Sei sulla pagina 1di 23

1

RESPEITÁVEL PÚBLICO?

Um espaço, que na maior parte do tempo é um camarim de circo. FIRULINA e


MARICOTA entram cansadas, vindas do picadeiro onde acabaram de se
apresentar. Sentam-se para retocar a maquiagem borrada.

MARICOTA – Merda de público.


FIRULINA – Bem que eu achei esse número não ia funcionar...
MARICOTA – Quem não funcionou foi o público.
FIRULINA – Tomara que seja isso.
MARICOTA – É isso.
FIRULINA – Em uma hora tem outra apresentação, outro público. A gente vai ver.
MARICOTA – Você vai ver. Eu já sei que esse número funciona.
FIRULINA – Não sei de onde vem tanta certeza...
MARICOTA – Da experiência. Eu sou palhaça desde que nasci.
FIRULINA – E quem não é?
MARICOTA – O dono deste circo.
FIRULINA – O Pinduca?
MARICOTA – Vai defender o desgraçado?
FIRULINA – Não é à toa que o número não funcionou. Com esse humor...
MARICOTA – E dá pra ficar diferente?
FIRULINA – Dá. Quem tá na merda não tem direito de ficar de mau humor, não.
Já chega a nossa situação.
MARICOTA – A sua está ótima, pelo que eu sei.
FIRULINA – Então, não tá sabendo de nada. Nós estamos no mesmo barco,
caramba!
MARICOTA – É, mas você tá viajando na cabine do comandante, enquanto eu
continuo no porão, no meio dos ratos.
FIRULINA – Não fala besteira.
MARICOTA – Falei alguma, é?
FIRULINA – Eu não tô entendendo... O que é que tá acontecendo com você?
2

MARICOTA – Nada. Olha... Me desculpa. Eu tô cansada, só isso.


FIRULINA – Então não desconta em mim.
MARICOTA – Me desculpa, mesmo. Você é a última pessoa que eu quero
magoar.
FIRULINA – Tudo bem. A gente vai mesmo repetir aquele número, é?
MARICOTA – Confia em mim, dessa vez vai funcionar! Ele é ótimo!
PINDUCA, entrando – Maricota e Firulina! Que merda de número, hein? Vocês
viram a cara da platéia? Tiveram esse trabalho? O único sorriso que tinha por lá,
era de um velhinho com derrame na terceira fileira. Sabe sorriso permanente?
Nunca mais quero ver essa merda! Bosta, no meu picadeiro, só de elefante,
entendido?
MARICOTA – O público é que tava frio. Eles não se entusiasmaram nem quando
a menina nova caiu do arame.
PINDUCA – E ainda quebrou a perna, a filha da puta! Mal chegou e já vai me
dando prejuízo. É, vou ter que mandar o Blaublau sacrificar a infeliz...
FIRULINA – Não tem outro jeito?
PINDUCA – Jeito sempre tem, podia chamar o doutor Pimpão. Mas quem paga o
tratamento, você?
FIRULINA – Eu tava falando do nosso número.
PINDUCA – Ah.
FIRULINA – A gente não pode tentar mais uma vez? A última.
PINDUCA – Bom, se é você que pede, quindinzinho, só me resta obedecer. Mas
claro que não vai ser de graça...
FIRULINA – Depois a gente conversa...
PINDUCA – Já está conversado, florzinha do campo. Agora se aprontem, que
vocês entram em quinze minutos.
FIRULINA – Quinze minutos?
MARICOTA – Mas a próxima apresentação é só daqui duas horas!
PINDUCA – Era. Vamos ter que fazer uma antes. E beneficente, o que é pior.
MARICOTA – Mas a gente acabou de sair do palco...
PINDUCA – Ótimo! Aproveita que ainda tá aquecida e vê se agora faz direito.
3

FIRULINA – Mas você não falou nada dessa apresentação...


PINDUCA – Tinha me esquecido, coisinha fofa. É uma troca de favores com a
prefeitura deste buraco. Eles dão o terreno pra gente montar nossa lona e a gente
faz essa apresentação pros aleijadinhos da cidade.
MARICOTA – Aleijadinhos?
PINDUCA – Aleijados, retardados, pivetes, putas, sei lá! Uma escória qualquer,
pra prefeitura fazer a sua social. Quem sabe se não é o público certo pro número
de vocês? Quinze minutos!
Ele sai. As duas começam a se maquiar rapidamente.
MARICOTA – Quindinzinho... Florzinha do campo...
FIRULINA – Consegui que ele deixasse a gente apresentar o número de novo,
não consegui?
MARICOTA – A esse preço.
FIRULINA – Deixa que da minha vida cuido eu. Você não tem nada a ver com
isso.
MARICOTA – É, não tenho. Firulina.
FIRULINA – Que foi?
MARICOTA – Nada. O seu nome. Sabia que eu gosto muito dele?
FIRULINA – Agradeça a minha tia, aquela vaca que deu a sugestão pra minha
mãe.
MARICOTA – Você não gosta?
FIRULINA – Detesto.
MARICOTA – Agora é você que tá de mau humor...
FIRULINA – Se o número não funcionar, pode por a culpa em mim.
PINDUCA, entrando – Tá na hora! Já pro picadeiro!
FIRULINA – Mas você disse quinze minutos!
PINDUCA – Mas os aleijadinhos já chegaram, meu anjinho! E quanto antes a
gente começar, antes a gente acaba. Caridade só é bom se dura pouco.
MARICOTA – Mas...
PINDUCA – Vamos lá, correndo pro picadeiro! Um, dois, um, dois! E é pra acertar!
Quero ver tetraplégico aplaudindo de pé! É agora ou nunca, vamos lá, agora ou
4

