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A tolerância

como virtude

E
ste tema nos instiga a
pensar o conceito tole-
rância que, ainda que
dúbio, deve ser interpre-
tado como uma virtude.
Conceito que, se não for
bem compreendido no contexto
das relações humanas, pode ser
utilizado a um des(serviço) da
sociedade que pretende alcan-
çar a democracia plena, ainda
que essa plenitude seja utópica.
O fato de a democracia liberal
prever a liberdade de escolha
não implica o conhecimento
da verdade e a anulação das
práticas intolerantes. Ao con-
trário, abre espaço para novas
formulações racistas e para o
uso sistemático que o racismo MARIA LUIZA TUCCI
CARNEIRO
faz da distorção das palavras. é historiadora, livre-
docente da Universidade
Ao tentar construir a síntese de São Paulo,
pesquisadora associada
da igualdade com a diferen- do Laboratório de Estudos
sobre a Intolerância (LEI)
ça, o movimento anti-racista da USP e autora de, entre
fica fragilizado, ou seja: ao outros, O Veneno da
Serpente (Perspectiva)
defender o direito à diferença e Preconceito Racial em
Portugal e Brasil Colônia
e a preservação da identidade (Perspectiva).
MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO

de cada comunidade, abre as a dignidade humana. Basta aqui


portas para a proliferação do citar como exemplo os casos da
preconceito .
1
Ku Klux Klan, do nazismo e do
Com isso queremos dizer que neonazismo, que nos instigam
racistas fanáticos não são per- à complexa discussão sobre
sonagens exclusivos do Estado “aonde o ser humamo pode che-
totalitário e nem de um passado gar?”. Há séculos, o fanatismo
longínquo. Ódio e violência sem – com justificativas ideológicas
limites funcionam como impul- racistas – tem se manifestado
sos para a ação de indivíduos em suas distintas nuances:
que ignoram o diálogo, a ética e econômica, política, étnica e
religiosa.
1 O postulado anti-racista é pro-
O mais complexo entre as blematizado por Pierre-André
Taguieff (1987) em sua obra
distintas formas de racismo é, La Force du Prèjugè. Essai sur
le Racisme et sés Doubles.
certamente, o anti-semitismo,
2 Devemos ao jurista Raphael
Lemkin a iniciativa de submeter,
que, nos dias atuais, se faz aco- em 1933, à Conferência Inter-
nacional para a Unificação da
bertado pelo anti-sionismo e o Lei Criminal uma proposta para
declarar como crime perante a
antiamericanismo. Observamos lei internacional a destruição de
coletividades raciais religiosas
que, após a Segunda Guerra ou sociais. Lemkin referia-se, já
nesse momento, à destruição do
povo judeu, tema que retomou
Mundial, o discurso racista em sua monografia Axis Rule in
Occupied Europe, publicada
passou por uma metamorfose em 1944 com detalhes sobre
o extermínio de judeus pelo III
quanto aos seus fundamentos. Reich. Em 1948, sua proposta
chegou ao Conselho Econômico
Deslegitimado pela ciência e e Social das Nações Unidas,
que deliberou a assinatura
da Convenção das Nações
repudiado pelas dimensões sobre o Genocídio (United Na-
tions Convention on Genocide
alcançadas pelo Holocausto – UNCG) cujo artigo II definiu
como genocídio “qualquer um
– definido como crime perante dos atos abaixo, cometidos
com a intenção de destruir
a lei internacional e condenado total ou parcialmente um grupo
nacional, étnico [sic], racial ou
religioso como tal: a) matar
como genocídio pelo Conselho membros do grupo; b) causar
sérios danos físicos ou mentais
das Nações Unidas em 19482 a membros do grupo; c) intervir
de maneira deliberada nas
– o racismo foi sendo esvaziado condições de vida do grupo
para calculadamente produzir
como teoria das raças. Deixou sua destruição física, parcial ou
total; d) impor medidas com a
intenção de evitar nascimentos
de lado o cientificismo biológi- dentro do grupo; e) transferir,
à força, crianças de um gru-
