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Fisiologia e Fisiopatologia Básicas da 1

Filtração Glomerular e da Proteinúria


Flávio Teles
Roberto Zatz

sumário
Durante o trajeto ao longo dos capilares glomerulares, o
plasma é, portanto, forçado a atravessar a parede do vaso,
Introdução o que resulta na formação de um ultrafiltrado que, a partir
de então, será processado ao longo do néfron. A taxa de fil-

e
Determinantes físicos da ultrafiltração glomerular
A diferença de pressão hidráulica através das paredes tração glomerular, mais conhecida como ritmo de filtração

ol
glomerulares glomerular (RFG), corresponde à soma dos RFG individuais
A concentração plasmática de proteínas dos cerca de 2 milhões de glomérulos. É por meio da ultra-
Arteríolas, dinâmica glomerular e autorregulação do ritmo de filtração glomerular, seguida do processamento do ultrafil-
filtração glomerular
Avaliação clínica do ritmo de filtração glomerular
Alterações da hemodinâmica glomerular em algumas situações
an
trado nos túbulos, que os rins conseguem depurar o plas-
ma de escórias como a ureia, a creatinina e o ácido úrico,
bem como corrigir, rapidamente, o excesso ou a carência de
patológicas
água e/ou eletrólitos, mantendo assim constantes as dimen-
M
Hipertensão arterial sistêmica
sões e a composição química do meio interno. A ultrafiltra-
Doença renal crônica
ção glomerular é tão vital que os rins desenvolveram meca-
Diabete melito
nismos altamente eficientes para manter constante o RFG.
Estenose da artéria renal
ra

Glomerulonefrites
A estimativa do RFG é parte essencial da avaliação clí-
Síndrome nefrótica
nica, uma vez que muitas nefropatias evoluem de modo as-
Estados de hipovolemia
sintomático, tendo como único sinal de alerta a queda do
to

Obstrução urinária RFG; nesses casos, o RFG funciona como um indicador in-
Redução do ritmo de filtração glomerular com a idade dispensável da função renal, embasando o diagnóstico de
Mecanismos básicos e aspectos clínicos da proteinúria. a barreira injuria renal, quando cai, ou indicando a recuperação da
i

função renal à medida que retorna ao normal. O clínico


Ed

glomerular
Componentes da barreira glomerular baseia-se no RFG para tomar decisões cruciais, tais como
A teoria dos poros a instituição de terapia imunossupressora para conter a
Papel do túbulo proximal na reabsorção de proteínas perda de função renal e a indicação de terapia de substitui-
Mecanismos básicos de proteinúria ção renal (diálise ou transplante), ou para ajustar a dose de
A importância clínica das proteinúrias medicações excretadas pelos rins. Por outro lado, o aumen-
Leitura recomendada to do RFG a níveis superiores aos considerados normais
(hiperfiltração) pode refletir uma anomalia grave, como
no caso da nefropatia diabética em suas fases iniciais.
Introdução Nem sempre o achado de um RFG normal indica que
os glomérulos estejam perfeitamente hígidos. Se a per-
A principal função dos glomérulos é a ultrafiltração meabilidade das paredes dos capilares glomerulares for
do plasma, ou seja, a passagem, através das paredes de significativamente maior do que zero, pode haver perda
seus capilares, de água e pequenos solutos como sódio, de proteínas na urina – a proteinúria –, mesmo em face
potássio, ureia e glicose, restringindo ao mesmo tempo a de um RFG normal.
travessia de moléculas maiores, como albumina e imu-
noglobulinas. A ultrafiltração glomerular representa a Determinantes físicos da ultrafiltração
primeira etapa no processo de geração da urina, que se glomerular
completa com a ação dos túbulos, que modificam esse ul-
trafiltrado de modo a manter a homeostase, sem que ocor- O processo de ultrafiltração (UF) glomerular consis-
ra perda de proteínas. te na passagem de água, eletrólitos e pequenas moléculas

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através das paredes do capilar glomerular rumo ao espa- so é mais bem descrito na Figura 1, em que a PEUF, que em
ço urinário, deixando para trás as moléculas mais pesa- cada ponto é representada pela distância entre as duas
das, especialmente proteínas como a albumina e as imu- curvas, diminui continuamente à medida que se afasta
noglobulinas. Para melhor compreender o mecanismo do início do capilar, chegando a valores próximos de zero
da UF glomerular, é útil examinar o que ocorre em um ao se aproximar do final (observar que nesta e em outras
néfron individual, definindo uma taxa de filtração por figuras a distância ‘x’ aparece normalizada, ou seja, varia
néfron (FPN). O RFG representa, conforme menciona- de zero na origem do capilar a 1 no final). Em consequên-
do, a soma de 2 milhões de FPN (1 milhão de néfrons por cia dessa variação contínua, a PEUF de cada glomérulo é
rim), o que significa que a FPN em seres humanos é de sempre uma média, matematicamente equivalente à área
cerca de 60 a 10-9 L/minuto, ou 60 nL/minuto (120 mL/ delimitada pelas duas curvas.
minuto)/(2  106). Esse valor é da mesma ordem de gran-
deza que a de outros mamíferos, como o rato. Portanto, Fluxo plasmático glomerular
o valor do RFG em um adulto normal do sexo masculi-
no, que é de aproximadamente 120 mL/minuto, corres- Representado por QA. O QA é também um determi-
ponde a mais de 170 litros por dia, ou mais de 50 vezes o nante da UF glomerular, uma vez que seu aumento resul-
volume plasmático. ta em uma elevação mais lenta da PiCG, enquanto o efei-
Os determinantes físicos da UF (derivados a partir to inverso é observado quando ele se reduz.
de experimentos em ratos) são quatro, descritos a seguir:
Coeficiente de ultrafiltração da parede

e
Diferença de pressão hidráulica através das glomerular (Kf)
paredes glomerulares

ol
Esse parâmetro representa a facilidade com que a pa-
Esse parâmetro, representado por delta-P, represen- rede dos capilares glomerulares se deixa atravessar pela
ta a diferença entre a pressão hidráulica no interior do água. O Kf é por sua vez determinado pela permeabilida-
capilar glomerular, PCG, e a do espaço urinário, ou espa-
ço de Bowman, PEB. Na formulação matemática, delta-P
= PCG – PEB. O delta-P é um determinante fundamental e
an de intrínseca da parede, ou seja, pela “porosidade” da pa-
rede glomerular, e pela superfície disponível para ultra-
filtração, superfície essa que depende do número de alças
obrigatório no UF glomerular: se delta-P for igual a zero, capilares e suas dimensões. É de se esperar que a FPN caia
M
nenhuma filtração é possível. quando o Kf glomerular se reduz, anulando-se quando o
Kf vai a zero (ou seja, quando o capilar se torna imper-
A concentração plasmática de proteínas meável à água). Por outro lado, espera-se, intuitivamen-
ra

te, que o FPN invariavelmente aumente em resposta a


Os capilares glomerulares, como quase todos os ca- uma elevação do Kf. Há realmente a tendência a elevar a
pilares do organismo, sofrem a influência da pressão co- taxa de ultrafiltração em cada ponto do capilar glomeru-
to

loidosmótica (também denominada pressão oncótica) do lar quando o Kf aumenta. No entanto, esse aumento faz
plasma, representada por PiCG. Essa força oncótica tende com que a concentração das proteínas plasmáticas se ele-
a trazer fluido para o lume do capilar glomerular, opon- ve mais rapidamente com a distância ao longo do capi-
i

do-se, portanto, ao efeito do delta-P. No entanto, a con-


Ed

centração de proteínas no espaço de Bowman é baixíssi-


ma em relação à do plasma, mesmo em proteinúrias
graves e, portanto, a pressão oncótica nesse comparti-
60
mento (PiEB) é praticamente igual a zero, ou seja, delta-
-Pi = (PiCG – PiEB) ≅ PiCG. Esses dois determinantes bási- 50
cos da ultrafiltração glomerular, delta-P e PiCG, são
Pressão (mmHg)

conhecidos como forças de Starling. As forças de Starling 40


são fundamentais para a movimentação de fluido atra-
vés das paredes capilares, tanto no glomérulo como em 30
outros capilares. A diferença entre delta-P e PiCG é deno-
20
minada pela pressão efetiva de ultrafiltração (PEUF). A PEUF
é em última análise o parâmetro responsável pela UF glo- 10
merular. É evidente que, para que ocorra o UF, a PEUF deve
ser maior do que zero. Isso é o que realmente acontece ao 0
longo de praticamente todo o capilar glomerular. 0,0 0,2 0,4 0,6 0,8 1,0
No entanto, como a UF ocorre de modo contínuo Distância
conforme o plasma avança ao longo do capilar glomeru-
lar, e como as proteínas praticamente não atravessam suas
paredes, a concentração plasmática de proteínas (e con- g Figura 1.  A diferença entre a pressão hidráulica (delta-P, linha reta)

sequentemente a PiCG) sobe continuamente. Esse proces- e a pressão oncótica (Pi linha curva) como função da distância a partir
da origem do capilar.

