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PARA UMA FILOSOFIA 
DO ATO RESPONSÁVEL 
 
 

Pedro & João Editores
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Mikhail M. Bakhtin 
 

PARA UMA FILOSOFIA 
DO ATO RESPONSÁVEL 
 
 
 
 
Organizado por Augusto Ponzio e Grupo de Estudos 
dos Gêneros do Discurso ‐ GEGE 
 
Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello  
e Carlos Alberto Faraco 
 
 
 

Pedro & João Editores 
2010 

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©  Copyright  –  Augusto  Ponzio  e  Pedro  &  João  Editores  e  Grupo  de 
Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE/UFSCar 
 
Título Original: “K filosofii postupka”, 1920‐24. 
Primeira edição em Filosofija i sociologia nauki i techniki, Ezegodnik 1984‐
85, Moscou, Nauka 1986.  
Edição  revisada  em  Bakhtin,  Sobranie  socinenij  [Raccolta  delle  opere], 
vol  I,  Moscou,  Russkie  slovari,  2003.  A  tradução  italiana  que  aqui  foi 
utilizada é a partir desta edição. Tradução do russo de Luciano Ponzio 
© 2009 PensaMultimedia s,.r.l. 
Todos  os  direitos  reservados.  Qualquer  parte  desta  obra  pode  ser  re‐
produzida  ou  transmitida  ou  arquivada,  desde  que  levados  em  conta 
os direitos. 
 
BAKHTIN, Mikhail M. 
 
Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro & João 
Editores, 2010. 140 p. 
 
ISBN 978‐85‐99803‐85‐7 
 
1.  Ato  Responsável.  2.  Discurso  e  Ética.  3.  Filosofia  moral.  4.  Lin‐
guagem e vida. 5. Autor. I. Título. 
CDD – 410  
 
 
Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira 
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito 
& Valdemir Miotello 
 
Conselho Científico: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley 
Geraldi (Unicamp/Brasil); Roberto Leiser Baronas (UFS‐
Car/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria 
Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Dominique Maingueneau 
(Universidade de Paris XII); Maria da Piedade Resende da 
Costa (UFSCar/Brasil).  
 
 
 
 
 
 
 
Pedro & João Editores 
Rua Tadão Kamikado, 296  
Parque Belvedere 
pedroejoaoeditores@terra.com.br 
13568‐878 ‐ São Carlos – SP 
2010 

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INTRODUÇÃO 
 
 
 
A concepção bakhtiniana do ato  
como dar um passo 
 
Augusto Ponzio 
 
 
“K  filosofii  postupka”  é  o  título  dado  por  Sergei 
Bocarov a este texto, do início dos anos vinte, des‐
provido de título e das primeiras oito páginas (das 
complexas  cinquenta  e  duas,  conforme  a  numera‐
ção do autor), quando o publicou em 1986. 
Nas  traduções  italianas  anteriores,  por  mim 
organizadas  (1994  e  1998),  diferentemente  daquela 
em  Mastroiani  1993  (“Para  uma  filosofia  do  ato”, 
pp.  103‐164),  foi  dado  o  título  “Para  uma  filosofia 
da ação responsável”. “Ação” não é uma boa esco‐
lha.  Trata‐se  de  um  ato,  como  nas  expressões  “no 
ato de...”, “ato de fala”, “ato falho”. Bakhtin, neste 
texto,  fala  de  “ato  de  pensamento,  de  sentimento, 
de desejo” e diz que “tudo é um ato meu, também 
o pensamento e o sentimento”. 
No uso que foi feito na Itália, “filosofia do ato” 
leva  a  pensar  na  filosofia  de  Giovanni  Gentile.  No 
âmbito anglófono Philosophy of the act leva a pensar 
na obra do filósofo americano George H. Mead, de 
1938,  que  tinha  esse  título.  Todavia  a  tradução  da 
edição americana é “Toward a Philosophy of the Act” 
(1993, 2a.ed. 1995;). 
“Postupok”, ato, contém a raiz “stup” que signi‐
fica  “passo”,  ato  como  um  passo,  como  iniciativa, 

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movimento, ação arriscada, tomada de posição. “Os 
dados  estão  lançados”,  “coup  de  dés”.  Na  língua 
francesa referir‐se ao passo é na negação (ou dene‐
gação): “ne...pas”, “pas du tout”.  
Na sua relação com “dar um passo”, “postupok” 
lembra  uma  outra  expressão  que  Bakhtin  usa,  a 
partir do texto “O autor e o herói na atividade esté‐
tica”, (também dos anos 20), e que assume uma im‐
portância central para a delineação do seu conceito 
de  “extralocalização”,  de  “exotopia”,  “vnenakodi‐
most”,  o  achar‐se  fora  ou  o  colocar‐se  fora  de  uma 
maneira única, absolutamente outra, não equipará‐
vel,  singular.  “Transgrediente”,  de  fato,  significa 
também dar um passo, um passo fora de qualquer 
alinhamento,  combinação,  sincronia,  semelhança, 
identificação. Este termo vem do latim transgredo; e 
em  inglês  equivale  a  step  across,  step  over,  “passar 
através de”, “passar além de”. 
“Postupok”  é  um  ato,  de  pensamento,  de  sen‐
timento, de desejo, de fala, de ação, que é intencio‐
nal,  e  que  caracteriza  a  singularidade,  a  peculiari‐
dade, o monograma de cada um, em sua unicidade, 
em sua impossibilidade de ser substituído, em  seu 
dever responder, responsavelmente, a partir do lu‐
gar  que  ocupa,  sem  álibi  e  sem  exceção.  Bakhtin, 
em  relação  a  postupok,  utiliza  o  verbo  postupatʹ  co‐
mo  agir,  no  sentido  do  que  acabamos  de  apresen‐
tar,  de  dentro  e  em  consideração  ao  lugar  próprio, 
único, singular. 
Na edição que aqui se apresenta, demos ao tex‐
to o título: “Para uma filosofia do ato responsável”. 
“Ato  responsável”  é  uma  expressão  recorrente  no 
texto de Bakhtin. Ela indica um conceito central da 
reflexão  bakhtiniana.  Responsável  também  no  sen‐
tido  de  “responsivo”.  Também  em  russo  otvest‐

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vennyi  (responsável)  lembra  otvetnyj,  responsivo. 
Na  obra  de  Bakhtin  se  encontra  frequentemente  o 
conceito  de  “compreensão  responsiva  que  salienta 
a  conexão  entre  compreensão  e  escuta,  escuta  que 
fala, que responde, mesmo que não imediata e dire‐
tamente;  por  meio  da  compreensão  e  ʹpensamento 
participanteʹ ucastnoe myslenie, ʹpensamento partici‐
panteʹ”. 
“Para uma filosofia do ato responsável” é, sem 
dúvida,  interessante,  além  do  seu  intrínseco  valor 
teórico,  por  abarcar  a  obra  completa  de  Bakhtin  e 
ter em si todo o significado complexo do seu itine‐
rário de investigação que chega até a primeira me‐
tade dos anos 70. 
Mikhail Bakhtin (1895‐1975) é geralmente con‐
siderado  um  crítico  literário  ou  um  teórico  da  lite‐
ratura,  particularmente  na  Itália,  malgrado  [ou, 
‘não obstante’] quase toda sua obra, aí incluídos os 
textos do assim chamado “Círculo de Bakhtin”, ter 
sido traduzida para o italiano por volta da metade 
dos anos 70 (o livro sobre Dostoiévski, na edição de 
1963,  já  tinha  sido,  contudo,  publicado  em  italiano 
em 1968). Bakhtin, ele mesmo, fazendo um balanço, 
nos últimos anos de sua vida, sobre seu trabalho de 
estudo  e  investigação,  define‐se  “filósofo”,  e  este 
texto sobre “filosofia do ato”, que se coloca no iní‐
cio de sua produção, o confirma plenamente. 
 
D: Mas o senhor não era também um classicista?.. 
B: Eu era já... Eu era um filósofo. Veja, eu diria assim... 
D: O Sr. era mais filósofo que filólogo? 
B: Filósofo, mais que filólogo. Filósofo. E assim permaneci 
até hoje. Sou um filósofo. Sou um pensador. 
 
Este diálogo faz parte da primeira de seis con‐
versas realizadas no período de 22 de fevereiro a 23 

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de  março  de  1973,  entre  Bakhtin  (B.)  e  Victor  D. 
Duvakin (D), e que foram publicadas em russo em 
primeira edição em 1996, e em segunda edição em 
2002 (trad. it. M. Bakhtin, In Dialogo, 2008:120. Tra‐
dução  em  português:  Mikhail  Bakhtin  em  diálogo  – 
conversas de 1973 com V. Duvakin. Pedro & João Edi‐
tores, 2008:45). 
O  tema  deste  texto  está  estreitamente  ligado 
com  o  amplo  trabalho  de  Bakhtin,  mesmo  com  a‐
quele do início dos anos 20, publicado na coletânea 
dos  escritos  de  Bakhtin,  Estetika  slovesnogo  tvorcest‐
va, de 1979, com o título “O autor e o herói na ati‐
vidade estética”, em especial com seu primeiro  ca‐
pítulo.  Este  primeiro  capítulo  que,  por  seu  caráter 
fragmentário, foi excluído daquela publicação e da 
correspondente  tradução  italiana  (1988),  foi  publi‐
cado,  no  original  russo,  também  no  volume  de 
1986, organizado por Bocarov. Sua primeira tradu‐
ção italiana apareceu no volume de 1993, organiza‐
do por Jachia e Ponzio, Bacthin e... Averincev, Benja‐
min,  Freud,  Greimas,  Marx,  Peirce,  Valéry,  Welby, 
Yourcenar,  com  o  título  “O  Autor  e  o  Herói  na  ati‐
vidade estética. Fragmento do primeiro capítulo” (a 
tradução  inglesa  deste  fragmento  encontra‐se  em 
Bakhtin, Art and answerability, pp. 208‐231). 
A associação entre estes dois textos, “Para uma 
filosofia  do  ato  responsável”  e  o  “Fragmento  do 
primeiro capítulo” de “O autor e o herói”, além de 
decorrer do fato de ambos pertencerem a um mes‐
mo projeto de pesquisa, no qual o segundo é a con‐
tinuação do discurso do primeiro, é imediatamente 
visível pela repetição de alguns passos e pela esco‐
lha do mesmo texto literário como objeto de análi‐
ses, ou seja, a poesia de Pushkin, “Razluka” (“Sepa‐
ração”). 

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“Para uma filosofia do ato responsável”, que é 
somente  o  início  de  um  vasto  projeto  filosófico, 
consiste  de  dois  amplos  fragmentos:  a  introdução 
(privada  de  algumas  páginas  iniciais)  provavel‐
mente, ao tal projeto, que aqui parece especificar‐se 
como a realização de um livro de filosofia moral, e 
uma  outra  seção  intitulada  pelo  autor  “Primeira 
parte”. 
Isto deve ser dito antes de tudo, até porque a‐
qui  se  apresenta  um  trabalho  de  tradução,  e  a  lin‐
guagem deste texto é bastante peculiar. 
Em  grande  parte  é  uma  linguagem  construída 
por Bakhtin sobre as pegadas da linguagem filosó‐
fica contemporânea (e também obviamente, da lin‐
guagem clássica de onde parte) da Europa Ociden‐
tal,  particularmente  a  alemã.  Bakhtin  constrói  em 
russo a linguagem filosófica que adota neste texto, 
inventa o próprio idioma, fazendo ele mesmo um tra‐
balho  de  tradução.  Desse  modo  a  tradução  dos 
termos  e  expressões  presentes  no  texto  russo  para 
ser transposta, no nosso caso, para o italiano [e para 
o  português]  deve,  de  qualquer  maneira,  fazer  re‐
missão  aos  termos  e  às  expressões  dos  quais  os 
termos  e  expressões  de  Bakhtin  são  já  uma  tradu‐
ção – uma tentativa de ajuste de contas. O trabalho 
solitário de Bakhtin não diz respeito apenas ao pe‐
ríodo  do  seu  exílio,  mas  também  a  sua  pesquisa 
toda, dado o seu caráter pioneiro. 
A propósito da linguagem em sua relação com 
o ato, na sua singularidade de ato responsável, Ba‐
khtin observa (esta e outras citações sem referência 
são  de  “Para  uma  filosofia  do  ato  responsável”, 
presente neste livro): 
 

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Historicamente a linguagem desenvolveu‐se a serviço do 
pensamento participante e do ato, e somente nos tempos 
recentes de sua história começou a servir ao pensamento 
abstrato.  A  expressão  do  ato  a  partir  do  interior  e  a  ex‐
pressão  do  existir‐evento  único  no  qual  se  dá  o  ato  exi‐
gem a inteira plenitude da palavra: isto é, tanto o seu as‐
pecto de conteúdo‐sentido (a palavra‐conceito), quanto o 
emotivo‐volitivo (a entonação da palavra), na sua unida‐
de.  E  em  todos  esses  momentos  a  palavra  plena  e  única 
pode  ser  responsavelmente  significativa:  pode  ser  a  ver‐
dade (pravda), e não somente qualquer coisa de subjetivo 
e fortuito. Não é necessário, obviamente, supervalorizar o 
poder  da  linguagem:  o  existir‐evento  irrepetível  e  singu‐
lar  e  o  ato  de  que  participa  são,  fundamentalmente,  ex‐
primíveis, mas de fato se trata de uma tarefa muito difícil, 
e uma plena adequação está fora do alcance, mesmo que 
ela permaneça sempre como um fim.  
 
Bakhtin usa frequentemente a expressão sobytie 
bytia (traduzimos bytia como “existir” ou, em certos 
casos,  “existência”:  v.  nota  1),  “existir‐evento”,  “e‐
xistir  como  evento”,  “evento  no  curso  do  existir”, 
do  alemão  Seins‐gescheben,  conceito  fenomenológi‐
co.  Coloca  em  campo  palavras  compostas,  como 
bytie‐sobytie  (“o  existir‐evento”,  “o  existir  como  e‐
vento”);  soderzhanie‐smysl,  “conteúdo‐sentido”, 
“conteúdo  como  sentido”;  akt‐diatelʹnostʹ,  uma  ati‐
vidade  que  se  exprime  em  uma  ação;  introduz  o 
conceito  de  venakodimost,  exotopia,  que  ocupa  um 
papel central em sua concepção estética e moral. 
Um termo‐chave de todo o discurso de Bakhtin 
é  Edinstvennji,  singular,  único,  irrepetível,  excep‐
cional, incomparável, sui generis, correspondente ao 
alemão einzig. Lembra o título da obra de Max Stir‐
ner,  Der  Einzigeund  sein  Eigentum  (1844); mas  aqui, 
diferentemente  do  indivíduo  egoísta  de  Stirner,  a 
referência é a uma unicidade, a uma singularidade, 
aberta a uma relação de alteridade consigo própria 

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e com os outros, uma singularidade em ligação com 
a  vida  do  universo  inteiro,  que  inclui  em  sua  fini‐
tude o sentido do infinito, e que, por certos aspec‐
tos,  lembra  “o  singular”  de  Soeren  Kierkegaard, 
autor bem conhecido por Bakhtin (como ele próprio 
diz,  em  sua  conversa  com  Duvakin,  antes  mesmo 
que  fosse  traduzido  para  o  russo).  “Muito  cedo... 
antes de ser traduzido para o russo, já conhecia So‐
eren Kierkegaard. [...] Dostoiévski é incrível, a pro‐
blemática era quase a mesma, quase com a mesma 
profundidade” (Bakhtin em diálogo, 2008:40‐1). 
Bakhtin  faz  uso  da  palavra  russa  obraz  para 
significar  o  que  em  alemão  é  Bild,  Gebild,  “ima‐
gem”, “configuração”. 
Usa  znachimostʹ,  “validade”,  para  significar  o 
mesmo  expresso  em  alemão  por  Geltung,  Gelten; 
tsennstnaia znacimostʹ para Wertgeltung. 
Emprega  dolzenstvovanie  para  referir‐se  ao  de‐
ver no sentido do Sollen kantiano, o que me obriga; 
mas aqui, diferente de Kant, como veremos, não em 
sentido universal, mas ao contrário, no sentido [de] 
que eu sozinho, e nenhum outro no meu lugar, de‐
vo responsavelmente fazer, de maneira não formal, 
não farisaica, não como uma impostura. 
Retoma  o  conceito  husserliano  de  Erlebnis,  co‐
mo  experiência  vivida  orientada,  e  que  está  inti‐
mamente  ligada  ao  conceito  de  postupok;  usa  usta‐
novka, atitude, no sentido de Einstellung. 
Introduz  a  expressão  ucastnoe  myslenie,  pensa‐
mento  participante,  não  indiferente,  em  alemão 
teilnehemendes Denken; 
Distingue “dannost” e “zadanost”, o que é dado, 
e o que é dado para ser feito, para ser alcançado’, o 
que  é  dado  como  tarefa,  equivalente,  em  língua  a‐
lemã, a aufgegeben e gegeben. 

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Retoma o conceito de Lebensphilosophie, filosofia 
da vida, mas tomando‐o em uma direção bem dife‐
rente  do  “vitalismo  contemporâneo”,  título  de  seu 
ensaio  publicado  em  1926,  em  uma  revista  de  bio‐
logia, sob o nome de seu amigo biólogo Kanaev, no 
qual,  também  com  relação  a  Bergson,  tinha  trans‐
formado‐o  em  objeto  de  crítica,  mas  sempre  apre‐
sentando‐a de maneira construtiva. 
Confere  a  “arquitetônica”,  também  um  termo 
usado por Kant, e a estrutura ou construção (stroni‐
e), que algumas vezes o acompanha, um caráter di‐
nâmico e suscetível de renovação, além de singular 
e  irrepetível,  concebendo‐o  como  evento:  estrutura 
arquitetônica do mundo como evento. 
Kant,  Hegel,  Kierkegaard,  Husserl,  Rickert, 
Spengler, Bergson, Dilthey, Simmel, Schopenhauer, 
Nietzsche,  Cohen,  Cassirer,  estes  são  alguns  dos 
autores de referência direta ou indireta, de cuja lei‐
tura Bakhtin traz não só o seu pensamento original, 
mas  a  linguagem  própria  necessária  para  concebê‐
lo em seu idioma, e para apresentá‐lo. 
Em sua parte introdutória, Bakhtin apresenta o 
problema da possibilidade de apreender o “caráter 
do evento” (sobytijnostʹ) único, singular, irrepetível, 
que  caracteriza  o  ato,  aquela  unidade  basilar  da  e‐
xistência de cada um, no seu valor e na sua unidade 
de vivo devir e de autodeterminação. No momento 
em que, a partir de um ponto de vista teórico – ci‐
entífico,  filosófico,  historiográfico  –  ou  estético,  se 
determina o sentido de tal ato, este último perde o 
caráter de evento único, que o é efetivamente como 
ato vivido, e assume um valor genérico, um signifi‐
cado abstrato. 
Mas  a  questão  não  é  simplesmente  se  é  possí‐
vel o conhecimento da singularidade, se é possível 

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uma  mathesis  singularis,  ou  antes  inevitavelmente, 
apenas  uma  mathesis  universalis.  Questão  bastante 
inusitada,  dado  que  resulta  óbvio  que  o  conheci‐
mento  deva  ser  necessariamente  conhecimento  do 
geral, procedendo por conceitos, por classificações, 
por montagem, sobre a base de conjuntos, de gêne‐
ros, nos quais o singular, de um modo ou de outro, 
reaparece  sob  a  forma  de  indivíduo  identificado 
pelo pertencimento a este ou àquele conjunto, a este 
ou àquele gênero.  
Trata‐se  também  de  uma  questão  que  toca  di‐
retamente a vida de cada um e que produz um pro‐
fundo  impacto  sobre  ela,  de  uma  questão  em  que 
entra em jogo a qualidade da vida, o reconhecimen‐
to  da  diferença  singular  de  cada  um,  pelo  fato  de 
que a organização social mesma, a modelagem cul‐
tural mesma da vida, funciona sobre a base de clas‐
sificações,  de  fechamentos,  de  atribuições  de  per‐
tencimento,  recorre  ao  gênero,  ao  universal  como 
condição  da  identificação,  da  diferenciação,  da  in‐
dividuação. 
Em  “Para  uma  filosofia  do  ato  responsável”, 
Bakhtin  rejeita  a  concepção  bastante  arraigada  e 
aceita  da  verdade  como  composta  de  momentos 
gerais, universais, como algo reiterável e constante, 
separado  e  contraposto  ao  singular  e  ao  subjetivo. 
Ele faz uma distinção entre a verdade, “istina”, co‐
mo  valor  abstrato,  a  veracidade,  o  verdadeiro,  co‐
mo  ideal  universalmente  incontestável,  mas  do 
qual  não  há  no  ato  o  reconhecimento  efetivo,  e  a 
verdade, “pravda”, como entonação do ato, como a 
sua  afirmação,  ou  seja,  para  o  qual  tende  e  pelo 
qual é aferida e o afere. 
“A  unidade  da  consciência  real,  que  age  de 
maneira  responsável”,  diz  Bakhtin,  “não  deve  ser 

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concebida  como  permanência  conteudística  de  um 
princípio, do direito, da lei e menos ainda do ser”: 
uma  clara  tomada  de  posição  contra  qualquer  for‐
ma  de  absolutização  dogmática,  aí  inclusa  a  onto‐
lógica.  Nenhum  princípio  ou  valor  subsiste  como 
idêntico e autônomo, como constante, separado do 
ato vivo do seu reconhecimento como princípio vá‐
lido ou valor. 
 
Não  é  o  conteúdo  da  obrigação  escrita  que  me  obriga, 
mas a minha assinatura colocada no final, o fato de eu ter, 
uma  vez,  reconhecido  e  subscrito  tal  obrigação.  E,  no 
momento  da  assinatura,  não  é  o  conteúdo  deste  ato  que 
me  obrigou  a  assinar,  já  que  tal  conteúdo  sozinho  não 
poderia  me  forçar  ao  ato  –  a  assinatura‐reconhecimento, 
mas  podia  somente  em  correlação  com  a  minha  decisão 
de assumir a obrigação – executando o ato da assinatura‐
reconhecimento; e mesmo neste ato o aspecto conteudísti‐
co não era mais que um momento, e o que foi decisivo foi 
o  reconhecimento  que  efetivamente  ocorreu,  a  afirmação 
– o ato responsável, etc.  
 
A  diferença  oficialmente  reconhecida  é  aquela 
da  identidade,  da  atribuição  a  um  conjunto,  uma 
diferença  indiferente  à  singularidade,  à  unidade,  à 
não  intercambialidade  de  cada  um.  Nesta  diferen‐
ça,  que  geralmente  funciona  por  oposição  binária, 
as  diferenças  singulares  são  canceladas,  e  o  que 
conta  é  a  diferença  do  gênero,  indiferente  às  dife‐
renças singulares que engloba e que está constituti‐
vamente em contraste, em oposição, com uma outra 
diferença de gênero, como condição mesma da sua 
identificabilidade. 
As relações sociais, as relações culturais, aque‐
las  reconhecidas,  oficialmente,  codificadas,  as  rela‐
ções  que  contam  juridicamente  são  relações  entre 
identidade do gênero, entre diferenças indiferentes 

14
à  singularidade,  relações  estruturalmente  estáveis 
por contraste e, portanto, relações opositivas e con‐
flitantes,  nas  quais  a  alteridade  de  cada  um  é  apa‐
gada, e nas quais, na melhor das hipóteses, vigora a 
tolerância do outro, mas sempre como tolerância do 
outro  que  pertence  ao  gênero,  do  outro  em  geral, 
cuja diferença é a da identidade do conjunto a que 
pertence. 
Cria‐se  assim  a  cisão  entre  dois  mundos  reci‐
procamente  impenetráveis  e  não  comunicantes:  o 
mundo não oficial da vida vivida, da vivência (como 
esta  expressão  soa  em  português  evitando  o  parti‐
cípio  passado),  e  o  mundo  oficial,  da  cultura,  do 
social  feito  das  relações  entre  identidades,  entre 
papéis, entre pertencimentos, entre diferenças indi‐
ferentes, entre indivíduos que, como tais, são indi‐
vidualizados  por  coordenadas  que  os  assumem 
como  representativos  deste  ou  daquele  conjunto. 
De um lado, a singularidade de cada um, a sua uni‐
cidade,  a  sua  insubstituibilidade,  a  peculiaridade 
das  suas  relações,  dos  seus  vividos,  das  suas  coor‐
denadas espaçotemporais e axiológicas, a irrevoga‐
bilidade da sua responsabilidade sem álibi – e é es‐
ta  singularidade,  esta  unidade,  insubstituibilidade, 
que cada um tem, nos afetos, nas relações relegadas 
ao privado, nas relações de amor e de amizade. Do 
outro  lado,  as  relações  de  troca  entre  indivíduos 
que representam identidades, e, portanto, em cada 
caso  entre  conjuntos,  gêneros,  pertenças,  comuni‐
dades, classes, aglomerados, coletivos (a identidade 
individual  é  inevitavelmente  coletiva).  Aqui  o  re‐
conhecimento do outro no máximo alcança o nível 
da  imparcialidade,  da  paridade,  da  igualdade,  da 
justiça, do tratamento igual por todos os seus aná‐
logos,  pelos  seus  semelhantes,  mas  sempre  de  ma‐

15
neira não participativa, indiferente à singularidade, 
à diferença de cada um – ou antes, com a interdição 
da não indiferença nos seus confrontos. 
Mas a singularidade, a unicidade, a alteridade 
de  cada  um,  com  a  sua  participação  e  não  indife‐
rença  à  singularidade  dos  outros,  ao  outro  como 
único  e  insubstituível,  a  singularidade  com  a  sua 
responsabilidade  sem  álibis,  fica  por  enquanto  re‐
legada ao privado, à base do oficial, do público, do 
formal,  do  cultural,  da  identidade  com  a  sua  res‐
ponsabilidade garantida e delimitada de álibis. 
Tudo isso que é genérico adquire sentido e va‐
lor a partir do lugar único do singular, do seu reco‐
nhecimento,  na  base  do  seu  “não‐álibi  no  existir”. 
“Não‐álibi”  significa  “sem  desculpas”,  “sem  esca‐
patórias”,  mas  também  “impossibilidade  de  estar 
em outro lugar” em relação ao lugar único e singu‐
lar que ocupo no existir, existindo, vivendo. 
Um  valor  igual  a  si  mesmo,  reconhecido  como 
universalmente válido, não existe, pois sua validade 
é  reconhecida  e  condicionada  não  pelo  conteúdo 
tomado abstratamente, mas pela sua correlação com 
o lugar singular daquele que participa, determina e 
reconhece. Por exemplo: falando genericamente, ca‐
da homem é mortal, mas isso adquire sentido e valor 
somente a partir do lugar único de uma pessoa úni‐
ca,  e  o  sentido  e  o  valor  da  minha  morte,  da  morte 
do outro, do meu próximo, de cada homem real, da 
humanidade  inteira,  varia  profundamente  caso  a 
caso, já que são todos momentos diversos do existir‐
evento singular. Somente para um sujeito desencar‐
nado,  não  participante,  indiferente,  todas  as  mortes 
podem  ser  indiferentemente  iguais.  Mas  ninguém 
vive, diz Bakhtin, em um mundo em que todos são, 
em relação ao valor, igualmente mortais. 

16
Tudo isso que existe genericamente, como algo 
abstratamente  determinado,  apaga  a  diferença  sin‐
gular,  torna  inútil,  indiferente,  aleatório,  o  ato  sin‐
gular,  a  peculiaridade  sui  generis,  e  transforma  em 
plausíveis  questões  do  tipo  “quem  é  o  outro?”, 
“quem é o meu próximo?”. Mas nenhuma validade 
de sentido em si pode ser categórica e peremptória 
sem o reconhecimento e a participação do singular, 
nenhuma pode obrigar sem o seu consentimento. 
Inevitavelmente é no mundo vivido como sin‐
gularidade,  no  mundo  da  vivência  única,  que  cada 
um  se  encontra  quando  conhece,  pensa,  atua  e  de‐
cide; é daqui que participa do mundo em que a vi‐
da  é  transformada  em  objeto  e  situa  a  identidade 
sexual, étnica, nacional, profissional, de status soci‐
al, em um setor determinado do trabalho, da cultu‐
ra, da geografia política, etc. 
Por  isso,  o  que  unifica  os  dois  mundos  é  o  e‐
vento único do ato singular, participativo, não indi‐
ferente. 
Encontra‐se aqui a mesma problemática expos‐
ta  naquele  que  é  o  primeiro  escrito  publicado  de 
Bakhtin,  em  1919,  intitulado  “Arte  e  responsabili‐
dade”,  onde  a  questão  examinada  é  a  da  relação 
entre  arte  e  vida,  e  onde  a  solução  é  apresentada 
nos  mesmos  termos.  A  ciência,  a  arte  e  a  vida  ad‐
quirem unidade somente na pessoa que as incorpo‐
ra na sua unidade. Mas esta ligação, como acontece 
muitas  vezes,  pode  se  tornar  mecânica,  externa,  já 
que  falta  a  unidade  de  uma  dupla  responsabilida‐
de:  a  “responsabilidade  especial”,  isto  é,  a  respon‐
sabilidade que decorre da pertença a um todo, rela‐
tiva  a  um  determinado  setor  da  cultura,  a  um  de‐
terminado conteúdo, e a um certo papel e função, e, 
portanto, uma responsabilidade delimitada, defini‐

17
da,  referida  à  identidade  reiterável  do  indivíduo 
objetivo e intercambiável; e, de outra parte, a “res‐
ponsabilidade  moral”,  uma  “responsabilidade  ab‐
soluta”,  sem  limite,  sem  álibi,  sem  desculpa,  que 
por  si  só  torna  único,  irrepetível  o  ato,  enquanto 
responsabilidade  não  transferível  do  indivíduo.  O 
ato  é  por  isso,  diz  Bakhtin,  “Um  Jano  bifronte”,  ori‐
entado  em  duas  direções  diferentes:  a  singularida‐
de irrepetível, e a unidade objetiva, abstrata.  
A  ligação  entre  validade  objetiva,  abstrata,  in‐
diferente  e  a  unicidade  irrepetível  da  tomada  de 
posição, da escolha, não pode ser explicada a partir 
do interior do conhecimento teórico, e pela ação de 
um  sujeito  teórico,  abstrato,  de  uma  consciência 
gnoseológica,  precisamente  porque  tudo  isso  tem 
uma  validade  formal,  teórica,  indiferente  à  ação 
responsável  do  singular.  São  particularmente  im‐
portantes as considerações de Bakhtin sobre as con‐
sequências  da  separação  entre  validade  objetiva, 
abstrata,  indiferente  e  a  unicidade  irrepetível  da 
tomada de posição, da escolha; sobre as consequên‐
cias da autonomia do que tem uma validade técni‐
ca,  que  se  desenvolve  segundo  suas  próprias  leis 
imanentes, adquirindo um valor por si e um poder 
e um domínio sobre a vida do sujeito, uma vez que 
tenha  perdido  sua  união  com  a  viva  unicidade  do 
ato.  Tudo  o  que  tem  valor  formal  e  técnico,  uma 
vez separado da unidade singular da existência de 
cada  um  e  abandonado  à  vontade  da  lei  imanente 
de  seu  desenvolvimento,  pode  tornar‐se  qualquer 
coisa de terrível e irromper nesta unidade singular 
da vida de cada um como força irresponsável e de‐
vastadora. 
 Viver a partir de si mesmo, de seu próprio lu‐
gar  singular,  assevera  Bakhtin,  não  significa  viver 

18
para si, por conta própria; antes, é somente de seu 
próprio lugar único que é possível o reconhecimen‐
to  da  impossibilidade  da  não‐indiferença  pelo  ou‐
tro,  a  responsabilidade  sem  álibi  em  seus  confron‐
tos,  e  por  um  outro  concreto,  também  ele  singular 
e, portanto, insubstituível. Eu não posso fazer como 
se eu não estivesse aí; não posso agir, pensar, dese‐
jar, sentir como se eu não fosse eu, e cada identifi‐
cação de si mesmo falha em sua pretensão de iden‐
tificação  com  o  outro.  Mas,  ao  mesmo  tempo,  não 
posso  fazer  como  se  o  outro  não  estivesse  aí,  não 
um  outro  genérico,  mas  o  outro  na  sua  singulari‐
dade  que  ocupa  um  lugar  no  espaço‐tempo  e  na 
medida dos valores que eu não posso ocupar, pró‐
prio  pelo  não‐álibi  de  cada  um  no existir.  Cada  eu 
ocupa o centro de uma arquitetônica na qual o ou‐
tro  entra  inevitavelmente  em  jogo  nas  interações 
dos três momentos essenciais de tal arquitetônica, e 
portanto  do  eu,  segundo  a  qual  se  constituem  e  se 
dispõem todos os valores, os significados e as rela‐
ções  espaçootemporais.  Esses  são  todos  caracteri‐
zados em termos de alteridade e são: eu‐para‐mim, 
eu‐para‐o‐outro,  o  outro‐para‐mim.  Os  momentos 
de  tal  arquitetônica  são  de  Bakhtin.  Esses  são:  eu‐
para‐mim, o‐outro‐para‐mim, e eu‐para‐o‐outro. 
A  singularidade,  a  unicidade,  a  que  se  refere 
Bakhtin, de forma alguma tem relação com o indi‐
víduo  egoísta,  conforme  expresso  no  “único”  de 
Stirner, nem com um indivíduo associal, reduzido a 
uma  entidade  puramente  biológica,  confinado  na 
esfera  das  necessidades  fisiológicas,  e  no  qual  o 
corpo mesmo tenha sido suplantado pela abstração 
do organismo e a sua unidade tenha sido substituí‐
da pela divisão em órgãos. 

19
A efetivação desta confusão, desta substituição, 
desta  redução  depende  mesmo  da  separação  entre 
o mundo não oficial da vida vivida, da vivência, da 
diferença não‐indiferente, e o mundo oficial feito de 
relações  entre  identidades  que  expurgam,  interdi‐
tam, a diferença singular, e portanto do abuso deste 
último  sobre  o  primeiro.  A  unidade  e,  com  ela,  a 
singularidade  do  ato,  não  se  deixam  sufocar,  mas, 
em  consequência  da  separação  entre  estes  dois 
mundos, se reafirmam de forma errada, distorcida, 
degradada. 
A  crise  contemporânea,  diz  Bakhtin,  não  é  so‐
mente a crise do mundo da cultura, de seus valores: 
é também a crise do ato contemporâneo. 
 
Todas  as  forças  de  uma  realização  responsável  [otvetst‐
vennoe  svershenie]  se  retiram  para  o  território  autônomo 
da  cultura  e  o  ato  separado  delas  degenera  ao  grau  de 
motivação  biológica  e  econômica  elementar,  perdendo 
todas  as  suas  componentes  ideais:  é  esta  precisamente  a 
situação  atual  da  civilização.  Toda  a  riqueza  da  cultura 
está posta a serviço do agir biológico. A teoria deixa o ato 
à mercê de uma existência estúpida, exaure‐o de todos os 
componentes ideais e o submete a seu domínio autônomo 
fechado, empobrece o ato.  
 
