria nem possibilidade de sociedade, nem possibilidade de hu-
manidade, (já que) o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar. (Benveniste, 1974:222), ou em
outra passagem, em que estabelece o homem na sua relação com a natureza ou na sua relação com o
homem, pelo intermédio da linguagem, estabelecemos a sociedade. (...) Língua e sociedade não se con-
cebem uma sem a outra. (Idem, ibid.: 31), ele está, parece-me, da mesma forma que o fizera Bakhtin,
garantindo o sujeito como um ser social e seu discurso como uma atividade social e solidária.
Em um de seus textos mais célebres, Da subjetividade na linguagem (1958), ele prega a proprie-
dade fundamental da linguagem de constituir o homem como sujeito. Entretanto, apesar da hierarquia
do eu, pela qual é tão criticado, ele diz que a consciência de si mesmo só é possível se experimentada
por contraste. Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém que será na minha alocução um tu.
Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade (Benveniste,
1966:286).
Igualmente em Benveniste, encontra-se a referência à enunciação como um processo intersubjetivo
e dialógico. Assim, em um movimento dialético de superação, ele afirma
Caem assim as velhas antinomias do “eu” e do “outro”, do indivíduo e da sociedade. Dualidade
3 As referências concentram-se nos textos: O problema dos gêneros do discurso, originais de 1952/53 e O problema do texto nas áreas da lingüística, da
filologia, das ciências humanas. Tentativa de uma análise filosófica, originais de 1959/61.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 564


que é ilegítimo e errôneo reduzir a um só termo original, quer esse termo único seja o eu,
que deveria estar instalado na sua própria consciência para abrir-se então à do “próximo”,
ou seja, ao contrário, a sociedade, que preexistiria como totalidade ao indivíduo (...) É
numa realidade dialética que englobe os dois termos e os defina pela relação mútua que se
descobre o fundamento lingüístico da subjetividade. (Benveniste, idem: 287).

A seguir, tratarei da questão da forma e do sentido em ambos os autores, tomando como base dois
textos: Tema e significação na língua de Bakhtin (1929) e A forma e o sentido na linguagem de Benve-
niste (1974). Procurarei abordar esses elementos de maneira dinâmica, sem cair na tentação positivista
de descrevê-los de forma estanque e acabada.
Bakhtin como Benveniste refletem sobre o assunto em função de oposições, estabelecidas no interior
do sistema língua ou exterior a ele. Para uma visão geral e facilidade didática, esboço a seguir um perfil
comparativo:

Em Bakhtin Em Benveniste
Interior Exterior Interior Exterior
Língua Enunciação Língua Enunciação
Forma Tema Signo Frase
Significação Sentido Forma Sentido
Sistema da Contexto da Propriedade Atividade do locutor
língua palavra da língua situação de discurso

Inicio este exercício de aproximação, via Benveniste (1974:97,104), arriscando um movimento de


integração entre o interior/exterior. Ele ressalta que a prática social da relação inter-humana, comum ao
exercício da língua, demonstra, de maneira mais eficaz, a dupla natureza da linguagem: ser imanente
ao indivíduo e transcendente à sociedade. Imanente enquanto língua, transcendente enquanto exercício
de linguagem, ato de enunciação.
O problema da significação (em sentido geral) aparece, em ambos os autores, de duas maneiras:
ligado à língua e ligado à atividade linguageira – ou à enunciação.
Prossigo com o texto de Benveniste que abre sua conferência, alertando aos filósofos4 sobre a des-
confiança da maioria dos lingüistas no que diz respeito a assuntos que envolvem a significação, uma vez
que, por serem marcados pelo subjetivismo, não pertenceriam à lingüística. As manifestações do sentido
parecem tão livres, fugidias, imprevisíveis, quanto são concretos, definidos e descritíveis os aspectos da
forma. (Benveniste, 1974:221). Tentando reinterpretar tal oposição, integrando-a e esclarecendo-a, o
autor afirma que ela contém em sua antítese o ser mesmo da linguagem: o ser próprio da linguagem é
significar, é viver, muito mais que comunicar. (Idem, ibidem:222).
Configura-se a língua, para Benveniste, como em Saussure, um sistema formal de signos, em opo-
sição às manifestações de sentido, ligadas à atividade enunciativa. Nesse nível formal (semiótico), a
noção de signo integra uma significação unitária e inerente. Benveniste ultrapassa o mestre genebrino
para chegar ao estrato do ato enunciativo (semântico), de onde releva a linguagem como acontecimento
heterogêneo e descontínuo. (Benveniste, 1974:224-5). No plano de construção semântica, atribui-se, a
cada vez, um sentido às palavras.
A noção de semântica nos introduz no domínio da língua em emprego e em ação; vemos
desta vez na língua sua função mediadora entre o homem e o homem, entre o homem e o
mundo, (...) transmitindo a informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, (...)
em resumo, organizando toda a vida dos homens. (Benveniste, 1974: 229).

O nível semântico é o locus da frase e do sentido, conjunto único de circunstâncias, que só exis-
tem no momento em que são enunciados. Com a frase liga-se às coisas fora da língua; (...) o sentido da
frase implica referência à situação de discurso e à atitude do locutor. (Idem, ibid.: 230). E, mais adiante,
em texto de 19695: A ordem semântica se identifica ao mundo da enunciação e ao universo do discurso.
(Benveniste, 1974:66).
Benveniste realiza um movimento sutil e produtivo, partindo das dicotomias, rumo à superação
das mesmas. Podemos acompanhar esse movimento, lendo com atenção os seus textos. Perceberemos,
então, a real importância, nesse autor, da intervenção da enunciação.
No início de seu texto, Bakhtin (1929:128), exatamente como Benveniste, chama a atenção para a
dificuldade do problema da significação no terreno lingüístico, devido ao monólogo, travado pelos lin-
güistas, sobre o assunto.
O filólogo russo igualmente preconiza dois modos de significação, um próprio da língua e outro ligado
ao ato enunciativo. Ao primeiro modo, atrelado à forma lingüística, e composto de elementos idênticos
e reiteráveis a cada enunciação, Bakhtin denomina significação. Em contrapartida, o tema é formado de
4 Benveniste proferiu a palestra A forma e o sentido na linguagem em um congresso de filósofos em 1966 na Suíça.
5 O texto referido é Semiologia da língua.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 565


elementos dinâmicos e não reiteráveis, presos ao contexto histórico da enunciação. Enquanto o tema é
uma reação da consciência em devir ao ser em devir; a significação é um aparato técnico para
a realização do tema. (Bakhtin, 1929:129).
Relacionada aos elementos da língua, a significação ocorre como um constructo descritivo para a
realização do tema. Este, em oposição, unido ao contexto das palavras, está diretamente vinculado à
compreensão responsiva e ao movimento em direção ao contexto de enunciação do outro. Não é possível
compreender o sentido das palavras, procurando atingir o seu valor estável e idêntico a si mesmo. Ele
somente se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. (Idem, ibid.: 132).
Entretanto, não se pode conceber uma relação estanque entre os dois elementos. Bakhtin deixa claro:
não há significação sem tema, nem é possível uma palavra significar sem tematização.
Muitas são as maneiras de aproximar o pensamento de dois grandes teóricos da linguagem como
Bakhtin e Benveniste. Escolhi, talvez, o viés mais polêmico – o das possíveis semelhanças entre suas
idéias. É que me parece impossível, tendo os dois trilhado caminhos epistemológicos análogos, a saber,
a fenomenologia hegeliana e Kant, estarem tão distantes no que concerne aos princípios da teoria da
enunciação.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. (1963) Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
___. (VOLOCHÍNOV) (1929) Marxismo e filosofia da linguagem. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
___. (1979) Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BENVENISTE, E. (1966) Problemas de lingüística geral I. Campinas, SP: Pontes: Editora da Unicamp, 1988.
BENVENISTE, E. (1974) Problemas de lingüística geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989.

Biografia resumida: Vera Lúcia Pires. Doutora em Letras pela PUCRS e Mes-
tre em Educação Brasileira pela UFSM. Docente nos Cursos de Letras, Espanhol
e Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM. Orientadora
de pesquisas nas áreas de Enunciação, Análise de discurso e Teorias do gênero.
Autora de artigos em livros e revistas das áreas de estudos lingüísticos e estudos
do gênero, entre os quais: Discurso e sociedade: Práticas em análise do discurso
(Pelotas-RS: Educat, 2001), Bakhtin: diálogos inconclusos (Coleção Ensaios, nº
5: Programa de Pós-graduação em Letras da UFSM: 2003) e Representações do
feminino (Campinas-SP: Átomo, 2003).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 566


«РАБЛЕ» В 1940-е ГОДЫ: НЕСОСТОЯВШИЕСЯ ИЗДАНИЯ В
СССР И ФРАНЦИИ

И.Л.Попова

В биографии М.М.Бахтина некоторые важные события повторялись


дважды. Охватывая его жизнь целиком — в той мере, конечно, в какой
можно тешить себя иллюзией охватить целиком чужую жизнь, — кажется,
что повторение имело в ней тот экзистенциальный смысл, который
придавал этой категории, говоря о судьбе Иова, высоко чтимый Бахтиным
Серен Киркегор.
Хорошо известно, что возвращение Бахтина в 1960-е гг. началось с
нового издания книги о Достоевском. Публикации в «Советском писателе»
предшествовал итальянский проект. В феврале 1961 г. Бахтин принял
предложение Витторио Страда напечатать «Достоевского» в туринском
издательстве «Эйнауди» в качестве «вступительного исследования» к
полному собранию сочинений писателя на итальянском языкеi. В конце
декабря того же года переработанная рукопись была передана в агентство
«Международная книга»ii, однако ее публикация тогда не состоялась.iii В
Италии книга Бахтина вышла только в 1968 г., в переводе с русского
iv
издания 1963 г.
Долгое время считалось, что неосуществленное итальянское издание
«Проблем поэтики Достоевского» — первая попытка публикации работ
Бахтина за рубежом. Между тем с книгой о Рабле подобная история
произошла существенно раньше — еще в 1940-е годы. Вскоре после
окончания войны возникла идея издания ее во Франции. В известном
смысле план был беспрецедентен: в отличие от книги о Достоевском,
имевшей первое ленинградское издание 1929 года, исследование о Рабле к
тому времени по-русски не публиковалось. То есть речь шла об издании за
границей книги, еще не напечатанной, а только рассматривавшейся к
публикации в СССР.
Об этом проекте, впрочем, известно куда меньше, чем о планах
«Эйнауди». Несмотря на краткое потепление в отношениях между Западом
и СССР, эпоха к откровенным письменным свидетельствам по-прежнему
не располагала. А поскольку до заключения официального договора с

i
Письмо В.Страда Бахтин получил 22 февраля 1961 г., ответ датирован следующим днем.
Официальное обращение издательства последовало 23 марта (см.: Бахтинский сборник – III. М.,
1997. С. 376).
ii
Обратная расписка о получении рукописи датирована 28 декабря 1961 г. См.: ДКХ. № 32–
33 (2000). С. 78.
iii
О воспрепятствовавших тому обстоятельствах см.: Бахтин М.М. Собрание сочинений. Т.
6. М., 2002 (комментарии С.Г.Бочарова к «Проблемам поэтики Достоевского»), а также
переписку М.М.Бахтина с В.В.Кожиновым: ДКХ. № 32–33 (2000). Публ. Н.А.Панькова.
iv

Proceedings XI International Bakhtin Conference 567


каким-либо французским издательством дело, по-видимому, не дошло, то
и официальные документы также отсутствуют.
И все же, несмотря на неподтвержденность плана официальными
свидетельствами и документами (хочется надеяться, что они могут быть
еще найдены), изложить известные сегодня факты стоит, без них история
«Рабле» не будет полной.
* * *
Книгу «Франсуа Рабле в истории реализма» Бахтин закончил в 1940
году. Работа не была связана договором, поэтому о перспективах ее
издания пришлось размышлять уже после того, как рукопись была готова и
получила первые одобрительные отзывы коллег.
О читателях «Рабле» следует сказать особо. Круг их был широк и
представителен. До своего издания книга оказалась прочитанной многими
заметными филологами того времени, в том числе и специалистами по
истории западных литератур: А.К.Дживелеговым, И.М.Нусиновым,
А.А.Смирновым, Б.В.Томашевским, В.Ф.Шишмаревым, Л.И.Тимофеевым
и др. Список аспирантов и сотрудников академических институтов, а
также их родственников, которым рукопись «Рабле» целиком или по
частям передавали научные руководители или просто добрые знакомые,
восстановить, разумеется, невозможно. Вот только один характерный
отрывок из письма А.А.Смирнова, где сообщается о «разных стóящих
лицах», уже ознакомившихся с книгой полностью или по частям: «Первые
2 главы ее успел прочесть В.Блюменфельд (автор статей по
франц<узскому> классицизму и т. п. в “Литер<атурном> критике” и статьи
о Дидро в “Раннем буржуазном реализме”). Он прервал чтение, т. к. уехал
лечиться в Сочи, а по возвращении жаждет дочитать, т. к. пришел от
первых двух глав в восторг. Точно также восхищена Вашей работой
прочитавшая ее целиком его жена, К.С.Анисимова, доцент Педвуза
Герцена и секретарша нашего зап<адного> отдела в Инст<итуте>
Лит<ературы>. Я также дал читать Вашу рукопись одному моему
аспиранту (А.Алмазову), он пишет канд<идатскую> диссертацию о
Вильоне. Она ему должна быть очень полезна в смысле некоторых
установок».v
Так что книга вошла в научное сознание задолго до своей первой
публикации и, несомненно, на него повлияла, если учесть конечно, что
влияние не исчерпывается прямым заимствованием и не измеряется
исключительно индексом цитирования. Задолго до «карнавального бума»
1960-х годов авторы исследований о литературе средневековья и
Ренессанса, знакомые с бахтинским «Рабле», уже не могли не соотносить,

v
Письма А.А.Смирнова к М.М.Бахтину цитируются по материалам архива Бахтина. См.:
Бахтин М.М. Собрание сочинений. Т. 5. М., 1996. С. 476 – 477.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 568


пусть и не явно, собственные работы с тем направлением, которое
определила в филологической науке эта книга.
Характерно эмоциональное впечатление А.А.Смирнова, одного из
первых читателей рукописи: «Самое удивительное — что наши мысли
отчасти встретились. Прошлым летом я написал маленькую главу о Рабле
<...> для нашего коллективного вузовского учебника <...> При обсуждении
моей статьи на кафедре на меня напали и заставили смягчить
“средневековое” начало в Рабле, сделав его более “классически-
ренессансным”. Я уступил, считая, что в учебнике полагается быть
нейтральным и не договаривать своих собственных мыслей.
И вот, представьте себе радость, которую я ощутил, найдя в Вашей
работе в обоснованном и углубленном виде те мысли, к которым я сам
смутно тяготел!».
В этом приватном отзыве, язык которого еще не был иссушен
стилистическими требованиями официальной рецензии, уловлено то, что
предопределило читательский успех и научную значимость книги о Рабле:
Бахтин действительно в системном и углубленном виде изложил те мысли,
к которым «смутно тяготела» последние полвека мировая медиевистика.
При этом сам Бахтин, конечно, не стремился распространять свою
работу «в списках», тем более расширять круг ее читателей за счет мало
знакомых ему людей. Он стремился книгу опубликовать, но сделать это
без участия именитых коллег и друзей не мог, несмотря на то, что был
автором заметной и незабытой монографии о Достоевском.
Поэтому в конце того же 1940 года он передал один экземпляр рукописи
А.К.Дживелегову в Москву, а другой послал А.А.Смирнову в Ленинград.
Осенью 1940 года Бахтин подолгу жил в Москве у своей сестры Натальи
Михайловны и, по всей видимости, с Дживелеговым мог встретиться сам,
со Смирновым же предварительно переговорил И.И.Канаев. 23 ноября из
Ленинграда пришел ответ: «...говорил по поводу Вас с А.А.Смирновым.
Он очень просит Вам кланяться и крайне заинтересован В<ашей> Книгой о
Рабле. Говорил, что м<ожет> б<ыть> ее можно кусками печатать в каком-
то здешнем журнале». Шансы на издание «Рабле» в Ленинграде первое
время действительно выглядели предпочтительнее, в том числе благодаря
заинтересованному участию Смирнова.
Со Смирновым Бахтин был знаком еще по Петрограду. Они встретились
в доме М.В.Юдиной на Дворцовой набережной в начале 1920-х. О том
времени Бахтин рассказывал В.Д.Дувакину: «... у Марии Вениаминовны
<...> было много музыки. Она сама играла, иногда всю ночь напролет.
Играла так, как я никогда не слышал ее в концертах!»vi Собственно, игре
М.В.Юдиной мы обязаны и воспоминанием Смирнова о времени и
обстоятельствах знакомства с Бахтиным. В мае 1945 года он писал: «Был

vi
Беседы В.Д.Дувакина с М.М.Бахтиным. М., 1996. С. 184–185.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 569


как-то на концерте М.В.Юдиной <...> и взволнованно вспоминал, как 23
года тому назад познакомился в ее доме с Вами».
В марте 1941, приступив к чтению присланной рукописи, Смирнов
предлагает напечатать в «Западном сборнике» вторую главу («Рабле в
истории смеха») с небольшим вступлением по материалам первой главы
(«Рабле и проблема фольклорного и готического реализма») и
одновременно намеревается вести переговоры о публикации книги с
Д.Д.Обломиевским, редактором западноевропейского отдела
ленинградского Литиздата. 5 июня он пишет Бахтину: «Перспективы с
Вашей работой таковы. У нас готовится следующий № “Западного
сборника”, и я мечтаю о том, чтобы напечатать в нем Вашу гл. II с
предпосланным ей очень кратким резюме (страниц на 7-8) Вашей гл. I.
<...> Я уже говорил об этом В.М.Жирмунскому, от которого это зависит,
ибо он возглавляет наш западный отдел.<...> Это не исключает
возможности напечатать всю Вашу работу целиком, т.е. книгой. Хочу
серьезно поставить об этом вопрос в здешнем Литиздате, где имею друзей
и некот<орое> влияние. Жду для этого возвращения из отпуска редактора
за<падно>-европ<ейского> отдела, Д.Д.Обломиевского <...>».
Вскоре война и эвакуация отложили осуществление этих планов на
неопределенное время. 29 июня 1941 года Смирнов еще пытается
обнадежить Бахтина: «Я принял все меры к тому, чтобы вопрос о
напечатании Вашей работы и в сборнике и книгой протекал наиболее
благоприятно. Конечно, сейчас все это затормозится, и надо запастись
терпением», — но дальше их переписка обрывается и возобновляется
только через год, летом 1942 года. Уезжая из Ленинграда в ярославскую
эвакуацию, Смирнов сдал рукопись «Рабле» в архив Пушкинского Дома.
12 августа 1942 г. он сообщает об этом Бахтину: «Конечно, я не мог
вывезти из Л<енин>града не только своих книг, но даже и рукописей. Ваш
“Раблэ»” сдан мною на хранение в архив Института Литературы Ак.
Наук». Впоследствии, вплоть до середины декабря 1944-го, издание книги
в их переписке не обсуждается. Сданный в архив экземпляр рукописи
Бахтин смог получить только в 1946 году, перед защитой диссертации, при
деятельном участии И.И.Канаева.
Всю войну Бахтин работает школьным учителем в Савелове и надежду
получить место в Москве или Ленинграде, «изменить свое положение и
добиться возможности творческой работы» (как он позже напишет
Смирнову уже о защите диссертации) связывает в это время с
публикацией «Рабле». В 1943 году, пытаясь узнать об издательской
ситуации в Москве, он обращается к Л.И.Тимофееву, по приглашению
которого в 1940 и 1941 годах выступал в ИМЛИ с двумя докладами по
теории романа.vii Картина, обрисованная в ответном письме, оказывается
vii
Первый доклад — «Слово в романе (К вопросам стилистики романа)» — был прочитан 14 октября
1940 г. (беловой автограф и машинопись хранятся в архиве М.М.Бахтина; черновой автограф — в фонде
М.В.Юдиной: ОР РГБ, ф. 527, картон 24, е.х. 26, фотокопия — в архиве М.М.Бахтина); на его основе

Proceedings XI International Bakhtin Conference 570


неутешительной: «Издательских возможностей мало (книга Виноградова
— это еще инерция первой половины 1941 г.), издают книги не более 10
печ. листов обычно, но все же кое-какие возможности находятся, если тема
книги в достаточной мере “актуальна”».
Только в 1944 году стараниями Б.В.Томашевского при посредничестве
М.В.Юдиной переговоры с московским Литиздатом поначалу приносят
успех. По заказу издательства, внутренние рецензии на книгу пишут
Б.В.Томашевский и А.А.Смирнов. Дело осложняется тем, что оба
рецензента пользуются одним экземпляром рукописи, передавая его по
частям из Москвы в Ярославль, поэтому в конце декабря 1944-го Бахтин
торопит Смирнова: «Дело очень затянулось, и я боюсь, что
благопр<иятный> для книги климат мог измениться. Для меня это дело
имеет первостепенное значение, от него зависит возможность выбраться из
Савелова, где дальнейшая научная <?> работа становится невозможной».
31 декабря рецензия была, наконец, передана с оказией в Москву, а 3
января 1945 года Бахтин пишет М.В.Юдиной: «...наступает решающий
момент в ходе дела. Рукопись сейчас поступит на рассмотрение
внутренних редакторов Литиздата; от них и будет зависеть окончательное
решение». Тогда же он просит переговрить с Б.В.Томашевским,
Н.Б.Любимовым и И.М.Нусиновым.
Во второй половине января к московским хлопотам о «Рабле»
присоединился и Смирнов, однако уже в феврале 1945 года стало ясно, что
издание не состоится. Официальной причиной отклонения рукописи
явилась принятая к публикации книга о Рабле другого автораviii. «...Из
бесед с Вл. Фед. Шишмаревым и Дм. Дм. Обломиевским я убедился, что
опубликовать моего Рабле в Москве в ближайшее время не удастся из-за
принятой уже книги Евниной», — писал Бахтин Смирнову несколько
месяцев спустя.
После неудачи в Москве шансы на издание «Рабле» некоторое время
еще остаются. Летом 1945-го сначала И.И.Канаев, а затем и вернувшийся
из эвакуации Смирнов тщетно пытаются возобновить переговоры с
ленинградским отделением Литиздата. «На печатание “Рабле” приходится
отложить пока надежду» — к такому выводу приходит Смирнов после
новых неудачных переговоров.
Все возможности издания «Рабле» в Москве и Ленинграде к середине
1945 года были исчерпаны.
В то же самое время, по-видимому, и возникает парижский проект. Даже
на фоне известных послаблений конца войны и первых послевоенных лет

подготовлена статья «Из предыстории романного слова» (ВЛЭ, с. 408–446). Второй доклад — «Роман как
литературный жанр» — был сделан 24 марта 1941 г. (автограф и авторизованная машинопись хранятся в
архиве М.М.Бахтина); на его основе написана статья «Эпос и роман (О методологии исследования
романа)» (ВЛЭ, с. 447–483).
viii
Евнина Е.М. Франсуа Рабле. М., Гослитиздат, 1948.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 571


история кажется почти невероятной, особенно если учесть не очень
давнюю ссылку автора.
Материалов о том, как возникла идея передачи рукописи Бахтина во
Францию с целью ее издания, как и чьими усилиями этот замысел
осуществлялся и что в конце концов стало непреодолимой преградой на
его пути, крайне мало. Несомненно одно, сам автор, как впрочем и всегда,
полагался на естественный ход дела, не препятствуя осуществлению
безусловно заманчивого проекта, но и нисколько не стремясь его
продвинуть.
Непосредственно ко времени описываемых событий относится лишь
свидетельство И.Н.Медведевой, жены Б.В.Томашевского, принимавшего
участие в судьбе книги. В самом начале 1946 года в новогодней открытке,
после праздничных поздравлений, Медведева сообщает М.В.Юдиной о
передаче рукописи во Францию как о состоявшемся событии, а об издании
— как о деле решенном: «Получили известие, что книгу Бахтина
Гослитиздат передал Арагону (писателю), который увез ее в Париж, где
она должна быть издана. Сделано это на основании отзыва Бор<иса>
Виктор<овича>ix, который произвел на Арагона впечатление».x
Л.Арагон и Э.Триоле приезжали в Москву в сентябре 1945-го. Это был
их первый послевоенный визит в СССРxi. Если Арагон, как в январе 1946
года писала Медведева, на самом деле увез книгу Бахтина в Париж, то
произошло это именно тогда, в начале осени 1945 г. Однако в парижском
архиве Л.Арагона и Э.Триоле ни самой рукописи, ни каких-либо
упоминаний о ней не обнаружено. Со слов Медведевой также можно
заключить, что передача рукописи осуществлялась официально, через
Гослитиздат, который, напомним, в начале года еще рассматривал книгу к
публикации на русском языке. Однако в архиве Гослитиздата за 1944–1945
гг. материалов, касающихся книги Бахтина, нет. (Тексты внутренних
рецензий Томашевского и Смирнова известны нам благодаря экземплярам,
хранящимся в архиве М.М.Бахтина и фонде М.В.Юдинойxii, а рецензия
Томашевского еще и по экземпляру личного дела Бахтина, хранящегося в
ГА РФxiii).
Долгое время не удавалось найти никаких подтверждений и тому, что
сам Бахтин знал о передаче рукописи «Рабле» Арагону, хотя в его полное
неведение верилось, конечно, с трудом. Без этого свидетельства история,

ix
Имеется в виду отзыв Томашевского для Гослитиздата, написанный в декабре 1944 г. См.:
ДКХ. 1993. № 2–3. С. 118–119.
x
ОР РГБ, ф. 527, картон 19, е.х. 13. Текст не датирован. Почтовая карточка получена
М.В.Юдиной, судя по дате на почтовом штемпеле, 18 января 1946 г.
xi
Л.Арагон и Э.Триоле прилетели в Москву 16 сентября 1945 г. См.: Лиля Брик — Эльза
Триоле. Неизданная переписка (1921 –1970) / Комм. И.И.Аброскиной, И.Ю.Генс. М., Эллис
Лак, 2000. С. 120.
xii
ОР РГБ, ф. 527, картон 24, е.х. 31.
xiii
ГА РФ, ф. 9506, оп. 73, д. 70, лл. 30–32.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 572


не подтвержденная официальными документами, и вовсе приобретала
характер мемуарной легенды. Собственноручное подтверждение Бахтина в
конце концов обнаружилось, но не в бумагах 1940-х гг., как следовало бы
ожидать, а в переписке начала 1960-х, в черновике известного письма от 10
января 1961 г., впервые процитированного С.Г.Бочаровымxiv и полностью
опубликованного Н.А.Паньковымxv.
Письмо это, напомним, было ответом на послание В.В.Кожинова,
написанное от его имени и от имени его коллег: С.Г.Бочарова, Г.Д.Гачева,
П.В.Палиевского, В.Д.Сквозникова, в котором говорилось в том числе и о
необходимости издания «Рабле». К письму была приложена копия
официального обращения в Дирекцию ИМЛИ, подписанного
Е.М.Евниной, Бочаровым, Гачевым, Кожиновым, с просьбой о содействии
в публикации рукописи, хранившейся после ее защиты в качестве
диссертации, в архиве института.
Бахтин в ряде случаев оставлял черновики отправленных писем. Есть в
его бумагах и два наброска письма от 10 января 1961 г. В одном из них и
содержится интересующее нас упоминание о неудавшемся парижском
проекте, правда, по прошествии лет, отнесено оно не к 1945, а к 1947 или
1946 <?> гг. (вторая дата записана неразборчиво и восстанавливается
предположительно). «Кроме того до меня в 1947 или 1946 <?> г., — писал
Бахтин, — дошли слухи, что копия моей книги была передана Луи
Арагону. Об этом сообщил мне покойный Томашевский, который слышал
в Союзе писателей от Б о я д ж и е в а. Проверить это еще я не мог, так как
не знал Бояджиева»xvi.
Таким образом, по признанию Бахтина, сделанному через шестнадцать
лет после предполагаемого события, о планах французского издания ему,
как и И.Н.Медведевой, стало известно от Б.В.Томашевского. Однако
упоминание о парижском проекте в текст отправленного письма Бахтин не
включил да и в черновике, в отличие от Медведевой, говорил о нем без
доли определенности. К тому же в свидетельстве Бахтина к участникам
истории добавилось новое лицо — Г.Н.Бояджиев. Роль Бояджиева до
конца не ясна: был ли он свидетелем передачи рукописи Арагону или, в
свою очередь, только слышал об этом в Союзе писателей. Отметим, что к
тому времени Бояджиев был не только членом Союза писателейxvii, но и
соавтором Дживелеговаxviii, одного из первых читателей «Рабле» и
впоследствии официального оппонента на защите Бахтина. У
Дживелегова, напомним, с 1940 г. хранился экземпляр рукописи, который
xiv
Бочаров С.Г. Об одном разговоре и вокруг него // НЛО. № 2 (1993). С. 76.
xv
Из переписки М.М.Бахтина с В.В.Кожиновым (1960–1966 гг.) // ДКХ. № 32-33 (2000). С.
127–128.
xvi
Архив М.М.Бахтина.
xvii
Г.Н.Бояджиев (1909–1974), автор работ о русском, советском и зарубежном театре,
западноевропейской драматургии раннего средневековья, вступил в Союз писателей в 1943 г.
xviii
В соавторстве с Г.Н.Бояджиевым А.К.Дживелегов выпустил учебник: «История
западноевропейского театра от его возникновения до 1789 года». М., 1941.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 573


он, с разрешения автора, передавал для чтения заинтересованным лицам.
xix

Искать определенного ответа на вопрос, почему Бахтин решил не


упоминать о передаче рукописи в беловике письма от 10 января 1961 г., по
всей видимости, бессмысленно. Скорее всего, здесь могли сойтись разные
соображения: и нежелание сообщать непроверенную информацию,
ссылаясь при этом на Г.Н.Бояджиева, с которым не был знаком, и
известная небезопасность передачи неопубликованной рукописи на Запад,
и некоторое неудобство от невольного рекламирования собственной книги.
К тому же редактирование письма упомянутой купюрой не ограничилось.
Если в черновике Бахтин говорит сначала о судьбе «Рабле», а затем о
книгах Волошинова и Медведева, то в беловике он меняет композицию,
начиная с ответа на последний из заданных вопросов — о книгах своих
товарищей, а рассказ о судьбе собственной работы помещает в
заключение.
Еще один почти «легендарный» отклик на несостоявшееся французское
издание «Рабле» спустя полвека прозвучал в интервью Е.М.Лысенко,
вдовы Л.Е.Пинского: «...несколько лет назад Арагон, когда был у нас,
забрал эту рукопись (рукопись «Рабле», — И.П.) с собой, чтобы
опубликовать ее в Париже. Но, увы, продолжения это не имело»xx. Хотя
несколько десятилетий сократились в последнем свидетельстве до
нескольких лет, Е.М.Лысенко совершенно права в главном: продолжения
история не имела. Не ясно даже, была ли рукопись «Рабле» действительно
передана Л.Арагону или «застряла» где-то в Гослитиздате или
Иностранной комиссии Союза писателей СССР. Можно лишь осторожно
предположить, что приостановка французского проекта могла быть
связана в том числе с окончательным отказом Гослитиздата печатать книгу
в Москве и Ленинграде.
«Надо думать, что это не только слава, но и деньги», — так в январе
1946 г. заключала свой рассказ о планах парижского издания
И.Н.Медведева. Однако ни славы, ни денег тогда не случилось. Во
Франции книга Бахтина о Рабле увидела свет в 1970 г., в издательстве Gal-
limard, в переводе, осуществленном с русского издания 1965 г. Андре
Робель (Andrée Robel).

xix
В декабре 1945 г., когда рукопись «Рабле» была принята к защите в качестве кандидатской
диссертации, а секретариат ИМЛИ не мог собрать для отправки А.А.Смирнову, назначенному
официальным оппонентом, специально присланный для этого экземпляр, Дживелегов среди прочего
напомнил Бахтину о его разрешении передавать рукопись коллегам: «... Ваша работа так заинтересовала
наших специалистов, что секретариат никак не может собрать все ее тетради, чтобы послать в
Л<енингра>д. Я приму меры, чтобы дальнейших задержек не было, а особенно ретивых буду снабжать
тетрадями моего экземпляра. Вы — помните? — разрешили мне это».
xx
ДКХ. 1994. № 2 (7). С. 109.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 574


Utopia e Ironia em Menotti Del Picchia

Gilson Leandro Queluz

Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná-CEFET-PR

Departamento de Estudos Sociais

Programa de Pós Graduação em Tecnologia/PPGTE

queluz@ppgte.cefetpr.br

Resumo I
O principal objetivo deste texto é analisar as representações utópicas presentes em dois romances
do escritor brasileiro Menotti del Picchia: Republica 3000(1930) e Kalum (1936), tentando destacar a
pluridiscursividade e a intertextualidade presentes nos mesmos.
Menotti Del Picchia é considerado um importante representante do modernismo brasileiro, sua par-
ticipação no mesmo foi marcada pelo paradoxo, tão absolutamente modernista entre ordem e transfor-
mação. O período entre 1930-1938, quando escreveu os seus “romances de aventura”, caracterizou-se
para Dell Picchia por um profundo desencantamento da realidade, por causa das suas conexões com o
establishement da República Velha, deposta pela Revolução de 30.
Provavelmente este ambiente político ajuda a explicar a atmosfera de suas utopias marcadas ao
mesmo tempo, por um desejo absoluto de racionalidade e por um sentimento de melancolia e opressão.
Nas suas novelas Dell Picchia procurou (re)construir sua república ideal.
Resumo II
The main objective of this paper is to analyze the utopian representations and understand the in-
tertextuality, which are present in two romances by the Brazilian writer Menotti Del Picchia: Republic
3000(1930) and Kalum (1936).
Menotti Del Picchia is considered an important representative of Brazilian modernism. The period be-
tween 1930-1938 was characterized to Del Picchia by a deep “disenchantment of reality”, because of his
connections with the Establishment of the “Brazilian old republic” that was deposed by the “Revolution of
1930”. His strong opposition to the new political reality was expressed in his participation, as a chairman
of publicity department of the defeated “Paulista Revolution of 1932”.
Probably this political environment helps to explain the atmosphere of his utopias, his search by the ideal
republic, which was absolutely rational and marked by a certain feeling of melancholy and oppression.

O principal objetivo deste texto é analisar as representações utópicas presentes em dois romances
do escritor brasileiro Menotti del Picchia: Republica 3000(1930) e Kalum (1936), tentando destacar a
pluridiscursividade e a intertextualidade presentes nos mesmos.
Menotti Del Picchia é considerado um importante representante do modernismo brasileiro. Ao mesmo
tempo em que compartilhava com seus companheiros do movimento o mesmo desejo de ruptura com
o campo literário tradicional, sua participação foi marcada pelo paradoxo tão absolutamente modernista
entre ordem e transformação. Esse processo levou a sua participação no conservador grupo da anta, em
1929. Paralelamente a suas atividades artísticas, Del Picchia teve uma intensa vida política, ocupando
diversos cargos eletivos. O período entre 1930-1938, quando escreveu os seus “romances de aventura”1,
caracterizou-se para Del Picchia por um profundo desencantamento da realidade, motivado pelas suas
conexões com o establishment da República Velha2, deposta pela Revolução de 30, liderada por Getúlio
Vargas. A forte oposição de Del Picchia à nova realidade política, foi expressa através de sua participação
no Serviço de Propaganda da derrotada Revolução Paulista de 19323.

1 Além do já citado Kalum,Menotti Del Picchia escreveu em 1930, República 3000 e em 1938, Kumunnká.
2 Menotti Del Picchia foi redator político do Correio Paulistano, jornal do PRP, e deputado estadual pelo PRP. Ver: Menotti Del Picchia, A Longa Viagem, SP:
Martins Fontes, 1972.
3 A participação de Menotti Del Picchia na Revolução Paulista de 1932, está descrita no seu livro A Revolução Paulista de 1932.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 575


Provavelmente este ambiente político ajude a explicar a atmosfera de seus “romances de aventura”.
Através deles, nas palavras de Del Picchia, “procurei afugentar do espírito esses trágicos episódios en-
tregando-me a volúpia de imaginar coisas absurdas que fizessem sentido pelo menos como hipóteses
de um mundo maravilhoso”.(PICCHIA, Kalum, p. 4) Utopias marcadas, ao mesmo tempo, por um desejo
absoluto de racionalidade colado a um profundo sentimento de melancolia e opressão, pela vontade
de geometrização das relações humanas e por um romantismo contumaz, desinstitucionalizador das
mesmas relações.
O gênero do romance de aventuras é caracterizado pelas suas três funções temáticas, “com a inserção
do mundo da aventura atingia-se, em primeiro lugar, o abrangente interesse narrativo, que facilitava ao
leitor o difícil caminho através do labirinto das teorias filosóficas, imagens e relações humanas, encerradas
em um romance.” Em segundo lugar,”a centelha de simpatia pelos humilhados e ofendidos que se sente
por todas as aventuras dos miseráveis afortunados e dos enjeitados salvos”e por último “o empenho em
inserir a exclusividade no próprio seio do cotidiano, em fundir num todo, segundo o princípio romântico, o
elevado com o grotesco e através de uma transformação imperceptível levar as imagens e os fenômenos
da realidade cotidiana aos limites do fantástico”(GROSMANN apud:BAKHTIN,2000, p. 103)
Especialmente a primeira e a última característica estão presentes nos romances de Del Picchia em-
bora a segunda, como veremos, evidencia-se no resgate de Raymi do jugo dos habitantes da República
3000, e na elevação da enjeitada Elinor ao patamar heróico em Kalum.
A opção pelo romance de aventuras se coaduna com o objetivo de realizar uma literatura para o
público infanto juvenil, dentro de uma realidade editorial, majoritariamente de cunho estrangeiro, com
poucas exceções nacionais como Monteiro Lobato. Ao mesmo tempo ao se propor realizar uma literatura
leve, Del Picchia intenta nas obras, discutir pesadas questões filosóficas e políticas, como as relações
entre tecnologia e política, a política das paixões, a discussão do anarquismo individualista, as questões
raciais-sem afastar do seu texto o público jovem. Neste sentido é fundamental construir sua república
ideal, realizando “um livre passeio pelo universo da fantasia no qual o impossível pode se tornar veros-
símil” (PICCHIA, Kalum, p.4). Ao se aproximar do fantástico, o autor desvanece as fronteiras do real,
cria não-lugares, nos apresenta utopias do viver.
Bakhtin nos relembra ao abordar o tema da sátira menipéia-local de nascença do romance de aventuras
e do romance utópico-que ela teria entre suas particularidades a incorporação de “elementos da utopia
social, que são introduzidos em forma de sonhos ou viagens a países misteriosos; às vezes a menipéia
se transforma diretamente em romance utópico”.(BAKHTIN, 2000, p.118) Visão compartilhada por Ro-
bert Elliott, que afirma “ …utopia e sátira são ancestralmente ligadas na celebração de Saturno, um deus
que reina sobre o paraíso terrestre, mas que também pela sua preocupação com a melancolia, doença e
morte torna-se o patrono dos satíricos renascentistas…Sátira e utopia não são realmente separáveis, um
critica o mundo real em nome de algo melhor, a outra uma construção esperançosa de um mundo que
pode ser.”(ELLIOTT, p. 24) O romance utópico dialoga com os outros elementos do gênero da menipéia,
entre eles a experimentação moral e psicológica, o fantástico experimental, o universalimo filosófico, o
elemento cômico, liberdade de invenção do enredo e filosófica, as situações extraordinárias, a combi-
nação do fantástico livre e do simbolismo, com o naturalismo de submundo, cenas de escândalo e de
excentricidade, uso de gêneros intercalados, a publicística e a multiplicidade de estilos.(BAKHTIN,2000,
pp. 112-119)
Intertextualidade
No romance Kalum, Del Picchia construiu uma intertextualidade excitante. A cidade subterrânea de
Elinor é descoberta pelo aventureiro e documentarista cinematográfico alemão, Karl Sopor, ao fugir da
tribo dos Kurongangs, liderada por Kalum. A cidade é descrita como estando diretamente relacionada
à Republica 3000, a cidade imaginária de seu romance anterior4, pois ambas teriam sido supostamente
fundadas pelos mesmos emigrados cretenses, colonizadores que chegaram à América há milhares de
anos. Porém, enquanto os fundadores da primeira cidade conseguiram habitar um vale fértil, os lendários
Tamou e Kefir -fundadores da Cidade de Elinor-, procurando escapar dos Uros, enclausuraram-se em
uma caverna, transformando-se nos habitantes de “uma nação que não existe no mapa”, um não-lugar.
Enquanto os habitantes da República 3000 estavam prestes a transcender literalmente a condição hu-
mana, chegando ao conhecimento dos segredos da imortalidade, e rompendo com a lei da gravidade,
empreendendo viagens espaciais, o conhecimento científico e tecnológico da Cidade de Elinor encontra-
va-se estagnado. A Cidade de Elinor aprisionada na caverna platônica transparece como simulacro do
seu modelo, um duplo sombrio da reluzente República 3000.
A intertextualidade se aprofunda na própria dinamização dos romances de aventuras/romance utópico
com a apropriação de dois discursos, que surgem nos romances República 3000 e Kalum, um de origem
política o anarquismo individualista, o outro político-científico, o discurso racial. Discursos componentes
dos sistemas ideológicos constituídos(BAKHTIN(VOLOCHINOV)), idéias pelas quais vagam os heróis dos
romances na aventura de construção/ tranformação das identidades. Porém é na interação plena entre
ideologia do cotidiano e sistemas ideológicos constituídos, expressos na política das paixões que Menoti
Del Picchia, abre espaço para a construção de um novo eu utópico do herói, aquele que já não é mais
fluxo da memória, recordação de si, mas sim plenitude relacional.

4 Menotti Del Picchia, A República 3000, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1930.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 576


Anarquismo Individualista
Del Picchia elaborou suas utopias enfatizando as relações entre o desenvolvimento tecnológico e as
estruturas de poder. No romance República 3000, à civilização da máquina, no estágio da máquina a
vapor, correspondia um governo autocrático e disciplinador, no estágio seguinte a civilização da eletrici-
dade, correspondia o anarquismo individualista, na fala de Gurnia
nosso individualismo anárquico, tornado possível e harmônico dado o alto nível coletivo de
cultura, aboliu a regra coectiva e formou o imperativo comum da consciência. Agimos por
instinto, socializando-se, instantaneamente, o novo espírito moral que o pensamento dos
nossos sábios cria à medida que evolvemos eticamente. É o próprio interesse individual que
determina a harmonia da nossa ação e assegura a constância inalterada do interesse coletivo.
Assim perdemos em egolatria o que naturalmente ganhamos em solidariedade social, subli-
mando o espírito de cooperação…realizamos a liberdade integral dentro da absoluta unidade
gregária nacional. É a suprema forma de organização política concebível pela humanidade,
somente atingível após a posse total das forças econômicas de que dispõe o planeta e após
uma larga e experimental elaboração histórica…”. (PICCHIA, A República 3000, p.134)

A cidade de Elinor, por sua vez, apesar de ter sua evolução tecnológica e social descrita de forma
ligeiramente diferente, - a civilização da máquina recebe em Elinor, a denominação de “nova era”, a “era
do instrumento”- acabou por adotar o mesmo sistema de governo da República 3000, o anarquismo
individualista definido da seguinte forma: “Agora reinava entre eles o mais absoluto anarquismo, o que
representava a suprema forma de estrutura social. Por esse meio, o individualismo, ilimitado nas suas
fronteiras, representava a força de aglutinação das idéias em torno das mais raciocinadas, sedutoras e
perfeitas”.(PICCHIA, Kalum,p.229)5 Forma de organização anarquista, ainda que, ironicamente no roman-
ce, a população feminina tenha eleito como rainha a “monstruosa” Elinor. Como nos lembra Paul Ricouer,
as utopias, sempre tratam do poder, “Tentam mostrar maneiras como os povos podem ser governados
sem ser pelo estado, porque cada estado é o herdeiro de algum outro estado”(RICOUER,1991)
Mas a adoção do mesmo sistema de organização política não implicou em um mesmo destino. Na
República 3000 ele facilitou a continuidade do desenvolvimento tecnológico e a consequente transcen-
dência da condição humana através da comunhão com a galáxia. Na cidade de Elinor, as relações de
poder, presentes no regime ideal, não impediram a passagem para uma nova era: a era da decadência.
Nas palavras de Elinor, “Eu disse que somos uma nação superada e esse é o grande drama do meu povo.
Saturamos nossa capacidade material de progresso dentro do limitado ambiente que o destino nos reser-
vou. Giramos em torno do nada. Hoje somos apenas um espectro de povo...O senhor vem surpreender
nesta caverna apenas um bando de fantasmas.”(PICCHIA, Kalum, pp. 231-233)
Identidade e Raças
As propostas utópicas de reorganização social descritas nos romances A Republica 3000 e Kalum de
Menotti Del Picchia dialogam com o desejo de constituição de uma nova identidade nacional embasada
no aperfeiçoamento racial. É neste não-lugar, onde se dão contradições e paixões, que as hierarquias
temporariamente são suspensas e reiteradas, para que, no ritmo das aventuras, seja forjada a nova
identidade brasileira. Del Picchia também insere seus romances no debate, tão premente no período,
sobre os processos históricos de mestiçagem racial e sua relação com a ascensão ou decadência civiliza-
cional dos povos. A construção imaginária de Menotti parece dialogar alegoricamente com as teorias do
filósofo mexicano José de Vasconcelos, as quais demonstrara conhecimento na elaboração do manifesto
verde amarelo, o “Nhengaçu verde-amarelo”(SEVCENKO, 1992, p.299),
Somos um país de imigração e continuaremos a ser refúgio da humanidade por motivos geo-
gráficos e econômicos demasiadamente sabidos. Segundo os de Reclus, cabem no Brasil 300
milhões de habitantes. Na opinião bem fundamentada do sociólogo mexicano Jose Vasconce-
los, é de entre as bacias do Amazonas e do Prata que sairá a “quinta raça” a raça cósmica,
que realizará a concórdia universal, porque será filha das dores e das esperanças de toda a
humanidade. Temos de construir essa grande nação, integrando na pátria comum todas as
nossas expressões históricas, étnicas, sociais religiosas e políticas.”(in:TELLES,1986)

Os caminhos nos romances, para a constituição da raça cósmica, divergem e confluem. Na Repú-
blica 3000 está presente de forma mais evidente a engenharia de controle social presente na década
de 20. Uma das técnicas que naquele momento carrega a promessa eficaz de resolução dos problemas
supostamente trazidos pela diversidade étnica e social, através da construção de uma nova identidade
racial-nacional pelo processo racional de homogeneização racial era a eugenia, definida por Vera Beltrão
Marques, como a “nova forma de intervenção da higiene que, apoiando-se na ordem biológica, buscava

5 Menotti Del Picchia, Kalum, p. 229. Ainda que, ironicamente no romance, a população feminina tenha elegido como rainha a “monstruosa” Elinor. Com-
pare-se, também, a definição acima com a encontrada na República 3000. “nosso individualismo anárquico, tornado possível e harmônico dado o alto nível
coletivo de cultura, aboliu a regra coectiva e formou o imperativo comum da consciência. Agimos por instinto, socializando-se, instantaneamente, o novo
espírito moral que o pensamento dos nossos sábios cria à medida que evolvemos eticamente. É o próprio interesse individual que determina a harmonia da
nossa ação e assegura a constância inalterada do interesse coletivo. Assim perdemos em egolatria o que naturalmente ganhamos em solidariedade social,
sublimando o espírito de cooperação…realizamos a liberdade integral dentro da absoluta unidade gregária nacional. É a suprema forma de organização
política concebível pela humanidade, somente atingível após a posse total das forças econômicas de que dispõe o planeta e após uma larga e experimental
elaboração histórica…”. Menotti Del Picchia, A República 3000, pp. 134-136.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 577


redimensionar a problemática das raças e das suas relações em uma realidade social na qual não cabia
mais negar os ideais republicanos de igualdade e soberania à maioria da população negra e mestiça
do país. A eugenia proporia técnicas de gerenciamento da população, como os exames pré nupciais, a
definição de políticas imigratórias, as técnicas de esterilização, o poder político passaria a gerir a vida e
o sexo. ( MARQUES, p. 28). A promessa de transformação partiria da remodelação do homem brasileiro,
que possibilitaria mudanças políticas e sociais, estratégia que procurava conduzir a um ocultamento das
desigualdades sociais.(MARQUES,, p.75)
A República 3000 era uma sociedade onde a ordem fora estabelecida graças a “educação e a hygiene”
(PICCHIA, A República 3000,p. 135), ou seja, onde o sonho dos engenheiros sociais da década de 20
fora implantado plenamente. Segundo Gurnia, um dos líderes da República, para o efetivo funcionamento
da solidariedade social é essencial o funcionamento do organismo perfeito, existindo portanto, para ele
uma equivalência entre o funcionamento fisiológico e social, “o bom funcionamento fisiológico e mental
é o moral, o justo e o útil, isto é a possibilidade de coexistência social”(PICCHIA, A República 3000, p.
134). Desta forma a garantia de uma sociedade plena só poderia se dar através de medidas eugênicas,
como a eliminação de organismos imperfeitos, “nós eliminamos desde o berço, o organismo imperfeito,
porque tolerá-lo por qualquer sentimentalismo anti-prático e anti-social seria justificar e defender o
aparecimento do próprio crime”.(PICCHIA, A República 3000, p. 134)
A lógica eugênica da Republica 3000 possibilitou segundo Gurnia uma simplificação ética e social que
a livrara de uma “ética jurídica que defende a existência da máquina criminosa” ao defender a própria
existência do agente social doentio.(PICCHIA, A República 3000, p. 134). Dentro dessa lógica limitou-se
o número de cidadãos da República 3000 através da aplicação de um “maltusianismo ético e técnico”
permitindo uma adequação as condições econômicas e geográficas do território ocupado apontado como
“bastante farto”.Esta solução ao mesmo tempo em que é vista como essencial para o bom funcionamento
da República, surge como antídoto aos anseios expansionistas, na análise de Gurnia, “Para que imperia-
lismo onde há fartura e bem estar?”( PICCHIA, A República 3000, p. 115).
As doentias paixões eram consideradas como antisociais (PICCHIA, A República 3000, p. 190). Para
se alcançar o estado ideal o “idealismo infinito” e persistir na procura das “coisas supremas”(p.192) era
essencial para Faístos que o “verdadeiro homem” não sentisse, apenas pensasse (p.190). Segundo ele
“eliminamos sentimentalidades desde que cultuamos a utilidade”( p.190). A abolição das paixões anti-
sociais permitiria a eficiência absoluta, a utilização plena da energia individual através da metapsíquica.
Podemos dizer que este povo desenvolveu uma economia baseada no aproveitamento do pensamento.
Assim tanto o desgaste energético trazido pelos sentimentos descontrolados quanto o próprio trabalho
manual deveriam ser evitados, pois poderiam prejudicar as capacidades sensoriais como a telenergia e
a televisão,
Os progressos da metapsíquica, após o estudo de Camares sobre a pluripersonalidade e a
polienergética psíquica e os trabalhos de Palaicastro, devassando, há oitocentos anos antes
do vosso Freud, as reservas do inconsciente, dotaram nosso povo de forças naturais inéditas,
por meio dessas descobertas possuímos a leitura à distância, a televisão- pela qual estamos
ao corrente de tudo o que se passa no universo- a telenergia, pela qual desdobramos nossa
força através do espaço(PICCHIA, A República 3000, p. 120).

Nos termos de Gurnia “transformamos os fantasmas da idolatria e da paixão em utilidade econômica”.


Levaram as últimas conseqüências o desenvolvimento deste biopoder alterando inclusive sua própria
organização fisiológica, eliminando os apêndices orgânicos inúteis. Na descrição de Fragoso estes seres
apesar de assemelharem-se aos homens possuindo duas pernas, dois braços e cabeça, possuíam braços
e pernas finos demais com uma tessitura muscular que permitiam movimentos de serpente. Atrás das
pernas desenvolveram duas asas “articuladas com barbatanas e cartilagens”. O nariz era apenas um orí-
ficio, o rosto possuindo apenas um olho que deslocava-se em sentido horizontal, numa espécie de “setor
rasgado em quadrilátero que ia de orelha em orelha”. A boca era um pequeno rasgo. Para completar o
quadro, este novo homem possuía no toráx uma pequena caixa metálica que quando acionada através
de um botão fazia funcionar nas costas uma pequena hélice que se movia dentro de uma caixa circular,
também metálica acoplada ao corpo.(PICCHIA, A República 3000, p. 76-77)
Tinham alcançado portanto a síntese eugênica ideal do homem perfeito o homem-máquina. Processo
de transformação definido por Fragoso como auto plasticidade, baseado em uma lógica de simplificação
das funções orgânicas, tornada possível através do domínio da força neutral da coesão molecular.
A remodelação da estrutura fisiológica proporcionaria o surgimento de um novo modelo de homem.
A eficiência absoluta deste novo homem máquina é marcada pela concretização do moto perpétuo, da
eternização da vida, atingida a fonte perpétua de energia no próprio pensamento (PICCHIA, A República
3000, p. 168)
Gurnia descreve ainda que através da auto-plasticidade, do controle consciente da simplificação or-
gânica por parte dos cientistas da República, criou-se uma segunda natureza, novas fronteiras artificiais,
proporcionando o surgimento de novos sentidos. Nelas as técnicas de controle social e sexual, dialogam
plenamente e desejam a mesma sofisticação das técnicas maquínicas, tendendo a fusão plena. A con-
cretude das técnicas de biopoder plasma a sociedade, como plasma a hereditariedade dos caracteres.
Assim como as técnicas maquínicas transformam a matéria, o biopoder metamorfoseia corpo, sentidos,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 578


percepções.
Neste contexto onde a remodelação da estrutura fisiológica, levou ao surgimento de um novo modelo
de homem, a monstruosidade e o grotesco são representados pelos próprios homens em estado morfo-
lógico primitivo, neste caso Raymi e seu irmão que serão substituidos por Fragoso e Maneco. Novamente
a inversão, neste universo fantástico, o ser humano deve ser preservado em museu, para rememorar os
cidadãos da República de sua “primitiva e bárbara forma de humanidade” (PICCHIA, A República 3000,
p. 148). É a ele também, que está designado o papel de mover os maquinários primitivos, de trabalhar.
Todos são monstros, ou grotescos ao olhar do outro. A monstruosidade só se extingue no pleno encontro
com o outro, que se dá através do amor, de uma política das paixões.
A cidade de Elinor, que por sua vez, encontra-se encerrada em si mesmo, é composta de descenden-
tes dos cretenses, que simbolicamente representam a origem da civilização ocidental. Para Vasconcelos
“Na Grécia se funda o desenvolvimento da civilização ocidental, ou européia, da civilização branca, que
ao expandir-se chegou até as praias esquecidas do continente americano para consumar una obra de
recivilização e repovoação”.(VASCONCELOS, p. 16) A sobrevivência dos gregos em um ambiente tão inós-
pito quanto uma caverna, parece uma releitura da crença de Vasconcelos de que: “A luta contra o meio
obrigou o branco a dedicar suas aptidões a conquista da natureza temporal e isto constituiu precisamente
o aporte do branco a civilização do futuro. O branco ensinou o dominio do material”.(VASCONCELOS,
p.34) Porém metaforicamente, Del Picchia conduz este grupo ao isolamento. Esse amuralhamento da
raça branca nos limites de uma racionalidade estéril, este se fechar em si mesmo, é expresso no romance
na fórmula platônica da caverna. Apavorados com o mundo exterior, os habitantes de Elinor entram em
irreversível processo de decadência, inclusive física.
A cidade de Elinor não potencializou a conjunção do sistema político e tecnológico para ultrapassar
as paixões, como ocorrido na República 3000. Os diferentes destinos de um sistema político parecem
estar conectados em Del Picchia a uma política das paixões6. O autor insere-se assim na tradição utópica,
encarnada especialmente em Fourier, que considera a existência de um “sistema de paixões que governa
todo o tipo de sistema social.” (RICOUER,p.489) A civilização ao reprimir as paixões, transformou-as
em perversões, ou vícios, tal como aquela enclausurada claustofobicamente dentro de uma caverna,
pelo medo do outro e pela negação da natureza, com sua organização política e social conduzindo à
alienação. Isto transparece claramente nas relações de trabalho e gênero. Aos homens destinava-se
todo o trabalho, que os ocupava completamente, levando à deformação do corpo, e à desilusão do es-
piríto, banalizando o suicídio. Desta forma, para uma população de 25000 mulheres, contrapunha-se
uma população masculina de apenas 200. As mulheres eram livres de qualquer trabalho, atividade que
desprezavam, vivendo em frivolidade e tornando-se profundamente infantis. O desprezo pelo trabalho
transmutou-se em repugnância pelos homens. As relações entre gêneros são marcadas por abismos
geográficos, demarcações espaciais: os homens habitam a cidade operária, com “edificações diversas e
assimétricas, onde “zuniam dínamos”, “arfavam motores” e emanavam gases e óleos “volatilizados pela
combustão”. Região considerada, pelas mulheres como “infecta e malsinada”. Por sua vez, as mulheres
habitavam a cidade geometrizada, com suas casas idênticas “de metal fosco, sóbrias de linhas, baixas”,
com ruas de um asfalto de consistência elástica e sem veículos”, uma “cidade morta”, fantasmagórica,
pois sem monumentos, sem circulação.(PICCHIA, Kalum, p. 212) As relações de gênero também são
marcadas por abismos de comunicação, inclusive a completa falta de comunicação sexual. Dentro da
lógica da política das paixões, a falta de amor é diagnosticada por Karl Sopor, como a doença fatal que
assola a cidade.
Del Picchia parece alertar, que estão condenados à perda da força vital os povos que negam o sentido
da história, ou seja, a procura da transcendência através da mestiçagem e do amor, assim como Vascon-
celos observara acerca dos ingleses: “O inglês seguiu cruzando-se somente com o branco, e exterminou
ao indígena; e segue o exterminando na surda luta econômica, mais eficaz que a conquista armada. Isto
prova sua limitação, e é o indicio de sua decadência. Equivale, grosso modo, aos matrimônios incestu-
osos dos Faráos, que minaram a virtude daquela raça, e contradiz o fim último da História, que é lograr
a fusão dos povos e das culturas” (VASCONCELOS, p. 27)
Coerentemente Del Picchia destinou à cidade de Elinor, culpada de ausentar-se da história, um final
apocalíptico através da violenta invasão dos Kurongangs, que após semearem a destruição da população
subterrânea, acabam também por morrer com a destruição das usinas fornecedoras de oxigênio. A força
vital com que o mundo sensível penetra no seu duplo é demasiada, a intervenção da realidade exterior
dissolve a tênue estrutura da realidade interior. O simulacro não pode sustentar-se sem a vitalidade do
modelo ideal. Não sendo ele Idéia, esvanece-se. Neste território de fantasmas, sustentado pela imagi-
nação, não se pode mais respirar.
Política das Paixões
A redenção da paixão adâmica parece ser a base estrutural de suas utopias. Ao fracasso das estruturas
sociais e de poder, ao fracasso mesmo do discurso, na constatação da impossibilidade de comunicação,
Dell Picchia, novamente bebendo na tradição utópica, contrapõe a ressurreição do amor primevo.
Perante esta civilização auto remodelada e baseada no princípio da eficiência Fragoso revelaria; “não
lhe repugnavam os conceitos; perturbavam-no e iluminavam-no. Sentia a esmagadora superioridade

6 Para uma análise das relações entre utopia e paixões ver Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia ,Edições 70, 1991.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 579


daquelas criaturas semi-mecânicas.(PICCHIA, A República 3000,p.135). A única reação possível neste
mundo geométrico, seria entregar-se a sentimentalidade. Ao amor que pulsava por Raymi, a sensuali-
dade que percorria seu corpo. A confissão “eu amo” é o fogo primordial, o conhecimento que lhe resta
é o amor que “unifica todos os mortais e os integra no destino de eternidade que representa o objetivo
do ser humano”.(PICCHIA, A República 3000, p. 181)
O amor é a esperança da construção de uma nova identidade por caminhos não lineares que pode-
riam, quem sabe, enriquecer os fortes mestiços da terra como Maneco e gerar um novo modelo para a
identidade brasileira e americana. Fragoso e Raimy fogem da República 3000 para tornarem-se pais do
Inca, símbolo da desejada quinta raça cósmica.
Sua predestinação obedece ao desígnio de constituir a cunhagem de uma quinta raça na
que se fundirão todos os povos, para substituir as quatro que isoladamente têm forjado a
história. No solo da América terminará a dispersão, alí se consumará a unidade pelo triunfo
do amor fecundo, e a superação de todas as estirpes.(VASCONCELOS, p.28)

Karl e Elinor, os únicos sobreviventes da tragédia da Cidade de Elinor, saem da platônica caverna para
encontrar a luz, “havia uma louca festa de pássaros nas ramas das árvores e uma doida orgia de sol”
(PICCHIA, Kalum,p. 298). Como forma de diminuir a dor causada pelas suas tristes memórias, bebem o
elixir do esquecimento, apagando os “fantasmas da memória”, restaurando a “virgindade psíquica”, trans-
formando-se numa “chapa fotográfica pronta a receber a mais leve impressão”, tornando possível uma
nova comunhão com a natureza. Só através do esquecimento é possível entrar novamente em harmonia
com a natureza, “reabrir o leque das paixões”, em busca da liberdade. Para inverter-se a alienação, ela
mesmo um esquecimento/perversão das paixões, propõe-se a ingestão do oblívio. A utopia possível é
lançar-se ao futuro na busca arqueológica da “regressão à Lei Divina” (RICOUER, p.493)
Quero que nossas almas nasçam como que neste instante, para inaugurar uma vida nova
na face da terra. Seremos uma espécie de Adão e Eva deste novo Éden...Dê-me este frasco
Elinor...Uma alegria imensa vibrava nele. Tomou Elinor pela mão e ergueu-a. Onde esta-
va? Que lugar era aquele? Como tudo era belo, luminoso e virginal! (PICCHIA, Kalum, pp.
299-300)

A união dos sobreviventes Karl e Elinor pode também, na retomada da tradição adâmica, indicar a
transcendência possível através da fusão das raças, a chegada ao terceiro estado, aquele onde os ho-
mens resgatariam suas vidas de deuses, baseados no dogma do amor, o não lugar onde se encontram
para moldar a paixão utópica:
Nos espaços imaginários da utopia, Del Picchia propõe caminhos de convergência entre tradições cultu-
rais, como a portuguesa, a grega, a germânica, com o suporte dos caboclos locais. Seus heróis invadiram
fronteiras e descobriram utopias. Fragoso ultrapassou o escudo elétrico e descobriu a República 3000.
Karl descobriu a caverna secreta onde estava localizada a cidade de Elinor.Como nos relembra Bakhtin,
“tudo pode acontecer com o herói aventuresco e este pode ser tudo. Ele também não é substância, mas
mera função da aventura” (BAKHTIN, 2002, p. 102). Seres descarnados de posições sociais de tênue
construção psicológica, concretizam-se na própria dinâmica da ação, nas aventuras, “não se pode dizer
quem é o herói aventureiro. Ele não tem qualidades socialmente típicas e individualmente caractereo-
lógicas que possibilitem a formação de uma sólida imagem do seu caráter, tipo ou temperamento. Uma
imagem definida como essa tornaria pesado o tema do romance de aventura, limitaria as possibilidades
de aventura.” (BAKHTIN,2002, p.102)
Através de um fascinante processo dialógico, Menotti Del Picchia confrontou as ambíguas relações entre
discursos sociais, tecnológicos e literários, presentes nas representações utópicas, tentando estabelecer
não menos ambíguas visões sobre a identidade brasileira. Utilizando a “magia da palavra”, recorrendo
de forma criativa a diferentes gêneros discursivos -pois afinal na literatura assim como na utopia, “tudo
é compatível com tudo” (RICOUER, p.483) -, como o romance de aventuras e o gênero utópico literário,
dialogando com os discursos estético-políticos do modernismo, e com o contexto histórico brasileiro e
latino-americano, Menotti Del Picchia procura apontar para o cerne da utopia, “a desinstitucionalização de
todas as relações humanas” (RICOUER, p. 486), a completa “dissolução dos obstáculos” entre os seres
humanos, em um futuro marcado pela redenção edênica, ou quem sabe por um simpósio universal.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Annablume;Hucitec, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski, RJ: Forense Universitária, 2002
ELLIOTT, Robert C. The Shape of Utopia, Chicago: University of Chicago Press, 1970.
MARQUES, Vera Regina Beltrão. A Medicalização da Raça: Médicos, Educadores e Discurso Eugênico. Campinas:
Editora da UNICAMP, 1994
PICCHIA, Menotti Del. A Longa Viagem, SP: Martins Fontes, 1972, v. 2
PICCHIA, Menotti Del. A República 3000, São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1930.
PICCHIA, Menotti Del. Kalum, RJ: Ediouro, s/d.
RICOUER, Paul. Ideologia e Utopia, Lisboa: Edições 70, 1991.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole, São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 580


TELLES, Gilberto Mendonça , Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, Petrópolis, Vozes, 1986.
VASCONCELOS, José.La Raza Cósmica, Espasa Calpe Argentina S. A: Buenos Aires: México, 1948

Nomes chave: Menotti Del Picchia.


Palavras-chave- Utopia- Utopias Tecnológicas-Modernismo Brasileiro
Biografia Resumida-Gilson Leandro Queluz é graduado em História pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em História Social pela UFPR e
doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É professor do Programa de
Pós-Graduação em Tecnologia e do Departamento de Estudos Sociais do CEFET-
PR. Atualmente suas pesquisas estão voltadas para o estudo das relações entre
utopia e tecnologia na literatura. Entre suas publicações destacam-se os livros,
Rocha Pombo: Romantismo e Utopias (1998) e Concepções de Ensino Técnico na
República Velha (2000).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 581


Traços urbanos: o avesso da cidade nas charges de Herônio

Marilda Lopes Pinheiro Queluz

Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná – CEFET-PR

Departamento de Desenho Industrial

mqueluz@ig.com.br

Resumo I
O objetivo desse trabalho é analisar algumas charges de Herônio, veiculadas pelas revistas curitibanas
O Olho da Rua (1907-1911), A carga! (1907), A Rolha (1908). Elas pluralizam o olhar sobre a cidade,
sobre as reformas e as inovações técnicas do início da República, ressemantizando a experiência urbana.
As charges interagem com as várias práticas culturais, como um discurso polifônico e dialógico do qual nos
falava Bakhtin. Através da ironia e da ambigüidade, dialogavam com as imagens difundidas pelas elites
e pela imprensa oficial, acabando por desconstruí-las, invertendo a ordem, mostrando o hibridismo e a
heterogeneidade do espaço urbano, construindo e reconstruindo fronteiras entre o público e o privado,
renegociando significados. Nesse mosaico de complexidades e intercâmbios culturais transitam várias
faces da população, que mesmo numa tentativa de síntese, como é o caso do Zé Povo, constituem não
um quadro único e homogêneo, mas conjugam fragmentação e interação.
Abstract
The aim of this work is to analyze some charges by Heronio published on the magazines: O Olho da
Rua (1907-1911), A carga! (1907), A Rolha (1908). They multiply the views about the city; about the
urban reformes and technical innovations in the First Republic. They resignify the urban experience. The
caricatures interact with several cultural practices, a dialogical and polyphonic discourse as defined by
Bakhtin. Through irony and ambiguity, caricatures established a constant dialog with the images dis-
seminated by the elite and its official press, de-constructing, reversing the order, showing us the hybrid-
ism and heterogeneity of urban space, drawing new borders between public and private, renegotiating
meanings. This mosaic of complexities and cutural exchanges shows several faces of the population, and
even in attempt of synthesis. Like in the figure of Zé Povo, it doesn’t constitute a picture homogenous
and unique, but conjugates in itself fragmentation and interaction.

O objetivo desse trabalho é analisar algumas charges de Herônio1, publicadas no início do século XX,
veiculadas pelas revistas curitibanas O Olho da Rua (1907-1911), A carga! (1907), A Rolha (1908). Elas
pluralizam o olhar sobre a cidade, sobre as reformas e as inovações técnicas do início da República, sobre
a política e sobre os cidadãos que nela circulam, ressemantizando a experiência urbana.
Estudar a caricatura é, de alguma forma, polemizar. É buscar uma imagem invertida, um olhar do
avesso, levar a sério algo que se caracteriza pela total irreverência. A charge é um tipo de caricatura
que se refere a uma situação política, cultural, “estritamente atual”, focada numa situação ou em per-
sonagens definidos.
No caso deste trabalho, pensar a charge é dar ênfase ao tempo, às temporalidades dadas num con-
texto. É considerar que enquanto “o retratista luta contra o tempo, o caricaturista, ao contrário, prende-
se a ele.” (Fonseca, p. 19)
Mas um tempo que traz “o encontro do presente com o passado. Não para deparar com identidades,
mas para enfatizar diferenças que possibilitam o diálogo”. A charge faz uma leitura simultânea do pre-
sente/passado, negando e afirmando a história a um só tempo.(Ferrara, p.76)
A definição de caricatura feita por Rivers amplia o debate, pois a considera não como uma entidade
pré-existente, emoldurada por um contexto, mas situada numa dimensão que interage com o processo
histórico em que se constitui. Ela é dinâmica, sendo sempre reiterada e atualizada, como algo que é

1 Herônio era um dos pseudônimos de Mário de Barros, certamente um dos mais marcantes caricaturistas do começo do século XX em Curitiba. Nasceu
em 1879 em Jaú, no estado de São Paulo e aproximadamente dez anos depois mudou-se para o Paraná. Foi aluno de Mariano de Lima e teve como colegas
João Turin, Zaco Paraná, Aureliano da Silveira, entre outros que marcaram a arte paranaense.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 582


continuamente produzido, e o qual é envolvido numa interação pessoal com seu contexto. Caricaturistas
são influenciados pelo contexto tanto quanto tentam influenciar o mesmo. (Rivers, p. 184)
Para este autor, entender e interpretar caricaturas de outro tempo e lugar implica em observar at-
entamente para o fato de que embora os mecanismos da caricatura e o seu funcionamento nos sejam
bastante familiares, o contexto é totalmente diferente. (Rivers, p. 207)
Ele chega mesmo a ver o cartum como “uma espécie de ícone histórico, uma pista/chave visual para
um evento que teria de ser pesquisado para que a temporalidade do trabalho artístico ser de alguma
forma resgatado. Em outros casos, um cartum mantém sua mensagem básica além do período de quanto
perde suas referências específicas e significados.” (Rivers, p. 217)2
Já Canclini considera as caricaturas como um gênero híbrido por definição, destacando a maneira
como ela é produzida: “Elas são práticas que desde o seu nascimento ignoraram o conceito de coleção
patrimonial. Lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular, elas trazem o arte-
sanal para perto da produção industrial e da circulação em massa.” (Canclini, 1995, p. 249)
A caricatura, pela rapidez, pelo exagero dos traços e pela síntese formal, alarga os pontos de vista,
propõe relações diferentes para algo que todos conheciam aparentemente, todos teoricamente já sabiam.
Assim, ela acaba por deslocar o leitor através da identificação ou do estranhamento para, então, abrir a
possibilidade de outras realidades, re-elaboradas. Revela o absurdo no familiar e a familiaridade do que
nos é estranho, mostrando além da imagem, além do alvo que pretende atingir. Torna expostos muitos
julgamentos, mas de forma democrática, abrindo espaço para a decisão do leitor. Ela é formadora de
opinião, mas em co-autoria, ou melhor, depende de uma relação de compromisso do leitor com a reali-
dade, do estabelecimento de uma cumplicidade cotidiana, estando autor/leitor inseridos num mesmo
contexto, numa experiência cultural comum.
Ler uma charge ou uma caricatura é, portanto, uma atividade que pede um leitor “tradutor do passado
nos termos do presente, um leitor que atualiza o volume dialógico no tempo e no espaço, na medida em
que lê com “estranhamento”, sem automatismo, o decurso histórico”(Ferrara, p. 76)
Para que haja uma ou mais leituras possíveis desse mesmo texto, é preciso saber que não há apenas
um sentido literal, tornando-se necessário que o enunciatário veja as marcas deixadas pelo enunciador.
Estabelece-se uma conivência entre o enunciador do discurso e o provável “leitor capaz de transcender a
literalidade para vislumbrar, justamente por meio das marcas aí instauradas, as significações ao mesmo
tempo sugeridas e escondidas por esse espaço significante”. (Brait, p. 31)
Para Rivers, a caricatura resulta, sobretudo, de comparações e substituições “comicamente distor-
cidas”. O leitor deve ter a imagem do oposto para fazer a troca entre o padrão e o caricaturado, para
perceber o exagero. (Rivers, p. 54)
Para ele, aí reside o motivo pelo qual a caricatura é subversiva de modo inato. Ao dar ao leitor textos
“deformados” que sempre requerem interpretação criativa, a caricatura acaba por afastá-lo do hábito
de ler passivamente. Para este autor, os “leitores que experimentam a interação com a caricatura estão
menos inclinados a aceitar um texto de forma inquestionável. Daí porque os políticos odeiam as caricatu-
ras... Um público que pode ler entre as linhas não é facilmente oprimido.” (Rivers, p. 230)
Ao demonstrar que todas as coisas são mais do que aparentam, a caricatura faz-nos perceber sua
“potencialidade para a polisignificação universal” e leva-nos à perda dos nossos “sentimentos confortáveis
de segurança.” Na sua implacável tendência para distorcer, e fazer isso de novas maneiras, ela “reflete
a crença de que nada deve permanecer o mesmo.” (Rivers, p. 249)
Isso não significa dizer que a caricatura seja sempre uma denúncia, sempre uma arma da oposição,
ou uma crítica constante ao sistema, e nunca conservadora ou reacionária.
Estas considerações são importantes para não tomarmos como única a idéia de que, ao provocar o
riso, a caricatura traz um questionamento e uma provocação que levaria à mudança e, quem sabe, à
revolução.
A dessacralização é, certamente, um dos elementos característicos da caricatura, assim como a ironia
e a ambigüidade. Tendo a carnavalização do discurso como estratégia, de alguma maneira permite a
co-existência com o democrático mundo às avessas.
Mas essa dessacralização, esse universo da carnavalização de que nos fala Bakhtin, permite-nos
enxergar o mundo ao contrário, instaurando uma certa desordem, mas também um mundo concreto,
sensível, visível, dinâmico, numa fusão de valores e tradições, ampliando as possibilidades do olhar e
não apenas conduzindo-o para o oposto. Somos deslocados constantemente do nosso ponto de vista,
transformando-o em múltiplas perspectivas, deparando-nos com uma outra lógica, diferente daquela
habitual.
Por isso a contribuição de Bakhtin na análise da caricatura enquanto um texto dialógico e polifônico
pode ser extremamente útil para evitar algumas armadilhas da dicotomia, levando-nos a repensar essa
inversão de olhares, para além de uma mera crítica e uma arma poderosa contra a política e o poder,
redimensionando as outras instâncias da cultura.

2 Rivers faz uma distinção entre macro e micro contexto e o modo como os dois interagem com a caricatura. Neste caso específico o micro seria, por
exemplo, o jornal no qual é veiculada, o editorial da página, a linha editorial....Macro “envolveria elementos como a relação com o leitor, o sistema econô-
mico no qual o Cartum é criado, o clima político, o sistema legal, o meio tecnológico, a extensão de disseminação do trabalho de arte.” Kenneth T. Rivers,
Transmutations, p. 183)

Proceedings XI International Bakhtin Conference 583


É na polifonia, intertextualidade e complementaridade que se concretizam as múltiplas experiências
culturais, fazendo da realidade um plano multifacetado, onde aprendemos a pensar o “eu” e o “outro”,
num processo interativo, justapondo os contrários, situando o olhar nas fronteiras. As contradições e a
ambigüidade mostram-se na inclusão de vozes diferentes ora harmonizadas, ora em conflito que não
se resolve.
Arthur Koestler usa o termo “dupla-associação” para falar do efeito cômico produzido pelo “súbito
choque entre dois códigos de regras mutuamente exclusivos, distintos – ou contextos associados”,
desse “delicioso/encantador sobressalto de um plano ou contexto associativo para outro.” Ele nos torna
capazes de perceber a situação em dois aparentemente incompatíveis quadros de referência ao mesmo
tempo. “Isto nos faz funcionar simultaneamente em duas diferentes perspectivas.” Muda nossa rotina
de pensamento dentro um universo singular do discurso – num único plano, fazendo-o operar em mais
de um plano. (Koestler, p. 112-113).
Trata-se de um conhecimento que “se dá pela capacidade de avizinhar elementos descontínuos no
tempo sobre um mesmo espaço. Nesse sentido, rir é um modo de relacionar o que está em contraste,
mas que ainda não tínhamos conseguido por em relação.”(Pinheiro, p. 38)
A caricatura opera com distorções de espaço e de tempo, chamando a atenção para a artificialidade
do que está a nossa volta, ou em torno do objeto satirizado. Presume-se que um objeto representado é
circundado por um espaço tridimensional, numa dada dimensão do tempo; ao questionar essas premis-
sas, essa convenção, a caricatura expõe, interroga, ridiculariza nossa “crença” nos “dados” artísticos.”
Nas revistas de humor do início do século XX, por exemplo, há muitos elementos sinestésicos presentes
nas charges, mostrando a cidade em movimento: cheiros, perfumes, ruídos, ritmos, cores, texturas, an-
danças e sinuosidades. A disposição gráfica, os traços rápidos, as imagens seqüenciadas, a composição,
criam um efeito de que se está na rua, entre trechos de conversas que se ouvem, imagens soltas, fla-
grantes, flashes, diálogos, monólogos, mistura de ritmos e músicas, sons, fragmentos que remetem a
lugares, personagens, costumes.
As caricaturas sublinham os paradoxos presentes na idéia de progresso e de modernidade da Primeira
República, pluralizando os pontos de vista sobre a implantação de novos sistemas técnicos. A validade do
discurso modernizador foi, muitas vezes, medida pela eficiência dos serviços públicos. Por exemplo, as
modernas técnicas de saneamento, foram ainda mais valorizadas por estarem relacionadas no discurso
das elites à higiene purificadora da sociedade e ao desenvolvimento moral. A difusão do saneamento
básico, porém, parece ter seguido o padrão apontado por Daniel Headrick, de primeiramente beneficiarem
as elites locais, servindo posteriormente como instrumento simbólico de afirmação, status e hierarquia
social em relação às classes subalternas. (HEADRICK, 1988).
As críticas presentes nas revistas de humor às obras de extensão dos serviços de saneamento,
e o questionamento quanto ao destino dos empréstimos realizados para esse fim, tornaram-se um
protesto contra a promessa, não cumprida, de moralidade trazida pela República e uma reivindicação

Fig.1 – Herônio – A Carga! N.9 – 04/01/1908 (Acervo


Museu Paranaense)
Zé – Devagar, madama; devagar que eu arrebento!!…
A Megera – Não tenha medo, Zezinho; eu hei de fazer
a cousa tão bem, ou melhor que o Alvaro…

da cidadania.(fig.1) Transformou-se em um desejo de saneamento da própria República. As críticas do


público ao novo regime republicano geralmente não eram dirigidas às questões ideológicas, mas sim à
ineficiência dos serviços públicos prestados aos cidadãos. (PESAVENTO, p. 44-45).
A empresa de saneamento chegou a ser personificada como uma velha feia, gorda, um verdadeiro
monstro, nomeada de megera.(Fig. 1) O Zé está sendo espremido, vertendo suor e lágrimas, numa
cena grotesca. O povo é mostrado enquanto corpo retorcido, esmagado, torturado, revirado do avesso,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 584


com as partes baixas ameaçadas, vomitando dinheiro, com os pés saindo dos limites do desenho. O
desvio das verbas públicas e a má administração das obras são tratados no limite da exploração, nos
limites da cidade, limites do desenho, limites da dor. É possível estabelecer um paralelo entre o cifrão
que adorna o penteado e a sinuosidade dos canos. O dinheiro está servindo para enfeitar a companhia
de saneamento e não para a finalidade primeira. A demora da obra e os desvios também são marcados
pela distância entre planos: da cidade aos canos. O suor e o dinheiro parecem ser a única coisa que corre
pelos canos. O cano que entra na cidade torna-se cinza, sem cor como a própria cidade. A empresa e
o corpo do Zé formam uma cruz, seguindo direções opostas, enquanto que as pernas e o encanamento
formam diagonais que apontam para fora da capa. Na parte inferior da página, no cano próximo do
público, vindo para o leitor, deixando para bem longe a cidade, pode-se ler “maguas e desgostos”, um
jogo de palavras que transforma as expectativas em frustrações. No enunciado verbal o povo é reduzido,
tratado por seu diminutivo – “Zezinho” – ameaçado pela ironia da proposta, que não vai dar certo como
as anteriores não deram.
É preciso ver, ainda, a caricatura enquanto um fenômeno urbano, ligado à imprensa, à inovação das
técnicas de reprodução, das artes gráficas, da modernização e da sociedade de consumo.
A caricatura insere-se, dialoga com o processo de desenvolvimento urbano e da indústria cultural.
O consumo de massa do humor ilustrado na forma de tiras cômicas publicadas nos jornais, revistas em
quadrinhos, gibis, periódicos humorísticos, propagandas, rótulos, enfim, a veiculação das imagens visuais
foi um importante elemento na emergência da cultura de consumo.
Estudar as charges é, em certa medida, interrogar o papel das inovações tecnológicas e dos meios
de comunicação no processo de transformações dos padrões de percepção, nos comportamentos e nas
sensibilidades sociais, nesta nova paisagem técnica, nesse horizonte de imagens. Assim como discutir
as formas de apropriação destas técnicas e destes meios por parte da população, reinventando, apri-
morando funções e usos.
Também revelam a heterogeneidade e complexidade da população que circula/transita pela cidade. As
revistas são como passarelas onde desfila quem está nas ruas, montadas como jogos de ver/deixar-se
ver/ ocultar. Colocam em exposição os diferentes “atores sociais em suas diferentes funções” e os diversos
regimes de visibilidade ou “situações de comunicação” entremeadas por vários tipos de discurso3.
As charges mostram interconexões e desigualdades que rompem com o desejo de uma sociedade
homogênea, eminentemente branca, organizada, higienizada e disciplinarizada. Questionam a visão de
poder de uma única classe, deixando entrever várias outras instâncias, onde o lugar do poder é con-
stantemente deslocado entre as sutilezas tecidas no cotidiano.
O fato é que, em um momento conturbado pelos grandes debates e polêmicas sobre o que era ser
moderno, ser brasileiro, ser nacional, a caricatura, interagindo com outras práticas culturais, também
ajudou a criar essa paisagem. Apresenta-se como uma linguagem criativa, que incorpora popular/eru-
dito, regional/nacional, reinventa a linguagem entre sotaques, trocadilhos, ditos populares, recursos
cênicos, efeitos teatrais e até cinematográficos. O caricaturista, longe de ser alguém à margem dos

Fig. 2 Herônio. A Carga! n. 7 – 7/12/1907 (Acervo Museu


Paranaense)
“Preparativos”
Zé – Está V. Excelência a parafusar com quantos paus se faz uma
canoa?
João Cândido – Tal qual. Com uma diferença, porém, em vez de
canoa é nau: estou aqui a parafusar sobre a equipagem e mais
coisas da nau do Estado, que em breve vou dirigir
Zé – Está nisso todo êxito da derrota. Que o pessoal seja turuna*
e... se houver borrasca que o leme não trema, e deixe correr o
barco.

acontecimentos, um “outsider” do sistema, encontra-se mergulhado no processo histórico no qual essa


linguagem é engendrada.
A caricatura de Herônio voltou-se para a cidade, para os que nela viviam /transitavam, reciclando e
contaminando-se dos discursos da ciência, da arte, da publicidade, da moda, do design gráfico, do teatro,
da imprensa, etc, ajudando a reelaborar o sentido da experiência urbana.
Nesse mosaico de complexidades e intercâmbios culturais transitam várias faces da população, que
3 Landowski discute os regimes de visibilidade e os modos de presença em A sociedade refletida, p. 85-90
* Turuna – forte, poderoso, valentão

Proceedings XI International Bakhtin Conference 585


mesmo numa tentativa de síntese , como é o caso do Zé Povo, constituem não um quadro único e ho-
mogêneo, mas conjugam fragmentação e integração.(fig.2 e 3).
A representação da presença do povo nas decisões políticas é tratada aqui de maneira bem intrig-
ante e complexa. Há uma dupla presença - como objeto e pessoalmente - por quê? São duas funções,
duas possibilidades de ação, dois modos de se colocar em cena. Simultaneidades espaciais e temporais
- presença constante, presença fortuita, eventual. Zé aparece como estatueta, objeto miniaturizado,
decorativo e funcional, uma peça do tinteiro, um suporte para a pena. É mais um detalhe, inserido num
ambiente ricamente decorado. No quadro acima da cabeça do governante – lembrando uma paisagem
paranaense – vemos o esplendor da natureza em meio aos motivos decorativos da parede; o vermelho
das cadeiras, sugerindo a nobreza do tecido – veludo - reaparece no remendo do paletó de Zé, estabe-
lecendo aproximações contrastantes; o destaque é para a cadeira vazia que, ao mesmo tempo em que
estabelece a relação de hierarquia - pois o Zé não foi convidado a sentar - reitera a idéia dele se fazer
presente mesmo sem ser convidado, uma presença imposta. Ao lado do gesto de respeito e de humil-
dade, justapõe-se a intromissão, a opinião.
A construção do Zé Povo como peça importante para o Estado é reforçada de várias maneiras. For-
ma-se um triângulo cujos vértices são o Zé–pessoa / o Zé-estatueta e o João Cândido - presidente do
estado. A curva da bengala aponta para o Zé que é parte do tinteiro – num efeito de sentido de que as
decisões dependem, passam pelas mãos dele, quase um aval para as assinaturas: estar na mesa, estar
no gabinete, segurar a pena que assinará os atos do governo, as decisões futuras, interferindo de algum
modo no futuro... Nos papéis enrolados lê-se empenho, velhacaria, mamata... planos que deveriam
estar descartados do próximo governo, mas estão em destaque na desproporção e no traço detalhado
da cesta de lixo. Empenho, neste caso, é tanto no sentido de pistolão, quanto de uma verba destinada
a certa despesa pré-estabelecida no orçamento de uma repartição pública. Os planos e decisões políti-
cas, enrolados, também fazem parte da decoração. Outro objeto importante nesse cenário é a revista A
Carga! na lateral da mesa, por baixo, discreta. Uma leitura crítica e irreverente próxima ao governante.
A metalinguagem provoca novos deslocamentos: o gabinete está dentro da revista, que está dentro do
gabinete - interação, inter-relação, como o espelho que reflete o espelho....numa cadeia aberta, infinita.
A revista dentro da revista, dentro das charges, nos fala do papel da revista, da imprensa. É uma outra
forma de presença do povo, ou daqueles que se dizem representantes dos interesses do povo. Os des-
tinos do Paraná estão colocados no diálogo, na metáfora da nau (ou canoa?) a deriva. Quem deve estar
presente ao leme? Quem deve ser turuna - o povo? A expressão invertida “Êxito da derrota”, unindo
antônimos, parece sublinhar a indefinição dos rumos políticos do Estado.
Em muitas situações Zé tomou a frente e marcou sua presença pela irreverência, mesmo numa visita

Fig.3 Herônio. A Carga! n. 4 – 03/10/1907 (Acervo Museu


Paranaense)
“Dernier coup de main”
Doumer – Monsieur lê president Montero. Je suis infiniment
enchante, plein de satisfation a mon depart du Paraná! Tout ce
que j’ai vu ici , dans cette pays adorable, me retera toujours au
cour!
Monteiro – Oh! Oh! Monsieur Doumer. Trés merci, trés merci.
La chuve, malheureusement, vous a empatê touts les notre
preciosidades naturals: l’avance, le trem especiale, l’arc
triunfale, le cortege ecolier, le banquete, le...le...le... mate
chimarrone, le churrasque...e d’outre choses naturals. Au
revoir, monsieur Doumer. Lembrance a monsieur Falieres.
Zé – Viva monssuí Doumer e monssuí Monteró!!…

oficial como por ocasião da visita do estadista francês Doumer a Curitiba. No último instante, Zé se faz
presente. Interfere, interrompe, joga-se na foto oficial. Traz para a formalidade do gesto diplomático,
o “viva” popular, a voz carregada de ironias e da pronúncia afrancesada. A ação caracteriza-se pelo ex-
agero, pela tensão do corpo todo em curva, em desequilíbrio, pela forte expressão facial, boca em “O”
prolongado, como um grito que invade e rouba a cena. A bandeira ao fundo é uma fusão/síntese das
bandeiras do Brasil e da França, sendo que o azul e o branco da nossa bandeira são predominantes e
contaminam as roupas a rigor. O cumprimento de mãos reitera/duplica a faixa de ordem e progresso,
unindo-os. Monteiro, em desequilíbrio, inclina-se para frente, paralelo ao gesto de Zé. Este tangencia a
circunferência, com duas linhas curvas – corpo/cabeça, corpo/braço, alonga-se num aceno prolongado.
Insinua-se na paisagem/ inscreve-se na bandeira. Desorganiza a oficialidade do ato. Está dentro e à
margem ao mesmo tempo. A sátira às cerimônias oficiais repete-se no diálogo, onde a natureza (chuva)
é culpada por prejudicar a mistura entre os avanços da cidade “civilizada”, “moderna” (trem, arcos) e as
tradições do sul (mate, chimarrão, churrasco).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 586


Mas há momentos em que Zé é apresentado como alguém que já perdeu as esperanças. Numa capa
de O Olho da Rua o vemos com um chapéu velho, aberto, com os sapatos furados, vestido a rigor, mesmo
que em desalinho. Está arrumado com elegância para um encontro, levando uma coroa de flores. Zé vai
prestar homenagem às esperanças, reverenciá-las. O gesto fino, delicado, frágil, triste e cansado, de
humildade mesmo, contrapõe-se à austeridade, à força, ao jeito rude do coveiro, que, apoiado em sua
ferramenta de trabalho, lança um olhar desconfiado, de estranhamento. O chapéu, a mão, as cruzes
ao fundo e a coroa de flores formam uma vertical que divide a cena ao meio, criando uma nítida sepa-
ração entre os dois: aquele que procura, que busca as esperanças e aquele que as esconde, enterra.
Esta linha forma uma cruz com a linha do horizonte, o que, por outro lado, une os dois personagens,
num jogo que simula a simetria, propondo as duas faces de um mesmo problema. A composição das
verticais (personagens, linha central, cruzes), ligeiramente mais acentuadas do que as horizontais (linha
do horizonte, cruzes, linha dos braços), os dois personagens no mesmo plano, a ausência de curvas
ou diagonais acentuadas, criam um efeito de equilíbrio. Mas há um movimento ligeiro que rompe com
essa estabilidade (os gestos de Zé, a inclinação do coveiro e da pá), o movimento de ir ao encontro, de
cumprimentar. A conformidade presente na expressão facial do Zé tem seu contraponto no rosto bem
marcado do outro.
Zé está aberto/exposto, seus gestos voltam-se em direção ao outro. Já o coveiro está todo fechado,
tenso, desconfiado, voltado para si mesmo. As diferenças entre aquele que procura e aquele que en-
terrou, aquele que sabe, conhece o destino das esperanças do outro, mas não o reconhece, são res-
saltadas. Zé aparece como um desconhecido, um indigente, “um seu criado”... É possível pensar no
coveiro como metáfora para governo. O que parece estar sendo sugerido é esse sentimento de perda,

Fig.4 – Herônio. O Olho da Rua, n.6 – 6/11/1909 (Acervo


Biblioteca Pública do Paraná)
“Finados”
- O senhor pode me informar onde fica aqui o túmulo das minhas
esperanças?
- Quem é o senhor?
- Sou o Zé Povinho, um seu criado.
- Han…As suas esperanças, estão enterradas na vala comum…

de ausência de algo que se faz presente pela memória e é revivido pela saudade: esperanças que se
tornam lembranças. Lembrar é um modo de atuação, de manter-se presente, de marcar presença. É
uma tentativa de estabelecer uma comunicação com algo em que ainda se acredita, que ainda é amado.
O respeito aos mortos o leva a uma busca, talvez de si mesmo, talvez de outras esperanças e anseios
jogados numa vala comum, de tantos outros zés. Como identificá-las? Ou serão as mesmas, unidas pelo
mesmo destino? “E assim são todos os símbolos carnavalescos: estes sempre incorporam a perspectiva
de negação (morte) ou o contrário. O nascimento é prenhe de morte, a morte, de um novo nascimento”
(Bakhtin, 1997, p. 125)
As reticências do discurso verbal criam o espaço do silêncio, que se prolonga, insinuando uma
espera. As relações de vida/morte, ausência/presença, esperança/desespero, conformidade/inconfor-
midade, submissão/revolta, intensificam-se diante da morte. Presente, passado e futuro tornam-se
simultâneos com a pura constatação da incerteza, no momento em que o “homem perdido e sem lugar
– pode rir e festejar sua crise e morte através dos contrastes mais divergentes e estranhos” (Pinheiro,
p. 39)
Transitando entre o estereótipo, na medida em que tenta fixar ou generalizar um padrão, e o simulacro,
representação que cria laços de semelhança com a realidade, acaba por descortinar a impossibilidade de
se falar do povo como único e homogêneo. Entre o estranhamento e a proximidade, impõe-se a com-
plexidade, percebe-se que não há uma unidade na caracterização, mas um convívio com a pluralidade.
Através de um “sistema de espelhos deformantes” que “alongam, reduzem e distorcem em diferentes
sentidos e em diferentes graus” damo-nos conta da presença do outro, ainda que em seus reversos,
pois “os contrários se encontram, se olham mutuamente, refletem-se um no outro, conhecem e com-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 587


preendem um ao outro…Tudo em seu mundo vive em plena fronteira com o seu contrário”. (Bakhtin,
1997, p.127-179)
O hibridismo do personagem Zé Povo coloca em contato vários pontos de vista para sentir e com-
preender o mundo, buscando uma forma de demonstrar esse cotidiano pela diversidade em que ele se
constitui.
A construção da idéia de povo é elaborada não apenas como um “lugar de eterna frustração” (Silva,
p.95) mas como lugares de intersecção cultural, de mediação das várias instâncias sociais, de espaços
múltiplos e tempos simultâneos.
As charges de Herônio traçaram flagrantes da cidade que conjuga a sensualidade dos gestos, a deli-
cadeza dos movimentos, a linha curva do art nouveau que desenha os vestidos das damas e insiste em
se fazer presente nas fachadas das casas e prédios públicos, disputando espaço com a racionalidade das
retas do pretenso neoclássico, no ritmo do maxixe urbano.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. São Paulo:Hucitec; Brasília: Ed. da UNB, 1987.
BAKHTIN, Mikhail. (VOLOCHÍNOV, V.N.) Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.
Sào Paulo: Hucitec, 2002
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1997
BRAIT, Beth. Ironia em Perspectiva Polifônica.Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996.
CANCLINI, N. G. Hybrid Cultures. Strategies for Entering and Leaving Modernity. Trad. Chritopher L. Chiappari and
Silvia L. Lopez. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1995
FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. A estratégia dos Signos. Linguagem/espaço/ambiente urbano. São Paulo:Perspectiva,
1981
FONSECA, Joaquim da. Caricatura. A imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.
HEADRICK, Daniel R.. The Tentacles of Progress: Technology Transfer In The Age of Imperialism,!850-1940.New
York: Oxford University Press, 1988
KOESTLER, Arthur. Janus. A summing up. New York: Random House.
LANDOWSKI, Eric. A sociedade Refletida. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992.
PESAVENTO, Sandra Jathay. O cotidiano da República. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1990
PINHEIRO, Amálio. Aquém da Identidade e da Oposição. Formas na cultura mestiça. Piracicaba: Editora Unimep,
1995.
QUELUZ, Marilda L. P. Traços Urbanos: A Caricatura em Curitiba no Início do Século XX. São Paulo: PUC-SP, tese de
doutorado, 2002.
RIVERS, Kenneth T. Transmutations. Understanding Literary and Pictorial Caricature. Lanham, Maryland: London:
University Press of America, 1991.
SILVA, Marcos A. da. Caricata República. Zé Povo e o Brasil. São Paulo: Marco Zero, 1987.

Nomes chave: Herônio/Mário de Barros


Palavras chave: caricatura, charge, arte, semiótica, história do Brasil
Biografia resumida: Marilda Lopes Pinheiro Queluz é graduada em História e
Educação Artística pela UFPR, é mestre em História Social pela UFPR e doutora em
Comunicação e Semótica pela PUC-SP. É professora de História da Arte e Teoria do
Design no Departamento de Desenho Industrial do CEFET-PR. Suas pesquisas estão
voltadas para o estudo da caricatura e do humor visual no Brasil, além da análise
da imagem gráfica e pictórica, a partir do olhar da história da arte e da semiótica.
Entre outros artigos destaca-se, o capítulo Visões Bem Humoradas da Tecnologia
publicado no livro Memória e Modernidade(org. João Augusto Bastos).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 588


Bakhtin’s Prima Philosophia or, Paradise Regained

Dušan Radunović
Bakhtin Centre
Russian and Slavonic Department
The University of Sheffield
Arts Tower
Sheffield S10 2TN
United Kingdom

English Abstract:
In this essay the author elaborates on some of the pivotal concerns of early Bakhtin’s thought.
Scrutinizing Bakhtin’s Toward a Philosophy of the as well as some other early pieces, Radunovic argues
that Bakhtin’s principle of responsibility epitomizes the two fundamental insights of the Russian
philosopher: inseparable unity of diverse human activities—virtually separated by inert theoretical
thinking—and non-formal ought of the subject to act, which means to take responsibility for uniqueness
of his/her position in the world. The philosophical intention of the treatise, the author argues, follows the
two distinctly separate trajectories: a primary ethical demand for a non-indifferent, responsible subject,
and a seemingly derivative, overarching authorial imperative for unity and wholesomeness.

Russian Abstract:
В настоящей статье сделана попытка проанализировать главные аспекты мысли Бахтина на
протяжении первых лет его творчества. Критически анализируя статью К философии поступка, а
также и другие важные труды молодого Бахтина, автор доказывает, что принцип ответственности
воплощает два самых главных устремления его философии: неразделимое единство различных
деятельностей человека—которые только мыслимо разделимы в современном теоретическом
мышлении—и должность, но и свобода нравственного субьекта принять ответственность за
единственность и неповторимость своего места в мире. Между тем как философская интуиция
трактата, доказывает автор статьи, следует в двух отдельных направлениях: первычное этическое
требование не-индифферентного, ответственного субьекта и, только кажущийся вторичным,
авторский императив единства и целостности.

Ever since the early Bakhtin’s treatise Toward a Philosophy of the Act has been published, it
obtained privileged position within the Bakhtin studies. Since this unfinished piece elaborates an
idiosyncratic evaluative theory, calls for a daring reassessment of Western ontology, and at the same
time engages into explicit or oblique theological speculations, its reception almost immediately
transcended the scope of the Bakhtinian scholarship1. However, rather then making his/her stand on
any of mentioned aspects of the treatise, a proper Bakhtinian scholar is expected to raise some
important issues on various philosophical intentions noticeable within the treatise, both on their origin,
and on image they obtain in a broken mirror of Bakhtin’s hermeneutics. Finally, the interrelation
between diverse concepts within Bakhtin’s oeuvre as a whole is the issue that stands before the
Bakhtinian scholarship probably as the most challenging and the most misleading one.
Firstly, some will find the abovementioned compound “Bakhtin’s oeuvre” dubious, because
“oeuvre” always implies certain level of inner coherence of some author’s works; still, the awareness of
indeed excessive heterogeneity of Bakhtin’s scientific corpse should elicit our efforts on scrutinizing the
nexuses between his ideas during the 1920s, but also between the later, seemingly clear-cut concepts

1 Actually, in the West, a number of Bakhtin’s concepts (dialogism, carnival, heteroglossia, etc.), had had large application in the wide range of humanities
prior to the publication of TPA. In Russia, however (with exceptions, such as Sergei Averintsev or Vladimir Bibler), wider epistemological “utilization” of
Bakhtin’s concepts followed the delayed publication of his early, fully-fledged philosophical pieces.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 589


we find in Bakhtin’s more disseminated works. However, my particular attention will be focused on the
Russian philosopher’s foundational treatise from the first half of the 1920ies – Toward a Philosophy of
the Act (hereafter when frequently repeated: TPA).
In the earliest manifesto-like “Art and Answerability”, the young philosopher focused on the interrela-
tionship between the fact of real human existence and his/her creative potentials. The tripartite sphere
of human culture – science, art and life (that employs the three human capacities: rational, imaginative
and practical), Bakhtin maintains there, could be (re)united only if the culture as a whole is embodied in
the “unity of human personality”, which means in historical concreteness of a human being2. Although
too undersized to develop any of ideas proposed, both ethical and aesthetical, “Art and Answerability”
had named some of Bakhtin’s vital concerns: firstly, the principal rupture between the sphere of human
existence on the one side, and the world of human creation (art in particular) on another, and secondly,
it proposes human responsibility as the only human faculty that can bridge, in Bakhtin’s view morally
founded, but as we shall see, in his own, idiosyncratic way, no less ontological gap between the being
and the creation perceived by young Bakhtin as “paradise lost” of human culture.
Toward a Philosophy of the Act too opens with critical assessment of aesthetic activity as being inca-
pable of grasping the “open eventness of Being”. Bakhtin treats the field of art as one of human oppor-
tunities to act responsibly, but as well as that, it is precisely the abovementioned pathos of unity that
anticipates the central intuition of the latter treatise. The intention of Bakhtin’s early works and his ethical
endeavors in general is bridging the rupture between the world of “real”, which is “given”, “guaranteed”
being, and the domain of “posited” or, an open field of being. The first belongs either to the field of the-
oretical speculations, or it happens in cases in which the subject repudiates to accept the consequences
that arise from his/her uniqueness in being. The latter, however, calls for the subject’s recognition of his
position in the world (in famous Bakhtin’s formulation-the subject must not have alibi in being), and this
is not reflected in terms of morality (does he or she have morally right attitude towards this or that).
The subject’s ethicality is equal to his/her activity of employing the whole of his/her creative capacities:
moral, cognitive, religious, and, last but not the least, aesthetic.
The need that is inherent to the incomplete world of human culture is viewed in early Bakhtin as a
lack of sufficient category (or, rather a concept) that would coalesce a common plan of content on the
one hand, and unique singularity of each particular event, on the other. To Bakhtin, there had been a
tacit inseparability of the very act of human deed and its content before the “principal rupture” within
the sphere of human culture occurred. For a number of times, as being emotionally engaged in the topic,
whenever assesses contemporary culture, Bakhtin appears as being somewhat melancholic about the
past centuries of participative thinking. When he discusses being-as-event (bytie-sobytie), responsible
act (otvetstvennyi postupok) or entering the communion (priobshchenie), but the missing object is re-
turned, there is no more emptiness, and melancholy disappears.
Let us go back to the kernel-concepts of Bakhtin’s prima philosophia. As we see, the paradoxical unity
of being and event (person and culture, part and a whole, etc.) is, Bakhtin would say, only seemingly
impossible. If our understanding of the world does not remain within the terms of Western ontology (this
is my own, not Bakhtin’s assessment of the origin of the crisis), or as Bakhtin’s says, within the terms of
“contemporary”3 non-participative thinking, we may grasp his deontological concept of being-as-event.
The needed category that epitomizes Bakhtin’s ethical endeavors is act, (a deed), which implies a
responsible act which would incorporate both aspects of being in question (material and formal). In-
separable aspect of the issue of act concerns the motivation for its manifestation. In other words, the
important question here is what brings about the necessity to act? What are the philosophical roots of
this extremely subjective and voluntary based kernel-concept of Bakhtin’s ethics: “responsibility”4.
Postulating the notion of individual responsibility as fundamental to his ethics, Bakhtin seemingly
leaves the subject’s position somewhat negotiable: there will never be any other cause for person to act
(instead of someone else, for instance) but his unique responsibility. The only motivation for responsibility
to become manifest and trigger the act lies in the uniqueness of his/her position in the world:
I occupy a place in once-occurrent Being that is unique and never-repeatable, a place that
cannot be taken by anyone else …. In the given once-occurrent point where I am now loca-
ted in the once-occurrent time and once-occurrent space of once occurrent Being .… That
which can be done by me can never be done by anyone else. The uniqueness or singularity

2 It is probably this pathos of reality that gave rise to numerous discussions on the role that the factor of socio-historical reality has played in Bakhtin’s
thought throughout the years. An unfinalized dialectics—Bakhtin would certainly plead for dialogue instead of dialectics though—the interraction of the subject
and society as depicted in Bakhtin’s writings dwells in between the two instances—common aspect of social being as well as concrete individual, being that
way the decisive feature of his philosophical anthropology. Finally, the very term he uses to depict the moment of this balance is embodiment (in Russian
voploshchenie), which (Bakhtin varies it elsewhere) is understood as a plea to the responsible subject to give his own, personalized account on various
aspects of his surrounding (cultural, ethical, cognitive). This relationship thus should not be viewed as a subject’s external determination, but a framework
that challenges him to act and participate in the process of world’s permanent becoming.
3 It is likely that “contemporariness” with Bakhtin presupposes the age of European Modernity. Namely, although Bakhtin does give some historical referen-
ces in TPA it is difficult to maintain when the “principal rupture” within the totality of being he laments over occurred. Interestingly, the reference on Kant
he gives in Toward a philosophy of the Act is notorious: as it is known, Kant did say exactly opposite to what Bakhtin claims he had said: “hundred real
thalers”, we read in Kant’s first Critique, “are equal to a hundred thinkable thalers” (emphasis mine). Taking that into account, we might situate the origins
of the crisis at the time of Kant’s “Copernican turn”.
4 Although the Russian term “otvetstvennost`” etymologically implies an ability to answer, I will rather opt for more ethically sounding “responsibility”. It is
my firm belief that we should not dissolve Bakhtin’s clear-cut ethical intentions by displacing them in post-Saussurean linguistic universe. Not in the least,
a good deal of Bakhtin specialist impose “answerability” in order to utilize it and (if nothing, terminologically) bridge the “uncanny” gap between supposed
philosophical early corps and subsequent, naively assumed immanently linguistic, dialogism.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 590


of present-on-hand Being is compellently obligatory. (Bakhtin, Philosophy of the Act 40)5

In quite a Schelerian manner, Bakhtin here strives to distance his moral subject from both formal and
material ethics: what makes a subject the responsible being must appear from the sphere of his/her
real existence. Responsibility should not be conditioned by any kind of imperative or with the content of
the good itself, no matter how indisputable the content might be. Thus, this non-conditional stance on
Bakhtin’s part does not presuppose relativism. Rather, it relies on the proposition that, if I am a respon-
sible being, I am not to have recourse to any type of “alibi in Being”, and should have no obligation laid
down on me from outside.
“It is this affirmation of my non-alibi in Being that constitutes the basis of my life, being
actually and completely given as well as its being actually and completely projected as
something-yet-to-be-achieved. It is only my non-alibi in Being that transforms an empty
possibility into an actual answerable act or deed” (Bakhtin, Philosophy of the Act 42).

Following the logical (though not discursive!) unfolding of Bakhtin’s argumentation in the treatise,
we can perceive the true hierarchy of his philosophical propositions. The subject’s responsibility is, un-
doubtedly, the core of Bakhtin’s philosophy of the act, but the ultimate horizon of his ethical project is
in the (personalized) overcoming of the “principal rupture” within the (always presupposed) totality of
human culture—the split between the given “world of culture” and the actual “world of life.” In other
words, the all-pervasive drive that constitutes a parallel ideological agenda of Toward a Philosophy of
the Act is holistic. Although Bakhtin’s analyses mostly focus on the ethical position of individual subject,
the definitive meaning of the individual action, as Bakhtin sees it, resides in the individual’s partaking
of the Being-as-Event (which is a participation that is, at the same time, a founding act). The subject’s
ultimate activity—the validation of his/her existence—is seen not in terms of concrete social practice, but
as a personal ontological “entering-the-communion” (in Russian, “priobshchenie,” which means “entering
a unity”, rather then the static, as if already finalized, “being in communion” as we find in the English
translation of TPA). This unity, which appears to the final aim of the subject’s moral act, permanently
reconstitutes the interpenetrated holistic world of human creation:
“At the basis of an actual deed is a being-in-communion with the once-occurent unity; what
is answerable does not dissolve in what is specialized (politics), otherwise what we have is
not an answerable deed but a technical or instrumental action” (Bakhtin, Philosophy, 56;).

Bakhtin’s notion of “inseparable unity”, the vision of interpenetrated universe consisted of all levels
of creation, cultural as well as material, with one axiological center – human being, pertains in diffe-
rent forms throughout his early formatting years. Alike, in the Problem of Content, Material and Form
Bakhtin brings his holistic view to bear on the assessment of contemporary poetics. The latter was, at
the time embodied in Russian Formalism, which was, from Bakhtin’s standpoint, tending to found the
literature science by isolating the literature from the wholeness of human culture. His main objection
to the Formalists did not concern their effort to explore literature on scientific grounds (Bakhtin was an
advocate on an aesthetic reevaluation of literature science), but rather the way they defined “literary
scientificity”—by isolating literature from the wholeness of human culture. Maintaining that every word
in literature is inscribed with layers of social and cultural usages that we can never be indifferent about,
he situates the realm of aesthetics inside the interpenetrated network of human culture (here the domain
of culture is understood in Bakhtin’s own manner; as a network consisted of mutually related acts of
human creation, not limited to the artistic sphere). The vital difference between the material object of art
conceptualized by Russian Formalists as the only “scientifically valid” object of aesthetic analyses, and
aesthetic object (the proper object for aesthetic analyses, according to Bakhtin) lies in connections that
tie the latter with its socio-cultural and cognitive environment. Again, in different way, each particularity
and partition from the whole is being sharply criticized. What was in TPA rendered as the “original sin”
of contemporary culture, here becomes a plea for more comprehensive literary scholarship.
This lead Bakhtin to firm belief that no sphere of human existence is detached from its surroundin-
gs. Every reductionism (what might be called “specialization of disciplines of knowledge”), especially if
applied to the humanities6, exacts Bakhtin’s disapproval: he denounces any mechanistic transposition
of positivist patterns of thinking into the domain of humanistic studies. Cnsidering the verbal arts and
culture, Bakhtin’s position is as comprehensive as it is straightforward: creating his/her art, verbal artists
never deal with neutral material; the world he/she encounters has been already evaluated—practically
(in Bakhtin, cognition and ethics necessarily precede aesthetics), as well as aesthetically (in other works
of literature):
Besides the reality of both cognition and performed action, the artist of the word also finds
literature to be already on hand: it is necessary for him to fight against or for old literary
forms, to make use of them, to combine them, to overcome their resistance or to find sup-

5 Thus conceived, the notion of “activity” does not appear to have much of political potential: indeed, the human capacity that Bakhtin is primarily addressing
here is the subject’s will. In terms of Bakhtin’s ethics of the will, “coming out of the responsibility,” which is the realm of theory, is inseparable from “inciting
an act,” the realm of practice: responsible (evaluative and volitional) attitude toward the world is moral activity par excellence.
6 Interestingly, whereas in Toward a Philosophy of the Act this ethically based argumentation concerns the spheres of the natural sciences and technology,
in later fragments on epistemology Bakhtin distinguishes between the human sciences and the broad category of “exact knowledge” (Cf. Bakhtin, “Toward
a Methodology for the Human Sciences.” 160 et passim).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 591


port in them. But, at the heart of all this movement and struggle within the bounds of purely
literary context, there is a more essential, determining primary struggle with the reality of
action and cognition…. (Bakhtin, “Problem” 284)

The importance of the axiological sphere for the constitution of the subject in early Bakhtin is cru-
cial. In the living subject, axiological activity and existence overlap without a remainder: since existing
means being responsible, the subject, insofar as s/he exists, is always evaluating and being evaluated.
From Bakhtin’s perspective, the subject’s evaluative activity is an emotional-volitional act directed at the
outside world; it is the acknowledgement of his/her affinity with the world’s being (Philosophy 33-34).
The recognition of what is outside the subject brings a new recuperation of the world, neither solely
axiological nor moral, in a narrow sense, but rather holistically accented.
“My active deed . . . is not simply an affirmation of myself or simply an affirmation of actual
Being, but a non-fused yet undivided affirmation of myself in Being….” (Bakhtin, Philosophy
of the Act 41).

On its final horizon, this recuperation becomes a dynamic, creative redemption of the world, at the
center of which stands the non-indifferent subject, the subject that is, eo ipso, expected to act, making
his surrounding into the world-in-becoming, the world as a permanent, interdependently ongoing Event.
Significantly, Bakhtin introduces eminently theological terminology in order to describe the relationship
between the subject and the world. The balance between the subject’s self-affirmation and his/her di-
sappearing in Being is understood as a unity “without confusion, without separation”. The oxymoronic
Chalcedonian formulation “nesliianno i nerazdel’no” (or in Byzantine Greek “asynhytos, ahoristos”) captu-
res the most essential intuition of Bakhtin’s critical genius—the penchant for thinking difference-in-unity
and unity-in-difference. This intuition was to inform his entire oeuvre: from the concept of polyphony to
the theory of the utterance and the epistemology of the human sciences7.
In conclusion, we might say that the early “principle” of responsibility epitomizes the two of Bakhtin’s
fundamental concerns: inseparable unity of diverse human activities that were only virtually separated by
inert theoretical thinking, and both ought and freedom of the subject (the axiological/responsible center
of the world) to accept his/her unique position in the world. Consequently, the philosophical intention of
the treatise follows the two distinctly separate, yet related, trajectories: a primary ethical demand for
a non-indifferent, responsible subject, and a seemingly derivative, overarching authorial imperative for
unity and wholesomeness.
References

Primary sources
Bakhtin, Mikhail. Toward a Philosophy of the Act. Trans. Vadim Liapunov. Ed. Vadim Liapunov and Michael Holquist.
Austin: University of Texas Press, 1993.
__ __, “The Problem of Content, Material and Form in Verbal Artistic Creation.” Art and Answerability. Trans. Vadim
Liapunov. Ed. Michael Holquist and Vadim Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1990.
__ __, “Toward a Methodology for the Human Sciences.” Speech Genres and Other Late Essays. Trans. Vern W. McGee.
Ed. Caryl Emerson and Michael Holquist Austin: University of Texas Press, 1986.

Secondary sources
Lock, Charles. “Bakhtin and the Tropes of Orthodoxy.” Bakhtin and Religion. Ed. Susan M. Felch and Paul J. Contino.
Evanston: Northwestern University Press, 2001
Mihailovic, Alexander. Corporeal Words: Mikhail Bakhtin’s Theology of Discourse. Evanston, Illinois Northwestern
University Press, 1997.
Khoruzhii, Sergei. “Ideia vseedinstva ot Geraklita do Bakhtina.” Posle pereryva. Putirusskoi filosofii. Sankt Peterburg:
Izdatel‘stvo ‘Aleteiia’. 1994.

7 For Bakhtin’s rendering of the formulation of Christ’s twofold nature canonized by the Fourth Ecumenical Council in Chalcedon in 451, see Mihailovic
125—148 and Lock 100 et passim

Proceedings XI International Bakhtin Conference 592


Key Texts: I enclosed both my primary and secondary sources.
Key Names: Averintsev, Sergei; Bakhtin, Mikhail; Bibler, Vladimir; Christ; Kant
Immanuel; Lock, Charles; Mihailovic, Alexander; Saussure, Ferdinand de; Scheler,
Max;
Key Words: Subject, Responsibility, Ethics, Being, Event, Holism
Biographical statement:
Dušan Radunovic holds BA and MA from the Department of Comparative Litera-
ture and Theory of Literature at the University of Belgrade, Serbia and Montenegro.
He has been publishing on Bakhtin and theory and translating Bakhtin’s pieces into
Serbian since 1997 (Bakhtin’s “Problem of Content, Material and Form”, Toward
a Philosophy of the Act and a number of other pieces both by Bakhtin and on his
work). He is currently based at Bakhtin Centre in Sheffield, where he pursues his
doctoral thesis on Russian philosophy of culture and language in the 1920-s.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 593


Literatura, discurso, sociedade

Luis Filipe Ribeiro

Poderá parecer, à primeira vista, que a escolha do tema a que me propus hoje é excessivamente
ambiciosa. Não posso dizer o contrário. Entretanto, para discutir o estado atual das questões que ocu-
pam aqueles que têm como preocupação teórica central a análise dos discursos, não parece haver outro
caminho senão o de tentar fazer uma espécie de reconhecimento de terreno, estabelecendo as fronteiras
capazes de desenhar áreas conceituais minimamente definidas, sem o que há o risco de se falar no vazio
e a vender alhos por bugalhos.
O campo da linguagem, já o reconhecia Saussure, é “multiforme e heteróclito; cavalgando múltiplos
domínios, a um só tempo físico, fisiológico e psíquico, ele pertence ainda ao domínio individual e ao
domínio social; ele não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, porque não sa-
bemos como determinar a sua unidade.”1
O que o genial mestre genebrino faz aqui, se a ele pertence realmente tal pensamento — já que a
redação do Cours de Linguistique Générale foi tarefa de discípulos, aplicados, mas sempre discípulos
— é desferir um golpe de estilo. Pois, ao reconhecer a heterogeneidade do terreno e as conseqüentes
dificuldades daí advindas, o que ele faz é, autoritariamente, determinar que a linguagem não pode clas-
sificar-se entre os fatos humanos. Assim, a linguagem, enquanto totalidade, enquanto fenômeno humano
e, em conseqüência social e histórico, estaria fora do alcance de nosso conhecimento sistemático, fora do
campo do conhecimento científico, enfim. Pesa a seu favor, entretanto, o admitir, com louvável humildade
científica, que faz isto “porque não sabemos como determinar a sua unidade”.
Com esse simples passe de mágica, descarta um problema que, por ser de difícil solução, nem por isso
deixa de ser importantíssimo para o entendimento do próprio fenômeno humano. Que Saussure quisesse
estabelecer o seu objeto — e o fez com insuperável talento! — tudo bem. Era o passo necessário para
fundar a ciência que o tem como patrono. Fundou-a e bem fundada. Não é aí que reside o perigo!
O problema é outro. Ao fundar a Lingüística nas bases em que ele a fundou, com esse mesmo gesto,
descartou a possibilidade de um estudo sistemático e metodologicamente orientado do fenômeno mais
amplo da linguagem, relegando-a para o limbo das coisas incognoscíveis, criando um paradoxo de im-
possível solução. A linguagem, meio essencial de humanização do homem, não poderia ser objeto de
uma ciência que dela desse conta em toda a sua extensão e amplitude. No horizonte filosófico em que
Saussure se situava, talvez não houvesse, na época, outra alternativa, mas isso não impediu que, anos
mais tarde, o excluído retornasse ao palco das indagações.
E foi exatamente na Rússia, em meio à grande convulsão social decorrente da Revolução Bolchevique,
que uma outra corrente de pensamento sobre os fenômenos da linguagem começou a desenhar-se. Na-
vegando contra o oficialismo filosófico reinante em seu contexto, sempre empobrecedor e reducionista,
mas sem afastar-se, entretanto, do campo das indagações marxistas, Mikhaïl Mikhaïlovitch Bakhtin co-
meça um longo processo de repensar as grandes questões com que o campo da linguagem continuava
a desafiar todos aqueles que se defrontavam com suas manifestações. Desafio ainda maior para os que
se debruçavam sobre as questões da produção literária, mormente dentro da tradição russa, sempre
muito voltada para o social.
A partir de uma produção irregular, apesar de fecunda, atravessada pelos óbices de não ser um
intelectual bem-visto pelo sistema, Bakhtin vai lançando suas idéias inovadoras, seja através de livros
assinados por amigos e colaboradores como Medvedev e Voloshinov, seja por obras publicadas em seu
próprio nome. Vai tentando organizar, num cipoal de concepções inovadoras, as linhas de sua pesquisa
e de suas propostas. Extremamente preocupado com as questões da cultura popular, sua mirada estará
sempre assentada sobre as questões da oralidade, por onde circula e onde se perpetua a produção dos
segmentos menos privilegiados da sociedade. E este dado, muitas vezes omitido, é definitivo para a
compreensão de suas concepções teóricas.
A fixação na oralidade afasta-o das tentações sempre presentes do fetichismo do texto, tão comum
entre aqueles que, afeitos à página impressa como suporte da literatura, não conseguem dele escapar.