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lar, promovendo assim uma queda mais acentuada da


PEUF e praticamente anulando o efeito direto da elevação
do Kf. Esse comportamento tem uma consequência im- PA PG PE PC
portante: embora os rins sejam capazes de reduzir o RFG
diminuindo o Kf, não lhe é possível, ao contrário do que 120
prevê o senso comum, elevar significativamente o RFG 100
aumentando o Kf. Para tanto, é necessário alterar delta-P
e QA por variação das resistências das arteríolas pré e pós- 80

mmHg
-glomerulares.
60
Essas considerações levam à conclusão de que a filtra-
ção glomerular é um processo extremamente presso-de- 40
pendente: quando delta-P cai a valores muito próximos
aos da pressão oncótica sistêmica, a PEUF e a FPN se anu- 20
lam. Inversamente, ambas se elevam rapidamente quan-
0
do delta-P sobe. Seguindo a mesma linha de raciocínio, e
de acordo com a complexa relação entre QA e PEUF, discu-
tida anteriormente, a UF glomerular é, também, um pro-
cesso fluxo-dependente, variando diretamente com o QA. g Figura 2.  Perfil de variação da pressão hidráulica na microcirculação
glomerular.
PA: pressão arterial; PG: pressão capilar glomerular; PE: pressão na arteríola eferente;

e
Arteríolas, dinâmica glomerular e PC: pressão nos capilares pós-glomerulares.
autorregulação do RFG

ol
Os rins regulam com precisão a pressão hidráulica entanto, diferenças essenciais entre os efeitos da alteração
no interior do capilar glomerular, que está situado entre de cada uma dessas resistências. Um aumento de RA di-
dois resistores: a arteríola aferente, com sua resistência,
RA, e a arteríola eferente, com sua resistência, RE (Figu-
ra 2). Normalmente, a pressão hidráulica cai abruptamen-
an minui ao mesmo tempo QA e PCG, reduzindo drasticamen-
te a PEUF e a FPN. O oposto ocorre quando a RA diminui.
Portanto, a FPN varia reciprocamente, e de modo pro-
te ao passar pela arteríola aferente, de 100 mmHg, que é nunciado, com RA. A influência da RE sobre a FPN é mais
M
o valor da pressão arterial (PA) média para 50 mmHg, complexa, já que, por sua localização, a RE exerce efeitos
que é o valor da PCG, o qual permanece aproximadamen- opostos sobre QA e delta-P. Se a RE diminuir acentuada-
te constante ao longo do capilar glomerular. Ocorre a se- mente a partir do valor normal, a PCG pode baixar a pon-
ra

guir uma segunda queda, ao longo da arteríola eferente, to de igualar-se à PiCG, levando a zero a PEUF e a FPN. Nes-
fazendo a pressão hidráulica cair a níveis muito mais bai- sa faixa, portanto, a FPN é extraordinariamente sensível
xos (de 10 a 15 mmHg). Após a passagem pelos capilares a variações da RE. Se no entanto RE subir acima da faixa
to

peritubulares e/ou vasos retos, a pressão hidráulica cai a normal, aumentos subsequentes passam a exercer pouca
níveis muito baixos, próximos aos da pressão venosa (cer- influência sobre a FPN, devido aos efeitos opostos da RE
ca de 5 mmHg). sobre o QA, de um lado, e a PCG, de outro. Em resumo, as
i

O valor da PCG é assim determinado por dois fatores variações da RA causam invariavelmente variações recí-
Ed

principais: procas da FPN; já o efeito da RE sobre a FPN é bifásico.


1. A PA. Os efeitos hemodinâmicos dos resistores arteriolares,
2. A relação RA/RE. Se a PA subir e a razão RA/RE se especialmente os da arteríola aferente, permitem aos rins
mantiver constante, a PCG aumentará proporcionalmente manter constante o RFG dentro de ampla faixa de varia-
à elevação da PA. Se RA diminuir e a PA se mantiver cons- ção da PA, de aproximadamente 70 a 150 mmHg. Esse fe-
tante, a PCG se elevará, tendendo a se aproximar da PA nômeno é denominado autorregulação do RFG. A autor-
média. Se, ao contrário, RA aumentar até se tornar infinita regulação do RFG deixa de funcionar em situações de
(situação hipotética, é claro), tudo se passará como se variação extrema da PA, como em uma hemorragia gra-
ocorresse uma “ligadura” da arteríola aferente. Com isso, ve ou uma crise hipertensiva. Além disso, alterações estru-
a PCG tenderá a valores próximos aos dos capilares peri- turais e funcionais das arteríolas aferente e/ou eferente,
tubulares, pouco acima dos da pressão venosa periférica. que ocorrem em condições crônicas, como a hipertensão
O efeito da RE é análogo, porém invertido: aumentos/ arterial e a diabete melito, podem comprometer a capaci-
diminuições da RE resultam, respectivamente, em eleva- dade de autorregulação, fazendo com que variações rela-
ções/reduções da PCG. tivamente modestas da PA causem alterações acentuadas
A PCG não é o único determinante da UF glomerular do RFG.
a ser influenciado por alterações de RA e/ou RE. O aumen- Os mecanismos fisiológicos e moleculares que agem
to de qualquer uma dessas resistências dificulta o fluxo no processo de autorregulação do RFG não estão intei-
sanguíneo e, portanto, faz cair o QA. Ocorre o inverso quan- ramente elucidados. Algumas evidências experimentais
do RA e/ou RE diminuem. Portanto, tanto as variações da sugerem que a autorregulação do RFG seja determinada
RA como as da RE influenciam diretamente a FPN. Há, no predominantemente por variações da RA, as quais podem

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compensar totalmente as consequências das variações da como Clx = Ux  V/Px. Para melhor compreender o sig-
PA, trazendo de volta ao normal as resultantes alterações nificado fisiológico do clearance, é útil considerar alguns
do QA e do delta-P. Na verdade, esse papel preponderan- casos particulares. Quando uma substância não é excre-
te da RA na autorregulação do RFG é inteiramente con- tada na urina, seu clearance renal, calculado pela fórmu-
sistente com a localização estratégica das arteríolas afe- la descrita, é zero, ou seja, o volume de plasma depurado
rentes e com sua influência acentuada sobre a FPN. No dessa substância é nulo. É o caso, por exemplo, da IgM,
entanto, a arteríola eferente pode assumir um papel im- totalmente retida pela parede glomerular devido a suas
portante em algumas situações patológicas. dimensões, e da glicose, filtrada livremente, mas total-
Três teorias procuram explicar a resposta vasomoto- mente reabsorvida nos túbulos. Por outro lado, se os rins
ra da RA a variações da PA e a consequente capacidade de eliminam completamente a massa de uma substância que
autorregulação do RFG: chega a eles pela circulação, a taxa de excreção urinária
1. Segundo a teoria miogênica, a musculatura lisa será exatamente igual ao fluxo da substância (em mg/mi-
das arteríolas aferentes responde automaticamente às nuto) que alcança as artérias renais, ou seja, Ux  V = Px
alterações da PA, de modo a minimizar a consequente  FPR, em que FPR representa o fluxo plasmático renal.
variação da PCG e do QA, mantendo assim o RFG aproxi- Após manipulação algébrica simples, chega-se a Ux  V/
madamente constante. Px = Clx = FPR, isto é, o clearance de uma substância to-
2. A teoria metabólica postula que as variações do QA talmente eliminada pelos rins é idêntico ao fluxo plasmá-
e do fluxo plasmático renal alteram a taxa de produção tico renal. É o caso do ácido para-amino-hipúrico, utili-
local de metabólitos vasoativos, contrapondo-se assim ao zado exatamente para avaliar o FPR em pacientes e em
distúrbio inicial (um exemplo importante de tais metabó- animais de laboratório.