Bakhtin  caracteriza  a  crise  contemporânea  co‐
mo  crise  da  ação  contemporânea  tornada  ação  téc‐
nica; identifica esta crise na separação entre a ação, 
com sua concreta motivação, e o seu produto, que, 
desse  modo,  perde  o  sentido.  Esta  é  uma  interpre‐
tação  muito  próxima  daquela  da  fenomenologia 
husserliana,  sobretudo  aquela  trabalhada  em  Crise 
da  ciência  europeia  (publicada  postumamente  em 
1954).  Mas  em  Bakhtin  o  sentido  não  é  conferido, 

20
como em Husserl (no qual permanece um certo teo‐
ricismo), pela consciência intencional, por um sujei‐
to  transcendental,  mas  pela  ação  responsável  que 
exprime  a  unicidade  do  ser  no  mundo  sem  álibi. 
Para Bakhtin “a filosofia da vida somente pode ser 
uma filosofia moral”. 
Além disso, Bakhtin coloca em evidência como 
a separação entre produto e ação responsável, entre 
aparato técnico‐científico e motivação concreta, en‐
tre cultura e vida, produz não somente a deteriora‐
ção do produto, a perda de sentido do mundo cul‐
tural  tornado  domínio  autônomo,  o  esvaziamento 
de sentido dos saberes, mas também a degradação 
da  própria  ação  que,  isolada  dos  significados  da 
cultura, empobrecida de seus momentos ideais, de‐
cai para o patamar de motivações biológicas e eco‐
nômicas  elementares;  portanto,  parece  que  fora  da 
cultura objetiva não há nada mais que a individua‐
lidade  biológica  nua,  o  ato‐necessidade.  Ao  consi‐
derar este aspecto, Bakhtin refere‐se explicitamente 
a  Spengler,  em  quem  nota  a  incapacidade  de  re‐
conduzir a teoria e o pensamento à ação como seus 
momentos, em vez de opô‐los a ela. Isto, ao contrá‐
rio,  só  é  possível  se  a  ação  for  assumida  em  toda 
sua  capacidade  valorizante  de  ação  responsável 
una e única, e distinta da ação técnica com sua res‐
ponsabilidade especial. 
Para Bakhtin, reside na singularidade do ato a 
possibilidade da religação entre cultura e vida, en‐
tre  consciência  cultural  e  consciência  viva.  Diver‐
samente,  os  valores  culturais,  cognitivos,  científi‐
cos,  estéticos,  políticos  tornam‐se  valores  em  si  e 
perdem  toda  possibilidade  de  verificação,  de  fun‐
cionalidade, de transformação. Bakhtin deixa explí‐
cito  como  esta  discussão  se  liga  a  uma  concepção 

21
hobbesiana e tem sua clara consequência política: à 
absolutização  dos  valores  culturais  corresponde  a 
concepção  de  que  o  povo  escolhe  uma  única  vez, 
renunciando à própria liberdade, entregando‐se ao 
Estado  e  transformando‐se,  daquele  momento  em 
diante, em escravo de sua livre decisão.  
À  delegação  da  responsabilidade,  como  dele‐
gação  política,  Bakhtin  retorna  em  um  ponto  de 
“Para uma filosofia do ato responsável”, quando se 
refere  à  representação política,  que,  frequentemen‐
te, seja em quem a atribui, seja em quem a assume, 
perde,  na  tentativa  de  um  tipo  de  alienamento  da 
responsabilidade política, o sentido do próprio  en‐
raizamento  na  participação  pessoal  única,  sem  áli‐
bis,  tornando  vazia  a  responsabilidade  especialista 
e formal, com todo o perigo que tal desenraizamen‐
to e a perda de sentido em cada caso comportam. 
O  meu  “não‐álibi  no  ser”  comporta  a  minha 
unicidade e insubstituibilidade, “transforma a pos‐
sibilidade vazia em ação responsável real”, confere 
efetiva validade e sentido a cada significado e valor 
de  outra  forma  abstrato,  “dá  um  rosto”  para  o  e‐
vento de outra maneira anônimo, faz de modo que 
não  exista  a  razão  objetiva  nem  a  subjetiva,  mas 
que  “cada  um  tenha  razão  no  seu  próprio  lugar,  e 
tenha  razão  não  subjetivamente,  mas  responsavel‐
mente”,  sem  que  isso  possa  ser  entendido  como 
“oposição”  a  não  ser  “por  alguma  terceira  consci‐
ência,  não  encarnada,  não  participante”  e  na  pers‐
pectiva  de  uma  dialética  abstrata,  não  dialógica, 
que  Bakhtin  explicitamente  colocará  em  discussão 
nos “Apontamentos de 1970‐71”. 
O  “não‐álibi  no  ser”  coloca  o  eu  em  relação 
com o outro, não segundo uma relação indiferente 
com  o  outro  genérico  e  enquanto  ambos  exempla‐

22
res  do  homem  em  geral,  mas  enquanto  coenvolvi‐
mento concreto, relação não indiferente, com a vida 
do  próprio  vizinho,  do  próprio  contemporâneo, 
com  o  passado  e  o  futuro  de  pessoas  reais.  Uma 
verdade abstrata referida ao homem em geral como 
“o  homem  é  mortal”,  adquire  sentido  e  valor,  diz 
Bakhtin, só do meu lugar único, como morte, neste 
caso,  do  meu  próximo,  como  minha  morte,  como 
morte de uma comunidade inteira, ou como possi‐
bilidade de aniquilação da humanidade inteira his‐
toricamente  real.  “E,  naturalmente,  o  sentido  do 
valor  emotivo‐volitivo  da  minha  morte,  da  morte 
do outro, do meu próximo, do fato da morte de ca‐
da  ser  humano  real,  varia  profundamente  caso  a 
caso, já que são todos momentos diferentes do exis‐
tir‐evento  singular.  Para  um  sujeito  desencarnado, 
não participante, todas as mortes podem ser indife‐
rentemente iguais. Mas nenhum vive em um mun‐
do no qual todos são ‐ em relação ao valor ‐ igual‐
mente mortais”. 
Desta  responsabilidade  sem  álibi  se  pode  cer‐
tamente  tentar  fugir,  mas  mesmo  as  tentativas  de 
alienar‐se  desta  responsabilidade  testemunham  o 
seu  peso  e  a  sua  presença  inevitável.  Cada  papel 
determinado, com a sua responsabilidade determi‐
nada,  especial,  “não  elimina”,  diz  Bakhtin,  “mas 
simplesmente  especializa  minha  responsabilidade 
pessoal”, ou seja, a responsabilidade moral sem de‐
limitação  e  garantias,  sem  álibi.  Separada  dessa 
responsabilidade  absoluta,  a  responsabilidade  es‐
pecial  perde  o  sentido,  torna‐se  casual,  uma  res‐
ponsabilidade técnica, e torna‐se simples represen‐
tação  de  um  papel,  simples  execução  técnica,  a  a‐
ção,  como  “atividade  técnica”  se  desrealiza  ou  se 
torna impostura. 

23
A  filosofia  moral,  que  Bakhtin  qualifica  como 
“filosofia primeira”, deve descrever “a arquitetôni‐
ca  concreta”  em  que  a  indiferença  do  indivíduo 
abstrato,  genérico,  intercambiável,  substituível  na 
sua  responsabilidade  estabelecida  e  circunscrita  à 
sua pertença a um todo, a um gênero, à sua adjudi‐
cação a uma determinada tipologia substitui a não‐
indiferença do indivíduo tornado único apenas por 
ser absolutamente insubstituível na sua responsabi‐
lidade diante da qual o acontecimento da sua exis‐
tência, sem álibi, o põe. 
A  filosofia  moral,  como  “filosofia  primeira”, 
deveria se ocupar de descrever o existir‐evento co‐
mo o conhece a ação responsável e não pode se va‐
ler da concepção kantiana e da retomada neokanti‐
ana (Bakhtin faz referência explícita a Herman Co‐
hen), que também deu ao problema da moral rele‐
vância particular. 
Bakhtin  acusa  de  teoricismo,  ou  seja,  de  “abs‐
tração do meu eu singular” a ética formal de Kant e 
dos neokantianos: 
 
Assim, o teoricismo fatal – a abstração do meu eu singu‐
lar – ocorre também na ética formal: aqui, o mundo da ra‐
zão  prática  é  em  realidade  um  mundo  teórico,  e  não  o 
mundo no qual o ato é realmente executado. [...] Aqui não 
existe nenhuma aproximação possível com o ato vivo no 
mundo real. O primado da razão prática é, na realidade, o 
primado de um domínio teórico sobre todos os outros, e 
isto se dá somente porque é o domínio da forma mais va‐
zia e improdutiva do que é universal. A lei da conformi‐
dade à lei é uma fórmula vazia do puro teoricismo. Nun‐
ca uma razão prática semelhante pode fundar uma filoso‐
fia primeira. O princípio da ética formal não é de fato um 
princípio do ato, mas o princípio da generalização possí‐
vel dos atos já dados na sua transcrição teórica.  
 

24
A ética formal de Kant e dos neokantianos não 
conseguiu  libertar‐se  do  defeito  da  ética  material, 
que  consiste  na  concepção  da  universalidade  do 
dever ser. A categoria do dever, precisamente con‐
siderada  categoria  da  consciência,  é  entendida  co‐
mo categoria da consciência teórica, como categoria 
universal, portanto teorecizada; o imperativo é con‐
cebido como universal, e, como consequência, a fi‐
losofia  kantiana  e  neokantiana  não  são  capazes  de 
dar conta do ato singular. 
Em Kant e nos neokantianos, observa Bakhtin, 
o imperativo categórico é subordinado à sua capa‐
cidade de ser universal; o ato singular é justificado 
por sua capacidade de tornar‐se norma de compor‐
tamento geral; a vontade criativamente ativa no ato 
cria  uma  lei  a  que  se  submete  alienando‐se  no  seu 
produto. O mundo da razão prática da ética formal 
kantiana e neokantiana não é o mundo concreto do 
ato  responsável,  mas  o  mundo  da  sua  transcrição 
teórica. 
Bakhtin se opõe à ética kantiana não porque ela 
pretende ser uma ética formal, uma filosofia do pri‐
mado da razão prática, nem porque ela se apresen‐
ta  como  baseada  no  método  transcendental,  mas 
porque ela não consegue estar efetivamente à altura 
deste programa, à altura da sua própria denomina‐
ção.  De  modo  que  “uma  filosofia  moral  do  gênero 
pode e deve ser criada, mas certamente se pode e se 
deve criar uma outra, que mereça mais – ainda que 
não exclusivamente – tal nome”. 
Na  seção  que,  em  “Para  uma  filosofia  do  ato 
responsável”,  vem  depois  da  introdução  e  que  é 
indicada  como  “Primeira  Parte”,  Bakhtin  afronta 
concretamente  a  questão  de  como  seria  possível 
considerar  e  descrever  a  arquitetônica  segundo  a 

25
qual se constrói e organiza a unicidade e a unidade 
de  um  mundo  não  abstratamente  sistemático,  mas 
concretamente‐arquitetônico sobre um plano avali‐
ativo e espaçotemporal, a partir do lugar único que 
cada  um  ocupa  de  modo  insubstituível,  enquanto 
centro  participativo  e  não  indiferente,  na  sua  res‐
ponsabilidade sem álibi. 
A  compreensão  de  tal  arquitetônica  não  seria 
possível  se  efetuada  pelo  mesmo  sujeito  em  torno 
do  qual  esta  se  organiza,  se  desdobrada  pelo  mes‐
mo  eu  e,  consequentemente,  em  um  discurso  per‐
tencente  ao  gênero  “confessional”  ou  a  um  gênero 
qualquer  do  discurso  direto,  como  tal  incapaz  de 
ter  dela  uma  visão  total.  Nem  a  sua  compreensão 
pode ser feita a partir de um ponto de vista cogni‐
tivo,  não  emotiva  e  avaliativamente  participativo, 
de  um  ponto  de  vista  objetivo,  indiferente,  que  é 
incapaz de compreender o que descreve e terminaria, 
por  isso,  por  empobrecê‐lo,  e  com  isso  perder  de 
vista  os  detalhes  que  o  deixam  vivo  e  inacabado. 
Mas  também  não  pode  basear‐se  na  identificação 
de si mesmo, que seria também esta, se fosse possí‐
vel,  um  empobrecimento  enquanto  redução  a  uma 
só  visão  do  relacionamento  de  duas  posições  reci‐
procamente externas e não intercambiáveis. 
Para  Bakhtin  a  interpretação‐compreensão  da 
arquitetônica  pressupõe  que  ela  se  realize  a  partir 
de uma posição externa, extralocalizada, exotópica, 
outra, diferente e ao mesmo tempo não indiferente, 
mas participativa. Postam‐se assim dois centros de 
valor, aquele do eu e aquele do outro, que são “os 
dois  centros  de  valor  da  própria  vida”,  em  torno 
dos  quais  se  constitui  a  arquitetônica  do  ato  res‐
ponsável. E é preciso que estes dois centros de va‐
lor  permaneçam  reciprocamente  outros,  que  se 

26
mantenham  como  o  relacionamento  arquitetônico 
de dois outros, por aquilo que diz respeito ao ponto 
de vista espaçotemporal e axiológico. 
Então,  Bakhtin,  em  “Para  uma  filosofia  do  ato 
responsável”,  identifica  como  exemplo  de  uma  vi‐
são deste tipo aquela que se realiza na arte, especi‐
ficamente  na  arte  verbal,  na  literatura,  que  é  tam‐
bém  uma  visão  arquitetônica  organizada  em  torno 
daquele centro de valor que é o ser humano singu‐
lar em sua unicidade, insubstituibilidade, precarie‐
dade,  mortalidade,  em  relação  à  qual  expressões 
como antes, depois, ainda, quando, nunca, tarde, no fim, 
já,  necessário,  obrigatório,  além,  perto,  longe  perdem, 
diz  Bakhtin,  todos  os  seus  significados  abstratos  e 
se enchem a cada vez – em relação à situação emo‐
tivo‐volitiva deste centro participativo – de um sen‐
tido concreto. 
Portanto,  na  escrita  literária,  Bakhtin  encontra 
realizada  a  compreensão  da  arquitetônica  que  sua 
filosofia moral, ou filosofia primeira, se propõe: es‐
ta instaura uma relação que permite a manutenção 
da alteridade do centro de valor de tal arquitetôni‐
ca,  que  é  considerado  de  um  ponto  de  vista  trans‐
grediente,  extralocalizado,  exotópico,  por  sua  vez 
único  e  outro.  Trata‐se  exatamente  do  relaciona‐
mento autor e herói no âmbito do texto literário.  
Para  melhor  clarear  a  disposição  arquitetônica 
da  visão  da  escrita  literária,  Bakhtin  a  analisa  em 
uma  obra  determinada,  a  poesia  de  Pushkin  “Ra‐
zluka” (“Separação”). 
A partir daqui inicia‐se o percurso sucessivo da 
pesquisa de Bakhtin que, tendo encontrado no pon‐
to  de  vista  da  escrita  literária  a  possibilidade  da 
descrição  da  arquitetônica  assim  como  pretendia 
apresentá‐la,  se  dedicará  a  estudar  este  ponto  de 

27
vista,  de  tal  maneira  que  aquilo  que  aqui  era  para 
ser apenas um exemplo, acabará por ocupá‐lo pelo 
resto de sua vida. 
É importante também notar que Bakhtin dá iní‐
cio à sua aproximação com a visão literária a partir 
do gênero lírico e reencontra originariamente nele a 
relação de alteridade dialógica entre pontos de vista 
diferentes. Isto põe por terra a errônea interpretação 
que vê Bakhtin como sendo pouco atento ao gênero 
lírico e que lhe atribui a contraposição entre gêneros 
que seriam monológicos, como em especial o gênero 
lírico,  e  gêneros  dialógicos,  como  em  particular  o 
romance. 
À  luz do texto sobre a  filosofia do  ato respon‐
sável  torna‐se,  além  do  mais,  plenamente  compre‐
ensível o percurso que conduziu Bakhtin à sua mo‐
nografia, publicada em 1929, sobre Dostoiévski, em 
que “filosofia”, constituída, evidentemente, por Ba‐
khtin, não a partir de determinadas concepções, de 
posições  determinadas  dos  heróis  de  seus  roman‐
ces,  de  certos  conteúdos  das  suas  obras,  mas  no 
movimento  abrangente  de  reorientação  a  partir  do 
princípio dialógico como efetiva estrutura da obra, 
Bakhtin reencontra a arquitetônica proposta em seu 
escrito  sobre  a  filosofia  moral.  O  “romance  polifô‐
nico” de Dostoiévski obtém uma descrição da per‐
sonagem não mais como poderia descrevê‐la um eu 
que  a  assuma  como  objeto,  mas  enquanto  centro 
“outro”, segundo o qual se organiza o seu mundo. 
 
 Não é por acaso que Dostoiévski obriga Makár Diévuch‐
kin a ler O Capote de Gógol e encará‐lo como novela sobre 
si mesmo, como um “pasquim” de si mesmo. (...) 
 Dostoiéski realizou uma pequena revolução copernicana, 
fazendo do que era uma estável e completa determinação 

28
do  autor  um  momento  da  autoderterminação  da  perso‐
nagem. (…). 
 (…) Na figura da personagem do Capote, Devuskin se vê, 
por assim dizer, avaliado, medido e definido em profun‐
didade: você está todo aqui, e em você não há mais nada, 
e de você não há outra coisa para dizer. Ele se sente irre‐
mediavelmente predeterminado e acabado, como já mor‐
to  antes  de  morrer,  e  ao  mesmo  tempo  sente  também  a 
falsidade de uma tal atitude. (…) 
 O sentido sério, profundo desta revolta pode‐se exprimir 
assim: não se pode transformar o homem vivo em objeto 
mudo de um conhecimento exterior completamente defi‐
nidor. No homem há sempre alguma coisa que só ele pode des‐
cobrir no ato livre da autoconsciência e da palavra, que não se 
sujeita à determinação externa e exteriorizante. 
 (…) A verdadeira vida da pessoa é acessível apenas a um 
enfoque dialógico diante do qual ela se revela livremente 
em resposta (Bakhtin, 1963, trad. It: 66 e seg.)  
 
É este então o itinerário de Bakhtin que se con‐
figura desde o seu primeiro trabalho até a publica‐
ção  em  1929  da  monografia  sobre  Dostoiévski:  ele 
parte de uma refundação da filosofia e percebe que 
as  exigências  estabelecidas  nos  seus  prolegômenos 
para uma filosofia do ato responsável têm a efetiva 
possibilidade  de  realização  na  escrita  literária,  en‐
quanto esta é mais ou menos capaz, segundo os gê‐
neros e subgêneros literários, de colocar‐se fora da 
dimensão de identidade e da diferença‐indiferença 
e delinear, de um ponto de vista participativo e não 
indiferente,  uma  arquitetônica  da  alteridade.  Um 
itinerário  que  passa  também  pelo  trabalho  do  Cír‐
culo  Bakhtiniano  (como  aparece  nos  escritos  reco‐
lhidos  em  Bakhtin,  Kanaev,  Medvedev,  Voloshi‐
nov, 1995, e naqueles publicados por Voloshinov na 
segunda  metade  dos  anos  20);  e  que,  baseado  no 
interesse  inicial  por  uma  filosofia  do  ato  responsá‐
vel,  alcança,  coerentemente,  o  interesse  por  uma 

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filosofia da escrita literária, onde da escrita literária é 
genitivo  subjetivo:  não  uma  visão  filosófica  à  qual 
submeter tal escrita, mas uma perspectiva filosófica 
que a arte verbal torna possível. 
 
 
 
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2006b   La cifrematica e l’ascolto, Bari, Graphis. 
2006b   Produzione linguistica e ideologia sociale (1a ed 1973; nuova 
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2008    Tra Bakhtin e Lévinas, Scrittura, dialogo, alterità, Bari, Pa‐
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34
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zio, 2005, M. M. Bakhtin, Freud e il freudismo, a cura di A. 
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linguaggio, a cura di A. Ponzio, Lecce, Manni 
 

35
36
 
 
 
 
Para uma filosofia do ato responsável 
 
 
 
 
<...> Também a atividade estética não consegue 
ligar‐se a esta característica do existir1 que consiste 
na  sua  contingência  e  no  seu  caráter  de  evento2  a‐
berto; e o produto da atividade estética, no sentido 
que lhe é próprio, não é o existir em seu efetivo de‐
vir, e, no que concerne à sua existência, ele se inte‐
gra no existir mediante o ato histórico de uma ativa 
percepção estética. A percepção estética não conse‐

1  Bytie: existir. Significa também ser, mas aqui a referência é ao 
existir. As traduções espanhola e francesa usam “ser” (ser, ê‐
tre); mas, aqui e ali, usam também, respectivamente, existên‐
cia e existence. Na tradução inglesa, Being, Ser, com maiúscula. 
A  sombra  de  Heidegger!  Além  disso,  existe  uma  passagem 
do texto de Bakhtin em que há uma tomada de posição avant 
la lettre contra a ontologia de tipo heideggeriano. Bytie, exis‐
tir, e sobitye, evento. Sobytijnost, “carácter de evento”, ao qual 
preferimos a “eventicidade”. Esta e outras notas são do cura‐
dor em colaboração com o tradutor italiano, levando em con‐
ta as notas de rodapé do texto em russo de Bakhtin, Sobranie 
socinenij [Coletânea das obras], vol. I, e das traduções preceden‐
tes italianas e estrangeiras. As referências às traduções ingle‐
sa,  espanhola  e  francesa  dizem  respeito,  respectivamente,  à 
edição americana, 1993 (2° ed. 1995), à castelhana de 1997 e à 
francesa de 2003: v., também para as referências às traduções 
italianas precedentes de 1994 e de 1998, a bibliografia da “In‐
trodução” neste livro.) 
2  Sobytijnostʹ:  eventicidade;  trad.  Inglesa:  event‐ness;  francesa: 

éveneméntialitè; espanhola: carácter de acontecer. 

37
gue  também  apreender  a  unicidade  do  evento  sin‐
gular, porque as imagens que configura são objeti‐
vadas,  ou  seja,  são  retiradas,  em  seu  conteúdo,  do 
devir  efetivo  e  singular3,  e  não  participam  dele 
(participam somente como momento da consciência 
viva e vivente do contemplador).  
A  característica  que  é  comum  ao  pensamento 
teórico discursivo4 (nas ciências naturais e na filoso‐
fia), à representação‐descrição histórica e à percep‐
ção estética e que é particularmente importante pa‐
ra a nossa análise, é esta: todas essas atividades es‐
tabelecem uma separação de princípio entre o con‐
teúdo‐sentido  de  um  determinado  ato5‐atividade  e 
a realidade histórica de seu existir, sua vivência re‐
almente  irrepetível;  como  consequência,  este  ato 
perde  precisamente  o  seu  valor,  a  sua  unidade  de 
vivo  vir  a  ser  e  autodeterminação.  Somente  na  sua 
totalidade  tal  ato  é  verdadeiramente  real,  participa 
do existir‐evento6; só assim é vivo, pleno e irreduti‐
velmente,  existe,  vem  a  ser,  se  realiza.  É  um  com‐
ponente real, vivo, do existir‐evento: é incorporado 
na  unidade  singular  do  existir  que  se  vai  realizan‐
do,  mas  esta  incorporação  não  penetra  em  seu  as‐
pecto  de  conteúdo‐sentido7,  que  reivindica  a  com‐

3  Edinstvennji,  singular,  único,  irrepetível,  excepcional,  incom‐


parável, sui generis corresponde ao alemão einzig. 
4  Teórico: especulativo (do grego theoretikós). Discursivo: adje‐

tivo  que  corresponde  ao  sentido  da  palavra  grega  dianoia,  e 


designa  o  proceder,  no  raciocínio,  derivando  conclusões  a 
partir  de  premissas  e  tendo  a  ver  com  “causas  e  princípios” 
(Aristóteles, Metafisica, v, 1, 1025 b 25). 
5  Aqui, como logo adiante, é akt, não postupok. 

6  Bytie‐sobytie. Também “existir como evento”. 

7  Soderzanie‐smysl: Conteúdo‐sentido. “Sentido” como “signifi‐

cado contextual”. Em Voloshinov, 1929 (Marxismo e filosofia 

38
pleta  e  definitiva  autodeterminação  na  unidade  de 
um  determinado  domínio  de  sentido  –  da  ciência, 
da  arte,  da  história:  embora,  como  mostramos,  es‐
ses domínios objetivos, fora do ato que os envolve, 
não são, em si, reais. Como resultado, dois mundos 
se  confrontam,  dois  mundos  absolutamente  inco‐
municáveis e mutuamente impenetráveis: o mundo 
da cultura e o mundo da vida (este é o único mun‐
do em que cada um de nós cria, conhece, contempla 
vive e morre) – o mundo no qual  se objetiva  o ato 
da atividade de cada um e o mundo em que tal ato 
realmente,  irrepetivelmente,  ocorre,  tem  lugar.  O 
ato  da  atividade  de  cada  um,  da  experiência  que 
cada  um  vive8,  olha,  como  um  Jano  bifronte,  em 
duas  direções  opostas:  para  a  unidade  objetiva  de 
um domínio da cultura e para a singularidade irre‐
petível  da  vida  que  se  vive,  mas  não  há  um  plano 
unitário  e  único  em  que  as  duas  faces  se  determi‐
nem  reciprocamente  em  relação  a  uma  unidade  ú‐
nica.  Somente  o  evento  singular  do  existir  no  seu 
efetuar‐se pode constituir esta unidade única; tudo 
o  que  é  teórico  ou  estético  deve  ser  determinado 
como  momento  do  evento  singular  do  existir,  em‐
bora não mais, é claro, em termos teóricos e estéti‐
cos. O ato deve encontrar um único plano unitário 
para refletir‐se em ambas as direções, no seu senti‐
do  e  em  seu  existir;  deve  encontrar  a  unidade  de 
uma responsabilidade bidirecional, seja em relação 
ao  seu  conteúdo  (responsabilidade  especial),  seja 
em relação ao seu existir (responsabilidade moral), 

da  linguagem),  encontramos  a  diferença  Znacenie  e  smysl, 


significado abstrato e sentido atual. 
8  Experiência vivida: em espanhol e em português existe vivên‐

cia,  palavra  peculiar  e  sem  ser  particípio  passado:  o  Erlebnis 


de Edmund Husserl. 

39
de  modo  que  a  responsabilidade  especial  deve  ser 
um momento incorporado de uma única e unitária 
responsabilidade  moral.  Somente  assim  se  pode 
superar  a  perniciosa  separação  e  a  mútua  impene‐
trabilidade entre cultura e vida. 
Cada  um  de  meus  pensamentos,  com  o  seu 
conteúdo,  é  um  ato  singular9  responsável  meu;  é 
um dos atos de que se compõe a minha vida singu‐
lar  inteira  como  agir  ininterrupto,  porque  a  vida 
inteira  na  sua  totalidade  pode  ser  considerada  co‐
mo uma espécie de ato complexo: eu ajo com toda a 
minha vida, e cada ato singular e cada experiência 
que  vivo  são  um  momento  do  meu  viver‐agir.  Tal 
pensamento, enquanto ato, forma um todo integral: 
tanto  o  seu  conteúdo‐sentido  quanto  o  fato  de  sua 
presença em minha consciência real de um ser hu‐
mano  singular,  precisamente  determinado  e  em 
condições  determinadas  –  ou  seja,  toda  a  historici‐
dade  concreta  de  sua  realização  –  estes  dois  mo‐
mentos, portanto, seja o do sentido, seja o histórico‐
individual (factual), são dois momentos unitários e 
inseparáveis  na  valoração  deste  pensamento  como 
meu ato responsável. Mas se pode retirar dele, por 
abstração, o momento de conteúdo‐sentido, isto é, o 
pensamento como juízo de validade universal. Para 
este  aspecto  abstrato  do  sentido,  o  aspecto  históri‐
co‐individual – o autor, o tempo, as circunstâncias e 
a unidade moral de sua vida – é totalmente indife‐
rente:  tal  juízo  de  validade  universal  se  refere à  u‐
nidade  teórica  do  domínio  teórico  correspondente, 
e o lugar que ocupa nesta unidade define a sua va‐
lidade  de  modo  totalmente  exaustivo.  A  valoração 
do pensamento como ato individual leva em consi‐

9   Aqui é postupok, como também nas ocorrências que seguem. 

40
deração e contém em si, de forma plena, o momen‐
to da validade teórica do pensamento‐juízo; a valo‐
ração do significado do juízo constitui um momen‐
to  necessário  na  efetivação  do  ato,  apesar  de  não 
exaustivo. Para a validade teórica do juízo, por ou‐
tro lado, é totalmente indiferente o momento histó‐
rico‐individual, momento da transformação do juí‐
zo  em  ato  responsável  de  seu  autor.  Eu,  que  real‐
mente  penso  e  sou  responsável  pelo  ato  [akt]  do 
meu pensar, não tenho lugar no juízo teoricamente 
válido.  O  juízo  teoricamente  valido  é,  em  todos  os 
seus  momentos,  impenetrável  para  a  minha  ativi‐
dade  [aktivnost’]  individualmente  responsável.  Se‐
jam quais forem os momentos que distinguimos no 
juízo  teoricamente  válido  –  a  forma  (as  categorias 
da síntese) e o conteúdo (o assunto, os dados expe‐
rimentais  e  sensoriais),  o  objeto  e  o  conteúdo  –  a 
validade  [Znacimostʹ]  de  todos  estes  momentos  ex‐
clui,  de  maneira  totalmente  impenetrável,  o  mo‐
mento do ato individual, o ato de quem pensa.  
A  tentativa  de  compreender  o  dever  [Dol‐
zhenstvovanie] 10 como a mais alta categoria formal (a 
afirmação‐negação  de  Rickert11)  baseia‐se  num  e‐
quívoco.  O  dever  pode  fundar  a  presença  real  de 
um dado juízo em minha consciência em dadas cir‐
cunstâncias,  isto  é,  a  concretude  histórica  de  um 
fato  individual,  mas  não  a  veracidade  [istinnost’] 
teórica  em  si  do  juízo.  O  momento  da  veracidade 
teórica é necessário para que o juízo seja um impe‐
rativo  para  mim,  mas  não  é  suficiente;  um  juízo 

10  No  texto  em  russo  [em  Bakhtin,  Sobranie  socinenij  (Coletânea 


das obras), vol 1] este não é um parágrafo, como está aqui; pa‐
ra agilizar a leitura, decidimos organizar desta forma. 
11 “Bejahung‐Verneinung”.  A  referência  é  ao  livro  de  Heinrich 

Rickert (1863 – 1936) Der Gegestand der Erkenntnis (1882). 

41
verdadeiro  não  é  já,  por  isso  mesmo,  também  um 
ato  [postupok]  imperativo  do  pensamento.  Permi‐
tam‐me uma analogia um pouco grosseira: a irreto‐
cável  correção  técnica  do  ato  não  resolve  ainda  a 
questão de seu valor moral. Em relação ao dever a 
veracidade  teórica  é  exatamente  de  ordem  técnica. 
Se o dever fosse um momento formal do juízo, não 
haveria ruptura entre vida e criação cultural, entre 
ação como ato [act‐potupok] – momento da unidade 
do contexto da minha vida singular – e o conteúdo‐
sentido do juízo, parte de uma unidade teórica ob‐
jetiva da ciência: e isso significaria que existiria um 
só e único contexto de cognição e vida, de cultura e 
vida, o  que, naturalmente, não é o caso. Afirmar o 
juízo  como  verdadeiro  é  relacioná‐lo  a  uma  certa 
unidade  teórica,  unidade  que  não  é,  de  modo  al‐
gum, a unidade histórica singular de minha vida. 
Não há sentido em falar de algum dever teórico 
especial, do tipo: posto que penso, devo pensar ver‐
dadeiramente  [istinno];  a  veracidade  [istinnostʹ]  é  o 
dever do pensamento. Mas, será mesmo o caso que o 
dever  é  momento  inerente  da  verdade  mesma?  De 
fato,  o dever se  revela apenas na  correlação da  ver‐
dade (válida em si mesma) com a ação cognitiva real 
de  cada  um  de  nós,  e  tal  momento  de  correlação  é 
historicamente um momento único, é sempre um ato 
individual, que não afeta em nada a validade teórica 
objetiva do juízo – é um ato que é avaliável e impu‐
tável no contexto único da vida real única de um su‐
jeito.  Para  o  dever  não  é  suficiente  apenas  a  veraci‐
dade, <é necessário> o ato de resposta do sujeito, que 
provém do seu interior, a ação de reconhecimento da 
veracidade do dever, e também esta ação não pene‐
tra, de modo algum, na composição teórica e no sig‐
nificado  do  juízo.  Por  que,  enquanto  penso,  devo 

42
pensar  veridicamente?  Da  definição  teórico‐
gnoseológica da veracidade não resulta totalmente o 
dever; tal momento não está contido em sua defini‐
ção  e  dela  não  é  dedutível:  ele  só  pode  ser  dado  e 
fixado  desde  o  exterior  (Husserl).  Em  geral,  nenhu‐
ma  definição  e  nenhuma  proposição  teórica  pode 
incluir  em  si  o  momento  do  dever,  nem  ele  é  delas 
dedutível. Não existe um dever estético, científico e, 
ao lado deles, um dever ético: há apenas o que é es‐
tética, teórica e socialmente válido e ao qual se pode 
agregar um dever a respeito do qual todas estas va‐
lidades  são  de  caráter  técnico,  instrumentais.  Tais 
posições adquirem sua validade no interior de uma 
unidade  estética,  científica,  sociológica;  enquanto 
adquirem o dever na unidade de minha vida singu‐
lar e responsável. Em geral, como veremos detalha‐
damente mais adiante, não se pode falar de nenhu‐
ma norma moral, ética, de nenhum dever como ten‐
do  um  determinado  conteúdo.  O  dever  não  possui 
um  conteúdo  definido  e  especificamente  teórico.  O 
dever  pode  estender‐se  sobre  tudo  o  que  é  conteu‐
disticamente válido, mas nenhuma proposição teóri‐
ca  conterá,  em  seu  conteúdo,  o  momento  do  dever, 
nem  se  funda  nele.  Não  existe  um  dever  científico, 
estético etc., nem tampouco existe um dever especi‐
ficamente ético, entendido como conjunto de normas 
com um conteúdo determinado. Tudo o que é válido 
dá  fundamento  relativamente  à  sua  validade  a  di‐
versas  disciplinas  específicas,  e  nada  sobra  para  a 
ética  (as  ditas  normas  éticas  são  geralmente  regras 
sociais e, quando as correspondentes ciências sociais 
forem  fundamentadas,  elas  serão  de  sua  competên‐
cia).  O  dever  é  uma  categoria  original  do  agir‐ato 
[postuplenie‐postupok] (e tudo é um ato meu, inclusive 
o  pensamento  e  o  sentimento),  é  uma  certa  atitude 

43
[ustanovka]  da  consciência,  cuja  estrutura  nos  pro‐
pomos  desvendar  fenomenologicamente.  Não  exis‐
tem  normas  morais  determinadas  e  válidas  em  si, 
mas  existe  o  sujeito  moral  com  uma  determinada 
estrutura  (não,  obviamente,  uma  estrutura  psicoló‐
gica  ou  física),  e  é  sobre  ele  que  necessitamos  nos 
apoiar:  ele  saberá  em  que  consiste  e  quando  deve 
cumprir o seu dever moral ou, mais precisamente, o 
dever  (porque  não  existe  um  dever  especificamente 
moral). 
O  fato  de  que  a  minha  atividade  responsável 
não penetra no aspecto de conteúdo‐sentido do juí‐
zo parece ser contraditado pelo fato de que a forma 
do juízo, o momento transcendente na formação do 
juízo,  é  também  momento  da  atividade  da  nossa 
razão, pelo fato de que é cada um de nós que pro‐
duz  as  categorias  da  síntese.  Esquecemo‐nos  da 
empreitada  copernicana  de  Kant12.  Todavia,  a  ati‐
vidade  transcendente  é  deveras  atividade  histori‐
camente  individual  da  minha  ação,  pela  qual  sou 
individualmente responsável? Ninguém, certamen‐
te, afirmará tal coisa. A descoberta de um elemento 
transcendente a priori em nossa consciência não cri‐
ou  uma  saída  desde  o  interior  do  conhecimento, 
isto  é,  desde  seu  aspecto  de  conteúdo‐sentido,  em 
direção  ao  efetivo  ato  cognitivo  histórico‐
individual;  não  superou  a  sua  separação  e  mútua 
impenetrabilidade,  e  para  essa  atividade  transcen‐
dente  foi  preciso  inventar  um  sujeito  puramente 
teórico, historicamente inexistente, uma consciência 

12  “[...] conheci muito cedo Kant, comecei muito cedo a ler a sua 
Crítica da razão pura […] em alemão. Não em russo. Em russo 
eu  li  Os  Prolegômenos”  (Bakhtin,  M.  &  Duvakin,  V.  Mikhail 
Bakhtin em diálogos. Conversas de 1973 com V. Duvakin. p. 
40. 