co para se fortalecer em bases po para o outro” (cf. verbete
“Genocídio”, em: Cashmore,
culturalistas. 2001, pp. 230-6).
Avaliando a retórica dos discursos De forma obstinada e simplória, os líderes
populistas endossados tanto pelos grupos racistas – fanáticos em potencial, adeptos
de direita como de esquerda, e principal- da violência e da mentira – constroem um
mente após os anos de 1980, percebemos mundo fictício povoado, segundo a maioria
que houve um deslocamento do eixo de dos exemplos do nosso passado histórico,
argumentação: de raça para etnia/cultura, por uma população branca, livre de qualquer
da idéia de desigualdade para o apelo ao elemento “infeccioso”, maldito. Basta re-
direito à diferença, e da heterofobia para a vermos, com um olhar crítico, as propostas
heterofilia. Enfim, as metáforas biológicas e da Ku Klux Klan, do Estado nazista alemão
zoológicas foram substituídas por vocábulos e do Estado fascista italiano, assim como
da cultura, religião, tradição e imaginários o apartheid, instaurado na África do Sul
conjugados (Taguieff, 1987). Considero que a partir de 19136. Comprometidos com a
para melhor compreender como se processam doutrina que rege seus sentimentos e com-
certas mudanças mentais – ou como se dá a portamentos, esses grupos imaginam uma
construção do fanatismo – precisamos estar sociedade purificada, livre de “demônios”
atentos às permanências e ambigüidades cujas imagens são representadas por figuras
dos discursos3. distintas: ora o comunista, o socialista ou
Infelizmente não conseguimos adentrar
no século XXI ilesos de fobias construídas
pelos inimigos da democracia. Valendo-se
de falsas idéias e levando à configuração
de perigos e mundos imaginários, os no-
vos racistas investem na visão falseada da
realidade que ainda sobrevive de mitos:
o mito da conspiração judaica, o mito da
democracia racial, o mito do perigo es-
trangeiro e o mito das raças degeneradas4.
Hoje, a intolerância prolifera e os atos de
fanatismo “explodem” em nome de alguma
3 Essa abordagem foi por mim
desenvolvida no estudo O causa apresentada como sagrada. A luta
Veneno da Serpente. Reflexões
sobre o Anti-semitismo no Brasil por um ideal, em muitos casos, ressoa no
(Carneiro, 2003). vazio; em outros, encontra adeptos que não
4 Questões como essas são medem forças para atingir seus objetivos.
abordadas por: Girardet,
1987; Cohn, 1969; Poliakov, Favorecidos pelos meios de comunicação
1991. e, ao mesmo tempo, pela ignorância que
5 Retomarei essa questão, a dos persiste sobre o nosso passado histórico,
mitos políticos, no decorrer deste
meu texto. No entanto, gostaria os racistas ganham, cada vez mais, espa-
de ressaltar o papel que certos
mitos políticos tiveram para
ço no mundo globalizado. Uns agem por
a configuração do moderno vontade própria; outros induzidos por um
anti-semitismo que, além das
pseudoteorias científicas, se partido político, alguma seita secreta ou
pautou na construção de certas organização terrorista que os transforma
mentiras, dentre as quais cabe
citar: a da pureza de sangue em mártires.
dos arianos puros; e a do
complô internacional judaico- Fundamentados na doutrina da salvação
comunista. Sobre essas questões e alimentados por distintos mitos políticos5,
ver: Girardet, 1987; Carneiro,
2003. os racistas têm como referência a “sociedade
6 O apartheid, instaurado na do caos e da desordem”. Ao criticarem a
África do Sul em 1913, significa
“segregação sistemática das
realidade em que vivem, a definem como
populações não brancas”. Esse imperfeita. Valendo-se de elementos do
regime só foi abolido em 1994,
quando, nas eleições gerais, imaginário coletivo, constroem seu conceito
foi eleito presidente Nelson de verdade e “desenham paisagens” para um
Mandela, líder anti-apartheid
da maioria negra. mundo novo povoado por um homem novo.