nunca! (As duas saem correndo, Pinduca acende um charuto, as duas voltam
cabisbaixas.) É nunca, eu sabia! Soube da primeira vez que vi o ensaio... O
número é uma bomba! Atômica! Nuclear! Nunca vai funcionar!
MARICOTA – Teve um menino que se contorceu de rir!
PINDUCA – Aquilo era convulsão, cretina! O moleque era epiléptico, saiu daqui de
maca.
FIRULINA – E tinha alguns que eram surdos, outros cegos...
PINDUCA – Pra se divertir com esse número, piteuzinho, só sendo as duas
coisas. Mal aplaudiram!
MARICOTA – Acontece que metade da platéia tava com soro enfiado no braço!
PINDUCA – Se tivessem gostado, aplaudiriam com os pés! Aqueles que tivessem,
é claro...
FIRULINA – Mas tinha uns meninos que pareciam que estavam gostando...
PINDUCA – Os da arquibancada verde?
FIRULINA – É!
PINDUCA – Aqueles lá estavam em coma, amorzinho. Não sei nem pra que
trouxeram! Deve ser alguma terapia moderna... Deixa eu ser claro, meu bijú: não
tô nem aí pra esse tipo de público. Essa apresentação foi só pra não ter que pagar
o terreno, mas daqui a pouco vai ter gente que pagou pelo ingresso. Não que por
causa disso eles sejam mereçam algum respeito, mas é que é um público que
pode falar mal ou bem do espetáculo. E a gente precisa que falem bem! Só hoje,
chegaram mais dezesseis circos na cidade.
MARICOTA – E o que a gente faz? Volta com o número antigo?
PINDUCA – É o jeito, enquanto vocês não pensam em alguma coisa nova...
Aquele lixo também não era grande coisa, mas é mil vezes melhor que a porcaria
de hoje. Hoje... (insinuante) Firulina, hoje tem espetáculo?
FIRULINA, se levantando hesitante, olhando para Maricota – Tem sim, sinhô.
MARICOTA – Firulina, a gente...
PINDUCA, puxando Firulina– Hoje tem marmelada?
FIRULINA, entrando no jogo – Tem sim, sinhô.
MARICOTA – A próxima apresentação é logo mais...
5

PINDUCA, indo com Firulina em direção à coxia – Hoje tem goiabada?


FIRULINA – Tem sim, sinhô!
MARICOTA – A gente precisa ensaiar...
PINDUCA, saindo com Firulina– É de noite, é de dia?
FIRULINA, saindo – É sim, sinhô!
MARICOTA – Eu não me lembro da...
PINDUCA, já de fora de cena – E o palhaço, o que é?
MARICOTA – É ladrão de mulher.
Ela se senta na bancada e pega uma garrafa. Bebe. Acende um cigarro. Pinduca
volta sozinho, olhando para ela maliciosamente.
PINDUCA – Tristinha?
MARICOTA – Cansada.
PINDUCA – Trabalhando demais?
MARICOTA – Não tanto quanto você, claro.
PINDUCA, se aproximando, insinuante – Claro.
MARICOTA – Pode ficar aí mesmo. Hoje não tem goiabada nem marmelada.
PINDUCA – É pena... Você podia conseguir um descanso extra... Ou qualquer
outra coisa.
MARICOTA – Foi assim que ela conseguiu autorização pra sair?
PINDUCA – E ela deve estar se divertindo agora, solta na cidade. Ciúmes?
MARICOTA – Ciúmes?
PINDUCA – Ciúmes.
MARICOTA – Ela demora? Eu vou ter que fazer o número sozinha, é?
PINDUCA – Eu posso fazer com você.
MARICOTA – Não, obrigada.
PINDUCA – Certeza?
MARICOTA – Absoluta.
PINDUCA – Tudo bem. Se prepara pra entrar. Eu vou pedir pra trazerem
vassoura, pá, essas coisas...
MARICOTA – Não uso nada disso no meu número.
PINDUCA – Mas vai usar depois.
6

MARICOTA – Depois?
PINDUCA – É, pra limpar as jaulas. Ah, e dá uma atenção especial pro cercado do
elefante. Devem ter jogado alguma porcaria pra ele comer e soltou o intestino do
bicho. Se eu pego o idiota que fez isso, eu... Detesto gente desalmada, você não?
MARICOTA – Umas vezes mais que outras.
PINDUCA – Eu detesto sempre. Boa sorte!
Ele sai. Da coxia, jogam uma vassoura e uma pá de lixo muito grande, que
Maricota apanha e fica segurando. Firulina entra.
FIRULINA – Eu não acredito que ele fez isso com você! É um absurdo! Quando
eu vi você carregando essa pá cheia de... de... Você é uma artista, tem um nome,
tem seu público! Não é obrigada a... a catar cocô de elefante!
MARICOTA – Por que não?
FIRULINA – Porque... Porque não!
MARICOTA – Já tive que fazer coisa pior. Você também.
FIRULINA – E se a gente fugisse? Fosse pra outro circo?
MARICOTA – Ele mandava o Blaublau atrás da gente.
FIRULINA – E se nós formos pra longe, pra um circo pequeno? Ele nunca ia achar
a gente!
MARICOTA – Começar tudo de novo?
FIRULINA – Não pode ser tão difícil!
MARICOTA – Mas pode ser pior.
FIRULINA – Você tem seu nome!
MARICOTA – Se eu usasse, não ia demorar pra encontrarem a gente.
FIRULINA – A gente precisa fazer alguma coisa...
MARICOTA – Não sei por que você reclama tanto.
FIRULINA – Você não entende, né?
MARICOTA – O que eu não entendo é você querer fugir comigo.
FIRULINA – Essa é a parte que você deveria entender melhor...
PINDUCA, entrando – Que dia maravilhoso! Arquibancadas cheias, o caixa da
bilheteria transbordando, toda a pipoca vendida e as jaulas nunca estiveram tão
limpas! Sabe, Maricota, acho que você devia ser efetivada na sua nova função!
7

FIRULINA – Você não teria coragem...


