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RESPEITÁVEL PÚBLICO?
nunca! (As duas saem correndo, Pinduca acende um charuto, as duas voltam
cabisbaixas.) É nunca, eu sabia! Soube da primeira vez que vi o ensaio... O
número é uma bomba! Atômica! Nuclear! Nunca vai funcionar!
MARICOTA – Teve um menino que se contorceu de rir!
PINDUCA – Aquilo era convulsão, cretina! O moleque era epiléptico, saiu daqui de
maca.
FIRULINA – E tinha alguns que eram surdos, outros cegos...
PINDUCA – Pra se divertir com esse número, piteuzinho, só sendo as duas
coisas. Mal aplaudiram!
MARICOTA – Acontece que metade da platéia tava com soro enfiado no braço!
PINDUCA – Se tivessem gostado, aplaudiriam com os pés! Aqueles que tivessem,
é claro...
FIRULINA – Mas tinha uns meninos que pareciam que estavam gostando...
PINDUCA – Os da arquibancada verde?
FIRULINA – É!
PINDUCA – Aqueles lá estavam em coma, amorzinho. Não sei nem pra que
trouxeram! Deve ser alguma terapia moderna... Deixa eu ser claro, meu bijú: não
tô nem aí pra esse tipo de público. Essa apresentação foi só pra não ter que pagar
o terreno, mas daqui a pouco vai ter gente que pagou pelo ingresso. Não que por
causa disso eles sejam mereçam algum respeito, mas é que é um público que
pode falar mal ou bem do espetáculo. E a gente precisa que falem bem! Só hoje,
chegaram mais dezesseis circos na cidade.
MARICOTA – E o que a gente faz? Volta com o número antigo?
PINDUCA – É o jeito, enquanto vocês não pensam em alguma coisa nova...
Aquele lixo também não era grande coisa, mas é mil vezes melhor que a porcaria
de hoje. Hoje... (insinuante) Firulina, hoje tem espetáculo?
FIRULINA, se levantando hesitante, olhando para Maricota – Tem sim, sinhô.
MARICOTA – Firulina, a gente...
PINDUCA, puxando Firulina– Hoje tem marmelada?
FIRULINA, entrando no jogo – Tem sim, sinhô.
MARICOTA – A próxima apresentação é logo mais...
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MARICOTA – Depois?
PINDUCA – É, pra limpar as jaulas. Ah, e dá uma atenção especial pro cercado do
elefante. Devem ter jogado alguma porcaria pra ele comer e soltou o intestino do
bicho. Se eu pego o idiota que fez isso, eu... Detesto gente desalmada, você não?
MARICOTA – Umas vezes mais que outras.
PINDUCA – Eu detesto sempre. Boa sorte!
Ele sai. Da coxia, jogam uma vassoura e uma pá de lixo muito grande, que
Maricota apanha e fica segurando. Firulina entra.
FIRULINA – Eu não acredito que ele fez isso com você! É um absurdo! Quando
eu vi você carregando essa pá cheia de... de... Você é uma artista, tem um nome,
tem seu público! Não é obrigada a... a catar cocô de elefante!
MARICOTA – Por que não?
FIRULINA – Porque... Porque não!
MARICOTA – Já tive que fazer coisa pior. Você também.
FIRULINA – E se a gente fugisse? Fosse pra outro circo?
MARICOTA – Ele mandava o Blaublau atrás da gente.
FIRULINA – E se nós formos pra longe, pra um circo pequeno? Ele nunca ia achar
a gente!
MARICOTA – Começar tudo de novo?
FIRULINA – Não pode ser tão difícil!
MARICOTA – Mas pode ser pior.
FIRULINA – Você tem seu nome!
MARICOTA – Se eu usasse, não ia demorar pra encontrarem a gente.
FIRULINA – A gente precisa fazer alguma coisa...
MARICOTA – Não sei por que você reclama tanto.
FIRULINA – Você não entende, né?