44
em  geral,  uma  consciência  científica,  um  sujeito 
gnosiológico.  Mas,  certamente,  este  sujeito  teórico 
deveria a cada vez encarnar‐se em um ser humano 
real,  efetivo,  pensante  para  incorporar‐se,  com  o 
mundo todo do existir que lhe é inerente enquanto 
objeto  de  seu  conhecimento,  no  existir  do  evento 
histórico real, simplesmente como seu momento. 
E,  assim,  enquanto  separamos  um  juízo  da  u‐
nidade da ação‐ato historicamente real de sua atua‐
ção  e  o  relacionamos  a  uma  unidade  teórica  qual‐
quer,  do  interior  de  seu  conteúdo‐sentido,  não  há 
saída que conduza ao dever no evento real singular 
do existir. Qualquer que seja a tentativa de superar 
o  dualismo  entre  consciência  e  vida,  entre  o  pen‐
samento e a realidade concreta singular é, do inte‐
rior  do  conhecimento  teórico,  absolutamente  sem 
esperança. Uma vez separado o aspecto do conteú‐
do‐sentido do conhecimento do ato histórico de sua 
realização  podemos  sair  em  direção  ao  dever  so‐
mente  por  meio  de  um  salto;  procurar  a  ação‐ato 
cognitivo real no conteúdo de sentido separado de‐
le é como tentar levantar‐se puxando‐se pelos cabe‐
los.  Do  conteúdo  separado  do  ato  cognitivo  apro‐
priam‐se  suas  próprias  leis  imanentes,  com  base 
nas  quais  ele  se  desenvolve  sozinho,  autonoma‐
mente.  Inseridos  neste  conteúdo,  consumado  um 
ato  de  abstração,  estaremos  à  mercê  de  suas  leis 
autônomas;  mais  exatamente,  cada  um  de  nós  não 
está mais presente nele como ativo no sentido indi‐
vidual e responsável. Dá‐se, então, o que ocorre no 
mundo  da  tecnologia,  que  conhece  sua  própria  lei 
imanente a que se submete em seu impetuoso e ir‐
restrito desenvolvimento, não obstante já há tempo 
tenha  se  furtado  à  tarefa  de  compreender  a  finali‐
dade  cultural  desse  desenvolvimento,  e acabe  con‐

45
tribuindo  para  piorar  notavelmente  as  coisas  em 
vez  de  melhorá‐las;  assim,  com  base  nas  suas  leis 
internas,  aperfeiçoam‐se  instrumentos  que,  como 
resultado, se transformam de meio de defesa racio‐
nal  em  uma  força  terrificante,  letal  e  destrutiva.  É 
aterrorizante tudo o que é tecnológico, quando abs‐
traído da unidade singular do existir de cada um e 
deixado entregue à vontade da lei imanente de seu 
desenvolvimento;  ele  pode  repentinamente  irrom‐
per nesta unidade singular da vida de cada um co‐
mo força irresponsável, deletéria e devastante. 
Enquanto o mundo autônomo teórico, abstrato, 
alheio  por  princípio  à  historicidade  viva  singular, 
permanece  fechado  em  suas  próprias  fronteiras,  a 
sua autonomia é justificada e inviolável; são igual‐
mente  justificadas  disciplinas  filosóficas  especiais 
como a lógica, a teoria do conhecimento, a psicolo‐
gia do conhecimento, a biologia filosófica, que obje‐
tivam  descobrir  –  teoricamente,  isto  é,  segundo  o 
conhecimento abstrato – a estrutura do mundo teo‐
ricamente  cognoscível  e  seus  princípios.  Mas  o 
mundo  como  objeto  de  conhecimento  teórico  pro‐
cura se fazer passar como o mundo como tal, isto é, 
não  só  como  unidade  abstrata,  mas  também  como 
concretamente  único  em  sua  possível  totalidade;  o 
conhecimento  teórico  visa,  assim,  construir  uma 
filosofia  primeira  (prima  philosophia)  na  forma  de 
gnoseologia ou de <? Palavra ilegível no original> teó‐
rico  (de  variado  tipo  biológico,  físico,  etc.).  Seria 
absolutamente  injusto  pensar  que  esta  seja  a  ten‐
dência  predominante  na  história  da  filosofia:  é  an‐
tes,  podemos  dizer,  a  característica  específica  da 
época moderna, dos séculos XIX e XX em especial. 
O  pensamento  participativo  [usastnoe  myslenie] 
predomina  em  todos  os  grandes  sistemas  filosófi‐

46
cos,  de  modo  consciente  e  explícito  (em  particular 
no  período  medieval),  ou  inconsciente  e  latente 
(nos  sistemas  do  século  XIX  e  XX).  Podemos  notar 
hoje  um  particular  abrandamento  dos  próprios 
termos  “existir”  e  “realidade”.  O  exemplo  clássico 
de Kant contra a prova ontológica – de que cem tá‐
leres [moeda alemã] reais não equivalem a cem tá‐
leres somente pensados – deixou de ser convincen‐
te; de fato, o que é realmente existente no plano his‐
tórico e que é irrepetível, na realidade determinada 
por  mim  de  uma  maneira  única,  é  incomparavel‐
mente  mais  pesado;  mas,  se  é  medido  com  pesos 
teóricos,  ainda  que  com  o  acréscimo  do  reconheci‐
mento teórico de sua existência empírica, abstração 
feita  de  seu  valor  histórico  único,  dificilmente  re‐
sultará  mais  pesado  do  que  aquilo  que  é  apenas 
pensado.  Isto  que  existe  como  singular  e  historica‐
mente  real  tem  volume  e  peso  maior  do  que  qual‐
quer unidade de ordem teórica e científica, mas es‐
ta  diferença  de  peso,  evidente  para  a  consciência 
viva  que  a  experimenta,  não  pode  ser  entendida 
por meio de categorias teóricas.  
O conteúdo‐sentido que foi abstraído da ação‐
ato  pode  ser  integrado  a  um  certo  existir  aberto  e 
único, mas, naturalmente, não é aquele existir único 
em  que  cada  um  de  nós  vive  e  morre,  em  que  se 
desenrola o ato responsável de cada um: tal existir 
é,  por  princípio,  estranho  à  viva  historicidade.  Eu 
não posso incluir o meu eu efetivo e a minha vida 
como  um  aspecto  do  mundo  das  construções  da 
consciência teórica, mundo obtido por abstração do 
ato histórico responsável‐individual; o que é neces‐
sário, se se parte do pressuposto de que este mun‐
do é o mundo todo, o existir total (total em princí‐
pio ou em consideração à sua finalidade, isto é, sis‐

47
tematicamente,  também  se  pode,  por  certo,  deixar 
aberto o próprio sistema do existir teórico). Em um 
tal  mundo  apareceríamos  determinados,  predeter‐
minados,  prontos  e  acabados,  fundamentalmente 
não  viventes;  nós  nos  retiraríamos  da  vida,  conce‐
bida como devir‐ato responsável, arriscado, aberto, 
para  um  existir  teórico  indiferente,  por  princípio 
concluso e completo (não no sentido de que é con‐
cluído e determinado apenas no processo cognitivo, 
mas  como  um  existir  já  determinado  justamente 
enquanto  dado).  É  claro  que  isso  só  é  possível  fa‐
zendo abstração do que no ato é absolutamente ar‐
bitrário  (responsavelmente‐arbitrário),  absoluta‐
mente  novo,  que  vem  sendo  criado,  que  tem  a  ver 
com a ação, isto é, fazendo abstração precisamente 
de tudo aquilo de que vive a ação. Nenhuma orien‐
tação  prática  da  minha  vida  no  mundo  teórico  é 
possível:  nele  não  é  possível  viver,  agir  responsa‐
velmente, nele não sou necessário, nele, por princí‐
pio,  não  tenho  lugar.  O  mundo  teórico  se  obtém 
por uma abstração que não leva em conta o fato da 
minha existência singular e do sentido moral deste 
fato,  que  se  comporta  “como  se  eu  não  existisse” 
[kak esli by menja ne bylo ]; e tal conceito de ser, que é 
indiferente ao fato, para mim central, da minha en‐
carnação  concreta  e  singular  no  existir  (aí  estou 
também  eu),  não  pode,  por  princípio,  acrescentar 
nada a ele, nem tirar nada dele, já que este mundo 
teórico  permanece  igual  e  idêntico  a  si  mesmo  no 
próprio  sentido  e  significado,  exista  eu  ou  não; ele 
não  pode  oferecer  nenhum  critério  para  a  minha 
vida  como  agir  [postuplenie]  responsável,  não  pode 
fornecer nenhum critério para a vida da práxis, pa‐
ra a vida do ato, porque nele eu não vivo: e se fosse 
tal mundo o único, eu não existiria. 

48
Todavia13, é a isso que conduz o confinamento 
de si e da própria vida em um existir cientificamen‐
te  cognoscível  congelado;  mas  nós  fazemos  isso 
somente  teoricamente  e  sem  refletir  até  as  últimas 
consequências, de outra forma nós nos bloquearía‐
mos na nossa vida; o que nos salva é que o próprio 
ato historicamente singular deste confinamento não 
faz  parte  deste  existir  que  se  congela,  mas  perma‐
nece  na  unidade  singular  de  nossa  vida  responsá‐
vel, o que significa que o mundo no qual se efetua 
realmente  este  pensamento‐ato  não  corresponde, 
apesar  de  tudo,  ao  produto  abstrato  deste  pensa‐
mento, ou ao mundo teórico; no momento do ato, o 
mundo se reestrutura em um instante, a sua verda‐
deira arquitetura se restabelece, na qual tudo o que 
é  teoricamente  concebível  não  é  mais  que  um  as‐
pecto.  Esta  duplicidade  se  torna  para  nós  coisa  fa‐
miliar,  e  nós  somos  realistas  a  tal  ponto  não  ingê‐
nuos, que a nossa consciência não se preocupa com 
esta mentira interior: ou seja, situar, localizar a mi‐
nha vida singular real, efetiva, em um mundo indi‐
ferente que só é concebível teoricamente, e o mun‐
do real, vivido de maneira singular, em um mundo 
não  vivido,  mas  somente  concebível  enquanto  seu 
componente. Mas certamente, na vida real, prática, 
não  é  em  relação  a  isso  que  pode  orientar‐se  o  ato 
de cada um de nós. O realismo ingênuo é próximo 
da verdade, na medida em que ele não constrói teo‐
rias,  e  a  sua  prática  poderia  ser  assim  formulada: 
vivemos e agimos no mundo real, mas o mundo de 

13  Este parágrafo inteiro, a partir do início desta linha, não está 
incluído  nas  traduções  precedentes  citadas,  com  exceção  da 
francesa,  e  corresponde  ao  texto  original  de  Obras  completas 
(vol I, pp.13‐14). 

49
nosso  pensamento  é  o  seu  reflexo,  dotado  de  um 
valor técnico. O mundo real se reflete somente por 
meio do pensamento, mas ele, por seu turno, não se 
pensa  no  seu  existir,  isto  é,  cada  um  de  nós,  com 
todos seus próprios pensamentos e seus conteúdos, 
somos nele, e é nele que nós vivemos e morremos. 
Um tal relacionamento recíproco entre pensamento 
e realidade é muito próximo da verdade. 
Mas,  obviamente,  daí  não  decorre,  em  absolu‐
to, a validade de qualquer relativismo que negue a 
autonomia  da  verdade  e  que  procure  fazer  dela 
qualquer  coisa  de  relativo  e  condicionado,  um 
momento – da vida prática ou outra – alheio a essa 
verdade precisamente na sua veracidade e importân‐
cia. Do nosso ponto de vista, o caráter autônomo da 
verdade, a sua pureza metodológica e a sua autode‐
terminação  são  totalmente  preservados;  por  conta 
da condição de sua pureza, a verdade pode partici‐
par  responsavelmente  do  existir‐evento:  uma  ver‐
dade  intrinsecamente  relativa  não  é  necessária  à 
vida‐evento. A validade da verdade é uma sua ca‐
racterística autônoma, é absoluta e eterna, e a ação 
responsável  da  cognição  leva  em  conta  esta  sua 
particularidade, é esta a sua essência. A validade de 
uma  asserção  teórica  não  depende  absolutamente 
do fato de ser ou não conhecida por alguém. As leis 
de Newton eram válidas em si antes mesmo de se‐
rem  descobertas  por  Newton  e  não  foi  esta  desco‐
berta que as tornou válidas pela primeira vez; mas 
tais verdades não existiam como momentos conhe‐
cidos, incorporados ao existir‐evento único, o que é 
de essencial importância, porque é isso que consti‐
tui  o  sentido  do  ato  que  as  conhece.  Seria  um erro 
grosseiro  pensar  que  estas  verdades  eternas  em  si 
existissem  primeiro,  antes  de  serem  descobertas 

50
por  Newton,  do  mesmo  modo  como  a  América  e‐
xistia antes de ser descoberta por Colombo; o cará‐
ter  eterno  da  verdade  não  pode  ser  contraposto  à 
nossa temporalidade [dando origem a um aparente 
paradoxo]14 como duração infinita para a qual todo 
nosso  tempo  não  é  mais  que  um  momento,  um 
segmento. 
A temporalidade da historicidade real do existir 
não  é  mais  que  um  momento  da  historicidade  co‐
nhecida  de  maneira  abstrata.  O  momento  abstrato 
da validade extratemporal da verdade pode também 
ser  contraposto  ao  momento  abstrato  da  temporali‐
dade  do  objeto  da  cognição  histórica:  mas  toda  a 
contraposição não sai dos confins do mundo teórico, 
e só neste tem sentido e validade. A validade extra‐
temporal  de  todo  o  mundo  teórico  da  verdade,  por 
sua vez, entra por completo na historicidade real do 
existir‐evento.  Evidentemente,  não  entra  aí  tempo‐
ralmente ou espacialmente (todos estes são momen‐
tos  abstratos),  mas  como  momento  que  enriquece  o 
existir‐evento. Somente aquilo que da cognição per‐
tence  a  categorias  científico‐abstratas  é,  por  princí‐
pio,  teoricamente  alheio  ao  sentido  conhecido  abs‐
tratamente. O ato real de cognição – não do interior 
de seu produto teórico‐abstrato (isto é, desde o inte‐
rior  de  um  juízo  universalmente  válido)  mas  como 
ato  responsável  –  incorpora  cada  significado  extra‐
temporal no existir‐evento singular. Todavia, a con‐
traposição habitual entre a verdade eterna e a nossa 
temporalidade  imperfeita  possui  um  sentido  não 
teórico; tal asserção inclui em si certo sabor axiológi‐

14  Trata‐se, neste e no outro segmento entre parênteses quadra‐
dos,  de  anotações  que  aparecem  na  margem  do  manuscrito 
de Bakhtin.  

51
co e assume um caráter emotivo‐volitivo: eis aqui a 
verdade eterna (e isso é bom), e eis aqui a nossa im‐
perfeita vida temporal, transitória, efêmera (e isso é 
mau).  Mas  temos  aqui  o  caso  de  um  pensamento 
participativo, sustentado em um tom penitente, que 
busca  superar  o  próprio  caráter  dado,  em  favor  do 
que se coloca como algo que está para ser alcançado; 
mas  tal  pensamento  participativo  se  desenvolve 
propriamente  dentro  da  arquitetônica  do  existir‐
evento  do  qual  estamos  falando.  Tal  é  também  a 
concepção de Platão. 
Teoricismo  ainda  mais  grosseiro  é  a  tentativa 
de  incluir  o  mundo  da  cognição  teórica  no  existir 
único, assumindo‐o como entidade psíquica. O psí‐
quico é um produto abstrato do pensamento teóri‐
co,  e  é  inaceitável  conceber  a  ação‐ato  do  pensa‐
mento  vivo  como  processo  psíquico,  que  está  situ‐
ado no mundo teoricamente concebido junto a tudo 
o que está aí contido. O psíquico é um produto abs‐
trato  como  o  é  qualquer  validade  transcendente. 
Neste  caso,  incorremos  em  um  absurdo  considerá‐
vel, desta vez sobre o plano puramente teórico: tor‐
namos  o  mundo  teórico  grande  (o  mundo  como 
objeto do conjunto das ciências, de toda a cognição 
teórica) um momento do mundo teórico pequeno (a 
realidade  psíquica  como  objeto  da  cognição  psico‐
lógica).  A  psicologia  se  justifica  quando,  permane‐
cendo  dentro  das  suas  fronteiras,  considera  o  co‐
nhecimento só como processo psíquico, e traduz na 
língua  do  psíquico,  seja  o  momento  do  conteúdo‐
sentido  do  ato  cognitivo,  seja  a  responsabilidade 
individual  da  realização  do  ato;  quando,  em  vez 
disso,  pretende  ser  conhecimento  filosófico  e  apre‐
senta  sua  transcrição  psicológica  para  o  existir  co‐
mo se fosse realidade singular, não admitindo junto 

52
de  si  a  possibilidade  de  uma  igualmente  legítima 
transcrição  segundo  uma  lógica  transcendente,  co‐
mete um erro grosseiro, seja do ponto de vista teó‐
rico, seja do ponto de vista do filosofar concreto15.  
Em  minha  vida‐como‐ato  nada  absolutamente 
tenho a ver com o psíquico (a não ser quando atuo 
como  psicólogo‐teórico).  Em  matemática,  quando 
se  realiza  um  ato  responsável  e  produtivo  –  ocu‐
pando‐se,  por  exemplo,  com  um  teorema  –,  é  con‐
cebível, mas totalmente irrealizável, a possibilidade 
de operar com um conceito matemático como se se 
tratasse de uma instância da ordem psíquica. Neste 
caso, certamente, o trabalho do ato não se realizará: 
o ato se desenvolve e vive em um mundo que não é 
um  mundo  psíquico.  Quando  me  ocupo  com  um 
teorema, concentro‐me em seu sentido, que respon‐
savelmente coloco  em  relação  com os  conhecimen‐
tos  adquiridos  (que  é  o  objetivo  real  da  ciência), 
sem saber e sem ter que saber nada sobre a possível 
transcrição psicológica deste meu ato real e respon‐
sável,  embora  esta  transcrição  seja  para  um  psicó‐
logo, do ponto de vista de seus objetivos, correta16. 
Formas análogas de teoricismo são também as 
várias tentativas de reunir o conhecimento teórico e 
a vida em sua irrepetibilidade, concebendo esta úl‐
tima  segundo  categorias  biológicas,  econômicas 
etc.:  ou  seja,  todas  as  várias  tentativas  de  tipo 
pragmatista.  Nestes  casos,  uma  teoria  se  converte 

15 À  critica  da  função  fundante  da  psicologia,  com  referência 


direta sobretudo a Wilhelm Dilthey, é dedicado o capítulo III 
inteiro de Marxismo e filosofia da linguagem, o livro de Bakhtin 
em colaboração com V. N. Voloshinov publicado em 1929 sob 
o nome deste último.  
16 Estas  considerações  estão  em  consonância  com  a  crítica  do 

psicologismo de Edmund Husserl. 

53
em um aspecto de uma outra teoria em vez de ser 
um  momento  do  existir‐evento  real.  É  necessário 
reconduzir  a  teoria  em  direção  não  a  construções 
teóricas  e  à  vida  pensada  por  meio  destas,  mas  ao 
existir como evento moral, em seu cumprir‐se real – 
à  razão  prática  –  o  que,  responsavelmente,  faz 
quem  quer  que  conheça,  aceitando  a  responsabili‐
dade de cada um dos atos de sua cognição em sua 
integralidade, isto é, na medida em que o ato cogni‐
tivo  como  meu ato faça parte, com  todo o seu  con‐
teúdo,  da  unidade  da  minha  responsabilidade,  na 
qual  e  pela  qual  eu  realmente  vivo  e  realizo  atos. 
Todas  as  tentativas  de alcançar  a  existência‐evento 
real a partir do interior  do mundo teórico são sem 
esperança;  não  é  possível  do  interior  da  cognição 
em si abrir um caminho no mundo conhecido teori‐
camente para alcançar o mundo real em sua singu‐
laridade  e  irrepetibilidade.  Mas,  partindo  da  ação‐
ato e não de sua transcrição teórica, há uma abertu‐
ra  voltada  para  seu  conteúdo‐sentido,  que  é  intei‐
ramente admitido e incluído desde o interior de tal 
ato, já que o ato se desenvolve realmente no existir. 
O mundo como conteúdo do pensamento cien‐
tífico  é  um  mundo  particular,  autônomo,  mas  não 
separado, e sim integrado no evento singular e úni‐
co  do  existir  através  de  uma  consciência  responsá‐
vel  em  um  ato‐ação  real.  Porém,  tal  existir  como 
evento singular não é algo pensado: tal existir é, ele 
se  cumpre  realmente  e  irremediavelmente  através 
de  mim  e  dos  outros  –  e,  certamente,  também  no 
ato de minha ação‐conhecimento; ele é vivenciado, 
asseverado de modo emotivo‐volitivo, e o conhecer 
não é senão um momento deste vivenciar‐asseverar 
global. A  singularidade  única  não  pode  ser  pensa‐
da,  mas  somente  vivida  de  modo  participativo.  A 

54
razão  teórica  em  sua  totalidade  não  é  senão  um 
momento  da  razão  prática,  isto  é,  da  razão  decor‐
rente  da  direção  moral  de  um  sujeito  único  no  e‐
vento do existir singular. Este existir não é definível 
pelas  categorias  de  uma  consciência  teórica  não 
participante,  mas  somente  pelas  categorias  da  par‐
ticipação real, isto é, do ato, pelas categorias do efe‐
tivo  experimentar  operativo  e  participativo  da  sin‐
gularidade concreta do mundo.  
O  traço  característico  da  filosofia  contemporâ‐
nea da vida, que busca incluir o mundo teórico na 
unidade  da  vida  em  devir,  é  uma  certa  estetização 
da vida que de alguma forma mascara um pouco a 
inadequação  bastante  evidente  do  teoricismo  puro 
(a inclusão do mundo teórico grande em um mun‐
do pequeno, ainda que teórico). Frequentemente, os 
elementos  teóricos  e  estéticos  se  fundem  nestas 
concepções da vida. Assim ocorre na tentativa mais 
significativa  de  construir  uma  filosofia  da  vida  – 
aquela  de  Henry  Bergson.  O  principal  defeito  de 
suas construções filosóficas, várias vezes destacado 
pela literatura que se ocupa delas, é a falta de justi‐
ficativa  metodológica  dos  momentos  heterogêneos 
de  sua  concepção.  Metodologicamente,  não  é  clara 
também sua definição da intuição filosófica, que ele 
contrapõe  ao  conhecimento  racional  e  analítico. 
Não há dúvida, todavia, que o conhecimento racio‐
nal  reaparece  como  elemento  necessário  (teoricis‐
mo) na intuição, da maneira como esta noção é efe‐
tivamente empregada por Bergson. Isso foi mostra‐
do  com  exaustiva  clareza  por  Lossky  no  seu  exce‐
lente  estudo  sobre  Bergson17.  Se  tais  elementos  ra‐

17  Nikolaj O. Lossky, Intuitivnaia filosofiia Bergsona (A filosofia da 
intuição de Bergson, Moscou, Putʹ, 1922). 

55
cionais são extraídos da intuição, o que permanece 
nela é a pura contemplação estética, com um aden‐
do  insignificante,  uma  dose  homeopática,  de  pen‐
samento  efetivamente  participante.  Mas  também  o 
produto  da  contemplação  estética  é  abstraído  do 
ato efetivo da contemplação e não é essencialmente 
necessário  a  ele:  então,  também  para  a  contempla‐
ção estética resta inapreensível o existir‐evento úni‐
co em sua singularidade. O mundo da visão estéti‐
ca,  que  se  obtém  fazendo  abstração  do  sujeito  real 
desta  visão,  não  é  o  mundo  real  no  qual  eu  vivo, 
ainda que seu lado conteudístico pertença a um su‐
jeito vivo. Mas entre o sujeito e a sua vida, objeto da 
visão estética, e o sujeito portador do ato de tal vi‐
são,  há  a  mesma  incomunicabilidade  de  princípio 
que no conhecimento teórico.  
No conteúdo da visão estética não encontrare‐
mos  a  ação‐ato  daquele  que  vê.  O  reflexo  bilateral 
único  de  um  ato  único,  que  ilumina  e  traz  a  uma 
única responsabilidade, seja o conteúdo, seja o exis‐
tir‐realização  da  ação‐ato  em  sua  indivisibilidade, 
não penetra no lado conteudístico da visão estética: 
do  interior  desta  visão  não  há  saída  em  direção  à 
vida. O que não está absolutamente em contradição 
com  o  fato  de  que  eu  mesmo  e  a  minha  vida  pos‐
samos nos tornar conteúdo de minha contemplação 
estética; o ato‐ação mesmo desta visão não penetra 
no conteúdo, a visão estética não se transforma em 
confissão  –  ou,  se  chega  a  isso,  deixa  de  ser  uma 
visão  estética.  E,  com  efeito,  existem  obras  que  se 
situam  na  fronteira  da  estética  e  da  confissão  (ori‐
entação moral no existir singular). 
Momento  essencial  (mas  não  o  único)  da  con‐
templação estética é a empatia [vizivanie] com o ob‐
jeto  individual  da  visão,  a  visão  deste  último  do 

56
interior  de  sua  própria  essência.  Ao  momento  da 
empatia  segue  sempre  o  da  objetivação,  ou  seja,  o 
de situar fora de si mesmo a individualidade com‐
preendida  através  da  empatia  –  separando‐a  de  si 
mesmo,  e  retornando  a  si  mesmo.  Somente  tal 
consciência  que  retorna  a  si  mesma  confere  forma 
estética,  do  seu  próprio  lugar,  à  individualidade 
apreendida  desde  o  interior  mediante  a  empatia, 
como  individualidade  unitária,  íntegra,  qualitati‐
vamente original. E todos estes momentos estéticos 
–  singularidade,  integridade,  autossuficiência,  ori‐
ginalidade  –  são  transgredientes18  em  relação  à 
mesma individualidade que está sendo determina‐
da: do interior de si mesma, e para si mesma, estes 
momentos  em  sua  vida  não  existem,  ela  não  vive 
para  esses  momentos  –  mas  vive  para  si.  Esses 
momentos  têm  sentido  e  são  realizados  por  quem 
se identifica, situado fora da individualidade, dan‐
do forma e objetivando a matéria cega da empatia. 
Em outras palavras, o reflexo estético da vida viva 
não é por princípio autorreflexo da vida em movi‐
mento,  da  vida  em  sua  real  vitalidade:  tal  reflexo 
pressupõe  um  outro  sujeito  da  empatia,  que  é  ex‐
tralocalizado19.  Naturalmente,  não  há  necessidade 
de pensar que ao puro momento da empatia segue 
cronologicamente  o  momento  da  objetivação,  da 
formação;  ambos  são,  na  realidade,  inseparáveis:  a 
pura empatia é um momento abstrato do ato unitá‐
rio da atividade estética, que não deve ser pensado 
como período temporal: os momentos da empatia e 

18 Termo empregado nas primeiras obras de Bakhtin; indica um 
“exceder”, um “transcender”, uma capacidade de extravasar. 
19 Extracolocado, exotópico. Exotopia é um dos conceitos prin‐

cipais da filosofia bakhtiniana.  

57
da objetivação se interpenetram. Eu vivo ativamente 
a  empatia  com  uma  individualidade,  e,  por  conse‐
guinte, nem por um instante sequer perco comple‐
tamente a mim mesmo, nem perco o meu lugar ú‐
nico  fora  dela.  Não  é  o  objeto  que  se  apodera  de 
mim, enquanto ser passivo: sou eu que ativamente o 
vivo  empaticamente;  a  empatia  é  um  ato  meu,  e 
somente nisso consiste a produtividade e a novida‐
de  do  ato  (Schopenhauer  e  a  música20).  Mediante  a 
empatia se realiza algo que não existia nem no obje‐
to da empatia, nem em mim antes do ato da empa‐
tia, e o existir‐evento se enriquece deste algo que é 
realizado,  não  permanecendo  igual  a  si  mesmo.  E 
esta  ação  como  ato,  que  cria  algo  de  novo,  já  não 
pode mais ser um reflexo estético em sua essência, 
porque isso a tornaria exterior ao sujeito que age, e 
à  sua  responsabilidade.  A  empatia  pura,  a  coinci‐
dência com o outro, a perda de meu lugar único na 
singularidade  do  existir  pressupõem  o  reconheci‐
mento de que a minha singularidade e a unicidade 
do  meu  lugar  não  são  um  componente  essencial, 
não  influem  no  caráter  essencial  da  existência  do 
mundo. Mas tal reconhecimento da irrelevância da 
própria  singularidade  para  a  concepção  do  existir 
no  mundo  comporta  inevitavelmente  também  a 
perda  da  singularidade  do  existir,  e  assim  nós  ob‐
temos  a  ideia  do  existir  somente  como  possível  e 

20  Bakhtin se refere às reflexões de Arthur Schopenhauer sobre 
a música no terceiro livro de O mundo como vontade e como re‐
presentação (1818), tradução italiana aos cuidados de A. Vigli‐
ani, introdução de G. Vattimo, Milão, Mondodari, 2000, e ao 
capítulo  39  do  mesmo  livro  “Sobre  a  metafísica  da  música” 
(tradução  italiana  cit.  pp.  1322–1336).  O  livro  foi  traduzido 
para  o  português  por  Jair  Barboza,  e  publicado  pela  Editora 
da UNESP, 2005, 695p.  

58
não  essencial,  real,  singular,  irredutivelmente  real. 
Mas um tal existir não pode vir a ser, não pode vi‐
ver. O sentido de um existir para o qual o meu lu‐
gar único na vida é reconhecido como não‐essencial 
não poderá nunca conferir a mim um sentido; não é 
esse o sentido do existir‐evento.  
De outro lado, em geral, uma empatia pura não 
é  possível.  Se  eu  me  perdesse  verdadeiramente  no 
outro  (neste  caso,  no  lugar  de  dois  participantes, 
haveria um só – com o consequente empobrecimen‐
to  do  existir),  ou  seja,  se  eu  cessasse  de  existir  na 
minha  singularidade,  então  este  momento  do  meu 
não  existir  não  poderia  nunca  se  tornar  momento 
de  minha  consciência;  o  meu  não  existir  não  pode 
voltar  a  entrar  no  existir  da  minha  consciência  co‐
mo seu momento de existência – simplesmente não 
existiria para mim; isto é, o existir, neste dado mo‐
mento, não se realizaria através de mim. Uma em‐
patia passiva, o ser possuído, a perda de si, não têm 
nada  em  comum  com  a  ação‐ato  responsável  do  re‐
nunciar a si mesmo ou da abnegação: na abnegação 
eu sou maximamente ativo e realizo completamen‐
te a singularidade do meu lugar no existir. O mun‐
do no qual eu, do meu lugar, no qual sou insubsti‐
tuível,  renuncio  de  maneira  responsável  a  mim 
mesmo não se torna um mundo no qual eu não es‐
tou, um mundo indiferente, no que diz respeito ao 
seu sentido, à minha existência: a abnegação é uma 
realização  que  abraça  o  existir‐evento.  Um  grande 
símbolo  de  ativa  abnegação,  Cristo21  que  nos  dei‐
xou, sofrendo na eucaristia, na doação de seu corpo 

21  O  que  segue  daqui  até  o  ponto  não  se  acha  nas  traduções 
precedentes citadas, com exceção da francesa, e corresponde 
ao texto original das Obras Completas (v. I, p. 19). 

59
e do seu sangue, uma morte permanente, permane‐
ce  vivo  e  ativo  no  mundo  dos  eventos,  mesmo 
quando  deixou  o  mundo;  é  próprio  de  sua  não‐
existência  no  mundo  que  nós  vivamos  reforçados 
em comunhão com ele. O mundo que Cristo deixou 
não  poderá  mais  ser  o  mesmo,  como  se  ele  nunca 
tivesse  existido:  é,  fundamentalmente,  um  outro 
mundo.  
Este  mundo,  o  mundo  em  que  se  completou, 
enquanto fato e sentido, o evento da vida e da mor‐
te  de  Cristo,  é,  por  princípio,  indeterminável,  seja 
mediante as categorias teóricas, seja através das ca‐
tegorias  do  conhecimento  histórico,  seja  por  meio 
de uma intuição estética. No primeiro caso, de fato, 
conhecemos  o  sentido  abstrato,  mas  perdemos  o 
fato  singular  do  efetivo  cumprir‐se  histórico  do  e‐
vento;  no  segundo,  conhecemos  o  fato  histórico, 
mas perdemos o sentido; no terceiro, temos tanto a 
existência  do  fato  quanto  o  seu  sentido  como  mo‐
mento  de  sua  individualização,  mas  perdemos  a 
nossa  posição  em  relação  a  ele,  perdemos  a  nossa 
participação  respondente  àquilo  a  que  somos  cha‐
mados.  Em  nenhum  caso  temos  a  completude  da 
realização, na unidade e na interpenetração do fato‐
realização‐sentido‐significado único e da nossa par‐
ticipação (já que um e único é o mundo de tal reali‐
zação).  
Tentar encontrar a si mesmo no produto do ato 
da  visão  estética  significa  querer  se  lançar  dentro 
do  não  existente,  tentar  renunciar  à  atividade  pró‐
pria  do  próprio  lugar  único,  extralocalizado  com 
relação a cada ser estético, à própria realização ple‐
na no existir‐evento. A ação‐ato da visão estética se 
eleva  acima  de  cada  ser  estético  –  seu  produto  –  e 
entra  em  um  outro  mundo,  isto  é, na  unidade real 

60
do  existir‐evento,  incorporando,  como  um  de  seus 
momentos,  também  o  mundo  estético. A  pura  em‐
patia  seria,  de  fato,  o  dissolver‐se  do  ato  no  seu 
produto  –  o  que  é  certamente  impossível.  A  visão 
estética é uma visão justificada, se não ultrapassa as 
próprias  fronteiras.  Se,  ao  invés  disso,  ela  tem  a 
pretensão de ser uma visão filosófica do existir úni‐
co e singular no seu caráter de evento, então é inva‐
riavelmente condenada a apresentar uma parte abs‐
tratamente isolada como se fosse o todo efetivo.  
A  empatia  estética  (quer  dizer,  não  a  empatia 
pura, na qual me perco a mim mesmo, mas aquela 
objetivante)  não  pode  fornecer  o  conhecimento  do 
existir  singular  no  seu  caráter  de  evento;  ela  pode 
fornecer somente a visão estética do que é colocado 
externamente ao sujeito (e do próprio sujeito como 
colocado fora da sua atividade, isto é, na sua passi‐
vidade). A empatia estética com aquele que partici‐
pa de um evento não significa ainda alcançar a ple‐
na compreensão do evento. Por mais que eu conhe‐
ça  a  fundo  uma  determinada  pessoa,  assim  como 
eu  conheço  a  mim  mesmo,  devo,  todavia,  compre‐
ender a verdade22 da nossa relação recíproca, a ver‐
dade  do  evento  uno  e  único  que  nos  une,  do  qual 
nós  participamos.  Isto  é,  eu  e  o  objeto  da  minha 
contemplação  estética  precisamos  ser  definidos  na 
unidade do existir que de maneira igual nos abarca, 
e  na  qual  transcorre  o  ato  de  minha  contemplação 
estética;  mas  este  existir  não  pode  ser  mais  de  or‐
dem estética. Somente a partir do interior de tal ato 
como minha ação responsável, e não de seu produto 
tomado abstratamente, pode haver uma saída para 

22  Aqui  e  logo  depois,  pravda,  verdade,  em  contraste  com  istn‐


nostʹ, veracidade. 