e
litos é a adenosina, que possui atividade vasoconstritora Para avaliar o RFG, mede-se o clearance de compos-

ol
e é produzida localmente quando aumenta o RFG e, em tos filtrados no glomérulo, mas não reabsorvidos ou se-
consequência, a taxa de reabsorção tubular e a atividade cretados pelos túbulos. Neste caso especial, a massa excre-
metabólica tubular). tada, Ux  V, é idêntica à carga filtrada, Px  RFG, ou seja,
3. De acordo com a teoria da retroalimentação (fe-
edback) túbulo-glomerular, a mácula densa, convenien-
temente situada no início do túbulo convoluto distal,
an Ux  V = Px  RFG e, rearranjando: Ux  V/Px = Clx =
RFG. Portanto, o clearance de uma substância filtrada nos
glomérulos, mas não processada pelos túbulos, é exata-
analisa continuamente a quantidade de NaCl que a ela mente igual ao RFG. Em adultos normais, o RFG é de apro-
M
chega, detectando assim as variações da FPN. Em respos- ximadamente 95 ± 20 mL/minuto para mulheres e 120 ±
ta, a mácula densa, ainda segundo essa teoria, envia um 25 mL/minuto para homens. Idealmente, os métodos para
sinal, que chega rapidamente à arteríola aferente, cujo mensurar o RFG deveriam basear-se na depuração de com-
ra

diâmetro varia de tal modo a manter constante a FPN. A postos exógenos inertes como a inulina e o EDTA. No en-
natureza desse sinal e a das moléculas envolvidas nesse tanto, a aplicação clínica desses compostos é limitada pelo
processo ainda são desconhecidas. alto custo e por uma série de dificuldades técnicas, uma
to

vez que requerem infusão contínua do marcador, o que só


Avaliação clínica do RFG pode ser realizado em ambiente hospitalar.
O marcador mais frequentemente empregado na prá-
i

A medida do RFG é indispensável à avaliação da fun- tica clínica é a creatinina, um subproduto do metabolis-
Ed

ção renal na prática clínica. É com base na redução do mo muscular, o qual é eliminado quase totalmente por
RFG que se chega ao diagnóstico de injúria renal, seja filtração glomerular, sendo pouco transportado nos tú-
abruptamente, como na injúria renal aguda (IRA), ou de bulos. Por ser a creatinina um composto endógeno facil-
modo insidioso, que é o caso da doença renal crônica mente dosado, a determinação de seu clearance, usual-
(DRC). A queda do RFG é paralela à perda de outras fun- mente utilizando urina coletada durante 24 horas, é um
ções renais, como a acidificação urinária e a excreção de método extremamente conveniente de avaliação da fun-
potássio. ção renal. Há, no entanto, duas limitações importantes ao
A determinação direta do RFG é evidentemente im- uso do clearance de creatinina. Em primeiro lugar, a crea-
possível, o que torna necessário calculá-lo mediante o tinina não é propriamente um marcador perfeito do RFG,
emprego de compostos que funcionam como marcado- uma vez que é secretada em pequenas quantidades pelo
res. Para esse objetivo, é essencial o conceito de depura- túbulo proximal. Isso não chega a causar um erro subs-
ção (mais conhecido por seu equivalente em inglês, clea- tancial em pacientes com função renal próxima ao nor-
rance). Define-se a taxa de depuração plasmática, ou mal. Se por ventura o RFG estiver muito baixo, essa se-
clearance, de uma substância X como o fluxo de plasma creção tubular pode representar uma fração considerável
depurado dessa substância na unidade de tempo. Esse flu- da taxa de excreção urinária de creatinina. Em tais casos,
xo, habitualmente expresso em mL/minuto, é calculado o clearance de creatinina pode superestimar significativa-
dividindo-se a massa de X excretada na urina (igual ao mente o RFG. Por outro lado, algumas drogas podem re-
produto da concentração urinária de X, Ux, pelo fluxo duzir a secreção de creatinina, elevando o nível plasmá-
urinário, V) pela concentração plasmática de X, represen- tico e, consequentemente, exercendo efeito idêntico ao de
tada por Px. O clearance de x, Clx, é portanto calculado uma redução do RFG. Um dos exemplos mais comuns na

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prática clínica é a trimetoprima, geralmente formulada Para a avaliação do RFG pela simples dosagem da
em associação com o sulfametoxazol. Outros medicamen- Pcreat é necessário um sólido conhecimento da cinética da
tos, como o fenofibrato usado no tratamento da hipertri- creatinina. Sendo influenciada não apenas pelo RFG, mas
gliceridemia, também podem promover elevação transi- também pela taxa de produção de creatinina, a Pcreat é for-
tória na concentração plasmática de creatinina, podendo temente dependente da massa muscular, variando, por-
assim simular uma queda do RFG. tanto, de acordo com etnia, sexo e idade do indivíduo. As-
Há uma segunda e mais importante limitação ao uso sim, um mesmo valor de Pcreat, por exemplo 1,2 mg/dL
clínico do clearance de creatinina: em geral, os pacientes (considerado “normal” pela maioria dos laboratórios),
encontram dificuldade em coletar urina, sem perdas, du- pode indicar um RFG normal em um homem musculo-
rante 24 horas. Por essa razão, o RFG é frequentemente so e uma perda considerável de função renal em uma mu-
subestimado quando avaliado por esse método. Além dis- lher de compleição miúda (Figura 3). De forma seme-
so, é frequentemente complicado transportar o material lhante, esse mesmo valor de 1,2 mg/dL para a Pcreat pode
coletado até algum centro médico, especialmente quan- indicar queda de 30% ou mais do RFG em indivíduos
do os pacientes utilizam transporte público, o que ocor- idosos, cuja massa muscular pode estar diminuída pela
re na maioria das vezes. alteração de seu ambiente hormonal e pela inatividade fí-
Devido a essas limitações, a creatinina é frequente- sica (Tabela 1).
mente utilizada como indicadora da função renal não O desconhecimento desse conceito pode dificultar a
pela mensuração direta do clearance, mas simplesmente detecção da DRC em fases iniciais e intermediárias, quan-
medindo a concentração plasmática (Pcreat) a qual, de- do ainda é possível evitar ou retardar a progressão da
monstra-se facilmente, é uma função inversa do RFG. doença.

e
Essa relação fica mais nítida quando expressa em forma Para facilitar a avaliação do RFG a partir da Pcreat, de-

ol
gráfica (Figura 3), que mostra claramente que aumentos senvolveram-se, a partir da década de 1970, algumas fór-
relativamente modestos de Pcreat podem indicar quedas mulas matemáticas que possibilitam a estimativa do clea-
consideráveis do RFG. Deve-se ressaltar que a curva ex- rance de creatinina levando em consideração parâmetros
posta na Figura 3 só se aplica a situações estacionárias,
ou seja, aquelas em que as taxas de produção e excreção
urinária de creatinina sejam iguais, e, portanto, a Pcreat se-
an como o peso corpóreo, a idade, o sexo e, em alguns casos,
o grupo étnico. A equação mais conhecida é a de Cock-
croft e Gault, descrita há quase 40 anos:
ria estável (é o que ocorre na situação normal e também (140 – idade) 3 Peso
M
Clcreat = 3 0,85 se
na DRC, ver Capítulo ***). Portanto, se a função renal so- 72 3 Pcreat
frer uma perda abrupta (IRA), a Pcreat pode não ter che- Nela, (Clcreat) representa o clearance de creatinina. Para
gado a um valor estacionário, não refletindo, portanto, a comparar o Clcreat de um indivíduo ao de outros ou a al-
ra

real dimensão da queda do RFG. Por esse motivo, duran- gum padrão é necessário corrigi-lo para a superfície cor-
te episódios de IRA deve-se utilizar critérios diagnósticos pórea, cujo valor de referência é de 1,73 m2. Assim, um
mais complexos, ainda que a dosagem da creatinina plas- Clcreat de 100 mL/minuto em um indivíduo cuja superfí-
to

mática tenha um lugar de destaque (ver Capítulo ***). cie corpórea for de 2,16 m2 deve ser multiplicado pelo
quociente 1,73/2,16 = 0,8, correspondendo, portanto, a
um Clcreat corrigido de 80 mL/minuto/1,73 m2.
i

Outra fórmula frequentemente utilizada é a MDRD


Ed

(sigla do estudo multicêntrico intitulado modification of


diet in renal disease), pela qual é possível estimar o RFG
20
(diretamente em mL/minuto/1,73 m2) a partir da Pcreat e
18
de outros dados, tais como a etnia e a concentração plas-
16
mática de albumina. Mais recentemente, uma outra fór-
14
Pcreat (mg/dL)

mula denominada CKD-EPI (sigla de chronic kidney di-


12
sease epidemiology collaboration) foi desenvolvida, com
10
8
resultados promissores e aparentemente maior precisão
C do que a fórmula MDRD, especialmente em indivíduos
6 B
4 A com RFG maior que 60 mL/minuto/1,73 m2.
2
Cabem algumas considerações adicionais com rela-
0 ção à estimativa do RFG por meio de fórmulas:
0 20 40 60 80 100
RFG (mL/min)

g Tabela 1. 
g Figura 3.  Relação inversa entre a concentração plasmática de crea-
tinina (Pcreat) e o RFG. As curvas A, B e C correspondem a indivíduos Idade Sexo Peso Pcreat Clcreat
com massas musculares distintas (C  B  A). É importante observar Indivíduo 1 30 Masculino 70 1,2 89 mL/min
que, conforme o caso, um mesmo valor de Pcreat pode corresponder a
Indivíduo 2 70 Feminino 50 1,2 34 mL/min
valores normais ou substancialmente reduzidos de RFG.