MARICOTA – O que eu não entendo é você querer fugir comigo.
FIRULINA – Essa é a parte que você deveria entender melhor...
PINDUCA, entrando – Que dia maravilhoso! Arquibancadas cheias, o caixa da
bilheteria transbordando, toda a pipoca vendida e as jaulas nunca estiveram tão
limpas! Sabe, Maricota, acho que você devia ser efetivada na sua nova função!
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FIRULINA – Às vezes bate. Parece que o circo estava lotado quando aconteceu...
MARICOTA – É... Foi o que eu ouvi dizer.
FIRULINA – Não tem perigo de acontecer o mesmo com a gente?
MARICOTA – Duvido. Pinduca só existe um e é aqui que ele trabalha. Sorte
nossa, né?
De fora de cena, ouvimos alguns tiros.
FIRULINA – O que foi isso? Coisa boa não pode ser!
MARICOTA – Vai depender da nossa sorte.
FIRULINA – Então não era só aí dentro que as coisas estavam acontecendo...
MARICOTA – Nesse mundo, elas podem acontecer a qualquer hora, em qualquer
lugar, com qualquer um...
PINDUCA, de fora – Maricota!
MARICOTA – Ou não.
PINDUCA, entrando – Maricota! Pega um rodo e o resto do material e vai lá pros
fundos. Tem trabalho pra fazer. (vendo que ela não se mexe) E se você quer o
meu conselho, é melhor ir depressa. Sangue, depois que seca, é bem mais difícil
de limpar. Experiência própria.
Maricota e Firulina trocam um olhar. Firulina vai dizer alguma coisa, mas Maricota
dá as costas, pegando a vassoura e a pá e saindo de cena.
PINDUCA – Preferia que fosse você?
FIRULINA – Talvez.
PINDUCA – Então, por que não vai lá e ajuda? Tem serviço suficiente para as
duas.
FIRULINA – Verme!
PINDUCA – Me diminuindo, você só vai estar diminuindo seu próprio gosto.
FIRULINA – Sai daqui! Detesto você.
PINDUCA – Mentira.
FIRULINA – Por que você é assim?
PINDUCA – Assim como?
FIRULINA – Sua mãe te batia quando você era pequeno?
PINDUCA – Não.
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morto, era capaz de me desobedecer? Ah, não, eu não consegui aceitar aquilo! E
foi aí, nesse dia, que eu decidi que nem vivos nem mortos iriam me desobedecer.
Nunca, jamais, entendeu?
FIRULINA – Entendi, mas isso ainda não explica como você virou o que é.
PINDUCA – Ah, isso... Bom, vocação, eu acho. Já nasci com ela.
FIRULINA – Ninguém nasce assim.
PINDUCA – Acho que se eu não me conhecesse, ia concordar com você. Mas
desde pequeno sou assim. No cadeirão, adorava vomitar de volta a comida que
minha mãe me dava com tanto carinho. No maternal, quebrava réguas na cabeça
dos mais fracos e espetava compassos na mão de quem reclamasse. Cresci mais
um pouco e do alto de edifícios, jogava sacos de mijo em crianças felizes com
seus sorvetes de casquinha e ovos podres em homens que corriam atrasados
para o trabalho. Até que fui procurar uma profissão onde pudesse usar essas
minhas habilidades. Trabalhei como autônomo e assim conspirei, deflorei,
empalei, mutilei, corrompi, fui perjuro, hipócrita, rufião e tudo mais que minha
criatividade permitiu. Se maldade fosse algo de que eu pudesse me cansar, teria
me cansado, mas é claro que não era o caso. De qualquer forma, cansei dessa
vida de free-lancer e optei por uma carreira onde pudesse fazer estragos mais
coletivos. Pensei em política, tentei a carreira militar, mas acabei por me encontrar
no entretenimento, vindo cobrar uma dívida do falecido dono deste circo. Me
encantei pela magia do riso e a facilidade com que ele brota. Sim, porque fazer rir
é fácil, basta uma casca de banana e um idiota pra escorregar nela. Quando
descobri isso, vi que aqui eu tinha liberdade para contar piadas grosseiras,
humilhar infelizes, explorar gente deformada e ainda ganhar muito dinheiro com
isso. É impressionante a disponibilidade que o público tem para rir dos meus
shows, sem sombra de pudor. E as pessoas realmente riem, você sabe! Coloco
anões travestidos sendo humilhados e as pessoas riem. Coloco desdentados
famélicos sendo espancados e as pessoas riem. Coloco gente humilde expondo
seus dramas familiares e sendo enganadas e as pessoas riem. Não existe limite
para o meu público. Quanto mais baixo, quanto mais fundo eu vou na sujeira, mais
sucesso eu faço! A natureza deles é assim, são capazes de se curvar até colar a
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cara no chão, só pra ver a imundície mais de perto. Pra minha sorte, quando
acontece um acidente na rua, eles diminuem a velocidade, esperando ver um
pouco de sangue, miolos e tripas. Em breve eu também vou poder oferecer um
pouco disso debaixo dessa lona. Esse dia há de chegar, eu tenho certeza!