61
a unidade do existir. Somente do interior de minha 
participação  pode  ser  compreendida  a  função  de 
cada participante. No lugar do outro, como se esti‐
vesse  em  meu  próprio  lugar,  encontro‐me  na  mes‐
ma condição de falta de sentido. Compreender um 
objeto significa compreender meu dever em relação 
a ele (a orientação que preciso assumir em relação a 
ele),  compreendê‐lo  em  relação  a  mim  na  singula‐
ridade  do  existir‐evento:  o  que  pressupõe  a  minha 
participação responsável, e não a minha abstração. 
Somente  do  interior  de  minha  participação  posso 
compreender  o  existir  como  evento,  mas  este  mo‐
mento de participação singular não existe no interi‐
or do conteúdo visível, na abstração do ato enquan‐
to ato responsável.  
Todavia,  o  ser  estético  está  mais  próximo  da 
unidade  real  do  existir‐como‐vida  do  que  está  o 
mundo  teórico;  por  isso  mesmo  é  bastante  convin‐
cente  a  tentação  do  esteticismo.  No  existir  estético 
pode‐se  viver  –  e  tem  quem  aí  viva,  mas  vivem  os 
outros e não eu – é a vida passada dos outros con‐
templada amorosamente, e tudo isso que se coloca 
fora  de  mim  se  correlaciona  com  essas  pessoas;  ali 
eu  não  encontrarei  a  mim  mesmo,  mas  somente  o 
meu  duplo  que  se  faz  passar  por  mim;  nessa  vida 
eu  não  posso  senão  interpretar  um  papel,  isto  é, 
vestir,  como  uma  máscara,  a  carne  de  um  outro  – 
de  um  morto.  Mas,  na  vida  real,  permanece  a  res‐
ponsabilidade  estética  do  ator  e  do  indivíduo  hu‐
mano em relação à oportunidade da interpretação, 
dado  que  a  interpretação  na  sua  totalidade  é,  em 
geral,  um  ato  responsável  seu  –  do  ator,  do  intér‐
prete,  e  não  da  pessoa  representada,  do  herói.  O 
mundo  estético  na  sua  totalidade  não  é  senão  um 
momento do existir‐como‐evento, faz precisamente 

62
parte  dele  através  de  uma  consciência  responsável 
–  o  ato  de  quem  dele  participa.  A  razão  estética  é 
um momento da razão prática.  
E,  desse  modo,  nem  o  conhecimento  teórico 
nem  a  intuição  estética  podem  oferecer  uma  apro‐
ximação ao existir real único do evento, já que entre 
o conteúdo‐sentido (o produto) e o ato (a real efeti‐
vação histórica) não existe unidade nem interpene‐
tração, em consequência da abstração fundamental 
de mim mesmo enquanto participante da afirmação 
do sentido e da visão. É isso que leva o pensamento 
filosófico, que por princípio tende a ser puramente 
teórico,  àquele  estado  particular  de  esterilidade  no 
qual,  sem  dúvida,  ele  atualmente  se  encontra.  O 
acréscimo de certa dose de esteticismo cria a ilusão 
de uma vitalidade maior, mas se trata tão somente 
de  uma  ilusão.  Para  quem  deseja  e  sabe  pensar  de 
modo  participante  (sem  separar  o  próprio  ato  do 
produto de tal ato, e sim colocando ambos em rela‐
ção entre si, procurando defini‐los no contexto uni‐
tário  e  singular  da  vida  como  inseparáveis)  parece 
que a filosofia, que deveria resolver as questões úl‐
timas (isto é, colocar as questões no contexto do e‐
xistir  unitário  e  singular  na  sua  totalidade),  de 
qualquer  modo,  não  fala  do  que  deveria.  Mesmo 
que as suas proposições tenham certa validade, não 
são  elas,  todavia,  capazes  de  determinar  o  ato  e  o 
mundo no qual este ato real e responsavelmente se 
realiza uma e somente uma vez. 
Aqui  não  se  trata  somente  de  diletantismo,  de 
incapacidade de apreciar a grande importância das 
conquistas da filosofia contemporânea no campo da 
metodologia de setores particulares da cultura. Po‐
de‐se e deve‐se reconhecer que, no domínio de suas 

63
tarefas  específicas,  a  filosofia  contemporânea  (so‐
bretudo o neokantismo) alcançou um nível eviden‐
temente alto e soube, enfim, elaborar métodos per‐
feitamente  científicos  (coisa  que  o  positivismo  em 
todas as suas formas, com o pragmatismo aí incluí‐
do,  não  soube  fazer).  Não  se  pode  negar  à  nossa 
época  o  grande  mérito  de  ter  se  aproximado  do  i‐
deal da filosofia científica, mas tal filosofia científi‐
ca não pode ser mais que uma filosofia especializa‐
da,  isto  é,  uma  filosofia  dos  diversos  domínios  da 
cultura  e  de  sua  unidade,  sob  a  forma  de  uma 
transcrição  teórica  desde  o  interior  dos  objetos  em 
si  da  criação  cultural  e  da  lei  imanente  de  seu  de‐
senvolvimento.  Portanto,  esta  filosofia  teórica  não 
pode  pretender  ser  uma  filosofia  primeira,  isto  é, 
uma doutrina não sobre a criação cultural unitária, 
mas  sobre  o  existir‐evento  unitário  e  singular.  Tal 
filosofia primeira não existe e parecem estar esque‐
cidos os caminhos de sua criação. Daí, precisamen‐
te,  a  profunda  insatisfação  em  relação  à  filosofia 
contemporânea por parte daqueles que pensam de 
modo  participante;  insatisfação  que  leva  alguns 
destes a se orientar por concepções como o materia‐
lismo histórico que, com todos os seus limites e su‐
as  lacunas,  atrai  uma  consciência  participante  pelo 
fato  de  que  procura  construir  o  seu  mundo  de  tal 
modo que um ato determinado concretamente, his‐
tórico e real encontre um lugar nele; por isso, uma 
consciência que tem um propósito e age23 se desco‐
bre  em  tal  mundo.  Nós  podemos,  aqui,  deixar  de 
lado  a  questão  <palavra  ilegível>  particular  e  das 
inadequações  metodológicas  por  meio  das  quais  o 

23  O que segue, daqui até o fim do parágrafo, não estava incluí‐
do na edição original de 1986. 

64
materialismo histórico realiza a sua saída do mun‐
do teórico mais abstrato para entrar no mundo vivo 
do ato como realização histórica responsável. O que 
conta  para  nós  aqui  é  que  nesse  mundo  tal  saída 
acontece; e é nisso que  está sua força, o motivo de 
seu  sucesso.  Outros  procuram  satisfação  filosófica 
na  teosofia,  na  antroposofia  e  em  outras  doutrinas 
semelhantes. Estas doutrinas absorveram muito da 
sabedoria real do pensamento participativo medie‐
val  e  oriental,  mas,  consideradas  como  concepções 
unitárias e não como simples compilações de visões 
particulares  do  pensamento  participante  através 
dos  séculos,  são  absolutamente  insatisfatórias,  e 
cometem  o  mesmo  pecado  metodológico  do  mate‐
rialismo  histórico,  o  da  indiscriminação  metodoló‐
gica do que é dado e o que é posto como tarefa, en‐
tre o que é e o que está ainda por ser realizado. 
Para uma consciência participante e exigente, é 
claro  que  o  mundo  da  filosofia  contemporânea,  o 
mundo  teórico  e  teorizado  da  cultura,  é,  em  certo 
sentido, real e tem validade, mas é igualmente claro 
que tal mundo não é aquele mundo no qual ela vi‐
ve de fato e no qual o seu ato, responsavelmente, se 
realiza. Estes dois mundos não se comunicam entre 
si, e não existe um princípio que sirva para incluir e 
envolver o mundo válido da teoria e da cultura teo‐
rizada  no  existir‐evento  singular  da  vida.  O  ser 
humano contemporâneo se sente seguro, com intei‐
ra  liberdade  e  conhecedor  de  si,  precisamente  lá 
onde ele, por princípio, não está, isto é, no mundo 
autônomo  de  um  domínio  cultural  e  da  sua  lei  i‐
manente de criação; mas se sente inseguro, privado 
de  recursos  e  desanimado  quando  se  trata  dele 
mesmo, quando ele é o centro da origem do ato, na 

65
vida  real  e  única.  Ou  seja,  agimos  com  segurança 
quando  o  fazemos  não  partindo  de  nós  mesmos, 
mas  como  alguém  possuído  da  necessidade  ima‐
nente do sentido deste ou de outro domínio da cul‐
tura.  O  percurso  da  premissa  à  conclusão  se  cum‐
pre  de  maneira  impecável  e  inatacável,  mesmo 
porque nele eu mesmo não estou; mas como e onde 
se  pode  inserir  este  processo  do  meu  pensamento 
que  se  apresenta  assim  intrinsecamente  irrepreen‐
sível  e  puro,  plenamente  justificado  em  sua  totali‐
dade?  Na  psicologia  da  consciência?  Ou  talvez  na 
história  de  alguma  ciência  apropriada?  Talvez  no 
meu  relatório  material,  remunerado  com  base  na 
exata quantidade de linhas com que é formado? Ou 
na ordem cronológica do meu dia, como ocupação 
das cinco às seis? Em minhas obrigações de ordem 
científica? Mas todas estas possibilidades e contex‐
tos empregados para encontrar um sentido flutuam 
neles mesmos, em uma espécie de espaço sem ar, e 
não estão enraizados em nada de unitário e singu‐
lar.  A  filosofia  contemporânea  não  fornece  princí‐
pios  para  tal  união,  e  nisso  consiste  a  sua  crise.  O 
ato  aparece  cindido  em  um  conteúdo  de  sentido 
objetivo e  um processo  subjetivo de realização. Do 
primeiro fragmento, cria‐se uma unidade sistemáti‐
ca  da  cultura,  única  e  verdadeiramente  altiva  na 
sua  rigorosa  clareza;  do  segundo,  se  não  é  descar‐
tado  como  absolutamente  inservível  (privado,  de 
fato, do conteúdo‐sentido, ele é pura e inteiramente 
subjetivo),  pode‐se,  no  melhor  dos  casos,  extrair  e 
admitir  alguma  coisa  de  estético  e  teórico,  do  tipo 
da durée do élan vital de Bergson, <12 palavras ilegí‐
veis>.  Mas,  em  ambos  os  casos,  não  há  lugar  para 
uma realização‐ação real e responsável.  

66
Todavia,  a  filosofia  contemporânea  conhece 
também a ética e a razão prática. Mesmo o primado 
kantiano  da  razão  prática  é  devotamente  seguido 
pelo neokantismo contemporâneo. Quando falamos 
do mundo teórico, contrapondo‐o ao ato responsá‐
vel,  nada  dizemos  sobre  as  construções  éticas  con‐
temporâneas, as quais de fato têm a ver com o ato. 
Na realidade, a presença do sentido ético na filoso‐
fia  contemporânea  não  acrescenta  nada  de  novo 
<palavra  ilegível>;  quase  toda  a  crítica  ao  teoricis‐
mo pode ser também estendida aos sistemas éticos, 
por isso não entraremos em uma análise detalhada 
das  doutrinas  éticas  existentes;  falaremos,  em  mo‐
mento oportuno de nosso trabalho sobre as concep‐
ções éticas particulares (o altruísmo, o utilitarismo, 
a  ética  de  Hermann  Cohen24,  etc.)  e  das  questões 
específicas  a  elas  relacionadas.  Aqui,  devemos  so‐
mente  mostrar  como  a  filosofia  prática,  nas  suas 
orientações  principais,  distingue‐se  da  chamada 
filosofia teórica apenas por seu objeto, não pelo mé‐
todo  ou  pelo  modo  de  pensar;  também  ela  é  intei‐
ramente impregnada de teoricismo e, na solução da 
tarefa  que  se  propõe,  não  existe  diferença  entre  os 
seus encaminhamentos particulares.  
Todos  os  sistemas  éticos  são  frequentemente 
distinguidos,  justamente,  em  materiais  e  formais. 
Contra  a  ética  material  (conteudística)  temos  duas 
objeções de princípio; contra a ética formal, uma. A 

24  Hermann  Cohen  (1842  –  1918),  fundador  da  escola  de  Mar‐


bourg  com  o  qual  tinha  estudado  um  dos  participantes  do 
Círculo de Bakhtin a ele mais próximo, F.F. Matvej I. Kagan. 
Ver,  a  este  propósito  “Mikhail  Bakhtin  em  diálogo.  Conver‐
sas  de  1973  com  Viktor  Duvakin”.  Pedro  &  João  Editores, 
2008, p. 43‐45. 

67
ética  material  procura  encontrar  e  fundar  normas 
conteudísticas  morais  especificas,  normas  às  vezes 
de  validade  universal,  às  vezes  primordialmente 
relativas, mas em qualquer caso gerais, aplicáveis a 
todos. Um ato é ético somente quando é governado 
inteiramente  por  uma  norma  moral  apropriada, 
que  tenha  determinado  conteúdo  de  caráter  geral. 
A  primeira  objeção  de  princípio  contra  a  ética  ma‐
terial  ou  conteudística,  objeção  a  qual  já  tivemos 
ocasião  de  sinalizar,  consiste  nisto:  não  existem 
normas  especificamente  éticas.  Cada  norma  con‐
teudística encontra o seu fundamento específico na 
sua  validação  pela  disciplina  científica  correspon‐
dente: a lógica, a estética, a biologia, a medicina, ou 
qualquer  uma  das  ciências  sociais.  Claro  que,  na 
ética, tiradas todas as normas que encontraram um 
fundamento  em  uma  disciplina  apropriada,  resta 
certa  quantidade  de  normas  (frequentemente  pas‐
sando  por  fundamentais)  que  não  acham  funda‐
mento  em  parte  alguma  –  para  as  quais  seria  tam‐
bém  difícil  dizer  qual  disciplina  poderia  em  geral 
fundá‐las  –  e  que,  todavia,  soam  convincentes.  Na 
sua estrutura, entretanto, tais normas em nada dife‐
rem das normas científicas, e o acréscimo do epíteto 
“ético”  não  diminui  a  necessidade  de  demonstrar 
cientificamente  que  elas  são  verdadeiras.  Em  rela‐
ção  a  tais  normas,  o  problema  permanece,  inde‐
pendentemente  do  fato  de  ser  ou  não  resolvido: 
cada norma de conteúdo deve se elevar ao nível de 
uma  proposição  científica  especial;  até  então  a 
norma  segue  sendo  somente  uma  generalização 
praticamente  útil  ou  uma  conjectura.  As  futuras 
ciências  sociais,  fundadas  filosoficamente  (no  mo‐
mento atual estão em um estado deplorável), redu‐

68
zirão  consideravelmente  o  número  de  tais  normas 
errantes, não enraizadas em nenhuma unidade cien‐
tífica (a ética em si não pode ser tal unidade cientí‐
fica; pode apenas ser contemplação de proposições 
praticamente  necessárias,  às  vezes  não  demonstra‐
das).  Na  maioria  dos  casos,  tais  normas  éticas  re‐
presentam  um  conglomerado  metodologicamente 
não articulado de diversos princípios e valorações. 
Assim,  a  posição  suprema  do  utilitarismo  está  su‐
jeita à competência e à crítica, quanto à sua valida‐
de  científica,  de  três  disciplinas  especiais:  psicolo‐
gia,  filosofia  do  direito  e  sociologia.  O  dever  en‐
quanto tal, a transformação de uma posição teórica 
em  uma  norma,  permanece,  na  ética  material,  to‐
talmente  infundado.  Na  ética  material  não  se  acha 
nem  mesmo  um  meio  de  aproximar‐se  dele:  afir‐
mando  a  existência  de  normas  éticas  especiais,  ela 
admite  cegamente  que  o  dever  moral  seja  próprio 
de  algumas  proposições  conteudísticas  enquanto 
tais,  que  ele  decorre  diretamente  de  seu  conteúdo‐
sentido,  ou  seja,  que,  a  partir  de  certa  proposição 
teórica  (o  supremo  princípio  da  ética),  possa  ser, 
por seu próprio sentido, uma proposição de dever – 
depois de ter, obviamente, pressuposto a existência 
do sujeito, do ser humano. O dever ético é acresci‐
do a partir do exterior. A ética material é realmente 
incapaz de entender o problema que aqui se escon‐
de. As tentativas de fundar biologicamente o dever 
são  inadequadas  e  realmente  não  merecedoras  de 
consideração.  Daqui  deveria  resultar  claro  que  to‐
das  as  normas  conteudísticas,  assim  como  aquelas 
demonstradas pela ciência, serão relativas em rela‐
ção ao dever, já que ele lhes é agregado do exterior. 
Como  psicólogo,  sociólogo,  jurista  ex‐cathedra,  pos‐

69
so  estar  de  acordo  com  uma  ou  outra  proposição, 
mas afirmar que, por isso mesmo, ela se torna uma 
norma  que  controla  a  minha  ação  significa  passar 
por cima do problema fundamental. Também para 
o  fato  mesmo  da  minha  real  concordância  com  a 
validade  da  proposição  dada  ex‐cathedra  –  como 
meu ato – é insuficiente não só a validade em si da 
proposição,  mas  também  a  minha  capacidade  psi‐
cológica  de  compreensão.  É  necessário,  ainda,  al‐
guma coisa que tenha origem em mim, precisamen‐
te a orientação do dever moral de minha consciên‐
cia em relação à proposição em si teoricamente vá‐
lida. É justamente essa orientação moral da consci‐
ência que é ignorada pela ética material, a qual pas‐
sa  mesmo  por  cima  do  problema  que  aqui  se  es‐
conde, sem vê‐lo. Nenhuma proposição teórica po‐
de  fundar  diretamente,  na  sua  real  completude, 
uma ação, nem mesmo uma ação‐pensamento. Em 
geral,  o  pensamento  teórico  não  tem  de  conhecer 
norma  alguma.  A  norma  é  uma  forma  especial  de 
livre  arbítrio  de  um  em  relação  aos  outros  e,  en‐
quanto tal, é essencialmente peculiar apenas ao di‐
reito (a lei) e à religião (os mandamentos), onde sua 
real  obrigatoriedade  –  como  norma  –  é  validada 
não  do  ponto  de  vista  de  seu  conteúdo‐sentido, 
mas  do  ponto  de  vista  da  autoridade  real  da  sua 
fonte (livre arbítrio) ou da autenticidade e exatidão 
da transmissão (referências a leis, escrituras, textos 
canônicos, interpretações, verificações de autentici‐
dade  ou  –  mais  essencialmente  –  as  bases  da  vida, 
as bases do poder legislativo, a comprovada inspi‐
ração divina das escrituras). Sua validade de conteú‐
do‐sentido  funda‐se  somente  sobre  o  livre  arbítrio 
(da parte do legislador, da parte de Deus), mas, no 

70
processo de sua criação, – da valoração da sua vali‐
dade teórica e prática – a norma, na consciência de 
quem a cria, não é ainda norma, mas constitui uma 
determinação teórica (a forma do processo de valo‐
ração poderia ser a seguinte: será tal coisa certa ou 
útil, isto é, é vantajosa para alguém?). Em todos os 
outros  domínios,  a  norma  é  simplesmente  a  forma 
verbal que notifica as condições de adequação con‐
vencional de algumas teses teóricas a uma finalida‐
de  determinada:  se  você  quer  ou  precisa  disso  ou 
daquilo, então, visto que… (a tese teoricamente vá‐
lida  é  invocada  neste  ponto),  então  você  deve  agir 
de tal e tal maneira. Aqui não há nenhum livre arbí‐
trio, e, por conseguinte, nenhuma autoridade: todo 
o sistema está aberto: se você quiser. O problema de 
um livre arbítrio com autoridade (que cria a norma) 
é  um  problema  de  filosofia  do  direito,  de  filosofia 
da  religião,  e  também  um  dos  problemas  de  uma 
filosofia  moral  efetiva,  enquanto  ciência  primeira, 
filosofia primeira (o problema do legislador). 
A segunda falha da ética material é a sua uni‐
versalidade – a suposição de que o dever possa ser 
estendido, possa aplicar‐se a qualquer um. Esse er‐
ro deriva, certamente, do precedente. Do momento 
em  que  o  conteúdo  das  normas  é  retirado  de  um 
juízo cientificamente válido e a sua forma é assimi‐
lada à do direito e dos mandamentos, a universali‐
dade das normas passa a ser inevitável. A universa‐
lidade do dever é também um defeito da ética for‐
mal,  que  passamos  agora,  então,  a  considerar.  À 
ética  formal  é  estranho  o  defeito  fundamental  da 
ética material por nós individuado (apenas, porém, 
em princípio, enquanto observação formal, e não na 
sua realização concreta, real, na qual costuma acon‐

71
tecer habitualmente uma espécie de abrandamento 
de  todos  os  princípios  e  um  aportar  de  normas  de 
conteúdo  particular,  também  em  Kant).  A  ética 
formal parte da ideia, perfeitamente correta, de que 
o dever é uma categoria da consciência, uma forma 
que não pode ser derivada de algum conteúdo ma‐
terial determinado. Mas a ética formal, desenvolvi‐
da  exclusivamente  no  terreno  do  kantismo,  pensa 
em seguida a categoria do dever como categoria da 
consciência  teórica,  isto  é,  a  teoriza;  como  conse‐
quência, perde o ato individual. Mas o dever é jus‐
tamente  uma  categoria  do  ato  individual;  ainda 
mais do que isso, é a categoria da própria individu‐
alidade,  da  singularidade  do  ato,  de  sua  insubsti‐
tuibilidade e não intercambialidade, do seu caráter, 
para  quem  o  executa25,  da  necessidade  e  da  não 
derrogabilidade,  de  seu  caráter  histórico.  Ora, 
mesmo através do dever a ética formal julga estabe‐
lecer o caráter da validade universal do ato. A cate‐
goricidade  do  imperativo  cede  lugar  à  sua  univer‐
salidade, pensada pelo modelo da verdade teórica. 
O imperativo categórico determina o ato como 
lei de validade universal, mas é desprovido de um 
determinado  conteúdo  positivo  particular.  Ele  é  a 
lei mesma enquanto tal, a ideia da pura legalidade, 
isto é, o conteúdo da lei consiste na própria legali‐
dade, o ato deve ser conforme a lei. Tal concepção 
contém  dois  aspectos  válidos:  1)  o  ato  deve  ser  to‐
talmente não casual; 2) o dever assume efetivamen‐
te  para  mim  um  caráter  totalmente  necessário,  ca‐
tegórico.  Mas  a  noção  da  legalidade  é  incompara‐
velmente  mais  ampla  e,  além  dos  aspectos  indica‐
dos,  contém  outros  mais  que  são  totalmente  in‐

25   Nuditelʹnostʹ. 

72
compatíveis com o dever: a universalidade jurídica 
e  a  transferência  para  o  nosso  contexto  de  seu 
mundo  da  validade  teórica  universal.  Estes  aspec‐
tos  da  legalidade  submetem  o  ato  à  pura  teoria,  à 
justificação  puramente  teórica  do  juízo,  e  é  justa‐
mente  nesta  sua  justificação  teórica  que  reside  a 
legalidade do imperativo categórico enquanto geral 
e  universalmente  válido.  É  exatamente  isso  que 
Kant exige: a lei que regula o meu ato deve ser jus‐
tificada  enquanto  capaz  de  tornar‐se  norma  de 
conduta universal. E como acontece tal justificação? 
Obviamente,  apenas  por  meio  de  determinações 
puramente  teóricas:  sociológicas,  econômicas,  esté‐
ticas,  científicas.  O  ato  é  atirado  no  mundo  teórico 
com base no requisito vazio da legalidade.  
O outro defeito da ética formal é o seguinte: a 
vontade se autoprescreve a lei e, automaticamente, 
faz  da  pura  conformidade  à  lei  a  própria  lei  ima‐
nente. Podemos ver, aqui, uma analogia plena com 
a  edificação  <palavra  ilegível>  estável  do  mundo 
autônomo da cultura. A vontade‐ato cria uma lei a 
que se submete e, por isso, enquanto vontade indi‐
vidual, morre em seu produto. A vontade traça um 
círculo e se fecha dentro dele, excluindo a atividade 
individual  real  e  histórica  da  ação.  Trata‐se  da 
mesma ilusão da filosofia teórica: no caso da filoso‐
fia teórica, temos a atividade da razão, com a qual 
nada  tem  em  comum  a  minha  atividade  histórica 
individualmente  responsável  e  para  a  qual  tal  ati‐
vidade  categorial  da  razão  se  torna  passivamente 
obrigatória;  acontece  a  mesma  coisa  no  caso  da 
vontade. Tudo isso altera radicalmente o real dever 
moral e não fornece de fato uma aproximação à rea‐
lidade  do  ato.  No  ato,  a  vontade  é  ativa  de  modo 

73
efetivo e criativo, mas não fornece, de modo algum, 
uma norma, uma fórmula universal. A lei é obra de 
um ato especial – um ato‐pensamento, mas mesmo 
o ato‐pensamento não é ativo no aspecto conteudis‐
ticamente válido de uma fórmula. O ato‐pensamento 
é  produtivamente  ativo  somente  no  momento  da 
incorporação da verdade válida em si no ser histó‐
rico  (aspecto  realmente  constitutivo  do  conhecer, 
do  aprender):  o  ato  é  ativo  no  produto  real  único 
que ele criou (em uma ação real efetuada, em uma 
palavra  dita,  em  um  pensamento  pensado,  onde, 
além disso, a validade abstraída de si da lei jurídica 
real não é mais que um momento). A respeito da lei 
considerada em sua validade de sentido, a ativida‐
de  do  ato  se  manifesta  somente  em  um  reconheci‐
mento  realmente  efetuado,  em  um  juízo  efetiva‐
mente expresso.  
Assim, o teoricismo fatal – a abstração do meu 
eu singular – ocorre também na ética formal: aqui, 
o mundo da razão prática é em realidade um mun‐
do teórico, e não o mundo no qual o ato é realmen‐
te  executado.  O  ato  já  realizado  no  mundo  pura‐
mente  teórico,  que  requer  somente  um  exame  de 
ordem teórica, poderia ser descrito e compreendido 
‐ e mesmo assim apenas post factum  – do ponto de 
vista da ética formal de Kant e dos kantianos. Aqui 
não  existe  nenhuma  aproximação  possível  com  o 
ato vivo no mundo real. O primado da razão práti‐
ca é, na realidade, o primado de um domínio teóri‐
co sobre todos os outros, e isto se dá somente por‐
que é o domínio da forma mais vazia e improduti‐
va do que é universal. A lei da conformidade à lei é 
uma fórmula vazia do puro teoricismo. Nunca uma 
razão prática semelhante pode fundar uma filosofia 

74
primeira. O princípio da ética formal não é de fato 
um princípio do ato, mas o princípio da generaliza‐
ção  possível  dos  atos  já  dados  na  sua  transcrição 
teórica.  A  ética  formal,  em  si,  não  é  produtiva  e  é 
simplesmente um domínio da moderna filosofia da 
cultura.  Contudo,  o  discurso  muda  quando  a  ética 
tende a ser a lógica das ciências sociais. Nesse caso, 
o método transcendental pode tornar‐se muito mais 
produtivo. Mas então por que chamar ética a lógica 
das  ciências  sociais  e  falar  do  primado  da  razão 
prática? Por certo não vale a pena discutir sobre os 
termos: uma filosofia moral do gênero pode e deve 
ser  criada,  mas  certamente  se  pode  e  se  deve  criar 
uma outra, que mereça mais – ainda que não exclu‐
sivamente – tal nome.  
Reconhecemos,  então,  como  infundados  e  es‐
sencialmente  sem  esperança  todas  as  tentativas  de 
orientar  uma  filosofia  primeira,  a  filosofia  do  exis‐
tir‐evento  uno  e  único,  em  relação  ao  aspecto  do 
conteúdo‐sentido,  de  produto  objetivado,  fazendo 
abstração  da  ação‐ato  singular  e  do  seu  autor  –  a‐
quele  que  pensa  teoricamente,  contempla  estetica‐
mente e age eticamente. Somente do interior do ato 
real,  singular  –  único  na  sua  responsabilidade  –  é 
possível uma aproximação também singular e úni‐
ca ao existir na sua realidade concreta; somente em 
relação  a  isso  pode  orientar‐se  uma  filosofia  pri‐
meira.  
O ato – considerado não a partir de seu conte‐
údo, mas na sua própria realização – de algum mo‐
do conhece, de algum modo possui o existir unitá‐
rio e singular da vida; orienta‐se por ele e o consi‐
dera em sua completude – seja no seu aspecto con‐
teudístico,  seja  na  sua  real  facticidade  singular;  do 

75
interior,  o  ato  não  vê  somente  um  contexto  único, 
mas também o único contexto concreto, o contexto 
último, com o qual relaciona tanto o seu  sentido as‐
sim  como  o  seu  fato,  em  que  procura  realizar  res‐
ponsavelmente  a  verdade26  única,  seja  do  fato  seja 
do sentido, na sua unidade concreta. Por isso é ne‐
cessário,  evidentemente,  assumir  o  ato  não  como 
um  fato  contemplado  ou  teoricamente  pensado  do 
exterior,  mas  assumido  do  interior,  na  sua  respon‐
sabilidade.  Essa  responsabilidade  do  ato  permite 
levar em consideração todos os fatores: tanto a va‐
lidade de sentido quanto a execução factual em to‐
da a sua concreta historicidade e individualidade; a 
responsabilidade  do  ato  conhece  um  único  plano, 
um único contexto, no qual tal consideração é pos‐
sível e onde tanto a validade teórica, quanto a fac‐
tualidade  histórica  e  o  tom  emotivo‐volitivo  figu‐
ram  como  momentos  de  uma  única  decisão.  Além 
disso, todos esses momentos – que, de um ponto de 
vista abstrato, parecem ter um significado diverso – 
em  vez  de serem  empobrecidos,  são  admitidos  em 
toda a sua plenitude e verdade; em consequência, a 
ação tem um único plano e um único princípio que 
os  compreende  em  sua  responsabilidade.  Somente 
o ato responsável supera toda hipótese, porque ele 
é – de um jeito inevitável, irremediável e irrevogá‐
vel – a realização de uma decisão; o ato é o resulta‐
do final,  uma consumada conclusão definitiva; con‐
centra, correlaciona e resolve em um contexto único 
e singular e já final o sentido e o fato, o universal e o 
individual,  o  real  e  o  ideal,  porque  tudo  entra  na 
composição  de  sua  motivação  responsável;  o  ato 

26  Pravda. Também em seguida. 

76
constitui  o  desabrochar  da  mera  possibilidade  na 
singularidade da escolha uma vez por todas. 
Não  se  deve,  de  fato,  temer  que  uma  filosofia 
do ato recaia no psicologismo e no subjetivismo. O 
subjetivismo e o psicologismo são correlativos pre‐
cisos  do  objetivismo  (lógico)  e  <palavra  ilegível> 
aparecem  somente  quando  o  ato  é  abstratamente 
dividido,  de  um  lado,  em  sentido  objetivo,  e,  de 
outro, em processo subjetivo da sua realização. Do 
interior do ato mesmo, tomado em sua integridade, 
não  existe  nada  de  subjetivo  e  de  psicológico;  na 
sua responsabilidade, o ato coloca diante de si sua 
própria  verdade  como  verdade  que  une  ambos  os 
seus aspectos, assim como une o aspecto do univer‐
sal  (a  validade  universal)  e  do  individual  (o  real). 
Esta verdade unitária e singular do ato é posta co‐
mo tarefa enquanto verdade sintética.  
Não  menos  infundado  é  o  temor  de  que  esta 
verdade  sintética  unitária  e  singular  do  ato  seja  ir‐
racional. O ato na sua integridade é mais que racio‐
nal – é responsável. Em se tratando da responsabilida‐
de,  a  racionalidade  é  somente  um  momento  seu 
<uma  ou  duas  palavras  ilegíveis>,  uma  luz  que  é 
como  um  brilho  de  “uma  lâmpada  em  uma  clara 
manhã” (Nietzsche).  
Toda  a  filosofia  contemporânea  nasceu  do  ra‐
cionalismo e está inteiramente impregnada do pre‐
conceito do racionalismo – inclusive lá onde delibe‐
radamente procura se liberar dele – segundo o qual 
somente o que é lógico é claro e racional – quando, 
ao contrário disso, o lógico é espontâneo e obscuro 
fora da consciência responsável, como é próprio de 
tudo  que  existe  para  si.  A  claridade  e  a  necessária 
coerência  lógica,  separadas  do  centro  unitário  e 

77
singular da consciência responsável, são forças obs‐
curas e elementares, precisamente por causa  da lei 
da  necessidade  imanente  própria  do  que  é  logica‐
mente  válido.  O  mesmo  erro  do  racionalismo  se 
reflete também na contraposição entre o que é obje‐
tivo, enquanto racional, e o que é subjetivo, indivi‐
dual, singular, enquanto racional e fortuito. Ao que 
é  objetivo,  abstratamente  separado  do  ato,  se  atri‐
bui a racionalidade inteira do ato (certamente inde‐
levelmente  empobrecida),  enquanto  o  que  é  fun‐
damental  e  permanece  do  que  lhe  é  subtraído,  é 
declarado <?> como processo subjetivo. Na realida‐
de,  toda  a  unidade  transcendental  da  cultura  obje‐
tiva  é,  ao  contrário,  obscura  e  elementar,  uma  vez 
que  esteja  totalmente  separada  do  centro  único  e 
singular  da  consciência  responsável;  uma  total  se‐
paração  é  na  realidade  impossível  e,  enquanto  re‐
almente pensamos aquela unidade, ela brilha com a 
luz  refletida  da  nossa  responsabilidade.  Somente 
assumido do exterior como fato fisiológico, biológi‐
co  e  psicológico,  pode  o  ato  se  apresentar  como 
primordial  e  obscuro,  como  tudo  o  que  é  abstrato; 
mas  do  interior  do  ato  aquele  que  age  responsa‐
velmente conhece uma luz clara e distinta, na qual 
se orienta. O evento no seu realizar‐se pode ser cla‐
ro  e  evidente,  a  cada  momento,  para  aquele  que 
participa  de  seu  ato.  Acaso  isso  significa  que  ele  o 
compreende  logicamente?  Vale  dizer,  que  lhe  seri‐
am claros somente os aspectos e as relações univer‐
sais passíveis de transcrição sob a forma de concei‐
tos?  Não,  ele  vê  claramente  seja  as  pessoas  indivi‐
duais,  únicas,  que  ele  ama,  seja  o  céu  e  a  terra,  e 
estas árvores <nove palavras ilegíveis> e o tempo; e 
simultaneamente lhe é dado o valor, concreta e re‐

78
almente  afirmado,  destas  pessoas,  destes  objetos, 
dos quais intui a sua vida íntima e os seus desejos; 
e  fica‐lhe  claro  também  o  sentido  real  e  o  sentido 
que  merece  consideração  por  conta  das  relações 
recíprocas entre ele, estas pessoas e estes objetos, – 
a  verdade  (pravda)  de  um  determinado  estado  de 
coisas – e seu dever  inerente ao ato, não a uma lei 
abstrata  do  ato,  mas  sim  o  dever  real,  concreto, 
condicionado pelo lugar que somente ele ocupa no 
contexto dado do evento. E todos estes momentos, 
que  compõem  o  evento  na  sua  totalidade,  são‐lhe 
dados  e  colocados  como  tarefa  sob  uma  única  luz, 
em  uma  única  consciência  responsável,  e  se  reali‐
zam no ato responsável unificante e singular. E este 
evento na sua totalidade não pode ser transcrito em 
termos  teóricos,  para  não  perder  o  sentido  mesmo 
de seu caráter de evento, o sentido do que precisa‐
mente  o  ato  sabe  de  maneira  responsável  e  a  rela‐
ção  para  a  qual  se  orienta.  Seria  inexato  crer  que 
esta  verdade  concreta  do  ato,  que  aquele  que  age 
no ato singular da ação responsável vê, sente, expe‐
rimenta  e  compreende,  seja  inefável,  que,  de  qual‐
quer modo, só se possa experimentá‐la no momen‐
to em que se age, mas que não seja possível enun‐
ciá‐la de maneira clara e distinta. Tenho para mim 
que  a  linguagem  seja  muito  mais  adaptada  para 
exprimir  exatamente  esta  verdade  do  que  para  re‐
velar  o  aspecto  lógico  abstrato  na  sua  pureza.  Na 
sua  pureza,  o  que  é  abstrato,  é  verdadeiramente 
inefável:  cada  expressão  é  muito  concreta  para  o 
sentido  puro,  e  deforma  e  ofusca  sua  validade  e  a 
pureza  do  sentido  em  si.  Por  isto  no  pensamento 
abstrato  não  pegamos  nunca  uma  expressão  em 
toda a sua completude.  