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o anarquista, ora o negro, o japonês ou o e se multiplicar como se fossem vermes. 7 Questões discutidas por Wievior-
indígena, ora o palestino ou o israelense, o Alimentando-se da liberdade democrática, ka, 1991.
8 O nazismo, movimento político
cristão, o judeu ou o muçulmano. aproveitam-se dos modernos meios de co- de dimensões históricas mun-
Modelos de repúblicas perfeitas e nações municação para colocar em circulação seu diais, fundado e liderado por
Adolf Hitler (1889-1945), deve
paradisíacas foram idealizados tanto pelos veneno, que, apesar de estar com validade ser avaliado como expressão
máxima de irracionalidade dos
nazistas como pelos encapuzados da Ku vencida, ainda conquista adeptos. Esta homens. É considerado pela
Klux Klan. A superposição desses múltiplos primeira década do século XXI pode ser historiografia contemporânea
como o agrupamento político
discursos, ao longo do tempo e no espaço, considerada como um dos índices mais mais radical a conquistar o
controle governamental em toda
gerou conflitos que dilaceraram (e ainda elevados de pronunciamentos racistas a história européia. Apesar da sua
dilaceram) as possibilidades de convivência no pós-guerra. Incidentes contra negros, radicalidade assassina, Hitler che-
gou ao poder por meios legais.
pacífica e de tolerância. Em todas as situa- estrangeiros e judeus, principalmente, mul- Como modalidade do regime
totalitário, o nazismo – assim
ções, o racismo se presta como instrumento tiplicaram-se por vários países, atestando como o stalinismo – inovou como
fenômeno político ao prescindir
de poder e coação. Tanto pode estar a serviço que a xenofobia e o racismo continuam de uma legitimação exterior a ele
de interesses políticos, econômicos e sociais a alimentar atos de fanatismo. Como nos próprio. Pautado no nacionalis-
mo, na violência, na xenofobia
de um grupo como de uma nação gerenciada tempos sombrios – quando os nazistas e no racismo exacerbados, o
nazismo sustentou uma versão
por um Estado intolerante. Como exemplo pregavam o extermínio dos judeus e os de verdade absoluta interpretada
único da intolerância sectária podemos citar justiceiros da KKK incitavam o lincha- por seu líder – idolatrado como a
encarnação da própria imagem
o anti-semitismo adotado como projeto mento de negros –, sinagogas voltaram a de nação – e propagada como
ideologia. Essa crença incitou um
político do III Reich, que, gerenciado por ser queimadas, cemitérios judaicos profa- grupo de fanáticos a formar um
líderes anti-semitas, idealizou de forma nados e cidadãos negros banalizados como movimento de massa pautado
em mentiras propagandísticas
“industrial” o extermínio de 6 milhões de raça inferior. articuladas em torno de um
conjunto de ficções.
judeus e outros grupos classificados como Enfim, neste século XXI, o racismo
9 A expressão Ku Klux Klan deriva
“inferiores”. Foi na confluência do científi- retornou mascarado por novas roupagens e do grego kuklos (círculo ou ban-
do), e do escocês klan (clã, com o
co com o político que o nazismo justificou fortalecido pelas mesmas mentiras11. Ainda sentido de ancestralidade). Criou
sua teoria acerca da superioridade da raça que maquiado pelos rótulos do mundo glo- raízes nos Estados Unidos e Euro-
pa onde, ainda hoje, sobrevive
ariana cuja gênese nos remete ao conceito balizado, as recentes manifestações contra alimentada pelo crescimento dos
grupos de extrema-direita. Com
de pureza de sangue criado na Espanha em o Estado de Israel ou contra os negros imi- isso queremos dizer que racistas
1449 (Poliakov, 1974; Carneiro, 2004). grantes de Cabo Verde ou da Nigéria, por fanáticos não são personagens
exclusivos do Estado totalitário e
Se na Alemanha nazista o anti-semitismo exemplo, nada mais são do que uma das nem de um passado longínquo.
Como muito bem já demonstrou
constitui o ápice de uma sociedade enraiza- múltiplas faces de um mesmo fenômeno: a história, o racismo não escolhe
da que se pensava como total, nos Estados o racismo. ideologia e nem nacionalidade.
Ódio e violência sem limites
Unidos o racismo nasce com o auge do funcionam como impulsos para a
ação de indivíduos que ignoram
igualitarismo7. É nessa direção que retomo o diálogo, a ética e a dignidade
três exemplos que considero representati- humana.

vos do fanatismo racial e da (des)razão: EM BUSCA DA GÊNESE DO 10 O termo neonazismo resulta da


composição da palavra grega
o nazismo8, a Ku Klux Klan9 e o neona- neos (novo, revivido) e da grafia