FIRULINA – Que coisa é você?
PINDUCA – Só uma pessoa que trabalha naquilo que sente prazer. Um
afortunado, enfim.
FIRULINA – Um degenerado.
PINDUCA – Um serviçal de degenerados, talvez. Minha humilde missão é manter
viva essa chama em suas mentes.
FIRULINA – Não cria, mas alimenta.
PINDUCA – Exatamente! Você não sabe como eu fico feliz por você me entender!
FIRULINA, se aproximando da bancada e abrindo uma gaveta – Quem me dera!
Você está além de qualquer compreensão.
PINDUCA – Bondade sua.
FIRULINA – E o que é que você sabe sobre bondade?
PINDUCA – Alguma coisa, mas só na teoria...
FIRULINA, encontrando o que procurava – Alguém precisa fazer alguma coisa a
seu respeito.
PINDUCA – Alguns tentam, mas sem muita sorte, coitados. Acabam dando mais
trabalho pra Maricota, coitada.
FIRULINA – O destino de todo vilão como você é ter um fim miserável, você sabe.
PINDUCA – E quem vai se encarregar disso? Você?
FIRULINA – Acha que eu não tenho coragem?
PINDUCA – Tenho certeza que não.
FIRULINA, tirando uma arma da gaveta e apontando para ele – Eu não teria tanta
certeza, se fosse você!
PINDUCA – Se eu não tivesse, você já teria sido servida em alguma jaula há
muito tempo.
FIRULINA – Só que dessa vez, errou! Se você fosse uma pessoa que rezasse,
esse seria o momento.
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MARICOTA – Doutor!
DOUTOR PIMPÃO – Mudou?
MARICOTA – Aumentou!
DOUTOR PIMPÃO – Perfeitamente normal. Não precisa se preocupar.
FIRULINA, entrando apressada, como se tivesse acabado de se vestir – O que
foi? Aconteceu alguma coisa?
DOUTOR PIMPÃO, pegando Firulina pelo braço e puxando-a para fora – Nada, só
rotina.
MARICOTA – Muita dor!
DOUTOR PIMPÃO – Isso passa.
FIRULINA – O senhor não pode fazer alguma coisa?
DOUTOR PIMPÃO – Fazer? Não foi pra isso que eu fui contratado.
MARICOTA – Eu exijo que o senhor faça alguma coisa! É uma ordem!
DOUTOR PIMPÃO – E o que a senhora quer que eu faça?
MARICOTA – O parto, caralho!
DOUTOR PIMPÃO – Nesse caso, eu vou precisar ir até... Firulina, você pode me
acompanhar...
MARICOTA – O parto! Agora!
As dores aumentam. O Doutor abre a mala e tira um par de facas, muito grandes.
DOUTOR PIMPÃO – A senhora prefere como? Natural ou...