1 Saussure, Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale. Publié par Charles Bally, Albert Sechehaye et Albert Riedlinger. Paris: Payot, 1966.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 594


A invenção da escrita, já condenada por Sócrates no Fedro , por motivos diferentes daqueles que
terminarei por expor, tem como uma das suas conseqüências, ao lado dos benefícios indiscutíveis, o
ocultamento do autor e do leitor, figuras que passam a substituir o falante e o ouvinte. Nas sociedades
ágrafas ou com predominância da oralidade em suas manifestações culturais, a prática discursiva pres-
supõe a presença física do enunciador e do ouvinte, impedindo a sua abstração e ocultamento. Mais que
isso, a manifestação, por assim dizer, literária tinha como condição não só a presença física do narrador,
mas a evidência de suas determinações sociais. O respeito que merecia da comunidade, o reconheci-
mento de seu saber, a legitimidade de sua fala, a perícia no manejo de todas as formas de expressão
não-verbais, a sua posição hierárquica no circuito discursivo e mesmo social, tudo constituía uma situação
histórico-discursiva perceptível a olho nu, para quaisquer não-especialistas. De outra parte, o narrador
tinha presentes, com seus corpos, mentes e corações, os seus ouvintes, grávidos de um sem número de
determinações sociais e históricas, tudo marcado por uma irrecusável materialidade, onde a expressão
lingüística talvez fosse a materialidade menos palpável. Em síntese, a sua voz estava enraizada, firme
e claramente, em uma situação única e irrepetível, ainda quando costumeiramente ritual e, portanto,
necessariamente codificada.
Em tais condições a existência de um texto, tal e como hoje o concebemos, seria algo de impensá-
vel. Mesmo que os semioticistas contemporâneos possam insistir em que a expressão da memória do
narrador constitua um texto, deixemos a crédito de um rigor mais formal do que essencial a insistência
ficta desse neo-platonismo contemporâneo.
O que importa é que o texto, enquanto fetiche, enquanto mônada auto-suficiente e auto-significante,
enquanto materialidade positiva e positivista, esse texto não existia e não poderia existir, como de fato,
até hoje, no seio mesmo das culturas livrescas, segue inexistindo.
Tal inexistência, claro está, diz respeito ao caráter positivo e burdamente material do que se entende
como texto. Não se poderia pensar em literatura e em cultura, sem admitir que a única forma de ex-
pressão material que encontram é o suporte simbólico de que se servem em sua produção, circulação e
consumo. Não é disso que se trata. O que ocorre, desde a invenção da escrita e especialmente depois do
advento da imprensa, é que os discursos perderam, na aparência, a sua unidade social, constituída por
uma instância produtora — o enunciador —, uma instância produzida — o enunciado — e uma instância
de consumo produtivo — o enunciatário. A materialidade do texto escrito ou impresso, capaz de circular
independentemente da presença física de seu enunciador e capaz, igualmente, de persistir fisicamente
íntegro sem a ajuda de um leitor-enunciatário, é a base desse processo de fetichização, que tantos pre-
juízos vem causando aos estudos da literatura e da cultura.
Amparados na sólida bibliografia lingüística que se desenvolveu depois de Saussure, os estudiosos
transferiram, do domínio da lingüística para o da literatura e para o dos discursos, conceitos e ferramentas
metodológicas que, competentes na descrição do funcionamento da instância material-significante da
linguagem, absolutamente não eram capazes de dar conta dos seus fenômenos mais gerais, como aliás
já o previra o próprio Saussure.
O de que trata a lingüística, com competência e seriedade, é do suporte físico de toda a expressão
verbal. É mesmo extremamente sintomático que o campo da semântica sempre tivesse encontrado, senão
dificuldades, pelo menos um menor interesse por parte da lingüística. Prova disso é a imensa despropor-
ção quantitativa da bibliografia lingüística em todas as suas outras especialidades e a que diz respeito ao
campo das significações. Talvez Edward Sapir tenha sido um dos poucos lingüistas ocidentais a perceber
onde residia o problema, quando afirmava que a semântica não pertencia ao campo da lingüística.
Não é ocasional que o limite maior da análise lingüística seja a frase. Do seu ponto de observação,
a partir daí é o reino da repetição, nenhum fenômeno novo se produz. E é verdade. No plano da pura
expressão, a redundância das frases repete modelos dentro delas já contidos. Entretanto, do ponto de
vista da significação, as coisas não se dão da mesma maneira.
Esta não se deixa conter nos limites da formalização. Uma mesma unidade de significação, se elas
são delimitáveis, tanto pode usar como meio de expressão uma palavra, uma frase, um parágrafo, um
capítulo, um livro, dependendo de como se articula o discurso em que é produzida. Porque ela é a razão
de ser e a própria essência do discurso. Um discurso se produz para construir uma significação ou um
conjunto delas. Donde a situação histórica em que se produz ser parte inalienável de sua própria maneira
de existir. Não há, e não pode haver, discurso onde não haja um enunciador e um enunciatário histori-
camente identificáveis. As condições específicas em que um discurso é produzido são, por assim dizer,
irrepetíveis. E nisto a análise do discurso afasta-se de modo radical das metodologias da lingüística. Não
há aqui unidades identificáveis e reiteráveis. Assim um mesmo texto repetido em situações discursivas
diferentes constitui novo discurso com significações também diferentes. É o caso típico das citações, tão
comuns nos trabalhos acadêmicos. É o caso da paródia e da paráfrase, mantidas as devidas proporções.
Nesse sentido ninguém pode ler o mesmo livro mais de uma vez, pois, parafraseando, os pré-socráticos,
nem o leitor, nem o livro serão os mesmos.
Isto só vem a reiterar a afirmação de que cada discurso é um acontecimento histórico novo e irrepe-
tível. Ele é a expressão da própria história no seu incontido processo de fazer-se a cada momento. Mas
tal situação não levaria, no limite, à própria impossibilidade do conhecimento, postulada por Ferdinand
de Saussure?
Se as coisas se dessem de modo linear, seguramente sim. Mas ocorre que, até como condição para
que a comunicação possa se processar, as significações produzidas a cada discurso, em cada situação
Proceedings XI International Bakhtin Conference 595
histórica e social específica, passam a fazer parte de um processo de acumulação e constituem-se em
um tesouro socialmente compartido. De forma que, a cada discurso produzido, enunciador e enunciatá-
rio vão se enriquecendo de novas significações que se agregam àquelas anteriormente produzidas em
seu meio cultural. Uma tramada dialética entre o novo e o velho, entre a renovação e a tradição, tem
lugar a cada ato comunicativo. Cada discurso agrega-se aos demais, antes dele produzidos, e a cultura
como um todo apresenta-se como um complicadíssimo processo de luta entre significações cristalizadas
e novas significações, que expressa o próprio processo histórico da sociedade.
Dessa forma a nossa conhecida teoria do signo fica radicalmente ultrapassada. Não é possível ad-
mitir-se que um signo seja a relação entre um significante e um significado, desde sempre existentes
e à disposição dos falantes, súditos obedientes, para poderem entre si trocar quantidades previamente
estabelecidas e produzidas sabe-se lá por quem. Na verdade, em cada palavra — mas, também, em
cada frase, em cada parágrafo — o que se observa, no momento mesmo em que o discurso se dá, é um
movimento em que a base constituída pela ou pelas significações previamente produzidas naquele con-
texto histórico se vê acrescentada e modificada pelas novas significações que esta situação inédita lhe
acrescenta. É então, no seio do próprio signo, que a dialética entre o velho e o novo, entre a tradição e a
renovação, acontece a cada momento. As contradições sociais não poderiam existir apenas na realidade
fenomênica e estarem ausentes das articulações do discurso. Seria uma contradição em termos.
Assim, se o signo, ao invés de ser um depósito morto, apresenta-se como o lugar em que a dinâmica
histórica se processa, há que perguntar-se o como de tal movimento.
A cada momento, os sujeitos, ao agirem sobre o real e sobre si mesmos, produzem novas avaliações
desse real frente a outros atores da cena social. A cada nova experiência, novas avaliações do real se
acrescentam às anteriores, modificando-as. E tais avaliações passam a ter existência e a circular, desde
o momento de sua produção, em um tipo qualquer de discurso. E o discurso é a forma de estabelecer
relações entre os distintos agentes históricos. Só há discurso com a presença de sujeitos históricos.
Assim a abordagem do universo dos discursos não pode ser encarada como uma aproximação formal
a uma coleção de textos ou a uma biblioteca. É evidente que sem os livros e sem os textos, em uma
sociedade letrada, não se pode pensar numa análise de discursos. Eles são parte importantíssima e
insubstituível do universo discursivo, ainda quando não o esgotem. Os discursos estão em toda parte,
inclusive em estado de livro, nas bibliotecas. Mas sem a presença humana que lhes traga um sopro de
vida, eles não são e não poderão ser discursos.
O texto, o livro congelam e conservam, por assim dizer, um momento fundamental de qualquer dis-
curso, que só retoma a sua existência social, quando a presença humana e histórica os traz de volta às
contradições da vida real. Nesse sentido a magnífica metáfora de Melquíades, criada por Gabriel García
Marquez em Cien años de soledad, é mais do que expressiva. No romance, a figura mágica e misteriosa,
apesar de humana e afetiva, de Melquíades surge, desaparece e ressurge em diferentes momentos da
narrativa. O curioso disto tudo é que o seu surgimento e ressurgimento se dá sempre e quando algum
dos inúmeros Buendía abre o velho manuscrito e inicia ou reinicia a sua leitura. Só com o sopro vital da
leitura adquire Melquíades energia suficiente para retornar à cena da narrativa. Quando ninguém lê o
manuscrito, o seu desaparecimento é necessário. Não há quem lhe dê razão para existir...
Claro está que esta leitura, esta significação, esta interpretação não está e não poderia estar no texto
de García Marquez. Ela nasce de um discurso novo que se instaura entre eu e García Marquez através
de Cien años de soledad , no momento mesmo em que a minha leitura se produz. Cada vez que volto,
a partir de minha pessoal e insubstituível experiência, a visitar esse livro, como todos inesgotável, um
novo diálogo se estabelece e o confronto entre as significações mais antigas, minhas ou alheias, e as
novas que estão a se ensaiar, criam a única realidade de que me aposso: a significação presente que
construo para a obra. Reverberam nela antigas leituras, ligadas seguramente a outras recordações que
as acompanharam, conscientemente ou não. É um reviver de experiências, que sendo radicalmente mi-
nhas, se agregam ao livro, tornando-o uma espécie de objetivação de minhas vivências íntimas, como
antes o foi daquelas de García Marquez.
Assim, num simples gesto de leitura, entrecruzam-se histórias e sociedades diferentes, em distintos
momentos de sua evolução. O diálogo que se estabeleceu colocou em contacto distintas experiências
sociais e individuais, antigas e contemporâneas, tudo através do suporte material em que se constitui
o texto do livro.
Isto nos encaminha, naturalmente, para a teoria do diálogo, conceito central no pensamento de
Mikhaïl Bakhtin. Para ele todo discurso, toda palavra é sempre e necessariamente dialógica. Um dis-
curso se articula em resposta a um outro; numa fala sempre está inscrita outra que a provoca e à qual
ela responde. Não existe comunicação no vazio. O discurso inscreve-se na dinâmica social e implica a
presença real ou virtual dos seus interlocutores. Como a dialética discursiva não respeita as fronteiras
temporais nem as espaciais, ela se serve das imagens dos interlocutores inscritas nos enunciados em
que, provisoriamente, se cristaliza.
Aos que me ouvem ou me lêem, neste exato momento, dirige-se não o enunciador presente que
lê estas notas, mas um outro que as produziu, em outra relação histórica e em outra dinâmica. Lá, na
origem, estava um enunciador, alocado em seu escritório e diante da tela de um computador, dialogan-
do com um público virtual e futuro, ainda que perfeitamente previsível. Caso contrário, a comunicação
tornar-se-ia inviável. Tinha que imaginar um público falante do Português, interessado nos temas a que

Proceedings XI International Bakhtin Conference 596


se dedica, atento e especialista a julgar as suas posições. O diálogo nasceu, lá, respondendo ao convite
dos coordenadores deste evento que lhe haviam pedido respostas relativas aos temas que são neste
discurso expostas. O enunciador presente aqui, nesta mesa, diante de um público não mais virtual mas
agora historicamente concretizado, lê um enunciado de outro. Quem escreveu é um autor de quem,
hoje, só resta uma imagem cristalizada naquilo que criou. Do público a que ele se dirigia, igualmente,
fica a imagem idealizada que dele tinha, antes que se concretizasse dias mais tarde, hoje e aqui, num
agora irrepetível. A dialogia que se realiza neste momento histórico, igualmente único, faz cruzarem-se
muitas vozes diversas.
Eu poderia, hoje, discordar de algumas das coisas que leio e se manifestasse, de alguma forma, tal
discordância, seria apenas uma voz a mais no diálogo, incapaz e incompetente para renunciar ao que
a outra que a antecedeu deixou gravado, seja no disco rígido do computador, seja nas folhas de papel
que se deixam integrar nesse diálogo múltiplo. Não a minha voz narcísica e absoluta, mas muitas vozes,
entre elas as minhas, mas muitas outras alheias, pertencentes a tempos e a espaços diversos, se fazem
presentes para que alguma significação se realize neste momento, a sua vez único e irrepetível.
Se, num gesto de economia intelectual — justificável, em parte —, decidir-me a ler este mesmíssimo
texto em outro congresso, seguramente não poderá ser o mesmo discurso. Outra será a voz leitora, inclu-
sive já acrescentada e enriquecida pelos múltiplos diálogos que esta leitura atual há de, necessariamente,
provocar. Ainda quando as divergências não venham a público, as vozes discordantes não deixarão de
existir e de manifestar-se, de alguma forma, em algum momento. Tudo isto é parte do discurso de hoje
e a ele se acrescenta, cristalizando-se numa espécie de metatexto virtual. Assim, numa próxima leitura
entre a voz que lerá — imaginando que seja a minha própria — já será outra; maior será, igualmente,
a distância entre o autor que escreveu, existente na forma de imagem de autor, e aquele que lê a sua
produção. Maiores, talvez, as suas diferenças; outras as experiências vividas no intervalo. Outro será o
público, outra a circunstância da leitura. Em suma, será outro ato histórico e em outro espaço social. Em
conseqüência, outras as significações que se agregarão às primitivas, já acrescentadas daquelas hoje e
aqui produzidas, outro discurso e outra relação com o real. É a história em sua marcha inevitável, por
rumos muitas vezes insuspeitados.
Dessa forma, o diálogo é a forma social de existir dos discursos. Nunca a voz isolada, autônoma, de
uma entidade geradora, mas sempre a polifonia social em que reverberam, quando muito, os acordes
pessoais nela inscritos. Toda a cultura, então, pode resumir-se num interminável concerto de vozes,
numa imensa polifonia discursiva.
Entretanto, o que deve ser fixado, para o entendimento é que todo discurso é sempre orientado para
o outro. Não há concebê-lo como expressão unilateral de vontade. Só há discurso com a presença do eu
e do tu. Todo discurso compreende uma tríade de que o enunciado é apenas um vértice, ainda que sua
evidência por vezes ofusque a presença dos demais.
Sem os três elementos o discurso tende a virar texto , ou seja, uma materialidade vazia que, pelo
efeito de fetichização, assume a aparência de uma coisa fisicamente metafísica, como queria Marx. Um
texto, do ponto de vista da análise de discursos, não tem um significado. Ele pode, ao contrário, consti-
tuir-se no lugar em que significações divergentes e convergentes encontram seu ponto de estacionamento
provisório. A prova mais evidente disto é que, se me defronto com um texto escrito em uma língua
que desconheço, nenhum significado poderá ser encontrado ali, até porque ali não está. Só a presença
humana do sujeito leitor, agregando aos sinais gráficos aí depositados os valores de significação por ele
acumulados, no seio de uma determinada cultura, dará a essa folha de papel pintado a dimensão da
linguagem, fenômeno humano por excelência. Mas a presença desse outro que é o leitor não atribuirá
ao texto os mesmos valores de significação imaginados e construídos pelo autor. Cada um é membro
de uma comunidade de significação, de uma determinada cultura, de um determinado segmento social
e contribuirá, a seu modo, para as significações possíveis naquela circunstância de leitura.
E ao atribuir aos sinais gráficos a marca de sua presença, o leitor estará assumindo a posição para
ele determinada por um outro que a ele dirige as suas versões do mundo. Não importa quem assuma
o lugar destinado ao leitor, assumirá sempre a dimensão da imagem de leitor para ele construída pelo
autor original.
Assim, ao abrir as páginas de São Bernardo , onde mestre Graça depositou todo o seu talento de
escritor, estarei obrigado a assumir um ponto de observação no tempo que será necessariamente pos-
terior ao do suicídio de Madalena, e de onde ouvirei, queira-o ou não, a voz de Paulo Honório, no seu
presente de narrador, tecendo a sua litania saudosa em torno da imagem, agora construída, da mulher
que se foi…
O eu e o tu estarão, assim, indissoluvelmente ligados num mesmo movimento dialético que põe em
contacto os atores do discurso. Não há pensar em dialogismo apenas na forma evidente do diálogo, seja
nas obras de ficção, seja no cotidiano da vida. O dialogismo está presente onde houver discurso. E, por
isso mesmo, o enunciado será sempre entendido como a expressão material de uma passagem, por ele
trafegarão as versões de mundo, as indagações, as perplexidades dos atores desse drama curioso. Em
uma palavra, os valores. O enunciado é um campo onde os valores se organizam para dar inteligibilidade
ao mundo. Assim, a cada momento estaremos confrontando as diferentes formas de considerar cada um
dos atos da vida cotidiana, tal e como os outros que a compartilham conosco a avaliam. Compartilham o
mesmo tempo e espaço, ainda e quando estejam muito distantes na geografia e na história. Na medida

Proceedings XI International Bakhtin Conference 597


em que estabeleçamos com eles relações discursivas os estaremos integrando em nossa própria histo-
ricidade e atribuindo-lhes a tarefa de nos ajudarem a entender o mundo e seus arredores.
Dessa forma, não estarei apenas observando, em Crime e Castigo, de Dostoiévski, as complicadas
maquinações mentais de um Raskólhnikov, antes e depois de assassinar Alíona Ivânovna, a usurária,
como um leitor distante e isento. Ao contrário, estarei encarnado nos dilemas da personagem, como se
fosse ela, vivenciando o horror do crime, ao mesmo tempo em que, trazendo-a para o meu presente de
leitor, faço-a viver os meus próprios e outros dilemas, mas sempre e humanamente dilemas…
O discurso faz assim o papel de agregar visões de mundo, avaliações de vida, interpretações da
morte. Sempre na dimensão do diálogo com o outro, sem o qual só poderíamos permanecer mudos. E
mudos, renunciar ao pensamento.
Mas tal diálogo não se dá apenas entre os dois contendores do discurso. Talvez uma das mais geniais
criações de Bakhtin tenha sido a do terceiro do diálogo. Diz ele que um diálogo pressupõe sempre um
terceiro diante de quem e em relação a quem o diálogo se trava. É ele a referência axiológica em relação
à qual os valores, as concordâncias e as divergências se produzem. Chame-se de Deus, de História, de
Humanidade, de Revolução, de Classe Social ou mesmo de leitor, este terceiro é o parâmetro organizador
da polifonia, é a referência necessária à inteligibilidade.
Aqui mesmo, ao falar para vocês, falo diante de alguma outra coisa que não sei bem o que seja: se
a tradição desta casa tão minha querida, onde cursei todo o estudo secundário e onde vivi as minhas
primeiras experiências literárias, muito antes de me formar em Letras, depois de haver estudado Direito
na Universidade do Paraná (como se chamava então!); se a responsabilidade de ter escolhido responder
a questões tão candentes; se o meu próprio narcisismo em busca da aceitação. Pouco importa, o terceiro
me vigia e me estimula, ao mesmo tempo em que observa a vocês e os fustiga para a divergência criativa
ou para a negação pura e simples, em nome de outros pensamentos e outras teorias. Mas é sempre um
terceiro que baliza o meu e o alheio discurso. Lamentavelmente este foi um ponto filosófico fundamen-
tal que a brevidade da existência não permitiu que Bakhtin, mesmo octogenário, pudesse desenvolver
plenamente. Cabe a nós seus pósteros a tarefa de fazê-lo, sem deslustrar excessivamente o terceiro em
que ele se constituirá, vigiando o nosso pensamento.
Observando a literatura de modo mais próximo, dois problemas, na verdade interlaçados, ocuparão
hoje as minhas preocupações, como forma de deter este discurso que já vai longo.
O primeiro deles está na impossibilidade de aceitar um comparativismo que imagina que os textos
possam ser cotejados entre si, como se textos fossem. Ou seja, imaginar que a aproximação formal
de enunciados, desconsiderados quem os lê e quem os escreveu, em suas específicas circunstâncias
históricas, pudesse trazer resultados outros que as meras coincidências formais, em si muito pouco
esclarecedoras. Felizmente boa parte de nossos estudiosos de literatura comparada, ainda quando não
professem trabalhar com a análise de discursos, sentem a premente necessidade, imposta pela própria
especificidade do material com que se defrontam, de romper com os limites estreitos do texto , para
aventurar-se um pouco mais além e colocar as perguntas que a superfície fria da página impressa não
pode responder.
Esse mesmo sintoma pode ser apreendido em muitos dos trabalhos que se filiam espontaneamen-
te às correntes formalistas. Nos seus procedimentos, muito comumente podemos rastrear pecadilhos
metodológicos que introduzem contrabandos extra-textuais, sem os quais não conseguiriam atribuir às
estruturas formais, às vezes tão elegantes, que desenham, qualquer voz capaz de dar uma humana
dimensão aos livros de que falam.
Em outro plano, herdando uma leitura, no mínimo infeliz, que Julia Kristeva fez de Bakhtin em sua
“Introdução” à edição francesa de Problemas da Poética de Dostoiévski2, teve grande sucesso entre nós
a teoria da intertextualidade, atribuída pela estudiosa búlgara ao próprio Bakhtin. Nada mais distan-
te das suas posições que uma tal concepção. Não que estejamos brigando por palavras. Nada de mal
haveria em usar-se o conceito de intertextualidade para traduzir o dialogismo, como aliás o faz Tzvetan
Todorov em seu excelente livro sobre Bakhtin.3 O problema reside no específico conceito que se faz da
intertextualidade , a partir de Kristeva. Tudo se passa como se os textos dialogassem entre si, indepen-
dentemente de quem os lê e de quem os haja escrito. Entende-se que o livro de Bakhtin, traduzido e
publicado no auge da onda estruturalista francesa, tenha sofrido em sua leitura os influxos formalistas
de tal contexto. Era a leitura esperável, talvez.
Entretanto o que Kristeva consegue, com sua leitura, é aumentar o fetiche do texto, tornando-o agora,
de alguma forma e ironicamente, polifônico. Sua noção de intertextualidade elide sujeito e objeto, com a
licença de Drummond. Estamos diante de um grande mercado a que comparecem essas folhas de papel
a dançar umas com as outras e a estabelecer relações nem sempre recomendáveis... E o curioso, mas
não surpreendente, é que tal fenômeno tenha ganhado foros de teoria e tenha influenciado não poucos
estudos de literatura.
Claro está que a senhora Kristeva tem o direito de pensar como pensa e não nos cabe aqui a censura
a nenhum pensamento. Apenas é necessário ressaltar que esse nunca foi o pensamento de Bakhtin,
naquilo que escreveu e publicou. Em primeiro lugar, ele jamais usou a palavra intertextualidade, ao lon-

2 Bakhtine, Mikhail. La poétique de Dostoievski. Traduit du Russe par Isabelle Kolitcheff, présentation de Julia Kristeva. Paris: Éditions du Seuil, 1970.
3 Todorov, Tzvetan. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique suivi de Écrits du Cercle de Bakhtine. Paris: Éditions du Seuil, 1981.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 598


go de sua obra. Sua noção de dialogia implica sempre as relações entre enunciadores e enunciatários.
Quando, algumas vezes, usa a expressão relações intertextuais, emprega-a para distingui-las das relações
interpessoais, mas sempre entendendo por texto um equivalente de enunciado, uma expressão dialógica
em que os sujeitos do drama da linguagem são os atores necessariamente centrais.
O que a mim me preocupa é que o exercício da chamada intertextualidade reforça a crença de
que, na verdade, a imensa biblioteca que constituiria a literatura poderia operar sem a nossa presença
já tão escassa em outros cenários da vida brasileira. Se os textos relacionam-se entre si, antes mesmo
de serem escritos, sem a intervenção de ninguém, à literatura não caberia mais a função de colocar os
homens em situação de diálogo, em busca de sua perene humanização.
Não é de estranhar-se que, na própria academia, subsistam imagens como essas, vestidas por fora
do linguajar das tecnologias que exibem suas musculaturas neo-modernas, mas por dentro corroídas
por quanto há de desumanizador nesta nossa sociedade desigual, não é de estranhar-se que por nossas
próprias veias possa estar circulando o sangue que nos há de transformar em meros robôs, numa clara
renúncia à vocação da liberdade que a literatura nos impõe?

Luis Filipe Ribeiro é mestre em Letras pela PUC/RJ e doutor em História Social
das Idéias, pela UFF; professor adjunto de Teoria da Literatura, no Instituto de Letras
da UFF, e de Literatura e História no Programa de Pós-Graduação em História da
UFF. É autor, entre outros ensaios, de Mulheres de Papel: um estudo do imaginário
em José de Alencar e Machado de Assis . Niterói: Eduff, 1996 e de Geometrias do
Imaginário, Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 2000.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 599


A constituição e o funcionamento do gênero jornalístico
artigo: cronotopo e dialogismo

Rosângela Hammes Rodrigues

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Rua Almirante Alvin, 452 Ap. 1002A

CEP: 88015-380

Centro – Florianópolis – SC- BR

E-mail: hammes@cce.ufsc.br

Resumo
Neste artigo, objetiva-se apresentar a análise da constituição e do funcionamento do gênero do dis-
curso artigo, da esfera jornalística. Os dados constituíram-se de sessenta e dois artigos, publicados em
quatro jornais nacionais brasileiros. Na dimensão social do artigo, destacaram-se: vinculação à seção
de opinião, periodicidade diária, interlocutores das classes A, B, C, concepção de autoria centrada nos
critérios de prestígio social e midiológico. No aspecto temático, o artigo apresenta-se como uma reação-
resposta do autor face aos acontecimentos sociais da atualidade. A orientação apreciativa constrói-se
através da relação dialógica de três instâncias enunciativas: a posição da autoria e seus desdobramentos
enunciativos; a relação dialógica com os enunciados já-ditos: movimentos dialógicos de assimilação e
de distanciamento; a relação dialógica com a reação-resposta ativa do leitor: movimentos dialógicos
de engajamento, refutação e interpelação. Essas relações constroem-se estilístico-composicionalmente
pela incorporação de gêneros intercalados, uso de expressões avaliativas, introdução do discurso do(s)
outro(s) e modalização.
Abstract
The aim of the article is to present the analysis of the constitution and the functioning of the spe-
ech genre “article”, of the journalistic sphere. The data had consisted of sixty two articles, published
in four Brazilian national newspapers. In the social dimension of the article, we distinguished: linkage
to the opinion section, daily periodicity, classes A, B, C readers as addressees, authorship’s conception
centered upon social status and media-criteria. In the thematic aspect, the article is characterized as a
reaction-evaluative response of this author face to the social events of the present time. The appreciative-
oriented production is constructed through the dialogic relationship of three enunciative instances: the
enunciative position of the authorship and its developments; the dialogic relationship with the already
produced utterances: dialogic movements of assimilation and distancing; the dialogical relationship with
the reader’s active reaction-response: dialogical movements of engagement, refutation, and interpella-
tion. These relationships are constructed with the incorporation of intercalated genres, use of avaliations
expressions, introduction of the “related speech” and modalization.

1. Introdução
O resultado de pesquisa que se apresenta neste artigo científico é uma síntese da pesquisa de dou-
torado, realizada no período de 1998 a 2000, cujo objetivo foi analisar e elaborar uma descrição inter-
pretativa do gênero do discurso artigo, da esfera jornalística.
A seqüência do texto encontra-se organizada em quatro seções. Na seção 2, discutem-se alguns con-
ceitos teóricos do Círculo de Bakhtin que sustentaram os princípios teóricos e metodológicos da pesquisa.
Os procedimentos metodológicos de análise dos dados são relatados na seção seguinte. Nas seções 4
e 5, são apresentados os principais resultados da análise do gênero artigo. Na última seção, a título de
fechamento, são discutidos alguns desenvolvimentos de pesquisa possíveis.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 600


2. Fundamentação teórica
A incursão teórica pelos textos do Circulo de Bakhtin teve por objetivo maior buscar apreender o lugar
e o papel da noção dos gêneros do discurso no conjunto dos seus estudos, em especial na articulação com
outros conceitos fundamentais, tais como a natureza social e ideológica da linguagem, língua, discurso,
enunciado e texto, para, a partir daí, poder-se analisar o gênero jornalístico artigo. Como resultado dessa
incursão, apresenta-se, neste artigo, a leitura de três conceitos que se considera relevante destacar: a
própria noção de gênero, a de enunciado e a de texto.
A busca pela compreensão das noções de texto e enunciado foi impulsionada pela percepção de que
se a noção de gênero era compreendida no contexto científico de um modo geral como uma unidade
“maior” que o texto, a noção de enunciado trazia com ela os sentidos cristalizados na Lingüística Textual
e na Teoria da Enunciação, como uma unidade “menor” que o texto. Esta, no entanto, não poderia ser
a noção do Circulo Bakhtiniano, pois, se assim o fosse, como compreender que o gênero é um tipo de
enunciado, uma das conceituações dada aos gêneros do discurso?
Para a leitura que se fez da relação entre texto e enunciado tornaram-se especialmente importantes
as considerações de Bakhtin nos textos El problema del texto en la lingüística, la filología y otras ciencias
humanas. Ensayo de análisis filosófico (1985), El problemas de los géneros discursivos (1985), De los
apuntes de 1970-1971 (1985), O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (1993),
Autor y personaje en la actividad estética (1985) e Problemas da poética de Dostoiévski (1997).
Em El problema del texto en la lingüística, la filología y otras ciencias humanas. Ensayo de análisis
filosófico (1985), Bakhtin considera que o texto (verbal – oral ou escrito – ou também em outra forma
semiótica) é a unidade, o dado primário e o ponto de partida para todas as disciplinas do campo das ci-
ências humanas, apesar das suas finalidades científicas diversas. Ele é a realidade imediata para o estudo
do homem social e da sua linguagem, pois a constituição do homem social e da sua linguagem é mediada
pelo texto; suas idéias e seus sentimentos se exprimem (concretizam-se) somente em forma de textos.
Portanto, o acesso ao homem social e a sua linguagem concretiza-se somente pela via do texto.
Em outros trabalhos, como em El problemas de los géneros discursivos (1985), encontra-se a afir-
mação de que o enunciado é a unidade concreta e real da comunicação discursiva, pois o uso da língua,
o discurso, só pode existir na forma de enunciados concretos e singulares, pertencentes aos falantes de
uma ou outra esfera da atividade e comunicação humanas. Assim sendo, como o Bakhtin vê a relação
entre enunciado texto?
Uma primeira observação que se poderia fazer é a de que há apenas uma flutuação (variação) termi-
nológica, como Bakhtin parece acenar em De los apuntes de 1970-1971 (1985, p. 378)): “ Mi predilección
por las variaciones y por heterogeneidad de los términos en relación com uno solo fenómeno. La multi-
plicidad de enfoques.” Embora se perceba que essa variação terminológica esteja presente nos textos do
Círculo, ela também é índice da “multiplicidade de enfoques” de um dado objeto. É essa a possibilidade
para a leitura dos termos enunciado e texto: ora parecem recobrir “um só fenômeno” – nesse caso, o
termo texto como “sinônimo” de enunciado –, ora são tomados como conceitos distintos.
É em El problema del texto en la lingüística, la filología y otras ciencias humanas. Ensayo de análisis
filosófico (1985) que o autor elabora os fundamentos para a questão do texto, desenvolvendo duas noções
distintivas em torno do termo, que também podem ser identificadas em outros trabalhos, como comen-
tado. Essa diferenciação se identifica no discurso do autor pelas próprias considerações que desenvolve
a respeito da palavra texto e pelo seu discurso bivocal. As relações dialógicas que o autor estabelece, a
dupla orientação valorativa da palavra texto se marcam, algumas vezes, formalmente no seu discurso,
pelo uso de aspas ou itálico, que criam as fronteiras do outro discurso científico, como se pode observar
nas citações a seguir.
Na linguagem, enquanto objeto da lingüística, não há e nem pode haver quaisquer relações
dialógicas: estas são impossíveis entre os elementos no sistema da língua (por exemplo, entre
as palavras no dicionário, entre os morfemas, etc.) ou entre os elementos do “texto” num
enfoque rigorosamente lingüístico deste. [...]. Não pode haver relações dialógicas tampouco
entre os textos, vistos também sob uma perspectiva rigorosamente lingüística. Qualquer
confronto puramente lingüístico ou grupamento de quaisquer textos abstrai forçosamente
todas as relações dialógicas entre eles enquanto enunciados integrais. (BAKHTIN, 1997, p.
182, grifos do autor).

La lingüística se enfrenta al texto, no a la obra. Aquello que la lingüística enuncia sobre la


obra se aporta ilícitamente y no es consecuencia de un análisis estrictamente lingüístico.
[...]. Si simplificamos un poco, se podría decir que las relaciones exclusivamente lingüísti-
cas (o sea, el objeto de la lingüística) representan relaciones entre los signos en los límites
de la lengua o de un texto (esto es, se trata de relaciones sistémicas o lineares entre los
signos). Los nexos que se establecen entre los enunciados y la realidad, entre el enunciado
e el sujeto hablante real y entre el enunciado y otros enunciados reales [...], nunca pue-
den llegar a ser objeto de la lingüística. Los signos separados, los sistemas lingüísticos o el
texto en tanto que unidad sígnica nunca pueden ser verdaderos ni falsos ni bellos, etcétera.
(BAKHTIN, 1985, p. 315-316).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 601


El enunciado como una totalidad no puede ser definido en términos de la lingüística o de
la semiótica. El término texto no corresponde en absoluto a la esencia de um enunciado
entero. (BAKHTIN, 1985, p. 375, grifos do autor).

O que se observa é o diálogo de Bakhtin com as correntes teóricas da época, como a lingüística.
As considerações teóricas da lingüística da sua época, pelo seu recorte teórico, ou seja, pela abstra-
ção de certos aspectos da vida concreta da linguagem, não podiam responder pelo todo do texto, ou
seja, pelo texto visto como enunciado. Bakhtin reconhece a legitimidade do objeto da lingüística – o
texto visto como fenômeno puramente lingüístico –, mas sua orientação é outra; ausculta o texto
como fenômeno sócio-discursivo: “Nos interesan ante todo las formas concretas de los textos y las
condiciones concretas de la vida de los textos, sus interrelaciones e interacciones.” (BAKHTIN, 1985,
p. 306)
Fazendo uma analogia com a distinção que Bakhtin estabelece entre discurso e língua (objeto da
lingüística) no livro Problemas da poética de Dostoiévski (1997, p. 181) – “temos em vista o discurso,
ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto da lingüística, obtido
por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos concretos da
vida do discurso” –, que se designou na pesquisa como língua-discurso e língua-sistema, respectiva-
mente, pode-se dizer que o texto, visto na sua integridade concreta e viva, e não o texto como
objeto da lingüística do texto de cunho mais imanente, faz dele um enunciado. Como no caso da
dupla orientação teórica para a língua, pode-se adotar a dupla orientação teórica para o texto: o
texto-sistema e o texto-enunciado. É novamente em El problema del texto en la lingüística, la filología y
otras ciencias humanas. Ensayo de análisis filosófico (1985) que o autor salienta que dois aspectos
“determinam” um texto como um enunciado: o seu projeto discursivo e a realização desse projeto,
sendo que a inter-relação entre eles imprime o caráter do texto. Assim, o texto visto como enunciado
tem uma função ideológica particular, tem autor e destinatário, mantém relações dialógicas com
outros textos (textos-enunciados) etc., isto é, tem as mesmas características do enunciado, pois é
concebido como tal.
Nessa perspectiva, o texto, objeto da vida concreta, pode ser analisado teoricamente de uma
dupla perspectiva: do pólo da língua, do texto propriamente dito (pólo 1) e do pólo do discurso, do
enunciado (pólo 2). O primeiro pólo do texto, abstraído da sua situação social, está relacionado com
tudo aquilo que é e pode ser reproduzido e repetido no texto, ou seja, a língua como sistema de
signos e o texto como sistema de signos. O segundo pólo do texto é o do acontecimento irrepetível
do enunciado, que pertence ao texto, mas que só se manifesta na situação, na interação com outros
textos (enunciados). Dessa forma, do ponto de vista do segundo pólo, e somente a partir dele,
pode-se estabelecer que o texto é enunciado, que a língua é discurso.
Assim, compreende-se que quando Bakhtin salienta que a constituição do homem social e da sua
linguagem é mediada pelo texto, que o texto é o ponto de partida para o estudo do homem social e
da sua linguagem, ele está se referindo ao texto-enunciado. A figura a seguir busca representar a
interpretação que se fez da complexa relação desenvolvida por Bakhtin entre texto, enunciado,
língua e discurso, vista a partir dos dois pólos de análise do texto.
Feitas as considerações a respeito da relação entre texto e enunciado, pode-se discutir a noção
de enunciado. Interessam-nos aqui certos aspectos da noção de enunciado apreendidos dos textos
do Círculo: a sua condição de unidade e elo na cadeia da comunicação discursiva, as suas dimensões
constitutivas e as características que o diferenciam das unidades da língua (sistema).

Pólo 1
texto língua (- situação social e
interlocutores)
(Plano da língua)

TEXTO

(+ situação social e
(Plano do discurso) interlocutores)

enunciado discurso
Pólo 2

Figura 1: Relação entre texto e enunciado, língua e discurso


Como já mencionado, o enunciado é visto como a unidade concreta e real da comunicação discursiva,
uma vez que o discurso só pode existir na forma de enunciados concretos e singulares, pertencentes
aos sujeitos discursivos de uma ou outra esfera da atividade e comunicação humanas. Cada enuncia-
do, dessa forma, constitui-se em um novo acontecimento, um evento único e irrepetível da comunicação
discursiva, vindo a ser a participação, “una postura activa del hablante dentro de una u otra esfera de
Proceedings XI International Bakhtin Conference 602
objetos y sentidos” (BAKHTIN, 1985, p. 246). Ele não pode ser repetido, somente citado, pois, nesse
caso, constitui-se como um novo acontecimento. Nessa perspectiva, o enunciado representa um elemento
inalienável, singular, pois é uma nova unidade da comunicação discursiva contínua, contribuindo para a
sua existência e evolução.
Mas é também como elemento inalienável que o enunciado representa apenas uma fração, um elo,
na cadeia complexa e contínua da comunicação discursiva. Nascido na inter-relação discursiva, ele não
pode ser nem o primeiro nem o último, pois já é resposta a outros enunciados, surge como sua réplica,
“é resposta a alguma coisa e é construída [o] como tal”(VOLOSHINOV, 1988, p.98). Além disso, estão
no seu horizonte os enunciados que o seguem, pois todo enunciado está orientado para o(s) outro(s)
participante(s) da interação verbal, conta com a sua compreensão concreta e ativa: “cada discurso es
dialógico, dirigido a otra persona, a su comprensión y a su efectiva o potencial respuesta” (VOLOSHINOV,
1993, p.256, grifos do autor). Assim, se os enunciados, pelo seu papel e lugar, representam unidades
concretas e únicas da comunicação discursiva, por outro, pela sua natureza, não podem deixar de se tocar
nessa cadeia, estando vinculados uns aos outros por relações dialógicas, que são relações de sentido.
Se a formação do enunciado não pode ser vista isoladamente, mas na sua relação dinâmica com os
outros enunciados, da mesma forma, ele não pode ser separado da situação social (imediata e ampla).
Não se pode compreender o enunciado sem considerá-la, pois o discurso, como fenômeno de comunicação
social, é “determinado” pelas relações sociais que o suscitaram. Há um vínculo efetivo entre enunciado
e situação social, ou melhor, a situação se integra ao enunciado, constitui-se como uma parte dele, in-
dispensável para a compreensão do seu sentido.
Um enunciado isolado e concreto sempre é dado num contexto cultural e semântico-axiológico
(científico, artístico, político, etc.) ou no contexto de uma situação isolada da vida privada;
apenas nesses contextos o enunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou
falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim por diante.
(BAKHTIN, 1993, p. 46).

Portanto, a noção de enunciado do Círculo inclui a sua dimensão social (ou dimensão extra-verbal)
como um elemento constitutivo. Sem essa dimensão, pode-se dizer que se está diante do texto-sistema.
É certo que essa posição não subestima a dimensão verbal (ou outro material semiótico) do enunciado,
uma vez que sem uma expressão material semiótica já não se está também mais diante de um enun-
ciado, mas de um fenômeno natural, não sígnico. A problemática levantada é que a noção de enunciado
como um todo de sentido não se limita apenas a sua dimensão lingüística. Para além de uma parte
verbal expressa (exprimida, materializada), fazem parte do enunciado, como elementos necessários a
sua constituição e a sua compreensão total, isto é, à compreensão do seu sentido, outros aspectos cons-
titutivos do enunciado, que compõem a sua dimensão social constitutiva. O Círculo de Bakhtin reafirma
essa posição em vários trabalhos, como se pode observar na citação a seguir:
Quels que soient le sens vécu et la signification de l’ énoncé dans la vie, ils ne coïncident
pas avec sa constitution purement verbale. Les discours prononcés sont imprégnés de sous-
entendu et de non dit. Ce qu’on appelle la “compréhension” et l’ “évaluation” de l’énoncé
(l’accord ou le désaccord avec lui) englobent toujours et le discours lui-même et la situation
vécue extra-verbale. (VOLOSHINOV,1981, p. 199, grifos do autor).

Ainda, o fato de a situação social “determinar” o enunciado, de se integrar a ele como um elemento
indispensável a sua constituição semântica não deve levar a crer que o discurso e o enunciado refletem
passivamente a situação extra-verbal (como um espelho reflete um objeto), ou que eles sejam expressão
de algo já acabado. O enunciado “conclui”, “acaba” uma determinada situação, representa a sua solução
valorativa, ou seja, sempre cria algo de novo e irrepetível.
Na diferenciação do enunciado (unidade do discurso) das unidades da língua, como a oração e a
palavra, Bakhtin (1985) aponta as seguintes características: alternância dos sujeitos discursivos (cria o
acabamento externo do enunciado, as suas fronteiras); expressividade (sua condição de elo da cadeia
da comunicação discursiva); e conclusividade (o acabamento visto de entro do enunciado), “calculada”
pela possibilidade de se empreender uma atitude responsiva, “medida” pelo interlocutor a partir de três
fatores, que são o tratamento exaustivo do sentido do objeto, a intencionalidade do falante e as formas
genéricas (os gêneros do discurso).
Para Bakhtin, os gêneros são necessários quer para a construção do enunciado (balizam o falante no
processo discursivo), quer para a sua compreensão (funcionam como horizonte de expectativas para o
interlocutor). Ainda, todos os nossos enunciados são construídos em um determinado gênero.
Chega-se, enfim, à relação entre enunciado e gênero. Como pensar que o gênero pode ser um ele-
mento de “acabamento” do enunciado e, ao mesmo tempo, um tipo relativamente estável de enunciado?
A resposta só pode ser compreendida na sua relação histórica. Na verdade, os gêneros são “impessoais”,
pois não são os próprios enunciados, individuais e irrepetíveis. Analisando-se a sua constituição e o seu
funcionamento, chega-se à problemática central da identidade e da diferença que os permeia. Bakhtin
(1985) observa que apesar da imensa variedade e heterogeneidade dos gêneros do discurso, que os
diferenciam uns dos outros, reflexo das possibilidades inesgotáveis da atividade humana, das condições
e das diferentes funções das esferas sociais, todos possuem um traço que os une, que é a sua natureza

Proceedings XI International Bakhtin Conference 603


verbal comum. Eles são tipos de enunciados relativamente estáveis e normativos, que se constituíram
historicamente e, dessa forma, compartilham das propriedades sócio-discursivas dos próprios enunciados,
mantendo, como eles, uma relação direta com a dimensão social. Na interação verbal, eles funcionam,
então, como formas típicas e normativas do ponto de vista temático, estilístico e composicional para a
construção do enunciado total.
Os gêneros, como dito, constituem-se historicamente a partir de situações da vida social relativamente
estáveis, ou seja, dentro dos diferentes tipos, variedades de intercâmbio comunicativo social. Cada esfera
social, com sua função sócio-ideológica particular (estética, educacional, jurídica, religiosa etc.) e suas
condições concretas específicas (organização sócio-econômica, relações sociais entre os participantes
da interação, desenvolvimento tecnológico etc.), historicamente formula na/para a interação verbal de-
terminados gêneros discursivos, que lhes são específicos. Portanto, eles correspondem a situações de
interação verbal típicas (mais ou menos estabilizadas e normativas) da comunicação social e, como tal,
apresentam, na sua constituição, a finalidade e as condições da esfera a qual pertencem.
Puede hablarse de tipos específicos de realización de géneros del lenguaje cotidiano sólo
donde existan formas de intercambio comunicativo cotidiano que sean de algún modo es-
tables, fijadas por el hábito y las circunstancias. [...]

Cada situación fija de la vida corresponde a una organización particular del auditorio y, en
consecuencia, a un repertorio de pequeños géneros cotidianos. El género de la vida cotidiana
se ubica siempre en el cauce del intercambio comunicativo social, y es el reflejo ideológico
de su tipo de estructura, su objetivo y su composición social. (VOLOSHINOV, 1993, p.248-
249).

Na citação acima, Voloshinov assinala para o processo de formação dos gêneros primários (co-
tidianos), que também serve como exemplo para a compreensão do processo de formação dos gêneros
secundários. A constituição dos gêneros encontra-se, assim, vinculada ao surgimento e (relativa) esta-
bilização de novas situações de interação social.
Essa situação social do gênero, na pesquisa, foi articulada à noção de cronotopo. Embora Bakhtin
desenvolva mais esse conceito para o estudo do romance, gênero do domínio artístico, comenta que a
dimensão cronotópica se estende para os outros domínios e que, sem subordinar a compreensão dos
enunciados apenas à analise cronotópica, “qualquer intervenção na esfera dos significados só se realiza
através da porta do cronotopo” (BAKHTIN, 1993, p. 362). Portanto, cada gênero inclui um horizonte
espacial e temporal, um horizonte temático e axiológico e uma concepção de autor e destinatário.
Uma outra observação a respeito da vida dos gêneros é a sua atualização, quer dizer, o seu movi-
mento entre a unidade e a continuidade (ou entre o dado e o criado). O gênero, ao mesmo tempo que
se constitui como força reguladora para a construção e acabamento do enunciado para o falante, como
horizonte de expectativa para o interlocutor, também se renova a cada interação, pois cada enunciado
individual contribui para a sua existência e continuidade. Para Bakhtin, o gênero não é uma forma abs-
trata, mas concreta e histórica.
A sua definição dos gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados liga-se ao
seu caráter histórico de formação e não aos seus aspectos formais propriamente ditos, distanciando-se
de uma visão formal ou imanente. Esse posicionamento pode ser observado também em outros textos
do Círculo, onde os gêneros são conceituados como formas sociais de discurso, tipos de interação verbal,
por exemplo. O mesmo pode ser dito a respeito do sentido da expressão tipo na definição dos gêneros,
que não opera a partir de um processo teórico de abstração (taxionomia científica).
3. Metodologia
Os dados foram formados pela coleta dos artigos da seção de opinião do jornalismo impresso diário,
veiculado pela Internet, de quatro jornais nacionais: dois de circulação estadual (no Estado de Santa
Catarina), A Notícia e Diário Catarinense; dois de circulação nacional, Folha de S. Paulo e O Estado de S.
Paulo. Esses dados foram coletados na terceira semana de cada mês, durante um período de sete meses,
de 16 de setembro de 1998 a 16 de março de 1999, em diferentes dias da semana, opção necessária para
apreender uma das regularidades de funcionamento desse gênero, a recorrência de articulistas. Foram
coletados sessenta e dois (62) artigos: 21 no jornal A Notícia, 7 no Diário Catarinense, 20 na Folha de S.
Paulo e 14 no Estado de S. Paulo. Esse conjunto de dados foi abordado de uma maneira diferenciada. A
análise das características da dimensão social do gênero artigo incidiu sobre o conjunto dos dados. Já a
análise do funcionamento da dimensão verbal abrangeu um grupo menor de dados, trinta e dois textos
(32), correspondendo àqueles artigos coletados entre novembro de 1998 e fevereiro de 1999.
Para empreender a análise e a descrição interpretativa do artigo, tentou-se manter no horizonte de
trabalho duas orientações metodológicas do Círculo de Bakhtin para os estudos da linguagem de uma
perspectiva sócio-histórica. A primeira foi a de que o acesso ao homem social e a sua linguagem se
realiza somente pela via do texto (enunciado) (BAKHTIN, 1985). Portanto, uma das primeiras grande
preocupações durante a coleta e a análise foi a de ao olhar os dados não considerá-los como textos
fechados neles mesmos, mas na sua relação dialógica com outros enunciados. Ainda, como segunda
orientação, seguiu-se a ordem metodológica proposta para o estudo da língua – ou outros aspectos da
comunicação discursiva, como os gêneros – de uma perspectiva sociológica, esboçada mais especialmen-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 604


te em Marxismo e filosofia da linguagem (VOLOSHINOV, 1988) e em La construcción de la enunciación
(VOLOSHINOV, 1993).
[...] a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser a seguinte:

1 . As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que


se realiza.

2 . As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com
a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala [gêneros
do discurso] na vida [esferas do cotidiano] e na criação ideológica [esferas das ideologias
formalizadas] que se prestam a uma determinação pela interação verbal.

3 . A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual. (VO-
LOSHINOV, 1988, p. 124)

Dessa forma, não se partiu de categorias pré-estabelecidas para a análise do gênero. O objetivo foi
buscar a apreensão de certas regularidades, que foram sendo articuladas em cada etapa de pesquisa
dessa ordem metodológica adotada. Dito de outro modo, as etapas de pesquisa, junto com a concepção
teórica adotada, foram mostrando pontos de análise pertinentes para a interpretação do processo de
constituição e de funcionamento do artigo.
O primeiro passo metodológico centrou-se no estudo da esfera da comunicação jornalística. Foram
analisados o modo de constituição e de funcionamento da comunicação jornalística no conjunto da
vida social, os seus gêneros discursivos (de um modo abrangente), a relação entre gênero e mídia, por
exemplo.
No segundo passo metodológico, a observação centrou-se mais de perto no estudo do gênero artigo
em si. Com a compreensão do lugar e da função ideológico-discursiva da comunicação jornalística na
vida social, a pesquisa orientou-se mais especificamente para a análise dos dados. A busca de certas
regularidades de manifestação do artigo concretizou-se durante a própria análise dos textos (artigos).
Dessa forma, a partir do que se considerou como constitutivo dos gêneros do discurso, a análise foi
se construindo em torno de perguntas feitas aos dados, desde aquelas voltadas para a sua situação
de interação até aquelas para a dimensão verbal. As respostas a essas perguntas foram dando certos
contornos do gênero.
O segundo passo de análise efetivou-se a partir de sua subdivisão em duas estratégias metodo-
lógicas, articuladas entre si. A primeira orientou-se para a análise da dimensão social do artigo: mais
especificamente, a sua inscrição como um tipo particular de interação verbal na comunicação jornalística
(o estudo da esfera do jornalismo, que, na verdade, é parte da dimensão social do gênero, entrou no
primeiro passo metodológico). A atenção voltou-se para a questão da finalidade ideológico-discursiva
do artigo na esfera jornalística, seu lugar de circulação nos jornais pesquisados e a concepção de autor
e destinatário (interlocutor).
Na segunda estratégia metodológica de análise, as perguntas foram direcionadas mais para a par-
te verbal dos dados. Considerando que os enunciados individuais, pertencentes ao mesmo gênero,
compartilham entre si características também do ponto de vista da sua dimensão verbal, o desafio foi
buscar apreender o seu funcionamento no artigo, levando em conta a sua dimensão social. A análise foi
se efetuando pelas inúmeras leituras dos dados, buscando respostas a perguntas como: o que motiva
o acontecimento do artigo, ou seja, ele é uma reação-resposta ao quê, ou a quem?; como essa reação
se manifesta no artigo?; de que lugar social o autor se posiciona?; o que ele diz?; qual a sua orienta-
ção valorativa diante do que diz?; como e a partir de quê ele constrói essa sua orientação axiológica?;
como o autor se orienta para e percebe o seu interlocutor, o leitor?; como essas relações dialógicas se
inscrevem no artigo? Em síntese, a unidade de fundamento da análise foi a concepção da linguagem
como interação.
As respostas foram apontando para certas características de funcionamento da dimensão verbal do
artigo: o seu conteúdo temático; o papel das relações dialógicas do autor com os elos anteriores da
comunicação discursiva (o já-dito) para a construção do ponto de vista e seus efeitos estilístico-composi-
cionais; a questão das relações dialógicas do autor com o leitor e seus efeitos estilístico-composicionais;
e o papel dos gêneros intercalados e da “assinatura” na construção do ponto de vista do artigo.
4. Aspectos da dimensão social do artigo
Nesta seção, apresentam-se as características do artigo levantadas a partir da análise da sua dimensão
social: alguns comentários acerca da esfera jornalística e a situação social de interação do artigo, vista
como um tipo particular de interação social.
4.1. A esfera jornalística
A consideração da relação constitutiva entre as esferas sociais e a constituição e o funcionamento dos
gêneros do discurso leva necessariamente à análise das características da esfera onde eles se situam,
analisando as condições sócio-históricas da origem e do desenvolvimento dessa esfera, a sua função

Proceedings XI International Bakhtin Conference 605


sócio-discursiva no conjunto da vida social. Dessa forma, uma primeira questão que se levanta é lugar
e a função da esfera jornalística no conjunto da vida social.
Pode-se dizer que a imprensa, após Gutenberg, acabou viabilizando tecnologicamente o desenvolvi-
mento do jornalismo e sendo “o único canal de expressão jornalística durante os séculos XVII, XVIII e
XIX” (MELO, 1994, p. 9); processo semelhante se observa com o jornal que, mesmo com a presença do
rádio e da televisão, inicialmente era a mídia de informação da atualidade. Assim, os termos imprensa e
jornalismo, além de nomear uma mídia (tecnologia) também nomeiam uma esfera da comunicação social,
marcam a relação histórica estreita da esfera jornalística com as suas condições sociais, econômicas e
midiológicas (tecnológicas) de produção.
Entretanto, além das motivações tecnológicas que viabilizaram o jornalismo, é preciso situar as con-
dições sócio-ideológicas que marcaram a sua consolidação: a revolução burguesa contra a aristocracia
e o poder absoluto; a sua ascensão ao poder; a queda da censura prévia, exercida pelos Estados na-
cionais e pela Igreja; o processo de alfabetização em larga escala, que viabilizou a leitura dos jornais.
Nesse contexto social, a informação torna-se um bem necessário, um indicador econômico e financeiro
(as notícias que vinham davam conta do que estava acontecendo economicamente em outras regiões,
permitindo fazer previsões financeiras) e um instrumento político (divulgação e consolidação das novas
idéias). A circulação e o conhecimento dos acontecimentos, fatos e opiniões adquiriu valor social. Essas
condições sociais se tornam o contexto de configuração de uma nova forma de comunicação social, da
consolidação da esfera jornalística. A circulação periódica das informações e opiniões entra no horizonte
social da época, torna-se uma necessidade social, dando início à consolidação de uma nova forma de
comunicação sócio-semiótica.
Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre no horizonte social do
grupo e desencadeie uma reação semiótico-ideológica, é indispensável que ele esteja ligado
às condições sócio-econômicas essenciais do referido grupo, que concerne de alguma ma-
neira às bases de sua existência material. Evidentemente, o arbítrio individual não poderia
desempenhar aqui papel algum, já que o signo se cria entre indivíduos, no meio social; é
portanto indispensável que o objeto adquira uma significação interindividual; somente então
é que ele poderá ocasionar a formação de um signo. Em outras palavras, não pode entrar
no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor
social. (VOLOSNHINOV, 1988, p. 45, grifos do autor)

Melo (1994) constata a existência de manifestações jornalísticas já a partir do século XV (de maneira
mais escassa), que se ampliaram no século XVI: as relações, os avisos e as gazetas, que atendiam as
necessidades sociais de difusão de informação na época. Para o autor, apesar de essas manifestações
discursivas informarem sobre fatos da atualidade, de se difundirem pela imprensa, elas não preenchem
os atributos do conceito de jornalismo, pois falta-lhes a periodicidade, em decorrência dos mecanismos
da censura prévia, que dificultavam a atividade jornalística, tornando-a de vida efêmera.
Seguindo-se a análise histórica de Melo, a primeira fase do jornalismo propriamente dito, que é mar-
cada pela manifestação e propagação das idéias, em especial as da burguesia contra o domínio aristo-
crático, caracteriza-se como um jornalismo essencialmente opinativo. A segunda fase do jornalismo, o
jornalismo de informação, tem suas origens nas novas formas de censura, que fazem retrair a forma do
jornalismo opinativo, consolidando-se como categoria hegemônica no século XIX, a partir do ritmo pro-
dutivo e industrial assumido pelo jornalismo, transformando a informação da atualidade em mercadoria.
O jornalismo opinativo não desaparece, mas acaba tendo seu espaço reduzido.
Nos textos do Círculo de Bakhtin também se tem pinçadas algumas considerações a respeito da co-
municação jornalística. Bakhtin vê o jornalismo e seus gêneros como uma “retórica viva e contemporâ-
nea”. Para o autor, o jornalista é, acima de tudo, um contemporâneo. A condição de jornalista requer o
tratamento de tudo no corte da atualidade, constituindo-se a página de jornal como um reflexo vivo das
contradições da atualidade social no corte de um dia e um espaço onde se desenvolvem (em contigüidade
e em conflito) enunciados diversos e contraditórios.
Un periodista es, ante todo, un contemporáneo. Está obligado a serlo. Vive dentro de una
esfera de problemas que pueden ser solucionados en la actualidad (o, en todo caso, en un
período próximo). Participa en el diálogo que puede ser terminado y hasta concluido, puede
llegar a ser realización, puede llegar a ser una fuerza empírica. Es en esta esfera donde es
posible la “palabra propia”[a palavra própria no jornalismo e na literatura.(BAKHTIN, 1985,
374).

Uma análise global dos grupos empresariais aos quais pertencem os quatro jornais onde foram pu-
blicados os artigos nos faz retomar algumas preocupações a respeito da comunicação jornalística no
contexto social atual, expressas por Eco (1988) e Ramonet (1999). No tocante à relação entre jornalismo
e poder, segundo os autores, as novas tecnologias de comunicação e a nova ordem econômica alteram o
domínio do poder e a relação do jornalismo com ele. Na atualidade, de acordo com Ramonet, na relação
entre jornalismo e poder, não dá mais para identificar esse poder com o político, na escala da ascensão
do econômico e do financeiro. A forma e a distribuição das grandes forças sociais já não é mais a mesma.
O primeiro poder hoje é exercido pela economia, o segundo, em intersecção forte com o primeiro, é o
midiático, controlado por grandes corporações empresariais, sendo que o político viria em terceiro lugar.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 606


Os grandes jornais começam a se fundir e a pertencer aos donos das grandes redes de comunicação. O
jornalismo passa a ser dominado por um jornalismo de reverência, por grupos industriais e financeiros,
regido pelas leis de mercado. A censura também passa pelo setor financeiro, pelos grupos de controle
das redes; o acesso à nova mídia (Internet) e à informação são pagos.
A análise dos quatro jornais dos dados mostra que as observações levantadas são pertinentes. Os
quatro grupos empresariais aos quais pertencem os jornais, com exceção do A Notícia, detêm outros
meios de comunicação, como emissoras de rádio, de TV, bem como suas próprias agências de notícias,
entre outras. Além do mais, os grupos controlam mais de um jornal impresso, com características dis-
tintas, destinados a públicos diferentes. A imagem dos destinatários, construída diversamente nesses
jornais, marca-se na circulação diferenciada de alguns gêneros do discurso, como a ausência do artigo
e do editorial em certos jornais dos referidos grupos. Nessa situação, é preciso lembrar, ainda, que os
jornais destinados às classes populares não são produzidos por esses grupos sociais, mas pelo grupo
social dominante, exercendo-se o poder deste sobre aqueles.
Em resumo, se de um ângulo se tem as condições sócio-econômicas e a própria inter-relação entre
as esferas como fatores determinantes para a constituição e o funcionamento das diferentes esferas
sociais e seus gêneros do discurso, também essas esferas e seus gêneros exercem, em retorno, seu
papel no conjunto da vida social. É nessa perspectiva que Voloshinov (1988) afirma que uma vez que a
consciência passou por todas as etapas da objetivação social, que entrou na esfera da ciência, da moral,
da arte, do direito, e, deve-se acrescentar, do jornalismo, ela se torna uma força real (materializada
nas organizações sociais, reforçada pelos domínios ideológicos), capaz de exercer em retorno uma ação
sobre a vida social. Assim, pode-se falar dos gêneros do discurso e das esferas sociais como lugares
ideológicos de produção e circulação de sentidos, como forças sociais.
4.2. A situação de interação do artigo: cronotopo
Antes da análise do gênero artigo, é preciso discutir a questão da polissemia do termo artigo. Em
um determinado sentido, a palavra artigo não se refere a um gênero do discurso em particular, mas a
quaisquer enunciados (textos) do jornalismo impresso, independentemente da sua formulação genérica.
Nesse contexto, artigo assume o sentido de texto escrito, veiculado por jornais ou revistas, semelhante
ao que acontece com a expressão matéria, do jargão jornalístico. Ainda, na esfera científica, algumas
vezes, o termo artigo é considerado como uma categoria teórica de classificação, que abarca vários
gêneros jornalísticos.
Outro sentido é aquele que assume a palavra artigo como gênero do discurso. É esse o sentido que a
palavra tem na práxis jornalística (brasileira) e também de um modo geral na esfera científica: o artigo
é visto como um gênero jornalístico particular da esfera do jornalismo impresso. Assim, na articulação
entre o quadro teórico assumido e as posições da esfera jornalística, ratifica-se a posição de o artigo
se constituir como um gênero do discurso característico do jornalismo impresso, veiculado por jornais,
revistas e mais recentemente pela Internet. Na perspectiva teórica assumida, o artigo foi considerado
como um gênero do discurso secundário, da esfera jornalística.
Dadas as condições sócio-históricas e tecnológicas de produção e a finalidade ideológica da comuni-
cação jornalística no conjunto da comunicação social, o artigo apresenta certos traços em comum com
os outros gêneros dessa esfera, tais como: a sua interação autor/leitor não acontece no mesmo espaço
e tempo físicos; também não se dá “de pessoa a pessoa”, mas é “mediada” ideologicamente pela esfera
do jornalismo; ele tem uma determinada periodicidade (diária, semanal) e “validade” prevista (um curso
de vinte e quatro horas nos jornais diários; de uma semana etc.).
Entretanto, pela junção de uma organização particular dos participantes da interação (autor e leitor),
do objeto do discurso, junto com uma finalidade discursiva (objetivo da interação) específica, ou seja,
por se inscrever em uma interação social singular no espaço do jornalismo impresso, o artigo apresenta
regularidades que lhes são próprias.
Dessa forma, pode-se dizer, fazendo uma relação com a perspectiva de Maingueneau (1998) a res-
peito do funcionamento dos textos singulares, que o gênero artigo se encontra na junção de duas cenas
enunciativas: a cena englobante (as características da esfera da comunicação jornalística) e a sua própria
cena (a sua cena genérica, ou seja, o seu cronotopo), instaurada por um tipo particular de interação
sócio-discursiva no quadro da comunicação jornalística. É esse cronotopo do artigo que se buscou apre-
ender na segunda estratégia metodológica.
Como dito anteriormente, entre o processo da produção e o da interpretação dos enunciados na co-
municação jornalística, há o espaço do trabalho de mediação da esfera jornalística, que “regulamenta” as
diferentes interações no espaço jornalístico, “filtra”, “interpreta” e põe em evidência os fatos, aconteci-
mentos, idéias, saberes, opiniões etc. que vão fazer parte do universo temático jornalístico. Dessa forma,
o trabalho de seleção e divisão do universo temático-discursivo na esfera da comunicação jornalística
em cadernos, seções, rubricas, suplementos já é um ato temático, estilístico e composicional. Como
observa Verón (1980, p. 228, grifos do autor), “os acontecimentos não são, em si mesmo, fait divers,
não pertencem tampouco, por si sós, à ordem do político, do econômico etc. É o tratamento discursivo
que os constrói como tais. De acontecimentos ‘por si sós’ não sabemos nada”. Embora as divisões do
universo temático jornalístico e as suas rubricas sejam diversificadas e o que se privilegia em cada divi-
são também apresente certas variações entre as diferentes instâncias jornalísticas, no que é essencial,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 607


tem-se em comum a questão de que essa segmentação, além de selecionar e “rotular” o que pode fazer
parte do seu universo temático-discursivo, é um índice de produção e interpretação indispensável dos
enunciados individuais e dos gêneros.
Em relação ao gênero artigo, há uma sistematicidade quanto a sua “topografia” no jornalismo impres-
so diário, que se constitui como um dos elementos importantes para a compreensão do funcionamento
desse gênero. Nos jornais investigados, o artigo se situa na seção Opinião, normalmente dividindo o
espaço com gêneros como editorial, comentário, charge, carta do leitor, expediente do jornal. Quanto a
sua temporalidade, o artigo é um gênero de publicação diária; seu aparecimento e sua temporalidade
se limitam ao período das vinte e quatro horas de circulação do jornal. A incidência quantitativa diária
de circulação do gênero varia, nos jornais pesquisados, entre a publicação de 1 a 3 artigos. Essa taxa
de circulação diária se mantém nos diferentes dias da semana.
Dividindo o espaço com outros gêneros na seção Opinião, o artigo se situa entre os gêneros que histo-
ricamente têm seu horizonte temático e axiológico orientado para a manifestação da expressão valorativa
a respeito de acontecimentos sociais que são notícia jornalística. É uma das formas discursivas onde os
participantes da interação reconhecem e assumem esse trabalho avaliativo do autor. O artigo é definido
pela instância jornalística e pela esfera científica como o gênero cuja finalidade discursiva da interação
social é a manifestação de um ponto de vista, um comentário a respeito dos acontecimentos sociais do
universo temático jornalístico, que apresenta aos leitores uma determinada orientação apreciativa, cuja
autoria representa uma pessoa externa à empresa jornalística.
A publicação do artigo cria para o leitor a imagem de pluralidade ideológica. Para o jornal, além disso,
cria o efeito de imparcialidade jornalística, de qualidade do produto oferecido, “requisitos” buscados pela
empresa jornalística. Entretanto, a divisão do espaço da opinião com a exterioridade acontece menos
como uma conseqüência de democratização da comunicação jornalística, mas antes como uma decorrên-
cia da necessidade de credibilidade do jornal, que é construída também pelo posicionamento de pessoas
externas à empresa jornalística.
É um espaço aberto pela empresa para a manifestação da orientação valorativa externa, mas que, para
a publicação, passa pelo crivo da sua aprovação. O artigo, mesmo abarcando a imagem de “liberdade”
que dá ao seu autor na seleção do assunto e na forma do seu tratamento, marca-se como um gênero
cuja fala é aquela consentida pela empresa, inclusive quando é divergente da posição assumida por ela.
Nesse caso, a sua presença reforça a imagem de imparcialidade e de pluralidade ideológica.
Retomando o que foi dito, a seção onde se encontra o artigo é o lugar discursivo que a instituição e
o leitor reconhecem como o espaço do trabalho, da manifestação assumida da orientação valorativa do
seu autor. Dessa forma, a própria seção Opinião é um elemento constitutivo do gênero artigo, pois ela
é o lugar da sua ancoragem ideológica, delimitando a que parte do universo temático do jornalismo ele
se refere, qual o seu horizonte temático, sua finalidade da interação.
Além dos aspectos espaciais, temporais, temáticos da situação social, os gêneros têm uma concep-
ção de autor e destinatário, que também lhes é constitutiva, conforme discutido no primeiro capítulo.
O gênero se encontra orientado para um objeto discursivo, inclui os participantes da interação e suas
valorações face ao objeto do discurso.
O autor tem uma projeção, um conhecimento “virtual” dos seus leitores, pelas enquetes sócio-eco-
nômicas feitas pelas empresas jornalísticas, que definem o “perfil” do público leitor do jornal. Embora se
afirme que o jornalista escreve para todos os tipos de leitor, os jornais têm uma determinada concepção
de destinatário. As grandes empresas jornalísticas publicam jornais diferenciados, destinados ao consumo
de diferentes tipos de destinatários, normalmente estabelecendo como critério a classe sócio-econômi-
ca. Os destinatários previstos para os jornais pesquisados são as pessoas das classes A e B (A Notícia,
Diário Catarinense, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) e C (A Notícia e Diário Catarinense). Esse
dado, embora possa parecer pouco relevante para a pesquisa, deixa de sê-lo na medida que se analisa
a circulação social dos gêneros. Enquanto nos jornais destinados aos leitores dessas classes sociais tem-
se a presença constante do gênero artigo, uma tendência que se observa é a sua ausência nos jornais
destinados exclusivamente aos leitores das classes populares (as classes C, D e outras).
Desse modo, percebe-se como o trabalho da ideologia e os índices sociais de valor se manifestam não
só nos “conteúdos” dos enunciados, mas nas suas formas discursivas e na circulação social diferenciada dos
gêneros do discurso, que vão implicar em diferentes condições sociais de investimento dos gêneros.
A projeção do interlocutor e do seu fundo aperceptivo (os seus valores, posições etc.) orienta o autor,
influi naquilo que é dito e como é dito, pois todo enunciado se encontra orientado para o interlocutor. Nessa
perspectiva, também se deve incluir a instituição jornalística como um leitor privilegiado, constitutivo do
artigo, uma vez que a publicação do artigo passa pela leitura e aprovação prévia da empresa.
Quanto à autoria do gênero, esta não se refere à pessoa física (empírica), mas a uma posição de
autoria inscrita no próprio gênero. Ou, de acordo com Bakhtin (1985, p, 372), refere-se a uma “postura
de autor”, com sua responsabilidade discursiva. A forma da autoria no enunciado singular, na concepção
de Bakhtin, investe a concepção da autoria do gênero do enunciado. No jornalismo brasileiro, o artigo
é redigido por um colaborador do jornal – fixo, eventual –, convidado pela organização para expor seu
ponto de vista sobre determinado assunto da atualidade jornalística, de sua competência. O fato de o
articulista ser alguém de fora da empresa jornalística levanta a questão de se querer saber quem são os
articulistas, de que lugar social eles falam, qual o seu papel na comunicação jornalística. Ou seja, o que

Proceedings XI International Bakhtin Conference 608


é ser um autor articulista; ou, dito por outro ângulo, o que é preciso para poder se investir da postura
de articulista?
Pela análise dos dados, constatou-se que há articulistas que têm publicado o mesmo texto, no mesmo
dia, em diferentes jornais. Há a presença de articulistas fixos em determinados jornais, ou seja, que
publicam seus textos semanalmente, no mesmo dia da semana. Ainda é comum o fato de os articulistas,
fora desse espaço semanal fixo nos jornais, também escreverem em outros dias da semana. Por fim, um
mesmo articulista (fixo ou não) pode escrever para diferentes jornais.
Quanto ao lugar social de onde falam, há principalmente a presença de articulistas da esfera política
(governamental), representada preferencialmente por deputados federais. Em seguida, tem-se a esfera
da indústria, do comércio e da administração, representada em grande parte por presidentes de asso-
ciações empresariais da indústria, do comércio e da prestação de serviços. Outra esfera representativa
é a científico-acadêmica. Nessa situação, normalmente não se tem na posição da autoria a figura do
cientista voltado para um objeto científico, mas a figura do homem social público falando, da sua esfera
de atuação, sobre os acontecimentos sociais do momento. Essa posição se justifica porque os pesqui-
sadores/professores são preferencialmente das áreas sociais: economia, história, sociologia, jornalismo
etc. Também tem-se a presença das esferas religiosa, jornalística, artística e jurídica.
O autor fala a partir do ponto de vista da sua esfera de atuação, como um representante legitimado
por ela. Muitas vezes, no artigo, tem-se menos a fala “individual” do autor, ou seja, o seu ponto de vista
particular como membro dessa esfera. Há um deslocamento, ou melhor, uma sobreposição, em que,
por um processo de “ventriloquismo”, na fala do autor tem-se a voz da instituição que ele está repre-
sentando. Ele assume o papel de porta-voz, encarnando a instituição que representa, constituindo-se a
sua fala um discurso bivocal.
(1) O inestimável apoio comunitário e a presença constante dos órgãos colegiados nas
grandes decisões que têm norteado a Universidade do Vale do Itajaí, tem-nos garantido que
vimos acertando na busca dos objetivos.[..]

Não que a pontuação no conceito A, obtida pelo curso de Odontologia no chamado “provão”
do MEC, nos tivesse imbuído de euforia fácil. Nada disso. Quem nos tem acompanhado sabe
que a recente instalação do curso de Medicina é a coroação de esforços antigos. [Reitor da
UNIVALI] (DC4.1 )

No exemplo acima, se de um ponto de vista estritamente lingüístico se tem a instituição (UNIVALI)


como referente (objeto do discurso), do ponto de vista do enunciado e do gênero tem-se uma questão
de estilo, uma questão de vozes, ou seja, um caso de um discurso bivocal. A instituição se encontra no
jogo da interface entre objeto e autora do discurso (o ele que é um eu); o autor incorpora o seu ponto
de vista. A assimilação da voz do autor com a da instituição de onde fala pode se marcar textualmente,
por exemplo, pelo presença do pronome nós ou do verbo conjugado na primeira pessoa do plural. As-
sim, em muitas partes do enunciado, o nós não engloba o autor e o leitor do artigo, mas o autor e o seu
segmento de atuação/representação.
Se o lugar social de onde fala o articulista já é um elemento relevante para a compreensão do gênero
artigo, tem-se ainda como pertinente o papel desempenhado na sua esfera de atuação ou no meio social
de um modo geral e a sua implicação na esfera da comunicação jornalística. A concepção da autoria do
gênero artigo está ligada à noção de destaque (notoriedade) social, e à concepção de homem público.
Essa “imagem” é construída ou a partir da posição privilegiada que o autor ocupa no cenário sócio-político
(ele é um político, uma pessoa que é objeto de notícia na mídia) ou a partir da sua situação profissional
de destaque em certas esferas sociais de atuação: ele exerce a função de empresário, administrador,
presidente de associações etc. Em resumo, o articulista assume os traços de uma pessoa pública que
tem um papel social e profissional de destaque na sociedade e que exerce normalmente um função de
decisão no seu espaço de atuação profissional.
Em relação a esse aspecto, é importante ressaltar mais uma vez o caráter restritivo dessa abertura
concedida pelos jornais para a manifestação da opinião externa, que se processa por dois viéses dife-
rentes: pela recorrência dos mesmos escritores, o que já limita a noção de pluralidade ideológica, e pelo
aspecto da notoriedade como fundamento para a autoria, o que exclui aqueles sem prestígio social, os
“sem nome”, do “diálogo” jornalístico. Além disso, a abertura concedida a partir do destaque do autor na
sua área de atuação não abrange todos os segmentos sociais, mas se circunscreve àquelas funções que
gozam de prestígio social e midiológico A pluralidade ideológica e o caráter de abertura para a manifes-
tação da opinião externa à empresa são, na verdade, uma imagem construída pela esfera jornalística.
O reconhecimento social e profissional do articulista na sua esfera de atuação, confirmado tanto pelo
jornal (que abre espaço para a sua fala na “página nobre”, que se constitui como um autor interposto
no artigo) quanto pela sociedade (leitores dos jornais), outorga credibilidade à fala do autor, coloca-o
na posição de “articulador” de um ponto de vista autorizado, de formador de opinião. Seu comentário,
isto é, seu posicionamento sobre determinado acontecimento social constitui-se em tema (objeto) de
interesse (é notícia) para os jornais e para o público leitor. A aceitação ou concordância com o ponto de
vista (persuasão do leitor) do autor se encontra vinculada ao valor da sua esfera social e ao seu prestígio
nessa esfera ou no contexto mais amplo.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 609


Por essas razões e pela sua relação assimétrica com o leitor no espaço da comunicação jornalística
(ele é um autor de elite, pois é um leitor selecionado e autorizado pela empresa jornalística para assumir
a palavra; está, portanto, em uma relação de superioridade, em uma situação de interação vertical), o
articulista incorpora o ethos da competência social, angariada pela sua circulação na mídia, pela função
profissional exercida. Esse ethos de competência social e profissional se manifesta ideologicamente no
gênero: ele legitima o ponto de vista do autor, funcionando como garantia para o seu discurso. O articu-
lista é visto como sujeito competente também para aquilo que diz. Ele incorpora a aura da competência
sócio-discursiva. Entretanto, o ethos de competência, de autoridade do articulista não é um aspecto
“citado”, mas mostrado pelo artigo.
O que se tem, então, é que essa competência é construída pela própria situação de interação, que
incorpora e determina a “imagem” que se tem do articulista. Dessa forma, se a autoria do artigo incorpora
esse ethos de competência social e discursiva, por outro lado, a partir do momento que o sujeito ocupa
essa posição de autoria, ele também é investido dessa competência discursiva requerida.
Portanto, pelo prestígio público, profissional (limitado a determinadas áreas e profissões) e midiológico
que goza, pela competência sócio-discursiva angariada, o ethos do articulista constitui-se como garantia
de credibilidade para o seu discurso. Essa posição se amplia também para as situações em que a voz do
articulista incorpora o discurso da instituição que ele representa. Nessas situações, o ethos da instituição
também funciona como uma garantia. Afinal, ela incorpora o estatuto de prestígio social, que lhe credita
a aura de competência, de credibilidade social, que legitimam o seu discurso.
O ethos da autoria no gênero artigo, além de se constituir como uma garantia, funciona como um
argumento de autoridade para aquilo que é dito. Na verdade, tem-se um duplo argumento de autoridade:
o do articulista – legitimado pela sua esfera de atuação, pelo jornal e pelos leitores – e o do jornal, por
funcionar como um autor interposto. Dessa forma, o autor ancora o seu ponto de vista, muitas vezes,
na sua própria autoridade, legitimada pela sua competência, pelo seu saber enciclopédico, pela sua cir-
culação social. Também o argumento de autoridade que emana da autoria não é um argumento citado,
mas mostrado pela situação de interação do artigo e pelo próprio discurso.
(2) A fórmula de um bom jornal reclama uma balanceada combinação de convicção e dúvida.
A candura, num país dominado pela tradição da impunidade, acaba sendo um desserviço
à sociedade. É indispensável o exercício da denúncia fundamentada. Precisamos, indepen-
dentemente do escárnio da delinqüência arrogante, perseverar num autêntico jornalismo
de buldogues. Um dia a coisa vai mudar. Graças também ao esforço investigativo dos bons
jornalistas. Essa atitude, contudo, não se confunde com o cinismo de quem sabe “o preço
de cada coisa e o valor de coisa alguma”. O repórter, observador diário da corrupção e da
miséria, não pode deixar que a alma envelheça. Convém renovar a rebeldia sonhadora do
começo da carreira. O coração do foca deve pulsar em cada matéria. [Diretor do Master de
Jornalismo para Editores, professor de Ética Jornalística] (OESP6.2)

A autoria, marcada pela “imagem” do ethos da competência e autoridade sócio-discursiva, em arti-


culação com o espaço do artigo no jornal, funciona como o lugar do estabelecimento e da ancoragem
da entonação do gênero (um tom autorizado), da sua atitude valorativa na comunicação jornalística. A
orientação apreciativo-opinativa do artigo vincula-se à organização da situação de interação do gênero,
à posição do autor nessa situação. Ambas, autoria e entonação, se encontram na intersecção entre o
verbal e o social, bem como estabelecem o vínculo entre essas duas dimensões constitutivas do gênero.
Dessa forma, compreende-se que a assinatura e o pé biográfico assumem um papel relevante como um
dos traços do gênero artigo (ver exemplo 2).
5. Aspectos da dimensão verbal do artigo
Nesta seção, apresenta-se o resultado da análise do conteúdo temático do artigo, das relações dialó-
gicas do autor face aos enunciados já-ditos e à reação-resposta ativa do leitor, das configurações esti-
lístico-composicionais dessas relações e do papel discursivo dos gêneros intercalados e da “assinatura”
do articulista.
5.1. O horizonte temático do artigo
Em uma análise abrangente, observa-se que os gêneros da seção de opinião dos jornais dividem
entre si o trabalho da orientação apreciativa. Em uma mesma edição, editoriais e artigos costumam não
tratar de um mesmo assunto, como diferentes posições semânticas a respeito de um mesmo aconte-
cimento social, mas se orientam para diferentes objetos discursivos. Por outro lado, artigos publicados
em diferentes jornais, por estarem orientados para os acontecimentos sociais da atualidade de interesse
jornalístico, acabam abordando uma mesma temática, estabelecendo uma forma particular de “dialogismo
não intencionado” (BAKHTIN, 1985, p. 309).
O horizonte temático do artigo refere-se a acontecimentos sociais que são próprios do universo da
comunicação jornalística, mas que estão vinculados ou então dizem respeito à esfera de atuação do autor
(e é a partir desse lugar que ele se posiciona), constituindo-se em objeto da sua competência discursiva
e do seu interesse: é o político que comenta a performance do seu partido nas eleições, ou os rumos e
ações da política governamental; o empresário, o presidente de associações empresariais abordando a
política econômica, por exemplo.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 610


Os conteúdos abordados nos artigos têm como característica a sua vinculação aos acontecimentos
sócio-históricos da atualidade (momento histórico vivido). Nessa atualidade, a “preferência discursiva”
volta-se para questões ligadas à política governamental e as suas decorrências. Resta saber se essa
“preferência discursiva” do artigo é conseqüência do investimento da autoria, ou seja, como resultado
de os articulistas serem em grande parte da esfera política, ou se os jornais priorizam os acontecimentos
político-econômicos e, em decorrência, abrem mais espaço para articulistas relacionados a essas áreas.
De qualquer modo, confirmam-se no funcionamento discursivo do gênero artigo as observações de Eco
e Ramonet a respeito da relação estreita entre o jornalismo e o poder político-econômico. Entretanto, a
orientação para assuntos da esfera político-governamental apresenta-se como grande tendência, mas
não esgota todas as possibilidades de manifestação do objeto do discurso do gênero, pois também há
artigos cujos conteúdos referem-se ao jornalismo, ao contexto científico-acadêmico, às datas comemo-
rativas etc.
Por estar orientado para os acontecimentos da atualidade histórico-jornalística, por estar inserido em
uma determinada seção temática do jornal e ainda pelo espaço físico reduzido no jornal, outra característica
do conteúdo temático do artigo diz respeito aos seus aspectos implícitos, que são retomados a partir do
conhecimento social, político, econômico, cultural (conhecimento do modo de produção da comunicação
jornalística) dos participantes da interação, pois articulista e leitor compartilham de um mundo sócio-
cultural e temporal (atual) comum: eles pertencem às mesmas classes sociais, são leitores do jornal.
Além disso, como a finalidade discursiva do artigo não se orienta especificamente para a apresentação
dos acontecimentos sociais em si (como na notícia), mas para a sua apreciação, esses próprios acon-
tecimentos acabam se constituindo como um fundo discursivo dialogizador, considerado de domínio do
leitor, a partir do qual o articulista constrói o seu ponto de vista. Assim, uma série de aspectos textuais
tem sua referencialidade situada fora dos limites da dimensão verbal.
(3) Novembro não é maio e nem vinte é 13. O tempo é de consciência, apenas de consci-
ência, para os negros brasileiros que lentamente começam a perceber a importância de não
ser somente cidadãos e passam a lutar contra o preconceito velado que há décadas assola
este País. (AN3.3)

No exemplo 3, muitas das informações referentes ao objeto discursivo estão ancoradas na situação
social da interação (imediata e ampla). Não há referência ao Dia Nacional da Consciência Negra, com
exceção da frase “Novembro não é maio e nem vinte é 13.” e o dia da publicação do artigo no jornal,
elementos a partir dos quais o leitor deve resgatar a data especial e então o sentido do enunciado.
Por essa sua vinculação à atualidade histórico-social, compartilhada pelos leitores, pode-se propor
uma espécie de “validade discursiva espacial e temporal” para o gênero artigo: o intervalo das vinte e
quatro horas de circulação do jornal e o seu espaço de abrangência sócio-geográfico. Quanto mais o
leitor efetivo se encontra afastado dessas características, mais difícil se torna a compreensão do sentido
do artigo.
O acontecimento do artigo se constitui como que motivado pelos eventos da atualidade (mudanças
na política governamental e econômica, crises financeiras internacionais, eleições, datas comemorativas
etc.), que aparecem discursivizados no texto.
(4) Do escandaloso processo de privatização ao pacote de onde saltará mais recessão e
desemprego, só para citar dois fatos mais visíveis atualmente, uma coisa deve chamar a
atenção de quem se preocupa, de fato, com a democracia: a falta de controle público sobre
o Estado. Ou seja, sobre a fonte das decisões que afetam o conjunto da sociedade. No lu-
gar do controle público, temos o privado. Telefonemas, articulações, tramas entre amigos
decidem negócios de bilhões de dólares para vender empresas estratégicas à soberania
nacional. (AN3.2)

Dentre esses acontecimentos sociais desencadeadores do artigo, muitos são determinados enun-
ciados, que aparecem mencionados no artigo, marcando textualmente essa relação com o enunciado
já-dito motivador:
(5) Talvez a publicação, pelo Sunday Times de Rupert Murdoch, das memórias da sra. Ro-
bin Cook revelando detalhes da intimidade do ministro das Relações Exteriores, finalmente
convença a maioria trabalhista do parlamento a fazer alguma coisa para que a imprensa
volte a seguir as leis. (OESP5.1)

A publicação de um livro determinado, a moratória anunciada pelo Governador, a divulgação do re-


sultado de um exame nacional, a mensagem do papa, junto com a chegada do Natal, a publicação das
memórias de uma determinada pessoa podem se constituir como enunciados desencadeadores do artigo.
O gênero marca, com a textualização do acontecimento motivador, na sua dimensão verbal, a relação
dialógica para com outros enunciados, o já-dito (os elos anteriores). No seu funcionamento, o artigo
já se constitui como uma reação-resposta aos eventos sociais, marcando a sua dupla orientação: para
esses eventos discursivos e para os seus interlocutores (leitores).
Os acontecimentos sociais da atualidade que se apresentam como desencadeadores do artigo, que,
como dito, são determinados enunciados ou eventos discursivizados, podem ser tomados pelo articulista

Proceedings XI International Bakhtin Conference 611


como objeto de crítica, questionamento; de concordância, comentário positivo; de apoio para o seu dis-
curso (como um “argumento” introdutório) ou, então, como uma espécie de ponto de partida (gancho)
para a construção do seu discurso. São os enunciados já-ditos e as relações dialógicas que o articulista
estabelece com eles.
No artigo, a opinião, expressa em forma de um comentário ou um ponto de vista determinado,
constitui-se como uma resposta valorativa do articulista frente aos acontecimentos sociais, objetos da
comunicação jornalística. O artigo é um gênero que se caracteriza discursivamente como uma réplica
dialógica a esses acontecimentos sociais, diante dos quais o autor se posiciona.
O discurso do publicista [jornalismo de caráter mais opinativo] também diz respeito à palavra
e ao homem que é portador da palavra: ele critica um enunciado, um artigo, um ponto de
vista, ele polemiza, acusa, ridiculariza, etc. Se ele analisa uma ação, descobre os pontos de
vista que a motivou, e a formula verbalmente acentuando-a como lhe convém – com irônica
indignação, etc., isto não significa, obviamente, que a retórica sacrifique um fato, um ato,
uma realidade não verbal, em seu discurso. Mas ela diz respeito ao homem social, de quem
todo ato essencial é interpretado ideologicamente pela palavra ou diretamente encarnado
nela. (BAKHTIN, 1993, p. 152)

Em síntese, em relação aos aspectos voltados para o conteúdo temático do artigo, tem-se como ca-
racterístico que nesse gênero interessa menos a apresentação dos acontecimentos sociais em si, mas
a sua análise: interessa, junto com eles, a posição do autor do artigo. O conteúdo temático do artigo
(referido a objetos e sentidos (enunciados), como observa Bakhtin) se encontra na articulação entre
a apreciação dos acontecimentos sociais e a questão do angulamento da autoria (um posicionamento
externo ao do jornal (empresa)). Por exemplo, interessam não só as informações sobre o déficit público,
que poderiam ser buscadas em outros enunciados, de outros gêneros, mas o posicionamento de uma
pessoa pública sobre esse assunto.
Assim sendo, pode-se dizer, relativamente a uma certa regularidade do gênero (mas não como regra),
que o conteúdo temático do gênero artigo constitui-se como o ponto de vista do seu autor, o articulista
(uma pessoa pública, credenciada socialmente, externa ao jornal), a respeito dos acontecimentos sócio-
políticos da atualidade histórica, que são objeto de notícia jornalística. O jornal noticia como informação
jornalística a opinião do articulista sobre esses acontecimentos.
5.2. As relações dialógicas face aos enunciados já-ditos e suas configurações estilístico-composicionais
Embora um dos traços do artigo seja a questão de a autoria se constituir como um argumento de au-
toridade para o que é dito, mesmo assim, a orientação apreciativa do articulista face aos acontecimentos
sociais não se constrói de modo solitário, mas se encontra entrelaçada com outras posições discursivas,
entabulando com elas relações dialógicas, desde as “não intencionadas” até aquelas vozes que o autor
incorpora ao seu discurso e com as quais mantém diferentes graus e formas de relação. O ponto de vista
do autor vai se construindo pelo modo diferenciado de incorporação e tratamento que dá às diferentes
vozes (pontos de vista) arregimentadas no seu enunciado.
Esses outros pontos de vista incorporados recebem diferentes valorações. Tem-se, como uma certa
regularidade genérica (de gênero) do artigo, a manifestação de dois conjuntos de movimentos dialógi-
cos em relação aos enunciados já-ditos: a incorporação de outras vozes ao discurso do autor, avaliadas
positivamente, que são “chamadas” para a construção do seu ponto de vista, que se denominou como
movimento dialógico de assimilação; e o apagamento, distanciamento, isolamento, desqualificação das
vozes às quais o autor se opõe, que se denominou como movimento dialógico de distanciamento.
Uma primeira faceta do movimento dialógico de assimilação de vozes ocorre pelo acúmulo da autoria
no artigo. Pelo processo de constituição do gênero, o jornal funciona como um “autor interposto”. Além
do articulista, em razão do processo de aprovação e publicação pela qual passa o artigo, também o jornal
acaba se constituindo de certa forma como uma espécie de autor do artigo, uma vez que a responsa-
bilidade jornalística e política da publicação cabe ao jornal. O acúmulo de autoria dá uma amplitude e
credibilidade maior ao que é dito. O jornal, pela publicação do artigo, “sustenta” o ponto de vista do
articulista. Embora não se tenha a “fala” física do jornal na expressão verbal do artigo, por este estar
incluído no jornal X, na seção Y, na Rubrica Z, sente-se o ponto de vista do jornal no gênero artigo; ele
é uma autoridade “mostrada” pelo processo de publicação e circulação do gênero.
Um outro movimento de assimilação de vozes encontra-se na relação do autor com a sua esfera de
atuação. Ele, pela sua projeção profissional e circulação social, apresenta-se como uma fala autorizada
por essa esfera, constituindo-se como seu representante legitimado no espaço jornalístico. A esfera
também se mostra, assim, como um argumento de autoridade: é a partir dela que o autor fala, que
ele busca mostrar a sua autoridade para o que diz. A esfera social (ou o órgão que o articulista está
representando), como visto, muitas vezes se torna como que uma voz junto da do articulista. O jornal
e a esfera social de onde fala o autor são os dois “pilares” que sustentam a opinião do articulista e que,
pelas condições da situação de interação, são as grandes regularidades que se encontram nas formas de
assimilação do discurso do outro para a sustentação da opinião (de certa forma, são eles que enquadram
o discurso do articulista).
Mas, na composição da orientação valorativa, o autor incorpora outras vozes ao seu discurso, que, em

Proceedings XI International Bakhtin Conference 612


conjunto, vão construir a orientação valorativa do artigo. A fala do outro dialogiza o próprio enunciado
(artigo) e dá credibilidade à fala do articulista. Ela traz consigo outras opiniões, verdades, fatos, dados
com os quais o autor mantém relações dialógicas que vão dar corporeidade e sustentação a sua opinião.
Se um dos meios de sustentação da opinião é através de fatos, as relações dialógicas com os outros
enunciados já-ditos são a sua porta de entrada no artigo.
No processo de construção do ponto de vista do autor, há uma grande assimilação de outras vozes,
podendo-se “mapear” certas preferências, ou seja, mostrar de que lugar social vêm com mais freqüência
os outros discursos que o articulista incorpora ao seu enunciado. Se, como observa Bakhtin, em cada
época, círculo social e familiar sempre existem enunciados que gozam de prestígio, que dão o tom, que
são imitados, seguidos, citados etc., esse fenômeno também se encontra no artigo. Em uma escala do
mais ao menos freqüente, tem-se a presença de vozes da esfera do cotidiano (pelo chamamento da voz
do senso comum, da opinião pública), das esferas da ciência, da política, do jornalismo, da religião e da
literatura, entre outras menos marcantes. Seguem dois exemplos onde se pode observar o movimento
dialógico de assimilação.
(6) Dizia o falecido ministro e governador Magalhães Pinto que “política é como nuvem: você
olha, está de um jeito, dali a pouco, olha de novo e já mudou”. Deve ser assim mesmo, um
céu entre as nuvens – ou tantas pessoas não o disputariam com sede e ferocidade –, repleto
de nuances desafiadoras para a sobrevivência de quem está ali, enquanto lá embaixo se
amontoam tristes realidades. Às vezes, o próprio inferno. (OESP3.2)

(7) Até lá, como ressaltou em editorial este jornal, na quarta-feira, se o que estamos fa-
zendo é ou não suficiente para evitar as mudanças climáticas, só a ciência e o tempo dirão.
(OESP3.2)

Se no movimento dialógico de assimilação o autor busca e incorpora no seu artigo diferentes vozes que
constroem e sustentam o seu ponto de vista, no movimento dialógico de distanciamento há o trabalho
de isolamento da orientação valorativa do outro (ela é colocada a sós, sem o apoio de outras vozes). O
movimento de distanciamento também se observa no chamamento de outras perspectivas que não têm
(ou não adquirem no enunciado do autor) o estatuto de credibilidade das vozes anteriores e que o autor
desqualifica pelo enquadramento que dá a esses enunciados.
(8) Os livros esquecem de contar o motivo da assinatura dessa lei. Não é dito que os fa-
zendeiros falidos abriram as porteiras para liberar os escravos e assim evitar gastos com
comida e alojamento. Para esses senhores de engenho, a abolição ocorreu antes mesmo
da assinatura da Lei Áurea. Para quem tinha dinheiro e não estava em crise financeira, a
resistência foi grande. (AN3.3)

(9) O inusitado encontro de Fernando Henrique com Lula é sinal dos tempos difíceis que vêm
por aí. Com 1999 em recessão, juros ainda muito altos e desemprego disparando, o governo
e o País estão reduzidos à expectativa de que o próximo ano seja apenas uma dura transição
para 2000 um pouco melhor. As circunstâncias nos deixam, pois, apenas a alternativa de
torcer por um mal menor; além de ter de agüentar o coro dos pessimistas, que garantem
o desastre inevitável. (OESP4.2)

No movimento de distanciamento, não se tem a identificação de um determinado livro, mas uma


referência difusa, como em “os livros”, fazendo menção vaga à esfera escolar; o ministro não afirma,
mas “sugere”. Em lugar de o renomado cientista Fulano de Tal, milhares de cientistas, tem-se “alguns
cientistas” (embora pertencendo à esfera da ciência, nesse caso, os cientistas referidos, pelo seu pro-
cesso de enquadramento no artigo, são como que afastados da credibilidade da comunidade científica).
A oposição ao governo e o povo são designados como “coro de pessimistas”; ou ainda se indetermina a
origem discursiva do enunciado, como em “logo se pensa”.
Através dos movimentos dialógicos de assimilação e de distanciamento o articulista vai tecendo a sua
orientação apreciativa face aos acontecimentos sociais diante dos quais ele é levado a se posicionar. No
entanto, não se pode pensar que esses movimentos são construídos “livremente” pelo autor do enun-
ciado artigo; há uma certa “determinação” sócio-ideológica dessas orientações; no artigo, os enunciados
da esfera científica, por exemplo, pelo estatuto de credibilidade dessa esfera, tendem mais a aparecer
no movimento dialógico de assimilação. A orientação valorativa face aos outros enunciados já-ditos se
constrói na/pela linguagem.
Em relação às configurações estilístico-composicionais do gênero artigo, muitos dos seus aspectos
têm sua origem ligada ao objeto do discurso e outros dizem respeito ao processo de produção da co-
municação jornalística. Por exemplo, a extensão do artigo está condicionada ao tamanho da coluna do
jornal impresso destinada à publicação do gênero. Entretanto, também a orientação ativa para os enun-
ciados já-ditos molda a manifestação estilístico-composicional do artigo, que se pode observar no modo
de inter-relação do discurso do articulista com os enunciados já-ditos e pelas formas composicionais
de introdução e organização do discurso do outro no artigo. Os movimentos dialógicos de assimilação e
de distanciamento, do ponto de vista do outro incorporado no enunciado do autor, “marcam-se” pelas
diferentes estratégias (procedimentos, meios) de “enquadramento contextual” e de “transmissão” do

Proceedings XI International Bakhtin Conference 613


discurso do outro no artigo. O enquadramento do discurso do outro no enunciado cria a perspectiva, o
fundo dialógico que é dado ao discurso introduzido.
É necessário observar o seguinte: por maior que seja a precisão com que é transmitido, o
discurso do outro incluído no contexto sempre está submetido a notáveis transformações
de significado. O contexto que avoluma a palavra do outro origina um fundo dialógico cuja
influência pode ser muito grande. Recorrendo a procedimentos de enquadramento apropria-
dos, pode-se conseguir transformações notáveis de um enunciado alheio, citado de maneira
exata. O polemista inescrupuloso e hábil sabe perfeitamente que fundo dialógico convém
dar às palavras de seu adversário, citadas com fidelidade, a fim de lhes alterar o significado.
[...] A palavra alheia introduzida no contexto do discurso estabelece com o discurso que a
enquadra não um contexto mecânico, mas uma amálgama química (no plano do sentido e
da expressão); o grau de influência mútua do diálogo pode ser imenso. Por isso, ao estudar
as diversas formas de transmissão do discurso de outrem, não se pode separar os procedi-
mentos de elaboração deste discurso dos procedimentos de seu enquadramento contextual
(dialógico): um se relaciona indissoluvelmente ao outro. (BAKHTIN, 1993, p. 141).

O processo de enquadramento do discurso do outro constrói-se pelo todo do artigo. Entretanto, há


certos traços estilístico-composicionais que marcam mais pontualmente essas diferentes estratégias de
inter-relação do discurso do autor com o discurso alheio introduzido. Na incorporação de outras vozes
orientadas para a posição valorativa do autor, ou seja, no movimento dialógico de assimilação, entre as
formas de enquadramento podem-se destacar o uso de determinados verbos ou grupos proposicionais
introdutórios do discurso relatado (dizer, estimar, ressaltar) e o uso de determinadas palavras e expres-
sões avaliativas que incidem sobre o enunciado do outro. Esses verbos introdutórios, além de indicarem
a presença do discurso do outro, dão-lhe uma orientação apreciativa. As palavras e expressões avalia-
tivas podem incidir sobre o discurso do outro ou sobre o seu autor, valorando, de forma positiva, o seu
enunciado (exemplos 10 e 11).
(10) Até lá, como ressaltou em editorial este jornal, na quarta-feira, se o que estamos fa-
zendo é ou não suficiente para evitar as mudanças climáticas, só a ciência e o tempo dirão.
(OESP3.2)

(11) Ganhei um livro no último Natal sobre os problemas da sociedade que envelhece. O
estudo é de grande valor para um país como o Brasil, cuja população está envelhecendo
a uma velocidade espantosa (“Maintening Prosperity in an Ageing Society”, OECD, 1998).
(AN5.1/FSP5.1)

Se o movimento dialógico de assimilação apresenta uma variedade menor de estratégias de enquadra-


mento da fala do outro, o movimento dialógico de distanciamento apresenta um conjunto de estratégias
mais diversificado, pois se o objetivo é desautorizar um determinado ponto de vista, distanciar-se dele,
essa marcação se torna muito mais necessária e eficaz.
No movimento dialógico de distanciamento, entre as estratégias de enquadramento tem-se o uso de
palavras e expressões avaliativas, a negação, as aspas, os operadores argumentativos, o chamamento
do discurso de um outro, a ironia, os pronomes demonstrativos. Muitas dessas estratégias de enquadra-
mento funcionam simultaneamente também como formas de introdução/transmissão do outro discurso,
como a negação, a ironia, as aspas e os operadores argumentativos.
(12) Mas não imaginou que, por ser ex-presidente e governador de um dos Estados mais
poderosos da Federação, o inadvertido anúncio de calote nos eurobônus iria provocar um
ataque especulativo tão grande ao País [...]. (AN5.2)

(13) E o congresso, que nada fez e nada faz, se apressa, acuado, a aprovar o que lhe põem
à mesa. Mas é tarde, terrível e tragicamente tarde. Eles, os congressistas de meia pataca,
é que devem ser responsabilizados. Não passam, mostram suas reações de pânico dos úl-
timos dias, daquilo mesmo que Lula, num rasgo de lucidez e coragem, ousou classificá-los:
“picaretas”. (AN5.3)

(14) O tempo é de consciência, apenas de consciência, para os negros brasileiros que len-
tamente começam a perceber a importância de não ser somente cidadãos e passam a lutar
contra o preconceito velado que há décadas assola este País. O momento é de tirar aquela
idéia de que negro só é bom no futebol, na música e na dança. Outras atividades, entre as
quais a empresarial, são desenvolvidas com grande desenvoltura pelos negros do Brasil.
(AN3.3)

Essas estratégias de enquadramento vão criando o movimento dialógico de distanciamento: o anúncio


de moratória passa a ser qualificado como “inadvertido anúncio de calote”; quem também desqualifica a
atitude dos congressistas é um outro enunciado, citado no artigo (exemplos 12 e13). O ponto de visa de
que “negro só é bom no futebol, na música e na dança” é desqualificado pelo pronome demonstrativo,
cuja presença não é uma questão gramatical, mas de estilo: a presença do pronome marca o distancia-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 614


mento axiológico que o articulista mantém face ao discurso racista (exemplo14).
As diferentes estratégias de enquadramento do gênero aqui levantadas funcionam como que em cadeia,
quer dizer, em conjunto. No todo textual de um artigo podem ser encontradas diferentes estratégias,
que, produzindo diferentes efeitos de sentido, vão articulando os movimentos dialógicos de assimilação
e de distanciamento, vão construindo o horizonte axiológico do artigo face aos outros enunciados já-
ditos. Pelas suas estratégias de enquadramento, o artigo “lapida” o discurso do outro introduzido no seu
discurso.
Além das estratégias de enquadramento, observou-se também como o discurso do outro é introduzido
no discurso do articulista. Esses outros enunciados com os quais o articulista se relaciona discursiva-
mente nem sempre se “diluem” completamente no seu enunciado; antes, eles deixam certos traços no
artigo. As relações dialógicas manifestam-se não só no plano do conteúdo temático; também no plano
estilístico-composicional podem ser percebidos esses traços do outro discurso. Os outros enunciados
já-ditos “sulcam” o artigo: a incorporação ou o “reflexo” de outros vozes, que são outros enunciados,
criam o efeito de heterogeneidade, tornam o artigo multiplanar.
O grau de incorporação apresenta-se também de maneira diferenciada no gênero artigo: pode ser
observada desde a citação de um enunciado completo, até uma palavra ou uma expressão, que funcio-
nam como representantes do todo de um enunciado com o qual o articulista mantém relação dialógica.
O outro discurso pode ainda não estar “em presença”, mas pode-se sentir a sua presença ausente como
que refletida no artigo, pela seleção dos recursos lingüísticos, pela entonação etc.
Bakhtin, em O discurso no romance (1993), observa que nem todas as palavras alheias podem ser
colocadas entre aspas, bem como as formas dialógicas de transmissão da palavra do outro não se es-
gotam nas formas lingüísticas do discurso relatado direto e indireto. Os meios de “incorporação” são
variados. No artigo, as estratégias de introdução e incorporação do discurso do outro são diversificadas,
tendo-se como efeito dialógico desde a presença de uma inter-relação mais marcada, explícita, onde se
cita o outro enunciado, como nos casos do discurso relatado direto e indireto, até aquela mais diluída,
implícita, que “escapa” às formalizações lingüísticas de inter-relação com o discurso do outro, como no
discurso bivocal.
O discurso relatado direto, ao mesmo tempo que indica que o discurso transmitido é um outro discurso
(uma outra posição semântica, axiológica), também transmite a sua expressão (a sua “fala”), destacada
da do autor (por aspas, por exemplo). Esse movimento de separação da fala do outro busca marcar uma
inter-relação de objetividade e de neutralidade do articulista diante do discurso citado. Entretanto, essa
posição nada mais é que um efeito, pois todo discurso citado deixa de ser um acontecimento da sua
situação de interação para se tornar um acontecimento do artigo, passando pelo processo de enqua-
dramento (a situação de interação do discurso citado fica ausente; ele se torna parte do cronotopo do
artigo). As aspas que “emolduram” o discurso relatado direto não são lacres que garantem a integridade
do discurso citado. São sinais de alteridade entre o discurso do autor e o do outro incorporado que, junto
com a explicitação desse outro, funcionam como marcadores de confiabilidade, pois criam o efeito de
integridade da transmissão da fala.
No gênero artigo, a presença do discurso relatado direto é menor que a do discurso relatado indireto.
Isso pode ser justificado pela função discursiva desse gênero na esfera jornalística, que se orienta mais
para a análise e o comentário do discurso do outro, do que pela sua “expressão” propriamente dita. A
presença e a função do discurso relatado direto no artigo podem ser observadas sob dois ângulos: o seu
papel dentro dos gêneros intercalados e o seu papel no todo do artigo.
Nos gêneros intercalados, o discurso relatado direto cria o efeito da reconstituição das falas dos par-
ticipantes de uma determinada situação de interação (vivida ou hipotética), como no gênero intercalado
relato de fatos, bem como funciona como um índice de autenticidade (garantia) do trabalho avaliativo
do articulista, como no gênero intercalado resumo.
(15) Do ponto de vista ideológico, aparecem personagens tratando de demonstrar que o
populismo é o regime político mais conveniente para a América Latina. Veja-se, por exemplo,
a entrevista do cientista político mexicano Jorge Castañeda (Folha, 7/2), figura bastante
influente nos meios intelectuais de esquerda. Castañeda saúda o triunfo de Chávez, condu-
zido ao poder pelo voto dos eleitores “não-brancos”, e espera “que ele se transforme num
verdadeiro populista latino-americano”, missão que parece destinar também ao presidente
Fernando Henrique. E nos explica que “a via de um partido operário à esquerda da social-
democracia, que poderia ter sido concretizado no PT brasileiro ou no partido Revolucionário
Democrático (PRD) no México, ainda não decolou”. Embora Castañeda aluda a um “popu-
lismo democrático”, não são as instituições democráticas que caracterizam o populismo.
(FSP6.1)

No exemplo 15, o discurso relatado direto manifesta-se no interior do resumo de um determinado


enunciado, uma entrevista. A introdução direta de trechos dessa entrevista objetiva destacar no resumo
não só o conteúdo da entrevista (o que foi dito), mas a própria fala do entrevistado. Embora no fio do
discurso do “autor” do gênero intercalado resumo, essa fala é separada pelas aspas, criando o efeito de
distanciamento, mostrando-a como um outro discurso. Nesse exemplo, observa-se a presença de uma
variante de discurso relatado direto que Voloshinov (1988) denominou de discurso direto preparado,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 615


que é aquele que emerge do discurso indireto, continuando-o (o que é um resumo, senão um forma de
discurso relatado indireto?).
Como elemento composicional de introdução e organização do discurso do outro no todo do artigo,
o discurso relatado direto pode funcionar como uma estratégia parafrástica para a construção do ponto
de vista do autor, ou seja, como uma voz à qual ele se une (movimento dialógico de assimilação) e que
destaca do seu discurso, colocando-a como um argumento de autoridade.
(16) O que determina o @ 4°, inciso I, do artigo 60 da Constituição federal – assim redigido:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] I. a forma
federativa de Estado; ...” – é que a federação não pode ser “abolida”, mas não impede que
seja “modificada”. (OESP6.1)

Normalmente está entre aspas o discurso relatado direto que o autor cita mas não assume, ou que
é do âmbito da palavra de uma autoridade, que precisa ser destacada, um vez que não se acomoda
no discurso do autor (é preciso separá-la, mesmo no movimento de assimilação, marcar a sua origem,
seu direito autoral), tal como a voz da Bíblia, de um pesquisador, da Constituição de um País. Como
diz Bakhtin (1993, p. 143), “a vinculação da palavra com a autoridade – reconhecida por nós ou não
– distingue e isola a palavra de maneira específica; ela exige distância em relação a si mesma (distância
que pode tomar uma coloração tanto positiva como negativa, nossa relação pode ser tanto fervorosa
como hostil).”
A presença do discurso relatado indireto é bem mais representativa no gênero artigo. Para Voloshinov
(1988), o discurso relatado indireto é uma transmissão analítica do discurso de outrem. A análise é como
a alma do discurso indireto. Os elementos emocionais e afetivos desse outro discurso, para além do
verbo dicendi, tendem a não ser transpostos no discurso relatado indireto, uma vez que eles costumam
não ser expressos no conteúdo do enunciado, mas na sua forma. O autor apresenta duas variantes do
discurso indireto, o discurso indireto analisador do conteúdo e o discurso indireto analisador da expressão
(e, ainda, uma terceira variante, a impressionista).
O discurso indireto analisador da expressão é uma apreensão analítica não só do objeto do outro dis-
curso, mas, também, do próprio falante, do seu dizer. O enunciado citante integra, na construção indireta,
palavras e sentidos do discurso citado. Já o discurso indireto analisador do conteúdo é uma tomada de
posição em relação ao “conteúdo semântico preciso”, ou seja, ele se volta para o que o falante disse. Ele
preserva a “integridade” e a autonomia do discurso do outro menos em termos sintáticos, estilísticos,
mas semânticos. É essa a variante que é representativa do discurso relatado indireto no artigo, gênero
que, pela sua natureza ideológica, pela sua finalidade discursiva na comunicação jornalística, orienta-se
mais para a análise da posição axiológica do outro, que se avoluma no artigo.
Essa variante do discurso indireto pode trazer desde um outro discurso especificado, ou seja, um
determinado enunciado, que se particulariza no artigo (exemplo 17), como pode fazer referência a uma
fala não precisa, como a opinião pública ou um locutor social indeterminado (exemplo 18), mostrando,
por essas gradações de diluição do outro enunciado e do seu autor, o seu enquadramento no artigo e o
grau de adesão do articulista a essas vozes.
(17) No mundo, o cigarro mata 3 milhões de pessoas por ano. Se esse hábito não for re-
duzido, os epidemiologistas estimam que, por volta de 2020, o fumo matará 10 milhões
de pessoas anualmente (“Mortality in the Developed Countries”, Oxford University Press,
1999). (AN6.1)

(18) Nas ações judiciais, os produtores defendem-se ao dizer que em todos os maços está
escrito que o cigarro faz mal à saúde e que só fuma quem quer. Muitos argumentam, porém,
que essa informação é insuficiente para as pessoas entenderem a extensão do problema.
(AN6.1)

Outra característica do discurso relatado indireto no artigo diz respeito ao seu modo de introdução.
Muitas vezes o verbo de introdução não é propriamente um verbo de elocução, mas outros, que incor-
poram o sentido de um ato verbal; também o verbo pode não aparecer seguido de que ou se. Outras
vezes, a sua introdução não é marcada por um verbo, mas pela presença da referência ao enunciado
citado. Como no discurso relatado direto, também se encontra a presença do discurso indireto dentro
dos gêneros intercalados no artigo, dialogizando internamente estes gêneros (relatos).
As formas do discurso relatado direto e indireto são formas de introdução e de transmissão onde há
a presença de certos traços lingüísticos (sintáticos) que marcam as fronteiras internas (mais ou menos
visíveis) entre o discurso do autor e o outro discurso. Já no discurso bivocal há uma diluição das fron-
teiras internas formais entre o discurso direto do autor e o outro discurso já-dito que ele incorpora ou
reflete-se no artigo; ou a diluição da origem enunciativa desse outro discurso (o discurso da opinião
pública, de um determinado grupo social, profissional). Foi considerado como discurso bivocal aquele
que do ponto de vista gramatical (sintático) pertence a um único falante, mas onde se tem a “fusão”
de dois enunciados (potenciais), de duas perspectivas axiológicas (assimiláveis ou não). As palavras
pertencem formalmente ao articulista, mas nelas ressoa uma outra voz. A palavra, o conjunto sintático,
nessa situação, serve simultaneamente a dois locutores: exprime a intenção refratada do autor e a de

Proceedings XI International Bakhtin Conference 616


um outro locutor incorporado ao discurso.
No artigo, o discurso bivocal encontra-se tanto na construção do movimento dialógico de assimilação
quanto no movimento dialógico de distanciamento, embora pareça mais “visível”, produzir mais efeitos
no segundo caso. Na assimilação, ele pode ser observado na inter-relação do autor com a sua esfera de
atuação. Em muitas situações, junto a sua voz, fala a instituição que o articulista representa, tal como
já salientado. A resposta à pergunta “quem fala nesse artigo?” mostra essa bivocalidade.
No movimento dialógico de assimilação, o discurso bivocal pode ser considerado como de orientação
única, pois as diferentes vozes, isto é, a voz do autor mais a outra incorporada, tendem para uma mesma
orientação valorativa. No movimento dialógico de distanciamento, tem-se uma situação de bivocalidade
de orientação dupla. O enunciado refletido no artigo tende para uma diferente orientação axiológica que
o enunciado do autor. Os limites axiológicos entre a posição do autor e o outro discurso, o embate entre
essas diferentes posições valorativas materializam-se no discurso em certos traços seus, tais como no
aspeamento de determinadas palavras, na ironia, na negação, em determinados operadores argumen-
tativos, traços que simultaneamente enquadram e introduzem esse discurso do outro.
(19) O conceito de “cidadão” não se limita ao verbete expresso nos dicionários (“aquele
que mantém uma relação de direitos e deveres com o Estado”). Alimentar-se, vestir-se e
morar adequadamente, ter acesso à cultura e ao ensino e, portanto, ao alcance das leis são
prerrogativas inerentes ao ser humano que precedem e condicionam a sua capacidade de
exercitar com plenitude a cidadania. (AN4.)

À diferença do valor das aspas no discurso relatado direto, onde elas podem funcionar como um mar-
cador de confiabilidade, de destacamento da palavra de autoridade, contrapõe-se o seu valor bivocal, pois
funcionam como um marcador de atitude de distanciamento do articulista face às palavras e expressões
aspeadas, sem se marcar sintaticamente a alteridade, que fica implícita. A palavra aspeada é um frag-
mento usado e mencionado, pois é uma palavra que remete também a um outro discurso, que é uma
perspectiva diferente da do autor. Nessas palavras destacadas, vistas como signos ideológicos, tem-se,
no seu interior, a presença de dois sentidos, de dois discursos, ou seja, de dois enunciados potenciais,
marcando a relação dialógica do autor com esse outro discurso (exemplo 19).
Na ironia, o discurso do autor é um discurso refratado que se eclipsa no discurso do outro, que “fala”
diretamente no enunciado do articulista. As palavras pertencem formalmente ao autor, mas não o discurso,
que é de um outro, pois elas estão afastadas dele pela entonação irônica. O autor é um vetríloquo que
mostra, põe em cena um outro locutor, um outro enunciado, mas do qual se distancia dialogicamente,
no todo do enunciado, pela entonação. Pela ironia, tem-se o embate de dois pontos de vista, um meio
dialógico para a construção do movimento de distanciamento no gênero artigo.
(20) Felizmente há, hoje, boas notícias. Na mesma Inglaterra da Terceira Via, de Tony Blear,
proibiram-se experiências científicas de uso de colírio nos olhos dos ratos e de cremes de
beleza no focinho dos porcos. (AN3.1/FSP3.1)

No exemplo 20, o embate se situa em torno dos acontecimentos sociais que são objeto de notícia (jor-
nalística). Pela orientação temática artigo, construída através da intercalação de um relato de fatos sobre
uma situação social jornalística já acontecida, e pela relação entre esse relato e o trecho exemplificado,
o marcador atitudinal “felizmente” e a enumeração das boas notícias do dia não são enunciados (ditos)
na perspectiva do autor. É a voz de um outro que é incorporada pelo autor e que, embora pareça dita e
sustentada por ele (não há índices gramaticais da introdução de um outro discurso), se relacionada com
o todo do enunciado, marca as suas fronteiras de sentido. A coerência do artigo resulta justamente na
compreensão dessa divisão dos discursos e do enquadramento irônico dado ao trecho destacado.
(21) A participação da iniciativa privada nesse prêmio, entregue no início de dezembro,
demonstra que a sociedade civil está plenamente engajada na luta pelo desenvolvimento,
conquista que não cabe apenas ao governo, mas a toda a Nação. (AN4.1)

A negação e os operadores discursivos mostram a tensão do discurso do autor com o outro discurso,
que acaba se refletindo na construção do seu enunciado. Orientado para o seu objeto, como diz Bakhtin,
o autor acaba não podendo deixar de tocar nesses outros discursos. O ponto de vista do autor se cons-
trói pela diferença, ou pela recusa das outras vozes. Muitas vezes, como no exemplo 21, o operador se
encontra articulado com a negação.
As relações entre o discurso alheio, no caso, os elos anteriores da comunicação discursiva, segundo
a teoria bakhtiniana, não têm analogia com as relações sintáticas dentro da língua, mas são análogas
com as que se estabelecem entre as réplicas de um diálogo. Elas são relações entre diferentes sujeitos,
expressas pela linguagem. O discurso alheio introduzido no discurso próprio possui uma dupla expres-
sividade: a própria, que é alheia, pois ele passa a ser um elemento do acontecimento do artigo, e a
expressividade do artigo, que “acolhe” o discurso alheio.
5.3. As relações dialógicas face à reação-resposta ativa do leitor e suas configurações estilístico-com-
posicionais
A orientação para os enunciados já-ditos, os elos anteriores da comunicação discursiva, e sua incor-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 617


poração no artigo dá-se, na verdade, em razão do interlocutor, pois é em função dele que se constrói o
discurso. A orientação para o já-dito, em parte, constitui-se como uma estratégia discursivo-argumenta-
tiva, pois é através da relação dialógica do artigo com esses enunciados que o articulista vai construindo
o seu objeto do discurso, tecendo o seu ponto de vista, orientado para a reação-resposta ativa do seu
destinatário. O interlocutor (o leitor) é a “medida” dessa orientação face ao já-dito.
Mas além da relação dialógica para os elos anteriores, o artigo também tem seu modo de orientação
para o seu destinatário e para a sua reação-resposta ativa. No caso do artigo, a interação verbal entre
autor-articulista e interlocutor-leitor não é uma relação dialógica direta, ou seja, face a face (“de pessoa
a pessoa”), mas mediada por diferentes instâncias, como a própria escrita (procedimento geral de sim-
bolização), o jornal e a Internet (suporte material de inscrição e rede de difusão) e a esfera jornalística
(função ideológica).
Se é em função do leitor que se dá o acontecimento do enunciado e que o projeto discursivo do autor
se orienta para a reação-ativa do leitor, buscando antecipar e prever as possíveis reações (verbais ou
não) dele face a sua fala, no que toca à relação dialógica entre o autor e o interlocutor, no artigo, pode-
se dizer que a finalidade da interação, a adesão/persuasão do leitor, constrói-se através de três movi-
mentos dialógicos básicos: o movimento de engajamento do leitor ao discurso do autor, o movimento
de refutação da possível contra-palavra do leitor e o movimento de interpelação do leitor ao ponto de
vista do autor.
No movimento dialógico de engajamento, o articulista eleva o leitor à posição de aliado, de um co-
autor do artigo. O discurso é construído como se o articulista incorporasse o ponto de vista do leitor,
como se ambos falassem de uma mesma posição valorativa, em uma relação de concordância, como se
pode observar nos exemplos a seguir.
(22) Se todos fizerem a lição de casa, o déficit público será controlado. Mas, se os Estados
não quiserem pagar suas dívidas, o governo federal só terá uma saída: aumentar impostos.
E nós, cidadãos, é que pagaremos a conta. (DC5.1)

(23) Estaríamos condenados ao populismo e a sua irmã gêmea – a tentação autoritária?


Deveríamos reconhecer que as instituições forjadas ao longo de séculos, na Europa ociden-
tal e nos Estados Unidos, são incompatíveis com a “índole latino-americana”, como sempre
pensaram nossos intelectuais autoritários? (FSP6.1)

Nos exemplos 22 e 23, o movimento de engajamento se constrói pela aproximação do leitor ao pon-
to de vista do autor. O leitor é alçado à posição de um co-autor. Sua reação-resposta é assimilável à
orientação valorativa do articulista, que se manifesta em certos traços estilístico-composicionais, como
o verbo e o pronome na primeira pessoa do plural (nessa situação, o nós é um eu + tu) e as perguntas
retóricas como questionamentos possíveis do leitor.
No movimento dialógico de refutação, o autor antecipa as possíveis reações-resposta de objeção que
o leitor poderia contrapor ao seu discurso, abafando-as. Assim, pelo movimento de refutação, o autor
provoca o silenciamento de enunciados pré-figurados (possível contra-palavra), que ou incorpora no seu
discurso, ou leva em conta na construção do seu enunciado.
(24) A Justiça americana acaba de conceder uma megaindenização de US$ 51,5 milhões a
uma senhora que tem um câncer de pulmão causado pelo fumo. Pagará a empresa produtora
dos cigarros que ela fumou durante 35 anos.

As indenizações judiciais nos campos do consumo, do meio ambiente, da saúde ocupacional,


do assédio sexual e outros estão se transformando numa verdadeira indústria advocatícia
em todo o mundo. Isso é preocupante.

Mas, no caso do tabagismo, as pesquisas são inequívocas ao apontar o fumo como um dos
principais responsáveis por várias doenças graves [...]. (AN6.1)

(25) Le Monde publica as matérias fascinantes na primeira página. Nem uma palavra apareceu
no Times, ou em nenhum outro jornal britânico, pelo que sei. Agora, não me entendam mal:
também não quero ver a vida particular de Murdoch invadida. Mas a proteção privilegiada
na qual ele insiste para si mesmo deveria ser outorgada, como direito legal, a Robin Cook
e a todo mundo. (OESP5.1)

No exemplo 24, as possíveis reações do leitor ao discurso do articulista, contrárias ao seu ponto de
vista, são incorporadas ao discurso do autor e enquadradas de modo refutativo. O trecho “As indenizações
judiciais nos campos do consumo, do meio ambiente, da saúde ocupacional, do assédio sexual e outros
estão se transformando numa verdadeira indústria advocatícia em todo o mundo. Isso é preocupante.”
constitue-se como possível enunciado pré-figurado do leitor (pois são dados da sua perspectiva), que
dialogiza o artigo, como que reconstruindo a forma composicional de um diálogo. É uma possível resposta
avaliativa do leitor face ao discurso do articulista, refutada pelo enquadramento do discurso do autor:
“Mas, no caso do tabagismo, as pesquisas são inequívocas”. No exemplo 25, não se tem a incorporação

Proceedings XI International Bakhtin Conference 618


da fala do leitor, mas sente-se a presença tensa de uma possível reação sua à palavra do autor, que
tenta justificar a sua posição: “Agora, não me entendam mal”.
Se é possível falar de uma relação de semelhança de orientação de sentidos entre os movimentos
dialógicos de assimilação (orientado para os enunciados já-ditos) e de engajamento (orientado para a
reação-resposta do leitor), os movimentos de distanciamento e de refutação vão apresentar matizes de
sentidos diversificados. A refutação da possível contra-palavra do leitor constrói-se de modo discreto,
“ameno”, pois, pela situação de interação, o artigo tende a buscar a adesão do leitor à perspectiva do
articulista, que só vai produzir seu efeito se o movimento discursivo conduzir favoravelmente o leitor à
perspectiva do autor.
No movimento dialógico de interpelação, um determinado ponto de vista é apresentado como o ponto
de vista, como a verdade à qual o leitor deve se sentir compelido, persuadido a aderir. A opinião do ar-
ticulista, um interlocutor de elite, constitui-se como uma certa norma para os leitores. Afinal, a posição
social da autoria mostra-se como um argumento para a plausibilidade e credibilidade do enunciado do
articulista.
(26) No momento em que o Brasil enfrenta dificuldades, oriundas do quadro internacional
e do próprio atraso nos ajustes internos, especialmente a reforma constitucional, é preciso
que todos ofereçam sua contribuição concreta para que seja um país melhor. E o respeito aos
direitos humanos, aqui entendidos de forma mais ampla, abrangendo o acesso de todos os
cidadão a uma vida mais digna, é condição essencial para ingressarmos no próximo milênio
com plenas condições de conquistar o desenvolvimento. (AN4.1)

(27) O maior risco nessa trajetória é a inflação. Assim, o grande desafio é monitorar a equação
câmbio-juros, de modo que o efeito da mudança cambial resulte, no máximo, em um “solu-
ço” inflacionário de 10%. Para isso, precisamos de um conjunto de ações que demonstrem
não apenas vontade, mas a construção de uma trajetória permanente de reestruturação
interna. Isso é fundamental para balizar as expectativas dos agentes internos e externos.
Precisamos de um choque de credibilidade. [...]. A sociedade pode e deve boicotar produtos
que tenham seus preços reajustados. Num momento em que estão querendo aumentar até
o preço da água de coco, é preciso que consumidores e agentes econômicos das diversas
cadeias produtivas se unam para resistir. (FSP6.3)

Nos exemplos 26 e 27, tem-se menos uma projeção de antecipação ou incorporação da possível
resposta do leitor, mas a busca de direcionamento da sua reação-resposta. A interação dialógica do
autor e leitor se apresenta como uma certa relação de imposição sobre o leitor, marcada no enunciado
preferencialmente por indicadores modais do tipo: “é preciso que”, “é condição essencial”, “deve ser”,
“isso é fundamental”, “precisamos”, “a sociedade pode e deve”.
Se a inter-relação para com o discurso do outro no objeto (enunciados já-ditos) encontra-se mais
“marcada” no artigo, quer dizer, percebe-se melhor a sua presença no discurso do articulista, a relação
dialógica para com o discurso de outrem na resposta antecipada do leitor, como apenas projeções de
enunciados pré-figurados, presumidos (ou seja, enunciados não ditos, sem existência concreta), tende
a se diluir mais no enunciado do autor. As fronteiras entre esses discursos tornam-se mais tênues. No
entanto, há certos traços estilístico-composicionais no artigo que fazem sentir a presença ativa do leitor,
sendo que os seus possíveis enunciados também “sulcam” o artigo.
Para Bakhtin, as duas formas de relações dialógicas (no objeto, na resposta antecipada), sendo em
essência diferentes, engendram efeitos estilísticos diferentes no discurso; no entanto, podem também se
entrelaçar. Essa situação pode ser observada no gênero artigo. Embora muitos efeitos estilísticos sejam
específicos de cada tipo de relação dialógica, certos traços lingüísticos da presença de um outro discurso
podem remeter tanto às relações dialógicas com o discurso do outro no objeto como com o discurso
resposta do leitor. É o caso do uso dos pronomes e verbos na primeira pessoa do plural, da negação e
do operador mas, que exigem do leitor que ele leve em conta a situação de interação do artigo como
condição necessária para a interpretação desses elementos (embora muitas vezes seja difícil discernir,
tanto para o interlocutor quanto para o pesquisador, os limites entre um e outro efeito estilístico).
Os diferentes movimentos dialógicos de orientação ativa para o leitor e o seu discurso se corporificam
no artigo por determinadas características estilístico-composicionais de incorporação e de orientação,
sendo que a sua introdução e o seu enquadramento se “marcam” pelo uso dos pronomes e dos verbos
na primeira pessoa do plural, pela negação, pelo uso de certos operadores, como o mas, pelas perguntas
retóricas e pelos indicadores modais.
(28) Se todos fizerem a lição de casa, o déficit público será controlado. Mas, se os Estados
não quiserem pagar suas dívidas, o governo federal só terá uma saída: aumentar impostos.
E nós, cidadãos, é que pagaremos a conta. (DC5.1)

O recurso aos pronomes ou aos verbos na primeira pessoa do plural, como no exemplo 28, cria o efeito
de uma dupla enunciação, de uma assimilação do ponto vista do leitor ao do autor. No artigo, algumas
vezes, observa-se o pronome todos junto com o pronome pessoal ou o verbo, reforçando a adesão do
leitor. Esse movimento de assimilação, de engajamento do interlocutor, adquire nuances particulares

Proceedings XI International Bakhtin Conference 619


em alguns artigos, onde o texto se inicia na primeira pessoa do singular ou de modo impessoal (o eu do
articulista) e termina na primeira pessoa do plural (articulista + leitores).
(29) Não se trata de ser contra, ou de rezar pela cartilha do pior. O incêndio está aí, quei-
mando o País por dentro e por fora. Não querer vê-lo, é pretender esconder o sol com a
peneira, como diziam os mais antigos. (AN5.3)

(30) Daí decorre o que classifico como os cinco ralos de sonegação e evasão fiscal existentes
no Brasil.

São eles: a) O sonegador relapso. [...] b) O inadimplente. [...] c) Evasão fiscal por via
juducial. [...] d) Evasão fiscal pela ignorância legal. [...] e) Evasão fiscal pelo cidadão anar-
quista. [...].

É um quadro trágico, mas reflete a realidade tributária nacional, agravada a cada ano.
(FSP4.2)

Nos exemplos acima, por meio da negação e do uso do operador mas, tem-se a introdução e o en-
quadramento contra-argumentativo da reação-resposta do leitor diante das colocações do articulista.
No exemplo 29, já no início do texto, o autor “descarta” a perspectiva do leitor, a de que a sua opinião é
própria de quem é do contra, que reza pela cartilha do pior. No caso exemplo 30, o operador mas instaura
uma reação-resposta à projeção de um enunciado pré-figurado do leitor: “é um quadro trágico”.
(31) Mas, afinal, qual dos caminhos seguintes – supondo-se que ambos são viáveis – seria
mais útil ao País ver o PT trilhar? Buscar legitimamente, e com competência, sua condição
de líder de um arco de oposições, estruturando um plano alternativo consistente e lutando
por sua vez? Ou, diante da agudeza da crise, ter algumas de suas facções aproximando-se
do governo, forçando-o a um movimento para a esquerda e ajudando a restringir os espaços
do PFL? (OESP4.2)

Para Bakhtin (1985), as perguntas retóricas são um dos fenômenos da representação convencional
da comunicação discursiva e dos gêneros primários no enunciado. Já Voloshinov (1988) menciona o
valor persuasivo das perguntas retóricas no enunciado. O caráter persuasivo das perguntas retóricas
no gênero artigo (ver exemplo 31) pode ser compreendido na medida em que projetam no enunciado
uma perspectiva de interação tipo diálogo, em que as perguntas podem se dar tanto da perspectiva do
autor como da do leitor, sendo que preferencialmente representam uma antecipação de uma possível
reação-resposta deste. Mas, ao mesmo tempo que o articulista incorpora os possíveis questionamentos
entrevistos da perspectiva do leitor, ele mesmo os responde no seu enunciado.
A modalização na linguagem, nos seus estudos tradicionais, pressupõe a distinção, no enunciado
(proposição), de um dito (conteúdo proposicional) e de uma modalidade, constituindo-se como uma
atitude assumida pelo sujeito falante com respeito ao conteúdo, ou seja, com o dictum. Os indicadores
modais são considerados como a “lexicalização” dessas modalidades, como “sinalizadores” lingüísticos
da atitude do falante perante o seu enunciado (proposição). Essa é a visão mais geral a respeito da
modalização. Em síntese, a modalização é abordada a partir de fragmentos textuais e em uma visão
monológica da linguagem.
Ao observar a modalização e os indicadores modais no todo do enunciado e numa visão dialógica,
percebeu-se o seu papel como elementos estilísticos que são indícios, no artigo, da inter-relação do ar-
ticulista com a reação-resposta do leitor. Os indicadores modais são traços da projeção que o articulista
faz da reação-resposta ativa do leitor (a modalização não incide sobre o dito do autor, mas sobre uma
possível reação-resposta do interlocutor).
(32) Envolvendo as muitas dimensões da natureza humana, de matéria e espírito, a psi-
canálise, pode-se dizer, é uma nova fronteira da sempre velha e renovada curiosidade do
homem em saber a origem e as motivações de seus atos. (AN4.3)

(33) É certo que, do outro lado do Atlântico, Clinton fez um discurso não menos eufórico
sobre o Estado da União, como se a América tivesse resolvido, durante seus mandatos,
todos os problemas – os seus e os dos outros – e só lhe faltasse agora recolher a sagração
universal. Está longe de ser o caso. (FSP6.2)

Nos exemplos 32 e 33, os indicadores modais são traços da projeção que o articulista faz da reação
ativa do leitor. Em 32, o emprego do modalizador “pode-se dizer” é uma estratégia de reação do próprio
autor, uma espécie de recuo, contra uma possível objeção do interlocutor quanto ao conceito de psicanálise
apresentado, mas amenizado pelo tipo de indicador modal. No exemplo 33, o operador modal recai sobre
um possível enunciado do interlocutor, ao qual o autor se opõe, constituindo-se o seu discurso como que
uma reação ao discurso do leitor, onde “é certo que” e “está longe de ser o caso” são os elementos que
“enquadram” o enunciado pré-figurado. Os modalizadores destacados constituem-se como “pistas” de
um diálogo não desenvolvido, que poderia ser reconstruído como:

Proceedings XI International Bakhtin Conference 620


– A crise está a generalizar-se inexorável e perigosamente, da Ásia à América Latina...
[articulista]

– Mas Clinton fez um discurso eufórico sobre o Estado da União ... [leitor]

– Sim, é certo que Clinton fez um discurso sobre [...]. Está longe de ser o
caso.[articulista]

Tem-se uma relação dialógica orientada para o leitor, onde se projeta a antecipação de suas possíveis
contestações, indagações, ou seja, dos seus enunciados pré-figurados. Essa reação-resposta antecipada
e inserida no discurso do articulista cria no artigo um efeito de uma conseqüência “já prevista”, embora
seja antes uma estratégia para evitar essa possível contra-palavra por parte do leitor.
Entretanto, os indicadores modais, além de introduzirem e avaliarem uma possível reação-resposta
do leitor, abafando uma contra-argumentação não desejada (movimento dialógico de refutação), tam-
bém funcionam no artigo como um outro modo de persuasão do leitor: eles não introduzem um possível
enunciado do leitor, mas funcionam como lugares de sua interpelação (movimento dialógico de interpe-
lação), ou seja, objetivam orientar a sua reação-resposta (verbal ou não, imediata ou retardada). Esse
é uma das funções discursivas centrais da modalização no artigo.
(34) Primeiro vem o alimento da auto-estima, rasgando de vez a carapuça de que preto nas-
ceu para ser empregado, serviçal ou marginal. É preciso descer o morro, a favela, e ocupar
áreas residenciais nobres. Afinal, a humanidade é nobre, e todas as raças estão incluídas
em tal conceito. Ou seja: as oportunidades devem ser iguais para todos.

O segundo passo, extremamente decisivo, é que os espaços devem ser ocupados. Os ban-
cos escolares precisam ter mais negros sentados, porque esse é o único caminho capaz de
igualar brancos, índios, alemães, italianos, japoneses, etc. (AN3.3)

Nesses exemplos de modalização, a relação dialógica com o leitor orienta-se menos como um mo-
vimento de introdução da palavra do outro, do que como uma estratégia no sentido de impor um de-
terminado ponto de vista (uma opinião) como uma verdade, como uma norma a ser seguida. Ou seja,
volta-se à questão do caráter hierárquico da situação de interação do artigo e da sua faceta de autoridade
em relação ao leitor. Os indicadores modais do tipo “é preciso” e “deve-se”, índices da presença de uma
modalização deôntica do campo da obrigação, são traços dessa relação assimétrica entre autor e leitor,
podendo-se situar o artigo, pela ótica da modalização, no âmbito do discurso de autoridade.
5.4. O papel dos gêneros intercalados e da “assinatura” do autor
Um dos traços relativos à heterogeneidade dos gêneros diz respeito à característica que muitos gê-
neros têm de combinar, de intercalar (implantar) diferentes gêneros no seu funcionamento discursivo.
Nessa situação, os gêneros introduzidos, chamados de gêneros intercalados, perdem a sua relação direta
com a realidade extraverbal e com os enunciados de outros falantes, pois não há a alternância real dos
sujeitos discursivos, para se tornarem componentes do gênero e do enunciado no qual se encontram.
Esse processo de intercalação se constitui como uma das causas da dialogização mais ou menos marcada
dos gêneros.
Os gêneros intercalados são outro modo de introdução do discurso do outro no gênero artigo, da sua
dialogização. Sua função não está voltada à construção do plurilingüismo, como no gênero romance,
mas à da articulação do ponto de vista, da opinião do autor. Mas, como explicar os gêneros intercalados
em termos de relações dialógicas? É que, além das relações dialógicas para com o já-dito e para com o
interlocutor, o enunciado pode estabelecer relações dialógicas com a sua própria enunciação como um
todo ou com partes isoladas, quando o locutor (autor) se separa de sua fala, como uma espécie de des-
dobramento da sua voz, assumindo diferentes posições enunciativas, incorporando a autoria de outras
situações de interação (outros gêneros) no enunciado (artigo).
A introdução dos gêneros intercalados assume um papel relevante na construção do ponto de vista
do autor, pois permite a este refratar a sua fala, substituir o seu discurso direto para além do discurso
relatado direto, indireto e o discurso bivocal. À diferença entre as formas do discurso relatado e bivocal,
o autor não incorpora outras falas, mas, como dito, ele se desdobra enunciativamente, enuncia-se a
partir de outras situações de interação, assumindo outras posições discursivas, que são incorporadas no
artigo, dialogizando-o.
Os gêneros intercalados presentes nos dados analisados foram: relato (de fatos vividos, presumidos),
provérbio, ditado e resumo, que são introduzidos e organizados de diferentes modos no artigo, esta-
belecendo com ele relações dialógicas. Os gêneros introduzidos, por se situarem nos limites do artigo,
perdem a relação com a sua situação de interação, para se tornarem acontecimentos do artigo, trans-
formando-se (pelo enquadramento), neste gênero, em maior ou menor grau. Mas, mesmo se situando
nos limites do enunciado artigo, as relações entre os gêneros intercalados e o artigo são relações de
sentido (dialógicas).
(35) Em 1957, a “Tribuna da Imprensa”, depois da sessão da Câmara dos Deputados, era o

Proceedings XI International Bakhtin Conference 621


lugar em que nos reuníamos para saber as maldades que o jornal soltaria no dia seguinte
contra Juscelino. Odylo Costa, filho, o grande renovador da imprensa brasileira, era o secre-
tário. Carlos Castelo Branco, articulista, já incorporara o título de mestre. Carlos Lacerda era
dono e ícone, o santo guerreiro para uns, o demônio, a fera do Lavradio, o Corvo, e tudo o
mais para aqueles que eram alvo de sua pena de fogo. [...]

As interpretações foram as mais disparatadas. Uns viam uma sátira e buscavam carapuças;
outro, uma mensagem cifrada aos golpistas que pululavam na cena política. Nada além do
que uma tarde de tédio do grande jornalista. Um interlúdio para fazer pensar.

Recordo o fato e descubro [...]. (AN3.1/FSP3.1)

No exemplo 35, tem-se a intercalação do gênero relato no artigo. A incorporação do relato de fatos
passados traz com ele o ethos da autoridade da experiência vivida do seu autor, do seu saber enciclopé-
dico; incorpora ao artigo dados com os quais o articulista constrói e sustenta o seu ponto de vista, pois,
mostrando-os como exemplos, ilustrações, coloca-os em relação com os acontecimentos presentes, que
são o objeto do seu discurso. O relato de uma situação das esfera político-jornalística é apresentada
para a construção da avaliação que o autor faz de uma situação presente. O final irônico do artigo só o
é à medida que é relacionado com a temática do relato (rever exemplo 20).
Outro gênero intercalado encontrado no artigo é o resumo, que difere do discurso relatado direto e
indireto porque, enquanto nestes se tem apenas a incorporação de determinados trechos de um enunciado
de um outro, no resumo tem-se a orientação para o enunciado total (oral ou escrito). Principalmente, o
autor, no artigo, desdobra-se em uma outra função discursiva, que é a de “relatar” e de “resumir” um
outro texto (enunciado) para o interlocutor, mas que, intercalado no artigo, entra como elemento cons-
titutivo deste gênero para a construção do ponto de vista do autor. Aqui observa-se um caso de dupla
bivocalidade: pelo desdobramento da função de locutor e pelo relato de um outro discurso: “relatar um
texto com nossas próprias palavras é, até um certo ponto, fazer um relato bivocal das palavras de ou-
trem; pois as ‘nossas palavras’ não devem dissolver completamente a originalidade das palavras alheias,
o relato com nossas próprias palavras deve trazer um caráter misto, reproduzir nos lugares necessários
o estilo e as expressões do texto transmitido.” (BAKHTIN, 1993, p. 142, grifos do autor).
(36) Ganhei um livro no último Natal sobre os problemas da sociedade que envelhece. O es-
tudo é de grande valor para um país como o Brasil, cuja população está envelhecendo a uma
velocidade espantosa (“Maintaining Prosperity in an Ageing Society”, OECD, 1998) [....]