PINDUCA – Isso é coisa que não me falta. Aliás, foi graças a ela que tivemos este
sucesso todo!
MARICOTA – Pensei que fosse porque os outros circos da cidade tinham pegado
fogo...
PINDUCA – Exatamente! Afinal, alegria de palhaço é ver o circo pegar fogo!
Desde que seja o da concorrência, é claro!
MARICOTA – Vinte e três circos queimando no mesmo dia. Que coincidência, não
é?
PINDUCA – Coincidência o cacete, eu tinha certeza que Pyros, o Homem-Tocha,
seria uma boa compra no momento em que o vi!
FIRULINA – Mas ele ainda nem se apresentou aqui.
PINDUCA – E nem vai, meu chuchuzinho, deus me livre! O show dele é pros
outros circos, não pro meu! Agora vamos desmontar tudo!
MARICOTA – Nós vamos para outra cidade?
PINDUCA – Claro que não, idiota. Agora que somos os únicos por aqui, vamos
ficar por um bom tempo.
FIRULINA – Então, pra quê desmontar?
PINDUCA – Tinha um circo que ficava num lugar ótimo, mil vezes melhor que
esse aqui. Nós vamos mudar pra lá e nos instalar sobre as suas cinzas. Podemos
exibir até algumas carcaças de animais queimados como atração, o que vocês
acham?
MARICOTA – Eu acho que isso é doença.
PINDUCA – Pode ser, mas é essa doença que enche esse lugar e te dá trabalho...
Isso... Isso foi uma reclamação?
MARICOTA – Não, não foi.
PINDUCA – Imaginei que não... Agora, pro trabalho! Nós... Quer dizer, vocês têm
um circo inteiro pra desmontar! Vamos abaixar a lona!
Pinduca sai.
FIRULINA – Que mundo é esse em que a gente vive?
MARICOTA – Muita gente deve estar se fazendo esta pergunta.
8

FIRULINA – O chão ainda está quente.


MARICOTA – Nós cobrimos as cinzas com palha e teve lugares em que ela pegou
fogo.
FIRULINA – Ele tinha medo que outro circo chegasse primeiro.
MARICOTA – E você? Tem medo de quê?
FIRULINA – Como assim?
MARICOTA – Fala um medo que você tem. Qualquer um.
FIRULINA – Eu tinha medo daqui.
MARICOTA – Com razão.
FIRULINA – Mas agora eu gosto do cheiro de serragem, gosto das arquibancadas
cheias, das gargalhadas e gosto de dormir ouvindo o barulho dos animais. E você,
gosta do quê?
MARICOTA – De você.
FIRULINA – Todos gostam. É a minha sina.
MARICOTA – Eu sei.
FIRULINA – E se esse lugar fosse nosso? Só nosso?
MARICOTA – Você acha que seria diferente?
FIRULINA – Eu tenho certeza!
MARICOTA – Quer fazer alguma coisa a respeito?
FIRULINA – Às vezes eu tenho vontade. Você não?
MARICOTA – Sempre.
FIRULINA – E por quê não faz?
MARICOTA – Talvez eu esteja fazendo.
FIRULINA – Sério? E não quer me contar?
MARICOTA – Ainda não.
FIRULINA – Mas por quê? Você não confia em mim?
MARICOTA – Confio, sim. Mas pro seu bem, é melhor você não saber de nada.
FIRULINA – Quer dizer que tem alguma coisa acontecendo, mesmo?
MARICOTA – Tem. (Apontando pra cabeça) Aqui dentro.
FIRULINA – Me conta! Eu posso te ajudar!
MARICOTA – Você tá sentindo? O cheiro de carne queimada?
9

FIRULINA – Às vezes bate. Parece que o circo estava lotado quando aconteceu...
MARICOTA – É... Foi o que eu ouvi dizer.
FIRULINA – Não tem perigo de acontecer o mesmo com a gente?
MARICOTA – Duvido. Pinduca só existe um e é aqui que ele trabalha. Sorte
nossa, né?
De fora de cena, ouvimos alguns tiros.
FIRULINA – O que foi isso? Coisa boa não pode ser!
MARICOTA – Vai depender da nossa sorte.
FIRULINA – Então não era só aí dentro que as coisas estavam acontecendo...
MARICOTA – Nesse mundo, elas podem acontecer a qualquer hora, em qualquer
lugar, com qualquer um...
PINDUCA, de fora – Maricota!
MARICOTA – Ou não.
PINDUCA, entrando – Maricota! Pega um rodo e o resto do material e vai lá pros
fundos. Tem trabalho pra fazer. (vendo que ela não se mexe) E se você quer o
meu conselho, é melhor ir depressa. Sangue, depois que seca, é bem mais difícil
de limpar. Experiência própria.
Maricota e Firulina trocam um olhar. Firulina vai dizer alguma coisa, mas Maricota
dá as costas, pegando a vassoura e a pá e saindo de cena.
PINDUCA – Preferia que fosse você?
FIRULINA – Talvez.
PINDUCA – Então, por que não vai lá e ajuda? Tem serviço suficiente para as
duas.
FIRULINA – Verme!
PINDUCA – Me diminuindo, você só vai estar diminuindo seu próprio gosto.
FIRULINA – Sai daqui! Detesto você.
PINDUCA – Mentira.
FIRULINA – Por que você é assim?
PINDUCA – Assim como?
FIRULINA – Sua mãe te batia quando você era pequeno?
PINDUCA – Não.
10

FIRULINA – Seu pai bebia e abusava de você?