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1. No Brasil, a forte mestiçagem limita o uso do fator rais sérias (hialinose arteriolar), que podem alterar a res-
etnia no cálculo de fórmulas como a MDRD e a CKD- posta miogênica, retardando e/ou limitando o
-EPI, que nunca foram formalmente validadas nas con- mecanismo de autorregulação. Nesses casos, a correção
dições específicas da população brasileira. intempestiva da hipertensão, trazendo abruptamente a
2. Há equações apropriadas para crianças e adoles- PA a valores “normais”, mas abaixo do limite inferior de
centes, como a de Schwartz e a de Counahan-Barratt. autorregulação do paciente, pode reduzir drasticamente
3. Em algumas situações específicas, a determinação o RFG, precipitando a instalação de uma lesão/injúria re-
direta do Clcreat é preferível ao uso de equações, as quais nal aguda. Por esse motivo, em hipertensos de longa data,
pode produzir desvios substanciais, como no caso de pa- especialmente nos que já apresentam função renal redu-
cientes com amputações, desnutrição grave, paraplégicos, zida, é necessária cautela ao prescrever medicações anti-
ascite volumosa, obesos e os muito idosos. O uso de su- -hipertensivas, baixando a PA em torno de 20% ao dia,
plementos contendo creatina, precursora da creatinina, até atingir o alvo, que não pode ser excessivamente am-
também pode conduzir a resultados errôneos quando se bicioso (o limite de 140  90 mmHg é geralmente ade-
estima o RFG pela Pcreat. quado nesses casos).
4. Conforme descrito, essas fórmulas deixam de ser
válidas durante um episódio de IRA, uma vez que a pro- Doença renal crônica
dução e a excreção de creatinina não chegam a se igualar.
Na melhor das hipóteses, essas equações podem auxiliar Como a DRC é assintomática em estágios iniciais, pa-
no ajuste da dose de medicações, tendo sempre em mente cientes pertencentes a grupos de risco, principalmente
que os valores calculados podem sofrer variação conside- diabéticos e hipertensos, devem ter a função renal avalia-

e
rável em questão de horas. da periodicamente. O cálculo e o acompanhamento do

ol
Em anos recentes, um novo e, espera-se, mais preci- RFG em pacientes com DRC são importantes para ava-
so marcador endógeno tem sido proposto para a avalia- liar a progressão da nefropatia e, em situações mais gra-
ção clínica do RFG: a cistatina C, um inibidor de protea- ves, indicar o início do tratamento dialítico ou transplan-
ses sintetizado e liberado continuamente por todas as
células nucleadas. A molécula desse composto é pequena
o suficiente para atravessar livremente a parede do capi-
an te renal.
Seja qual for a causa primária da DRC, a progressão
leva invariavelmente à redução gradativa do número de
lar glomerular. Uma vez no lume tubular, a cistatina C é néfrons (ver Capítulo **). Em consequência, a taxa de fil-
M
quase totalmente reabsorvida e hidrolisada, o que torna tração por néfron remanescente aumenta muito, poden-
possível o cálculo do RFG a partir da taxa de declínio de do atingir o dobro ou até o triplo do normal, atenuando
sua concentração plasmática. Algumas evidências suge- assim a queda do RFG. Para que esse aumento da taxa de
ra

rem que, com esse novo marcador, será possível registrar filtração por néfron ocorra, é necessária a vasodilatação
pequenas quedas do RFG indetectáveis com os métodos das arteríolas glomerulares, com queda predominante da
convencionais. Outros estudos, no entanto, sugerem que RA. Dessa forma, a PCG, a PEUF e a FPN aumentam acen-
to

os níveis de cistatina C podem variar independentemen- tuadamente (Figura 1). Esse mecanismo compensatório
te do RFG em situações tais como hipo e hipertireoidis- tem um custo alto, uma vez que a hipertensão glomeru-
mo, obesidade, diabete melito e uso de corticosteroides. lar (elevação da PCG) é considerada um dos principais me-
i

Assim, há necessidade de estudos adicionais para atestar canismos responsáveis pela perda progressiva de néfrons
Ed

uma possível superioridade desse novo método. e de função renal em indivíduos com DRC, devido à agres-
são mecânica que exerce sobre a parede dos glomérulos,
Alterações da hemodinâmica glomerular com consequentes lesão celular e inflamação.
em algumas situações patológicas Os supressores do sistema-renina-angiotensina-al-
dosterona (inibidores da enzima conversora e bloquea-
Hipertensão arterial sistêmica dores do receptor AT1 da angiotensina II) atenuam a pro-
gressão de vários tipos de nefropatia crônica (diabete
A elevação da PA sistêmica promove alterações sig- melito e algumas nefropatias que cursam com proteinú-
nificativas na microcirculação glomerular, que protege ria) de modo mais eficaz do que o observado com outros
esta última contra a agressão mecânica. A pressão capi- anti-hipertensivos. Acredita-se que um dos principais me-
lar glomerular é mantida em níveis praticamente nor- canismos dessa ação protetora específica seja a correção
mais graças principalmente ao aumento da RA, ou seja, da hipertensão glomerular, um efeito não observado com
o mecanismo fisiológico de autorregulação do RFG é outras classes de anti-hipertensivos.
acionado de modo contínuo. Se a hipertensão se manti-
ver por tempo suficiente (meses ou anos), a faixa de au- Diabete melito
torregulação pode deslocar-se para a direita, acomodan-
do-se, por exemplo, entre 100 e 180 mmHg, em vez dos Cerca de um terço dos pacientes diabéticos desenvol-
70 a 150 habituais. Por outro lado, a exposição contínua vem uma nefropatia crônica, que é uma das complicações
da parede da arteríola aferente a níveis pressóricos ele- mais graves da doença. Nas fases iniciais da evolução da
vados pode provocar o aparecimento de lesões estrutu- diabete, o RFG desses pacientes aumenta em até 40%. Essa

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1  Fisiologia e Fisiopatologia Básicas da Filtração Glomerular e da Proteinúria 7

hiperfiltração só é possível graças a uma dilatação das ar- Glomerulonefrites


teríolas glomerulares, especialmente da aferente, que leva
ao aumento do QA, da PCG e da PEUF. Conforme descrito Estudos desenvolvidos em modelos experimentais
no item anterior, essa hipertensão glomerular pode agre- com glomerulonefrite mostraram redução acentuada do
dir as paredes dos glomérulos, favorecendo assim a ins- Kf glomerular, com QA e PGC normais ou mesmo eleva-
talação da nefropatia diabética. O mecanismo dessa va- dos. A filtração por néfron e o RFG estavam diminuídos,
sodilatação é incerto. É possível que a produção como observado na prática clínica, indicando que o efei-
aumentada de um ou mais compostos vasoativos, como to predominante era a redução do Kf. Nas glomerulone-
o óxido nítrico, as prostaglandinas vasodilatadoras e o frites humanas, a redução abrupta do RFG leva à reten-
peptídeo natriurético atrial, além de hormônios (gluca- ção de sódio e água, com desenvolvimento de edema e
gon e hormônio de crescimento) e da própria glicose, es- hipertensão, enquanto a lesão da barreira glomerular se
tejam envolvidos na patogênese dessa disfunção. Depois manifesta como proteinúria moderada, e a ruptura de al-
de vários anos, essa hiperfiltração dá lugar ao retorno do ças glomerulares, em geral por mecanismos inflamató-
RFG a níveis normais e, posteriormente, ao declínio con- rios, provoca o aparecimento de hematúria. Esse conjun-
tínuo do RFG. Essas fases devem ser acompanhadas de to de sinais e sintomas, hipertensão, edema, proteinúria
perto pelo clínico, que deve intervir desde cedo para evi- moderada e hematúria é denominado síndrome nefríti-
tar a progressão da nefropatia. Também neste caso está ca. É também comum a oligúria (redução do fluxo uri-
indicada a terapia com inibidores da enzima conversora nário), em grande parte devido à redução drástica do RFG.
ou bloqueadores do receptor AT1 da angiotensina II, que Em formas mais agressivas de glomerulonefrite, a pro-
podem retardar a progressão da nefropatia diabética por

e
liferação celular pode ser exageradamente intensa, levan-
baixar a pressão glomerular. do à formação de crescentes celulares (glomerulonefrite

ol
crescêntica ou rapidamente progressiva), que limitam gra-
Estenose da artéria renal vemente a superfície filtrante do glomérulo, podendo até
mesmo envolvê-lo totalmente. Nesses casos, pode insta-
A principal causa de estreitamento da artéria renal e
dos ramos é a formação de placas de ateroma, especial-
mente em pacientes idosos. Em muitos casos, a placa ate-
an lar-se um quadro de IRA por redução intensa do Kf glo-
merular. Se o paciente for tratado rápida e agressivamen-
te com imunossupressores, o quadro pode ser parcial ou
romatosa obstrui o óstio de uma artéria renal. Em outros, totalmente revertido, com dissolução dos crescentes e re-
M
especialmente em pacientes jovens, a causa da estenose é cuperação parcial ou total da filtração glomerular. Se hou-
um espessamento exagerado das paredes arteriais. Em ver demora em instituir o tratamento adequado, os cres-
qualquer desses casos, pode haver obstrução parcial ou centes podem não só aumentar, mas sofrer processo de
ra

total de uma ou ambas as artérias renais, que resulta na fibrose, tornando-se irremovíveis e levando à perda per-
elevação da PA sistêmica (hipertensão renovascular). No manente de função renal, com necessidade de diálise ou
entanto, a pressão de perfusão renal, ou seja, a pressão transplante renal.
to