MARICOTA – Natural aqui, nem iogurte!
FIRULINA – Quer que eu vá pegar água quente? Uns lençóis?
DOUTOR PIMPÃO – Pra quê?
FIRULINA – Não sei, mas eu sempre vejo na TV...
DOUTOR PIMPÃO – Tudo bem, então... Mas só pela tradição! (FIRULINA sai).
Acho que eu vou ajudar ela com os...
MARICOTA – Se sair daqui, é um homem morto! Acaba logo com isso!
DOUTOR PIMPÃO – A patroa não pede, a patroa manda!
Estoura a barriga com a ponta da faca. Maricota se levanta, empolgada.
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JUIZ LELÉU – Especialmente o leão. A fama dele já chegou aos meus ouvidos.
MARICOTA – Espere só até chegar ao seu pescoço!
Os dois riem, como velhos amigos, quase na coxia.
FIRULINA – E isso é tudo? Ela está livre?
JUIZ LELÉU – Como um passarinho.
FIRULINA – Mas ela matou gente, praticamente deformou e explorou o filho, pra
não falar do que fez com funcionários, concorrentes...
JUIZ LELÉU – E espero que tenha feito tudo isso de maneira rentável, uma vez
que noventa por cento dos lucros me pertencem.
MARICOTA – Vamos, Firulina, ainda temos que pensar em alguma coisa pra...
FIRULINA – Fui eu, eu quem não deixou que o leão comesse o Doutor, fui eu
quem envenenou o Pinduquinha!
MARICOTA e JUIZ LELÉU – Você?
MARICOTA – Traição!
JUIZ LELÉU – Perfídia!
MARICOTA – Prejuízo!
JUIZ LELÉU – Crime contra o patrimônio! E o meu, o que é pior!
MARICOTA – Por quê, Firulina, por quê? Eu, que fui tão sincera com você, só
com você! Pelos céus, o que aconteceu pra você fazer isso comigo, com o
Pinduquinha? O que endureceu teu coração e te fez dar o golpe fatal, me privando
da companhia do meu filho, do meu companheiro, da minha fonte de renda?
JUIZ LELÉU – Bravo! Aplausos, por favor! Que performance, como estava
orgânico o texto!
FIRULINA – Chega! Chega de aplausos! Só sabem aplaudir queda, susto ou torta
na cara! Só aplaudem quando a gente se machuca, quando a gente sangra!
Cansei disso tudo! Cansei... Tem que existir outra forma, outros caminhos... A
gente tem que pensar! Pensar antes de condenar, de absolver, de recomendar,
pensar antes de tomar posição, café ou bebida alcoólica!
JUIZ LELÉU – Do que é que ela tá falando, pelo amor de Deus?
MARICOTA – Não faço idéia, mas se eu fosse acreditar nesse discurso todo, ia
ficar chocada com tanta ingenuidade. Mas eu te conheço, eu sei de tudo!
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JUIZ LELÉU – É, e vocês... Concordo que vocês não podem sair daqui sem um
castigo. Vejamos... Já sei! Vivam juntas! Para sempre!
MARICOTA – Mas isso não é castigo.
JUIZ LELÉU – Ainda não. Mas, tudo bem, a justiça pode esperar. Especialmente
nesse caso, onde eu tenho certeza que ela não vai tardar nem falhar.
FIRULINA – Isso é tudo? É a nossa sentença?
JUIZ LELÉU, enquanto as leva para o proscênio – Não vamos dizer sentença,
mas conselho. Afinal, vocês não fizeram nada de grave. Ah, e aqui vai outro
conselho: sentem e aproveitem o show. Vejam os outros palhaços. Relaxem.
Mudem o ângulo, sei lá. Vocês vão ver como vai fazer bem. Depois, continuem
com o de vocês. O show não pode parar. Embora, às vezes, devesse.
Elas se sentam e ficam encarando o público, enquanto o Juiz sai e a luz cai em
resistência.
FIM