PINDUCA – Não.
FIRULINA – Você era órfão? Enjeitado? Cresceu nas ruas, dormindo na sarjeta?
PINDUCA – Não.
FIRULINA – Era coroinha de uma igreja e foi molestado pelo padre?
PINDUCA – Nenhuma das anteriores.
FIRULINA – E como foi que você virou um vilão assim tão vilão, tão caricato?
Alguma coisa deve ter acontecido na sua infância! Alguma coisa que te marcou!
PINDUCA – Que me marcou? É... Teve uma.
FIRULINA – Eu sabia!
PINDUCA – Era uma tarde de verão, pássaros cantavam ao longe, eu estava
pescando. Tudo era maravilhoso. Céu azul, água cristalina, uma brisa suave que
seguia a correnteza, os peixes que se debatiam no meu anzol. Até que uma coisa
passou boiando na minha frente...
FIRULINA – O que era?
PINDUCA – Um cadáver. Inchado, já meio comido, um olho esbugalhado, o outro
faltando.
FIRULINA – Coitadinho de você! Deve ter sido horrível!
PINDUCA – Foi, foi. Ele tinha um corte que começava na testa e descia pela cara,
até o queixo. O nariz foi dividido em dois com a machadada.
FIRULINA – E você era só uma criança! É claro, essa visão poderia ter
transformado qualquer um no que você é hoje. Um cadáver, uma machadada...
Como você soube que tinha sido um machado?
PINDUCA – Eu tinha que saber. Era obra minha.
FIRULINA – Sua?
PINDUCA – Claro. O presunto era um tio meu, brigou comigo porque derrubei
uma árvore dele. Aproveitei que estava com o machado na mão e mandei ver.
FIRULINA – E por que essa cena foi tão impressionante, se você...
PINDUCA – Por que eu tinha prendido o filho da puta rio acima, bem amarrado,
pra ser comido pelos peixes, pelos bichos, pelos urubus! E o desgraçado se
soltou! Sozinho! E saiu boiando por aí, sem a minha permissão! Como que ele, um
11

morto, era capaz de me desobedecer? Ah, não, eu não consegui aceitar aquilo! E
foi aí, nesse dia, que eu decidi que nem vivos nem mortos iriam me desobedecer.
Nunca, jamais, entendeu?
FIRULINA – Entendi, mas isso ainda não explica como você virou o que é.
PINDUCA – Ah, isso... Bom, vocação, eu acho. Já nasci com ela.
FIRULINA – Ninguém nasce assim.
PINDUCA – Acho que se eu não me conhecesse, ia concordar com você. Mas
desde pequeno sou assim. No cadeirão, adorava vomitar de volta a comida que
minha mãe me dava com tanto carinho. No maternal, quebrava réguas na cabeça
dos mais fracos e espetava compassos na mão de quem reclamasse. Cresci mais
um pouco e do alto de edifícios, jogava sacos de mijo em crianças felizes com
seus sorvetes de casquinha e ovos podres em homens que corriam atrasados
para o trabalho. Até que fui procurar uma profissão onde pudesse usar essas
minhas habilidades. Trabalhei como autônomo e assim conspirei, deflorei,
empalei, mutilei, corrompi, fui perjuro, hipócrita, rufião e tudo mais que minha
criatividade permitiu. Se maldade fosse algo de que eu pudesse me cansar, teria
me cansado, mas é claro que não era o caso. De qualquer forma, cansei dessa
vida de free-lancer e optei por uma carreira onde pudesse fazer estragos mais
coletivos. Pensei em política, tentei a carreira militar, mas acabei por me encontrar
no entretenimento, vindo cobrar uma dívida do falecido dono deste circo. Me
encantei pela magia do riso e a facilidade com que ele brota. Sim, porque fazer rir
é fácil, basta uma casca de banana e um idiota pra escorregar nela. Quando
descobri isso, vi que aqui eu tinha liberdade para contar piadas grosseiras,
humilhar infelizes, explorar gente deformada e ainda ganhar muito dinheiro com
isso. É impressionante a disponibilidade que o público tem para rir dos meus
shows, sem sombra de pudor. E as pessoas realmente riem, você sabe! Coloco
anões travestidos sendo humilhados e as pessoas riem. Coloco desdentados
famélicos sendo espancados e as pessoas riem. Coloco gente humilde expondo
seus dramas familiares e sendo enganadas e as pessoas riem. Não existe limite
para o meu público. Quanto mais baixo, quanto mais fundo eu vou na sujeira, mais
sucesso eu faço! A natureza deles é assim, são capazes de se curvar até colar a
12