Não há país que apresente equilíbrio nas contas da seguridade social, o que levou a OECD
a propor uma série de medidas, das quais destaco as seguintes:

1) Os sistemas de aposentadoria, a estrutura tributária e os programas sociais devem ser


reformados de modo a remover os incentivos à aposentadoria precoce ; 2) as leis trabalhistas
devem ser modificadas de forma a estimular e assegurar a atividade dos mais idosos; 3)
os benefícios das aposentadorias devem ser compostos de um “mix” de recursos públicos
e privados. (AN5.1/FSP5.1)

Nos exemplos 15 e 36, o resumo intercalado aponta para uma outra situação de interação (finalidade
do resumo, sua concepção de autor, destinatário); como elemento composicional do artigo, estabelece a
relação dialógica do autor com um outro enunciado e sua situação de interação, no caso, uma entrevista
e um livro. O gênero intercalado resumo tanto pode entrar na construção do movimento de assimilação
(exemplo 36) como no de distanciamento (exemplo 15). As fronteiras internas do resumo no artigo
(alternância interna do gênero intercalado no artigo) podem ser notadas em certos traços estilísticos e
temáticos (de sentido) como: “Veja-se, por exemplo, a entrevista do cientista político mexicano Jorge
Catañeda”. “Embora Catañeda aluda a um ‘populismo democrático’, não são as instituições democráticas
que caracterizam o populismo.” (exemplo 15); “levou a OECD a propor uma série de medidas, das quais
destaco as seguintes” (exemplo 36).
Outros gêneros intercalados no artigo são o provérbio e o ditado popular. Diferentemente do relato
e do resumo, onde há um desdobramento do posição da autoria, no provérbio há ao mesmo tempo a
incorporação de uma outra voz, a do senso comum autorizado. Dessa forma, intercalados nos artigos,
com seu ar de déjà vu, seu tom sentencioso, funcionam como um argumento de autoridade que o arti-
culista incorpora ao seu enunciado. Na intercalação dos provérbios e ditados, o articulista se enuncia de
uma outra situação de interação, a do provérbio e do ditado. Eles funcionam no discurso do autor como
gêneros cristalizados, em que gênero/acontecimento do enunciado se fundem e que o autor incorpora
de maneira total (ou como um parte que representa a sua totalidade) no artigo.
(37) Mas lembre-se: quanto maior a altura, maior o tombo. (FSP3.2)

(38) É a prática do velho ditado “farinha pouca, meu pirão primeiro”. (FSP4.3)

O papel dos gêneros intercalados ainda pode assumir uma outra feição no artigo, diferente dos exem-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 622


plos mencionados, quando “encobrem” o todo do gênero artigo. O discurso direto do autor locutor, o
articulista, é substituído por uma outra voz, um outro locutor, criando o efeito de um outro cronotopo,
de uma outra concepção de autor e destinatário, intercalados na situação de interação do artigo. Para
Bakhtin (1997, p. 188), “a ausência do discurso diretamente referencial é um fenômeno comum. A úl-
tima instância significativa, a idéia do autor, não está realizada no discurso direto deste mas através de
palavras de um outro, criadas e distribuídas de certo modo como palavras de um outro.” No conjunto
dos dados, dois artigos se apresentam na forma do gênero intercalado carta.
(39) Caro Kenzaburo Oe, Foi uma grande satisfação para mim receber sua carta, algo que
de certa forma eu esperava porque, depois daquele almoço em Tóquio, em 1979 – já faz 20
anos! –, vimo-nos apenas um par de vezes, mas desde então continuei conversando com
você, por meio de seus livros que em todos estes anos tenho estado lendo nas traduções
em espanhol, inglês ou francês, quando ficaram ao meu alcance.

[...]

A inocência sobreviverá neste terceiro milênio para cuja inauguração nos preparamos? São
muitos os motivos em nosso milênio para inclinarmo-nos a temer que não. Mas, por sorte,
há também alguns que nos permitem alimentar esperanças. Sua obra é uma delas.

Um abraço de seu leitor e amigo, Mario Vargas Llosa. (OESP5.2)

No exemplo 39, o enunciado artigo assume a forma do gênero carta. Com características formais de
carta (por exemplo, forma de introdução, fechamento), o enunciado artigo marca-se como constituindo
uma resposta a uma outra carta, situação de interação onde aquele a quem o enunciado responde é
também aquele a quem o autor se dirige. Há um desdobramento do papel do autor, que se enuncia de
uma outra situação de interação, sendo o texto todo construído em cima de um “suposto autor” e um
“suposto leitor”: as marcas de primeira pessoa (“Eu não sabia que o Pen Club japonês se negou nos
anos 70 a protestar contra a perseguição ao poeta coreano Kim Ji Ha”) não são marcas de discurso
relatado direto, nem as do autor; também as marcas lingüísticas de interpelação do leitor (“Para mim,
sempre foi inquietante o tema, mencionado em sua carta, da cumplicidade de alguns escritores com
os estragos que o fanatismo religioso ou político causa.”) não se referem ao leitor do artigo. Mas, pela
situação de interação, o leitor do jornal interpreta que o enunciado, mesmo em forma de carta, não é
esse gênero cotidiano, mas um gênero jornalístico, o artigo. O leitor interpreta essa situação como um
caso de reacentuação de gênero.
Nas situações em que o gênero intercalado determina a composição do conjunto do texto, é como
uma outra janela genérica (de gênero) que se maximiza sobre a do artigo: sua composição, seu estilo,
por exemplo, são de um outro gênero; entretanto, pela ancoragem do texto (texto) na situação de in-
teração, ou melhor, pela dimensão social do texto (enunciado), está-se diante de um artigo, mas cujo
gênero intercalado implantou naquele a sua dimensão verbal.
Em síntese, o processo de intercalação de gêneros no artigo funciona como uma estratégia discursiva
que possibilita ao autor se enunciar a partir de outros lugares enunciativos, dialogizando também o gê-
nero e construindo a sua orientação axiológica. A reação-resposta ao já-dito e a presença dos gêneros
intercalados, no artigo, funcionam como estratégias ou modos de construção da opinião do autor, da ar-
gumentação no enunciado, que não é um ato solitário deste face ao seu objeto, mas um ato dialógico.
As diferentes formas de incorporação dos outros enunciados e os gêneros intercalados apontam
para a elasticidade e plasticidade dos gêneros, para a própria essência da sua forma, ou seja, a relativa
estabilidade da sua parte verbal, como já comentado. Ainda, mostram que a dimensão verbal não é o
todo do enunciado, do gênero, mas uma parte, que tem de estar articulada com a dimensão social, a
situação social de interação.
Como visto, o gênero artigo constitui-se como uma reação-resposta do seu autor face aos aconte-
cimentos sociais do momento. Essa resposta não se constrói sem se relacionar com a palavra do outro
(os enunciados já-ditos e os pré-figurados), refutando-a, tomando-a em conta, refratando-se nela,
encontrando-se incorporada ou refletida de diversas maneiras na dimensão verbal do artigo. Mas, e na
arregimentação desses outros discursos, no mosaico enunciativo que constituem, como se expressa a
“última instância semântica do autor” (BAKHTIN, 1997) nesse gênero?
Nas suas diversas máscaras, o autor pode se manifestar de forma totalmente refratada, como nos
artigos onde gênero intercalado carta “impõe” a sua composição e o seu estilo: as formas de primeira
pessoa do singular e plural, por exemplo, não se referem à autoria do artigo, mas representam a fala de
um “suposto autor”, posto em cena pelo/no artigo.
Ainda, a “última instância semântica do autor” pode se manifestar pela indeterminação lingüística da
autoria. Mesmo não se tendo nenhuma marca explícita de primeira pessoa remetendo a uma instância
enunciativa, sente-se o trabalho e a responsabilidade da autoria na organização do enunciado, que se
“marca” nessa estratégia estilística.
(40) Como positivo, poder-se-ia citar o fato de a proposta acabar com a guerra fiscal, ao
estabelecer alíquota uniforme do novo ICMS. Entretanto, o simples anúncio da idéia já de-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 623


sencadeou pelo país uma disputa desmedida entre os Estados para atrair investimentos e,
com isso, minorar os efeitos perversos da crise econômica nacional sobre o emprego. É a
prática do velho ditado “farinha pouca, meu pirão primeiro”. (FSP4.3)

Como uma certa preferência genérica, no entanto, a manifestação da autoria marca-se pela presença
da primeira pessoa do plural ou da primeira pessoa do singular articulada conjuntamente com a primeira
do plural (nos dados não se teve nenhum artigo onde se tivesse só a marcação da primeira pessoa do
singular). No caso da primeira pessoa do plural, essa projeção da autoria pode implicar a assimilação
do leitor ao artigo; tratar-se de um plural de modéstia; de um nós que não inclui o leitor, mas um outro
locutor incorporado/assimilado à perspectiva do autor (ver exemplo 41).
A presença da primeira pessoa do plural pode, em um mesmo artigo, marcar-se como um caso de
plural de modéstia, inclusão ou exclusão do leitor e ainda como uma marca de um locutor dentro de um
gênero intercalado. Também pode se manifestar de uma maneira mais ostensiva ou discreta no artigo.
Por fim, como mencionado antes, a projeção da autoria pode se manifestar lingüistamente pelas marcas
de primeira pessoa do singular e plural conjuntamente no artigo, onde a primeira pessoa do plural pode
assumir as diferentes nuances de sentido já discutidas. Essa opção genérica pela manifestação da primeira
pessoa do discurso é uma questão de estilo que, até de certo modo, contraria as normas de redação de
alguns manuais, que preconizam que em gêneros como crônica e artigo pode-se usar a primeira pessoa
do discurso como uma “forma de expressão”, mas que convém evitar, a todo custo, uma vez que dá um
ar narcisista ao texto, sendo preferível usar o nós plural de modéstia em lugar do eu.
(41) Quando assumi a prefeitura de Joinville, tratei, logo na primeira semana, de propor à
Câmara uma reforma administrativa nesse sentido. Por isso, mesmo com todas as dificul-
dades de conjuntura, temos nos distinguido por poder transformar Joinville num canteiro de
obras, não obstante tenhamos concedido um aumento linear a todo os servidores e venhamos
pagando em dia os salários. Aliás, Joinville foi o primeiro governo, em todo o país, a pagar
integralmente o décimo terceiro salário. No dia 27 de outubro.

Se todos fizerem a lição de casa, o déficit público será controlado. Mas, se os Estados não
quiserem pagar suas dívidas, o governo federal só terá uma saída: aumentar impostos. E
nós, cidadãos, é que pagaremos a conta. (DC5.1)

A presença das marcas lingüísticas de primeira pessoa (singular ou plural), no entanto, não deve
levar a crer que se esteja diante de um “discurso subjetivo”, diferente de um discurso objetivo, cuja
característica seria a ausência das marcas de primeira pessoa. A subjetividade se manifesta através da
impessoalização, da mesma maneira que a objetividade do discurso pode se marcar pelo eu. Essas mar-
cas têm sua função discursiva própria, funcionando como um recurso de autoridade, pois fazem menção
ao autor do enunciado e a sua posição social de destaque: é o articulista que fala, que tem boas razões
para dizer o que diz (elas remetem a um discurso de autoridade).
A articulação da presença da autoria também se marca no artigo através da assinatura e do pé bio-
gráfico (nome do articulista informações sobre ele) (ver exemplo 42). Na comunicação jornalística, tem-
se uma característica constante, confirmada pelos manuais de redação: o artigo sempre é assinado e é
acompanhado do pé biográfico. A assinatura (o nome completo do autor) tem, entre outras, uma função
jurídica: ela identifica e responsabiliza juridicamente o autor. Do ponto de vista legal, é ao articulista
que é imputada a responsabilidade pelas posições enunciadas no artigo. Discursivamente, a assinatura
inscreve o autor no artigo (enunciado), mostra-se como um indício de autoridade e seu compromisso
para com o enunciado. Também estabelece o vínculo entre o articulista e o seu texto, e a relação in-
trínseca entre a postura do autor prevista no gênero e o autor concreto, mostrando-se como o “selo da
individualidade” do autor do enunciado.
O pé biográfico, composto pelo nome do autor, profissão e cargo ou função que ocupa o articulista,
também é um elemento importante na construção do sentido do artigo, pois traz indicações da autoria,
ou melhor, funciona como uma biografia-síntese do articulista: quem fala no artigo, de que lugar social
ele se enuncia etc. Entretanto, pela constituição sócio-discursiva da autoria no artigo, o pé biográfico
também funciona como um recurso à autoridade, pelo fato de mostrar o caráter de prestígio social e
midiológico do autor. Dessa forma, orientados para o leitor, a assinatura e o pé biográfico funcionam
discursivamente como elementos de leitura, constituindo-se como índices importantes para a construção
da orientação temática do gênero e do sentido dos enunciados singulares. Eles como que ratificam o
discurso do autor.
(42) Emerson Kapaz, 43, é deputado federal pelo PSDB-SP, vice-presidente do Centro das
Indústrias do Estado de São Paulo e conselheiro da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança
e do PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais). Foi secretário de Ciência, Tecno-
logia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo. (FSP6.3)

Fechando com os aspectos em torno da assinatura e da autoria, nesta seção foram discutidas ques-
tões que, articuladas com a contrapartida social do artigo, configuram determinados aspectos de fun-
cionamento da dimensão verbal desse gênero (conteúdo temático, estilo e composição) na esfera da
comunicação jornalística.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 624


6. Considerações finais
Um olhar retrospectivo para o processo teórico-metodológico construído para a análise do gênero artigo
aponta para a consideração de três grandes instâncias de apreensão do gênero: a sua esfera social, o
seu cronotopo e as suas relações dialógicas. Em síntese, a análise procurou se orientar pela concepção
de gênero como forma social de discurso, como tipo histórico de enunciado, mantendo no horizonte o
cronotopo do gênero e do enunciado e a dialogicidade constitutiva da linguagem.
Referências
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução do russo por Paulo Bezerra. 2. ed. rev. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
______. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In.: ______. Questões de literatura
e de estética: a teoria do romance. Tradução do russo por Aurora F. Bernadini, José P. Júnior, Augusto G. Júnior et
al. 3. ed. São Paulo: Ed. Unesp/Hucitec, 1993. p. 13-70.
______. O discurso no romance. In: ______. ______. p. 71-210.
______. Formas de tempo e de cronotopo no romance. In.: ______. ______. p. 211-362.
______. Autor y personaje en la actividad estética. In.: ______. Estética de la creación verbal. Tradução do russo
por Tatiana Bubnova. 2. ed. México: Siglo Veintiuno, 1985. p. 13-190.
______. El problema de los géneros discursivos. In.: ______. ______. p. 248-293.
______. El problema del texto en la lingüística, la filología y otras ciencias humanas. Ensayo de análisis filosófico.
In.: ______. ______. p.294-323.
______. De los apuntes de 1970-1971. In.: ______. ______. p. 354-380.
ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Tradução de Eliana Aguiar. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
MAINGUENEAU, Dominique. Analyser les textes de communication. Paris: Dunod, 1998.
MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. 2. ed. rev. Petrópolis: Vozes, 1994.
RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. Tradução de Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 1999.
RODRIGUES, Rosângela Hammes. A constituição e o funcionamento do gênero jornalístico artigo: cronotopo
e dialogismo. 2001. 347f. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Programa de Estudos
Pós-Graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo.
VERÓN, Eliseo. A produção de sentido. São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 205- 238.
VOLOSHINOV, Valentin N. La construcción de la enunciación. Tradução do italiano por Ariel Bignami. In.: SILVESTRI,
Adriana, BLANCK, Guilhermo. Bajtín y Vigotsky: la organización semiótica de la conciencia. Barcelona: An-
thropos, 1993. p. 245-276.
______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da lingua-
gem. Tradução do francês por Michel Lahud e Yara F. Vieira. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1988.
______. Le discours dans la vie e le discours das la poésie. Contribution à une poétique sociologique. Tradução do
russo por Georges Philippenko. In.: TODOROV, Tzvetan. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique - suivi de écrits
du cercle de Bakhtine. Paris: Éditions du Seuil, 1981. p. 181-215.

Textos-chave: O problema dos gêneros do discurso; O problema do texto


na lingüística, na filologia e nas ciências humanas. Ensaio de análise filosófica; O
discurso no romance; Formas de tempo e de cronotopo no romance; Marxismo e
filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência
da linguagem; A construção do enunciado.

Nomes-chave: Bakhtin, Voloshinov


Palavras-chave: gêneros do discurso, enunciado, texto, artigo, jornalismo
Biografia resumida: Rosângela Hammes Rodrigues é professora de Gradua-
ção e Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Atua nas áreas
de Lingüística e Lingüística Aplicada. Fez Graduação (Licenciatura em Letras) e
Mestrado (Letras/Lingüística) na UFSC e Doutorado (Lingüística Aplicada e Estudos
da Linguagem) na PUC/SP. Tem textos publicados em revistas e livro. Na Pós-
Graduação, ministra disciplinas, orienta pós-graduandos e tem-se voltado para
a pesquisa dos gêneros e das práticas de ensino de língua materna. Coordena o
grupo de pesquisa “Gêneros do discurso: práticas pedagógicas e análise de gê-
neros”. Na área de extensão, trabalha em cursos de capacitação de professores,
entre outras atividades.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 625


From heteroglossia and Multilinguism to authoritative discourse:
A discursive approach to classroom interactions as speech genres1

Roxane Helena Rodrigues Rojo

LAEL/PUC-SP, Brazil

rrojo@terra.com.br

As far as I know, the discursive approach of classroom interaction based on Speech Genres Theory
(Bakhtin, 1953/1986a) is rare in the psychological or linguistic literature about this topic, a topic that
is most often discussed from the teaching-learning perspective. Here, I will present an exercise of dis-
course analysis — based on Bakhtinian Speech Genres Theory — of classroom interactions viewed as
different school speech genres: rules, arrangements, explanations, expositions and instructions, on the
one hand; on the other hand, multiple secondary genres that circulate out of school (e.g., in science or
in science writing for general public), transferred to classrooms.
This exercise of analysis of classroom interactional data as (maybe primary) speech genres and dis-
courses (utterances) used in classrooms and building secondary discourse genres started with a review
of linguistic and communicative analyses of classroom interactions. Rojo (1997) sustains that:
a) some empiricist approaches to interaction as overt action (linguistic or non-linguistic) or beha-
viour, and
b) some functional-communicative approaches of classroom language as “conversation” (Commu-
nicative Theory, Conversational Analysis, Micro-Ethnography of Speech)
may obscure interactional data, hiding the process of building both discourse and knowledge in clas-
srooms. This hiding effect is due to the theoretical focus and to the selection of phenomena, as well as
the view of language, interaction and learning that underlies these theories.
In this sense, an analysis focused on discourse and knowledge built from linguistic exchanges in
classrooms must take into account the interactional discursive flow. This focus implies the adoption of
not only a dialectical view of teaching and learning, but also a discursive view of classroom language.
I am following as a theoretical basis a Vygotskian (socio-historical) view of teaching and learning that
includes a Bakhtinian theory of discourse and utterance as an adequate view of linguistic and discursive
aspects of classroom language involved in the teaching-learning process. Also, some ideas and concepts
developed by the Educational and Didactic team of Geneva University (specially Schneuwly & Dolz ideas)
are taken into account to discuss didactic transposition and application at regular elementary school of
the Vygotskian and Bakhtinian concepts.
As Vygotsky sustains, the strictly human facts of development are built from the children insertion
in social institutions (e.g., family, school etc.), which works through social and interpersonal inte-
ractions. The human being appropriates (internalizes) these interactions and patterns of (language)
action through the discourse of others that becomes his/her own discourse. That is to say, this takes
place through semiotic mediation.
In a Bakhtinian view, social discourse and its appropriation by the human individual is a dialogic and
polyphonic phenomena: it works always in the dialogue with the discourses of others and with voices
from the past, present and future. This way, each language act or utterance takes from other utterances
its forms and meanings and is addressed to other possible utterances, in specific social conditions of
communication. It is exactly because of the diversity of these (social and material) conditions of human
interaction and activity that the utterance is a concrete reality of discourse that is never the same.
There are differences of time and place of communications; differences of participants and their mutual
social appreciation; differences of subject matters and goals of the interaction. Nevertheless, the dialec-
tical and historical dynamics of the social conditions of communication themselves, made of permanence
and change, creates relatively stable types of utterances: speech genres. Although speech genres
are flexible and change permanently in socio-historical spheres, they are also relatively stable, when the
social conditions of discourse production remain stable.
Therefore, the Speech Genre Theory of the Bakhtinian Circle (Volochínov, 1929a; 1929b; Bakhtin,
1 I am grateful to FAPESP (São Paulo State Foundation to Research Support) and to CNPq (National Council of Scientific and Technological Development)
concerning to the financial support of this research project.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 626


1953/1986a; 1986b) mentions the extreme heterogeneity of oral and written speech genres. Some
of those genres occur in social spheres of everyday human relations (daily dialogues and face to face
interaction), named primary (simple) speech genres. Some others, that arise in more complex,
public and comparatively highly developed and organized cultural communication – often written and
monologized -, are called secondary (complex) speech genres (in art, science, politics, and so on).
According to Bakhtin (1953/1986a: 62), the secondary (complex) speech genres, “during the process
of their formation, they absorb and digest various primary (simple) genres that have taken form in un-
mediated speech communion”.
Bernard Schneuwly (1994) also suggests that, thinking about language acquisition and learning, we
can see speech genres as a “tool kit” or a “mega tool” for language construction. That is to say, com-
plex semiotic mediational tools that imply by themselves the construction of other less complex tools of
language and thought. For the author, the speech genres – implying the construction of their thematic,
compositional, linguistic and discursive aspects – are powerful tools for teaching/learning language
and may be taken as the organizational unit of curricula and didactic progressions in the elementary
school, as indicated, for example, at the National Curricular Parameters (PCNs) for the teaching of the
Portuguese Language nowadays in Brazil.
If secondary (complex) speech genres can absorb and transform primary (simple) ones and if we can
think of speech genres as mega tools to construct genres themselves, discourse and language, we can
outline the following research questions about classroom interaction:
• Which are the typical speech genres that are characteristic of what we name “classroom interac-
tion”? Are they really primary (simple) speech genres?
• Which of them function as tools to build other secondary (complex) speech genres?
• Which is the discursive process present in the building these secondary genres?
• Which voices can be heard through these classroom genres and interactions?
Classroom interaction
Research on classroom interaction points to an interactional pattern characterized as an asymmetrical
relation between teacher and student (where the teacher controls not only the speech distribution in the
classroom (participation pattern and turn taking) but also interactional discursive organization, in terms
of introduction and maintenance of themes and topics. Sinclair & Coulthard (1975), Mehan (1979) and
Cazden (1989) identify the IRE organization (Initiation-Response-Evaluation) as the canonic structure
that regulates turns exchange in the classrooms, and which, according to Moita-Lopes (1996: 98), “places
the Initiation typically in the teacher’s mouth: he/she asks the questions that require answers he/she
already knows, controls the discourse and, therefore, detains the power.”
Is this the way that researchers commonly characterize the so-called “collective class”. In a previous
paper (Rojo, 1997), analyzing a collective dialoged interaction in a 2nd grade classroom, I point out that
it’s most interesting aspect is that this “structure of participation”, apparently collective and not dyadic
(Erickson, 1996), discursively shows a great effort of regulated dyadic reduction (regulated dialogue)
made by the participants, like in oral public dialoged genres (assembly, meeting etc.). First of all, the
teacher creates a partner represented as collective, which he/she can interact with “dyadically” (peo-
ple, class, we, us) . But this “us” is not really dyadic (inclusive, in Ducrot (1987) terms). Often it is a
non-inclusive (nor collective) “we”, e.g., it does not include the teacher him/herself – as we can see in
the utterance “Let’s put our hands up?”, a gesture that never includes the teacher -, placed in another
level of the communicative situation. In these utterances, “we” means “you”. And sometimes, it is not
functional, and leads the teacher to other mechanisms of dyadic reorganization of classroom speech:
reorganization of turns, designation of the speaker and so on. In these occasions, the teacher establishes
small dialogues with privileged partners, including only a small group of students. Dolz & Aebi (1998)
call this process “star shaped dialogues”.
Obviously, we can consider that, in these occasions, the other students may (or may not) maintain a
position of active comprehension and (internal) reply (Bakhtin, 1953/1979a) and, then, they remain as
partners of the dialogical interaction, even if it cannot be empirically verified. That is what guarantees
the class deployment.
Finally, the IRE pattern and the asymmetrical dialoged structure question-answer are rarely broken
in these “star shaped dialogues”. Nevertheless, Rojo (1997) argues that this type of conversational and
micro-ethnographical analysis of classroom interaction has little to say about what type of knowledge is
constructed and by what (ZPD) means: it has little to say about the teacher’s intentions and about what
is the role of language and of discourse in these processes of construction of knowledge. In this sense,
it may be interesting to pursue a discursive analysis of the interactional patterns already identified.
Classroom interaction and speech genres theory
According to the Bakhtinian definition of primary and secondary speech genres, classroom interaction
constitutes genres difficult to classify. On the one hand, classroom interactions happen at a dialogised
face-to-face situation, which, to Bakhtin (1953/1979a), are typical of primary speech genres. But, on
the other hand, the school, and specially the classroom, is not really a private and everyday life sphere
of social interaction; on the contrary, it is a relatively public discursive sphere, mediated by writing,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 627


where monological forms of speech genres circulate frequently. Public spheres of discourse, writing and
monologized discourse are related to secondary discourse genres.
To begin with, classroom/school sphere is the child’s first situation in a public place of social interac-
tion. Nevertheless, even being a social place more public than private (e.g., compared to the family),
it is a restricted “public” place, where interlocutors are familiar and are reduced to the teacher and the
other students. It seldom presents pedagogical situations where the child must face unknown audiences
(other groups, head masters, guilds, more public institutional situations). Maybe it is exactly this inter-
mediary situation of school discourse production — between the private and the public spheres — that
determines its intermediary compositional forms of discursive genres — between primary and secondary
speech genres – identified as IRE pattern.
Putting it in another way, on the one hand, the face-to-face situation in a small interactive group in a
communicative sphere not so public and related to everyday life (different from an assembly, for instan-
ce) may determine compositional forms and linguistic marks typical of primary speech genres, as turn
taking and deictic. On the other hand, this same communicative condition – classroom interaction – is
projected to public social situations (to educate the student to act in public situations) and it is also the
social place to construct academic or scientific knowledge, writing and many oral and written secondary
speech genres. These factors may determine, in classroom interaction, the appearance of secondary
speech genres – oral and written, monologized -, which will be appropriated by the learner.
These reflections invite us to see the dialogued IRE structure in a way different from the usual one:
some question-answer exchanges in classroom interaction may be not only a previously known sketch of
confirmation of the power of the teacher, but also may lead the learner to construct new and secondary
speech genres and, by means of that, construct new knowledge.
To explore this point of view adopting the discursive approach I will analyse and discuss some exam-
ples of classroom interaction in science classes, collected both in a private and a public fundamental
(primary) school (2nd and 3rd grade, respectively), in São Paulo, Brazil2. The private school is considered
a highly qualified and innovative one and its population consists of upper class children. Public schools in
Brazil are usually viewed as traditional and not well qualified and children of lower classes enrol in them.
As we will see, even if there are differences concerning the way the teacher conducts interaction, there
are no major differences, in this sample, concerning the circulation of speech genres, between classroom
interactions in the public and the private school.
Classroom interaction in science classes: from dialogue to encyclopaedic entries
Here, I will discuss two classes of science, in 2nd and 3rd grade, in a private and a public school, res-
pectively, both in São Paulo, Brazil. In both classes the teacher is revising and reorganizing contents
previously worked with the students. In the first class (private school, 2nd grade, 8-9 years old children),
the teacher is revising content about animals (reptiles and amphibious) – previously seen by the stu-
dents in a teaching picture –, in order to make the students write a scientific (“dissertative”) text about
the topic. In the second (public school, 3rd grade, 9-10 years old children), the teacher is reorganizing
content about types of ground and its composition – previously read by the students in a teaching book
–, in order to prepare them for an examination.
Analysing the segments of interaction bellow, we can see that most of the utterances in the dialogued
interaction – under the format IRE (question-answer) – are expositional and, in terms of speech genre,
they are mostly definitions or explanations, typical of encyclopaedic entries, but constructed with the
participation of the students, dialogically. Lets see some examples:
Science class 1, private school, 2nd grade:
(1) Tr: What do you call “environment”?
St: Environment? The place where they live.
Tr: And which is the environment, the habitat, the place where the turtle leaves? The, the...
St: Water.
Tr: And the tortoise?
St: The ground.
Tr: The ground. (...)
(2) St: I didn’t know that the turtle ahn… weight... weight about 780 kilos .
Tr: Some turtles that live in the ocean do. They are heavy. And how can they swim, if they are so
heavy?
St: Because the water reduces its weight.
Tr: Because the water reduces its weight. Then, they can move around.
St: How is the weight reduced?
Tr: The impact of the body in the water. Do you swim? Don’t you float well without sinking? It ha-
ppens when you manage to put your body in harmony with the water. See what I mean? (...)
2 This sample was collected at two consecutive researches - supported, respectively, by CNPq (National Council of Scientific and Technological Development)
and FAPESP (São Paulo State Foundation to Research Support) -, the first taking place in a private school and the second in a public one, but both aiming
investigate and describe classroom interactions.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 628


Concerning the linguistic marks of empirical dialogue, in a first discursive level3, we can see: the dyadic
turn taking between teacher and students; the question/answer structure (even if it is not the case of
IRE pattern in segment (2), as we will see); the deictics (“I/you”) marking an implicate position in the
discourse production situation. All these properties are typical of primary speech genres. But, in another
embedded plan or level of discourse, maybe more important, there are properties typical of secondary
speech genres: disjointed referenciality (“the environment, the turtle (they, it), the tortoise, water, the
impact of the body in the water”), related to the specific themes and semantic fields of the scientific
content (reptiles and amphibious); the present tense (present of definition, in Benvenistian terms) also
marking disjunction (“name, live(s), are, reduces, move around”). The discourse takes place as “me/you”,
“here/now”, talking about another disjointed world: “the world of turtles, their habitat and locomotion”.
Notice that when explanation arises (“The impact of the body in the water. Don’t you swim? Don’t you
float well without sinking?”), the teacher goes back to the primary compositional forms.
However, the most interesting facts4 in that kind of so-called “conversational” interaction are the
intense work – sometimes, unconscious; sometimes, conscious – by teacher upon the paradigmatic and
syntagmatic axes of language, in order to construct a compositional form and a style more adequate to
a secondary expositional speech genre, such as an encyclopaedic entry, which, as a matter of fact, is
the speech genre of the texts that the teacher will read to the students, later, when he/she is modelling
their text production.
Syntagmatic axe
Paradigmatic axe the environment φ φ
the place where they live
the environment is water
the habitat
the place where the turtle leaves
or
Syntagmatic axe
Paradigmatic axe The turtle φ weight about 780 kilos
Some turtles that live in the ocean are heavy

Apparently, the teacher does the work upon the paradigmatic axe consciously in order to choose the
most adequate vocabulary for this secondary speech genre; one can see that because later, referring to
written texts, she will say: “This is when faeces and urine are expelled. Pay attention to the words we
must use: we do not use “to pee” and “ to shit”, because we are writing a scientific text. So: ‘faeces,
urine, back members, front members, reproduction, nourishment, locomotion…’ You will learn it to use in
a dissertative text about an animal, OK?” I cannot say the same about the work upon the syntagmatic
axe.
As I mentioned above, what happens in the public school class, in terms of construction of speech
genre, is not different from what takes place in the private school. The example is clear:
Science class 2, public school, 3rd grade:
(1) Tr: What is the composition of the ground?
St: Ground and rocks…
Tr: The ground is composed of clay, what else?
St: Sand, humus…
Tr: Humus and…
Sts: [limestone!
Tr: Limestone! Children, clay, that is to say, mud (the teacher shows a piece of clay), OK? Sand,
everybody knows… Sand is here… inside… We will make an experiment and then you will see… Well/
and… lime-stone, OK? This is the part of the formation of the…
Sts: [ground. (…)

(2) Tr: Ok now, look in the book! Which is the first picture of ground? Sandy ground. What
do we have a lot of in sandy ground?
Sts: Sand!
Tr: Sand. But, we call that…
Sts: [clay.

3 See the concept of “feuilleté ennonciatif”, in Haller & Schneuwly (1996).


4 As I pointed out (Rojo, 1997), analysing social science classes.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 629


Tr: Is it good ground for growing plants?
Sts: No!!
Tr: If I sow in there, will everything grow?
Sts: No!!
Tr: What is this type of ground like? It is…
St: Dry.
Tr: Dry. It is dry. Now, something else we will see during the test… something I have in this bottle
(the teacher shows a bottle)… This is a plastic glass, cotton and sand. So, we will pour water in it, to see
what happen with this type of ground. Tell me: what is happening? (the teacher takes the bottle with
water and begins to pour it in the glass). I’m pouring the water, aren’t I?
Sts: Yes.
(The teacher shows the glass with sand to the students)
Sts: It goes down, the water goes down very quickly.
Tr: Very quickly. It lets the water go down easi…
Sts: [ly.
Tr: So, I can say that this ground is perme…
Sts: [meable.
Tr: Permeable, because it lets…
Sts: [the water go down easily.
St: Like if we had nothing…
Tr: Exactly. Look! It is gone! (The teacher shows the glass again) Ok? What type of ground is this?
Sts: Sandy ground.
Tr: Sandy, perme…
Sts: [permeable.
Tr: It lets the…
Sts: [water go down easily.
Tr: Right! Do you have any doubt s? (...)

Here, we also have an empirical dialogued segment of classroom interaction; if we leave out the marks
of primary dialogic speech genres, we will have something like a encyclopaedic entry as: “Ground for-
mation: The ground is formed of clay, sand, humus and limestone. Sandy ground is formed essentially
of sand, which is not a good land to grow plants, because it is dry. This means that water goes down
easily in permeable ground. Clay ground…” and so-on. This is, perhaps, the kind of teaching text the
students have read.
So, the main interactional differences between public and private school discourses in this sample do
not have to do with speech genres, but they are related to how the teacher conducts the interaction in
a more internal persuasive or authoritative discourse.
Classroom interaction in science classes: from heteroglossia and social languages to authoritative
discourse
Cardoso (2000: 17), following Bakhtin on dialogism in discourse, emphasizes the relevance of the
concepts of heteroglossia and polyglossia to analyse science classroom interaction. She says:
“Analysing classroom discourse, we can recognise in it another concept developed by Bakhtin:
the process of dialogic reconstruction words undergo in order to be appropriated by
a speaker. According to Bakhtin, they are first perceived as “others’ words” and then
transformed as “one’s own words”. Therefore, other’s utterances appear in one’s own
utterance. That is what Bakhtin called voices, which will be expressed in different ways:
they may preserve the expressivity of the other; they may assume the expressivity of the
new speaker; the speaker may modify them, consciously or not. But, in this process they
inevitably enter in contact with other voices as well as with all the utterances of a social
group are always in permanent contact.”

To Cardoso, these different ways the speaker has of integrating the voices of others to his/her own
utterance have also different effects upon the active comprehension and reply of audience. According to
Bakhtin (1934-1935/1981: 342), there are two categories of words:
“…in one, the authoritative word (religious, political, moral; the word of a father, of adults,
and of teachers, etc.) that does not know internal persuasiveness, in the other internally
persuasive word that is denied all privilege, backed up by no authority at all and is fre-
quently not even acknowledged in society (not by public opinion, nor by scholarly norms,
nor by criticism), not even in the legal code. The struggle and dialogic interrelationship of

Proceedings XI International Bakhtin Conference 630


these categories of ideological discourse are what usually determine the history of an indi-
vidual ideological consciousness.”

Also deeply involved in this discussion about different ways of dialogism and voices in conflict insi-
de an utterance are the Bakhtinian’s notions of social language and heteroglossia. To Bakhtin (1934-
1935/1981: 291),
“at any given moment of its historical existence, language is heteroglot from top to bottom:
it represents the co-existence of socio-ideological contradictions between the present and
the past, between differing epochs of the past, between different socio-ideological groups
in the present, between tendencies, schools, circles and so forth, all given a bodily form.
These “languages” of heteroglossia intersect each other in a variety of ways, forming new
socially typifying “languages””.

What arises when the teacher works upon the paradigmatic and syntagmatic axes – as I mentioned
above – is two (or more) voices and two (or more) social languages in conflict in the utterances: the voice
of daily language usually brought by the student (like in “The place where it leaves”); the intermediary
voice of the teacher (like in “the environment”); the voice of science (like in “the habitat”, example (1)
above). According to Bakhtin, utterances of the teacher like:
Tr: And which is the environment, the habitat, the place where the turtle lives?

or

Tr: Limestone! Children, clay, that is to say, mud (the teacher shows a piece of clay),
OK? Sand, everybody knows… Sand is here… inside… We will make an experiment and then
you will see… Well/ and… lime-stone, OK? This is the part of the formation of the…

are phenomena of hybridism of social languages in a concert with dialogic and heteroglossic voices.
What makes all difference in the two samples shown here (private and public school) is the way the
teacher integrates the voices of others in his/her own utterance. In the first sample (examples (1) and
(2)), the teacher listens to the students first, even in IRE pattern (example (1)), and then integrates
in a hybrid utterance their voices, his/her own and the voices of science (“And which is the environ-
ment, the habitat, the place where the turtle lives? “). Especially in example (2), we can see that
the students can comment and even ask questions that will be answered by the teacher, inverting the
traditional IRE pattern.
On the contrary, in the second sample (examples (3) and (4)), the IRE pattern is always maintained
and the voice of the students is only heard to complete the teachers/book/science voices. The students
behave as ventriloquists’ dummies of the teacher, only completing the teacher’s utterances; only in the
social language (science’s) accepted by the teacher and represented by the voice of the teaching material
in the classroom. That is to say: the appreciation and value that the teacher gives to the scientific word
is an authoritative one – that may not be internally persuasive for the students. Authoritative discourse
is to be repeated, not to be questioned. Again, in Bakhtin’s words:
“It is not a free appropriation and assimilation of the word itself that the authoritative dis-
course seeks to elicit from us; rather, it demands our unconditional allegiance.” (Bakhtin,
1934-1935/1981: 343).

REFERENCES
Bakhtin, M. M. (1953/1986a) The problem of speech genres. In C. Emerson & M. Holquist (eds.) Speech Genres
and Other Late Essays (M. M. Bakhtin), pp. 60-102. Austin: U.T.P.
_____ (1986b) The problem of the text in Linguistics, Philology, and the Human Sciences: An experiment in philo-
sophical analysis. In C. Emerson & M. Holquist (eds.) Speech Genres and Other Late Essays (M. M. Bakhtin),
pp. 103-131. Austin: U.T.P.
_____ (1934-1935/1981) Discourse in the novel. M. Holquist (ed.) The Dialogic Imagination – Four Essays by
M. M. Bakhtin, pp. 259-422. Austin: U.T.P
Cardoso, F. M. (2000) Algumas Relações Possíveis entre o Discurso (da Sala e sobre a Sala de Aula) e o
Processo Ensino-Aprendizagem (de Ciências). Dissertação de Mestrado. SP: LAEL/PUC-SP.
Cazden, C. (1989) Classroom Discourse. The Language of Teaching and Learning. Portsmouth, N. H.: Heine-
mann.
Dolz, J. & C. P. Aebi (1998) Perguntas de professor. E as perguntas dos alunos? Mimeo. Tradução de Roxane Helena
Rodrigues Rojo.
Ducrot, O. (1987) O Dizer e o Dito. Campinas: Pontes.
Haller, S. & B. Schneuwly (1996) “Feuilleté énonciatif et mise en bouche”. Le métalangage dans un trilogue pour
répondre à une lettre de lecteur. AILE, 8: 129-151.
Mehan, H. (1979) Learning Lessons: Social organization in the classroom. Cambridge, MA: H. U. P.
Moita-Lopes, L. P. (1996) Interação em sala de aula de língua estrangeira: A construção do conhecimento. In L. P.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 631


Moita-Lopes (1996) Oficina de Lingüística Aplicada, pp. 95-107. Campinas: Mercado de Letras.
Rojo, R. H. R. (1997) Enunciação e interação na ZPD: do ‘non-sense’ à construção dos gêneros de discurso. Anais
do Encontro sobre Teoria e Pesquisa em Ensino de Ciências: Linguagem, Cultura e Cognição - Reflexões
para o Ensino de Ciências: 95-109. Belo Horizonte, MG: Fe-UFMG/UNICAMP.
Schneuwly, B. (1994) Genres et types de discours: considérations psychologiques et ontogénétiques. In Y. Reuter
(ed) (1994) Les Interactions Lecture-Écriture, pp.155-174. Bern: Peter Lang.
*SEF/MEC (1998) PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais, Língua Portuguesa, 3º e 4º Ciclos do Ensino
Fundamental). Brasília, DF: SEF/MEC.
Sinclair, J. M. & R. M. Coulthard (1975) Towards an Analysis of Discourse: The English used by teachers and
pupils. London: Oxford University Press.
Volochínov, V. N. (1929a) Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método socio-
lógico na ciência da linguagem. SP: Hucitec, 1981.
_____ (1929b) La construcción de la enunciación. In A. Silvestri & G. Blanck (eds.) Bajtín y Vigotski: La organi-
zación semiótica de la consciencia, pp. 245-276. Barcelona: Anthropos, 1993.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 632


Bakhtin vs. Formalistas Russos: contrastes e confrontos

Piedade de Sá

UFPE

Introdução
No começo do século 20, um grupo de teóricos russos reunidos em torno da Sociedade para o es-
tudo da linguagem poética (Opoiaz) postulava que o objeto da ciência literária devia ser o estudo das
particularidades específicas da obra literária, que a distinguiriam das demais. Afirmavam esses teóricos
que o texto literário era auto-suficiente - daí a recusa em explicá-lo por meio de causas que lhe fossem
estranhas. Coincidentemente, na mesma época em que os formalistas concebiam o texto literário como
destituído de valores outros que não os específicos do discurso literário, considerando-o como objeto
independente do ambiente extraliterário, Bakhtin desenvolvia “uma teoria da comunicação na qual a
personalidade do autor, os valores éticos e o contexto social” são elementos definidores de um texto,
inclusive de um texto literário. (Clark/Holquist, 1998:209)
As críticas formuladas por Bakhtin/Medvedev em El método formal en los estudios literarios se dirigem
sobretudo à concepção defendida pelos formalistas de que a linguagem poética se opunha à linguagem
quotidiana, independia de qualquer contexto extralingüístico, sendo, portanto, autônoma, o que levava,
conseqüentemente, à valorização do estudo imanente do texto.
Procuraremos aqui tecer algumas considerações sobre o modo em que a linguagem quotidiana e a
linguagem poética, em particular, eram conceituadas pelos formalistas e por Bakhtin, tentando mostrar
os aspectos em que eles se contrapõem, uns e outro, e aqueles em que se aproximam.
A especificidade da linguagem poética
O estudo imanente do texto apregoado pelos formalistas explica em grande parte a oposição de
Bakhtin ao Formalismo Russo, uma vez que na perspectiva bakhtiniana a linguagem sempre se dirige
a alguém.
“Toda palavra - escreve Bakhtin (1995, p.113) - serve de expressão a um em relação ao outro,
isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre
mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlo-
cutor.”
Esse dialogismo preconizado por Bakhtin como inerente à natureza da linguagem é, segundo ele, o
que deve ser considerado nos estudos literários.
Já Eikenbaum (1999:37) chamava a atenção para o fato de que, orientando os seus estudos para
a lingüística, os formalistas se opunham aos trabalhos anteriores dos teóricos da literatura, cujo inte-
resse se concentrava na história da cultura ou da vida social. Os trabalhos dos formalistas, embora se
aproximassem da poética pela natureza do seu estudo, baseavam-se noutros princípios e tinham outros
objetivos.
Para caracterizar o objeto de arte literária, partiam os formalistas do princípio de haver uma oposi-
ção entre língua poética e língua quotidiana, por eles consideradas como sistemas lingüísticos distintos.
Consideravam sua principal tarefa demonstrar a especificidade da linguagem literária.. É o que afirma
Eikenbaum (1999:36-37), como se pode ler no passo seguinte:
Apresentávamos e apresentamos ainda como afirmação fundamental que o objeto da ciên-
cia literária deve ser o estudo das particularidades específicas dos objetos literários que os
distinguem de qualquer outra matéria, [...]
Para a concretização desse princípio de especificação, acrescenta Eikenbaum, foi necessário
confrontar a série literária com uma outra série de fatos, que, contendo elementos comuns,
tivesse, contudo, uma função diferente. O confronto da língua poética com a língua quoti-
diana ilustrava este processo metodológico. (p.37)

A esse respeito, salienta Bakhtin (1994, p. 151) que esse método não permite saber “em que
consiste a língua poética, mas o que a diferencia da língua prática e quotidiana. Na análise dos forma-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 633


listas só se evidenciam as diferenças.”1
Embora Bakhtin (1994:150) censure os formalistas por terem estabelecido as especificidades da
linguagem poética, sem antes discutirem a “legitimidade” e a “licitude” de tal conceito, admite a sua
legitimidade estritamente para fins de análise do modo em que esses estudiosos definiam a linguagem
poética.
Explica Bakhtin (1994:151) que, para os formalistas, na linguagem prática, o sentido ou conteúdo de
uma comunicação constitui o elemento principal; na linguagem poética, ao contrário, o sentido, se não
de todo ignorado, converte-se num meio, ao passo que a expressão é o que mais importa.
As palavras de Chklovsky, citadas por Eikenbaum (1999:44), parecem justificar a crítica de
Bakhtin:
A língua poética difere da língua prosaica pelo caráter perceptível da sua construção. Podemos
captar ou o aspecto acústico, ou o aspecto articulatório, ou o aspecto semântico. Por vezes,
não é a construção, mas a combinação das palavras, a sua disposição, que é perceptível.

E acrescenta:
A criação de uma poética científica exige que se admita à partida a existência de uma língua
poética e de uma língua prosaica cujas leis são diferentes, idéia provada por múltiplos fatos.
Devemos começar pela análise dessa diferença. (Grifo nosso)

Observa Bakhtin (1994) que a vagueza do conceito de especificidade não permite que os formalistas
precisem em que ela consiste realmente. “A linguagem poética, isolada pelos formalistas não incorporava
a estrutura da obra literária, mas se tornara o próprio objeto da investigação”.
Bakhtin (1994:158) também acusa os formalistas de desconhecerem os problemas concernentes
ao conceito de linguagem quotidiana, considerando-a como “algo evidente em si mesmo”, quando, na
verdade, são os problemas, de uma e de outra, os mesmos.
É preciso considerar, lembra Bakhtin (1994:159), que “não existe um determinado padrão de lingua-
gem quotidiana e prática”, uma vez que os enunciados produzidos em situações reais se constituem de
maneiras distintas, tendo em vista os diferentes propósitos e as diversas esferas da comunicação quoti-
diana e social. Assim, para ele, a linguagem quotidiana tomada pelos formalistas russos como ponto de
partida para determinação das especificidades da linguagem poética é uma “construção arbitrária”.
Outro aspecto sobre o qual recai a crítica de Bakhtin (1994:139-140) consiste em terem os formalistas
transferido para o estudo das obras - que eles concebiam como estruturas poéticas fechadas - as pecu-
liaridades da linguagem poética e os procedimentos de seu estudo, em vez de estudarem “as estruturas
poéticas” e “as funções estruturais de seus elementos.”
Bakhtin (1994:146) também contesta a compreensão da língua como “sistema de linguagem poética”,
uma vez que essa concepção requer que se conceba a língua como uma estrutura poética fechada”, o
que, consoante Bakhtin, não se poderia admitir, visto que, conforme postulado em El método formal
en los estudios literarios (p.147), “A língua adquire características poéticas só numa estrutura poética
concreta. Essas características não pertencem à língua em sua potencialidade lingüística, mas à estrutura
poética, qualquer que seja sua manifestação.”
Caráter niilista do método formal
Em sua apreciação crítica do Método Formal, Bakhtin (1999:151) se detém em examinar o que ele
denominou “tendência niilista” dos formalistas russos. Ressalta, com razão, o teórico que a linguagem
poética é definida pelos formalistas não pelo que ela é, mas pelo que ela não é. Por outras palavras, os
formalistas empenharam-se em mostrar as diferenças entre a linguagem poética e a linguagem quotidiana
ou prática, mas não conseguiram definir os elementos caracterizadores da linguagem poética.
Salienta Bakhtin (1994:152) que a
enumeração das diferenças casuais entre a linguagem poética, por uma parte, e a prática e
quotidiana por outra, se baseia no pressuposto tácito de que o importante são essas dife-
renças. Mas, semelhante premissa não pode ser reconhecida como evidente. Com o mesmo
direito pode-se afirmar o contrário: que o que importa são as semelhanças, enquanto as
diferenças carecem totalmente de importância.

As duas asserções são igualmente arbitrárias.


De fato, os principais conceitos do Método Formal são formulados por meio de construções negativas.
Assim, por exemplo, Eikenbaum (1999:45) reitera a importância que o estudo das diferenças repre-
sentava para o método formal, dizendo que os formalistas concentraram esforços não sobre o estudo de
uma forma determinada ou da construção de um método particular, mas tinham como principal objetivo
fundamentar a tese de que deveriam ser estudados os traços específicos do objeto da arte literária. Para
a realização desse propósito, tornava-se necessário “partir da diferença funcional entre a língua poética
e a língua quotidiana.” (Grifamos)
1 As citações extraídas de El método formal en los estudios literarios foram traduzidas por nós. Sempre que nos referirmos a essa obra citaremos apenas
Bakhtin.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 634


O estudo das diferenças era, conforme os teóricos do Formalismo, fundamental para a resolução de um
importante ponto da poética teórica, qual seja a especificação da linguagem poética. Colocando-se numa
posição diametralmente oposta, Bakhtin (1994:152) rebate o pressuposto dos formalistas dizendo:
Não é possível decidir sobre a importância da semelhança ou dessemelhança da linguagem
poética e da linguagem quotidiana, antes que seja conhecido “o conteúdo essencial” da
linguagem poética, totalmente independente de qualquer semelhança ou diferença. Só é
possível determinar qual a importância e significação de uma e de outra com relação a outros
sistemas lingüísticos, quando for conhecida a “essência da palavra poética.”

Além disso, “essas diferenças e negações”, salienta Bakhtin, tomavam por base uma linguagem prática
e quotidiana “inventada”, escolhida aleatoriamente dentre as inúmeras possibilidades existentes.
De fato, em nenhum momento de sua obra teórica, tiveram os formalistas a preocupação de
especificar que tipo de material por eles denominado linguagem não-poética se opunha à linguagem
poética. Por outras palavras, não se preocuparam os formalistas em apresentar as bases sobre as quais
se apoiavam para definir a linguagem quotidiana
Observa Bakhtin (1994:153) que um exame cuidadoso das características negativas da linguagem
poética apontadas pelos formalistas, revela que todos os traços visam a um único propósito,“que as
palavras de Chklovsky definem perfeitamente: ‘tornar perceptível a estruturação da linguagem’”. Assim,
todas as características negativas servem ao mesmo propósito, qual seja, a desautomatização da per-
cepção ¾ ponto de vista também compartilhado por Tinianov ¾ de modo negativo, como por exemplo,
“eliminando” o sentido.
Segundo os formalistas, “a linguagem poética se define por levar os leitores a sentirem a forma, a
perceberem as palavras de novo, por meio do retardamento dos processos normais de percepção, tor-
nando a linguagem desautomatizada.
Diz Chklovski, em A ressurreição da palavra”, (apud Eikenbaum,1999:42) “se quisermos dar a definição
da percepção poética e até artística, será esta a que se impõe inevitavelmente: a percepção artística é
essa percepção em que sentimos a forma (talvez não só a forma, mas pelo menos a forma)”
A esse respeito, considera Bakhtin (1994:154) que é possível inferir “uma conclusão importante e
fatal para o formalismo: se a linguagem poética somente difere da quotidiana e prática no que se per-
cebe em sua estrutura, graças aos procedimentos negativos [...] resulta ser, como tal, uma linguagem
absolutamente improdutiva e não criativa.”
Como decorrência, a linguagem poética se caracteriza como o inverso da linguagem prática, e, des-
tituída de poder de criação, torna-se parasitária dela, sentencia Bakhtin. E esclarece:
Se, como pretendem os formalistas, a linguagem quotidiana e prática também se apresenta
como carente de toda potencialidade criadora, a linguagem poética vem a ser parasita de
outro parasita. (Bakhtin, 1994:163)

Em El método formal, Bakhtin rebate os principais conceitos do Formalismo, a saber, dentre outros,
linguagem transracional, desautomatização, estranhamento, deformação. outros.
No que concerne à desautomatização, julga Bakhtin (1994:154-155) que, se, como pretende a doutrina
formalista, é pelo desvio da norma que se dá a transformação da imagem comum numa nova, então “a
linguagem poética só pode distanciar e desautomatizar aquilo que já foi criado em outros sistemas da
linguagem. Por si mesma não cria estruturas novas.” Além disso, seria preciso esperar que uma constru-
ção da linguagem quotidiana se tornasse uma estrutura habitual e automatizada, para que a linguagem
poética a desautomatize, tornando-a perceptível. A observação de Bakhtin levanta um problema que
nos parece de difícil solução: se a desautomatização é uma característica da linguagem poética, como
explicar a existência de formas desautomatizadas na linguagem prática, quotidiana? Por outro lado, como
desautomatizar o que não foi criado?
Para ilustrar o seu ponto de vista, Bakhtin (1994, p.155) oferece um exemplo, retirado de um texto
de Chklovsky, e do qual transcrevemos um fragmento: “[...] o ritmo da prosa é importante como fator de
automatização. Mas o ritmo da poesia não é assim. [...] o ritmo poético consiste no ritmo interrompido
da prosa [...]”, em que se evidencia o caráter negativo dos princípios pregados pelo Formalismo, e, de
certa forma, a dependência da língua poética com relação à quotidiana ou prática. Daí conclui Bakhtin
(1994:155), talvez com um pouco de exagero, que, para os formalistas, a “única contribuição da arte é
a infração.” A poética teria por objetivo sistematizar as infrações.
O estranhamento, outro termo muito utilizado na primeira fase do Formalismo, e com o qual Chklovsky
e outros formalistas procuravam distinguir a linguagem literária da linguagem quotidiana e prática, leva
a conceber uma língua poética autônoma, em que inexiste a relação da arte com qualquer realidade
extralingüística.
A crítica de Bakhtin/Medevdev vai recair exatamente sobre essa descontextualização; sobre essa
“redução imanentista que retira toda significação ideológica ao conceito e, com isso, toda possibilidade
de entender a unidade interna da obra como processo orgânico carregado de sentido”, como escreve
Monroy (1994:.21-22), no Prólogo a El método formal en los estudios literarios. De fato, em sua ten-
tativa de caracterização da linguagem poética, os teóricos do Formalismo Russo não só não negam a

Proceedings XI International Bakhtin Conference 635


importância do contexto no estudo da obra literária, mas o consideram prejudicial à compreensão do
objeto literário.
Consoante Bakhtin (1994:156), nos estudos que se desenvolveram em torno do Método Formal
houve
uma tentativa de interpretar as características e as diferenças negativas da linguagem po-
ética como se fossem legitimas abstrações científicas, isto é, uma tentativa de declarar como
uma abstração científica convencional o que [...] os próprios formalistas haviam proclamado
como a essência da poesia: não como um procedimento convencional empregado por um
cientista, mas como um procedimento artístico criado pelo próprio poeta, procedimento que
pela primeira vez poetiza a palavra.

Considera Bakhtin (1994:156- 157) totalmente errônea essa concepção, visto que “nenhuma abstração
científica é levada a cabo mediante a pura negação.” E conclui com estas palavras:
Assim, pois, para os formalistas, as definições negativas da linguagem poética não são
abstrações, mas negações dogmáticas. Não se trata de uma abstração convencional de
alguns aspectos do objeto estudado, mas de uma negação incondicional da existência de
tais aspectos no próprio objeto.

No entanto, em “A teoria do ‘método formal’”, escreve Eikenbaum (1999:33):


o que nos caracteriza não é o ‘formalismo’ enquanto teoria estética, nem uma ‘metodologia’
representando um sistema científico definido, mas é o desejo de criar uma ciência literária
autônoma a partir das qualidades intrínsecas da matéria literária. A nossa única finalidade
é a consciência teórica e histórica dos fatos que dependem da arte literária como tal.

Aliás, Bakhtin (1994, p.137) julga infeliz a própria denominação de ‘método formal’, visto que,
para os formalistas, o método é “um valor dependente e secundário”, devendo ajustar-se “aos traços
específicos do objeto literário.” Assim, os formalistas incorriam no erro de menosprezar a questão do
método, adotando, na maioria dos casos, uma metodologia ingênua.
Nas conclusões à análise metodológica do problema da linguagem poética, Bakhtin (p.150) escreve
que “ os formalistas construíram uma teoria da linguagem poética como um sistema lingüístico especial,
sem que dispusessem para isso de nenhuma base metodológica, e depois procuraram formular as leis e
as características ‘puramente lingüísticas do poético.’”
Em “A teoria do ‘método formal’”, publicada em 1925, Eikenbaum (1999:50) faz uma espécie de
defesa do Método Formal e dos formalistas:
É natural que os formalistas, nos anos de polêmica contra esta tradição [refere-se Eiken-
baum à escola simbolista] se esforçassem para mostrar a importância dos procedimentos
construtivos e descartassem tudo o que fosse motivação. Quando se fala de método formal e
da sua evolução, é preciso ter sempre em conta o fato de muitos princípios postulados pelos
formalistas nos anos de discussão intensa com os seus adversários terem uma importância,
não só como princípios científicos, mas também como slogans que, numa finalidade de pro-
paganda e de oposição, se acentuavam até o paradoxo. Não ter em conta este fato e tratar
os trabalhos da Opoiaz de 1916 a 1921 como trabalhos acadêmicos, é ignorar a história.

Buscando esclarecer o cerne do trabalho dos formalistas, diz Eikenbaum (1999, p. 62):
Tornou-se evidente - diz Eikenbaum -, mesmo para pessoas estranhas à Opoiaz, que a
essência do nosso trabalho consistia num estudo das particularidades intrínsecas da arte
literária, e não no estabelecimento de um “método formal”, imutável; [...]

Ao comentar essa passagem, considera Bakhtin (1994, p.123) que, em termos gerais, o resumo
feito por Eikenbaum é correto, mas alega não ser possível concordar com as conclusões a que ele che-
gou a partir do descrito, porquanto, a seu ver, a informação contida na exposição feita pelo formalista
leva necessariamente à conclusão de que é preciso uma revisão “radical e impiedosa” dos princípios e
slogans ‘não apenas científicas’ que constituem os alicerces do Formalismo. Mas, com alguma ironia,
conclui Bakhtin, se forem eliminados os “‘slogans, que em sua finalidade de propaganda e oposição se
acentuavam até o paradoxo’, restaria muito pouco dos princípios científicos. Faltaria justamente o espírito
formalista em toda a sua especificidade.” Ademais, assinala Bakhtin (1994, p. 123), seríamos necessa-
riamente levados à conclusão seguinte:
Se durante anos de luta e polêmica os formalistas deixaram de lado ‘todo o resto’ para de-
monstrar a importância dos procedimentos estruturais como ‘motivação’, agora é de todo
necessário recuperar ‘todo o resto’, isto é, voltar a pôr no primeiro plano da investigação
toda a profundidade do sentido ideológico

Em várias passagens de El método formal en los estudios literarios, Bakhtin faz referência à imutabi-
lidade das concepções dos formalistas. No entanto, em seu artigo intitulado “A Teoria do Método Formal”,
publicado em 1925, escrevia Eikenbam (1999, p.71), a modo de conclusão:

Proceedings XI International Bakhtin Conference 636


Não temos uma teoria que se possa expor sob a forma de um sistema imutável e acabado.
[...]

No momento em que formos obrigados a confessar que temos uma teoria que explica tudo,
que dá resposta a todos os casos do passado e do futuro, e que, por esta razão, não tem
necessidade de evolução e nem é capaz dela, seremos ao mesmo tempo obrigados a con-
fessar que o método formal terminou a sua existência, que o espírito de pesquisa científica
o abandonou.

Nada obstante a sua formulação clara e incisiva a respeito da evolução do Método Formal, não con-
seguiu Eikenbaum livrar os formalistas do comentário mordaz de Bakhtin (1994, p.136):
Não importa que os formalistas assegurem que o método formal evolui. Não é certo. Evolui
cada um dos formalistas individualmente, mas não seu sistema. [...] Uma evolução efetiva
e completa dos formalistas será a morte definitiva do formalismo.

No entanto, em algumas passagens do El método formal en los estudios literarios, Bakhtin (1994,
p.164) refere-se à evolução do método dos formalistas russos, embora, assinale ele, isso só ocorre no
plano teórico. É o que se pode ler na citação a seguir:
Em sua evolução posterior, os formalistas reconheceram em parte, por si mesmos, o caráter
fortuito da oposição entre a linguagem prática e a poética. Contudo, até o momento não
tentaram tirar alguma conseqüência desse reconhecimento.

E, mais adiante, diz Bakhtin (1994, p.165) que não obstante Eikenbaum afirmar em seu artigo “O
estilo oratório de Lenin”, de 1924, a necessidade de uma revisão dos conceitos de língua poética/língua
prática, “continuou defendendo obstinadamente as velhas posições em sua totalidade, embora nem ele
mesmo pensasse que tinham uma base sólida.”
Na passagem a seguir, escrita nos primeiros anos da década de 70, quando o calor das polêmicas
estaria arrefecendo, escreve Bakhtin (1992:362-363):
Por muito tempo concedeu-se uma atenção especial ao problema da especificação da litera-
tura. Cumpre reconhecer que uma especificação estrita é totalmente alheia à nossa tradição
científica no que ela tem de melhor. [...] Tomados de entusiasmo pela especificação, alguns
deliberadamente ignoraram os problemas de interdependência e de interação entre os di-
ferentes campos da cultura, esquecendo as mais das vezes que as fronteiras entre esses
campos não são absolutas, que cada época as traça a seu modo; ignoraram que não é dentro
de campos fechados em sua própria especificidade, mas por onde passa a fronteira entre
campos distintos que o fenômeno cultural é vivido com mais intensidade e produtividade.

Essas palavras não parecem muito diferentes das que escreveu Eikenbaum, em 1925.
No entanto, o ponto de vista de Bakhtin (1992:413) a respeito da especificidade da linguagem literária,
expressa na década de 20, é reafirmado nos últimos anos, como se pode comprovar nesta entrevista
concedida a Novy Mir, na qual o teórico resume as razões da sua discordância dos princípios do forma-
lismo, e aponta alguns aspectos positivos
Minha posição ante o formalismo? Tenho uma compreensão diferente da especificação.
Ignorar o conteúdo leva a uma ‘estética material’ (a crítica dele que fiz em 1924); não à
‘fabricação’, mas à criação (um material sempre proporciona apenas um ‘produto fabricado’);
uma incompreensão da historicidade e da consecução (percepção mecânica da consecução).
O valor positivo do formalismo: novos problemas e novos aspectos na arte; o novo, em suas
fases iniciais, as mais criativas do seu desenvolvimento, sempre adota formas unilaterais
e extremas.

Bakhtin vs formalistas: pontos de encontro


A despeito dos inúmeros aspectos em que, pelo menos aparentemente, Bakhtin e os formalistas russos
entram em desacordo, é possível encontrar alguns pontos de convergência entre o autor e os formalistas.
É certo que nunca há uma concordância completa, visto que Bakhtin não deixa de acrescentar alguma
ressalva ou restrição a suas observações positivas. Assim, por exemplo, salienta a importância da ênfase
dada pelos formalistas aos aspectos lingüísticas dos textos literários, uma vez que a concepção da lin-
guagem a partir de um enfoque lingüístico pode ser proveitosa à compreensão dos aspectos técnicos da
criação literária. Mas adverte que é preciso não esquecer que esses aspectos são apenas parte da obra
poética, como elemento material que entra na sua produção. (Clark/Holquist, 1998:212)
Assinala, com razão, Schneiderman (1979:20) que considerada de forma superficial torna-se difícil de
compreender a oposição de Bakhtin aos formalistas russos. Segundo Schneiderman, “o livro Problemas
da Poética de Dostoiévski acompanha em linhas gerais justamente aquilo que é preconizado nas famosas
teses” defendidas pelos formalistas. De fato, apesar de toda a rejeição à concepção de imanência do
texto postulada pelo método formal, é um estudo imanente da obra de Dostoiévski, que inicialmente faz
Bakhtin, para depois passar ao estudo de poética histórica.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 637


A noção de ‘dominante’, tão cara aos formalistas russos, embora não fosse privativa deles, foi usada
várias vezes por Bakhtin. No segundo capítulo de Problemas da poética de Dostoiévski, por exemplo a
palavra dominante aparece dez vezes
Vejamos um exemplo colhido aleatoriamente: “A autoconsciência enquanto dominante da construção
da imagem do herói requer a criação de um clima artístico que permita à sua palavra revelar-se e auto-
elucidar-se.” (Bakhtin, 1997:64)
A própria teorização bakhtiniana é um desenvolvimento de um tema que já vinha sendo objeto de
estudo dos formalistas russos.
Embora Bakhtin, aponta Shneiderman ( 1979:24), não omitisse que outros antes dele tivessem tra-
tado do problema do dialogismo, não se percebe pela simples leitura de suas obras a importância que o
dialogismo adquirira nos trabalhos dos formalistas.
No capítulo primeiro do livro Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin faz uma resenha crítica
de autores que trataram, antes dele, de conceitos desenvolvidos em seus estudos sobre a polifonia em
Dostoiévski. Faz referência aos estudos de Chklovsky sobre Dostoiévski, nos seguintes termos:
Do ponto de vista da nossa tese, constitui interesse especial o livro de Victor Chklovsky, Prós e Con-
tras. Notas sobre Dostoiévski.
Chklovsky parte da tese apresentada pela primeira vez por Leonid Grossman, segundo a qual é jus-
tamente a discussão, a luta entre vozes ideológicas que se constitui na base mesma da forma artística
das obras de Dostoiévski, na base de seu estilo. O livro de Chklovski, afirma Bakhtin, tem importantes
observações referentes aos problemas da poética de Dostoiévski. Do ponto de vista da nossa tese, são
interessantes duas observações.
A primeira refere-se a algumas peculiaridades do processo artístico e aos esboços do plano de Dostoi-
évski: a natureza polifônica da obra de Dostoiévski e a “inconclusibilidade de princípio dos seus diálogos
[...]
É igualmente interessante a segunda observação de Chklovsky, relativa à natureza dialógica de todos
os elementos da estrutura romanesca em Dostoiévski.” (Bakhtin, 1997:39-41)
Temos aqui o reconhecimento, de Bakhtin de que Chklovski o antecedeu pelo menos no que concerne
à noção de dialogismo, embora, é certo, sem lhe conceder muita relevância.
Com o passar dos anos, lembra Schneiderman (1979), os formalistas foram se aproximando em cer-
ta medida das concepções bakhtinianas.” Se considerarmos que Bakhtin aparece no cenário intelectual
russo quase na mesma época em que os formalistas russos lançaram as suas famosas e discutidas teses,
e que participou ativamente das discussões em torno desses trabalhos, torna-se mais compreensível a
presença na obra de Bakhtin de muitos dos princípios defendidos pelos formalistas, como dialogismo,
polifonia e paródia, por exemplo. Daí a estranheza dos estudiosos da obra bakhtiniana diante da omissão
quase sistemática do nome desses teóricos nos livros do autor de Problemas da poética de Dostoiévski.
“Tem-se aí, pode-se dizer, observa Schneiderman (1979:23), uma curiosa manifestação de dialogismo,
bem no sentido bakhtiniano: ele pode não citar Tinianov, mas um desenvolvimento das idéias deste, ora
como aceitação, ora como debate velado, está presente em muitas páginas que escreveu.
No Prólogo a El método formal en los estudios literarios, observa Monroy (1994:31) que o diálogo que
Bakhtin manteve com os formalistas “não negava ¾ muito ao contrário ¾ suas importantes contribui-
ções ao estudo da estrutura e materialidade do texto, embora chamasse a atenção para as inaceitáveis
exclusões a que submetia a criação artística.”
As omissões observadas no livro sobre Dostoiévski foram, por assim dizer, compensadas, nos anos
setenta, quando Bakhtin, em entrevista à revista Nóvy Mir, publicada posteriormente em Estética da
criação verbal (1992, p. 361), refere-se a teóricos da literatura, citando nominalmente muitos formalistas
russos, que considera pesquisadores sérios e talentosos.
Considerações finais
Assinala Todorov (1981, p.60) que “a relação de Bakhtin com o formalismo foi feita de participação
e de oposição.” Em El método formal en los estudios literarios, Bakhtin ressalta as inúmeras inconsis-
tências, lacunas e falta de clareza da doutrina formalista, mas também faz uma apreciação global muito
positiva, do trabalho dos formalistas. Assim é que ao cabo de suas considerações críticas a respeito da
concepção de linguagem poética defendida pelos formalistas russos, escreve:
Em geral, o formalismo desempenhou um papel fecundo. Soube expor à apreciação os pro-
blemas mais importantes da ciência literária, e isto de uma maneira tão aguda que agora
já é impossível contorná-los ou ignorá-los. Não importa que esses problemas não tenham
sido solucionados. Mas os mesmos erros, a coragem e a coerência de seus erros, contribuem
tanto melhor para chamar a atenção sobre os problemas assim postos.

Por isso, seria incorreto subestimar o formalismo ou criticá-lo fora de seu próprio terreno. (Bakhtin,
1994, p.264)
Foi de fato complexa a relação entre Bakhtin e os teóricos do Método Formal: por um lado, ele par-
tilha muito dos princípios defendidos pelos formalistas, por outro, a eles se opõe, sobretudo no tocante
à concepção das peculiaridades da obra de arte literária. Esse intercâmbio iniciado na década de vinte,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 638


resultou, como assinalam Clarck e Holquist (1998, p. 218) “num conjunto de possibilidades ainda vi-
vas a interagir reciprocamente.[...] A história que se seguiu plasmou uma relação entre os dois lados
na qual é cada vez mais evidente que Bakhtin e os Formalistas forneceram um ‘outro’ particularmente
gratificante para um e outro.”
Referências bibliográficas
BAJTIN Mijail; Medvedev, Pavel Nikolaievich. El método formal en los estudios literarios: Introducción crítica a uma
poética sociológica. Madrid, Alianza Editorial, 1994.
BAKHTIN, M.M. Problemas da poética de Dotoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997
________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992 p. 362-363)
________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1995.
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998
EIKENBAUM, B. “A teoria do método formal”. In: Teoria da literatura –I. Textos dos formalista russos apresentados
por Tzvetan Todorov. Lisboa: Edições 70, 1999. p. 32-62
MONROY, Amalia Rodríguez. Prólogo a El método formal em los estudios literarios. In: BAKHTIN, Mijail (Pavel N.
Medvedev). El método formal em los estudios literarios.Madrid: Alianza Universidad, 1994.
TODOROV, Tzvetan. Michaïl Bakhtine: le principe dialogique, suivi des Écrits du Cercle de Bakhtine. Paris: Seuil,
1981.
SCHNEIDERMAN, Bóris. Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979
SCHNEIDERMAN, Boris. Turbilhão e semente. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
TODOROV, Tzvetan. Michaïl Bakhtine: le principe dialogique, suivi des Écrits du Cercle de Bakhtine. Paris: Seuil,
1981.
TODOROV, Tzvetan. (org.) Teoria da Literatura-I. Textos dos formalistas russos apresentados por Tzvetan Todorov.
Lisboa: Edições 70, 1999. p.29

Proceedings XI International Bakhtin Conference 639


El cronotopo del encuentro y los espacios urbanos de la transgresión
en Colombia: una perspectiva ética desde la obra de Bakhtin, Levinas y
Benjamin.

María Teresa Salcedo.

Mi conferencia se entiende como una contribución al tema “Latin American Cultures: Borders and
Thresholds” en el contexto de la XI Conferencia Bakhtin. A través de la historia de vida de un guerrillero
adolescente, este texto explora el problema del encuentro y del rostro del migrante, como expresiones
representativas de lo urbano y de la exterioridad trágica de nuestra modernidad, en general. La interac-
ción entre lo oficial y lo no oficial en este texto es asimilado al rostro humano como forma de espacio
y tiempo, es decir como cronotopo del encuentro. Y aquí es donde el texto realiza conexiones entre los
cronotopos artísticos en la obra de Bakhtin, el trabajo sobre la epifanía del rostro en Emmanuel Levinas
y la noción de iluminación profana en el trabajo de Walter Benjamin.
Desde una narrativa en la que aparecen de manera alternativa imágenes de la guerra en las montañas
y del recorrido por las calles de Bogotá (ciudad capital de Colombia), el encuentro de estas imágenes
es analizado como rostro, iluminación profana y así mismo como borde entre lo urbano y lo rural. Lo
que no se puede definir de un encuentro, igual que de un rostro, y algo que aplica a la manera como
entendemos el problema de la identidad en la ciudad, puede ser comparado a la experiencia surrealista
de los encuentros y desencuentros entre Nadja y André Bretón, similar a la experiencia antropológica
de encarar el consumo de objetos y la mirada sobre las cosas mientras caminamos por las calles y nos
bajamos de los buses que nos traen por primera vez a la ciudad.
Este ensayo es un abordaje al tipo de interacciones que Bakhtin plantea como “dialógicas” desde la
ciudad y desde la percepción de lo moderno en una ciudad latinoamericana como Bogotá, cuyas expre-
siones de nuestra relación con la modernidad y el desarrollo en general deben entenderse también desde
un tratamiento del exceso y de lo no oficial como “texto” a la manera de Bakhtin.
Y este texto narrado por un guerrillero, que es el texto del cronotopo del encuentro entre el campo
y la ciudad, es un encuentro que se dá en la intersección y fusión de ejes temporales y espaciales que
tienen una expresión narrativa y una imagen en la representación del migrante y de lo no oficial como
punto de convergencia de marcadores espaciales y temporales en la ciudad. El cuerpo del guerrillero
y su historia aparecen como la nueva expresión y experiencia de lo urbano. Pero es una experiencia
“heteroglósica” de la ciudad en la que se encuentran múltiples voces que son un decir de lo rural y de la
guerra, un decir de otras partes que construyen la ciudad.
Al mismo tiempo, se escuchan las voces del desdén y de la negación hacia el migrante y el ilegal,
que yo señalo como crueldad y como expresiones modernas del rechazo al sufrimiento y en contraste
nos encontramos con la tecnología, las nuevas mercancías y las nuevas formas de seguridad como una
forma de refugiarnos de la inminencia de esa crudeza.

Te vuelves hacia el otro como te diriges hacia un ob-


jeto
cuando tu ves una nariz, ojos, frente, una barbilla, y
puedes describirlos.
La mejor manera de encontrar al Otro es ni siquiera
notar el color de sus Ojos!
_______, _______, Levinas, Ethics and Identity.

PRIMER CONTEXTO: LA VOZ DEL CAMPO REPRESENTADA EN LA CIUDAD.


LA LLEGADA DEL MIGRANTE.

“De ahí, yo tenía como 15 años, trajeron un revólver, y nos dieron de a once tiros y enseña-
ron a manejarlo, cada pieza cómo se desarmaba, y ahí ya trajieron armas largas, y así fue
transcurriendo el tiempo, y uno no se dá cuenta, cuando uno se dá cuenta ya está metido
en el cuento, ya que después que un trote, gimnasia, y así ...... nos devolvimos al área de

Proceedings XI International Bakhtin Conference 640


nosotros la que nos pertenece que es el Séptimo, del Yaguari a la Macarena, de la Macarena
donde opera el Primero hasta Miraflores, entonces a mí me iban a trasladar al Cincuenta y
Tres, y yo dije yo para ese frío no me voy ni por el berraco, y en ese traslado caímos 15,
había unos que no se querían venir, yo no me quería venir, se llama Gentil el comandante
del frente, trasládeme para otro lado, pero yo para allá no me voy, y entonces dijo, no es
que es una orden y uno no puede incumplir una orden, y entonces le entra insubordinación,
consejo de guerra, le entran muchas vainas a uno, yo le dije no, entonces nos aislaron y
por la tarde a las seis, que todo el mundo comía, al aula, charla política, y nos sacaban a
nosotros al aula y ahí yo hablaba con toda la gente, toda la gente la iba mucho conmigo,
entonces yo hablaba y le decía que no me quería ir, pues no se vaya que si le hacen consejo
de guerra nosotros no lo dejamos matar, toda la gente me dijo y yo dije listo, no me voy a
ir, como a los 4 días no nos habían desarmado ni nada, nos mandó a llamar el camarada y
uno por uno nos iba llamando y a lo último nos llamó a todos y nos empezó a dar charla,
ustedes se van de aquí a otro frente, a otro lado les van a dar otra oportunidad, pueden lle-
gar a un rango bien alto, una cosa y la otra, y yo dije no, prefiero quedarme aquí, así como
estoy pero de aquí no me voy, no es que no me voy entonces ahí fue cuando me dijo es que
es una orden, le dije no es que no me voy, me dijo quítese la fornitura y aquí con su equipo
y váyase para allá, me mandó sacar del aula, entonces yo cogí el fusil y el equipo y se lo
mandé a los pies. Le dije yo no ingresé por un fusil, ni de pronto que me gustó una vieja
sino que yo ingresé por la lucha políticamente y lo que pasa es que no me quiero trasladar,
pero me sacaron y ya me dejaron a mí y ya se rezagaron todos los que ya no se querían ir,
se los sacaron cargados, se los llevaron, quién sabe hasta donde sería que se los llevaron y
ahí había desarmados y había otra gente, del Bloque Oriental o sea donde el Mono Jojoy y
de ahí vinieron y se los llevaron, yo de los 15 fuí de los únicos, ahí la gente se regalaba, me
decían no, iban y hablaban, que no, que fijo tenía que ser yo, entonces fue uno al último
le lambió tanto al viejo que dijo váyase usted por él y me quedé, a los 3 días yo andaba,
había, eso ya no era frente, eso era una columna, porque un frente se compone de 80 a 60
personas, y ahí habíamos 360 personas y esa la habían repartido en dos pelotones”.

La forma y el contenido de este texto, que presento en esta Conferencia dedicada a Bakhtin, es la
voz, el cuerpo, el encuentro con lo urbano, y mi diálogo con un joven ex-guerrillero, todas experiencias
narrativas que señalan cómo “encontrarse” es parte de una rutina cultural que es lo urbano mismo,
despreocupado de expresiones y lógicas ciudadanas, y que es en el hábito del encuentro con personas
y en las disposiciones corporales que desarrollamos para asumir procesos de cambio cultural, como la
ciudad adquiere una expresión espiritual y onírica en las diferentes maneras como se chocan y se de-
sencuentran objetos y personas, provocando esa experiencia de inaprensión en la que durante un sueño
nos sentimos por primera vez adultos ó por primera vez pertenecientes a algo y que relacionamos con
haber llegado a una ciudad.
Los lectores y quienes escuchen este texto se encontrarán con una experiencia antropológica en la que
lo que Mikhail Bakhtin elaboró como “cronotopo” es ni más ni menos que lo inaprensible del encuentro
con otros y con la modernidad en la ciudad. De ahí la importancia que tiene presentar esta conferencia
en el contexto de un Borde y Umbral en una ciudad latinoamericana como Bogotá.
A Bakhtin no es ajeno este encuentro de experiencias narrativas y sensoriales como antropología y
experiencia moderna y como “Poética de la Expresión” (Todorov, 1984). La inaprensión como elemento
artístico también esta presente en lo que él declara como su “considerable insuficiencia, insuficiencia
no de pensamiento sino de su expresión, de su exposición” (Bakhtin en Todorov, 1984). Y esto es un
aspecto fundamental en el desarrollo posterior de este ensayo, pues la propia expresión del antropólo-
go es insuficiente desde el punto de vista de la conciencia del ser con respecto a otras conciencias en
ámbitos urbanos específicos.
La ciudad y esa relación borrosa e inaprensible entre el campo y la ciudad también esta presente como
exceso y trasgresión en el trabajo de Bakhtin sobre Rabelais, en donde el mercado, el hablar tosco, los
excesos gastronómicos y la risa aparecen como el centro de lo no oficial, en contraste con la oficialidad
de los palacios, las iglesias y las instituciones, todos estos los centros de una urbanidad que se ha des-
plegado históricamente como el centro de una conciencia de un centro que domina a la periferia.
¿Por qué la ciudad en América Latina es importante para producir y entender una textualidad de la
relación entre lo oficial y lo que lo trasgrede como representación literaria de la ciudad, de lo que está
afuera del autor, de su alteridad y de los elementos de la conciencia externos a nosotros y propios de
los otros, que son necesarios para nuestra conclusión como seres?
La propuesta que se presenta en este ensayo está relacionada con una percepción de lo que nos
transciende [“transgredient”] (Bakhtin, 1979) con relación a una alteridad transgresiva, en este caso un
joven ex-guerrillero que ha dejado las filas de la guerrilla para venir a vivir a la ciudad. Nuestra mirada
sobre él como migrante desplazado, que es una mirada tan indiferente como despectiva es una mirada
que necesariamente niega esa exterioridad de nuestros elementos de la conciencia, y es esta negación
la que aparece como cruel en nuestra vida cotidiana, pero que aparece anestesiada por nuestro hábito
de negarnos esa exterioridad que es nuestra relación con el orden.
Los encuentros y sus cronotopos en Bogotá están vinculados a narrativas de familiaridad con la

Proceedings XI International Bakhtin Conference 641


crueldad, con nuestra mirada sobre el dolor y desprendimientos fuertes ó tenues, como cuando se parte
después de un encuentro ó como cuando un joven guerrillero deja las filas de la guerrilla.
SEGUNDO CONTEXTO: LA VOZ DEL ETNOGRAFO, LA VOZ DEL GUERRILLERO: EXOTOPIA, HETERO-
GLOSIA E ILUMINACIÓN PROFANA.
Ahora es cuando habla el etnógrafo y relata el contexto en el que se encuentra con los jóvenes guer-
rilleros en un espacio público que ha sido el centro de sus anteriores investigaciones urbanas. Más que
un encuentro con otros ilegales que deben ser rechazados, se trata de un nuevo diálogo con la calle
como “actividad creativa” (Worringer en Todorov, 1984) , esa “desposesión del ser en el mundo externo”
que sólo se alcanza a través de la empatía con otros diferentes a uno, y que Bakhtin llama “exotopia”
(Bakhtin, 1975 en Todorov). La primera forma de exotopia o identificación se percibe a través de un
diálogo con las nuevas diferencias de una calle en Colombia, La Calle del Cartucho, conocida por sus
enormes índices de marginalidad e ilegalidad. Son los marginales recicladores de cartón, los ilegales
vendedores y consumidores de drogas y los nuevos y viejos desplazados de la violencia los que marcan
una primera relación con “la pérdida del ser” (Bakhtin, 1975).
Y una segunda etapa es el “encontrarse consigo mismo fuera” del mismo texto de la calle, de una
etnografía de la calle en donde el espacio y los encuentros son los cruces de caminos que producen “ilu-
minaciones materialistas y antropológicas” (Benjamin, 1986). Y es aquí donde el encuentro del rostro
como epifanía, del rostro ilegal como iluminación profana ayuda a este posicionamiento de la exotopia
como un afuera que solo tiene sentido con respecto a un adentro epifánico.
El ex-militante que llega a la ciudad se diferencia del flaneur y del hombre de la multitud, en que llega
para no pertenecer a la calle, sino para ser él mismo signo de una forma de tránsito (Delgado, 1999).
No hace “parche”, ni color de “empastre”, que en argot significa un espacio en la calle que se ha vuelto
mancha por muchos años de ocupación (Salcedo, 2000), ni tiene elementos en el piso, tampoco escribe
en las paredes ni en el asfalto, pero en cambio es reconocido y no mirado y su reconocimiento se vuelve
una marca, poste, mojón o esquina. Así son Pacho, Edison y el otro amigo de dieciocho años, que solo
aparece como referencia en el diálogo.
Descubro que Pacho está acompañado cuando le digo que busquemos un café, yo me adelanto por
entre la calle curva y aparecen los dos apresurando el paso y diciendo que ellos no toman café, que agua
aromática. Entramos a la cafetería diagonal al Voto Nacional con asientos de plástico y barras metálicas en
la base, que obstaculizan la entrada y salida de los pies. Sitio privilegiado para entender lo que significa
un espacio público para un etnógrafo urbano: es donde el etnógrafo le debe preguntar las cosas más
importantes a sus informantes, delante de todo el mundo, sin importar que lo estén oyendo, ni que las
respuestas de sus informantes vayan a ser escuchadas. Algo así es esta tienda del Voto Nacional, donde
entrar es ser ya conocido, a mí desde la época en que realizaba trabajo de campo con recicladores y a
ellos como algunos de los muchos que llegan del monte al Cartucho.
Me encuentro con la cara de Edison: “Yo no sé”, dice Levinas, “si uno pueda hablar de la fenomeno-
logía del rostro, desde que la fenomenología describe lo que aparece. Y así también, me pregunto si uno
puede hablar de una mirada que se vuelve hacia el rostro, porque la mirada es conocimiento, es percep-
ción. Creo mejor que el acceso al rostro es directamente ético” (Levinas, 1985). Quintín Lame, frente
Séptimo, “Séptimo”, Agua Aromática, nosotros no tomamos café, no fumamos, no tenemos vicios. Ojos
cafés, elípticos, profundos, las manos sobre la mesa sin afanes, sin gestos, nudillos de huesos fuertes y
pronunciados, las manos hacen rostro con el agua aromática y la hierbabuena adentro. El pelo le crece a
lo punk como a los bachilleres que terminan de prestar servicio militar, y el cetrino de su piel, la confianza
del indio Quintín y la nostalgia del Vietcong: la paciencia del sobreviviente de la aldea bombardeada.
“.... entonces, pasé al guardia de tropa, ... Claudia dormida con una compañera, llegué y
la toqué y le dije quiubo ya nos vamos? Y le dijo a la otra, mmmhh, ella ese día regaló los
arneses, regaló la grabadora, regaló las pilas, aceite “yonson”, regaló todo lo que uno utiliza
allá, y nadie se imaginaba nada porque a Claudia le tenían mucha confianza allá, ¿y qué más
fue lo que regaló? Yo no me traje la pistola, no me traje nada, entonces cuando ya íbamos
saliendo, yo le dije tráigase la pistola suya y una granada y 80 tiros, nos juimos, no es que
andar de noche, yo tenía una linternita americana y una pilita triple. Ah, una puñaleta, no
era más, ah! Y la pistola y la granada que Claudia había traído y los 80 tiros, nos fuimos
y empezando nos tocaba evadir a un guardia, que el guardia estaba como dormido, no le
pasamos cerquitica o sea nosotros pasamos haga de cuenta por aquí y el guardia estaba
donde está ese carro, pasamos, caímos a un caño, nos fuimos por todo ese caño, por allá
encontramos una pica, salimos, se perdió la pica otra vez, qué embolatada, ya caímos a un
bajo, ya no miraba yo nada, o sea perdido totalmente, no sabía para qué lado era, por allá
íbamos saliendo cuando yo escuché que ¡alto! y me paré, cuando me paré nos habíamos
estrellado con un guardia, menos mal que ese guardia era de los chinos, de los nuevos, que
no tenía mas que 3 meses y tenía pura pistola. Donde fuera de los antiguos nos había jodido,
comienza el chino asustado que de pronto era el ejército con esa pistola a disparar, apenas
comienza a disparar pego yo el brinco y caí enrollado en un zanjón y hale a Claudia y bueno,
corrimos un momentico y le dije no corra, vamos a andar con cautela o sea como siempre yo
andaba y anduve y nos perdimos otra vez, a las 3 de la mañana, faltaban cinco pa’ las tres,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 642


salimos a un camino y ese camino era otra vez de otro guardia, pero nunca había estado
ahí, Claudia que sí había estado de relevante, dijo, este camino es de un guardia, entonces
el camino pasa acá, y nos salimos del camino como dos metros allá y nos asentamos ahí
en la tierra, faltan cinco pa’ las tres, no demora en pasar el relevante con el turno o sea el
nuevo turno que recibía y si estábamos nosotros ahí cuando pasaron, pasaron hablando
ahí, que ..... y yo traía el cepillo mío y fuí a cepillarme a un cañito, mandé la mano así pa’
sacar agua cuando miré así en el fondo del caño, rastros de bota y me quedo mirando así,
puro, toda esa montaña la habían volteado y yo traía un chícharo en esta rodilla derecha y
yo no podía andar por ese chúcharo, esa pierna hinchada, yo andaba con ese pie como si
fuera enyesado y Claudia me lo estripaba, qué era lo que no me hacía, por allá ya estaba
sino que ellos nos habían prendido una emboscada, esto es el bordo de la montaña y toda
la gente estaba regada por el bordo de la montaña y nosotros en lugar de salirnos pa’ fuera,
nos metimos fué más pa’ dentro por allá en una montañita yo ya estaba el pie que no podía,
me senté y estiré el pie, descansando, afiebrado, sin comer, mojados, de todo, picado de
los zancudos, cuando yo escuché, tan! Tan! palitos, me agaché así pa’ mirar por debajo de
los árboles y ahí venía uno por ahí andando suavecitico, él venía así y nosotros salimos así
contrarios, salimos, cayó un aguacero, corté unas hojas de platanillo, nos descampamos
tocaba pasar una carretera y ahí si es que cómo es que vamos a pasar la carretera, si en la
pasada de pronto lo miran a uno,

La expresión trágica que aparece en esta narración se refiere a lo que aparece en el lugar de la aflicción,
que no es llanto ni sangre sino un texto imposible de intervenir sino es con los textos de los encuentros.
Y así, quiero proponer con Walter Benjamin, un símil entre los encuentros y desencuentros urbanos y la
ráfaga de imágenes que articulan el encuentro de espacios, memorias, vigilias, experiencias de percep-
ción, cuerpos, rituales y sueños en la clase de imagen dialéctica conocida como “iluminación profana”.
Benjamin entiende por iluminación profana a una experiencia que supera a la iluminación religiosa y que
no reduce la experiencia onírica a la experiencia narcótica, sino que como André Bretón en Nadja, es una
experiencia que está más cerca de las cosas de las que está cerca Nadja, que cerca de ella misma.
“¿Quién soy? Si sólo por una vez tuviera que confiar en un proverbio, entonces talvez todo
se reduciría a saber ¿quién me obsesiona?” (Breton: 1960)

Ser ¿quién es uno? Y ser todas esas formas y lugares en donde uno no está en la ciudad, porque es
eso lo que persigo, esa forma de la ciudad que es la sustitución de personas por auras, por representa-
ciones de la memoria, por objetos encontrados en el piso y por luces y puertas que se encienden y se
abren a nuestro paso, es lo que considero el encuentro con otros en espacios urbanos.
El encuentro que se hace la pregunta ¿quién es uno? delante del objeto, persona y lugar hallados,
expresa una mirada sobre eso que es también una mirada sobre lo sustituído, sobre lo que se vá con
esa persona y sobre lo que no vino con ella.
Considero que esta iluminación que está cerca de lo que nos pasa en las ciudades es lo que Benja-
min reflexiona en su ensayo sobre “Crítica de la Violencia” como la relación entre los medios y los fines,
cuando la violencia son los medios para alcanzar fines justos o injustos, y cuando las instituciones temen
a estos medios en su capacidad de hacer y preservar leyes que gobiernen como violencia establecida
(Benjamin: 1986(a)). Estamos indisolublemente más cerca de los medios por medio de los que habitantes
de espacios y la policía ejercen la fuerza y no necesariamente padecemos el fin de esa violencia. Perci-
bimos el centelleo de cosas que apenas nos afectan, pasamos por el lado de cosas que acaban de pasar,
choques, palizas de policías, huelgas sindicales de las que apenas filtramos la tonada final en la Plaza de
Bolívar, prohibiciones que tratamos de padecer parcialmente y que se convierten en prohibiciones que
oficializamos, tales como pasarnos la señal del semáforo.
El vínculo que quiero elaborar entre la iluminación profana y la fuerza del desprendimiento tiene sen-
tido en el encuentro que realizamos los habitantes de los espacios urbanos de Bogotá con lo cruel, y con
la exterioridad trágica de las apariencias que se modernizan y al tiempo se arcaízan en tanto exhiben
todo su exceso (Maffesolí, 2001). Primero porque la violencia como la vivimos en las calles, que con-
sidera sólo a la estructura social y económica, está solamente considerando los mismos medios y fines
que cuando hablamos de formas de matar y de números de muertos, y segundo porque la iluminación
profana se refiere a los medios y estructuras inconscientes ó lo que yo quiero ver como encuentros con
lo no oficial y lo trágico en espacios urbanos.
El encuentro como iluminación es lo que está a punto de suceder (los medios) antes del golpe, el
maltrato y la muerte que damos, y este encuentro lo vivimos en el rostro de otros transeúntes recién
llegados a la ciudad y a quienes repudiamos no sólo a través de la violencia que ejerce el estado, sino
a través de las maneras como nos encontramos con ellos en las calles, formas de encuentro que para
Margaret Cohen en su libro sobre la Iluminación Profana en el trabajo de Benjamin, son “reencuentros”
con formas de vida cotidiana, objetos, tecnología e imágenes que ya han sido deseadas, soñadas ó vivi-
das como una “aplicación de nociones psicoanalíticas de la historia a la historia colectiva para desplazar
una visión lineal ó mecánicamente casual del proceso histórico y romper la distinción entre infra-supe-
restructura, apelando a las fuerzas libidinales que las permean” (Cohen: 1993).
Estos reencuentros, como los que se dan en las calles en donde tienen lugar los proyectos de desarrollo,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 643


son espacios alegóricos en los que las mercancías y escenarios urbanos sirven a Benjamin para repre-
sentar el potencial revolucionario del encuentro entre imágenes y los procesos que las hicieron posibles
para cambiar, entender y maniobrar el curso de la historia hacia un “verdadero estado de emergencia”
(Tesis VIII de Filosofía de la Historia). Pero estos procesos ya han tenido lugar en el inconsciente de esta
Calle del Progreso, y el papel del encuentro es volver a representar el daño, el trauma ó la catástrofe
en el rostro de esos otros indeseados, desplazados, vendedores ambulantes, oprimidos, ex-guerrilleros
ó transeúntes.
El encuentro con estos rostros debe entenderse, siguiendo a Cohen, desde las fuerzas libidinales, lo
inaprensible, lo inexplicable de lo que sucede antes que estos encuentros ocurran. ¿Cuáles eran las calles
por las que ellos transitaban antes de encontrarse con nosotros? ¿Cómo están ellos más cerca de los
sitios por donde nosotros caminamos, que cerca de nosotros? ¿Dónde hemos visto antes estos rostros?
¿Y acaso los lugares que Nadja había acabado de dejar no son esos en donde decimos que sucede la
lucha de clases representada no solo por el desalojo a la fuerza de vendedores ambulantes y migrantes
de la violencia, sino por el encuentro que tenemos con ese desalojado en otras calles y nuestro no tener
que ver nada con él?
Donde sea que los hayamos visto antes, por donde ellos pasen que nosotros ya lo hayamos hecho, en
un sueño, en una telenovela, en un noticiero radial, en una valla publicitaria, en un anuncio clasificado,
en algo que oímos al pasar, en algo que alguien nos contó, algo que creí leer en un aviso publicitario,
el lugar de reunión de la jauría de perros callejeros del barrio La Concordia, el caballo cargado de lava-
za, las multitudes de palomas, estos son los lugares de cruce de recuerdos, memorias involuntarias y
formas de narración que hacen del encuentro como iluminación profana “una inspiración materialista,
antropológica” (Benjamin, 1986(b)).
Esta inspiración antropológica dice Benjamin, está relacionada con experiencias de la vida cotidiana
en las que el lenguaje es el sitio donde sonido e imagen interpenetran sin darle oportunidad a la creación
de significado.
Nada más parecido a estas experiencias y a los sitios donde todos como transeúntes estamos cerca
de cosas, que la experiencia del encuentro tanto como la experiencia de la mirada sobre el rostro. El
encuentro inesperado en las esquinas entre personas, el encuentro de carretillas en calles semivacías,
la manera como las cosas se encuentran en el piso, la manera como los vendedores ambulantes inun-
dan y son expulsados del espacio público, y la manera como un joven que ha escapado de las filas de la
guerrilla llega a Bogotá a iniciar su vida como civil. Todas estas son al tiempo manifestaciones artísticas
y situaciones sociales, que interrumpen algo parecido a un rostro ó al encuentro de dos rostros, y lo que
propongo es que esta clase de contingencia es similar a la manera como se dan los procesos de llegada
y de encuentro de la gente con espacios urbanos.
En este encuentro de la gente con la ciudad, con otros, con nosotros y con ¿quién soy yo? no hay
un afán por el significado sino más bien por la identidad con la contingencia, con el obstáculo, con el
accidente, con la oportunidad de escapar de la policía, con la necesidad de no ser identificado o con lo
que para Benjamin sería “una dialéctica de la intoxicación que percibe la destitución en las cosas, en la
arquitectura y en los objetos de la vida cotidiana y de la ciudad como el escenario donde esta destitución
puede ser transformada en experiencia revolucionaria” (Benjamin: 1986(b)).
TERCER CONTEXTO: UN DIÁLOGO ÉTICO SOBRE EL ROSTRO Y EL CRONOTOPO DEL BORDE.
Uno de los argumentos de este texto es que cualquier aspecto narrativo enunciado en la historia de
vida de alguien que ha estado en la guerra del campo ó de las calles, se reproduce y transforma en ilu-
minación profana en el momento en el que la narración alude a formas de interacción que recorren los
límites espaciales y temporales de una continuidad entre lo rural y lo urbano que no es estrictamente la
ciudad, sino el Rostro.
El referente teórico más inmediato al encuentro como “forma de tiempo” debemos buscarlo en el
trabajo de Mikhail Bakhtin sobre los cronotopos artísticos: el encuentro se dá en la intersección y fusión
de ejes temporales y espaciales que tienen una expresión narrativa: “en cualquier encuentro el marcador
temporal (en ese momento) es inseparable del marcador espacial (y en ese lugar)” (Bakhtin,1981).
Las márgenes se combinan con los encuentros, refiere Bakhtin en su elaboración del cronotopo del
margen, pero además su expresión más significativa es una “crisis” ó una ruptura vital (Bakhtin, 1981).
Y en consecuencia, un momento importante de esta operación heteroglósica que planteo aquí con res-
pecto al carácter no-oficial y epifánico del rostro está relacionado con el cruce de un significado ético del
rostro planteado por Levinas y la contingencia de la narrativa del recorrido por las montañas del rostro
no-oficial en búsqueda de la ciudad. Se considera que las crisis que se producen son tanto para quien
expone como autor desde las calles de Colombia, las perspectivas fenomenológica, dialéctica y dialógica
de Levinas, Benjamin y Bakhtin, y así mismo las voces no-oficiales del campo y del conflicto en Colombia,
como para una audiencia acostumbrada a descartar lo no-oficial como incapaz de corresponder como
contraparte en un diálogo ético desde su propia configuración marginal.
Así pues, el diálogo entre Nemo y Levinas acerca del exceso ético del rostro nos introduce a momen-
tos narrativos en los que el rostro de los demás señala una decisión que se convierte no solo en ruptura
ética sino además en ruptura narrativa, y por lo tanto, nos conduce a proponer “la diferencia más que
la diversidad” (Bakhtin, 1981) de los contextos que opera la clase de heteroglosia urbano-rural-ético-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 644


conflicto-borde-rostro, que aquí planteamos:
“(Philippe Nemo) Las historias de guerra nos dicen que es difícil matar a alguien que te mira
fijamente. (Emmanuel Levinas) El rostro es significación y significación sin contexto, quie-
ro decir que el otro en la rectitud de su rostro no es un personaje dentro de un contexto.
Comunmente uno es un personaje ... todo lo que está en el pasaporte de uno, la manera
de vestir, de presentarse. Aquí al contrario el rostro es todo significado. Tú eres tú. En este
sentido uno puede decir que el rostro no es “visto”. Es lo que no se puede volver un con-
tenido capaz de ser abarcado por el pensamiento. Es aquí que la significación del rostro lo
hace escapar del ser, como correlato de conocer. Al contrario, la visión es una búsqueda de
adecuación; es lo que por excelencia absorbe al ser. En cambio la relación con el rostro es
directamente ética. La cara es lo que uno no puede matar, o por lo menos cuyo significado
consiste en decir: no matarás” (Nemo, 1985: 86).

Significa “no-matarás”, pero solo puedo decir eso cuando tengo a alguien delante de mí en una rela-
ción de contingencia con el espacio. El rostro de una persona es el rostro de su espacio, y como tal es el
conjunto formado por el mobiliario urbano y la multitud que pasa, se aglomera, se dispersa en grupos,
en individuos y en parejas. Rostro es alguien mirando una vitrina y señalando cosas a través del vidrio,
rostro es la figura que hace la fila frente al banco, la figura del vendedor de colombinas y periódicos
recostado contra el poste del semáforo, es el reciclador abriendo la bolsa de basura y desparramando
materiales para reciclarlos. Rostro es cualquier objeto ubicado en un espacio urbano que pueda ser
convertido en extensión del cuerpo de un transeúnte ó de cualquier habitante de la ciudad, objetos de
uso cotidiano como sillas de madera, bolardos, así como objetos que vemos todos los días como vallas
publicitarias. Rostro se hace pasando por el frente, y haber pasado desde hace tiempo por esa esquina,
de tal manera que si vemos una fotografía del lugar lo reconocemos por habernos acostumbrado a hacer
rostro con la calle, con el andén, con el poste con la fachada del almacén ó con la soledad soleada del
acceso a un parque un domingo. Rostro es el movimiento brusco de una mano halando una cuerda en el
sueño y vuelto a ver en la mañana pasando por esa esquina. La diferencia de un rostro en la ciudad es
su encuentro con los espacios y las personas que lo hacen uno, irreconocible y contingente a la mirada
de los que pasan, a la mirada de los medios de comunicación y al cubrimiento del “velo de la multitud”
(Benjamin, 1969). La distancia de ese rostro con respecto a otros espacios de encuentro hace posible
su epifanía, su no estar donde otros configuran un rostro similar o diferente al mío, es lo que hace que
Bretón busque esos espacios donde Nadja acaba de estar pero en donde ella no está, y que no tienen
sentido si ella está.
Los bordes narran el encuentro en los espacios no-oficiales: Pasar por la Calle Novena, así me en-
cuentro con Edison: ahí está con su camisa de cuadros y su ex-servicio militar en el pelo creciéndole, de
espaldas, negociando algún cachivache. El saludo es muy serio pues cualquier sonrisa o gesto efusivo
resulta excesivo para su hermetismo, la situación en la que él está y la misma calle-entrada del Cartu-
cho. Cuenta que su amigo de dieciocho años estaba diciendo que se iba a volver para el monte y que
con seguridad lo había hecho, pues había viajado a Neiva, de donde él era. Hay más gente alrededor de
nosotros, con mochilas, anteojos y muy atentos a lo que hablamos. La atención para mí es muy notoria
en esa calle, donde ni la atención ni la mirada son importantes, y hacen parte del dominio de la seguridad
y de la policía. Los rostros de la atención hacen generalmente de la oreja un rostro, es la oreja la que
no sólo me mira a mí y a la situación en la que yo hablo con otros, sino que la oreja se posesiona del
dueño y hace girar su cuerpo hacia el sitio donde se encuentran los sonidos y las palabras que los otros
emiten. Así es en las calles, donde los transeúntes se inclinaban a escuchar lo que nosotros decíamos
caminando por la Séptima, en la calle del Cartucho, donde un cachivachero se acerca detrás de nosotros
y nos ofrece una bala y Edison, como frase extraída del Manifiesto Futurista de Marinetti, dice “calibre
32”, 200 pesos, y él mismo estirando su cuerpo y sus manos delante del puesto de cachivaches, se alarga
y mete una de sus manos dentro del delantal del encargado del puesto y saca una moneda de 200, se
asegura que el diseño precolombino corresponda a la numeración de la moneda como es común en la
calle, que la gente se toma su tiempo reconociendo las monedas, y luego se la entrega a esa mano que
de pronto apareció como rostro, detrás de nosotros ofreciéndonos una bala.
Todas estas expresiones de lo ilícito en público representan a miles de seres que se encuentran,
se escabullen y se arremolinan entre objetos reciclados, y toda la peligrosidad y transgresión de esta
calle, en la que un cuchillo no es más que un instrumento de comunicación con el valor de culto de un
objeto, cuando el objeto de culto es el rostro humano y la cortadura del cuchillo representa su valor de
exhibición, toda la peligrosidad de esta calle parece benigna comparada con el encuentro en la esquina
con un conocido ó desconocido, un contacto que despliega la crueldad de la separación y de la apertura
desde el primer instante.
“....... encontramos un puente, nos pasamos por debajo de un puente, pero no un puente
así como los que hacen sino un puente que casi pasamos así estrechitos y ya con hambre
entonces unas pepitas que se comen, entonces yo comencé a comer de esas pepas y Claudia
también estaba comiendo, ahí en el caño, estábamos ya en el puro potrero, cuando pasan
dos por la carretera, hablando tan, yo que los veo y apenas me quedaba quietico ahí en
el caño y pasaron y no nos vieron, y ahora pa’ la salida del caño sabiendo que esa gente
estaba por ahí regada, nos salimos del caño, avanzamos como 100 metros, nos metimos

Proceedings XI International Bakhtin Conference 645


en una mata, ahí nos quedamos hasta que se oscureció, como a las 7 de la noche salimos
a andar y andamos y andamos, nosotros para haber podido salir fué porque nunca iba yo
por un camino sino todo fué puro monte y tire uno cordillera, nos pasamos 3 cordilleras,
esa noche andamos como 500 metros buscando un caño que se llama Caño Yamó y allá
tumban las palmas y habían acabado de tumbar una palma ese día y había quedado con
todos los gajos así y nos metimos y nos metimos en todo el cogollo de la palma ahí nos
metimos, como a las 4 de la mañana yo escuchaba gshgsh! y movían eso y resollaban y
qué susto, cuando era una vaca comiendo hojas de palma y uno siempre piensa ya nos
encontraron, ya amaneció, ya había al pié una casita pero no nos podíamos arrimar a pedir
nada porque nos pueden sapiar ó pueden haber policía, nos cogen, nos cruzamos el caño,
agarramos por Caño Yamó abajo, subimos la cordillera, por ahí en la cordillera yo ya tenía
ese chúcharo que no podía, me tocó sacar la puñaleta y rajarme, y Claudia me lo estripó
hasta que me lo sacó todo y descansé y ya seguimos andando, cuando íbamos por allá,
cuando miré yo recién mochada una varita, porque en el monte uno conoce el cortado está
hace tiempo ó hace poquitico, estaba recién mochado una varita, será que van a estar por
acá, pero ya estábamos muy lejos del campamento, no creo, seguimos andando, andamos
como 10 metros, había un man escondido, detrás de .... cuando yo ví que el man como que
hacía coquitos allá, yo alcancé a halarle el seguro a la granada, cuando el man salió y dijo
qué más compañero por aquí posteando unas dantas y unos venados, es que por aquí a
veces mantienen los cajuncios, que tal, y usted qué hace por acá, que salió con la escopeta
al hombro, no pues por acá yo me la paso marisquiando, matando bichos, y entonces me
dijo, es que nosotros siempre hacemos eso, dijo sí porque el camarada Gentil está allí en
la cordillera, dijo ¿sí? si ayer estuvieron en la casa con un poco de gente, estaba buscando,
no es que nosotros somos de otro Frente, nosotros somos otra gente, dijo ¿ah sí? si esta-
mos haciendo reconocimiento de terreno por acá, y yo lo miraba ¿será que lo matamos? o
que no lo matamos, porque yo pensaba bueno, y si no lo matamos este vá si dice que el
camarada Gentil está en tal lado es porque es sapo del cucho Gentil, va y nos sapea se les
resbalan los pies y diga que en tal parte vi a Fulano y Fulano, ó puede ser miliciano o algo,
yo lo miraba ¿será que lo matamos?”

Matar, y matar al otro y preguntar si lo debo matar o no, aparece también como rostro delante de lo
nuevo, el rostro de lo más vulnerable, que es el rostro de la prohibición de matar al otro. Esta prohibición
representa para Levinas el rostro mismo, pero también porque el rostro es la diferencia o la despropor-
ción entre el acto y aquello a lo que el acto da acceso, la desproporción entre la visión de algo como lo
dicho, como conocimiento y la mirada de algo como Rostro, Decir, Infinito.
Y es en este sentido que el encuentro con el objeto callejero reitera a esta desproporción como al-
ternativa a la muerte del Rostro.
Y esto implica una cronotopicidad del borde, que no supone solamente que le cuenten a uno estas
historias mientras uno camina por la calle, como mi encuentro con este guerrillero, sino que el encuen-
tro con los bordes es semejante a encontrarse con partes de la vida en la calle que ahora caminamos,
como si fueran espacios urbanos de la memoria. A uno le van contando cambios de lugares, recorridos,
decisiones que se toman, contradicciones, comprensión de formas de conocimiento a través de relaciones
con objetos nuevos como formas de crecer, como formas de cambiar de status a través de interacciones
con superiores. Todo ese relato en el que el adolescente refiere formas de socialización de su más in-
mediato pasado tienen un referente actual y una razón para ser narrados, porque se cuentan mientras
se recorre la ciudad y porque el que habla se dirige hacia objetos específicos del mobiliario urbano como
una manera de afirmarse en su conocimiento del recorrido.
No hay privacidad ni aislamiento, sino un permanente colectivizar de lo nuevo con la cara que le pon-
go a lo nuevo. Y materiales como el plástico, responden inmediatamente al encuentro del rostro con lo
nuevo, así como se percibe en el cambio de la vereda, el camino y el caño al pavimento, la cafetería y el
equipo de sonido, caras que tienen cara de orden. Los empaques plásticos, el yogurth y los artículos de
belleza como el aceite Johnson (yonson) “dramatizan los efectos de las cosas en el ser, como cuerpo y
marca de la relación del ser y del mundo como un movimiento de deseo” (Stewart, 1996). Es un deseo
de hacer táctiles las cosas desde el hábito de su consumo y de su mirada como signo de progreso y de
realización de lo urbano. Donde hay nevera con bebidas gaseosas y productos lácteos exhibidos en su
interior, y asientos de plástico, es allí donde puedo actualizar mi cuerpo, antes incompleto, en pasaje en
un limbo hacia lo nuevo.
El significado de los objetos para el cronotopo de la calle y sus bordes, específicamente aquellos ob-
jetos que son encontrados en la realidad presente de la calle frente a los objetos narrados ó soñados, es
que ellos son los que atan o desatan la narrativa del espacio-tiempo frente a lo nuevo como lo urbano,
transmutando el dolor narrado, un dolor que no quiero vivir ni sentir, y que para muchos, sentirlo es
ilegal, en formas de progreso que solo son visibles, vividas y sentidas cotidianamente de una manera
espectral en preguntas como ¿cuáles son todas esas cosas de las que está cerca Bretón, el guerrillero o
el etnógrafo, y de las que otros no están cerca? (Benjamin, 1986; citado por Cohen, 1993):
“Llegamos, sacamos una pieza, yo andando en chanclas en San José, en la pieza ahí quietos
porque yo pensaba pedirle plata a los compradores de mercancía, yo sé que ellos me daban,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 646


entonces salimos a andar, camine, Claudia no conocía San José ... la estación de policía,
le muestro por ahí, fuimos, andamos por ahí, compré un Bonyur y ahí compré un raspao,
y estábamos pasando ahí, vámonos más bien pa’ la residencia, cuando nos encontramos
a un muchacho que hacía 6 meses se había volado y estaba trabajando con el ejército y
sí, él estaba ahí, y de una vez quiubo qué tal y el man se asustó y nosotros también nos
asustamos, quiubo, qué tal qué más y ustedes qué hacen por acá dijo, no es que nos vini-
mos, ah sí, ah bueno, dijo vea, mandó la mano a la billetera y sacó dos afotos, dijo vea yo
estoy trabajando con el ejército aquí gana uno plata y esto y esto, si ustedes saben caletas,
dígame, y eso vamos de una vez y a mí me están pagando 17 millones por cada guerrillero
que yo entregue, entonces nos dijo aquí así, 17 millones se van a entregar o no se van a
entregar y yo me puse a pensar, si le decimos que no nos vamos a entregar el man va y nos
sapea y se gana los 17 millones, toca decirle que sí, ...”

El cronotopo del encuentro coexiste con el cronotopo de la calle en todo lo que el relato entiende
como urbano: desde transportarse a gasolina y guardar fotografías en la billetera hasta trabajar para
los paramilitares o para la guerrilla sin importar si se trabaja para la izquierda o la derecha. El rostro
es el uniforme a la vuelta de la esquina y caminar en chancletas por San José del Guaviare. Los cam-
bios y metamórfosis culturales no son hechos cumplidos en los escenarios crueles de la violencia, como
diría Kathleen Stewart acerca de la historia, sino más bien “tendencias sin forma, sitios ocupados de
contingencia y deseo en los que la gente vaga” (Stewart, 1996). Así mismo estos sitios ocupados de
contingencia son cronotopos del umbral, cruces de caminos entre lo primitivo y lo moderno expresados
en espacios-tiempos de crisis y de esguince con la moral de la vida y de la muerte. El “no matarás” en
Levinas queda en ese sitio en el que el objeto es visible y tocado, objeto inseparable del trabajo y de
la casa, pero también queda en el umbral entre el decir y lo dicho, un lugar en el que el rostro aparece
como rechazo del sentido de muerte. Rostro en ese sentido, es negociar en las calles de San José, en las
de Bogotá ó en la Fiscalía esas formas de identidad que quieren fijar al yo como culpable ó no culpable,
como fin único de la violencia.
“... hablé con un sargento de narcóticos, ahoritica sale un avión para Bogotá, ahí lo echamos,
claro y nos sacaron del batallón en carro, bien cuidados con guardaespaldas, dentramos al
Batallón de narcóticos y un “para” me dijo venga chino, el que nos llevaba uvas, usted va
a trabajar con nosotros, le vamos a pagar 650 mil, y dije no, nunca, yo voy a torear lo civil
a ver que pasa, dijo vea, me dio un número telefónico, si alguna cosa le llega a pasar, no
tiene donde dormir o está aguantando hambre, llámeme que yo le mando plata y véngase
pa’ca a trabajar con nosotros, y trae la muchacha, y conforme entré al Batallón boté el
teléfono ...”

¿De qué manera, la epifanía como rostro determina una relación diferente de la que caracteriza toda
nuestra experiencia sensible?
“Llegamos a Bogotá, eso fue rapiditico, el mismo día llegamos y tan! nos bajamos y ya pa’
donde iba a coger, ah el de la ropa que teníamos lavada, y esto y lo otro, teníamos una
abogada de oficio, que me regaló 20 mil pesos, teníamos en total 170 mil, entonces yo dije
la Clarita mi prima que vive en Santa Helenita, no tengo dirección nada , llegué y cogí un
taxi, pero yo no me acordaba sino de ese punto , lléveme a la Clarita, sin dirección todo
ha sabido cambiar, el parque lo han construído, eso fue mucho lo que ha cambiado, sino
que había una casa en una esquina que las paredes eran puros huecos, como de piedra,
entonces voltiamos con ese señor, y dijo de un lado ¿no sabe donde es?, le dije, llévenos
para una residencia más bien, allí hay unas residencias baraticas, yo dije ¿cuánto vale la
noche?, 40 mil ¿baraticas? Cree que es que traemos mucha plata, lléveme al Parque de la
Florida, cuando el man iba quisque pa’l parque de la florida, yo miré la esquina, la casa y
me acordé, y aquí es así, así tal parte es la casa, claro de una vez le dije al man voltié aquí
y aquí, cuánto le debo, 8 mil pesos me cobró ese tiempo, hace 3 años, bueno, le pagué, ya
llegué, golpié, salió mi prima, se quedó mirándome ......”

La diferencia es un más allá de la percepción que es reconocimiento de afecto y gozo. Quedarse mi-
rando a alguien reconoce el plano de la vida vivida como gozo (Levinas, 1969), pero sugiero que también
reconoce que el límite entre la ética del rostro y su sensación, que para Levinas no es fenomenológica
como lo es para Merleau-Ponty, produce ese espacio del rostro como destitución, y que en espacios ur-
banos se expresa en objetos, espacios y cuerpos cuya ética no solo se inspira en “estructuras formales a
priori del no-yo” (Levinas, 1969) sino en el trauma de la ausencia ó presencia de eso que es la ausencia
de otro. Considero encuentros a cualquier interacción con objetos, espacios y personas que produzcan
este vacío de significación, esta corporeidad de la experiencia onírica que es el lenguaje como epifanía
del rostro. ¿Podría la ética del rostro en tanto ética del gozo ser la percepción del cuerpo de otro que es
mi cuerpo?
“¿qué! Usted no se acuerda de mí, yo hace mucho tiempo que no venía, si yo soy hijo de
fulano de tal y tal y tal, de una vez, que yo no sé qué y bajan los primos, que quiubo y me
miraban pero este man se creció, pues cuando me distinguieron yo estaba sardino, ahí ya

Proceedings XI International Bakhtin Conference 647


me dieron una cama, ahí esa señora me dio alimentación un año, porque ella que no hay
jabón, que no tenemos jabón pa’ lavar la ropa, me dá jabón de lavar, a Claudia le daba sus
útiles de aseo, no nos hacía falta la crema, el jabón, entonces comencé yo a voltiar dónde
era que quedaba el programa.”

Ser reconocido, que le conozcan a uno la cara, que lo vean pasar a uno por la misma esquina todos
los días delante de esos periódicos: ¡Ah sí es usted! nosotros lo conocemos, le detallo la cara, la distingo
“he visto sus ojos de helecho, mañanas abiertas a un mundo donde el golpear de las alas de la esperan-
za es escasamente distinto de otros sonidos, que son aquellos del terror, y en ese mundo solo he visto
hasta ahora ojos que se cierran” (Breton, 1960). Venirse otra vez para Bogotá con el entusiasmo de
salir adelante, ir al barrio La Soledad, sentir que uno ya sé desembolata, hacer las vueltas con un primo,
segundo piso, tercer piso cómo se llama usted, fulano de tal, el proceso, los archivos, conocer calles
entre diligencias, una que llaman el Park Way, los mismos edificios por los que ahorita estamos pasando,
conseguirse un trabajo con la Fundación Conespu para los desmovilizados del Quintín Lame que ayudan
a construir andenes, parques, mantener zonas verdes, sembrar árboles, enmallar. Ser reconocido, que
le reconozcan a uno la cara en un andén. Desembolatarse, ojos abiertos.
CUARTO CONTEXTO: SER ¿QUIÉN SOY YO? PENSAR EL ORDEN A TRAVÉS DE LA CIUDAD.

“Eso fue un problema muy grande porque pa’ sacar la cédula me tocaba sacar el registro
civil, y yo sabía que estaba en la notaría primera, pero no sabía dónde era que quedaba, mi
prima me acompaño, más antes yo había hecho varios intentos, para poder desembolatar-
me me tocó andar mucho, hartísimo yo anduve a pie, ya fui conociendo que es el centro,
que era sur que era norte, todo, andando va aprendiendo uno la diferencia entre calles y
carreras, ya el uno le va diciendo una cosa que otra, entonces uno le va cogiendo el ritmo.
A mí me decían tal bus lo lleva hasta tal parte, y yo no sabía que era Caracas, ni que era
décima, ni qué era carrera séptima, decía tal bus que vaya un Directo Caracas, me subía en
ese ¿a dónde me iba a bajar? Y varias veces me bajé y nunca supe ni dónde me bajé ni a
qué, me daba rabia, voltiaba, el bus para el barrio, sí sabía qué bus era que cogía y me iba
otra vez pa’ la casa, hasta que fuí desembolatándome. Inmediatamente se dan cuenta que
uno no es de acá, de una vez, porque uno no dice Carrera Décima ni Carrera Séptima, sino
uno es Carrera Diez o Carrera Siete, sino ya con el tiempo uno va perfeccionando mucho,
el hablado, la forma de ser no porque lo que es uno siempre es de ahí, pero el hablado si
ha cambiado muchas diferencias, porque uno cuando sale de allá sale hablando, no está
adaptado al ambiente, o sea del monte acá cambia mucho.”

Llegar a la ciudad y aprenderse sus esquinas y sus objetos por primera vez es una de las formas que
toma la epifanía del rostro como epifanía de los objetos. Funcionamos frente a esa supuesta lógica del
cemento a través de la “tactilidad” que producen los materiales y cosas de la ciudad en nuestra manera
de habituar los espacios, de ceder frente a ellos y de repetirlos (Taussig, 1993), pero recién llegamos
parece claro que funcionamos frente a nuestra estupefacción y desconocimiento de lo urbano que es
conocimiento en el encuentro:
“Yo veo el letrero y yo dejo a más de uno asombrado, yo me paro en la Décima con unas
chinas de aquí y yo no sé leer pero yo leo, sí pero de corrido no, y me paro en la Décima y
me pongo a leer y le leo más rato que cualquiera, entonces, cómo que no sabe leer, si yo
no sé leer entonces cómo lee, porque ya me conozco todos los letreros que diga Soacha,
entonces si vá por la Primera aquí o por la primera de Mayo, entonces si va por la Primera
de Mayo tiene que pasar por Venecia, yo me conozco de ahí pa’ abajo.

Leo rápido porque talvez ahorita que estoy estudiando fue que aprendí mucho, entonces tal
cosa, alcanzo a leer o yo no se si es que me los conozco ....”

A manera de conclusión, quiero señalar que el espacio público es el espacio para el deseo del desco-
nocimiento, para el deseo de tener otra cara, de mostrar esa-parte-de-la-cara, que es rostro de todos,
pero que tú no conocías. Y es precisamente en los espacios públicos en donde nos encontramos con una
lucha clara con esa “mirada sobre el que padece sin conmovernos” como muestra de nuestra lucha por
la definición de rasgos, por la definición de palabras y por la definición de mi relación con la muerte, que
para Levinas es el rostro del otro.
Y es en este punto, en el que la “antropología filosófica” de Bakhtin está en correspondencia con
el asunto de la exterioridad y la epifanía del rostro, pues necesitamos de los otros para poder existir
fuera de nosotros. Dice Bakhtin, que “no es uno el que se percibe en su aspecto externo” sino que “son
los demás por los que nuestra exterioridad tiene sentido” (Bakhtin, 1984). Y así, se puede hablar de la
necesidad estética del hombre por el otro, por una conciencia cuya realización está en la pérdida de mi
ser en otro ser.
Hay una nariz que no conoces, unos ojos que no conoces, una frente que es de otra persona que
no te han presentado, y que tú la ves y dices, la desconozco y no la quiero conocer. Eso es lo que es
humano, el miedo a mí como el miedo a una violencia que se arraiga en la definición de las facciones
de los demás.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 648


Y en este sentido, no hay un rostro que no sea más bien cronotopo del encuentro, es éste su arquitec-
tura original y su escenario de contingencia en tanto observa lo inasible de la conmoción y la complacencia
con la fijación de fisonomías, y en tanto nos enseña una diferencia con el espacio privado, en donde todos
creemos haber encontrado nuestro reconocimiento como urbanos y como habitantes de una ciudad.
Experimentar los umbrales y sus narrativas como parte de mí es necesariamente entender el encuen-
tro como algo que le sucede a un tercero. Un tercero excluído que para Levinas es todo nuestro rechazo
y postergación de la muerte (Levinas,1969). Yo no puedo experimentar mi propia muerte, y no puedo
experimentarla sino en el rostro de Otro. Esto se entiende como la condición inevitable de experimentar
nuestro propio no ser, y esta experiencia es una experiencia del rechazo de la violencia, de lo espectral
como Rostro ajeno.
En el recorrido con Edison contando su historia, la Iluminación Profana es nuestra renuencia a admi-
tir un orden como único rostro y más bien la urgencia por entender el momento de la reinserción en la
ciudad no como momento histórico atrapado en condiciones de Refugio Forzado por la Guerra, sino como
espacios-tiempos que narran su encuentro en las cosas, el sentido del contacto de las memorias de la
guerra elaborando sentido con la memoria de las calles y objetos de los espacios urbanos.
BIBLIOGRAFÍA
Bakhtin, Mikhail. “The problem of content, material and form in the verbal artistic creation” en Voprosy literatury i
estetiki, Moscow, 1975. [citado por Todorov]
Bakhtin, Mikhail. The Aesthetics of verbal creation. S.G. Bocharov, Moscow, 1979.
Bakhtin, Mikhail Mikhailovich. The Dialogic Imagination. University of Texas Press, Austin, 1981.
Bakhtin, Mikhail. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Edited and translated by Caryl Emerson, Minneapolis: University
of Minnesota Press, 1984.
Benjamin, Walter. (a)“On Some Motifs in Baudelaire”, en Illuminations, editado y con una Introducción de Hannah
Arendt, Schocken Books, New York, 1969.
_______, (b)“Theses on the Philosophy of History”, en Illuminations.
_______, (a)“Critique of Violence”, en: Reflections. Peter Demetz (editor). Schocken Books, New York, 1986.
_______, (b)“Surrealism. The Last Snapshot of the European Intelligentsia”, en: Reflections. Schocken Books, New
York, 1986.
Breton, André. Nadja. Grove Press, New York, 1960.
Cohen, Margaret. Profane Illumination. Walter Benjamin and the Paris of Surrealist Revolution. University of California
Press, Berkeley, 1993.
Cohen, Richard (editor). Face to Face with Levinas. State University of New York Press, Albany, 1986.
Delgado, Manuel. El Animal Público. Editorial Anagrama, Barcelona, 1999.
Levinas, Emmanuel. “The Face” en: Ethics and Identity: Conversations with Philippe Nemo. Duquesne University
Press, Pittsburgh, 1985.
_______, Totality and Infinity. Duquesne University Press, Pittsburgh, Pennsylvania, 1969.
Maffesoli, Michel. El instante eterno. El retorno de lo trágico en las sociedades posmodernas. Editorial Paidós, Buenos
Aires, 2001.
Merleau – Ponty, Maurice. Fenomenología de la Percepción. Traducción de Jem Cabanes. Ediciones Península, Bar-
celona, 1997.
Salcedo, María Teresa. “Escritura y Territorialidad en la Cultura de la Calle” en: Antropologías Transeúntes. ICANH,
Bogotá, 2000.
Stewart, Kathleen. A Space on the Side of the Road. Cultural Poetics in an “Other” America. Princeton University
Press, New Jersey, 1996.
Taussig, Michael. Mimesis and Alterity. A Particular History of the Senses. Routledge, New York, 1993.
Todorov, Tzvetan. Mikhail Bakhtin, The Dialogical Principle. Translated by Wlad Godzich. University of Minnesota
Press, Minneapolis, 1984.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 649


Histórias de insetos: aproximações entre gêneros de fala

Simone Rocha Salomão

Doutoranda da Faculdade de Educação da UFF

Maria Georgina de Souza

Professora da Rede Municipal de Macaé, RJ

simonesalomao@uol.com.br

Resumo I
Este trabalho apresenta registros de uma oficina de formação continuada em Ensino de Ciências, para
professores do Ensino Fundamental, esboçando a reflexão teorico-metodológica que lhe serve de base.
A oficina procura incentivar a contação de histórias, apoiar o estudo dos insetos e refletir sobre o uso de
diferentes linguagens em aulas de Ciências e a importância das interações discursivas para os processos
de ensino-aprendizagem. O pensamento de Bakhtin, buscando compreender os discursos na ciência, na
vida e na arte, permite discutir as possibilidades de enriquecimento das aulas de Ciências, pelo trabalho
simultâneo com textos científicos e literários. As noções de interação verbal, dialética interna do signo,
linguagens sociais, gêneros de fala, palavra alheia/própria, excedente de visão, exotopia e plurilingüis-
mo são categorias bakhtinianas tomadas para essa reflexão. Considera-se que o ensino, abrindo-se à
perspectiva do dialogismo e vivenciando diferentes narrações, pode romper barreiras inter-disciplinares
e potencializar as práticas pedagógicas.
PALAVRAS CHAVE:
Ensino de Ciências / Interações Discursivas / Ciências e Literatura
Resumo II
This work presents reports of a workshop in science, outlining the theoretical and methodological
reflection on which it is based. The main objectives of the workshop was to incentive the narrating of
stories, to form a base for studies in insects, and think about the use of different languages in science
classrooms, and about the importance of discursive interactions to the teaching-learning processes. The
thought of Bakhtin, as trying to understand the discourse in science, in life, and in arts, leads to the dis-
cussion of the possibilities of improvements is science classrooms, through the simultaneous work with
scientific and literary texts. The notions of verbal interaction, internal dialectic of sign, social languages,
speech genres, one´s own/someone else´s word, exceeding of vision, exotopy, and heteroglossia are
bakhtinian categories applied in this reflection. The teaching, as opens itself to the perspective of dialo-
gism, can break interdisciplinary barriers and improve the pedagogic practices.

“A certa distância estava uma ‘vaquinha’ pastando.