zismo10, guardadas as devidas dimensões PENSAMENTO INTOLERANTE fonética das duas primeiras síla-
bas de Nationalsozialist, partido
que dominou o Estado alemão
como fenômenos cultural-psicológicos. sob a liderança de Hitler a partir
Em comum, os três movimentos evocam A democracia – como conjunto de de 1933. Como o próprio nome
indica, tem como pressuposto
a superioridade da raça branca, propõem princípios e práticas – deve assegurar os a revitalização do nazismo
e a proliferação do racismo
o extermínio de negros, judeus, ciganos e direitos fundamentais do homem, dentre na sociedade mundial. Como
homossexuais como conquista para uma os quais a liberdade religiosa e a liberdade fenômeno social demonstra que a
velha intolerância tem o poder de
sociedade higienizada, e alcançam o ápice de manifestação de opinião e pensamento. ressurgir das cinzas, com novos
nomes e múltiplas facetas. Em
do fanatismo sem medir conseqüências. Faz-se baseada nos princípios do governo da parte, estamos falando de uma
Daí a minha constante preocupação em maioria, que devem vir associados aos di- mesma história que recomeça – a
história da “Besta” – travestida de
investigar as raízes desses fenômenos sob o reitos individuais e das minorias, que, como neonazismo. Sobre esse tema ver
Knight, 1982; Heddge, 1988;
viés da modernidade, da memória coletiva todos, têm direito a proteção legal igual e de Roversi, 1990; Bivar, 1982.
e dos mitos políticos. se organizar e participar plenamente na vida 11 Ver o recente livro de Pierre-André
Taguieff (2003) e também Les
Retomando: é em meio às democracias política, econômica e cultural da sociedade. Protocoles des Sages de Sion:
liberais que os racistas fanáticos encon- Enfim, devemos entender democracia como Introduction á l’Étude des Pro-
tocoles un Faux et Sés Usages
tram condições adequadas para proliferar a institucionalização da liberdade. dans le Siècle (1992).

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Se instituída a liberdade, extrapolamos a foram aplicados como forma de coerção
condição de sociedade civil e reafirmamos para conter os “desvios” de comportamento
os contratos de convivência social em que e de idéias que pudessem colocar em risco
cada cidadão estaria sendo respeitado por o poder do ditador ou de uma instituição,
sua identidade pessoal sem violentar a iden- em particular. Basta avaliarmos a atuação
tidade do outro. Essa questão nos remete ao do Tribunal do Santo Ofício que – tanto
final da Segunda Guerra Mundial, quando o em Portugal como na Espanha – queimou
mundo vislumbrou – diante da derrocada do milhares de hereges que, segundo seus
nazismo, do julgamento de Nuremberg e da estatutos, constituíam-se em perigo para a
promulgação da Declaração Universal dos civilização católica ocidental. Através de um
Direitos do Homem (1948) – a possibilidade discurso sedutor, esse orgão – em comum
de construir uma “cultura da tolerância” acordo com o Estado absolutista – doutrinou
ou seja, de oferecer às maiorias excluídas as massas fadadas a acreditar que, dessa
situações que lhes garantissem bem-estar forma, estavam sendo protegidas dos “de-
material e espiritual. Aquele momento mônios” (Gorestein & Carneiro, 2005). Ao
– aqui lembrado como pós-Auschwitz – rea- endossar os estatutos de pureza de sangue,
firmou as fronteiras da tolerância com base os inquisidores dividiram a sociedade em
na nocividade que, se aceita em qualquer dois grupos distintos por sua “raça”; os
grau que seja, compromete a existência das puros, católicos por tradição, e os impuros,
democracias pluralistas. infectados pelo sangue mouro, judeu, negro
Respeitando a pluralidade das cultu- e cristão-novo (Carneiro, 2005).
ras estaríamos fortalecendo as modernas Em busca da gênese desse pensamento
democracias que exigem “acordos de con- intolerante (que transforma seres humanos
vivência”. Essa convivência, no entanto, em párias, em seres indesejáveis) temos
se faz fragilizada pelas relações de poder, procurado analisar as diferentes versões
pelas desigualdades socioeconômicas exis- assumidas pelo discurso da intolerância
tentes entre os múltiplos grupos sociais e que, de acordo com a teoria weberiana,
povos do mundo inteiro, assim como pelas tem servido ao Estado e à Igreja católica
práticas do racismo e do terrorismo. Daí o para se sustentarem como grupo de status,
respeito à diversidade humana ser um valor privilegiados, superiores (ora pela honra,
inalienável e que, para sobreviver como um ora pelo sangue puro). É esse discurso que
princípio universal, depende da instituição temos procurado investigar em nosso pro-
de um conjunto de regras, ou seja, de leis jeto sobre o inventário das obras racistas
inibidoras da nocividade e da formação de no Brasil e suas matrizes européias. É esse
uma postura de cidadania gerada pelas prá- discurso que – descontruído – nos revela a
ticas de solidariedade, amizade e respeito à postura dos intelectuais brasileiros frente ao
diversidade. A história tem demonstrado que outro, apresentado como pária, imaginado
não é fácil o reconhecimento da alteridade com um ser sub-humano, representado
que, ainda hoje, continua a ser problema. como um animal.
Múltiplos são os exemplos na história da Interessa-nos, assim, verificar como se
12 Entende-se aqui ditadores como humanidade de governos de “fachada” que, processou – ao longo da história do Brasil e
aqueles que não respeitam em nome da fé e/ou da segurança nacional, no decorrer do Holocausto (tendo em vista
a vontade do povo e que
se colocam acima da lei, esconderam “ditadores”12 que falavam em os projetos étnico-políticos do III Reich e
desconsiderando o Estado
de direito. Como criação das nome de um partido único modelado por também do Estado republicano brasileiro)
democracias, o Estado de seus caprichos. Múltiplos, também, são os – o processo de animalização do estrangei-
direito deve proteger os direitos
fundamentais, políticos, sociais exemplos daqueles que, abertamente, go- ro, o processo de diabolização do judeu ou
e econômicos investindo contra
a tirania e a ilegalidade. Daí a
vernaram como tiranos desconsiderando os do comunista. Interessa-nos saber como e
necessidade de um sistema de direitos do povo. Abusaram da prisão arbi- que conseqüências tem essa prática sobre
tribunais fortes e independentes
que, com poder, autoridade, trária, prenderam e torturaram cidadãos que o “eu”, sobre a alma – como afirmou Anita
recursos e prestígio, exija o nem sequer sabiam por que estavam sendo Novinsky (s/d), “a alma flutuante”. É sob
cumprimento das leis e os
regulamentos da nação. acusados ou condenados. Castigos cruéis esse prisma que a arte – assim como a psi-