“percebida” pelo rim hipoperfundido, pode estar normal


ou até mesmo baixa, devido à queda de pressão imposta Síndrome nefrótica
pela estenose. O quadro tende a ser mais sério se a este-
i

nose for bilateral ou em caso de rim único. Nesses pacien- Na síndrome nefrótica, o distúrbio básico é a perda
Ed

tes, uma queda abrupta da PA, espontânea ou iatrogêni- maciça de proteínas na urina, em quantidade superior a
ca, para níveis considerados normais, pode levar a pressão 3,5 g/dia (ver Capítulo ***). Consequentemente, a con-
de perfusão renal (pós-estenótica) a níveis muito baixos, centração plasmática de proteínas, particularmente a de
com queda substancial do RFG. Os mecanismos de au- albumina, se reduz (hipoalbuminemia), contribuindo
torregulação do RFG entram então em ação, levando à para a formação de edema generalizado devido à queda
vasodilatação da arteríola aferente e à redução da RA. Se da pressão oncótica do plasma (na maioria dos pacientes
a queda da pressão de perfusão renal for muito pronun- ocorre também retenção primária de sódio pelos rins, ver
ciada, a dilatação da arteríola aferente atingirá o máximo Capítulo ***). A hipo-oncoticidade plasmática, por sua
e não mais será possível evitar a queda do RFG. O qua- vez, estimula a biossíntese de proteínas pelo fígado, o que
dro é particularmente grave quando se utilizam drogas evidentemente atenua a hipoproteinemia, mas provoca
que deprimem o sistema renina-angiotensina, como os aumento paralelo da síntese de lipoproteínas e, conse-
inibidores da enzima conversora de angiotensina I e os quentemente, a elevação da taxa plasmática de colesterol
bloqueadores do receptor da angiotensina II. Esses com- (hipercolesterolemia) e/ou triglicerídeos (hipertrigliceri-
postos dilatam preferencialmente a arteríola eferente e demia). A síndrome nefrótica é definida como a associa-
reduzem RE, podendo provocar nesses pacientes queda ção entre essas quatro anomalias: proteinúria maciça, hi-
catastrófica do RFG e levar ao quadro de IRA. Portanto, poalbuminemia, edema generalizado e hipercolesterolemia/
a escolha e a utilização de medicamentos anti-hiperten- hipertrigliceridemia.
sivos devem ser extremamente criteriosas nesses casos, A síndrome nefrótica altera profundamente a dinâ-
sendo em princípio contraindicados os supressores do mica da ultrafiltração glomerular. A queda da pressão on-
sistema renina-angiotensina. cótica plasmática, que é uma força que se opõe à ultrafil-

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8 Clínica médica    g   Doenças renais

tração, tende a elevar a PEUF, a FPN e, portanto, o RFG. tir, a elevada pressão hidráulica no espaço de Bowman
Essa hiperfiltração ocorre em uma parcela dos pacientes (PEB) pode levar a zero a PEUF e, portanto, à FPN. A dinâ-
nefróticos, especialmente crianças. Em outros, no entan- mica da ultrafiltração glomerular comporta-se nesses ca-
to, pode haver queda do Kf como resultado de oclusão de sos de forma análoga à descrita para o choque hipovolê-
alças capilares e consequente redução da superfície glo- mico, mas há uma diferença importante: no choque, a
merular, de modo a baixar o RFG, que pode estar normal PEUF cai como resultado da queda da PCG, enquanto na
ou mesmo diminuído nesses pacientes. A queda da pres- obstrução urinária a queda da PEUF deve-se à elevação da
são oncótica do plasma pode ser tão intensa a ponto de PEB. Se a obstrução for bilateral, ou se ocorrer em rim úni-
promover o extravasamento de fluido do compartimen- co, estabelece-se uma IRA obstrutiva ou pós-renal (ver
to intravascular para o interstício (ver Capítulo ***), pro- Capítulo ***).
movendo em alguns desses pacientes um quadro de hi-
povolemia (e até mesmo choque hipovolêmico), com Redução do RFG com a idade
queda da pressão de perfusão renal e consequente redu-
ção do delta-P e do FPR. Por esse motivo, o uso de diu- Mesmo em indivíduos saudáveis, pode haver a ten-
réticos de alça, droga de escolha no tratamento desse tipo dência à redução progressiva do RFG com a idade. Esse
de edema, deve ser feito com cautela, utilizando o peso processo envolve a esclerose progressiva dos glomérulos
diário do paciente como parâmetro, para evitar reduções e a atrofia dos túbulos correspondentes, embora os me-
drásticas da volemia e até mesmo IRA (ver Capítulo***). canismos celulares e moleculares correspondentes não
sejam ainda conhecidos. É discutível, no entanto, se a ne-
fropatia do envelhecimento deve ser considerada uma

e
Estados de hipovolemia
forma de DRC e medicada como tal. A tendência atual é

ol
As hipovolemias graves usualmente acompanham tratar esses pacientes somente à medida que apresentem
uma queda acentuada da PA. Além disso, ocorre vaso- alguma anomalia que promova ou facilite a perda­de fun-
constrição generalizada, inclusive na microcirculação re- ção renal, tais como diabete melito ou hipertensão arte-
nal, particularmente nas arteríolas aferentes, como par-
te do esforço do organismo para impedir ou atenuar a
queda­da pressão arterial. Em tais condições, o QA reduz-
an rial sistêmica.

Mecanismos básicos e aspectos clínicos da


-se intensamente. Ocorre também queda acentuada da
M
proteinúria. a barreira glomerular
PCG que, como já detalhada, varia com a PA e também
com a proporção entre RA e RE. Todas essas alterações pro- Os rins de um adulto normal produzem mais de 170
movem a queda acentuada do RFG e levam ao quadro de litros de filtrado glomerular ao dia. Como a concentra-
ra

IRA (pré-renal), que pode se tornar muito mais grave se ção plasmática de proteínas é de aproximadamente 7 g/
evoluir para necrose tubular aguda (ver Capítulo **). Pa- dL, a filtração de proteínas atingiria o impraticável valor
cientes nefróticos e portadores de insuficiência cardíaca de 12 kg ao dia se a parede glomerular fosse livremente
to

congestiva também podem evoluir com má perfusão re- permeável a macromoléculas. Não seria possível aos tú-
nal, na primeira condição por redução real da volemia e bulos reabsorver tamanha carga de proteínas e, ainda que
na segunda por baixo débito cardíaco (queda da volemia o fosse, seria impossível ao fígado ressintetizá-la. Feliz-
i

arterial efetiva). Pacientes que fazem uso crônico de ini- mente para túbulos e fígado, a parede glomerular funcio-
Ed

bidores da enzima conversora de angiotensina I ou de na como um filtro extremamente eficiente, através do


bloqueadores do receptor AT1 são particularmente sus- qual passa apenas uma quantidade insignificativa de pro-
cetíveis à redução do RFG quando em hipovolemia, de- teínas, embora a permeabilidade à água e a pequenos so-
vido ao efeito vasodilatador desses compostos sobre a ar- lutos seja muito maior do que a da maioria dos demais
teríola eferente, que acaba por levar à queda da PCG. capilares do organismo. A perda, ainda que parcial, des-
Nesses casos, o uso desses medicamentos deve ser sus- sa função de barreira pode trazer consequências sérias.
penso temporariamente, assim que a condição hipovolê-
mica for diagnosticada ou se houver piora súbita do RFG. Componentes da barreira glomerular
Obstrução urinária A parede glomerular é constituída por três camadas,
cada uma das quais representa um obstáculo independen-
O processo de filtração glomerular pode ser grave- te à passagem de macromoléculas. A camada mais inter-
mente limitado ou totalmente interrompido quando as na é o endotélio capilar, o qual, à semelhança dos capila-
vias urinárias são obstruídas por cálculos renais, tumo- res intestinais adaptados a um alto fluxo de água e
res ureterais, tumores pélvicos com compressão extrín- pequenos solutos através de suas paredes, é fenestrado,
seca ou invasão dos ureteres ou da bexiga, fibrose retro- exibindo alta permeabilidade hidráulica. Como o diâme-
peritoneal e hiperplasia prostática, entre outras anomalias. tro das fenestras é da ordem de várias dezenas de nm, en-
Previsivelmente, a pressão hidráulica no interior das vias quanto o das moléculas de proteínas raramente excede 10
urinárias obstruídas se eleva, transmitindo-se aos túbu- nm, o endotélio não é capaz de restringir a passagem de
los renais e ao espaço de Bowman. Se a obstrução persis- proteínas com base no tamanho. No entanto, o endotélio