Era o nome que, no sítio, Pedrinho dava a certo be-
souro depintas amarelas que o Visconde dizia ser um
‘coleóptero’.”
Monteiro Lobato

A definição das intenções de um texto pode ser um ponto relevante, sobretudo quando esse compõe,
junto com outros textos, uma coletânea ao redor de um evento, de um teórico, o que, na maioria das
vezes, acaba criando para os possíveis leitores determinadas expectativas. Esclarecer o lugar do qual se
fala, além de prevenir um leitor de boa vontade, pode contribuir para a compreensão do que se quer dizer.
Este texto procura atender a duas intenções distintas mas, sem dúvida, simultâneas e complementares.
Por se constituir em um “relato de experiência” apresenta, de forma bastante sucinta, o trabalho que foi
desenvolvido na ocasião, o que já está, em linhas gerais, finalizado; e procura, também, sistematizar a
reflexão teórica que embasou essa experiência vivida, o que, por sua vez, na continuidade do fluido das

Proceedings XI International Bakhtin Conference 650


idéias, ainda não se esgotou, mantendo-se em curso, reformulando e ampliando suas interrogações.
Seguindo essa pista dupla, esse trabalho trata de uma oficina de formação continuada em Ensino de
Ciências, para professores do primeiro segmento do Ensino Fundamental, elaborada por uma professora
pesquisadora em ciências e linguagem e uma orientadora pedagógica, contadora de histórias, que juntas
haviam participado de um curso sobre insetos. O trabalho foi implementado através da Agenda da Casa
da Educação – Centro de referência para o Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação do Município
de Macaé, RJ, onde as autoras trabalham como professoras capacitadoras.
A Oficina sobre insetos
Pensando-se em oportunidades de formação continuada, a realização da Oficina pretendeu, junto
aos professores, incentivar a contação de histórias, apoiar o estudo dos insetos nas primeiras séries do
ensino fundamental e refletir sobre o uso de diferentes linguagens em sala de aula. A abordagem do
tema foi sugerida pelo curso Insetos como ferramenta de Ensino na Educação Básica, ministrado pelo
NUPEM/UFRJ e pela identificação, por parte das autoras, de inúmeros títulos da literatura infantil que
contemplam os insetos.
A metodologia para contação de histórias foi sistematizada a partir de ampla vivência da orientadora
pedagógica como contadora, pesquisadora de histórias e de desenvolvimento e adaptação de técnicas
de contação e, também, como formadora de contadores de história e implementadora de salas e grupos
de leitura.
A base teórico-metodológica para a proposta da Oficina e para o enfoque sobre linguagens é fruto
de reflexões já desenvolvidas, pela pesquisadora, em sua dissertação de Mestrado e que se intensificam
no atual programa de Doutorado, voltado para a inserção de textos literários no ensino de Ciências e
as relações entre linguagem e aprendizagem. Entre os pressupostos teóricos que embasam o trabalho,
destacamos as especificidades das linguagens científica e literária, suas possibilidades e limites, algumas
considerações sobre linguagens sociais e gêneros de fala e a importância das interações discursivas para
os processos de ensino e aprendizagem.
Até o início da década de 90, grande parte das pesquisas em Educação em Ciências produziram tra-
balhos voltados para a análise do modelo de mudança conceitual, até então hegemônico nesse campo
de estudos. A partir daí, abrem espaço para a dimensão sócio-interacionista, ampliando seu olhar na
perspectiva da linguagem. Alguns pesquisadores, entre os quais Mortimer & Horta Machado (1997), Ma-
chado (1999), Machado & Colinvaux (2000), Horta Machado (2000) e Mortimer & Scott (2002) procuram
então, investigar o papel das interações discursivas para as dinâmicas de construção de conhecimento
científico pelos alunos. Baseiam-se, entre outras referências teóricas, nas considerações de Bakhtin
acerca da polifonia e dos distintos gêneros de fala, aproximando-as também do pensamento de outros
teóricos, entre eles Vygotsky e Lotman.
Inserido nesse contexto de estudos, tecidos na fronteira entre a linguagem científica e a linguagem
comum, nossa proposta de Oficina a partir das histórias de insetos incorpora uma outra dimensão – a
linguagem literária, considerando assim, para a pesquisa que se desenvolve simultaneamente a partir
de dados de linguagem, uma terceira margem de análise. E também nesse percurso, as colocações de
Bakhtin se constituem em pressupostos fecundos.
Consideramos que seu pensamento, buscando compreender os discursos na ciência, na vida e na
arte, pode ajudar a pensar as possibilidades de se enriquecer as aulas de Ciências, através do trabalho
simultâneo de temas científicos com textos literários. A concepção de linguagem, tecida com verdadeira
paixão ao longo do desenvolvimento da filosofia de linguagem do Círculo de Bakhtin, permite imaginar
que o ensino de Ciências, abrindo-se à perspectiva de discursos polifônicos e vivenciando diferentes tipos
de narrações, pode ser incrementado, contribuir para romper barreiras inter-disciplinares e potencializar
as práticas pedagógicas.
Conteúdo da Oficina
Partindo-se do texto literário O Dilema do Bicho-pau, de Ângelo Machado introduziu-se a discussão de
aspectos da biologia dos insetos tais como anatomia, alimentação, camuflagem e interações ecológicas;
foram apresentadas noções básicas para a classificação das diferentes Ordens da Classe dos insetos e
procurou-se uma sensibilização para o tema, incentivando a leitura e a contação de histórias, destacan-
do-se a utilização dos recursos da voz, do corpo e da expressão facial.
As sugestões de textos e de atividades na Oficina visaram dar pontos de partida para o trabalho com
insetos e incentivar a pesquisa, por parte das professoras e alunos, de outros textos e atividades inte-
ressantes para os temas articulados. Um esforço de procura e de imaginação. Procurar a ciência que,
mesmo presente, não se revela nos textos de literatura e, também, empenho em identificar o poético
que se expressa, a todo tempo, nas múltiplas manifestações da vida.
Entre as atividades desenvolvidas na Oficina, destacamos:
• Breve reflexão acerca de algumas considerações teóricas sobre as diferentes linguagens sociais
e a importância das interações discursivas para os processos de construção de conhecimento em sala
de aula. Sobre essas considerações trataremos ao longo desse texto;
• Narração da história “O Dilema do Bicho-pau”, de Ângelo Machado;

Proceedings XI International Bakhtin Conference 651


• Considerações sobre o processo de narração de histórias e de estratégias para adaptação de
texto literário para ser contado;
• Observações sobre a consistente presença dos insetos nas obras de literatura infantil e apresen-
tação de um acervo de literatura infantil sobre insetos;
• Leitura e discussão de pequenos textos adaptados da bibliografia de referência pedagógica e
científica, evidenciando os objetivos do ensino de Ciências para o Ensino Fundamental e o potencial dos
insetos nesse ensino;
• Breve discussão de aspectos da biologia dos insetos sugeridas pela história, tais como anatomia,
alimentação, camuflagem e interações ecológicas.
• Utilização de um álbum de figurinhas preparado para a Oficina, sobre as Ordens da Classe dos
insetos, e de chave dicotômica para a sua classificação, evidenciando o trabalho sistemático próprio do
conhecimento científico e as especificidades de sua linguagem, evidenciadas na nomenclatura científica;
considerações sobre a importância da classificação dos seres vivos;
• Observação de um pequeno jardim, disponível no local da Oficina, para a procura de insetos,
ilustrando algumas considerações sobre procedimentos de busca e captura de insetos;
• Observação de espécimes de insetos conservados;
• Sugestão de atividades para ilustração do tema insetos, através de atividades com papéis colo-
ridos, tinta guache, lápis de cor e massa de modelar;
• Avaliação das atividades desenvolvidas.
Considerações teóricas que sustentam a Oficina

Ensino de Ciência e Literatura


Alguns pesquisadores como Ricon & Almeida (1991), Zanetic (1997 e 1998) e Silva (1998) vêm
analisando, com referências teóricas diversas, as condições práticas de aproximação de textos literários
do ensino de Ciências. Enfraquecendo barreiras, voltando-se para a linguagem literária e tomando a di-
mensão cultural como importante argumento de análise, esses estudos procuram as aproximações entre
as produções da literatura e o conhecimento científico. E ponderam sobre as implicações positivas da
historicidade e da polissemia próprias dos textos literários para o enriquecimento do processo de ensino-
aprendizagem de temas científicos e sobre a contribuição das aulas de Ciências para o desenvolvimento
de práticas de leitura nas escolas.
Gaston Bachelard (1938) tem idéias interessantes para o projeto de traçar pontes entre a linguagem
científica e a linguagem literária. Num primeiro momento, sistematizando o processo de desenvolvimen-
to do espírito científico, ele destaca a importância da linguagem como um obstáculo epistemológico e
como uma verdadeira armadilha para os pesquisadores. Em análises de livros científicos do século XVIII,
observa que estão cheios de dedicatórias, comentários bem humorados, sugestão de troca de opiniões
entre os leitores e que estabelecem um intenso diálogo entre o autor, cientista da época, e seus leitores,
mantendo um forte vínculo de seus temas com a vida cotidiana, tratando de suas dúvidas e aflições
concretas. Percebe, também, que, diferentemente, os livros de ensino científico de sua época já não
querem mais saber de conversa, respondem a suas próprias dúvidas e se constituem, necessariamente,
por uma outra linguagem, que se vê mais objetiva e através da qual a ciência é apresentada ligada a
uma teoria geral e onde não há espaço para as perguntas do leitor.
Na sua reflexão sobre os demais obstáculos à formação do espírito científico, Bachelard contrapôs
incisivamente a imaginação e o poético à atitude científica, pois “as metáforas seduzem a razão”. Mas, se
foi rigoroso em relação à forma de linguagem que via como condição necessária ao progresso do conhe-
cimento científico, em outros de seus estudos posteriores, permitiu-se também, considerar o valor desse
outro saber, nascido do imaginário e da força criadora do não-racional. E nesse caminho, reconheceu a
capacidade das imagens poéticas, e das linguagens que as expressam, de liberar e movimentar nossa
atividade lingüística e de despertar e rejuvenescer o pensamento humano, restituindo-lhe a faculdade
de se maravilhar. “A verdadeira poesia é uma função de despertar” (Bachelard, 1957).
Os ninhos, as conchas, a miniatura, a imensidão – também temas das aulas de Ciências – são, entre
outras, imagens estudadas por Bachelard em seu livro dedicado aos espaços da intimidade. Este texto,
posterior aos que escreveu sobre a imaginação da matéria – da água, do fogo, do ar – quer estudar os
problemas propostos pela imaginação poética, esse “produto mais fugaz da consciência”. Segundo ele,
essas imagens nos transportam à origem do ser falante, colocando em ação toda a atividade lingüística.
E a leitura da obra literária pode nos oferecer uma imagem que nos seduz, que nos contagia e que se
torna realmente nossa. “Nós a recebemos, mas sentimos a impressão de que teríamos podido criá-la,
de que deveríamos tê-la criado... ao recebermos uma nova imagem poética, sentimos seu valor de in-
tersubjetividade. Sabemos que a repetiremos para comunicar o nosso entusiasmo”(Bachelard, 1957).
Mas, apesar de nosso entusiasmo com relação a essas idéias de Bachelard (as quais, de certa forma,
amenizam suas próprias exigências quanto à definição de barreiras rígidas entre o científico e a metá-
fora) tomando-as como argumentos para endossar a inserção de um poema, um romance ou a letra de
uma música em aulas de Ciências, reconhecemos que a iniciativa de aproximação de textos literários do
ensino de Ciências comporta, realmente, alguma complexidade, incluindo outras questões externas à

Proceedings XI International Bakhtin Conference 652


dimensão do ensino. Tradicionais incompatibilidades e discretas afinidades entre a linguagem da ciência
e a linguagem literária são discutidas, também fora do âmbito educacional, por pesquisadores tanto das
ciências humanas como das ciências naturais.
Entre eles, Simone Vierne (1994) analisa as relações renovadas e fecundas, e ao seu ver extremamente
positivas, que se esboçam atualmente entre alguns pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento,
pautadas numa tentativa de recuperação do diálogo entre ciência e imaginário. Pois, segundo a autora,
as relações históricas entre literatura e ciências nem sempre foram simples e têm refletido um processo
crescente de estranhamento. E já vai longe o tempo em que os poetas, em grande intimidade com os
filósofos e físicos, se apropriavam, sem maiores conflitos, das coisas da ciência e essas se entregavam
confiantes à poesia. Com o desenvolvimento científico e de seus modos de falar, envoltos por áureas
de verdade, promoveu-se, aos poucos, um afastamento entre as produções da ciência e da literatura,
e novas relações foram estabelecidas, às vezes tempestuosas, às vezes perigosas até o divórcio [pois
um desconfia demasiadamente do outro], mas onde os parceiros não cessam de lançar-se olhares de
desejo (Vierne, 1994, p. 79).
Ensino de Ciências, Literatura e Bakhtin
Para dar maior consistência teórico-metodológica à proposta da Oficina sobre histórias de insetos e
ampliar a reflexão sobres as possibilidades de aproximação entre linguagem literária e linguagem cien-
tífica e sobre a importância das interações discursivas para os processos de ensino-aprendizagem, nos
apoiamos em alguns pressupostos e categorias do Círculo de Bakhtin, que consideramos interessantes
para essa reflexão.
Entre essas idéias, destacamos as noções de interação verbal e de dialética interna do signo, linguagens
sociais e gêneros de fala, palavra alheia/palavra própria, excedente de visão, exotopia e plurilingüismo.
São, sem dúvida, elementos marcantes e bastante complexos da filosofia bakhtiniana da linguagem e que
vêm, ainda, suscitando reflexões e esforços de compreensão por parte de seus leitores e pesquisadores
dos diversos campos de conhecimento que em torno dela se articulam. Eles seguem aqui, identificados
como pontos de interesse a serem melhor apreciados, consistindo-se em idéias instigantes para subsidiar
as aproximações entre linguagem científica e linguagem literária e ampliar as perspectivas de analise
das relações entre linguagem e aprendizagem no ensino de ciências.
A riqueza e a importância das interações verbais e do fluxo da linguagem em sala de aula podem ser
avaliadas se considerarmos que, de acordo com as concepções bakhtinianas, a realidade fundamental
da língua, sua verdadeira substância se constituí pelo fenômeno social da interação verbal, através da
enunciação ou das enunciações (Bakhtin/ Volochinov, 1988, p. 123). Nas inúmeras situações de enun-
ciação, vivenciadas pelos sujeitos em suas relações sociais, os signos têm sua significação determinada
nos diversos contextos em que são produzidos. A vivacidade, a polissemia e a opacidade ideológica,
próprias de todo signo, impõem essa via de determinação.
Perceber que a tecitura da significação dos signos se dá no contexto das diversas enunciações, faz
Bakhtin considerar que “o destino da palavra é o da sociedade que fala”, visto que a palavra é “fenôme-
no ideológico por excelência” (Bakhtin/ Volochinov, 1988, p.194). Bakhtin observara que “na realidade,
não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más,
importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um con-
teúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (Bakhtin/Volochinov, 1988, p.95). É também o que, de
certa forma, imagina o poeta Manoel de Barros, quando nos diz que “palavras têm sedimentos. Têm
boa cópia de lodo, usos do povo, cheiros de infância, permanência por antros, ancestralidades, bosta
de morcego etc”.
Possenti (2001) nos reforça essa mesma idéia ao afirmar que se pode observar, em qualquer língua,
que as palavras têm uma história, uma origem social, são distribuídas desigualmente pelos interlocuto-
res e pelas circunstâncias e, dessa forma, não só referem ou têm um sentido, mas carregam com elas
efeitos de sentido específicos decorrentes de sua enunciação.
Tratando-se da questão de utilizar textos literários no ensino de Ciências, a distinção entre as lingua-
gens sociais e entre os gêneros de discurso (primários e secundários) coloca-se como um outro ponto
interessante para observação. Com Bakhtin compreendemos que, historicamente, os signos – vivos
e móveis – vêm-se organizando e sendo expressos em linguagens sociais distintas, que caracterizam
diferentes segmentos sociais e diferentes campos de conhecimentos. Os feixes de significações que os
signos adquirem, ao longo das inúmeras enunciações em que aparecem, podem ser relacionados a com-
preensões diversas do mundo, construídas nas relações concretas da vida cotidiana dos grupos sociais
e no processo histórico de formação de áreas de conhecimento, como a religião, a ciência, a filosofia, a
arte, o direito, entre muitas outras (Goulart, 2003).
As linguagens sociais, bem como os gêneros do discurso são apropriados por meio de enunciados con-
cretos ouvidos e reproduzidos através das interações verbais que se realizam entre os sujeitos (Bakhtin,
1992, p.100). Não sendo mesmo do dicionário que os falantes tiram suas palavras, pode-se esperar, no
contexto das interações discursivas em sala de aula, o discurso do professor de Ciências, apoiado em
textos originados na linguagem científica, inclua descrições de objetos, processos e fenômenos, conceitos
e definições, e seja constituído por gêneros discursivos característicos daquela esfera de conhecimento,
apresentando traços discursivos típicos. No processo de aprendizagem, o discurso dos alunos, por sua

Proceedings XI International Bakhtin Conference 653


vez, ao mesmo tempo em que deve evidenciar a aproximação entre o que está sendo ensinado e suas
referências cotidianas, deve evidenciar, também, a apropriação de elementos típicos do discurso científico
que lhes está sendo ensinado.
Lembramos que Bakhtin considerava que a base dos enunciados cotidianos é a mesma da dos enun-
ciados poéticos e de que não há oposição radical entre essas duas formas de linguagem, além de ocorrer
uma rica dialogia entre os gêneros primários e secundários (Faraco, 2001). Como os gêneros se misturam
e se influenciam a todo tempo, pensamos, então, que as noções bakhtinianas que relacionam linguagem
cotidiana e linguagem literária podem ajudar a compreender as articulações entre linguagem cotidiana
e linguagem científica nos processos de ensino-aprendizagem, e avaliar a aproximação entre linguagem
literária e linguagem científica, como fator potencializador desses processos.
Lemke (1990) propõe que aprender ciências envolve aprender a “falar ciências”. Essa referência tem
sido considerada por diversas pesquisas em Educação em Ciências que tratam de dados de linguagem. Sua
relação com as noções de linguagens sociais e gêneros do discurso expostos por Bakhtin são evidentes.
Gostaríamos de aproximá-la, também, com as idéias acerca de palavras/enunciados/gêneros alheios,
que assim entram demarcados no repertório lingüístico de uma pessoa, para aos poucos se irem sendo
“digeridas”, assimiladas e se incorporando como palavras/enunciados/gêneros próprios. Assim, aprender
ciência pode significar a transformação de palavras tipicamente científicas, tidas como originadas no
campo científico, tomadas inicialmente como palavras alheias em palavras próprias, postas a serviço do
locutor, manobradas por ele e carregadas das suas intenções.
É possível lembrar, aqui, os exemplos da vaquinha pastando e do coleóptero do Visconde, contidos na
epígrafe desse texto, respectivamente empregados por Monteiro Lobato, como palavra própria e palavra
alheia de Pedrinho. São pistas de que os textos literários, nutrindo-se de temas da ciência e trazendo
palavras ou elementos mais próprios da linguagem científica, podem ajudar na mediação entre o gênero
cotidiano e o científico, permeando e facilitando a apreensão e o domínio de algumas palavras e conceitos
pelos alunos, participando efetivamente da construção de significados por eles.
Cecília Meireles também nos provoca sobre essa questão e sobre a noção de que os signos, na cons-
tituição de seus feixes de significados, carregarem cores, pesos, enfim, efeitos de sentidos diversos, ao
afirmar que “alheias e nossas as palavras voam. Bando de borboletas multicores, as palavras voam.
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas, as palavras voam. Voam as palavras como águias
imensas. Como escuros morcegos, como negros abutres, as palavras voam. Oh! alto e baixo, em círculo
e retas, acima de nós, em redor de nós as palavras voam. E às vezes pousam”. E nos perguntamos:
pousam porque se tornam nossas ou, pobres errantes, param apenas para descansar?
Uma outra noção proposta por Bakhtin e que tem relação relevante para essa reflexão é a de excedente
de visão. O lugar que ocupo e o tempo e as circunstâncias distintas que vivencio em relação ao outro,
condicionam um excedente de minha visão interna e externa sobre ele, bem como do conhecimento a
respeito dele. E o excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desa-
brochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade” (Bakhtin, 1992, p. 45). Da
mesma forma, o outro é capaz de nos olhar de um lugar que nos é inacessível e, assim, pode nos dar
o acabamento, impossível a cada um de nós isoladamente. A noção de excedente de visão comporta as
idéias de exotopia e de alteridade, importantes para o ato de compreensão. Exotopia é o estar fora – no
tempo, no espaço ou na cultura – é o olhar de fora que possibilita a produção do excedente de visão.
E na perspectiva de aproximar textos literários e textos científicos, tecidos sob diferentes lógicas,
podemos nos valer das afirmações de Bakhtin acerca da literatura, transpondo as idéias de exotopia e
de excedente de visão para esse contexto, tomando a ciência como prática de cultura e o texto científico
como um objeto cultural.
Na cultura, segundo Bakhtin, “a exotopia é o instrumento mais poderoso da compreensão, [pois] a
cultura alheia só se revela em sua plenitude e em sua profundidade aos olhos de outra cultura”. E essa
revelação é sempre parcial, guardando ainda dimensões inacessíveis para esse observador. “Um sentido
revela-se em sua profundidade ao encontrar e tocar outro sentido, um sentido alheio ... Formulamos
a uma cultura alheia novas perguntas que ela mesma não se formulava. Buscamos nela respostas a
perguntas nossas, e a cultura alheia nos responde, revelando-nos seus aspectos novos, suas profundi-
dades novas de sentidos.” (Bakhtin, 1992, p. 368). Para Bakhtin, no encontro dialógico de duas culturas,
no qual cada uma formula à outra perguntas autênticas, procurando ativamente compreendê-la, cada
cultura conserva sua própria unidade e totalidade, não se fundindo e nem se confundindo com a outra,
mas enriquecendo-se mutuamente).
Ao propor chaves para a leitura do texto O autor e o herói, Tezza (2001) analisa a amplitude e a
vivacidade dessas categorias bakhtinianas, sempre raras e dispersas, e levanta pontos de apoio para
o entendimento de sua importância no arcabouço teórico do autor. Destaca que o conceito de exotopia
tem tamanha produtividade como interpretação da consciência e dos fatos da consciência que parece
que, de alguma forma, extrapola o âmbito dos fenômenos estéticos e passa a tecer uma verdadeira
concepção filosófica, transparecendo sua visão de mundo. Idéias como o inacabamento do herói, o aca-
bamento que só lhe pode vir pelo outro, o processo de compreensão ativa e responsiva vivido no ato de
contemplação, a relação amorosa e de empatia com a palavra do outro, entre outras, são derivadas da
noção de exotopia e, segundo Tezza, plenamente articuladas com o dialogismo, categoria fundamental
da filosofia da linguagem.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 654


Consideramos essas idéias como argumentos interessantes para entender a literatura e a ciência se
conhecendo, se completando e se revelando mutuamente. Pois, se minha palavra precisa do outro para
significar, transitar de um texto científico a um poema ou trecho de um romance, independentemente
do sentido desse movimento, pode realçar a especificidade do conhecimento que cada um deles traz de
seu tema e pode, também, aglutinar sentidos em torno desse tema, articulando novas e importantes
relações entre ele e a realidade concreta do mundo da vida, que não seriam traçadas apenas por um
desses textos.
Encontrar uma palavra científica no contexto de um poema, por exemplo, nos causa um certo estra-
nhamento, uma espécie de desconcerto que pode revelar e enriquecer tanto o poema, quanto a própria
palavra (à imagem das imagens poéticas de Bachelard?). Em tais circunstâncias, esse emprego ines-
perado, subvertido em termos de linguagens sociais, que nos lança para outras visões de mundo, pode
dar a essa palavra um novo sentido, ampliar-lhe as possibilidades e, ainda, checá-la em seu próprio
domínio científico, nos ajudando a contemplá-la, a lhe compreender melhor e a lhe dar mais valor, pelo
que já significa.
Como uma última consideração de Bakhtin, que nos parece essencial e que gostaríamos de inserir
no campo de idéias para a reflexão que subsidia teoricamente a proposta de Oficina sobre as história de
insetos e a própria valorização da contação de histórias para os processos de aprendizagem em geral,
situamos o plurilingüismo da linguagem literária. Em suas análises sobre o romance, Bakhtin (1998)
caracteriza e valoriza esse gênero literário pela presença de uma multidão de vozes sociais. Vozes que
se fazem presentes no texto e nele dialogam entre si, se colocam sob tensão, esboçando discórdias,
conflitos, consensos, ou outras tantas relações possíveis como as que se dão na realidade social.
Ao focalizar a dimensão literária como um importante elemento do processo de letramento e a experi-
ência com a literatura como uma das bases para uma educação de qualidade, Goulart (2001) destaca que
o plurilingüismo dos textos literários, isto é, sua constituição no entrelaçamento de múltiplas linguagens
sociais, justifica a potencialidade da literatura em ensinar a interpretar a realidade, contribuindo para o
seu reconhecimento e para a sua reformulação, já que as obras chamadas de ficção costumam revelar,
de forma mais eficaz que as obras de não ficção, dimensões ocultas da realidade, e seus aspectos que
só os outros podem ver, além das possibilidades que os outros abrem para o meu próprio ser.
Essa categoria é de grande importância no conjunto do pensamento Bakhtin, pois o plurilingüismo
concebido para os romances pode, segundo o autor, ser também pensado para a própria linguagem de
um modo geral e para a linguagem de cada indivíduo, visto que se constituem sempre com as palavras
dos outros. Ela reforça a importância das interações discursivas e o papel relevante que o trabalho com
textos literários pode ter na escola, inclusive inseridos no ensino de temas científicos, potencializando-
o, por apresentarem diferentes modos de conceber e organizar a realidade, escapando ao que já está
previsto e fixado, ajudando a compreender que existem outras possibilidades para a vida, e que o ser
humano, a sociedade e o ensino podem vir a ser diferentes e mais felizes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, G. A Formação do Espírito Científico: Contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996 (Publicação original: 1938).
_______. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1996 (Publicação original: 1957).
BAKHTIN,M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.
_______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_______. Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1998.
BARROS, M. O Livro das Ignorãças. 6a ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
FARACO, C. A. O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In: FARACO, C. A., TEZZA, C. e CASTRO, G
(Orgs.). Diálogos com Bakhtin. 3a ed. Curitiba, Paraná: Editora da UFPR, 2001.
GOULART, C.M. Formar Leitores: bases para a educação de qualidade. (mimeografado) I Encontro de Leitura PROLER.
RJ: UERJ, 2001.
_______. Uma abordagem bakhtiniana da noção de letramento: contribuições para a pesquisa e para a prática peda-
gógica. In KRAMER, S.; SOUZA, S.J.; FREITAS, M.T. (eds). Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikail Bakhtin.
Editora Cortez, 2003.
HORTA MACHADO, A. Aula de Química: Voz alheia, voz própria alheia, voz própria. In: ALMEIDA, M. J. P. M. e SILVA,
H. C. (Orgs.) Textos de palestras e sessões temáticas – III Encontro Linguagens, Leitura e Ensino de Ciência – 12o
COLE. Campinas, SP: Graf. FE/UNICAMP, 2000.
LEMKE, J. L. Talking science. Language, learning and values. Norwood, New Jersey: Ablex Publishing Corporation.
1990.
LOBATO, M. A chave do tamanho. 40a ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
MACEDO, M. V. Insetos como ferramenta de ensino na educação básica. IB/UFRJ (mimeografado), 2001.
MACHADO, A. O dilema do Bicho-pau. RJ: Nova Fronteira, sd.
MACHADO, L.C.F. Interações discursivas e aprendizagem no contexto da sala de aula de Ciências. Dissertação de
Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação/UFF, 1999.
MACHADO, L.C.F. & COLINVAUX, D. Discursive interactions in the classroom: Meanings, contradictions and heteroge-
neity. Proceedings of the III Conference for Social-Cultural Research, 2000. Disponível em http://www.fae.unicamp.
br/br2000

Proceedings XI International Bakhtin Conference 655


MEIRELES, C. Poemas. 4a ed. São Paulo: Global Editora, 1991.
MORTIMER, E. F. e HORTA MACHADO, A. Múltiplos olhares sobre um episódio de ensino: Por que o gelo flutua na água?
In: Anais do Encontro sobre teoria e pesquisa em ensino de Ciências. Belo Horizonte, MG: FE, UFMG, 1997.
MORTIMER, E.F. e SCOTT, P. Atividade discursiva nas salas de aula de Ciências: uma ferramenta sociocultural para
analisar e planejar o ensino. Investigações em Ensino de Ciências, 2002, 7(3). Disponível na página: http://www.
if.ufrgs.br/public/ensino
POSSENTI, S. Discurso, estilo e subjetividade. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
RICON, A. E. e ALMEIDA, M.J.P.M. Ensino da Física e Leitura. In: Leitura: Teoria e Prática. São Paulo (18), Ano 10,
Dezembro/1991.
SALOMÃO, S.R. O espaço cultural na escola pública – Momentos habitados. Campinas, SP: FE/UNICAMP, 1998 (Dis-
sertação de Mestrado).
SILVA, E.T. Ciências, leitura e escola. In: ALMEIDA, M.J.P.M. e SILVA, H.C. (orgs.) Linguagem, leituras e ensino de
ciências. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1998.
TEZZA, C. Sobre O autor e o herói – um roteiro de leitura. In: FARACO, C. A., TEZZA, C. e CASTRO, G (Orgs.). Diá-
logos com Bakhtin. 3a ed. Curitiba, Paraná: Editora da UFPR, 2001.
VIERNE, S. Ligações Tempestuosas: A Ciência e a Literatura. In: A Ciência e o Imaginário. Brasília: UNB, 1994.
ZANETIC, J. Física e literatura: uma possível integração no ensino. In: Caderno Cedes, ano XVIII, no 41. Campinas,
SP: Unicamp/ Cedes, 1997.
ZANETIC, J. Literatura e Cultura Científica. In: ALMEIDA, M.J.P.M. e SILVA, H.C. (orgs.) Linguagem, leituras e ensino
de ciências. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1998.

BIOGRAFIA:
Simone Rocha Salomão
Professora de Ciências e Biologia da Rede Municipal de Ensino de Macaé - RJ,
Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP e Doutoranda da
Faculdade de Educação da UFF.

Maria Georgina de Souza


Professora e Orientadora Pedagógica da Rede Municipal de Macaé – RJ, contadora
e pesquisadora de histórias, formadora de contadores de histórias e implementa-
dora de salas e grupos de leitura.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 656


Dialogismo e construção do sentido: Práticas discursivas
entre estado e sociedade

Maria Cristina Hennes Sampaio

Universidade Federal de Pernambuco

mchennes@hotlink.com.br

RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a importância da aplicação de dois conceitos bakhti-
nianos para a apreensão dos efeitos de sentido construídos na relação dialógica instaurada entre Estado
e Sociedade no Movimento Grevista da Educação em Pernambuco na “Nova República” (1986-1987): 1)
a compreensão como forma de diálogo; e 2) a avaliação social: acento apreciativo.
COMPREENSÃO DIÁLOGO AVALIAÇÃO SOCIAL MEMÓRIA DISCURSIVA

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a centralidade desempenhada pelos conceitos
bakhtinianos “compreensão como forma de diálogo” e a “avaliação social” (acento apreciativo) para a
apreensão dos efeitos de sentido e a transformação da significação em tema no interior dos enunciados
bem como compreender a circulação de temas e os sentidos que eles evocam, na perspectiva de uma
memória discursiva interna e externa, na relação dialógica instaurada entre Estado e Sociedade no
Movimento Grevista da Educação em Pernambuco na “Nova República” (1986-1987).
Partimos dos pressupostos de que a interação entre locutor e receptor, na enunciação, é fundamental
para que a significação ocorra e que é a compreensão ativa que permite acrescentar novos elementos
à compreensão de um discurso. Procuraremos demonstrar que, ao revelar este aspecto de uma dialogi-
zação interior, Bakhtin oferece, ao pesquisador, uma nova pista para a procura e o encontro da palavra
do outro – diferente daquela que sugere o encontro da palavra do outro no próprio objeto. Nesse caso,
não é o objeto que serve de palco para esse encontro, mas a perspectiva subjetiva do interlocutor, ou
seja, a palavra do outro se encontra na resposta antecipada do interlocutor.
Tomaremos como exemplos os temas participação e democratização no âmbito dos discursos insti-
tucionais produzidos no espaço público midiatizado, no espaço público da sociedade civil (Sindicato) e
no espaço público do Estado (Governo) no Movimento Grevista da Educação em Pernambuco na Nova
república, no período de 1987-1990 (SAMPAIO, 2002).
PARTICIPAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO
A palavra participação, nos discursos dos atores, aparece relacionada tanto a questões político-pe-
dagógicas na Escola como a questões político-administrativas na própria gestão governamental. Não
obstante, observa-se que há uma discrepância no acento apreciativo do tema em relação aos três ato-
res, ou seja, no que diz respeito ao horizonte social de valores comuns e no reconhecimento mútuo de
legitimidades sociais e políticas. Trata-se, como sugere Bakhtin (1978, p. 175-176), na Estética e Teoria
do Romance, de uma palavra híbrida que encerra em si “duas consciências lingüísticas, duas visões de
mundo”, separadas por diferenças sócio-políticas. Esse tema é atualizado e, eventualmente, transfor-
mado, não apenas pela alternância dos sujeitos falantes, mas, sobretudo, pela sua circulação discursiva
nos diferentes espaços discursivos institucionais numa perspectiva espaço-temporal. Pretende-se, assim,
tornar visível a sua pluriacentuação em função dessa variação contextual. Iremos, inicialmente, traçar
um paralelo entre as formas de representação da palavra participação, em relação aos nossos atores, na
intermediação do embate dialógico entre Governo-Sindicato. Podemos identificar, nas práticas discursivas
do Governo e do Sindicato, a respeito da participação, a existência de um discurso fundador comum que
se constitui num dos eixos do regime democrático: a idéia de que todos os atos do governo devam ser
do conhecimento do povo, o que significa, em outras palavras, o caráter público do poder, no sentido
de imprimir transparência e visibilidade administrativas às ações do governo. Em termos práticos, isso
representa uma forma de controle, pelo povo, das ações daqueles que estão no exercício do poder. A

Proceedings XI International Bakhtin Conference 657


publicidade, assim entendida, contrasta o regime de exceção, obscurantista, vivido pelo povo brasileiro,
na fase anterior, da revolução de 64, com um momento político novo, denominado de “Nova República”,
a partir de 1985, que prometia, através de slogans como democratização, cidadania e participação, reins-
taurar o processo de democracia no país. Daí a retórica, de um lado, do Governo do Estado, através da
Secretaria de Educação, em conclamar a participação dos professores da rede estadual de educação nos
Fóruns Itinerantes promovidos pela SEC em escolas da rede pública, bem como do processo de análise
das finanças de Pernambuco:
ANEXO DO OFÍCIO SEC À APENOPE, 22 DE ABRIL DE 1987 (1)

A Secretaria de Educação apresenta [...] proposta do governo datada de 13.04.87 [...]


Relação de itens :[...] Item 03 – A Secretaria está propondo o Fórum Itinerante de
Educação para discussão e definição da política educacional do Estado de Pernam-
buco. Deverão participar deste Fórum segmentos organizados da sociedade civil
interessados no assunto. [...]

ARRAES DISPARA GATILHO PARA ATENDER SERVIDORES ,

DP,29.3.1987 (2)

[...] Amanhã, o governo deverá receber representantes do funcionalismo público para


conversar [...] e vai convocá-los a participar do processo de análise da situação de
Pernambuco. Segundo disse, o funcionalismo terá acesso a todas as informações.[...]
(“Arraes dispara gatilho para atender servidores.” DP, 29 de março de 1987, A-3.

E, de outro lado, a retórica dos professores, reivindicando a criação de conselhos escolares (com
a participação de pais, professores, alunos e funcionários), a participação nas comissões do Governo,
encarregadas de elaborarem o plano de reclassificação do magistério e a reforma administrativa e de
analisarem a evolução da receita estadual.
PROFESSORES MARCAM DIA DE GREVE COM PASSEATA DP, 1 de abril de 1987, A-11 (3)

[...] Da pauta de reivindicações específicas dos professores da rede oficial de educação,


constam os itens: [...] criação do conselho escolar com participação de pais, profes-
sores, alunos e funcionários;

APENOPE ACHA QUE SUA VITÓRIA ESTÁ NO AVANÇO CONSEGUIDO DP, 20.05.87,A-3)
(4)

[...] Segundo Ailton, a greve foi suspensa mas foi decretado o “estado de greve”, uma vez
que outras conquistas ainda faltam ser colocadas no papel. “É o caso de não haver descontos
pelos dias parados a negociação do calendário, a nossa participação na comissão dos
servidores que vai auxiliar no plano de reclassificação e na comissão que vai ter
acesso à evolução da receita estadual. [...]

GREVE DE PROFESSORES ATINGE 95% DA REDE OFICIAL, DP, 01.03.1988, A-8 (5)

Paralisação quase total. Este foi o resultado do primeiro dia de greve dos professores da
rede oficial, na Capital e área metropolitana.

Além da negociação de um prazo para implantação do PCS, os professores pedem a repo-


sição de outubro de 1986 [...] a participação do Grupo Ocupacional do Magistério
no Plano de Reclassificação levado a efeito, no momento, pela que denominam de
“Comissão de Notáveis”.

Não obstante a retórica comum de um discurso fundador, que toca a idéia do caráter público do poder,
o fato é que a compreensão responsiva, de ambos os atores, em relação ao significado de participação,
difere substancialmente, conforme podemos observar no embate dialógico dos recortes discursivos a
seguir.
Participar, para a categoria dos professores (ex. 6 e 7), não significa apenas ser ouvido: há uma
diferença política muito grande entre apenas “participar e participar, decidindo”, enquanto que, para o
Governo, participar, significa fazer-se representar: “uma forma mais organizada de participação depende,
inclusive, da indicação, pelas entidades, dos nomes que as representariam” (ex. 8).
OF. APENOPE n. 137, 4.12.1987 à Secretária da educação de PE (6)

No encontro promovido por esta entidade no dia 21 de novembro desse ano, [...] decidimos
fazer algumas considerações sobre o processo de discussão do plano Estadual de Educação

Proceedings XI International Bakhtin Conference 658


[...] básica, fundamentado no projeto eleitoreiro do MEC “O Nordeste no horizonte de 15
anos”, no qual já estavam definidos os programas, sem que os professores, nem a comu-
nidade envolvida nada decidisse; portanto, não passa de falácia todo o discurso que afirma
estarmos decidindo na elaboração do Plano Estadual de Educação. Neste sentido, não
podemos concordar que o processo estabelecido, por esta secretaria, tenha sido
democrático, mas apenas participativo, o que é politicamente muito diferente, ou
seja, há diferença qualitativa em só participar e participar decidindo. [...]

APENOPE COMEÇA CAMPANHA SALARIAL DE 89, DP, 19.02.1989 (7)

O diretor de Comunicações, Valdênio Carvalho, disse que [...] “Muito se tem discutido a
forma com foi imposto o Plano pela secretária Silke Weber”, lembrando “a forma não de-
mocrática de discussão e de deliberação; a categoria foi apenas ouvida, mas não
decidiu nada. Num Governo autenticamente popular, a decisão se dá através da
participação dos segmentos sociais”. [...]

NOTA OFICIAL dos Secretários da Educação e do Trabalho, 14 de março de 88 (8)

Tendo em vista as notícias veiculadas nos meios de comunicação de massa de que o Go-
verno do Estado não estaria negociando com os professores, cabe esclarecer, [...] que: [...]
(2) garantir espaço para a participação dos servidores quanto ao desempenho da
política salarial do Estado, verificando o comportamento da receita junto à Se-
cretaria da Fazenda, bem como no que concerne ao encaminhamento da reforma
administrativa e da reclassificação, continua sendo meta do Governo. Não foram
pois descumpridos os compromissos assinados em maio de 1987 [...] Uma forma mais
organizada de participação depende, inclusive, da indicação pelas entidades dos nomes
que as representariam;

Não obstante a retórica comum de um discurso fundador, que toca a idéia do caráter público do poder,
o fato é que a compreensão responsiva, de ambos os atores, em relação ao significado de participação,
difere substancialmente, conforme pudemos observar no embate dialógico dos recortes discursivos 6,7 e
8. Participar, para a categoria dos professores não significa apenas ser ouvido: há uma diferença política
muito grande entre apenas “participar e participar, decidindo”, enquanto que, para o Governo, participar,
significa fazer-se representar.
Quanto à Mídia, embora ela não assuma a autoria de uma posição própria – ora representando, através
do discurso citado, na notícia, os diferentes pontos de vista expressos pelo Governo e pelo Sindicato (ex.
7,9,10) – ela tanto pode deixar marcada a diferença entre ambas as posições (ex.7), como pode imprimir
um tom de denúncia ao ponto de vista sindical (ex. 9), ao evocar a memória discursiva-histórica dos
trabalhadores em educação e ao leitor em geral, como também pode funcionar como uma mera “caixa
de ressonância”, ao tornar públicas as notas oficiais pagas do Governo do Estado (ex. 8 anterior), ou
quando simplesmente veicula informações tais quais recebidas de fontes externas (no presente caso, o
Governo) através de press releases.
APENOPE COMEÇA CAMPANHA SALARIAL DE 89 DP, 19 DE FEVEREIRO DE 1989 (7)

O diretor de Comunicações, Valdênio Carvalho, disse que o arrocho salarial do Governo do


Estado motiva uma participação maciça de associados da Apenope na assembléia, pois,
além dos salários, constam assuntos como a implantação do Plano Estadual de Educação,
que está sendo discutido nas escolas, e que traz no seu bojo propostas aprovadas e desa-
provadas pelos educadores em Pernambuco. “Muito se tem discutido a forma com foi
[..] imposto o Plano pela secretária Silke Weber”, lembrando “a forma não de-
mocrática de discussão e de deliberação; a categoria foi apenas ouvida, mas não
decidiu nada. Num Governo autenticamente popular, a decisão se dá através da
participação dos segmentos sociais”. [...]

APENOPE ENTREGA PAUTA A ARRAES Folha de Pernambuco,12 de outubro de 1989 (9)

Foi entregue ontem, ao governador Miguel Arraes, a pauta das reivindicações dos Traba-
lhadores em Educação. [...] Na pauta de reivindicações que os Trabalhadores em Educação
entregaram ontem ao Governador de Pernambuco, é lembrado o discurso político de
Miguel Arraes como “progressista e a favor das causas populares” ao mesmo tem-
po em que sua prática “impõe medidas de caráter autoritário, antidemocrático e
centralizador”. O documento segue dando exemplos de tais práticas como a lei 622/1989
(que fere o Estatuto do Magistério que foi amplamente debatido), a reforma administrativa
(que não conta com a participação das entidades envolvidas) e a própria desmobilização
das entidades organizadas (materializadas nas punições contra os trabalhadores que exer-
cerem seu direito de greve). [...]

Proceedings XI International Bakhtin Conference 659


GREVES: SARNEY ENDURECE, ARRAES REFORÇA PACTO DP, 28.6.1989, A-5 (10)

[...] “A discussão da nova política é um momento importante nas relações entre o governo
do Estado e os funcionários públicos, e sem dúvida teremos a participação consciente
de todos para que os encaminhamentos, em um clima de realismo, considerem as
reivindicações dentro das possibilidades e obrigações da administração”, disse o
secretário do Trabalho e Ação Social Romeu da Fonte. “Estamos otimistas”.

Por conseguinte, se, por um lado, podemos observar uma relativa estabilidade nas práticas discursivas
dos atores no espaço público Governamental (do Estado) e no espaço público Não-governamental (da
Sociedade), caracterizável por um discurso fundador comum em torno da questão do caráter público do
poder, por outro, observa-se uma evidente instabilidade na circulação de sentido da palavra participa-
ção no espaço público midiático que talvez possa ser explicada pelo seu caráter híbrido. Trata-se de um
espaço público atrelado à iniciativa privada, que tanto pode atender a interesses públicos, da Sociedade
como um todo, como a interesses particulares e corporativos, de segmentos sociais ligados a governos,
partidos, sindicatos, etc ou simplesmente a interesses privados, mercadológicos, do capital, a exemplo
da própria empresa jornalística.
DEMOCRATIZAÇÃO
Em março de 1987, quando Arraes assume o Governo do Estado com os professores já em greve, a
imprensa noticia um encontro com a Secretária de Educação do Estado, Silke Weber, no qual é reiterada,
pelos grevistas, a necessidade da democratização da educação pernambucana, incluindo a questão
da participação – o que representa, na prática, a viabilização política da eleição direta de diretores e
vice-diretores na Rede de Escolas Públicas do Estado.
A primeira menção oficial ao processo de democratização na escola, por parte dos professores, é
feita através de ofício datado de fevereiro de 1987, dirigido ao governador eleito, mas ainda não em-
possado, conforme podemos observar no exemplo 11:
TEMA: DEMOCRATIZAÇÃO

OFÍCIO APENOPE n. 17 AO GOVERNADOR DE PE, 26.02.1987 (11)

[...] No ofício em que solicitamos esta audiência salientamos dois pontos pertinentes para
o momento: o da democratização das nossas Escolas que entendemos passar pela
eleição na escolha do diretor e vice-diretor e a nossa intenção de contribuir na escolha
do Secretário do Governo de Vossa Excelência, no que desde já lamentamos não ter sido
possível discutir alguns critérios que poderiam servir para traçar um perfil do secretário
desejado por nós professores. [...]

Em março do mesmo ano, com o governador já empossado, pode-se observar uma mudança de tom
dos professores em relação ao exemplo anterior, configurado pela introdução de um acento apreciativo
(em itálico) no discurso citado (exemplo 12): “sem liberdade, sem democratização e sem participação,
não somos sujeitos da educação nem os alunos o fim. Para mudar, só através de eleição”.
SILKE REÚNE-SE COM MESTRES, MAS A GREVE CONTINUA DP,

14.3.1987, A-10 (12)

[...] Segundo o comando de greve, a qualidade do padrão de vida do professorado está


comprometida pelos salários, além do que “a educação, hoje, não valoriza o professor, sujeito
da aprendizagem,[...] Neste contexto, afirmou em seguida Leocádia da Hora, diretora da
Apenope, que, “sem liberdade, sem democratização e sem participação, não somos
sujeitos da educação nem os alunos o fim. Para mudar, só através de eleição”,
admitiu. [...]

Existe um nós – sujeito que fala de um lugar no presente inacabado e que se endereça e se projeta
para um Outro – eles (alunos), um auditor-leitor virtual compreensivo que se situa na zona de contato
do presente (inacabado) e de um vir-a-ser futuro. Trata-se da palavra persuasiva à qual Bakhtin se
refere na “Estética e Teoria do Romance” (1978, p. 164) que:
[...] é uma palavra contemporânea que nasce na zona de contato com o presente inacabado,
onde se torna contemporânea; ela se endereça a um contemporâneo e a um descendente
como a um contemporâneo; a concepção particular de auditor-leitor compreensivo é, para
ela, constitutiva.

Mas existe ainda um segundo acento apreciativo (em itálico), desta vez introduzido pelo próprio
jornalista, após o discurso citado da Secretária de Educação, ao colocar a Secretaria “aberta para o
debate e para a avaliação sistemática de sua atuação”, segundo o qual nessa abertura estaria “incluída
a questão da eleição direta para diretores de escolas”. Acento apreciativo reforçado, logo em seguida,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 660


pela introdução de um discurso citado da Secretária: “nossa proposta é de socializar o que se tem em
mão; democratizar a administração da educação. Porém, a curto prazo, sugeriríamos que os setores
organizados do sistema educacional encaminhassem o debate e indicassem um diretor de transição. A
eleição passaria, então, a ser um passo seguinte”
SILKE REÚNE-SE COM MESTRES, MAS A GREVE CONTINUA

[...] O que fazer com a educação em Pernambuco? O que fazer para dar-lhe credibilidade?
Perguntou a secretária aos presentes. “O Governo que assume irá propor um amplo debate
sobre o assunto ainda para este semestre. A nossa preocupação é com a formação da cida-
dania que está intimamente ligada à qualidade do ensino. Ao mesmo tempo, colocaremos a
Secretaria de Educação aberta para o debate e para a avaliação sistemática de sua atuação”,
respondeu Silke. Dentro desta abertura, ficou claro que será incluída a questão da eleição
direta para diretores de escolas, uma das reivindicações dos grevistas intensamente en-
focada no encontro. “Nossa proposta é de socializar o que se tem em mão; democratizar a
administração da educação. Porém, a curto prazo, sugeriríamos que os setores organizados
do sistema educacional encaminhassem o debate e indicassem um diretor de transição. A
eleição passaria, então, a ser um passo seguinte”. [...] (“Silke reúne-se com mestres, mas
a greve continua.” DP, 14.3.1987, A-10) (13)

À palavra persuasiva se contrapõe, na narrativa da notícia, uma outra palavra, uma palavra-autori-
tária1, fundada em um futuro hierárquico próximo que lhe confere autoridade – “o governo que assume”
(poder político), “a Secretaria de Educação” (poder institucional) e “o nós” (poder político-institucional-
individual) – que se distingue e se isola de uma maneira específica, uma vez que estabelece uma distância
hierárquica em relação às outras palavras do texto e que nos questiona, no alto de sua autoridade: “
O que fazer com a educação em Pernambuco? O que fazer para dar-lhe credibilidade?” Ela não nos dá
direito à réplica, ela se impõe a nós como um bloco compacto e inerte. É o próprio autor da pergunta
que responde ele mesmo: “O Governo que assume irá propor um amplo debate sobre o assunto ainda
para este semestre. A nossa preocupação é com a formação da cidadania que está intimamente ligada
à qualidade do ensino. Ao mesmo tempo, colocaremos a Secretaria de Educação aberta para o debate
e para a avaliação sistemática de sua atuação”.
A palavra é autoritária. Mas a História é flexível e nos permite – público, povo, cidadãos – retomá-la,
recapturá-la em um outro contexto, em perspectiva espaço-temporal, e submetê-la a julgamento. Mesmo
que em algum momento da História ela se imponha pela força do poder à nossa consciência verbal.
Não obstante o discurso governamental, contido na proposta de “democratizar a administração da
educação”, o que se observa, na prática, durante todo o período em questão, é que a eleição direta nunca
foi prioridade no Governo Arraes, uma vez que as eleições diretas2 jamais se concretizaram no âmbito
do sistema público de educação em Pernambuco durante os três anos de seu governo.
Não obstante, a rede discursiva da palavra persuasiva do Governo (participação, democratizar a
gestão da educação, eleição direta) encontra uma contra-resposta na compreensão responsiva dos
professores, em relação ao tema da eleição direta, ao declararem, um ano depois, em junho de 1988,
em matéria publicada no Boletim da Apenope, que
A GREVE FAZ AVANÇAR A DEMOCRATIZAÇÃO DA ESCOLA, Boletim Apenope, junho/88

[...] Quando o governo assume a posição de “respeitar os processos em curso nas escolas”,
para nós significa dizer, que dele não partirá iniciativas democratizadoras da gestão es-
colar, porém, estará aberto a considerar os processos de mobilização pela democratização,
quando estes forem desencadeados pela comunidade escolar. Fica claro nesta tomada de
posição do governo que a democratização da escola será resultado da luta e da mobili-
zação de cada comunidade escolar não por vias legais como esperam alguns.

A história tem nos ensinado que a conquista da liberdade e da democracia será sempre
resultado das lutas sociais e, no que concerne à democratização da escola pública, nunca
se verificou um momento tão oportuno [...] para se desencadear processos democratiza-
dores [...] A repressão desencadeada pelo governo Estado sobre os professores, teve nos
diretores escolares – fiéis às orientações do poder – importantes colaboradores na tarefa de
dividir, desmobilizar e desmoralizar o legítimo movimento da categoria.[...] Nestas escolas,
o processo de democratização, encontrará mais facilidade de encaminhamento, pois os
seus diretores se encontram abalados no possível respaldo que teriam antes da greve. Em
1 Bakhtin (1978, p.161-163), na Esthétique et théorie du roman, ao se reportar às palavras do Outro, no horizonte do futuro ideológico do Homem, faz
alusão à palavra autoritária como uma palavra imposta, organicamente ligada a um passado hierárquico e que pode organizar, no seu entorno, uma massa
de palavras, sem, no entanto, se confundir com elas, mantendo-se “isolada, compacta e inerte”, exigindo, não somente ser “aspeada”, mas uma “escritura
especial”, como se soasse uma “palavra estrangeira”. Trata-se de uma palavra que “penetra em nossa consciência verbal” de forma “compacta e indivisível”,
cabendo-nos “aceitá-la totalmente ou rejeitá-la”. “Ela é inseparavelmente ligada à autoridade (poder político, instituição, personalidade)” e pode “encarnar
conteúdos diferentes”( “a alta autoridade, o tradicionalismo, o universalismo, o oficialismo”, etc) como também estabelecer “diferentes zonas” de contato e
“diversas relações com o auditor-compreensivo presumido”.
2 O primeiro projeto de lei, em toda a história da educação em Pernambuco, no que se refere à instituição da eleição direta nas escolas para diretor e
vice-diretor foi assinado apenas em 2001, no Governo Jarbas Vasconcelos, e mesmo assim com críticas e ressalvas feitas pelo Sintepe, uma vez que os
candidatos à eleição devem passar por um processo de seleção prévia (concurso), o que, segundo o sindicato, vai contra a Lei de n. 11.329 do Estatuto

Proceedings XI International Bakhtin Conference 661


todas as fases das mobilizações pela democratização das escolas, devem ser incorporados
aos processos de luta, os estudantes, pais e funcionários. [...] Nesses debates é impor-
tante profundar a discussão sobre o Conselho Escolar e o seu encaminhamento efetivo,
no sentido de consolidar uma instância democrática de decisão interna nas escolas, com
participação de professores, pais, funcionários e alunos. (14)

É a memória discursiva das lutas empreendidas pela classe trabalhadora ao longo da história da hu-
manidade que os trabalhadores da educação evocam quando ponderam que a “história tem nos ensinado
que a conquista da liberdade e da democracia, será sempre resultado das lutas sociais”. De fato, se
revisitarmos a história, observaremos que os direitos-credores, instituídos após as revoluções de 1848,
sob a pressão dos socialistas e do movimento operário francês, dizem respeito à obrigação do Estado
em prover, a todo o cidadão, o direito ao trabalho, à segurança material, à instrução, forçando uma
ação estatal no sentido de transformar a cidadania formal em cidadania real, assegurando a todos o seu
exercício, de fato e de direito (SCHNAPPER, 2000).
A ênfase do discurso político dos trabalhadores em educação recai, portanto, em dois aspectos da
democracia e da cidadania contemporâneas e que proporcionam um conteúdo concreto às conquistas
democráticas resultantes de um processo de luta social cotidiana: de um lado, o exercício dos direitos
políticos – e daí a importância atribuída à instituição do processo de escolha de diretores de escola, através
da eleição direta, visando “consolidar uma instância democrática de decisão interna nas escolas, com a
participação de professores, pais, funcionários e alunos”. Nesse sentido, o voto assume um papel privile-
giado e simbólico da soberania de toda uma comunidade escolar (professores, pais e alunos) sobre o nepo-
tismo institucional de governos – independentemente de suas orientações político-ideológicas-partidárias
– uma vez que a eleição é um meio não apenas de assegurar a escolha democrática dos representantes
da comunidade escolar, no que diz respeito à gestão e a todos os processos decisórios da escola, mas,
sobretudo, de garantir que esta mesma comunidade possa exercer um controle efetivo de suas ações.
Além disso, a eleição institui também um compromisso político recíproco entre os representantes eleitos
e a comunidade que os elegeu: o direito de votar e o direito de ser eleito significam também uma forma
de demonstrar que pertencemos todos, de fato e de direito, a uma comunidade social e política e que,
portanto, estamos todos igualmente incluídos nela e não excluídos dela. A participação, por conseguinte,
é expressa por uma cidadania ativa que emerge das demandas e das lutas empreendidas pela sociedade
civil organizada pela ampliação de espaços dos direitos políticos do cidadão através de um processo de
tomada de decisão em matérias que digam respeito ao interesse público.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os exemplos analisados nos permitem inferir que é o dialogismo constitutivo (a toda a palavra, a todo
o enunciado) que convoca os temas (aquilo sobre o qual se fala) de um discurso, ou seja, que os institui
no horizonte sócio-discursivo de comunidades lingüísticas caracterizáveis sócio- e historicamente, e que
é a passagem de um tema de uma comunidade lingüística a outra, no domínio de um espaço sócio-dis-
cursivo público, atravessado pela interpenetração do Estado e da Sociedade, que provoca a circulação de
seus sentidos. Ou seja, a motricidade do diálogo pressupõe relações de força que se inscrevem, de um
lado, numa memória discursiva interna e externa e de outro, naquilo que a produz, ou seja, a atividade
dialógica, a relação dialógica que se estabelece entre ambas, que produz a motricidade, que a faz avançar.
Trata-se da historicidade inerente a todo o evento enunciativo, do discurso como acontecimento. É essa
mesma memória histórica que constituiu todo um complexo de referências objetivas e subjetivas para
os nossos atores (Governo, Mídia e Sindicato), sujeitos individuais e coletivos dos discursos em questão,
para os seus destinatários (os trabalhadores em educação, público-leitor em geral). Uma memória que,
ao mover-se do presente ao passado e vice-versa, projetando-se também no futuro, possibilita, a partir
do confronto dialógico das práticas discursivas de nossos atores, o desvelamento de novos efeitos de
sentido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, MIKHAIL (1975/1978). Esthétique et théorie du roman. Trad. do russo de Daria Olivier. [S.l.], Galimard.
SAMPAIO, Maria Cristina Hennes. (2002) Democracia, Cidadania e Produção de um espaço público democrático em
tempos de globalização: práticas discursivas entre Estado-sociedade no Movimento Grevista da Educação em Per-
nambuco. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo, 348p.
SCHNAPPER, Dominique (2000). Qu’est-ce que la citoyenneté? [S.l.], Galimard.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DOS TEXTOS CITADOS


1. Ofício SEC à Apenope, 22.4.87, com anexo.
2. Arraes dispara gatilho para atender servidores”. DP, 29.3.1987, A-3.
3. “Professores marcam dia de greve com passeata”. Diário de Pernambuco. 1º.4.1987:A-11.
4. “Apenope acha que sua vitória está no avanço conseguido.”DP, 20.5.1987, A-3.
5. Greve dos professores atinge 95% da rede oficial.” DP, 1o .3.1988, A-8.
6. Ofício Apenope n.137 à Secretária da Educação do Estado de Pernambuco., 4.12.1987.
7. “Apenope começa campanha salarial de 89”. Diário de Pernambuco, 19.2.1989:A-19.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 662


8. Nota oficial do Governo do Estado de Pernambuco, assinada pelos Secretários da Educação e do Trabalho,
14.3.1988.
9. “Apenope começa campanha salarial de 89”. Diário de Pernambuco, 19.2.1989:A-19.
10. “Greves: Sarney endurece, Arraes reforça pacto.” DP, 28.6.1989, A-5.
11. Ofício Apenope n.17 ao Governador do Estado de Pernambuco, 26.2.1987.
12. “Silke reúne-se com os mestres, mas a greve continua.” DP, 14.3.1987, A-10.
13. “A greve faz avançar a democratização da Escola.” Boletim da Apenope, junho/88.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 663


Para uma aplicação do conceito de ato em Bakhtin
(For an application of Bakhtin’s concept of act)

Adail Sobral

Doutorando, LAEL/PUC-SP.

Abstract
The concepts of act and activity are complex in the work of Bakhtin, being as they are immersed in
the difficult critical discussion they are object of in the field of philosophy, something that goes back to
Plato (fourth century B.C.), to megaric philosophers (c. 400-c.330 B.C) and Aristotle (384-322 B.C.),
and relates to the neo-kantian Marburg school (founded in Germany in 1896 by Hermann Cohen, it had
Ernst Cassirer as one of its members).
The concept of act informs the notion of concrete utterance, so crucial to bakhtinian theories. Unders-
tanding the definition it receives from Bakhtin, a definition intimately linked, both by incorporating and by
rejecting elements, to Marburg school’s studies, one has to briefly examine its long history from Aristotle
on, for this latter’s formulation is still present in discussions about act, even though his exact definition
is in a way almost non-reconcilable with the way modern philosophy understands act. Act relates to
“action”, sometimes understood as the same as “activity”, and also as actualization of a possibility, that
is, act or reality of being. Act has na important role to play in Renaissance philosophy, in several modern
philosophical systems, not to mention the idealist neo-kantians notion of Absolute and Spinoza’s philo-
sophy (1632-1677), the first author to propose a thoughtful and incisive non-dualist system). Besides,
act relates to actuality (as opposed to potentiality), sometimes used as synonyms.
Another significant factor linked to act/activity in Bakhtin is its presence, understood as action, both in
the so-called “action philosophies” and other philosophical trends, like Pragmatism (Peirce (1839-1914),
James (1842-1910), Mead (1863-1931), Dewey (1859-1952), Existencialism (mainly Sartre —1905-1980,
who also examines ethical aspects of act), Marxism (mainly as social acting to bring a world transfor-
mation, although the Marxist authors prefer to talk of praxis”, and analytical (Moore [1852-1933] and
Russell [1872-1970]) and post-analytic philosophies (Wittgenstein [1889-1951] and Quine [1908-2000)
— having these last gone beyond the scientificist and positivist reductionism these philosophies have
known from the beginning. Though incorporating their aspects more reconcilable to his point of view
Bakhtin goes clearly beyond the neo-kantian trends he dialogues with, and he emphasizes the process
moment of acts, rejecting theoreticist trends that see act only a certain content. Our work intends to
explore the explanatory capacity of Bakhtin’s notion of act by means of an analysis of the terrorist acts
of September 11 in the United States.
1. Bases da proposta de Bakhtin
Os conceitos de ato e atividade têm em Bakhtin caráter complexo, em linha de continuidade com
a difícil problemática desses conceitos no campo filosófico, o que remonta a Platão (séc. IV a.C), aos
filósofos megáricos (c. 400- c. 300 a.C) e a Aristóteles (384-322 a.C.), e tem estreitas relações com o
neo-kantianismo da escola de Marburgo, Alemanha (fundada por Hermann Cohen em 1896, e de que
fez parte Ernst Cassirer).
Esse conceito é uma das bases da noção de enunciado concreto, fundamental nas teorias bakhtinianas.
Para compreender a definição que Bakhtin dá ao conceito de ato, definição que tem estreitas relações,
tanto assimilativas como opositivas, com essa escola, deve-se rever a questão, naturalmente em termos
sumários, a partir de Aristóteles, visto que a formulação deste tem marcado as discussões de ato até o
presente momento, ainda que seu conceito seja hoje, de certa maneira, quase incompatível com o modo
de ver o ato da filosofia moderna.
Ato tem igualmente relações com “ação”, que pode em alguns casos ser o mesmo que “atividade”,
bem como realização de uma possibilidade, logo, ato, ou realidade do ser. Ato tem importante papel na
filosofia do Renascimento, em inúmeros sistemas filosóficos modernos, bem como na noção de Absoluto
dos idealistas neo-kantianos e na filosofia de Espinoza (1632-1677, primeiro autor a fazer uma ponde-
rada e penetrante proposta de filosofia não-dualista). Além disso, ato se associa com atualidade (oposta
a potencialidade), por vezes usada como sinônimo

Proceedings XI International Bakhtin Conference 664


Outro elemento importante para a compreensão de ato/atividade em Bakhtin é a presença do ato,
enquanto ação, quer nas chamadas “filosofias da ação” ou em outras tendências filosóficas, como o
pragmatismo (Peirce (1839-1914), James (1842-1910), Mead (1863-1931), Dewey (1859-1952), o
existencialismo (principalmente Sartre — 1905-1980,que também faz considerações sobre a ética dos
atos), o marxismo (principalmente em termos do agir social com vistas à transformação do mundo, ainda
que os teóricos dessa linha dêem preferência a “práxis”) e nas filosofias analítica (Moore [1852-1933] e
Russell [1872-1970]) e pós-analítica (Wittgenstein [1889-1951] e Quine [1908-2000) — que superaram
o reducionismo das tendências cientificistas e positivistas que essa filosofia conheceu ao longo de seu
percurso.
Ultrapassando as concepções neo-kantianas com que dialoga, embora delas assimile o que há de mais
compatível com sua perspectiva, Bakhtin destaca o elemento processual do ato, opondo-se a tendências
teoreticistas que o reduzem a um dado conteúdo. Para verificar o potencial explicativo desse conceito,
vamos aplicá-lo a uma análise do ato terrorista de 11 de setembro nos EUA.
O pensamento bakhtiniano acerca do ato tem extrema originalidade, fundando-se num diálogo crítico
e participativo, que remonta aos megáricos, com estudos do ato, da atividade e da ação. Merecem des-
taque a distinção aristotélica entre ato e potência, e a proposta platônica de separação entre “aparência”
e “realidade”. Outra influência marcante vem de Kant e da escola neokantiana de Marburgo, e de alguns
aspectos da “filosofia do processo” de Schelling. Algumas teses fenomenológicas de Husserl também se
fazem presentes, naturalmente reacentuadas, como todas essas outras bases, nos termos originalíssimos
da filosofia do ato selon Bakhtin.
De Aristóteles Bakhtin destaca a idéia do ato como definidor da realização da potência num existente,
dado que só pelo ato se identifica a potência, destacando o processo como transformação constitutiva
da potência em ato, e, reformulando Aristóteles, o ser concretamente realizado, em vez de substan-
cial. De Platão ele lê, descartando os aspectos mais metafísicos da teoria das formas, da idéia de que o
sujeito tem o dever irredutível de ir além da aparência, do ilusório, para alcançar a realidade concreta
das coisas, ou seja, o agente como mediador entre as ações possíveis e as ações que de fato realiza no
evento de sua vida.
Relaciona-se com a de Husserl a definição fenomenológica que Bakhtin dá ao Lebenswelt, enquanto
mundo vivido, como lugar de ocorrência de “atos intencionais”, distintos de atividades e de ações per se,
que Bakhtin despe coerentemente da neutralidade transcendental que Husserl veio a admitir por razões
metodológicas. Em vez de uma redução fenomenológica que sugira um sujeito capaz de ver seu próprio
ponto de vista de uma perspectiva neutra, Bakhtin propõe um agente que vê exotopicamente seu ponto
de vista a partir desse mesmo ponto de vista, composto com base em suas relações com outros sujeitos
que lhe conferem o necessário, e sempre fluido, acabamento.
Vem do retorno a Kant, em oposição a certas teses neokantianas, a idéia da mediação pelo agente
entre o mundo dado e sua apreensão social e histórica. Trata-se porém de uma concepção que mantém
de Kant as categorias do tempo, do espaço e da causalidade, descartando os elementos teoreticistas do
quadro geral das categorias, que foram uma das bases do idealismo kantiano e pós-kantiano. Bakhtin,
com base na reformulação da ênfase husserliana no caráter situado, corporificado, peculiar, historicamente
material de cada ato do homem (mais tarde retomada por Merleau-Ponty), reforça sua idéia, oposta ao
idealismo kantiano e pós-kantiano, de que o ato tem de ter reconhecida sua materialidade constitutiva,
a par de seu conteúdo, sob pena de ser visto de maneira parcial. Trata-se porém, cumpre insistir, de
uma materialidade já mediada, não de um ato estritamente físico.
2. A formulação do conceito de ato
Em Para uma filosofia do ato, Bakhtin destaca o caráter da “responsibilidade” e da “participativida-
de” do agente. “Responsibilidade”, neologismo que proponho, une responsabilidade, o responder pelos
próprios atos, e responsividade, o responder a alguém ou a alguma coisa, sendo fiel à palavra russa
otvetstvennost’, que designa o aspecto responsivo e o da assunção de responsabilidade do agente pelo
seu ato.
O ato “responsível” envolve o conteúdo do ato, seu processo, e, unindo-os, a valoração/avaliação do
agente com respeito a seu próprio ato. A avaliação como aspecto arquitetônico do ato e o caráter situado
do sujeito levam Bakhtin a transcender as filosofias da ação, pois o valor do ato é o valor que ele tem
para o agente, não um valor absoluto que viria impor-se a este último. Assim, a experiência no mundo
humano é sempre mediada pelo agir situado e avaliativo do sujeito, que lhe confere sentido, a partir do
mundo dado, o mundo enquanto materialidade concreta.
A idéia do “vivido” aí presente destaca a presença necessária do agente, o sujeito que vive o ato, e
do contexto material em que o ato é vivido. Destaca ainda a concretude do ato, e seu caráter uni-ocor-
rente, a par de seus aspectos repetíveis, insistindo na interdependência constitutiva entre o processo e
o conteúdo do ato como momentos constituintes que envolvem o agente e as circunstâncias de seu agir,
incluindo sua responsibilidade e participatividade.
3. Do conceito de ato aos atos terroristas de 11 de setembro
No âmbito da proposta bakhtiniana, portanto, os atos incorporam, transcendendo, a ação física per

Proceedings XI International Bakhtin Conference 665


se, sendo sempre ação humana e, portanto, dotada de sentido. O conteúdo e o processo dos atos ter-
roristas de 11 de setembro são assim entendidos de maneira integrada como manifestação concreta de
um choque bem mais amplo do que a oposição entre um grupo terrorista de início financiado e treinado
pelos Estados Unidos para combater os interesses soviéticos no Afeganistão e a potência hegemônica
americana. Ou seja, há aí um conjunto de eventos que têm nos atentados um ato de uma série de atos
praticados por sujeitos concretamente caracterizáveis (embora não individualizáveis) em resposta a
outra série de atos praticados por sujeitos também concretamente caracterizáveis (e igualmente não
individualizáveis), envolvendo resposta e responsabilidade.
Os atos terroristas examinados não se reduzem à destruição ou danificação de edificações, e à morte
de grande número de pessoas, sendo também ações simbólicas, enunciações avaliativas, que atingem
o World Trade Center, símbolo do capitalismo neoliberal hegemônico, e o Pentágono, sede do complexo
militar norte-americano. Além disso, empregam alta tecnologia (aviões avançados recém-abastecidos
pilotados pelos terroristas) e um profundo conhecimento tecnológico (a quantidade de combustível capaz
de destruir a estrutura do WTC, os pontos a ser atingidos, o número de aviões a empregar) etc., numa
tenebrosa apropriação do “discurso” do outro na criação de um “contra-discurso” opositivo.
Logo, esses atos não são entendidos, nos termos de Bakhtin, como momento isolado da oposição
EUA/Al Qaeda, mas como parte de um processo de oposição histórica mais amplo, secular, entre Ocidente
e Oriente, uma seqüência de atos vinculados com o passado e, como o provam eventos ulteriores, com o
futuro, com outros atos agressivos da mesma espécie. O conteúdo do ato não pode pois ser visto como
separado nem do processo por meio do qual foi realizado nem da rede de atos de ambas as partes (por
meio de diferentes representantes) no âmbito da qual vem ele a ter sentido.
Vemos unidos numa análise bakhtiniana o ato como processo mais que como produto e o continente
do ato mais que seu conteúdo, entendidos como os dois momentos que o definem em sua amplitude
de interrelações retrospectivas e prospectivas, e não como ocorrência isolada, deslocada, um todo em
si infenso a quaisquer outros eventos ou sistemas de eventos. Os atos terroristas são assim entendidos
como enunciados terrivelmente concretos que advêm de e evocam outros atos igualmente concretos, e
que, infelizmente, não parecem esgotar-se em sua uni-ocorrência, mas, pelo contrário, se integram a
uma rede de interlocução de cujo começo se desconfia mas cujo fim, se houver, não se pode prever.
Por outro lado, o que tem extrema relevância, o imperativo categórico vê aqui negada sua universali-
dade: para os terroristas, concretamente situados, foi “ético” atacar, tal como foi “ético” para o governo
americano o bombardeio do Afeganistão — sempre a partir dos imperativos específicos pelos quais se
sentem interpelados. A decisão dita ética depende assim da posição, do caráter situado do sujeito, em
vez de impor-se a partir de fora e de modo abstrato a um sujeito transcendental, desengajado, sem
interesses específicos. O que não implica relativismo moral, dado que a análise não justifica a morte de
inocentes nem a irracionalidade dos atos, buscando na verdade mostrar a complexidade do objeto, o
que envolve questionar a universalidade que se pretende dar aos imperativos éticos.
4. Considerações finais
A análise bakhtiniana, ao integrar esses dois momentos que constituem o ato, apreende a totalidade
do evento “ato terrorista”, ou seja, o complexo emaranhado de razões históricas, sociológicas, pessoais,
religiosas, econômicas etc., vendo-o como atividade-ocorrência, cronologicamente marcada, de uma
complexa atividade-tipo: a oposição entre os mundos ocidental e oriental.
Uma análise centrada no conteúdo veria aí um cruel ataque isolado de terroristas loucos a civis ino-
centes e indefesos, ou um ataque da barbárie à civilização, ou então indícios da fragilidade do sistema
doméstico de defesa norte-americano, etc., Uma análise pragmática tout court veria no ato terrorista
uma ação agressiva sem sentido que merece imediata retaliação ou que indica o começo da destruição
da hegemonia norte-americana.
No primeiro caso, examina-se o produto em prejuízo do processo, ou o conteúdo em detrimento do
continente, caindo-se portanto na abstração e perdendo de vista o amplo contexto em que esse ato
absurdo não se justifica mas faz sentido; no segundo, inverte-se essa ênfase e não se percebem os ele-
mentos que transcendem a ação física em si; em ambos os casos há o desprezo de um dos momentos
constituintes do ato, de sua arquitetônica e de suas formas composicionais, do contexto de seus agentes,
dando-se dele uma visão necessariamente parcial.
A visão bakhtiniana do ato permite pelo contrário apreender o ato tanto em seu processo como em
seu conteúdo, considerando os agentes e os valores que mobiliza. Essas são as bases de uma proposta
filosófico-cultural mais ampla, a de uma Lebensphilosophie que reconhece a total imersão do filósofo e
de seu objeto na vida concreta, no agir situado, ali onde não há álibi na existência.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 666


The ‘Christian Malgré Lui’: Polemics and the ‘Penetrative Word’
in Flannery O’Connor’s Wise Blood

Dr. Stephen Souris

Texas Woman’s University

PO Box 425481

Denton, Texas 76204-5481 / USA

SSouris@ATT.net

Abstract
A Bakhtinian approach to Wise Blood exposes the truly dialogic underpinning of the protagonist’s dia-
lectical polemic against Christianity, especially when Bakhtin’s concept of the “penetrative word” (Problems
of Dostoevsky’s Poetics) is applied to uncover the full significance of key moments in the novel where the
repressed inner voice, the “genuine voice” that wants to believe in Christ, is activated by a remark from
another character or by an event. Through the agency of the penetrative word, Haze gradually makes
the transition from strident atheistic existentialism to a subdued acquiescence to religious Truth. What
appears on the surface to be the un-Bakhtinian dialectical polemic of an atheist masks a deeper dialogic
dynamic which structures from within the protagonist’s actions. Hazel Motes is a Christian “malgré lui”
who finally comes home.

“[F]ree will does not mean one will,


but many wills conflicting in one man.”
~ Flannery O’Connor

Many critics have had difficulty understanding and appreciating Flannery O’Connor’s Wise Blood (1952).
Their frustration with the novel is not surprising, given its oddness. One way to deepen appreciation of
a literary text is to perform a Bakhtinian analysis on it, which can uncover subtleties and complexities
not previously appreciated. There have been two such studies of Wise Blood (overtly labeled Bakhtinian)
and they have indeed contributed to the vast scholarship on the novel by examining it through the lens
of Bakhtinian carnival and heteroglossia. I will first summarize those studies and then offer my own
Bakhtinian reading. (A plot summary has been provided in the appendix for readers who are unfamiliar
with the novel.)
In “Rhetorical Figures and their Effects,” Sandra J. Hays demonstrates convincingly through a rigo-
rous analysis of the novel that the plot conforms in numerous ways to a carnivalized world, containing
the following motifs: the grotesque; the debased body; perverse sexuality; blasphemy of Christianity;
use of insult, mockery, and curses; the suspension of normal time in favor of the carnival chronotope;
an overthrowing of the king; a mock battle; a festive atmosphere; verbal games and riddles; and the
implication of rebirth. Ranging well beyond the obvious fact that the protagonist’s polemic is an attack
on the institutionalized authority of the Church, Hays demonstrates that Hazel Motes’s experience in
Taulkinham, Tennessee resembles in many ways a carnivalized medieval marketplace. She argues con-
vincingly that such an approach to the novel explains its unique tonality.
In “The Rhetoric of Heteroglossia in Flannery O’Connor’s Wise Blood,” Mary Frances Hopkins argues
that a radical diversity of perspectives worthy of the term heteroglossia is achieved in Wise Blood throu-
gh the following phenomena: the interaction of different linguistic strata, including the use of regional
dialect; character zones enhanced through Free Indirect Discourse (with examples selected following
Bakhtin’s cue in his analysis of Dickens’s Little Dorrit); incorporated genres (including newspaper hea-
dlines and clippings as well as various signs); and the contrast between the values of the implied author
and those of the inhabitants of Taulkinham, Tennessee. Arguing that Bakhtin underestimates the power
of heteroglossia alone, Hopkins asserts that the sheer presence of a radical diversity of perspectives and

Proceedings XI International Bakhtin Conference 667


material in the novel contributes to O’Connor’s thematic agenda by preparing the reader to accept the
protagonist’s turn to religion.
Interestingly enough, the only studies overtly announcing a Bakhtinian approach to the novel restrict
themselves to Bakhtin’s theory of carnival and heteroglossia, and while such approaches direct attention
to features of the narrative that might not be appreciated without viewing them through those lenses,
there is another use of Bakhtin to deepen our understanding of O’Connor’s accomplishments in Wise
Blood. The approach I offer here draws on Bakhtin to uncover the rich dialogic dynamic underlying Haze’s
rigidly dialectical polemic against religion and uses Bakhtin’s concept of the “penetrative word” to locate
specific sites in the novel where the protagonist’s repressed voice is activated. What I am arguing for,
essentially, is an application of Bakhtin that shifts the emphasis from the horizontal, syntagmatic axis of
the carnival approach to the vertical, paradigmatic axis of character analysis.
To be sure, various critics have offered useful observations about Hazel Motes that get at his com-
plexity without a Bakhtinian apparatus. However, I suggest that a Bakhtinian approach which examines
the dialogic dynamic underlying the dialectical polemic on the surface with particular attention to the
penetrative word will add to our understanding of this novel.
***
Before turning to a consideration of the dialogic dynamics underlying Haze’s character and behavior,
let’s look at the way in which Haze’s polemic against Christianity appears merely dialectical. Let us recall
Morson and Emerson’s commentary in their Creation of a Prosaics regarding Bakhtin’s position on sterile
dialectics: “Dialogue for Bakhtin is a special sort of interaction. . . . As Bakhtin used the term, dialogue
cannot be equated with argument. . . . Bakhtin also cautions us against confusing dialogue with logi-
cal contradiction. It is different from Buber’s I-Thou relation. Least of all does it resemble Hegelian or
Marxist dialectics” (49). Bakhtin himself offers the following useful illustration of the difference between
dialectics and dialogics:
‘Life is good.’ ‘Life is not good.’ We have before us two judgments, possessing specific logi-
cal form and specific content oriented semantically toward a referential object (philosophical
judgments on the value of life). Between these two judgments there exists a specific logical
relationship: one is the negation of the other. But between them there are not and cannot
be any dialogic relationships; they do not argue with one another in any way (although they
can provide the referential material and logical basis for argument). (Problems 183)

There is in Haze’s rantings and ravings against Christianity a certain rigidly monologic quality. He
simply asserts the falsity of the Christian premises of original sin, grace, redemption, and the like. In
their place, he advocates dialectically what amounts to nihilistic existentialism. Rather than stressing
the tremendous opportunities conferred upon the individual by the absence of a priori certainties, as
Sartre does in his famous existentialist manifesto, “On Existentialism,” Haze appears entirely hung up
on a strident rejection of Christian premises.
Examples of Haze’s rigid polemical stance abound. Indeed, the most salient feature of his character
as O’Connor presents him to us throughout the novel is his near hysterical denunciation of fundamental
Christian premises. He seeks out Asa Hawks, whom he believes to be a genuine man of God because he
allegedly blinded himself to prove his belief, and obsessively flaunts his atheism in front of Hawks. He
hopes to attract a large following to his Church Without Christ to prove to Hawks that he means what he
says (146). He intends to have sex with Hawks’s daughter, Sabbath Lily Hawks, “to prove that he didn’t
believe in sin since he practiced what was called it . . .” (110). He harangues the crowds emerging from
movie theaters with his vitriolic declarations against the concepts of a fall, sin, redemption, a conscien-
ce, and Truth (105, 165-66). Instead, he proclaims “the church of truth without Jesus Christ Crucified”
(55). The fact that the name for his church is centered on a negation points up his oppositional polemic.
This strident polemic is epitomized by his need to engage in blasphemy to establish his own position: “
‘The only way to the truth is through blasphemy,’ ” he asserts (148). The pathetic nature of his obses-
sion with rejecting the doctrine of original sin can be seen in his declaration to an innocent waitress as
well as an owl in the zoo that he is “clean” (91, 95). His forward driving intensity of purpose manifests
itself from the very beginning when he feels compelled to declare to the ladies in the dining car that he
wouldn’t believe in Jesus even if He were on the train (16) and when we see him declaring to the cab
driver, who assumes he is a preacher, that he “ ‘doesn’t believe in anything’ ” (32). It would seem from
these selected examples of Haze’s strident polemic against Christianity that there is nothing of the rich
engagement, interaction, and interpenetration of viewpoints that characterizes a truly Bakhtinian dialogic
relationship. The plot line of Wise Blood consists of a string of such pronouncements. We cannot even
argue that there is the kind of internal dialogizing in Haze’s pronouncements that we see in Dostoevsky’s
Underground Man, as Bakhtin analyzes him. It will be recalled that Bakhtin demonstrates the “cringing”
quality of the Underground Man’s discourse, showing that the apparent bravado of his narrative is un-
dermined by a neurotic anticipation of possible criticism and an attempt to respond to that anticipated
criticism. We do not find anything of the sort in the characterization of Hazel Motes.
Nevertheless, I believe there is a dialogic quality to Haze’s character. The fundamental mechanism
of the dialogism underlying his intense dialectical polemic is an unconscious desire to believe in a po-
wer outside himself. He yearns to accept his fallen state and atone for his share in the abstract guilt

Proceedings XI International Bakhtin Conference 668


of humankind, but he cannot admit this until he pursues a fanatical and violent form of atheism to its
furthest extreme. Only then is he in a position to embrace consciously what he has yearned for all along
subconsciously. The key to a deeper reading of Haze’s character is to understand that O’Connor chooses
not to comment on this deeper yearning. She remains on the surface of his character in order to have us
experience his intense rejection of Christianity along with him. But it is possible to uncover a repressed
voice within Haze that is the voice of a Believer. This voice is repressed, but its presence can be inferred.
Haze’s attraction to Asa Hawks is one way this repressed inner voice is apparent. On the surface, Haze
seeks out Hawks to flaunt his atheism in Hawks’s face. Yet, the underlying dynamic in that relationship
is an unarticulated desire to have Hawks persuade him to give up his atheism.
Evidence abounds in the novel to support this claim for a bifurcated but repressed dialogue within
Haze’s consciousness. Hawks says at one point, “ ‘You can’t let me alone, can you?. . . . I didn’t ask
you to come here and I ain’t asking you to hang around’ ” (108). O’Connor reveals to us that Haze
knocks on Hawks’s door “two or three times a day” (145)—and not to see Sabbath. Perhaps the most
revealing hint O’Connor offers us is the following passage, which follows the paragraph quoted above:
“Haze had expected a secret welcome. He waited, trying to think of something to say. ‘What kind of
a preacher are you?’ he heard himself murmur, ‘not to see if you can save my soul?’ ” (108). In the
same vein, we read a little later: “Haze couldn’t understand why the preacher didn’t welcome him and
act like a preacher should when he sees what he believes is a lost soul. He kept trying to get into the
room again; the window he could have reached was kept locked and the shade pulled down. He wan-
ted to see, if he could, behind the black glasses” (145). Haze assumes Hawks is in touch with a higher
spiritual truth because, after all, Hawks is supposed to have blinded himself to prove his faith in Jesus.
This underlying desire on Haze’s part to be talked out of his atheism is hinted at early on by O’Connor
when she has him declare to his companion in the train car that he is “ ‘going to do some things I never
have done before’ ” (13) and then has him give her “a sidelong glance and [curl] his mouth slightly”
(13). What is this look if not a Bakhtinian sideward glance—the kind that betrays an engagement with
an Other even when there is an assertion of independence?
Although I believe the deeper dynamic and repressed dialogue within Haze is apparent enough when
the novel is reconsidered from a Bakhtinian perspective, I would like to take this analysis one step further.
I believe there are several moments in the novel where Bakhtin’s concept of the “penetrative word” can
help uncover the repressed dialogic dynamic in Haze’s character.
Bakhtin describes the “penetrative word” thusly in Problems of Dostoevsky’s Poetics:
[The penetrative word is] a word capable of actively and confidently interfering in the interior
dialogue of the other person, helping that person to find his own voice. . . . [T]his penetra-
tive word, once having made its appeal to one of the voices (to the genuine voice) within
the other person, is—in keeping with Dostoevsky’s plan—never, in the case of Myshkin [in
The Idiot], a decisive voice. It is denied any real ultimate confidence and sovereignty, and
is often simply allowed to drop. . . . [W]hat unfolds on the level of [Dostoevsky’s] novels is
not a polyphony of reconciled voices but a polyphony of battling and internally divided voices.
. . . Two characters are always introduced by Dostoevsky in such a way that each of them
is intimately linked with the internal voice of the other. . . . In their dialogue, therefore,
the rejoinders of the one touch and even partially coincide with the rejoinders of the other’s
interior dialogue. A deep essential bond or partial coincidence between the borrowed words
of one hero and the internal and secret discourse of another hero—this is the indispensable
element in all Dostoevsky’s crucial dialogues. . . . In Dostoevsky’s dialogues, collision and
quarreling occurs not between two integral monologic voices, but between two divided voices
(one of those voices, at least, is divided). The open rejoinders of the one answer the hidden
rejoinders of the other. (Problems 242-56).

In Wise Blood, two “voices” comprise Hazel Motes’s interior dialogue: one voice is a conscious and
compulsive denial of Jesus; the other voice is an unconscious desire to accept Him. That is Haze’s “in-
ternal and secret discourse.” There are several instances in the novel where this repressed dialogue is
activated by a remark made by a character or by the occurrence of an event. In the case of the latter, we
need to extend Bakhtin’s concept of the penetrative word to include “penetrative events” or “penetrative
moments.” Bakhtin’s concept of the penetrative word is very useful for uncovering the rich dialogic de-
bate within Hazel Motes precisely because O’Connor refrains from commenting on this dynamic in order
to approximate Haze’s own failure to fully understand his psyche.
The first penetrative word or moment I can determine in Wise Blood is when Sabbath, an illegitimate
child, asks Haze if she could be saved in his Church Without Christ. What follows is the following pas-
sage:
‘There’s no such thing as a bastard in the Church Without Christ,’ he said. ‘Everything is all
one. A bastard wouldn’t be any different from anybody else.’
‘That’s good,’ she said.
He looked at her irritably, for something in his mind was already contradicting him and saying
that a bastard couldn’t [be saved]. . . . The thing in his mind said that the truth didn’t con-
tradict itself and that a bastard couldn’t be saved in the Church Without Christ. He decided

Proceedings XI International Bakhtin Conference 669


he would forget it, that it was not important. (122)

Although it is Sabbath’s question that partially activates his repressed internal dialogue, we might
consider his response to her the real penetrative word because it is his response, which does not ring
true to his second voice (the “genuine voice”), that activates the internal dialogue.
The next example of a Bakhtinian penetrative word or moment in Wise Blood occurs when Sabbath
decides to “go give him a jolt” (185) by presenting as their “baby” the three-foot mummy that Enoch
has delivered to Haze. When she enters the room she utters the following penetrative words: “ ‘Call me
Momma now’ ” (187). O’Connor once again refrains from commentary; instead, she shows Haze in a
state of extreme agitation and she has him throw the miniature mummy out the door. He then announces
his intention to pick up and move on to another town to recruit for his Church Without Christ. Although
her protagonist is not fully cognizant of the implications of Sabbath’s penetrating words, O’Connor would
have us understand that Haze is taken aback by the suggestion that their fornication of the night before
could result in a baby. That repressed voice which questions his atheistic agenda causes him to respond
violently to Sabbath because he does not want to acknowledge that voice.
The next penetrative word or moment concerns Solace Layfield. Solace functions as a twin for Haze,
not a Double. Enoch is the Double. This is widely misunderstood in the criticism on Wise Blood. One
of the brilliant things about this novel is not the use of a Double to suggest what is lacking in the prota-
gonist. O’Connor does not want us to understand that Enoch’s intuitiveness, spontaneity, emotionality,
and nonrationality are what Haze needs. On the contrary. Enoch is a foil to point up the greater stature
of Haze. For this novel, his twin is what Haze needs to confront, not his Double or alter ego. Solace
is a stand-in for Haze because he believes in Jesus deep down but pretends on the surface that he is
a prophet of a church that promises happiness without Christ (and without all the inconveniences the
existence of a Christ implies for traditional believers). Without recognizing that Solace is literally his
“twin,” Haze lashes out at him because he cannot stand Solace’s hypocrisy. In so doing, he is lashing
out at himself and moving himself closer to the point where he will reverse his course and fully embrace
Christ. In Bakhtinian terms, encountering Solace functions as a penetrative event which activates his
repressed voice, the voice of a believer, and causes him to kill Solace as a symbol of his own contradic-
tion. The murder satisfies the inner, repressed voice, even though Haze is not aware of the complex
dynamic driving his behavior.
The final example of a penetrative word in Wise Blood is the event that precipitates Haze’s conversion.
When the cop pushes Haze’s beloved Essex over the embankment and destroys the car after discove-
ring that Haze is driving without a license, Haze is stunned. He has invested so much in his car—like
most Americans—and has thought of it as his way to continue preaching the truth of his Church Without
Christ. He has even declared at one point, “ ‘Nobody with a good car needs to be justified’ ” (113).
Now, though, he is doomed to remain in one place and face up to his inner voice. The cop utters words
which penetrate to and activate his interior dialogue: “ ‘Where was you going?,’ ” he asks (209). This
question reverberates in Haze’s mind; he realizes he was not really going anywhere.
***
Flannery O’Connor writes in her preface to the second edition of Wise Blood that the novel “was written
by an author congenitally innocent of theory, but one with certain preoccupations.” Her disinterest in
theory notwithstanding, I believe drawing on Bakhtin enhances an understanding of the complex situation
in which O’Connor places her protagonist—a situation that she deliberately refrains from articulating at
any length. A Bakhtinian approach to Wise Blood exposes the truly dialogic underpinning of Haze’s stri-
dent dialectical polemic against Christianity, especially when Bakhtin’s concept of the penetrative word
is applied to uncover the full significance of key moments in the novel where the repressed inner voice
is activated. To pick up on the epigraph, which also comes from O’Connor’s preface (“Free will does
not mean one will, but many wills conflicting in one man”), Haze uses his free will to break free from
the authoritative discourse of religion in an attempt to achieve an internally persuasive discourse that
represents a true liberation of his humanity. However, O’Connor suggests that that internally persuasive
discourse is nothing but another authoritative discourse—that of mid-twentieth-century Sartrean exis-
tentialism, which, ultimately is not internally persuasive for Haze because there is an inner voice that
can never be convinced of the validity of the nihilistic existentialist agenda. Thus, Haze is a Christian
“malgré lui” who strays but finally comes “home.”
Acknowledgements: I am grateful to the following for their assistance with this project: Hugh
Burns, Bernice Fischer, Russ Greer, Michelle Hepner, Rae Murphy, and Annita Owens.
Appendix: Plot Summary
Wise Blood is a novel published in 1952 by the well-known Southern U.S. writer from Georgia, Flan-
nery O’Connor. The following plot summary is intended to help those who do not know the novel follow
the argument of the paper.
A 22-year-old soldier, Hazel Motes, upon being released from the army because of a wound, makes his
way to his home state of Tennessee. There he founds a Church Without Christ, not only in revolt against
his grandfather, a preacher, but in opposition to Asa Hawkes, a religious charlatan who pretends to be
blind. Hazel does not realize right away that Asa is a charlatan. Hazel’s follower, Hoover Shoates, who
calls himself Onnie Jay Holy, comes to champion Solace Layfield, a rival prophet of the Church Without

Proceedings XI International Bakhtin Conference 670


Christ. After killing Solace, the false prophet, by running him down with an auto, Hazel blinds himself,
stops preaching, tortures himself, sickens, and dies. The final pages of the novel are from the perspective
of Mrs. Flood, from whom Hazel rents a room. Although she cannot understand why he would want to
blind himself, she hopes to marry Hazel for the economic advantages that would bring her.
(Adopted from James Hart, The Oxford Companion to American Literature.)
Works Cited
Bakhtin, Mikhail. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Ed. & trans. Caryl Emerson. Minneapolis: U of Minnesota P,
1984.
Hart, James D. The Oxford Companion to American Literature. 6th ed. Oxford: Oxford UP, 1995.
Hays, Sandra J. “Rhetorical Figures and Their Effects: A Study of the Work of Flannery O’Connor and Maruxa Vilalta.”
MA thesis. University of Milwaukee, 1995.
Hopkins, Mary Frances. “The Rhetoric of Heteroglossia in Flannery O’Connor’s Wise Blood. Quarterly Journal of
Speech 75.2 (1989): 198-211.
Morson, Gary Saul, and Caryl Emerson. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics. Stanford: Stanford UP, 1990.
O’Connor, Flannery. Wise Blood. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1952.

Key Texts: Wise Blood, Problems of Dostoevsky’s Poetics


Key Names: Flannery O’Connor, Mikhail Bakhtin, Gary Saul Morson, Caryl
Emerson
Key Words: penetrative word, dialogic, dialectic, sideward glance, internally
persuasive discourse, authoritative discourse
Biographical Statement: Stephen Souris is an associate professor of English
at Texas Woman’s University where he teaches 20th-century American literature
and literary theory. He is interested in applications of Bakhtin to literary analysis
and has done extensive work with recent American multiple narrator novels. He
welcomes comments on his analysis of O’Connor’s Wise Blood and can be reached
at SSouris@ATT.net.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 671


Por que não Metalingüística? (Ou Translingüística?)1

Geraldo Tadeu SOUZA

Universidade de São Paulo

Av. Prof. Luciano Gualberto, 403

São Paulo - SP

geraldo.t.souza@uol.com.br

RESUMO
A orientação filosófico-lingüística da Metalingüística se encontra na fronteira entre, por um lado, uma
filosofia do ato e da palavra e, por outro, a Lingüística, em relação a qual se coloca como um estudo
complementar e autônomo tanto do ponto de vista lingüístico quanto estilístico. Em sua obra revisada
sobre Dostoiévski - Problemas da poética de Dostoiévski (1963), Bakhtin nomeia o campo de seus estu-
dos da linguagem como Metalingüística e entre os objetos principais: as relações dialógicas e a palavra
bivocal. Durante a divulgação de PPD na França, na segunda metade da década de 60 do século passa-
do, preferiu-se o termo Translingüística. No entanto, seja como Metalingüística ou Translingüística, a
ciência dialógica da linguagem proposta por Bakhtin acabou sendo suplantada por um rótulo de maior
peso e extensão: dialogismo. Neste artigo, procuramos retomar a Metalingüística como uma das chaves
importantes para interpretação e aplicação da obra de Bakhtin e seu círculo.
ABSTRACT
The philosophical-linguistics orientation of Metalinguistics is on the border of, on one side, a philosophy
of the act and a philosophy of the word, and on the other, Linguistics, a science which is a complement
and independent both from the linguistical and stylistical point of view. In his second version of the book
on Dostoevsky - Problems of Dostoevsky’s Poetics (1963), Bakhtin named his research on language
Metalinguistics and as the main subject of this science the dialogical relationship and the double-voiced
word. When this book started to become reknowned, via France, during the latter part of 60’s in last
century, the name Translinguistics was preferred. Eventhough, as Metalinguistics or Translinguistcs,
the dialogical science of language proposed by Bakhtin was hidden behind another label: dialogism. In
this article, we try to reinsert Metalinguistics as one of the keys to an interpretation and application of
Bakhtin and his circle’s works.

Observações Iniciais

Não há nada morto de maneira absoluta.


Todo sentido festejará um dia seu renascimento.
O problema da grande temporalidade.
(Bakhtin, 1992:414)

Numa de suas primeiras divulgações no Ocidente, que se deu na França via Julia Kristeva, o nome
da ciência criada por Bakhtin foi mudado para Translingüística:
“Bakhtine postule la nécessité d’une science qu’il appelle translinguistique et qui, partant
du dialogisme du langage, saurait comprendre les relations intertextuelles, des relations
que le discours du XIXe siècle nomme “valeur sociale” ou “message” moral de la littérature”
(KRISTEVA,1969:149)

Essa tese foi adotada na tradução francesa de PPD2(1970), e também na tradução espanhola (1986)3
1 Este artigo é parte de tese, defendida na Unversidade de São Paulo em junho de 2002, intitulada A construção da Metalingüística. Fragmentos de uma
ciência da linguagem na obra de Bakhtin e seu círculo, e sob orientação da Professora Doutora Beth Brait.
2. Doravante, utilizaremos PPD para designar a obra Problemas da poética de Dostoiévski.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 672


do mesmo livro. No entanto, nem como Metalingüística nem como Translingüística essa ciência teve sua
investigação incentivada dentro dos estudos bakhtinianos. O termo que prevaleceu para identificar a
obra de Bakhtin e seu Círculo foi mesmo dialogismo.
No primeiro grande estudo sobre a obra de Bakhtin e seu Círculo como um todo, Mikhaïl Bakhtine. Le
principe dialogique (1981), Todorov faz algumas referências à Translingüística, que é como os comenta-
dores franceses se referem à ciência de Bakhtin já desde 1966:
“Contrairement à ce que pensent les linguistes et les stylisticiens, l’énoncé n’est pas indivi-
duel, infiniment variable et donc impropre à la connaissance; il peut et doit devenir l’objet
d’une nouvelle science du langage, à laquelle Bakhtine donnera le nom de translinguistique.
Ainsi parviendra-t-il à dépasser la dichotomie stérilisante de la forme et du contenu, pour
inaugurer l’analyse formelle des idéologies” (TODOROV,1981:8).

Todorov, ao construir o primeiro grande estudo sobre Bakhtin e seu Círculo, no interior da tradição
francesa de estudos da linguagem, da qual ele é um participante dos mais ativos, não deixa de expressar
algumas dificuldades em relação à inserção de Bakhtin nessa tradição. No capítulo 5, “Intertextualité”,
esse desconforto fica bem claro quando ele dá uma definição do termo criado por Kristeva:
“Il n’est pas, et c’est essentiel, d’énoncé sans relation aux autres énoncés. La théorie géné-
rale de l’énoncé n’est pour Bakhtine qu’une sorte de détour inévitable, qui doit lui permet-
tre l’étude de cet aspect-lá. Le terme qu’il emploie, pour désigner cette relation de chaque
énoncé aux autres énoncés, est dialogisme; mais ce terme central est, comme on peut s’y
attendre, chargé d’une pluralité de sens parfois embarassante; un peu comme j’ai transposé
“métalinguistique” en “translinguistique”, j’emploierai donc ici de préférence, pour le sens le
plus inclusif, le terme d’intertextualité, introduit par Julia Kristeva dans sa présentation de
Bakhtine, réservant l’appelation dialogique pour certains cas particuliers de l’intertextualité,
tels l’échange de répliques entre deux interlocuteurs, ou la conception élaborée par Bakhtine
de la personnalité humaine” (TODOROV, 1981:95).

O problema, em Kristeva e Todorov, é que Bakhtin é considerado fundador da semiótica moderna, da


pragmática, mas a ciência que ele mesmo cria, a Metalingüística, parece não conseguir alcançar uma
autonomia em relação a essas duas outras ciências da linguagem.
Talvez por isso o termo dialogismo, com toda a pluralidade de sentidos (inclusive como sinônimo de
polifonia) que acaba tendo, seja também um entrave na proposição da Metalingüística como uma ciência
autônoma. E o objeto da Metalingüística, as relações dialógicas (dialogismo?) acabou falando mais alto
do que a própria ciência da qual ele é constitutivo.
Metalingüística e Lingüística
A orientação filosófico-lingüística da Metalingüística se encontra na fronteira entre, por um lado, uma
filosofia do ato e da palavra e, por outro, a Lingüística, em relação a qual se coloca como um estudo
complementar e autônomo tanto do ponto de vista lingüístico quanto estilístico.
A partir da análise da obra de Dostoiévski e dos fenômenos aí encontrados, Bakhtin vai construindo ao
longo de sua obra um lugar científico para o núcleo de suas investigações sobre a linguagem e sobretudo
sobre a palavra artística e nessa, especificamente, a palavra bivocal.
Para vivenciar o problema dentro da vida plurilingüe da obra, e fazer com que o leitor participe de
nossas preocupações em relação a um esclarecimento teórico dos problemas encontrados, apresentamos
as citações em quatro línguas: português, francês, inglês e espanhol.
O enunciado que recortamos, a seguir, diz respeito ao primeiro embate público entre a Lingüística e
a Metalingüística no interior da obra de Bakhtin e seu Círculo. A Lingüística que na época (1963) já era
uma ciência consolidada, como que uma ciência modelo de estudos literários, estilísticos e dos fatos da
linguagem sob vários aspectos (fonéticos, fonológicos, lexicológicos, sintáticos e semânticos), encontra
em seu caminho um outro olhar sobre o mesmo fenômeno geral: a palavra (o signo lingüístico, para
Saussure; ou o signo ideológico, para Volochinov):
“Intitulamos este capítulo “O discurso em Dostoiévski” porque temos em vista o discurso
ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico
da lingüística, obtida por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de
alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos
pela lingüística, os que têm importância primordial para os nossos fins. Por este motivo as
nossas análises subseqüentes não são lingüísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser
situadas na metalingüística, subentendendo-a como um estudo - ainda não-constituído em
disciplinas particulares definidas - daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam
- de modo absolutamente legítimo - os limites da lingüística” (BAKHTIN, 1997:181)4.

3. Em nota, a tradutora Tatiana Bubnova dá a seguinte explicação: “En el original de Bajtin aparece el término metalingüística. Para evitar confusiones
con el significado tradicional de este concepto, se admite aqui la acepción (translingüística) dada a dicho término en la traducción francesa de esta obra,
perteneciente a Tzvetan Todorov (BAJTIN, 1986:253).
4. Sublinhamos os termos que, nas citações plurilingües de PPD, são polêmicos. Como exemplos temos, por um lado, discurso, mot, discourse, word e
palabra, e por outro lado, metalingüística, translinguistique, metalinguistics e translinguística.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 673


“Nous avons intitulé notre chapitre “Le mot chez Dostoïevski”, car nous nous y attacherons à
l’étude de la langue dans sa totalité concrète, vivante, et non pas de la langue comme objet
spécifique de la linguistique, obtenu en faisant abstraction de certains côtés de la vie concrète
du mot (ce qui en linguistique était parfaitement légitime et même nécessaire). Et ce sont
précisément ces côtes concrets qui pour nous présentent un intérêt capital. Par conséquent,
nous analyses ultérieures ne seront pas linguistiques, dans le sens exact du terme. On peut
les rattacher à la translinguistique, si on entend par celle-ci une science qui ne serait pas
encore strictment déterminée par des disciplines précises, bien délimitées, et consacrée à
ces aspects du mot qui sortent du cadre de la linguistique” ( BAKHTINE, 1970:238).
“We have entitled our chapter “Discourse in Dostoevsky,” for we have in mind discourse, that
is, language in its concrete living totality, and not laguage as the specific object of linguistics,
something arrived at through a completely legitimate and necessary abstraction from various
aspects of the concrete life of the word. But precisely those aspects in the life of the word
that linguistcs makes abstract are, for our purposes, of primary importance. Therefore the
analyses that follow are no linguistic in the strict sense of the term. They belong rather to
metalinguistics, if we understand by that term the study of those aspects in the life of the
word, not yet shaped into separate and specific disciplines, that exceed - and completely
legitimately - the boundaries of linguistics” (BAKHTIN, 1994:181).
“Hemos intitulado este capítulo La palabra en Dostoievski, porque en el término palabra
sobreentendemos la lengua en su plenitud, completa y viva, y no hablamos de la lengua
como objeto específico de la lingüística, obtenido mediante una abstracción absolutamente
legítima y necesaria de algunos aspectos de la vida concreta de la palabra. Para nuestros
propósitos tienen capital importancia las facetas de la vida de la palabra, de las cuales se
abstrae la lingüística, por eso nuestros análisis subsiguientes no son de carácter lingüístico
en el sentido exacto, sino que para nuestros propósitos tienen capital importancia las face-
tas de la vida de la palabra, de las cuales se abstrae la lingüística, por eso nuestros análisis
subsiguientes no son de caracter lingüístico en el sentido exacto, sino que más bien están
relacionados com la translingüística, entendiendo por ésta el estudio de los aspectos de la
vida de las palabras - todavía no encauzada a una disciplina determinada -, los cuales, con
toda legitimidad, no han sido considerados por la lingüística” (BAJTIN, 1986:253).

O próprio fenômeno palavra é aquele que aproxima e separa as duas ciências - Lingüística e Metalin-
güística - do ponto de vista do ângulo e dos aspectos abordados por uma e por outra. Cada gênero, cada
ciência, embora trabalhe conjuntamente, precisa ter seus limites, suas fronteiras definidas. E Bakhtin
assim define as da sua ciência em relação à lingüística:
“As pesquisas metalingüísticas, evidentemente, não podem ignorar a lingüística e devem
aplicar os seus resultados. A lingüística e a metalingüística estudam um mesmo fenômeno
concreto, muito complexo e multifacético - o discurso, mas estudam sob diferentes aspectos
e diferentes ângulos de visão. Devem completar-se mutuamente e não fundir-se. Na prática,
os limites entre elas são violados com muita freqüência” ( BAKHTIN, 1997:181).
“Il est évident que dans ses recherches, la translinguistique ne peut ignorer la linguistique
et doit se servir des résultat obtenus par cette dernière. Toutes les deux étudient le même
phénomène concret, infiniment complexe et multiforme: le mot, mas elles en choisissent
divers aspects et les observent sous des angles différentes. Elles doivent se compléter, no se
mélanger. Dans la praticque leurs frontières sont souvent difficiles à respecter” ( BAKHTINE,
1970:238).
“Of course, metalinguistics research cannot ignore linguistics and must make use of its
results. Linguistics and metalinguistics study one and the same concrete, highly complex,
and multi-faceted phenomenon, namely, the word - but they study it from various sides and
various points of view. They must complement one another, but they must not be confused.
In practice, the boundaries between them are very often violated” (BAKHTIN, 1994:181).
“Desde luego, las investigaciones translingüísticas no pueden menospreciar a esta última
[lingüística] y deben aprovechar sus resultados. Tanto la una como la outra estudian un
mismo fenómeno concreto, sumamente complejo y polifacético: la palabra, pero lo estudian
en sus diferenes aspectos y bajo diversos puntos de vista. Deben completarse mutuamente
sin confundirse. Pero en la práctica las fronteras entre estos enfoques se pierden con mucha
frecuencia” (BAJTIN, 1986:253).

Uma segunda distinção entre a Lingüística e a Metalingüística é o ângulo sob o qual elas observam
o mesmo fenômeno concreto - a palavra -, o ângulo monológico, na primeira, entendendo-se essa abs-
tração ora não só como o uso monológico da palavra (estilística numa acepção puramente lingüística),
mas também, como a própria abstração desse uso (estudo sistêmico); e o ângulo dialógico até o uso
polifônico da palavra, na segunda:

Proceedings XI International Bakhtin Conference 674


“O problema não está na existência de certos estilos de linguagem, dialetos sociais, etc.,
existência essa estabelecida por meio de critérios meramente lingüísticos; o problema está
em saber sob que ângulo dialógico eles confrontam ou se opõem na obra. Mas é precisamente
esse ângulo diálogico que não pode ser estabelecido por meio de critérios genuinamente
lingüísticos, porque as relações dialógicas, embora pertençam ao campo do discurso, não
pertencem a um campo puramente lingüístico do seu estudo” (BAKHTIN, 1997:182).
“Ce qui compte, c’est non pas l’existence de certains idiolectes, de dialectes sociaux, etc.,
décelables à l’aide de critères purement linguistiques, mais l’angle dialogique sous lequel
ils s’opposent ou se juxtaposent à l’intérieur de l’oeuvre. Là, les critères linguistiques sont
inopérants car les rapports dialogiques, bien qu’entrant dans le domaine du mot, échappent
à une étude de ce dernier purement linguistique” (BAKHTINE, 1970:239).
“For what matters here is not the mere presence of specific language styles, social dialects,
and so forth, a presence established by purely linguistic criteria; what matters is the dialogic
angle at which these styles and dialects are juxtaposed or counterposed in the work. Yet this
dialogic angle is precisely what cannot be measured by purely linguistic criteria, because
dialogic relationships, although belonging to the realm of the word, do not belong to the real
of its purely linguistic study” (BAKHTIN, 1994:182).
“No se trata de la propia existencia de determinados estilos de lengua, de dialectos so-
ciales, etc., establecidos bajo criterios puramente lingüísticos, lo que importa es bajo qué
ángulo dialógico se confrontan o se contraponen en la obra. Aunque este ángulo no puede
ser establecido mediante criterios puramente lingüísticos, porque las relaciones dialógicas,
a pesar de que se refieren a los dominios de la palabra, no se relacionan com el estudio
exclusivamente lingüísticos de ésta” (BAJTIN, 1986:254).

O objeto da lingüística, como bem lembra Bakhtin, é a língua. No capítulo que trata desse problema,
no Curso de Lingüística Geral, Saussure esclarece: “Para atribuir à língua o primeiro lugar no estudo da
linguagem, pode-se, enfim, fazer valer o argumento de que a faculdade - natural ou não - de articular
palavras não se exerce senão com ajuda de instrumento criado e fornecido pela coletividade; não é, então,
ilusório dizer que é a língua que faz a unidade da linguagem” (SAUSSURE, 1995:18)5. A oposição entre
Saussure e Bakhtin parece residir em concepções diferentes de linguagem. Para Saussure, a linguagem
como língua e, para Bakhtin, a linguagem como comunicação dialógica. Parece ser nesse eixo que se
distingue, a princípio, as concepções de uma e outra escola de estudos da linguagem. Como observa
Bakhtin no ensaio “El problema del texto en la lingüística, la filología y otras ciencias humanas“: “... la
lengua y la comunicación discursiva (como un intercambio dialógico de enunciados) nunca han de ser
confundidos” (BAJTIN, 1982:299).
Mas, como já vimos, Bakhtin e seu Círculo, ao tomar a linguagem como comunicação dialógica e definir
o enunciado concreto como sua unidade, irá abrir um campo para estudos dos fenômenos da linguagem
cuja riqueza e importância heurística ainda não foram profundamente observadas.
Uma das bases filosóficas desses estudos é, conforme Volochinov (1986) demonstra em Marxismo
e Filosofia da Linguagem, ao definir a natureza de seus estudos (e do Círculo), uma Filosofia marxista
da linguagem concebida como uma Filosofia da palavra e seus estudos como um estudo da “palavra na
palavra”. Isso implica em pensar que, do ponto de vista da dialogicidade interna da obra, é a palavra
(Filosofia da palavra, palavra como um ato responsável, palavra como signo ideológico) que orienta as
reflexões filosófico-lingüísticas do Círculo.
O átomo da investigação bakhtiniana e de seu Círculo é o enunciado concreto, e o núcleo desse é a
palavra, a qual permite que eles dialoguem com outras disciplinas lingüísticas - estilística, lexicologia,
sintaxe etc. a partir de um mesmo ponto em comum. Para testar o seu método e o da lingüística, em
vários momentos os estudiosos russos tomam como exemplo, um enunciado de uma única palavra,
mostrando a impossibilidade de uma sua compreensão ativa do ponto de vista da lingüística.
À diferença de outras disciplinas, o real empenho de Bakhtin e seu Círculo é construir um sistema
dialógico de avaliação e apreciação dos fenômenos da linguagem, o que inclui, também, uma relação de
complementariedade com essas outras disciplinas. O enfoque dialógico aponta para uma compreensão
responsiva impossível dentro de um enfoque estritamente lingüístico. Mesmo os fenômenos monológi-
cos são colocados na cadeia da comunicação dialógica e, desse ponto de vista, são também respostas a
enunciados anteriores e apontam para enunciados futuros, ou seja, participam da mesma engrenagem
dinâmica que os fenômenos dialógicos.
Nesse sentido, Bakhtin escolhe como objeto de sua ciência da linguagem as próprias relações dialó-
gicas:
“As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própia fala) são
objetos da metalingüística. Mas aqui estamos interessados precisamente nessas relações,
que determinan as particularidades da construção da linguagem nas obras de Dostoiévski”
(BAKHTIN, 1997:182)6.

5. O fato de alguns tradutores traduzirem o termo slovo por discurso pode ser uma influência da Lingüística da fala/do discurso que era prevista mas não
foi desenvolvida por Saussure.
6. Observe a polêmica entre os termos fala, mot, discours e discurso na vida plurilingüe da obra.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 675


“Les rapports dialogiques (y compris ceux du locuteur avec son propre mot) sont un objet de
la translinguistique. Et ce sont eux, en ce qu’ils déterminent les particularités d’organisation
du discours dans les oeuvres de Dostoievski, qui nous intéressent ici” (BAKHTINE,
1970:239).
Dialogic relationships (including the dialogic relationships of a speaker to his own discour-
se) are the subject of metalinguistics. And it is precisely these relationships, determing
the characteristic features of verbal structure in Dostoevsky’s work, that interest us here”
(BAKHTIN, 1994:182).
“Las relaciones dialógicas (incluyendo la actitud dialógica del hablante en su próprio discurso)
son objeto de la translingüística. Estas relaciones, que determinan las particularidades de
la estructura discursiva de las obras de Dostoievski, son justamente las que nos interesan
aquí” (BAJTIN, 1986:254).

O aprofundamento do problema do diálogo, para além do discurso dialógico, nas relações entre o
autor e os heróis dostoievskianos nos leva a colocar dois planos para se pensar as relações dialógicas:
na vida e na arte:
“As relações dialógicas - fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas
do diálogo expresso composicionalmente - são um fenômeno quase universal, que penetra
toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma,
tudo o que tem sentido e importância” ( BAKHTIN, 1997:42).

No sentido acima, quase filosófico, as relações dialógicas caem como uma luva enquanto expressão do
“dialogismo” de Bakhtin. Mas é na sua transposição para o enunciado artístico que reside a originalidade
do gênero de romance criado por Dostoiévski:
“Dostoiévski teve a capacidade de auscultar relações dialógicas em toda a parte, em todas
as manifestações da vida humana consciente e racional; para ele, onde começa a consciência
começa o diálogo. Apenas as relações puramente mecânicas não são dialógicas, e Dostoiévski
negava-lhes categoricamente importância para a compreensão e a interpretação da vida e
dos atos do homem... Por isso todas as relações entre as partes externas e internas e os
elementos do romance têm nele caráter dialógico; ele construiu o todo romanesco como um
“grande diálogo”. No interior desse “grande diálogo” ecoam, iluminando-o e condensando-
o, os diálogos composicionalmente expressos das personagens; por último, o diálogo se
adentra no interior, em cada palavra do romance, tornando-a bivocal, penetrando em cada
gesto, em cada movimento mímico da face do herói, tornando-o intermitente e convulso;
isto já é o “microdiálogo”, que determina as particularidades do estilo literário de Dostoié-
vski” (BAKHTIN, 1997:42).

O romance polifônico se constitui, então, em três planos:


1) o enunciado como totalidade: “o grande diálogo” dos heróis, incluindo o autor/narrador;
2) os diálogos dos heróis expressos composicionalmente;
3) o microdiálogo: as palavras bivocais (de duas vozes) no diálogo interior dos heróis.
As relações dialógicas, nesse “grande diálogo” do enunciado como totalidade, são relações entre vidas,
pensamentos, idéias, vozes, pessoas, personalidades, consciências, ou seja, uma visão não coisificada
do homem e de seu mundo.
Se Dostoiévski transfere as relações dialógicas do plano da vida para o plano da arte, ao analisar como
Dostoiévski compreende o homem e seu mundo, Bakhtin procura experimentar uma outra possibilidade.
Penetrando na especificidade artística do mundo de Dostoiévski, ele acaba construindo em outra esfera
da comunicação diálogica -, uma ciência da linguagem - Metalingüística - na qual os vários planos em que
o diálogo é problematizado - do micro ao grande diálogo - exige uma nova posição do estudioso das ci-
ências humanas em relação ao seu objeto, e em relação ao enunciado do outro sobre o mesmo objeto.
A idéia de que Dostoiévski “tinha o dom genial de auscultar o diálogo de sua época, ou, em termos
mais precisos, auscultar a sua época como um grande diálogo, de captar nela não só vozes isoladas
mas ante de tudo as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas” ( BAKHTIN,
1997:89), serve inteiramente a uma avaliação do próprio Bakhtin. Nesse sentido, Bakhtin se confunde
com seu objeto, ele dialoga com ele de vários outros pontos de vista no interior das ciências humanas:
psicológicos, estudos literários, lingüísticos, sociológicos, etc. Ler Dostoiévski com Bakhtin significa ler
o “homem no homem”.
Mas voltemos às observações metodológicas de Bakhtin acerca das especificidades do objeto da Me-
talingüística, recuperando algumas características das relações dialógicas como elas aparecem no ensaio
“El problema del texto en la lingüística, la filología y otras ciencias humanas” (1959-1961) e em PPD,
para depois retornar ao problema da polifonia. Quais são as características das relações dialógicas?
1) são relações extralingüísticas;
2) “pressuponen la presencia de una lengua, pero no existen en el sistema de la lengua” (BAJTIN,
1982:309);

Proceedings XI International Bakhtin Conference 676


3) “son relaciones (de sentido) entre toda clase de enunciados en la comunicación discursiva” (BA-
JTIN, 1982:309);
4) “no coinciden en absoluto com las relaciones que se establecen entre las réplicas de un diálogo
real, por ser mucho más abarcadoras, heterogéneas y complexas” (BAJTIN, 1982:317);
5) “são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de
momento dialógico”, embora sejam impossíveis sem essas;
6) as relações lógicas (negação, identidade) ou concreto-semânticas “devem personificar-se na
linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na lingua-
gem”, elas “devem materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se
discurso [mot], ou seja, enunciado e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa”
(BAKHTIN, 1997:183-184).
Para compreender ativamente as relações dialógicas, devemos ter como “fundo dialógico” uma Teoria
do enunciado, conforme expressa em MFL e outros livros e ensaios do Círculo dos anos 20. O problema
do enunciado não pode ser compreendido sem o problema da autoria. O enunciado é expressão de um
determinado autor e a sua materialização, bem como a própria materialização das relações dialógicas
não é somente extralingüística, como também, relações personificadas na linguagem:
“... todo enunciado tem uma espécie de autor, que no próprio enunciado escutamos como o
seu criador. Podemos não saber absolutamente nada sobre o autor real, como ele existe fora
do enunciado. As formas dessa autoria real podem ser muito diversas. Uma obra qualquer
pode ser produto de um trabalho de equipe, pode ser interpretada como trabalho heredi-
tário de várias geracões, etc., e apesar de tudo, sentimos nela uma vontade criativa única,
uma posição determinada diante da qual se pode reagir dialogicamente. A reação dialógica
personifica toda enunciação [énoncé] à qual ela reage” ( BAKHTIN, 1997:241).

A partir dessas características gerais, podemos dar uma amostra de tipos de relações dialógicas apre-
sentadas por Bakhtin, fragmentariamente, ao longo da obra. As relações dialógicas são possíveis:
1) entre enunciados integrais [complets], isto é, entre dois sujeitos no diálogo face a face (com-
posicionalmente expresso) ou, num sentido mais amplo, entre duas obras de um mesmo autor, ou de
autores diferentes;
2) entre uma palavra isolada no interior de um enunciado completo, se a vemos “como signo da
posição semântica de um outro, como representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos
nela a voz do outro” (BAKHTIN, 1997:184);
3) numa palavra isolada no interior de um enunciado completo, se nela se chocam duas vozes, ou
seja, a dialogicidade interna da palavra (o microdiálogo);
4) entre estilos de linguagem, dialetos sociais, etc. “desde que eles sejam entendidos como certas
posições semânticas, como uma espécie de cosmovisão da linguagem, isto é, numa abordagem não mais
lingüística” (BAKHTIN, 1997:184);
5) entre nosso próprio enunciado como um todo e suas partes, “une attitude dialogique est enfin
possible vis-à-vis de notre propre énoncé dans sa totalité, ou bien de l’une de ses parties, ou même d’un
mot isolé, si nous prenons du recul par rapport à cet énoncé, si nous ouvrons des parenthèses intérieu-
res s’il y a une distanciation par rapport à lui, soit que nous restreignions, soit que nous dédoublions en
quelque sorte notre paternité” (BAKHTINE, 1970:242).
Em alguns desses tipos, as relações dialógicas vão para o interior do enunciado, e correspondem, na
tipologia de usos da palavra de Bakhtin, à palavra orientada para a palavra do outro, isto é, ao objeto
principal da Metalingüística: a palavra bivocal. Essa última, principalmente, as variantes multidirecionais
e o tipo ativo, são essenciais para a construção do romance polifônico:
“A própria orientação do homem em relação ao discurso [mot] do outro e à consciência do
outro é essencialmente o tema fundamental de todas as obras de Dostoiévski” (BAKHTIN,
1997:208).

Convém ressaltar que o objetivo último de Bakhtin, em PPD, é o estudo de Dostoiévski em Dostoiévski,
isso é, o estudo das particularidades de sua obra que, para ele, é dialógica em todos os seus aspectos,
é como que uma Filosofia dialógica da linguagem desenvolvida enquanto enunciado artístico até o limite
da polifonia.
O estudo da palavra na palavra que é o centro da investigação de Bakhtin e seu Círculo se desenvolve
a partir de um aprofundamento das particularidades do discurso dialógico:
“A lingüística conhece, evidentemente, a forma composicional do “discurso dialógico” e
estuda as suas particularidades sintáticas léxico-semánticas. Mas ela as estuda enquanto
fenômenos puramente lingüísticos, ou seja, no plano da língua, e não pode abordar, em
hipótese alguma, a especificidade das relações dialógicas entre as réplicas. Por isso, ao es-
tudar o “discurso dialógico”, a lingüística deve aproveitar os resultados da metalingüística”
(BAKHTIN, 1997:183).
“La linguistique connaît évidemment la forme compositionnelle du “discours dialogique”,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 677


en étudie les particularités syntaxiques et lexico-sémantiques. Mais elle les prend comme
des phénomènes purement linguistiques, c’est-à-dire sur le plan de la langue, et ne peut
en aucune manière aborder la spécificité des rapports dialogiques entre les répliques. En
somme, dans son étude du “discours dialogique”, la linguistique doit utiliser les résultat de
la translinguistique” (BAKHTINE, 1970:240).
“Linguistics recognizes, of course, the compositional form of “dialogic speech” and studies
its syntactic and lexical-semantic characteristics. But it studies these as purely linguistic
phenomena, that is, on the level of language, and is utterly incapable of treating the specific
nature of dialogic relationships between rejoinders in a dialogue. Thus, when studying “dialogic
speech,” linguistics must utilize the results of metalinguistics” (BAKHTIN, 1994:182-183).
“La lingüística conoce, por supuesto, la forma composicional del “discurso dialogado” y
estudia sus particularidades sintácticas y léxico-semánticas, pero lo hace como fenómenos
puramente lingüisticos, es decir, en el plano de la lengua, y puede no referise en absoluto a
la especificidad de las relaciones dialógicas entre réplicas. Por eso, al estudiar el “discurso
dialogado”, la lingüística debe aprovechar los resultados de la translingüística” (BAJTIN,
1986:255).

Sair do plano da língua para o plano da comunicação dialógica, para além de uma idéia mecânica da
comunicação verbal, onde as relações dialógicas entre enunciados, estilos e gêneros podem ser investi-
gadas. Essa parece ser a tarefa que se propõe Bakhtin ao definir o campo de estudo da Metalingüística.
Mas não é só isso, Bakhtin não está interessado só em ir além das “possibilidades” da língua, ele quer
estudar efetivamente a natureza dialógica da vida da linguagem, da língua, do discurso, da palavra, seja
lá qual variante escolhermos, ou seja, é o uso da palavra em gêneros, estilos e enunciados concretos:
“Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a
prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a lingüís-
tica estuda a “linguagem” propiamente dita com sua lógica específica na sua generalidade,
como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai conseqüentemente
as relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do discurso, pois
este é por natureza dialógico e, por isto, tais relações devem ser estudadas pela metalingü-
ística, que ultrapassa os limites da lingüística e possui objeto autônomo e metas próprias”
(BAKHTIN, 1997:183).
“Toute la vie de celle-ci [langue], quelle que soit la zone de son emploi (langue quotidienne,
d’affaires, scientifique, artistique, etc.), est sous-tendue de rapports dialogiques; mais la
linguistique étudie la “langue” même avec sa logique specifique, dans sa généralité, comme
ce qui rend possible l’échange dialogique; quant aux rapports dialogiques eux-mêmes, la
linguistique ne les effleure qu’en passant. Ces rapports se situent dans le domaine du mot
(qui, lui, est dialogique par nature) et son, par conséquent, objet de la translinguistique”
(BAKHTINE, 1970:240).
“The entire life of language, in any area of its use (in everyday life, in business, scholarship,
art, and so forth), is permeated with dialogic relationships. But linguistics studies “language”
itself and the logic specific to it in its capacity as a common ground, as that which makes
possible dialogic interaction; consequently, linguistics distances itself from the actual dialogic
relationships themselves. These relationships lie in the realm of discourse, for discourse is
by its very nature dialogic; they must therefore be studied by metalinguistics, which exceeds
the limits of linguistics and has its own independent subject matter and tasks” (BAKHTIN,
1994:183).
“Toda la vida de una lengua en cualquier área de su uso (cotidiana, oficial, científica, artística,
etc.) está compenetrada de relaciones dialógicas. Pero la lingüística estudia la “lengua” misma
con su lógica, dentro de un carácter general, como algo que vuelve posible la comunicación
dialógica, abstrayéndose metódicamente de las propias relaciones dialógicas. Éstas se ubican
en el dominio de la palabra, puesto que la palabra es dialógica por naturaleza, y por lo tanto
deben estudiarse por la translingüística que trasciende los límites de la lingüística y posee
un objeto y propósitos independientes” (BAJTIN, 1986:255).

O objeto principal de Bakhtin e seu Círculo não é a palavra enquanto signo lingüístico, enquanto pos-
sibilidades de atualização. Não, para ele é a palavra enquanto signo ideológico, signo dialógico, realizado
concretamente na vida da linguagem, da língua, do discurso em enunciados concretos. O limite de sua
ciência é a palavra. Não que não aponte para uma análise ampla das relações dialógicas envolvendo
outros fenômenos não-verbais:
“Lembremos para concluir que, numa abordagem ampla das relações dialógicas, estas são
possíveis também entre outros fenômenos conscientizados desde que estes estejam expres-
sos numa matéria sígnica. Por exemplo, as relações dialógicas são possíveis entre imagens
de outras artes, mas essas relações ultrapassam os limites da metalingüística” (BAKHTIN,
1997:184),
“Rappelons pour conclure que des rapports dialogiques, au sens large, sont possibles entre

Proceedings XI International Bakhtin Conference 678


d’autres phénomènes de signification dès lors que ceux-ci sont produits par une matière
sémiotique. Les rapports dialogiques peuvent exister, par exemple, avec des images prises
dans d’autres arts. Mais ce problème dépasse le cadre de la linguistique [sic]” (BAJTIN,
1970:242).
“In conclusion, we remind the reader that dialogic relationships in the broad sense are also
possible among different intelligent phenomena, provided that these phenomena are ex-
pressed in some semiotic material. Dialogic relationships are possible, for example, among
images belonging to different art forms. But such relationships already exceed the limits of
metalinguistics” (BAKHTIN, 1997:184).
“En conclusión recordemos que en un análisis amplio de relaciones dialógicas, éstas son
posibles también entre otros fenómenos interpretables, si estos fenómenos se expresan
mediante alguna clase de material sígnico, por ejemplo, entre imágenes de otras artes. Pero
estas relaciones sobrepasan los límites de la translingüística” (BAJTIN, 1986:258).

Em outro momento da mesma obra, Bakhtin dirá, por exemplo, que “do ponto de vista de uma
estética filosófica, as relações de contraponto na música são uma mera variedade musical das relações
dialógicas entendidas em termos amplos” ( BAKHTIN, 1997:44).
Definidos os limites da Metalingüística, Bakhtin trata de tornar mais específico esse objeto relacional
- relações dialógicas -, indo até o seu núcleo, seu objeto principal: a palabra bivocal:
“O objeto principal de nosso exame, pode-se dizer, seu herói principal, é o discurso bivocal,
que surge inevitavelmente sob as condições da comunicação dialógica, ou seja, nas condições
da vida autêntica da palavra. A lingüística desconhece esse discurso bivocal. Mas, achamos,
é precisamente ela (sic) que deve tornar-se o objeto principal de estudo da metalingüística”
( BAKHTIN, 1997:184-185).
“L’objet essentiel de notre étude, la vedette pourrait-on dire, sera le mot à deux voix (bivocal)
qui nâit immanquablement lors de l’échange dialogique, c’est-à-dire dans les conditions de la
vie authentique du mot. Ce mot est ignoré de la linguistique. Mais il nous semble que c’est
lui précisément qui doit devenir l’un des principaux objets d’étude de la translingüístique”
( BAKHTINE, 1970:242).
“The chief subject of our investigation, one could even say its chief hero, will be double-
voiced discourse, which inevitably arises under conditions of dialogic interaction, that is,
under conditions making possible an authentic life for the word. Linguistics does not recog-
nize double-voiced discourse. But precisely it, in our opinion, must become one of the chief
objects of study for metalingüistics” ( BAKHTIN, 1994:185).
“Se puede decir que el objeto principal de nuestro examen, su protagonista, será la palabra
bivocal que se origina ineludiblemente en las condiciones de la comunicación dialógica, es
decir, en las condiciones de la vida auténtica de la palabra. La lingüística no conoce esta
palabra bivocal, y es precisamente ésta, según nuestro parecer, la que debe ser el objeto
principal de estudio en el campo de la translingüística” ( BAJTIN, 1986:25).

Metalingüística e Estilística
Definido o objeto principal da Metalingüística, a palabra bivocal, Bakhtin apresenta alguns fenômenos
literários que são precisamente fenômenos bivocais, que já eram seu objeto de estudo em Problemas da
obra de Dostoiévski (1929) dentro de uma Sociologia da palavra artística e que, aqui, são reacentuados
para o interior da Metalingüística:
“Existe um conjunto de fenômenos do discurso-arte que há muito tempo vem chamando a
atenção de críticos literários e lingüistas. Por sua natureza, esses fenômenos ultrapassam
os limites da lingüística, isto é, são fenômenos metalingüísticos. Trata-se da estilização, da
paródia, do skaz e do diálogo (composicionalmente expresso, que se desagrega em réplicas)”
( BAKHTIN, 1997:185).
“Il existe une série de phénomènes, dans le discours artistique, qui attire depuis longtemps
l’attention des linguistes et des critiques littéraires. Par leur nature ces phénomènes sortent
du cadre de la linguistique, autrement dit son translinguistiques. Il s’agit de la stylisation, de
la parodie, du dit (skaz) et du dialogue (“produit” par la composition, divisé en répliques)”
( BAKHTINE, 1970:242-243).
“There exists a group of artistic-speech phenomena that has long attracted the attention of
both literary scholars and linguists. By their very nature these phenomena exceed the limits
of linguistics; that is, they are metalinguistic. These phenomena are: stylization, parody,
skaz and dialogue (compositionally expressed dialogue, broken down into rejoinders)” (
BAKHTIN, 1994:185).
“Existe un grupo de fenómenos artísticos discursivos que desde hace mucho tiempo atrae la
atención, tanto de los analistas literarios con de los lingüistas, pero que por su naturaleza
están fuera del objeto de la lingüística, es decir, son de índole translingüística. Estos fenóme-
nos son: estilizaciones, parodia, relato oral (skaz) y diálogo (expresado composicionalmente,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 679


consistente en réplicas)” ( BAJTIN, 1986:258).

Se em PPD, a estilística ao abordar esses fenômenos deve basear-se na Metalingüística, na primeira


versão dessa obra (Problemas da obra de Dostoiévski, 1929) e também nos anos 30 (A palavra no ro-
mance), o tipo de abordagem apontava para uma estilística sociológica:
“A estilística deve basear-se não apenas e nem tanto na lingüística quanto na metalingüística,
que estuda a palavra não no sistema da língua e nem num “texto” tirado da comunicação
dialógica, mas precisamente no campo propiamente dito da comunicação dialógica, ou seja,
no campo da vida autêntica da palavra. A palavra não é um objeto, mas um meio constan-
temente ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma
consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para
outro, de um grupo social para outro, de uma geração para outra” ( BAKHTIN, 1997:203).
“A dialogicidade interna do discurso romanesco exige a revelação do contexto social concre-
to, o qual determina toda a sua estrutura estilística, sua “forma” e seu “conteúdo”, sendo
que os determina não a partir de fora, mas de dentro; pois o diálogo social ressoa no seu
próprio discurso, em todos os seus elementos, sejam eles de “conteúdo” ou de “forma”
(BAKHTIN, 1993:106).
“Em teoria, analisamos apenas a relação estilística de elementos dentro de uma mensagem
fechada, de encontro a um fundo de categorias lingüísticas abstratas. Apenas esses fenôme-
nos de uma só voz estão ao alcance daquela estilística lingüística superficial que até agora,
a despeito de todo o seu valor lingüístico, foi capaz de registrar na criação literária apenas
os traços e os depóstiso deixados na periferia verbal das obras por objetivos literários que
ela ignora” (BAKHTIN, 1983:481)

O fato da lingüística não levar em consideração a palavra bivocal tem consequências para a própria
estilística. Assim como, para o Círculo, uma poética lingüística não teria condições de analisar uma obra
artística na sua especificidade artística, também a estilística lingüística não pode tratar da função pro-
priamente artística do estilo:
“Os autênticos fatores formadores do estilo ficam fora do campo de visão da estilística lin-
güística” ( BAKHTIN, 1997:227).