79
Historicamente  a  linguagem  desenvolveu‐se  a 
serviço  do  pensamento  participante  e  do  ato,  e  so‐
mente nos tempos recentes de sua história começou 
a servir o pensamento abstrato. A expressão do ato 
a  partir  do  interior  e  a  expressão  do  existir‐evento 
único no qual se dá o ato exigem a inteira plenitude 
da palavra: isto é, tanto o seu aspecto de conteúdo‐
sentido  (a  palavra‐conceito),  quanto  o  emotivo‐
volitivo  (a  entonação  da  palavra),  na  sua  unidade. 
E em todos esses momentos a palavra plena e única 
pode ser responsavelmente significativa: pode ser a 
verdade  (pravda),  e  não  somente  qualquer  coisa  de 
subjetivo  e  fortuito.  Não  é  necessário,  obviamente, 
supervalorizar  o  poder  da  linguagem:  o  existir‐
evento irrepetível e singular e o ato de que partici‐
pa  são,  fundamentalmente,  exprimíveis,  mas  de 
fato se trata de uma tarefa muito difícil, e uma ple‐
na  adequação  está  fora  do  alcance,  mesmo  que  ela 
permaneça sempre como um fim.  
Disso resulta claro que a filosofia primeira, que 
procura se  aproximar  do existir‐evento como o co‐
nhece o ato responsável – isto é, não o mundo cria‐
do pelo o ato, mas aquele em que o ato toma cons‐
ciência de si mesmo e se realiza de maneira respon‐
sável  –  não  pode  construir  conceitos  universais, 
proposições e leis gerais acerca deste mundo (coisa 
que concerne ao ato na sua pureza teórico‐abstrata), 
mas  pode  ser  somente  uma  descrição,  uma  feno‐
menologia  de  tal  mundo  do  ato.  Um  evento  pode 
ser  descrito  somente  de  modo  participante.  Mas 
este  mundo‐evento  não  é  somente  o  mundo  do  e‐
xistir, da dádiva; nenhum objeto, nem uma só rela‐
ção se dá aqui como simplesmente dado, como sim‐
plesmente,  totalmente,  presente;  é  sempre  dado 

80
junto com alguma coisa a ser feita, a ser alcançada, 
ao  qual  está  ligado:  deve‐se...,  é  desejável…  Um 
objeto absolutamente indiferente, totalmente óbvio, 
não poderia se tornar alguma coisa realmente reco‐
nhecida,  efetivamente  experimentada:  quando  te‐
nho  experiência  direta  de  um  objeto,  quer  dizer 
quando de fato estou fazendo alguma coisa em re‐
lação a ele, esse objeto entra novamente em relação 
com alguma coisa que me coloco como tarefa, e que 
adquire  densidade  na  minha  relação  com  ele.  Não 
se  pode  viver  a  experiência  de  uma  dádiva  pura. 
No momento em que realmente vivo a experiência 
de  um  objeto  –  mesmo  que  apenas  pense  nele  –  o 
objeto  se  torna  um  momento  dinâmico  daquele  e‐
vento em curso que é o meu pensá‐lo‐experimentá‐
lo; ele adquire, assim, o caráter de alguma coisa por 
se realizar, ou, mais precisamente, ele me é dado no 
âmbito  do  evento  na  sua  unidade,  dos  quais  são 
momentos  inseparáveis  o  que  é  dado  e  o  que  está 
para se cumprir, o que é e o que deve ser, o fato e o 
valor.  Todas  estas  categorias  abstratas  são  aqui 
momentos  de  uma  unidade  viva,  concretamente 
tangível, singular: o evento. Analogamente também 
a palavra viva, a palavra plena, não tem a ver com 
o  objeto  inteiramente  dado:  pelo  simples  fato  de 
que eu comecei a falar dele, já entrei em uma rela‐
ção  que  não  é  indiferente,  mas  interessado‐afetiva, 
e por isso a palavra não somente denota um objeto 
como de algum modo presente, mas expressa tam‐
bém  com  a  sua  entonação  (uma  palavra  realmente 
pronunciada não pode evitar de ser entoada, a en‐
tonação é inerente ao fato mesmo de ser pronunci‐
ada) a minha atitude avaliativa em relação ao obje‐
to – o que nele é desejável e não desejável – e, desse 

81
modo,  movimenta‐o  em  direção  do  que  ainda  está 
por ser determinado nele, torna‐se momento de um 
evento vivo. Tudo o que é efetivamente experimen‐
tado o é como alguma coisa que concerne simulta‐
neamente  ao  dado  e  ao  por‐fazer‐se,  recebe  uma 
entonação,  possui  um  tom  emotivo‐volitivo,  entra 
em  relação  afetiva  comigo  na  unidade  do  evento 
que  nos  abarca  [entra  em  relação  com  o  autor‐
observador – e com o herói; eu ocupo uma posição 
e o herói uma outra]. O tom emotivo‐volitivo é um 
momento  imprescindível  do  ato,  inclusive  do  pen‐
samento  mais  abstrato  enquanto  meu  pensamento 
realmente  pensado,  isto  é,  na  medida  em  que  o 
pensamento realmente venha a existir, se incorpore 
no  evento.  Tudo  isso  com  que  tenho  a  ver,  me  é 
dado  em  certo  tom  emotivo‐volitivo,  já  que  tudo 
me  é  dado  como  momento  do  evento,  do  qual  eu 
sou participante. Se eu penso num objeto, estabele‐
ço  com  ele  uma  relação  que  tem  o  caráter  de  um 
evento  em  processo.  Na  sua  correlação  comigo  o 
objeto é inseparável da sua função no evento. Mas 
esta  função  do  objeto  na  unidade  do  evento  real 
que  nos  abarca  é  o  seu  valor  real,  afirmado,  o  seu 
tom emotivo‐volitivo.  
Ao  separarmos  abstratamente  o  conteúdo  da 
experiência direta da sua real vivência, o conteúdo 
se nos apresenta como absolutamente indiferente a 
respeito  do  valor  enquanto  valor  real  e  afirmado; 
até um pensamento sobre o valor pode ser separa‐
do de uma avaliação real (posição de Rickert a res‐
peito  do  valor).  Todavia,  para  tornar‐se  realmente 
realizado  e  incorporado  ao  ser  histórico  do  conhe‐
cimento real, o conteúdo válido em si de uma pos‐
sível experiência vivida (de um pensamento) preci‐

82
sa entrar em uma ligação essencial com a valoração 
efetiva;  somente  como  valor  efetivo  ele  é  por  mim 
experimentado  (pensado),  isto  é,  somente  posso 
pensá‐lo verdadeira e ativamente em tom emotivo‐
volitivo.  Esse  conteúdo  não  cai,  de  fato,  na  minha 
cabeça por acaso, como um meteoro de outro mun‐
do, ficando fechado e impenetrável, sem infiltrar‐se 
no  tecido  único  do  meu  vivo  pensar‐experimentar 
emotivo‐volitivo como seu momento essencial. Ne‐
nhum  conteúdo  seria  realizado,  nenhum  pensa‐
mento seria realmente pensado, se não se estabele‐
cesse um vínculo essencial entre o conteúdo e o seu 
tom  emotivo‐volitivo,  isto  é,  o  seu valor  realmente 
afirmado por aquele que pensa. Viver uma experi‐
ência, pensar um pensamento, ou seja, não estar, de 
modo  algum,  indiferente  a  ele,  significa  antes  afir‐
má‐lo  de  uma  maneira  emotivo‐volitiva.  O  verda‐
deiro  pensamento  que  age  é  pensamento  emotivo‐
volitivo,  é  pensamento  que  entoa  e  tal  entonação 
penetra de maneira essencial em todos os momen‐
tos conteudísticos do pensamento. O tom emotivo‐
volitivo  envolve  o  conteúdo  inteiro  do  sentido  do 
pensamento  na  ação  e  o  relaciona  com  o  existir‐
evento  singular.  É  este  mesmo  tom  emotivo‐
volitivo que orienta no existir singular, que orienta 
e afirma realmente o conteúdo‐sentido. A experiên‐
cia real de um vivido possível é precisamente a sua 
inserção, a sua colocação em comunhão com o exis‐
tir‐evento singular. A verdade em si deve tornar‐se 
verdade  para  mim.  [A  compreensão  do  elemento 
emotivo‐volitivo  não  deve  ser  psicológica.  Os  ter‐
mos. O sistema de valoração (ou a relação ao valor) 
na composição <?> em prosa e a sua arquitetônica, 
o caráter de evento da valoração. O sistema de va‐

83
loração do autor deve ser uma posição arquitetôni‐
ca, não deve sair dos limites do existir]. 
Pode‐se,  todavia,  procurar  afirmar  que  a  liga‐
ção entre a validade do conteúdo‐sentido e seu tom 
emotivo‐volitivo  seja  não‐essencial,  casual,  para 
aquele que pensa ativamente. Verdadeiramente não 
é  possível  que  a  força  motriz  emotivo‐volitiva  do 
meu  pensamento  ativo  seja  apenas  uma  vontade 
excessiva de glória ou ganância elementar, enquan‐
to  o  conteúdo  de  tais  pensamentos  sejam  constru‐
ções  gnosiológicas  abstratas?  Verdadeiramente  um 
mesmo  pensamento  não  tem  nuanças  emotivo‐
volitivas  diversas  nas  diferentes  consciências  reais 
daqueles  que  pensam  aquele  mesmo  pensamento? 
Um pensamento pode ser entrelaçado na trama da 
minha  viva  consciência  real  emotivo‐volitiva  por 
razões  completamente  estranhas,  que  não  tenham 
nenhuma relação necessária com o aspecto de con‐
teúdo‐sentido  do  pensamento  dado.  Não  existem 
dúvidas  que  fatos  semelhantes  sejam  possíveis  e 
que  verdadeiramente  possam  acontecer.  Mas  ver‐
dadeiramente  com  base  em  que  se  pode  concluir 
que  tal  vínculo  é  por  princípio  não‐essencial  e  for‐
tuito? Isso significaria reconhecer que toda a histó‐
ria da cultura é por princípio casual em relação ao 
mundo criado por ela – o mundo de um conteúdo 
objetivamente  válido  (Rickert  e  sua  atribuição  de 
valor aos bens). Dificilmente alguém persistiria em 
sustentar até às últimas consequências que o mun‐
do  do  sentido  realmente  realizado  seja  fundamen‐
talmente  o  resultado  do  acaso.  A  filosofia  contem‐
porânea  da  cultura  tenta  estabelecer  uma  ligação 
essencial semelhante, mas do interior do mundo da 
cultura.  Os  valores  culturais  são  valores  em  si 

84
mesmos, e uma consciência viva precisa adaptar‐se 
a eles, afirmá‐los para si mesma, porque, em última 
instância,  a  criação  <?>  é  conhecimento.  Enquanto 
eu crio esteticamente, reconheço responsavelmente 
com  isso  o  valor  do  que  é  estético,  e  a  única  coisa 
que  preciso  fazer  é  reconhecê‐lo  explicitamente, 
realmente; com isso se reconstitui a unidade do mo‐
tivo  e  da  finalidade,  da  realização  verdadeira  e  do 
sentido  do  seu  conteúdo.  Este  é  o  caminho  pelo 
qual uma consciência viva torna‐se consciência cul‐
tural,  e  uma  consciência  cultural  se  encarna  em 
uma  consciência  viva.  Houve  tempo  em  que  o  ser 
humano afirmou realmente todos os valores cultu‐
rais,  e  agora  está  ligado  a  eles.  Assim  o  poder  do 
povo,  segundo  Hobbes,  se  realiza  somente  uma 
vez, no ato de renúncia a si mesmo e da entrega de 
si ao Estado; desde aquele momento o povo se tor‐
na escravo da sua livre decisão. Na prática, este ato 
da decisão originária, da afirmação do valor, se si‐
tua naturalmente além das fronteiras de cada cons‐
ciência  viva:  toda  consciência  viva  encontra  os  va‐
lores culturais como já dados a ela, e toda a sua ati‐
vidade se resume a reconhecer a sua validade para 
si. Uma vez reconhecido o valor da verdade cientí‐
fica  em  todos  os  atos  do  pensamento  científico,  eu 
sou  já  submetido  à  sua  lei  imanente:  quem  diz  a, 
deve  dizer  b,  c  e  assim  todo  o  alfabeto.  Quem  diz 
um,  deve  dizer  dois,  a  necessidade  imanente  da 
série o arrasta (lei da série). Isso significa que o ex‐
perimentar  uma  experiência  e  o  tom  emotivo‐
volitivo podem adquirir a sua unidade somente na 
unidade  da  cultura,  e  que  fora  dela  são  casuais;  a 
consciência  real,  para  ser  unitária,  precisa  refletir 
em  si  a  unidade  sistemática  da  cultura  com  o  res‐

85
pectivo  coeficiente  emotivo‐volitivo,  que  em  rela‐
ção  a  cada  domínio  dado  não  pode  mais  que  ser 
colocado entre parênteses. 
Concepções  semelhantes  são  radicalmente  in‐
consistentes pelas mesmas razões que já expusemos 
acerca  do  dever.  Um  tom  emotivo‐volitivo,  uma 
valoração real, não se referem ao conteúdo enquan‐
to tal, tomado isoladamente, mas na sua correlação 
comigo  no  evento  singular  do  existir  que  nos  en‐
globa.  Não  é  no  contexto  da  cultura  que  uma  afir‐
mação  emotivo‐volitiva  adquire  o  seu  tom;  toda  a 
cultura na sua totalidade vem integrada no contex‐
to unitário e singular da vida do qual eu participo. 
Vão sendo integrados, seja a cultura no seu conjun‐
to,  seja  cada  pensamento  singular,  cada  produto 
individual do ato vivo no contexto unitário e singu‐
lar do pensamento como evento real. O tom emoti‐
vo‐volitivo  interrompe  o  isolamento  e  a  autossufi‐
ciência  do  conteúdo  possível  do  pensamento,  in‐
corpora‐o no existir‐evento unitário e singular. Ca‐
da  valor  que  apresente  validade  geral  se  torna  re‐
almente válido somente em um contexto singular. 
O tom emotivo‐volitivo se dá precisamente em 
relação à unidade singular concreta no seu conjun‐
to, expressa a inteira completude do estado‐evento 
em um momento preciso, e o expressa como o que 
é dado e como o que está por ser concluído – a par‐
tir do interior de mim mesmo enquanto participan‐
te  obrigatório.  Portanto  ele  não  pode  ser  isolado, 
separado  do  contexto  unitário  e  singular  de  uma 
consciência viva, como se se conectasse a um objeto 
particular enquanto tal; não se trata de uma valora‐
ção geral de um objeto independentemente daquele 
contexto  singular  no  qual  ele  me  é  dado  naquele 

86
momento,  mas  expressa  a  verdade  inteira  da  pro‐
posição  na  sua  totalidade,  como  momento  único  e 
irrepetível do que tem caráter de evento.  
O  tom  emotivo‐volitivo,  que  abarca  e  permeia 
o existir‐evento singular, não é uma reação psíquica 
passiva, mas uma espécie de orientação imperativa 
da  consciência,  orientação  moralmente  válida  e 
responsavelmente ativa.  Trata‐se  de  um  movimen‐
to da consciência responsavelmente consciente, que 
transforma  uma  possibilidade  na  realidade  de  um 
ato  realizado,  de  um  ato  de  pensamento,  de  senti‐
mento, de desejo, etc. Com o tom emotivo‐volitivo 
indicamos exatamente o momento do meu ser ativo 
na  experiência  vivida,  o  vivenciar  da  experiência 
como minha: eu penso‐ajo com o pensamento. Esta 
expressão é usada na estética, mas possui nesta um 
significado mais passivo. Para nós é importante re‐
lacionar uma dada experiência vivida a mim como 
aquele que a vive ativamente. Este relacionar a ex‐
periência a mim como ativo tem um caráter valora‐
tivo‐sensorial  e  volitivo‐realizador  e  é,  ao  mesmo 
tempo,  responsavelmente  racional.  Todos  estes 
momentos  são  dados  aqui  em  uma  determinada 
unidade,  perfeitamente  familiar  a  qualquer  um  na 
experiência vivida do seu pensamento, do seu sen‐
timento como seu ato responsável próprio, isto é, a 
qualquer  um  que  o  experimenta  ativamente.  Essa 
expressão  retirada  da  psicologia  que,  fatalmente 
para  ela,  aparece  orientada  ao  sujeito  que  experi‐
menta passivamente, não deve aqui induzir a erro. 
O  momento  da  atuação  do  pensamento,  do  senti‐
mento,  da  palavra,  de  uma  ação,  é  precisamente 
uma  disposição  minha  ativamente  responsável  – 
emotivo‐volitiva em relação à situação na sua tota‐

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lidade,  no  contexto  de  minha  vida  real,  unitária  e 
singular.  
O  fato  de  que  o  tom  emotivo‐volitivo  ativo, 
que penetra em tudo o que é realmente vivido, re‐
flita  a  inteira  irrepetibilidade  individual  do  mo‐
mento  dado  do  evento,  não  o  torna,  de  modo  al‐
gum,  impressionisticamente  irresponsável  e  iluso‐
riamente válido. É precisamente aqui que se acham 
as  raízes  da  responsabilidade  ativa  que  é  a  minha 
responsabilidade; o tom emotivo‐volitivo busca ex‐
pressar a verdade [pravda] do momento dado, o que 
o relaciona à unidade última, una e singular.  
É um triste equívoco, herança do racionalismo, 
imaginar que a verdade [pravda] só pode ser a ver‐
dade  universal  [istina]  feita  de  momentos  gerais,  e 
que,  por  consequência,  a  verdade  [pravda]  de  uma 
situação  consiste  exatamente  no  que  esta  tem  de 
reprodutível  e  constante,  acreditando,  além  disso, 
que o que é universal e idêntico (logicamente idên‐
tico) é verdadeiro por princípio, enquanto a verda‐
de individual é artística e irresponsável, isto é, isola 
uma  dada  individualidade.  No  materialismo  isso 
leva  à  unidade  teórica  do  ser:  é  uma  espécie  de 
substrato  estável,  igual  a  si  mesmo  e  constante, 
uma  unidade  passiva  <?>  inteiramente  dada,  ou 
uma lei, um princípio, uma força, que permanecem 
idênticos  a  si  mesmos.  No  idealismo,  isso  leva  à 
unidade teórica da consciência: eu sou uma espécie 
de  princípio  matemático  unitário  da  série  da  cons‐
ciência,  porque  esta  deve  antes  de  tudo  ser  consti‐
tuída  pela  identidade,  concebida  como  igual  a  si 
mesma. Mesmo quando se fala de um ato singular 
em  realização  (um  fato),  pensa‐se  no  conteúdo  (o 
conteúdo  idêntico  a  si  mesmo)  e  não  no  momento 

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da realização real, efetiva do ato. Mas esta unidade 
– a igualdade de conteúdo, a identidade e a repeti‐
ção  constante  deste  momento  idêntico  (o  princípio 
da  série)  –  é  a  unidade  essencial  do  existir,  o  mo‐
mento  necessário  ao  conceito  de  unidade?  Este 
momento  mesmo  é,  porém,  abstrato  e  derivado,  e, 
como  tal,  ele  já  é  determinado  por  uma  unidade 
singular  e  efetiva.  Neste  sentido  o  próprio  termo 
“unidade”  deveria  ser  abandonado,  porquanto  é 
muito teorizado; não a unidade, mas a singularida‐
de de uma totalidade absolutamente irrepetível, e a 
sua  realidade;  desse  modo,  para  quem  deseja  pen‐
sar teoricamente, esta totalidade singular exclui <?> 
a  categoria  da  unidade  no  sentido  de  algo  que  se 
repete  constantemente.  Assim  torna‐se  mais  com‐
preensível  a  categoria  especial  da  consciência  pu‐
ramente teórica, em tudo isso absolutamente neces‐
sária  e  determinada,  mas  a  consciência  que  atua  é 
associada  à  singularidade  real  como  componente 
desta  singularidade.  Ao  contrário,  a  unidade  da 
consciência  real,  que  age  de  maneira  responsável, 
não deve ser concebida como permanência conteu‐
dística de um princípio, do direito, da lei, e menos 
ainda do ser; aqui a palavra que melhor pode carac‐
terizar  isto  é  fidelidade,  como  é  usada  em  relação 
ao  amor,  ao  matrimônio,  mas  não  entendendo  o 
amor  do  ponto  de  vista  de  uma  consciência  psico‐
lógica passiva (em tal caso isso resultaria num sen‐
timento  sempre  presente  na  alma,  alguma  coisa 
como um calor constantemente percebido, enquan‐
to  na  experiência  real  vivida  desse  sentimento  não 
existe um sentir permanente no sentido do conteú‐
do).  O  tom  emotivo‐volitivo  da  consciência  única 
real é aqui melhor compreendido. De outro lado, na 

89
filosofia  contemporânea,  nota‐se  certa  tendência  a 
conceber  a  unidade  da  consciência  e  a  unidade  do 
ser como unidade de certo valor, mas também aqui 
o valor vem transcrito teoricamente, pensado como 
conteúdo  idêntico  de  valores  possíveis  ou  como 
princípio  constante,  idêntico,  de  valoração,  isto  é, 
como  uma  determinada  estabilidade  do  conteúdo 
de  uma  possível  valoração  e  de  um  valor,  e  o  fato 
do agir [Dejstvie] passa evidentemente para segun‐
do plano. Mas, sem dúvida, aqui está toda a ques‐
tão. Não é o conteúdo da obrigação escrita que me 
obriga, mas a minha assinatura colocada no final, o 
fato de eu ter, uma vez, reconhecido e subscrito tal 
obrigação.  E,  no  momento  da  assinatura,  não  é  o 
conteúdo deste ato que me obrigou a assinar, já que 
tal conteúdo sozinho não poderia me forçar ao ato – 
a  assinatura‐reconhecimento,  mas  podia  somente 
em  correlação  com  a  minha  decisão  de  assumir  a 
obrigação  –  executando  o  ato  da  assinatura‐
reconhecimento;  e  mesmo  neste  ato  o  aspecto  con‐
teudístico  não  era  mais  que  um  momento,  e  o  que 
foi decisivo foi o reconhecimento que efetivamente 
ocorreu, a afirmação – o ato responsável, etc. O que 
encontramos  em  cada  caso  é  uma  constante  <?> 
singularidade  na  responsabilidade,  não  a  perma‐
nência de um conteúdo, nem uma lei constante do 
ato  –  todo  o  conteúdo  não  é  mais  que  um  compo‐
nente,  e  somente  um  determinado  fato  real  de  re‐
conhecimento,  singular  e  irrepetível,  emotivo‐
volitivo e concretamente individual. É claro que se 
pode  transcrever  tudo  isso  em  termos  teóricos  e 
expressá‐lo  como  lei  constante  do  ato,  porque  a 
ambivalência  da  língua  o  permite,  mas  obteríamos 
uma  fórmula  vazia,  que  necessitaria  ela  mesma  de 

90
um real reconhecimento singular, para não retornar 
nunca  mais,  na  consciência,  para  a  sua  identidade 
conteudística.  Pode‐se,  evidentemente,  filosofar  à 
vontade sobre isso, mas só para conhecer e recordar 
também  o  reconhecimento  anteriormente  feito  co‐
mo algo realmente efetuado e executado por mim; e 
isso  pressupõe  a  unidade  da  percepção  e  todo  o 
meu  aparato  de  unidade  cognitiva,  mas  tudo  isso 
permanece  desconhecido  à  consciência  viva  e  que 
age, e tudo isso surge somente em uma transcrição 
teórica post factum. Para a consciência que age tudo 
isso não é mais que o aparato técnico do ato.  
Pode‐se  também  estabelecer  uma  relação  in‐
versamente  proporcional  entre  a  unidade  teórica  e 
a  singularidade  real  (do  existir  ou  da  consciência 
do existir). Quanto mais próximo se está da unida‐
de  teórica  (constância  de  conteúdo  ou  identidade 
repetitiva), tanto mais a singularidade individual é 
pobre e genérica, reduzindo‐se a inteira questão <?> 
à unidade do conteúdo, e a unidade última resulta 
ser  um  possível  conteúdo  vazio  e  idêntico  a  si 
mesmo;  ao  contrário,  quanto  mais  a  singularidade 
individual  se  mantém  longe  da  unidade  teórica, 
tanto mais se torna concreta e plena: a unicidade do 
existir  como  evento  que  se  executa  realmente  em 
toda a sua variedade individual, de cujo  limite ex‐
tremo se aproxima o ato na sua responsabilidade. A 
inclusão  responsável  na  singularidade  única  reco‐
nhecida  do  ser‐evento  é  o  que  constitui  a  verdade 
[pravda]  da  situação.  O  momento  do  que  é  absolu‐
tamente  novo,  que  nunca  existiu  antes  e  que  não 
pode  ser  repetido,  está  aqui  em  primeiro  plano,  e 
constitui  uma  continuação  responsável  no  espírito 
da totalidade, que foi uma vez reconhecida. 

91
Na  base  da  unidade  de  uma  consciência  res‐
ponsável  não  existe  um  princípio  como  ponto  de 
partida,  senão  o  fato  do  reconhecimento  real  da 
minha própria participação no existir como evento 
singular,  coisa  que  não  pode  ser  adequadamente 
expressa em termos teóricos, mas somente descrita 
e vivenciada com a participação; aqui está a origem 
do  ato  e  de  todas  as  categorias  do  dever  concreto, 
singular e irrevogável [nuditel’nyi]. Eu também sou 
–  em  toda  a  plenitude  emotivo‐volitiva  atuante 
[Postupcnyj (adjetivo criado por Bakhtin sobre “pos‐
tupok”)], de tal afirmação – e realmente sou – total‐
mente, e tenho a obrigação de dizer esta palavra, e 
eu  também  sou  participante  no  existir  de  modo 
singular e irrepetível, e eu ocupo no existir singular 
um  lugar  único,  irrepetível,  insubstituível  e  impe‐
netrável da parte de um outro. Neste preciso ponto 
singular  no  qual  agora  me  encontro,  nenhuma  ou‐
tra pessoa jamais esteve no tempo singular e no es‐
paço singular de um existir único. E é ao redor des‐
te ponto singular que se dispõe todo o existir singu‐
lar de modo singular e irrepetível. Tudo o que pode 
ser  feito  por  mim  não  poderá  nunca  ser  feito  por 
ninguém  mais,  nunca.  A  singularidade  do  existir 
presente  é  irrevogavelmente  obrigatória  [nuditel’no 
obiazatel’na].  Este  fato  do  meu  não‐álibi  no  existir 
[moë ne‐alibi v bytii], que está na base do dever con‐
creto e singular do ato, não é algo que eu aprendo e 
do qual tenho conhecimento, mas algo que eu reco‐
nheço  e  afirmo  de  um  modo  singular  e  único.  Basta  o 
simples conhecimento para reduzi‐lo ao mais baixo 
grau  emotivo‐volitivo  de  possibilidade.  Transfor‐
mando‐o  em  objeto  de  conhecimento,  eu  o  univer‐
salizo: cada pessoa ocupa um lugar singular e irre‐

92
petível, cada existir é único. Temos aqui uma cons‐
tatação teórica que tende ao limite da absoluta libe‐
ração  de  cada  tonalidade  emotivo‐volitiva.  Com 
este  postulado  não  tenho  nada  a  ver,  ele  não  me 
obriga  a  nada  de  nenhum  modo.  Se  penso  que  a 
minha  singularidade  como  característica  do  meu 
existir é comum a todo o existir enquanto tal, sou já 
colocado  para  fora  da  minha  singularidade  única, 
eu  mesmo  me  coloquei  fora  dela,  e  penso  teorica‐
mente a existência, isto é, não me incorporo ao con‐
teúdo do meu pensamento; como conceito, a singu‐
laridade pode ser localizada no mundo dos concei‐
tos gerais e, desse modo, pode estabelecer uma sé‐
rie  de  correlações  logicamente  necessárias.  Este re‐
conhecimento  da  minha  participação  no  existir  é  a 
base  real  e  efetiva  de  minha  vida  e  do  meu  ato.  O 
meu ato ativo afirma implicitamente <?> a sua sin‐
gularidade e insubstituibilidade em todo o existir, e 
nesse sentido é empurrada, internamente e na tota‐
lidade,  até  seus  limites  extremos,  é  orientada  den‐
tro dela como um todo. Para dar um sentido a isso 
<?> tudo <?> é preciso levar em consideração toda a 
variedade  dos  seus  componentes.  Não  se  trata  so‐
mente da afirmação de si ou simplesmente da afir‐
mação  do  existir  real,  mas  da  afirmação  inconfun‐
dível  e  indivisível  de  mim  mesmo  no  existir:  eu 
participo  no  existir  como  seu  ator  único  <?>;  nada 
no existir, além de mim mesmo, é um eu para mim. 
Eu posso viver como eu – em toda a unidade emo‐
tivo‐volitivo  do  sentido  desta  palavra  –  somente 
sendo eu mesmo, único, em todo o existir; todos os 
outros eus (teóricos) não são eu para mim; por sua 
vez,  este  meu  único  eu  (não  teórico)  participa  do 
existir na sua singularidade: eu sou nele. Além disso, 

93
aqui  são  dados  –  inconfundíveis  e  indivisíveis  – 
tanto  o  momento  da  minha  passividade  quanto  o 
momento da minha atividade; eu me acho no exis‐
tir (passividade) e eu participo dele ativamente; eu 
também sou dado a mim mesmo, tanto como dado, 
quanto como o que me  é dado para realizar; a  mi‐
nha singularidade é dada, mas ao mesmo tempo ela 
existe apenas na medida em que é realmente atua‐
lizada por mim como singularidade, ela se dá sem‐
pre  na  ação,  no  ato,  isto  é,  como  o  que  me  é  dado 
para  realizar;  é,  ao  mesmo  tempo,  ser  e  dever:  eu 
sou real, insubstituível e é por isso que preciso rea‐
lizar  a  minha  singularidade  peculiar.  Em  relação  a 
toda a unidade real, emerge o meu dever singular a 
partir  do  meu  lugar  singular  no  existir.  Eu,  como 
único  eu,  não  posso nem  sequer  por  um  momento 
não ser participante da vida real, inevitável e neces‐
sariamente  [nuditel’no]  singular;  eu  preciso  ter  um 
dever  meu  [dolzhenstvovanie];  em  relação  ao  todo, 
seja o que for e em que condição me seja dada, eu 
preciso  agir  a  partir  do  meu  lugar  único,  mesmo 
que  se  trate  de  um  agir  apenas  interiormente.  A 
minha  singularidade,  como  necessária  não  coinci‐
dência  com  tudo  o  que  não  seja  eu,  torna  sempre 
possível  o  meu  ato  como  singular  e  insubstituível 
em relação a tudo o que não sou eu. O simples fato 
de  que  eu,  a  partir  do  meu  lugar  único  no  existir, 
veja, conheça um outro, pense nele, não o esqueça, 
o  fato  de  que  também  para  mim  ele  existe  –  tudo 
isso é alguma coisa que somente eu, único, em todo 
o  existir,  em  um  dado  momento,  posso  fazer  por 
ele: um ato do vivido real em mim que completa a 
sua  existência,  absolutamente  profícuo  e  novo,  e 
que encontra em mim somente a sua possibilidade. 