cara no chão, só pra ver a imundície mais de perto. Pra minha sorte, quando
acontece um acidente na rua, eles diminuem a velocidade, esperando ver um
pouco de sangue, miolos e tripas. Em breve eu também vou poder oferecer um
pouco disso debaixo dessa lona. Esse dia há de chegar, eu tenho certeza!
FIRULINA – Que coisa é você?
PINDUCA – Só uma pessoa que trabalha naquilo que sente prazer. Um
afortunado, enfim.
FIRULINA – Um degenerado.
PINDUCA – Um serviçal de degenerados, talvez. Minha humilde missão é manter
viva essa chama em suas mentes.
FIRULINA – Não cria, mas alimenta.
PINDUCA – Exatamente! Você não sabe como eu fico feliz por você me entender!
FIRULINA, se aproximando da bancada e abrindo uma gaveta – Quem me dera!
Você está além de qualquer compreensão.
PINDUCA – Bondade sua.
FIRULINA – E o que é que você sabe sobre bondade?
PINDUCA – Alguma coisa, mas só na teoria...
FIRULINA, encontrando o que procurava – Alguém precisa fazer alguma coisa a
seu respeito.
PINDUCA – Alguns tentam, mas sem muita sorte, coitados. Acabam dando mais
trabalho pra Maricota, coitada.
FIRULINA – O destino de todo vilão como você é ter um fim miserável, você sabe.
PINDUCA – E quem vai se encarregar disso? Você?
FIRULINA – Acha que eu não tenho coragem?
PINDUCA – Tenho certeza que não.
FIRULINA, tirando uma arma da gaveta e apontando para ele – Eu não teria tanta
certeza, se fosse você!
PINDUCA – Se eu não tivesse, você já teria sido servida em alguma jaula há
muito tempo.
FIRULINA – Só que dessa vez, errou! Se você fosse uma pessoa que rezasse,
esse seria o momento.
13

PINDUCA – Mas eu rezo. Toda noite.


FIRULINA – Você?
PINDUCA – Rezo para que Deus não exista. Nem Deus e muito menos o diabo.
FIRULINA – É, eu sei. Você detesta concorrência, né?
PINDUCA – Bom, já vi que com esse humor, hoje não vai ter charanga tocando a
noite inteira.
FIRULINA, ela engatilha a arma – Pode apostar que não.
PINDUCA – Pena. Bom, vou pro meu trailer. Te espero lá.
Pinduca sai e Firulina fica ainda por alguns momentos apontando a arma para a
coxia. Ela se convence de que ele não vai voltar e ela abaixa a arma, sentando-se
e colocando a arma em cima da bancada. Depois de algum tempo pensativa, ela
se levanta e sai correndo atrás de Pinduca.
Maricota entra, com ar cansado e se senta onde Firulina estava. Pega o revólver e
começa a limpá-lo, como se quisesse tirar as digitais da arma.
FIRULINA, voltando – Por quê? Por que você fez isso?
MARICOTA – Por você, por mim...
FIRULINA – Você não pode dizer que foi por minha causa!
MARICOTA – Posso.
FIRULINA – Que merda, que merda!
MARICOTA – Ficou triste?
FIRULINA – Isso é loucura, nós vamos ser apanhadas!
MARICOTA – Já tomei as minhas providências. Você ficou triste?
FIRULINA – Que providências? O que é que a gente vai fazer com o corpo?
MARICOTA – Já fiz. Joguei na jaula do leão. Você ficou triste?
Ela vai falar alguma coisa, mas desiste, já mais calma.
FIRULINA – E o que a gente vai fazer agora? Fugir?
MARICOTA – Fugir? A gente tem um circo pra dirigir!
FIRULINA – A gente?
MARICOTA – Ou você não está comigo?
FIRULINA – Estou, mas... Dirigir o circo?
14

MARICOTA – Colocar os números que a gente quiser, trabalhar com quem a


gente escolher...
FIRULINA – Não sei, eu...
MARICOTA – Pensei que fosse isso que você queria. Queria te fazer feliz, mas
você ficou triste. Já devia ter imaginado.
FIRULINA – Não, não fiquei. É só que...
MARICOTA – Então, vamos lá! Temos coisas pra fazer, mudanças pra realizar! O
circo agora é nosso, os artistas são nossos, podemos fazer tudo! Pela primeira
vez, você é livre!
FIRULINA – Pra fazer qualquer coisa?
MARICOTA – Qualquer coisa! Levantar e abaixar a lona quando quisermos, pegar
a estrada, soltar animais, comprar novos artistas!
FIRULINA – Vender a mulher barbada, aquele contorcionista insuportável, dar um
tiro naquele pulguento amestrado?
MARICOTA – E o que mais a gente quiser. Tudo agora é nosso, podemos usar até
o famoso número do Pinduca!
FIRULINA – Mas o número é dele, todo mundo sabe!
MARICOTA – Era dele porque ele roubou de alguém que já tinha roubado de
outra pessoa. Você não pode esquecer que o mundo é grande, pra alguém
sempre vai ser novidade. E depois, nasce um otário a cada segundo.
FIRULINA – A gente pode fazer melhor! Oferecer alguma coisa com mais
conteúdo.
MARICOTA – Mais conteúdo pode ser bom numa garrafa de cerveja, não no
nosso ramo. Se a gente bota muita coisa, é capaz das pessoas começarem a
pensar.
FIRULINA – E isso é ruim?
MARICOTA – É perigoso. Se as pessoas pararem para pensar, elas vão ver que
tudo é uma merda, que a vida delas é uma merda e aí, vão meter uma bala na
cabeça. É isso que você quer?
FIRULINA – Claro que não, isso é horrível!
15