Por não reconhecer a palavra bivocal, a Estilística lingüística não consegue perceber certas particu-
laridades de estilo que ocorrem numa determinada obra, quando justamente esse tipo de palavra, essa
orientação do autor para a palavra do outro, é o seu tema.
Recolhemos, algumas particularidades estilísticas das análises concretas que Bakhtin faz de obra de
Dostoiévski, para termos uma idéia geral do alcance de uma estilística metalingüística. Nesse sentido, a
estilística lingüística não consegue perceber, entre outras, as seguintes particularidades estilísticas:
1) o choque e a dissonância de diferentes acentos nos limites de um todo sintático;
2) as relações interiormente dialógicas da palavra com a mesma palavra em um contexto de outro
e em lábios outros;
3) as ligações dinâmicas e tensas entre os enunciados;
4) a orientação dialógica da narração voltada para o herói;
5) a relação da narração com o diálogo interior do herói;
6) a pluralidade de estilos numa mesma obra;
A palavra, a voz, o enunciado. Bakhtin orienta todas essas variantes de um mesmo fenômeno en-
quanto unidade da comunicação dialógica, e sob o ângulo dialógico dispõe essas categorias segundo o
princípio arquitetônico da relação eu/outro:
“Um membro de um grupo falante nunca encontra previamente a palavra como uma palavra
neutra da língua, isenta das aspirações e avaliações de outros ou despovoada das vozes dos
outros. Absolutamente. A palavra ele a recebe da voz de outro e repleta de voz de outro. No
contexto dele, a palavra deriva de outro contexto, é impregnada de elucidações de outros.
O próprio pensamento dele já encontra a palavra povoada. Por isso, a orientação da palavra
entre palavras, as diferentes sensações da palavra do outro e os diversos meios de reagir
diante dela são provavelmente os problemas mais candentes do estudo metalingüistico de
toda palavra, inclusive da palavra artisticamente empregada” ( BAKHTIN, 1997:203).
“Tout membre d’une collectivité parlante trouve non pas des mots neutres “linguistiques”,
libres des appréciations et des orientations d’autrui, mais des mots habités par de voix
autres. Il les reçoit par la voix d’autrui, emplis de la voix d’autrui. Tout mot de son prope
contexte provient d’un autre contexte, déjà marqué par l’interprétation d’autrui. Sa pensée
ne rencontre que des mots déjà occupés. C’est pour cette raison que l’orientation du mot, les
différentes perceptions d’autrui, les multiples façons d’y réagir, sont peut-être les problèmes
essentiels de l’étude translinguistique de n’importe quel mot, et surtout du mot littéraire”
(BAKHTINE, 1970:263).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 680


“When a member of a speaking collective comes upon a word, it is not as a neutral word of
language, not as a word free from the aspirations and evaluations of others, uninhabited
by others’ voices. No, he receives the word from another’s voice and filled with that other
voice. The word enters his context from another context, permeated with the intepretations
of others. His own thought finds the word already inhabited. Therefore the orientation of
a word among words, the variying perception of another’s word and the various means for
reacting to it, are perhaps the most fundamental problems for the metalinguistic study of
any kind of discourse, including the artistic” ( BAKHTIN, 1994:202).
“Todo miembro de una colectividad hablante se enfrenta a la palabra, no en tanto que pa-
labra natural de la lengua, libre de aspiraciones y valoraciones ajenas, despoblada de voces
ajenas, sino que la recibe por medio de la voz del outro y saturada de esa voz. La palabra
llega al contexto del hablante a partir de outro contexto, colmada de sentidos ajenos, su pró-
prio pensamiento la encuentra ya poblada. Es por eso que la orientación de la palabra entre
palabras, la percepción diversificada de la voz ajena y los diferentes modos de reaccionar a
ella, quizá aparezcan como los problemas más importantes del estudio translingüístico de
cada palabra, incluyendo el discurso literario” ( BAJTIN, 1986:283).

Polifonia
A obra de Dostoiévski não é só a fonte como a origem de toda a reflexão de Bakhtin sobre a natu-
reza dialógica da linguagem. É em Dostoiévski que encontramos o material concreto para explicitar a
importância e complexidade dessa nova ciência da linguagem, como que uma ciência do diálogo e seu
objeto principal - a palavra bivocal:
“A cosmovisão dialógica, como vimos, prescreve toda a obra restante de Dostoiévski, a
começar por Gente Pobre. Por isto, a natureza dialógica do discurso manifesta-se nela com
imenso vigor e sensibilidade marcante. O estudo metalingüístico dessa natureza, particular-
mente das múltiplas variedades do discurso bivocal e sua influência em diversos aspectos
da construção do discurso, encontra nessa obra matéria excepcionalmente abundante” (
BAKHTIN, 1997:272).
“Nous avons vu que la perception dialogique du monde traverse également tout le reste
de l’oeuvre, depuis les Pauvres Gens. De là que la nature dialogique du mot se manifeste
chez Dostoïevski avec tant de force et de netteté. L’étude translinguistique de cette nature
dialogique, en particulier des variantes multiples du mot bivocal et de son influence sur les
differents aspects structuraux du discours, trouve dans cette oeuvre une matière exceptio-
nelle” ( BAKHTINE, 1970:342).
“A dialogic feeling for the world, as we have seen, permeates all Dostoevsky’s other works as
well, beginning with Poor Folk. Thus the dialogic nature of the word is revealed in his work
with enormous force and with an acute palpability. Metalinguistic research into the nature
of this dialogicality, and especially into the diverse varieties of double-voiced discourse and
its influence on various aspects of the structure of speech, finds in Dostoevsky’s creative art
extraordinarily rich material” ( BAKHTIN, 1994:265).
“La percepción dialógica del mundo impregna, como hemos visto, toda la obra de Dostoievski
en su conjunto a partir de Pobres gentes. Es por eso que la naturaleza dialógica de la palabra
se manifeiesta en sus escritos con tanta fuerza y es tan palpable. El estudio translingüístico
de esta naturaleza y en particular de las numerosas variedades de la palabra bivocal, con
sus influencias sobre los diversos aspectos de la estructuración del discurso, encuentra en
su obra un material excepcionalmente fértil” ( BAJTIN, 1986:375).

Num diálogo com as idéias de Chklovski (1957), um dos fundadores do formalismo russo, Bakhtin
vai falar, pela primeira vez, da relação das relações dialógicas, objeto da Metalingüística, com o gênero
polifônico de romance:
“De fato, o caráter essencialmente dialógico em Dostoiévski não se esgota, em hipótese
alguma, nos diálogos externos composicionalmente expressos, levados a cabo pelas suas
personagens. O romance polifônico é inteiramente dialógico. Há relações dialógicas entre
todos os elementos da estrutura romanesca, ou seja, eles estão em oposição como contra-
ponto” ( BAKHTIN, 1997:42).

Considerando-se que gênero são tipos de enunciados relativamente estáveis do ponto de vista te-
mático, composicional e estilístico, e que o tema fundamental do romance polifônico, em Dostoiévski, é
examente a orientação do autor/narrador em relação ao discurso do herói, quais são as características
composicionais e estilísticas desse gênero?
O princípio composicional de construção do todo, na autêntica polifonia, leva em consideração não
só a multiplicidade de planos, mas também uma multiplicidade de mundos e de vozes plenivalentes nos
limites de uma obra, de um enunciado completo:
“... c’est le mot divergent bivocal qui prédomine, surtout son sous-groupe actif, avec le mot

Proceedings XI International Bakhtin Conference 681


intérieurement dialogisé et le mot d’autrui réfracté: polémique caché, confession teintée de
polémique, dialogue caché” (BAKHTINE, 1970:264).

Compreender a categoria polifonia como ela é construída por Bakhtin em PPD é muito difícil. Ela não
envolve apenas as relações dialógicas entre os enunciados, nem somente as palavras bivocais que se
chocam dentro desses enunciados, mas atinge exatamente o âmago da compreensão do homem no
próprio Dostoiévski:
“Somente na comunicação, na interação do homem com o homem revela-se o “homem no
homem” para outros ou para si mesmo” ( BAKHTIN, 1997:256).

Se no centro do mundo artístico de Dostoiévski está situado o diálogo como fim, é esse o mesmo
sentimento que temos ao estudar o mundo filosófico-metalingüístico de Bakhtin e seu Círculo. Ao situar
as relações dialógicas e a palavra bivocal como objetos de sua ciência, o problema da palavra na palavra,
do enunciado no enunciado, Bakhtin quer investigar o diálogo como fim:
“ Uma só voz nada termina e nada resolve. Duas vozes são o mínimo da vida, o mínimo de
existência” ( BAKHTIN, 1997:257).

A interação discursiva, o diálogo, é a realidade concreta da linguagem. Com esse postulado e seus
desdobramentos, Bakhtin e seu Círculo constróem não só uma nova ciência da linguagem, mas uma
autêntica ciência humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAJTIN, M. (1982) Estética de la creación verbal. (1982) Cidade do México, Siglo Veintiuno Editores.
_____. (1986) Problemas de la poetica de Dostoyevski. Trad. Tatiana Bubnova. México, Fondo de Cultura Económi-
ca.
BAKHTIN, M. (1983) “A tipologia do discurso na Prosa” In: LIMA, Luiz Costa. (1983) Teoria da literatura em suas
fontes. Rio de Janeiro, Francisco Alves. 2a. edição. pp. 462-484.
_____. (1992) Estética da criação verbal. Trad. do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fon-
tes.
_____. (1993) Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Trad. do russo de Aurora Fornoni Bernardini
e outros. 3a. edição. São Paulo, UNESP.
_____. (1994) Problems of Dotoevsky’s Poetics. Trad. do russo Caryl Emerson. Minneapolis. University of Minnesota
Press.
_____. (1997) Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 2a. edição. Rio de Janeiro, Ed. Forense-
Universitária.
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV) (1986) Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. do francês de Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. 3a. edição. São Paulo, Hucitec.
BAKHTINE, M. (1970) La poétique de Dostoïevski. Trad. Isabelle Kolitcheff. Paris, Éditions du Seuil.
KRISTEVA, Julia (1969) “Le mot, le dialogue et le roman” In: Kristeva, J. (1969) Semiotique. Recherches por une
sémanalyse. Paris, Éditions de Seuil.
SAUSSURE, Ferdinand (1995) Curso de lingüística geral. Trad. Antônio Chelini e outros. 20a. edição. São Paulo, Cul-
trix.
TODOROV, T. (1981) Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions
du Seuil.

TEXTOS CHAVE: Problemas da poética de Dostoiévski, Estética da criação


verbal
NOMES CHAVE: Bakhtin, Kristeva, Saussure, Todorov, Volochinov
PALAVRAS CHAVE:Metalingüística, Translingüística, Lingüística, Estilística,
relações dialógicas
BIOGRAFIA RESUMIDA: Geraldo Tadeu Souza é professor doutor do Departa-
mento de Lingüística da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisas em torno
da obra do Círculo de Bakhtin, tendo publicado Introdução à teoria do enunciado
concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev (São Paulo, Humanitas, 2002,
2a. Edição). Participa do grupo de pesquisa “Linguagem e Trabalho”, coordenado
pelos professores Maria Cecília Pérez Souza-e- Silva, Beth Brait e Décio Rocha na
PUC-SP.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 682


A sátira moralista sucumbe ao trópico.

Sandra Mara Stroparo

Universidade Federal do Paraná

R. Gal. Carneiro, 784/5A

Curitiba PR 80060-150.

RESUMO
O presente trabalho é uma aproximação de aspectos do pensamento bakhtiniano sobre a sátira de
uma obra específica do século XVIII brasileiro, as Cartas chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga. Chamo de
aproximação porque, textualmente, o autor russo não compreende as sátiras desse período como passí-
veis de serem incluídas nas perspectivas carnavalizadas com as quais ele se preocupa e que desenvolve
em seu A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Apesar
disso, e até mesmo porque os modelos europeus chegaram sempre ao Brasil um pouco desvirtuados,
podemos encontrar em alguns trechos da sátira frestas para espiar, literalmente, momentos arqueoló-
gicos do carnaval brasileiro.
ABSTRACT
The present paper is an attempt at drawing together some aspects of the bakhtinian thought about
the satire and one specific XVIIIth century brasilian work of literature, the Cartas chilenas, by Tomás
Antônio Gonzaga. I mean drawing together because, on his texts, the russian thinker does not unders-
tand this period’s satires as possibly to be included in the carnivalized perspectives with which he works
and which he develops on his Rabelais and his world. Nevertheless, and even because european models
have always come to Brasil somehow debased, we can find in some instances of the satire cracks through
which we can peek, literally, at archaeological moments of brasilian carnaval.

As Cartas chilenas de Tomás Antônio Gonzaga, sátira que trata de um período específico da história
de Minas Gerais, da decadência do ouro e da corrupção colonial, tem uma longa e conturbada história
que vai da autoria ao estabelecimento do texto, passando por todos os perigos da devassa.
A obra é composta por uma “Dedicatória”, um “Prólogo”, a “Epístola a Critilo”, única epístola escrita
pelo suposto destinatário das outras cartas, Doroteu, e treze “Cartas”. Exceto pela “Dedicatória” e pelo
“Prólogo”, a ordem exata das cartas não é conhecida. Há variações especialmente na seqüência entre a
sétima e a oitava e ao menos duas delas, a sétima e a décima, estão incompletas. Não há texto autógrafo
e os manuscritos não são concordes. Além disso, as edições todas, a primeira em panfleto, de 1826, as
que as seguiram, a primeira em livro, de 1845, e suas subseqüentes, criaram um pântano crítico até
a edição de 1957, de Rodrigues Lapa: As Cartas chilenas: um problema histórico e filológico põe fim à
longa discussão de autoria, definindo-a como sendo realmente de Tomás Antônio Gonzaga, e uma parte
dela, a “Epístola a Critilo”, de Cláudio Manuel da Costa.
Há ainda uma quantidade considerável de informações sobre a trajetória e o estabelecimento dos
textos. As razões que estenderam tal discussão não estão só no anonimato dos manuscritos apógrafos,
mas também e talvez principalmente na história da recepção crítica da obra. As Cartas chilenas ora eram
lidas como um dos primeiros libelos literários contra o jugo do colonizador, ora como um manifesto do
conformismo do colonizado apenas incomodado com uma situação que o desagradava, por colocar em
risco o status de alguns bem-nascidos. O que o século XIX faz é inclusive determinar as possibilidades
de autoria segundo tais critérios, muito mais próximos do nacionalismo romântico de um país recém-
liberto que da pertinência histórico-literária que se buscará depois. Não deve ser portanto por acaso que
o estudioso responsável pela palavra definitiva seja um filólogo, e português.
Estabelecido o texto, a crítica literária se apossa da obra e gera uma fortuna particular, onde o seu
contexto é o dado mais relevante: história e denúncia, travestidas de versos decassílabos. Só muito
recentemente alguns estudos resgataram a obra do seu lugar de cânone mal compreendido e deram ao
texto novas dimensões, mostrando como, no uso do gênero satírico, a obra nada mais faz que repetir
modelos de enredo e personagens, numa execução nada original mas coerentemente bem construída

Proceedings XI International Bakhtin Conference 683


segundo as exigências do período neo-clássico. A radicalidade dessa leitura acaba, no entanto, restringindo
outras considerações sobre o texto, por subordiná-lo apenas a uma retórica específica, desconsiderando
qualquer particularidade. A idéia de assinatura e originalidade na arte, nascidas realmente só com o
Romantismo, é que determinariam, segundo essa perspectiva, outras possibilidades de leitura.(1)
Se quisermos, numa outra via possível, encontrar ainda algum interesse no texto, para além de seus
referenciais histórico-sociológicos e de sua obediência a aspectos retórico-formais, podemos procurar
em seu conteúdo satírico uma justificativa para essa leitura.
Já em seu “Prólogo”, que segue os melhores fundamentos aristotélicos, as Cartas chilenas são apre-
sentadas como uma sátira: a comédia imita os homens “inferiores”, usa a máscara “feia e contorcida”.
A comicidade “é um defeito”, mostrado como tal. O autor sabia muito bem onde entrava, e avisa ao
leitor
Apesar do estigma de segunda classe a que a comédia, e especialmente a sátira, sempre foram re-
legadas na história da literatura, há uma produção contínua desde a Batracomiomaquia. Vista como um
“modo” literário, por poder vestir qualquer um dos gêneros, a sátira apresenta uma série de variantes
no decorrer dessa história, mas a crítica mais tradicional será unânime ao afirmar que, desde o período
do auge da sátira romana, será o século XVIII o século de ouro da sátira na literatura ocidental.
Nesse ponto é que encontramos em Bakhtin considerações que conduzem o pensamento sobre o
assunto para outra direção. No quarto capítulo de seu Problemas da poética de Dostoiévski, o autor pro-
blematiza a história da literatura e o que ele chamou de uma “estética do gênero”, que teria dominado
o século XIX, propondo, num plano que seria o da poética histórica, uma nova história dos gêneros.
Haveria características de algumas obras, ou mesmos obras inteiras, pouco consideradas pelos cânones
críticos por não se enquadrarem em modelos pré-existentes de análise literária. Para Bakhtin, uma re-
visão deveria recair justamente sobre o problema dos gêneros por considerar que nele é que “se reflete
[sic] as tendências mais estáveis, ‘perenes’ da evolução da literatura. O gênero sempre conserva os
elementos imorredouros da ‘archaica’. É verdade que nele essa ‘archaica’ só se conserva graças a sua
permanente renovação, vale dizer, graças à atualização”.(2) Dando continuidade ao que propõe, Bakhtin
realiza, ainda que resumidamente, uma nova leitura da história da literatura ocidental, partindo de suas
origens gregas.
O que tenta estabelecer então, como ponto de partida, é uma nova possibilidade de “divisão” de um
conjunto tradicional de obras. Se a nossa leitura é claramente determinada pelo tipo de apresentação,
disposição e classificação das obras segundo, além da época e origem, sua natureza mais particular a que
se convencionou chamar de gênero, uma mudança nessa perspectiva vai alterar, não só a divisão por si
só, mas também nossa forma de olhar para ela, na medida em que faz variar, além do que chamamos
natureza mais íntima da obra, o estatuto próprio de algumas delas dentro dessa história.
Essa releitura nos interessa especialmente aqui, porque o conduto dessa história alternativa parte de
um grande conjunto de obras em que Bakhtin reconhece características comuns. Essas obras pertence-
riam ao que os antigos deram a denominação pouco precisa de “campo do sério-cômico”. Bakhtin, por
sua vez, quer denominá-las, a partir de outros muitos séculos de história e “atualização”, de literatura
carnavalizada, embora não abandonando de todo a designação anterior.
Leia-se o que diz Bakhtin sobre “carnavalização”:
O carnaval propriamente dito (repetimos, no sentido de um conjunto de todas as variadas
festividades de tipo carnavalesco) não é, evidentemente, um fenômeno literário. É uma forma
sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complesa, variada, que, sob base carna-
valesca geral apreventa diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas,
povos e festejos particulares. O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-
sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de massas e gestos carnavalescos.
Essa linguagem exprime de maneira diversificada e, pode-se dizer, bem articulada (como
toda linguagem) uma cosmovisão carnavalesca una (porém complexa), que lhe penetra
todas as formas. Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor grau de plenitude e
adequação para a linguagem verbal, especialmente, para a linguagem dos conceitos abs-
tratos, no entanto é suscetível de certa transposição para a linguagem cognata, por caráter
completamente sensorial, das imagens artísiticas, ou seja, para a linguagem da literatura.
É a essa transposição do carnaval para a linguagem da literatura, que chamamos carnava-
lização da literatura. É sob a ótioca desta transposição que vamos discriminar e examinar
momentos isolados e particularidades do carnaval.
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No carnaval
todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se contempla e,
em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vive-se conforme
as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavelesca. Esta é uma
vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”, um “mundo
invertido” (monde à l’envers).(3)

1 Ver FURTADO, 1995 e 1997.


2 BAKHTIN, 1997, p. 106.
3 Idem, ibidem, pp. 122-123.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 684


Existiria, portanto, uma cosmovisão carnavalesca responsável por determinar a particularização de
algumas obras em relação a outras. Serão três as linhas originais que balizarão o gênero romanesco,
solução máxima da modernidade: a épica, a retórica e a carnavalesca. Considerando a terceira linha como
uma das raízes geradoras da literatura contemporânea, Bakhtin dá à tradição dos mimos, dos diálogos,
da memorialística, dos panfletos, da poesia bucólica e da sátira menipéia, na origem do que podemos
generalizar hoje como comédias e sátiras, uma importância inédita, e aponta para uma necessidade de
releitura de toda essa tradição, ao levantar algumas especificidades do campo sério-cômico que justifi-
cam, segundo ele, essa revisão.
A primeira delas “é o tratamento que eles [os textos] dão à realidade”. Ao contrário da tragédia e
da épica, a comédia anula o distanciamento típico do trato com mitos e lendas e deuses para o seu
contexto contemporâneo. É sempre sobre o seu tempo, e na linguagem desse tempo, que a comédia
se constrói.
A segunda especificidade, inseparável da anterior, se baseia no fato de os gêneros do sério-cômico
não se fundamentarem em lendas mas sim em experiências e em fantasias sobre essas experiências, o
que se dá através de uma leitura geralmente crítica e às vezes cínica e desmascaradora. Diz Horácio em
uma de suas sátiras, lembrada por Gonzaga: “por que ris? mudando os nomes a história fala de ti.”
Soma-se a elas uma terceira, de caráter mais formal. A multiplicidade de estilos e vozes será a particu-
laridade eleita como, talvez, a mais importante. Ao contrário da tragédia, da épica e da lírica, submetidas
a uma só voz organizadora, o campo do sério-cômico oferece uma riqueza que mistura a prosa e o verso,
o grotesco e o sublime, discursos imbricados e o metadiscurso, recriações paródicas, incorporação de
linguagens extra-literárias, criando uma nova possibilidade de elaboração do discurso literário.
Mas nos enganamos se, a partir dessas colocações bakhtinianas, pensamos simplesmente em reagrupar
conjuntos de obras e revisar cânones, especialmente quanto à tradição do que a crítica comumente chamou
de sátira. Como já dissemos, em Problemas da poética..., Bakhtin realiza uma recuperação histórica do
campo do sério-cômico. Partindo da sátira menipéia, atravessa toda a tradição literária européia, até o
século XIX... pulando confortavelmente o século XVIII. A tradição da literatura carnavalizada, portanto,
independeria, ao menos diretamente, da tradição literária da sátira, como crítica moral e racionalista,
que os setecentos levaram às últimas conseqüências.
Em outra obra, entretanto, há uma explicação para essa escolha. Em seu A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, Bakhtin cita Voltaire para mostrar como
o autor francês, paradigma literário de seu tempo, não soube ler a obra de Rabelais. Em suas “Cartas
filosóficas”, Voltaire trata Gargantua e Pantagruel como um “extravagante e ininteligível livro” que teria
disseminado alegria e impertinência, somente próprio a um leitor de gosto bizarro. O que no século
XVI, portanto, era riso e festa, no XVIII é lido como ingênua ou escatológica bufoneria. Voltaire chega
a propor, em um de seus contos, uma “redução” de Rabelais a seu “essencial”, o que chegou de fato a
ser feito por alguns de seus contemporâneos. Bakhtin conclui então que o Século das Luzes, dominado
pelo uso absoluto da razão, não conseguiu “compreender e dar um sentido teórico ao riso ambivalente
da festa popular. A imagem da vida cotidiana que se formava no meio das contradições e que não estava
jamais concluída, não podia ser medida pelo critério da razão.” Bakhtin reconhece ainda alguns usos do
carnaval na literatura do período, mas considera-o desvirtuado. O mundo racionalizado não se expõe
mais às avessas.
A influência das formas, motivos e símbolos do carnaval, marcou amplamente a literatura
do século XVIII. Mas é uma influência formalizada: as formas do carnaval foram transfor-
madas em procedimentos literários (essencialmente no plano do tema e da composição),
postos ao serviço de finalidades artísticas variadas. Assim, Voltaire utiliza-os em benefício
da sátira que conserva ainda seu universalismo, seu valor de concepção do mundo; o riso,
ao contrário, reduz-se ao mínimo, até à ironia nua, é o famoso “riso voltairiano”: toda a sua
força e toda a sua profundidade residem na agudeza e no radicalismo da negação, enquanto
que o aspecto renovador e regenerador está quase ausente; o positivo é exterior ao riso e
confina-se no domínio da idéia abstrata.
No século XVIII, o processo de decomposição do riso da festa popular que, durante o Renas-
cimento, penetrara na grande literatura e na cultura, chegou ao seu termo, ao mesmo tempo
que o processo de formação dos novos gêneros da literatura cômica, satírica e recreativa
que dominarão no século XIX. Estabeleceram-se também as formas reduzidas do riso: hu-
mor, ironia, sarcasmo, etc., que evoluirão como componentes estilísticas dos gêneros sérios
(principalmente o romance). Não tencionamos examinar esses diversos fenômenos. O que
nos interessa é simplesmente a tradição magistral do riso da festa popular que preparou o
caminho a Rabelais (e de maneira geral ao Renascimento) e sua extinção progressiva durante
os dois séculos seguintes.(4)

A sátira foi, no entanto, durante o século XVIII, um dos modos mais contundentes de expressão da
revolução promovida pelo Iluminismo, fazendo parte do processo de pensamento que vai aos poucos se
vendo livre de amarras religiosas e que constrói uma consciência histórica específica, para a sociedade

4 Idem, 1987, pp. 101-102.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 685


e o indivíduo (embora para Bakhtin isso não se efetive por não incluir todos os “aspectos” do “homem”,
como o ludismo do carnaval, esquecido pelo racionalismo).
Reconhecidos como o grande século da sátira, os setecentos fazem do texto cômico e crítico o fórum
privilegiado para o julgamento de todas as instâncias sociais, personagens importantes, ou mediocridades
da época. É a tradição greco-romana (Juvenal e Horácio) e francesa (Voltaire e Boileau) que influenciará
a literatura portuguesa (Bocage, Cruz e Silva e Nicolau Tolentino), mas os temas não serão muito dife-
rentes entre si. As estruturas de poder da velha monarquia européia e seu contraponto místico, a igreja
católica, são os alvos preferidos da sátira do período e quando se trata de uma estrutura colonial como
a brasileira – onde as discrepâncias entre o verdadeiro papel do Estado português, seus representantes,
uma sociedade de empréstimo recém-importada, e a mão-de-obra escrava criavam um ambiente só algo
controlado por visitas inquisitoriais e pela violência prometida na Metrópole, considerem-se os resultados
da devassa da Inconfidência – encontramos campo fértil para a produção desse tipo de texto.
Porque a sátira, como afirmou Bakhtin, certamente mais que outros gêneros, vai se alimentar do
seu tempo e do seu lugar. Mesmo pagando o preço, e isso vale para uma grande parte dos textos, de
restarem datadas, as sátiras são radicalmente tributárias do seu referencial externo. O que as alimenta,
também as destrói... por isso são perigosas em seu tempo e esquecidas depois.
E é nesse contexto que encontramos o texto de Gonzaga. Optando pela construção epistolar, em de-
cassílabos brancos, as supostas 13 cartas são um exercício de crítica moralista. As sete primeiras cartas,
as que parecem ter de fato passado por uma revisão e aprovação, são as que mais cuidadosamente se
preocupam com o disfarce ficcional, com o simulacro satírico de um remetente, Critilo, que escreve a um
amigo na Espanha, Doroteu, sobre as vicissitudes do governo de Fanfarrão Minésio, em Santiago, Chile,
embora mesmo nessas possamos encontrar alguns deslizes. Nas cartas seguintes, contudo, fica ainda
mais evidente e descuidada a sátira ao verdadeiro governo de Luís da Cunha Meneses, governador de
Minas Gerais entre 1783 a 1788.
Embora apoiada em descrições e estilo típicos de situações e personagens burlescas (já o nome Critilo
provém de um texto de Baltasar Gracián, El criticón), a obra restou bastante colada a fatos e personagens
reais. Até mesmo por isso deu oportunidade a tantos estudos históricos, e forneceu inclusive chaves
para alguns dos segredos que relacionavam os inconfidentes. Esse fato, a pronta identificação externa,
só deixa mais claras as verdadeiras intenções do texto, ou seja: quem critica quem, e porquê.
No remetente das cartas temos uma voz narrativa que, de dentro do poder estabelecido (o que fica
evidente pelo conteúdo do texto) se coloca como oposição, mas numa postura que revela, ao lado de
preocupações com a corrupção gerenciada pelo governador, o despeito do burguês bem-educado que
não tem o título de fidalgo e portanto deve submeter-se a este, ainda que bronco e desonesto...
Na tentativa, portanto, de destruir a imagem do governador, a sátira revela minuciosamente seus
defeitos mais mesquinhos e suas atitudes mais degeneradas. Mais de dois séculos depois, entretanto,
conseguimos enxergar as armadilhas criadas pelo próprio discurso do remetente. Critilo se esforça tan-
to para ridicularizar Fanfarrão, que o veneno pode se voltar contra ele. Já na primeira carta, podemos
colecionar alguns dos adjetivos atribuídos ao governador: soberbo, ímpio, libertino, lascivo, vaidoso,
estúpido e demente... num exagero quase infantil, esses adjetivos se repetem em todas as cartas, jun-
tando-se ainda a outros...
Física e moralmente Fanfarrão Minésio é transformado num bufão que desfila pelas ruas de Santiago-
Vila Rica trocando o beija-mãos por favores os mais absurdos. Também na primeira carta, Critilo vê um
cometa e se assusta: más previsões representa tal sinal no mesmo dia em que, dizem, o mundo anda
às avessas...
Vejo um grande Cometa, a quem os doutos
Caudato apelidaram. Este cobre
A terra toda c’o disforme rabo.
Aflito o coração no peito bate;
Eriça-se o cabelo, as pernas tremem,
O sangue se congela, e todo o corpo
Se cobre de suor. Tal foi o medo.
Ainda bem o acordo não restauro,
Quando logo me lembra, que este dia
É o dia fatal, em que se entende,
Que andam no mundo soltos os diabos.

Ora, nada menos racional que o susto e a crença descritos no trecho acima. Embora possamos con-
siderá-los um reforço estilístico para a desgraça que será o governo e portanto justifique-se assim a
construção do discurso satírico, a perspectiva assumida pela voz que conduz as cartas nos revela uma
indecisão de princípios. De onde nos fala Critilo? De dentro do clara e racionalmente iluminado século
da Revolução Francesa?
Obviamente nos aproveitamos aqui de um recorte muito específico. O texto não cometerá outros des-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 686


lizes tão explicitamente misticistas... Mas é uma coincidência das mais interessantes encontrar aqui ao
menos uma referência ao “monde à l’envers” tão caro ao conceito do carnaval de Bakhtin. Porque o que
nós vamos percebendo aos poucos é que, na tentativa explícita de criticar radicalmente a moral pessoal
e oficial de Fanfarrão, o que o texto acaba por nos revelar é o mundo invertido, o ridículo, o absurdo em
que o governador afunda a si mesmo e a sua cidade.
E o que faz Critilo? Reclama, aponta erros: “Já viste, Doroteu, igual desordem?”, e revela, de forma
melindrosa no início, abertamente nas últimas cartas, as insubordinações do governador em relação à
Metrópole: “...vale tanto lá na Corte/ Um grande “El Rei” impresso, quanto vale/ Em Chile um “Como
pede” e o seu garrancho.” E aos poucos o texto vai estendendo, para cada ato corrupto de Fanfarrão, uma
longa explanação, cheirando a discurso jurídico, sobre os direitos daqueles que relutantemente Critilo
chama de “povo”, sobre os direitos do Rei e sobre as aparências que os representantes deste devem
manter para conseguirem o respeito devido. Aqui temos, mesmo que de forma arrevesada e pouco lite-
rária, ou talvez até por isso, o discurso típico que Bakhtin chamou de não-carnavalizado. Encontramos
no decorrer do texto as formas reduzidas do riso, a ironia e o sarcasmo, mas, a despeito das intenções
explicitadas desde o “Prólogo” e a “Dedicatória”, a festa ainda aparece.
Há vários exemplos no texto e, num primeiro nível, eles servem para revelar o mau comportamento
de Fanfarrão especialmente nas ocasiões em que, em meio a festejos, o governo fica exposto ao público.
Critilo nos mostra como Fanfarrão quebra todos os protocolos possíveis e o critica cruelmente por isso,
considerando, acima de tudo, que aquele homem não condizia moral, ética e culturalmente com o cargo
que representava, ao contrário de outros que, com ótima educação e formação adequada, estavam a
eles subordinados...
Carece, Doroteu, qualquer ministro
Apertados estudos, mil exames,
E pode ser o chefe onipotente,
Quem não sabe escrever uma só regra
Onde, ao menos, se encontre um nome certo?

Na missa de sua posse, Fanfarrão não tira seu chapéu e ainda troca de assento, colocando-se em um
lugar superior ao do Bispo. Durante as “festas que se celebraram nos desposórios de nosso Sereníssimo
Infante com a Sereníssima Infanta de Portugal”, Fanfarrão porta-se com superioridade e desprezo com
“os grandes” do governo e da sociedade, ao mesmo tempo em que se mistura, “vergonhosamente”, ao
povo, e no seu camarote, onde só poderiam estar padres, senadores e sua esposa, se esta houvesse,
o encontramos com uma viúva bonita. E ainda, se os homens da Câmara, os “Camaristas” do texto,
resolvem em qualquer assunto se opor às esdrúxulas decisões do governo, a mera menção de um juiz,
o “vil Alberga”, de que isso possa ser revelado a Fanfarrão, faz Critilo descrevê-los como crianças ame-
drontadas. Para maior efeito, deixa aparecer no seu texto uma canção infantil...
Apenas, Doroteu, o vil Alberga
Fala em queixa fazer ao nosso Chefe,
De susto os Camaristas nem respiram;
Quais chorosos meninos, que emudecem,
Quando as amas lhes dizem: “Cala, cala,
Que lá vem o tutu, que papa gente!”.

A entrada textual da cantiga é um bom exemplo da permissividade instalada na sátira. A própria es-
trutura da epístola, supondo sempre o interlocutor, permite à voz de Critilo remeter-se continuamente,
com seus vocativos e interjeições, a um Doroteu que é todos os leitores. Embora, a princípio, este não
responda, Critilo supõe reações em Doroteu e num esforço metalingüístico muda o discurso, ou termina
a carta, ou suspende um assunto.
Já na carta 11, num esforço maior para destruir completamente a moral de Fanfarrão, Critilo vai des-
crever uma festa, uma orgia, organizada na casa do governador. Num trecho particularmente divertido,
temos homens sérios e prostitutas na dança da embigada. O trecho ainda termina com o pedido de
uma das moças para a realização de um entrudo, o carnaval da época. Assim, malgrado todos os seus
esforços, Gonzaga fez das Cartas chilenas um documento satírico de intenções moralistas, mas onde
encontramos, em seus melhores momentos, um personagem que ele próprio adequadamente compara
a Sancho Pança e que deixa, para seu próprio gosto, o carnaval chegar a Vila Rica.
Chegam-se enfim as horas, em que o sono
Estende na Cidade as negras asas
Em cima dos viventes, espremendo
Viçosas dormideiras. Tudo fica
Em profundo silêncio; só a casa,
A casa, aonde habita o grande Chefe,
Parece, Doroteu, que vem abaixo.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 687


Fingindo a moça, que levanta a saia,
E voando nas pontas dos dedinhos,
Prega no machacaz de que mais gosta,
A lasciva embigada, abrindo os braços:
Então o machacaz mexendo a bunda,
Pondo uma mã na testa, outra na ilharga,
Ou dando alguns estalos com os dedos,
Seguindo das violas o compasso,
Lhe diz: “eu pago, eu pago”; e de repente
Sobre a torpe michela atira o salto.
Ó dança venturosa! tu entravas
Nas humildes choupanas, onde as negras,
Aonde as vis mulatas, apertando
Por baixo do bandulho a larga cinta
Te honravam c’os marotos e brejeiros,
Batendo sobre o chão o pé descalço.
Agora já consegues ter entrada
Nas casas mais honestas, e Palácios.
Ah! tu, famoso Chefe, dás exemplo.
Tu já, tu já batucas escondido,
Debaixo dos teus tetos, com a moça,
Que furtou ao senhor o teu Ribério!
Tu também já batucas sobre a sala
Da formosa comadre, quando o pede
A borracha função do santo Entrudo!

Poderíamos enfim concluir apressadamente que o texto de Gonzaga não pertence, de direito, à corrente
satírica do século XVIII. Ao deixar escapar o retrato da festa ou mesmo, na construção do discurso, permitir
alguma, ainda que rara, interlocução, o autor estaria muito mais próximo de uma sátira Renascentista,
carnavalizada e feliz, como queria Bakhtin. Mas esta seria, acredito, só mais uma das leituras parciais
sobre as Cartas chilenas. O texto se organiza em estrutura, temas e intenções, como uma sátira de seu
tempo. Uma voz racional descreve e julga uma personagem desvirtuada: ganha-se, nesse sentido, em
clareza e objetividade, o que se perde em qualidade literária; e a construção das argumentações, embora
ceda muitas vezes a meras disposições de uma tradição de poder, não apela para o silogismo escolástico.
Aquilo que Bakhtin mostra como sendo a crítica de Voltaire a Rabelais é que escapou a Gonzaga. Este,
como o racional satirista francês, critica o absurdo e a bizarria... mas precisa ainda descrevê-la.
Não tivemos Renascença e a Razão chega aqui meio estropiada. E nos momentos em que ela se
distrai, fazemos o nosso Entrudo.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
Hucitec; Brasília: Ed. Da UNB, 1987.
____. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
FURTADO, Joaci Pereira. Uma república de leitores: história e memória na recepção das Cartas chilenas (1845-1989).
São Paulo: Hucitec, 1997.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 688


TEXTOS CHAVE:
GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas chilenas. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
HANSEN, João Adolfo. “Prefácio” in: FURTADO, Joaci Pereira. Uma república de
leitores: história e memória na recepção das Cartas chilenas (1845-1989). São
Paulo: Hucitec, 1997.
VOLTAIRE. Cartas inglesas ou Cartas filosóficas. In: Voltaire. São Paulo: Nova
Cultural, 1988.
NOMES CHAVE: Tomás Antônio GONZAGA, M. BAKHTIN, João Adolfo HAN-
SEN.
PALAVRAS CHAVE: Sátira; século XVIII; carnavalização.
BIOGRAFIA RESUMIDA: Formada em Letras com habilitação em francês pela
Universidade Federal do Paraná, em 1993. Na mesma Universidade defendeu sua
dissertação de mestrado entitulada O espelho de Vênus: poesia e experiência em
Adélia Prado, em 1995. Em 1998 foi contratada como professora de Teoria Literária
e Literatura Brasileira na UFPR, onde já havia trabalhado como substituta entre os
anos de 1995 e 1996.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 689


O Outro no Um: reflexões em torno da concepção bakhtiniana de sujeito1

Terezinha Marlene Lopes Teixeira

UNISINOS

Rua Xavier Ferreira, 144, ap. 24. Bairro Auxiliadora.

CEP: 90540-160. Porto Alegre, RS.

RESUMO I
Este trabalho interroga-se sobre a natureza do sujeito em Bakhtin. Parte do pressuposto de que essa
noção emerge e se sustenta no modo como o autor entende a enunciação: processo em que o eu se
constitui pelo outro e como outro do outro. Sendo assim, a questão da subjetividade em Bakhtin está
ligada à de alteridade, ambas vinculadas a uma concepção dialógica da linguagem. Pensar o sujeito em
Bakhtin é, então, tentar cercar o estatuto do outro em sua teoria, e isso só pode ser feito sem reducio-
nismo percorrendo-se o conjunto de sua obra. Uma leitura abrangente, que não comprometa Bakhtin
com configurações acadêmicas conhecidas, leva a concluir que seu conceito de sujeito transcende tanto
a leitura que o faz efeito de determinações sociais quanto a que o faz descontínuo e instável. O sujeito
bakhtiniano advém na intersubjetividade, dialogizado por um terceiro que tem substância e atravessa
constitutivamente o um.
RESUMO II
This work questions itself about the nature of subject in Bakhtin. It starts from the presumption
that this notion emerges and supports itself in the way the author understands enunciation: process in
wich the “I” constitutes itself by the other and as other of the other. Thus, the question of subjectivity in
Bakhtin is linked to the otherness one, both linked to language dialogic conception. Thinking the subject
in Bakhtin is then to try to approach the other’s statute in the theory, and this can only be made without
reductionism going through his work. An enlarged reading, with does not compromise Bakhtin with
known academic configurations, leads one to conclude that his concept of subject goes beyond both the
reading that produces it as an effect upon social determinations and the one that makes it discountinous
and instable. The bakhtinian subject comes in the intersubjectivity, dialogized by a third one that holds
substance and crosses constitutively the one.

Diante de uma teoria como a de Bakhtin, em que diferentes focalizações são possíveis e que serve
para iluminar questões em vários campos do saber, julgo ser preciso definir previamente um lugar de
fala. Lingüista que sou, busco no diálogo com Bakhtin uma outra compreensão dos fatos de língua na
enunciação e no discurso. Meu encontro com ele deu-se através de Authier-Revuz que examina no quadro
do dialogismo a heterogeneidade do fio do discurso no que diz respeito a dois tipos de não-coincidências:
não-coincidência interlocutiva e não-coincidência do discurso com ele mesmo, pontos de ruptura que
deixam “surpreender” a relação com o interlocutor e com outros discursos (1998, p. 23 e 193).
O propósito deste trabalho é discutir a noção de sujeito na teoria bakhtiniana. A densidade do pensa-
mento de Bakhtin faz com que ele seja reivindicado por várias correntes. É de se esperar que o modo como
se entende o sujeito em sua teoria não siga um caminho único.Teóricos do campo social e historiadores
apossam-se dele como marxista, enquanto há quem o veja como um pós-modernista avant la lettre.
Os que o consideram como um marxista “de raiz” acham que Bakhtin desloca a responsabilidade da
explicação sobre o sujeito do indivíduo para uma identidade coletiva chamada classe social. Rajagopalan
(2001, p. 32), por exemplo, considera que Voloshinov e Bakhtin, por professarem uma abordagem mar-
xista da língua e da lingüística, rejeitando a idéia de um indivíduo tendo uma existência inicial e primária,
estariam mantendo o conceito cartesiano de indivíduo individuado e indivisível, bem como a idéia de que
parte alguma da consciência é teoricamente inacessível à introspecção. Existiria então no pensamento

1 O trabalho aqui apresentado integrou a Mesa-Redonda “Linguagem, enunciação e subjetividade: reflexões a partir do princípio dialógico e suas interfaces”,
pensada a partir do ponto de vista compartilhado por suas integrantes de que os conceitos desenvolvidos pelo Círculo de Bakhtin não se encontram dados,
mas têm que ser construídos a partir de leitura atenta do conjunto de sua obra. A Mesa se propôs a revisitar as concepções de linguagem, enunciação e
sujeito, tomando o princípio dialógico como eixo articulador dos posicionamentos de Bakhtin a esse respeito.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 690


bakhtiniano, especialmente nos textos dos anos 20, uma sobredeterminação do sujeito pela história e
pelo social, típica das abordagens marxistas da língua, que é, segundo essa interpretação, reveladora
da presença de certo essencialismo residual, apesar de sua franca rejeição do idealismo platônico e da
tão propalada preferência pela existência em relação à essência (ibid, p. 34).
Em contrapartida, há os que colocam o dialogismo bakhtiniano entre as abordagens inspiradas pela
“nova” ciência, juntamente com a gramatologia de Derrida, o neo-pragmatismo de Rorty e Pearce, a
ontologia materialista de Deleuze e Guattari (Signorini, 2001, p.335). Tais leitores encontram um ponto
de convergência em todas essas abordagens: a pulverização em diferentes graus e a irrecuperabilida-
de de qualquer fechamento ou totalização não local e precária na determinação do sujeito (ibid, 336).
Dentro dessa perspectiva, a problemática do sujeito é assimilada à da instabilidade em contraposição
à da pluralidade; e a problemática dos processos de subjetivação substitui à da identidade. Bakhtin
teria então uma noção de sujeito de contornos indefinidos, pontual, evanescente em seus modos de
configuração, diferente da “tradição moderna” que pressupõe um sujeito plural e contraditório, sujeito
uno-todo, mesmo que heterogêneo (ibid, p. 343).
Como entender esses pontos divergentes, ou seja, como explicar que o mesmo autor dê origem a
uma concepção de sujeito que oscila entre um posicionamento que o faz efeito de determinações psico-
sociológicas e um outro que o faz descontínuo e instável?
Existe uma tendência entre os estudiosos a ver um Bakhtin mais comprometido com o marxismo. O
próprio Todorov (In: Bakhtin, 1992, p.2), um dos primeiros disseminadores do pensamento de Bakhtin,
refere um “período sociológico”, que englobaria os textos dos anos 20, em que Bakhtin realiza uma crítica
violenta, de inspiração sociológica e marxista, da psicanálise (Freudismo), da lingüística (Marxismo e
filosofia da linguagem) e da poética tal como a praticavam os formalistas russos (Questões de literatura
e de estética).
A segunda interpretação se ancora em A obra de François Rabelais e a Cultura Popular na Idade Média
(1965) em que Bakhtin se mostra um teórico do carnaval e da ruptura das hierarquias sociais, deixando
ver um sujeito da carnavalização relacionado às artes do espetáculo, herdadas da cultura do carnaval da
Idade Média. Essa obra traz em si um universo caracterizado pelo riso, pelas inversões e metamorfoses
e pelas formas populares do grotesco, ambivalentes e móveis, através das quais circulam as forças que
unem o micro e o macrocosmo, perspectiva que estaria próxima dos paradigmas da pós-modernidade2,
em que o sujeito se institui entre linguagens (e não na linguagem), ou seja, na trama de múltiplas e
heterogêneas formas de linguagem (Signorini, 2001, p. 336).
No meu entendimento, essas apropriações diferenciadas resultam de leitura parcial dos textos do
autor e se explicam pela tendência de buscar enquadrar Bakhtin nos esquemas vigentes, sem atentar
para o fato de que o autor não se enquadra nos paradigmas acadêmicos hegemônicos que estudam as
realidades humanas, não sendo possível encaixá-lo numa chave classificatória simples (Faraco, 2001 p. 9).
Tais enquadramentos não se sustentam numa leitura mais abrangente dos textos do Círculo de Bakhtin.
É pelo percurso em obras como O freudismo, Marxismo e filosofia da linguagem, Problemas da poética
de Dostoiévski, Estética da criação verbal e A obra de François Rabelais e a Cultura Popular na Idade
Média que busco construir um ponto de vista sobre a noção de sujeito que transparece em Bakhtin.
Na verdade, o autor não formula propriamente uma teoria do sujeito. Sua visão a respeito dessa noção
emerge e se sustenta na enunciação, entendida como um processo em que o eu se institui através do
outro e como outro do outro, sendo pela inter-relação entre dialogismo e alteridade que se pode tentar
cercar a questão da subjetividade em Bakhtin.
Um aspecto a destacar, nesse sentido, é a recusa de Bakhtin em descrever o sujeito como coisa em
si, o que leva Dahlet (1997) a afirmar que há algo do sujeito kantiano no sujeito bakhtiniano. Ou seja,
o dialogismo bakhtiniano se fundamenta na negação da possibilidade de conhecer o sujeito fora do
discurso que ele produz (Dahlet, 1997, p. 72), pois ele só pode ser apreendido na linguagem, a partir
da realidade das vozes de seu discurso. É por essa razão que se diz não haver uma teoria do sujeito
em Bakhtin, mas, sim, uma teoria da linguagem, fundada na idéia de que a interação verbal é o modo
de ser social dos indivíduos. Ao entender que o sujeito não pode ser objeto de teoria a não ser sob
a condição de ser da linguagem, ao conceber a linguagem por uma perspectiva dialógica, Bakhtin dá
lugar e corpo a uma concepção de sujeito que se contrapõe ao “eu penso” cartesiano. Não se justifica,
então, a interpretação que antes referi de que haveria em Bakhtin um sujeito fundado na idéia de um
ego individuado soberano.
O que talvez possa para ser tributado a Bakhtin, considerando-se isoladamente suas formulações
críticas sobre o freudismo, é a substituição da idéia cartesiana de sujeito pensante pela de sujeito da
consciência, e um entendimento de alteridade como um estoque de pré-construídos. Depreende-se
particularmente dessa obra um certo desvio do sujeito dialógico, reconstruído pelas vozes no discurso,
para um sujeito ancorado na consciência e em determinações sociais. Dahlet (op. cit., p. 69) atribui
esse desvio a oscilações relativas ao lugar conferido à alteridade no dialogismo, oscilações que, longe
de remeter a coerências confusas ou a compromissos duvidosos, atestam a complexidade da reflexão
do autor. Afinal, a gradeza das teorias está no fato de não serem totalizantes.
Mas não se esgota aí o que é possível entender sobre a subjetividade em Bakhtin. Tomada num conjunto
2 Eagleton (1998, p. 7) utiliza o termo pós-modernidade para referir uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, iden-
tidade e objetividade.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 691


maior, a obra de Bakhtin relança a problemática do sujeito em uma concepção dinâmica da enunciação,
como produto de uma voz na outra, em que a significação é produzida em direções diferentes, sob as
pressões de um dialogismo que remete a ancoragem do sujeito à realidade do discurso, entendido como
uma “construção híbrida”, (in)acabada, por vozes em concorrência e sentidos em conflito (Dahlet, op.
cit., p.60). Diz Bakhtin (1992, p. 314):
A experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação
contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. (...) As palavras dos outros
introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestrutura-
mos, modificamos.

Afirmações como essas mostram que a questão da subjetividade em Bakhtin vem entrelaçada à
de alteridade, ambas vinculadas a uma concepção dialógica da linguagem, e que, numa leitura mais
abrangente de sua obra, o lugar conferido à alteridade ultrapassa tanto a idéia de supra-estrutura ide-
ológico-discursiva como à de consciência absoluta. Vinda com a enunciação, a alteridade faz parte da
unidade. Não se trata nem do objeto exterior do discurso nem do duplo não menos exterior do sujeito,
mas é a própria condição do discurso.
Toda a obra de Bakhtin gira em torno do eixo eu/outro e da concepção de que a vida é vivida nas
fronteiras entre a particularidade de nossa experiência individual e a auto-expressão de outros (Stam,
2000). Então, se Bakhtin não autoriza que se compreenda o sujeito como essencialidade egocêntrica,
também não autoriza que ele seja tomado como “arquitetura móvel” e multidimensional, sem consistência
interna, sem contornos definidos, sempre em fluxo ou em processo. Não parece haver em Bakhtin a
visão de mundo instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando
um certo ceticismo em relação às idiossincrasias das identidades (Eagleton, 1998), visão essa que anco-
raria um entendimento de sujeito como composição metamórfica de estilhaços heterogêneos e disjuntos
(Signorini, 2001, p. 336), típica da pós-modernidade.
Ainda que o carnaval represente uma cosmovisão alternativa, caracterizada pelo questionamento
lúdico de todas as normas, e, nesse sentido, represente uma critica à idéia totalitária de ideologia do-
minante, não faz desaparecer o sujeito como resultado da intersubjetividade, dialogizado pelo “nós” de
todos, para usar uma expressão de Dahlet (op. cit., p. 69).
Antes de reivindicar um Bakhtin adequado a algum tipo de inscrição acadêmica, talvez seja mais
produtivo ouvi-lo em sua singularidade e derivar de seus ensinamentos repercussões para nossas in-
quietações particulares. No que diz respeito à lingüística, o pensamento bakhtiniano foi revolucionário,
provocando o descentramento da sintaxe de seu posto de nível fundamental, destronando a frase e
alçando as “grandes massas verbais” ao estatuto de objeto dos estudos da linguagem. Bakhtin elabora
uma teoria da enunciação a partir da qual todas as categorias lingüísticas fundamentais podem ser re-
vistas como pontos que inscrevem constitutivamente a presença do outro no um. Sua originalidade está
na articulação que permite entre o social e a subjetividade através da enunciação.
Finalmente, para compreender a especificidade da concepção de outro no quadro do dialogismo,
confronto-a com a noção lacaniana de outro/Outro. A necessidade de incluir esse comentário deve-se
ao fato de que na abordagem teórica em que fundamento meus estudos – a teoria da enunciação tal
como é praticada por Authier-Revuz – o dialogismo bakhtiniano é chamado a interferir na descrição de
fatos de língua, paralelamente a considerações lacanianas sobre a subjetividade em sua relação com a
linguagem. Se, no quadro da teoria de Authier-Revuz, Bakhtin fundamenta o estudo das não-coincidên-
cias que se mostram no fio do discurso na relação com o outro interlocutor e com os outros discursos é
pela psicanálise que dois outros tipos de não-coincidência são aí examinados: a não-coincidência entre
as palavras e as coisas e a não-coincidência das palavras com elas mesmas.
Vimos que falar na incorporação do exterior no interior através da enunciação equivale a colocar em
crise a unicidade do sujeito falante. Nesse sentido, o dialogismo e a psicanálise constituem questiona-
mentos radicais, ainda que em bases diferentes, com relação à imagem de um locutor, fonte consciente
de um sentido que ele traduz nas palavras de uma língua, instrumento de comunicação ou de um ato
que ele realiza no âmbito de uma troca verbal. Os sujeitos não são, por nenhum desses saberes, hiper-
trofiados na condição de fonte absoluta da expressão (Faraco, 2001, p. 122).
No entanto, o outro de Bakhtin não se confunde com o Outro lacaniano, noção esta que se fundamenta
na concepção de um sujeito dividido, que enuncia, sem saber o que diz, uma fala que diz muito sobre
este saber. Quando Lacan formula (1978, p. 289): É do Outro que o sujeito recebe mesmo a mensagem
que emite, isso significa, como também em Bakhtin, que o discurso não se reduz a um dizer explícito cuja
autoria é de um sujeito dono de sua fala. Só que Lacan (op. cit., p. 162) acrescenta: O emissor recebe
do receptor sua própria mensagem sob uma forma inversa. Essa forma inversa, que produz um efeito
enganador na linguagem, não está contemplada em Bakthin, para quem a questão do inconsciente não
se coloca. Em Bakhtin, o outro tem consistência, é sempre “o outro de um outro” (interlocutor, discurso,
superdestinatário).
A tomada em consideração do outro bakhtiniano como fator constitutivo do discurso acrescenta um
parâmetro à produção do discurso dentro do terreno do interdiscurso, ao mesmo tempo em que coloca
a enunciação como produto da interação eu/outro, sempre uma combinação do que é efetivamente ver-
balizado e do que é não-verbalizado, mas pressuposto pelo interlocutor, mas não introduz um elemento

Proceedings XI International Bakhtin Conference 692


fundamentalmente heterogêneo a este terreno. O outro de Bakhtin - aquele dos outros discursos, o
outro-interlocutor - pertence ao campo do discurso, do sentido construído com as palavras “carregadas”
de história. O outro do inconsciente, do imprevisto do sentido, de um sentido “desconstruído” no funcio-
namento autônomo do significante, que abre dentro do discurso uma outra heterogeneidade - de outra
natureza - além da que estrutura o discurso para Bakhtin, está ausente do horizonte deste. A concepção
de psiquismo de Bakhtin não inclui nenhuma categoria equivalente ao inconsciente freudiano. Não é no
inconsciente que ele encontra o íntimo do homem, mas no outro, um outro que não tem a dimensão
de exorbitante como na psicanálise, exorbitante que faz o sujeito falante não-coincidir consigo mesmo,
que faz da enunciação um espaço de negociação obrigatória de todo o enunciador com o fato das não-
coincidências fundamentais que atravessam seu dizer (Authier-Revuz, 1998, p. 21).
Na psicanálise, a heterogeneidade da palavra se articula a uma teoria do sujeito como efeito de lin-
guagem, sujeito constituído pela falta, capaz de desejo e não-simetrizável (Milner, 1978). Quando Lacan
opõe ao pequeno outro, um semelhante que se identifica ao eu, uma segunda dimensão da alteridade,
que não se resolve, um Outro que não é um semelhante, um Outro enigmático, obscura autoridade, que
se situa como lugar, o que ele tenta indicar é que, além das representações do eu e também além das
identificações imaginárias, especulares, o sujeito é tomado por uma ordem radical exterior a ele, da qual
depende, mesmo quando pretende dominá-la (Chemama, 1995, p. 156).
O Outro é, em primeiro lugar, a mãe, objeto perdido devido à proibição do incesto, mas constitui
sobretudo o lugar onde os significantes já estão, antes de todo sujeito, sendo daí que ele recebe sua
determinação maior. Á medida que a noção de pulsão e a radicalização da categoria real encontram
um lugar mais destacado na obra de Lacan, a categoria do Outro ganha uma dimensão de não-todo.
Há na teoria lacaniana um lugar terceiro que escapa à consciência, inarticulável na palavra, resistente à
nomeação, que é da ordem do indizível.
Já em Bakhtin o sujeito se constitui numa relação intersubjetiva pela intervenção de um terceiro que
tem substância, que é da ordem do articulável. A divisão que aí se dá é por um sujeito coletivo, pela
pluralidade de lugares distintos do enunciador em seu discurso, pelo auditório social, pela compreensão
responsiva ativa. Se o sujeito lacaniano advém pela falta, o sujeito bakhtiniano advém por uma presença,
mesmo ausente, que atravessa constitutivamente o um.
Ao encerrar essas considerações, gostaria de dizer que não tive por objetivo esclarecer o ponto de
vista de Bakhtin sobre o sujeito, nem retificar o que dele já disseram. Não acho que chegar a significações
dominantes seja uma aspiração bakhtiniana. Quis apenas mostrar que as formulações de Bakhtin não
podem ser tomadas parcialmente, que elas não coincidem com qualquer grupo ou posição ideológica.
Sua existência se impõe, mas seus contornos e conseqüências não se totalizam, deixando a porta aberta
a novas enunciações. O erro de leitura é previsível e até necessário. Como diz Milner (1996, p. 7), ele
faz parte da gravidade dos destinos.
AGRADECIMENTO
A Valdir do Nascimento Flores, sempre um interlocutor atento, lúcido, instigante e generoso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V.N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico
na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.
______. O freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2001.
______. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: Editora da
UnB, 1987.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
CHEMAMA, R. (org.). Dicionário de psicanálise Larousse. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
DAHLET, P. Dialogização enunciativa e paisagens do sujeito. In: BRAIT, Beth. Dialogismo e construção do sentido.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1977. p. 59-87.
EAGLETON, T. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FARACO, C. A. et. al. Apresentação. In: FARACO, C. A. et. al. (orgs.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da
UFPR, 2001.
LACAN, J. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
MILNER, J. C. O amor da língua. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
______. A obra clara. Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
RAJAGOPALAN, K. O conceito de identidade em lingüística: é chegada a hora para uma reconsideração radical? In: SIG-
NORINI, I. (org.). Língua(gem) e identidade. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: FAESP, 1998. P. 21-45.
SIGNORINI, I. Figuras e modelos contemporâneos da subjetividade. In: SIGNORINI, I. (org.) Língua(gem) e identi-
dade. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: FAESP, 1998. P. 21-45.
STAM, R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 2000.
TODOROV, T. Prefácio. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 693


TEXTOS CHAVE
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V.N.). Marxismo e filosofia da linguagem: pro-
blemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1981.
______. O freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2001.
______. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 1997.
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Brasília: Editora da UnB, 1987.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
NOMES CHAVE: Mikhail Bakhtin, Valentin N. Voloshinov
PALAVRAS CHAVE: Sujeito, alteridade, dialogismo, enunciação, intersubje-
tividade
BIOGRAFIA RESUMIDA: Marlene Teixeira nasceu em São Francisco de Pau-
la (RS). Fez Mestrado e doutorado na PUC/RS, sob a orientação de Leci Borges
Barbisan. Durante o período do doutorado, com o apoio do CNPq, realizou estudos
na Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris III, orientados por Jacqueline Au-
thier-Revuz. É professora no Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada
e no Curso de Letras da UNISINOS (RS). Publicou o livro Análise de Discurso e
Psicanálise: elementos para a abordagem do sentido no discurso pela EDIPUCRS
(2000).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 694


Hermeneutics and sociology between Germany and
Russia: in search of the classical

Galin Tihanov

Introduction
In this article I wish to pose the question of how cultures produce traditions and to discuss the place
that Bakhtin’s theory of the novel occupied in this process in Soviet Russia in the 1930s. I will do so against
the background of important German polemics on community, language and the classical. The analysis of
some essential and so far unexplored aspects of the German scene of hermeneutic and sociological enquiry
would assist us in locating the intellectual bedrock, putting in perspective, and determining the wider
significance of Russian – foremost Bakhtin’s – theory of culture, the novel, and the classical in the 1920s-
1930s. It seems to me that so far we have been lacking the perspective of estrangement when looking at
these debates and have been entangled – perhaps exclusively – in the fabric of Russian intellectual life,
without endeavoring to cast our interpretive net further afield. It is therefore with developments outside
Russia that I shall begin, returning in the second half to the Russian theoretical landscape to look at it
through the prism of Bakhtin’s attempts to offer his own version of the classical by suggesting in his book
on Rabelais a synthesis between the fluidity of the novelistic and the tradition-bound stability of the epic.
Thus in the first part of this article I briefly survey some significant issues and positions in the German
hermeneutic and sociological research in the 1920s-1960s, as well as the interactions between the two
disciplines exemplified in the work of, and the biographical connections between, Hans-Georg Gadamer
and Hans Freyer. I then proceed to analyze Gadamer’s theory of tradition and the classical in connection
with Hans Freyer’s take on community, society, and language. Finally, I situate Bakhtin’s work on the
non-canonical nature of the novel, as well as his engagement with Rabelais, in the rich and controver-
sial intellectual context of his own time, thus emphasizing the significance of his theory of the novel as
the product of, and an oblique intervention in, the struggles over the meaning of the classical in Soviet
Russia in the 1930s. I examine Bakhtin’s interpretation of a number of crucial aesthetic and sociological
categories (such as ‘polyphony’ and particularly ‘heteroglossia’) to arrive at a fresh appreciation of his
agenda and accomplishment as a theorist of culture and the classical in the inter-war decades.

Freyer and Gadamer: community, language, and the classical


My starting point is the interrelatedness of three concepts central to the discourse of the humanities in
Germany over the last century: tradition, community, and the classical. In what follows I briefly comment
on how these two concepts figure in the work of Hans Freyer and Hans-Georg Gadamer, both of them
important German theorists of culture and society and contemporaries of Bakhtin.
First a few words are perhaps due by way of briefly arguing the biographical case for considering
Freyer’s and Gadamer’s discussions of tradition and the classical as closely connected. Hans-Georg Ga-
damer has by now become an inalienable part of the canon of continental philosophy. In 1997, still in
his lifetime, Jean Grondin published the first biography of Gadamer;1 before his death in 2002, Gadamer
also saw the publication in German of his collected works. Unlike him, Hans Freyer remains a relatively
marginal figure (despite his influence on Talcott Parsons and Edward Shils). The brief renaissance of his
ideas in the 1990s meant that he had finally emerged from oblivion, but was no doubt still waiting to be
(re-)admitted to the canon of 20th century European thought. While the attempts to cast over Gadamer
the shadow of a silent accommodation to – if not outright collaboration with – nazism (above all in the
work of Teresa Orozco2 and Richard Wollin3) seem not to have yielded palpable results and left Gadamer’s
reputation more or less intact, Freyer had clearly discredited himself in the 1930s as one of the promoters
and ideologues of the conservative revolution – particularly through his manifesto Revolution from the
right (1931) - and as the Director of the German Scientific Institute in Budapest (1941-45), which – just
as any other similar institution established by the Nazis in the countries of the pact – was marked by an
1 Jean Grondin, Hans-Georg Gadamer: Eine Biographie, Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1997.
2 Teresa Orozco, Platonische Gewalt. Gadamers politische Hermeneutik der NS-Zeit, Hamburg and Berlin: Argument Verlag, 1995; Teresa Orozco, “The art
of allusion. Hans-Georg Gadamer’s philosophical interventions under National Socialism”, Radical Philosophy, 1996, no. 78, pp. 17-26.
3 Richard Wollin, “Untruth and Method. Nazism and the complicities of Hans-Georg Gadamer”, The New Republic, 2000, 15 May, pp. 36-45 (Wollin leans
heavily on Orozco’s research). For a politically more neutral approach to Gadamer’s early philosophical writings, see Robert R. Sullivan, Political Hermeneutics.
The Early Thinking of Hans-Georg Gadamer, University Park and London: The Pennsylvania State University Press, 1989.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 695


uneasy mixture of research and propaganda of a varying degree of sophistication. Freyer also became the
first (and last) incumbent of a visiting professorship in German cultural history at the University of Buda-
pest (1938-1945), both posts being the creations of the German Foreign Office.4 Freyer never joined the
National Socialist Party, but in the 1930s he was pro-active in the Gleichschaltung of German sociology;
at the same time, he rose to become the most distinguished representative of the Leipzig Sociological
School. As early as 1925, he was appointed to the Chair of sociology in Leipzig, the first chair in Germany,
where the discipline of sociology was not subsumed under other academic subjects, but was asserted
as an independent field of enquiry. After 1945, despite the fact that he was banned from teaching only
during the period 1947-53, rather than for the rest of his life – as was the case with Heidegger and Carl
Schmitt – Freyer’s influence was less direct and resembling more the politics of impact “in the wings”.
Habermas listed him, together with Heidegger and Schmitt, among the three thinkers with the greatest
influence on the intellectual formation of his own generation at the end of the 1950s.5
Gadamer and Freyer were colleagues at Leipzig from 1938 through to 1947; when Leipzig University
reopened in February 1946, Gadamer, as the new Rector, did everything he could to protect Freyer from
the impending denazification.6 More importantly, Gadamer acknowledged in a 1982 interview that he
had read with great interest the first edition of Freyer’s important Theorie des Objektiven Geistes - eine
Einleitung in die Kulturphilosophie (1923).7 As a matter of fact, it is possible to argue that Gadamer’s
understanding of tradition and the fusion of horizons was stimulated and even shaped to some noticeable
extent by Freyer’s understanding of tradition. Drawing on Dilthey (together with Hegel and Simmel a
major inspiration for Freyer’s sociology and philosophy), Freyer stipulated a “circular course of unders-
tanding” that rests on a triad of concepts: life, expression, and understanding. Life is meant to be an
active force here, and Freyer speaks accordingly of the “rolling stream of life” (T, 81) that encounters
on its way various forms of objectification. It is in this encounter that understanding takes place as a
dynamic, life-enhancing process. The philosophy-of-life overtones are unmistakable here; they reveal
the very origins of modern hermeneutics, whose idea of understanding as an active process based in the
present, would not have been possible without the shaping impact of Lebensphilosophie.
Tradition is thus presented by Freyer as an encounter between “the understanding life” (T, 127) and
the objective forms of culture. Speaking on behalf of life, whose primacy over form is a necessary condi-
tion of tradition, Freyer constructs the following explanation (marked by a somewhat essayistic language
that feels at times as a continuation of the conventions of the philosophical dialogue). On encountering
a form that has already been established for a while, “[T]he understanding life says: This form is now
empty; and it must be empty so that I can live with it; but at one time it was filled and basically still is;
or: I have shifted the meaning of this form, but it was at one time direct; and like a delightful memory,
the form still today bears in itself it own entire depth” (T, 127-8) He goes on in terms that will be echoed
in Gadamer’s notion of the fusion of horizons: “Understanding thus continuously maintains a kind of
hovering between two lines of meaningful content, one meant for the moment, and the other what was
actually intended. An underground combination of lines is drawn between both contents” (T, 128). In
Gadamer’s words from Truth and Method, “In a tradition (Im Walten der Tradition) this process of fusion
[of horizons] is continually going on, for there old and new are always combining into something of living
value, without either being explicitly foregrounded from the other.”8
I wish now to take the argument a step further and claim that not only the concept of tradition, but
the entire concept of the classical in Gadamer was propelled by concerns central to Freyer’s sociology.
Gadamer’s definition of the classical speaks the language of the philosophical paradox and that of an
almost pious veneration: “[T]he classical preserves itself precisely because it is significant in itself and
interprets itself [by itself]… What we call ‘classical’ does not first require the overcoming of historical
distance, for in its own constant mediation it overcomes this distance by itself. The classical, then, is
certainly ‘timeless’, but this timelessness is a mode of historical being” (289-90/294-5). Gadamer’s at-
tempt to reconcile timelessness and historicity as equally essential modes of the classic is grounded in his
metaphysical trust in the existence of immanent truth, which always is, but which only the flow of time
can reveal. While insisting on the classic being an historical category, the logic of this insistence leads
Gadamer to the opposite conclusion: “[T]he classical is a truly historical category, precisely because it is
more than a concept of a period or of a historical style, and yet it nevertheless does not want to be the
concept of a suprahistorical value. It does not refer to a quality that has to be ascribed to certain historical
phenomena but to a notable mode of being historical: the historical process of preservation (Bewahrung)
that, through constantly proving itself (Bewährung), allows something true (ein Wahres) to come into
being” (287/292).9 The classic, Gadamer writes later on, is that which “resists historical critique”. This

4 Jerry Muller, The Other God That Failed. Hans Freyer and the Deradicalization of German Conservatism, Princeton: Princeton University Press, 1987, p.
305.
5 Jürgen Habermas, “Vom öffentlichen Gebrauch der Historie”, Die Zeit, 7 November 1986.
6 Cf. Jerry Muller, The Other God, pp. 322-24.
7 Jerry Muller, p. 91 n. 14. For an English translation of Freyer’s book, see Hans Freyer, Theory of Objective Mind. An Introduction to the Philosophy of Cul-
ture, tr. and introduced by Steven Grosby, Athens: Ohio University Press, 1998; further references are to this edition, abbreviated as ‘T’, with page numbers
in brackets in the main text.
8 Hns-Georg Gadamer, Truth and Method, 2nd rev. ed., tr. Joel Weinsheimer and Donald G. Marshall, New York: Continuum, 2002, p. 306 (Wahrheit und
Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik, Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 6th ed., 1990, p. 311). All further references are to these
two editions and contain only the relevant page numbers in brackets in the main text: the first figure refers to the English translation, the second one to the
German original. I occasionally modify the English translation for the sake of accuracy.
9 Gadamer’s difficult-to-render wordplay between ‘Bewahrung’ and ‘Bewährung’ goes back to Hegel.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 696


would sound like a pretty banal argument, were it not for the following controversial extension: “because
its [the classic’s] historical dominion, the binding power of its validity – for ever handed down and for
ever preserving itself – precedes all historical reflection and holds out in it” (287/292). Gadamer’s vo-
cabulary, sprinkled with Hegelianisms and Heideggerianisms, and yet recognizably his own – evidences
the turn in argumentation: from an historical category, the classic is being smoothly and imperceptibly
turned into a notion that is posited prior to historical reflection and independently of it. Ultimately, for
Gadamer “the classical is fundamentally something quite different from a descriptive concept used by an
objectivizing historical consciousness; it is a historical reality, to which historical consciousness [itself]
belongs and is subordinate” (287-8/292-3). For Gadamer, the omnipotence of historical consciousness
must here recede and humble its pride before the fact that the classic is “immediately strong”: “The word
‘classical’ enunciates precisely this – that the duration of the immediate power of a work [of art] to speak
is fundamentally unlimited” (290/295). It is on the basis of this intensive sublation of the historical in
the suprahistorical that Gadamer interprets the normative value of the classical as “a model, which, as
something past, is unattainable and yet present (gegenwärtig)” (289/294).
Gadamer’s ideas reflect the acuteness of the principal problem of heremeneutics: how to think the
historical as something specific, unique, singular, and at the same time as something that partakes of
the structure of the present and sends messages towards and for the present. Gadamer is at pains to
persuade us that all this becomes possible thanks to tradition, that understanding is located in tradition
and that a dialogical universalization of historical experience is only thinkable in the bedrock of tradition.
The difficulty stems, however, from the fact that tradition itself – as the event of historically meanin-
gful transmission of (in this case aesthetic) models – is not questioned by Gadamer; he takes it as an
absolute entity. The classical is called upon to exemplify the unconditional nature of tradition. It has to
illustrate the smoothly working mechanisms of tradition that render the transmission of messages from
the past to the present an unfailing process. In this sense one could say that the classical designates a
boundary: with the classical, all roaming efforts of the semantic transmission come to an end – and the
secure career of the transmitted meaning begins, thus confirming the power and beauty of tradition. It
is this liminality of the classic that makes it accessible – for Gadamer – solely in the terms of a paradox.
Gadamer does not attend to the question why some works of the past receive the special status of the
classical; he does not question but simply solidifies this status by declaring it an objectively valid fact.
Gadamer’s interpretation of the classical bears features typical of conservatism, both political and
cultural. In a way characteristic of conservative ideology, Gadamer is deeply fearful of any mediation:
the classical flies on the wings of tradition as a surprisingly pure substance, as if sparing the reader the
profane noises of reception that inevitably accompany the (re)distribution of cultural capital in society.
What is more, in the conditions of modernity, the classical appears to be reproducing the features of
community, the ideal audience and guardian of tradition.
The division between society and community has been archetypal for German sociology and the Ger-
man humanities. It is at this point that Freyer becomes particularly important for the understanding of
Gadamer and his take on the classical. In his main work from the period before World War II, Sociology
as a Science of Reality (Soziologie als Wirklichkeitswissenschaft, 1930), Freyer argues for an unders-
tanding of community that rests on the same tension (only a seeming one, according to him) between
temporality and suprahistoricity, on which also Gadamer’s theory of the classical thrives. (It is essential
to note that Gadamer’s interest in the problem of the classical goes back to the 1930s, the time when
Freyer was developing his ideas on community, progress, and technology. In 1940, e.g., Gadamer re-
viewed Hans Rose’s at the time influential book of 1937 Klassik als künstlerische Denkform des Aben-
dlandes (the review can be found in Gadamer’s Gesammelte Werke, Vol. 5, pp. 353-56). In Truth and
Method, there are no references to Freyer, but in the 1965 article “Hermeneutics and historicism” and
in the 1968 piece “Classical and philosophical hermeneutics”, Gadamer mentions Freyer as an important
continuer of Dilthey’s work.10)
According to Freyer, the most significant distinctive feature of the community is that, unlike society,
it is based on spatial rather than temporal relations.11 While society is made up of different generations,
whose representatives may have never met in person, or indeed of different individuals that are contem-
poraries but do not know each other, in the community the social intercourse is by definition of a different
nature altogether. “There is no community at a distance, through relations of mediation.”12 Community is
the product of contacts in what Freyer terms the “space of [shared] fate” (Schicksalsraum). The notion
of fate no doubt implies certain temporal aspects, but it precludes the idea of history. The community
lives in its shared space as a body, which, “even though it is constantly renewed through the change
of generations, remains one and the same in this change” (S, 243). Like the classical in Gadamer, “the
community stands within history, its shores are laved or burnt by history, but community itself has no

10 Hans-Georg Gadamer, Gesammelte Werke, Vol. 2, Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1993, pp. 100; 398.
11 Freyer here takes up an important distinction made by the German Romantics. For Adam Müller, too, the fundamental polar division in social life is that
between space (the principle of Nebeneinander) and time (the principle of Nacheinander); when both principles are harmoniously implemented, then a
healthy nation comes into being. (Aadmittedly, Adam Müller found an early version of this distinction in Burke.) More on this see in Hans Reiss’s introduction
to his edition The Political Thought of the German Romantics (Oxford: Basil Blackwell, 1955), pp. 29-30. For Freyer’s appreciation of German Romanticism’s
role in the rise of modern sociology, see Hans Freyer, “Die Romantiker”, in Fritz Mann (ed.), Gründer der Soziologie, Jena: G. Fischer, 1932, pp. 79-95; for
a discussion of continuities between Freyer and Fichte in particular, see Michael Grimminger, Revolution und Resignation. Sozialphilosophie und die geschi-
chtliche Krise im 20. Jahrhundert bei Max Horkheimer und Hans Freyer, Berlin: Duncker und Humblot, 1997, pp. 195-209.
12 Hans Freyer, Soziologie als Wirklichkeitswissenschaft, Leipzig and Berlin: Teubner, 1930, p. 241. All further references are to this edition, abbreviated as
‘S’ and in my translation; page numbers appear in brackets in the main body of the text.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 697


history; it only has duration” (S, 244). As Hegel puts it (both Gadamer and Freyer are strongly influenced
by him), community is a pre-historic phenomenon. Bur for Freyer, in its immortality, the community is
also an organism that – just as nature – is “outside history” (S, 243) and, unlike society, is “essentially
timeless” (S, 239): an important difference. Like the classical, it withstands the turbulence of history
and abides in its constantly renewed immutability.
For us, it is even more significant that Freyer also casts a bridge towards the specific cultural-linguistic
aspects that later are to become so vital for Gadamer. The structural law of community life reflects the
structural law of language. The community is founded and acts on the same principles that also govern
language. In Freyer’s words, “As if the community is language through and through” (S, 246). Here
Freyer (like Gadamer after him) turns to Wilhelm von Humboldt’s Romantic doctrine of language as an
organism. Being an organism, language is whole and indivisible. In its social make-up, such is also the
community – and this is why language remains integral and undividable only in the community’s usage,
in the generic repertoire of its creativity. To the extent to which they remain members of the (organic
and indivisible) community, men and women use language holistically: “it is impossible on principle for
language to live in man partially or to be used in a piecemeal fashion” (S, 246). It is only with the advance
of social differentiation and the arrival of the relations of domination (‘Herrschaft’), which for Freyer, and
also for Hegel and Tönnies, mark the transition from community to society, that Verschiedensprachigkeit
(‘heteroglossia’) makes its appearance, disrupting the harmony of community life. In the conditions of
heteroglossia, language begins to be employed partially, with the whole gamut of the newly-arisen so-
ciolects. The various sociolects create different and competing cultural worlds, in which the validity of
tradition gradually trails away, and the organically produced canon of the community disintegrates.
Freyer’s arguments help us to understand that Gadamer’s theory of the classical is actually turned
towards the opposition between society and community, which has been so vital with regards to – in-
deed constitutive of – modern German social science. Gadamer’s hermeneutics, then, needs in turn our
hermeneutic efforts. It needs to be grasped and interpreted as a specific response to modernity. With
Gadamer, the classical is summoned to erase the trauma of social differentiation and to fill the space
that gapes and grows in the process of modernization. He does so by presenting the classical as an
instrument transmitting the validity of meaning from the organic community, in which – as Freyer puts
it – “the closed, compelling horizon reigns” (S, 242) into the open, socially diverse life of society, where
tradition has to “fuse” the heterogeneity of horizons, and with this also the heterogeneity of the social
expectations in relation to art. The classic, if you will, should be the folklore sui generis of modernity, of
the age of script and refined means of communication.
It is important to see the German polemics on community, language, and the classical in the 1930s
precisely as an intervention of the German humanities in the wider discussions on modernity and the
price of rapid reforms after 1933. Politically, the veneration for the classical and for community life was
sending a two-fold message: on the one hand the insistence on the classical was meant to evoke a fe-
eling of permanence that had to assuage fears of instability and potential disorder; on the other hand,
the discourse on the classical was closely interwoven with post-Romantic, often völkisch, nationalism:
the classical was promoted, in literature, music, and art, as the ever-lasting product and embodiment
of Germanness, of which community life was just another manifestation. The defense of the community
and the classical was thus a strategy designed to claim (and win) the moral high ground in these deba-
tes for those approaching the new social realities under the Nazi regime from a position best described
as not unsympathetic, but emphatically conservative. The moral overtones of this stance survived into
the 1950s, when Freyer, calling for a more subtle conservatism, wrote that technological and economic
progress should not be blindly opposed, but should rather be infused with the ever-green moral power
emanating from its deeper foundations that are to be found in the more meaningful basic forms of social
life, on which progress as such thrives. These life forms, then, should not be thought of in merely negative
terms, as “breaks” that hold back the forward movement, but rather as positive powers that endow the
whole process with qualities which cannot be grown organically in the “secondary system” that progress
in itself is: “vitality, human sense, human fullness and fruitfulness.”13
Bakhtin: aesthetics and sociology of the classical in the 1930s
We have seen so far that Freyer avails himself of “heteroglossia” and “horizon”, two words that only
slightly later were bound to become the centerpiece of Bakhtin’s theory of culture and the novel. I wish
to take a lead from this recurrence of the terms “heteroglossia” and “horizon” in order to offer here a
hypothesis that would explain – at least to some extent - the significance of Bakhtin’s work on the novel
as a complex response to modernity and a promotion of tradition.
Let me start with an observation concerning Bakhtin’s evolution as a thinker that would shed light
on his approach to heteroglossia. Back in 1929, in the first version of the Dostoevsky book Bakhtin had
advanced the concept of polyphony. That was an early herald of heteroglossia, even though “polyphony”
was a term Bakhtin used almost exclusively to address the personal achievement of a particularly talented
author rather than the product of a set of social and cultural conditions. There is, however, a hint in the
1929 book that polyphony ought to be explained as more than the gift of an extraordinary writer. This
line of reasoning was adopted by Bakhtin from Otto Kaus’s book Dostoevsky und sein Schicksal (1923),

13 Hans Freyer, “Der Fortschritt und die haltenden Mächte” [1952], in Hans Freyer, Herrschaft, Planung und Technik. Aufsätze zur politischen Soziologie,
ed. Elfriede Üner, Weinheim: VCH, Acta Humaniora, 1987, pp. 73-83, here p. 82.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 698


which set out to offer an explanation of Dostoevsky that drew on the community/society divide and the
transition from the former to the latter:
Those worlds, those planes – social, cultural, and ideological – which collide in Dostoevsky’s
work were each self-sufficient, organically sealed and stable; each made sense internally as
an isolated unit. There was no real-life, material plane of essential contact or interpenetra-
tion with one another. Capitalism destroyed the isolation of these worlds, broke down the
seclusion and the inner ideological self-sufficiency of these spheres.14

Kaus, and after him Bakhtin, equates crisis and modernity and conceives capitalism as a critical state
of society marked by a healthy yet unsettling process of the mutual opening up of various fields of life,
which brings along a multitude of previously concealed horizons and voices. Bakhtin was particularly
eager to stress the propitiousness of the Russian circumstances:
The polyphonic novel could indeed have been realized only in the capitalist era. The most
favourable soil for it was moreover precisely in Russia, where capitalism set in almost ca-
tastrophically, and where it came upon an untouched multitude of diverse worlds and social
groups which had not been weakened in their individual isolation, as in the West, by the
gradual encroachment of capitalism. […] In this way the objective preconditions were created
for the multi-leveledness and multi-voicedness of the polyphonic novel. (PDA, 22).

But despite these attempts to argue the case sociologically, Bakhtin’s earlier work still regards polyphony
almost exclusively as an artistic phenomenon that foregrounds the singular achievement of Dostoevsky
as an innovative writer. At this stage, Bakhtin did not stipulate the exclusiveness of the novel as an em-
bodiment of polyphony. All he asserted there was that Dostoevsky’s novel was compellingly innovative,
in the sense of being, like no other novel before, polyphonic.15 There was no necessary connection be-
tween polyphony and the genre of the novel. Dostoevsky’s novel was a one-off artistic event that stood
outside of any tradition. The unprecedented nature of Dosteovsky’s achievement, which was placing him
above and beyond tradition – was something of a common place in European Dostoevsky criticism – left
and right – at the time. Suffice it to point to the Dostoevsky interpretations of Moeller van den Bruck
or Georg Lukács. For Lukács of Theory of the Novel, in particular, Dostoevsky was the last novelist and
the first herald of the “new-old” epic form. As a matter of fact, Bakhtin’s radical praise of the novelty of
Dostoevsky was doing little more than to reaffirm – in positive terms – Leo Tolstoy’s assertion that the
Russians could not write novels in the sense in which this genre was understood in Europe.
In the 1930s, however, the notion of polyphony is gradually ousted by that of heteroglossia. Bakhtin
understands heteroglossia as a phenomenon independent of an author’s individual artistic attainment.
It is rather, in Hans Freyer’s sense, the state of affairs where language is no longer used holistically, but
– one would remember – as a range of partial sociolects. While ‘polyphony’ encapsulates a mixture of
aesthetic but also moral overtones – to listen to the other, not to place oneself above him/her – ‘hetero-
glossia’ disowns this potential warmth of the moral expectation. Instead, it promotes a more neutral view
on language and the novel, one that makes no moral demands. In promoting the term ‘heteroglossia’
and analyzing (in a passage too well-known not to need to be quoted here) the world of the peasant who
speaks different sociolects in different circumstances, Bakhtin behaves like a sociologist who is concerned
to offer an accurate description of the language situation16 – not like the humanist concerned to retrieve
voices that may otherwise be hushed and lost in the cacophony of modernization. It is only now – in
the 1930s – that Bakhtin produces a necessary link between heteroglossia and the novel: the novel is
considered the preeminent, if not the sole, embodiment of heteroglossia, the artistic form that is best
suited to capture and accommodate the often disparate languages and voices available in society.
But what matters in my view is the fact that the question of heteroglossia and of the indispensable
sociological underpinnings of a theory of the novel became in 1930s Russia a variation on the question of
tradition and the classic. With the Russian hermeneutic scene being rather unremarkable at the time,17
there was no domestic body of work that Bakhtin could resort to while elaborating his own theoretical
proposal. Instead, he turned for support to the rich home tradition of Formalist studies. Strongly indebted
to Shklovsky’s discovery of the self-mocking nature of the novelistic genre that never allows the novel
to create its own ossified canon,18 Bakhtin was now supplementing the Formalists with the important
discovery of the linguistic partiality of the novel embodied in the principle of heteroglossia. As a theorist,
then, in the 1930s Bakhtin was facing the most challenging of tasks: how to convert the non-canonical,

14 Mikhail Bakhtin, Problemy tvorchestva Dostoevskogo, Moscow: Labirint, 1994, p. 21 (Further abbreaviated as ‘PDA’, with page numbers in brackets in
the main text); a new edition with commentaries is available in Mikhail Bakhtin, Sobranie sochinenii, Vol. 2, Moscow: Russkie slovari, 2000.
15 For a study of the evolution of Bakhtin’s interpretation of Dostoevsky, see Galin Tihanov, “The Dynamics of Dialogue: How are Bakhtin’s Dostoevsky texts
made?”, Wiener Slawistischer Almanach, 2001, Vol. 48, pp. 127-151.
16 On Bakhtin as a sociologist, in a different context and with a different agenda in mind, see also Ken Hirschkop, “Bakhtin, philosopher and sociologist”, in
Carol Adlam et al. (ed.), Face to Face: Bakhtin in Russia and the West, Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, pp. 54-67, esp. pp. 63-4.
17 A notable exception in the years of the Revolution and the Civil War was Gustav Shpet, but his major work Germenevtika i ee problemy (‘Hermeneutics
and its Problems’) was left in manuscript form and did not appear (in several journal installments) until the late 1980s/early 1990s (for a German translation,
see Gustav Spet, Die Hermeneutik und ihre Probleme, Freiburg: Alber, 1993).
18 On Bakhtin’s debt to the Formalists, see Galin Tihanov, The Master and the Slave: Lukács, Bakhtin, and the Ideas of Their Time (Oxford: Clarendon
Press, 2000, pp. 131-36); most recently, see Simon Milligan, “Shklovsky’s Practice and Bakhtin’s Theory” (Variations. Literaturzeitschrift der Universität
Zürich, 2003, no. 10, pp. 137-49). Bakhtin hardly ever acknowledged his debt to the Formalists (nor is the name of Georg Lukács, another major influence
on Bakhtin, mentioned in any of Bakhtin’s published texts).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 699


self-mocking, heteroglot genre of the novel – apparently a bad material for a classic – into a building
stone of tradition and an instrument of a wider theory not just of the novelistic but of culture in gene-
ral, which would remain based on his reading of ‘great books’ by ‘great authors’: Dostoevsky, Tolstoy,
Goethe, Rabelais.
Here follows a relatively straightforward and simple answer, whose implications I will briefly examine
in the final part of this article. I submit that in the late 1930s, in his book on Rabelais, Bakhtin was able
to turn the genre of the novel into a building stone of the classical by reconfiguring the novelistic in a
way that opens it up for the influx of epic elements. In other words, Bakhtin’s strategy was to marry the
novel and the epic in a single synthetic genre that would preserve the features of the novelistic while
purging the moments of transitoriness and fluidity, so typical of the novel and so adverse to the very
notion of the classical. The epic substratum in the novelistic would serve as a guarantee of permanence
and stability required in any account of the classical.
To argue this, let us first recall Lukács, one of Bakhtin’s great teachers and silent competitors in the
theory of the novel. In his early work The Theory of the Novel he maintains that the novelistic is the form
of the partial, the epic, on the other hand, is the genre of the whole, capable of capturing and reproducing
totality. (Bakhtin himself upheld this framework of opposition between epic and novel in his 1930s essays
on the novel.) But is it possible to harness the two opposites in a mediation, whereby the part would give
us access to the whole, while the whole would foreground and honour its parts without being reduced to
them? Is there, in other words, a possible synthesis between the heteroglot being of the novel and the
tradition-friendly mono-horizon (to speak in Freyer’s terms) of the epic, a form that could guarantee the
survival of tradition in the age of its disruption through the forces of modernity?
I wish to suggest that in his book on Rabelais Bakhtin offers precisely such a synthesis between epic
and novel, two forms which in his essays of the 1930s remain separated beyond reconciliation: the epic
makes its return in the Rabelais book simultaneously with its expulsion and castigation in Bakhtin’s es-
say “Epic and Novel”. This should hardly come as a surprise; scholarship has by now furnished sufficient
evidence of Bakhtin being perfectly capable of holding different, and even contradictory, views at the
same stage of his evolution as a thinker. Suffice it to point to his conflicting ideas of collective and/ver-
sus individual identity championed in Rabelais and in the essay on the Bildungsroman, respectively.19
Yet before I move to a closer analysis of Bakhtin’s Rabelais book from the perspective of the desired
synthesis of epic and novel, let me first briefly revisit Bakhtin’s own criteria of epicness formulated in
his 1930s essays on the novel.
Four features of the epic, despite some inevitable overlaps ensuing from Bakhtin’s rhetoric of repeti-
tiveness and modulation, can be gathered with certainty from the “Epic and Novel” essay:20
1. The subject of the epic is the heroic national past; epic time (the national past) is severed from
anything after it, particularly from the time in which the “singer and his listeneres” are active.21 The
past is thus valorized and cannot be approached with criticism or doubt. The epic hero is an epitome of
distance and an object of veneration.
2. The source of the epic is the “national tradition” (predanie) rather than the personal experience of
the self. The epic relies on an exclusively “impersonal and sacrosanct tradition”.
3. The epic subsists on a type of ‘memory’ that is markedly different from the deheroizing personal
memory of autobiography and memoir or from novelistic ‘memory’, which would normally comprise only
a single human life: “there are no fathers or generations” (EN, 24) in this latter treatment of memory,
or if there are, they are rivals rather than a harmonious kindred tied together by a totemic veneration
of the predecessors.
4. The fact that the epic is based on past events that are well known to the audience means that
it is impossible for the listener/reader to become genuinely interested in the plot of the epic. The epic
audience treasures repetition and familiarity over surprise and novelty.
How does Bakhtin’s book on Rabelais relate to these criteria? In what follows, I argue that Bakhtin’s
interpretation of carnival in Rabelais acts in a two-fold manner: while strengthening the presumed (and
at times even overtly voiced) correspondence between carnival and novel as promoters of (personal)
freedom born in the experience of cultural interaction, it also erodes the features of the novelistic and
restores the epic as an essential element of the continuous space articulated in the work of the epic
and the novelistic as primordial cultural principles. The idea of carnival in Bakhtin’s Rabelais reshapes
the relations of epic and novel from mutual animosity and exclusion into serene complementarity. To
lend support to this claim, I will re-examine in a four-step analysis Bakhtin’s criteria of epic in their con-
frontation with the idea of carnival. But I shall first briefly dwell on the points of convergence between
carnival and novel.
Like the novel, carnival is expanded in Bakhtin’s Rabelais to shed its identity as a particular cultural
form and to become the epitome of a wider range of practices, of culture as such. It is declared to be the
point at which all impulses of popular energy flow together, much like the novel which accommodates

19 On this see more in Galin Tihanov, “The Ideology of Bildung”, Oxford German Studies, 1998, Vol. 27, pp. 102-140.
20 In the formulation of Bakhtin’s criteria of epicness I follow, with some modification, the helpful summary in Sue Vice, Introducing Bakhtin, Manchester
and New York: Manchester University Press, 1997, pp. 79-80.
21 Mikhail Bakhtin, “Epic and Novel”, in The Dialogic Imagination: Four Essays by M. M. Bakhtin, ed. Michael Holquist, trans. Caryl Emerson and Michael Holquist,
Austin: University of Texas Press, 1994, p. 16; abbreviated henceforth as ‘EN’, with page numbers appearing in brackets in the main body of the text.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 700


the roaming power of the word:
This process of bringing together under the rubric of ‘carnival’ heterogeneous local pheno-
mena and of unifying them in a single concept corresponded to a process taking place in life
itself; the various forms of folk celebration, as they were dying or degenerating, transmit-
ted some of their traits (momentov) to carnival: rituals, paraphernalia, images, masques…
[C]arnival became the reservoir into which the forms of folk celebration, which ceased to
exist on their own, emptied.22

Moreover, carnival is endowed with the same colonizing power as the novel. Not unlike the novel,
which tends to novelize all other genres (precisely because it is thought of as something more than gen-
re), carnival does not get on well with other forms of popular culture: “when carnival flourished... and
became the centre of all popular forms of amusement, it weakened all the other feasts to some extent
by depriving them of almost every free and utopian folk element. All other feasts fade when placed
alongside carnival” (R, 220). We thus arrive at the conclusion that the novel and carnival function in
the same way in Bakhtin’s theoretical discourse. They absorb previous historical experience and sublate
genres and cultural forms that otherwise cannot obtain, or are doomed to lose, independence. Not only
do both the novel and carnival retain the features of past forms on a higher level; they also assume
the power of colonizing previous cultural forms (genres) by stamping on them their own – much more
flexible – identity.
Having drawn attention to the points of convergence between carnival and novel, we can now proceed
to examine the aspects of their divergence in Bakhtin’s book on Rabelais. To do so, we need to revisit
Bakhtin’s criteria of epicness in their relation to the concept of carnival articulated in Rabelais.
The first criterion of epicness, as we have seen, addresses the status of the hero as an epitomy of
distance and an object of veneration. In “Forms of Time and of the Chronotope in the Novel”, Bakhtin
asserts that both Homer and Rabelais build their worlds upon “the immanent unity of folkloric time”,
which, moreover, is “not yet defined against the backdrop of another and fallen time”.23 Extending the
idea of a common ground embodied in the folkloric chronotope of Homer and Rabelais, Bakhtin labels
Rabelais’s Gargantua and Pantagruel “fundamentally folkloric kings and giants-bogatyri”. He regards them
as a sublimated version of the great heroes of the Homeric epic, about which Hegel says in his lectures
on aesthetics that they were selected as heroes “not because of any sense of superiority, but because
of their absolute freedom of will and the creativity they demonstrate in establishing their kingdoms”
(FTCN, 241, my emphasis). Thus Bakhtin abandons the principle of superiority and the ensuing necessity
for the hero to be venerated by the listener/reader; instead, he asserts “the great man” in Rabelais as
“profoundly democratic”, “an ordinary man raised to a higher power”. Rabelais, in other words, supplies
the everyday copy of the epic hero. The novelistic (the idea of the ‘profoundly democratic’ nature of the
hero, of his heroism being clad in everyday dress) and the epic (the retention of the idea of a ‘higher
power’ that confirms the hero in his status of exceptionality) seem thus to be joining forces to produce
a contradictory image of the Rabelaisian characters. Neither exclusively novelistic nor exclusively epic,
they are both at the same time and at all times, the desired synthesis of principles which Bakhtin himself
in the “Epic and Novel” essay tends to see as opposed to one another beyond reconciliation.
The second criterion brings to the fore the fact that the epic depends on a ‘national tradition’ which
is always ‘impersonal and sacrosanct’. But so does carnival, where the forms of experience are utterly
impersonal, while – at the same time – being far from sacrosanct. Bakhtin’s vision of carnival in Rabelais,
then, spells out the contours of this very same unity of epic and novel, which remains unfeasible in his
essays on the novel. The substratum of this new form of experience, which synthesizes the impersonal
(as in the epic lore) and the irreverent (as in the novel), is found by Bakhtin in the “collective body”, be
it that of the people (narod) or of mankind. In his early treatise “Author and Hero”, Bakhtin had analyzed
the individual human body, the body of a certain ‘I’. While the “Author and Hero” essay sought to outli-
ne the boundaries of this individual body, in the 1930s Bakhtin turned to a different idea of the human
body. He arrived at it not without the impact of contemporary physiology and biology exercised through
Ukhtomskii’s lectures24 and his friendship with Ivan Kanaev.25 In his book on Rabelais, Bakhtin is already
busy analyzing the collective body, whose identity is shaped not by drawing a boundary between the
self and the other, but in an experience of transgressive togetherness. This collective body denies the
value of the individual appropriation of the world. Its overwhelming collectivity rests on its ‘non-classic’
constitution; it is grotesque in the sense of not knowing beginning or end, exterior and interior, depths

22 Mikhail Bakhtin, Rabelais and His World, trans. Hélène Iswolsky, Bloomington: Indiana University Press, 1984, p. 218; henceforth abbreviated as ‘R’,
with the relevant page numbers appearing in brackets in the main text. I have occasionally amended the existing English translation for the sake of greater
accuracy.
23 Mikhail Bakhtin, “Forms of Time and of the Chronotope in the Novel”, in The Dialogic Imagination: Four Essays by M. M. Bakhtin, ed. Michael Holquist,
trans. Caryl Emerson and Michael Holquist, Austin: University of Texas Press, 1994, p. 218; abbreviated henceforth as ‘FTCN’, with page numbers appearing
in brackets in the main text.
24 For an overview of Bakhtin’s interest in biology, see Michael Holquist, “Bakhtin and the Body”, in The Bakhtin Circle Today, ed. Myriam Diaz-Diocaretz
(Critical Studies, Vol. 1, no. 2), Amsterdam and Atlanta: Rodopi, 1989, pp. 19-42; for Bakhtin and Ukhtomskii, see N. Marcialis, “Michail Bachtin e Aleksej
Uchtomskij”, in Bachtin, teorico del dialogo, ed. F. Corona, 1986, Milano: Angeli, pp. 79-91. For a provocative interpretation of Bakhtin, medicine and the
problem of the body, see Peter Hitchcock, “The Grotesque of the Body Electric”, in Bakhtin and the Human Sciences, ed. M. Bell and M. Gardiner, London:
Sage, 1998, pp. 78-94; see also G. Tihanov, “The Body as a Cultural Value: Brief Notes on the History of the Idea and the Idea of History in Bakhtin’s
Writings”, Dialogism, 2001, nos. 5-6, pp. 111-121.
25 On Kanaev, see Ben Taylor, “Kanaev, vitalism and the Bakhtin Circle”, in D. Shepherd et al. (ed.), The Bakhtin Circle: In the Master’s Absence, Manchester
and New York: Manchester University Press, 2003.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 701


and shallows. All this makes the grotesque body insusceptible to the grand, the historically intransient,
and the monotonously ‘serious’. Hence its aversion to the pious cast of mind and to the acts of collective
veneration reproduced in the bosom of the ‘sacrosanct’ tradition is paradoxically welded to an organic
distrust of the individual forms of experiencing the world.
The third characteristic of the epic, not unlike the one discussed above, emphasizes the close con-
nection between the epic and ‘collective memory’. This ‘collective memory’ is capable of working across
generations; it is not confined to a single human life and, unlike the ‘personal’ memory of the novel,
it captures in its folds the unadulteratedly heroic aspects of the characters’ careers. One would expect
Rabelais’s book to be treated by Bakhtin as the model for the individualistic and ‘deheroizing’ memory of
the novel, which opposes the collective culture of remembrance. However, we are confronted in Bakhtin’s
interpretation with what he terms the memory of the ‘body of the human species’ (rodovoe telo chelo-
vechestva), the proto-image of which ought to be sought in Bergson’s Matter and Memory. The body of
the humankind, a Hegelian extension of the communal body of the people, is shown by Bakhtin to grow
in strength by suppressing and expelling through laughter its “obscure memory of cosmic perturbations
in the distant past” (R, 335). The capacity of boundless memory is a distinctive attribute of the ‘body of
the species’; this memory processes the menacing events of the deepest past into a joyful celebration
of resilience and longevity, without any reference whatsoever to individual existence. Thus Bakhtin’s
body in Rabelais is poised between the process of materialization (objectification) in self-sufficient acts
of abundantly physical character and the condition of an abstract identity which is revelatory of powers
of a higher order: limitless memory and ‘courage’ in the face of nature and death, epic immortality, and
endless regeneration. The concept of the body proves, then, to be endowed with two different meanings
by Bakhtin: the first one represents its verifiable physicality; the other one points towards a state of col-
lectivity where the bodily eventually comes to represent the spiritual in the guise of an all-encompassing
memory and inextinguishable valour.
Finally, the fourth criterion of epicness discards the possibility that the epic plot may arouse interest in
its own terms. Based on repetition and formulaic accounts of the past, the epic remains in the grip of the
familiar and the predictable. It lacks the open vistas of the novelistic where, Bakhtin asserts (following
Friedrich Schlegel and Lukács), everything is in the process of becoming.
Rabelais’s novel can be argued to generate a picture of carnival that, on Bakhtin’s reading, presents a
converted version of the epic – in a perhaps not readily recognizable but nevertheless legible form – and
thus preserves some of the features of the epic, including the preference for a plot that seeks support
in the repetitive and the familiar. The viewer of carnival cannot be devotedly interested in what happens
in the carnival procession, for the actions performed there are not those of an individual will or destiny,
but rather those of an indiscernible collective experience. That is to say, our interest in the practices of
carnival as described by Bakhtin is not an interest in a novelistic plot or novelness (what one may have
expected from Rabelais’s book), but rather an interest in what appears to be reconciling flamboyant sta-
tements of extraordinarity with a prevailing framework of ritual repetitiveness. The excesses of carnival
make it unapproachable from a spectatorial stance, because carnival, as well as the other festive practices
analyzed by Bakhtin, is said to obliterate the boundary between viewer and participant. Referring to the
wedding feast as a carnivalesque event, Bakhtin asserts: “during that period there are no footlights, no
separation of participant and spectators. Everybody participates” (R, 265).26 Hence it proves impossible
to generate and sustain an interest in the ‘plot’ and the narrative novelty of carnival, for this would have
amounted to the adoption of a point of view that invites appreciation based on the position of exteriority
championed in Bakhtin’s early “Author and Hero” essay but vigorously denied in Rabelais.
In light of the fading opposition between epic and novel in Rabelais, argued for in this analysis of
Bakhtin’s criteria of epicness, there is one particular function of the human body, and at the same time
a vital aspect of culture, – laughter – that needs to be examined in order to reveal Bakhtin’s transfor-
mation of novelistic attitudes into epic reactions to the world in Rabelais. Bakhtin inherits two European
traditions in theorizing laughter: the neo-Kantian and that of vitalism and philosophy-of-life. The views
of Bergson were of special importance to him. For Bergson, laughter is the “corrective” of automatism
and mechanization; it helps society to get rid of rigidity “in order to obtain from its members the grea-
test possible degree of elasticity and sociability”.27 Moreover, implicitly evoking Hobbes’s understanding
of laughter as a means of gaining an advantage over one’s opponent (rival) in a polemic, Bergson ar-
rives at a conclusion that is not far from Hobbes’s: laugher’s function is to “intimidate by humiliating”
(L, 188). Bakhtin is indebted to Bergson for the notion of laughter as a “social gesture” (L, 73), which
ultimately originates in group attitudes and reactions. However spontaneous laughter might appear to
be, Bergson stresses that it “always implies a kind of secret freemasonry, or even complicity, with other
laughers, real or imaginary” (L, 64). Bakhtin’s notion of laughter radicalizes this idea: for him laughter
originates in the opposition of groups representing popular culture in its clash with official ideology; but
laughter is soon to shed this identity and become social and collective to the point of transcending all
group divisions. In Rabelais, laughter tends to be thought more as an emblem of the united body of the
people and a cohesive bond between the various layers of society than as a dividing practice. Everyone

26 Undoubtedly, Bakhtin is following here Nietzsche’s Birth of Tragedy, most likely through the mediation of the Russian symbolist poet and philosopher of
culture Viacheslav Ivanov. In section 8, Nietzsche stresses the absence of differentiation between viewer and actor in Greek tragedy.
27 H. Bergson, “Laughter”, in W. Sypher (ed.), Comedy, Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1980, p. 74; abbreviated henceforth
as ‘L’, with page numbers appearing in brackets in the main text.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 702


laughs in carnival to ridicule the otherwise all too serious style of practical everyday life. From a group
phenomenon called to rectify the faults of other groups, laughter is transformed into a collective power
that emanates from the whole of the people’s body and spreads throughout the universe. Thus we see
how instead of being drawn upon as a mechanism of constructing group/class differences, which would
constitute the pith of a novelistic narrative, laughter in Rabelais is redefined as an epic device that eradi-
cates individual or group dissimilarities. Small wonder, then, that Bakhtin, effacing the difference between
epic and novel, reproaches Hugo for “never understanding the epic quality (epichnost’) of Rabelaisian
laughter” (R, 128).
Conclusion
It has become clear by now that in Bakhtin’s book on Rabelais carnival is interpreted as a blend betwe-
en the large-scaleness and ‘naivety’ of the epic (a vital precondition for the staging of carnival) and the
elusive, fluctuant, self-ironic, and contradictory nature of the novelistic. Even in the 1930s, the epic does
not disappear from Bakhtin’s thought; it is sublimated in carnival, where it is mixed and ‘fertilized’ with
the ‘force vital’ of the novelistic. Like the epic, carnival is about the maintaining of traditional practices,
but in an open and charitably ‘insecure’ way. Thus the book on Rabelais seems to be the point where,
after reconciling and synthesizing culture and life in the acts of the human body, after reworking and
redrawing the boundaries of cultural taboo, and after championing a symbiosis between the epic and the
novelistic, Bakhtin has offered his way of squaring the circle of partiality and wholeness – and thus also
his own version of a classic. It was only with his dissertation on Rabelais that he found the necessary set
of generic features that – as in T. S. Eliot’s theory of the classic – would allow him to re-order the entire
preceding series not just of literature but of culture as a whole and to sponsor a new sense of tradition
based on the supple and irreverent attainments of folk culture.
For decades now, scholars in Russia and the West have been entangled in severe polemics about the
political implications of Bakhtin’s work in the 1930s – was he a Stalinist or an anti-Stalinist, for or sur-
reptitiously against the Soviet regime? I am afraid there is no simple answer to this question. Bakhtin
was no wiser than his time, no matter how much we would like the reverse to be true; his interest in
Rabelais, for example, could be shown to have been the result of a changing perspective on the classi-
cal in Soviet society, resulting from the swift ideological transition to the platform of the Popular Front
after 1935 and involving greater attention to Western classics of a (at least apparently) more populist
flavour.28 In this context, Bakhtin’s work was sending in the same breath the ambiguous – and probably
precisely because of that rich and historically viable – message of utopia and nostalgia. The literary
canon he constructed was certainly double-faced: Bakhtin embraced and wholeheartedly asserted the
genre of the novel as a vehicle of modernity that recognizes no sacrosanct dogma or tradition and that
sees current Soviet reality as but a link in a chain of historical developments that cannot be arrested or
exhausted, not even by the Revolution. On the other hand, Bakhtin’s veneration of the epic in Rabelais
was a manifest acceptance of the nostalgic practices characteristic of community life that were called
upon to instill a sense of tradition and to mitigate the effects of brutal modernization, raging in the 1930s
and most dramatically exemplified in the enforced collectivization of agriculture. Bakhtin’s embrace of
the power of the collective was undoubtedly consonant with the official line of the gradual collectiviza-
tion of all important aspects of life in Soviet Russia. His suggested notion of the classical appears, then,
to have been very much part and parcel of the emerging official promotion of the great ‘epic novel’, a
hybrid genre that Soviet aesthetics sought to revive and enthrone – notably as an extension of the by
then safely classical legacy of Lev Tolstoy – as a significant ingredient of its new literary canon in the
1930s. The gradual rapprochement between the novel and the epic, indeed the inevitable sublation of
the novel in a renewed epic, was the central argument of Georg Lukács and Mikhail Lifshits – the two
most vocal opponents of vulgar sociologism in the 1930s – at the important Moscow discussion about the
novel at the end of 1934 and the beginning of 1935, which Bakhtin followed with considerable interest.29
One day someone might be interested in reading Bakhtin’s book on Rabelais, work on which began in
the 1930s and was not finished until the mid-1960s, with two of the indisputable classics of the Soviet
times in mind – Sholokhov’s epic novels Virgin Soil Upturned (1932-60) and The Quiet Don (1928-40)
–, thus revealing the roots of Bakhtin’s theory of literature and culture in the contemporary politics and
aesthetics of canon-building in the Soviet Union.30 But this is a task beyond the scope of this article. It
should suffice for now if we succeed in bringing home the message that it would no longer be possible
to study Bakhtin’s writings of the 1930s – his most seminal period as a thinker – without taking into
account the larger framework of the battles over the meaning (and the whole process of production) of
tradition and the classical in Soviet culture, by and towards which his work as a theorist of culture and
literature was implicitly or explicitly directed.31
28 Katerina Clark, who has placed Bakhtin’s work in the ideological context of the Popular Front, appears to be right when insisting that “it seems far-fetched
to argue that he [Bakhtin] mustered such a barrage of literary erudition, and fastened on Rabelais as his subject matter, merely to provide camouflage for
a critique of Stalinism” (K. Clark, “M. M. Bakhtin and ‘World Literature’”, Journal of Narrative Theory, 2002, Vol. 32, no. 3, pp. 266-92, here p. 267).
29 On this discussion and on the ideological baggage of the concept of the ‘epic novel’, see Galina Belaia, “’Fokusnicheskoe ustranenie real’nosti’ (O poniatii
‘roman-epopeia’)”, Voprosy literatury, 1998, no. 3, pp. 170-201, esp. pp. 177-85 and G. Tihanov, The Master and the Slave, pp. 113-28.
30 The rapprochement of epic and novelistic, the case for which we find subterraneously yet vigorously made in Rabelais, is of course a trend to be explained
with reference not just to Soviet culture; in the wider European context, Joyce’s Ulysses was a particularly significant embodiment of this trend (more on this
see in G. Tihanov, “Bakhtin, Joyce, and carnival: towards the synthesis of epic and novel in Rabelais”, Paragraph, 2001, Vol. 24, no. 1, pp. 66-83).
31 This article is an expanded and revised version of an invited lecture at the University of California, Berkeley (March, 2003) and a paper at the XI Interna-
tional Bakhtin Conference in Curitiba, Brazil (July, 2003). I wish to thank Harsha Ram and Eric Naiman for kindly co-hosting the talk at Berkeley, which was
followed by a very stimulating discussion, and the British Academy for generously covering my travel expenses to Brazil through an Overseas Conference
Grant (OCG-36558).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 703


Literatura e ensino: proposta para uma leitura dialógica
do mundo na (da) sala de aula

Robson Coelho Tinoco

Universidade de Brasília

robson@unb.br

Não existe nem a primeira nem a última palavra, e não


existem fronteiras para um contexto dialógico.
Bakhtin, 1982.

Esta proposta para o desenvolvimento da conscientização sócio-educacional se estrutura em ativida-


des escolares – sobretudo as referentes à leitura, também literária – com o objetivo de reavaliar com os
alunos, dialogicamente, suas posições enquanto indivíduos sociais. Nesse contexto neocultural,o indiví-
duo-aluno-leitor assim se apresenta: desorientado por conceitos distantes de sua realidade; anulado por
avaliações que exigem o inutilizável; ancorado em teorias educacionais ultrapassadas por um mundo com
novos valores; oprimido por didáticas “libertárias” que não oferecem material de compreensão eficaz da
sociedade e dele próprio; cansado de leituras mal-direcionadas e ineficientes.
Com tal preocupação, os fundamentos teóricos desta proposta consideram, basicamente, uma concep-
ção dialógica e interacionista da linguagem apoiada em Mikhail Bakhtin. Nela, a circulação das atividades
de leitura realizadas pelos alunos, e mesmo professores, são vistas como possibilidade de permitir a
interlocução, considerando a realidade de sala de aula, com o mundo.
Entendam-se seus fundamentos como fases articuladas de um processo de conscientização de base
dialógica – leitor-autor; indivíduo-mundo – que envolvam ativi-dades de leituras várias com o intuito
de uma visão/leitura de mundo mais criticamente estabelecida. Na obra Estética da criação verbal, ao
considerar este contexto de leituras, mundo e, ainda, gêneros do discurso, Bakhtin aponta para o fato de
que, na vida concreta, trabalha-se sempre com enunciados completos, em que cada esfera de utilização
da língua elabora seus “tipos relativamente estáveis”. Assim, quanto mais complexa é uma socie-dade,
mais complexos serão os gêneros do discurso a serem percebidos em sua função de literariedade e
informatividade.
Ao buscar a articulação entre a expressão literária e informação objetiva de um texto, a essência
dessa proposta reside na composição de um conjunto de atividades com os alunos, em sala de aula, a
partir de textos-base aplicados. Tais textos visam ao estabelecimento de novos paradigmas educacionais
para a compreensão dessa nova sociedade pós-moderna, envolta por conceitos e técnicas de informática,
cibernética, semiologia, ética e a sempre tão (mal)debatida questão da leitura dialógica que os integra
em uma rede única de conhecimentos.
Revelando certa confusão conceitual, apesar da ironia assumida, Bakhtin (op.cit.) avalia que em nosso
mundo contemporâneo é impossível assumir uma verdade absoluta e, assim, devemos nos contentar
em citar mais que falar em nosso próprio nome. A proposta aqui apresentada, ao procurar superar cri-
ticamente tal “noção de ironia”, considera que o valor da educação do aluno-indivíduo será medido pela
sua capacidade pessoal, integrada ao coletivo, em articular de maneira equilibrada os dados, hipóteses
e inferências contidos em uma onda informacional – entenda-se educação do futuro.
Nessa onda se vai, cada vez mais, tentar ultrapassar os limites do conhecimento com o objetivo de
se chegar à sabedoria. Tal transição não ocorre automaticamente e, portanto, deve ser trabalhada como
conjunto bem articulado de meios e capacidades sócio-individuais voltados para um processo de aqui-
sição-entendimento da linguagem – em sua nova função dialógica – que necessariamente precisa ser a
menos problemática possível. É fundamental que essa linguagem seja veículo para expressão das idéias
e não fim de um estudo – aqui, aliás, o objetivo central que sustenta tal proposta.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 704


Leitura de mundo: (des)leitura da escola
Quanto às situações de ensino-aprendizagem relacionadas à leitura, na universidade brasileira, consi-
derem-se, entre outras, essas duas como básicas: uma profunda insatisfação com a linha atual de aná-
lises literárias que se perdem, normalmente e desde muito tempo, em considerações que não permitem
compreensão ampla dos sentidos das leituras feitas; uma não menor insatisfação com a organização
acadêmica, em vários níveis, promovendo um exercício institucional-pedagógico desarticulado das reais
necessidades da sociedade em que está inserido.
Considerando esses pontos, é fundamental:
• (re)avaliar, segundo Theages, três princípios básicos das virtudes – CONHECIMENTO, PODER
e ESCOLHA –, o que levaria ao conceito de Wittgenstein, no qual as atividades humanas resultariam no
próprio conceito de cidadania;
• perceber a relação entre uma CIBER-ÉTICA e o educador como indivíduo ético articulando IN-
FORMAÇÃO, CONHECIMENTO, APRENDIZAGEM e, enfim, EDUCA-ÇÃO.
Assim, devem se considerar possibilidades como o uso do computador na educação apontando para
uma nova direção: o uso da tecnologia de objetos não como “máquinas de ensinar” mas como nova
mídia educacional. O computador passa a ser, pois, ferramenta para aperfeiçoamento técnico e mesmo
humano de seu usuário e estudos sobre avanços dessa nova tecnologia, presente em variados ambientes,
avaliam que ela ainda não pode ser amplamente utilizada pelas escolas/universidades – com estruturas
educacionais ainda fortemente refratárias a essas novidades e dependentes de um sistema marcado ou
por uma visão organizacional imediatista ou institucional paternalista. Aliás, esses modelos de atuação das
organizações e instituições foram analisados por Marilena Chauí, que considera aquelas se estruturando
por meio de uma prática sócio-econômica fundada na instrumentalidade de objetivos (planejamento,
previsão de investimentos etc.) e não em projetos de pesquisa.
Nesta estrutura sócio-educacional, o projeto realmente importante é possibilitar que todos tenham
as mesmas chances de aprendizagem – via leitura como elemento dialógico – e de disputar as vagas de
trabalho, surgidas nessa nova sociedade pós-moderna, cibercrática e distante das atividades de leitura
como (re)descobrimento de si mesmo e do mundo. Esse projeto, fundado na realidade, só será possível
com educação de qualidade e amplamente democrática a todas as pessoas.
Considere-se ainda, que toda forma de linguagem expressa uma informação dialógica que, devida-
mente apreendida e avaliada, pode se prestar a ser fator de aprimoramento intelectual e de convivência
social. Assim, o contexto sócio-cultural é o meio em que a mensagem se transforma e a linguagem,
mostrando-se à pessoa, revela sua faceta de comunicação e poder.
A linguagem escrita, neste contexto de análise, pode cumprir o papel de transformar a pessoa
em um leitor consciente quando ele exerce a atividade de ler de maneira produtiva e reveladora e isto
na medida em que, mais que a obra, ele lê, por meio dela, o(s) mundo(s) do autor e dele próprio, lei-
tor. Pesquisadores como Eni P. Orlandi (1988) afirmam que a leitura – considerada neste trabalho como
leitura conscientemente produtiva – é produzida em condições determinadas, ou seja, em um momento
histórico que deve ser levado em conta, para uma apreensão mais efetiva e eficaz da leitura feita.
Uma dialogia social da percepção: ler o mundo que nos lê
No exercício da leitura não há separação entre “processo e produto”, pois na interlocução o sentido
se constitui a cada momento de forma múltipla e fragmentária. MÚLTIPLA, porque cada leitura se inte-
gra à particular experiência mundo-vida de cada leitor; FRAGMENTÁRIA, porque “fragmento de vida”
representa uma determinada circunstância e situação em que ela (a leitura) é realizada. Esta relação
dinâmica entre atos de conhecimento (processo) e coisa produzida (produto) finda por representar a
linguagem – o exercício de ler.
Assim considerada, a leitura não é mera apreensão de um sentido escrito, mas processo deter-
minado por elementos, ora mais técnicos – paragrafação, concisão, teor argumentativo etc. –, quando
se trata de textos dissertativos; ora mais estilísticos – criatividade, neologismos, teor poético etc. –,
quando os textos são literários. Todavia vários são aos autores, entre eles Orlandi (1989), que obser-
vam o quanto a escola (orientada por pesquisas universitárias parciais) tem cometido o erro de igualar
tudo.
O que se propõe como boa (e produtiva) leitura é ler o mundo em uma obra escrita; ler as marcas
de um Homem-Sujeito que faz do mundo seu Objeto de existência e comunicação – Homem que está
no mundo: Transformador-sujeito-transformado em fonte viva de acumulação de suas próprias experi-
ências de vida e mais as das outras pessoas. Robert Jauss, dentre outros, na base teórica de sua Teoria
da Recepção, trata dessa questão primordialmente.
Para essa leitura produtiva é fundamental avaliar a obra escrita como linguagem mostrando o
mundo, porque o revela, na medida em que o leitor se percebe refletido nela. Tem-se, enfim, como uma
das conseqüências deste processo comunicativo, um leitor que lê melhor, porque lê mais, apreendendo
mais conscientemente as informações, pelo fato de ter aprimorado sua leitura.
Uma boa leitura se faz por meio de um processo consciente em que ela, produtivamente, mostra-se
como representação de consciência que busca QUEM? é o Sujeito que lê e O QUÊ? é o Objeto lido, pois
o ato de ler nada mais é que reflexo direto do HÁBITO de ler ou, antes, quanto mais se está habitua-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 705


do a ler, melhor se estabelece este ato representando uma, dentre tantas, “função social” (Camacho,
1988:29).
Ao se retormar o conceito proposto LER BEM: UM ESTADO DE CONSCIÊNCIA, onde a idéia-base é a
de que
ler bem (gera um) estado (eficaz) de consciência,
surgem as seguintes constatações:
1. A pessoa alfabetizada pode ler as formas das palavras sem saber ainda desvendar suas muitas
possibilidades de significado nos vários contextos; portanto, mais vê do que lê (ao desvendar a leitura
feita).
2. A pessoa inconsciente de sua função social como leitor, lê sem propriamente chegar ao texto; lê
sem o ler direito por motivos como:
• impaciência, desenvolvimento, preguiça advindas de obrigação escolar;
• interesses pontuais (concursos vários, vestibular etc.);
• mera imposição sócio-intelectual.
3. A pessoa consciente – produto humano de um processo de conscientização social que promove o
processo verbal – lê pelo prazer do ato em si ou pelo “prazer da necessidade” de ampliar conhecimen-
tos; lê como obrigação sim, que, todavia, leva ao aprimoramento da paciência, da percepção da própria
expressão verbal; leva, mesmo, ao aprimoramento do conceito de cidadania.
Em resumo, pode-se dizer das pessoas, aqui consideradas sujeitos-leitores que:
a) O Sujeito aleatoriamente alfabetizado mais vê, pouco lê;
b) o Sujeito inconsciente do processo de leitura do qual ele próprio, enquanto agente, faz parte, não
lê propriamente, pensando que lê bem, ou nem pensa em nada e
c) o Sujeito consciente vê (percebendo sutilmente) o que não precisa ser lido; classifica, seleciona
muito melhor e mais rapidamente as informações e, aprofundando-as, lê a ESSÊNCIA do texto, ou me-
lhor, lê também sua essência. Lê (produtivamente) bem, enfim.
Apreender a essência de uma mensagem qualquer, seja em uma leitura atenta do complexo Ulys-
ses, de James Joyce ou do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, tanto quanto na leitura de
informações intencionalmente implícitas de um texto publicitário ou de um bilhete, repleto de gírias e
anglicismos (escrito, por exemplo, por um jovem surfista para sua namoradinha), sempre requer, pouca
ou muita, atitude reflexiva.
Reflexão é já compreensão e, em se tratando especificamente de atividades de leitura, “não basta
decodificar as representações indiciadas por sinais e signos; o leitor porta-se diante do texto transfor-
mando-o e transformando-se” (Ezequiel T. Silva, 1987:44).
Refletir sobre uma leitura que se faz, percebendo que sob ela estão as raízes produtoras da mensa-
gem essencial do autor, é compreendê-la além da simples representação verbal de um texto escrito; é
perceber esses três propósitos da leitura, relacionados por Silva (op. cit.: 45) como os fundamentos de
uma produtiva reflexão:
compreender a mensagem,
compreender-se nela e
compreender-se por ela.
Neste processo de leitura dialógica produtiva, a informação subjetiva gera informação mais objetiva
que, analisada e compreendida, promove aberturas para nova análise subjetiva e assim sucessivamente.
Seguindo esta linha de argumentação, e num sistema onde EDUCAÇÃO LIBERTADORA gera um PLANO
DE CONSCIENTIZAÇÃO promovendo LEITURA CRÍTICA (PRODUTIVA), pode-se estabelecer que:
1. Educação libertadora se refere a “atos livres que levam a refletir, interpretar, compreender”
e
2. Leitura crítica se refere a “atos de constatar, comparar e transformar”. (Silva, 1987: 80)
Plano de conscientização dialógica: ler a palavra carregada de mundo
O processo conscientizador revela-se em um determinado PLANO levando em conta a condição pri-
meira de, pela reflexão e questionamento, libertar-se de tudo que se mostra, a princípio, politicamente
correto, filosoficamente reacionário, psicologicamente simples. Esses três níveis teóricos surgem como
componentes de uma estrutura social tradicional e ultrapassada, porque fechada em si mesma – estrutura
que tem na própria preservação inquestionável o único, e por isso injusto, sentido de funcionamento e
continuidade.
Este processo conscientizador expõe variantes, e uma das mais revolucionárias e criticadas, e mal
trabalhadas, é a Leitura. Estar, pois, consciente de que ler é “mais que ver”, já é “ler melhor” e esta
consciência é trazida à luz por uma leitura crítica, revelando e refletindo as várias funções sociais da
pessoa. Esta função implica um funcionamento mais integrado entre os vários níveis de comunicação,
que vão desde as primeiras informações no convívio familiar, passa pela relação escola-pessoa e se
reflete no dia a dia profissional que, se tudo é mesmo um “processo cíclico”, finda por se manifestar,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 706


novamente, na família.
Assim conscientizada num processo de “desenvolvimento intelectual” pelas experiências vividas,
e percebendo que o enunciado de um texto faz parte de relações extratextuais (Bakhtin, 2001), uma
pessoa pode, quando da fase de sua vida escolar (entenda-se universitária), e enquanto leitor, realizar
uma leitura mais produtiva no que diz respeito à apreensão das informações subjetivas – suportes das
chamadas informações essenciais. A questão é que a pessoa se aprimora enquanto desenvolve sua
capacidade de refletir, questionar, descobrir – aprimoramento promovido pela conscientização de um
ser-agente consciente de si e do mundo que o cerca.
Por esse processo tem-se um leitor consciente que “com o aprimoramento da leitura numa percep-
ção estética e ideológica mais aguda e com a visão crítica sobre sua atuação e a de seu grupo, torna-se
agente de aprendizagem, determinando ele mesmo a continuidade do processo, num constante enri-
quecimento cultural e social” (Bordini & Aguiar, 1988: 91). Tem-se um leitor-agente ágil na apreensão
do texto implícito diluído no texto apresentado pela mensagem escrita; ágil no exercício da reflexão, da
descoberta, da análise comparativa e na relação entre informações relevantes ou não para a compre-
ensão de uma dada obra literária.
Uma leitura produtiva busca o contato com uma pessoa, representada por sua expressão de leitor
que percebe, também por este exercício (só o ato consciente de ler não possibilita uma real apreensão
do momento sócio-cultural que se vive), uma ampliação de suas capacidades, já que “o processo de
recepção se inicia antes do contato do leitor com o texto. O leitor possui um horizonte que o limita mas
pode transformar-se continuamente, abrindo-se. Este horizonte é o do mundo de sua vida, com tudo
que o povoa: vivências pessoais, culturais, normas jurídicas, filosóficas etc.” (op. cit.: 87)
CRONOGRAMA PARA APLICAÇÃO DE ATIVIDADES PROPOSTAS
Período proposto: 2 meses (considerando-se que cada aula terá dois períodos)
1º MÊS
1ª Semana:
1ª Aula / 1o. Período - Avaliação geral das atividades a serem desenvolvidas.
O professor, neste primeiro momento, discutirá com os alunos os objetivos das atividades a serem
desenvolvidas, centrando-se na importância de, por meio desse desenvolvimento consciente e criativo,
trabalhar a capacidade que cada um tem de realizar uma leitura mais produtiva, do ponto de vista de
uma melhor apreensão das informações veiculadas pelos textos apresentados.
Faz-se uma análise geral da realidade sócio-histórica na qual se vive – e nela, a realidade edu-
cacional – a fim de que professor e alunos possam, numa discussão aberta e sincera, entender como
sendo importante as atividades propostas ao longo do bimestre.

1ª Aula / 2o. período - Distribuição dos temas para pesquisa (com posterior apresentação em sala
de aula) sobre “Conscientização do sentido de cidadania e desenvolvimento social”.
Antes de propor estratégias para uma leitura mais produtiva, o objetivo deste trabalho é avaliar como
é importante a conscientização da pessoa que lê. Nesta linha de avaliação, o livro aparece como “objeto
acabado” pronto para o consumo e o leitor, como “sujeito em acabamento” – ser com possibilidade con-
tínua de aprimoramento de opiniões e conceitos. Partindo dessa premissa, antes da leitura (por exemplo,
de livros literários) há que se estabelecer todo um trabalho de consciente disposição do aluno – leitor
em potencial – ao ato produtivo desta leitura.
A proposta de distribuição de temas gerais para pesquisa visa a oferecer aos alunos as condições
básicas para que eles, mediante suas próprias habilidades para discussão em grupo, divisão de tarefas,
pesquisas em bibliotecas, coleta geral de dados (e sua pertinência para o trabalho), possam ir se familia-
rizando com os conceitos implícitos em palavras como consciência, desenvolvimento e contexto sociais,
grupos sociais, conscientização etc.
Os temas propostos pelo professor, depois desta preleção com os alunos, seriam os que versassem
sobre assuntos como, por exemplo:
• O nível de conscientização política das pessoas no Brasil.
• O desenvolvimento econômico e a possibilidade de as classes sociais dele poderem usufruir .
• O sistema educacional como prioridade, ou não, dos governos municipal, estadual e federal.
• A relação Liberdade X Juventude: a vida em sociedade.
• Os métodos de ensino atuais e a questão da Conscientização.
• A importância da Língua Portuguesa no dia a dia das pessoas.
• A universidade como ambiente moderno de transmissão de informações.
Observa-se que a atividade de pesquisa sobre esses temas, que não são “fechados” mas fruto
de uma discussão prévia em sala de aula, tem a intenção básica de oferecer ao aluno, através de seu
próprio trabalho, as primeiras noções do que seja CONSCIEN-TIZAÇÃO SOCIAL para que ele possa per-
ceber mais claramente, ao longo do processo, a importância de ser, também, um “bom leitor”.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 707


1ª Aula / 3º período - Discussão preliminar sobre Níveis de Importância de textos escritos.
A discussão, coordenada pelo professor (que pode dividir a turma em grupos, se desejar), seria esta-
belecida pelos depoimentos dos alunos frente a leituras anteriormente feitas (livros, revistas, gibis etc.).
Ele deve, todavia, buscar encaminhá-la para a avaliação de alguns pontos tais como:
• O hábito de ler textos simples (histórias infantis, por exemplo), desde criança, ajudariam na
leitura de textos mais complexos (um romance de uma escola literária)?
• A “postura” do leitor frente a textos de assunto não específico – os literários, por exemplo – tem
que ser necessariamente diferente, ou os variados textos exigem o mesmo grau de atenção do leitor à
leitura feita – avaliação sobre informações implícitas e explícitas no texto?
• Ler gibis, revistas variadas (sobre esportes, moda, música etc.) tem sua importância dentro do
contexto cultural em que se vive?
Esta discussão, sendo elemento de introdução geral do aluno quanto à conscientização, deve, se
possível, ater-se aos pontos elencados acima e a uma aula. Ressalva-se que estes “limites” de assunto
e tempo devem ser respeitados à exata medida em que o professor considere que o debate proposto
serviu ao intuito básico – o de despertar o aluno para algumas considerações sobre:
1. A importância sócio-cultural dos variados tipos de textos escritos;
2. a validade da leitura desses textos também na universidade e
3. o fato de toda leitura, desde que se esteja consciente de sua função, ter seu grau de necessidade
e utilização.

2ª Semana:
2ª Aula / 1o. Período - Leitura de três textos propostos com diferentes níveis de construção para
análise dos alunos.
Oferecendo textos não muito longos, o professor, mediante análise comparativa entre eles, pode
levantar alguns indicadores de intenção dos autores ao escrevê-los. Essa análise permitiria aos alunos
perceberem que a linguagem, quanto mais desviada de sua linearidade gramatical-discursiva, mais exige
do leitor uma efetiva disposição par apreendê-la em suas possibilidades de expressão.
Avalia-se esse exercício de “habilidade interpretativa” como positivo na medida em que o aluno-lei-
tor (decodificador de mensagens) passe a avaliar o trabalho com a expressão escrita como algo mais
amplo mais do que alinhar palavras em uma dada seqüência lógica, mesmo em se tratando de um texto
dissertativo, que prima por esta logicidade textual.
Como exemplo, o professor poderia oferecer à turma:
a) Um texto publicitário.
b) Um breve poema.
c) Um trecho de texto dissertativo.

2ª Aula / 2o. Período - Leitura de um “texto técnico” e um “texto poético” que tratem do mesmo as-
sunto para avaliação pelos alunos da seguinte questão:
Um texto literário, por ser “obra aberta”, exige uma leitura mais atenta?
A intenção no desenvolvimento desta atividade é a de esclarecer para os alunos que há diferenças
quanto à intenção com que se deve ler determinadas obras.
Deve ficar claro para eles que há obras cujo interesse básico é informar com concisão e objetivi-
dade ao leitor (caso de uma notícia de jornal) e outras em que o autor, mais que informar, preocupa-se
em “transformar” a linguagem padrão fazendo uso de uma ambigüidade intencional trabalhada com
recursos poéticos expressos por elementos subjetivos (caso de um poema, um conto, um romance).
O professor, para tento, dividirá a sala em grupos a fim de que, depois das leituras e discussões
prévias feitas, sejam apresentadas e debatidas as opiniões dos alunos com o intuito de se avaliar “as
intenções” dos autores, ao escreverem seus textos, e as “intenções” de leitura. A apresentação das opi-
niões de cada grupo, coordenada pelo professor, será feita na aula seguinte.
OBSERVAÇÃO:
Esta aula tem também a intenção de complementar a análise sobre os “Níveis de compreensão” para
leituras de textos distintos, atividade desenvolvida na 1ª Aula da 2ª Semana.
2ª Aula / 3o. Período - Produção de texto
Este momento fica reservado ao trabalho com a produção de textos breves como um parágrafo dis-
sertativo ou um texto descritivo de objetos ou mesmo pessoas da sala de aula.)
É importante que o professor avalie com os alunos que o processo de leitura envolve outras expres-
sões como a da escrita, em que, à medida que melhor se produz um texto (levando em conta todos
seus níveis de construção), melhor são fixadas as estruturas frasais, gramaticais e, portanto, melhor e
mais facilmente estas estruturas serão “lidas” em uma leitura mais produtiva porque mais consciente

Proceedings XI International Bakhtin Conference 708


dos elementos que a compõem.