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Este ato produtivo único é precisamente aquele no 
qual se constitui o momento do dever. O dever en‐
contra a sua possibilidade originária lá onde existe 
o reconhecimento do fato da unicidade da existên‐
cia de uma pessoa e tal reconhecimento vem do in‐
terior dela mesma, lá onde esse fato se torna o cen‐
tro responsável, lá onde eu assumo  a responsabili‐
dade da minha própria unicidade, do meu próprio 
existir. 
Tal  fato,  é  claro,  pode  originar  uma  divisão, 
pode empobrecer‐se; pode‐se ignorar a atividade e 
viver  apenas  da  passividade,  pode‐se  procurar  de‐
monstrar o próprio álibi no existir, pode‐se ser im‐
postor. Pode‐se abdicar da sua obrigatória singula‐
ridade (da singularidade do próprio dever ser).  
O  ato  responsável  é,  precisamente, o  ato  base‐
ado no reconhecimento desta obrigatória singulari‐
dade.  É  essa  afirmação  do  meu  não‐álibi  no  existir 
que constitui a base da existência sendo tanto dada 
como sendo também real e forçosamente projetada 
como algo ainda por ser alcançado. É apenas o não‐
álibi no existir que transforma a possibilidade vazia 
em ato responsável real (através da referência emo‐
tivo‐volitiva  a  mim  como  aquele  que  é  ativo).  É  o 
fato vivo de um ato primordial ao ato responsável, 
e  a  criá‐lo,  juntamente  com  seu  peso  real  e  sua  o‐
brigatoriedade;  ele  é  o  fundamento  da  vida  como 
ato,  porque  ser  realmente  na  vida  significa  agir,  é 
ser não indiferente ao todo na sua singularidade.  
Afirmar o fato da própria singularidade e par‐
ticipação insubstituível no existir significa entrar no 
existir exatamente lá onde ele não é igual a si mes‐
mo, entrar no evento do existir [sobytiie bytiia]. Tu‐
do  o  que  se  refere  ao  conteúdo‐sentido  –  o  existir 

95
como  alguma  coisa  de  determinado  conteudistica‐
mente, o valor como válido em si, o verdadeiro [is‐
tina], o bem, o bonito, etc. – tudo isso não são mais 
que uma junção de possibilidades, que podem tor‐
nar‐se  realidade  somente  no  ato  fundado  sobre  o 
reconhecimento da minha participação singular. Do 
interior do conteúdo‐sentido em si, não é possível a 
passagem  de  uma  potencialidade  a  uma  realidade 
singular. O mundo do conteúdo‐sentido é infinito e 
autossuficiente, a sua validade em si se torna inútil, 
por ele o meu ato é fortuito. É a região das pergun‐
tas  infinitas,  onde  também  é  possível  a  pergunta: 
“quem  é  o  meu  próximo?”.  Nesse  âmbito  não  é 
possível dar início a nada, cada início será fortuito, 
ele se afogará no mundo do sentido. Não existe um 
centro,  não  há  um  princípio  baseado  no  qual  se 
possa escolher; tudo o que é poderia também muito 
bem  não  ser,  poderia  ser  outro,  se  se  pode  sim‐
plesmente  concebê‐lo  como  algo  de  determinado 
no conteúdo‐sentido. Do ponto de vista do sentido 
são possíveis somente a infinidade da avaliação e a 
absoluta  falta  de  quietude.  Do  ponto  de  vista  do 
conteúdo abstrato de um valor possível, cada obje‐
to, ainda que bom, deve ser melhor; cada encarna‐
ção, do ponto de vista do sentido, é uma limitação 
mesquinha e acidental. É necessária a iniciativa do 
ato  na  relação  com  o  sentido,  e  tal  iniciativa  não 
pode ser fortuita. Nenhuma validade de sentido em 
si  pode  ser  categórica  e  peremptória,  enquanto  eu 
tiver  o  meu  álibi  no  existir.  Somente  o  reconheci‐
mento  da  minha  participação  única  do  meu  lugar 
único  fornece  um  centro  real  de  origem  do  ato  e 
torna não‐fortuita a iniciativa; é aqui que a iniciati‐
va do ato se torna essencialmente necessária, que a 

96
minha  atividade  se  torna  atividade  substancial,  se 
torna dever.  
Mas  é  possível  também  um  pensamento  não 
encarnado, um agir não encarnado, uma vida alea‐
tória não encarnada como uma possibilidade vazia; 
uma vida sob o fundamento tácito <?> do meu álibi 
no  existir  cai  no  ser  indiferente,  não  enraizado  em 
nada.  Qualquer  pensamento  que  não  seja  correla‐
cionado comigo como algo que é obrigatoriamente 
único  é  apenas  uma  possibilidade  passiva;  ele  po‐
deria mesmo simplesmente não existir, poderia ser 
diferente; o fato de existir na minha consciência não 
implica  nenhuma  obrigatoriedade,  insubstituibili‐
dade; não encarnado na responsabilidade, também 
o tom emotivo‐volitivo de tal pensamento é fortui‐
to; é apenas a relação com o contexto único e singu‐
lar  do  existir‐evento  através  do  efetivo  reconheci‐
mento da minha participação real nele, que o torna 
um  ato  responsável.  E  tudo  em  mim  –  cada  movi‐
mento,  cada  gesto,  cada  experiência  vivida,  cada 
pensamento,  cada  sentimento  –  deve  ser  um  ato 
responsável;  é  somente  sob  esta  condição  que  eu 
realmente vivo, não me separo das raízes ontológi‐
cas do existir real. Eu existo no mundo da realidade 
inelutável, não naquele da possibilidade fortuita.  
A  responsabilidade  é  possível  não  em  relação 
ao  sentido  em  si,  mas  em  relação  à  sua  afirma‐
ção/não‐afirmação singular. De fato pode‐se passar 
por cima do sentido ou pode‐se irresponsavelmente 
fazer passar o sentido por cima do existir.  
O  aspecto  abstrato  do  sentido,  sem correspon‐
dência  com  a  real‐inelutável  singularidade,  tem  o 
mesmo valor de um projeto; é uma espécie de ras‐
cunho  de  uma  realização  possível,  um  documento 

97
não  assinado  que  não  obriga  ninguém  a  nada.  O 
existir, isolado do centro emotivo‐volitivo único da 
responsabilidade, é somente um esboço ou um ras‐
cunho, uma variante possível, não reconhecida, do 
existir  singular;  somente  através  da  participação 
responsável do ato singular pode‐se sair das infini‐
tas  variantes  do  rascunho  e  reescrever  a  própria 
vida, de uma vez por todas, na forma de uma ver‐
são definitiva. 
A  categoria  da  experiência  vivida  do  mundo‐
ser real – enquanto evento – é a categoria da unici‐
dade  [edinstvennost].  Experienciar  um  objeto  signi‐
fica  possuí‐lo  como  unicidade  real,  mas  tal  unici‐
dade do objeto e do mundo pressupõe a correlação 
com a minha própria singularidade. Também tudo 
o  que  é  universal  e  pertence  ao  sentido  adquire  o 
seu  peso  e  obrigatoriedade  [nuditel’nost’]  somente 
em correlação com a real singularidade.  
Um pensamento participativo é precisamente a 
compreensão  emotivo‐volitiva  do  existir  como  e‐
vento na sua singularidade concreta, sob a base do 
não‐álibi  no  existir.  Isto  é,  é  um  pensamento  que 
age e se refere a si mesmo como único ator respon‐
sável.  
Mas aqui emerge uma série de conflitos com o 
pensamento teórico e com o mundo do pensamento 
teórico.  O  existir‐evento  real,  que  é  tanto  dado 
quanto projetado em tons emotivos‐volitivos, e cor‐
relato com um centro único de responsabilidade, é 
determinado,  no  seu  sentido  de  evento,  de  impor‐
tância singular, grave, necessário – na sua verdade 
[pravda] ‐ não em si mesmo, mas em correlação pre‐
cisamente com a minha singularidade obrigatória; a 
face necessariamente real do evento é determinada 

98
por  mim  mesmo  do  meu  lugar  único.  Mas  disso 
segue,  então,  que  há  tantos  mundos  diferentes  do 
evento  quantos  são  os  centros  individuais  de  res‐
ponsabilidade, os sujeitos participantes singulares – 
uma  infinita  multidão;  e,  se  a  face  do  evento  é de‐
terminada do lugar singular do sujeito participante, 
então existem tantas faces diferentes quantos são os 
lugares singulares. E, acima de tudo, onde está, en‐
tão, a imagem única e singular? Visto que a minha 
atitude  é  essencial  para  o  mundo,  se  é  real  o  seu 
sentido emotivo‐volitivo reconhecido sobre o plano 
dos valores, então este valor reconhecido, o quadro 
emotivo‐volitivo do mundo, é uma coisa para mim, 
enquanto é outra coisa para um outro. Ou, ao con‐
trário,  devemos  reconhecer  a  dúvida  precisamente 
como um valor de tipo particular? Sim, nós de fato 
reconhecemos a dúvida como valor particular, que 
está  na  base  da  nossa  vida  efetivamente  agente  e 
operante,  e  isso  não  entra  em  contradição  com  o 
conhecimento  teórico.  Esse  valor  da  dúvida  não 
contradiz,  de  modo  algum,  a  verdade  [pravda] una 
e  única;  pelo  contrário,  é  justamente  ela,  esta  ver‐
dade  una  e  única  do  mundo,  que  o  exige.  É  justa‐
mente esta verdade que exige que eu, do meu lugar 
único, realize plenamente a minha participação sin‐
gular no existir. O caráter unitário da totalidade <?> 
condiciona  os  papéis,  únicos  e  totalmente  irrepetí‐
veis,  de  todos  os  participantes.  O  existir  como  de‐
terminado  no  conteúdo,  pronto  e  petrificado,  des‐
truiria  a  multiplicidade  dos  mundos  pessoais  irre‐
petivelmente  válidos,  pois  que  justamente  esse  e‐
xistir é que cria pela primeira vez o evento único. O 
evento  como  igual  a  si  mesmo,  único,  poderia  ser 
lido  post  factum  por  uma  consciência  não‐

99
participante,  não  interessada  nele;  mas  também 
nesse  caso  permaneceria  inacessível  o  seu  caráter 
de evento para a consciência; para o real participan‐
te no evento que se realiza, tudo tende ao ato único 
iminente,  no  seu  dever  absolutamente  indetermi‐
nado,  concreto,  único  e  obrigatório.  O  fato  é  que 
entre as visões do mundo valorativas de cada parti‐
cipante singular não existem – nem devem existir – 
contradições;  nem  do  interior  da  consciência  <?> 
nem, simplesmente, do lugar único de cada sujeito 
participante.  A  verdade  (pravda)  do  evento  não  é, 
em  seu  conteúdo,  uma  verdade  (istina),  identica‐
mente igual a si mesma; é, ao contrário, a única po‐
sição justa de cada participante, a verdade (pravda) 
do  seu  real  dever  concreto.  Um  simples  exemplo 
poderá clarear este ponto. Eu amo o outro, mas não 
posso  amar  a  mim  mesmo,  o  outro  me  ama,  mas 
não  ama  a  si  mesmo;  cada  um  tem  razão  no  seu 
próprio lugar, e tem razão não subjetivamente, mas 
responsavelmente.  Do  meu  lugar  único,  somente 
eu‐para‐mim‐mesmo  sou  eu,  enquanto  todos  os 
outros  são  outros  para  mim  (no  sentido  emotivo‐
volitivo do termo). De fato o meu ato (e o sentimen‐
to  como  ato)  se  orienta  justamente  sobre  o  que  é 
condicionado  pela  unicidade  e  irrepetibilidade  do 
meu lugar. O outro, na minha consciência emotiva‐
volitiva participante, está exatamente no seu lugar, 
enquanto eu o amo como outro, não como eu mes‐
mo.  O  amor  do  outro  por  mim  soa  emotivamente 
de  modo  totalmente  diferente  para  mim,  no  meu 
contexto  pessoal,  do  que  soa  como  o  mesmo  amor 
para o outro que o dirige para mim, e obriga a mim 
e  ao  outro  a  coisas  absolutamente  diferentes.  Mas, 
naturalmente, aqui não existe oposição. Essa poderia 

100
surgir  em  uma  terceira  consciência,  não  encarnada, 
não  participante.  Para  tal  consciência  haveria  valo‐
res‐em‐si  iguais  a  si  mesmos:  seres  humanos,  e  não 
eu  e  o  outro,  que  soam  por  princípio  de  modo  com‐
pletamente diferente do ponto de vista valorativo.  
Nem  pode  surgir  oposição  entre  contextos  va‐
lorativos  singulares  e  afirmados.  Que  significa 
“contexto  afirmado  de  valores”?  Trata‐se  de  um 
conjunto de valores válidos não para este ou aquele 
outro indivíduo, nesta ou naquela outra época, mas 
para  toda  a  humanidade  histórica.  Mas  eu,  eu  na 
minha singularidade e unidade, devo assumir uma 
atitude  emotivo‐volitiva  particular  em  relação  à 
humanidade  histórica,  devo  afirmá‐la  como  tendo 
realmente valor para mim, e fazendo isso, por con‐
sequência, tudo o que tem valor para ela se tornará 
válido  também  para  mim.  Que  significa  afirmar 
que a humanidade histórica reconhece na história e 
na própria cultura determinadas coisas como valo‐
res?  Trata‐se  da  afirmação  de  uma  possibilidade 
vazia de conteúdo, nada mais que isso. Que impor‐
ta a mim que no âmbito disso que existe haja um a 
para  quem  b  tenha  valor?  Outra  situação  se  dá,  ao 
invés, se eu, na minha singularidade, participo dis‐
so  que  singularmente  existe  e  o  faço  de  maneira 
emotivo‐volitiva  mediante  uma  afirmação  minha. 
Desde  o  momento  em  que  eu  afirmo  o  meu  lugar 
único  no  existir  único  da  humanidade  histórica, 
desde  o  momento  em  que  eu  sou  o  seu  não‐álibi, 
isto  é,  estou  com  ela  em  uma  relação  emotivo‐
volitiva  ativa,  eu  entro  em  uma  relação  emotivo‐
volitiva com os valores por ela reconhecidos. Claro, 
quando falamos dos valores da humanidade histó‐
rica, damos uma entonação a tais palavras, não po‐

101
demos fazer abstração de uma determinada relação 
emotivo‐volitiva com eles; esses valores não coinci‐
dem  para  nós  com  o  seu  conteúdo‐sentido;  eles  se 
correlacionam  com  um  participante  único  e  se  ilu‐
minam com a luz de um valor real. A partir do lu‐
gar  único  que  eu  ocupo,  se  abre  o  acesso  a  todo  o 
mundo na sua unicidade, e para mim, somente des‐
te lugar. Como espírito desencarnado, ao invés, eu 
perco  a  minha  necessária  relação  de  dever  com  o 
mundo, perco a realidade do mundo. Não existe o 
homem em geral; existe eu, e existe um determina‐
do,  concreto,  “outro”:  o  meu  próximo,  o  meu  con‐
temporâneo  (a  humanidade  social),  o  passado  e  o 
futuro  das  pessoas  reais  (da  humanidade  histórica 
real). Todos estes são momentos de valor do existir, 
individualmente válidos e que não universalizam o 
existir  singular,  que  se  abrem  <?>  a  mim  do  meu 
lugar único como fundamento do meu não‐álibi no 
existir. O conjunto do conhecimento geral determi‐
na  o  homem  em  geral  (como  homo  sapiens);  o  fato, 
por  exemplo,  de  que  ele  seja  mortal,  adquire  um 
sentido de valor somente do meu lugar único – en‐
quanto  morra  eu,  uma  pessoa  perto  de  mim,  a  in‐
teira humanidade histórica; e, naturalmente, o sen‐
tido do valor emotivo‐volitivo da minha morte, da 
morte do outro, do meu próximo, do fato da morte 
de cada ser humano real, varia profundamente caso 
a  caso,  já  que  são  todos  momentos  diferentes  do 
existir‐evento  singular.  Para  um  sujeito  desencar‐
nado, não participante, todas as mortes podem ser 
indiferentemente iguais. Mas nenhum vive em um 
mundo  no  qual  todos  são  –  em  relação  ao  valor  – 
igualmente mortais (é bom lembrar que viver a par‐
tir de si, desde o seu lugar único, não significa, de 

102
modo algum, viver sozinho; ao contrário: é somen‐
te do seu lugar único que é possível o sacrifício – é 
daqui  que  a  minha  centralidade  responsável  pode 
tornar‐se centralidade sacrificada).  
Um valor igual a si mesmo, reconhecido como 
universalmente válido, não existe, porquanto a sua 
validade reconhecida é condicionada não pelo con‐
teúdo  tomado  abstratamente,  mas  por  sua  correla‐
ção  com  o  lugar  singular  daquele  que  participa; 
mas deste lugar singular pode‐se reconhecer todos 
os  valores,  e  também  qualquer  outro  ser  humano 
com  todos  os  seus  valores;  esta  é  a  condição  para 
que  este  reconhecimento  aconteça.  A  simples  consta‐
tação  teórica  em  que  qualquer  um  reconhece  esses 
ou  aqueles  valores  não  obriga  ninguém  a  nada, 
nem  conduz  para  fora  das  fronteiras  do  ser  como 
simplesmente dado, da possibilidade vazia, até que 
eu não tenha afirmado em relação com eles a minha 
própria participação singular. 
O  conhecimento  teórico  de  um  objeto  como  e‐
xistente  por  si  mesmo,  independentemente  de  sua 
posição  real  em  um  mundo  singular,  a  partir  do 
lugar singular de quem dele participa, é plenamen‐
te justificado; todavia não é o conhecimento último, 
mas  apenas  um  momento  técnico  auxiliar  dele.  O 
meu  produzir  abstração  do  meu  lugar  único,  esta 
minha  suposta  desencarnação  é  por  si  mesma  um 
ato  responsável,  realizado  do  meu  lugar  único,  e 
todo o conhecimento conteudístico assim obtido – a 
sua  possibilidade  de  dar‐se  como  qualquer  coisa 
que  é  igual  a  si  mesma  –  deve  ser  encarnado  por 
mim, traduzido na língua do pensamento participa‐
tivo,  deve  responder  a  pergunta:  a  que  me  obriga, 
ao  meu  eu  como  único,  desde  meu  lugar  único,  o 

103
conhecimento  dado.  Isto  é,  ele  deve  ser  colocado 
em correlação com a minha unicidade, fundado no 
meu  não‐álibi  no  existir,  em  um  tom  emotivo‐
volitivo, já que o conhecimento (znanie) do conteú‐
do do objeto em si torna‐se um conhecimento dele 
para  mim,  torna‐se  reconhecimento  (uznanie)  que  me 
obriga responsavelmente. A abstração de si é um arti‐
fício  técnico  que  encontra  justificação  já  desde  o 
meu lugar único, onde eu, que conheço, e me torno 
responsável  e  obrigado  por  este  reconhecimento. 
Todo o contexto infinito do conhecimento humano 
teórico  possível  –  o  da  ciência  –  deve,  para  minha 
unicidade participante, tornar‐se algo de responsa‐
velmente  reconhecido,  o  que  não  diminui  nem  de‐
forma o  que é verdade [istina] autônoma desse co‐
nhecimento,  mas  o  completa  até  que  se  torne  ver‐
dade [pravda] em sua validade compulsória. E uma 
semelhante  transformação  do  conhecimento  em 
reconhecimento não é, de modo algum, uma ques‐
tão  de  sua  utilização  imediata  como  meio  técnico 
para a satisfação de alguma necessidade prática da 
vida; reafirmamos que viver a partir de si não sig‐
nifica viver para si, mas significa ser, a partir de si, 
responsavelmente  participante,  afirmar  o  seu  não‐
álibi real e compulsório no existir.  
Do nosso ponto de vista, a participação no exis‐
tir‐evento do mundo na sua plenitude não coincide 
com um abandono irresponsável ao ser, com o pró‐
prio  deixar‐se  existir;  porque  neste  caso  sobressai, 
em  primeiro  lugar,  unilateralmente,  somente  o 
momento  passivo  da  participação,  enquanto  se  di‐
minui  a  atividade  como  algo  ainda  por  se  realizar 
[aktivnost’  zadannaia].  A  este  deixar‐se  existir  (uma 
participação unilateral) se reduz em grande parte o 

104
pathos da filosofia de Nietzsche – que é levado até o 
absurdo  do  dionisismo  contemporâneo.  O  fato  vi‐
vido  de  uma  participação  real  é,  neste  caso,  assim 
empobrecido, pois que a existência toma conta da‐
quele  que  a  afirmou;  a  identificação  com  o  existir 
real no qual se participa leva à perda de si mesmo 
no ser (não se pode viver sendo impostor), à nega‐
ção da própria singularidade obrigatória. 
A  consciência  participante,  encarnada,  pode 
parecer  restrita,  limitadamente  subjetiva,  apenas 
quando se a contrapõe à consciência da cultura co‐
mo uma consciência autossuficiente. É como se nos 
apresentassem dois contextos de valor, duas vidas: 
a  vida  de  todo  um  mundo  infinito  inteiro  na  sua 
totalidade, que pode ser conhecido somente objeti‐
vamente, e a minha pequena vida pessoal. O sujeito 
da primeira é o mundo como totalidade, e o sujeito 
da  segunda  é  o  sujeito  singular  acidental.  Todavia 
não se trata da contraposição matemática, quantita‐
tiva, entre o mundo infinitamente grande e um ser 
humano muito pequeno, entre uma unidade e uma 
multidão infinita de unidades‐seres. Claro, do pon‐
to de vista de uma teoria <?> geral <?> esta contra‐
posição entre o mundo e o ser humano sozinho po‐
de‐se  sustentar,  mas  não  está  nisso  o  seu  sentido 
real. Pequeno e grande aqui não são categorias teó‐
ricas, mas puramente valorativas. E a pergunta que 
se  coloca  é:  em  que  plano  é  realizada  esta  relação 
de valor, para que seja necessária e realmente váli‐
da?  Somente  no  plano  da  consciência  participante. 
O pathos da minha vida pequena e do mundo infini‐
to é o pathos do meu não‐álibi participativo no exis‐
tir,  e  o  alargamento  responsável  do  contexto  dos 
valores  realmente  reconhecidos  do  meu  lugar  úni‐

105
co.  Se  eu  me  afasto  deste  lugar  único,  ocorre  uma 
cisão  entre  o  mundo  infinito  possível  do  conheci‐
mento e o pequeno mundo de valores por mim re‐
conhecidos.  É  apenas  do  interior  deste  mundo  pe‐
queno,  mas  real  e  necessário,  que  deve  ocorrer  o 
alargamento, infinito em princípio; mas não através 
de  dissociações  e  contraposições;  neste  caso,  o 
mundo  absolutamente  insignificante  da  realidade 
seria  invadido  por  todos  os  lados  pelas  ondas  da 
possibilidade vazia infinita, e para esta possibilida‐
de seria inevitável a cisão de minha pequena reali‐
dade, o jogo desenfreado da objetividade <?> vazia 
que  perde  toda  a  realidade  existente,  fatalmente 
necessária, e que não a constitui como um valor <?> 
mas  somente  como  possível  para  possibilidades 
vazias.  É  nessas  condições  que  nasce  a  infinidade 
do  conhecimento;  ao  invés  de  incorporar  todo  o 
conhecimento [poznanie] teórico possível do mundo 
na  vida  real  a  partir  de  si,  como  reconhecimento 
[uznanie]  responsável  (também  um  fato,  conhecido 
somente teoricamente, é, enquanto fato, uma possi‐
bilidade  vazia;  todavia  todo  o  sentido  <?>  de  um 
juízo  cognitivo  consiste  precisamente  no  fato  de 
que ele não permanece um juízo teórico, mas se in‐
corpora no existir singular, onde cada abstração de 
uma participação real é difícil), procuramos inserir 
a nossa vida real no contexto teórico possível, reco‐
nhecendo  nela  como  essenciais  somente  os  seus 
momentos  universais,  ou  entendendo‐a  como  um 
pequeno fragmento de espaço e de tempo do gran‐
de  conjunto  espacial  e  temporal,  ou  ainda  dando‐
lhe uma interpretação simbólica.  
Em  todos  estes  casos,  sua  viva  singularidade, 
necessária e inevitável, é diluída na água da possi‐

106
bilidade vazia e somente pensável. O corpo <?> que 
ama <?> vem reconhecido somente como momento 
de uma matéria infinita que a nós é indiferente, ou 
como exemplar do homo sapiens, ou como represen‐
tante  da  própria  ética,  ou  como  a  encarnação  do 
princípio  abstrato  do  eterno  feminino;  o  que  é  re‐
almente  válido  vem  a  ser,  em  cada  caso,  como  o 
momento do que é possível: a minha vida é como a 
vida do homem em geral, e esta última é como uma 
das  manifestações  da  vida  do  mundo;  mas  todos 
estes infinitos contextos de valores não estão enrai‐
zados em nada, são somente possíveis em mim, in‐
dependentemente do ser objetivo e universalmente 
válido. Todavia é suficiente para nós encarnar ple‐
namente e de maneira responsável o próprio ato do 
nosso  pensamento,  subscrevendo‐o,  para  nos  tor‐
narmos  realmente  participantes  do  ser‐evento  a 
partir do nosso lugar único. 
Entretanto,  meu  ato  realmente  realizado  sob  a 
base  do  meu  não‐álibi  no  existir,  seja  o  ato‐
pensamento, seja o ato‐sentimento, seja o ato‐ação, 
são  efetivamente  empurrados  aos  limites  extremos 
do  existir‐evento,  orientados  nesse  como  em  um 
todo unitário e singular, por mais que o pensamen‐
to possua um conteúdo rico e por mais que a ação 
seja  concreta  e  individual,  no  seu  âmbito  pequeno 
mas  real  eles  participam  do  todo  infinito.  O  que 
não  significa,  de  modo  algum,  que  eu  tenha  que 
pensar em mim mesmo, na ação, e nessa totalidade 
como  algo  determinado  no  conteúdo:  isso  não  é 
possível,  nem  necessário.  A  mão  esquerda  pode 
não saber o que faz a direita, e todavia a direita rea‐
liza a verdade [pravda]. E não no sentido da obser‐
vação  de  Goethe:  “em  tudo  o  que  realizamos  de 

107
maneira apropriada, devemos ver a imagem de tu‐
do  o  que  pode  ser  criado  de  maneira  apropriada”. 
Aqui  temos  um  exemplo  de  interpretação  simbóli‐
ca, fundado no paralelismo dos mundos, que intro‐
duz  um  momento  de  ritualidade  no  ato  concreta‐
mente real.  
Orientar  o  ato  na  totalidade  do  existir‐evento 
singular  não  significa,  de  modo  algum,  traduzi‐lo 
na  língua  dos  valores  mais  altos  como  se  aquele 
evento  participativo  concreto  e  real,  no  qual  o  ato 
se orienta diretamente, fosse apenas uma represen‐
tação ou um reflexo de tais valores. Eu participo do 
evento pessoalmente, e também cada objeto ou pes‐
soa com que eu tenha a ver na minha vida singular 
participam  dele  pessoalmente.  Eu  posso  cumprir 
um ato político e um rito religioso na qualidade de 
representante, mas se trata já de uma ação especial 
que pressupõe que eu tenha a autorização para rea‐
lizá‐la;  mas  nem  neste  caso  eu  abdico  definitiva‐
mente  da  minha  responsabilidade  pessoal;  ao  con‐
trário,  o  meu  papel  representativo,  o  poder  pelo 
qual fui autorizado, levam‐no em conta. O pressu‐
posto  tácito  do  ritualismo  da  vida  não  é,  de  modo 
algum,  a  humildade,  mas  a  arrogância.  É  necessá‐
rio,  ao  contrário,  tornar‐se  humilde  pela  participa‐
ção  e  a  responsabilidade  pessoal.  Se  procurarmos 
interpretar  a  nossa  vida  toda  como  representação 
implícita, e cada ato [akt] nosso como ritual, torna‐
mo‐nos impostores.  
Cada  representação  não  suprime,  mas  sim‐
plesmente  especializa  a  minha  responsabilidade 
pessoal.  O  reconhecimento‐afirmação  real  de  tudo 
aquilo  de  que  serei  representante  é  um  ato  meu 
pessoalmente  responsável.  Se  esse  ato  fosse  cance‐

108
lado e eu permanecesse tão somente como portador 
de  uma  responsabilidade  especial,  eu  me  tornaria 
um possuído e as minhas ações, separadas das raí‐
zes  ontológicas  da  minha  participação  pessoal,  se 
tornariam  fortuitas  em  relação  à  unidade  singular 
última,  na  qual  elas  não  estão  enraizadas  –  assim 
como  para  mim  não  está  enraizado  aquele  campo 
que especializa meu ato. Este tipo de separação do 
contexto singular, a perda na especialização da par‐
ticipação pessoal singular ocorrem particularmente 
de maneira frequente em casos de responsabilidade 
política.  Esta  mesma  perda  da  unidade  singular 
ocorre também como resultado da tentativa de ver 
em cada um, em cada objeto de um dado ato, não a 
concreta  singularidade  pessoalmente  participante 
no existir, mas o representante de um determinado 
grande todo. Isso não aumenta a responsabilidade e 
a  não‐casualidade  ontológica  do  meu  ato,  mas  ao 
contrário  deixa‐o  mais  leve,  e,  em  certo  sentido,  o 
des‐realiza: o ato é injustificadamente orgulhoso, é 
arrogante,  e  isso  leva,  portanto,  ao  fato  de  que  a 
concretude real de uma singularidade efetivamente 
necessária  degenera  em  possibilidade  conceitual 
abstrata. Para enraizar o ato, a participação pessoal 
de uma existência singular e de um objeto singular 
deve  estar  em  primeiro  plano,  já  que  se  você  é  re‐
presentante de  um  grande  todo,  você  o  é,  sobretu‐
do,  pessoalmente.  E  este  mesmo  grande  todo,  por 
sua vez, não é composto de aspectos gerais, mas de 
momentos individuais concretos.  
A  validade  concretamente  real  e  obrigatória 
[nuditel’no‐konkretno‐real’naia  znachimost’],  de  uma 
ação em um contexto singular dado (qualquer  que 
seja),  o  momento  da  realidade  nela,  é  justamente 

109
sua orientação no existir real singular na sua totali‐
dade.  
O mundo no qual o ato se orienta fundado na 
sua  participação  singular  no  existir:  este  é  o  objeto 
da  filosofia  moral.  Mas  o  ato  não  o  conhece  como 
algo  de  conteúdo  determinado;  ele  tem  a  ver  so‐
mente com uma pessoa única e com um objeto úni‐
co, que, além do mais, lhe são dados em tons emo‐
tivos‐volitivos individuais. É um mundo de nomes 
próprios, destes objetos singulares e de certos dados 
cronológicos da vida. Uma descrição <?> exemplifi‐
cativa  do  mundo  da  vida‐ato  singular  do  interior 
do  ato,  fundada  no  seu  não‐álibi  no  existir,  seria 
uma espécie de confissão, entendida como um rela‐
to no sentido de uma prestação de contas individu‐
al e única. Mas estes mundos concretos‐individuais, 
irrepetíveis,  de  consciências  que  realmente  agem 
[deistvitel’no  postupaiuschie  soznania]  –  dos  quais, 
como  componentes  reais,  se  compõem  também  o 
existir‐evento  unitário  e  singular  –  têm  alguns 
componentes  comuns:  não  no  sentido  de  conceitos 
ou de leis gerais, mas no sentido de momentos co‐
muns  das  suas  arquitetônicas  concretas.  É  esta  ar‐
quitetônica  do  mundo  real  do  ato  que  a  filosofia 
moral deve descrever, não como um esquema abs‐
trato, mas como o plano concreto do mundo do ato 
unitário  singular,  os  momentos  concretos  funda‐
mentais da sua construção e da sua disposição recí‐
proca. Estes momentos fundamentais são: eu‐para‐
mim, o outro‐para‐mim e eu‐para‐o‐outro; todos os 
valores da vida real e da cultura se dispõem ao re‐
dor  destes  pontos  arquitetônicos  fundamentais  do 
mundo  real  do  ato:  valores  científicos,  estéticos, 
políticos  (incluídos  também  os  éticos  e  sociais)  e, 

110
finalmente,  religiosos.  Todos  os  valores  e  as  rela‐
ções  espaço‐temporais  e  de  conteúdo‐sentido  ten‐
dem  a  estes  momentos  emotivo‐volitivos  centrais: 
eu, o outro, e eu‐para‐o‐outro.  
A primeira parte do nosso estudo será dedica‐
da  precisamente  à  análise  dos  momentos  funda‐
mentais  da  arquitetônica  do  mundo  real,  não  en‐
quanto  pensado  mas  enquanto  vivido.  A  parte  se‐
guinte  será  dedicada  à  atividade  [dejanie]  estética 
como ação, não a partir do interior do seu produto, 
mas  do  ponto  de  vista  do  autor  enquanto  partici‐
pante <?> responsável, e à ética da criação artística. 
A terceira parte será dedicada à ética da política, e a 
última  à  ética  da  religião.  A  arquitetônica  de  tal 
mundo recorda a arquitetônica do mundo de Dante 
e  dos  mistérios  medievais  (nos  mistérios  e  nas  tra‐
gédias também a ação é colocada próximo dos con‐
fins últimos do existir).  
A  crise  contemporânea  é,  fundamentalmente, 
crise  do  ato  contemporâneo.  Criou‐se  um  abismo 
entre o motivo do ato e o seu produto. E, em conse‐
quência  disso,  também  o  produto,  arrancado  de 
suas  raízes  ontológicas,  se  deteriorou.  O  dinheiro 
pode se tornar o motivo de um ato que constrói um 
sistema moral. Em relação ao momento atual o ma‐
terialismo econômico tem razão, mas não porque os 
motivos  do  ato  hajam  penetrado  no  interior  do 
produto, mas antes, ao contrário, porque o produto, 
na sua validade, é separado do ato na sua motiva‐
ção real. Mas esta situação não se pode mais corri‐
gir  do  interior  do  produto,  enquanto  não  se  pode 
daqui juntar ao ato; só se pode resolvê‐la do interi‐
or  do  ato  mesmo.  Os  mundos  teóricos  e  estéticos 
têm  sido  deixados  em  liberdade,  mas  do  interior 

111
deles é impossível juntá‐los e associá‐los à unidade 
última,  encarná‐los.  Desde  o  momento  em  que  a 
teoria  se  separa  do  ato  e  se  desenvolve  segundo  a 
sua lei interna imanente, o ato mesmo, desembara‐
çando‐se da teoria, começa a degradar‐se. Todas as 
forças de uma realização responsável [otvetstvennoe 
svershenie] se retiram para o território autônomo da 
cultura e o ato separado delas degenera ao grau de 
motivação  biológica  e  econômica  elementar,  per‐
dendo  todas  os  seus  componentes  ideais:  é  esta 
precisamente a situação atual da civilização. Toda a 
riqueza da cultura está posta a serviço do agir bio‐
lógico. A teoria deixa o ato à mercê de uma existên‐
cia  estúpida,  exaure‐o  de  todos  os  componentes 
ideais e o submete a seu domínio autônomo fecha‐
do, empobrece o ato. Daqui vem o pathos do tolsto‐
ísmo e de todo nihilismo cultural.  
Em tal estado de coisas, poderia parecer que o 
que resta, uma vez excluídos os momentos de sen‐
tido da cultura objetiva, seja uma subjetividade bio‐
lógica  nua,  o  ato‐necessidade.  Por  isso  também  a 
impressão  de  que,  somente  como  poeta  ou  como 
cientista,  eu  seja  objetivo  e  espiritual  –  isto  é,  so‐
mente  do  interior  do  produto  por  mim  criado;  e  é 
do  interior  destes  objetos  que  se  deve  construir  a 
minha  biografia  espiritual;  descontado  isso,  resta 
um  agir  subjetivo;  tudo  isso  que  é  objetivamente 
válido no ato entra naquele domínio da cultura ao 
qual  pertence  o  objeto  criado  pelo  ato.  Uma  com‐
plexidade  excepcional  do  produto  e  uma  simplici‐
dade elementar da motivação. Evocamos o espectro 
da  cultura  objetiva  e  não  sabemos  exorcizá‐lo.  Por 
isso  a  crítica  de  Spengler  [Oswald  Spengler,  1880‐
1936]. Por isso as suas memórias metafísicas e o seu 

112
inserir  a  história  entre  a  ação  [dejstvie]  <?>  e  a  sua 
expressão  em  forma  de  um  ato  válido.  No  funda‐
mento do ato se encontra a sua incorporação na u‐
nidade singular: o responsável não se reduz ao es‐
pecializado (a política), pois caso contrário não terí‐
amos um ato, mas uma ação [dejstvie] técnica. Mas 
um tal ato não deve se contrapor à teoria e ao pen‐
samento,  mas  incluí‐los  em  si  como  momentos ne‐
cessários,  inteiramente  responsáveis.  Em  Spengler 
isso  não  acontece.  Ele  contrapõe  o  ato  à  teoria,  e 
para não terminar no vazio, ele introduz a história. 
Se  tomamos  o  ato  contemporâneo  como  separado 
de  uma  teoria  por  sua  vez  fechada em  si,  obtemos 
um ato biológico ou técnico. A história não o salva, 
porque ele não está enraizado na unidade singular 
última.  
A  vida  pode  ser  compreendida  pela  consciên‐
cia  somente  na  responsabilidade  concreta.  Uma  fi‐
losofia da vida só pode ser uma filosofia moral. Só 
se  pode  compreender  a  vida  como  evento,  e  não 
como  ser‐dado.  Separada  da  responsabilidade,  a 
vida não pode ter uma filosofia; ela seria, por prin‐
cípio, fortuita e privada de fundamentos.  
 