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1  Fisiologia e Fisiopatologia Básicas da Filtração Glomerular e da Proteinúria 9

é revestido externamente por uma camada de glicoproteí- sido estudada detidamente. Descobriu-se que o compo-
nas, o glicocálice, muito rica em cargas elétricas negativas, nente mais importante é uma molécula produzida pelo
correspondentes a radicais carboxila e/ou sulfato ligados próprio podócito, a nefrina, a qual estabelece uma com-
a moléculas de glicosaminoglicanos. Como no pH do meio plexa associação com outras proteínas e com o citoesque-
interno a maioria das moléculas de proteínas também pos- leto do podócito. A supressão de qualquer uma dessas
sui carga elétrica negativa (ou seja, comporta-se como po- proteínas provoca um desarranjo dessa estrutura, aumen-
liânions), o endotélio contribui para a função de barreira tando muito a permeabilidade da terceira camada e le-
glomerular, impondo uma severa restrição eletrostática, a vando ao aparecimento de proteinúria maciça.
qual impede que as camadas subjacentes sejam ocluídas Os podócitos e as pedicelas também apresentam na
por proteínas plasmáticas. superfície cargas elétricas negativas que contribuem não
A segunda camada da barreira glomerular é a mem- apenas para a repulsão à passagem de proteínas plasmá-
brana basal glomerular (MBG), que consiste em um com- ticas, mas também para manter afastadas pedicelas adja-
plexo arranjo entre moléculas de colágeno, proteoglica- centes. A principal responsável por essas cargas negativas
nos, laminina e fibronectina, entre outras. Tal estrutura é uma molécula denominada podocalixina, uma glico-
exerce pouca restrição à passagem de água, íons e molécu- proteína, que reveste os podócitos e as pedicelas de modo
las pequenas, mas dificulta a passagem de macromolécu- semelhante ao do glicocálice endotelial.
las. A MBG também é rica em cargas elétricas negativas,
fornecidas por moléculas de colágeno, glicosaminoglica- A teoria dos poros
nos e proteoglicanos, o que contribui para limitar ainda
mais a passagem de proteínas. A chamada teoria dos poros ajuda a compreender a

e
Os podócitos são o componente mais importante da restrição imposta pelas paredes do capilar glomerular à

ol
terceira camada da parede glomerular. São células com- passagem de macromoléculas. Segundo essa teoria, tudo
plexas, que se ramificam sucessivamente. As ramificações se passa como se as paredes dos capilares (quaisquer ca-
de ordem mais alta, de dimensões menores, são denomi- pilares, não apenas os glomerulares) fossem atravessadas
nadas pedicelas (Figura 4). Os espaços entre as pedicelas,
denominados fendas diafragmáticas, são ocupados por
uma membrana extremamente delgada, a membrana dia-
an
por um número muito grande de poros cilíndricos, com
raios de cerca de 4 nm (40 Å), os quais permitem a livre
travessia de moléculas água solvente, mas retêm as de so-
fragmática, que só pode ser visualizada por microscopia lutos na proporção direta de tamanhos respectivos. Um
M
eletrônica. Não há dúvida de que essa seja um obstáculo refinamento dessa teoria propõe a existência de uma po-
importante à passagem de macromoléculas, uma vez que pulação adicional de poros, bem maiores, porém escas-
a ausência de apenas um de seus constituintes, como ocor- sos, através dos quais proteínas de alto peso molecular,
ra

re em determinadas doenças hereditárias, está associada como as das imunoglobulinas, podem viajar do lume ca-
a proteinúrias extremamente graves. Ao longo dos últi- pilar ao espaço intersticial (no caso do capilar glomeru-
mos 20 anos, a estrutura da membrana diafragmática tem lar, ao espaço urinário). Embora essa abordagem seja mui-
to

to útil à compreensão do processo e explique muitos


achados experimentais, não foi possível até hoje visuali-
zar inequivocamente na parede dos capilares estruturas
i

correspondentes a esses poros. É possível que esses “po-


Ed

ros” correspondam na verdade aos espaços entre as mo-


léculas de colágeno e proteoglicanos que constituem a
membrana basal glomerular ou às pequenas aberturas si-
tuadas entre as moléculas de nefrina, principais compo-
nentes da membrana diafragmática ou, mais provavel-
mente, a uma associação entre esses pertuitos.

Papel do túbulo proximal na reabsorção de


proteínas
Apesar da alta eficiência da função de barreira do glo-
mérulo, cerca de 1 g de proteínas alcança todos os dias o
espaço urinário. Embora tal quantidade represente uma
proporção ínfima (cerca de 0,0001%) do total de proteí-
nas que percorre diariamente o capilar glomerular, é ne-
g Figura 4.  Micrografia eletrônica da parede glomerular, mostrando cessário recuperá-la, o que é realizado com eficiência por
as diferentes camadas que constituem a barreira à filtração de macro- um processo de reabsorção no túbulo proximal. Mais de
moléculas. As setas indicam a delicada membrana existente entre as 90% das proteínas que chegam ao espaço de Bowman são
pedicelas dos podócitos (membrana diafragmática ou slit membrane). reabsorvidas no túbulo proximal por meio de um pro-
EB: espaço de Bowman; Ep: epitélio (pedicelas dos podócitos); MBG: membrana basal
glomerular; End: endotélio; LC: lume capilar. cesso de endocitose. As proteínas reabsorvidas são hidro-

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10 Clínica médica    g   Doenças renais

lisadas em lisossomos, e seus aminoácidos são devolvidos creção de proteínas de baixo peso molecular é pouco afe-
à circulação sistêmica através da membrana basolateral, tada por esse aumento da população de poros “gigantes”,
alimentando o reservatório utilizado pelo fígado para a uma vez que essas moléculas já encontram pouca resis-
síntese de novas proteínas. Em outras palavras, a peque- tência à sua passagem mesmo em condições normais.
na quantidade de proteínas que chega a atravessar os glo- Além disso, os poros “gigantes” são tão raros que, ainda
mérulos é inevitavelmente retirada de circulação, seja por que o número fosse multiplicado dezenas de vezes, a soma
reabsorção e hidrólise no túbulo proximal, seja por per- das áreas continuaria irrelevante comparada às dos po-
da para o meio externo através da urina, normalmente ros “normais”: a parede glomerular mantém-se muito
em quantidades diminutas (não mais de 50 mg/dia em mais permeável à albumina do que às proteínas de peso
um indivíduo normal). O processo de reabsorção de pro- molecular mais alto.
teínas no túbulo proximal é saturável, uma vez que a en- Proteinúrias contendo quantidades apreciáveis de
docitose no túbulo proximal é um processo limitado pela moléculas de alto peso molecular são denominadas não
disponibilidade de sítios de ligação a proteínas. Assim, o seletivas, porque nesses casos a parede glomerular pare-
comprometimento da função de barreira glomerular leva ce não discernir muito bem entre proteínas de alto e bai-
no primeiro momento ao aumento da taxa de reabsor- xo pesos moleculares. Segundo alguns pesquisadores, tais
ção de proteínas no túbulo proximal e, quando atinge a proteinúrias tendem a associar-se a glomerulopatias mais
taxa máxima, à perda de proteínas na urina, uma vez que agressivas, de caráter progressivo: os “poros gigantes” re-
esse processo de endocitose inexiste, ou é extremamente fletiriam a presença de lesão estrutural mais séria da pa-
limitado, nos segmentos tubulares subsequentes. rede glomerular. Portanto, ainda segundo esse ponto de
vista, a avaliação da seletividade de uma proteinúria te-

e
Mecanismos básicos de proteinúria ria valor prognóstico. No entanto, tal associação é incer-

ol
ta, e o exame histológico do tecido renal (em material de
Conforme discutido, apenas uma pequena quan­tidade biópsia) continua sendo a única maneira de se obter um
de proteínas chega à urina em indivíduos normais. A al- diagnóstico e um prognóstico precisos e de escolher ade-
bumina plasmática representa menos da metade desse to-
tal, o restante é constituído por proteínas de baixo peso
molecular que, mesmo em condições normais, passam
an quadamente a melhor opção terapêutica diante de uma
glomerulopatia.
Outra causa para o aumento da permeabilidade da
facilmente pelas paredes glomerulares. A essas proteínas parede glomerular é a depleção de cargas negativas, uma
M
provenientes do plasma juntam-se outras originadas no vez que, conforme detalhado, é provável que a passagem
próprio néfron, como a proteína de Tamm-Horsfall. de proteínas através da parede glomerular seja fortemen-
Há três mecanismos básicos para o aparecimento de te restringida por repulsão eletrostática. Se essa barreira
ra

proteinúria: elétrica for atenuada ou rompida, a proteinúria resultan-


1. Aumento da permeabilidade glomerular a macro- te deve ser constituída quase exclusivamente de albumi-
moléculas (quebra da barreira glomerular), de longe a na e moléculas de baixo peso molecular, sendo insignifi-
to

causa mais frequente de proteinúria. cativa a presença de proteínas de alto peso molecular
2. Diminuição da capacidade de reabsorção tubular (Figura 5). Ou seja, de acordo com a teoria, se a estrutu-
de proteínas. ra básica da parede glomerular não for alterada (ou seja,
i