3ª Semana:
3ª Aula / 1o. Período - Leitura proposta de livros característicos de uma Escola Literária a ser estudada
e divisão de grupos para pesquisa de informações sobre a época referente (aspectos da religião, artes,
ciências, hábitos sociais, políticas etc.).
Como atividade voltada à leitura de obras das Escolas Literárias, o professor pode iniciar este mo-
mento avaliando a importância em se ler tais obras, cujos conteúdos representam a própria evolução
histórica do país.
Ao término dessa avaliação o professor apresentará a relação dos livros que caracterizaram deter-
minada Escola, ponderando que eles são reflexo de toda uma época estruturada pelos mais variados
aspectos culturais (religião, política etc.) cuja composição será pesquisada pelos alunos, divididos em
grupos, e posteriormente apresentada para melhor posicioná-los frente à leitura feita e sua relação com
a época atual.
Em se tratando do Romantismo, por exemplo, os livros da Escola Romântica seriam distribuídos aos
grupos (poderia ser um mesmo título a cada um deles), que também ficariam responsáveis por pesquisar
um determinado aspecto sócio-cultural da época, neste caso, basicamente o século XIX.

3ª Aula / 2o. Período - Apresentação de temas pesquisados (distribuídos na 2ª Aula da 2ª Semana).


Nessas aulas os alunos, previamente divididos em grupos e orientados pelo professor, apresentarão
as pesquisas feitas avaliando-as sob o ponto de vista de sua estruturação e devem levar em conta ele-
mentos como:
• dificuldades encontradas para a reunião do material a ser pesquisado;
• divisão das funções, e seu critério, para cada componente do grupo;
• manifestação da opinião própria do grupo frente às opiniões (conceitos, idéias, análises dos
autores) dos textos pesquisados;
• relação do tema da pesquisa com a questão da “conscientização dialógica da pessoa”;
• preocupação de promover um debate, sobre as opiniões manifestadas, com os outros grupos.
OBSERVAÇÃO:
Estes elementos, como norteadores da composição da pesquisa apresentada, devem ser discutidos
com os alunos ainda quando da distribuição dos temas propostos, direcionando assim o trabalho a ser
desenvolvido e facilitando a eles sua própria execução.

3ª Aula / 3o. Período - Idem.


4ª Semana:
4ª Aula / 1o. Período - Texto proposto para análise (experiência para uma leitura cons-
ciente).
Após a leitura:
a) Levantamento das palavras desconhecidas (trabalho com dicionário).
b) Relação, feita pelos alunos, dos pontos importantes do texto, com breve explicação escrita dos
motivos das escolhas desses pontos. Esta relação e comentários serão utilizados, na aula seguinte, como
subsídio às análises dos alunos.

4ª Aula / 2o. Período - Idem.


Esta aula representa um efetivo início de trabalho com os alunos no intuito de promover leitura mais
produtiva, fruto de uma conscientização despertada pela aplicação das atividades anteriores compondo
mesmo um processo conscientizador.
Esse processo, construído a cada aula até aqui vivenciada, vem num ritmo contínuo de apren-
dizagem e expressão como resultado do desenvolvimento psico-social da pessoa ainda na sua família,
na relação com os amigos, nos primeiros contatos com escola, cuja responsabilidade não é a de criar
pessoas conscientizadas de sua função social (e nela, a função de leitor) mas, antes, de “despertar” e
“aprimorar” nessa pessoas o que elas têm de POTENCIALIDADE DE CONSCIENTIZAÇÃO.
Seguindo este PROCESSO DE VIDA, é que a escola encontra seu espaço e momento. Agente trans-
formador, ela pode oferecer subsídios – mediante processos realistas de aprendizagem – que auxiliem
os alunos a, conscientizando-se, realizarem melhor suas atividades diárias.
Os alunos deverão avaliar o texto lido, além de seu sentido dialógico, levando em conta itens previa-
mente discutidos como:
• interesse despertado pela leitura;

Proceedings XI International Bakhtin Conference 709


• envolvimento com a trama narrativa;
• aspectos da linguagem utilizados pela autor (pontuação, neologismos etc.);
• nível de acompanhamento da linha narrativa (“grau de dificuldade” para acompanhar o desenrolar
da narração);
• a construção dos personagens (“grau de complexidade” do aspecto psicológico dos persona-
gens);
• mensagens implícitas ao longo do texto;
• a relação da leitura feita e sua aplicação, como componente de aprimoramento social, à própria
vida do aluno.
Ao professor cabe, relembrando os alunos da importância de se estruturar a análise na avaliação
desses itens (não necessariamente todos), organizar e coordenar a apresentação das leituras feitas pro-
curando torná-las informativas dos pontos principais do texto e não simples descrições de resumos, por
vezes exageradamente detalhados. Cabe a ele conseguir agilizar as apresentações de forma que, nessas
duas aulas, o maior número possível de alunos possa se manifestar; deve, todavia, antes de qualquer
intenção de se respeitar o “limite” de tempo proposto, ter a preocupação de permitir uma expressão
livre e pessoal ao aluno que desejar manifestar-se.

2º MÊS
1ª Semana:
1ª Aula / 1o. Período - Apresentação das pesquisas feitas (atividade da 1ª aula, 3ª Semana do 1º
Mês) sobre os aspectos gerais da sociedade da época referente à Escola Literária estudada no período
letivo.
1ª Aula / 2o. Período - Idem.

2ª Semana:
2ª Aula / 1o. Período - Idem.
2ª Aula / 2o. Período - Idem.
2ª Aula / 3o. Período - Avaliação geral das pesquisas realizadas nas aulas anteriores.
Seguindo a orientação das outras atividades desenvolvidas em sala de aula, também nesta o professor
deve ter a preocupação de esclarecer os alunos quanto à importância de conhecer mais amplamente a
sociedade na qual viviam os autores das obras pertencentes à Escola Literária que será estudada.
Estabelecendo a relação, pois, do meio social como um dos fatores de produção de um trabalho
artístico, ao professor cabe orientar os grupos para que, utilizando de “instrumentos efetivos de comu-
nicação”, consigam informar os colegas sobre a influência de um determinado aspecto na composição
da sociedade da época. Esses instrumentos poderiam ser:
• apresentações em forma de seminário, do tema pesquisado;
• proposta de debates;
• uso variado de meios áudio-visuais;
• músicas da época com mensagens significativas;
• teatro de fantoches;
• representações teatrais etc.
OBSERVAÇÃO:
Nada impede que os grupos, se desejarem, e com o intuito de enriquecer o trabalho, possam utilizar
mais de um desses instrumentos, integrando-os para uma melhor exposição do tema.
A hipótese é que, de posse de informações mais variadas sobre um dado período histórico-social, o
aluno possa avaliar mais criticamente os componentes de manifestação artística desse período (no caso,
realizando “leituras produtivas” de livros pertencentes a determinadas correntes literárias) por meio de
um processo eficaz de aprendizagem em que há uma melhor apreensão das informações contidas nas
obras de autores românticos, realistas, modernistas etc.
3ª Semana:
3ª. Aula / 1o. Período - Apresentação e discussão sobre os livros lidos (relação de livros das Escolas
Literárias distribuída na 1ª Aula, 3ª Semana do 1º Mês).
3ª Aula / 2o. Período - Idem.

4ª Semana:
4ª Aula / 1o. Período - Idem.
4ª Aula / 2o. Período - Idem.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 710


Seguindo a linha de trabalho e valorizando a criatividade como um dos fatores para aprimorar nos
alunos o que eles tenham de “potencial de conscientização”, o professor deve propor a eles que procurem,
sobretudo, ser inovadores quanto à apresentação programada para essas aulas. Essa “inovação” pode
ser representada por uma maneira de apresentar o livro que, ágil, inteligente e informativa, desperte o
interesse dos colegas ao trabalho feito.
Se compete ao professor alertar a turma para esta preocupação com a criatividade, é de inteira
responsabilidade dos alunos a escolha dos meios para passar e trocar as informações “colhidas” nas
leituras feitas (representar teatralmente uma passagem do livro é boa idéia e é importante para ajudar
os alunos a “fixarem melhor” a trama narrativa – e nela a composição dos personagens – como é im-
portante procurar posicionar a obra dentro do contexto social em que foi produzida).
O professor deve oferecer possibilidades de expressão à turma ressaltando “o erro” daqueles
que, movidos por uma leitura mal feita ou por aquilo que pareça “menos trabalhoso”, contentem-se em
realizar o trabalho – apresentar um livro lido – sem nenhum tipo de novidade, fazendo com que a sala
se disperse e, nesta dispersão, não apreenda nada de realmente útil.
Ao professor cabe, também, antes das apresentações, deixar claro os itens que serão avaliados,
de acordo com sua linha de trabalho. Esses itens, entre outros, podem ser:
• divisão racional das funções dentro de cada grupo de alunos;
• preocupação com a criatividade na apresentação;
• esclarecimentos quanto a relação entre a obra (produto) e o período histórico respectivo
(meio);
• esclarecimentos quanto à composição narrativa (processo de criação baseado nas características
de estilo da época);
• análise do conteúdo / forma da obra (divisão das partes, perfil dos personagens principais, trama
narrativa, conceitos implícitos, clímax, posição do narrador, tipo de linguagem etc.)
• preocupação em apresentar o trabalho dentro do tempo estipulado para cada grupo;
• análise do contexto da obra e sua relação com a sociedade contemporânea (as “socie-dades” se
igualam e se diferenciam em quê?)

4ª Aula / 3o. Período - Avaliação final das atividades desenvolvidas ao longo do Bimestre. Proposta
de um tema a ser discutido:
Um aluno mais consciente e sua produção escolar - processo e produto.
O professor deve propor esta discussão com o intuito de observar “quanto” foi apreendido das estra-
tégias desenvolvidas, em sala de aula e fora dela, na intenção de gerar uma leitura mais consciente de
que a aprendizagem (e aqui o re-aprender a ler) é um processo.
Com a turma, ele deve avaliar os pontos positivos e negativos (e seus porquês), as dificuldades
encontradas nesse desenvolvimento e os resultados obtidos, satisfatórios ou não, com vistas a valorizar
a figura de um leitor consciente de sua função política - a leitura toma, nesta análise, uma posição de
instrumento de conscientização social.
A discussão deve procurar ser mais uma estratégia inovadora da experiência vivida pela turma
– avaliando este momento final como uma consciente retomada de posição frente a sua realidade sócio-
educacional – do que acabar sendo mais uma exigência curricular, em que o que conta, basicamente, é
a nota recebida que permite, ou não, passar para a outra série.
Esse é um momento, portanto, onde o professor deve deixar claro para si próprio e para os alu-
nos que se faz necessária, como opção mesmo de uma experiência de convívio social mais pleno, uma
relação efetiva de ensino-aprendizagem estabelecida em um processo de (re)descoberta da criatividade
e da consciência educacional como elementos construidores de uma escola e nela, com ela, de um novo
aluno. E um novo professor.
Esquema da Metodologia aplicada
1º MÊS -
Aulas -
1ª Semana. 1.1. Comentários gerais sobre as atividades a serem realizadas.
1.2. Distribuição de temas vários, relacionados à conscientização sócio-cultural,
para pesquisa posterior.
1.3. Discussão proposta: Níveis de importância de textos escritos.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 711


2ª Semana. 2.1. Leitura de três textos (diferentes níveis de construção e compreensão).
2.2. Leitura de um texto técnico e um poético (mesmo assunto).
2.3. Produção de um breve texto (p. ex., um parágrafo dissertativo).
3ª Semana 3.1. atividade c/ obras literárias: inf. gerais e divisão de grupos para posterior
pesquisa.
3.2. Apresentação de Temas (aula 2).
3.3. Idem (uso de meios áudio-visuais etc.).
4ª Semana 4.1. Texto proposto para análise (1ª experiência de LEITURA PRODUTIVA).
4.2. Idem

2º MÊS -

1ª Semana 1.1. Apresentação das pesquisas feitas (aula 7).


1.2. Idem (vídeos, curtas-metragens etc.).

2ª Semana 2.1. Idem.


2.2. Idem.
2.3. Avaliação geral das pesquisas realizadas.
3ª Semana 3.1. Apresentação e discussão dos livros lidos (aula 7).
3.2. Idem.

4ª Semana 4.1. Idem.


4.2. Idem.
4.3. Avaliação final das atividades / Tema proposto:
“Um aluno mais consciente e sua produção escolar – processo e produto”
Referências bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
BORDINI, Maria da Glória & AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura – a formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1988.
FARACO, Carlos A., TEZZA, Cristóvão, CASTRO, Gilberto de. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: EdUFPR, 2001.
LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A leitura rarefeita – livro e literatura no Brasil. S. Paulo: brasiliense, 1991.
ORLANDI, Eni P. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez / Campinas: EdUNICAMP, 1989.
POSSENTI, Sírio. Porque (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 1996.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler – fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. 6. ed.
São Paulo: Cortez / Autores Associados, 1992.
_______. Leitura e realidade brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

Robson Coelho Tinoco


Doutor em Literatura Brasileira
Universidade de Brasília
robson@unb.br

Proceedings XI International Bakhtin Conference 712


No discurso documental, a concepção dos gêneros discursivos
como foco das propostas curriculares de ensino de língua materna: os PCNS de Língua
Portuguesa e o Caderno Dois

Glória de Melo Tonácio

UFJF/PPGE-FACED/GRUPO DE PESQUISA LIC

pctonacio@uol.com.br

RESUMO
Nesse trabalho, através do discurso documental, buscou-se, a compreensão de quem são os inter-
locutores das propostas curriculares investigadas (PCNs de Língua Portuguesa-Volume 2- MEC e Projeto
Caminho Novo/Caderno 2- SME de Juiz de Fora-MG), do estilo assumido, das condições sociais em que
foram produzidas, da estrutura composicional e dos conteúdos desses documentos. Para tal, a Teoria da
Enunciação de Mikhail Bakhtin e os estudos de Vygotsky se constituíram no arcabouço teórico-metodo-
lógico dessa pesquisa.
ABSTRACT
The present work, based on documentary speech, it was searched for the understanding of those
who are the investigated curricular proposals‘ interlocutors (PCNs de Língua Portuguesa-Volume 2- MEC
e Projeto Caminho Novo/Caderno 2- SME de Juiz de Fora-MG), of the assumed style, from the social
conditions where they had been produced, from the composed structure and from the contents of these
documents. For such, Mikhail Bakhtin´s Theory of Enunciation and Vygotsky´s studies constituted the-
mselves in the theoretical-methodological framework of that research.

Introduzindo a questão
Minha pesquisa de dissertação do Mestrado da UFJF/FACED objetivou investigar como um grupo de
1

professoras do segundo ciclo do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Juiz de Fora- MG compreende
a proposta de gêneros discursivos presente no PCN de Língua Portuguesa e no Projeto Escola do Caminho
Novo e a colocam em prática no seu trabalho pedagógico.
Para tal, busquei a compreensão das práticas discursivas que se efetivavam no trabalho docente de
nove professoras de Língua Portuguesa do segundo ciclo de uma escola da Rede Municipal de Juiz de
Fora-MG, através de uma investigação na abordagem qualitativa e na perspectiva sócio-histórica. As
principais estratégias de pesquisa adotadas foram a análise documental, as entrevistas dialógicas com
os sujeitos da pesquisa, as observação das Reuniões de Planejamentos e de algumas aulas.
A partir dessa perspectiva de trabalho, um dos objetivos almejado, durante a investigação, foi a de
buscar estabelecer um diálogo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa-
Volume 2 propostos pelo MEC e com o Caderno 2 elaborado pela SME2 de Juiz de Fora-MG (documentos
curriculares que orientam o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental da SME de Juiz de
Fora- MG), no que concerne ao gênero discursivo como proposta de ensino de língua materna.
Nesse sentido, este texto, em particular, pretende expor os principais achados dessa parte da in-
vestigação. Para tal estudo, conto com os princípios teóricos da perspectiva sócio- histórica (Teoria da
Enunciação de Mikhail Bakhtin e os estudos de Vygotsky), e com a interlocução com outros autores que
se dispõem a tal debate.
A partir das concepções de enunciação como “unidade real da linguagem” (BAKHTIN, 1993, p.248);
de enunciado como produto desta e “unidade real da comunicação verbal” (BAKHTIN, 1992, p.293) e; de
gênero discursivo como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 1992, p.279), que são
compostos por “três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional), [que] fundem-se
indissoluvelmente no todo do enunciado, e [que](...) são marcados pela especificidade de uma esfera
de comunicação.” (IBID, 1992, p. 279), os documentos curriculares pesquisados foram entendidos como
enunciados escritos, que refletem e refratam a realidade, as condições em que foram produzidos e as
1 Desenvolvida no período de setembro de 2001 a abril de 2003, com a orientação da Professora Doutora Maria Teresa de Assunção Freitas.
2 Secretaria Municipal de Educação

Proceedings XI International Bakhtin Conference 713


forças que operaram naquele espaço/tempo.
Para tanto, tornou-se necessário o entendimento de quem são os interlocutores das propostas inves-
tigadas, o estilo assumido nesses discursos curriculares e as condições sociais em que foram produzidas.
Não se pode excluir, ainda, dessa compreensão, a estrutura composicional e o conteúdo desses docu-
mentos: seus fundamentos teóricos e o que propõem como prática pedagógica para o ensino da Língua
Portuguesa para o segundo ciclo do Ensino Fundamental.
Os interlocutores e o estilo dos documentos
Ao abrir a primeira página dos dois documentos (PCNs de Língua Portuguesa Volume 2 e o Caderno 2),
deparei-me com as apresentações feitas pelos seus responsáveis. Percebi, em ambos, uma organização
textual muito semelhante. Os Parâmetros Curriculares, ao intitularem a primeira página “Ao Professor”
nomeiam o seu destinatário. Por sua vez, no Caderno 2, apesar de não haver explicitação, deixa pre-
sumido que se trata do mesmo destinatário, já que o documento “registra os objetivos e conteúdos da
Língua Portuguesa que servirão de parâmetros para os trabalhos no segundo ciclo” [grifo meu].
Ambos os documentos são apresentados como resultado de um processo de discussão na área edu-
cacional. No término de sua primeira página, os Parâmetros Curriculares são assinados pelo Ministro da
Educação e do Desporto, Paulo Renato Souza, e o Caderno 2, pela Secretária Municipal de Educação,
Diva Chaves Sarmento.
Baseada na conceituação de BAKHTIN (1993), de situação social como forma organizadora da enuncia-
ção, de auditório social como “a presença dos participantes da situação”3 e de orientação social como “a
dependência do peso sócio- hierárquico do auditório”4, posso dizer que os discursos dos dois documentos
são proferidos, respectivamente, pelo MEC e pela Secretaria Municipal de Educação de Juiz de Fora-MG
e dirigem-se a um outro, a um ouvinte- o professor.
Depreende-se desses discursos, que tais documentos são as próprias palavras do Ministro da Educação
e da Secretária Municipal de Educação de Juiz de Fora-MG dirigidas diretamente aos professores. Dito
de outro modo, as autoridades que ocupam o posto máximo da hierarquia da administração educacional
nas suas respectivas esferas sociais apresentam à sociedade brasileira e ao seu auditório educacional
(professores) o projeto que lhe é destinado.
Nesses documentos, percebi, também, uma repetição de termos e expressões. Tal repetição é ex-
plicada por BAKHTIN (1992) pela aparentação dos enunciados, através dos gêneros que os modulam.
Para o autor,
quando escolhemos uma palavra, durante o processo de elaboração de um enunciado (...),
costumamos tirá-la de outros enunciados e, acima de tudo, de enunciados que são aparen-
tados ao nosso pelo gênero, isto é, (...) selecionamos as palavras segundo as especificidades
de um gênero (BAKHTIN,1992, p.312).

Suponho, então, que tal recorrência se deve à modulação desses documentos ao gênero discursivo
responsável pelo uso do discurso documental, assim como às especificidades do gênero textual “pro-
postas curriculares”.
Uma outra característica fundamental contida nos discursos dos Parâmetros e do Caderno 2 diz respeito
à forma de construção dos mesmos, já que, para BAKHTIN (1993), além da situação e da orientação
social em relação ao ouvinte-participante, faz parte do enunciado a sua forma. A forma do enunciado
é definida pelo autor como expressão material, que permite a realização do conteúdo e do significado
da enunciação.
Na apresentação dos Parâmetros, encontrei diversos trechos iniciados por: “É com alegria...” “Esta-
mos certos de que...” Nessas expressões, percebi a possibilidade de exclamações mentais no entoar dos
parágrafos. Essa forma de entonação presente no texto busca o convencimento de seus leitores, pela
“expressão sonora da valoração social”5 (BAKHTIN, 1993, p. 263).
Percebi, também, nesses ditos exclamativos usados nos Parâmetros, uma entonação exclamativa-
expressiva. Segundo BAKHTIN (1992), nas formas de comunicação verbal, existem muitos enunciados
avaliativos padronizados, em que os gêneros discursivos assumem diferentes julgamentos de valor,
através de expressões de elogio, de encorajamento e de entusiasmo. A meu ver, o Ministro se utilizou
desses recursos para exprimir a sua relação valorativa com o objeto do seu discurso, a fim de obter a
entonação desejada.
Do mesmo modo, a eleição das palavras e expressões no texto de apresentação dos PCNs não foi
aleatória. De acordo com BAKHTIN (1993), cada entonação necessita de palavras que lhe sejam corres-
pondentes, ou seja, que estejam melhor adaptadas à expressão valorativa que se quer imprimir ao que
é dito. A meu ver, a escolha recaiu na opção pelas palavras que fornecessem ao discurso uma entonação
exclamativa, visando à plena aceitação da proposta pelos professores. Parece-me que tal entonação é
necessária, pois, de antemão, a autoridade responsável (o Ministro da Educação) prevê uma recusa por
parte dos professores.

3 Tradução livre do espanhol.


4 Idem.
5 Tradução livre do espanhol.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 714


É interessante notar, também, na forma desse enunciado, a disposição das palavras. As expressões
exclamativas e outras como: “Sabemos que isto só será alcançado...” encontram-se todas no início dos
parágrafos, reafirmando, em cada trecho, a necessidade de adesão dos professores pelos PCNs, para
que a proposta “dê certo” de fato.
No Caderno 2, por sua vez, parece não haver a necessidade de tais recursos exclamativos. O texto
é direto na sua forma de dizer e iniciar os parágrafos: “Este é o Caderno 2. Este documento tem por
objetivo...” O uso dessas palavras, no início de vários trechos do texto, está associado a uma entonação
formal e objetiva.
Essa forma de dizer do Caderno 2 pode estar condicionada às condições de produção desse docu-
mento, que, ao contrário dos PCNs, obteve uma maior participação dos professores, ficando a critério
do corpo docente das escolas da SME de Juiz de Fora-MG a adesão ou não ao documento. Parece, então,
ser desnecessária uma apelação exclamativa como a usada nos Parâmetros, já que a possibilidade de
recusa ao Caderno 2 por alguns professores é esperada, cabendo a cada escola o seu aceite ou não.
Ainda com relação à forma dos enunciados, notei impresso nos discursos dos dois documentos um
caráter democrático e participativo. Entretanto, de maneira paradoxal, as assinaturas das autoridades
públicas ao final das propostas acabam por infundir um tom persuasivo a esses discursos. Parece-me que
essa forma de dizer marcada pelo convencimento de outrem é característica do estilo dos documentos
curriculares, pois, para BAKHTIN (1993 a), o estilo compreende a correlação de seus elementos internos
(combinações de palavras, entonações e outras) com as do contexto de outrem, a quem o discurso se
dirige.
Esses discursos deixam como presumidos que tais propostas curriculares são sempre projetos conve-
nientes e adequados, pois quem os pronunciou possui autoridade para fazê-lo. De acordo com BAKHTIN
(1999), são os presumidos que dão o tom da avaliação social. Desse modo, no momento em que as
autoridades responsáveis pelos discursos proferidos nos documentos curriculares previram uma possível
discordância de seus interlocutores, as palavras foram entoadas de maneira diferente, imprimindo ao
discurso a persuasão do peso sócio-hierárquico dos seus falantes.
BAKHTIN (1993 a) desenvolve a idéia de palavra autoritária e persuasiva. Para o autor, a autoridade
da palavra, baseada no peso sócio-hierárquico do seu falante (a palavra da autoridade política), pode
se unir à sua persuasão interior, formando uma só palavra autoritária e interiormente persuasiva. Esse
parece ser o discurso assumido nos PCNS. Em um primeiro momento, o discurso proferido nos Parâ-
metros parece penetrar nas escolas e em nossas consciências como uma massa compacta e indivisível,
cabendo aos professores somente a sua confirmação ou recusa por inteiro (e é dessa maneira que muitos
professores e teóricos assim, ainda, o entendem). Entretanto, é nas lacunas deixadas pela persuasão
democrática, que as palavras ficam “prenhes de resposta e (...) o ouvinte torna-se locutor” (BAKHTIN,
1992, p.290).
Por sua vez, o Caderno 2 não deve ser visto como um “pacotão” de modos de ensinar, pois sua cons-
trução foi mais refletida pelos professores, que puderam opinar, sugerir, discordar, concordar e comple-
mentar. Entretanto, como em outras propostas curriculares, perdura o estilo persuasivo próprio do seu
gênero discursivo, visando à sua validação e legitimação junto à opinião pública.
Desse modo, não é por acaso que determinados argumentos e termos se repetem e outros não nos
documentos curriculares pesquisados, que tratam do ensino da Língua Portuguesa. Parece-me que os
PCNs tentam convencer, mais enfaticamente do que o Caderno 2, os seus leitores, de que tais textos
foram produzidos em meio a uma ampla participação e envolvimento docente.
O processo de elaboração dos documentos
Para BAKHTIN (1993 c), cada palavra evoca o contexto no qual ela viveu e sua vida socialmente
tensa, pois todas as palavras e formas são povoadas de intenções e é lá, “nos lábios de outrem, no
contexto de outrem e a serviço das intenções de outrem” .(BAKHTIN,1993 a, p.100), que precisa ser
compreendida. Daí decorre, então, a necessidade de uma retrospectiva histórica da situação político-
educacional do momento da elaboração dos PCNs e, conseqüentemente, do Caderno 2 da SME de Juiz
de Fora-MG, para que, em seguida, se possa compreender o jogo de forças que presidiu o processo de
elaboração desses documentos e, ainda, de que forma essas tensões e conflitos demarcaram o discurso
desses documentos.
A elaboração dos PCNs se deu em meados dos anos 90 numa conjuntura internacional marcada pelo
fortalecimento do neoliberalismo6 e pelo fenômeno da globalização7 que, de certa forma, padronizou os
costumes e os mecanismos de consumo da sociedade, visando o livre mercado e separou o mundo em
dois grandes blocos econômicos. Na mesma época ocorreu, também, no Brasil um processo semelhante:
o projeto neoliberal de sociedade e de educação se consolidou a partir da implementação de reformas

6 Segundo OLIVEIRA JÚNIOR (1999), o neoliberalismo despontou no século XX, logo após a II Guerra Mundial, como crítica à crise do capitalismo instaurada
no período pós-guerra. Como estratégia à superação do modelo econômico vigente, foi proposto o projeto neoliberal, que assumiu a hegemonia capitalista,
através dos postulados do Liberalismo Clássico, com uma roupagem de um “novo discurso” e de modernidade. Desse modo, os princípios proclamados pelo
discurso neoliberal passaram a ser: a exaltação do mercado autônomo, a liberdade político-intelectual, o Estado mínimo e fraco, a privatização, a liberação
do comércio internacional, dentre outras. Tais postulados tiveram por objetivo final a acumulação de capital e a concentração de rendas nas mãos da nova
elite formada.
7 Segundo CASANOVA (1999), o discurso da globalidade obedece a fatos objetivos e universais; expressa uma crescente interdependência das economias
nacionais e a emergência de um sistema transnacional bancário-produtivo-comunicativo, cuja ascensão coincide com o enfraquecimento real da soberania
dos estados-nação e das correntes nacionalistas, antiimperalistas e marxistas-lenistas.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 715


econômicas e educacionais.
Na área econômica, uma dessas reformas voltada para o mercado foi o “ajustamento fiscal” e, na área
educacional, foram lançados vários planos educacionais, como o Programa Setorial de Ação, do Governo
Collor, cujo objetivo foi livrar o Estado da obrigação de financiamento do ensino público universitário e
da necessidade de aumentar o volume de recursos para o ensino fundamental. Mais recentemente, tive-
mos o Plano Decenal de Educação (1993-2003)8 e a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996), que ampliou o dever do poder público com o Ensino
Fundamental e reforçou a necessidade de propiciar a todos a formação básica comum, e a formulação
de um conjunto de diretrizes curriculares nacionais a ser complementada por uma parte diversificada
em cada sistema de ensino (BRASIL, 1998, p.1).
Segundo COSTA (2002), não foi à toa que, nessa mesma época, países da América Latina como o
Brasil, o Chile e a Argentina viveram processos políticos e econômicos tão parecidos, como a estabilização
da moeda e a abertura às importações. Da mesma forma, no âmbito educacional, esses países também
vivenciavam processos semelhantes de padronização: a qualidade de ensino pensada a partir de grandes
temáticas, como a avaliação e o currículo, passaram a ocupar um lugar de destaque nas discussões.
Vários países da América Latina (inclusive o Brasil) começaram a participar de um sistema interna-
cional de avaliação do ensino fundamental, financiado pela UNESCO e pelo BID (Banco Interamericano
de Desenvolvimento) que “[serviu] de subsídio ao Mercosul” (JORNAL DO COMÉRCIO, Recife, 10/1/97
apud SUASSUNA,1998, p.177). Foi nesse contexto cultural e semântico-axilógico (político), com pouco
espaço para as discussões e divergências, que se deu a produção dos PCNs.
Por sua vez, a elaboração do Caderno 2 se deu a partir das reflexões, estudos e debates realizados
nas onze escolas da Rede Municipal de Juiz de Fora-MG, que optaram e organizaram-se em Ciclos de
Formação, no projeto “Escola do Caminho Novo”. A implementação dos ciclos se fez de acordo com a
opção de cada escola e foi realizada de maneira gradativa.
Segundo CARVALHO (2002), houve um movimento de discussão muito grande no interior das escolas
que optaram pelo ciclo, uma vez que não foi apresentada uma proposta definida a ser seguida. Ao con-
trário, teria que ser construída pelas escolas, a partir de suas experiências e reflexões coletivas. Desse
modo, ao longo do primeiro semestre de 1999, foram realizados estudos e debates nas escolas, através
de um grupo constituído por representantes das nove escolas envolvidas na experiência com os Ciclos
de Formação e por assessores da SME.
A expansão e a continuidade do trabalho com os ciclos nas outras turmas e faixas etárias se deu a
partir do ano seguinte, de acordo com a decisão de cada escola. As reflexões feitas pela comissão das
escolas organizadas em ciclos (onze, naquele momento), no período entre o segundo semestre de 1999
e o início de 2000, resultaram no Caderno 2, que contém, além da Resolução Nº 002/20009, a concepção
de ciclos defendida pela “Escola do Caminho Novo”, a organização do tempo e do trabalho das escolas
e os objetivos e conteúdos da Língua Portuguesa para o segundo ciclo.
Depreende-se, então, da história da elaboração do Caderno 2, que a produção desse documento se
deu em um processo de diálogo permanente entre professores, assessores e técnicos da SME de Juiz
de Fora-MG, “marcado por avanços e recuos advindos dos conflitos gerados no interior das escolas, (...)
no confronto com valores e crenças arraigados na prática pedagógica, na organização da escola e na
própria formação docente” (CARVALHO, 2002, p.119). É importante destacar que entendo esse diálogo
numa perspectiva bakhtiniana, em que os enunciados fazem parte de uma cadeia ininterrupta de atos
de fala, onde cada palavra demanda uma contrapalavra, uma réplica.
Significa, portanto, perceber que, apesar da construção do Caderno 2 ter ocorrido de maneira mais
participativa do que nos Parâmetros, envolvendo os setores sociais interessados (professores e comunidade
escolar), esse processo não foi, de maneira alguma, sem tensões e conflitos. Ao contrário, compreendo o
Caderno 2 como enunciado e, como tal, sua produção se deu no entrecruzamento da língua com a vida
e vice-versa e essas, em si, são feitas de lutas, de resignificações e de constantes transformações.
A composição e o conteúdo temático dos documentos quanto ao ensino da Língua Portuguesa
Na análise da composição dos documentos10, observei, tanto nos Parâmetros de Língua Portuguesa
como no Caderno 2, uma organização textual semelhante, que pode ser dividida em dois grandes blocos,
por temas abordados. Um primeiro grupo de textos visa explicitar o que deve ser o ensino, através da
definição e justificativa dos fundamentos que sustentam as proposições dos documentos.

8 Segundo a UNESCO/ BRASIL (2001), foi elaborado o Plano Nacional de Educação sob a coordenação do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais) e, por intermédio do convênio NUPES-USP/UNESCO, a fim de atender aos dispositivos legais em vigor, como a Constituição de 1988 e o Art.
87 - § 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Darcy Ribeiro), que determinou a elaboração desse Plano, “com diretrizes e metas para
os dez anos seguintes, em sintonia com a Declaração Mundial de Educação para Todos”. Nos fundamentos do documento, o MEC considerou não somente
a Declaração de Jomtien, como outros compromissos e recomendações internacionais, entre eles a Conferência Internacional sobre População e Desenvol-
vimento (Cairo, 1994), a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, a Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos (1997), as Declarações
de Nova Deli e Amann sobre educação para todos (1993 e 1996, respectivamente), bem como as recomendações das Conferências Gerais da UNESCO. A
UNESCO/Brasil prestou cooperação técnica ao processo de elaboração e finalização do plano.
9 A Resolução Nº 002/2000-CME (Conselho Municipal de Educação) condiciona a opção das escolas pelo Ciclo ou Seriação de acordo com o projeto político-
pedagógico de cada uma delas e regulamenta a organização dos Ciclos de Formação do Ensino Fundamental com a duração de nove anos, divididos em três
ciclos, pela faixa etária (JUIZ DE FORA, 2000, p.27).
10 Devido ao recorte feito na pesquisa para o segundo ciclo, só foi analisada, além da primeira parte dos PCNs de Língua Portuguesa, a seção referente
ao trabalho pedagógico na fase investigada. Do mesmo modo, no Caderno 2, meu estudo se restringiu ao quinto texto, que esmiúça o ensino da Língua
Portuguesa no segundo ciclo.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 716


Já a segunda parte -com base no que foi esboçado teoricamente na primeira parte -corresponde à
explicação de como deve ser o ensino e o que deve ser ensinado, sendo que os PCNs de Língua Portu-
guesa especificam o trabalho pedagógico dessa área do conhecimento para o primeiro e o segundo ciclo,
e o Caderno 2, nos seus dois últimos textos, especifica apenas a efetivação do ensino do Português para
o segundo ciclo, seguida da regulamentação dos ciclos nas escolas.
Em relação à estrutura composicional dos dois documentos (PCNs de Língua Portuguesa e Caderno
2), esses textos mantiveram, então, a organização característica do gênero “documentos curriculares”:
uma apresentação feita pela autoridade responsável com o intuito da sua legitimação, seguida de uma
ordem, que determina o que se espera do ensino realizado para, em seguida, enumerar e descrever as
ações pedagógicas que devem ser realizadas pelo professor.
Conforme PRADO (1999), arrisco-me a dizer que, em relação aos programas curriculares de décadas
anteriores, os enunciados dos documentos curriculares aqui estudados e de outros elaborados na mesma
época (meados de noventa) mudaram, já que as condições de produção foram diferentes (como as crí-
ticas e debates ao ensino de Língua Portuguesa vindas da Lingüística da Enunciação, da Psicolingüística,
da Sociolingüística, por exemplo). Contudo, o modo desses enunciados se constituírem nas enunciações
continuou o mesmo. Os enunciados críticos usados nos discursos desses documentos, vindos das dis-
cussões sobre as propostas curriculares e da área do ensino da língua materna, “não conseguiram criar
novas formas de enunciação e foram constrangidos pelas formas já dadas do documento curricular escrito,
vindo de ‘outra tradição’, de outras condições de exercício da função enunciativa, fundamentalmente
aquela que estou chamando de prescritiva [grifo meu]” (PRADO, 1999, p. 85).
Apesar de apresentarem alguns avanços nos seus processos de elaboração, como a incorporação de
algumas discussões da área da Psicologia do Desenvolvimento para a constituição dos Ciclos, e das pes-
quisas da área da linguagem, como a importância da cultura e da interação no ensino da língua materna,
os PCNs de Língua Portuguesa e o Caderno 2 da SME de Juiz de Fora- MG persistem em uma “ordem
padronizada que é imperativa já por sua entonação” (BAKHTIN, 1992, p. 280), o que ocasiona uma mi-
nimização do papel ativo do professor em seu processo interlocutivo com o discurso dos documentos.
Quanto aos conteúdos contidos nos documentos, a discussão sobre o ensino da Língua Portuguesa é
iniciada no capítulo intitulado “Caracterização da Área de Língua Portuguesa”. Nele, é refeito o percurso
histórico do ensino de Português a partir da década de 80, até a época da produção do documento. Nessa
parte, os PCNs se autonomeiam “como uma espécie de síntese do que foi possível aprender e avançar
nesta década” (BRASIL, 1997, p.20). É realizada, ainda, uma justificativa para a perspectiva teórica
adotada, baseada na concepção “construtivista” de ensino-aprendizagem e nas propostas de revisão das
práticas de ensino da língua materna, a partir de estudos da Psicolingüística e da Sociolingüística.
Na trajetória histórica descrita nos PCNs, as questões referentes à leitura/escrita e a conseqüente
“reestruturação do ensino de Língua Portuguesa, com o objetivo (...) de garantir a aprendizagem” (IBID,
p.19) são colocadas como eixo central nas discussões do fracasso escolar brasileiro, um fenômeno ocorrido
principalmente nos anos 80. Percebe-se que a discussão sobre o ensino da Língua Portuguesa presente
nos PCNs foi orientada pelas reflexões e debates das últimas décadas, na busca do enfrentamento dos
problemas relacionados ao fracasso escolar (evasão, repetência e analfabetismo) e ao ensino da língua
materna.
Para isso, os Parâmetros reconhecem as contribuições das pesquisas e estudos da “psicologia da
aprendizagem, da psicologia cultural e das ciências da linguagem” (IBID, p.22) e tecem críticas aos
exercícios de prontidão, cartilhas e livros didáticos, justificando como sua substituição pela variedade de
textos se deu, a partir dos avanços científicos e das discussões na área da educação e da lingüística.
A partir desses estudos e discussões, nos capítulos seguintes, referentes aos objetivos, conteúdos
e procedimentos (orientações didáticas) para a Língua Portuguesa no Ensino Fundamental, os PCNs
preconizam o ato de leitura e escrita como processo discursivo (enunciação), no qual estão inseridos
os sujeitos produtores de sentido- autor e leitor- sócio-historicamente determinados e ideologicamente
constituídos, levando-se em conta o momento histórico, os conhecimentos prévios do autor-leitor, suas
intenções e a gramática do texto. Para COSTA (2002), esse enfoque dado ao ensino da leitura/escrita nos
PCNs rompe com o ensino tradicional da Língua Portuguesa, de feitio normativo e conceitual, baseado
nos estudos veiculados pelas gramáticas tradicionais.
Os PCNs de Língua Portuguesa estão, pois balizados em uma visão enunciativo-discursiva, inspirada
nos estudos de Bakhtin sobre a língua e a linguagem, cujo enfoque teórico se direciona para o uso social
da língua e o seu funcionamento discursivo, enquanto sistema simbólico, contextualizado e determinado
historicamente, ou seja, tais pressupostos se fundamentam na crítica feita por BAKHTIN (1999) aos
métodos de reflexão lingüística, que levaram à postulação da língua como sistema de formas normativas,
ou seja, como produto acabado, transmitido de geração em geração como um objeto. Para ele, a língua
não pode ser separada do fluxo da comunicação verbal, pois “a verdadeira substância da língua (...) é
constituída (...) pelo fenômeno social da interação verbal” (BAKHTIN, 1999, p.123).
Com relação aos “Critérios de avaliação”, são assim compreendidos: “por um lado, como aprendiza-
gens indispensáveis [ao aluno] ao final de um período; por outro, como referências que permitem (...)
a análise dos seus avanços ao longo do processo, considerando que as manifestações desses avanços
não são lineares, nem idênticas” (BRASIL, 1997, p.97). O pressuposto fundamental dessa forma avalia-
tiva é o da consideração, pelo menos no plano teórico, muito mais pelo processo do que pelo produto.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 717


Contudo, parece haver um silenciamento quanto à definição dos critérios e modalidades de avaliação
para a leitura e escrita.
Quanto ao Caderno 2, além da apresentação, os capítulos seguintes tratam dos fundamentos teóricos
para o trabalho com o Ciclo de Formação e o penúltimo discorre sobre ensino da Língua Portuguesa no
segundo ciclo. Nesse capítulo específico, a discussão é iniciada da mesma forma que nos Parâmetros:
demonstrando como o fracasso escolar está muito mais voltado para a incapacidade da escola do que
para as supostas “deficiências” do aluno e reconhece como as pesquisas voltadas para o processo de
construção do conhecimento têm contribuído para a melhoria do ensino.
Essas questões levantadas nos PCNs e no Caderno 2 com relação às pesquisas e discussões sobre
o ensino da Língua Portuguesa não são novas. Conforme COSTA (2000), as teorias discursivas e da
enunciação quebraram a hegemonia das concepções formalistas de língua predominantes até os anos
70. Anteriormente, a língua era vista como um sistema pronto e acabado. A partir das pesquisas, na
vertente sócio-histórica da psicolingüística e da psicologia cognitiva, a língua passou a ser estudada
como “um sistema sensível ao contexto que vai se constituindo e se reconstituindo historicamente na
interação verbal/social (...), pois é no funcionamento interlocutivo que as formas lingüísticas dos textos
(orais/escritos) ganham sentido” (COSTA, 2000, p.68).
É nessa perspectiva que a questão dos gêneros discursivos é encontrada, em vários momentos, nos
textos dos documentos, derivada das concepções de linguagem e de língua assim definidas:
Linguagem:
é uma forma de ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo
de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma
sociedade, nos distintos momentos da sua história. Dessa forma, se produz linguagem (..)
em uma conversa de bar, entre amigos, ou ao redigir um poema (...). A linguagem (...)
possibilita ao homem representar a realidade física e social e, desde o momento em que
é aprendida, conserva um vínculo muito estreito com o pensamento. Possibilita não só a
representação e a regulação do pensamento e da ação, próprios e alheios, mas, também,
comunicar idéias, pensamentos e intenções de diversas naturezas e, desse modo, influen-
ciar o outro e estabelecer relações interpessoais anteriormente inexistentes. (...) Produzir
linguagem significa produzir discursos. Significa dizer alguma coisa para alguém, de uma
determinada forma, em determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias
de interlocução. Isso significa que as escolhas feitas ao dizer, ao produzir um discurso não
são aleatórias (...), mas decorrentes das condições em que o discurso é realizado. (...) Isso
tudo determina as escolhas do gênero no qual o discurso se realizará, à seleção dos proce-
dimentos de estruturação e, também, à seleção de recursos lingüísticos. (...). O discurso,
quando produzido manifesta-se lingüisticamente por meio de textos. (...) O discurso possui
um significado amplo: refere-se à atividade comunicativa que é realizada numa determinada
situação, abrangendo tanto o conjunto de enunciados que lhe deu origem quanto as condi-
ções nas quais foi produzido. A produção de discursos não acontece no vazio. Ao contrário,
todo discurso se relaciona, de alguma forma, com os que já foram produzidos (BRASIL,
1997, p.23-26).
A visão de linguagem que subscrevemos está localizada na interação verbal, isto é, na
ação entre sujeitos historicamente situados que por meio da linguagem se apropriam de
conhecimentos através da troca e da recriação de suas experiências sócio-culturais (JUIZ
DE FORA, 2000, p.16).

Língua:
é um sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e
a sociedade. Assim, aprendê-la é aprender não só as palavras, mas também os seus signi-
ficados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam a
realidade e a si mesmas (BRASIL, 1997, p.24).
Aprender a língua não significa apenas aprender palavras ou o modo como elas devem ser
organizadas,mas também compreender os sentidos que elas têm para diferentes pessoas
e o modo como elas são utilizadas para comunicar o entendimento e a interpretação que
estas pessoas têm sobre o mundo (JUIZ DE FORA, 2000, p.18).

Percebem-se, por esses fragmentos, muitos pontos comuns entre os documentos. Alguns trechos
chegam a usar as mesmas palavras ou seus sinônimos nas suas definições. Pode-se notar, também,
como, nesses documentos, as concepções de linguagem e língua são muito próximas àquelas definidas
na perspectiva sócio-histórica por Bakhtin e Vygotsky.
Para Bakhtin, a linguagem é uma produção humana e coletiva, que constitui os sujeitos, pois a vida
humana se constitui nas relações sociais via linguagem. O homem, na tentativa de dominar a natureza,
interage com ela e com outros homens. Transforma e transforma-se, criando significações e sentidos.
Do mesmo modo, a língua é concebida como expressão das relações e lutas sociais, veiculando e
sofrendo o efeito dessa luta, servindo, ao mesmo tempo, de instrumento e de material e, portanto, re-
sulta da grande diversidade das produções de linguagem. Para Bakhtin, “a interação verbal se constitui

Proceedings XI International Bakhtin Conference 718


na realidade fundamental da língua” (BAKHTIN, 1999, p.108).
Também para Vygotsky a linguagem é o sistema simbólico básico de todos os grupos humanos e,
conseqüentemente, socialmente dado. Para VYGOTSKY (1983), a linguagem é condição primordial ao
desenvolvimento das funções mentais superiores da criança, ou seja, por intermédio da linguagem e da
relação interpessoal com outros, o sujeito vai interiorizando “os conteúdos historicamente produzidos,
possibilitando, assim, que a natureza social das pessoas torne-se igualmente sua natureza psicológica”
(JOBIM e SOUZA, 1994, p.125).
Nota-se, então, nos documentos aqui estudados, uma espécie de excerto de uma série de concei-
tuações, que são defendidas por partidários da Lingüística de Enunciação e pelos estudos de linguagem
baseados em Bakhtin e Vygotsky. Segundo PRADO (1999), a explicitação da concepção de linguagem
que fundamenta os documentos é uma característica própria das propostas deste período (anos 80/90).
Isso decorre das críticas feitas em períodos anteriores, que recaíam principalmente sobre a falta de uma
concepção de linguagem mais explícita e coerente com as propostas metodológicas sugeridas.
Fenômeno semelhante ocorre, também, quando, embasados nessas concepções, os documentos
conceituam o texto, colocando-o como elemento constitutivo do ensino e aprendizagem do ensino da
Língua Portuguesa na escola, como se depreende de alguns trechos:
Texto:
é o produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo significativo e acabado,
qualquer que seja sua extensão. É uma seqüência verbal constituída por um conjunto de
relações que se estabelecem a partir da coesão e da coerência. Esse conjunto de relações
tem sido chamado de textualidade. Dessa forma, um texto só (...) pode ser compreendido
como unidade significativa global, quando possui textualidade. Caso contrário, não passa
de um amontoado aleatório de enunciados (...). A esta relação entre o texto produzido e os
outros textos é que se tem chamado intertextualidade (BRASIL, 1997, p.25-26).
(...) Dentro desse marco, a unidade básica de ensino só pode ser o texto (...). (IBID, p.35-
36).
O cerne desta proposta se constitui no trabalho com o texto, que deve ser entendido como
matéria verbal e não verbal, produzido com uma interação, num momento específico da
historicidade de seu autor e por isto dotado de sua visão de mundo. [Essa opção é justificada
pelos argumentos da busca de uma maior interação] entre o cotidiano dos alunos e o ambiente
escolar e pela necessidade [da escola trabalhar] com todo tipo de texto, fazendo com que as
diferentes linguagens se coloquem em confronto, no sentido de tornar evidente a estrutura,
a intencionalidade e o conteúdo veiculado neles (JUIZ DE FORA, 2000, p.16-17).

Nas conceituações acima, pode-se perceber uma forte influência da obra bakhtiniana, principalmente a
voltada para os estudos do texto11. Também para BAKHTIN (1992), o texto deve ser estudado “como uma
mônada” que reflete e refrata a realidade social de uma dada esfera da comunicação verbal. Para o autor,
o texto só pode ser compreendido como um enunciado único, irreproduzível e dado historicamente.
Parece-me que as teorias da enunciação e do discurso, na vertente sócio-histórica, como a obra de
Bakhtin, influenciaram fortemente várias propostas para o ensino da Língua Portuguesa nos últimos anos,
quebrando a hegemonia da concepção formalista predominante anteriormente.
Segundo MARINHO (1998), se existe unanimidade nas vozes que ecoam das propostas curricula-
res elaboradas na década de 90, como os PCNs de Língua Portuguesa (em 1997) e o Caderno 2 (em
1999/2000), pode ser facilmente detectada pela preconização do ato da leitura e da escrita como produção
de sentidos, opondo-se à prática escolar da leitura de textos como pretexto aos estudos da gramática,
ou de recursos literários, como os exercícios (muito conhecidos) de análise de figuras de linguagem.
Os PCNs e o Caderno 2, ao adotarem essa abordagem, tentam estar em consonância com as atuais
concepções do ensino da língua, apontando os gêneros discursivos como objeto de ensino. Tanto os Parâ-
metros quanto o Caderno 2 procuram demonstrar que ensinar a língua supõe ensinar diferentes gêneros
e não apenas ensinar códigos e sistema de normas abstratas que regem a língua. Entretanto, existem
algumas diferenças entre os dois documentos, que merecem uma análise mais detalhada.
Os gêneros do discurso são assim conceituados nos PCNs:
Todo texto se organiza dentro de um determinado gênero . Os vários gêneros existentes, por
sua vez, constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura,
caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional.
Pode-se ainda afirmar que a noção de gêneros refere-se a “famílias” de textos que compar-
tilham algumas características comuns, embora heterogêneas, como visão geral da ação à
qual o texto se articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de literariedade, por
exemplo, existindo em número quase ilimitado. Os gêneros são determinados historicamente.
As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, geram usos
sociais que determinam os gêneros que darão forma aos textos (BRASIL, 1997, p.26).

11 Cf. Mikhail BAKHTIN. Estética da Criação Verbal.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 719


Embora, a conceituação de gêneros discursivos presente nos PCNs esteja, em parte12, calcada em
Bakhtin, mesclam-se, indiscriminadamente, conforme BRAIT (2000), a conceituação de gênero discursivo
e tipologia textual, como nesse trecho: “a organização interna se faz a partir de seqüências discursivas-
narrativa, descritiva, argumentativa, expositiva e conversacional”13. Essa segunda concepção, advinda
de uma fonte teórica diferente da perspectiva bakhtiniana, é a mesma usada para a estruturação do
trabalho pedagógico de ensino da língua, o que denuncia um uso indevido da definição bakhtiniana de
gênero do discurso e uma confusão teórica entre os termos.
O conceito de gênero discursivo de Bakhtin é respaldado em sua Teoria da Enunciação e não pode
ser descolado dela para ser justaposto em modelos e objetivos pré-determinados. Em Bakhtin, não há
possibilidade de mecanicamente operacionalizar conceitos pré-estabelecidos, nem tão pouco estancar
um conceito, como o de gênero do discurso, para submetê-lo a uma proposta curricular, como se tenta
fazer nos Parâmetros, sem se levarem em conta outras concepções bakhtinianas, como o dialogismo, a
polifonia e a entonação.
O Caderno 2 (JUIZ DE FORA, 2000), ao tratar do ensino da Língua Portuguesa para o segundo ciclo,
define a proposta como baseada “numa perspectiva bakhtiniana” (p.17) e “ressalta o papel dos gêneros do
discurso na escola” (p.17). Além disso, os gêneros discursivos são denominados no documento como:
formas estáveis do discurso dos falantes, organizados no cotidiano cultural. Compreendem
formas livres (gênero discursivo primário- conversas íntimas, familiares, de salão, etc...),
formas estandardizadas (saudações, despedidas, solicitações etc... – também fazem parte
do gênero discursivo primário) e formas especializadas (literários e científicos – gênero
discursivo secundário) (JUIZ DE FORA, 2000, p. 17).

Apesar do privilégio do aspecto classificatório dos gêneros, em detrimento do aspecto de uso da


língua nas diversas esferas sociais, a conceituação de gênero discursivo presente na proposta da SME
de Juiz de Fora-MG parece estar mais de acordo com a perspectiva bakhtiniana do que a exposta nos
Parâmetros. Em vários trechos do Caderno 2, aparecem outras referências à obra de Bakhtin, como na
definição de enunciado como “um processo dialógico, interativo, que implica significação, considerando-o
como um processo de compreensão mútua/entendimento no interior de um tema dado” (JUIZ DE FORA,
2000, p.17). Perpassa por todo o documento a relevância da linguagem via interação, que leve o aluno
“ao domínio efetivo do falar, ler e escrever” (IBID, p17).
Até mesmo os objetivos são definidos como “Objetivos para os Gêneros do Discurso” e determinados
em função da ampliação do universo cultural e da educação para a cidadania e criticidade, através da
utilização da diversidade textual e da linguagem como “[expressão de] sentimentos, experiências, idéias
com coerência na defesa dos pontos de vista e na apresentação de argumentos e no uso de negociação
de acordos necessários e possíveis” (IBID, p.22). Para PRADO (1999), nessa perspectiva de trabalho, o
papel do professor é o de organizar atividades de ensino que possibilitem ao aluno a vivência de diferentes
experiências lingüísticas produzidas em diversas situações de comunicação verbal.
Desse modo, no Caderno 2, a preferência pelos gêneros discursivos como objeto de ensino é muito
mais evidente do que nos Parâmetros. O que se espera com a adoção dessa perspectiva não é um mero
estudo formal das diferentes configurações textuais, como propõem os estudos ligados à tipologia textual.
O Caderno 2 objetiva, pela apropriação dos alunos dos diferentes discursos- uso/produção da língua, a
construção da cidadania e a formação de sujeitos críticos.
Assim sendo, do discurso assumido nos PCNs de Língua Portuguesa (apesar das inconsistências
teóricas) e no Caderno 2, depreende-se uma crítica ao ensino tradicional, entendido como aquele que
desconsidera a realidade e os interesses do aluno; à artificialidade e fragmentação das atividades de
leitura e escrita; ao uso do texto como pretexto ao ensino da gramática; à valorização da gramática
normativa e à desvalorização das formas da língua ligadas à oralidade.
O que é proposto como prática pedagógica
Nos Parâmetros, o capítulo intitulado “Os Conteúdos de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental”,
ao tratar dos princípios e orientações para tratamento didático com os conteúdos, visando aos objetivos
propostos na área, detalha o trabalho a ser realizado em sala-de-aula. No Caderno 2, esse detalhamento
é feito no capítulo “Segundo ciclo: objetivos e conteúdos de Língua Portuguesa”.
A organização dos conteúdos, nos PCNs de Língua Portuguesa, é distribuída em dois eixos de práticas
de linguagem: o do uso da linguagem e das práticas de reflexão. Segundo ROJO (2000), os conteúdos
presentes no eixo do uso da linguagem são enunciativos e envolvem aspectos como a visão histórica da
língua e da linguagem; contextualização da produção dos enunciados em leitura/ escuta e produção de
textos; e implicações na organização dos discursos (gêneros e suportes) e no processo de significação.
Nessa perspectiva, o texto é a unidade de ensino e os gêneros textuais e discursivos são objetos de
ensino. No segundo eixo, referente à reflexão sobre a língua e a linguagem, estão presentes aspectos
ligados à variação lingüística, à estrutura dos enunciados, aos processos de significação e aos modos de
organização do discurso, dentre outros.

12 Segundo os PCNs de Língua Portuguesa, o termo “gênero” é utilizado como é proposto por Bakthin e desenvolvido por Bronckart e Schneuwly.
13 Trecho retirado de um outro documento dos PCNs, que também se refere ao ensino de Língua Portuguesa- “Estrutura dos Parâmetros Nacionais para
o Ensino Fundamental”.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 720


No Caderno 2, não está explicitado nenhum eixo norteador da proposta. Entretanto, como já dito
antes, é enfatizado o trabalho com os gêneros discursivos numa perspectiva bakhtiniana, conceituando-
se o que é entendido por gênero do discurso, detalhando-se, inclusive, “os objetivos para os gêneros
do discurso”. Tal preocupação em minudenciar a prática pedagógica dentro dessa conceituação deixa o
presumido de que se espera, no Caderno 2, como eixo do ensino da Língua Portuguesa, a concepção de
gênero discursivo de Bakhtin.
Os PCNs de Língua Portuguesa, baseados nos eixos uso e reflexão, propõem, como blocos de conte-
údo, o diagrama abaixo (BRASIL, 1997, p.43):

LÍNGUA ORAL: LÍNGUA ESCRITA:


usos e formas usos e formas
Análise e reflexão sobre a língua

O bloco de conteúdos intitulado “Língua Oral: usos e formas” determina a língua oral como conteúdo
escolar que exige planejamento, para que se possa “garantir, na sala de aula, atividades sistemáticas
de fala, escuta e reflexão sobre a língua” (BRASIL, 1997, p.49). Aponta como atividades pedagógicas
para o desenvolvimento da linguagem oral: atividades de produção e interpretação de ampla variedade
de textos orais, observação de diferentes usos e reflexão sobre os recursos que a língua oferece para
alcançar diferentes finalidades comunicativas. Salienta, ainda, que as atividades com esse eixo organi-
zador devem ser significativas para o aluno.
Apesar do avanço presente nos Parâmetros, no destaque dado a essa modalidade no ensino do Por-
tuguês, visando mostrar ao aluno a grande variedade de usos da fala, dando-lhe a consciência de que
a língua não é homogênea e monolítica, além de permitir o trabalho com diferentes níveis (do coloquial
ao mais formal), percebe-se, nos desdobramentos do mesmo capítulo, uma ênfase mais acentuada ao
desenvolvimento da língua escrita do que à oralidade.
Um exemplo disso é a não explicitação do tratamento didático a ser dado à “Língua Oral”, o que só
ocorre na parte destinada à “Língua Escrita”. Além disso, parece-me que o ensino da oralidade ainda é
visto nos PCNs de maneira isolada do da escrita, o que demonstra uma contradição com a abordagem
adotada (voltada para os estudos sócio-históricos). Nessa perspectiva, oralidade e escrita se interpene-
tram e mantêm relações mútuas e intercambiáveis, o que não ocorre nos PCNs, visto que essas duas
modalidades são tratadas isoladamente.
No bloco que trata da “Língua Escrita: usos e formas” , a leitura e a escrita são compreendidas como
“práticas complementares, fortemente relacionadas, que se modificam no processo de letramento” (BRA-
SIL, 1997, p.52) e a meta de ensino é a formação de leitores “que sejam também escritores capazes
de produzir textos coerentes, coesos, adequados e ortograficamente escritos” (BRASIL, 1997, p.52-53).
Esse bloco de conteúdos se subdivide em “Práticas de Leitura” e “Produção de Textos”, que, por sua vez,
desdobram-se em “Aspectos Discursivos” e “Aspectos Notacionais” 14.
A parte referente a “Práticas de Leitura” subdivide-se em “Tratamento Didático” e “Aprendizado
inicial da leitura”. O primeiro se refere às questões das práticas pedagógicas de incentivo à leitura.
Nele, o trabalho didático é tratado, de maneira vaga, salientando apenas a importância “[do] contato
sistemático com bons materiais de leitura” (BRASIL, 1997, p.54) pelos alunos e colocando “como a mais
importante estratégia de prática de leitura a diversidade textual” (IBID, p.55), sem deixar claro o que
esses termos significam.
O segundo tema abordado na seção é intitulado “Aprendizado inicial da leitura” e destina-se às te-
máticas referentes à alfabetização e aos processos iniciais de leitura. Nele, é reafirmada a relevância da
diversidade textual, entretanto, novamente, as questões postas não clareiam o trabalho a ser realizado.
São, apenas, colocados reflexões e exemplos genéricos.
A outra parte do bloco “Língua Escrita: usos e formas”, designada “Prática de Produção de Textos”
reafirma, mais uma vez, a necessidade de o aluno “ter acesso à diversidade de textos escritos” e a fi-
nalidade de “formar escritores capazes de produzir textos coerentes, coesos e eficazes” (BRASIL, 1997,
p.65). Também nessa parte não são definidos os termos usados. Além disso, uma outra questão que
se apresenta e que perpassa todo o documento é a falta de clareza no que se refere ao trabalho com
os gêneros discursivos. O texto do documento não deixa claro como fazê-lo, fornecendo informações
indefinidas e exemplos precários.
Quanto ao “Tratamento Didático” dado à produção de textos, é feita uma lista de procedimentos a
serem adotados em sala-de-aula, o mesmo se repetindo ao se tratar de “Algumas situações didáticas
fundamentais para a prática de produção de textos”15 , onde é sugerida uma série de atividades de
produção de textos. Desse modo, os conteúdos e as atividades a serem realizadas se misturam indis-
criminadamente, pois a finalidade da escrita é a produção de textos. Percebe-se que os Parâmetros,

14 De acordo com os PCNs, os aspectos discursivos se referem às características da linguagem em uso e os notacionais estão relacionados com as carac-
terísticas da representação gráfica.
15As atividades e exemplos dados fazem parte do texto do documento. Para maiores esclarecimentos, cf. BRASIL, SEF, Parâmetros Curriculares- volume
2, p.74-75.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 721


ao descreverem o trabalho pedagógico a ser realizado, seguem a forma prescritiva própria do gênero
“proposta curricular”, enumerando modos de fazer e agir pedagogicamente.
Ainda na parte referente à “Prática de Produção de Textos”, enfatiza-se a utilização de projetos como
“situação didática excelente” (BRASIL, 1997, p.70) à produção de textos, devido às “reais condições de
produção de textos escritos” (BRASIL, 1997, p.71) oferecidas por esse procedimento. Enumera-se uma
série de benefícios proporcionados por essa prática16, entretanto, não fica claro o que é entendido por
trabalho com projetos e o que se espera com essa forma de ensino.
Quanto à “Análise e Reflexão sobre a Língua”, o objetivo principal é “melhorar a capacidade de com-
preensão e expressão dos alunos” (BRASIL, 1997, p.78) , em situações de comunicação oral e escrita.
O trabalho didático com a análise lingüística organiza-se, então:
tendo como ponto de partida a exploração ativa e a observação de regularidades no funcio-
namento da linguagem (...). Trata-se de situações em que se busca adequação da fala ou
da escrita própria e alheia, a avaliação sobre a eficácia ou adequação de certas expressões
no uso oral e escrito, os comentários sobre formas de falar ou escrever, a análise da perti-
nência de certas substituições de enunciados (...), a identificação de marcas da oralidade na
escrita e vice-versa, a comparação entre diferentes sentidos atribuídos a um mesmo texto,
a intencionalidade implícita em textos lidos e ouvidos etc. (BRASIL, 1997, p.80)

Por sua vez, o Caderno 2 propõe como blocos de conteúdos “Práticas de Leitura”, “Produção de Texto”
e “Linguagem e Conhecimento Lingüísticos”. Como ocorre nos Parâmetros, os dois primeiros blocos não
explicitam o trabalho a ser realizado, destinando-se a definições teóricas genéricas e indefinidas.
Quanto à parte destinada à “Linguagem e Conhecimento Lingüísticos”, esta se subdivide em “Linguagem
Oral” e “Conhecimentos Lingüísticos”. Na primeira, destinads ao desenvolvimento da oralidade, ocorre
um tratamento semelhante ao dos Parâmetros: não é esclarecido como desenvolver essa modalidade e
o que se espera com esse trabalho. É apenas apontada a relevância da linguagem para a “comunicação
de idéias, pensamentos, intenções a outras pessoas e (...) [estabelecimento] de diversas relações, re-
sultado da convivência entre os homens” (IBID, p.20).
Essa “displicência” no trabalho com a oralidade, que se repete nos dois documentos (PCNs e Caderno
2), não é ao acaso. Segundo FÁVERO (2000), apesar das diversas pesquisas sobre o assunto, ainda
não existe concordância nas questões referentes à relação oralidade e escrita. De um lado, temos os
que acreditam na estrutura complexa, formal e abstrata da escrita, enquanto a oralidade é vista como
simples, desestruturada, informal, concreta e dependente do contexto. Por outro lado, existem aqueles
que enfatizam a importância do desenvolvimento da oralidade, já que se constitui como uma prática
social interativa, que se apresenta sob variadas formas e gêneros e, por isso, merecedora de estudos
relacionados às suas formas de uso e variações lingüísticas.
Na parte do Caderno 2 que trata dos “Conhecimentos Lingüísticos”, é dada importância ao uso de
palavras, sintaxe, trabalho com a estrutura e adequações de textos, além de regras normativas da
língua (pontuação, acentuação e outras). Enfatiza-se que tal trabalho não visa à memorização e sim à
compreensão do funcionamento da língua escrita.
Em relação aos conteúdos destinados para o seguindo ciclo, Os documentos investigados (PCNs de
Língua Portuguesa e Caderno 2), agrupam os gêneros em função da circulação e dos usos sociais mais
freqüentes. Essas propostas estão muito mais voltadas para o “domínio da língua que tenha estreita
relação com a possibilidade de plena participação social” (BRASIL, 1997, p.23) e para a “compreensão e
análise do meio social, visando à construção de vida em sociedade” (JUIZ DE FORA, 2000, p.22), do que
para a distribuição e agrupamentos dos gêneros pelas capacidades de linguagem, já que isso pressupõe
o desenvolvimento de competências textuais, o que pode incorrer no equívoco de um trabalho voltado
muito mais para o estudo estrutural do texto do que para uma concepção discursiva ou interativa de
linguagem.
Algumas considerações:
De acordo com MACHADO (1997), o gênero do discurso não é, apenas, reproduzido, mas é também
transformado no cruzamento de vários gêneros, na interpenetração do estilo de um gênero em outro, ou
pelo empréstimo de um gênero característico de uma determinada instituição a uma outra e na própria
interpenetração da vida nos gêneros.
Assim sendo, Os documentos analisados (PCNs e Caderno 2) foram entendidos como práticas discur-
sivas que, sofrem as transmutações da história, ou seja, da mesma maneira que esses documentos são
determinados pelo gênero do discurso, que os circunscrevem, esses gêneros do discurso e suas práticas
discursivas são produzidos e constantemente transformados nas relações sociais e no entrecruzamento
e penetração dos gêneros entre si.
Apesar das contradições apontadas nos PCNs de Língua Portuguesa, estou de acordo com ROJO
(2000), que afirma o avanço considerável nas políticas educacionais brasileiras em geral, e em particular,
nas políticas lingüísticas, proporcionado pelos Parâmetros, visto que esses não se constituíram- como

16 Tais como: a oportunidade do trabalho com uma grande variedade de textos, o exercício do ajustamento da escrita do texto a um leitor (revisão e cui-
dados com o trabalho), a possibilidade da intersecção dos conteúdos de diferentes áreas e outros. Esses e outros benefícios estão detalhados no texto dos
Parâmetros. Cf. BRASIL, SEF, Parâmetros Curriculares- volume 2, p.72-74.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 722


tradicionalmente tem sido feito no Brasil- em grades de objetivos e conteúdos curriculares pré-fixados
e, apesar de seu caráter prescritivo, tentam se constituir em “diretrizes” norteadoras dos currículos e
seus conteúdos.
Por fim, o debate sobre os PCNs está colocado, agregando tanto posições conservadores quanto pro-
gressistas. Embora sua elaboração e execução não tenham ocorrido em uma relação de diálogo entre
as esferas oficiais e a comunidade escolar, acredito que o currículo só se realiza, em sua plenitude, no
contexto escolar e, nessa esfera, é possível uma construção socialmente negociada, como a que ocorreu
na elaboração do Caderno 2.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992 [1979].
______ . La construcción de la enunciación. In: ____. Bajtín y Vigotski: La organización semiótica de la conciencia.
Barcelona: Anthropos, 1993.
______ . Marxismo e filosofia da linguagem. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999 [1928-30].
______ . Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, UNESP,1993 a.
BRAIT, Beth. PCNs, gêneros e ensino de língua: faces discursivas da textualidade. In: ROJO, Roxane (org.) . A prática
de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC, 2001.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-Lei nº 9394. Brasília, 11 de dezembro de 1996.
______, Ministério da Educação e Cultura. Plano decenal de educação para todos. Brasília: MEC, 1993.
______, (1998) Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Ensino Fundamental. htp://www/mec.gov.br . Acesso
em: 10 de outubro de 2002.
______ . Ministério da Educação e Cultura, SEF. Estrutura dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Fundamental
de Língua Portuguesa In: ______ . BRASIL, Ministério da Educação e Cultura, SEF. Parâmetros Curriculares para o
Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
______, Ministério da Educação e Cultura, SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental. Bra-
sília: MEC/SEF, 1997. vol. 2.
CARVALHO, Maria Cristina Moraes. Percursos de construção da proposta de ciclos de formação em escolas municipais
de Juiz de Fora: um caminho novo? 2002. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal de Juiz de Fora.
Juiz de Fora.
CASANOVA, Pablo González. Globalidade, neoliberalismo e democracia. In: GENTILI, Pablo. Globalização excludente:
desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Petrópolis: Vozes, 1999.
COSTA, Sérgio Roberto. A concepção de leitor e produtor de textos nos PCNS: uma análise crítica. In: FREITAS, Maria
Teresa de Assunção Freitas e COSTA, Sérgio Roberto (orgs.). Leitura e escrita na formação de professores. São Paulo,
Juiz de Fora, Brasília: MUSA/ EDUFJ/ COMPED-INEP, 2002.
______ . A construção de títulos em gêneros diversos: um processo discursivo polifônico e plurissêmico. In: ROJO,
Roxane Helena Rodrigues.(org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC,
2000.
JOBIM e SOUZA, Solange. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas: Papirus, 1994.
JORNAL DO COMMERCIO. Recife, 10.01.1997. Caderno Brasil.
JUIZ DE FORA. Resolução 002/2000- CME de 11 de meio de 2000. Altera a organização das Escolas municipais e dá
outras providências. “Escola do Caminho Novo”: organização do tempo escolar- a estrutura de ciclo. Caderno n.2.
Juiz de Fora: 2000.
______ . Secretaria Municipal de Educação. “Escola do Caminho Novo”: organização do tempo escolar- a estrutura
de ciclo. Caderno n.2. Juiz de Fora: 2000.
MACHADO, Irene A. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In: BRAIT, Beth. (org.). Bakhtin, dialogismo e
construção de sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
MARINHO, Marildes. A língua portuguesa nos currículos de final de século. In: BARRETO, Elba Siqueira de Sá (org.).
Os currículos do ensino fundamental para as escolas brasileiras. Campinas: Autores Associados, 1998.
OLIVEIRA JÚNIOR, Osmar. Neoliberalismo, educação e emprego. Juiz de Fora: FEME, 2000.
PRADO, Guilherme do Val Toledo. Documentos desemboscados: conflito entre o gênero do discurso e a concepção
de linguagem nos documentos curriculares de ensino de língua portuguesa,1999. Campinas, Tese (Doutorado em
Lingüística Aplicada) Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Campinas.
ROJO, Roxane Helena Rodrigues. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular
e projetos. In: ROJO, Roxane Helena Rodrigues (org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs.
São Paulo: EDUC, 2000.
UNESCO/BRASIL.http://www.unesco.org.br/programas/educacao/planonac.asp Acesso em 29 de setembro de
2001.
_________. Rapport de la Comission internationale sur l’éducation pour le vingt et unième siècle. Synthèse préli-
minaire. Paris: Unesco, 1995. edweb@www.education.unesco.org/educnews/delors/index.html. Acesso em 29 de
setembro de 2001.
VYGOTSKY, Lev Semenovictch. Obras escogidas III. Moscou: Editorial Pedagógica, 1983.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 723


Textos-chave:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992
[1979].
______ . La construcción de la enunciación. In: ____. Bajtín y Vigotski: La
organización semiótica de la conciencia. Barcelona: Anthropos, 1993.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura, SEF. Parâmetros Curriculares Nacio-
nais para o ensino fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. vol. 2.
JUIZ DE FORA. Secretaria Municipal de Educação. “Escola do Caminho Novo”:
organização do tempo escolar- a estrutura de ciclo. Caderno n.2. Juiz de Fora:
2000.
Nomes-chave: BAKHTIN, FREITAS, ROJO
Palavras-chave:GÊNERO, CURRÍCULO, DISCURSO.
Biografia resumida: Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UFJ,
no eixo de pesquisa Linguagem, Conhecimento e Formação de Professores; formada
em Pedagogia pela UERJ; integrante do Grupo de Pesquisa LIC/UFJF(Linguagem,
Interação e Conhecimento); Professora no Ensino Fundamental de primeira a quarta
séries no Colégio Pedro II-RJ na atividade de Literatura.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 724


Por que el dialogismo se opone radicalmente al positivismo:
Las contribuciones de Bajtin y Freire1

Myriam N. Torres

New Mexico State University – USA

El dialogismo representa una alternativa a la ideología positivista dominante en el pensamiento


occidental. El dialogismo, como ha sido avanzado por Bajtín y Freire tiene amplias y profundas implica-
ciones para el repensar de nociones como Ser / Yo, Saber / Conocer, Lenguaje, y Pedagogía desde
una perspectiva radicalmente opuesta a la perspectiva positivista. En esta ponencia pretendo develar la
vasta y profunda infiltración del positivismo en el lenguaje que usamos, en nuestra manera de pensar
y de actuar, es decir en todas nuestras formas culturales y prácticas sociales, lo cual hace difícil revelar
su presencia.
Muy a menudo las apropiaciones tanto de las ideas de Bajtín como las de Freire han sido en fragmentos,
asimiladas o co-optadas, dificultando así una visión integral de la alternativa dialógica que representan.
Gardiner (1998) destaca el paso lento con que las ideas de Bajtín han penetrado todas las esferas a las que
son relevantes, y la tendencia de los académicos a asimilarlas en la compartamentalización disciplinaria
tradicional. Bajtín mismo considera que su análisis se sitúa en las fronteras de varias disciplinas, que
el denomina como el ámbito de la filosofía. El trabajo de Freire también ha sido acogido en fragmentos,
co-optado y despolitizado. El problema más común con su trabajo es el de reducirlo a un método, o a
la educación de adultos del ‘tercer’ mundo. A pesar de estos mal entendimientos, el número de adeptos
a las ideas tanto de Bajtín como de Freire esta creciendo, y con ello las oportunidades para repensar
desde una perspectiva dialógica muchos conceptos y aún áreas completas.
Antes de seguir permítame hacer una distinción entre diálogo y dialogismo. Markova (1990) hace
una distinción útil entre ellos. Ella define ‘diálogo’ como una forma de comunicación social por medio
de símbolos, principalmente lenguaje, y define ‘dialogismo’ como una perspectiva epistemológica. Lo
importante es que tanto Bajtín como Freire conciben diálogo más allá del encuentro cara-a-cara. Para
Freire (1992/1970, Shor & Freire, 1987), diálogo es un encuentro entre humanos para entender y reha-
cer sus mundos. Para Bajtín (1984), diálogo “involucra múltiples voces”, es una “co-existencia con final
abierto”, es una “interacción de diversidad”.
Dialogismo como una filosofía repercute todas las áreas del ser, pensar y actuar de los humanos. Voy a
enfocar cuatro de ellas: Ser/Yo, Saber/Conocer, Lenguaje, y Pedagogía. Al mismo tiempo voy a contrastar
los puntos de vista dialógicos con los puntos de vista positivistas, basada en las contribuciones de Bajtín
y Freire a esas areas específicas. Para lograr esto voy a documentar las siguientes tesis:
• Primera tesis general: La filosofía dialógica es una verdadera alternativa a la filosofía positivista
en las dimensiones ontológicas, epistemológicas, lingüísticas y pedagógicas.
• Segunda tesis general: Las perspectivas de Bajtín y Freire sobre dialogismo, en las areas men-
cionadas en la primera tesis, son consistentes una con otra, o al menos complementarias.
Estas dos tesis generales se operacionalizan en las siguientes 4 tesis específicas:
1. El Ser/Yo dialógico es relacional y se opone al ser individualista y autosuficiente del positivis-
mo.
2. El Saber/Conocer dialógico es social, holístico, situado, intersubjetivo, participativo y dialécti-
co.
3. El lenguaje es no solamente un sistema formal de signos, formas y reglas, sino también una
parte constitutiva de nuestro ser humano, de nuestro pensamiento, de nuestras prácticas culturales y
sociales, y puede ser el dato primario de las ciencias humanas incluyendo las ciencias sociales.
4. Una pedagogía dialógica es una pedagogía de posibilidad, democrática, critica y transformati-
va.
El Ser dialógico se define como “ser-en-relación” con otros (Primera tesis específica)

1 Este es un resumen del artículo original escrito en inglés.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 725


La filosofía dialógica intenta reemplazar la filosofía esencialista de Ser que domina el pensamiento
occidental, por la noción de Ser constituido por su relación-con-otros, la cual es constitutivamente dis-
tintiva de los humanos. Para Bajtín (1984) una verdadera interacción dialógica con otros implica una
interdependencia de conciencias con derechos equivalentes en su participación en diálogo. Ello evita la
objetificación de uno o más participantes relegados a terceras personas, es decir, alguien de quien se
hablas o por quien se habla, y no alguien con quien se habla. Para Freire, el Yo y el Tú se relacionan
dialécticamente con derechos y responsabilidades iguales.
El ‘Yo’ dialógico
Si hablamos del “Ser” como dialógico, el “Yo” consecuentemente es dialógico. Ello implica que el Yo
debe incluir el Otro como parte de su ser, y no como su oponente. Si examinamos la relación del Yo con
el Otro vamos a apreciar su devenir, interdependencia e incompleta naturaleza. Bajtín, en su libro Hacia
una Filosofía del Acto (1993) discute el Ser-como-evento, en otras palabras el Ser como devenir.
La idea del Yo como individuo autosuficiente es contraria a su naturaleza dialógica. Freire (1998b)
critica la noción individualista del Yo/Ser alegando que “orgullo y autosuficiencia nos hace viejos.” Para
él, la incompletes del ser en el mundo es parte de nuestra naturaliza histórica hacia el mejoramiento, y
la raíz de nuestras esperanzas y sueños por una sociedad mas democrática y justa en la cual podamos
vivir mas humanamente.
Diálogo y relaciones de poder
Tanto para Bajtín como para Freire las relaciones de poder entre los participantes en diálogo deter-
minan quien participa, y a quien oír o no. Los que ostentan gran poder asignan nombres, categorías
e identidades a otros; delimitan y sancionan los tipos y contenido de los discursos; definen lo que es
apropiado, lo que esta ‘in” y lo que esta “out”.
Despolitizar el discurso, como el de Bajtín o el de Freire, es muy común en los países anglosajones.
Emerson (uno de los traductores y editores de Bajtin) por ejemplo, en su ensayo para celebrar los 100
anos del nacimiento de Bajtín concluyó que su noción de cultura en caracteriza por “su indiferencia
hacia las cuestiones de poder” (1996, p. 118). Esta es una instancia clara de despolitización del tra-
bajo de Bajtin, ignorando los libros sobre Rabelais (Bajtín, 1979) y Dostoievski (Bajtín, 1984), los que
contienen múltiples referencias acerca de las relaciones de poder en el diálogo, como cuando el afirma
que “una verdadera participación en diálogo implica que interacción es mantenida entre conciencias
autónomas e igualmente significantes”. (1984, p.284). De manera similar Freire (1992/1970) insiste
en la participación simétrica y el mutuo respeto por los puntos de vista y los conocimientos de los otros
participantes en el diálogo.
Individuo y sociedad
Bajtín argumenta que la conciencia del Yo se forma en el límite con la conciencia del otro, en franca
oposición a la noción de individuo desarrollada por la psicología convencional. Sampson (1993), inspirado
en la obra de Bajtin, critica la noción de ‘individuo’ imperante en la psicología, y contrapone a ésta el
individuo relacional o dialógico. El invita a “celebrar el Otro” (título del libro) y mirar el proceso relacional
en lugar de mirar solamente hacia el interior del individuo como un recipiente autocontenido, en busca
de lo que Sampson llama “obsesión por autonomía”. De Peuter (1998), inspirada también por el trabajo
de Bajtín, desarrolla la noción de “identidad historiada” la que contrapone a los ideales prominentes de
identidad tales como integración, cohesión, y autenticidad. En contraste, la “identidad historiada” es dia-
lógica y contiene elementos contradictorios tales como síntesis vs. dispersión, unidad vs. fragmentación,
fuerza centrípetas vs. fuerzas centrifugas. En el contexto bajtiniano, estas contradicciones no nos hace
“anormales” sino al contrario más humanos. Ellas son la prueba de nuestro continuo devenir y nuestra
sensibilidad a diferentes situaciones y momentos históricos.
El Conocer/Saber dialógico (Segunda tesis específica)
Segunda tesis especifica: El saber dialógico es social, holístico (integral), situado, intersubjetivo, par-
ticipativo y dialéctico, el cual contrasta con las características del conocimiento valuadas por la postura
positivista: analítico, generalizable y objetivo.
Dialogismo como filosofía borra las fronteras entre ontología y epistemología, es decir, entre Ser y
Conocer. Tanto para Bajtín como para Freire, conocer es constitutivo del devenir del ser. Freire (1998)
dice que conocer involucra todo el ser consciente: cognición, sentimientos, emociones, afectos, y me-
moria. Mientras tanto, Bajtín (1986) sitúa esta discusión en el lenguaje ya que este constituye el dato
primario de todas las ciencias que tienen que ver con lo humano. Para Bajtín, el objeto de las ciencias
humanas es primariamente “el ser discursivo y expresivo”. El, entonces, distingue entre “entendimien-
to”, propio de las ciencias humanas, y “conocimiento”, el que considera como la forma de conocer en las
ciencias naturales. Esta distinción corresponde entre conocimiento dialógico y conocimiento monológico
respectivamente. El monologismo de las ciencias naturales se deriva de la falla del objeto de estudio
(fenómeno natural) de entrar como interlocutor en el proceso de conocer.
Diferencias entre el objeto de estudio de las ciencias naturales y las ciencias humanas implican también
diferencias de método. Según Bajtín (1986), entender un texto es contribuir a su desarrollo, y de ahí
contribuir a su respectivo diálogo del cual el texto en cuestión forma parte. En contraste, la metodología

Proceedings XI International Bakhtin Conference 726


positivista de las ciencias naturales, cuando aplicadas al fenómeno humano, lo “cosifican” produciendo
un conocimiento histórico, estático, e irrelevante a la vida humana.
Si el ser y conocer son dialógicos, por lo tanto inherentemente sociales, las fronteras entre humanida-
des y ciencias sociales no tendrán razón de existir. Esto tiene una implicación directa en la organización
y especialización académica en las universidades que siguen el enfoque positivista de jerarquización y
organización del saber en la academia.
El conocer dialógico es dialéctico
El saber dialógico es también dialéctico. Bajtín (1984) tiene problemas con la dialéctica hegeliana
(tesis, antitesis, y síntesis) por “su espíritu unificado en dialéctica evolución.” (p.30) El critica el carác-
ter abstracto de este tipo de dialéctica ya que a medida que el significado contextual desaparece los
conceptos se cosifican y reifican. Parece que Bajtín (1982) tenia la intención de desarrollar la relación
entre diálogo y dialéctica cuando escribe en sus notas, “la dialéctica nació del diálogo y retorna al diálogo
en un nivel superior” (p. 384). Freire (1992/1970) usa el término dialéctica mayormente para indicar
la relación de interdependencia y reciprocidad constitutiva entre fenómenos. Así por ejemplo, el define
“praxis” como “la dialéctica entre acción y reflexión” (p.75). También habla de la dialéctica entre sujeto
y objeto, y entre conocimiento de un realidad dada y su transformación, etc.
Investigación dialógica
Uno de los mayores aportes de Freire en el área del conocer es el desarrollo del enfoque investigativo
que empezó como “investigación temática” en Pedagogía del Oprimido, y luego fue desarrollada en teoría
y en practica hasta lo que hoy se conoce como “Investigación Acción Participativa”. Realmente este tipo
de investigación ha emergido alrededor del mundo en varios contextos sociales, culturales y teóricos.
No obstante su diversidad hay por lo menos dos principios compartidos: 1) Entendimiento crítico de la
realidad por todos los participantes en la investigación; 2) Acción comunal transformadora de esa realidad
para beneficio directo de los mismos participantes y sus comunidades primero que todo.
Investigación temática es realmente el comienzo del proceso de planeamiento y desarrollo curricular,
el que conducirá a acciones culturales y liberadoras. De esta manera Freire realmente integra investi-
gación con educación y con desarrollo de las comunidades, lo cual facilita la integración entre teoría y
práctica, y entre escuela y trabajo.
La característica más distintiva y revolucionaria del enfoque de Investigación Acción Participativa es su
carácter precisamente ‘participativo’ (engendrado en dialogismo). ‘Participativa’ en este contexto significa
que los participantes se involucran sistemáticamente como co-investigadores de su propia temática y
de su realidad. Los participantes necesitan “cuestionar el por que de las cosas y de los hechos” (Freire,
1994). Es decir, necesitan leer la palabra y el mundo. Me parece que las ideas de Bajtín y Freire sobre
el conocer / saber dialógico constituyen una sólida base para desarrollar un verdadero enfoque alterna-
tivo de investigación que permita superar los problemas y limitaciones de los paradigmas cuantitativo
(positivista) y cualitativo (fenomenológico).
Lenguaje y dialogismo (3ª tesis específica)
Desde una perspectiva dialógica lenguaje es no meramente un sistema formal de signos que sirven
para comunicar nuestros pensamientos, sino también un aspecto constitutivo de nuestro ser, pensar,
actual, interactuar, vivir, es decir, de nuestra cultura. En el “Problema del Texto” Bajtín (1986) llega a
decir que “lenguaje y la palabra son casi todo en la vida humana” (p. 118). Freire, por su parte, considera
que la palabra (significando lenguaje en uso) es constitutiva de diálogo en dos dimensiones dialéctica-
mente relacionadas: reflexión y acción. Para Freire lenguaje es un fenómeno viviente constitutivo de la
actividad humana.
El texto, dice Bajtín (1986), se desarrolla en la frontera entre dos conciencias. Como enunciado, el
texto tiene una forma estructural que es permanente, y también tiene una parte que es “individual, única
e irrepetible.” (p.106). Dado el carácter dialógico del enunciado, cualquier instancia contiene ‘reverbera-
ciones’ de otros enunciados previamente articulados por el mismo autor o por otros autores. Esto lleva
a Bajtín cuestionar el sentido de autoría: “ningún enunciado puede ser atribuido a ningún autor exclu-
sivamente, es el producto de la interacción de los interlocutores, y, ampliamente hablando, el producto
del complejo de la situación social como totalidad.” (Citado por Todorov, 1884, p. 30). Kristeva (1986)
refiere a esa idea de Bajtín de “mosaico de citaciones” como intertextualidad. Freire, de su parte, tra-
baja extensivamente en la praxis del lenguaje en términos de lecto-escritura, la que define en un amplio
sentido como: “leyendo la palabra y el mundo”.
Pedagogía dialógica como praxis transformadora (Cuarta tesis específica)
La pedagogía dialógica desarrollada por Freire envuelve dos momentos dialécticamente relacionados:
1) Entendimiento crítico del objeto del estudio o realidad de los estudiantes y sus comunidades; y 2)
acción transformadora. Para Freire, el maestro no debe enseñar a los estudiantes a leer la palabra sin
leer el mundo (su realidad en el contexto cultural y político. Tanto para Bajtín como para Freire una vida
verdaderamente humana es dialógica; diálogo es necesario en la batalla por liberación de condiciones
opresoras, por lo tanto monológicas e infrahumanas. Bajtín (1984) habla de una ‘materialización’ de lo
humano bajo el capitalismo y totalitarismo, y pone en la boca de Dostoievski su rechazo a las condiciones

Proceedings XI International Bakhtin Conference 727


monológicas opresoras que niegan al otro iguales derechos a participar en diálogo encaminado a examinar
y transformar la realidad de los participantes. Freire (en todas sus obras prácticamente) es mucho más
explícito en desarrollar una praxis liberadora específicamente en el campo educativo.
La praxis de liberación incluye dos momentos cruciales: Una concientizacion o entendimiento críti-
co de la realidad de los estudiantes por los estudiantes mismos. Ellos necesitan indagar el por qué de
las cosas y los problemas que los aquejan a través del diálogo reflexivo y la investigación dialógica.
Conscientization es solo un aspecto del proceso de liberación, el que se consolida en la acción comunal
transformadora. Para Freire (1992/1970, 1994) la batalla por la liberación de los oprimidos es educativa,
cultural y política. Para él, pedagogía no es solamente una cuestión de métodos y estrategias sino una
concepción distintiva de conocimiento, de vida, de humanidad, de realidad, sociedad, etc.
En la pedagogía dialógica el educador es un líder que problematiza realidad para que los estudiantes la
entiendan críticamente. Cuando el maestro y los estudiantes se envuelven en un proyecto de investigación
dialógica ellos en colaboración estudian la problemática que ellos han identificado, y luego implementan
acciones tendientes a cambiar las condiciones que los marginan y oprimen.
Aunque la pedagogía dialógica es inherentemente democrática, eso no significa que el educador(a)
prescinda de su responsabilidad de dirigir el acto educativo. Freire (Shor & Freire, 1987) nos advierte
sobre la importancia de distinguir entre autoridad y autoritarismo, y entre democracia y laissez faire.
El educador mantiene el poder creado institucionalmente para su cargo; aunque ese estatus no da pie
para que abuse de su autoridad sino más bien para combatir autoritarismo y ser el mediador(a) de los
estudiantes ante el poder de las directivas y otros agentes educacionales.
Para concluir puedo decir que del estudio de los textos de Bajtín y Freire accesibles a mí, el dialogismo
se perfila como una verdadera alternativa al positivismo en áreas como el Ser / Yo, el Conocer / Saber,
el lenguaje, y la pedagogía. Además, puedo afirmar que las contribuciones de Bajtín y Freire (en las
áreas referidas y documentadas en esta ponencia) al desarrollo de la filosofía dialógica son consistentes
una con otra, o al menos complementarias.
Referencias
Bajtín, M. M. (1982). Estética de la creación verbal [Aesthetics of verbal creativity]. Translated by T. Bubnova. México,
D. F.: Siglo XXI.
Bajtín, M. (1993). La cultura popular en la edad media y en el renacimiento: El contexto de Francois Rabelais. Mexico,
DF: Alianza Universidad.
Bakhtin, M. M. (1984). Problems of Dostoevsky’s poetics. Edited by C. Emerson. Minneapolis, MN: University of Min-
nesota Press Bakhtin, M. M. (1986). Speech genres and other late essays. (V. W. McGee, Trans.; C. Emerson & M.
Holquist, Eds.). Austin, TX: University of Texas Press.
Bakhtin, M. M. (1993). Toward a philosophy of the act (V. Liapunov, Trans.). Austin, TX: University of Texas Press.
de Peuter, J. (1998). The dialogics of narrative identity. In M. M. Bell & M. Gardiner (Eds.), Bakhtin and the human
sciences: No last words (pp. 31-48). London, Thousand Oaks: Sage Publications.
Freire, P. (1992/1970). Pedagogy of the oppressed. New York, NY: Continuum.
Freire, Paulo (1998a). Teachers as cultural workers: Letters to those who dare teach. D. Macedo, D. Koike & A. Oliveira
(trans.). Boulder, CO: Westview Press.
Kristeva, J. (1980). Word, Dialogue, and Novel. In L. S. Roudiez (Ed.), Desire in Language: A semiotic approach to
literature and art (pp. 64-91). New York: Columbia University Press.
Markova, I. (1990). Introduction: Why dynamics of dialogue. In I. Markova & K. Foppa (Eds.), The dynamics of dia-
logue. London, UK: Harvester Wheatsheaf.
Sampson, Edward E. (1993). Celebrating the other: A dialogical account of human nature. Boulder, CO: Westview
Press.
Shor, I. & Freire, P. (1987). A pedagogy for liberation: Dialogues on transforming education. South Hadley, MA: Bergin
& Garvey Publishers.
Todorov, T. (1984/1981). Mikhail Bakhtin: The dialogical principle. Translated by W. Godzich. Minneapolis, MN: Uni-
versity of Minnesota Press.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 728


Why dialogism radically opposes positivism:
Bakhtin’s and Freire’s contributions

Myriam N. Torres

New Mexico State University

Introduction
Dialogism as a social philosophy represents a true alternative to the positivist ideology prevalent in
western society. Dialogism, as it has been advanced by Mikhail M. Bakhtin in Russia and Paulo Freire in
Latin America, Africa and North America, has wide and profound implications for rethinking important no-
tions such as self, language, knowing, and hence, pedagogy, in a radically different perspective from that
inherited from Descartes—the ‘grandfather’ of positivism. I am going to argue about the pervasiveness
of the positivist views, and how deeply and comprehensively we need to go in order to unveil its roots in
our language, thinking, relating with others, and social practices. Precisely because of this entrenchment
of the positivist philosophy, dialogism has not been recognized in its full magnitude. A major obstacle is
that positivism creates the illusion of an infinite variety of perspectives and operating procedures while
keeping its fundamental roots intact and invisible. In order to proclaim an alternative to positivism, we
need to dig out its roots, to rethink and reconceptualize them, and to expose their practical implications.
The focus of this paper is precisely to present some core ideas of self, language, knowing/research, and
pedagogy from the point of view of dialogism, and in contrast to positivism.
Appropriations of Bakhtin’s and Freire’s ideas on dialogism have been made in piecemeal fashion, and
often co-opted. When Bakhtin’s or Freire’s followers pick and choose specific aspects of their philosophies,
they may miss the big picture of dialogism as a true alternative to positivism. Concerning appropria-
tion of Bakhtin’s philosophical ideas, Gardiner & Bell (1998) consider that there has been a superficial
appropriation of them coupled with negligence in engaging with Bakhtin’s philosophical ideas. Some
well known Bakhtinians have assimilated Bakhtin’s dialogism into western liberalism by considering it
as the reality of discourse and not as a rebellion against authoritative discourse; thus, his work becomes
depoliticized (Brandist, 1995; Hirschkop, 1986). Holquist (1986) characterizes dialogue as an “amicable”
encounter, and opposition as the difference between linguistic practices and/or concepts. Similarly, Mor-
son & Emerson (1992) consider dialogue as bringing up and acknowledging differing opinions. Thus, the
individual is ‘a priori’ to the ‘other’, and the dialogue does not transform the individuality, except perhaps
by accident. There has been not only fractional understanding of Bakhtin’s ideas, but also alterations in
major issues such as epistemology. Dop (2000) criticizes Holquist (1990) and Morson & Emerson (1992)
for misquoting Bakhtin, which led them to frame his epistemology as relativist.
Appropriations of Freire’s dialogism are also often characterized by reductionism and co-opta-
tions. Freire’s broad and profound philosophy is often reduced to a ‘method’, even though he never
called his vision and mission of teaching just a ‘method’ (Macedo, 1997; Aronowitz, 1993; Freire, 1996).
Sometimes dialogue is understood as group therapy, centered on the psychology of the individual and
disconnected from power and ethics of education. The notion of pedagogy, which is for Freire a whole
philosophy including theory, reflection and action, is often referred to as merely ‘teaching’.
Bakhtin’s and Freire’s dialogism as philosophy has tremendous implications for a wide range of discipli-
nes and sciences (Gardiner & Bell, 1998; Hicks, 2000; Holquist, 1990). Their ideas overlap in their bases
or are at the least complementary. Gardiner and Bell (1998) point out the slow pace by which Bakhtin’s
conceptual richness has been acknowledged, and the strong tendency by academics to frame his work
within the traditional compartmentalization of knowledge and disciplines. In addition, Todorov (1984) and
Clark & Holquist (1984) warn us about the tendency to select only bits and pieces of Bakhtin’s thoughts,
given his refusal to present them comprehensively and systematically in a book. This limitation does not
imply that Bakhtin’s work lacks coherence and integration. Makhlin (1997) defends the programmatic
unity of Bakhtin’s work centered on the idea of participation or relations among elements in a ‘whole’. The
interaction of those elements is neither systematic nor non-systematic, but “participatively free” (p.49).
Grozovsky (1997) also defends the coherence of Bakhtin’s ideas centered on a theological argument. He
even considers that Bakhtin’s Philosophy of the Act is a hidden debate with Descartes.
Bajtín [Bakhtin] (1982) himself considers his analysis as philosophical, preventing in this way its

Proceedings XI International Bakhtin Conference 729


assimilation into the traditional division of disciplines: “our analysis must be called philosophical mainly
because of what it is not: it is not linguistic, philological, literary or any other particular kind of analysis”
(p. 281). He considers that what he is doing is on the boundaries of many disciplines “in spheres that
are liminal, i.e., on the borders of all the aforementioned disciplines, at their junctures and points of
intersection” (p.281).
Another way of misunderstanding Freire’s work is its reduction to an adult education method for the
‘Third World’. Giroux (1993) accuses the so called ‘liberal humanists’ of denuding Freire’s anticolonial and
postcolonial theory and practice from its political nature. Despite the frequent misunderstandings and
pitfalls of both Bakhtin’s and Freire’s work, the number of adepts is growing as well as the opportunities for
rethinking key issues of humankind from a dialogical perspective. Nonetheless, Makhlin (1997) contends
that the spreading of Bakhtin’s ideas has increased the misunderstanding and distortion of them.
In digging deeper into the core ideas of dialogism as an alternative to positivism, some working
definitions of dialogism and dialogue are useful. First of all, neither Bakhtin nor Freire used ‘dialogism’
to identify his whole work. However, Danov (1991) and Holquist (1990) consider that dialogism is at
the core of Bakhtin’s work. Kristeva (1980) goes further to claim that “Dialogue may become the basis
of our time’s intellectual structure” (p.89). Markova (1990) makes a useful distinction between dialo-
gue and dialogism. Whereas dialogue is characterized as a form of social communication by means of
symbols, principally language, dialogism is considered an epistemological perspective. Meanwhile, de
Man (1989) finds in Bakhtin two contexts for defining “dialogism”. The first one occurs when Bakhtin
talks about the dialogic character of the genre novel as opposed to monistic discourses of formalists.
This sense is more related to language. The other context is that of dialogism as a “principle of radical
otherness” (p.109).
Concerning the meaning of dialogue, both Bakhtin and Freire go beyond the face-to-face two-
person conversation to include situations in which humans meet to understand and remake their worlds
(Shor & Freire, 1987; Freire, 1998a). In the same vein, Bakhtin (1984) understands life as dialogical,
with no ‘third person’, hence involving multiple voices, open-ended “coexistence”, or “interaction of
diversity”. When the “other” is denied a voice, we have monologue as opposed to dialogue. “Monolo-
gism, at its extreme, denies the existence outside itself of another consciousness with equal rights and
responsibilities, another I with equal rights (thou).” (Bakhtin, 1984, p.292.). Like Bakhtin, Freire views
the nature of human beings as dialogical: “Dialogue belongs to the nature of human beings, as beings of
communication” (Shor and Freire, 1987, p.3). Therefore, “Dialogue is an existential necessity” (Freire,
1992/1970, p.77). As a way of communication, “dialogue is a moment when humans meet to reflect on
their reality as they make and remake it” (Shor and Freire, 1987, p.98).
Dialogism as a philosophy pervades all areas of human actions, concepts and relations. I am going
to focus on four core areas: self, language, knowing, and pedagogy, while contrasting the dialogical
and the positivist views, as well as comparing the contributions by Bakhtin and Freire. In doing this, I
am going to document two general and four specific theses. The general theses are: 1) Dialogism is a
true alternative to the instrumental rationality promoted by positivism, and engrained in our thinking,
language, and actions in both academic and everyday life; and 2 ) Bakhtin’s and Freire’s perspectives
on dialogism, specifically along the dimensions covered in this paper, have many ideas to contribute,
and those ideas are similar or at least complementary. The specific theses are: a) The dialogic self is
relational, as opposed to the positivist notion of self as individualist, self-contained and self-sufficient; b)
Language is not only a formal sign system, but is constitutive of our being human, our thinking and our
social practices, and is the primary carrier of data across human science disciplines; c) Dialogic knowing
is social, holistic, situated, intersubjective, participative, and dialectical, as opposed to seeking linear
cause-effect relationships between simple variables; d) A dialogical pedagogy is a pedagogy of possibility:
democratic, critical and transformative.
Dialogic Self: Being-in-Relation with Others
The thesis to be developed in this section is: The dialogic self is relational, as opposed to the indivi-
dualist self-contained and self-sufficient positivist notion of self.
The dialogical philosophy intends to replace the metaphysical essentialist notion of being, endorsed
by the positivist philosophy which dominates Western thinking, with the notion of being-in-relation with
others as the distinctive and defining characteristic of human nature. Bakhtin (1984) expresses this
relational nature of humans in the following terms:
The very being of man [and woman] (both external and internal) is the deepest communion.
To be means to communicate. Absolute death (non-being) is the state of being unheard,
unrecognized, unremembered. To be means to be for another, and through the other, for
oneself (p.287, brackets added).

Thus, being-in-relation with others through dialogue is what makes human


existence meaningful; conversely, lack of communication and relation with others is non-being. For
Bakhtin (1984) a true dialogical interaction with others implies an interdependence of consciousnesses
among the participants in the dialogue, avoiding the objectification of any of them as ‘third person’; that
is, someone we are speaking about or for. Likewise, Freire (1992/1970) defines “antidialogue” as the

Proceedings XI International Bakhtin Conference 730


situation in which the dominant I conquers the thou and transforms it into a mere it. In the dialogical
encounter “the I and the thou thus become, in the dialectic of these relationships, two thou’s which
become two I’s” (p.167, citing Buber, 1970). They thus have equal rights and responsibilities: “They
are subjects who meet to name the world in order to transform it” (p.167). The redemptive attitude of
those who feel sorry for the oppressions of the ‘other’, precludes dialogue: “No one, however, unveils
the world for another” (p.169).
Dialogic self
In recognizing human existence as dialogical, we need to reformulate what we understand and refer
to as the self. A dialogical view of the self includes the ‘other’ as a constitutive part of the self, and
not its opponent. The self and the other do not pre-exist their relationship, nor do they merge as they
relate to one another. Bakhtin (1982) points out that it is precisely the differences from the other that
make dialogue possible and the encounter enriching for the participants. As Makhlin (1997) indicates,
the “social ontology of participation” is the specific program of philosophy in Bakhtin’s agenda.
The traditional metaphysical understanding of the self and the ‘other’ as separate entities makes
it difficult to look at their relationship as constituting and constituted by one another. Looking at their
relationship is actually looking at the process of becoming self and ‘other’. If they are becoming, they
are unfinalized or incomplete. Bakhtin (1993) refers to this also with the expression “Being-as-event”
which implies an “answerable act”. Makhlin (1997) describes “being-as-event”: “as an architectonic of
relatively autonomous but interrelated activities” (p.46). In brief, as Gardiner & Bell (1998) indicate,
Bakhtin rejects the solipsist notion of self as static, self-contained and complete. Being is an ongoing
project, hence an event or flow of existence. For both Bakhtin and Freire, being and knowing are beco-
ming processes of humanization within specific sociohistorical conditions. “Within history, in concrete,
objective contexts, both humanization and dehumanization are possibilities for man [and woman] as an
incomplete being conscious of his [her] incompletion” (Freire, 1992/1970, p.27, brackets added). Dia-
logical and liberating education must facilitate this process of becoming more human: “Problem posing
education affirms men [and women] as beings in the process of becoming — as unfinished, incomplete
beings in and with a likewise unfinished reality” (Freire, 1992, p.72). Thus, the idea of a self-sufficient
individual is contrary to a dialogical stance (Freire, 1992/1970). Freire (1998b) argues against indivi-
dualist values: “Pride and self-sufficiency make us old... I cannot make myself alone, nor can I do things
alone. I make myself with others, and with others, I can do things” (Freire, 1998b, p.73). Our incom-
pleteness is part of our historical nature which puts us in continual search for betterment; it is the root
of our hopes and dreams (Freire, 1998b). Freire calls for going beyond simple recognition to assuming
our incompleteness and searching for improvement of our human condition:
I think that one of the best ways for us to work as human beings is not only to know that we
are incomplete beings but to assume the incompleteness... We have to become inserted in a
permanent process of searching... It means that keeping curiosity is absolutely indispensable
for us to continue to be or to become (Horton & Freire, 1990, p.11).

Dialogue and power relations


For both Bakhtin and Freire, relations of power mediate whether or not we have opportunities for our
betterment as human beings through a true dialogue. Highly asymmetrical relations of power leave no
room for a true dialogue to take place. Those holding more power may become conquerors, invaders,
dominators, or oppressors. They impose names, identities, rules and systems on the conquered, inva-
ded, dominated or oppressed, whose own voice is silenced and whose opportunities for humanization
are thwarted.
Emerson’s (1996) essay celebrating the centennial of Bakhtin’s birthday, maintains that Bakhtin’s
notion on culture is characterized by “its indifference to questions of power” (p.118). This is a clear ins-
tance of depolitization of his work and of its assimilation into the liberal discourse on culture. Emerson
ignores, for instance, the political analysis of popular culture that Bakhtin (Bajtin, 1993) realizes in his
book on Rabelais’ work. In this book, he analyzes the phenomena of ‘carnival’, ‘laughter’, and the ‘vulgar’
as means of liberation of oppressive conventions: “In reality the function of the grotesque is to liberate
the man [and woman] from the inhuman formalisms upon which are built the conventional ideas.” (p.50,
my translation from Spanish, brackets added). In feudal times, the carnival was a “transitory liberation
from the scope of the dominating conception, the provisional abolition of hierarchical relationships, pri-
vileges, rules and taboos.” (p.15, my translation from Spanish).
When Bakhtin (1984) describes the dialogic novel of Dostoevsky, he remarks how “no single
element of the work is structured from the point of view of ‘third person’. [The novel is] a whole formed
by the interaction of several consciousnesses, none of which entirely becomes an object of the other”
(p.18). In addition, true participation in the dialogue implies that the interaction is held among auto-
nomous and equally signifying consciousnesses” (p.284). Likewise, Freire (1992/1970) remarks on the
symmetric participation and mutual trust and respect for each participant’s point of view and experiential
knowledge: “Founding itself upon love, humility and faith, dialogue becomes a horizontal relationship
of which mutual trust between dialoguers is the logical consequence” (p.79-80). In contrast, if there
does not exist such trust and equal participation as Freire defines dialogue, or as Bakhtin characterizes
the participation of autonomous and equally signifying consciousnesses, we have then a monologue in

Proceedings XI International Bakhtin Conference 731


Bakhtin’s terms, or an anti-dialogue in Freire’s terms. Thus, Bakhtin’s and Freire’s conceptions of dia-
logue are very similar, including the notion of relations of power as one of its defining characteristics.
They highlight equal and meaningful participation in dialogue as human and cultural beings, as opposed
to hierarchical, untrusting, meaningless participation which denies their humanization. For both, parti-
cipation in true dialogue is what makes human beings human, and they contrast it with anti-dialogue /
monologue which dehumanizes the other. Freire argues, “The dialogical theory of action does not involve
a Subject, who dominates by virtue of conquest, and a dominated Object. Instead, there are Subjects
who meet together to name the world in order to transform it” (p.167). For Bakhtin (1984), monologue
in its deepest sense is “A denial of the equal rights of consciousnesses vis-a-vis truth” (p. 285).
Self and society
Bakhtin (1984) elaborates extensively on the development of the individual consciousness through
dialogue and on the dynamic interdependence with the ‘other’. In this regard he notes:
I am conscious of myself and become myself only while revealing myself for another throu-
gh another, and with the help of another. The most important acts constituting self-cons-
ciousness are determined by a relationship toward another consciousness (toward a thou).
Separation, dissociation, and enclosure within the self as the main reason for the loss of
one’s self (p.287).

Becoming conscious of oneself is not a solitary process. It happens in the threshold between the I
and the thou, “on the boundary between one’s own and someone else’s consciousness” (Bakhtin, 1984,
p.287). The whole Bakhtin circle (Bakhtin, Medvedev and Volosinov) opposes individualism and individu-
alist psychology as promoted by capitalism and the Western Cartesian philosophy. Specifically, Volosinov
(1973) opposes the individualist subjectivity proclaimed by Freud:
There is no such thing as abstract biological personality, this biological individual that has
become the alpha and the omega of the contemporary ideology. There is no human being
outside society, and therefore outside objective socioeconomic conditions (p.23). The con-
tent of psyche life is thoroughly ideological . . . and therefore a sociological phenomenon
(p.37).

Bakhtin (Bajtín,1982), distinguishes between the person and the psychological individual: “Persona-
lization is in no sense subjective. The boundary there is not the I, but this I in interrelation with other
persons, that is, I and the other” (p.390). For Bakhtin (1981) the psychological individual is self-con-
tained: “a hermetic and self-sufficient whole, one whose elements constitute a closed system presuming
nothing beyond themselves, no other utterances” (p.273). In brief, for the Bakhtin circle, psyche, cons-
ciousness, and self are dialogical.
Sampson (1993), inspired by Bakhtin’s ideas on dialogue, examines closely the self-contained indi-
vidual that has been constructed by most of the psychological schools. He considers that it is time for
“celebrating the other”, it is time for “the dialogic turn”:
What is basic about human nature is its dialogic quality. This involves processes occurring
between people rather than events that occur inside a single individual. Therefore, whatever
is essential about human nature is to be found between people in a social dialogue, talk,
conversation, debate, and so forth, and not in the inner recesses of an individual abstracted
from these ongoing transactions (p.21).

The relational and social nature of human beings contrasts dramatically with the dominant indivi-
dualist view of the self as ‘self-contained’, with clear-cut boundaries between the self and the other, as
described by Sampson (1993).
We need to think of the self as a kind of bounded container, separate from other similar-
ly bounded containers and in possession or ownership of its own capacities and abilities.
In order to ensure this container’s integrity, we need to think of whatever lies outside its
boundaries as potentially threatening and dangerous, and whatever lies inside as sufficiently
worthy to protect. These beliefs establish a possessive individualist view of the person and
the assumption of a negative relation between self and other, both of which understandings
permeate much of Western civilization (p.31).

The relation between the self and the other in this view is a posteriori to their own separately cons-
tituted entities. Hence, this relation is accidental and often unnecessary. Sampson refers to this view
of self as “monological” and “egocentric”. The other is defined on the basis of the attributes of the self
which are identified looking within the self, rather than between the self and the other. This self-contained
individual is what traditionally is assumed in understanding society and human-social relationships. The
self as self-contained and self-sufficient is a myth created and sustained both by the academic world (es-
pecially in psychology) and the everyday world. In this society, we highly value self-esteem on the basis
of thinking of ourselves as independent and self-sufficient individuals. Sampson (1993) refers to this as
“autonomy obsession”. In addition, this feeling of self-reliance and pride has been systematically used
(actually exploited) to impose on the individual the whole responsibility for his/her actions and achieve-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 732


ments, without even looking at the social conditions that enforce or restrict the individual’s opportunities
and actions. Nowadays, the debates and struggles in educational reform include the notion of the self-
contained individual as a basic premise. Along the same line of thinking, the ‘deficit model’ has become
commonly used to “blame the victim” for his/her lack of ability and poor performance in schools.
The monological individualistic ways in which we understand, talk, and think of one’s self is so deeply
ingrained in our thought and language that it is very difficult to think of the self as becoming in the bor-
der between I and thou. Shotter and Billig (1998) remind us of the assumptions behind the generalized
‘codes’ with which we talk about our ‘selves’. All of them are very individualistic in nature. For example,
a recognition of being incomplete is considered defective or abnormal. From a monological perspective,
the self should be self-sufficient in order to be completely free. This is a common-sense understanding of
individual freedom. A dialogical view of the self, in contrast, implies that we are existentially and socially
interdependent, and that every mechanism that undermines dialogue also undermines the freedom of
those who are marginalized from such a dialogue.
De Peuter (1998), inspired by Bakhtin’s ideas, develops further the notion of identity as “narrative
identity”, characterized as storied, with beginnings, middles and ends. A dialogic identity opposes the
individualist, self-contained Cartesian ideals of identity (integration, cohesiveness and authenticity) by
including contradictions and ongoing mutability as basic characteristics of identity. Thus, de Peuter de-
fends the viability of synthesis / dispersion, unity / fragmentation, and centripetal / centrifugal dimen-
sions of one’s identity. An identity has multiple facets and multiple phases depending on the context
and the historical moment. Dolby’s (2000) ethnographic study accounts for that constant “reformation”
of difference and self.
To summarize this section on ‘dialogic self’, the first specific thesis has been documented. There can
be an alternative notion of self as relational, defined and developed by “being- in-relation” with the other
through dialogue, constantly becoming, incomplete, therefore always with dreams and hopes and in se-
arch of his/her full realization as a human being. This dialogic self opposes the solipsist, self-contained,
self-sufficient, individualist self promoted by positivism. The contributions of Bakhtin and Freire on this
matter are substantive and provide the platform for further developments, as exposed above.
Dialogical knowing
Dialogical knowing is social, holistic, situated, intersubjective, participative and dialectical, as opposed
to the positivist idea of knowledge as analytical, generic, and ‘objective’ based on linear cause-effect rela-
tionships between simple variables. These are the core epistemological ideas addressed in this section.
A dialogical philosophy bridges the gap between ontology and epistemology; in other words, betwe-
en being and knowing. For Freire “being [is] an act of knowing” (Shor and Freire, 1987, p.13). Freire
distinguishes two moments in the act of knowing or the gnoseological cycle: “the coming to know the
produced knowledge itself, and the creation of new knowledge” (Freire et al, 1994, p.90). Both moments
are inherently dialogical: “Dialogue seals the act of knowing, which is never individual, even though it
has its individual dimension” (Shor and Freire, 1987, p.3). Hence, knowing is social and embodied:
“The process of knowing which involves the whole conscious self, feelings, emotions, memory, affects,
an epistemologically curious mind focused on the object, equally involves other thinking subjects, that
is, others also capable of knowing and curious” (Freire, 1998a, 1992/1970). If the act of knowing is
reduced to transference of existing knowledge, important qualities of the process of knowing or learning
such as ”action, critical reflection, curiosity, demanding inquiry, uneasiness, uncertainty will be missed”
(Shor & Freire, 1987, p.7-8). The knowing process will be passive and limiting rather than the motor of
development for humans.
Bakhtin situates the discussion of knowledge in its fundamental relationship with language. For Bakhtin
(1986), the text is the primary given and the common subject of study of all the human sciences: “The
human sciences, the spirit sciences, the philological sciences (the word as constitutive of all of them, and
at the same time the common subject of study)” (p. 161). Actually, Bakhtin redefines the object of hu-
man sciences in these terms: “The object of human sciences is the expressive and speaking being. This
never coincides with itself and therefore is infinite in meaning and importance” (Bajtín, 1982, p.394).
Bakhtin also discusses the nature of knowing within the context of disciplined knowledge. He uses
understanding for human sciences, and reserves the term knowledge for natural sciences. This sepa-
ration is consistent with his distinction between monological and dialogical forms of knowledge. The
monologism of natural science is characterized as the failure of the object to become interlocutor in the
process of knowing.
The exact sciences are a monological form of knowledge: the intellect contemplates a thing
and speaks of it. Here, there is only one subject, the subject that knows (contemplates) and
speaks (utters). In front of him [her] there is only one voiceless thing. But the subject as
such cannot be perceived or studied as if it were a thing, since it cannot remain a subject if
it is voiceless; therefore, the way to know this subject can only be dialogical (Bakhtin, 1982,
p.383, my translation from Spanish).

In contrast, the subject of study in human sciences is a participating subject with voice in the dialogue.
When comparing the object of study of natural sciences and that of human sciences, participation of the

Proceedings XI International Bakhtin Conference 733


known subject becomes a crucial distinction. The sketchy notes below point to that distinction:
The participation of a person knowing a voiceless thing, and the participation of one who is
knowing another subject, that is, the dialogical participation of the knower. The participation
of the known subject and degrees of participation. . . Dialogical knowledge as event. The
encounter. The act of valuing as a necessary moment of dialogical knowing. (Bajtín, 1982,
p.383).

Despite his critique of Dilthey’s monologism, Bakhtin’s division between natural and human sciences
or sciences of the “spirit” obviously retains Dilthey’s tradition. Todorov (1984) follows closely Bakhtin’s
struggle and the evolution of his thinking concerning this problem of knowledge in human sciences and
natural sciences. Bakhtin initially opposed sign to thing, and ended opposing persona to thing.
In the way both Bakhtin and Freire characterize being and knowing as dialogical, social, open, unfi-
nalized, always in process of becoming, they set the premises for tearing down the boundaries between
the humanities and the social sciences, that is, between the individual substantial being and the social
being. From a dialogical perspective, it makes no sense to study human phenomena outside their social
and cultural milieu. A full understanding and adoption of the dialogical perspective will require a radical
reform in academic organization and specialization. Actually, rather than specialization, and sub-specia-
lization, the focus now becomes the commonalities along with cross-disciplinary studies and practices.
As we see, this is a whole new “order of things”, to use Michel Foucault’s expression (1973), and implies
new relationships among disciplines and blurred disciplinary boundaries.
Thus, the type of knowing in human sciences is based on the phenomenological concept of unders-
tanding (verstehen). Bakhtin’s (1984) notion of understanding is dialogical, active and holistic:
“The author is profoundly active, but his activity is of a special dialogic sort. It is one thing to
be active in relation to a dead thing, to voiceless material that can be molded and formed as
one wishes, and another thing to be active in relation to someone else’s living autonomous
consciousness. This is a questioning, provoking, answering, agreeing, objecting activity; that
is it is dialogic activity no less active than the activity that finalizes, materializes, explains,
and kills causally, that drown out the other’s voice with non-semantic arguments” (Bakhtin,
1984, p.285).

Bakhtin distinguishes four intermingled acts in the unique process of understanding, which gives a
good sense of its depth and complexity:
1) The psychological perception of the physical sign (the word, color, spatial form). 2) Its
recognition (either known or unknown). The understanding of its reiterative signification in
language. 3) The understanding of signification in the given context (immediate as well as
more remote). 4) Active and dialogical understanding (debate, agreement). Inclusion in a
dialogical context. The moment of evaluation in understanding and the degree of its depth
and its universality (p. 381).

Difference in the object of study between the natural sciences and the human sciences implies
a difference of method as well. Understanding a text is a way to complete it and to participate in the
dialogue to which this text and its author belong (Bajtín,1982). The text (written or oral) which is the
product of this understanding is on ongoing development in the “chain of speech communication” (Bakhtin,
1986, p. 111). In contrast, the positivist methods of natural sciences ‘thingificate’ human beings and
make knowledge static, ahistorical and irrelevant:
“Realism reifies man [and woman], but this is not an approach to him [her]. Naturalism, with
its tendency toward a causal explanation of man’s [and woman’] acts and thoughts (his/her
semantic position in the world) reifies man [woman] even more. The inductive approach,
which is assumed to be inherent in realism, is, in essence, a reifying causal explanation of
man [and woman]. The voices (in the sense of reified social styles) are in this way simply
transformed into signs of things (or symptoms of processes); it is no longer possible to
respond to them; one can no longer polemicize with them, and dialogic relations with such
voices fade away (Bakhtin, 1986, p.112).

Bakhtin goes beyond differences in objects and methods between natural and human sciences to
clarify their basic criteria: accuracy for natural sciences and depth for the human sciences. “Accuracy
presupposes the coincidence of the thing with itself” (Bakhtin, 1974, cited by Todorov, 1984, p.23). “The
limit of accuracy in the natural sciences is identification (a=a)” (Bakhtin, 1975, cited by Todorov, 1984,
p.23). For the human sciences what is essential is depth rather than accuracy. Actually, accuracy in
human research has the opposite meaning from that in natural sciences; the point is to establish a true
dialogical relation, which implies that there will not be a complete identification with the subject, that
is, the object of study:
There the knowing subject does not question itself nor a third party standing in front of
the dead thing; it puts the question to the knowable itself. The criterion is not the accu-
racy of knowledge but the depth of the insight. The object of the human sciences is [the]

Proceedings XI International Bakhtin Conference 734


expressive and speaking being. Such a being never coincides with itself, that is why it is
inexhaustible in its meaning and signification (Bakhtin, 1975:409-410, cited by Todorov,
1984, p.23-24, brackets added). In the human sciences, accuracy consists in overcoming
the other’s strangeness, without assimilating it wholly to oneself (Bakhtin, 1974, cited by
Todorov, 1984, p.24).

Dialogic knowing is dialectical


Bakhtin finds problems in the concept of dialectics in the Hegelian sense because of the assumption
of “unified, dialectically evolving spirit” (1984, p.30), which cannot be other than monological discourse.
He contrasts the notion of dialectics with the pluralist character of the novel of Dostoevsky in which:
“none of the contradictions and bifurcations ever became dialectical, they were never set in
motion along a temporal path or in an evolving sequence: they were rather, spread out in
one plane, as standing alongside or opposite one another, as consonant but not merging or
as hopelessly contradictory as an eternal harmony of unmerged voices or as their unceasing
and irreconcilable quarrel” (Bakhtin, 1984, p.30).

In the analysis above, Bakhtin contrasts the monological and abstract character of dialectics as
conceived by Hegel (thesis, antithesis and synthesis sequence) with the multiple, even contradictory
voices created by Dostoevsky, which never merged in a synthesis. This is why Gardiner & Bell (1998)
indicate that Bakhtin uses a dialectics without synthesis. This is not to say that Bakhtin’s work has no
room for dialectics. As Dop (2000) indicates, dialectics for Bakhtin is an “abstract form of dialogue” (p.16).
Sketching the relationship between dialogue and dialectics, Bakhtin writes: “Dialectics is an abstract
product of dialogue” (Bakhtin, 1984, p. 293). And, “dialectics was born from dialogue, returning to dia-
logue at a higher level” [Bajtin, 1982, p.384). Dialectics becomes an abstraction when we remove the
voices from the dialogue and convert it into a continuous text. It thus becomes similar to what Hegel did
with dialectics: the contextual meaning disappears and with it the basis of meaning; it becomes totally
abstract. Reification will conduce to the disappearance of the infinite creation of meaning; concepts are
transformed into things (monological dialectics) (Bakhtin, 1986, p.162). Actually, Bakhtin tried to get
away from the Hegelian notion of dialectics, but did not outline completely how this dialectics returns to
dialogue, or how it is different from dialogue.
Meanwhile, Freire (1992/1970) seems to refer to dialectics in terms of reciprocal, interdependent
and constituting relationships; hence the focus is on change. He refers, for example to the subjectivity-
objectivity dialectics, knowledge of reality and transformation of it (Freire, 1994), and between teaching
and learning (Freire, 1996). However, Freire does not clarify the actual meaning of dialectics when he
refers to it, nor does he elaborate on the specific distinction from a dialogical relationship. Is he assuming
that dialectics has a universal meaning which is compatible with dialogue?
At any rate, the notion of dialectics that is more compatible with dialogue is that used by Freire as
reciprocal, dynamic, and constitutive interdependence between the phenomena in relationship. The
knowledge produced as a result of a dialectical relationship between phenomena contrasts with the com-
mon idea of knowledge as a linear, decontextualized, and unchanging cause- effect relationship between
isolated variables. The abstract, monological notion of the Hegelian dialectics, as Bakhtin contends, has
no place in dialogism.
While Bakhtin conceptualized the differences between object, purpose and method of the human
sciences and the natural sciences, Freire developed a research approach for working with human beings.
At first he called it thematic research in his book Pedagogy of the Oppressed (1992/1970); then, he and
his collaborators began to use its fundamental and distinctive characteristic, participatory research, and
so referred to it in Pedagogy of the City (1993). A further development in Latin America of this partici-
patory approach to research has become known as Participatory Action Research (PAR) (Demo, 1985;
Fals-Borda, 1987; Zamosc & Fals-Borda, 1987; Cardenas, 1987; de Souza, 1990; Vio-Grossi, 1990; de
Shutter, 1990; Torres, 1995, among others). This new research paradigm has been developed and used
extensively as an alternative to the conventional positivist paradigm of research in most of the countries
of Latin America and many other so-called ‘Third World’ countries. Although PAR has a diversity of ap-
proaches and political commitments, most of them share some basic ideas: the critical understanding
of reality, involving participants as co-investigators of their own reality, and their communal action to
transform that reality for the improvement of the life conditions of the participants and the society at
large. These principles are in essence those of the critical and liberating pedagogy developed by Freire,
as indicated below.
Dialogic research
Dialogic research, as an integral part of dialogic knowing, is participatory, language mediated, and
transformative, hence educational. In Pedagogy of the Oppressed Freire (1992/1970) describes in de-
tail several examples of what nowadays is called “participatory action research”. For example, Freire
talks about “thematic research” (p.100) which includes: awareness of one’s own reality and awareness
of one’s self. Thematic research is actually the beginning of curriculum development and / or “cultural
action” for liberation. At this point three separate areas of human activity converge: pedagogy (in the
broad sense), research, and cultural action. This represents an opportunity for “submersion” in our

Proceedings XI International Bakhtin Conference 735


reality which may lead to consciousness raising, referred by Freire as conscientization, and intervention
in that reality. For Freire, the connection between research, education and cultural action is legitimate
since they are only phases of the same process.
Education and participatory research: For Freire (1993), education and research are not separate
activities, inasmuch as students are active researchers of their own reality and educational process. The
starting point for a popular education program is a...
participatory research project that will give us a report concerning the wishes, dreams, and
aspirations of the populations in the area [place] in which the research will take place. One
of the advantages of this type of work rests on the fact that the very methodology of rese-
arch makes it pedagogical and consciousness raising (Freire, 1993, p.27).

The integration of education and research implies also an integration between theory and prac-
tice or between schooling and working. “One doesn’t study in order to work, nor work in order to study,
but one studies while working” (Freire, 1977, p.32). This dialogical view of education includes also the
question of political literacy. Freire (1996) states the inseparability between technical knowledge and
political knowledge:
In the education and training of a plumber, I cannot separate, except for didactic reasons, the
technical knowledge one needs to be a good plumber and the political knowledge one needs
to be a part of the polis, the political knowledge that raises issues of power and clarifies the
contradictory relationships among society classes in the city (Freire, 1996, p.115).

Dialogic and liberating education involves also the investigation of the generative themes which
will constitute the content of the curriculum and provide the occasion for participants (students) to stu-
dy critically their own reality: “To investigate generative themes is to investigate man’s [and woman’s]
thinking about reality and man’s [and woman’s] action upon reality, which is his [her] praxis” (Freire,
1992/1970, p.97, brackets added). The most revolutionary and distinctive characteristic of his research
perspective is the systematic involvement of the participants (so called subjects, actually objects of study
in conventional research) as co-investigators of their own reality:
... the methodology proposed requires that the investigators and the people (who would
normally be considered objects of that investigation) should act as co-investigators. The
more active an attitude men [and women] take in regard to the exploration of the thematics,
the more they deepen their critical awareness of reality and, in spelling out those thematics,
take possession of that reality (p.97).

Participation in research means for Freire more than giving information to the researcher or
participating in the discussion s/he is leading. From his dialogical perspective on research, participation
means digging into the whys of their own situation: “the critical effort through which men and women
take themselves in hand and become agents of curiosity, become investigators, become subjects in an
ongoing process for the quest of the ‘why’ of things and facts... ‘a reading of the word and reading of
the world’” (Freire, 1994, p.105). Participation is active engagement of people in the production of new
knowledge and not only in the consumption of it (Horton & Freire, 1990).
Like Bakhtin, Freire proposes specific goals and criteria upon which this dialogic or participatory
research with human beings must be based, in contrast to the goals and criteria of conventional research.
The imperative objectivity driving conventional research with human ‘subjects’ (read it ‘objects’) makes
this type of researcher treat human beings as ‘objects’, as ‘voiceless things’ in Bakhtin’s terms. On the
contrary, participatory research allows subjects to participate as dialogical human beings and agents of
culture:
The real danger of the investigation is not that the supposed objects of the investigation,
discovering themselves to be co-investigators, might ‘adulterate’ the analytical results. On
the contrary, the danger lies in the risk of shifting the focus of the investigation from the
meaningful themes to the people themselves, thereby treating the people as objects of the
investigation. Since this investigation is to serve as a basis for developing an educational
program in which teacher-student and students-teachers combine their cognitions of the
same object, the investigation itself must likewise be based on reciprocity of action (Freire,
1992/1970, p.99).

Freire means by participation the active engagement of people such as students, workers, and
women in the investigation and transformation of their own reality. Meanwhile, Bakhtin’s (1982) te-
legraphic notes “Toward a methodology of human sciences” distinguishes between the participation of
the knowing subject and that of the known subject; in the process of research both enter into a dialogic
relationship, both become knowing subjects, neither is object or thing to the other’s consciousness. “The
participation of the subject who is knowing a voiceless thing, and the participation of the subject who is
knowing another subject, that is the dialogic participation of the knowing subject. Degrees of dialogic
participation of the known subject” (Bajtín, 1982, p.383).
Both Bakhtin and Freire, based on a dialogic philosophy, have presented clear ideas of what dialogic

Proceedings XI International Bakhtin Conference 736


research in social and human sciences can be. Again, they both share the philosophical underpinnings of
their research methodologies. It is understood that when they talk of methodology it refers not simply
to a method or set of methods and techniques, but rather to the epistemological bases and implications,
including objects, methods and techniques appropriate to the dialogic nature of human beings and their
knowing processes.
Whereas Bakhtin developed more the conceptualization of the object and method of the human
sciences, Freire worked relatively more on the actual investigative process of dialogic research and its
integration with pedagogy and cultural action. This is not to say that Bakhtin developed the theory and
Freire the praxis — conceptualization and praxis are present in both authors — however, one worked
relatively more on one aspect than the other. This is why their ideas about dialogical research are com-
plementary.
Inspired by Bakhtin’s dialogism, Coulter (1999) maintains that dialogism offers no new research
methodology, but does offer a framework of ideas and criteria to construct true knowledge among par-
ticipants in a dialogue, even in the case where speakers have opposed views and values. Coulter does
good work in reframing actual educational research projects using Bakhtin’s ideas such as polyphony, the
role of the broad sociopolitical and cultural context in the way knowledge is produced and legitimated,
and the inclusion of the voices of the often marginalized or silenced as they participate in dialogue in
the educational context. However, he underestimates the magnitude of the differences between dialogic
research, as he characterizes it, and conventional research, even with the participant observation ap-
proach. Actually, Coulter ignores Freire’s development of Participatory Action Research where genuinely
participative (democratic and dialogical) character and transformative action, make it a truly new paradigm
with distinctive philosophical underpinnings, methodology and techniques. Coulter is partly true when
he says that dialogic research is not a new methodology. Actually, dialogic research is not only a new
methodology but a new paradigm of research with totally new relations between the ‘researcher’ and
‘researchee’ (the latter become co-researchers rather than objects of study). The knowledge obtained
benefits first of all the participants in understanding critically their reality and taking actions to improve
it.
None of the conventional paradigms of research, even the qualitative ethnographic approach,
allows full involvement of the participants in setting and implementing the research agenda; and even
less do they provide them opportunity to benefit directly and profoundly from participating in the study
as interlocutors and actors in the dialogic knowing. Dialogical participatory research represents the ap-
proach most opposed to the principles of the quantitative / positivist paradigm of research: objectivity,
reliability and generalizability. From the dialogic perspective, the positivist approach to knowing is a way
of reifying or objectifying (“thingifying” in Bakhtin’s terms) subjects in a given study.
Language and dialogism
From a dialogical perspective, language is not merely a formal sign system but a constitutive aspect
of our being human, our thinking, our social relations and practices, as well as the primary data carrier
across human sciences and disciplines. Bakhtin brings up the central role of language in the study of
human sciences by developing a philosophy of language. Actually, according to Faraco (2003), an im-
portant legacy of the Bakhtin Circle is the turn to linguistics from a social perspective. Bakhtin’s essay
on The Problem of the Text (1986) outlines that role. The main thesis he defends is that language is a
constitutive of being and knowing, hence dialogical and trans-disciplinary:
The specific nature of thought in the human sciences is directed toward other thoughts, ideas,
meaning, and so forth, which are realized and made available to the researcher only in the
form of a text (p.104). The text is the primary given (reality) and the point of departure
for any discipline in the human sciences. . . The real object is the social man [woman], who
speaks and expresses himself [herself] through other means (p.113).