MARICOTA – Claro que é! Cada suicida bem-sucedido seria um pagante em


potencial a menos. É isso que você quer, perder público?
FIRULINA – É que eu pensei que...
MARICOTA - Você não precisa pensar em nada, nós já temos a fórmula.
FIRULINA – Que fórmula?
MARICOTA – A fórmula pra envolver o público e espantar a dor!
FIRULINA – Espantar a dor?
MARICOTA – Claro! Afinal, só dói quando eles pensam.
FIRULINA – Não sei, Maricota, tem alguma coisa errada nisso.
MARICOTA – É que você está pensando. E quando se começa a pensar, tudo
começa a parecer errado. Faz o seguinte: deixa fluir. Deixe que os instintos te
guiem, deixe que eles te dominem. Se você tiver vontade de rir, gargalhe. Se
alguma coisa te excitar, goze. Deixa fluir. Se entregue. Feche os olhos e sinta a
brisa, o frio, o fogo, a minha língua. Apenas sinta, sem pensar. Vai, confia em mim
e pula sem rede, eu te pego. Deixa fluir. Nós somos só instinto e fugir disso é
sofrer. À toa. Instinto é prazer, razão é dor. É tudo tão bom, bom como sentir um
torpor, uma leseira no corpo, bocejar, dormir, aí acordar e então espreguiçar...
Espreguiçar na cama, esticar os braços e só sentir o que seus dedos tocam, sem
ver. Pode ser um raio de sol que entra pela janela, a fumaça que sai da xícara de
chá, o bico do seio que escapa de um pijama entreaberto... Só sentir. Você acha
que pode existir dor num mundo assim?
FIRULINA – Não sei, eu preciso pensar...
MARICOTA – Isso faço eu. Eu sei do que eles gostam e do que você gosta. É só
você deixar comigo e eu vou colocar o público nas nossas arquibancadas, o riso
na boca deles e a minha boca na parte de dentro da sua coxa, logo acima do
joelho...
FIRULINA – Como é que você sabe disso? Quem te contou?
MARICOTA – Eu sei que você tem coisas que quer fazer aqui, os seus projetos.
Mas deixa só passar essa fase de transição.
FIRULINA – Demora muito?
16

MARICOTA – Já tenho tudo esquematizado. As mudanças, os artistas que vamos


comprar.
FIRULINA – Posso fazer um figurino novo pro nosso número? Já tenho até
desenhado! Olha aqui, o que você acha?
MARICOTA – Pano demais. Mas, se a gente cortar um pouco aqui, tirar um pouco
dali...
FIRULINA – A gente vai ficar quase nua!
MARICOTA – O mercado pede um pouco de carne, fazer o quê? É o que falta pro
nosso número.
FIRULINA – Qual número? O novo?
MARICOTA – Não, aquilo é uma bomba, o Pinduca é que tava certo. Nós vamos
usar o dele, mas com o figurino novo.
FIRULINA – Mas só enquanto a gente não cria um novo pra gente, né?
MARICOTA – Pra quê? Se a gente usar o corpo, não vamos precisar de mais
nada.
FIRULINA – Mas eu não vou ficar à vontade...
MARICOTA – Não vai ficar à vontade com as filas dobrando o quarteirão e nossa
conta bancária crescendo? Bobagem.
FIRULINA – Acho que eu tenho muito pra pensar.
MARICOTA – E também tem muito tempo pra aprender. Eu não tenho pressa.
Agora vamos trabalhar, a gente tem uma sessão em meia hora. O público já está
chegando.
FIRULINA – Não vamos nem rezar pela alma do defunto?
MARICOTA – Nós temos que rezar é para que Deus não exista.
FIRULINA – Você já está até falando como o falecido.
MARICOTA, alisando a barriga – Deve ser porque eu tenho um pouco dele dentro
de mim.
FIRULINA – Você? E ele?
MARICOTA – Ele e eu. Ele e você. Ele e todas... E todos... Inclusive alguns dos
animais, acho eu.
FIRULINA – Você precisa se cuidar, parar de beber, de fumar.
17

MARICOTA – Não dá, eu tenho um negócio pra tocar.


FIRULINA – Você precisa então de um médico pra te acompanhar, pelo menos!
MARICOTA – Desde que ele não me atrapalhe e nem me impeça de fazer nada.
FIRULINA – Acho que eu conheço a pessoa certa... O Doutor Pimpão!
DOUTOR PIMPÃO, entrando com um bloco de anotações onde escreve a receita
– Repouso absoluto, dieta a base de ferro, cálcio e vitaminas!
MARICOTA – Pode esquecer.
DOUTOR PIMPÃO, amassando a receita e jogando fora – Esquecido! Vamos ver
a criança!
MARICOTA – Gostei dele! Doutor Pimpão, eu quero que o senhor apenas
observe, no caso de acontecer alguma coisa.
DOUTOR PIMPÃO, se posicionando para observar – A patroa manda, eu
obedeço!
MARICOTA – Sabe que eu gostei mesmo dele?
FIRULINA – Eu tinha certeza!
Doutor Pimpão olha atentamente para a barriga de Maricota, que começa a
crescer.
Enquanto isso, Maricota vai bebendo, fumando, assinando papéis e contando
dinheiro que lhe é trazido por Firulina, que entra e sai de cena. No meio da
movimentação, o Doutor começa a prestar mais atenção em Firulina do que na
barriga de Maricota, que vai parando de crescer, depois de ficar enorme.
Em uma das saídas de Firulina, o Doutor vai atrás dela e Maricota fica sozinha no
palco. Quando percebe, ela começa a sentir dores.
MARICOTA – Doutor! Doutor!
O Doutor não aparece e ela toma uma grande gole de bebida, direto da garrafa. A
dor aumenta.
MARICOTA – Doutor!
O Doutor entra apressado, como se tivesse acabado de vestir as calças.
DOUTOR PIMPÃO – Algum problema?
MARICOTA – Dor!
DOUTOR PIMPÃO – É parte do processo. Me chama se alguma coisa mudar.
18