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canálise – pode nos auxiliar a penetrar para republicano brasileiro que, em certas ins-
além dessas “janelas da alma”13. tâncias, tem demonstrado que não domina
Alguns conceitos são fundamentais para as “regras do jogo” da democracia14.
analisar os documentos históricos preser- Reafirmando o rigor analítico de Bobbio,
vados como sinais, símbolos e indícios da em sua obra Era dos Direitos, lembramos
intolerância: de inimigo objetivo de Hannah que são essas regras – a do jogo da de-
Arendt (1975), de mito político, propos- mocracia – que “permitem a instauração
to por Raul Girardet (1987), de estigma e o desenvolvimento de uma convivência
abordado por Erving Goffman (1980), de pacífica”. Assim, cabe repensarmos como
violência simbólica e violência física, con- os políticos, os clérigos, os diplomatas e
ceito que serviu de discussão entre Freud e os intelectuais, dentre outros produtores
Einstein sobre “para que serve a Guerra?”, do conhecimento, têm servido à produção
de Estado moderno, de Antony Giddens do discurso da intolerância. Suas obras,
(2001) e do discurso do poder, de Michel impressas ao longo do século XX, assim
Foucault (1998). São esses os conceitos como seus pareceres oficiais, são hoje tes-
endossados por um grupo de pesquisadores temunhos de que – através de um discurso
do Laboratório de Estudos sobre a Intole- intolerante – têm proposto o extermínio da
rância (LEI) da USP que, desde 2003, vem diversidade.
analisando os avanços e recuos do Estado Felizmente, o espírito da rebeldia ainda
sobrevive entre nós. Os documentos con-
fiscados pelo Departamento Estadual de
Ordem Política e Social do Estado de São
Paulo (Deops)– entre 1924-83 demonstram
que muitos são aqueles que andaram na
contramão do autoritarismo. Aliás, desde a
Proclamação da República em 1889, grupos
de “párias-subversivos” formaram frentes de
resistência publicando impressos anti-racis-
tas, formando redes de solidariedade e empre-
endendo ações afirmativas de sua identidade.
Os registros históricos expressivos das ações
da polícia política brasileira demonstram
que o governo republicano, em distintos
momentos, valeu-se de tribunais fortes para
investir contra um determinado grupo étnico
ou político. Em muitos casos, o cidadão sob
suspeita foi forçado a testemunhar contra si
mesmo pois estava desprotegido da coerção,
do abuso ou da tortura.

DO REGIME AUTORITÁRIO 13 Sobre esse tema – das “ janelas


d’alma” – ver: Lafer & Carneiro,

PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO 2004.