Thus, according to Bakhtin (1986), the study of the language in use (text or discourse) should
go beyond linguistics to the other disciplines that have to do with the human phenomena (such as an-
thropology, history, literature, psychology, sociology, philosophy, and philology) which he refers to as
‘metalinguistics’. Todorov (1984) calls this crossdisciplinary study of language “translinguistics”. Bakhtin
(1986) even goes on to affirm that “Language and the word are almost everything in human life” (p.118).
“When man [woman] is studied outside text and independent of it, the science is no longer one of the
human sciences [but) human anatomy, physiology, and so forth.” (Bakhtin, 1986), p.107).
In the same vein, Freire (1992/1970) elaborates on the word (meaning language in use) as constitutive
of dialogue with two dimensions, reflection and action, which are in a dialectical relationship:
But the word is more than just an instrument which makes dialogue possible; accordingly,
we must seek its constitutive elements. Within the word we find two dimensions, reflection
and action, in such radical intersection that if one is sacrificed—even in part—the other
immediately suffers.... When a word is deprived of its dimension of action, reflection auto-
matically suffers as well; and the word is changed into idle chatter, into verbalism, into an
alienated and alienating “blah.”... On the other hand, if action is emphasized exclusively,
to the detriment of reflection, the word is converted into activism. The latter—action for

Proceedings XI International Bakhtin Conference 737


action’s sake—negates the true praxis and makes dialogue impossible (Freire, 1992/1970,
p.75-76).

Language, as characterized by Bakhtin and Freire, is far from the traditional idea of language as a
closed system of signs, forms and rules. They understand it as a living phenomenon embedded in hu-
man activity. Bakhtin (1986) carries out a deep examination of the embeddedness of language in any
human activity. For him, the text as utterance is part of the historical chain of “speech communication”
concerning a given subject matter. The text “always develops on the boundary between two consciou-
snesses, two subjects” (p.106); hence, it is constructed in dialogue. The text, as any other utterance,
has repeatable elements, which constitutes the ‘language system’; but it also has its ‘individual, unique
and unrepeatable’ aspect in accordance with the social, political, historical function and context of the
situation where it develops.
Language, as language in use (discourse), becomes for Bakhtin (Bajtín, 1982) a differentiating cha-
racteristic between the exact and natural sciences and the human sciences. Objects of inquiry in natural
sciences do not reveal themselves in discourse:
“Mathematics and natural sciences do not acknowledge discourse as an object of inquiry . .
. The entire methodological apparatus of the mathematical and natural sciences is directed
toward mastery over reified objects that do not reveal themselves in discourse and com-
municate nothing of themselves. In their practice, knowledge is not bound to the reception
and interpretation of discourse or signs coming from the very object to be known (Cited by
Todorov, 1984, p.15).

In contrast, in the human sciences discourse is the primary datum to work with:
In the human sciences, as distinct from the natural sciences, there arise the specific pro-
blems of establishing, transmitting, and interpreting the discourses of others (for example,
the problem of sources in the methodology of the historical disciplines). And of course in
the philological disciplines, the speaker and his or her discourse are the fundamental object
of inquiry” (Bakhtin,1981, cited by Todorov, 1984, p.15).

Given its dialogic character, discourse cannot be reified as a static thing in order to be studied; even
positivist approaches need to deal with the dialogical character of discourse to understand its ideological
meaning:
even the most arid earthbound positivism cannot treat discourse neutrally as if it were a
thing, but is forced to engage in talk not only about discourse but with discourse in order to
penetrate its ideological meaning, which is attainable only by a form of dialogical understan-
ding that includes evaluation and response (Bakhtin, 1972, cited by Todorov, 1984, p.16).

The dialogical character of language is present in each of its dimensions. Concerning mea-
ning, its production and reception only happen in dialogue . “The signification of discourse and the
understanding of this signification by the other (or by others)... exceed the boundaries of the isola-
ted physiological organisms…” (Bakhtin, 1976, cited by Todorov 1984, p.30). Along the same line,
when Bakhtin (1981) talks about the connection of language with the individual consciousness, he
proclaims that, “The word in language is half someone else’s.” (p.293). That understanding leads
him to question authorship, given the fact that any utterance is a social construction among inter-
locutors in a face-to-face modality or separated in time and space: “No utterance in general can be
attributed to the speaker exclusively, it is the product of the interaction of the interlocutors, and, bro-
adly speaking, the product of the whole complex social situation in which it has occurred” (Bakhtin,
1976, cited by Todorov, 1984, p.30). Each utterance is a response to previous utterances, and the
instigator of other utterances that somehow respond to it. Hence the interlextuality of discourses.
As indicated above, Freire developed an approach to research based on participation and action,
which is centered in dialogue among participants. Thus, if dialogue is constituted in discourse, language
becomes the focus of research in the form of collective reflection in dialectical relationship with trans-
formative action. For both Bakhtin and Freire, language is central to their development of the dialogical
philosophy, although with different emphases.
Freire worked extensively on the praxis of language in terms of literacy, which he defines in a
very broad sense, beyond the simple ‘learning to read and write”. In their book Literacy: Reading the
word and the world, Freire and Macedo (1987) expose the sociopolitical, cultural, and philosophical fra-
meworks of literacy as a liberating process. The phrase “reading the word and the world” has become
a succinct yet self-explanatory notion of true literacy, and one of the two major purposes of a liberating
education. The other purpose is its transformative character: education for social change.
Freire started his career as a teacher of Portuguese grammar and then worked for 15 years in a pro-
gram of literacy for adults in Recife (Brazil). Just when he had started a national literacy campaign, the
military coup occurred and he was exiled to Chile. He instituted literacy campaigns in Latin America and
in Africa (e.g. Guinea Bissau), but the impact of his work goes beyond popular education and literacy.
Obviously, Freire developed the area of literacy to a great extent and inspired many other edu-
cators in this area. Letters to Christine (1996) is a profound reflection on what is liberating literacy and

Proceedings XI International Bakhtin Conference 738


summarizes its fundamental principles: 1) Literacy education is an act of knowing and not a mechanistic
learning; 2) Literacy education should challenge students to be active learners and subjects; 3) Literacy
comes from research of the learners’ vocabulary and relevant themes; 4) Literacy is based on dialogue;
5) It is necessary to codify generative words; 6) We must not dichotomize reading and writing; 7) Li-
teracy must begin taking into account the difficulties of adult learners while accepting their experiential
learning as a starting base.
In Shor and Freire (1987), the authors discuss the embeddedness of language and social class,
and how easy it is to alienate people by using esoteric language. As educators, they suggest to “diminish
the distance between the academic context and the reality from which the students come” (p.148). And
we need to be aware of the language of power that is imposed over dialects and subordinated langua-
ges:
“the question of power is there, developing our idioms and the problems of language even
though we don’t always perceive this power... the dominant class has the power to establish
its language as the standard” (p.148-149).

We must use simple, but not simplistic language when working with people who have low educational
levels, avoiding rhetorical jargon.
Shor and Freire (1987) consider that educators cannot be honest when they teach their students only
to read and write the word without a reading of the world. Nor can they be serious when they dichotomize
literacy in schools from the literacy that takes place in the world outside the school. They seem to be
talking of the reality we are living today, when literacy in schools goes precisely in the opposite direction
from what is needed in our world. There are so many vested interests that prevent students from deve-
loping a critical consciousness and understanding of their realities, to “read the word and the world”.
Dialogical Pedagogy as Liberating Praxis
Shor and Freire (1987) consider that educators cannot be honest when they teach their students only
to read and write the word without a reading of the world. Nor can they be serious when they dichotomize
literacy in schools from the literacy that takes place in the world outside the school. They seem to be
talking of the reality we are living today, when literacy in schools goes precisely in the opposite direction
from what is needed in our world. There are so many vested interests that prevent students from deve-
loping a critical consciousness and understanding of their realities, to “read the word and the world”.
A dialogical pedagogy involves basically two interdependent moments: critical understanding,
and transformative action. Thus, dialogic pedagogy is democratic, critical and transformative. For both
Bakhtin and Freire, true human life is dialogical; dialogue is necessary in the struggle for humanization
and liberation from oppressive monological conditions. They also agree that these latter conditions are
socially originated, and then become internalized by the oppressed as their own individual characte-
ristics. However, Freire is much more explicit and systematic than Bakhtin in developing a liberating
praxis, specifically in the area of education. His approach, called ‘Pedagogy of Liberation’, is well known
by progressive and radical educators. It is composed of basically two interdependent moments for the
participants in dialogue on a given situation: conscientization through critical understanding of their
realities, and liberation through transformative action.
Conscientization through critical understanding of one’s own reality
Conscientization is a fundamental concept in Freire’s philosophy of education as stated in Peda-
gogy of the Oppressed. It refers to the process of transformation from intransitive to transitive cons-
ciousness:
Intransitive consciousness is the limitation in his [her] sphere of apprehension... Critical
transitivity, on the other hand, will be achieved through dialogic and active education, pre-
cipitated into social and political responsibility, and characterized, among other things, by
the depth in the interpretation of the problems (Freire, 1968, my translation from Spanish,
p. 58-59).

The notion of conscientization was one of the first landmarks of Freire’s work in Latin America.
In his book Pedagogy of Hope (1994) he explains why he stopped using this notion of conscientization;
it was co-opted and reduced to a mechanical process of skill development. Besides, the notion of naive
or false consciousness implies an underlying idea of true reality vs. false reality, which has been reva-
lued from a postmodern view of critical pedagogy. Nonetheless, the notion is useful for integrating the
ideas about becoming aware of one’s own reality and the why of it by understanding its connections with
broader sociopolitical structures such as alienating myths.
Freire argues that the creation of myths is part of the strategy to keep the oppressed alienated
and subjugated, and ultimately to maintain the status quo:
For example, the myth that the oppressive order is a ‘free society’; the myth that all men
[and women] are free to work where they wish;... the myth that this order respects human
rights and is therefore worthy of esteem; the myth that anyone who is industrious can beco-
me an entrepreneur;... the myth of the universal right of education, when of all the Brazilian

Proceedings XI International Bakhtin Conference 739


children that enter primary schools only a tiny fraction ever reach the university;... the myth
of private property as fundamental to personal human development (so long as oppressors
are the only true human beings); the myth of the industriousness of the oppressors, as well
as laziness and dishonesty of the oppressed (Freire, 1992/1970, p.135-136).

It is amazing how these examples of myths are so prevalent today not only in Brazilian society,
and in all other Latin American or ‘Third World’ countries, but also in the United States. Despite the fact
that this book was written in the late 60s, it seems as though it were describing the myths of society
today. These myths are internalized by the oppressed people, unaware but alienated by them, until they
feel fearful and powerless: “The oppressed who have adapted to the structure of domination in which
they are immersed, and have become resigned to it, are inhibited from waging the struggle for freedom
so long as they feel incapable of running the risks it requires” (Freire, 1992/1970, p.32).
Bakhtin, on the other hand, talks about materialization of man [and woman], a term somewhat
equivalent to what Freire refers to as oppression. This violence is political, economic and ideological. It
comes from outside but also it is internalized by the individual:
The materialization of man [and women] under conditions of class society, carried to its
extreme under capitalism. This materialization is accomplished (realized) by external for-
ces acting on the personality from without and from within; this is violence in all possible
forms of its realization (economic, political, ideological), and these forces can be combated
only from the outside and with equally externalized forces (justified revolutionary violence)
(Bakhtin, 1984, p.298).

Those materializing and oppressive forces are monological, therefore they deny the rights of the
oppressed to participate in dialogue with other consciousnesses.
Whereas Bakhtin puts in Dostoevsky’s mouth his own rejection of the oppressive monological
consciousness, denying the other equal rights to dialogue, Freire is direct and reiterative in expressing his
ideology and critique of the oppressive society. Certainly, concerning Bakhtin, I have found no explicit,
direct critique of the government and society in which he lived. Is this a case of (external or internal)
censorship? Actually this question is difficult to answer, having no access to all his writings.
Liberation through transformative action
Fighting for liberation from dominant monological social conditions is a human right in its own
for both Bakhtin and Freire. Once again Freire, taking the side of the oppressed, is much more explicit
and direct in his writings than Bakhtin. Freire conceives of liberation as a social and therefore dialogical
process:
The liberation of the oppressed is a liberation of men [and women], not things. Accordingly, while no
one liberates himself [herself] by his [her] efforts alone, neither is he [she] liberated by others. Liberation,
a human phenomenon, cannot be achieved by semihumans. Any attempt to treat men [and women]
as semihumans only dehumanizes them. When men [and women] are already dehumanized due to the
oppression they suffer, the process of their liberation must not employ the methods of dehumanization.
The correct method lies in dialogue. The conviction of the oppressed that they must fight for their libe-
ration is not a gift bestowed by the revolutionary leadership, but the result of their own conscientization
(Freire, 1992/1970, p.53-54, brackets added).
In Freire’s terms, the struggle for liberation of the oppressed people is educational, cultural and poli-
tical. Liberating methods must unveil the dominant ideology; liberating education is not only a question
of methods and techniques but a different conception of knowledge, society, and life:
The liberating educator has to be very aware that transformation is not just a question of
methods and techniques... The question is a different relationship to knowledge and to so-
ciety... For me, one characteristic of a serious position in liberating education is to stimulate
criticism that goes beyond the walls of the school—that is, in the last analysis, by criticizing
traditional schools, what we have to criticize is the capitalist system that shaped these
schools. Education does not create the economic base in society. Nevertheless, in being
shaped by the economy, education can become a force that influences economic life (Shor
and Freire, 1987, p.35).

From a dialogical perspective, the task of liberating educators and revolutionary leaders is to
pose problems regarding the myths created by the oppressor and internalized by the oppressed in order
to foster a critical understanding of their situation within a broader sociocultural context of relationships.
Freire argues:
This task implies that revolutionary leaders do not go to the people to order to bring them
a message of ‘salvation’ but in order to come to know, through dialogue with them, both
their objective situation and their awareness of that situation— the various levels of percep-
tion of themselves and of the world in which and with which they exist (Freire, 1992/1970,
p.86).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 740


For Freire (1992/1970), the process of liberation, as an educational dialogical program, must start
from the people’s own problems, fears, understandings and hopes. True communication with people (or
students in the formal school) can only be achieved by getting to know and respect their languages and
dialects, ways of knowing and thinking, and their culture as part of their own ‘capital’.
The starting point for organizing the program content of education or political action must be
the present, existential, concrete situation, reflecting the aspiration of the people... In order
to communicate effectively, educator and politician must understand the structural conditions
in which the thought and language of the people are dialectically framed (p.87).

Students’ engagement in liberating dialogue requires, from both educators and teachers them-
selves, effort and commitment to overcome obstacles and to work toward a deep understanding of their
situation and the sociocultural forces which determine that situation. On the part of the educators or
leaders, their task is to provide the opportunities, conditions and atmosphere for dialogue among students
to occur. In addition, educators must be able to communicate with student teachers in their language,
culture and ways of knowing. The content of the dialogue will be the themes, concerns and problems
meaningful and relevant to both parties. Neither authoritarian imposition of themes and perspectives,
nor laissez-faire for students, can be the strategy of the liberating educator. The educator’s directive
responsibility is an important premise of dialogical pedagogy for Freire. In a dialogue with Ira Shor,
Freire states:
On the one hand I cannot manipulate the students, on the other hand I cannot leave students
by themselves. The opposite of these two possibilities is being radically democratic. That
means accepting the directive nature of education... We must say to the students how we
think and why. My role is not to be silent. I have to convince students of my dreams but not
conquer them for my own plans. Even if students have the right to bad dreams, I have the
right to say their dreams are bad... The teacher is unavoidably responsible for initiating the
process and directing the study (Shor and Freire, 1987, p.157; emphasis added).

Freire questions the substitution of teacher by facilitator, in order to appear as non-directive and
therefore more democratic. This is for him a way to hide power, and represents a confusion between
authoritarianism and authority:
The teacher turned facilitator maintains the power institutionally created in the position.
That is, while facilitators may veil their power, at any moment they can exercise power as
they wish... What one cannot do in trying to divest of authoritarianism is relinquish one’s
authority as teacher... This educator [facilitator], then, ends up helping the power structure.
To avoid reproducing the values of the power structure, the educator must always combat a
laissez-faire pedagogy, no matter how progressive it may appear to be... I do not think that
there is real education without direction (Freire and Macedo, 1995, p.378).

As indicated above, Freire erases the boundaries between education / pedagogy and resear-
ch, and community development. Participatory action research, as developed by him, is participative,
transformative and educative. Curriculum development is based on the research that the educator and
the students carry out in order to make it relevant, responsive and engaging. The transformative action
should start in the classroom and then go outside its four walls into the school and the community.
Concluding remarks
The theses stated in the introduction and documented in this paper serve as the frame for
making some final remarks. The first of them is that, given the analyses and insights provided by Freire
and Bakhtin, dialogism represents a well-conceived alternative to positivism: a) The conception of self
changes from the self-contained, and self-sufficient individual to the dialogic self—being-in- relation with
others. b) Knowing is dialogical, above all when the ‘object’ of study has to do with the human phe-
nomena; research is with people, not about people; the positivist approach to knowing reifies humans
into passive objects. c) Language is constitutive of being human, of our thinking and knowing, and the
primary datum of all human sciences; this contrasts with the positivist notion of language as a closed
system of signs, forms and rules, which only represents a medium for expression of thoughts. d) Dia-
logical pedagogy is participative, democratic, critical and transformative, which involves research and
community development; it opposes the “banking” education in which students are passive receptacles
of information with no real understanding of themselves and the world around them.
The second general remark is that Bakhtin’s and Freire’s contributions to the development and
understanding of dialogism as an alternative to positivism is comprehensive, consistent with each other,
or at least complementary. This characterization of their own work invites any of us to be part of this
dialogue on dialogism, and “reinvent” and/or adapt it to new contexts and historical circumstances. It is
important to clarify that ‘reinvention’ should not mean ‘assimilation’ into all systems of thought, as has
happened already with both Bakhtin’s and Freire’s central ideas.
The third and last remark is that even when dialogism involves possible alternatives to the
conception of human life, social practices, relations among persons, communities and nations, the full
turning to dialogism has been and will be very difficult, but not impossible. As educators convinced of

Proceedings XI International Bakhtin Conference 741


its possibility, we need to accelerate the process by making our voices heard. The praxis of dialogism
should be a reality, not merely a dream!
References
Aronowitz, S. (1993). Paulo Freire’s radical democratic humanism. In P. McLaren & P. Leonard (Eds.), Paulo Freire: A
critical encounter (pp. 8-23). New York: Routledge.
Bajtin, M. M. [Bakhtin, M. M.] (1982). Estética de la creación verbal [The aesthetic of verbal creation]. T. Bubnova
(trans.). First published in Russian, 1979. Mexico, D. F.: Siglo XXI Editores.
Bajtin, M. M. [Bakhtin, M. M.] (1993). La cultura popular en la edad media y en el renacimiento: El contexto de Fran-
cois Rabelais [The popular culture in the middle age and the Renaissance: The context of Francois Rabelais]. Mexico,
DF: Alianza Universidad.
Bakhtin, M. M. (1981). The dialogical imagination: Four essays by M.M. Bakhtin. M. Holquist (Ed.), C. Emerson and
M. Holquist (Trans.). Austin, TX: University of Texas Press.
Bakhtin, M. M. (1984). Problems of Dostoevsky’s poetics. Edited by C. Emerson. Minneapolis, MN: University of Mi-
nesota Press.
Bakhtin, M. M. (1986). Speech genres and other late essays. (V. W. McGee, Trans.; C. Emerson & M. Holquist, Eds.).
Austin, TX: University of Texas Press.
Bakhtin, M. M. (1993). Toward a philosophy of the act (V. Liapunov, Trans.). Austin, TX: University of Texas Press.
Bartolome, L. (1996). Beyond the methods fetish: Toward a humanizing pedagogy. In P. Leystina & A. Woodrum & S.
A. Sherblom (Eds.), Breaking Free: The transformative power of critical pedagogy (Vol. 27, pp. 229-252). Cambridge,
MA: Harvard Educational Review.
Bernard-Donals, M. F. (1994). Mikhail Bakhtin: Between phenomenology and Marxism. Cambridge, MA: Cambridge
University Press.
Brandist, C. (1995). British Bakhtinology: An overview. Dialog, Karnaval, Khronotop, 1, 161-171.
Buber, M. (1970). I and Thou. New York, NY: Touchstone Pres.
Cárdenas, J. J. (1987). Asentamientos populares urbanos e Investigación Acción Participativa [Inner-city population
and participatory action research]. In O. Fals-Borda et al (Eds.) Investigación acción participativa en Colombia: Taller
Nacional [Participatory action research in Colombia: National workshop]. Bogotá, Colombia: Punta de Lanza.
Clark, K. & Holquist, M. (1984). Mikhail Bakhtin. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Coulter, D. (1999). The epic and the novel: Dialogism and teacher research. Educational Researcher, 28(3), 4-13.
Danov, D. K. (1991). The thought of Mikhail Bakhtin: From word to culture. New York, NY: San Martin Press.
Demo, P. (1985). Investigación participante: Mito y realidad [Participating research: Myth and reality]. Buenos Aires,
Argentina: Editorial Kapelusz.
de Man, P. (1989). Dialogue and Dialogism. In G. S. Morson & C. Emerson (Eds.), Rethinking Bakhtin: Extensions and
challenges (pp. 105-114). Evanston. IL: Northwestern University Press.
de Peuter, J. (1998). The dialogics of narrative identity. In M. M. Bell & M. Gardiner (Eds.), Bakhtin and the human
sciences: No last words (pp. 31-48). London, England and Thousand Oaks, CA: Sage Publications.
de Souza, J. F. (1990). Ponencia de apertura del Tercer Encuentro Mundial de Investigación Participativa (Keynoter
of the Third International Encounter of Participatory Research]. Managua, Nicaragua, August, 1989. Aportes 20:
Investigación Acción Participativa. Bogotá, Colombia: Dimensión Educativa.
de Schutter, A. (1990). El proceso de la investigación participativa [The process of participatory research] Aportes
20: Investigación Acción Participativa. Bogotá, Colombia: Dimensión Educativa.
Dop, E. (2000). A dialogic epistemology: Bakhtin on truth and meaning. Dialogism: An International Journal of Bakhtin
Studies(4), 7-33.
Dolby, N. (2000). Changing Selves: Multicultural Education and the Challenge of New Identity. Teachers College Re-
cord Online, 102(5), 898-912.
Emerson, C. (1996). Keeping the self intact during the culture wars: A centennial essay for Mikhail Bakhtin. New
Literary History, 27(1), 107-126.
Fals-Borda, O. (1987). Taller sobre Investigación Acción Participativa en Colombia [Workshop about Participatory Action
Research in Colombia]. In O. Fals-Borda et al (Eds.) Investigación acción participativa en Colombia: Taller Nacional
[Participatory action research in Colombia: National workshop]. Bogotá, Colombia: Punta de Lanza.
Faraco, C. A. (2003). Linguagem & Diálogo: As idéias linguísticas do Circulo de Bakhtin [Language & Dialogue: Bakhtin
Circle’s ideas on Linguistics]. Curtiba, Brazil: Edicoes Criar.
Foucault, M. (1973). The order of things: Archeology of Human Sciences. New York, NY: Vintage Books.
Freire, P. (1968). La educación como práctica de la libertad [Education as a practice of freedom]. Bogotá, Colombia:
Editorial Lerner.
Freire, P. (1992/1970). Pedagogy of the oppressed. New York, NY: Continuum.
Freire, P. (1977). Cartas a Guinea-Bissau. Apuntes de una experiencia pedagógica en proceso. [Letters to Guinea-
Bissau. Notes of a pedagogical experience in process]. México, D. F.: Siglo XXI Editores.
Freire, P. (1985). Dialogue is not a chaste event. Compiled by P. Jurmo. Amherst, MA: Center for International Edu-
cation, School of Education, University of Massachusetts.
Freire, P. (1993). Pedagogy of the city. New York, NY: Continuum.
Freire, P. (1994). Pedagogy of hope. New York, NY: Continuum.
Freire, P. (1996). Letters to Cristina: Reflections on my life and work. New York, NY: Routledge.
Freire, Paulo (1998a). Teachers as cultural workers: Letters to those who dare teach. D. Macedo, D. Koike & A. Oliveira

Proceedings XI International Bakhtin Conference 742


(trans.). Boulder, CO: Westview Press.
Freire, P. (1998b). Pedagogy of the Heart (D. Macedo & A. Oliveira, Trans.). New York, NY: Continuum.
Freire, P., Escobar, M., Fernández, A. L. & Guevara-Niebla, G. (1994). Paulo Freire on Higher Education: A dialogue at
the National University of Mexico. New York, NY: SUNY Press.
Freire, P., & Macedo, D. (1987). Literacy: Reading the word and the world. South Hadley, MA: Bergin and Garvey.
Freire, P. & Macedo, D. P. (1995). A dialogue: Culture, language and race. Harvard Educational Review, 65 (3), 237-
392.
Gardiner, M., & Bell, M. M. (1998). Bakhtin and human sciences: A brief introduction. In M. M. Bell & M. Gardiner
(Eds.), Bakhtin and the human sciences: No last words. London, Thousand Oaks, CA: Sage Publications.
Giroux, H. A. (1993). Paulo Freire and the politics of postcolonialism. In P. McLaren & P. Leonard (Eds.), Paulo Freire:
A critical encounter (pp. 177-186). New York, NY: Routledge.
Grozovsky, B. (1997). The idea of the ‘other’ in Rene Descartes’ Meditations: A hermeneutical investigation into the
history of philosophy. In C. Adlam & R. Falconer & V. Makhlin & A. Renfrew (Eds.), Face to face: Bakhtin in Russia and
the West (pp. 68-80.). Sheffield, England: Sheffield University Press.
Lensmire, T. J. (1994). Writing Workshop as Carnival: Reflections on an Alternative Learning Environment. Harvard
Educational Review, 64( 4), 371-391.
Hicks, D. (2000). Self and Other in Bakhtin’s Early Philosophical Essays: Prelude to a theory of prose consciousness.
Mind, Culture and Activity, 7(3), 227-242.
Hirschkop, K. (1986). A response to the forum on Michael Bakhtin. In G. S. Morson (Ed.), Bakhtin: Essays and dia-
logues on his work (pp.73-79). Chicago, IL: The University of Chicago Press.
Holquist, M. (1986). Answering as authoring: Mikhail Bakhtin’s trans-linguistics. In G. S. Morson (Ed.), Bakhtin: Essays
and dialogues on his work (pp. 59-71). Chicago, IL: The University of Chicago Press.
Holquist, M. (1990). Dialogism: Bakhtin and his world. New York, NY: Routledge.
Horton, M. and Freire, P. (1990). We make the road by walking: Conversations on Education and Social Change. Edited
by B. Bell, J. Gaventa, and J. Peters. Philadelphia, PA: Temple University Press.
Kristeva, J. (1980). Word, Dialoque, and Novel. In L. S. Roudiez (Ed.), Desire in Language: A semiotic approach to
literature and art (pp. 64-91). New York, NY: Columbia University Press.
Macedo, D. (1997). An anti-method pedagogy: A Freirean Perspective. In P. Freire & J. W. Fraser & D. Macedo & T.
McKinnon & W. T. Stokes (Eds.), Mentoring the mentor: A critical dialogue with Paulo Freire (Vol. 60). New York, NY:
Peter Lang.
Makhlin, V. (1997). Bakhtin programme and the architectonics of Being-as-event in the Twuentieth Century. In C.
Adlam & R. Falconer & V. Makhlin & A. Renfrew (Eds.), Face to face: Bakhtin in Russia and the West (pp. 45-53).
Sheffield, England: Sheffield University Press.
Markova, I. (1990). Introduction: Why dynamics of dialogue. In I. Markova & K. Foppa (Eds.), The dynamics of dia-
logue. London, UK: Harvester Wheatsheaf.
Moraes, M. (1996). Bilingual education: A dialogue with the Bakhtin Circle. New York, NY: SUNY Press.
Morson, G. S., & Emerson, C. (1992). Mihail Bakhtin: Creation of prosaics. Stanford, CA: Stanford University Press.
Sampson, Edward E. (1993). Celebrating the other: A dialogical account of human nature. Boulder, CO: Westview
Press.
Shor, I. & Freire, P. (1987). A pedagogy for liberation: Dialogues on transforming education. South Hadley, MA: Bergin
& Garvey Publishers.
Shotter, J., & Billig, M. (1998). A Bakhtinian psychology: From out of the heads of individuals and into the dialogues
between them. In M. M. Bell & M. Gardiner (Eds.), Bakhtin and the human sciences: No last words (pp. 13-29). London
England and Thousand Oaks, CA: Sage Publications.
Todorov, T. (1984/1981). Mikhail Bakhtin: The dialogical principle. Translated by W. Godzich. Minneapolis, MN: Uni-
versity of Minnesota Press.
Torres, C. A. (1995). Participatory action research and popular education in Latin America. In P.L. McLaren and J. M.
Giarelly (Eds.). Critical theory and educational research. New York, NY: SUNY Press.
Vio-Grossi, F. (1990). La investigación participativa en la educación de adultos en América Latina: Algunos problemas
relevantes [Participatory research in adult education in Latin America: Some relevant problems]. Aportes 20: Inves-
tigación Acción Participativa. Bogotá, Colombia: Dimensión Educativa.
Voloshinov, V. N. (1973). Marxism and the philosophy of language (L. Matejka & I. R. Titunik, Trans.). Cambridge,
MA: Harvard University Press.
Zamosc, L. & Fals-Borda, O. (1987). Balance y perspectivas de la investigación acción participativa [Balance and
perspectives of the participatory action research]. In O. Fals-Borda et al (Eds.) Investigación acción participativa en
Colombia: Taller Nacional [Participatory action research in Colombia: National workshop]. Bogotá, Colombia: Punta
de Lanza.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 743


ИСТОРИЯ ВОПРОСА ОБ АВТОРСТВЕ «СПОРНЫХ ТЕКСТОВ»
В РОССИЙСКОЙ БАХТИНИСТИКЕ (М.М.БАХТИН И ЕГО СОАВТОРЫ)

Н.Л.Васильев

В 1973 г. один из авторитетных советских ученых – Вяч.Вс.Иванов сделал


печатное заявление о том, что ряд книг и статей, вышедших в 1920-е гг. под фамилиями
В.Н.Волошинова и П.Н.Медведева («Фрейдизм: Критический очерк», «Формальный
метод в литературоведении», «Марксизм и философия языка» и др.), принадлежит перу
Бахтина. Поскольку это произошло еще при жизни последнего и в какой-то мере с его
молчаливого согласия, научная сенсация вскоре стала фактом, казалось бы, не требующим
доказательств. Ссылки на некоторые работы Волошинова и Медведева как на собственно
бахтинские стали вскоре обычным, если не сказать модным, явлением. Этому
способствовало, в частности, то обстоятельство, что фамилии Медведева и Волошинова
почти ничего не говорили исследователям нового поколения. Ведь и само имя Бахтина
выплыло из забвения лишь за десять лет до этого… Надо сказать, что смелое решение
В.В.Иванова было своевременным и явилось закономерной реабилитацией многолетнего
скромного «молчания» Бахтина как выдающегося исследователя-методолога 1920-х гг.,
причастного к написанию классических трудов в области философии, психологии,
литературоведения и лингвистики.
Между тем многих ученых интересовали причины, по которым Бахтин и его
друзья решились на такой необычный, едва ли не беспрецедентный в издательской
практике авторский эксперимент. Ответы на этот вопрос – в том числе со ссылками на
устные реплики Бахтина – давались самые разные: необходимость в заработке; отсутствие
у Бахтина связей в научно-издательском мире; его духовное бескорыстие; особое –
диалогическое – отношение к творчеству; неумение доводить до конца ранее
«проговоренные» работы; стремление помочь друзьям в их научной карьере;
осторожность Бахтина, в условиях жесткого идеологического диктата скрывавшего свою
индивидуальность под несколькими именами; реализация на практике теоретических
положений о различных формах бытования «чужого слова»; своеобразная авантюрная
реакция ученого и его круга на всеобщее «разложение» и др.
Согласно господствовавшим к началу 1990-х гг. представлениям, Медведев и
Волошинов не были профессиональными или, по крайней мере, достаточно
самостоятельными исследователями. Поэтому делались выводы, что они согласились
поставить свое имя на работах Бахтина по каким-то конъюнктурным, едва ли не
корыстным соображениям. Реже высказывались предположения, что такого рода
соавторство устраивало всех, включая Бахтина, не имевшего в те годы официального
статуса ученого или не желавшего открыто приспосабливать свой философский метаязык
и методологию к марксистской идеологии. Волошинов и Медведев могли пойти на этот
шаг, понимая, что иного пути опубликовать бахтинские труды в ближайшее время нет, а
спустя несколько лет они потеряют актуальность. (В таком случае все действующие лица
остаются на достойной этической высоте.)
Не до конца проясненные обстоятельства, касавшиеся «спорных текстов» вызывали
естественное желание разобраться в существе дела, расставить все точки над i. Сомнения
относительно исключительно бахтинского авторства высказывались с середины 1980-х
гг. и на Западе (И.-Р.Титуник, Г.-С.Морсон, К.Эмерсон и др.). Концептуально же вопрос о
необходимости ответственного, взвешенного разговора по этому поводу был поставлен
на родине ученого. Одна из публикаций такого рода («М.М.Бахтин или В.Н.Волошинов?»
– Лит. обозрение. 1991. № 9) получила широкий резонанс не только в России, но и за
рубежом. С помощью разных аргументов, прежде всего сравнительного и статистического
анализа, в ней доказывалось, что книги «Марксизм и философия языка» и «Проблемы

Proceedings XI International Bakhtin Conference 744


творчества Достоевского», вышедшие одновременно в 1929 г., не могли быть написаны
одним автором, то есть Бахтиным, – и делался следующий вывод: «Анализ методологии,
терминологии, содержания обеих книг, их композиции, архитектоники, отдельных
элементов стилистики, а также внимательное рассмотрение эволюции творчества
М.М.Бахтина (он называл себя литературоведом, философом, но никогда не говорил о
себе как лингвисте. – Н.В.) свидетельствуют о недостаточности аргументов для
приписывания ему книги "Марксизм и философия языка". Очевидно, в данном случае мы
должны говорить о д и а л о г и ч е с к о м влиянии ученого на своего товарища по жизни
и научным интересам». Сейчас можно признаться в том, что в основе указанной статьи
лежала и сверхзадача – путем достаточно категоричного отрицания авторства Бахтина
вызвать реакцию контраргументации со стороны лиц, причастных к изданию бахтинских
трудов в России и ведавших его литературным наследством.
Появление статьи, действительно, привело к «необратимой… ядерной реакции»,
вызвав дискуссию и череду публикаций, прямо или опосредованно поддерживавших ту
или иную точку зрения (Ю.П.Медведев, О.Е.Осовский, С.Г.Бочаров, С.С.Конкин,
В.С.Баевский, Н.А.Паньков, И.В.Пешков, В.В.Иванов, Н.А.Слюсарева, М.В.Алпатов и
др.). Можно сказать, что данный вопрос стал в 1990-х гг. одним из наиболее интригующих
в изучении биографии Бахтина, его окружения и литературного наследства так
называемого «круга Бахтина».
Прежде всего выяснилось, что ближайшие друзья и потенциальные соавторы
Бахтина не были людьми, далекими от академической науки и, следовательно, их
общение с Бахтиным основывалось не только на личных симпатиях, но и общности
научных интересов. П.Н.Медведев (1892 – 1938), во многом благодаря исследованиям его
сына – Ю.П.Медведева, предстал более глубоким и разносторонним литературоведом, чем
это казалось ранее. В.Н.Волошинов (1895 – 1936), биография которого почти не была
известна, стал восприниматься как сложившийся гуманитарий, оставивший заметный след
в научной жизни своего времени. Достаточно сказать, что после окончания Гражданской
войны он получил филологическое образование в престижном Петроградском
университете, которое затем продолжил в аспирантуре Института сравнительной истории
литератур и языков Запада и Востока (ИЛЯЗВ), став заметным фигурантом в научной
жизни Ленинграда. Попытки некоторых исследователей, в основном сторонников сугубо
бахтинского авторства «спорных работ», дискредитировать Волошинова, представить его
как своеобразного выскочку, комично пытавшегося играть роль ученого, а на самом деле
озвучивавшего мысли «кукловода» Бахтина, явно несостоятельны. Волошинов был не
просто самостоятельным человеком и исследователем, но и во многом развивался
независимо от Бахтина – под влиянием академической школы филологов Ленинградского
университета и других научных организаций северной столицы. Личность любого ученого
раскрывается не только в его печатных трудах, но и в ежедневном, будничном общении с
коллегами, студентами, в диалогах, спорах, дискуссиях, административных действиях и
т.д. В документам своего времени Волошинов выглядит достойно во всех названных
амплуа.
В создавшихся условиях сторонники бахтинского авторства стали говорить прежде
всего о методологической и стилистической близости авторизованных и «спорных»
произведений Бахтина. Действительно, стыковки тех и других текстов порой
удивительны и вряд ли случайны. Мы можем обнаружить, в частности, идентичные
резюме во многих сочинениях, вышедших из «круга Бахтина»: «Остается подвести
итоги…», «Теперь остается только подвести итоги…», «Теперь мы можем подвести
некоторые итоги»; «Остается подвести краткий итог» и т.п. Но одновременно в
приписываемых Бахтину работах встречаются такие мысли и термины, которые не были
ему свойственны на протяжении всего творческого пути, находятся в противоречии с
его собственными высказываниями. Так, в описании типологии художественной речи в

Proceedings XI International Bakhtin Conference 745


романах Достоевского Бахтин совсем не упоминает о несобственно-прямой ее
разновидности, хотя, казалось бы, очевидна направленность последней на выражение
«чужого» слова. Между тем Волошинов посвящает этому синтаксическому явлению
целую главу («Несобственная прямая речь во французском, немецком и русском языке») в
книге «Марксизм и философия языка», отмечая во вводной ее части, что «явление
несобственной прямой речи в русском языке <…> еще никем не было описано». Говоря в
другой главе о косвенной и прямой речи, Волошинов выделяет следующие
«модификации» обеих: предметно-аналитическая, словесно-аналитическая,
импрессионистическая, подготовленная прямая речь, овеществленная прямая речь,
предвосхищенная и рассеянная чужая речь, риторическая прямая речь, замещенная
прямая речь. Ничего подобного – ни в концептуальном, ни в сугубо терминологическом
плане – мы не встречаем у Бахтина. Рассуждая о типах художественного слова
Достоевского («Проблемы творчества Достоевского»), он дает совершенно иную
классификацию и при этом ничего не говорит о косвенной речи. Объяснить данное
противоречие, продолжая думать, что обе книги созданы одним автором, нельзя. Это
касается и некоторых других «спорных текстов». Книга «Фрейдизм» (1927 г.) написана с
несвойственной Бахтину установкой на широкого читателя, энергичностью,
прямолинейностью развертывания мыслей. В статье «О границах поэтики и лингвистики»
(1930 г.), также приписываемой ученому, заметно сильное волошиновское начало
(особенно ярко проявившееся в цикле статей, опубликованных в «Литературной учебе»):
посвящение его коллеге по работе в ИЛЯЗВе «Николаю Васильевичу Яковлеву»,
иронические эпиграф и концовка, воинствующий марксизм, марризм, недооценка
индоевропеистики, ссылки на работы самого Волошинова, в том числе по теории музыки,
затяжная полемика с П.Н.Медведевым, идеологический ригоризм – чего мы не находим в
авторизованных трудах Бахтина.
Анализ истории создания, концептуальности и стилистики книги «Марксизм и
философия языка: Основные проблемы социологического метода в науке о языке», в
частности, показывает, что она состоит из двух разнородных частей, принадлежащих,
вероятно, разным авторам: первые ее части написаны предположительно в основном
Бахтиным, третья и предисловие к самой книге – Волошиновым. Объясняется это тем, что
данная книга была скомпонована из двух волошиновских монографий, одновременно
фигурировавших в издательском плане ИЛЯЗВа в 1928 г. – «Проблема передачи чужой
речи: (Опыт социо-лингвистического исследования» (10 п.л.) и «Марксизм и философия
языка (основы социологического метода в науке о языке)». Самим Волошиновым или его
руководством, вероятно, был сделан выбор в пользу более актуального исследования,
которое, однако, на заключительной стадии редакционной подготовки включило в себя в
качестве третьей структурной части основное содержание первой монографии в объеме
3,5 п.л. Если первые две части книги насквозь теоретичны (речь в них и формально, и по
существу идет о проблематике так называемой «философии языка»), то третья ее часть
имеет более фактографическую направленность, ранее чрезвычайно употребительный
термин «философия языка» в ней вообще не встречается. Из этого следуют выводы, что а)
либо Бахтину, помимо трех чужих, надо приписывать и книгу «Проблема передачи
чужой речи»; б) либо указанная монография была написана кем-то другим…
Новые документы (архивные данные, воспоминания, письма корреспондентов
Бахтина), опубликованные в 1990-е гг., к сожалению, не раскрывают тайну создания
«спорных текстов», а скорее делают ее более загадочной, вследствие противоречивости
многих фактов, недоговоренности, двусмысленности. Так, В.В.Иванов сообщает: «После
того, как в предыдущих разговорах со мной Бахтин удостоверил свое авторство
применительно ко второй книге Волошинова и книге Медведева, во время очередной
встречи я задал ему вопрос о книге Волошинова «Фрейдизм». Бахтин нехотя процедил:
"Да, и в этой книге основную часть я написал". При разговоре присутствовала жена

Proceedings XI International Bakhtin Conference 746


Бахтина Елена Александровна. Она возмутилась: "Да что ты, Мишенька, говоришь! Я же
под твою диктовку всю эту книгу своей рукой написала". Бахтин нехотя согласился»
(Диалог. Карнавал. Хронотоп. 1995. № 4. С 136 – 137). Однако В.А.Свительский, тоже
ссылаясь на собственный разговор с ученым, передает следующее: «… отвечая на вопрос
об авторстве книг, подписанных именами Медведева и Волошинова, Михаил Михайлович
назвал своим созданием книгу о формальном методе. <…> Про другие же работы Бахтин
сказал, что в них выражены его идеи, развитые им в лекциях для круга учеников»
(М.М.Бахтин и перспективы гуманитарных наук. Витебск, 1994. С. 19).
Большинство исследователей этого вопроса полагает, что марксисткий слой
указанных книг принадлежит не Бахтину, а его соавторам или неофициальным
редакторам книг; между тем В.В.Иванов считает, что оба голоса – подлинно бахтинский
и внешний, рассчитанный на идеологическую конъюнктуру – исходят от самого Бахтина:
«Из разговора с Бахтиным мне стало ясно, что главной причиной его появления "под
маской" <…> были условия цензуры. Не только в заглавии, но и в содержании книг
необходим был такой компромисс с официальной идеологией, на который Бахтин не был
готов пойти. Но он согласился написать тексты, которые стилизованы в духе
компромисса, в то время требовавшегося. Я полагаю, что при серьезном исследовании
этих книг <…> можно выделить два разных "голоса" (в бахтинском смысле). Один из них
принадлежит Бахтину, другой – предполагаемому фиктивному автору, стоящему на
официальной марксистской точке зрения»; «То, что в книгах, изданных под чужими
именами, не совпадает с известными нам бахтинскими текстами, следует приписать
голосу фиктивного автора – носителя официальной марксисткой идеологии. Но и этот
голос звучит благодаря писательскому дару создателя сложной диалогической
композиции. Им был сам Бахтин: книги в целом написаны им» (с. 136).
По словам В.А.Свительского, Бахтин скептически оценивал научные способности
Волошинова, считая его только своим учеником, подмастерьем: «Он отрицал, что у
Волошинова есть что-либо самостоятельное и отмечал в своих отношениях с ровесником,
как я записал, "естественное соотношение между учителем и учеником"». Но В.В.Иванов,
вероятно под влиянием появившихся исследований о научной карьере Волошинова,
свидетельствует противоположное: «Напротив, ничего дурного от него [Бахтина] я не
слышал о Волошинове. Полагаю, что и вклад самого Волошинова в подготовку книги о
философии языка мог быть немалым: он был образованным филологом» (с. 138). Это
еще одно внутреннее противоречие мемуара В.В.Иванова: значит монография была
написана двумя авторами – Бахтиным и Волошиновым! Нам уже приходилось говорить в
специальной работе, посвященной личности и творчеству Волошинова (Диалог. Карнавал.
Хронотоп. 2000. № 2), что Бахтин, вероятно, недооценивал филологический потенциал
своего друга, оставаясь в плену прежних – невельско-витебских – впечатлений о нем как
о несостоявшемся юристе по образованию, не слишком талантливом поэте и композиторе.
Между тем к середине 1920-х гг. Волошинов рассматривался многими современниками
как весьма перспективный молодой исследователь. В его близкое окружение входили, в
частности, известные литературоведы, лингвисты, критики В.А.Десницкий,
Л.П.Якубинский, В.Ф.Шишмарев, Н.В.Яковлев, Г.Е.Горбачев и др. Знал и даже упоминал
в письмах о нем М.Горький. В отличие от Бахтина, Волошинов жил полнокровной
академической жизнью – общением с коллегами, участием в повседневной научной,
преподавательской и организационно-административной работе. И, вероятно, уже не
столько Бахтин, сколько сам Волошинов подпитывал друга новым идеями, являлся
связующим звеном между взрослеющей советской филологией и не работавшим в то
время, серьезно больным костным туберкулезом Бахтиным.
Не проясняют ситуацию и скупые высказывания самого Бахтина по поводу его
коллег и их общих книг, известные ныне благодаря публикации устных мемуаров и
писем ученого. Во всех случаях Бахтин комментирует данный казус крайне

Proceedings XI International Bakhtin Conference 747


неопределенно, уклончиво. Ср., например: «Книги "Формальный метод" и "Марксизм и
философия языка" мне очень хорошо известны. В.Н.Волошинов и П.Н.Медведев – мои
покойные друзья; в период создания этих книг мы работали в самом тесном творческом
контакте. Более того, в основу этих книг и моей работы о Достоевском положена общая
концепция языка и речевого произведения. В этом отношении В.В.Виноградов
совершенно прав. Должен заметить, что наличие общей концепции и контакта в работе не
снижает самостоятельности и оригинальности каждой из этих книг. Что касается до
других работ П.Н.Медведева и В.Н.Волошинова, то они лежат в иной плоскости, не
отражают общей концепции и в создании их я никакого участия не принимал. Этой
концепции языка и речи, изложенной в указанных книгах без достаточной полноты и не
всегда вразумительно, я придерживаюсь и до сих пор…» (из письма Бахтина к
В.В.Кожинову от 10.01.1961 г.). Поэтому его суждения легко можно интерпретировать в
пользу любой версии авторства «спорных текстов». Странно, однако, что в архиве
Бахтина не сохранилось следов работы ни над одним из сочинений, относящихся к
корпусу «спорных текстов», хотя остались рукописи, наброски более ранних по времени
философских произведений.
Необходимо заметить, что доверие к автобиографическим признаниям ученого в
последнее время существенно пошатнулось, вследствие выявленной исследователями
склонности Бахтина к разного рода мистификациям. С.С.Конкин документально
обосновал недворянское (купеческое) происхождение ученого, хотя сам Бахтин не раз
подчеркивал свою связь с известным дворянским родом. В.И.Лаптун, Н.А.Паньков и
некоторые другие исследователи обратили внимание на то, что Бахтин мог и не закончить
гимназического курса, вследствие болезни, а позже, следовательно, не иметь формального
основания поступить в университет, хотя сам ученый неоднократно подчеркивал, что он
учился в двух университетах (Новороссийском и Петроградском) и в конечном счете
получил высшее образование. Витебские исследователи А.Г.Лисов и Е.Г.Трусова
обнаружили документы рубежа 1910 – 1920-х гг., в которых Бахтин, отчасти ориентируясь
на жизненные вехи своего старшего брата Николая, собственноручно утверждает, что
родился то в 1891, то в 1892, то 1893 году (на самом деле в 1895 г.). и, подобно своему
другу философу М.И.Кагану, учился 1910 – 1912 гг. в Германии (в Марбурге и Берлине), а
в 1914 г. закончил Петербургский университет (на самом деле до 1916 г. еще жил в
Одессе) и позже якобы готовился к профессорскому званию… (Мы понимаем, конечно,
что Бахтин вынужденно или отчасти авантюрно, карнавально мистифицировал советских
чиновников относительно своего прошлого, его жизнь пришлась на переломный момент
русской истории, когда необходимость буквального физического выживания заставляла
идти на подобные шаги.) Но почему не допустить, что невинные корректировки ученым
биографии не распространялись и на высказывания о собственном научном творчестве?
Например, при поступлении в 1945 г. на работу Мордовский пединститут в списке
изданных трудов Бахтин указал, что он не включил «мелкие статьи и рецензии в
журналах и газетах», хотя исследователям известна лишь одна небольшая заметка,
подписанная именем Бахтина, в невельской газете «День искусства» (1919 г.). До выхода в
свет книги «Проблемы творчества Достоевского», да и гораздо позже других публикаций
в периодической печати, за исключением статьи «Опыт изучения спроса колхозников» в
журнале «Советская торговля» (1934 г.), у него, насколько это известно, не было.
Указанные обстоятельства заставляют теперь гораздо осторожнее комментировать
и высказывания Бахтина относительно его друзей – П.Н.Медведева и В.Н.Волошинова,
трудов, вышедших под их именами. Характерно следующее признание, сделанное
авторитетным канадским исследователем К.Томсоном о прежней и нынешней степени
доверия к тем или иным фактам, сделанное им на основе впечатлений от IX
Международного Бахтинского конгресса в Берлине в 1999 г.: «Я не слышал почтительно
благоговейных докладов в Берлине – жанра, который я порой замечал на предыдущих

Proceedings XI International Bakhtin Conference 748


конференциях. Является ли это знаком того, что Бахтинские исследования вошли в новую
фазу, за пределы прежних дебатов, в которых некоторые комментаторы, как казалось,
возглашали тайное знание о правде идей Бахтина? Я использовал слова «Ложь понять
легче, чем правду» как название для моей статьи. Это – умный афоризм, приписанный
Бахтину Брайеном Пулом в его докладе на конференции, и мой способ намекнуть, чтобы
мы держали в уме и бахтинское эксцентричное отношение к «правде» его собственной
биографии, и наше собственное использование этих скользких понятий» (Диалог.
Карнавал. Хронотоп. 2000. № 2.. С. 160).
Одним из существенных доводов в пользу участия Бахтина в создании «спорных
текстов» является письменное подтверждение еще одним его другом – биологом
И.И.Канаевым того, что принадлежащая последнему работа «Современный витализм»,
опубликованная в журнале «Человек и природа» в 1926 г., была написана именно
Бахтиным, хотя и не без помощи невольного «соавтора», выразившейся в доставке
необходимой научной литературы и, вероятно, каких-то консультациях. Однако это не
ведет автоматически к распространению авторства Бахтина на другие тексты, вышедшие
из круга его друзей.
Оригинально доказывает присутствие в «спорных» и бесспорных текстах Бахтина
единого автора И.В.Пешков, хотя умственные построения последнего всего лишь
красивая, но малоубедительная гипотеза. Так, в своей книге «М.М.Бахтин: от
<Философии поступка> к риторике поступка» (М., 1996) московский литературовед
пишет: «…работы Бахтина под маской это не уход автора от ответственности, как думал
Васильев [Н.Л.Васильев], а, наоборот, верность замыслу, только не философии поступка,
как полагают философы-профессионалы, а риторике поступка, поскольку это верность не
теоретическому, а практическому, действительному и действенному» (с. 100).
Более перспективны, на наш взгляд, попытки отдельных исследователей
опровергнуть или подтвердить авторство Бахтина с помощью компьютерных методов
анализа текста, однако полученные ими результаты кардинально расходятся.
Д.А.Татарников, используя методику электронного сравнения словарно-
терминологической базы подлинных и «мнимых» текстов Бахтина, сделал следующее
заключение: «… как показал опыт составления лексико-терминологического Указателя и
сравнения на его основе работ П.Н.Медведева и В.Н.Волошинова с произведениями,
представленными в данном томе (Бахтин М.М. Работы 1920-х годов. Киев, 1994. – Н.В.),
корреляция терминологии в этих работах недостаточна, чтобы говорить о едином
авторстве, стиль и лексика существенно различны. Общие же критическая аргументация и
бахтинская (когеновская) философская терминология, присутствующие там, говорят
только о принадлежности к единому философскому кругу (школе) и подтверждают факт
близости и «диалогичности» общения данных людей». И.В.Пешков же в одной из
последних по времени работ, путем тщательного сравнения терминологического
словника двух приложений из «Личного дела В.Н.Волошинова» с текстовыми массивами
«Марксизма и философии языка» (МФЯ), «Формального метода в литературоведении»
(ФМЛ), «Проблем творчества Достоевского», других трудов Бахтина и Медведева, а для
большей объективности еще и книг А.А.Потебни, Л.С.Выготского, Г.О.Винокура,
О.М.Фрейденберг, пришел к противоположному и, на его взгляд, окончательному
выводу: «Мне представляется текстологически доказанным теперь, что и ФМЛ и МФЯ
написаны Бахтиным по крайней мере по преимуществу <…>»; «Теперь пусть сторонники
коллективного авторства вылавливают в спорных текстах дружеские вкрапления» (см.:
Бахтин М.М. Фрейдизм. Формальный метод в литературоведении. Марксизм и философия
языка. Статьи / Сост., текстолог. под-ка И.В.Пешкова. М., 2000. С. 621 и др.). Надо
отдать должное исследователю: выявленные им лексические, фразеологические и
терминологические параллели между работами, вышедшими из «круга Бахтина»,
впечатляют. Заметим, однако, что оба автора – и Д.А.Татарников и И.В.Пешков – по-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 749


своему правы. Первый сравнивает «спорные тексты» с ранними, причем
преимущественно философскими, трудами Бахтина («Искусство и ответственность», «К
философии поступка», «Автор и герой в эстетической деятельности», «Проблема
содержания, материала и формы в словесном художественном творчестве»), в которых,
естественно, еще преобладает прежний философский метаязык ученого. Второй же
опирается на труды Бахтина, написанные им после «социологического периода» – и в них
неизбежно сохраняется инерция понятийного аппарата, выработанного в кругу соавторов
и друзей ученого.
Определенный свет на возможные обстоятельства создания «спорных текстов»
проливает опубликованная Бахтиным совместно с его многолетним товарищем по работе
в Мордовском университете – кандидатом филологических наук, доцентом, членом СП
СССР Л.Г.Васильевым – рецензия на пьесу драматурга Г.Я.Меркушкина «На рассвете»,
поставленную в Саранске («Сов. Мордовия». 1959. 17 мая). Текст рецензии, в отличие от
других трудов ученого, даже рукописных заметок и конспектов, почему-то не вошел в
многотомное «Собрание сочинений» Бахтина, выпускаемое ныне сотрудниками ИМЛИ
им. М.Горького Российской академии наук, хотя специалистам указанная работа
саранских литературоведов, кстати лишь восьмая (!) публикация Бахтина начиная с 1919
г., хорошо известна по библиографическому указателю «Михаил Михайлович Бахтин»
(Саранск, 1989), воспоминаниям о Бахтине, напечатанным, в частности, и в
международном бахтинском журнале «Диалог, Карнавал. Хронотоп». Ничего не
сообщается об этой статье и в примечаниях к соответствующему тому «академического»
издания. Между тем перед нами не просто полноценная литературно-критическая и
отчасти искусствоведческая работа ученого, но и единственная его бесспорная
соавторская публикация. В нашем архиве сохранились черновики данной статьи. Работа
над ней, по словам ныне уже покойного Л.Г.Васильева, протекала следующим образом.
По договоренности с Бахтиным, им предварительно был составлен рукописный вариант
статьи объемом около 10 страниц машинописного формата. В ходе его обсуждения были
внесены некоторые добавления, вычеркнуты отдельные части текста. Черновик рецензии
остался на доработку у Бахтина. В результате появился второй черновик, написанный
последним (12 страниц рукописи на листках школьной тетради). Бахтин, отталкиваясь от
первой фразы своего соавтора, существенно переработал вводную часть статьи, внеся в
нее элементы теоретико-литературоведческого (размышление о жанровой природе пьесы,
ее месте в контексте советской драматургии) и историко-культурного (описание событий
Гражданской войны) анализа. Помимо этого он дал портрет центрального персонажа –
командарма Громова. Анализ же Л.Г.Васильевым других образов произведения был
оставлен ученым почти без изменений. Его соавтор в свою очередь внес отдельные
поправки в текст Бахтина. В итоге оба черновика стали «комплектующими» частями
рукописи, представленной Л.Г.Васильевым в редакцию газеты. Отсюда можно сделать
ряд важных выводов, распространяющихся, не исключено, на методы работы Бахтина с
его возможными соавторами – Волошиновым и Медведевым: ученый стремился брать на
себя инициативу в проблемно-методологической части исследования, не пренебрегал
черновой работой над общей рукописью, толерантно относился к «чужому слову», если
оно не противоречило его внутреннему цензору (характерно, в этом отношении резкое
неприятие им идеологизированного заголовка рецензии – «За власть Советов»,
первоначально предложенного редакцией «Советской Мордовии»). Нам известно и еще
об одной опубликованной газетной заметке, подготовленной Л.Г.Васильевым,
отредактированной Бахтиным, но подписанной для большего веса именами Бахтина как
заведующего кафедрой и двух его факультетских начальников… Речь в ней шла о защите
профессионализма преподавателя, работавшего вместе с указанными соавторами.
Справедливо, взвешенно и независимо от предшественников пишет о данной
проблеме один из молодых российских исследователей А.В.Коровашко: «Доказательная

Proceedings XI International Bakhtin Conference 750


база передачи М.М.Бахтину посмертных авторских прав отличается крайней шаткостью и
представляет собой вариативный набор лишь трех (на самом деле большего числа. – Н.В.)
ключевых аргументов»; «Первый из них апеллирует к авторитету "устного радио" и
восходит к полуфольклорному жанру внутрицеховых преданий: "Весь Ленинград знал…",
"Виноградов говорил…" <..> и т.д.»; «Другим способом закрепить за Бахтиным роль
демиурга "спорных текстов" является теория "умственной недостаточности" Волошинова
и Медведева. <…> Укажем в этой связи на приватное замечание Л.Я.Гинзбург о
"подписных" авторах: "Мы же знали этих людей. Не могли они так глубоко писать. Это же
были примитивные люди". <…> Известно, например, что Виктор Шкловский (учитель
Л.Я.Гинзбург) называл Веселовского "туповатым", а на склоне лет с некоторым для себя
удивлением обнаружил, что Овсянико-Куликовский "был не совсем умен"»; «Наибольшей
популярностью в спорах о Бахтине "под маской" пользуется интуитивный критерий
атрибуции. Те, кто отдает ему предпочтение, любят ссылаться на то, что "бахтинское
качество этих текстов ощущается непосредственно". Но также "непосредственно"
воспринималась, например, "подлинная" древность сфабрикованных чешскими учеными
Вацлавом Ганкой и Йозефом Линдой произведений – «Краледворской рукописи», «Суда
Либуше» и «Глосс Вацерада». В течение полувека они открывали официальную историю
чешской литературы. О том, насколько ненадежным критерием оказывается
"непосредственное" впечатление, говорит и случай с первой книгой Иоганна Готлиба
Фихте "Критика всяческого откровения". Поскольку она вышла в свет анонимно <…>, то
была в скором времени приписана самому Канту <…>» (Вестник Нижегородского ун-та.
2000. Вып. 1. С. 62 – 63).
Вопрос о «спорных текстах» остается одним из наиболее запутанных и актуальных
в бахтиноведении. Не случайно ему было уделено первостепенное внимание на
состоявшейся в 1999 году в шеффилдском Бахтинском центре (Великобритания)
конференции по теме «В отсутствии мастера: неизвестный круг Бахтина». Ранее
высказывалось пожелание считать данную проблему принципиально не решаемой
(С.С.Аверинцев). Теперь же большинство исследователей предпочитает говорить о «круге
Бахтина», в котором рождались те или иные идеи, тексты, избегая какой-либо
категоричности в этом отношении, а иногда и с раздражением воспринимая прежние
попытки приписать исключительное авторство «спорных текстов» Бахтину.
Симптоматичны в этом отношении, например, следующие констатации (первая из них
принадлежит российским ученым – С.Г.Бочарову, В.И.Лаптуну, Т.Г.Юрченко; вторая –
шотландскому исследователю А.Ренфру): «1924 – 1930. Опубликованы три книги <…> и
серия статей по философской лингвистике, социальной психологии и
литературоведческой методологии под именами друзей М.М.Б<ахтина> –
В.Н.Волошинова, П.Н.Медведева и И.И.Канаева; М.М.Б<ахтин> участвовал в написании
этих работ, степень и форма его участия остаются спорным вопросом» (Хронограф жизни
и деятельности М.М.Бахтина // М.М.Бахтин: Беседы с В.Д.Дувакиным. М, 2002. С. 376);
«Для меня самогó первый и в определенном смысле «главный» вопрос уже решен: при
отсутствии неотразимого свидетельства об авторстве Бахтина логичнее считать, что
спорные тексты написали те самостоятельные, некогда жившие и действовавшие ученые,
под чьими фамилиями книги были опубликованы» (Диалог. Карнавал. Хронотоп, 2000. №
2. С. 157).
Полемика относительно обсуждаемых текстов была необычайно плодотворна для
русской филологии в целом, поскольку стимулировала научные методы определения
авторства, что являлось особенно актуальным в условиях, когда те же вопросы решались
применительно и к художественной классике, например «Тихому Дону» М.А.Шолохова.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 751


Literatura e homoerotismo:
Um diálogo produtivo – O Caso Bom-Crioulo

Paulo Venturelli

Universidade Federal do Paraná.

Quando o narrador de Bom-Crioulo descreve os marinheiros que, juntamente com Amaro, serão cas-
tigados, o retrato que ele nos dá desses personagens contém signos específicos: “um rapazinho magro”,
“rosto liso, completamente imberbe”, “rosto de adolescente”, com “uns longe de melancolia serena” e
precoce morbidez (BC, p. 13).1 Esta descrição parece preparar o clima que cerca a figura de Bom-Crioulo.
Configurado como “primeira-classe, negro alto, espadaúdo, cara lisa”, os traços adolescentes de seus
companheiros ressaltam-se como contraponto à força e ao vigor do negro. Mas, além do contraponto,
as figuras dos jovens marinheiros, com a tintura de “precoce morbidez”, constituem um portal de cha-
mamento à convivência sensual no pequeno mundo flutuante.
O negro, homem feito e de plena tenacidade, não demoraria muito para ter sua atenção chamada
para outro jovem, um daqueles frágeis grumetes entendidos como marinheiritos. Por isso, os que são
descritos neste momento da narrativa funcionam como seres de antecipação daquele e criam um certo
traço de fatalismo no encadeamento romanesco. É como se, entre a potência muscular de um e a lan-
guidez dos corpos púberes dos outros, não deixasse de agir o apelo para a proteção que logo redundaria
em experiências físicas e eróticas.
O MITO IMBERBE
Cercado por estas figuras definidas como “tristes”, seria difícil a Amaro escapar da vontade de pro-
tegê-las, proteção que geraria a atração. Como escravo, portanto, homem sofrido, ele conhecia bem o
abandono e não deixaria os pobres rapazes ao relento. E é se aproximando deles que pode contornar o
problema de ser homem que não se satisfazia com mulheres – “não se lembrava de ter amado nunca
ou de haver sequer arriscado uma dessas aventuras tão comuns na mocidade, em que entram mulheres
fáceis, não: pelo contrário, sempre fora indiferente a certas cousas, preferindo antes a sua pândega
entre rapazes a bordo mesmo.” Ele também as considerava fingidas, tendo dado “péssima cópia de si
mesmo”, quando “obrigado a dormir com uma rapariga.” (BC, p. 24).
Obviamente, nestas condições e com tal horizonte, estava criando orientação sexual voltada para ra-
pazes, principalmente para aquele que era “meio criança”, tinha “olhos azuis”, “muito alvo, bonitinho”(BC,
p. 78). Os rapazes frágeis ao seu redor têm condições de substituir a mulher, se mais não fosse, porque
experiência anterior com o sexo feminino fora frustrante. O desamparo, neles estampado, chamava por
mão protetora. Além disso, sofrem castigo físico. Merecem então que Amaro, feito bom samaritano,
pense suas feridas. O sentimento de proteção e cuidado abre caminho, em termos romanescos, ao sur-
gimento da relação que aproxima o adulto dos jovens marinheiros de forma mais conseqüente. Sendo
assim, Aleixo, na vida de Amaro, não é produto do acaso ou desígnio dos deuses. É fruto que vinga das
atitudes paternais do homem marcado por sofrimento.
Sabemos que em sociedade como a grega, onde e quando o que se pode chamar de homoerotismo
era prática que não causava espécie, o homem mais velho, o erastes, vivia um jogo de sedução para
atrair o adolescente que lhe despertara a atenção, o erômenos.2 Este homem tornava-se uma espécie
de professor, “companheiro apaixonado que guia seu bem-amado no caminho da honra e da virtude.”3
Por isso, a cena inicial de Bom-Crioulo é significativa. Ela coloca sobre a mesa as cartas do jogo que será
encenado: Amaro atraído pela beleza e fragilidade de Aleixo, oferece-lhe ajuda, até que se estabeleça
a união erótica.
O ritual mórbido que conhecemos com a descrição das chibatadas, com o prazer “especial” de Agos-
tinho, também acrescenta ao cenário dados fundamentais: prazer e dor, sofrimento do corpo macerado,

1 Para facilitar a leitura, faremos as indicações das referências do romance no próprio corpo do texto. Todas elas remetem a CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo.
Rio: Ediouro, s/d.
2 Cf. LEWIS, Thomas S. W. Los hermanos de Ganimedes. In: STEINER, George; BOYERS, Robert. Homosexualidad: literatura y politica. Madrid: Alianza
Editorial, 19895. p. 124-148.
3 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. Rio: Record, 1966. p. 44.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 752


sangue e gemido, corpo jovem “cortado de dores agudíssimas”. Nosso narrador parece cônscio da ne-
cessidade de preparar o espírito do leitor em todos os sentidos. Seu romance não apenas está a narrar
uma história que foge dos padrões comuns de nossa sociedade, como o faz de maneira peculiar: pelo
prisma da degradação.
Se, em certo sentido, aí ecoam filamentos da ideologia naturalista, também vemos na construção
textual a necessidade de humanizar o relacionamento de Amaro e Aleixo. O que se passará entre eles não
pode ser reduzido a “uma felicidade estranha”, à “suave embriaguez dos sentidos” (BC, p. 20), porque
é, antes e acima de tudo, convivência que, ainda que gere prazer, teu seu ônus de sofrimento. Por este
quadrante, a narrativa escapa da mistificação, focando seu tema dentro de quadro mais humanista, para
que o leitor penetre nele com menos armaduras e esteja suscetível a entender as verdadeiras motivações
de Amaro. Assim, acreditamos que as pinceladas que o autor dá nestes momentos iniciais do romance
antecipam a direção estético-ideológica que será explanada cena após cena.
E algumas páginas depois, quando Aleixo é introduzido diante de nossos olhos, ele vem como “um
belo marinheirito de olhos azuis, muito querido por todos e de quem “diziam-se ‘cousas’” (BC, p. 17).
O artigo indefinido que o acompanha liga-se à realidade comum naquele mundo: a existência de mari-
nheiros jovens e belos que atraem a atenção, a ponto de despertar a bem-querência. Assim, ele seria
apenas mais um na galeria de personagens jovens atiçando a cobiça nos mais velhos. Tanto que, dele
“diziam-se ‘cousas’” e a afirmação conota como, naquela realidade, já existia prática sexual e erótica
enformada pelo olhar e pelo discurso, aponto de estas cousas não trazerem transtornos à convivência
entre eles, pois mesmo com tais coisas ou justo por elas, Aleixo é “muito querido por todos”. O todos,
também pronome indefinido, demarca ações e desejos que levam Aleixo a ser alguém como tantos outros
e, nesta conjuntura, não é surpresa o tipo de sentimentos que ele despertará no vigoroso Amaro, ao ser
conquistado “como se conquista uma mulher formosa, uma terra virgem, um país de ouro”(BC, p. 17).
O masoquismo e seu correlato, o sadismo, penetram a narrativa desde o início, não como integrantes
do ritual privado de encontros eróticos. Eles estão no ar, fazem parte do mundo flutuante, nascem do
estremecimento de gozo de Agostinho. O banquete platônico tem outra atmosfera: em lugar do cruzar e
entrecruzar de argumentos e considerações, são os olhares que se cruzam com a dor e o sangue alheios.
A catarse espraia-se pelo vento, rebate-se nos mastros e deixa os marujos em estado febril, como se a
orgia de fato houvesse ocorrido. O castigo de um era o alívio do outro e, ao mesmo tempo, admoesta-
ção. De certa forma, estavam ligados na eletricidade física que os estremecia e o ritual das chibatadas é
arremedo pobre e raso daquele banquete que, na Antigüidade, expunha corpos para serem admirados e
decantados, suscitando explosão de argumentos, filões de raciocínio a buscar fundamento melhor para
a vida, não para a sua anulação.
UMA LÓGICA PRÓPRIA
Ele “nunca experimentara semelhante cousa”, bem como “nunca homem algum ou mulher produ-
zira-lhe tão esquisita impressão (BC, p. 22). Notemos o empenho em dar coloração natural à ordem
dos afetos de Amaro. Ao analisá-los, o narrador, em primeiro lugar, indica que nenhum homem causara
aquele assanhamento em Amaro. Só depois desta afirmação é que aparece referência à mulher. Desponta
o interesse do autor no sentido de despojar o leitor de olhar preconceituoso. O narrador deixa de ser
impessoal. Coloca-se como fonte de informação merecedora de confiança e ao garantir que nem homem
ou mulher despertara em Amaro o que Aleixo vinha despertando, ele cria entre estes elementos uma
relação de equivalência. Por isso, não é estranho, nem merece nosso desprezo “o pequeno, uma criança
de 15 anos” abalar a alma do negro, “dominando-a, escravizando-a”. Mais uma vez percebemos como
Bom-Crioulo revela o pensamento social de Caminha, ou seja, o homoerotismo como concurso aceitável
de afetos entre as criaturas. Sua simpatia pela causa faz com que ele descubra e mantenha nos detalhes
do romance uma lógica própria que não estava prevista nas teorias deterministas do seu tempo. Como
afirma Peter Fry, “é tentador imaginar que” a própria conduta existencial e social de Caminha, quando
viveu atitudes anticonvencionais, “ao ‘roubar’ a mulher do capitão do Exército, o sensibilizasse para os
‘desvios’ dos outros”.4 Ou seja, se na vida prática não se eximiu de ir contra os tabus para realizar seu
desejo, parece-nos lícito supor que sua obra artística, de forma enviesada ou indireta, é tentativa de
explanar ao leitor a necessidade de todos de autodeterminarem, cabendo a cada um saber até onde
pode ir nas raias traçadas pelos valores da sociedade e como ultrapassá-las.
Caminha é observador da Marinha. Aos 18 anos, era guarda na corporação. Em 1886, faz primeira via-
gem de instrução no Almirante Tamandaré, experiência que lhe rende o livro No país dos ianques, publicado
em 1894. Ainda em dezembro de 86 passa a servir no Solimões. No ano de 1887, vamos encontrá-lo em
quatro unidades navais, como o couraçado Sete de Setembro, a corveta Niterói, o cruzador Guanabara
e a canhoneira Afonso Celso. Na idade de 21 é promovido para segundo-tenente e o ano de 1888 marca
o embarque no patacho Paquequer. Mas a carreira promissora é interrompida quando se apaixona pela
esposa de um oficial do Exército, levantando contra ele os membros da Escola Militar. Quer dizer, ele
tinha lastro para observar as teatralizações sociais, de que deve ter-se servido, para ser coerente com
o fluxo dos sentimentos. Certamente um homem com sua experiência e coragem tinha dificuldade em
submeter-se de modo passivo às teorias determinantes do contexto cultural. Essas teorias, sustentadas
na e pela ciência, tentavam predeterminar o comportamento humano. Se, por um lado, é visível que

4 FRY, P. Léonie, Pombinha, Amaro e Aleixo: prostituição, homossexualidade e raça em dois romances naturalistas. In: Eulálio, A. (org.). Caminhos cruzados:
linguagem, antropologia, ciências sociais. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 33.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 753


no tratamento do enredo e dos personagens, há elementos destas teorias que se infiltram no realismo-
naturalismo, por outro, vemos que Caminha não as atende in totum. Parece não muito convencido pelo
discurso médico que pregava contra os perigos sociais da libertinagem.5 Sobretudo, foge do simplismo
de caracterizar os personagens em termos de bom e mau, trabalhando-os como se fossem questões de
cunho meramente individual. O autor está atento ao “conjunto de relações, à primeira vista invisíveis,
que constituem a teia de significações sociais” da qual eles fazem parte e “pela qual são envolvidos.”6
Por estas razões, o efebo Aleixo não abre parêntese sobrenatural na vida dentro do navio. O que ele
é e o que ele causa entre os trabalhadores da corveta, com o “arzinho ingênuo de menino obediente”,
está em consonância com o ambiente e suas relações. Tanto que o menino “foi-se acostumando, sem o
sentir, àqueles carinhos, àquela generosa solicitude”(BC, p. 23). Notemos que Aleixo, como inexperien-
te, rapaz de vivência limitada, pois vinha do interior, poderia escandalizar-se com a vida encontrada no
navio. Não o fez. “A idéia de que Bom-Crioulo sofrera por sua causa calou de tal maneira no espírito do
grumete que ele agora estimava-o como a um protetor desinteressado.” (BC, p. 23).
Vemos aí curiosa analogia. Aleixo pode ter um traço rousseauniano – o primitivo do interior – ainda não
corrompido pelo mundo. Em sua naturalidade, não vê como condenável a aproximação de Amaro, pelo
contrário, tem por ele espécie de gratidão. Estes elementos do ambiente fechado servem de causalidade
lógica entre os atores que viverão a história de amor, destoando do mundo em geral, mas mantendo
coerência com o universo naval. Parece que a Caminha importa dizer: nos cenários do mundo, perde-
mos o ponto exato do foco, confundimos as linhas e os traços, acabamos embaralhando os constituintes
humanos e suas nuances. Mas, ao aproximarmos o foco, ao encararmos de perto o que são as relações
humanas reais, compreendidas em circuito mais estreito, perceberemos que ganham outro contorno,
convergindo para possibilidades não previstas ou impedidas no grande mundo.
Aí, a virgindade de Aleixo não é mito de pureza. É disponibilidade para viver experiências consagrados
por determinado sistema, o do navio. Ser efebo neste contexto, portanto, não é meramente ser objeto de
desejo. De objeto primeiro, ele passa a sujeito. Sua relação com Carolina é exemplo disso. Ou seja, ao
abandonar o pequeno mundo flutuante e ingressar no outro, pôde seguir as pegadas comuns e previstas
para a maioria, sem problemas graves no desempenho específico do ser homem. Ao aceitar conviver
com Amaro, estava atuando com a consciência de que não era apenas adereço para o negro. Era voz
corrente que Bom –Crioulo tornara-se “esquecido e indiferente, dês que ‘se metera’ com o Aleixo, o tal
grumete, o belo marinheiro de olhos azuis, que embarcara no sul”(BC, p. 22.).
Ora, se este jovem era bem quisto por todos, é de se supor que não apenas Bom-Crioulo lançava
tentáculos ao seu redor. Mas era sua relação com o ex-escravo que estava à vista. Isto, que podemos
entrever nos cuidados de Amaro para com o grumete, certamente, despertava ciúme e inveja. Neste
mundo estreito, a mercantilização de interesses, inclusive sexuais, não é novidade, como seria do co-
nhecimento de Caminha em suas experiência de marinheiro. Ali as disputas aconteciam com artimanhas
sutis em busca do erótico. Os desdobramentos da amizade entre o ex-escravo e o jovem marujo bem
o comprovam. Seja como for, Aleixo estava em plena consciência de que sua relação com Amaro era
do conhecimento da comunidade. Mesmo assim não se esquiva dela, o que nos permite perceber que
ele também é sujeito, age por meio de convicção e desejo e não se deixa enredar apenas em nome do
“arzinho ingênuo” que o caracteriza.
Os olhos azuis, o cabelo alourado, as formas do corpo com “seu todo provocador” são pintados di-
versas vezes pelo discurso do narrador. Ganha tal descrição um toque de fetiche. A sobrecarga narrativa
corrobora a dificuldade que Amaro encontra para resistir ao fascínio, talvez porque “o contemplador se
torna objeto de si mesmo”.7 Os traços de beleza física do marinheirito, reiterados, enfatizam o anseio
duplo da liberdade de Amaro – a liberdade que o escravo conquistara parcialmente ao fugir; a liberdade
de constituir-se como amante, falassem o que falassem os companheiros e os modelos vigentes. Ao se
desfazer das correntes que o prendiam à fazenda, onde trabalhara, também se desfazia de uma imagem
de masculinidade – “dera péssima cópia de si mesmo como homem”(BC, p. 24) – patente na já referida
experiência, sem êxito, com mulher.
O fato de não ter sucesso com mulheres, em virtude de seu desinteresse por elas, ou vice-versa,
liberava-o de papel convencional – ser varão destinado a procriar. Estava, portanto, disponível aos en-
cantos e formosuras de um adolescente como Aleixo. É por esta ordem de coisas que a beleza do efebo
destaca-se. Justifica a coragem e a ousadia de Amaro, dá mais concretude aos seus olhos: não apenas
olha o menino por meio da magia amorosa, como, olhando-o, percebe em si outro modo possível de se
posicionar no mundo. O que também adensa o olhar do narrador, ciclicamente impelido a pormenorizar o
aprumo simétrico do seu Adônis. Na verdade, “o menino bonito dos oficiais”, o “boy” leva Amaro a sobrepor
à prudente sabedoria que é necessária para viver o cotidiano, “a sabedoria perigosa mas vivificante de
um fervor mais livre e de um absoluto mortalmente puro”8, na reflexão feita por Yourcenar para explicar
as atitudes do adolescente e personagem do romance O templo dourado, de Mishima.

5 FRY, P. Op. cit., p. 47.


6 FRY, P. Op. cit., p. 37.
7 SCHULER, D. Narciso errante. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 29.
8 YOURCENAR, M. Mishima ou a visão do vazio. Lisboa: Relógio d’Água, s/d, p. 26-28.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 754


O FALO COMO PONTE PARA O MUNDO
No diálogo que o romance mantém com o mito do jovem efebo, este ganha novos investimentos. A
forma pela qual ele aparece nas páginas de Caminha, ou seja, humanizado, sem tintura abstrata, faz
com que o mito abandone as esferas intemporais e seja transportado para a condição humana. A con-
seqüência desta opção narrativa torna o efebo alguém palpável, de sensualidade capaz de modificar o
roteiro de vida do ex-escravo. O “forte desejo de macho pela carnalidade grega” (BC, p. 30) leva Amaro,
rotulado como Príapo, a jurar satisfazer suas vontades. Sabemos que Príapo, filho de Afrodite e Dioniso,
era disforme, em razão do ciúme que Hera sentira por Afrodite. Abandonado pelos campos, é criado por
pastores. Guardava os vinhedos, bem como os jardins e pomares e era representado por simulacro de
forma fálica.9
A deformidade, por meio da qual Príapo é pintado pela tradição, esbarra, neste romance, com a per-
feição de Aleixo, nutre-se dela a contrapelo. Ou seja, os traços horrendos de um enfatizam mais a bela
delicadeza do outro. Tendo no seu sangue a herança do mar e da festa, Príapo centra no falo imenso
a ponte com o mundo. Se foi filho abandonado que, como Édipo, cresceu sob os cuidados de pastores,
ele traz na formação elementos que se completam: de Afrodite, vem o amor; de Dioniso, o delírio; dos
pastores, o cuidado, o trabalho, o contato com a natureza, o olho treinado para a observação. Estes
componentes parecem trincar-se com a fealdade da criança abandonada. Contudo, a dor da rejeição,
que foi o processo a crescer dentro dele, à medida que desenvolvia seu entendimento do mundo, leva-o
ao poder germinador sobre-humano, representado pelo pênis de dimensões avantajadas.
Capaz de muita vida, a carga seminal que ele elabora em si, também o habilita para os cuidados de
vinhedos, jardins, pomares, representantes mais que da vida – da produtividade da vida, de seu teor
de geração. A fecundidade, assim, extrapola o índice genital e distende-se como trabalho de atenção,
de cuidado, de velar para que os frutos sejam fartos. E estas estampas, transpostas para o substrato de
Bom-Crioulo, são emblemas da fecundidade de Amaro em seu trabalho de mestre orientador do pequeno
grumete. Ajudam, por isso, a definir o todo bakhtiniano que perseguimos em nossa análise, tentando
perceber como as fronteiras do herói são construídas romanescamente e, na constituição de sua totali-
dade, como seu sentido é inscrito em têmpera de discurso muito bem tramado.
Contudo, Amaro-Príapo não é apenas o falo em riste. Ele é o que vigia os pomares, os jardins, os
vinhedos. Ele cuida para que a seiva vital vingue e dê frutos, garantindo a vida. Não por acaso, encontra-
mos Amaro com o “braço por cima do ombro do pequeno” (BC, p. 31), explicando dados geográficos que
viam do navio. Não por acaso, os detalhes do vestuário, as posturas, os gestos foram sendo modelados
pelo negro no menino de 15 anos. Pastoreando o garoto no navio, Amaro-Príapo prepara-o para adentrar
o outro mundo, onde a perda é inevitável, porque jardins ou pomares não duram para sempre. Sob os
cuidados de Amaro, Aleixo amadurece também para Carolina.
A lembrança da primeira “noite dormida sob o mesmo lençol (...) como um casal de noivos em plena
luxúria” leva nosso personagem a uma erupção de consciência: ele é tomado pela certeza de que só no
homem poderia encontrar “aquilo de debalde procurara nas mulheres” (BC, p. 32). Mesmo cônscio da
anomalia, sabe também que “as mulheres o desarmavam para os combates do amor”. Ainda arrastado
pela dificuldade de conceber e aceitar o “comércio grosseiro entre indivíduos do mesmo sexo”, Amaro
sente-se dominado pela “natureza” que “impunha-lhe este castigo.”
A voz da sociedade, com suas injunções, torna-se clara nesta passagem de prospecção. Amaro vive
o conflito nítido entre o que aprendeu com certa ideologia e o que vem aprendendo na prática, já sem
se sujeitar aos ditames culturais. Entre o que deveria ser e o que é, há a inscrição de Aleixo, podendo
mais que a vontade pessoal. Amaro não se arroja à experiência apenas atendendo à força dos impulsos.
Seus desejos, com as devidas conseqüências, passam pelo crivo de região difícil de delimitar e que fica
entre o social e o individual.
Por isso, não é só Amaro que constrói Aleixo. Aleixo, por meio de Amaro, pela concretude deste,
também remodela-o. No transcurso, tudo o que é anomalia, gozo pederasta, delírio invencível, plena
luxúria não se circunscreve mais ao plano apenas individual. A compreensão de si por meio do outro e
deste outro por meio de si, na interação dramática que é o fulcro do romance, leva “o estigma da tragédia
que marca a aventura dos dois marinheiros” a ser localizada não “no homossexualismo que os relaciona,
mas no conjunto de práticas sociais em que esta relação se dá.”10 Assim é lido o romance por Peter Fry,
quando ele defende a postura de Caminha como a de um autor que “rompe com a moral pragmática da
homossexualidade e das características das raças.”
A voz romanesca, nas intrincadas relações dialógicas com o mito do efebo e de Príapo, recusa-se a
simples rejeição da ordem médica que trabalhava no sentido de controlar a sexualidade e taxar “as ati-
vidades sexuais fora da vida em família” como degeneradas e imorais, de acordo com Fry. Discordando
deste discurso, o narrador de Caminha elabora tintura de muita complexidade, em que o desvio é visto
não como célula apartada do convívio social. Conforme anota G. Velho, ao estudar a questão do desvio
na obra de Proust e Nelson Rodrigues, quando isto ocorre, é “levado às últimas conseqüências, (e) não
afasta propriamente o indivíduo da sociedade, mas vai conduzi-lo a um mergulho,a uma viagem que
muda os sinais, as direções e o mapa.”11
9 GUIMARÃES, R. Dicionário de mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 264.
10 FRY, P. Op. cit., p. 49.
11 VELHO, G. Literatura e desvio: questões para a antropologia. In: EULALIO, Alexandre. Caminhos cruzados. Op. cit., p. 88.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 755


A experiência que daí resulta tem labilidade difícil de aprisionar nos sentidos das palavras, mas apre-
senta lição impossível de despistar: “paga-se um preço elevado pela vida em sociedade.”12 Negando a
cultura e a ideologia, porém enfronhado por elas, Amaro vive dramaticamente as restrições que o trans-
portam a impasses de saber-se desarmado para as mulheres, aos mesmo tempo que o rapaz amado
lubrifica suas engrenagens para vôos eróticos. É no espelho dessa cultura e dessa ideologia que ele vê
sua personalidade etiquetada a ponto de ter como grosseiro e anômalo o contato com o mesmo jovem,
quando é com ele que é capaz do desfrute da beleza, da lascívia e do aconchego.
Trazendo o banquete de Platão para os fins do século passado, Caminha sabe que o amor entre duas
criatura do mesmo sexo é também questão estética, jeito de admirar e saborear a vida, mesmo nada
sendo fácil a quem se encontra neste estado, como disse Alcebíades, ao proferir o louvor a Sócrates.
Trabalhando com personagem obcecado pelo todo, o narrador de Caminha faz este personagem “ultra-
passar a experiência individualizante”, esbarrando na consciência mais clamorosa de que acima de tudo
é um indivíduo. E a “evidência” disso “é anterior às múltiplas possibilidades que as sociedades têm de
atribuir valores ao indivíduo como unidade e singularidade”, como afirma Lázaro no seu estudo sobre o
amor.13
Desta forma, sabendo-se um e “diferente dos demais, a experiência da dissolução será sempre um
rito”, alguma coisa que procede como passagem entre o ser consciente no plano comum e o ser cons-
ciente no plano da paixão, quando está exacerbada a percepção de si e do outro. E envolto neste rito, a
experiência é “suspensão temporária” da própria singularidade, ainda segundo Lázaro.14 Por conseguinte,
Amaro dissolve-se em Aleixo, razão de ser de sua consciência individual temporariamente liquefeita na
consciência do grumete como sendo o outro amado. A vivência, dramatizada em percepção de impas-
ses, parte destes fundamentos, como se estivesse apalpando concretamente as restrições e nada mais
lhe fosse possível, a não ser derrubar os muros, ainda que se ferindo, para atingir o que “só no homem
poderia encontrar” (BC, p. 32). A anomalia então, não está em desejar o rapaz. A anomalia é saber que,
além de viver este amor e este desejo, nada mais lhe está disponível, apesar dos esforços de resistência
em relação ao encanto do outro, pois o próprio Amaro é fruto da sociedade homofóbica.
Ecoando ao fundo, ouvimos a voz de Caminha, em seu ódio ao mundo comum daqueles que se ades-
tram sob a ordem imposta. Antecipando o que encontramos em Sartre e em Genet, no século passado,
a ira de nosso autor “implica la negación de la legitimidad de cualquier norma, de cualquier precepto
moral ou de cualquier principio de decoro”, voltando-se não apenas contra os esquemas sociais, mas
contra os homens e mulheres mesmos que “viven dentro de esse orden”, talhando aí o que o mestre
existencialista e o escritor escatológico consideram a falsa consciência.15 Falsa consciência que aos outros
impede a vida e a Amaro encurrala entre as seta dos desejo e da restrição.
DITOS POPULARES, ESTEREÓTIPOS, CHAVÕES
Outro recurso presente na arquitetura do romance é o uso de provérbios, frases feitas, expressões da
linguagem de baixo calão, expressões truncadas como em “...que os pariu!” (BC, p. 42). Ao coletar estas
locuções, o autor lança mão de um outro discurso, que é convocado para efeitos de ironia e também
para contrastar a mobilidade da ideologia presente em Bom-Crioulo com a ideologia cristalizada na visão
popular e presente nestes ditos. Explicando: o romance de Caminha não apenas conta uma história em
torno do homoerotismo. Ele conta esta história com intenções ideológicas específicas, que são aquelas
voltadas para a dissolução dos preconceitos do leitor.
A ideologia, então, que enforma os recursos composicionais usados pelo autor, tem expressiva ani-
mação. Pelas brechas do seu discurso, pela coloração de cenas criadas, pelos elementos que vêm à tona
no transcorrer da narrativa, a ideologia de constatação de tabus manifesta-se na ousadia de colocar
diante de nossos olhos não apenas um caso homossexual e sim a relação entre o ex-escravo e o jovem
livre. Tais chaves dinamitam a porta dos discursos castradores, nos quais têm lugar apenas as posturas
e os comportamentos previstos, portanto, previsíveis. É neste conjunto que se tornam visualizados os
recortes homossociais do romance que não apenas observa e critica o seu tempo, como guarda para o
presente elementos estéticos que merecem reflexão e análise.
Com sua criação, Caminha arma enredo explosivo, inquietante, questionador das categorias que regem
nossa visão e nossos comportamentos. Por isso, enxergamos a marcha de suas convicções inclusive a
driblar as fortes crenças entronizadas em sua época e legalizadas pelo discurso médico. Assim, há voz
implícita no romance que estabelece o confronto entre os princípios que governam sua constituição e os
princípios que estão estampados nas crenças/convicções populares que os provérbios encarnam. Estes
dois pontos de vista cinzelam a bivocalidade bakhtiniana. Da ordenação que o narrador dá aos ditos
populares provém a opção do autor por um tipo de linguagem, a cotidiana, por meio da qual o autor-
narrador estiliza visões de mundo. No caso, tal estilização nasce do confronto referido entre a imagem
questionadora do mundo, representada pelo discurso estético-ideológico do autor e a imagem conser-
vadora do mundo, embutida nos provérbios chamados à cena.

12 VELHO, G. Op. cit., p. 86.


13 LÁZARO, A. Amor: do mito ao mercado. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 25.
14 LÁZARO, A. Op. cit., p. 25.
15 NACHMAN, L. D. Genet, dandy de los abismos. In: STEINER, G.; BOTERS, R. (orgs.). Homosexualidade: literature y politica. Madrid: Alianza Editorial,
1985. p. 248.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 756


Por outro lado, os provérbios e os ditos populares são “filhos sem pai.” Fazem parte da história da
língua e certamente é difícil localizar sua origem. Mas repetem estereótipos localizáveis em determinados
recortes culturais, demarcando a vigência da rigidez com que atitudes, em especial as ligadas ao sexo,
são encaradas e tidas como a natureza das coisas de homem.
Na cena em que Amaro é espancado, lemos: ele “tinha costas de ferro para resistir como um Hércu-
les” (BC, p. 17). As costas de ferro, lugar-comum para designar homem forte, mais a comparação com
Hércules, outro elemento da mitologia, não deixam de conter laivo irônico, dentro do que explica Maria
L. de Castro: “a ironia é um caso típico de discurso bivocal. Nela, a palavra tem duplo sentido: volta-se
para o objeto do discurso como palavra comum e para um outro discurso.”16 O objeto do discurso aqui é
Amaro, melhor, seu vigor e robustez, a capacidade de resistir ao castigo, logo, sua virilidade, simbolizada
na referência a Hércules, herói de todas as forças.
Ora, este homem, visto como “riquíssima exibição de músculos”, capaz de resistir às chibatadas, não
resistiria ao olhar azul de Aleixo, às formas do efebo. E é nesta configuração que detectamos a ironia.
Voltando-se para a descrição de Amaro com termos que decantam sua masculinidade, o discurso apon-
ta para outra direção: é este homem que, frustrado com as mulheres, encontra num rapaz as vias de
acesso ao erotismo e ao amor. O choque ideológico entre a visão do romance e a categoria estampada
no chavão “costas de ferro” se faz, como a dizer: alguém deste porte poderia se interessar por uma
rapaz? A que só caberia a resposta: alguém deste porte não tem desmontada sua condição de ser viril
pelo fato de ser homossexual ou agir como tal.
E devemos notar ainda: o Hércules está grafado em letra minúscula, porque representa imagem uni-
versal ou quase, ao alcance do leitor. A identificação entre Amaro e Hércules é, pois, imediata. Os fluxos
de virilidade entre eles também. E quando este mesmo leitor passar a se imbuir das aventuras eróticas
do negro, terá de implodir a semiologia oriunda da idéia do que é ser homem ou então buscar outras
analogias entre o personagem, o ferro, o tal Hércules, se não quiser encarar de frente a questão real do
romance: um macho acima de qualquer suspeita pode agir e amar homoeroticamente.
No início do segundo capítulo, quando o narrador tem necessidade de apresentar o personagem Amaro,
está dito que ele vinha de lugar ignorado. Ao descrever sua aparência, o discurso narrativo é outra vez
eivado de detalhes facilmente deglutíveis pelo leitor: Amaro está “metido em roupas d’algodãozinho,
trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na cabeça e alpercatas de couro cru”. Os elementos do quadro
convergem para a imagem do que já no século 19 poderia ser o típico jeito de trajar do “povo brasileiro”.
Pelo menos, na roupa leve de algodão, no chapéu de palha, na alpercata não estão presentes o veludo, a
seda e outros tecidos caros ao vestuário do brasileiro rico, ainda que inadequados ao clima, como aponta
Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala.17
O homem fugido de fazenda que é o negro, sobraçando uma trouxa e vestido de maneira simples,
tem pontos de contato com parte dos leitores destes brasis ainda divididos em casas-grandes e senzalas.
Acontece, aí, outra identificação. Amaro é tão ingênuo e inexperiente que confundiu o mar com “um rio
muito largo” (BC, p. 18). E no navio, onde é despido e tem o corpo examinado em detalhes por quem
irá empregá-lo, surge o “novo homem do mar.”
Este homem novo vive a sensação de lhe haverem “injetado no sangue de africano a frescura deliciosa
de um fluido misterioso”. É o contato com a liberdade, transcrito com imagens mais do que desgastadas:
“alma de luz, “som de cousas etéreas”, “o imaculado azul do céu”, “navios balouçando entre ilhas” etc.
E entramos no primeiro discurso indireto livre, focalizando o íntimo deste homem. E por aí sabemos que
ele sentia vontade de chorar, “chorar francamente, abertamente, na presença dos outros”.
Ao ser humanizado, o personagem desperta as simpatias de quem quer que seja. Por meio de ima-
gens poéticas que fazem parte do repertório do leitor mediano, pela prospecção nos labirintos anímicos
de Amaro, quando sabemos da sua disposição ao choro, o leitor passa a abraçar as causas de vida do
personagem. E a situação deste, como homem capaz de chorar em público, delineia outra espécie de
vigor: a coragem para o enfrentamento de tabus mais complexos.
Quando, linhas depois, o narrador informa-nos que Amaro “sentia-se verdadeiramente homem, igual
aos outros homens, feliz de o ser, (...) em toda a pujança viril de sua mocidade”, a reversão é automá-
tica: ele é como o leitor. Os signos verbais, empalidecidos pelo uso, como daguerreótipos em que a face
de alguém é reconhecível, apesar da longa exposição ao tempo, reconhecível porque nesta face nada
há de novo, em suma, estes signos pinçam a atenção do leitor, cooptam sua disposição ideológica. Os
trejeitos do homem no navio, a despertar riso e afeição dos oficiais, porque não se acertava bem com
as “praxes militares”, são outros índices do convite à fusão entre leitor e personagem.
O foco descritivo também vai privilegiar o porte físico de Amaro. Estando ele instalado na vida de
marinheiro, acontece a primeiro exibição de seu corpo nu. E a reação? “Foi um clamor! Não havia osso
naquele corpo de gigante.” “A maruja (...) sorria boquiaberta diante do negro” (BC, p. 21). Ainda que
a ênfase esteja calcada no peito, braços, ventre, quadris e pernas, há outro aporte bivocal do discurso
da narração. Se não é comum, em nossa sociedade, a admiração da aparência de um homem por ou-
tro homem, no ambiente do navio isso não só acontece, como traz o reconhecimento de que Amaro é
“’homem perigoso’”.

16 CASTRO , M. L. D. A dialogia e os efeitos de sentido irônicos. In: BRAIT, B. Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas: Editora da Unicamp,
1997. p. 130.
17 FREYRE, G. Casa grande e senzala. 27a. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990. p. 415-416.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 757


O epíteto, no próprio corpo do texto está entre aspas, demarcando a ambigüidade da afirmação: se
Amaro é perigoso por sua força, certamente também o é pela atração que sua beleza poderia provocar
entre os que não lhe escondiam a admiração. E o estranhamento que tal ordem de fatos pode despertar
no leitor, logo vem coroado por outro detalhe: Amaro desejava trabalhar “em certo navio”, onde o co-
mandante “dizia-se amigo de todo marinheiro robusto.” E ficamos sabendo que tal comandante “preferia
um sexo a outro nas relações amorosas”.
O fato de Amaro bandear-se para este lado, pode ser visto como prolongamento natural para quem
deixava os marujos de boca aberta com o seu talhe físico. E, certamente, levará o leitor pelos caminhos
do romance, se não por meio da identificação, pelo menos por meio da curiosidade, pois nesta altura,
cativado pelo negro, ninguém abandonaria a leitura, antes de ver esclarecidas as insinuações e perspec-
tivas cravadas nesta forma de conduzir os fatos narrados.
Estando Amaro e Aleixo já envolvidos, o adulto instruirá o jovem sobre como vestir-se, já vimos.
Cercado por estas preocupações, o narrador, em discurso indireto, refaz o adágio popular “o hábito faz
o monge”. Se “provérbios e máximas têm como objetivo, na expressão dos interesses da ideologia bur-
guesa, firmar o universalismo, a recusa da explicação e a hierarquia inalterável do mundo”18, a recriação
do dito convencional, na boca de Amaro guarda significações outras.
Ao refazer o provérbio de teor negativo em afirmativo, o romance nos diz que não podemos simples-
mente adotar verdades prontas para a explicação do mundo conhecido e codificado. Ao dar outra textura
ao hábito do monge, recontextualiza-o no pequeno mundo flutuante, também afirmando que é necessário
encontrar outras chaves para o mesmo mundo. O efeito ideológico desta postura sobre o leitor é mais
drástico: dando nova investidura ao provérbio, com a elisão da negativa, Amaro nos mostra como está
disposto a arcar com inovações de comportamento que gerarão outros discursos e vice-versa, ilustrando
que as categorias usuais estão a necessitar de novo oxigênio.
Nos projetos que ambos, Amaro e Aleixo, alimentam para o Rio de Janeiro, sabemos que, entre as
promessas do negro, o jovem sonhava com “uma vida cor-de-rosa lá nesse Rio”. O irrestrito apelo a uma
imagem vulgar guarda ainda assim, sabor de novidade, no traço ambíguo que este “cor-de-rosa” assume
aqui. Com o retrato do “menino bonito”, acentuando inclusive que era o “boy” dos oficiais e com Amaro
esmerando-se para educar o garoto, o narrador apresenta agora o rapazinho mordendo “distraidamente
a ponta do lenço de chita” (BC, p. 26).
O cor-de-rosa, então, não é apenas o futuro ainda mal delineado lá na frente. É categoria de identidade,
de jeito de ser, praticamente em oposição à virilidade física decantada a respeito do negro. Ao analisar a
questão da identidade do adolescente homossexual, Isay afirma que “a percepção do preconceito social
nas atitudes dos pais e amigos em relação aos homossexuais faz com que muitos adolescentes de doze,
treze, quatorze ou até quinze anos reprimam ou suprimam seus impulsos e fantasias sexuais e neguem
para si mesmos que são homossexuais.” O grande problema nessa faixa etária é a ausência de “modelos”
com quem o jovem possa se identificar. Privados de modelos e cercados de hostilizações, muitos adoles-
centes procuram “suprir as expectativas de amigos, família e sociedade” namorando e tentando relações
sexuais com garotas. Mas, “tais atividades são normalmente mecânicas, e os esforços sem ardor acabam
provocando o fracasso físico e a angústia psicológica.”A insatisfação com as tentativas e o fracasso na
busca da heterossexualidade “fazem com que a maioria destes adolescentes passe a duvidar da capa-
cidade de responder apaixonadamente a alguém”19 o que gera apatia e crise de identidade. Aleixo, nos
seus 15 anos, parece resolver a questão de modelo muito bem, já que seu amante apresenta “riquíssima
exibição de músculos” (BC, p. 17), é briguento, corajoso, aventureiro, traços estes que são o protótipo
da virilidade (dentro da visão do Brasil popular) e, mesmo assim, mantém paixão viva pelo grumete.
CONCLUSÃO
Pelo exposto, percebemos que o terreno aplainado entre o heroísmo do personagem, a dimensão
humana e o comportamento homoerótico funciona como um aspecto da defesa da causa homossexual
que vemos inserida na narrativa. A compatibilidade entre as facetas que compõem Amaro leva-nos a
considerar as palavras de G. Velho, quando estuda a obra de Proust. Nos romances do autor francês, a
heterossexualidade aparece “não como melhor ou mais normal, mas como necessária.” Nestes termos,
“a homossexualidade não é anormal”. A questão está voltada para o que Velho chama de “permanente
possibilidade de atualização que pode levar a impasses para a continuidade da sociedade”, uma vez
que esta “procura sempre se reproduzir e a homossexualidade é estéril”. Daí deriva “seu caráter de
maldição”. Proust, ao encarar estas encruzilhadas em Á procura do tempo perdido não o faz pela ótica
moralista. Há nele, conforme explica Velho, “profunda reflexão sobre as necessidades do todo – a so-
ciedade – esmagando e submetendo os desejos individuais”. E é por isso que “o que chamam de desvio
existe e não está fora da sociedade, mas esta anda sempre em uma corda bamba, sustentada por um
pacto”, já que necessita de reprodução e, mesmo assim, no seu meio viceja o homoerotismo dentro da
esterilidade mencionada.20
O romance de Caminha defende Amaro, propugnando por sua inclusão, não pela sua expulsão da
sociedade humana, pois sua presença em nosso meio teria o efeito de revelar mais um elemento, dos

18 CASTRO, M. L. D. Op. cit., p. 132.


19 ISAY, R. A. Tornar-se gay: o caminho da auto-aceitação. São Paulo: Edições GLS, 1998. p. 64-65.
20 VELHO, G. Op. cit., p. 85.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 758


tantos e variados, que compõem nossa comunidade. Por esta ótica, Bom-Crioulo põe em causa a idéia
de esterilidade do homossexual, uma vez que o comportamento de Amaro, dentro de sua dimensão
humana maior, já não pode ser vista como ato sem frutos: seu trabalho e a proteção que exerceu sobre
Carolina, bem como o amparo a Aleixo, dão prosseguimento a setores desta mesma sociedade preocu-
pada em reproduzir-se.
E é nesta comunidade que o comandante do navio é pintado como uma “espécie de Gilles de Rais
menos pavoroso” (BC, p. 54). A inclusão de voz histórica aqui não é gratuita. Sabemos que Gilles de Rais
foi companheiro de Joana d’Arc, tendo nascido provavelmente em 1400. Depois de perder sua fortuna,
retira-se para o campo, onde dedica-se ao satanismo. Em seus rituais, costumava sacrificar meninos,
depois de violentá-los, até ser executado em 1440.
Ao referir este personagem, o discurso narrativo é ambíguo. Fala primeiro em lenda, acentuando
o caráter ficcional do mesmo. Porém, em seguida, usa o termo crônica que pode indicar o registro de
acontecimentos reais. O caráter pendular destas afirmações traz matiz ideológico para resguardar a
integridade de Amaro: na ficção, ou na série dos fatos, Gilles de Rais é o outro, o comandante, não é o
nosso personagem. É Gilles de Rais o assassino, o satânico, o violentador. Deste confronto, nasce um
Amaro benévolo e íntegro, pois, enquanto o comandante é indiferente “pelo sexo feminino”(BC, p. 54),
Amaro expôs a vida ao perigo, quando salva Carolina do assalto.
Assim, do grande diálogo que Bom-Crioulo tece com o mito platônico da completude, passando pelo
revestimento particular que dá ao mito do jovem efebo, além do tratamento aos provérbios e ditos
populares, fica evidente nesta obra o que Bakhtin chama de “descentralização do mundo ideológico-ver-
bal.”21 Pressupondo grupos sociais variados é deles que Caminha extrai discursos e acentos para compor
a trama romanesca. O trançado de vozes gera a interação original do narrado que não se realiza na
atenção exclusiva ao mundo marinheiro. Ainda que privilegie o circuito fechado (o mundo do navio e do
quarto), este faz parte do universo social mais amplo e nele ressoam tonalidades de vozes que tivemos
oportunidade de tangenciar. Abrindo-se à convivência tensa com múltiplas linguagens, o romance se faz
complexo, plurilíngüe, representando em graus diversos a heterogeneidade constitutiva que é essencial
na língua e mina geradora da riqueza do romance.
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 8 ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
_____. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec/Unesp. 1988.
BRAIT, B. (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
CAMINHA, A. Bom-Crioulo. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
_____. Bom-Crioulo. Rio de Janeiro: Artium, 1997.
EULÁLIO, A. Caminhos cruzados: linguagem, antropologia, ciências naturais. São Paulo: Brasiliense, 1982.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 27 ed. Rio de Janeiro: Record, 1990.
GUIMARÃES, R. Dicionário de mitologia grega. São Paulo: Cultrix; Brasília: INL, 1972.
ISAY, R. Tornar-se gay: o caminho da auto-aceitação. São Paulo: Edições GLS, 1998.
LÁZARO, André. Amor: do mito ao mercado. Petrópolis: Vozes, 1996.
SCHULLER, D. Narciso errante. Petrópolis: Vozes, 1994.
SPENCER, C. Homossexualidade: uma história. Rio de Janeiro: Record, 1996.
STEINER, G.; BOTERS, R. (orgs.). Homosexualidad: literatura y política. Madrid: Alianza Editorial, 1985.
YOURCENAR, M. Mishima ou a visão do paraíso. Lisboa: Relógio d’Água, s/d.

21 BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São PauloL Hucitec/Unesp, 1988. p. 165.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 759


Reflexões sobre a esfera da atividade médica em consulta clínica1

Marcos Antonio Moura Vieira

PEPG MeEL/IL e DCM/FCM – UFMT

Houtmankade, 5E, 1013 MP

Amsterdam-NL / 00 31 20 6260598

E-mail: mvieir@hotmail.com

Resumo I
Estudamos a esfera de atividade clínica de infectologistas com pacientes de AIDS, baseados na con-
cepção bakhtiniana do dialogismo. Observamos a circulação temática retomando textos em três feixes
de trocas concretas: diálogos entre médico e paciente em consulta; reflexões de médicos e de pacientes
sobre a atividade de consulta e escritos do/no e sobre o trabalho. Articulando os materiais confrontamos
enunciado concreto e representação discursiva, caracterizando a autoconfrontação enunciativo-discursi-
va, um dispositivo metodológico que mobiliza o diálogo de fragmentos da situação estudada refletindo e
refratando a mobilidade do sentido. Desenhamos dois temas: a facilidade genérica de tratar a doença
AIDS e a dificuldade localizada de dialogar com o paciente “aidético”, cuja “ambiguidade” entre ação e
representação não impediu a progressão da atividade, posto que, no espaço plurivocal retomado pelo
desenho e materiais da análise, atualizava-se uma experiência dialógica polifônica que possibilitava a
reformulação das reflexões do coletivo e redimensionava o gênero consulta.

Resumo II
We have studied the sphere of clinical activity between infectology specialists and AIDS patients, with
the purpose of recovering the dialogic process of production of sense. We followed the theme circulation
between undertaking the activity and talking about it, in three levels of material production: the phy-
sician-patient dialogue during consultation; the physician and patient reflection upon the consultation
activity and the writings of and about the work. We applied a dialogic analysis called speech-enunciative
autoconfrontation, a methodological instrument that mobilise the dialogue of speech fragments from the
situation and developing an inner structure of exchanges among materials which is reflect and refract
the sense. Than we have found two themes: the generic facilities to make a medical procedure and the
localized difficulties to dialogue with patients. However, this “ambiguity” does not stop the progression
of the activity and the polyphonic dialogue makes a new consultation speech gender possible.

As esferas da atividade humana são consideradas, nas reflexões do Círculo Bakhtin/Volochinov/Me-


devedev, como a arena privilegiada para o estudo dos gêneros do discurso. Nesse sentido, abordar uma
atividade, tal como a clínica médica, pressupõe um estudo das formas de enunciação que a caracterizam
na sua prática cotidiana. Tal foi o desafio com o qual nos deparamos, em meados da década dos 90 do
século XX, quando chamados a refletir sobre as dificuldades de diálogo entre infectologistas e pacientes
soropositivos para o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e doentes da Síndrome de Imunodefici-
ência Adquirida (AIDS). Para contribuir com o entendimento dos problemas do cotidiano do trabalho, foi
preciso esclarecer quais as características da esfera de atividade dos infectologistas nas suas correlações
com o gênero do discurso que se podia mobilizar nessa situação especifica.

1 Estudo elaborado como parte das atividades de pesquisa desenvolvidas correlatas à área de Psiquiatria do Departamento de Clínica Médica (DCM) da
Faculdade de Ciências Médicas (FCM), em articulação com Pesquisas do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem (MeEL) do Instituto de Linguagens
(IL), ambos da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Particularmente associado ao desenvolvimento dos projetos de pesquisa: A análise da atividade
de diagnóstico psiquiátrico: a autoconfrontação enunciativo-discursiva aplicada ao exame psíquico (PROPEG 006/cap-2003) e Atividade e discurso nos gê-
neros de ensino: um projeto de análise enunciativo-discursiva do trabalho de professores (PROPEG 008/cap-2003), coordenados pelo Prof. Dr. Marcos Vieira
(UFMT); bem como ao projeto Maternidade e Paternidade na esquizofrenia: o impacto da doença na vida de pacientes e seus filhos, (CNPq 4744002003-4),
coordenado pelo Prof. Dr. Jair de Jesus Mari (UNIFESP).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 760


Em linhas gerais, observamos que a esfera da atividade podia ser visualizada em duas vertentes.
Na primeira, da representação, a consulta era dita nas falas dos médicos, como uma atividade difícil
de ser vivenciada mas tecnicamente fácil de ser realizada, contrariamente aos ditos dos pacientes, que
a consideravam uma situação extremamente difícil de submeterem-se, sob a maioria dos os aspectos
clínicos. Na segunda vertente, da ação clínica propriamente dita, os médicos examinavam invasivamen-
te e prescreviam medicações a revelia de atitudes corporais e não-verbais nas quais os pacientes lhes
indicavam seu desconforto e desautorização.
Antes de examinar como essa aparente dicotomia vai revelar-se bem mais complexa quando busca-
mos apreender qual(is) gênero(s) do discurso permitia(m) a circulação temática da facilidade de tratar
a AIDS e da dificuldade de realizar a consulta, passaremos a refletir mais estreitamente como conceber
à noção de gênero na situação específica do estudo dos textos advindos de uma atividade concreta2.
Vamos fazê-lo sem perder de vista que, na atividade em questão, existe um repertório de modos de dizer
contraposto a um inventário de modos de fazer, verbalmente diferentes entre si, mas associados num
desenho de continuidade no engajamento real entre médicos e pacientes no decorrer do tratamento.
O gênero entre a atividade e o discurso
Dentre as várias possibilidades de compreensão da palavra gênero, a característica classificatoria se
destaca fortemente. Desde o gênero que se refere a sexo, masculino ou feminino, passando pelo tipologia
de texto, gênero novela, conto, ensaio, tese, toda uma gama de possibilidades que se atualiza em uma
supra categoria englobante: os gêneros do discurso. Mas observamos que há uma expressão cotidiana
que quase consegue escapar de uma conceituação situada no “sistema referencial” (da sexualidade, da
literatura, da lingüística) ao utilizar a palavra gênero diretamente correlacionada ao comportamento de
uma pessoa: fazendo gênero (- ele está fazendo gênero; - ela fez gênero). Dizemos quase porque, se
contextualizarmos o uso dessa expressão, perceberemos que os participantes do diálogo saberão loca-
lizar, no plano da esfera da atividade, o estado de gênero ao qual estão se referindo, que é em geral,
correlato à situação de fazer resistência a agir de uma forma diferente ao que está sendo proposto pelo
plano social.
Estado de gênero pode ser compreendido como uma espécie de suspensão de um modo de agir
que está disponível na esfera social de tal forma saturado de significação que não é necessário que se
lhe atribua sentido. Esse concentrado encontra uma funcionalidade quando, em uma conversação, se
confunde com um tema que, por sua vez, só poderá ser compreendido no movimento dialógico de um
diálogo. Passaremos a refletir sobre essa possibilidade de marcar um gênero da atividade.
Gêneros do discurso e esferas de atividade
Nos estudos do Círculo Bakhtin/Voloschinov/Medevedev, o gênero é uma noção complexa que pode
ser formulada diretamente como “o repertório das formas de discurso na comunicação sócio-ideológica
(Bakhtin/Volochinov, 1929/1992) ou indiretamente como um caminho a partir da atividade: cada es-
fera de utilização da língua elabora seus “tipos relativamente estáveis” de enunciados, que podem ser
identificados como gêneros discursivos (Bakhtin, 1952/1953-1992: 279). Como a atividade humana é
virtualmente inesgotável, a variedade e a heterogeneidade dos gêneros orais e escritos comportados nas
esferas de utilização são infinitas, mas passíveis de ser captadas em suas particularidades. A concepção
Bakhtiniana de análise do discurso (metalingüística enunciativa) ajuda a mapear as especificidades mais
ou menos estáveis de um gênero, que residem na corporificação de três elementos discursivos: a estrutura
composicional, o estilo e o tema, fundidos no todo do enunciado na esfera de utilização da língua.
Retomando a noção de gênero, Brait (2001: 06) afirma: “o gênero discursivo diz respeito às coer-
ções estabelecidas entre diferentes atividades humanas e os usos da língua nessas atividades”. A autora
materializa a tendência atual dos estudos de linguagem em situação de trabalho que vinculam atividade
concreta com o uso da língua. Ao considerar as diversas concepções de gênero do discurso, percebemos
que o discurso oral é tomado como a gênese do gênero e, desse ponto de vista o lingüista francês Da-
niel Faïta assinala a especificidade de que Bakhtin estuda a atividade, os domínios da atividade (Faïta,
2002), no diálogo cotidiano, mas tendo em vista o texto literário que ele submete à análise e não em um
conjunto de textos, orais e escritos, produzidos numa esfera de atividade particular. Todavia, tal aproxi-
mação da oralidade não implica automaticamente englobar, do ponto de vista da produção do discurso
oral, a metodologia apropriada para estudar o papel da atividade.
Os exemplos de textos orais que Bakhtin analisa se referem a esferas de atividade humana, mas são
trabalhados sob a perspectiva construída pelo processo de análise dos textos escritos. Por um lado, não
questionamos que a noção de gênero de discurso para Bakhtin esteja impregnada de atividade, mas
estamos certos de que a materialidade do texto escrito em gênero secundário, que serviu as análises
concretas de Bakhtin, não lhe permitia falar explicitamente em um gênero concreto da atividade. Por
outro lado, nas pesquisas que se dedicam aos textos orais em situação concreta de trabalho, utilizan-
do-se, para as análises, das noções bakhtinianas de gênero, tem-se dificuldade de objetivar a extrema
diferença do estatuto do objeto texto observado na situação de trabalho. A tendência é fazer referência
aos ditos sobre o trabalho a partir de “dados” e tabulações de questionários e entrevistas.

2 Esta preocupação esteve presente no projeto de Doutorado em LAEL pela PUC-SP e foi desenvolvida no período de DWS na França (novembro de 2000 a
fevereiro de 2002) sob co-orientação do Prof. Daniel Faïta, junto ao Departamento de Ergologia da Universidade de Provence, coordenado pelo Prof. Yves
Schwartz e ao Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação, equipe da Clínica da Atividade do CNAM-Paris, coordenado pelo Prof. Yves Clot.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 761


Desenvolvendo a problemática do dialogismo no aprofundamento do papel da lingüística nas pesquisas
em ciências humanas, Faïta (2002) elabora a tese de que a linguagem participa de toda atividade e que,
em retorno, a atividade lhe imprime as configurações e as transformações ligadas ao desenvolvimento
histórico de toda forma de ação. Vemos, nessa formulação, a possibilidade de engajar uma compreensão
de gênero da atividade que, mesmo estritamente ligada aos gêneros do discurso, apresenta indepen-
dência funcional nas estabilidades da ação, numa dupla via de funcionamento dos sentidos, sem que o
plano de um gênero englobe hierarquicamente o espaço do outro gênero.
Desse ponto de vista, não é de se estranhar que os estudos de situação de trabalho que se baseiam
sobre textos orais construídos na esfera da atividade de trabalho (não apenas na esfera de utilização da
linguagem na atividade) explicitem a existência de um gênero da atividade. Entretanto, se ainda não fica
claro qual seria o estatuto do gênero da atividade em relação ao gênero do discurso, essa dificuldade
decorre do processo de desenvolvimento em que se encontram os estudos de análise do diálogo que se
originam de uma demanda social, a exemplo das análises do trabalho que se utilizam dos métodos de
autoconfrontação na vertente da clínica da atividade3.
Avançando na compreensão dos processos interativos como fonte de constituição de sentidos, as
concepções “construtivistas” tomam a referência como o resultado de uma atividade “cognitiva” e/ou de
um trabalho dos sujeitos falantes. Tal postura recorre a diversas vertentes de focalização do diálogo, do
interacionismo simbólico e da etnometodologia e às teorias da enunciação e do dialogismo de Bakhtin.
São abordagens distintas, que convergem no sentido de dar uma atenção especial e particular à cons-
trução do mundo social na e pela interação, e na categorização das situações sociais no discurso. Os
estudos da interação, ao incorporarem o projeto de colocar em evidência a construção social do sentido
na fala viva, situam-se numa problemática dialógica que leva em conta que o sentido dos enunciados
não é algo dado, mas é produto de uma atividade de conhecimento.
O conhecimento, por sua vez, é encarado como a possibilidade de engajar-se numa esfera de atividade
humana e como a competência de mobilizar as significações possíveis em um determinado gênero do
discurso. Mobilizar temas e significações suportadas em um gênero do discurso representa uma econo-
mia considerável para o trabalho de explicitação dos sentidos na atividade (Bakhtin, 1952/1953-1984:
285). Entretanto, assumir o pressuposto de uma utilidade do gênero do discurso como fator de economia
enunciativa (não é preciso dizer claramente para alcançar uma compreensão) implica o reconhecimento
de uma dificuldade para os modelos de pesquisa que não levem em consideração o movimento dialógico
engajado nesse funcionamento.
Na visão do dialogismo da teoria bakhtiniana, a assimetria das atividades de produção e de interpre-
tação dos enunciados, fundada sobre a não-univocidade da relação entre uma marca lingüística e sua
interpretação, repousa sobre o fato de que os enunciados em línguas naturais são sempre ambíguos e
de pluriacentuação. A interação em Bakhtin vai além do diálogo face-a-face, englobando todo o proces-
so de comunicação, escrito e oral, efetivo e diferente. Segundo ele, para alcançar uma possibilidade de
interpretação verbal, é necessário mobilizar uma compreensão ativa e uma passiva como indissociáveis.
Há uma tensão fundamental entre silêncio e voz (Bakhtin, 1952/1953-1992). O auditório (o ouvinte) é
considerado fundamentalmente ativo em sua escuta, já que a escuta implica processos de construção do
sentido e interpretação do que é percebido, o que dota o ouvinte de uma atitude responsiva ativa.
Tal proposta, passar do estudo das formas lingüísticas ao seu emprego nas situações concretas, exige
formas metodológicas criativas, que incorporam saberes de diferentes pesquisas e disciplinas, tendo em
vista não apenas a dimensão psico-individual, mas também sua inserção na dimensão social. Mas qual-
quer inovação metodológica não pode desconsiderar os esquemas de produção enunciativa passíveis de
mapeamento, uma vez que é necessário trabalhar a materialidade do discurso.
Gêneros do discurso e gêneros da atividade de consulta de AIDS
Em seu trabalho como “analista clínico da atividade”, Faïta (2000), utiliza a noção Bakhtiniana de
gênero do discurso para designar os instrumentos sociais construídos por grupos, definidos eles mes-
mos em relação aos diferentes domínios da atividade. Esboça uma noção de “gênero da atividade”4
conectada à de “gêneros do discurso” (Clot & Faïta, 2000) para dar conta de explicitar a presença de
um gênero imediato das trocas verbais que é, a um só tempo, histórico, subjetivo e referencial. Para o
autor, a situação de diálogo não é somente um quadro no qual os sujeitos se confrontam e produzem os
meios que fabricam a realidade social. A situação de diálogo também intervém e desenvolve estratégias
e possibilidades, a partir dos gêneros da atividade e de discurso que ela detém.
Indo mais além, Faïta (1998) propõe que é possível tanto utilizar o gênero para interagir como in-
teragir no gênero sem comunicar explicitamente. No primeiro caso, o de utilizar o próprio gênero para
interagir, o autor insiste no fato de que, ao se escolher introduzir no diálogo um fragmento característico
de um gênero diferente daquele que o interlocutor utiliza, essa ruptura responde tanto ao interlocutor
como a qualquer coisa de outro. No segundo caso, o de que é possível interagir sem comunicar expli-

3 A Clínica da Atividade analisa situações de trabalho partindo do estudo da atividade e da ação, utilizando dispositivos metodológicos que buscam dar conta do
dialogismo constitutivo das situações estudadas. Propõe e mobiliza dispositivos metodológicos caracterizados como cronotropos de autoconfrontação do sujeito
aos discursos circulantes no trabalho (método do sósia, autoconfrontação simples, autoconfrontação cruzada, autoconfrontação enunciativo-discursiva).
4 A partir de diversas reflexões sobre os diferentes esferas da atividade (Clot, Faïta, Fernandes & Scheller, 2001), também foram propostos diferentes termos
que, em nossa compreensão, estão engajados no campo do gênero da atividade e podem ser agrupados em gênero da técnica, gênero profissional e gênero
social do métier. Para esclarecimento dessas noções consultar Vieira (2002: 161-162).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 762


citamente, (Faïta, 2002), exemplifica que algumas situações de trabalho ou de regulação institucional
reproduzem efeitos de seqüências de interação em que o lugar dos locutores, suas posições discursivas,
se condensam em papéis conforme o que se deve dizer, fazer e calar. Não ocorre uma reinterrogação
dos atos relacionada com à evolução do contexto global que é perceptível apenas nas suas contradições
com as situações concretas.
Em nosso trabalho de análise da atividade dos infectologistas partimos do pressuposto que a ativida-
de médica em geral adota o gênero consulta clínica para desenvolver a sua atividade de trabalho. Este
gênero caracteriza-se por organizar-se em três momentos: a anamnese (entrevista), o exame físico
(manobras propedêuticas acompanhadas de questões para validar sinais e sintomas) e a finalização
(pedidos de exames laboratoriais, prescrições, encaminhamentos). As três fases transcorrem lastradas
por características interacionais e linguisticas descritas exaustivamente por estudos etnometodológicos e
sociolingüísticos5. Chama atenção que na situação que acompanhamos, esse gênero prévio não mais desse
conta de desenvolver a produção de sentido entre infectologistas e pacientes soropositivos e doentes de
AIDS. Nossos achados, apoiados pelo estudo do enunciado concreto, nos faziam repensar, juntamente
com os protagonistas, sobre as mudanças operadas na situação real de enunciação.
Entendemos que a dimensão da atividade é determinante na estruturação da consulta como gênero.
No sentido dessa compreensão, ampliamos a noção do gênero consulta e passamos a considerar suas
características como demonstrativas da existência de um gênero de técnica (ou profissional), bem deli-
mitado e utilizado como o espaço organizador dos processos de trabalho/atividade dos médicos com os
pacientes seja em nível de ambulatório, de hospital, de consultório privado, de atendimento domiciliar,
ou de outros espaços onde se possa repeti-lo e atualizá-lo. Consideramos, ainda, a possibilidade de
tomar a consulta como gênero prévio, espécie de consulta típica, fundadora, na qual as fases modelo
de anamnese, exame físico e finalização são reconstruídas e renormalizadas no espaço da atividade
profissional com a função específica de possibilitar a ação do trabalho médico. Feita essa sistematização,
procedemos à releitura do evento consulta médica, que representa o meio pelo qual o médico procede
à organização da sua ação profissional, como um gênero de atividade.
Assinalamos que, operacionalmente, é importante considerar a diferença dos micro-gêneros impli-
cados nos campos de estruturação dos gêneros da atividade e do discurso para, então, poder analisar
as interdependências entre ambos, sob pena de colocar sempre como hegemônicos os níveis de signi-
ficação que circulam no gênero do discurso. Dessa forma, quanto às maneiras de organizar as trocas
questões-resposta, durante o exame-fisico por exemplo, elas representam um microgênero específico,
que deverá ser descrito a cada situação particular. Assim, o microgênero de questão e resposta, na con-
sulta de soropositivos ou doentes de AIDS, assume diferenças concretas de continuidade em relação a
outras consultas clínicas.
Para ilustrar como, numa análise dialógica, procedemos a confrontação dos textos produzidos pelos
protagonistas (correlatos ao exame físico), passaremos a articular um olhar voltado para alguns níveis
de circulação do sentido de facilidade de tratamento. Com esse propósito, destacamos abaixo quatro
planos de circulação do sentido:
a. nas entrevistas sobre a atividade de consultar, os médicos utilizam o discurso relatado de pacientes
para dizer que não têm problemas de desenvolver essa atividade (significação dita de facilidade);
b. nos relatos dos pacientes, sobre as consultas, o exame físico é tratado como o momento mais
difícil de ser vivenciado.
c. nos diálogos em consulta, observamos a dificuldade dos médicos em passar à fase do exame físico.
Ocupam a maior parte do tempo na anamnese e, ao desenvolverem o exame, quando fazem perguntas
para esclarecer os sinais físicos, os pacientes, em geral, retardam o encadeamento de uma resposta,
são evasivos ou permanecem em silêncio;
d. nas notas de observação sobre o momento do exame físico, observamos descrições de paciente
em postura corporal retraída ou com dificuldade em executar movimentos que ajudariam as manobras
propedêuticas;
O assunto da facilidade de realizar o exame físico que é trazido no plano da verbalização dos médicos,
embora esteja ausente dos outros três planos que trazem o tema da dificuldade, poderia ser tomado
como a significação hegemônica, caso nos ativéssemos a uma análise isolada dos ditos em entrevista. É
dessa armadilha que escapamos, quando articulamos e confrontamos uma parte, mesmo que pequena,
da rede dialógica das significações e compreendemos que o assunto da facilidade oculta a prática da
dificuldade. Chamamos esse trabalho com os diversos planos de circulação do sentido organizados como
dispositivo de análise, de autoconfrontação enunciativo-discursiva. Trata-se de uma análise dialógica dos
textos produzidos pelos protagonistas que depende basicamente de um trabalho do analista do discur-
so em fazer dialogar os materiais transcritos da oralidade e os demais escritos, notas de observação e
normas do trabalho, tomando como ponto de ancoragem o uso das citações associado à inscrição dos
sujeitos enunciadores no auditório social.
A análise discursiva dos diversos níveis de produção de sentido permite desenhar a significação, não
apelas no plano verbalizado pela fala (pelo projeto discursivo), mas também através dos não ditos, dos
interdiscursos, dos projetos por fazer, ou seja, nos sentidos possíveis à atividade. Tal abordagem desenha

5 Consultar a esse respeito a revisão feita por Vieira (1989) em dissertação de mestrado.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 763


o sentido na esfera específica de um gênero da atividade associado aos gêneros do discurso.
Como compreender a atividade e o discurso na clínica da AIDS
No nosso entendimento, a questão do gênero da atividade apresenta uma problemática que pode ser
aproximada à própria discussão das relações entre gêneros primários e secundários, que encontramos
desenvolvida nos estudos do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medevedev. Os gêneros primários são indis-
soluvelmente confundidos com a atividade, já que eles formam sua substância nas trocas verbais ao
mesmo tempo em que guiam sua progressão a partir dos diálogos, encadeamentos e rupturas, dos quais
os interlocutores se utilizam. Os gêneros secundários, com sua vocação à “generalização”, à tomada de
distância da realidade concreta, suportam os diferentes processos de abstração, conceitualização, me-
tadiscursividade etc. e são, de qualquer forma, a emanação dos primeiros no funcionamento e na circu-
lação dos quais eles procedem. A relação entre gêneros primeiros e segundos é, então, de continuidade
fundada na distensividade das trocas verbais que, verdadeiramente, não começam jamais e nunca se
terminam sem ser uma questão de progressão do simples para o complexo tanto em um sentido como
no outro (Faïta & Vieira, 2003).
Frederique François considera que a dificuldade de definir os gêneros é constitutiva da noção mesma,
mas também que “la circulation même du sens n’est pas tant une circulation des représentations qu’une
circulation des genres” (François, 1998: 113). Nesse sentido, observamos que o trabalho da confrontação
na clínica da atividade, mesmo não podendo escapar da analisar dos textos (registros orais, registros
de imagens), sejam os produzidos na própria atividade (o diálogo entre protagonistas e a atividade),
sejam os produzidos na confrontação (o diálogo com os textos, com a imagem, consigo mesmo, com
os colegas de trabalho), vai mobilizar uma circulação de gêneros. Se, por exemplo, o trabalho da con-
frontação se estabelece numa dupla via de textos (concentrados tanto em uma esfera de produção da
atividade quanto em um processo de reflexão sobre a atividade), produz-se uma autoconfrontação e a
complexidade da circulação do sentido escapa da focalização exclusiva da representação e estabelece
um novo objeto “genérico” de retomada do sentido.
O novo objeto, a gênese de uma atividade sobre uma atividade, ou seja, o condensado dos ditos e
feitos numa situação concreta e os comentários sobre a atividade que esses ditos e feitos desenvolvem
(nas autoconfrontações) representa uma réplica distorcida da relação que unia os ditos e os comentários
na situação concreta, mas em um sentido inverso do que mostrava o romance polifônico (plurivocal),
composto de conversação cotidiana. No romance, os diálogos cotidianos organizam os diferentes pro-
cessos de consciência pelo suporte escrito. Nas autoconfrontações, os próprios modos de operar fala,
pensamento e linguagem se mobilizam no suporte vivo do funcionamento dialógico de um gênero (no
caso, o próprio gênero em desenvolvimento). Dessa forma, o objeto confrontação desce mais ainda na
escala de explicitação estilística dos sentidos (gênero secundário, gênero primário), mostra não ditos,
significa sem verbalizar e produz efeitos de sentido fora da palavra, materializando, enfim, um gênero
mesmo da atividade.
Ao tempo em que emergia o gênero do discurso do atendimento clínico à pacientes de AIDS, marcava-
se a existência de um gênero da atividade de consulta de AIDS, impregnado de gêneros secundários e
primários, baseados em outros tipos de atividades de consulta clínica. Nesse momento de transição para
a estabilização parcial das novas referencias, era esse gênero da atividade, apesar dos rumos instáveis
do sentido, que assegurava a realização do objeto do trabalho cotidiano com a AIDS.
Gêneros da atividade e esferas discursivas
Formalizamos nossa proposição de que o gênero da atividade pode ser compreendido numa rede
de inter-relacionamento do funcionamento genérico – gênero secundário, gênero primário, gênero da
atividade – e passamos a uma reflexão de que a metodologia da autoconfrontação, ao buscar analisar
o desenvolvimento da produção dos textos, possibilita a exposição, de forma exemplar, de dois campos
de visão até então filtrados pela análise de textos escritos em gênero secundário. Ao analisar textos
produzidos em um gênero da atividade, o primeiro campo aberto a novos olhares é o das relações entre
produção de estilos de agir e de estilos discursivos. O segundo campo, mais sutil, pois necessita que o
pesquisador disponha dos meios para ampliar sua visão mais imediata dos estilos, é o das relações entre
atividade e discurso: o estudo da consciência. Lembramos ainda, que Bakhtin compreende o pensamento
a partir do diálogo como unidade real da língua que atualiza constantemente, nas esferas de atividade
humana, uma consciência eminentemente social:
Como, na realidade, apreendemos o discurso de outrem? Como o receptor experimenta a
enunciação de outrem na sua consciência, que se exprime por meio do discurso interior?
Como é o discurso ativamente absorvido pela consciência e qual a influência que ele tem
sobre a orientação das palavras que o receptor pronunciará em seguida? Encontramos justa-
mente nas formas do discurso citado um documento objetivo que esclarece esse problema.
Esse documento, quando sabemos lê-lo, dá-nos indicações, não sobre os processos subje-
tivos-psicológicos passageiros e fortuitos que se passa na “alma” do receptor, mas sobre
as tendências sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso de outrem que
se manifestam nas formas da língua (Bakhtin/Volochinov, 1929/1992: 146)

Mesmo se concordamos com os pressupostos bakhtinianos de que a unidade real da língua é o diá-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 764


logo inacabado, que o estudo do diálogo passa por uma investigação mais profunda das formas usadas
na citação do discurso, uma vez que essas formas refletem e refratam as tendências básicas e mais ou
menos constantes da recepção ativa do discurso de outrem, não podemos nos esquivar de esclarecer
o papel da concepção de pensamento que se enlaça à concepção de linguagem quando Bakhtin fala
de consciência e de discurso interior. Esse é o diferencial que nos dará a possibilidade de saber ler o
documento mapeado pelo uso das citações de outrem apoiadas nas tendências sociais estáveis que se
manifestam nas formas da língua (gêneros do discurso) e também sobre os processos intersubjetivos-
psicológicos não fortuitos e passageiros, que podemos mapear atualmente como processos ergológico-
psicológicos mais ou menos estáveis (gêneros da atividade) que também se manifestam nas formas da
língua. Em outras palavras, para operacionalizar uma reflexão dialógica numa pesquisa da atividade, é
necessário pelo menos aventar a possibilidade da existência de uma prática linguageira a serviço de um
gênero da atividade.
Nosso entendimento da postura de Bakhtin (1952/1953-1992), que aparece no ensaio “O problema
dos gêneros discursivos”, é que ele considera que a língua é diferente de atividade, embora estejam
em constante relação. A forma como a questão é colocada considera que “todas as esferas da atividade
humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de
surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da
atividade humana” (Bakhtin, 1952/1953-1992: 279). Se Bakhtin não chega a falar de gênero de ativi-
dade, também em algum momento afirma que só poderia haver gênero de discurso. Compreender que
gênero do discurso é igual a gênero da atividade é incorrer no mesmo raciocínio simplista de igualar
pensamento e linguagem. Tal como a linguagem e o pensamento têm raízes diferentes e, em algum mo-
mento do desenvolvimento, se encontram e um não se desenvolve sem o outro (Vigotsky, 1930/1987),
assim ocorre com o gênero da atividade e com o gênero do discurso.
De forma prática, se como pesquisador contemporâneo decidimos estudar uma situação de trabalho
utilizando no momento de uma análise mais fina a entrada operacional do discurso citado em Bakhtin,
o deslocamento que precisamos fazer não é apenas de ajuste de um estudo que olha textos literários
para outro que olha textos e atos cotidianos do trabalho, mas de reflexão profunda das implicações da
compreensão dos diversos tipos de citação do ponto de vista de uma sintaxe do discurso que pinça o
discurso interior, por exemplo, como uma possibilidade de marcação do sentido pela enunciação citada
(o estudo a partir do romance), e outra que, analisando o próprio fluxo do pensamento num momento
de reflexão sobre uma atividade, vai marcar a linguagem como objeto de manipulação da ação (o estudo
do gênero da atividade). Como afirmava o próprio Bakhtin, ao estudar os esquemas sintáticos de trans-
missão do discurso de outrem, o que interessa é “exclusivamente o aspecto metodológico da questão”
(Bakhtin/Volochinov, 1929/1992: 156) e, no nosso caso, é a resposta a uma construção metodológica
que se apóia, em primeiro plano, nos atos e textos orais do diálogo inacabado (Vieira, 2003). Vejamos
a proposta Bakhtiniana:
Estamos bem longe, é claro, de afirmar que as formas sintáticas – por exemplo as do dis-
curso direto ou indireto – exprimem de maneira direta e imediata as tendências e as formas
da apreensão ativa e apreciativa da enunciação de outrem. É evidente que o processo não
se realiza diretamente sob a forma de discurso direto ou indireto. Essas formas são apenas
esquemas padronizados para citar o discurso. Mas esses esquemas e suas variantes só po-
dem ter surgido e tomado forma de acordo com as tendências dominantes da apreensão do
discurso de outrem; além disso, na medida em que esses esquemas assumiram uma forma
e uma função na língua, eles exercem uma influência reguladora, estimulante ou inibidora,
sobre o desenvolvimento das tendências da apreensão apreciativa, cujo campo de ação é
justamente definido por essas formas. (Bakhtin/Volochinov, 1929/1992: 147)

Consideramos produtivo, do ponto de vista do avanço de compreensão dos sentidos circulantes em


uma esfera da atividade, proceder ao estudo das especificidaes da sintaxe do discurso citado. Entretan-
to, no nosso caso de enunciados produzidos diretamente na atividade, não podemos pretender que os
esquemas encontrados representem uma forma e uma função estabelecidas na língua, uma vez que eles
não mostram somente as tendências estabilizadas de apreensão do discurso de outrem, mas sim os usos
que estão acontecendo, limitados às formas sintáticas possíveis de se mobilizar em um campo de ação
específico. Se essas formas se estabelecerão nas formas da língua ou não, é uma questão que foge aos
limites do estudo dessas formas na atividade. Em outras palavras, as estruturas de citação observáveis
em uma atividade poderão ou não assumir um perfil de utilização inscrito no nível de um funcionamento
mais global da atividade, um gênero da atividade, ou mesmo, da língua, um gênero do discurso.
Encaminhando a retomada dos gêneros
Respondendo à necessidade de formalizar uma possibilidade de compreensão das relações conceituais
entre gênero da atividade e gênero do discurso, que nos foi imposta pela análise enunciativo-discursiva
de uma esfera da atividade humana, a clinica da AIDS, propomos que essa tensão entre campos de
significação seja pensada como um continuo que, desenhado num dispositivo didático, pode ser visuali-
zado no espaço virtual entre um pólo da atividade propriamente dita, um pólo da atividade em curso de
representação e um pólo da representação da atividade. O primeiro pólo estaria mais afeito ao gênero
da atividade; o segundo, a um espaço de transição entre o gênero da atividade e os gêneros primários e

Proceedings XI International Bakhtin Conference 765


o terceiro, estaria mais afeito ao gênero do discurso, entendido aqui como o espaço de aprofundamento
das relações de circulação de sentido entre os gêneros primários e os gêneros secundários.
Evidentemente, as relações entre esses pólos na vida são muito mais complexas, interdependentes
e variáveis do que deixa transparecer o nosso dispositivo didático, organizador da nossa proposição. A
idéia central mobilizadora desse desenho está em formalizar uma distância entre gênero da atividade
e gênero do discurso que é mediada permanentemente por um espaço dialógico de contato, o pólo da
atividade em curso de representação, cuja função é mobilizar temas e significações no encontro da ati-
vidade e do discurso, sendo, portanto, o espaço privilegiado para observar as relações de produção de
ação e significação.
Nossas reflexões retomaram uma questão chave levantada pelo círculo bakhtiniano: Qual é, portanto,
a relação que liga o horizonte extra-verbal ao discurso ele mesmo, o não dito àquilo que é dito?, bus-
cando articular uma possibilidade de resposta ao vincular a análise do trabalho na esfera da atividade a
um processo metodológico que se coloca no centro da questão da generalização para estudar a reelabo-
ração do significado. Com a autoconfrontação dialógica entre discurso e atividade, objetivamos uma via
operacional para aceder à questão da significação numa situação concreta, construindo, na atividade,
um dispositivo que liga o horizonte extraverbal ao discurso ele mesmo.
Agradecimentos: Agradeço ao Professor Daniel Faïta, pelos nossos diálogos temáticos que tanto
contribuíram para avançar as reflexões quanto ao gênero da atividade e ao Professor Yves Clot, por me
acolher na equipe da Clinique d’activité no ano de 2001.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. (VOLOCHONOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método socio-
logico na ciência da linguagem. Tradução: M. Lahud e Y. F. Vieira. Prafácio de R. Jakobson. 6. ed. São Paulo: Hucitec,
1992.
_____ (1952/1953). Esthétique de la creation verbale. Paris: Gallimard (1979), 1984.
_____ (1952-1953). Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução: Maria Ermantina G.G. Pereira.
São Paulo: Martins Fontes, p. 277-326, 1992.
BRAIT, B. O discurso sob o olhar de Bakhtin. Documento de trabalho (Projeto integrado As práticas de linguagem e a
construção do sujeito e da Identidade em situação de trabalho), mimeo, 2001, 12 p.
CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genre et style en analyse du travail, concepts et méthodes. In: Travailler, n. 4, p. 7-42, 2000.
CLOT, Y; D. FAITA; G. FERNANDEZ; L. SCHELLER. (orgs.) Clinique de l’activité et pouvoir d’agir. In: Education Per-
manente. Géneve, v.1, n. 146, 2001.
FAÏTA, D. Oubli et redécouvert de Bakhtine. In: Aprés le structuralisme. Aix en Provence: Publications de l’Université
de Provence, 1998, p. 127-138.
_____ Genres de Discours et Genres d’activité. In: Linguistique et Analyse de l’activité: le point sur une évolution
historique. Série de três conferências realizadas no PEPG/LAEL - PUCSP, São Paulo: mimeo, 2000.
_____ Analyse du dialogue et demande sociale: comment l’intervention sur un domaine d’activité mobilise des hypo-
thèses linguistiques. In: Revista da ANPOLL. São Paulo: USP, 2002, por publicar.
FAÏTA, D & VIEIRA, M. Réflexions méthodologiques sur l’autoconfrontation croisée. In: Revista Delta. São Paulo, vol.
19, n.1, 2003, p. 123-154.
FRANÇOIS, F. Le Discours et ses entours: essai sur l’interprétation. Paris: L’Harmattan, 1998.
VIGOTSKY (1930) A formação social da mente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
VIEIRA, M. A interação entre médico e paciente com HIV-AIDS em ambulatório de Hospital Escola (efeitos de sentido
que circundam o tripé AIDS/sexualidade/morte). 1997. Dissertação (Mestrado em Educação Pública – linha de Lin-
guagem, Educação e Sociedade) – Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá.
_____ A atividade o discurso e aclinica: uma análise dialógica do trabalho médico. 2002. Tese (Doutorado em Lingü-
ística Aplicada aos Estudos da Linguagem) – LAEL – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
_____ Autoconfrontação em clínica da atividade: metodologias de análise dialógica de situações de trabalho. In: Rev.
Intercâmbio. São Paulo: Educ, vol. XII, 2003, p. 259-271.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 766


TEXTOS CHAVE:
Os gêneros do discurso. BAKHTIN, 1952-1953.
Genre et style en analyse du travail, concepts et méthodes. CLOT & FAÏTA,
2000.
Genres de Discours et Genres d’activité. FAÏTA, 2000.
Réflexions méthodologiques sur l’autoconfrontation croisée. FAÏTA & VIEIRA,
2003.
Autoconfrontação em clínica da atividade: metodologias de análise dialógica de
situações de trabalho. VIEIRA, 2003.
NOMES CHAVE: Mikhail Bakhin, Daniel Faïta.
PALAVRAS CHAVE: Gênero do discurso, gênero da atividade, autoconfrontação
enunciativo-discursiva
BIOGRAFIA RESUMIDA: Médico Psiquiatra, Doutor em Lingüística Aplicada aos
Estudos da Linguagem pelo LAEL-PUCSP, Mestre em Educação Pública na área de
Linguagem, Educação e Sociedade pelo IE-UFMT. Professor Adjunto da Universidade
Federal de Mato Grosso onde trabalha na graduação em medicina no Departamento
de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas (DCM-FCM) e no Programa
de Estudos Pós-Graduados Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de
Linguagens, (PEPG MeEL/IL). Membro do grupo Atelier de pesquisas em linguagem
e trabalho, no Brasil e da equipe de Ergonomia da Atividade dos Profissionais de
Educação (ERGAPE), associada à Clinica da Atividade do CNAN-Paris, na França.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 767


For an Aesthetics of Bakhtinian Reception or The Value of Changing
Expectations

Anthony Wall

Department of French, Italian and Spanish

The University of Calgary

2500 University Drive N.W.

Calgary, Alberta, Canada T2N 1N4

awall@ucalgary.ca

Abstract
Bakhtin as an object of study has changed over the past twenty years just as Bakhtin’s readers
have changed over the same period of time. It is time to take stock of these changes in our horizon of
expectations, in order to see where the major changes have occurred, and to discover some of the rea-
sons behind these changes. At the same time, in the four linguistic spheres where Bakhtin Studies have
achieved such international prominence, it is important to inquire about the reasons behind this staying
power. These questions are posed in the context of the first eleven International Bakhtin Conferences.
Sinopsis
Ha cambiado desde veinte años el objeto de estudio que se llama Bajtín, tal como sus lectores han
cambiado durante el mismo período. Ahora se presenta un buen momento para mirar esos cambios en
nuestro horizonte de expectivas, para ver dónde se encuentra la mayoría de los cambios, también para
descubrir algunas razones que los expliquen. Al mismo tiempo, en las cuatro zonas linguísticas en que los
estudios bajtinianos alcanzaron a una tal importancia internacional, conviene ahora saber porqué Bajtin
conoce tanta permanencia. Se exploran esos asuntos en el contexto de las once primeras Conferencias
Internacionales sobre Mijaíl Bajtín.