MARICOTA – Doutor!
DOUTOR PIMPÃO – Mudou?
MARICOTA – Aumentou!
DOUTOR PIMPÃO – Perfeitamente normal. Não precisa se preocupar.
FIRULINA, entrando apressada, como se tivesse acabado de se vestir – O que
foi? Aconteceu alguma coisa?
DOUTOR PIMPÃO, pegando Firulina pelo braço e puxando-a para fora – Nada, só
rotina.
MARICOTA – Muita dor!
DOUTOR PIMPÃO – Isso passa.
FIRULINA – O senhor não pode fazer alguma coisa?
DOUTOR PIMPÃO – Fazer? Não foi pra isso que eu fui contratado.
MARICOTA – Eu exijo que o senhor faça alguma coisa! É uma ordem!
DOUTOR PIMPÃO – E o que a senhora quer que eu faça?
MARICOTA – O parto, caralho!
DOUTOR PIMPÃO – Nesse caso, eu vou precisar ir até... Firulina, você pode me
acompanhar...
MARICOTA – O parto! Agora!
As dores aumentam. O Doutor abre a mala e tira um par de facas, muito grandes.
DOUTOR PIMPÃO – A senhora prefere como? Natural ou...
MARICOTA – Natural aqui, nem iogurte!
FIRULINA – Quer que eu vá pegar água quente? Uns lençóis?
DOUTOR PIMPÃO – Pra quê?
FIRULINA – Não sei, mas eu sempre vejo na TV...
DOUTOR PIMPÃO – Tudo bem, então... Mas só pela tradição! (FIRULINA sai).
Acho que eu vou ajudar ela com os...
MARICOTA – Se sair daqui, é um homem morto! Acaba logo com isso!
DOUTOR PIMPÃO – A patroa não pede, a patroa manda!
Estoura a barriga com a ponta da faca. Maricota se levanta, empolgada.
19

MARICOTA – Eu tinha certeza! O menino é um estouro! Um fenômeno de


bilheteria! Todas as sessões lotadas! Vesgo, corcunda, albino, três braços, uma
perna e pêlos pelo corpo inteiro! Os outros circos querem roubar, as TVs brigam
para mostrar e o cinema já quer filmar!
DOUTOR PIMPÃO – Mas nada disso seria possível sem mim!
MARICOTA – O senhor não fez nada!
DOUTOR PIMPÃO – Exatamente! Se fosse outro, poderia ter feito. Já pensou na
possibilidade? Onde esse circo estaria se alguém tivesse feito alguma coisa?
MARICOTA – E o que vai ser?
DOUTOR PIMPÃO – Oitenta por cento!
MARICOTA – Muito razoável...
DOUTOR PIMPÃO – E a Firulina só pra mim!
MARICOTA, pegando o revólver – Bom, já não pode dizer que morreu por pouco.
Ela atira. É um revólver de água. O jaleco do doutor se tinge de vermelho.
DOUTOR PIMPÃO – Já sei... Pra jaula do leão?
MARICOTA – Por gentileza.
O Doutor sai. Firulina volta correndo, segurando um papel.
FIRULINA – Maricota, é uma intimação! Descobriram o corpo do Doutor Pimpão!
MARICOTA – Mas como? E o leão?
FIRULINA – Sei lá, deve ter achado meio indigesto...
MARICOTA – Depois do Pinduca? Duvido.
FIRULINA – Você vai ser julgada pelo Juiz Leléu!
MARICOTA – Isso é ótimo!
FIRULINA – Conhece o homem?
MARICOTA – Conheço a reputação.
FIRULINA – Você não está com medo?
MARICOTA – Claro que não!
FIRULINA – Mas é um julgamento!
MARICOTA – E nós somos um sucesso, nosso circo é um sucesso! Falando
nisso, não tá na hora de alimentar o Pinduquinha?
FIRULINA – Tá quase, eu já vou...
20

Enquanto elas falam, o Juiz Leléu entra e se posiciona, como se estivesse em


uma sala de julgamento.
MARICOTA – Pois vá logo, temos que cuidar bem dele. E quando é esse
julgamento?
FIRULINA, saindo – Amanhã.
JUIZ LELÉU – E a senhora está atrasada, o que caracteriza desrespeito a esta
corte.
Maricota vira-se para ele e enxuga os olhos com um lenço, enquanto Firulina
entra e coloca um véu negro sobre a cabeça dela.
MARICOTA – Problemas de família, meritíssimo.
JUIZ LELÉU – Nada grave, espero.
MARICOTA – Meu filho morreu. Envenenado.
JUIZ LELÉU – Que tragédia!
MARICOTA – A concorrência anda uma loucura, o senhor nem pode imaginar.
JUIZ LELÉU – Virgem Santa! Que perda! Que prejuízo!
MARICOTA – Incalculável.
JUIZ LELÉU – Isso complica consideravelmente a sua situação...
MARICOTA – Posso garantir que com os lucros que a curta vida de Pinduquinha
me proporcionou, estou bem de vida. Investi, comprei, vendi, diversifiquei... Tenho
posses, enfim.
JUIZ LELÉU – Não duvido. Sendo assim, posso dizer que cheguei a um veredicto.
MARICOTA – E qual é?
JUIZ LELÉU – Noventa por cento!
MARICOTA – Merda! Matei o sujeito errado. Mas vá lá, ainda sou nova, posso ter
outro filho, fundar uma igreja, sei lá.
O Juiz vai até Maricota e a acompanha até a saída. Firulina assiste a tudo, imóvel.
JUIZ LELÉU – Foi um prazer negociar com a senhora.
MARICOTA – Digo o mesmo. Fico esperando uma visita sua ao nosso circo.
JUIZ LELÉU – Um dia desses. Mas já vou avisando que só me interesso pelos
anões, por isso não há necessidade de querer me apresentar os animais.
MARICOTA – Nem o leão?
21