 
 
Primeira Parte 
 
O mundo em que o ato realmente se desenvol‐
ve  é  um  mundo  unitário  e  singular  concretamente 
vivido: é um mundo visível, audível, tangível, pen‐
sável,  inteiramente  permeado  pelos  tons  emotivo‐
volitivos  da  validade  de  valores  assumidos  como 
tais. É isso que garante a realidade da singularida‐

113
de unitária deste mundo – a singularidade não rela‐
tiva ao conteúdo‐sentido, mas a singularidade emo‐
tivo‐volitiva, necessária e de peso – é o reconhecer‐
me  insubstituível  na  minha  participação,  é  o  meu 
não‐álibi em tal mundo. Esta participação assumida 
como minha inaugura um dever concreto: realizar a 
singularidade  inteira  como  singularidade  absolu‐
tamente  não  substituível  do  existir,  em  relação  a 
cada momento deste existir. E isso significa que es‐
ta  participação  transforma  cada  manifestação  mi‐
nha – sentimentos, desejos, estados de ânimo, pen‐
samentos ‐ em um ato meu ativamente responsável.  
Este  mundo  me  é  dado  do  meu  lugar  no  qual 
eu  sozinho  me  encontro  como  concreto  e  insubsti‐
tuível. Para minha consciência ativa e participante, 
esse mundo, como um todo arquitetônico, é disposto 
em  torno  de  mim  como  único  centro  de  realização 
do  meu  ato;  tenho  a  ver  com  este  meu  mundo  na 
medida  em  que  eu  mesmo  me  realizo  em  minha  a‐
ção‐visão, ação‐pensamento, ação‐fazer prático. Em 
correlação com o meu lugar particular que é o lugar 
do  qual  parte  a  minha  atividade  no  mundo,  todas 
as  relações  espaciais  e  temporais  pensáveis  adqui‐
rem  um  centro  de  valores,  em  volta  do  qual  se 
compõem num determinado conjunto arquitetônico 
concreto estável, e a unidade possível se torna sin‐
gularidade real. O lugar que apenas eu ocupo e on‐
de ajo é o centro, não somente no sentido abstrata‐
mente  geométrico,  mas  como  o  centro  emotivo‐
volitivo  concreto  responsável  pela  multiplicidade 
concreta do mundo, na qual o momento espacial e 
temporal – o lugar real único e irrepetível, o dia e a 
hora reais, únicos, históricos do evento – é momen‐
to necessário, mas não exclusivo de minha centrali‐

114
dade real, uma centralidade para mim mesmo. Este 
centro  não  é  imanente  <?>.  Aqui  convergem  para 
formar  uma  unidade  concreta  e  singular  planos 
que,  de  um  ponto  de  vista  abstrato,  são  entre  eles 
diversos:  especificação  espaço‐temporal,  tons  emo‐
tivo‐volitivos,  sentidos.  Expressões  como  “alto”, 
“baixo”,  “abaixo”,  “finalmente”,  “tarde”,  “ainda”, 
“já”, “é necessário”, “deve‐se”, “mais além”, “mais 
próximo”,  etc.  não  somente  assumem  o  conteúdo‐
sentido  no  qual  fazem  pensar  ‐  isto  é  somente  o 
conteúdo‐sentido possível – mas adquirem um va‐
lor real, vivido, necessário e de peso, concretamente 
determinado  do  lugar  singular  por  mim  ocupado 
na  minha  participação  no  existir‐evento.  Esta  mi‐
nha participação desde um ponto concreto‐singular 
do existir cria o peso efetivo do tempo e o valor e‐
vidente e palpável27 do espaço, torna todas as fron‐
teiras  importantes,  não  casuais,  válidas:  o  mundo 
como um todo unitário e singular, vivido de manei‐
ra real e responsável.  
Se eu me abstraio deste centro no qual se dá a 
minha participação singular no existir – e, além do 
mais,  não  faço  apenas  abstração  da  sua  especifica‐
ção  conteudística  (especificação  espaço‐temporal, 
etc.),  mas  também  da  sua  afirmação  real  sobre  o 
plano emotivo‐volitivo – inevitavelmente a singula‐
ridade concreta e a realidade necessária do mundo 
se desintegram; o mundo se despedaça em momen‐
tos e em relações abstratamente gerais, meramente 
possíveis, que podem ser reduzidos a uma unidade 
igualmente abstrata e meramente possível. A arqui‐
tetônica concreta do mundo vivido será substituída 
por uma unidade sistemática atemporal, a‐espacial 

27  Nagliadnj, equivalente ao alemão anschaulich. 

115
e  a‐valorativa  feita  de  momentos  abstratamente  u‐
niversais. No interior do sistema, cada componente 
desta unidade é logicamente necessário, mas o sis‐
tema em si, no seu todo, é apenas algo relativamen‐
te possível; é somente em correlação comigo, comi‐
go  enquanto  penso  ativamente,  somente  em  corre‐
lação  com  o  ato  do  meu  pensamento  responsável, 
que  tal  sistema  se  incorpora  na  real  arquitetônica 
do  mundo  vivido,  como  seu  momento,  se  enraíza 
na sua real singularidade, significativa como valor. 
Tudo isso que é abstratamente universal não é dire‐
tamente um momento do mundo real vivido, como 
o  é  este  ser  humano  aqui,  como  o  é  este  céu,  esta 
árvore;  mas  o  é  indiretamente,  como  conteúdo‐
sentido  (eterno  em  sua  validade  de  sentido,  mas 
não na realidade e no real vivido) deste pensamen‐
to singular real, deste livro real; somente nesta rela‐
ção  o  conteúdo‐sentido  pode  ser  realmente  vivo  e 
participante, e não em si, na própria autossuficiên‐
cia  de  sentido.  Mas  não  é  talvez  verdadeiro  que  o 
sentido é eterno, enquanto transitórias são esta rea‐
lidade da consciência e esta realidade do livro? Cer‐
tamente,  mas  a  eternidade  do  sentido,  fora  de  sua 
realização, é somente uma eternidade possível pri‐
vada de valor, insignificante. Se, de fato, esta eterni‐
dade‐em‐si  do  sentido  fosse  verdadeiramente  váli‐
da sobre o plano do valor, o ato de sua encarnação, 
de  seu  pensamento,  da  sua  efetiva  realização  por 
parte  do  pensamento  operativo,  seria  supérfluo  e 
inútil; somente em correlação com este, a eternida‐
de do sentido adquire um valor real, torna‐se signi‐
ficativa. O sentido eterno se torna valor que move o 
pensamento operativo somente como seu momento 
constitutivo, somente em correlação com a realida‐

116
de  efetiva;  como  a  eternidade  do  valor  deste  pen‐
samento,  deste  livro.  Mas  também  aqui  a  luz  do 
valor é luz refletida; o que é necessariamente valio‐
so  em  última  instância  é  a  eternidade  real  da  pró‐
pria  realidade  concreta  em  sua  plenitude:  a  reali‐
dade  deste  ser  humano,  destas  pessoas  e  de  seus 
mundos com todos os seus momentos reais; somen‐
te  assim  o  sentido  eterno  do  pensamento  efetiva‐
mente realizado brilha com a luz do valor.  
Tudo isso que é assumido independentemente 
do  centro  único  de  valores  donde  tem  origem  a 
responsabilidade do ato, vale dizer sem referimento 
a esse, se des‐concretiza e se des‐realiza, perde o peso 
valorativo, a necessidade emotivo‐volitiva, se torna 
possibilidade vazia, abstratamente geral [o tempo e 
o espaço artísticos]. 
Do lugar único de minha participação no exis‐
tir,  o  tempo  e  o  espaço  na  sua  singularidade  são 
individuados  e  incorporados  como  momentos  de 
uma  unicidade  concreta  e  valorada.  Do  ponto  de 
vista teórico, o espaço e o tempo da minha vida são 
segmentos  insignificantes  (assumem  um  sentido 
abstrato‐quantitativo;  o  pensamento  participante 
introduz  aí  costumeiramente  um  tom  valorativo) 
do  tempo  e  do  espaço  unitários  e,  naturalmente, 
somente isso garante a univocidade de sentido das 
suas  determinações  no  âmbito  dos  juízos;  mas,  do 
interior  da  minha  vida  participante,  estes  segmen‐
tos têm a ver com um centro singular de valores, o 
que  confere  também  ao  espaço  e  ao  tempo  reais  o 
caráter  da  singularidade,  se  bem  que  aberta.  O 
tempo e o espaço matemáticos garantem a unidade 
possível  de  sentido  dos  juízos  possíveis  (para  um 
juízo  real,  ao  contrário,  é  necessário  um  interesse 

117
emotivo‐volitivo real), enquanto a minha real parti‐
cipação  nesses,  do  meu  lugar  único,  garante  a  sua 
realidade inevitável e compulsória e a sua singula‐
ridade  de  valor  –  como  se  concedesse  sua  carne  e 
seu sangue; do interior de minha participação e em 
relação com ela, cada tempo e cada espaço matema‐
ticamente  possível  (infinitos  possíveis  passado  e 
futuro) adquire uma consistência de ordem valora‐
tiva; é como se da minha unicidade se irradiassem 
raios  que,  atravessando o  tempo,  afirmassem  o ca‐
ráter humano da história, iluminando com a luz do 
valor  cada  tempo  possível  e  a  temporalidade  mes‐
ma  enquanto  tal,  sendo  eu  realmente  participante 
dela.  Definições  espaço‐temporais  como  “infinida‐
de”,  “eternidade”,  “imensidade”,  dos  quais  tão  a‐
bundantemente  se  serve,  na  vida,  na  filosofia,  na 
religião,  na  arte,  o  nosso  pensamento  participante 
emotivo‐volitivo,  no  uso  efetivo  não  são,  de  modo 
algum, conceitos teóricos puros (matemáticos), mas 
vivem  no  nosso  pensamento  como  momentos  do 
sentido  valorativo  que  lhes  é  próprio,  brilhando 
com uma  luz valorativa em relação  à minha unici‐
dade participante.  
Consideramos  oportuno  lembrar  que  viver  do 
interior  de  si  mesmo,  partindo  de  si  mesmo  nas 
próprias ações, não significa de jeito algum viver e 
agir  por  si.  A  centralidade  da  minha  participação 
única no existir dentro da arquitetônica do mundo 
da experiência vivida não é em absoluto a centrali‐
dade  de  um  valor  positivo  <?>  para  o  qual  todo  o 
resto no mundo não é mais que um fator auxiliar. O 
eu‐para‐mim constitui o centro da origem do ato e 
da atividade de afirmação e de reconhecimento de 
cada valor, já que este é o ponto singular no qual eu 

118
responsavelmente  participo  no  existir  singular  –  o 
centro operativo, o quartel‐general da minha possi‐
bilidade e do meu dever no evento do existir, já que 
somente  do  meu  lugar  único  eu  posso  e  devo  ser 
ativo. A minha comprovada participação no existir 
é não somente passiva (o prazer da existência), mas 
sobretudo ativa (o dever de ocupar efetivamente o 
meu  lugar  único).  Não  se  trata  de  um  valor  vital 
supremo  que,  no  interior  de  um  sistema,  instaura 
para mim todos os outros valores da vida como re‐
lativos,  por  eles  condicionados;  não  pretendemos 
construir um sistema ou um inventário de valores, 
logicamente  unitário,  com  um  valor  fundamental 
no ápice – a minha participação no existir ‐ um sis‐
tema  ideal  de  diversos  valores  possíveis,  nem  nos 
propomos a fazer uma transcrição teórica dos valo‐
res histórica e realmente reconhecidos pelo ser hu‐
mano, com o fim de estabelecer entre estes relações 
lógicas  de  dependência,  de  subordinação,  etc.28  ‐ 
isto  é,  sistematizá‐los.  Não  é  nossa  intenção  forne‐
cer  um  sistema  ou  um  inventário  sistemático  de 
valores,  no  qual  conceitos  puros  (idênticos  a  si 
mesmos em conteúdo) sejam ligados entre si à base 
de  uma  correlação  lógica.O  que  pretendemos  for‐
necer é uma refiguração, uma descrição da arquite‐
tônica real concreta do mundo dos valores realmen‐
te vivenciados, não governado por um fundamento 
analítico, mas com um centro de origem realmente 
concreto,  seja  espacial  ou  temporal,  de  valorações 
reais, de afirmações, de ações, e cujos participantes 
sejam  objetos  efetivamente  reais,  unidos  por  rela‐

28  Esta passagem se acha na edição russa citada; está ausente na 
tradução  inglesa,  na  espanhola  e  nas  duas  italianas;  aparece 
na tradução francesa. 

119
ções  concretas  de  eventos  no  evento  singular  do 
existir  (aqui  as  relações  lógicas  não  são  mais  que 
um  momento  ao  lado  dos  momentos  espaciais, 
temporais e emotivo‐volitivos concretos). 
Para dar uma ideia preliminar da possibilidade 
de uma tal arquitetônica concreta, ‐ de ordem valo‐
rativa – arquitetônica que se compõe de objetos re‐
ais  em  inter‐relação  real,  que  se  dispõem  ao  redor 
de  um  centro  concreto  de  valores  –  analisaremos 
aqui o mundo da visão estética, o mundo da arte – 
que  com  a  sua  concretude  e  impregnação  de  tons 
emotivo‐volitivos  é,  de  todos  os  mundos  (no  seu 
isolamento) culturais abstratos <?>, o mais próximo 
ao mundo unitário e único do ato. Isso nos ajudará 
precisamente  a  chegar  perto  da  compreensão  da 
construção arquitetônica do mundo real do evento.  
A  unidade  do  mundo  da  visão  estética  não  é 
uma unidade de sentido, não é uma unidade siste‐
mática,  mas  uma  unidade  concretamente  arquite‐
tônica, que se dispõe ao redor de um centro concre‐
to de valores que é pensado, visto, amado. É um ser 
humano  este  centro,  e  tudo  neste  mundo  adquire 
significado,  sentido  e  valor  somente  em  correlação 
com  um  ser  humano,  somente  enquanto  tornado 
desse modo um mundo humano. Toda a existência 
possível  e  todo  o  sentido  possível  se  dispõem  ao 
redor de um ser humano como centro e valor único; 
tudo – e aqui a visão estética não conhece limites – 
deve  estar  correlacionado  a  um  ser  humano,  deve 
tornar‐se  humano.  Mas  isso  não  significa  que  em 
cada caso o herói da obra tenha de ser apresentado 
como um valor com um conteúdo positivo, no sen‐
tido  de  que  lhe  seja  atribuído  um  certo  epíteto  de 
valor positivo: “bom”, “bonito”, etc.; porque os epí‐

120
tetos  podem  ser,  ao  contrário,  inteiramente  negati‐
vos – e o herói pode ser malvado, mísero, vencido e 
derrotado sob todos os sentidos e, todavia, é sobre 
ele que a minha atenção interessada se concentra na 
visão estética, e é em volta dele, do mau, que, ape‐
sar de tudo, se situa completamente, tanto ao redor 
de um único centro de valores, quanto sobre o pla‐
no  do  conteúdo,  ou  melhor,  sobre  todos  os  aspec‐
tos. Você não ama um ser humano porque é bonito, 
mas  ele  é  bonito  porque  você  o  ama.  É  nisso  que 
está  o  caráter  especifico  da  visão  estética29.  Todo  o 
tópos de valores, toda a arquitetônica da visão seri‐
am diferentes se não fosse ele o centro dos valores. 
O  quadro,  com  o  qual  me  deparo,  da  ruína  e  da 
desgraça plenamente motivada de uma pessoa que 
amo,  me  resultará  totalmente  diferente  daquele  da 
ruína  de  quem,  do  ponto  de  vista  do  valor,  me  é 
indiferente.  E  não  porque  vou  tentar  justificar  esta 
pessoa  contra  todo  bom  senso  e  justiça;  tudo  isso 
não tem lugar aqui, e o quadro pode ser justo e rea‐
lista no seu conteúdo, e todavia ele ainda será dife‐
rente, diferente em seu tópos essencial, diferente na 
sua disposição concreta, relativamente aos valores, 
das partes e dos detalhes, para a sua inteira arquite‐
tônica; desse modo eu verei aí outras características 
de  valor,  e  outros  elementos,  e  uma  outra  disposi‐
ção sua, já que o centro concreto da minha visão e 
da  composição  do  quadro  será  diferente.  Não  se 
tratará  de  uma  deformação  subjetiva  e  interessada 
da visão, já que a arquitetônica da visão não consi‐
dera  o  aspecto  do  conteúdo‐sentido.  O  aspecto  do 

29  Bakhtin  parafraseia  um  adágio  russo  “não  é  bonito  o  que  é 


bonito,  é  bonito  aquilo  de  que  a  gente  gosta”.  [No  Brasil  se 
diz: “Quem ama o feio bonito lhe parece”]. 

121
conteúdo‐sentido  do  evento,  abstratamente  consi‐
derado,  e  igual  a  si  mesmo  e  também  idêntico  a 
centros  avaliativos  concretos  diversos  (aí  incluída 
também a avaliação dos sentidos do ponto de vista 
de um dado valor determinado em relação ao con‐
teúdo: o bem, a beleza, a verdade); mas tal aspecto 
de  conteúdo‐sentido  igual  a  si  mesmo  é  somente 
um  componente  da  arquitetônica  inteira,  e  a  posi‐
ção  deste  componente  abstrato  é  diferente  se  os 
centros valorativos da visão são diferentes. De fato 
um mesmo objeto – igual do ponto de vista do con‐
teúdo‐sentido – considerado de diversos pontos de 
um  mesmo  espaço  por  pessoas  diferentes,  ocupa 
posições  diferentes  e  é  diversamente  dado  no  con‐
junto  arquitetônico  concreto  do  campo  visual  des‐
tas  pessoas  que  o  observam;  a  sua  identidade  de 
sentido entra como tal na composição da visão con‐
creta como um de seus momentos, revestindo‐se de 
traços  concretos  e  individualizados.  Mas,  na  con‐
templação  do  evento,  a  posição  espacial  abstrata 
não  é  mais  que  um  momento  da  posição  emotivo‐
volitiva singular de quem participa do evento. Ana‐
logamente,  também  a  avaliação  de  uma  mesma 
pessoa,  se  bem  que  idêntica  quanto  ao  conteúdo 
(“ele  é  mau”),  pode  ter diferentes  entonações  reais 
de acordo com o centro real concreto de valores em 
determinadas  circunstâncias:  amo‐o  verdadeira‐
mente,  ou  o  que  me  importa  é  determinado  valor 
concreto  do  qual  aquela  pessoa  está  desprovida, 
enquanto  ela  própria  me  é  em  si  indiferente?  Esta 
indiferença,  por  certo,  não  pode  ser  expressa  abs‐
tratamente, sob a forma de uma subordinação par‐
ticular de valores; trata‐se de uma interrelação con‐
creta,  arquitetônica.  Não  se  pode  substituir  uma 

122
arquitetônica de valores por um sistema de relações 
lógicas (de subordinação) entre os valores, interpre‐
tando  as  diferenças  de  entonação  no  juízo  (“ele  é 
mal”)  do  seguinte  modo:  no  primeiro  caso  o  valor 
supremo é o ser humano e o valor subordinado é o 
bem;  no  segundo  é  o  contrário.  Não  podem  existir 
tais  tipos  de  relações  entre  um  conceito  abstrata‐
mente ideal e um objeto concreto real, assim como 
não é possível abstrair um ser humano da sua rea‐
lidade  concreta,  conservando  somente  o  cerne  do 
sentido (homo sapiens). A valoração30 do sentido so‐
bre  o  plano  abstrato  pode  ser  encarnada  somente 
em  uma  situação  concreta  unitária,  na  qual  se  dá 
também  uma  entonação  real,  uma  situação  no  seu 
todo, que se define em relação a um centro concreto 
de valores. Se houver uma má e alterada subjetivi‐
dade  parcial  somente  lá  onde  for  introduzido,  por 
esta  visão  arquitetônica  concreta,  um  conteúdo‐
sentido inexato e falso do ponto de vista deste con‐
teúdo‐sentido, isso está ligado também a uma alte‐
ração e a uma reestruturação da arquitetônica intei‐
ra. Mas não é esse o caso fundamental.  
Assim, o centro valorativo da arquitetônica do 
evento da visão estética é um ser humano, mas não 
como um qualquer, de conteúdo idêntico a si mes‐
mo,  mas  como  uma  realidade  concreta  amorosa‐
mente afirmada. Nesta, a visão estética não faz ab‐
solutamente abstração dos possíveis pontos de vis‐
ta de valores, não apaga a fronteira entre o bem e o 
mal,  entre  o  bonito  e  o  feio,  entre  a  verdade  e  a 
mentira;  a  visão  estética  conhece  e  encontra  todas 

30  Esta parte, até o próximo parágrafo, acha‐se nas edições das 
obras  completas  e  na  tradução  francesa,  mas  falta  nas  duas 
traduções italianas, na inglesa e na espanhola. 

123
estas  diferenças  no  interior  do  mundo  contempla‐
do, mas estas diferenças não surgem dele como cri‐
térios  últimos,  como  princípio  de  ver  e  formar  o 
que é visto, mas elas permanecem no interior desse 
mundo como momentos constituintes da sua arqui‐
tetônica, e todavia são todos abarcados pela afirma‐
ção  de  um  ser  humano,  uma  afirmação  amorosa 
que tolera tudo. A visão estética também conhece, é 
claro,  “princípios  de  seleção”,  mas  esses  são  todos 
arquitetonicamente subordinados ao centro valora‐
tivo soberano da contemplação – um ser humano. 
Nesse sentido [a relação de antecipação do au‐
tor para com seu herói é um interesse desinteressa‐
do]  pode‐se  falar  de  um  amor  estético  objetivo  – 
mas  sem  atribuir  a  esta  expressão  um  significado 
psicológico  passivo – entendendo‐a como o princí‐
pio da visão estética. A  diversidade de valor do e‐
xistir  enquanto  humano  (isto  é,  correlato  com  um 
ser  humano)  pode  apresentar‐se  somente  à  con‐
templação  amorosa;  somente  o  amor  está  em  con‐
dição  de  afirmar  e  consolidar,  sem  perder  e  sem 
desperdiçar, esta diversidade e multiplicidade, sem 
deixar  atrás  apenas  um  esqueleto  nu  de  linhas  e 
momentos  de  sentido  fundamentais.  Somente  um 
amor  desinteressado  segundo  o  princípio  “não  o 
amo porque é bonito, mas é bonito porque o amo”, 
somente  uma  atenção  amorosamente  interessada, 
pode  desenvolver  uma  força  muito  intensa  para 
abraçar e manter a diversidade concreta do existir, 
sem empobrecê‐lo e sem esquematizá‐lo. Uma rea‐
ção indiferente ou hostil é sempre uma reação que 
empobrece  e  desintegra  o  objeto:  passa  longe  do 
objeto  em  toda  a  sua  diversidade,  o  ignora  e  o  su‐
pera.  A  própria  função  biológica  da  indiferença 

124
consiste  em  liberar‐nos  da  diversidade  do  existir, 
em  nos  fazer  prescindir  disso  que  é  não‐essencial 
para nós na prática: é uma espécie de economia, de 
proteção  frente  à  dispersão  da  diversidade.  É  esta 
também a função do esquecimento total.  
O desamor e a indiferença nunca geram forças 
suficientes para nos deter e nos demorarmos sobre 
o objeto, de modo que fique fixado e esculpido cada 
mínimo detalhe e cada particularidade sua. Somen‐
te  o  amor  pode  ser  esteticamente  produtivo,  so‐
mente em correlação com quem se ama é possível a 
plenitude da diversidade.  
Em  relação  ao  centro  valorativo  do  mundo  da 
visão estética (um ser humano concreto) não vale a 
distinção entre forma e conteúdo, já que o princípio 
tanto da forma quanto do conteúdo da visão na sua 
unidade  e  interpenetração  é  um  ser  humano.  Tal 
distinção é possível somente em relação a categori‐
as  conteudísticas  abstratas.  Todos  os  momentos 
abstrato‐formais se tornam momentos concretos da 
arquitetônica  somente  em  correlação  com  o  valor 
concreto  de  um  ser  humano  mortal.  Todas  as  rela‐
ções espaciais e temporais se correlacionam somen‐
te  a  ele,  e  somente  em  relação  a  ele  adquirem  um 
sentido  valorativo:  alto,  longe,  acima,  embaixo,  a‐
bismo, infinidade – todas estas expressões refletem 
a  vida  e  a  tensão  de  um  homem  mortal,  mas  não 
em  um  sentido  abstrato,  matemático,  mas  em  sen‐
tido valorativo, emotivo‐volitivo.  
Somente o valor de um homem mortal fornece 
a escala de medidas das séries espacial e temporal: 
o espaço se condensa como o horizonte possível de 
um  ser  humano  mortal,  como  seu  ambiente  possí‐
vel;  o  tempo  assume  espessura  e  peso  de  ordem 

125
valorativa, enquanto flui na vida de um ser huma‐
no  mortal,  com  a  determinação  seja  do  conteúdo 
temporal,  seja  do  peso  formal,  o  fluir  significativo 
do ritmo. Se o ser humano não fosse mortal, o tom 
emotivo‐volitivo  desta  progressão,  deste  antes,  de‐
pois,  ainda,  quando,  nunca,  e  dos  momentos  for‐
mais  do  ritmo  seria  diferente.  Suprimamos  o  com‐
ponente constituído da vida do ser humano mortal, 
e  se  extinguirá  o  valor  disso  que  é  vivido:  o  valor 
do ritmo e o valor do conteúdo. Aqui não se trata, 
certamente, de uma determinada duração matemá‐
tica da vida humana (70 anos), que pode ser consi‐
derada  longa  ou  breve,  como  se  queira,  mas  sim‐
plesmente  do  fato  de  que  existem  duas  demarca‐
ções, os limites da vida – o nascimento e a morte – , 
e  é  somente  o  evento  da  existência  desses  limites 
que  confere  uma  nuança  emotiva‐volitiva  à  passa‐
gem  do  tempo  de  uma  vida  limitada;  e  a  própria 
eternidade  tem  um  sentido  valorativo  somente  em 
correlação com uma vida delimitada.  
O  modo  melhor  para  esclarecer  <?>  a  disposi‐
ção  arquitetônica  do  mundo  da  visão  estética  em 
torno  de  um  centro  de  valores  –  um  ser  humano 
mortal  –  é  fornecer  uma  análise  (conteudístico‐
formal)  da  arquitetônica  concreta  de  uma  obra 
qualquer.  Nós  tomaremos  a  obra  lírica  de  Pushkin 
Razluka [Separação], escrita em 1830: 
 
Em direção às margens da pátria distante 
Estavas deixando o solo estrangeiro. 
Na hora atroz que o tempo não cura,  
Muito já chorei enquanto perto de ti eu estava. 
Procuravam os meus dedos gelados  
Segurar‐te ainda por algum momento. 

126
Que a mordaz pena da partida 
Não terminasse implorava meu lamento. 
 
Mas eis que do meu beijo doloroso 
Então os teus lábios separaste. 
Da terra do exílio tenebroso 
A uma outra terra tu me convocaste. 
Disseste: o dia no qual nos encontraremos 
Debaixo do céu sempre azul na cor, 
Lá na sombra dos olivais reuniremos, 
Amigo meu, os beijos do amor,  
 
Mas, ai de mim, onde do céu resplandece  
O arco de um azul festivo 
E a sombra das oliveiras sobre as águas se estende 
Tu para sempre adormeceste. 
A tua beleza e cada tormento teu  
Desapareceram na urna sepulcral ‐  
E também o beijo do teu encontro… 
Mas eu a espero, a tua promessa vale! 
 
Nesta poesia há dois personagens: o herói líri‐
co  (o  autor  objetivado)  e  ela  (Riznich31)  e,  em  con‐
sequência,  dois  contextos  de  valores,  dois  pontos 
concretos  que  são  correlatos  e  momentos  valorati‐
vos  concretos  do  existir.  Além  disso,  o  segundo 
contexto,  sem  perder  a  própria  independência,  é, 
sobre o plano dos valores, abrangido pelo primeiro 
(é afirmado sobre o plano dos valores deste); e am‐
bos são, por sua vez, envoltos pelo contexto estético 
unificante e que afirma os valores, do autor‐artista 
e  contemplador,  o  qual  se  acha  colocado  fora  da 
arquitetônica da visão de mundo da obra (diversa‐

31  Amalia Riznich, que da Rússia volta para a Itália,  

127
mente do autor‐herói, que é membro desta arquite‐
tônica). O lugar singular do sujeito estético (do au‐
tor, do contemplador) no existir, o ponto de irradi‐
ação da sua atividade estética – do seu amor objeti‐
vo por um certo homem – tem uma só definição: a 
sua  exotopia  [vnenachodimost]32  em  relação  a  todos 
os momentos da unidade arquitetônica <?> da visão 
estética, que torna pela primeira vez possível abra‐
çar  a  arquitetônica  inteira,  seja  espacial  ou  tempo‐
ral,  com  uma  única  atividade  afirmativa  dos  valo‐
res. A empatia estética – a visão do herói, do objeto, 
a  partir  do  interior  –  se  realiza  ativamente  deste 
lugar  singular  exotópico,  e  precisamente  a  partir 
daqui se realiza a recepção estética, afirmação e en‐
formação  da  matéria  da  empatia  na  arquitetônica 
unificante da visão. A exotopia do sujeito, exotopia 
espacial, temporal, valorativa, o fato, isto é, que não 
sou eu mesmo o objeto da empatia e da visão, torna 
possível,  pela  primeira  vez,  a  atividade  estética  da 
enformação.  
Todos os componentes concretos da arquitetô‐
nica  convergem  em  torno  de  dois  centros  valorati‐
vos  (o  herói  e  a  heroína)  e  são  ambos  igualmente 
envoltos em um único evento da atividade estética, 
humana,  valorativa,  afirmativa.  Nesta  unidade  do 
evento estes círculos valorativos da existência inte‐
ragem entre eles, mas nunca até a fusão. Vamos se‐
guir a ordem destes momentos concretos do existir:  
 

32   Vnenachodimost,  exotopia,  extralocalização,  conceito  básico  da 


concepção bakhtiniana da visão estética que está presente em 
toda a sua obra, desde o primeiro escrito sobre a relação arte‐
responsabilidade,  publicado  em  1918,  até  o  último,  de  1974, 
sobre ciências humanas. 

128
Em direção às margens da pátria distante 
Estavas deixando o solo estrangeiro, 
 
As margens da pátria se acham no contexto va‐
lorativo  espaço‐temporal  da  vida  da  heroína.  A 
“pátria” é uma pátria para ela, é no seu tom emoti‐
vo‐volitivo  que  o  possível  horizonte  espacial  se 
torna  “pátria”  (no  sentido  valorativo  concreto  da 
palavra,  no  seu  sentido  pleno),  e  é  em  correlação 
com  a  sua  –  dela  –  singularidade  que  o  espaço  se 
concretiza  no  evento  como  “solo  estrangeiro”. 
Também  o  aspecto  constituído  do  movimento  es‐
pacial  desde  o  país  estrangeiro  até  a  terra  natal  é 
dado, se realiza enquanto evento, no tom emotivo‐
volitivo  dela.  Todavia,  este  é  aqui  concretizado  si‐
multaneamente  também  no  contexto  da  vida  do 
autor como evento no contexto valorativo da sua – 
dele – vida: estavas deixando. Para ela (no tom emo‐
tivo‐volitivo  dela)  se  tratava  de  voltar  do  solo  es‐
trangeiro  à  terra  natal,  teria  de  prevalecer,  então, 
um  tom  valorativo  mais  positivo.  É  do  ponto  de 
vista do lugar singular dele no evento que ela “está 
deixando”. Também o momento arquitetônico con‐
creto expresso no epíteto “longe” é dado na unida‐
de  singular  do  evento  da  vida  dele,  no  seu  tom  e‐
motivo‐volitivo.  Aqui,  com  relação  ao  evento,  es‐
sencial não é o fato de que ela terá de realizar uma 
longa  viagem,  mas  o  fato  de  que  ela  estará  longe 
dele, ainda que a “distância” tenha um peso sobre o 
plano  do  valor  também  no  contexto  dela.  Aqui  há 
uma interpenetração e uma unidade do evento en‐
quanto  os  contextos  valorativos  permanecem  dis‐
tintos.  

129
Esta  interpenetração  e  distinção  valorativa  –  a 
unidade  do  evento  –  é  ainda  mais  evidente  na  se‐
gunda metade da estrofe: 
 
Na hora atroz que o tempo não cura, 
Muito já chorei enquanto perto de ti eu estava. 
 
Tanto  a  hora  como  os  seus  epítetos  (“que  o 
tempo  não  cura”,  “inesquecível”,  “triste”)  tem  o 
caráter do evento, tanto para ele quanto para ela, e 
adquirem  um  peso  nas  sequências  temporais  da 
vida  mortal  determinada  dele  e  dela.  Mas  predo‐
mina o tom emotivo‐volitivo dele. É em correlação 
a  ele  que  este  momento  temporal  <ilegível>  ganha 
corpo  como  a  hora  da  sua  vida  singular  valorati‐
vamente preenchida pela separação.  
Na primeira redação, o início também era dado 
no contexto avaliativo do herói:  
   
Em direção às margens da terra estranha e distante 
Estavas deixando o solo nativo. 
 
Aqui a terra estrangeira (a Itália) e o solo nati‐
vo (a Rússia) são dados no tom emotivo‐volitivo do 
autor‐herói. Em relação a ela, o mesmo espaço ocu‐
pa – no evento da sua vida – uma posição oposta.  
 
Procuravam os meus dedos gelados  
Segurar‐te ainda por algum momento. 
 
Aqui  o  contexto  valorativo  é  o  do  herói.  As 
mãos frias procuravam mantê‐la no seu âmbito es‐
pacial,  na  imediata  vizinhança  do  próprio  corpo  – 
no  único  centro  espacial,  aquele  centro  concreto 

130
que  dá  um  sentido  e  essência  à  pátria  e  à  terra  es‐
trangeira, à distância e à proximidade, ao passado, 
à brevidade da hora, à duração do pranto, à eterni‐
dade da lembrança.  
   
Que a mordaz pena da partida 
Não terminasse implorava meu lamento. 
   
Também  aqui  o  contexto  do  autor  prevalece. 
Aqui se percebe tanto a tensão rítmica quanto uma 
certa aceleração do tempo – é a tensão de uma vida 
mortal  determinada,  a  aceleração  valorativa  do 
tempo da vida na tensão do evento.  
 
Disseste: o dia no qual nos encontraremos 
Debaixo do céu sempre azul na cor, 
 
O contexto dele e dela se acham em intensa in‐
terpenetração,  permeados  da  unidade  do  contexto 
valorativo  da  humanidade  mortal:  o  céu  eterna‐
mente azul existe no contexto de cada vida mortal. 
Aqui,  todavia,  este  momento  constituído  por  um 
evento  comum  a  toda  a  humanidade  é  dado,  não 
diretamente  ao  sujeito  estético  (ao  autor‐
contemplador  situado  fora  da  arquitetônica  do 
mundo da obra), mas do interior dos contextos dos 
heróis; entra novamente, isto é, como momento va‐
lorativamente  afirmado  no  evento  do  encontro.  O 
encontro  –  a  aproximação  dos  centros  valorativos 
concretos da vida (dele e dela) em um plano qual‐
quer  (terreno,  celeste,  temporal,  atemporal)  –  é 
mais importante <?> do que o evento da sua apro‐
ximação no interior de um único horizonte, de um 

131
único ambiente valorativo. As duas estrofes seguin‐
tes concretizam profundamente o encontro: 
 
Mas, ai de mim, onde do céu resplandece  
O arco de um azul festivo 
E a sombra das oliveiras sobre as águas se estende 
Tu para sempre adormeceste. 
A tua beleza e cada tormento teu  
Desapareceram na urna sepulcral ‐  
E também o beijo do teu encontro… 
Mas eu a espero, a tua promessa vale! 
 
Os  primeiros  três  versos  destas  duas  últimas 
estrofes simbolizam os elementos de um evento em 
um  contexto  de  valores  comuns  a  toda  a  humani‐
dade  (a  beleza  da  Itália),  afirmado no  contexto  va‐
lorativo  da  heroína  (o  mundo  dela),  por  onde  en‐
tram, afirmados, também no contexto do herói. Tra‐
ta‐se,  seja  para  ela,  seja  para  ele,  do  ambiente  do 
evento singular da morte dela. O possível ambiente 
da sua vida e do futuro encontro se torna aqui am‐
biente real de sua morte. No seu valor, o sentido do 
evento do mundo da Itália é para o herói aquele de 
um  mundo  no  qual  ela  já  não  exista  mais,  um 
mundo  iluminado  valorativamente  a  partir  do  seu 
–  dela  –  não‐existe‐mais.  Para  ela  é  o  mundo  em 
que teria podido existir. Todos os versos sucessivos 
são dados no tom emotivo‐volitivo  do autor‐herói, 
e é ainda nesta tonalidade que é expressa a anteci‐
pação do último verso: a convicção de que o encon‐
tro prometido ocorrerá, apesar de tudo, pois que o 
círculo  da  compenetração  recíproca  dos  eventos 
dos  seus  contextos  valorativos  não  se  fechou.  A  e‐

132
ternidade33  do  evento  <?>  é  necessária  e  se  dará 
desde o interior da sua participação singular, a ele e 
a  ela.  O  tom  emotivo‐volitivo  da  separação  e  do 
encontro que aqui não se realizou se transforma na 
tonalidade de um encontro que se prepara, um en‐
contro seguro e inevitável no além. 
Este é então o modo pelo qual se dispõem em 
torno  de  dois  centros  valorativos  os  componentes 
do evento existencial. Um mesmo objeto (a Itália) – 
o mesmo do ponto de vista do conteúdo/sentido – é 
diferente  como  componente‐evento  de  contextos 
avaliativos diferentes: para ela é a pátria, para ele a 
terra  estrangeira;  para  ela  o  fato  da  partida  é  um 
retorno,  para  ele  um  abandono,  etc.  A  Itália  una  e 
idêntica a si mesma e a distância, matematicamente 
igual a si mesma, que a separa da Rússia, penetra‐
ram  aqui  na  unidade  do  evento  e  são  vivas  nele, 
não pela sua identidade de conteúdo, mas pelo lu‐
gar singular que ocupam na unidade da arquitetô‐
nica,  uma  vez  dispostas  em  torno  de  dois  centros 
valorativos  singulares.  Mas  seria  talvez  lícito  con‐
trapor a Itália una, idêntica a si mesma, que é a úni‐
ca real e objetiva, a uma Itália aleatória de uma ex‐
periência  subjetiva  vivida  –  aquela  da  Itália  como 
pátria ou como terra estrangeira? Contrapor a Itália 
onde ela agora repousa, e para onde, talvez, ele se 
precipita  com  paixão34,  àquela  experienciada  de 
maneira  subjetiva‐singular?  Uma  tal  contraposição 
é radicalmente errada.  

33 Esta frase falta nas traduções italianas e na espanhola e ingle‐
sa, mas está presente na francesa. 
34 Esta expressão “e para onde, talvez, ele se precipita com pai‐

xão” do texto russo aparece somente na tradução francesa. 