3. Produção pelo organismo de proteínas anômalas


Ed

de baixo peso molecular.

Proteinúria por aumento da permeabilidade glomerular a mg/24h


proteínas 6.000
O mecanismo mais previsível de aumento da permea-
5.000
bilidade glomerular a proteínas é o aumento de poros “gi-
gantes” (ou seu equivalente), normalmente escassos, que 4.000
atravessam a parede do glomérulo, cuja existência é pre-
vista por modelos matemáticos, mas cuja presença nun- 3.000
ca foi inequivocamente demonstrada. O efeito do aumen-
2.000
to da frequência desses “poros gigantes” é o aumento
predominante da passagem de macromoléculas de raio 1.000
superior a 4 nm (40 Å), como as imunoglobulinas, que
sofrem restrição praticamente total em condições nor- 0
Poros Perdas de
Normal Tubular Mieloma
mais. O padrão da proteinúria resultante obedece a um gigantes cargas
negativas
padrão bem definido, em que se destacam proteínas de
IgG Alb Baixo PM Bence-Jones
alto peso molecular, normalmente ausentes da urina (Fi-
gura 5). No entanto, a proteína urinária predominante
nesses casos é a albumina, porque sua concentração plas- g Figura 5.  Representação gráfica dos diversos mecanismos de pro-
mática é 4 vezes superior à das imunoglobulinas. A ex- teinúria.

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1  Fisiologia e Fisiopatologia Básicas da Filtração Glomerular e da Proteinúria 11

se permanecerem constantes as dimensões dos “poros”), pode também contribuir para a composição da protei-
não há razão para que a passagem de proteínas de alto núria. Alguns pesquisadores propõem o uso de tais mo-
peso molecular aumente substancialmente. Proteinúrias léculas como marcadores de lesão túbulo-intersticial nas
com essas características são consideradas seletivas, em nefropatias crônicas, embora o exame histológico de ma-
contraste com o caráter não seletivo das proteinúrias as- terial de biópsia continue sendo o procedimento mais
sociadas ao aumento do número de “poros gigantes”. As confiável para a determinação do prognóstico e da con-
proteinúrias seletivas tendem a associar-se a glomerulo- duta terapêutica nesses casos.
patias com caráter menos progressivo e a responder mais
favoravelmente aos tratamentos, em comparação com as Proteinúria devido à passagem pelos glomérulos de
não seletivas. É provável que, em muitas glomerulopatias, proteínas anômalas
ambas as modalidades de disfunção, perda de cargas fixas É relativamente comum a presença no plasma, par-
e aumento do número de poros, coexistam. Independen- ticularmente em indivíduos idosos, de imunoglobulinas
temente do mecanismo exato, e pelas razões enumeradas, produzidas de forma anômala, frequentemente por um
o que predomina nas proteinúrias de origem glomerular único clone de linfócitos B. A causa mais comum dessa
é sempre a excreção de albumina. anomalia é o mieloma múltiplo, que consiste basicamen-
Os mecanismos que levam ao dano da barreira glome- te em uma proliferação neoplásica de linfócitos B. Outras
rular são variados e incluem lesão de podócitos por fato- doenças, como a amiloidose primária e certos tipos de
res circulantes, citocinas ou agressão imunológica, deposi- linfoma, também podem levar à produção de imunoglo-
ção de complexos imunes entre o endotélio e a membrana bulinas anômalas. Em uma parcela desses casos, produ-
basal glomerular ou entre esta e os podócitos ou ainda de- zem-se moléculas incompletas de imunoglobulinas, que

e
posição de material hialino em toda a estrutura do capilar são lançadas à circulação e, por terem peso molecular re-

ol
glomerular. As proteinúrias glomerulares acompanham as lativamente baixo, atravessam com certa facilidade a bar-
principais glomerulopatias, como a nefropatia diabética, a reira glomerular. Se a carga filtrada dessas imunoglobu-
glomerulonefrite membranosa, a glomeruloesclerose seg- linas aberrantes exceder a capacidade reabsortiva dos
mentar e focal (GESF) e a nefropatia lúpica.

Proteinúrias por defeito da reabsorção tubular


an túbulos, elas aparecem na urina, dando origem à protei-
núria de Bence-Jones, mesmo nome do clínico inglês que
a descreveu no século XIX. A intensidade da proteinúria
Conforme detalhado, o túbulo proximal reabsorve de Bence-Jones varia desde um mero vestígio até níveis
M
quase toda a proteína que chega ao espaço urinário, redu- “nefróticos”. É evidente que nesses casos nem de longe se
zindo assim a proporções mínimas, em condições normais, justifica o diagnóstico de síndrome nefrótica, uma vez
a taxa de excreção urinária de proteínas. Quando esse pro- que a função de barreira do glomérulo está, na maioria
ra

cesso de reabsorção deixa de funcionar adequadamente, das vezes, preservada, enquanto os níveis de albumina
surge uma proteinúria característica, a de origem tubular. plasmática estão dentro da normalidade. A rigor, uma
Nesses pacientes, a função de barreira glomerular está pre- proteinúria maciça não acompanhada de hipoalbumine-
to

servada, e o ultrafiltrado glomerular contém albumina em mia é inusitada e deve levar o clínico a formular a hipó-
concentrações muito baixas e proteínas de baixo peso mo- tese de mieloma múltiplo. É também suspeita a presença
lecular, conforme ocorre em indivíduos normais. No tú- de níveis elevados de proteínas na urina de 24 horas, en-
i

bulo proximal, no entanto, as proteínas presentes no ul- quanto não se detectam proteínas em amostras isoladas
Ed

trafiltrado glomerular são reabsorvidas em proporção de urina do mesmo paciente. O motivo dessa aparente
menor do que o normal, originando proteinúria de inten- inconsistência é que a maioria dos laboratórios utiliza
sidade modesta, geralmente inferior a 2 g/dia. Na urina, o para o exame de urina fitas reagentes específicas para al-
quociente (muito baixo) entre as concentrações de albu- bumina, que no entanto aparece em quantidades normais
mina e proteínas de baixo peso molecular é semelhante ao (ou seja, muito baixas) na urina desses pacientes (Figura
que seria obtido no ultrafiltrado glomerular (Figura 5), o 5), enquanto a dosagem de proteínas na urina de 24 ho-
que tem valor diagnóstico, uma vez que tal proporção é ras costuma utilizar o ácido sulfossalicílico, que detecta
completamente distinta daquela encontrada nas proteinú- qualquer proteína.
rias provocadas por lesão glomerular, nas quais é amplo o
predomínio da albumina. A importância clínica das proteinúrias
As nefropatias crônicas que acometem preferencial-
mente o compartimento túbulo-intersticial são causa co- Proteinúria assintomática
mum de proteinúria com essas características. Como A proteinúria assintomática pode assumir qualquer
exemplo, as nefrites crônicas intersticiais por uso crôni- valor entre 150 mg/dia e 3 g/dia, na ausência de outros
co de analgésicos ou por doenças autoimunes. Pacientes achados como hematúria. O aumento persistente da ex-
que sofrem IRA, com lesão túbulo-intersticial significa- creção urinária de proteínas, ainda que assintomático e
tiva, também podem apresentar proteinúria moderada, não acompanhado de hematúria ou perda de função re-
inferior a 2 g/dia. nal, representa um sinal de alarme e, em princípio, indi-
A lesão de células tubulares, liberando alguns de seus ca um processo patológico envolvendo os rins. Mesmo
constituintes, como algumas enzimas e microglobulinas, que seja modesta e não chegue a trazer repercussão sistê-