JUIZ LELÉU – Especialmente o leão. A fama dele já chegou aos meus ouvidos.
MARICOTA – Espere só até chegar ao seu pescoço!
Os dois riem, como velhos amigos, quase na coxia.
FIRULINA – E isso é tudo? Ela está livre?
JUIZ LELÉU – Como um passarinho.
FIRULINA – Mas ela matou gente, praticamente deformou e explorou o filho, pra
não falar do que fez com funcionários, concorrentes...
JUIZ LELÉU – E espero que tenha feito tudo isso de maneira rentável, uma vez
que noventa por cento dos lucros me pertencem.
MARICOTA – Vamos, Firulina, ainda temos que pensar em alguma coisa pra...
FIRULINA – Fui eu, eu quem não deixou que o leão comesse o Doutor, fui eu
quem envenenou o Pinduquinha!
MARICOTA e JUIZ LELÉU – Você?
MARICOTA – Traição!
JUIZ LELÉU – Perfídia!
MARICOTA – Prejuízo!
JUIZ LELÉU – Crime contra o patrimônio! E o meu, o que é pior!
MARICOTA – Por quê, Firulina, por quê? Eu, que fui tão sincera com você, só
com você! Pelos céus, o que aconteceu pra você fazer isso comigo, com o
Pinduquinha? O que endureceu teu coração e te fez dar o golpe fatal, me privando
da companhia do meu filho, do meu companheiro, da minha fonte de renda?
JUIZ LELÉU – Bravo! Aplausos, por favor! Que performance, como estava
orgânico o texto!
FIRULINA – Chega! Chega de aplausos! Só sabem aplaudir queda, susto ou torta
na cara! Só aplaudem quando a gente se machuca, quando a gente sangra!
Cansei disso tudo! Cansei... Tem que existir outra forma, outros caminhos... A
gente tem que pensar! Pensar antes de condenar, de absolver, de recomendar,
pensar antes de tomar posição, café ou bebida alcoólica!
JUIZ LELÉU – Do que é que ela tá falando, pelo amor de Deus?
MARICOTA – Não faço idéia, mas se eu fosse acreditar nesse discurso todo, ia
ficar chocada com tanta ingenuidade. Mas eu te conheço, eu sei de tudo!
22

FIRULINA – Tudo o quê?


MARICOTA – Você roubava dinheiro do circo!
JUIZ LELÉU – Oh!
FIRULINA – E você também!
JUIZ LELÉU – Oh!
MARICOTA – Você dormia com qualquer um que tivesse um poderzinho que
fosse!
JUIZ LELÉU – Oh!
FIRULINA – E você também!
JUIZ LELÉU – Oh!
MARICOTA – Você é minha irmã!
JUIZ LELÉU – Peraí, como é que é?
FIRULINA – Isso é mentira!
MARICOTA – É verdade! (abrindo os braços pra ela) Maninha!
FIRULINA – É mentira!
JUIZ LELÉU – Afinal, isso é verdade ou mentira?
MARICOTA – Mentira, claro. É que acabaram as minhas revelações bombásticas.
FIRULINA – O senhor não vê que não pode deixar uma pessoa assim livre?
JUIZ LELÉU – E ver como, minha filha, se a justiça é cega?
MARICOTA – Se ela enxergasse um palmo diante do nariz, era você que ia pra
cadeia! Tirar um filho dos braços da mãe... O senhor já viu pessoa mais ingrata?
JUIZ LELÉU – Ora, ora, quem sou eu para julgar? E depois, todos nós temos
nossos defeitinhos, não é verdade? Como um desses palhaços de domingo, que
eu acabei de julgar. O sujeito forjou aí uma situação e apresentaram queixa. Forjar
tudo bem, é da lei do negócio, mas vir dizer que não sabia de nada, aos prantos?
Tá pensando o quê? Que somos todos palhaços?
MARICOTA – Mas, meritíssimo... Nós somos todos palhaços.
JUIZ LELÉU – Claro! E por isso o rapaz foi absolvido. Aliás, eu preciso ir embora
que o show dele deve estar começando e eu não posso perder.
MARICOTA e FIRULINA – E ela?
23

JUIZ LELÉU – É, e vocês... Concordo que vocês não podem sair daqui sem um
castigo. Vejamos... Já sei! Vivam juntas! Para sempre!
MARICOTA – Mas isso não é castigo.
JUIZ LELÉU – Ainda não. Mas, tudo bem, a justiça pode esperar. Especialmente
nesse caso, onde eu tenho certeza que ela não vai tardar nem falhar.
FIRULINA – Isso é tudo? É a nossa sentença?
JUIZ LELÉU, enquanto as leva para o proscênio – Não vamos dizer sentença,
mas conselho. Afinal, vocês não fizeram nada de grave. Ah, e aqui vai outro
conselho: sentem e aproveitem o show. Vejam os outros palhaços. Relaxem.
Mudem o ângulo, sei lá. Vocês vão ver como vai fazer bem. Depois, continuem
com o de vocês. O show não pode parar. Embora, às vezes, devesse.

Elas se sentam e ficam encarando o público, enquanto o Juiz sai e a luz cai em
resistência.

FIM

Potrebbero piacerti anche