I begin with a title that is partially reminiscent of Hans Robert Jauss’ famous book about the aesthetics
of reading (Rezeptionsästhetik)1, or, as others have aptly put it before me, the aesthetics of misreading.
This title should not, however, convey the idea that I am attempting to go back to some old-fashioned
trend, nor even to rehearse some of the interesting things Jauss had to say in his day about Bakhtin the
hermeneutician or, in his use of Bakhtin’s thinking, about the French Enlightenment philosopher Denis
Diderot2. The reason I turn to Jauss’ well-known title lies rather in the fact that, in his theoretical thinking,
the German hermeneutician gives us a number of useful tools for looking back, not too fruitlessly I hope,
at some of the incredible voyages we have made with the cultural philosopher Mikhail Bakhtin since
that very first International Bakhtin Conference held in October 1983 at Queen’s University in Kingston,
Canada, a ground-breaking event organized by Clive Thomson.
Of course, Jauss gives us many terms and concepts in his work for possible use in ours, and we could
not ever take advantage of all of them here. The one I wish to stress, in order to speak about the dyna-
mic history of Bakhtin’s international reception, is the “horizon of expectations” (Erwartungshorizont)3.
Quoting from the explanatory work done by Robert Holub, we might say that this term means something
like “an intersubjective system or structure of expectations, a ‘system of references’, or a mind-set that a

1 Hans Robert Jauss, Toward an Aesthetic of Reception, trans. Timothy Bahti, Minneapolis, University of Minnesota Press, “Theory and History of Theory”,
1982.
2 Hans Robert Jauss, “Der dialogische und der dialektische Neveu de Rameau oder : Wie Diderot Sokrates and Hegel Diderot rezipierte” in Ästhetische
Erfahrung und literarische Hermeneutik, Vol. 2, Munich, Fink, 1982, pp. 467-504. English translation: “The Dialogical and the Dialectical Neveu de Rameau:
How Diderot Adopted Socrates and Hegel Adopted Diderot” in William R. Herzog (ed.), Protocol of the Forty-Fifth Colloquy, Berkeley, The Centre for Herme-
neutical Studies in Hellenistic and Modern Culture, 1983, pp.1-29; French translation: “Le Neveu de Rameau, dialogique et dialectique (ou : Diderot lecteur
de Socrate et Hegel lecteur de Diderot)”, Revue de métaphysique et de morale 2, 1984, pp. 143-181.
3 The term “horizon of expectations” was first introduced by Jauss in one of his earlier essays Literaturgeschichte als Provokation, Frankfurt, Suhrkamp,
1970, p.9.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 768


hypothetical individual might bring to any text”4. To make a long story short, the point of this article will
be to highlight several of the important shifts that have occurred, during the past twenty-two years – but
also during a longer period of time – in our own expectations about Bakhtin, our expectations of Bakhtin,
and our expectations for Bakhtin. These are shifts not only of our own making, that is to say, shifts in the
way we ourselves have chosen to formulate our expectations, because, in addition, the shifting movement
we discern also occurs in the very objects of study we call “Bakhtin”. Such changes thereby attest to the
need to embrace a dynamic vision of the ways in which the writing of Mikhail Bakhtin invites an active
participation on the part of his readers, whatever their cultural and intellectual horizons may be.
I wish to support this claim about dynamic understanding and shifting expectations with a number of
subjective impressions garnered in relation to the ten International Bakhtin Conferences I have attended
over the past twenty-years5. Others who possess a much clearer and sharper analytical mind than I will of
course be able to furnish precise details about the titles and contents of the papers actually given during
those ten conferences; for my part, I propose to concentrate on only a few of the many different things
we heard and learned during all those IBCs. These impressions have been culled over many years, as
I believe that the author of the present article shares with Professor Thomson the world record for the
greatest number of IBCs attended: ten and counting. We have seen “Bakhtin” in many different places:
Kingston, Cagliari, Jerusalem, Urbino, Manchester, Mexico, Moscow, Calgary, Berlin, Gdansk, and now in
Curitiba. And we have seen “Bakhtin” through the eyes of many different faces, and heard him through
their ears. All of these friends, colleagues and sometimes strangers expressed their “Bakhtins” in the
tongues they chose to speak in order to say what they had to say, sometimes after having travelled
thousands of kilometres from many far-away places all across the world. International Bakhtin Confe-
rences (IBCs) are precisely about difference and differences: different places, different faces, different
traditions, different horizons, different readings, and especially different languages.
Over the past twenty-two years, fads have come and gone, many Bakhtinians have come and gone, so
many new articles and books have appeared, sometimes before and sometimes after the latest conference,
new works written by Bakhtin (or by someone else close to Bakhtin) have seen the light of day, new and
old works have been edited and re-edited, new and old ones have been translated and re-translated. For
our meetings, we used to circulate paperbound bibliographies of the works on Bakhtin that had appeared
in all the languages we knew (never enough); we now have an electronic database for this purpose.
According to the data available, several prominent linguistic-cultural spheres have come and gone: the
“Bakhtin” in French seems to have all but disappeared, as has the “Bakhtin” who once lived and thrived
in Constance (Germany)6, perhaps even the “Bakhtin” who once spoke with such a strong and vibrant
voice in Italy. The “Bakhtins” that have gained (and maintained) the greatest strength over the years are
to be found in the Russian-speaking world (although that “Bakhtin” sometimes appears to be waning),
the English-speaking world, the Spanish-speaking world, and – more than many of us could ever have
imagined before attending this large conference – the Portuguese-speaking world. Today, we have at
our disposal several book-length studies of the history of Bakhtinian reception in the Russian-speaking
world, and a few less-recent works that have been published over the years about Bakhtin and criticism
in the English speaking-world. At the present moment – and this is unfortunate – we still have very little
material that takes a comprehensive view of the many significant developments that have arisen in the
Portuguese- and Spanish-speaking parts of the world7.
Many of us English-speakers, at least before having come to this conference, might have been temp-
ted to say that “Bakhtin” no longer excites intellectuals the way he used to, that he no longer enjoys the
favour of young scholars and graduate students as was the case in the past, even that he has almost
totally fallen out of sight. We in the Anglo-world went through a number of publication stages before
getting to where we are now: first there were the translations, then there were the introductions, then
there were the primers and anthologies, and then still there were the books and articles, the re-editions,
and all the collections of essays. And all along, it seemed that the “fad” would soon wear off and that
rates of publication would soon drop off. Some day soon, for sure, but somebody forgot to say when.
After having been in Curitiba, we are much less inclined to make such extravagant claims about the
death of “Bakhtin”, not after having experienced first hand the contagious enthusiasm of this unmistakably
Brazilian XI Conferência Internacional sobre Bakhtin. The Eleventh International Bakhtin Conference was
by far the largest in the history of International Bakhtin Conferences. An important part of the history of
4 Robert C. Holub, Reception Theory: A Critical Introduction, New York, Methuen, 1984, p.59.
5 For the purpose of sounding serious and frightfully academic, I shall sometimes, in what follows, use the abbreviation IBC to refer to International Bakhtin
Conferences.
6 In addition to the two most famous members of Constance School, Wolfgang Iser and Hans Robert Jauss, whose works contain many analyses where
Bakhtin is either “used” or “analysed” (or both), reference should also be made of Renate Lachmann’s Memory and Literature: Intertextuality in Russian
Modernism, trans. Roy Sellars and Anthony Wall, Minneapolis, University of Minnesota Press, “Theory and History of Literature”, 1997.
7 A preliminary glimpse of the breadth and scope of the work on Bakhtin being presently done in the Portuguese language was provided during this confe-
rence by the sheer number of papers given in that language. In addition, the vibrancy of the world of Portuguese-language publications was demonstrated by
the admirably well-stocked book display placed in the foyer just outside the Conference Office. This not-to-spacious “threshold” area, where three hallways
and a stairwell converged, became a congenial spot for discussion and exchanges, a place where it was impossible not to “bump into” just about anyone
and everyone whom you had met in the past few days. I was only partially aware of the energy of the Bakhtin phenomenon in Brazil when I wrote my “On
Bringing Mikhail Bakhtin into the Social Sciences”, Semiotica 133, 1, 2001, pp. 169-201, an article largely dedicated to Portuguese-language studies on
Bakhtin. The current boom in publications is further seen in the recent appearance, in Portuguese translation, of Caryl Emerson’s The First Hundred Years of
Mikhail Bakhtin (Os 100 Primeiros Anos de Mikhail Bakhtin, Lisbon-Rio de Janeiro, Difel Editora, 2003). The impressions given by this important book should
be complemented, in my opinion, by a reading of Ken Hirschkop’s rather different interpretation of Bakhtin in Russia to be found in his Mikhail Bakhtin: An
Aesthetic for Democracy, Oxford, Oxford University Press, 1999. On the important differences in methodology and perspective in recent English-language
criticism, see my “Four Bakhtinian Perspectives”, Canadian Review of Comparative Literature / Revue canadienne de littérature comparée 28, 2-3, 2001,
pp. 296-328 (article published in the spring of 2003).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 769


Bakhtinian reception was therefore played out from the 21st to the 25th of July 2003, in Curitiba, before
our eyes and ears, or rather between all our eyes and ears. And what “happened” during that conferen-
ce concerns not only the Portuguese-speaking world, but all of “Bakhtin” and all his World. We sensed
something happening in the warm vibrations we felt in the air, even during those “freezing” cold winter
days and nights spent in the State of Paraná8. The eventfulness, if not the event-ness, of the conference
also had to do with the fact that, for the first time in the history of Bakhtin Studies, the north was finally
meeting face-to-face with the south, that is, the north had finally actually travelled to the south to meet
it on its own turf9. In Curitiba, the social sciences truly met in a meaningful way with the humanities. In
particular, clear differences in intellectual generations were witnessed with great visibility. The Curitiba
Conference will be remembered for the youth of its participants and its speakers (the present author
excluded of course), arguably the “youngest” of the conferences that have been organized up until this
time. Curitiba which, for many of his inhabitants, feels like it is on the outer periphery of the world, in
fact turns out to have been an important site of passage, the place were the movement from one intel-
lectual generation to the next was put in full display.
Of course, the laudable goal of intercultural mixing had already been achieved, at least to a certain
extent, in earlier Bakhtin Conferences, meetings where several intellectual, linguistic, and national
traditions confronted and exchanged with one another in the name of Mikhail Bakhtin. It happened in
Kingston, Canada, in English and French (Tzvetan Todorov had come to town); it happened in Urbino,
Italy, where intellectuals met in English, Italian and French but where the Italian intellectuals were not
always understood by their English-speaking counterparts; and more specially it happened, as just
mentioned in my last note, in Manchester, in English and Russian when, for the first time, a significant
number of Russian-speaking Bakhtinians were finally able to attend our gatherings. This is not to say that
multilingual conferences do not present their share of problems: a certain amount of misunderstanding
erupted in Berlin in the midst of German intellectualism, just as it had earlier happened in Cocoyoc,
Mexico where the Spanish-speaking Bakhtinians were in full force in the midst of many, many English
speakers, who spoke no Spanish. Part of the problem of organizing a conference of this nature has to do
with the danger of creating one, two, or even three linguistic solitudes during the meeting, something
that threatened the success of the Moscow Conference, for example, where two seemingly parallel con-
ferences were unfolding: one in English, the other in Russian. One of the major challenges of the eleven
IBCs has always been to get people to speak together who normally do not speak the same language.
The Curitiba Conference was one of the most successful conferences on that front. IBCs have become
truly international conferences, in the best sense of the word: no one language is supposed to dominate
the whole conference (not even English), and papers are delivered in more than one language during a
single session. Revised papers from the conference are subsequently published in several languages, in
different venues, and in different forms, and sometimes even in totally different versions, all over the
world. In Curitiba, the event was so well organized that very many different people met and talked to-
gether in ways they would never be able to do “in the real world”. This “other-worldliness” was certainly
a part of the final conference banquet held in one of the largest restaurants in the world!
Let’s face it, IBCs are not exactly the “real world”. One might even say they represent a “small
world”. It is safe to say, in the present circumstances, that there are four major world-languages where
Bakhtin Studies are the most active and present (Russian, English, Spanish and Portuguese). In future
conferences, it is imperative that a meaningful space be created for all four of these languages. These
linguistic realms will thus be able to complement one another, and add their perspectives to all the ma-
jor currents or interpretative threads, which can be found around the world at the present time. As we
know, there is Bakhtin and his intellectual roots (a current which includes both Bakhtin and his biography
and Bakhtinian textology), there is Bakhtin and Religion, there are the various Histories of Bakhtinian
Reception, the Problems of Authorship, Bakhtin and Political Theory, Bakhtin and Literature, Bakhtin and
the Arts, Bakhtin and Popular Culture, Bakhtin and Feminism, Bakhtin and Psychoanalysis, Bakhtin and
the Social Sciences, Comparative Studies between Bakhtin and another author (what several authors,
including Michael Gardiner and Greg Nielsen, have ironically called either the “add Bakhtin and mix” type
of studies10 or the “Bakhtin And Projects”11), close readings of a particular book, of a particular article,
and so on. The multilingual nature of contemporary Bakhtin Studies is reflected in the cities where, out-
side the conferences proper, we have also seen some veritable hot-beds of Bakhtinian activity over the
years: Montreal, Rio de Janeiro, Sheffield, Saransk, Vitebsk, Constance, San Diego, São Paulo, Mexico
City, Bari, New York.
With these impressions, I wish to indicate that the time has no doubt come to look at why this intellec-
tual effervescence has had so much staying power, and why, in particular, part of this staying power has
to do with the great number of changes that have occurred in the ways that (and in the places where)
we have read Bakhtin over the years. Some people have suggested that the reasons why Bakhtin had
become so popular in the first place, at least in the English-speaking world, had to do with the fact that
8 Readers should note that those “freezing” winter temperatures recorded in Curitiba correspond to normal “summer” temperatures in Calgary, Canada,
where I write these lines.
9 We should not underestimate the critical potential of such a face-to-face encounter which, I believe, will prove to be no less significant in the intellectual
energy it unleashes than the meetings allowing the East to meet with the West, first in Manchester, and then in Moscow. On this important development in
the history of International Bakhtin Studies see Carol Adlam, Rachel Falconer Vitalii Makhlin, and Alastair Renfrew (eds.), Face to Face : Bakhtin in Russia
and the West, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997.
10 Michael Mayerfeld Bell and Michael Gardiner, Bakhtin and the Human Sciences, London, Sage Publications, 1998, p. 7.
11 Greg M. Nielsen, The Norms of Answerability: Social Theory between Bakhtin and Habermas, Albany, State University of New York Press, 2002, p.10.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 770


his conceptual apparatus is relatively simple, and that his central notions rather vague. It was these fea-
tures of his thought, it was claimed, that made his philosophy so surprisingly adaptive – and intellectually
attainable – for massive and easy (undergraduate) consumption. It became exciting to find carnival in
just about everything, dialogism or polyphony in just about everything else, a few chronotopes here, a
bit of polyphony there, and you could sprinkle just about anywhere a good dash of unfinalizability, adding
(for good measure) another spoonful or two of double-voicedness.
But if that was all there was and is, how is it that Bakhtin keeps on being attractive? To so many
people? And why is he so very attractive in particular places (in Brazil for example) and not in others (in
France and Germany, for example)? Part of the answer lies in the fact that the identity and age of the
readers themselves are changing. It would seem, at first glance, that in France and Germany there was
not much of a passage from one intellectual generation to the next. Unlike what is obviously happening
in Brazil. So the question becomes: what can we do here, at home, now and in the future, to ensure that
he remains interesting for future generations of scholars? Or why would we even bother?
The word “bother” is very useful for thinking about Bakhtin. The job of reading Bakhtin can be rather
bothersome, let’s admit it, and the chore of reading something with Bakhtin can be even more so. When
you read with Bakhtin, it is almost as if your grand-dad were looking over your shoulder, checking to
see what you are trying to read, or rather how you are trying to do it. He is constantly challengings your
habitual horizon of expectations and making you ask yourself the kinds of questions you would rather
not ask. Once we thought that Bakhtin was the author of all the books he wrote, and then someone told
us: wrong! Once we thought that he knew his own biography, and then someone told us: wrong! We
used to think that Bakhtin was mainly a literary scholar and then someone told us: wrong! We used to
think that Bakhtin held many religious beliefs and then someone else told us: wrong! We used to think
that the texts we used were editorially sound and then yet someone else had the nerve to tell us: wrong.
The list goes on and on.
Part of what bothers us most about Bakhtin, or at least what should bother us most, is that he is so
utterly dialogical. He is constantly attempting to take into account what others have said before him,
what others might say after him, and he encourages us to do likewise. At the same time, he thinks out
loud all the time, he forgets what he said earlier, he contradicts himself, he changes his mind, and some
of his most important thoughts are couched in notes and personal jottings, if not on cigarette paper!
There does not seem to be any permanence about what he says or writes, no indelible written quality
of the type praised by Horace in his famous ode “exigi monumentum aere perrennius”12. Rather, any
“permanence” in Bakhtin’s thinking can only come from the dynamic liveliness he ignites in those others
who read him.
In Bakhtin, the written word is therefore of an unusual type. He fails to assert things in his writing
with the authority that we would like him to have (his authority becomes tremendously diminished
when we discover that he is a master-plagiarist, for example)13. He enters rather into a seemingly self-
contained philosophical world where thinking itself is considered to be a dialogical activity all of its own.
With Bakhtin, what is bothersome is that it is not just a matter of thinking dialogically about the world;
more precisely, thinking about the world is in and of itself – or at least it should be – conceived as being
dialogical. He forces us to think differently, to think dialogically. To think with others.
What does this mean really, and why should this bother us? And if it doesn’t bother me, why should
that bother me too?
A significant factor in the bothersome quality Bakhtin has consists in the fact that, on the basis of his
written word, it is so hard to be right and, at the same time, to make everyone else wrong. After all, it
can really be fun to be right, especially if this entails the pleasure of telling everybody else in the world
that they are wrong. We read Dostoevsky with Bakhtin, and everybody else who ever read Dostoevsky
before us, without Bakhtin, is wrong, while we are right. How comforting! We read Rabelais with Bakhtin,
and everybody else who ever read Rabelais before us is wrong, and we are right. It is so nice to be right,
especially if you can collect enough simplistic philosophical instruments to make yourself believe that
you are right all the time. And if you are able to surround yourself by hoards of other persons willing
to repeat your stated beliefs. This way of thinking is so utterly reassuring that it keeps you in fact from
thinking, it keeps you from putting yourself into question, from doubting your innermost certainties and
beliefs, from putting yourself in the place of someone else unlike you. This Bakhtinian stuff about putting
yourself in someone else’s place has got to be the most bothersome thing imaginable.
As human beings, we are supposed to think once in a while14, and part of our thinking involves devi-
sing hypotheses about the outside world and comparing them to other persons’ hypotheses. The world
I construct around myself can, of course, that is, if I try hard enough, become one that is erected in
isolation from other people, erected as it were in order to isolate myself from those others; or it can be
the result of a co-construction embarked upon with others. It can thus be a cocoon or an invitation sent

12 Horace, Odes III, 30. For a Bakhtinian reading that prods this ode in detail, see Renate Lachmann’s “Intertextuality as an Act of Memory: Pushkin’s
Transposition of Horace”, in Memory and Literature, op. cit., pp. 194-221.
13 On this important point, see Brian Poole’s controversial article, “Bakhtin and Cassirer: The Philosophical Origins of Bakhtin’s Carnival Messianism”, The
South Atlantic Quarterly 97, 3-4, 1998, pp. 537-578.
14 I am assuming that Bakhtin would share the Pascalian belief that what distinguishes us from animals and plants is precisely that we can think, however
imperfect and feeble this thinking may be. “L’homme n’est qu’un roseau, le plus faible de la nature; mais c’est un roseau pensant.”

Proceedings XI International Bakhtin Conference 771


out to someone else to co-participate. It can also involve questions about which “others” are invited,
which “others” are excluded.
One of Bakhtin’s favourite poets, Charles Baudelaire, tells us the story of two starving Parisian boys
who notice that the poet, daydreaming on a park bench, is about to eat the piece of bread he was cutting
up in his hand15. Unable to use precise language to express themselves as articulate individuals, these
two street urchins start begging him, in a primitive gestural-linguistic language, to give them some of
what they call his “cake”. The poet soon begins to feel sorry for them, for their wretched poverty, for
their obvious hunger. The worst images of Paris’ nineteenth-century social misery are conjured up in
the poet’s mind. So he throws his piece of bread-cake to them, and they immediately proceed to rip it
from one another’s hands, tugging and pulling, and pulling and tugging, over and over again, until the
once-whole piece of bread has been reduced to an inedible series of measly crumbs, that have all fallen
to the ground. This is the fate of the world that dialogic thinking wishes to avoid.
It is highly debatable whether Bakhtin is actually very original in his personal brand of dialogical
thinking, but it would seem that such a message needed to be repeated, both during his time and in
ours. Now, of course, it would be a lot nicer – for me at least – if I could always have the entire piece
of bread all for myself, if I could determine all by myself its precise shape – “bread crumbs” or “cake”
– that my piece is going to take, if I could receive some sort of certificate guaranteeing that the world in
which I live will always be run my way, a guarantee that I can do everything I want on my own, without
the need to depend on anyone else. It would be even nicer, I suppose, if I could be guaranteed that
everybody else in the world will always see and do everything my way.
But there are a great number of things – and this too is part of the bothersome stuff – that are much
better done along with someone else than if we attempt to do them all alone: speaking, laughing, putting
up wallpaper, exchanging e-mail messages, being a loving human being, making friends, sharing ideas,
working, raising a family, and especially thinking.
Nowhere does this bothersome quality of Bakhtin’s thinking come so prominently to the fore than in
the international readership his work has created over the past thirty to forty years. There used to be
a time, in 1983 for example, the time of the first IBC, when it was conceivable to compile a complete
list of everything that had been published on Bakhtin’s works around the world. This was the impossible
dream behind the Bakhtin Newsletter with its five volumes, a dream which today appears so refreshing
in all its grand naïveté. At that time, 1983, there were basically only three volumes published in English
under Bakhtin’s name, and just two volumes published under pseudonyms. The best translators in the
world were busy doing their translating, so at the time you did not even have to worry about learning
Russian. And not all Bakhtinians did. And there were only a handful of important articles written on
Bakhtin, and you knew straight away whether or not they were actually about Bakhtin, because his name
always appeared in the title in a straightforward way. No books about Bakhtin had yet been published,
not even Clark and Holquist’s biography. Bakhtin was hot, yes, and the nice thing about that heat was
that you could say virtually anything and everything about him, and people would believe you (like he
smoked his manuscripts, like he was the twentieth-century’s greatest intellectual, like he was a precursor
to postmodernism, like he was an anti-Hegelian and anti-Marxist thinker, like he was a closet Orthodox,
like he was a reformed Russian Formalist, like he was a feminist thinker at heart, like… indeed, those
were the good old days).
But now, just twenty-two years after the first International Bakhtin Conference, things have really
started to get out of hand. Clearly, it is no longer possible to keep up with “Bakhtin” if you do not read
any Russian. Furthermore, the books and articles on Bakhtin keep piling up much faster than any normal
human being could ever read. And worse yet, those Russians keep on finding new stuff in the Bakhtin
archive, and even the greatest of translators in the world can no longer keep up with all the work that
remains to be done (for how long have we been waiting for an English translation of the Duvakin tapes?).
Nowadays, you cannot tell whether a critic is really writing about Bakhtin, or simply writing with Bakhtin
in mind, by merely taking the work’s title into account. Bakhtin’s name pops up in many surprising pla-
ces, and more often than not he arrives unannounced. At the same time, people from all over the world,
speaking in many funny languages, keep on saying interesting things about Bakhtin and his World but we
are not always able to understand what they are saying. Sometimes we do not even recognize something
Bakhtinian in what people are purporting to say in his name.
If there was such excitement in the air in Brazil, it is precisely because of the enormous differences
in perspective and intellectual traditions that came together during that meeting. The relaxed and infor-
mal atmosphere was crucial, and the regular Brazilian coffee breaks worked wonders. It is important to
remain rather “informal” in our work. After all these years, we have still never managed to found any
official International Bakhtin Society (Gott sei dank!), we do not tend to produce an official record of
the meetings that have been organized, there have always been a considerable number of “alternative”
IBCs alongside the “official” ones mentioned above – Vitebsk, Copenhagen, Saransk, Llubiana, Dubrov-
nik, São Paulo, Rio de Janeiro, Groningen, to name but a few – and many new faces appear at each and
every single International Bakhtin Conference, to the point that the list of participants in, say, Kingston
or Cagliari is almost totally different from the list of participants who were in attendance in Curitiba (for

15 Charles Baudelaire, “Le Gâteau”, in Petits Poèmes en prose (Le Spleen de Paris), Paris, Classiques Garnier, 1980, pp.76-79. In the Duvakin tapes, we
hear Bakhtin reciting Baudelaire from memory, and in French.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 772


example two of the participants present in Cagliari were present in Curitiba).
In 2003, it is imperative to listen to what the Brazilians have to say about chronotopes before being
able to speak intelligently about chronotopes; it is absolutely necessary to listen to the Russians when
they speak about outsidedness before being able to speak intelligently about outsidedness; it is indis-
pensable to listen to the long history of dialogic philosophy in early twentieth-century Germany before
being able to speak intelligently about dialogism. Nothing is very simple anymore, and it is hard to image
how anyone could manage to have any original ideas in such a saturated context.
One of the requirements for being a reader of Bakhtin is a willingness to let Bakhtinian readers from
every corner of the globe read you. And to allow them to read Bakhtin both with you and against you.
Not only does “Bakhtin” change, according to the wide variety of perspectives and disciplines in which
he has been read, but you too have to be willing to change yourself, by changing your perspectives and
disciplinary outlook. All this is necessary in order to get a glimpse of the wealth of ideas that “Bakhtin”
has generated across the world. In other words, not only has “Bakhtin” changed over the past twenty
years, but so have his readers, both individually, and collectively. When I think back at the old “David
Shepherd” I first met in 1987 at the Jerusalem conference, and if I compare him with the man whom
I saw chairing my session, or the old “Ken Hirschkop” I first met in 1983 at the Kingston conference,
Boguslaw Zylko whom I first heard in Urbino, Italy in 1989, Don Bialostosky whom I first met in 1983,
or Pierrette Malcuzynski whom I first met in 1981 at a conference on parody, or Clive Thomson whom I
also first met in 1981, or Maroussia Ahmed whom I met in 1974, and if I compare “them” with some of
the persons who were sitting in the beautiful Sala Nobre of the grand Colegio Estadual do Paraná, and
laughing with embarrassment as I pronounced these words, you start to get a picture of what I mean
by how much Bakhtin’s readers have changed.
There have been some enormous changes in the strange object we call “Bakhtin”, and there have
been no less enormous changes in his readership. As earlier remarked, a preliminary calculation of the
average age of the participants at the Curitiba conference is certainly one telling factor. It is a simple
fact, but one we tend to neglect: the people who were reading Bakhtin twenty years ago are not the
same ones who are reading him today. Just a few years ago, Peter Hitchcock, in his collection of essays
“Bakhtin/ ‘Bakhtin’: Studies and the Archive and Beyond”16, usefully suggested that we should begin to
pay closer attention to the differences between Bakhtin without quotation marks and “Bakhtin” in quota-
tion marks, that is to say, that we should be more careful to think that the “Bakhtin” that we personally
speak about is rarely, if ever, the same “Bakhtin” whom others are referring to, and they are not the
same “Bakhtin” as the one Mikhail Bakhtin himself would have constructed in his own mind about himself.
At the present moment, I should also suggest that we similarly need to think more carefully about the
differences between the reader without quotation marks and the “reader” in quotation marks, between
the “I” who authors his or her own reading and the “I” who has become subject to or even the object
of other persons’ readings. Greg Nielsen has usefully brought out some interesting points regarding this
problem with his comparison between Bakhtin and George Herbert Mead17.
Bakhtin, after all, is neither a “Saint” nor a “God”, and it is impossible to imagine anyone who could
ever be all the things everyone has claimed about him, all the things people have wished for him to be,
or to become. And thus it can really become bothersome to think that “I” am not really in control of
what “Bakhtin” is saying to all these people, that there are several “Bakhtins” out there, sometimes very
different “Bakhtins”, “Bakhtins” who are out of my reach, especially when I choose not to listen to them.
We need to develop and refine tools for listening to other “Bakhtins”. Bakhtin is, to a certain extent,
what his readers have made him out to be: ever so changing, ever so unreliable. And thus, if you should
have the chance to go to yet another International Bakhtin Conference, the next one being in Jyväskylä,
Finland during the summer of 2005, you will at first feel disturbed to discover that the same old people
are no longer saying the same old things, using the same old ideas, and the same old interpretations,
reading and re-reading the same old papers from the last IBC. And part of this strange feeling will come
from the fact that, for the most part, it will not be the same old people the next time around. Although
the few you do recognize will be a bit older.
At first glance, it might seem even more disturbing that many intellectuals, from all over the world,
are now using Bakhtin’s ideas, sometimes without even realizing it, and sometimes without even ack-
nowledging explicitly that they are his ideas. Such a thought about someone else’s ideas forces me to
believe that I myself am sometimes thinking Bakhtinian thoughts without even realizing it, without even
acknowledging his authorship. I said this was disturbing “at first glance”, but only “at first glance”, because
it is not such a bad thing, after all, to discover that human thinking does not produce very many good
things when it just “happens” in isolation. In the end, we see the benefits of behaving as if we actually
believed that we think much better together than we do when we try to think alone.

16 Peter Hitchcock (ed.), Bakhtin / “Bakhtin”: Studies in the Archive and Beyond, special issue of the journal South Atlantic Quarterly 97, 3-4, 1998, pp.
511-792.
17 Nielsen, op. cit., pp. 125-141.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 773


Biographical Statement: Anthony Wall is a Professor of French and Literary
Theory at the University of Calgary (Canada) and was an Alexander von Humboldt
Research Fellow at the University of Constance (Germany) in 1993-94 and in 1997-
98. Organizer of the Eighth International Conference on Mikhail Bakhtin in 1997, he
has published numerous works on Bakhtin including, more recently, “Four Bakhtinian
Perspectives”, Canadian Review of Comparative Literature (2001), “On Bringing
Mikhail Bakhtin into the Social Sciences”, Semiotica (2001) and “Présence de l’autre
dans l’écriture de soi: problèmes de poétique chez Hubert Aquin”, Laval University,
2003. With Marie-Dominique Popelard (Université de Paris 3) he has just published
a “dialogic” reading of gestures: Des faits et gestes (Paris, Bréal, 2003).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 774


Dialogism, Identity Politics, Espionage

Takayuki Yokota-Murakami

Osaka University

“Globalization” has been one of the most fashionable critical terms of contemporary theory. Surely
its effect is sufficiently felt at this very moment when the scholars from Europe, North America, and Asia
are discussing the works of the Russian thinker in Brazil.
Being Japanese, I have a special feeling about it. Brazil and Japan have had a very long and strong
tie. Given this, I was quite surprised to learn that I needed a visa to enter the country. The first wave of
Japanese immigrants arrived in Santos in 1908 and ever since some 250,000 Japanese have immigrated.
The opposite flow has been remarkable in the recent decades, with many third-generation Japanese-
Brazilians, who can now be considered, culturally and linguistically, sheer Brazilians, immigrating back
to Japan this time. In Japan, with Brazilians along with other nationalities, such as Iranians, Philippines,
Indians, Russians, Chinese, overflowing our streets, globalization has certainly become a lived experience
in a country which used to be on the whole mono-linguistic, mono-ethnic, and mono-cultural.
Such a multicultural society was hard to imagine in Japan a few decades ago. Everyone looked alike,
spoke the same language, and understood one another easily. The linguistic and ethnic identity was
taken for granted. Perhaps, precisely because of such homogeneity, fantasies were, conversely, created
to challenge it. Let me acquaint you with a very popular Japanese comic hero, Golgo 13, dating from
1960s. He is a sniper, assassin, and terrorist, and he works on the commission of just about anyone, be
it KGB, CIA, Ford Foundation, Sony, or what not. He appears to be Japanese, but no one knows for sure.
If anything, he is a mixture of several ethnic origins. He speaks a number of languages fluently, and it is
not clear, which is his native tongue. With these specifics, he changes his identity swiftly: in Moscow he
is a Chinese elite student; in Hungary he is an officer of the Secret Police; in Ukraine he is a coal-miner
from Donetsk; in Guatemala he is a native American.
Apparently, he belongs to the new generation of crime narratives. Spy fiction in the first half of the
twentieth century was complementary to the ideology of nation-state. Being an agent was not contra-
dictory to representing the country. In Somerset Maugham’s Ashenden, or the British Agent (1928), the
hero, Ashenden, who is a loose self-portrait of the author, worked for England, spied for it, because he
was an Englishman, spoke English, and was proud of English literature (In Writer’s Notebook Maugham
proudly declared that only England and France had great literatures, whereas other nations only had
great authors.)
The world structure during the Cold War has completely changed the scene. Double spies now flou-
rish. Within the Empires, that is, the Soviet Union and the United States, a single ethnic group does not
represent the state. Thus, globalization in a sense has already begun in 1960’s, long before September
the 11th, 2001. This makes it difficult for a spy (in fiction and in real life) to assume a single national
identity. Such a state of multiple identities of spies and terrorists is neatly described by John le Carre,
a master of spy fiction, featuring double agents. In his Tinker, Tailor, Soldier, Spy: “Smiley (the hero
and British agent, after having found out who was really the double spy, to his surprise) shrugged it
all aside, distrustful as ever of the standard shapes of human motive. He settled instead for a picture
of one of those wooden Russian dolls that open up, revealing one person inside the other, and another
inside him.” (p. 367)
The metaphor of matreshka by Le Carre, however, may not be a happy one, as it invokes a sociologi-
cal/psychological concept of a “core identity.” According to this model a human being has a hierarchical
structure of identity consisting of layers: ethnic, professional, gender, class, religious, sexual, and so
on; identities are layouted depending on the identity politics of that person, making one identity more
basic than another.
What the double agent or Golgo 13 invokes is quite different from this model of “core identity.” In
them various identities appear to be competing on the same plane, at least their ethnic/national and
linguistic identities are. In contrast Ashenden and British spies described by Maugham are highly homo-
geneous personae (or monologic, I might say, slowly introducing Bakhtin). They are English by behavior,
by language, by ethnicity, by gender, and by nationality. For instance, Ashenden’s boss, “R,” is depicted

Proceedings XI International Bakhtin Conference 775


as follows: “R. was a soldier and regarded introspection as unhealthy, un-English, and unpatriotic.” A
spy works for a certain nation, and his activity is endorsed by his national (and masculine) identity and
by love for it.
Ashenden’s monolithic identity becomes remarkable when one compares him with another spy fi-
gure in literature: Golubchik in Joseph Roth’s novel: A Confession of a Murderer (1936). Golubchik is a
bastard of a landlord Krapotkin in Southern Russia. Nonetheless, he is not willing to yield to the autho-
rity of the legitimate son and considers himself as the true Krapotkin the Second. He visits the father,
demands the acknowledgement as a legitimate child, gets rejected, is put to a jail, and in it is scouted
as an agent of the Secret Police. Golubchik is ordered to guard the dancers and falls in love with one of
them. In Paris he feigns himself as Krapotkin the Prince and spends fortune on her. He thinks of saving
a poor, chaste Jewish girl out of the sense of guilt for working as a spy and torturing ordinary people
because of his profession, but after all betrays her, and by scapegoating her, is rewarded a handsome
sum of money, with which he wishes to please the dancer. Having found out that the dancer is the real
Krapotkin’s concubine, he beats them to death, or so he thinks. The World War I begins and his crime
fades away in confusion.
It is obvious that the hero’s activity as an agent is foreshadowed by the play of his multiple identities:
he is an aristocrat and peasant; he is a Russian and Jew; he is a macho agent and cute girl, Golubchik.
He confesses: “I ask you whether [my name Golubchik] is fitting and just. I was always big and strong.
. . . yet I had to be called Golubchik. . . . that was not my name by right—that is, by natural right. Go-
lubchik was only name of my legitimate father. Actually, my real name, my natural one, the name of my
natural father, was Krapotkin.” (p. 18-19). Becoming a spy is, for Golubchik, accepting his ambiguous,
polyvalent subjectivity, floating among various class, linguistic, ethnic, and gender identities.
The hero’s ambivalent ethnic/national identity is reminiscent of that of the author Roth himself. He
concealed his Jewishness by inventing an imaginary German native town of Schwardendorf and adopting
it as a family name.
Interestingly, in the novel such multiplicity of identities is explained as a function of language, as
opposed to the natural function of sexuality. He has little problem about believing himself to be the real
Krapotkin the Second by virtue of his being documented as such: “A stupid, thoughtless police official
had made me out a passport in the name of Krapotkin; and he had not only not thought anything about
it, but had taken it as a matter of course that a spy called Golubchik should be lent the name Krapotkin.
Nevertheless, it was magic. There is magic in every spoken, let alone, every written word. Through the
simple fact of possessing a passport made out in the name of Krapotkin, I was Krapotkin.” (p. 113) Hen-
ce, I would like to call this multiplicity of identities multivoicedness, or heteroglassia, as each identity is
constructed as a word, a text, a voice. At the same time it is also the voice, the language, that undermi-
nes Krapotkin’s identity: “I myself avoided speaking with them [the dancers of the troop he was with],
because one or the other would most likely have recognized that I was not a Krapotkin—if only from my
lamentable French.” (p. 106) The French is an alien language which he has a problem using and which
makes his alter-ego, the Prince Krapotkin, who apparently speaks fluent French, someone different.
Here a third person is involved, who realizes his subjectivity in Krapotkin/Golubchik: the author Roth.
He speaks Russian and German, but none of these languages is his own. They are alien to him, he being
a Jew, and being a Jew, he does not understand French. Or, for that matter, he does not understand
Hebrew. He understands Yiddish, which is a language placed in nowhere, somewhere among those
languages. The languages the author Roth, Krapotkin, the hero, and Krapotkin, the prince speak and
understand are all in dialogue, but at the same time these languages all marginalize and alienate one
another as some unintelligible tongue.
Now, the theme of multiple identities in A Confession of a Murderer instantly reminds us of Dostoyevsky’s
novel, The Double, although these two do not have a historical connection and Dostoyevsky’s Golyadkin
is not a spy. Both are stories about ambiguous identities: the heroes of both novels constantly ask: Who
is Golubchik (or Golyadkin); Who is me? And for both their alter-ego is a desired identity: for Golub-
chik the Prince is an aristocrat, a rich man, and a natural son. For Golyadkin senior, Golyadkin junior is
a diplomatic, smooth operator, who may be able to marry into what he needs and easily climb up the
ladder of a career.
And just like Golubchik does not understand (in language) Krapotkin, Mr. Golyadkin does not unders-
tand new Golyadkin: “I must tell you that I am surprised”; “You simply amazes me”; “It is queer!” (p.
535-536; chapter 8) constantly cries Golyadkin senior at Golyadkin junior’s words and behavior.
Golyadkin’s finding a different voice from his alter-ego is a problem of identity. Just like Golubchik
asks himself: Am I Golubchik or am I Krapotkin, Yakov Petrovich has to ask whether he is Yakov Petro-
vich. Golyadkin senior writes a letter to Golyadkin junior, reproaching his strange behavior and signs, Y.
Golyadkin. All the English translations that I have been able to find so far leaves this signature as such,
but by so doing, overlooks the problem of identity implied here: Ia – Golyadkin; I am the authentic
Golyadkin, or am I really? Incidentally, at a more friendly turn of their relationship, Golyadkin senior calls
Golyadkin junior Golubchik: “Yakov Petrovich, my dear fellow (golubchik), you little Golyadka, you—you
have just the right name!” (Bakhtin 177)
Bakhtin in Problems of Dostoesky’s Poetics gives an analysis of The Double in some detail. He consi-
ders it as a prototypically dialogic novel where the hero is in an inner conversation with his second voice,
which is, however, independent: “The pages of The Double are full of the hero’s dialogs with himself. One
Proceedings XI International Bakhtin Conference 776
might say that Golyadkin’s entire inner life develops dialogically.” (Bakhtin 176)
But, is Golyadkin always in such a dialogic exchange with his alter ego? Does it not sometime appear
to Mr. Golyadkin as someone completely impenetrable and unintelligible? Golyadkin senior speaks of
Golyadkin junior’s “intentional and insulting refusal of the necessary explanation,” his “strange, absurd,
and at the same time impossible desire to be [the] twin,” and his “incomprehensible behavior.” Again
and again Golyadkin junior’s words and behaviors are described as unintelligible.
Bakhtin appears to be reluctant to see the multiple voices that do not respond to each other in The
Double or in any other dialogic novels. Utterances, as long as they are dialogic construction, have to echo
each other and formulate each other on the basis of the full comprehension of the content. According to
him the double is supposed to be in all dialogic novels: “Almost all of Dostoevsky’s major heroes have
a partial double in another person or even in several other people (Stavrogin and Ivan Karamazov).”
(Bakhtin Problems of Dostoyesvky’s Poetics 180) But such a thesis, in a sense, trivializes the novel The
Double as it is a mere “inner conflict . . . which occurs within the bounds of the self-consciousness. A
real voice should represent real consciousness: “The [voices in The Double] have not yet become com-
pletely independent, real voices, they are not yet full-fledged consciousnesses. . . the genuine dialog of
unmerged consciousnesses which appears later in the novels is here not yet present. The rudiment of
counterpoint is already here. . . . But these new bonds have not yet gone beyond the bounds of mono-
logical material.” (Bakthin 184)
I see two problems in such a formulation. One is a problem of regarding only the “full-fledged,
independent consciousness” as capable of emitting voices. The other is that, consequently, Bakhtin’s
polyphonic model presupposes the dialogic relationship among the independent, intelligible, full-fled-
ged consciousnesses which create the field of optimistic hermeneutics. Each voice represents a certain
consciousness and a certain ideology, but they all speak and understand the same language, which is a
condition of dialogism.
In fact, we feel a strong urge to interpret The Double as a psychoanalytical novel expressing an uncons-
ciousness within a person which defies the integrity of the conscious self. The unconsciousness defies the
comprehension of the consciousness. And the unconsiousness does not speak the same language, at least,
according to Freud. It speaks the language of dream, graphic image, joke, myth, etc. (Lacan, of course,
put forth a different theoretical model, in which unconsciousness is also a function of a language, but all
the same, the unconsciousness remains essentially unfathomable for a consciousness.) Golyadkin truly
thinks that Golyadkin junior is joking. And he asks Golyadkin junior: “Don’t you understand Russian?” Just
like the English phrase, “Don’t you understand English?”, the Russian phrase also means, “As long as we
are speaking the same language, you should understand me.” But Golyadkin senior feels that Golyadkin
junior is not speaking the same language; he is “speaking Greek”: We speak different languages and we
do not understand each other. Of course, these days one asks “Don’t you understand English?” and you
get the answer “Hablo espaniol.” Bakhtin does not consider that kind of dialogic relationship. But surely,
such is a common “social” and verbal relationship found in the age of globalization.
This brings us back to Joseph Roth and the new generation of spy fiction. The subject is split into
multiple identities and they speak different languages. And they also split into different ethnic groups,
political entities, and gender constructions. A “spy” is a typical representation of such a condition.
A Cornell professor Naoki Sakai in his Translation and Subjectivity argues that every statement is
essentially unintelligible and invites translation, that it is the emergence of homolingual society as an
imagined entity, which occurred in modern times together with the birth of nation-state, that rendered
translation an act of communication merely across the linguistic communities. Intelligible messages within
a homolingual culture were thus established as a norm and an-unanswered address became marginalized
and pathologized. In contrast Bakhtin defines translation as a transparent act of transmitting “statements”
across languages or any sign systems, in differentiation from “utterances” which are unique, irreplaceable
because they are formulated in history and society. And here is a quote from “The Problem of Text”:
“Every system of signs (that is every ‘language’), no matter how limited the collectivity that adopts it
by convention, can always be, in principle, deciphered, that is, translated into other sign systems (other
languages).” Concerning translation, I argue with Sakai against Bakhtin, i.e. against considering trans-
lation as a transparent act and against considering “messages” as essentially intelligible.
The condition of early modern espionage which was concomitant with the nation-state was, thus, also
concomitant to the monolingual, imagined, communities which Sakai describes. I argue that Bakhtin’s
model of dialogics is limited by the concept of monolingual communication where all the voices are un-
derstood perfectly without translation. Bakhtin proposed a model of polyphony within a single linguistic
text, but he did not see a possibility of multiple languages within a single discursive space or within a
single subjectivity. At the same time I argue that Sakai’s concept of an un-answered address is also
problematic in the light of Bakhtin’s concept of dialogic utterance: no statement remains unanswered.
In the post-September-the-eleventh world the United States appears to be extremely eager to re-
establish a monologic national structure where one ideology, Americanism, prospers and one language,
English, is spoken. The spies and the terrorists are, however, internal, within you, defying understanding,
remaining unpenetrable just like Golyadkin junior. Bin Ladin is not in Afganistan; Sadam Husein is not in
Iraq but they are in the United States as George Bush junior, as a unfathomable doppelganger of George
Bush senior who is actually George Bush junior himself. I am seeking a way of imagining a world, in which
Bakhtin’s dialogics may offer hints for pursing a dialogue with such an incomprehensible other.
Proceedings XI International Bakhtin Conference 777
A arché bakhtiniana e o dialogismo nas ciências humanas e sociais

Edwiges Zaccur

As coisas mais belas são as que a loucura sussurra e


a razão escreve (Gide)

Por onde começar, quando se trata de ir ao encontro de um andarilho, que perscrutava as fronteiras
do conhecer e do conhecer-se humano? Qualquer que seja o caminho, será sempre um entre outros
possíveis: estamos sempre a reiniciar um diálogo com Bakhtin. A via que propomos revolve memórias
de futuro, em busca do que poderia ser arché – fogo central da terra, força vital, algo que, em qualquer
tempo e lugar, possa se fazer encarnadamente presente em novos discursos que, sendo novos, fazem
ressoar antigas vozes.
Como protocolo, poderíamos indagar: de onde nos fala Bakhtin? Essa pergunta, porém, suscita
muitas respostas possíveis. Ele nos fala de um espaço geopolítico, sócio-cultural e econômico: a Rússia
em plena efervescência revolucionária, pré e pós 1917. Mas nos fala também de espaços praticados
como professor de história da literatura e como interlocutor do círculo de Bakhtin, onde se exercitava o
confronto da própria palavra com a palavra do outro, em meio a intelectuais e artistas que ignoravam
fronteiras entre ciência e arte. Eis que nos defrontamos com uma teia de múltiplas implicações. A partir
dela, Bakhtin se refere a outros pensadores, contemporâneos ou não, com e contra quem dialogou.
Entre os críticos que costumam explorar as correlações entre Bakhtin e seus interlocutores privile-
giados, destacamos: Julia Kristeva, Todorov, Clark e Holquist. Cada abordagem privilegiada por eles dá
visibilidade a algumas facetas, deixando, inevitavelmente, outras na invisibilidade.
Em companhia de Clark e Holquist, veremos aproximações e convergências entre Bakhtin, Rabelais e
Dostoievski. Aproximando Bakhtin e Rabelais, poderíamos propor uma analogia; Rabelais estaria para seu
personagem Villon, assim como Bakhtin estaria para Rabelais. Villon permitiria a Rabelais direcionar suas
baterias contra a ordem escolástica e eclesiástica, artificial e séria, imutável e aprisionante. Rabelais, por
sua vez, permitira a Bakhtin contrapor à ordem oficial, igualmente monológica, uma ordem não-oficial.
Quanto a Bakhtin e Dostoievski, haveria uma parceria que possibilitou ao primeiro, em diálogo com o
segundo, problematizar a desafiadora idéia, senão do duplo, do papel do outro no self.
Se acompanharmos Kristeva, poderíamos prosseguir pensando uma poética arruinada, em que ocorre
uma dupla identificação de Bakhtin com Dostoievski. Um olhar sobre a história pessoal de ambos pode
nos ajudar a arrolar um encadeamento de crises - problemas econômicos, doenças, perseguições po-
líticas - na dramática tensão em que a pulsão de morte freudianamente carrega a pulsão de vida. Essas
experiências existenciais concorriam para que Bakhtin pudesse compreender, em sua radicalidade, a
presença das vozes do subsolo no romance de Dostoievski, e a partir daí, teorizar a complexidade do
texto, aberto à intertextualidade e à polifonia.
Com Todorov podemos assinalar uma revolução em que Dostoievski se descolava da pergunta - quem
é o personagem? - para problematizar como ele percebe o mundo e a si mesmo?. Impregnado da mul-
tiplicidade de visões, no interior de uma sociedade que acabava de romper tardiamente com o mundo
fechado da ordem feudal, Dostoievski rompia com um ponto de vista unívoco: Dostoievski transformava
em um momento de autodefinição do personagem o que antes era uma definição fechada e fixa ema-
nando do autor1 . Assinalando o quanto fora definitivo o encontro de ambos, Todorov viu em Dostoievski
o maître à penser de Bakhtin, flagrando, inclusive, o ponto crítico de uma reviravolta espetacular nas
idéias de Bakhtin, o momento de uma compreensão nova que rompia com a lei estética da exotopia
superior do autor em relação ao personagem2:
No meio do caminho, Bakhtin deixa-se influenciar pelo seu contra-exemplo, Dostoievski (ou
pela imagem que dele faz para si); seu primeiro livro, publicado em 1929, é consagrado a
ele, e é um elogio da via anteriormente condenada. A concepção anterior, em vez de ser
mantida na categoria de uma lei estética geral, torna-se característica de um estado de

1 BAKHTINE,M. La poétique de Dostoievski, Paris, Editions du Seuil, 1970, opus cit. p.85.
2 TODOROV, Tzvetan. Prefácio in BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 7

Proceedings XI International Bakhtin Conference 778


espírito que Bakhtin estigmatiza com o nome de monologismo; a perversão dostoievskia-
na, ao contrário, eleva-se como encarnação do dialogismo, a um só tempo concepção do
mundo e estilo de escrita.

Essa tomada de consciência representou um divisor de águas nas reflexões de Bakhtin. Considerando
que um capítulo de Problemas da Poética de Dostoievski contém o gérmen de Rabelais e a Cultura Po-
pular na Idade Média, avançamos algumas indagações. Que movimento levaria Bakhtin de Dostoievski
a Rabelais? Que intenção presidiria à escolha de Dostoievski e Rabelais, nessa ordem, como caleidos-
cópios cronotópicos das grandes questões humanas? Por que partiria do mais próximo (um autor russo
do século anterior) para o mais distante (um autor francês do século XVII)? Por que auscultar com
Dostoievski as vozes abafadas do subsolo, para depois remexer com Rabelais a terra fértil da cultura
popular, com seu riso regenerador, com sua praça sem rampa, sua festa tenda onde todos se incluem
num riso congregante? Que significação teria, para Bakhtin, preservar apenas a paternidade inequívoca
dos livros centrados em Dostoievski e Rabelais?
Na hipótese que avalizamos essas duas obras nos permitem inferir questões que refratam crises da
atualidade: a do sujeito, a da verdade e a da representação. Bakhtin sublinhava que a particularidade
da criação artística é ser receptiva e acolhedora, tomando a realidade como um elemento constitutivo.
Nesse sentido, a vida se encontra no interior da arte, em toda a plenitude de seu peso axiológico social,
político, cognitivo ou outro que seja. Acrescente-se a tal pregnância, um sentido antecipatório que se
realiza de modo mais significativo no turbilhão de crises.
Se bem que distantes no tempo e no espaço, as perspectivas cronotópicas de Dostoievski e Rabelais
podem nos reportar a tempos de crises em que uma nova ordem se delineava. Dostoievski pôs em jogo
em seus romances uma multiplicidade de mundos conflitantes em meio à turbulência das transforma-
ções sociais, políticas e culturais, após a entrada tardia no modo capitalista. O pathos de Bakhtin iria
ao encontro do que, segundo ele, (co)move Dostoievski: a luta contra a coisificação do homem e dos
valores humanos no mundo capitalista. Naquele cronotopo de crise, em que a ordem capitalista subvertia
o modelo anacrônico e fechado de um mundo unívoco, Raskolnikov pode ser tomado como personagem
emblemático. Seu nome significa “cismático”, o que se separa da comunhão de fiéis, o que encarna em
si a divisão. Raskolnikov só poderia ser o que se impacta diante da decomposição do modelo antigo e
da constituição de uma nova ordem sob o império do capital. Herói conflitado e ambíguo, ele interroga o
mundo se interrogando, vivendo, simultaneamente, o inquisidor e o carrasco e a vítima, diante de uma
realidade tormentosa que violenta a consciência do herói. Seu cronotopo, como sublinha Bakhtin, é o
do limiar; o do não-lugar de quem anda à deriva entre duas ordens, sem se encontrar minimamente
em nenhuma delas, condenado a ser menos, quando seu desejo em correspondência com a expectati-
va materna lhe cobrava ser mais. Nesse tenso embate, o herói vive existencialmente pressionado pelo
modelo que desumaniza o humano.
Em contraponto, a figura que emerge na primeira leitura dos romances de Rabelais seria a do excesso
– o hiperbólico crescimento de um mundo, abrindo-se às descobertas e à expansão do conhecimento.
Porém, o discurso bivocal do autor atravessa ironicamente o clima pantagruélico de festas e viagens,
combates e conquistas – ironizando o sucesso daquele afã quantitativamente transbordante. O tom de
paródia desvelava, no ser que se agigantava, o bicho da terra tão pequeno, ainda e sempre desejante
de cobrir a falta original – a de se saber um ser para a morte. Viajando na garupa do herói, o ambíguo
riso rabelaisiano, mordaz, mas compreensivo e complacente, ironiza tanto o modelo escolástico, como
o humanista e o sensualista. Cada um deles, ao absolutizar um modo de ver-conhecer, construía um
modelo artificioso, tomando, como totalidade, o que antes fora posto à margem. Um riso nutrido do cô-
mico popular criticava uma alargada distância entre o conhecimento arrogante, cioso de seus conceitos
científicos, e a sabedoria humilde da gente sem importância, apoiada em conceitos cotidianos. Rabelais
possivelmente denunciasse a hybris humana e sua pretensa onisciência.
Ao discutir Rabelais e Dostoievski, Bakhtin, de alguma forma, poderia sinalizar uma transformação
necessária, talvez no sentido contrário ao da flecha do tempo, um retorno às forças vitais que moveram
o processo de humanização?
A leitura, que aqui propomos, tem como referência a tríade: Rabelais, Bakhtin e Dostoievski. Dos-
toieski não seria propriamente o maître à penser de Bakhtin, mas um companheiro ao qual se junta
Rabelais. Do diálogo com ambos, ressalta a percepção da ambivalência humana. O movimento recursivo
de Dostoievski a Rabelais o levaria ao encontro da arché humana – energia presente na interação: ser-
para-o-outro-ser-com-o-outro-ser-para-si. No primeiro extremo, ressoa o quenoticismo aberto a ser para
o outro o que Cristo é para o si; no último extremo ecoa o ser para si absolutizado, peculiar ao modelo
capitalista. Na ponte entre o dois extremos, o ser-com-o-outro, na cumplicidade sem rampa, presente
na ordem não-oficial, no tempo da festa popular, na expressão do baixo corporal, no riso revitalizador
da cultura popular que se distende em arco antes e depois da Idade Média.
Ousamos afirmar que a partir da história da literatura e do estudo do romance como gênero híbrido
cujas raízes escavou, Bakhtin abre uma terceira via para os estudos das ciências humanas, sob o viés
uma ciência imprecisa que disseminava uma translingüística em contraponto à fundação da lingüística.
Entre o discurso e o sistema lingüístico, entre a fundação e a disseminação
Paralelamente à publicação da Poética da poética de Dostoievski, foi lançado Marxismo e Filosofia da

Proceedings XI International Bakhtin Conference 779


linguagem, assinado por Volochnov. Este livro, incluído entre as publicações controversas, marca uma
profunda divergência entre Saussure e Bakhtin.
Tal ruptura torna-se mais nítida quando o Bakhtin (Volochinov), na condição de locutor-respondente
interpela Saussure, a mais brilhante expressão do objetivismo abstrato, atribuindo-lhe a formulação clara
e precisa dos conceitos de base da lingüística. Pelo menos três questões ressaltam dessa interpelação:
(1) o conflito entre a posição de Bakhtin e seu círculo e a dos representantes do formalismo lingüístico
russo, sob forte influência de Saussure; (2) a crítica à formulação saussureana (langage, langue, parole)
determinando a opção pela língua, como princípio de classificação que introduz uma ordem natural num
conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação; (3) a crítica ao monologismo presente tanto
no espírito racionalista como na psicologia indiviualista.
Tais questões se remetem, convergindo para uma ruptura epistemológica prenunciada, em vários
fronts. No front interno, o contexto intelectual russo, Bakhtin e seu círculo contrapunham-se aos for-
malistas (críticos literários, escritores e lingüistas), influenciados por Saussure. No front externo, sua
contra-palavra incidia tanto sobre a corrente batizada significativamente com o nome de objetivismo
abstrato, influenciada por Saussure; como sobre o subjetivismo individualista, influenciado pelo ro-
mantismo alemão. Apesar de pontos de partida distintos, as duas orientações caíam no impasse da
enunciação monológica. Bakhtin recusava as proposições do objetivismo abstrato que, fixado à língua,
faziam prevalecer o estável sobre o processo, o abstrato sobre o concreto, o sistema sobre a história,
as formas dos elementos sobre o conjunto, a univocidade sobre a polissemia e múltiplos acentos. Mas
denunciava igualmente o subjetivismo individualista, como uma ilha do eu, de tal modo fechada em si
mesma que apagaria o interlocutor, como se cada um falasse de si para consigo, do lugar inaugural de
um novo Adão. As proposições desta corrente enfatizavam a língua como atividade, como processo
criativo e ininterrupto de construção, derivando da psicologia individual as leis de criação lingüística3.
Como fundo, ressoa ainda e sempre a clássica tensão entre o apolíneo e o dionisíaco. Do ponto de
vista do objetivismo abstrato, a substância da língua (ergon) é o sistema normativo; do ponto de vista
do subjetivismo individualista, a substância da língua seria a atividade natural e congênita do homem
(energeia), materializada no ato de criação individual e único.
Para além da língua, legado histórico cultural (ergon) e da expressão de uma atividade individual
(energeia), Bakhtin buscou uma terceira via, a da interação verbal entre o eu e o outro, na compreensão
dialógica da linguagem viva e criadora.
Saussure, por seu turno mostrou-se sempre desafiado pela natureza complexa do objeto. Entrevistado
por Rienlinger, sublinhou um impasse: Eu não me designo definitivamente a fazer uma lingüística estática.
Em outra entrevista, uma preocupação, senão epistemológica, ética transparece em seu depoimento:4
vejo-me diante de um dilema: ou expor o assunto em toda complexidade e confessar todas
as minhas dúvidas, o que não pode convir para um curso que deve ser matéria de exame,
ou fazer algo simplificado, adaptado a um auditório de estudantes que não são lingüistas.
Mas a cada passo me vejo retido por escrúpulos.

Em face de tal dilema, a decisão seria tomada pelos que chamaram a si a responsabilidade de publicar
uma obra, não autorizada pelo próprio Saussure. Assim sendo, a definição pela língua em si mesma e por
si mesma como o único e verdadeiro objeto da lingüística passa pelos discípulos C. Bally e A. Sechehaye,
na condição de co-enunciadores privilegiados, organizadores e editores do livro de Saussure.
A partir de tais pistas, por que não interrogar a resistência do objeto linguagem face à rigidez do mé-
todo positivista? O próprio isolamento crescente de Saussure diante da comunidade científica não seria a
evidência da contradição entre a pesquisa que apelava o pensamento e o homem de ciência que não se
permitia romper com o modelo da ciência positivista? Na sua concepção, para fazer ciência era preciso
classificar, separar, definir, mas desenredar um objeto complexo seria também descaracterizá-lo.
Bakhtin não se refere às hesitações de Saussure, mas se contrapôs à opção pelo sistema lingüístico.
A partir daí, muitos estudiosos perceberam a necessidade de ampliar o domínio da ciência da lingua-
gem. A contribuição bakhtiniana detonaria, assim, o que Boaventura dos Santos chama uma crise de
crescimento de terminado campo do conhecimento. Sem romper com a herança do pai fundador da
lingüística, tentava-se enriquecê-la através da contribuição de Bakhtin.
Nos anos 1960, o grupo de intelectuais da revista Tel quel começou a divulgar as contribuições de
Bakhtin. Dentre estes, Kristeva, por exemplo, escolheu aprofundar o conceito de intertextualidade. Por
sua vez, lingüistas, como Ducrot e Benveniste, chamaram a si questões do texto e da polifonia, da
enunciação e do enunciado, abrindo caminho a novos conceitos e estudos lingüísticos.
Nessa produtiva efervescência, a questão da polemos entre Saussure e Bakhtin permaneceu velada.
Diferentes sujeitos, diferentes olhos, diversas as perguntas e diversos os objetos. O olhar de Saussure
conformado pela razão objetiva voltava-se para o analítico, o linear, o cartesianismo de um paradigma
científico-explicativo. O olhar de Bakhtin era desafiado a apreender o complexo, o dialógico, o descon-
tínuo-inconcluso a partir de um paradigma estético-filosófico-compreensivo. Como alternativa à sim-
plificação denunciada pelo próprio Saussure, a abordagem bakhtiana buscava escapar aos limites do
3 BAKHTINE, Mikhaïl. Marxismo e filosofia da linguagem . opus cit. p.72-73
4 Trecho de entrevista concedida a L. Gautier. Cf. SAUSSURE, Ferdinand. (org. BALLY e SECHEHAYE) Curso de Lingüística geral. São Paulo, Cultrix, 1974,
p. XVII.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 780


domínio disciplinar, assumindo o risco de se desviar da ciência clássica. Na hipótese, que avalizamos,
optando pela abordagem dialógico-compreensiva da linguagem e do texto, Bakhtin prenunciava uma
ruptura paradigmática com o modelo explicativo conceptual, cujo monologismo termina por objetalizar
o outro e dogmatizar a busca da verdade.
Na hipótese que avalizamos, mais do que uma crise de crescimento da ciência da linguagem, haveria
indícios de uma crise de degenerescência do modelo do qual derivam as ciências modernas.
O dialogismo como segunda ruptura paradigmática
Bakhtin reconhecia que seu estudo não tratava nem da lingüística, nem da filologia, nem da literatu-
ra, nem procedia de alguma outra especialização. A par dessas predicações negativas, ele apontou as
razões positivas de seu estudo: Ele se situa nas zonas limítrofes das mencionadas, nas fronteiras de
todas as disciplinas mencionadas, em sua junção e em seu cruzamento5. De certa maneira, Bakhtin
se remetia ao ponto anterior à cisão da filosofia, buscando uma abordagem abrangente das ciências
humanas. Sobretudo, um teórico do texto, como sinalizou Todorov 6:
Bakhtin se viu obrigado, para melhor desenvolver sua pesquisa, a longas incursões no do-
mínio psicológico e sociológico, retornando com uma visão unitária do campo inteiro das
ciências humanas, fundada sobre a identidade de sua matéria: os textos e seu método:
interpretação, ou melhor, a compreensão respondente.

Por esse caminho buscava-se compreender dialógica e complexamente o que vinha sendo estudado
como dicotomia. A abordagem bakhtiniana introduz mudanças radicais: (i) conteúdo e forma mutuamente
se remetem, denunciando a estética do material dos formalistas como coisa em si mesma, simplificação
tão artificial como redutora; (2) sujeito e objeto se implicam em relação dialógica entre dois sujeitos,
denunciando o observador neutro e sua pretensão de objetividade; (3) a parte e o todo se vinculam
organicamente, denunciando o reducionismo de se considerar o todo como soma das partes; (4) per-
manência e mudança se tensionam na cultura em movimento, denunciando abordagens fragmentadas
sincrônico – diacrônico, uno - múltiplo; o eu e o outro que se constituem na linguagem entretecendo
subjetidade e intersubjetividade.
Uma trama de muitos nós vai nos aproximando de um problema insistentemente revisitado por Bakhtin:
a especificidade das ciências humanas. Num texto, cujas notas primeiras datam de 1940 e a redação
última de trinta anos depois, Bakhtin propõe diferenciá-las, a partir do princípio dialógico:7
As ciências exatas são uma forma monológica de conhecimento: o intelecto contempla uma
coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que pratica o ato de cognição
(de contemplação) e fala (pronuncia-se) . Diante dele há a coisa muda. Qualquer objeto do
conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Mas o
sujeito como tal não pode ser percebido e estudado a título de coisa, porque como sujeito,
não pode, permanecendo sujeito ficar mudo; conseqüentemente o conhecimento que se
tem dele só pode ser dialógico.

Um outro texto recolhido em seus arquivos, escrito entre 1959 e 61, foca o problema do texto na área
da lingüística, da filosofia e das ciências humanas. Novamente a especificidade das ciências do espírito
é reafirmada de par com a impossibilidade de tratar o espírito (o próprio e o do outro) tal como o objeto
é observado no domínio das ciências naturais. Bakhtin enfatiza que, no campo das ciências humanas o
pensamento nasce no pensamento do outro impregnado dele existencial, ideológica e culturalmente. O
texto como dado primário, lugar de encontro, desencontro, é dialógico, razão por que não considerá-lo
como um objeto: nele é impossível de eliminar ou neutralizar a segunda consciência, a consciência
de quem toma conhecimento dele. Até porque o texto só se torna vivo, só realiza seu ser autêntico na
fronteira de dois sujeitos, de duas consciências8.
Nos apontamentos de 1970-71, a par da diferença entre as ciências naturais e as humanas, Bakhtin
vai sublinhar a recusa à idéia de uma fronteira intransponível entre elas. Rejeita, inclusive, o proce-
dimento de contraposição estabelecido por Dilthey, alegando que a evolução posterior das ciências o
desmentira. Ou seja, a diferença entre as ciências não passaria pela explicação como fundamento das
ciências naturais e pela compreensão, como fundante das ciências do espírito. Por outro lado, Bakhtin
mantém a distinção rigorosa entre a compreensão e o estudo científico, reforçando o princípio dialógi-
co pois o objeto, durante a comunicação dialógica que ele enseja se transforma em sujeito (em outro
eu)9. Ao discutir a compreensão pela via da relação dialógica, sinalizando a contribuição da microfísica
(teoria dos quanta), Bakhtin afirmou que o observador não se situa em parte alguma fora do mundo
observado, e sua observação é parte integrante do objeto observado.
Em outro texto de 1937-38 ele introduziu a expressão cronotopo como metáfora (quase, mas não só),
desvinculada de sua especificidade na teoria da relatividade, porém enfatizando a indissolubilidade de

5 BAKHTINE, Mikhaïl. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 329.
6 TODOROV, .Mikhail Bakhtine le principe dialogique. opus cit, p. 7.
7 BAKHTINE, Mikhaïl. Estética da criação verbal. Opus cit. p. 403.
8 Bakhtin, Mkhail. O problema do texto in Estética da criação verbal. opus cit. p. 333.
9 Bakhtin, Mkhail. Apontamentos (1970-1971) in Estética da criação verbal. opus cit p. 385.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 781


espaço e de tempo como categoria conteudístico formal da literatura. Um terceiro exemplo é recolhido
na analogia entre o mundo fechado da epopéia e o universo ptolomaico e o mundo aberto do romance e
o universo de Copérnico. A abertura do mundo não pararia nesse ponto, nem a do romance que seguiria
problematizando o inacabamento do humano, a ponto de criar na linguagem a possibilidade de dizer, sem
nomear, o jogo de palavras e contrapalavras, de compreensões que mutuamente se afetam e assumem
novas nuances na correnteza comunicativa.
Bakhtin anunciaria uma epistemologia a partir da linguagem, do texto e da palavra, em vez de subor-
dinar-se à matematização do mundo como modelo fechado. Quando Bachelard diz que todo dado deve
ser encontrado como resultado, trata-se de uma proposição derivada de determinada ciência, sendo a
partir dela construída uma epistemologia. Quando as ciências humanas, em busca de uma pretendida
cientificidade, valem-se da lógica dos resultados, tomada de empréstimo às ciências duras, insinua-se
aí uma contradição de base, envolvendo a natureza do objeto.
Se compararmos a orientação de textos monográficos de diferentes áreas do conhecimento, veremos
a recorrência da seguinte ordenação: introdução, revisão bibliográfica, procedimentos metodológicos,
resultados, discussão, conclusões e bibliografia.10. Destacamos alguns aspectos enfatizados no referi-
do texto, analisado por nós: (1) a exigência de detalhamento metodológico, justificada na medida em
que deve permitir a reprodução do experimento como critério de validação; (2) a ênfase na separação
entre informações factuais e interpretação, como garantia da apresentação objetiva de resultados; (3)
a importância da discussão comparativa dos resultados obtidos, pronunciando-se sobre a validade dos
trabalhos anteriormente produzidos.
No entanto, desde o momento da apresentação do problema e da formulação de hipóteses, minima-
mente um espaço se abre ao pesquisador seja pela introdução de uma nova variável no equacionamento,
seja a partir de um fato novo observado ou revalorado. Outros fatos esperados, ou não, podem se mostrar
pertinentes no momento mesmo da realização do experimento. Como separar o olho do cérebro que
vê? Não fora a intervenção do pesquisador, conferindo peso diferente ao visto, que espaço haveria para
a interpretação e a discussão de resultados? E se acaso todas as interpretações coincidissem, onde se
abriria espaço para produzir o conhecimento novo? Se o princípio científico, em nome da objetividade,
expulsa o pesquisador, inapelavelmente o sujeito de fato o incorpora a bem da invenção e da própria
ciência em movimento.
Na ciência do ocidente, como esclarece Morin, o sujeito é tudo-nada - nada existe sem ele, mas tudo
o exclui. Nessa perspectiva, a pretendida ausência do eu produziria o ambiente asséptico propício ao
estabelecimento da verdade objetiva. Tal estratégia não passou despercebida a Bakhtin que viu as ciên-
cias exatas como uma forma monológica de conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e pronun-
cia-se sobre ela. Diversamente da sociologia de Durkheim que referendaria tal modelo, Bakhtin convida
as ciências humanas a afiar a escuta, subvertendo a relação sujeito-objeto pois o objeto, durante o
processo de comunicação dialógica que ele enseja, se transforma em sujeito (em outro eu).
A questão se desloca assim da definição das ciências (sejam elas físicas ou humanas) para a concep-
ção da relação sujeito objeto subjacente às formas de conhecimento. Não por acaso, Bakhtin desvela
que a explicação implica uma consciência única, um sujeito único indiferente ao objeto, que não suscita
relações dialógicas; enquanto a compreensão implica sempre duas consciências, dois sujeitos, em algu-
ma medida colocando em jogo modalidades dialógicas. Nessa concepção, nada no universo humano se
reifica. A palavra, por exemplo, se autêntica não tem fundo, mas pregnâncias, nuances, traços da inte-
ração humana que com ela interage; deixa, portanto, de ser percebida de modo objetal, sendo possível
conversar com ela, buscando traços dos deslizamentos de sentido que lhes imprimiram os falantes não
apenas ao longo do tempo, como num dado evento.
Curiosamente, um físico do porte de Heisemberg não desvinculou a busca do conhecimento da busca
de significação. Pensando a significação do conhecer e conhecendo o saber da significação, Heisemberg
buscou uma compreensão dialógica da linguagem cotidiana e da ciência, dialetizando poderes e limites
tanto de uma como de outra11:
Os conceitos da linguagem cotidiana, mesmo imprecisamente definidos como eles são,
parecem exibir uma estabilidade maior na expansão do conhecimento que os termos pre-
cisos que a linguagem científica ostenta, decorrência de uma idealização a partir somente
de determinados grupos de fenômenos . Isso por si só, não é motivo de surpresa, pois os
conceitos da linguagem natural são cunhados pela associação direta com a realidade: eles
representam a realidade. É bem verdade que eles não são bem definidos e podem passar
por transformações no decorrer dos séculos, da mesma forma que ocorre com a realidade
(...) Por seu lado, os conceitos científicos são idealizações, derivam eles de experimentações
realizadas à custa de instrumentações refinadas e são precisados com base em axiomas
e definições. Tão somente através dessas definições precisas torna-se viável ligar-se os
conceitos a símbolos matemáticos e derivar-se, matematicamente, a variedade infinita de
fenômenos possíveis no campo estudado. Todavia através desse processo de idealizações
e definições, perde-se o contato com a Realidade.

10 MARQUES Evair A. e MANDARIM-de-LACERDA C. A. Teses e Dissertações: estrutura


e apresentação. Rio de Janeiro, UERJ, 1995.
11 HEISEMBERG, Werner. Física e Filosofia. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1995, p. 150

Proceedings XI International Bakhtin Conference 782


A necessidade de estabelecer um descontínuo entre o compreender e o conhecer transparece na
epistemologia de Bachelard, fundada na ruptura da ciência com o senso comum. Em conferência pronun-
ciada em 1951, Bachelard reconheceu a fragilidade de uma proposição que guardava em si a semente
de sua própria ruína: a efemeridade da ciência. Mas enfatizou também que a verdade só ganha pleno
sentido ao fim de uma polêmica. Não pode haver aí verdade primeira. Não há senão erros primeiros.
Bakhtin lhe responderia que não há nem primeira, nem última palavra.
Mais de meio século depois, a aceleração crescente na produção do conhecimento parece cobrar da
ciência rupturas com o senso comum da própria ciência, como teorizou Boaventura dos Santos. Pode-se
mesmo recusar a recusa de Bachelard em tomar o senso comum como questão para o pensamento. Por
que não dialogar com os núcleos de bom senso do senso comum como apontara Gramsci? Por que não
compreender com Bakhtin que a esfera do diálogo assegura a vida da palavra12, mantendo as grandes
questões em aberto?
Nesse ponto, o poder das ciências humanas se confronta com o devir humano, aberto a possibilida-
des e incertezas. Concordando ainda com Bakhtin, compreendo a necessidade superar uma discussão
retórica cujo objetivo é a vitória total e a eliminação do adversário. Concordando com Heidegger, talvez
se faça necessário desvelar a verdade como adequação e talvez compreendê-la, com Marcio Tavares
D’Amaral, enquanto simulação. Seria o caso de resgatar a linha de pensamento dos ensaios?
Palavra-senha: a inconclusão
No último parágrafo de Observações sobre a epistemologia das ciências humanas Bakhtin cuida de
deixar aberto o velho tema do humano, em busca da significação13:
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dia-
lógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado). (...)Em cada um dos
pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade, inumerável, ilimitada de
sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto, no desenrolar do diálogo, ao sabor
de sua evolução, eles serão rememorados e renascerão numa forma renovada, (num con-
texto novo) . Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu
renascimento. O problema da grande temporalidade.

Ao contrário da visão da ciência que opera a partir da flecha do tempo, avançando a idéia de progresso,
Bakhtin sublinhou o diálogo infinito na grande temporalidade, que se distende em circularidade no espa-
ço-tempo, compreendendo toda poiesis humana, o fazer cultura e fazer-se na cultura. Descontinuidades
e ressonâncias entre acontecimentos se dão em diferentes espaços e tempo.
A cultura, assim substantiva, abarca toda a multiplicidade do UM e, desse modo, cada ato, cada
fenômeno cultural transforma-se como que numa mônada que reflete tudo em si e que está refletida
em tudo14.
Na leitura que avalizamos, Bakhtin prenunciou uma nova epistemologia das ciências humanas a
partir da teoria do texto15, pois o homem em sua especificidade humana se exprime sempre, isto é cria
textos. No encalço de Dostoievski, ele subverte a lei estética da exotopia superior, que absolutiza o autor
e objetaliza o herói e se põe à escuta de vozes e idéias, de modos de ser e estar que se reconfiguram no
mundo e com os homens no mundo. Mas, ao fazê-lo, também nos convida a folhear páginas antigas da
história dos gêneros, que conservam a idéia imorredoura da archaica que é eternamente viva, ou seja
mantém a capacidade de renovar-se.16 Da pluralidade de estilos e vozes, da conjunção de experiência
e fantasia, da incorporação do cotidiano nutriram-se os gêneros antigos e medievais, integrantes do
cômico-sério. Há toda uma evolução literária que Bakhtin revisitou, buscando no romance polifônico de
Dostoievski e no texto carnavalesco de Rabelais, a fonte popular e vital que alimenta a invenção: a arché
humana que se dissemina na arché da bakhtiniana.
Quanto a nós, que vivemos a aguçada crise de um mundo globalizado que acirra desigualdades,
que palavra poderíamos buscar em Bakhtin? Esta pergunta pode ser pensada a partir da atualização
da experiência e da fantasia, do cotidiano e da pluralidade de vozes e linguagens. Muito recentemente,
algumas escolas brasileiras foram premiadas por terem superado a violência através de projetos orien-
tados para a criação: teatro e dança, paródia e música, rádio e jornal. Diríamos que uma vez mais se
reinventaram caminhos para ir ao encontro da arché humana. Um tal empoderamento17 é perfeitamente
administrável pelo statu quo, se ocorre em pequena escala. Mas o que aconteceria, caso pudesse se
abrir a todos silenciados do mundo? Bakhtin festejaria tal acontecimento em que liberdade e amor se
abrem a todos e a todos reúne na Criação.

12 BAKHTINE,M. Esthétique de la création verbal. opus cit. p. 371.


13 BAKHTIN, M. Estécida da criação verbal. Opus cit. pp. 413-414.
14 BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo, Hucitec, 1990, p.29.
15 Cf. ZACCUR, Edwiges. Por que não uma epistemologia da linguagem? In Método, métodos, contramétodo. Regina Leite Garcia, (org), São Paulo, Cortez,
2003.
16 Cf. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1981.
17 A falta de palavra melhor, estamos trazindo empowerment por empoderamento, mesmo reconhecendo que não se alcança o sentido original.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 783


Bibliografia
BAKHTIN, Mikail. Problemas da poética de Dostoievski, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1981.
____________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1990.
__________. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo, HUCITEC, 1990.
____________. A estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
__________ .Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo, HUCI-
TEC, Brasília, Ed. da Universidade de Brasília, 1993.
CALVET. Jean Louis. Postface: Lire Saussure aujour d’hui. in Cours de linguistique général. Paris, Gallimard, 1975.
CLARK, Katerina e Holquist, Michael. Mikhail Bakhtin, São Paulo, Perspectiva, 1998.
D’AMARAL, Marcio Tavares. O homem sem fundamentos -sobre linguagem sujeito e tempo. Rio de Janeiro, Editora
UFRJ-Tempo Brasileiro, 1995.
DOSTOIEVSKI, Fiódor. Obra completa. Rio de Janeiro, Companhia Aguilar Editora, 1963.
HEISEMBERG, Werner. Física e Filosofia. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1995.
KRISTEVA, Julia. Polylogue. Paris, Editions du Seuil, 1977.
MARQUES Evair A. e MANDARIM-de-LACERDA C. A. Teses e Dissertações: estrutura e apresentação. Rio de Janeiro,
UERJ, 1995.
MORIN, Edgar. A noção de sujeito in Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre, Artes Médicas,
1996.
____________. Epistemologia da complexidade in Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre, Artes
Médicas, 1996.
RABELAIS, François. Gargantua. Paris, Éditions du Seuil, 1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Porto, Ed. Afrontamento, 1993.
___________ Um discurso sobre as ciências. Porto, Ed. Afrontamento, 1995.
SAUSSURE, Ferdinand. (org. BALLY C. e SECHEHAYE A.) Curso de Lingüística Geral. São Paulo, Cultrix, 1974.
TODOROV, Tzevetan. Mikhail Bakhtine le principe dialogique. Paris, Éditions du Seuil, 1981.
. Prefácio in BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
_______________

ZACCUR, Edwiges. Por que não uma epistemologia da linguagem? In Método, métodos, contramétodo. Regina Leite
Garcia, (org), São Paulo, Cortez, 2003.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 784


A sátira menipéia em Casos do Romualdo

Maria Beatriz Zanchet

Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste

Campus de Marechal Cândido Rondon / Curso de Letras-Português

Rua Goiás, n. 188, Centro

85960000, Marechal Cândido Rondon – PR

zanchet@rondonet.com.br

Resumo I
Este trabalho pretende verificar de que forma a obra Casos do Romualdo, de João Simões Lopes
Neto, vincula-se, em diferentes graus, à tradição da sátira menipéia – atrelada ao gênero do cômico-
sério – conforme as concepções de Mikhail Bakhtin em seu estudo Problemas da poética de Dostoiévski.
Publicada, originalmente, sob a forma de folhetim, por volta de 1914, Casos do Romualdo filia-se ao
regionalismo gaúcho. O “contar casos”, comum nas rodas de chimarrão, entre os peões das estâncias,
se toma por base o riso, o fantástico e a mentira como características folclóricas, converte-se, na lin-
guagem de Simões Lopes Neto, numa forma de resgatar o passado e contrapor – através das aventuras
mirabolantes de Romualdo – um novo tempo histórico-social, dessacralizando, pela via do cômico, o
mito heróico do gaúcho.
Resumo II
This paper aims at verifying how the work Casos do Romualdo (Romualdo’s Anecdotes) by João Simões
Lopes Neto is related, in different degrees, to the Menippean Satire tradition – tied to the comic-serious
genre – according to the conceptions found in Mikhail Baktin’s Problemas da poética de Dostoievski.
Published, originally, in the form of a pamphlet, around 1914, Casos do Romualdo is affiliated with the
gaucho regionalism. If the “telling anecdotes”, common in chimarrão reunions among herdsmen in ranch
houses, takes the laughter, the fantastic and the lie as folkloric characteristics, it is converted, in Simões
Lopes Neto’s language, into a way of retrieving the past and contrasting – through Romualdo’s crazy
adventures – a new historic-social time, demythologizing, via comic, the heroic myth of the gaucho.

Simões Lopes Neto destaca-se no cenário da literatura regionalista por sua obra Contos gauchescos e
lendas do sul, na qual é possível observar a apologia da vida gaúcha em seus primórdios. Utilizando-se
das chamadas “formas simples” da narrativa oral – como os casos, as lendas e os mitos – e valendo-se,
como estratégia ficcional, de Blau Nunes – um narrador vaqueano, a conduzir um viajante interlocutor,
a narrativa e seu cavalo –, Simões Lopes Neto dá conta da articulação entre o velho e o novo, a expe-
riência e a memória, o passado e o presente na formação do gaúcho, o qual é plasmado ficcionalmente
como mito heróico.
Os Casos do Romualdo, publicados originalmente por volta de 1914, sob a forma de folhetim, no
Correio Mercantil (Pelotas-RS), foram divulgados como obra póstuma, em 1952, graças à pesquisa dedi-
cada de Carlos Reverbel, a pedido da Editora Globo. Em relação a Contos gauchescos e lendas do sul, a
obra Casos do Romualdo é considerada, por significativa parcela da crítica, como uma literatura menor,
atribuição que seria comungada pelo próprio autor, como justificativa para a sua não-publicação em vida.
Contrariando alguns críticos (entre os quais Flávio Loureiro Chaves e Guilhermino César) Ligia Chiappini
(1988, p. 380) defende opinião divergente a respeito da “autocensura do escritor que explicaria a não
publicação dos Casos... em vida: ele os havia confiado a Pinto da Rocha para que os publicasse no Rio
de Janeiro e os prefaciasse, mas este, ao que parece, os perdeu.”
Entretanto, mesmo considerando-se a publicação da obra em folhetim, tendo em vista as condições
da época, depreende-se, da própria estrutura que interliga os casos, uma vontade autoral de publicação.
Defende-se, com tal posicionamento, que a pertinência da publicação agencia uma pretensão autoral
de contraposição, caracterizada pela vontade de, vincando o elemento regional como base, credenciar

Proceedings XI International Bakhtin Conference 785


a realidade gaúcha em sua evolução. Tal contraposição pode ser observada na diferença entre Contos
gauchescos e lendas do sul e a obra Casos do Romualdo: ao gaúcho dos primórdios, o gaúcho de um
tempo novo; à liberdade do pampa, o confinamento da chácara; ao heroísmo épico das virtudes narradas
por Blau Nunes, as aventuras mirabolantes, fantasiosas e engraçadas de Romualdo; à seriedade, o riso;
ao tom moralista e exemplar da narrativa dos contos, o contar galhofeiro e brincalhão dos casos.
Feita esta ressalva introdutória, pretende-se como objetivo principal deste trabalho, explorar o tema
do cômico em Casos do Romualdo1 a partir dos estudos de Bakhtin (1981) referentes à sátira menipéia.
O campo do riso – exceção feita a Bergson (1990), Freud (1969), Huizinga (1990) e Bakhtin (1981) – em
suas mais variadas formas, não tem recebido a mesma acolhida crítica dispensada a outras manifestações
literárias. No artigo intitulado “A ideologia da sociedade e o paradoxo do coringa”, Baeta Neves (1974)
aponta, como justificativa, causas enraizadas na cultura, responsáveis pela parcimônia das análises
teóricas a respeito do riso e da comicidade:
A ideologia da seriedade impõe uma antinomia absoluta entre seriedade e comicidade, qua-
lifica positivamente a primeira e, subseqüentemente, identifica seriedade e saber. Confunde
arrogância e sisudez com seriedade e responsabilidade para melhor recalcar o poder cor-
rosivo e libertador que a comicidade pode carregar. (...) A comicidade (...) tematiza áreas
proibidas ou sacralizadas para outros tipos de conhecimento, invade-os e os descentraliza.
Pode brincar com o divino e com a morte, com o Poder e com a privaticidade – pode ser um
látego tão mais cortante quanto mais enlouquecido e sem tutores. (NEVES, 1974, p. 36).

As ponderações de Baeta Neves são corroboradas por Bakhtin (1987), teórico que fundamenta a
análise do presente estudo, a respeito de Simões Lopes Neto, quando discute o riso – em suas mais
variadas formas – como o campo menos estudado da criação popular:
A concepção estreita do caráter popular e do folclore, nascida na época pré-romântica e
concluída essencialmente por Herder e os românticos, exclui totalmente a cultura específica
da praça pública e também o humor popular em toda a riqueza das suas manifestações.
Nem mesmo posteriormente os especialistas do folclore e da história literária consideraram o
humor do povo na praça pública como um objeto digno de estudo do ponto de vista cultural,
histórico, folclórico ou literário. Entre as numerosas investigações científicas consagradas
aos ritos, mitos e às obras populares líricas e épicas, o riso ocupa apenas um lugar modesto.
(BAKHTIN, 1987, p. 3).

Ao discorrer sobre a formação e o desenvolvimento dos gêneros ligados ao campo do cômico-sério, na


Antigüidade Clássica e, depois, na época do Helenismo – incluindo-se nesse campo o diálogo socrático,
a literatura dos simpósios, a primeira memoralística, as fábulas, a poesia bucólica e a sátira menipéia,
entre outros –, Bakhtin afirma que os antigos percebiam a originalidade desse campo e, conseqüência
lógica, colocavam-no em oposição aos gêneros sérios como a epopéia, a tragédia, a história, a retórica
clássica, etc. Discutindo as características dos gêneros pertencentes a esse campo, o teórico afirma
que eles estão impregnados de uma cosmovisão carnavalesca que lhes determina as particularidades
fundamentais. Bakhtin (1981, p.92) define a literatura carnavalizada como aquela que “direta ou indire-
tamente, através de diversos elos mediadores, sofreu a influência de diferentes modalidades de folclore
carnavalesco (antigo ou medieval).”
Dentre as pecualiaridades extensivas aos gêneros do cômico-sério, estão: 1ª) o novo tratamento dado
à realidade. Conforme Bakhtin (1981, p. 93), é a atualidade viva, o cotidiano, o dia-a-dia, “o ponto de
partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade.” Portanto, o objeto de representação
não é buscado no passado dos mitos e das lendas, mas na contemporaneidade do presente. Se aparecem,
nestes gêneros, personalidades histórias ou heróis míticos, estes são deliberadamente atualizados.
Em Casos do Romualdo – se os contos inserem-se no domínio do folclórico, reconstituindo a memória
coletiva, indistinta, de um tempo passado, quanto à formulação de um tipo social –, também credenciam
um novo tratamento dado à realidade. Agora, os tempos são outros: há necessidade do gaúcho abandonar
a liberdade de “centauro dos pampas” e engolfar-se numa nova vida: não mais o campo aberto, mas
a cidade com seus muros e cercas; não mais a pradaria, o gado solto, mas o sítio pequeno, a quinta;
não mais a estância com seu espaço enorme, mas a domesticidade da casa, limitada por um pequeno
quintal. Contudo, como afirma Ana Mariza Filipouski (1973, p. 104):
A psicologia de Romualdo é a psicologia do homem montado. Suas histórias falam do gaú-
cho, um homem que vive entre a caça, a guerra e o gado, que aí se dimensiona. Romualdo
reflete a nostalgia do homem que teve de descer do cavalo, tentar a vida rural, abandonar
a liberdade dos campos abertos, desadaptar-se de seu mundo, perder sua estabilidade.

A segunda peculiaridade ligada aos gêneros do cômico-sério é que estes não se baseiam na lenda nem
devem a ela sua consagração. Para Bakhtin (1981, p. 93), “baseiam-se conscientemente na experiência
(se bem que ainda insuficientemente madura) e na fantasia livre; na maioria dos casos seu tratamento da
lenda é profundamente crítico, sendo, às vezes, cínico-desmascarador.” A pluralidade de vozes e estilos,
a renúncia à unidade estilística (típica da epopéia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica) constituem
a terceira peculiaridade dos gêneros ligados ao campo do cômico-sério, que se afirmam pela fusão do
vulgar e do sublime, do sério e do cômico e, igualmente, pela intercalação de gêneros diversos: cartas,

Proceedings XI International Bakhtin Conference 786


manuscritos, paródias dos gêneros elevados, citações, fusão de prosa e verso de sagrado e profano, de
dialetos cultos e jargões populares.
Ao estudar o gênero romanesco, Bakhtin (1981, p. 94) afirma que, de forma simplificada, este se
assenta em três raízes: A épica, a retórica e a carnavalesca e que a evolução do romance europeu é
derivada do predomínio de uma dessas linhas. Contudo, os pontos de partida do desenvolvimento da
linha carnavalesca devem ser buscados no campo do cômico-sério, naquele tipo de variedade que Bakhtin
estipula como dialógica (a qual conduz aos seus estudos sobre Dostoiésvki) e que apresenta gêneros
específicos como o “diálogo socrático” e a “sátira menipéia”.
Informa o crítico que, embora o “diálogo socrático”, como gênero, tenha tido vida breve, outros gê-
neros formaram-se no processo de sua desintegração. Entretanto, no que concerne à sátira menipéia,
esta não pode ser considerada como derivação pura e simples da decomposição do “diálogo socrático”,
uma vez que suas raízes buscam a filiação direta com o folclore carnavalesco.
Ao se estudar os Casos do Romualdo com base na fundamentação bakhtiniana a respeito da sátira
menipéia, deve ficar claro que esta obra não é uma sátira menipéia no sentido clássico, mas que Simões
Lopes Neto partilha, em diferentes graus, da maioria das características descritas por Bakhtin, podendo-
se, deste modo, assegurar que o autor dos Casos vincula-se estreitamente com sua tradição.
Nesse sentido, com base nas características apontadas pelo teórico russo, a respeito da sátira meni-
péia2, procurar-se-á, na seqüência deste trabalho, estabelecer um comparativo entre tais características
e sua vinculação com a obra em análise, especificando, dentre as 14 peculiaridades fundamentais da
menipéia (cf. Bakhtin), aquelas que podem ser mais diretamente relacionadas com os “casos” de Simões
Lopes Neto.
1ª) Peso específico atribuído ao elemento cômico
A predominância do elemento cômico está presente em todos os contos de Casos do Romualdo. Em
muitos deles, o cômico alia-se com o fantástico, seja pela ação do narrador (Quinta de São Romualdo),
seja pelo fato do narrador presenciar acontecimentos inusitados (O Papagaio), seja pelo fato do narrador
entrar em contato com objetos mágicos (A Figueira / O Meu Rosilho Piolho). O caso XIII, intitulado Três
Cobras, dá conta – por exemplo – do elemento risível atrelado ao fantástico e exagerado. O caso torna-
se mais mirabolante porque, ao invés de uma cobra, são três. Como a incredulidade é típica, em relação
a tais casos, o narrador apela para o testemunho, apelação que, redobradamente, aposta no cômico: “...
que muitos já morreram, outros se extraviaram, se não, eu apresentaria testemunhas, isto se alguém
me duvidasse, o que não espero: (...) sou tido e havido por homem de palavra.” (p. 109).
A ação transcorre no tempo da guerra do Paraguai, época em que o narrador (cadete) e o regimento
estão às voltas com uma situação de luta, expostos ao perigo e às intempéries. Era frio, muito frio, como
costuma ser frio no sul. Ao sinal de acampar, Romualdo deita-se “com os pés para o braseiro”, adormece
e tem um pesadelo. Desperta e “... senti o horror da minha situação. Exatamente como eu havia sonhado
o gigante enrolando a espia, assim estava enroscada sobre minha cara e pescoço e peito uma tremenda
cobra...” (p. 111). Porém, como ele foi acordado do pesadelo por vias nasais “... para livrar-me da su-
focação ... o nariz entrou em função” (p. 110), vale-se da mesma via para afugentar a cobra: pica um
naco de fumo, sova uma palha, enrola um cigarro e começa a pitar, ação que acorda a cobra sufocada
que “... deu uns seis ou sete espirros e foi se desenrosquilando, escapando-se furiosa, lanceando o ar,
com a língua” (p. 112). Como pode parecer anormal ao leitor tamanha presença de espírito do Romualdo
e tamanho domínio do estado de pavor, a ponto deste, calmamente, sovar uma palha para o pito, ele
adverte: “No perigo é que se aprecia a calma dos homens”. (p. 111).
O caso com a segunda cobra ocorre poucos dias depois, quando, cada um dos soldados procura assar
a sua carne para matar a fome. Novamente, fazia “um frio de rachar pedras” e Romualdo sai à cata de
um espeto: “... encontrei um pedaço de pau tal e qual como eu queria (...) já com a ponta feita” (p. 113).
Romualdo espeta nele sua carne e, qual não é a surpresa quando ouve do companheiro: “– Acuda, seu
cadete, que o assado vai de trote!...” . O espeto era uma cobra, enregelada. Ao contato com o calor do
fogo reanimou-se, revivendo.
O terceiro caso narra o que se passou com Romualdo, quase atacado por uma “viradeira”, cobra “cem
vezes mais venenosa que a cascavel” (p. 115), morta com o estribo de prata sustentado pelo loro, objeto
com que o narrador desfere uma pancada mortal na peçonhenta que, ligeiríssima, ainda atira um bote
ao estribo, o qual “tiniu com o choque da dentada” (p. 116).
Conseqüência da dentada, o estribo começa a inchar de tal maneira que sobrecarrega o cavalo e vai
apertando o pé do narrador, o qual se vê obrigado a abandoná-lo na estrada, pois “já estava como um
trombolho, inchado e balofo e meio azinhavrado, tirante a verde de defunto passado...” (p. 117). Ao
comentário dos integrantes do regimento, Romualdo retruca: “– Pois sim! (...) O que vale é que todos
viram!” (p. 117).
2ª) Libertação das limitações impostas pelo memorialismo, pelas lendas e pela verossimi-
lhança externa vital
Para Bakhtin (1981, p. 96) “a menipéia se caracteriza por uma excepcional liberdade de invenção
temática e filosófica”. O caso comentado anteriormente serve para reiterar a segunda característica, mas
esta pode ser melhor explicitada com o caso intitulado A Figueira. No caso em questão, uma árvore – a

Proceedings XI International Bakhtin Conference 787


figueira, símbolo dentre as plantas gaúchas – acaba ficando caduca, isto é, começa a dar figos, depois
marmelos, depois pêssegos, ameixas, uvas, melancias, cocos, ...etc. até que “em certa temporada deu
umas frutas esquisitas, compridinhas, ressequidas, sem gosto nenhum, nem sumo, e que, bem exami-
nadas, eram quase como penas de aves ... até pelo cheiro ... de galinha, que conservavam...” (p. 52-3).
Ora, a liberdade de invenção temática, no caso da figueira, adentra o fantástico. A árvore ultrapassa seu
reino (vegetal) e incorpora atributos do reino animal.
Na verdade, o narrador acha um jeito de justificar, de forma simplista, a ocorrência do fenômeno: “a
figueira tinha absorvido o suco germinativo de todas as pevides e caroços e sementes que lhe alastravam
o chão... e também o das galinhas mortas que junto às suas raízes foram enterradas... Com a força do
sol tudo aquilo grelou dentro de sua seiva.” (p. 53).
3ª) As fantasias, mesmo as mais doidas ou audaciosas, sempre são motivadas e justificadas
pelo fim filosófico - ideológico de provocar e experimentar a verdade
Essa peculiaridade, igualmente, pode ser explicitada com base no caso citado anteriormente. A casa
em que estava localizada a figueira já não faz parte da estância, mas da cidade: “na rua da lomba (...)
ao fundo o quintal, parecendo pequeno por ter ao centro uma colossal figueira”, tão copada, fechando
“de tal forma a ramaria e a folhagem, que a sombra era perpétua” (p. 49).
Deixando claro que a propriedade era herança e havia pertencido aos “avós da minha sogra” (p. 50),
Romualdo pontua a dualidade de sentimentos a respeito da árvore: por um lado, é o local das brincadeiras
das crianças, cenário de sonhos e prazeres da meninada – que sob os galhos da figueira comiam frutas
e faziam suas merendas –; por outro, a árvore impede a entrada do sol, ameaçando os bichos (galinha
e cachorro) e provocando uma espécie de epidemia na família: “Chiados de peito, roncos, assobios,
fanhosidades, rouquidões ... um barulho que até alarmava os andantes na rua!” (p. 50). O médico, que
acode ao chamado de Romualdo, depois de surpreender-se com a escuridão da casa, adverte: “–Romu-
aldo, toda a doença da sua casa está ali; é a umidade, a escuridão, o abafamento que a figueira produz,
derrube-a, Romualdo, derrube-a!” (p. 51).
Matar a árvore ou matar a epidemia familiar? Romualdo vê-se a meio caminho entre a conservação
dos bens patrimoniais, o legado de herança, e a destruição da árvore, mas também, a possibilidade
de vida mais saudável. Entre a voz do passado (herança/tradição) e a voz do presente (ciência/razão),
Romualdo opta pelo bom senso da intuição: não destruir, mas podar.
A poda gera conseqüências inesperadas, pois a figueira passa, nos anos seguintes, a dar toda sorte
de frutos diferenciados, fenômeno que Romualdo – humanizando significativamente a planta, como a
uma velha ancestral dos pagos – justifica, de forma ponderada: “...a figueira já não sabia o que fazia;
estava como uma pessoa muito velha, de miolo mole, que já não regula. (...) Coitada! Estava caduca!...”
(p. 53).
O conto em questão, ilustra com propriedade a terceira característica menipéica, no sentido de si-
tuações extraordinárias cujo objetivo é a experimentação da verdade. Se o caso percorre a explicação
científica para a profunda “epidemia gripal” que acometeu a família do narrador, apelando para o discurso
da ciência, e – característico da verdade, enquanto a voz da razão – no que concerne à relação menos
profana entre o homem e a natureza, a figueira corresponde ao cenário do prazer, da alegria, à voz do
“sagrado”, porque diz respeito ao paraíso perdido. Por essa razão, essa voz se interpõe entre o lúdico e o
necessário respondendo desequilibradamente ao corte que lhe foi imposto. Como salienta Bakhtin (1981,
p. 27), “aqui, a fantasia não serve à materialização positiva da verdade mas à busca, à provocação e
principalmente à experimentação dessa verdade.”
A forma como coloca em prática essa experimentação da verdade mais uma vez apela para o cômico
e o exagerado.
4ª) Combinação de elementos contrastantes como é o caso do simbolismo e, às vezes, do
elemento místico-religioso com o naturalismo do submundo
Essa peculiaridade faz eco com o IV caso, designado por O Papagaio. Neste conto, Romualdo presen-
cia, em plena mata virgem, uma cena mágica: Lorota, (papagaio falador, que pertencia ao Padre Bento)
ensinara a Ladainha de Todos os Santos a um bando de outros papagaios que a repetiam mata afora.
O cômico que se estabelece na ação apresentada aproxima-se da ironia típica de Simões Lopes Neto.
Primeiramente, há que se contextualizar a fábula para que o caráter da ironia e do riso seja explicitado.
O Padre Bento, “farto de aturar sacristães e não querendo estragar a sua paciência, (...) resolveu dizer
as suas missas... sozinho.” (p. 35). Contudo, quando chegava a parte da ladainha, o padre “cantava o
nome do soneto e uma vozinha esquisita, porém muito clara respondia logo:-o-o-a por nob-s!”(p. 35),
estribilho que se estendia pela igreja e era repetido pelos fiéis. Morto o pároco, o Lorota foge para o
mato e, fazendo as vezes de Padre Bento, puxa a cantoria para o bando de papagaios que a repete pelos
ares. É nessa situação que Romualdo depara-se com os bichos quando estava certa vez, “na Serra, numa
espera de onça” (p. 36) e, para certificar-se do espetáculo, querendo “tirar uma prova real” (p. 37),
diz: “– Lorota? Dá cá o pé!...”, voz logo reconhecida pelo bicho, que retruca como nos velhos tempos:
“– Romualdo é bonito! Bonito!...” (p. 37).
Do conto em questão, é possível depreender a relação com a 4ª peculiaridade da menipéia, alicerçada
na combinação de contrastes inusitados, uma vez que, de acordo com Bakhtin (1981, p. 99), “aqui a

Proceedings XI International Bakhtin Conference 788


idéia não teme o ambiente do submundo nem a lama da vida”. O grande contraste, no conto, é vincado
a partir da contraposição entre o sagrado e o profano; o simbolismo da oração e o prosaico da repetição;
o humano e o animal; a devoção fervorosa e o hábito mecânico. Tais contradições, colocadas sob a de-
pendência do cômico, dão conta da forma sutil com que Simões Lopes Neto critica a religião: enquanto
cumprimento de ritos e orações que se caracterizam pela obrigatoriedade das repetições, numa atitude
que consubstancia o sentido de “papaguear”. Por isso, não é sem razão que os papagaios – aqueles que
decoram as coisas e as repetem, independente do nexo e da compreensão – são as aves apropriadas
para o caso em questão.
O texto em foco dá margem para um questionamento irônico sobre a religião e, principalmente, so-
bre a forma mecânica com que esta costuma operar na relação ritualística entre pastores e fiéis, ritos,
orações e celebrações.
No campo da ironia, os estudos de Linda Hutcheon (2000, p. 27) são significativos: a autora trata a
ironia não “como um tropo retórico limitado ou uma atitude mais ampla de vida, mas como uma estra-
tégia discursiva que opera no nível da linguagem”; postula que a ironia é um ato social e leva em conta
o caráter interativo de seu funcionamento, advogando a importância do interpretador – no caso do texto
escrito, do leitor –, como um dos principais participantes, pois cabe a ele e não ao ironista-autor atribuir
se houve ou não ironia em uma determinada situação.
Para Hutcheon (2000, p. 63-66), a ironia sempre tem um “alvo!, uma “vítima”, dado que seu fio
– sempre cortante implica “arestas críticas” que convergem para uma sinalização zombeteira ou de me-
nosprezo: “diferentemente do paradoxo, a ironia decididamente tem os nervos à flor da pele. (...) é um
modo de discurso que tem ‘peso’, no sentido de ser assimétrico, desequilibrada em favor do silencioso
e do não dito.” Ela é “o que a teoria dos atos de fala chama de um ato ‘perlocucionário’ (...) pois produz
certos efeitos conseqüentes sobre os sentimentos, pensamentos ou ações da platéia...”
Considerando a ironia como um processo comunicativo, a autora aponta três características semânticas
que congregam o significado irônico: ele é relacional, inclusivo e diferencial.
A ironia é uma estratégia relacional no sentido de operar não apenas entre significados (ditos,
não ditos), mas também entre pessoas (ironistas, interpretadores, alvos). (...) eu sugiro
aqui que paremos de pensar em ironia apenas em termos binários ou/ou da substituição de
um significado “literal” (e oposto) por um “irônico” e (...) em vez disso, relacional, incluso
e diferencial. Se nós acreditarmos que a ironia se forma por meio de uma relação entre
pessoas e também entre significados - ditos e não ditos - então, (...) isso envolveria uma
percepção oscilante e, contudo, simultânea de significados plurais e diferentes. (HUTCHEON,
2000, p. 91-102).

Com base nos postulados de Hutcheon e tentando correlacioná-los com o caso em análise – O Pa-
pagaio – verifica-se que, de imediato, o narrador aponta os ingredientes que compõem a cena irônica,
abrindo o conto com a seguinte descrição: “O reverendo Padre Bento (...) era um santo homem paciente
- paciente” paciente! – como naquela época outro não houve.” (p. 35). O terceiro parágrafo, contudo,
desmente a paciência do vigário: “O Padre Bento, farto de aturar sacristões e não querendo estragar a
sua paciência, que estava-lhe na massa do corpo, resolveu dizer as suas missas ... sozinho.” (p. 35),
celebração que assim começava e concluía, mas que se desestruturava no momento da ladainha, quando
os fiéis respondiam o “Ora pro nobis” entoado pelo Lorota.
O fantástico do caso, no entanto, não opera aí, mas no fato de, muitos anos depois, o narrador ter
presenciado na mata virgem, um fato inusitado: “Nisto, a ladainha pousou nas árvores, por cima de
mim. Pousou, sim, é o termo próprio, porque quem cantava era um bando de papagaios e quem puxava
a ladainha era o papagaio do Padre Bento, era o Lorota!” (p. 37). Ora, o fantástico de mãos dadas com
o cômico, não decide pela trama do caso. Subjacente a ela está o que Hutcheon denomina de “arestas
cortantes”, isto é, a atribuição de uma atitude avaliadora, um julgamento crítico que pode ser extraído
do fato do Lorota, o papagaio, assumir a posição do Padre Bento e ambos lidarem com respostas às
ladainhas religiosas: quer fossem respostas dos outros papagaios; quer fossem respostas dos fiéis (as
pessoas que participavam das missas). O comportamento dos bichos, em tudo semelhante ao das gentes,
caracteriza uma transgressão das normas, misturando o sagrado e o profano, o cômico e o sério, numa
atitude típica da sátira menipéia.
A ironia, enquanto estratégia relacional, não opera apenas entre o significado do que ficou dito e seu
pressuposto, quanto à temática religiosa, mas também, entre a pessoa do ironista (representada pelo
narrador) e o leitor interpretante do acontecimento religioso. A igreja como “alvo”, ou como “vítima” é
o foco a quem é dirigida a ironia.
5ª) Uso de categorias como o escândalo e a excentricidade
É comum, na menipéia, a marcha dos acontecimentos estranhos, das violações às regras, dos com-
portamentos excêntricos, de discursos e declarações inoportunas, da infração às normas ou às regras
de etiqueta, incluindo-se aí, também a violação às normas do discurso. Tais excentricidades, acentua
Bakhtin, não se compararam aos escândalos dos acontecimentos épicos e das catástrofes trágicas ou
aos desmascaramentos e brigas que aparecem na comédia.
A presença dos aspectos acima arrolados podem, de forma característica, remeter ao XI caso, intitu-

Proceedings XI International Bakhtin Conference 789


lado O Cobertorzinho de Mostardas. O caso tem início com a descrição do trabalho de Romualdo, como
caixeiro, quando menino, na cidade de Rio Grande. Descrita de forma hilariante, a primeira profissão de
Romualdo no comércio da província – cognominada de “vassoura” – dá conta do contraste entre a vida
livre do peão da estância e a prisão do menino-trabalhador, atrelada a um patrão autoritário e exigente
com os deveres do ofício, mas, Romualdo especifica que tudo isso “eu e os outros fazíamos para apren-
der – a ser gente” (p.87).
A segunda parte do caso, girando ao redor de um fantástico cobertorzinho que Romualdo ganhara
de sua madrinha, em Mostardas, remete a uma lã tão excelente capaz de aquecer e incendiar. A estória
do cobertorzinho é um mote aglutinador para acontecimentos subseqüentes ao mesmo tempo em que
tematiza as carências de um menino adolescente.
O primeiro incidente está associado à perda do ofício de caixeiro, em decorrência da falta de respeito
para com o patrão, motivada por uma “mulatinha, bem da cor do pêssego maduro, e ladina como um
sorro...” (p.88). Para acomodar as coisas, o menino, depois de severamente admoestado pelo pai, é en-
viado a Mostardas, para passar uns dias com o padrinho. Na saída, recebe de presente, um cobertorzinho
de lã. “Nesse tempo existia aí uma raça especial de ovelhas que produziam uma lã tão aquecedora como
nunca vi outra. Essas ovelhas morriam muito no verão abafadas na pele, era necessário tosqueá-las à
navalha. A gente que trabalhava com tal lã suava em barda e ficava com as mãos vermelhas, quentes,
fumegando...” (p.91).
O próximo incidente ocorre em Bagé, cidade para a qual o rapaz é mandado, a fim de servir nova-
mente, como caixeiro, numa casa de um negociante espanhol. É nesse contexto que a menipéia tem
lugar, atestando a excentricidade dos acontecimentos. Ao frio característico daquela época do ano
– “Fazia frio! ... frio! ... Que frio que fazia! ... As fumaças do cigarro de espanhol ficavam paradas no ar,
endurecidas, talvez congeladas...” – (p.93) e ao frio existencial provocado pela saudade e solidão – “E
chorei, logo. Aquela distância, aquelas caras novas e cousas estranhas achatavam-me” (p.93), o narrador
opõe o cobertorzinho de Mostardas, índice da quentura da lã, mas também do acalanto representado
pelo tempo de convivência na casa dos padrinhos. É esse afeto que mantém o menino vivo. O cobertor
revela-se como objeto mágico e como instrumento de vingança contra o choro infantil, o trabalho servil
e o afastamento do lar.
Como o frio era intenso, o menino retira de sua canastra o cobertorzinho, espécie de “consolo divino”
e consegue dormir “sono de pedra”. Porém, ao cabo de algumas horas, é acordado, suando muito. Veri-
fica que o calor é enorme, despertando homens, mulheres e crianças. “Aquilo estava esquisito, estava...
Nunca se tinha visto um tão curioso calor em junho, entre Santo Antônio e São João, que é o tempo justo
em que a geada cura as laranjas e branqueia como farinha, no terreiro e nos telhados.” (p.97).
Como o calor se faz mais intenso quando próximo ao armazém e quase insuportável quando próximo
ao seu quarto, Romualdo apercebe-se do grande causador do fenômeno: “Era ele, só ele, o calor, a quen-
tura da sua lã, que estava causando todo aquele estrupício na cidade” (p.98). Então, apressadamente,
dobra-o e atira-o para o fundo de sua canastra, evitando conseqüências maiores e, igualmente, impe-
dindo que as pessoas soubessem do tórrido poder do cobertorzinho de Mostardas o qual, dias depois,
quando Romualdo resolve estendê-lo ao sol, alegando tirar-lhe as pulgas, incendeia: “combinaram-se a
quentura da lã e o calor do astro...e pegou fogo!” (p.98).
A excentricidade que permeia o caso, semelhante à fantasia dos contos de fadas, em que um objeto
converte-se num auxiliar mágico, permite concluir que a menipéia não se atém ao mundo das lendas
e mitos, mas faz da atualidade viva, das situações comuns do cotidiano, o seu ponto de partida para a
apreciação da realidade. No caso em análise, as convenções e regras de etiqueta, uma vez quebradas,
dão origem a uma série de incidentes que modificam a vida do menino Romualdo, mas, também, corro-
boram para a explicitação de comportamentos, atitudes e valores característicos da época. É o caso, por
exemplo, da severa reprimenda sofrida por Romualdo, quando seu pai fica sabendo que o menino havia
desacatado o patrão: “– Tratante! Bradava Romualdo pai. Atreveres-te! Ao teu patrão... ao segundo pai
dos caixeiros! Patife! – Mas ele ia arrancar-me as orelhas... murmurava eu, Romualdo filho, a tremer
(...) – Pois fazia muito bem! Quem dá o pão dá o ensino! ... ” (p.90).
Através do cômico, Simões Lopes Neto permite ao leitor compreender determinados procedimentos e
comportamentos, ao mesmo tempo que faz jus ao célebre ditado latino: “ridendo castigat mores”.
6º) Incorporação dos elementos da utopia social, introduzidos através de sonhos, viagens ou outras
situações
Esta característica, podendo ser correlacionada à última – utilização da publicística, espécie de gênero
jornalístico da Antigüidade – é centrada em temas da atualidade e fundamentada numa nítida opção
pelos problemas sócio-políticos contemporâneos.
Embora as questões políticas e sociais não constituam tema recorrente em Casos do Romualdo, é
ainda pelo riso que o narrador joga com situações que dizem respeito a uma sensível necessidade de
humanização, de ajuda de brasileiros entre si, de norte a sul.
A opção pela sensibilidade à fome e à pobreza, bandeira número um do Presidente Lula (Luiz Inácio
Lula da Silva), intitulada “Fome Zero”, repercutiu significativamente, no Brasil e no exterior, quando da
posse presidencial, em janeiro de 2003, no primeiro discurso dirigido à nação. O caso de Simões Lopes
Neto, “Entre Bugios”, publicado, aproximadamente, um século antes, também faz referência à fome e à

Proceedings XI International Bakhtin Conference 790


necessidade de brasileiros de norte a sul, interagirem entre si. Embora o caráter folclórico e galhofeiro
vibre na base do conto, a utilização de macacos, “bugios e bugias”, como mão-de-obra operária, para
mitigar a fome dos flagelados, é um índice de carnavalização, típico da sátira menipéia.
Valendo-se do cômico-fantástico, o narrador apela para suas idéias espalhafatosas, com o intuito
de auxiliar os irmãos do norte. O caso inicia fazendo referência a “uma seca espantosa, que durou um
par de anos e alarmou o governo e o povo todo, a farinha de mandioca encareceu, porque quanta se
fabricava toda ia para aqueles infelizes flagelados” (p.79). Romualdo segue contando que, “havendo
necessidade de mantimentos para os socorros” (p.79), ele tem a brilhante idéia de montar um engenho
e fabricar farinha de pirão, empreendimento que só consegue êxito devido a um fato inédito: os operá-
rios são, nada mais, nada menos, que “mais de duzentos macacos – bugios e bugias – mestres de pelar
pinhão...”. (p.80).
Apesar da vaidade confessa que caracteriza a boa ação de Romualdo – “eu esperava ser recompensado
com uma comendazinha... Era o meu fraco: poder um dia enfrentar uma onça de comenda no peito!”
– (p.80), apesar da utilização de “macacos” como operários de uma empresa, o caso remete para a
incorporação de elementos da utopia social, formulados através da preocupação com a solidariedade,
a humanização e a fraternidade.
Por outro lado, conforme acentua Chiappini (1988, p. 403-4), “esse caso, aliás, é um dos que, através
do animal, Simões parodia o trabalho humano, no que tem de repetitivo e monótono e expõe o cômico
da sociedade, quando ela se enrijece nos atos mecânicos.”
Em Casos do Romualdo, em síntese, a comicidade não se limita a barganhar momentos de alívio pro-
duzidos pelo poder do riso em rodas galponeiras de chimarrão. Mais do que isso, o riso investe de forma
corrosiva e, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que uma nova face temporal é apresentada (com a
presença de imigrantes estrangeiros a se imiscuírem na paisagem do pampa rio-grandense, conforme
atestam os casos irônicos de “O Gringo das Lingüiças” e “Ataque de Marimbondos”), outra face ressurge,
permeando de nostalgia a memória do narrador.
Embora seja impossível definir os Casos do Romualdo como protótipos da sátira menipéia, tanto na
acepção antiga, quanto na atribuição de todas as características que lhe confere Bakhtin, a obra de Si-
mões Lopes Neto contém muitos dos traços essenciais comuns a este gênero.
O contador dos Casos, contraposto ao narrador dos Contos, através do riso dessacralizante, dá conta
de outro tempo histórico-social, outorgando à narrativa um tom de carnavalização típico da sátira me-
nipéia.
Notas
1 Todas as citações comprobatórias a respeito da obra Casos do Romualdo foram extraídas de: LOPES
NETO, João Simões, Casos do Romualdo. Porto Alegre: Globo, 1973 e neste trabalho serão referenciadas
em itálico.
2 Bakhtin esclarece o termo “menipéia” como referente a Menipo de Gadare, filósofo do século III
a.C. e descreve seu histórico, enquanto gênero literário, apontando obras e autores antigos a ela asso-
ciados. Op. cit., p. 97.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1981.
_____ . A cultura popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. Trad. de Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec; Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1987.
BERGSON, Henri. O riso. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
CHIAPPINI, Ligia. No entretanto dos tempos: Literatura e História em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. Trad. João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1990.
HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
LOPES NETO, João Simões. Casos do Romualdo. Porto Alegre: Globo, 1973.
_____ . Contos gauchescos e lendas do sul. 3. ed. Ed. Crítica. Porto Alegre: Globo, 1953.
NEVES, Luiz Felipe Baeta. A ideologia da seriedade e o paradoxo do coringa. Revista de Cultura Vozes. Petrópolis, v.
68, n. 1, p. 35-40, jan./fev. 1974.

Proceedings XI International Bakhtin Conference 791


Textos chave:
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
LOPES NETO, João Simões. Casos do Romualdo. Porto Alegre: Globo, 1973.
Nomes chave: Simões Lopes Neto; Mikhail Bakhtin.
Palavras chave: Casos do Romualdo, Simões Lopes Neto, Sátira Menipéia,
Bakhtin.
Biografia resumida: Maria Beatriz Zanchet é gaúcha de Taquaruçu do Sul.
Formada em Letras pela UPF-RS, concluiu seu mestrado pela UFRGS. Atualmente,
leciona nos cursos de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unio-
este/Campus de Marechal Cândido Rondon. Publicou, em parceria, as seguintes
obras de análise literária: Possibilidades de leitura: análise de contos de autores
brasileiros (1993); O texto poético: crítica e devaneio (1994) e Tradição estética
e palavra na literatura infanto-juvenil (1996).

Proceedings XI International Bakhtin Conference 792

Potrebbero piacerti anche