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12 Clínica médica    g   Doenças renais

mica, a proteinúria assintomática não deve ser ignorada. de repor as proteínas perdidas (com a urina ou hidrolisa-
A precisão do diagnóstico e a possibilidade de detectar das no túbulo proximal) também traz consequências: au-
uma patologia renal incipiente aumentam muito quan- menta em paralelo a produção de lipoproteínas, originan-
do se mede especificamente a taxa de excreção urinária do hipercolesterolemia e/ou hipertrigliceridemia.
de albumina (microalbuminúria), que indica de modo É denominada síndrome nefrótica a associação de
mais sensível aumento da permeabilidade glomerular. quatro anomalias: a proteinúria maciça, a hipoalbumine-
Um exemplo de como a determinação da microalbumi- mia, o edema generalizado e a dislipidemia. A síndrome
núria pode ser útil é fornecido pela nefropatia diabética. nefrótica pode ser decorrente de um processo intrínseco
Nas fases iniciais, não traz alterações clínicas de impor- aos rins, nesses casos denominado glomerulopatia primá-
tância: a PA se mantém em níveis normais, o RFG está ria, ou pode resultar de inúmeras patologias, tais como:
normal ou até mesmo elevado, e a função tubular está doenças autoimunes, vasculites, neoplasias, viroses (inclu-
preservada. Pode ocorrer já nessa fase, no entanto, peque- sive pelo HIV), infecções bacterianas, parasitoses, reações
no aumento na taxa de excreção urinária de albumina. adversas a medicamentos ou mesmo hiperreatividade a
Portanto, a determinação da microalbuminúria, que re- picadas de insetos. Em muitos casos, especialmente em
quer a utilização de métodos especialmente sensíveis de crianças, pode não haver qualquer processo patológico de-
dosagem, pode ajudar a prever quais desses pacientes se- tectável à microscopia ótica. Nesses casos, há a síndrome
jam suscetíveis ao desenvolvimento de DRC. nefrótica de lesões mínimas, que requer o uso de micros-
Mesmo depois de firmado o diagnóstico e iniciada a copia eletrônica para detectar alterações glomerulares.
terapêutica, a determinação da proteinúria continua útil, Diversos estudos clínicos indicam que, quanto mais
agora para avaliar a resposta do paciente. Redução da pro- intensa a proteinúria, maior o risco de evolução para DRC.

e
teinúria indica evolução favorável, ao passo que a persis- Uma interpretação possível para esses achados é a de que

ol
tência ou a elevação pode significar progressão ou recidi- a exposição crônica a concentrações excessivas de proteí-
va da doença, obrigando o clínico a redobrar a vigilância nas exerce um efeito patogênico sobre as células tubula-
e/ou rever o esquema terapêutico. É importante ressaltar res, embora essa hipótese ainda seja controversa. É pos-
que nem sempre a presença isolada de proteinúria impli-
ca a indicação formal de biópsia, uma vez que pode ser
precipitada por exercício físico ou febre, na ausência de
an sível também que a proteinúria seja apenas um marcador
da gravidade da glomerulopatia. Em qualquer caso, a in-
tensidade da proteinúria não pode ser utilizada para pre-
patologia renal. No entanto, a monitoração da função re- ver a evolução de uma glomerulopatia. Os melhores in-
M
nal é essencial nesses casos, e a persistência da proteinú- dicadores prognósticos nesses casos continuam a ser o
ria ou a redução do RFG tornam imperiosa a realização tipo histológico da glomerulopatia e o grau de acometi-
de biópsia renal. mento do tecido renal, os quais só podem ser devidamen-
ra

São cada vez maiores as evidências de que a microal- te avaliados em material de biópsia. Por exemplo, na glo-
buminúria seja um indicador sensível de risco cardiovascu- merulonefrite membranosa, que é caracterizada por
lar. As razões para essa associação não foram ainda elucida- alterações histológicas predominantemente na membra-
to

das. Fica claro, no entanto, que o aparecimento de na basal glomerular, o curso mais comum é o de persis-
microalbuminúria deve servir como um sinal de alerta, in- tência da proteinúria ou mesmo remissão espontânea,
dicando ao clínico não apenas a necessidade de investigar a sem perda progressiva da função renal, que só ocorre, e
i

existência de uma nefropatia como também a de conside- ainda assim lentamente, em cerca de um terço dos pa-
Ed

rar com cuidado um distúrbio do sistema cardiovascular. cientes. Por outro lado, na GESF, em que ocorre oclusão
de boa parte do tufo capilar glomerular, a apresentação
Proteinúrias maciças: a síndrome nefrótica clínica mais frequente é de proteinúria nefrótica com per-
São definidas como proteinúrias maciças ou nefróti- da de função renal (redução do RFG).
cas aquelas que excedem 3,5 g/dia (ou, em amostras isola- Apesar da intensa repercussão clínica, a síndrome ne-
das de urina, 3,5 g por grama de creatinina). Em crianças, frótica pode regredir espontaneamente ou responder fa-
os valores considerados nefróticos são aqueles superiores voravelmente ao tratamento com corticosteroides e ou-
a 50 mg/kg/dia. Perdas proteicas dessa envergadura acar- tros imunossupressores. Infelizmente, nem todos os
retam uma série de consequências clínicas importantes. pacientes evoluem desse modo. Alguns respondem ao tra-
Em primeiro lugar, a magnitude da perda de proteínas tamento com queda apenas parcial da proteinúria, en-
plasmáticas, em especial de albumina, ultrapassa a capa- quanto em outros uma resposta satisfatória é seguida por
cidade hepática de ressintetizá-las, levando à hipoalbumi- recrudescimento da doença após a suspensão da terapia.
nemia. Em consequência, cai a pressão oncótica plasmáti- Respostas incompletas ou nulas geralmente indicam mau
ca, resultando no desequilíbrio das forças de Starling nos prognóstico, com alto risco de progressão para DRC avan-
capilares sistêmicos. O consequente extravasamento de çada (ver Capítulo ***).
fluido do plasma para o interstício, com retenção renal de
sódio e água em resposta à hipovolemia, é um dos meca- A relação entre o RFG e a proteinúria é complexa
nismos que levam à formação de edema generalizado nes- Na maioria dos pacientes com DRC, a carga filtrada
ses pacientes (mais frequentemente, ocorre retenção renal de proteínas esta reduzida nas fases mais avançadas da
primária de sódio, ver Capítulo **). A tentativa do fígado doença, quando o RFG cai a níveis críticos. Em conse-

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1  Fisiologia e Fisiopatologia Básicas da Filtração Glomerular e da Proteinúria 13

quência, a proteinúria de 24 horas também se reduz. Nes- tancial da excreção urinária de proteínas, pois a barreira
se caso, a queda da proteinúria não reflete a recuperação glomerular ainda não foi comprometida. Nesses casos, o
da função de barreira, como poderia parecer à primeira aumento da carga filtrada de proteínas é proporcional ao
vista, e sim piora da função renal. aumento do RFG, que é da ordem de 30 a 40%, o que é
Em outros casos, a proteinúria se mantém elevada du- facilmente compensado pela reabsorção tubular.
rante toda a evolução da doença, enquanto o RFG perma-
nece em trajetória descendente até as fases finais, quando Leitura recomendada
o paciente passa a depender de diálise ou transplante. É o
que acontece, por exemplo, em uma parte dos pacien- 1. Alpern RJ, Moe OW, Kaplan M, editors. Seldin and Giebisch’s the kidney. 5.ed.
Elsevier, 2013.
tes com nefropatia diabética ou GESF, que podem perma- 2. Brenner and Rector’s the kidney. 9.ed. GB: Saunders-Elsevier; 2012.
necer com proteinúria maciça meses após o início do tra- 3. Rennke H, Bradley M. Denker - renal pathophysiology. Lippincott Williams &
Wilkins; 2013.
tamento dialítico. Por outro lado, condições que aumentam 4. Schrier RW, tCoffman TM. Schrier’s Diseases of the kidney. 9. ed. Lippincott Wil-
o RFG não elevam a excreção urinária de proteínas, a me- liams & Wilkins; 2013.
5. Sociedade Brasileira de Nefrologia. Taal MQ, Chertow GM, Marsden PA, Skore-
nos que a barreira glomerular esteja simultaneamente ava- cki K, Yu ASL, Brenner BM, editor. Disponível em: <http://www.sbn.org.br>
riada. Um exemplo claro dessa dissociação é a fase inicial [Acessado em 13 mar 2015].
6. Zatz R, Seguro AC, Malnic G. Bases fisiológicas da nefrologia. São Paulo: Athe-
da nefropatia diabética, na qual a hiperfiltração (fenôme- neu; 2011.
no hemodinâmico) não está acompanha do aumento subs-

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