133
A  experiência  vivida  da  Itália  como  evento 
contém como componente indispensável a sua uni‐
cidade  real  em  um  existir  unitário  e  singular.  Mas 
esta Itália una adquire corpo, se reveste de carne e 
de sangue, somente do interior da minha afirmada 
participação  na  singularidade  do  existir,  do  qual  a 
Itália  única  é  também  um  componente.  Todavia  o 
contexto  do  evento  da  participação  singular  não  é 
fechado  em  si  mesmo,  não  é  isolado.  O  contexto 
valorativo no qual a Itália é pátria (o contexto dela), 
é  compreendido  e  afirmado  também  do  contexto‐
evento  do  autor‐herói,  em  que  a  Itália  é  terra  es‐
trangeira. Mediante a participação do herói do seu 
lugar singular no existir, a Itália, idêntica a si mes‐
ma, se consolidou, para ele, como terra estrangeira 
e,  sempre  para  ele,  na  pátria  da  sua  amada,  uma 
vez  que  ela  –  e,  por  consequência,  também  todo  o 
contexto valorativo do evento no qual a Itália é pá‐
tria  –  é  valorativamente  afirmado  por  ele.  E  todas 
as outras nuanças possíveis do evento de uma Itália 
singular  relativamente  a  pessoas  concretas  afirma‐
das sobre o plano dos valores – a Itália da humani‐
dade – entram na composição da consciência parti‐
cipante do herói a partir do seu lugar singular. Para 
tornar‐se  momento  de  uma  consciência  real,  mes‐
mo  de  uma  consciência  teórica,  do  geógrafo  por 
exemplo, a Itália deve entrar em um evento em al‐
guma relação com um valor concretamente afirma‐
do.  Aqui  não  há  nenhum  relativismo:  a  verdade 
(pravda)  do  existir‐evento  contém  totalmente  em  si 
todo  o  absoluto  extratemporal  da  verdade  (istina) 
teórica.  A  unidade  do  mundo  é  um  momento  da 
sua  singularidade  concreta  e  uma  condição  neces‐
sária  do  nosso  pensamento  considerado  do  ponto 

134
de  vista  de  seu  conteúdo,  isto  é,  do  pensamento‐
juízo;  mas  para  o  pensamento‐ato  real,  a  unidade 
por si só não é suficiente. 
Paremos  um  pouco  agora  para  considerar  al‐
gumas  particularidades  da  arquitetônica  da  lírica 
por nós escolhida. O contexto valorativo da heroína 
é afirmado e incluído no contexto do herói. O herói 
se  acha  no  ponto  presente  do  tempo  singular  da 
sua  vida;  os  eventos  da  separação  e  da  morte  da 
amada  estão  dispostos  no  seu  singular  passado 
(transpostos sobre o plano da recordação) e, através 
do  presente,  pedem  um  futuro  pleno,  querem  um 
evento eterno, e isso dá consistência e sentido a to‐
dos os limites temporais e a todas as relações tem‐
porais – é a experiência vivida participativa do tem‐
po  do  evento.  Toda  esta  arquitetônica  no  seu  con‐
junto  é  dada  ao  sujeito  estético  (o  artista‐
contemplador), que está situado fora dela. Por este 
sujeito,  seja  o  herói,  seja  todo  o  contexto  concreto 
do  seu  evento,  estão  correlacionados  com  o  valor 
do ser humano e do humano, enquanto ele – o su‐
jeito estético – participa afirmativamente do existir 
singular, no qual o ser humano e tudo o que é hu‐
mano  constituem  o  componente  valorativo.  E  é 
sempre  para  ele  que  também  o  ritmo  se  enche  de 
vida,  como  transcorrer  valorativamente  orientado 
da vida de homem mortal. Toda esta arquitetônica, 
seja  no  seu  conteúdo,  seja  nos  seus  momentos  for‐
mais, é viva para o sujeito estético somente enquan‐
to da sua parte se acha realmente afirmado o valor 
de tudo isso que é humano. 
Esta  é,  portanto,  a  arquitetônica  concreta  do 
mundo da visão estética. Aqui o componente valor 
é em todo lugar condicionado não por um princípio 

135
logicamente  fundante,  mas  do  lugar  único  que  o‐
cupa um objeto na arquitetônica concreta do even‐
to, do ponto de vista do lugar singular de um sujei‐
to  participante.  Todos  os  componentes  da  arquite‐
tônica são afirmados como momentos da singulari‐
dade de um ser humano concreto. Os componentes 
espaciais, temporais, lógicos e avaliativos, se conso‐
lidam  e  são  incorporados  na  sua  unidade  concreta 
(pátria, distância, passado, foi, será, etc.), são corre‐
lacionados  com  o  centro  avaliativo  concreto,  são 
subordinados  a  ele,  mas  não  sistematicamente,  e 
sim  arquitetonicamente;  recebem  sentido  e  locali‐
zação através dele e nele. Cada componente aqui é 
vivo  enquanto  único,  e  a  unidade  mesma  não  é 
mais que um componente da singularidade concre‐
ta de um ser humano. (A imortalidade como postu‐
lado  do  verdadeiro  amor.  Componente  formal‐
substancial). 
Mas  esta  arquitetônica  estética,  representada 
por nós em caráter geral, é a arquitetônica da con‐
templação  do  mundo  produzido  no  ato  estético, 
enquanto  o  ato  mesmo  e  eu  que  executo  o  ato  nos 
encontramos fora dela, estamos excluídos dela. Tra‐
ta‐se  do  mundo  da  existência  de  outros  homens 
que vem afirmada, mas eu, eu‐que‐afirmo, nele não 
estou. É o mundo de outros singulares, únicos, cuja 
origem  e  construção  provêm  do  seu  interior,  o 
mundo de uma existência valorativamente correla‐
ta com estes outros, mas estes outros são encontrados 
por  mim,  enquanto  eu,  eu‐singular,  que  tenho  ori‐
gem  e  me  construo  do  meu  interior,  me  situo  por 
princípio fora dessa arquitetônica. Eu participo so‐
mente como contemplador, mas a contemplação é a 
efetiva exotopia ativa do contemplador com relação 

136
ao objeto da contemplação. A singularidade de um 
ser humano contemplada esteticamente não coinci‐
de,  por  princípio,  com  a  minha  singularidade.  A 
atividade estética é uma participação especial, obje‐
tivada;  do  interior  da  arquitetônica  estética  não  há 
saída para o mundo do sujeito do ato, porque esse 
se encontra fora do  campo da visão estética objeti‐
vada.  
Se  passamos  agora  à  arquitetônica  real  do 
mundo  vivido  da  vida,  do  mundo  da  consciência 
que age de modo participante, notaremos antes de 
tudo uma diferença arquitetônica de princípio entre 
a  minha  singularidade  única  e  a  singularidade  de 
cada outro ser humano, seja estética ou real, entre a 
concreta experiência vivida por si mesmo e a expe‐
riência  vivida  pelo  outro.  O  valor  concretamente 
afirmado  de  um  ser  humano  e  o  meu  valor‐para‐
mim‐mesmo são radicalmente diferentes.  
Aqui  não  estamos  falando  de  uma  avaliação35 
abstrata  de  uma  consciência  teórica  desencarnada, 
que  conhece  somente  o  valor  de  conteúdo‐sentido 
geral  de  cada  pessoa,  de  cada  ser  humano.  Uma 
consciência  desse  tipo  não  pode  gerar  de  maneira 
não  fortuita  um  ato  concreto  único,  mas  somente  a 
valoração  da  ação  post  factum  como  exemplar  do 
ato.  Estamos  falando,  ao  invés,  de  uma  valoração 
concreta  e  operante  por  parte  de  uma  consciência 
que age, do ato‐valoração, que procura a sua própria 
justificação, não no interior de um sistema, mas em 
uma  realidade  única  e  concreta,  irrepetível.  Essa 
consciência  se  contrapõe  por  si  mesma  a  todas  as 
outras  como  outras  por  si  mesmas;  contrapõe  seu 
próprio eu como vindo de dentro de si mesmo a to‐

35  Um “juízo de valor”, e ocenka. 

137
dos os outros seres humanos singulares que ela en‐
contra; contrapõe a mim mesmo, como participante, 
ao  mundo  do  qual  eu  participo,  e,  nesse  mundo,  a 
todos  os  outros  seres  humanos.  Eu,  como  eu‐único, 
emerjo do interior de mim mesmo, enquanto a todos 
os  outros  eu  os  encontro  –  e  é  nisso  que  consiste  a 
profunda diferença ontológica do evento.  
O  princípio  arquitetônico  supremo  do  mundo 
real do ato é a contraposição concreta, arquitetoni‐
camente  válida,  entre  eu  e  outro.  A  vida  conhece 
dois  centros  de  valores,  diferentes  por  princípio, 
mas  correlatos  entre  si:  o  eu  e  o  outro,  e  em  torno 
destes centros se distribuem e se dispõem todos os 
momentos  concretos  do  existir.  Um  mesmo  objeto, 
idêntico  por  conteúdo,  é  um  momento  do  existir 
que  apresenta  um  aspecto  valorativo  diferente, 
quando correlacionado comigo ou com o outro; e o 
mundo inteiro, conteudisticamente uno, correlacio‐
nado comigo e com o outro, é permeado de um tom 
emotivo‐volitivo diferente, é dotado, no seu sentido 
mais  vivo  e  mais  essencial,  de  uma  validade  dife‐
rente sobre o plano do valor. Isto não compromete 
a  unidade  de  sentido  do  mundo,  mas  a  eleva  ao 
grau de unicidade própria do evento.  
Este  caráter  biplano  da  determinação  valorati‐
va do mundo – para mim e para o outro – é muito 
mais profundo e mais essencial do que a diferença 
na determinação do objeto que observamos no inte‐
rior do mundo da visão estética, no qual uma única 
e mesma Itália resultava terra natal para um e terra 
estrangeira  para  outro,  e  no  qual  todas  essas  dife‐
renças de validade eram de natureza arquitetônica, 
mas se achavam em uma mesma dimensão valora‐
tiva, aquela do mundo de quem é outro para mim. 

138
Trata‐se  da  interação  arquitetônica  entre  dois  ou‐
tros valorativamente afirmados. Seja a Itália‐pátria, 
seja  a  Itália‐terra‐estrangeira,  resultam  observadas 
em uma mesma tonalidade, uma e outra estão situ‐
adas em um mundo que é correlato com um outro. 
O  mundo  que  é  correlato  comigo,  como  eu,  não 
pode,  por  princípio,  entrar  na  arquitetônica  estéti‐
ca.  Como  veremos  em  detalhe  mais  adiante,  con‐
templar  esteticamente  significa  relacionar  o  objeto 
ao plano valorativo do outro. 
Esta  divisão  arquitetônica  do  mundo  em  eu  e 
em  todos  aqueles  que  para  mim  são  outros  não  é 
passiva e casual, mas ativa e imperativa. Esta arqui‐
tetônica  é  tanto  algo  dado,  como  algo  a‐ser‐
realizado [danai zadana], porque é a arquitetônica de 
um evento. Essa não é dada como uma arquitetôni‐
ca  pronta  e  consolidada,  na  qual  eu  serei  colocado 
passivamente,  mas  é  o  plano  ainda‐por‐se‐realizar 
[zadannyi],  da  minha  orientação  no  existir‐evento, 
uma  arquitetônica  incessante  e  ativamente  realiza‐
da por meu ato responsável, edificada por meu ato 
e  que  encontra  a  sua  estabilidade  somente  na  res‐
ponsabilidade  do  meu  ato.  O  dever  concreto  é  um 
dever  arquitetônico:  o  dever  de  realizar  o  próprio 
lugar  único  no  evento  único  do  existir;  e  ele  é  de‐
terminado antes de tudo como oposição valorativa 
entre o eu e o outro.  
Esta oposição arquitetônica se completa em ca‐
da  ato  moral,  e  é  entendida  por  uma  consciência 
moral  elementar,  mas  a  ética  teórica  não  possui 
uma forma adequada para expressá‐la. A forma de 
tese geral, de norma ou de lei não é, por princípio, 
capaz  de  expressar  tal  oposição,  cujo  sentido  é  ab‐
soluta  autoexclusão  [sebia‐iskliucenie].  Surge  inevi‐

139
tavelmente neste caso uma ambiguidade, uma con‐
tradição  entre  forma  e  conteúdo.  Este  momento 
pode  ser  expresso  somente  na  forma  de  uma  des‐
crição  da  concreta  interrelação  arquitetônica,  mas 
esta  descrição  permanece  até  agora  desconhecida 
pela filosofia moral. Disso, naturalmente, não resul‐
ta, de modo algum, que tal oposição não tenha sido 
nunca  expressa  ou  enunciada  –  é  este,  de  fato,  o 
sentido de toda a moralidade cristã, e é o ponto de 
partida  também  da  moral  altruística;  todavia  este 
<duas ou três palavras ilegíveis> princípio de mora‐
lidade não encontrou até agora uma expressão cien‐
tífica adequada nem uma reflexão aprofundada.  
 
 
 
 
 

140
141
POSFÁCIO 

Um posfácio meio impertinente 
 
Carlos Alberto Faraco 
 
 
Quando Para uma filosofia do ato responsável (PFA a 
partir daqui), escrito no início da década de 1920, veio 
a  público  pela  primeira  vez,  em  1986,  causou  certa 
perplexidade  entre  os  leitores  de  Bakhtin:  a  lingua‐
gem ocupava lugar pequeno no texto, a grande metá‐
fora  do  diálogo  não  era  mencionada,  não  havia  i‐
gualmente qualquer referência ao riso e à cultura car‐
navalesca  e o  único  exemplo  do  texto  era  um  poema 
lírico que, segundo o entendimento de alguns, era um 
gênero desprezado por Bakhtin (diga‐se de passagem 
que este entendimento, inexplicavelmente, ainda per‐
siste – cf. a discussão do assunto em Tezza 2003). 
Aparentemente, era um outro Bakhtin o autor do 
texto. Era um filósofo que se mostrava; e não o crítico 
da literatura e da cultura, o estudioso de Dostoiévski 
e  Rabelais  ou  o  teórico  do  romance  com  quem  seus 
leitores estavam acostumados. 
Alguns  (Morson  &  Emerson  1989,  por  exemplo) 
argumentaram que havia uma nítida oposição entre o 
Bakhtin dos primeiros textos e o Bakhtin do livro so‐
bre Dostoiévski e trabalhos posteriores. Passaram até 
a  sugerir  que  o  primeiro  era  superior  ao  segundo, 
numa  tentativa  de  estabelecer  um  confronto  com  as 
leituras  mais  sociológicas  ou  de  inspiração  marxista. 
Argumentaram  que  não  haveria  uma  continuidade 
entre  os  textos  mais  filosóficos  e  os  que  seguiram  ao 
que chamaram de “descoberta da linguagem”. 
142 
O  avançar  das  leituras  e  releituras  acabou,  po‐
rém, por enfraquecer esta argumentação. Vários auto‐
res – entre outros, Ponzio (1997), Bialostovsky (1999) e 
os colegas brasileiros Amorim (2006) e Sobral (2005) – 
mostraram os vínculos estreitos de PFA com os outros 
textos de Bakhtin. Houve, sem dúvida, desdobramen‐
tos e refinamentos do conceitual bakhtiniano ao longo 
das  cinco  décadas  de  sua  produção.  No  entanto,  foi 
ficando claro que era inadequado, pouco produtivo e, 
de fato, insustentável analisar o conjunto de sua obra 
assumindo  uma  ruptura  radical  entre  seus  textos  do 
início da década de 1920 e os textos posteriores. 
PFA contém (em gérmen, é verdade, consideran‐
do  seu  caráter  de  rascunho  fragmentário)  as  coorde‐
nadas que sustentarão boa parte do edifício posterior: 
a eventicidade (o irrepetível), o sempre inconcluso (o 
que  está  sempre  por  ser  alcançado),  o  antirraciona‐
lismo  (o  antissistêmico),  o  agir  (o  interagir)  e,  acima 
de tudo (segundo meu ponto de vista), o axiológico (o 
vínculo valorativo), que, em PFA, é designado princi‐
palmente pela expressão “tom emotivo‐volitivo”. 
Essas peças vão ganhar formas diferentes e vão se 
encaixar  de  modo  diverso  a  partir  do  momento  em 
que  Bakhtin  elabora  sua  filosofia  da  linguagem.  No 
entanto,  elas  permanecem  presentes  e  nucleares  em 
toda sua obra. Talvez se possa dizer que em PFA en‐
contramos  o  autor  esquentando  os  músculos  para  a 
grande caminhada de meio século que se seguirá. 
O  texto  é  um  rascunho;  faltavam  ao  manuscrito 
as páginas iniciais; não sabemos que título teria (o que 
recebeu lhe foi dado pelos editores) e há trechos ilegí‐
veis  em  decorrência  das  precárias  condições  em  que 
foi guardado. Quando iniciamos a leitura, o argumen‐
to já vai a meio caminho. Mergulhamos numa exposi‐
ção basicamente conceitual: não há exemplos (afora o 
poema  de  Pushkin),  não  há  comentários  aplicados  a 
143
situações concretas que nos auxiliassem a entender o 
conceitual e as dimensões da filosofia em elaboração. 
Não  há,  salvo  indicações  incidentais  (em  geral,  ape‐
nas  nomes  entre  parênteses),  maiores  referências  às 
fontes  (a  que  enunciados,  a  que  já‐ditos  o  texto  res‐
ponde?). Talvez elas viessem depois, mas o texto aca‐
bou  por  nunca  ser  retomado  para  uma  eventual  edi‐
ção  e  ficamos  nós,  seus  leitores,  em  boa  parte  a  ver 
navios. 
Sabemos que Bakhtin tinha uma declarada impli‐
cância  com  citações  e  referências  (ele  chegou  a  dizer 
que elas eram desnecessárias para o leitor competente 
e  inúteis  para  o  não  qualificado).  Gostava  de  falar, 
portanto,  para  seu  leitor  próximo,  que,  supõe‐se,  i‐
dentificava logo as referências não explícitas do texto. 
Cita o Kant do imperativo categórico e os neokantia‐
nos (Rickert em especial) da filosofia dos valores. Não 
cita  o  Kierkegaard  do  pensamento  existencial  e  da 
crítica  ao  racionalismo,  mas  os  ecos  são  muito  fortes 
(como procuraremos apontar adiante). Há muito a se 
fazer aqui, sem dúvida. 
De qualquer forma, o que interessa sobremaneira, 
na leitura do texto, é captar as respostas bakhtinianas 
aos  temas  que  provocaram  suas  reflexões.  Quanto  a 
isso,  o  leitor  logo  percebe  que  o  texto  resiste  a  pará‐
frases fáceis. Embora, como nota Amorim (2009: 21), o 
texto tenha um estilo um tanto quanto repetitivo, ele é 
denso – há, digamos assim, muito nas entrelinhas, há 
até,  sem  querer  abusar  dos  termos,  um  excesso  de 
condensações – e isso exige um exercício meio árduo 
de  destrinçar  sua  trama  que  chega  a  ser  até  meio  e‐
nigmática em alguns pontos. 
Por  outro  lado,  traduzir  PFA,  mesmo  indireta‐
mente, não é fácil. Há, por exemplo, neologismos que 
cobram  certos  malabarismos  em  busca  de  equivalên‐
cias.  Alguns  anos  atrás,  fizemos  (Cristovão  Tezza  e 
144 
eu) uma primeira tentativa tomando a tradução ame‐
ricana  como  ponto  de  partida.  Era  apenas  para  fins 
didáticos. Nunca foi publicada. Mas motivou leitores: 
foi  várias  vezes  mencionada  em  trabalhos  acadêmi‐
cos. E essa experiência ajudou a construir um vocabu‐
lário  mais  apropriado  e,  sem  dúvida,  facilitou  esta 
tradução  que  aqui  se  publica.  Tomamos  (Miotello  e 
eu) por base a mais recente tradução italiana (feita por 
Luciano  Ponzio):  ela  tem  a  vantagem  de  ter  partido 
da  última  versão  do  texto,  que  aparece  nas  Obras 
completas de Bakhtin. 
Vencido o trabalho da tradução, pareceu ao Mio‐
tello que o texto pedia um posfácio. E sugeriu que eu 
o  escrevesse.  Mesmo  consciente  das  dificuldades  de 
falar  de  PFA,  me  arrisco  a  apontar  aqui  alguns  dos 
traços que mais me impressionam a cada vez que me 
aproximo do texto. Para organizar a exposição, divido 
PFA  em  três  grandes  blocos  (sem,  obviamente,  qual‐
quer pretensão exaustiva).  
No primeiro bloco, lemos um libelo contra o que 
Bakhtin  chama  de  teorecismo  (e  ele  nunca  perderá  a 
oportunidade,  nos  cinquenta  anos  seguintes,  de  ex‐
pressar  este  seu  posicionamento).  Contudo,  nem  em 
PFA, nem nos textos posteriores, ele nega validade ao 
pensamento abstrato. Chega mesmo, em PFA, a dizer 
que  a  filosofia  contemporânea  atingiu  alto  grau  de 
qualidade.  No  entanto,  critica  a  separação  que  o 
mundo  da  abstração  (que  ele  chama  de  mundo  da 
cultura  e  que  compreende,  entre  outros  domínios,  a 
filosofia,  a  ciência,  a  estética  e  a  ética)  opera  entre  o 
conteúdo de um determinado ato (que é, no plano da 
abstração, recortado da existência,  objetificado) e sua 
realidade  como  experiência  vivida  em  sua  eventici‐
dade irrepetível – ou seja, o ato em sua totalidade, no 
qual eu entro como um ser integral. Na abstração cien‐
tífica, ao contrário, sendo como é sempre indiferente à 
145
minha singularidade, não há lugar para mim (“eu não 
tenho lugar no juízo teoricamente válido”). Em outros 
termos, podemos dizer que a abstração é aceitável (e 
até  mesmo  inevitável);  inaceitável  é  transformar  o 
mundo da abstração no mundo como tal. Aquele de‐
ve ser bem entendido como parte deste: 
 
O ato deve encontrar um único plano unitário para refletir‐
se em ambas as direções, no seu sentido e em seu existir; de‐
ve  encontrar  a  unidade  de  uma  responsabilidade  bidirecio‐
nal, seja em relação ao seu conteúdo (responsabilidade espe‐
cial), seja em relação ao seu existir (responsabilidade moral), 
de  modo  que  a  responsabilidade  especial  deve  ser  um  mo‐
mento incorporado de uma única e unitária responsabilida‐
de moral. Somente assim se pode superar a perniciosa sepa‐
ração e a mútua impenetrabilidade entre cultura e vida. 
 
Impossível  não  ouvir  aqui  o  Kierkegaard  anti‐
hegeliano a chamar (nos Diários) de cômico e ridículo 
o  filósofo  que  pretende  falar  do  absoluto  e  não  com‐
preende  a  existência  humana;  o  filósofo  a  construir 
sistemas  que  querem  tudo  explicar,  mas  não  conse‐
guem  captar  a  existência  em  sua  singularidade.  O 
mesmo eco kierkegaardiano que vamos escutar, anos 
depois,  na  crítica  que  Heidegger  faz,  nos  Seminários 
de Zollikon, não à ciência como tal, mas à sua preten‐
são ao absoluto, a ser o parâmetro de todas as verda‐
des. E nos lembra, nesse sentido, que a dor e a tristeza 
de  cada  indivíduo  não  são  mensuráveis  e  que,  por 
consequência, a experiência vivida não pode ser pen‐
sada  pela  ciência,  já  que  seu  método  se  funda  justa‐
mente  na  mensurabilidade  (para  ela,  só  é  real  o  que 
pode  ser  medido).  Bakhtin  talvez  completasse  este 
raciocínio  dizendo,  no  mesmo  diapasão  kierkegaardia‐
no,  que  o  evento  da  minha  dor  e  da  minha  tristeza 
não pode ser pensado, conceitualizado, mas somente 
vivido de seu interior. 

146 
Seguindo no texto, Bakhtin aplica a mesma crítica 
à  visão  estética:  ela  é  plenamente  justificada  se  não 
ultrapassar  suas  próprias  fronteiras.  Se,  ao  invés  dis‐
so,  ela  tem  a  pretensão  de  ser  uma  visão  do  existir 
único e singular na sua eventicidade, então ela é con‐
denada a apresentar uma parte abstratamente isolada 
como se fosse o todo efetivo. Por isso, diz ele, o esteti‐
cismo (i. e., as tentativas de esteticizar a existência) é 
merecedor de toda crítica. O fazer estético pressupõe 
a exotopia (tenho de sair do mundo da vida para po‐
der transpor o recorte assim feito para o plano da ar‐
te), por isso a arte não pode representar o mundo real 
em que eu vivo, a arte é sempre menor que a vida. 
Por  fim,  Bakhtin  direciona  sua  crítica  aos  siste‐
mas  éticos,  seja  os  da  ética  material  (a  ética  de  man‐
damentos com conteúdos), seja a ética formal (a ética 
do  mandamento  único,  do  imperativo  categórico). 
Bakhtin não poupou, portanto, nem a genial tentativa 
kantiana  para  definir  um  parâmetro  seguro  (pelo 
princípio  do  imperativo  categórico)  para  o  agir  hu‐
mano num mundo que  viu as tábuas de mandamen‐
tos perderem sua presumida universalidade. 
Bakhtin  encontra  em  todos  esses  sistemas  o 
mesmo defeito de teorecismo, da pretensão universa‐
lista: o pressuposto de que de um enunciado univer‐
sal  se  deduz  necessariamente  a  minha  ação.  “Posso 
estar de acordo com uma proposição, mas dizer que, por isso 
mesmo, ela se torna uma norma que controla a minha ação 
significa passar por cima do problema fundamental” – qual 
seja:  ela  só  orienta  a  minha  ação  se  eu  assumi‐la  do 
meu interior. 
Temos aqui uma clara defesa do primado do su‐
jeito moral sobre as normas, ou seja, para Bakhtin, um 
tanto  quanto  kantianamente,  não  há  normas  morais 
válidas  em  si  (o  dever  não  decorre  do  conteúdo‐
sentido  da  norma),  só  há  o  sujeito  moral  dotado  de 
147
liberdade: o dever é uma categoria do ato individual 
responsável  –  “é  necessário  assumir  o  ato  não  como  um 
fato contemplado ou teoricamente pensado do exterior, mas 
assumido do interior, na sua responsabilidade”. Ou, como 
dirá Bakhtin um pouco adiante no texto, não é o con‐
teúdo do enunciado que me obriga, mas a minha as‐
sinatura aposta a ele, ou seja, a minha decisão de as‐
sumi‐lo como obrigação. 
E  PFA  entra  no  seu  segundo  grande  bloco.  Po‐
demos  dizer  que  neste  Bakhtin  desenvolve  uma  fe‐
nomenologia do ato responsável, do ato que se realiza 
no interior da realidade prática vivida. E há pelo me‐
nos dois aspectos dessa fenomenologia que merecem 
destaque.  Primeiro,  o  fato  de  o  ato  responsável  ser 
sempre  único  e  irrepetível  e,  por  isso  mesmo,  só  é 
possível  apreendê‐lo  de  seu  interior,  só  é  possível 
descrevê‐lo  participativamente  (jamais  conceituali‐
zando‐o  por  um  gesto  de  abstração,  porque,  como 
dizia Kierkegaard nos Diários, o ser humano singular, 
o indivíduo não tem existência conceitual; a existência 
singular,  irrepetível,  insubstituível  jamais  coincide 
com o conceito). 
E descrevê‐lo participativamente pressupõe fazê‐
lo  de  modo  não  indiferente,  porque  o  pensamento 
participativo  se  funda  sempre  num  inescapável  vín‐
culo valorativo: “Nada pode ser pensado se não se estabe‐
lece um vínculo essencial entre o conteúdo e seu tom emoti‐
vo‐volitivo, i.e., o seu valor realmente  afirmado por  aquele 
que pensa”. Não é possível viver a experiência de uma 
dádiva pura. 
No texto que escreve logo em seguida (Autor e he‐
rói na atividade estética), Bakhtin dirá, nesta mesma di‐
reção,  que  viver  é  tomar  posição  axiológica  a  cada 
momento;  é  posicionar‐se  frente  a  valores.  De  novo, 
ressoa um eco kierkegaardiano: a existência se carac‐
teriza  pela  (inescapável)  escolha  (o  aut/aut  e  não  o 
148 
et/et) – a vertigem dos possíveis que, em Kierkegaard, 
resulta  na  angústia  como  modo  de  ser  do  indivíduo. 
Bakhtin não avança tanto no argumento – não chega a 
enfrentar a vertigem dos possíveis, apenas nos lembra 
que viver é posicionar‐se axiologicamente. 
Por  outro  lado,  o  fato  primordial  que  dá  funda‐
mento a um ato responsável é o meu não álibi na exis‐
tência. Esta talvez seja a assertiva mais forte do texto: 
não  tenho  desculpas.  E,  diante  dela,  a  pergunta  que 
não quer calar: é palatável, neste nosso tempo povoa‐
do de indiferença e de álibis, uma filosofia moral tão 
fortemente  inconcessível?  Terá  Bakhtin  abandonado 
seu projeto de escrever uma filosofia moral por ter se 
dado conta disso?  
Não tenho álibi na existência: ser na vida signifi‐
ca agir – eu não posso não agir, eu não posso não ser 
participante da vida real. E essa obrigação decorre de 
eu ser único e ocupar um lugar único: ocupo no exis‐
tir singular um lugar único, irrepetível, insubstituível 
e impenetrável da parte de um outro. Sou insubstituí‐
vel  e  esse  fato  me  obriga  a  realizar  minha  singulari‐
dade peculiar: tudo o que pode ser feito por mim não 
poderá  nunca  ser  feito  por  ninguém  mais,  nunca.  O 
dever encontra a sua possibilidade originária lá onde 
reconheço a unicidade da minha existência e tal reco‐
nhecimento  vem  do  meu  próprio  interior  –  lá  onde 
assumo  a  responsabilidade  da  minha  própria  unici‐
dade. 
Em  suma,  nada  me  obriga,  salvo  minha  singula‐
ridade. Mas ela só me obriga quando eu a assumo do 
meu próprio interior. Do mesmo modo, nenhum juízo 
em  si  me  obriga,  nenhuma  proposição  em  si  funda‐
menta o meu dever: eu tenho de reconhecê‐los e acei‐
tá‐los  do  meu  interior.  Ou  seja,  qualquer  tábua  nor‐
mativa (material ou formal) circula no vácuo; o sujeito 
moral só se obriga ao ato quando ele responsavelmen‐
149
te decide. Não basta que a proposição tenha validade 
teórica:  é  indispensável,  diz  Bakhtin,  a  orientação  do 
dever  moral  de  minha  consciência  em  relação  à  pro‐
posição em si teoricamente válida. 
Proposições  com  validade  teórica,  bem  como  to‐
dos os valores acumulados pela humanidade histórica 
são, diz ele, necessários mas não suficientes para fun‐
dar  meu  ato:  tenho  de  assumi‐los  do  meu  interior; 
tenho de reconhecê‐los e apor minha assinatura a eles. 
Ou  seja,  sem  a  disposição  moral  da  consciência  indi‐
vidual, nada feito. 
Poderíamos,  então,  perguntar:  o  que  pode  moti‐
var a consciência individual a se dispor a assinar em‐
baixo de proposições com validade teórica ou embai‐
xo  dos  valores  da  humanidade  histórica?  Ou,  ainda, 
como decidir quando estamos frente a dilemas éticos? 
O  que  fazer  quando,  por  exemplo,  somos  expostos  a 
contraditórios valores da humanidade histórica? 
 Bakhtin não nos ajuda nesse ponto. Ficou aí um 
buraco neste rascunho de filosofia moral. O único pa‐
râmetro que ele adianta (absolutamente fundamental, 
diga‐se de passagem) é dizer que viver desde si mes‐
mo não quer dizer viver para si mesmo. O sujeito mo‐
ral bakhtiniano é, de certa forma, um solitário ético (a 
ele  e  só  a  ele  cabe  decidir).  Mas  não  está  sozinho  no 
mundo: “o princípio arquitetônico supremo do mundo real 
do ato é a contraposição concreta, arquitetonicamente váli‐
da, entre eu  e outro”. Ou seja, o outro (que não  é sim‐
plesmente  outra  pessoa,  mas  uma  pessoa  diferente, 
um outro centro axiológico) baliza o meu agir respon‐
sável.  
Nenhuma ética teórica, diz ele, possui uma forma 
adequada  para  expressar  esta  contraposição  arquite‐
tônica;  só  de  dentro  do  ato  é  possível  expressar  este 
momento  de  reconhecimento  (do  outro),  mas  não 
dispomos de uma filosofia moral capaz de fazer isso, 
150 
embora  ela  já  tenha  conhecido  expressão  na  moral 
cristã (amar o outro) e na moral altruísta (sacrificar‐se 
pelo outro). Parece que está claro nas entrelinhas aqui 
que  Bakhtin  ambicionava  preencher  este  vazio  com 
sua  filosofia  moral.  De  novo,  teria  ele  abandonado  o 
projeto  por  dar‐se  conta  de  que  era  impossível?  Em 
todo  caso,  deixou  clara  boa  parte  de  suas  pretensões 
ao dizer: 
 
não pretendemos construir um sistema ou um inventário de 
valores, logicamente unitário, com um valor fundamental no 
ápice – a minha participação no existir ‐ um sistema ideal de 
diversos  valores  possíveis,  nem  nos  propomos  a  fazer  uma 
transcrição  teórica  dos  valores  histórica  e  realmente  reco‐
nhecidos  pelo  ser  humano,  com  o  fim  de  estabelecer  entre 
estes relações lógicas de dependência, de subordinação, etc. ‐ 
isto é, sistematizá‐los. Não é nossa intenção fornecer um sis‐
tema ou um inventário sistemático de valores, no qual con‐
ceitos  puros  (idênticos  a  si  mesmos  em  conteúdo)  sejam  li‐
gados  entre  si  à  base  de  uma  correlação  lógica.  O  que  pre‐
tendemos fornecer é uma refiguração, uma descrição da ar‐
quitetônica  real  concreta  do  mundo  dos  valores  realmente 
vivenciados,  não  governado  por  um  fundamento  analítico, 
mas  com  um  centro  de  origem  realmente  concreto,  seja  es‐
pacial  ou  temporal,  de  valorações  reais,  de  afirmações,  de 
ações, e cujos participantes sejam objetos efetivamente reais, 
unidos por relações concretas de eventos no evento singular 
do  existir  (aqui  as  relações  lógicas  não  são  mais  que  um 
momento ao lado dos momentos espaciais, temporais e emo‐
tivo‐volitivos concretos). 
 
E já estamos no terceiro bloco do texto. A ele Ba‐
khtin atribuiu o número 1 (o que antecedeu tem, por‐
tanto, ares de Introdução) e ao qual poderíamos dar o 
subtítulo de “Arquitetônica do mundo vivido e do ato 
estético”.  Ele  resume  as  bases  de  sua  filosofia  do  ato 
151
responsável, diz claramente o que pretende e não pre‐
tende e, como exemplo do que pretende, oferece uma 
análise do mundo da visão estética (que será, de fato, 
o grande tema de seu percurso intelectual posterior).  
Escolhe a arte justamente porque, embora ela es‐
teja entre os mundos culturalmente abstratos, está, ao 
mesmo  tempo,  pelos  tons  emotivo‐volitivos,  mais 
próxima do mundo da vida. O desdobramento dessa 
análise vai ser feita, extensivamente, no texto seguinte 
(Autor e herói na atividade estética) que, pelo que pare‐
ce, comporia, com PFA, seu grande tratado de filoso‐
fia  moral  e  estética.  Aqui,  ele  apenas  nos  deixa,  para 
muitas  reflexões,  uma  saborosa  análise  do  poema  de 
Pushkin. Afinal, um exemplo! Justo e necessário para 
esclarecer um pouco as elucubrações de Bakhtin. Um 
aperitivo para o que nos ofereceu nos cinquenta anos 
seguintes. 
 
 
 
Referências Bibliográficas 
 
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