14 Projeto Principal 5 – Intolerância
Étnica & Política coordenado
DE DIREITO por Tucci Carneiro junto ao
Laboratório de Estudos sobre
a Intolerância (LEI) da USP e
desenvolvido pela equipe
Assim, o direito – instrumentalizado de pesquisadores do Projeto
pela razão – deve ser compreendido como Integrado Arquivo do Estado
(Proin)/USP – Inventário
um meio indispensável para indicar cami- Deops.

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nhos para a paz no plano mundial. Apesar Situações como essa sugerem uma mu-
de o direito brasileiro condenar e repudiar tação: do regime autoritário para o Estado
a prática do racismo – através do art. 5o democrático de direito que, em matéria
da Constituição de 1988 –, os negros e os de direitos humanos, institucionaliza “a
afrodescendentes continuam vulneráveis ao perspectiva dos governados que passam a
preconceito de raça e de classe. Apesar da ter direitos e não apenas deveres”. Mas, ao
evolução legislativa em nosso país, o anti- mesmo tempo, não podemos nos esquecer
semitismo – assim como na Europa e em que paradoxos persistem nesta era dos direi-
alguns países do Oriente Médio – persiste tos, em que a sobrevivência da democracia
como uma das formas mais contundentes depende da eleição de certos princípios
de racismo no Brasil. Infelizmente, temos básicos: a dignidade da pessoa humana e a
constatado que tais manifestações (racistas) igualdade de direitos. E dignidade implica
aparecem como um fenômeno de longa du- – além do respeito aos direitos humanos
ração; ou seja, a intolerância não é novidade – repúdio à discriminação de qualquer tipo,
e nem um fenômeno do século XX, “pois acesso a condições de vida digna e respeito
desde a história da humanidade, o homem mútuo nas relações interpessoais, públicas
seleciona, exclui, identifica os mais fortes, e privadas.
o mais belo, o mais valente”.
Enfim, o crime praticado pelo editor
Siegfried Ellwanger – proprietário da
editora Revisão em Porto Alegre (RS) O COMBATE À INTOLERÂNCIA
– se presta também como exemplo de
que o anti-semitismo sobrevive como Reafirmamos a idéia de que o homem
fenômeno social e pretexto político em não nasce com preconceitos e que o fanatis-
pleno século XXI, além de nos alertar mo é, na realidade, uma conduta aprendida16.
para a capacidade inesgotável do ser hu- É através da educação e da reconstituição
mano de fazer o mal. E se isso acontece, da memória histórica que podemos com-
o todo se converte em nada, porque o bater esse aprendizado de intolerância e
homem preocupado em julgar com base enfraquecer a ação dos fanáticos plurifa-
na mentira se abstém do passado histórico. cetados. O fato de o racismo, o fanatismo
É quando retrocedemos aos escombros e a irracionalidade se fazerem presentes
da ignorância; é quando a virtude se faz em quase todas as culturas e épocas da
sufocada pela intolerância, grande tema história da humanidade não quer dizer que
deste mundo contemporâneo. são invencíveis. No entanto, podemos nos
Ao penalizar Ellwanger por crime de apoiar em algumas certezas:
prática do racismo, nos termos do art. 5o, • que o terreno do fanatismo é pantanoso,
XLII, que integra o título II da Constitui- obscuro e complexo;
ção de 1988, o Supremo Tribunal Federal • que um passo adiante do fanatismo está
(STF) criou um leading-case de direitos a barbárie;
humanos em nosso país. Seria este um • que as ações do extremismo político e
sinal premonitório do progresso moral da racial generalizado, expresso geralmente
humanidade? O STF reafirmou, seguindo através da violência, não representam um
os ensinamentos de Bobbio, que “não fenômeno apenas europeu, mas mundial;
existem raças humanas mas seres huma- • que uma sociedade pluralista e sem pre-
nos”; que o “aval ao revisionismo histórico conceitos depende tanto do respeito mútuo
(negativo) ameaça o direito à verdade que como de uma visão mais ampla acerca do
traduz o anseio civilizatório de reconhe- outro;
cimento de gravíssimos fatos históricos • que a educação é uma das frentes de
15 Sobre essa questão ver: Milman,
2004.
atentatórios aos direitos humanos”; e que luta para combater a ignorância, estágio de
o “anti-semitismo é, sim, uma prática de (des)razão propício à fermentação do ódio
16 Sobre essa questão ver: Martin-
Cano, 2002-03. racismo”15. racial.

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REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 6-13, março/maio 2006 13

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