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OS BOBOS

Hugo Possolo
Personagens:

Presidente da República Federativa do Brasil.


Dado, um comediante famoso de televisão.
Seu Benedito, um garçom, funcionário público.

Cenário Único: Gabinete presidencial, grande mesa com uma cadeira


imponente e outras cadeiras nem tanto, computador, telefones, bandeira
brasileira, brasão da República e mais um monte de cacarecos metidos a
besta, porém um pouco caducos.

Ato contínuo com exatas e imprecisas 13 cenas.

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Cena 1

Dado está sentado na cadeira presidencial. O Presidente entra.

PRESIDENTE - Quem é você?

DADO - Calma...

PRESIDENTE - Guardas! Guardas!

DADO - Eles não virão...

PRESIDENTE - Essa é a minha mesa... Por algum acaso isso é um


golpe de Estado?...

DADO - Nunca! Tá louco?... Eu só sentei aqui... Estava esperando e...

PRESIDENTE - Sem conversa. Eu sou o...

DADO - Sei! O Presidente da República.

PRESIDENTE - Então, saia da minha mesa. A segurança está lá fora!...


De prontidão!

DADO - Eles cumprem o papel deles e eu cumpro o meu...

PRESIDENTE - Você vai me matar?

DADO - Quem dera tivesse essa capacidade, mas não estou aqui para
isso... E você sabe que não. Não vou te matar, não sou capaz de te
matar...

PRESIDENTE - É a última vez que peço: saia da minha mesa.

DADO - Primeiro, ela não é sua... É do Estado. Você, assim como eu, está
aqui de passagem.

PRESIDENTE - Neste momento, garantido pela maior votação da história


da República essa é a minha mesa.

DADO - Nossa... Que apego.

PRESIDENTE - Meu caro, eu não lhe conheço, não sei o que você está
fazendo aqui e já fui muito paciente em suportar essa sua brincadeira de
mau gosto...

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DADO - Gostaria que você fosse menos paciente no seu governo. Quem
sabe assim, as coisas andariam. Soluções seriam dadas, a justiça social
avançaria...

PRESIDENTE (Descontrola-se) - Vá á merda! Escuta, seu filho da puta,


sai da minha mesa já, porra!

Dado levanta-se da mesa rapidamente, assustado. Tempo.

DADO - Viu?

PRESIDENTE - O quê?

DADO - Para tudo existe um jeito certo de agir...

PRESIDENTE - Como?

DADO - Enquanto você veio com essa falsa elegância e modos contidos,
eu não me levantei. Agora, você usou expressões conhecidas, populares,
eu diria, quase universais. Daí, eu saltei da sua bela cadeira reclinável
com estofado de couro vermelho e, rapidamente, me coloquei ereto e reto,
respondendo ao seu comando...

PRESIDENTE - Assim é melhor.

DADO - Mas não era assim quando éramos jovens...

PRESIDENTE - Rapaz, eu não lhe conheço...

DADO - Não me reconhece. Estivemos juntos antes...

PRESIDENTE - Sério?

DADO - E eu lá sou homem de não falar somente coisas sérias? Claro


que é sério.

PRESIDENTE - Quando?

DADO - Quando, o quê?

PRESIDENTE - Quando nos conhecemos?

DADO (Debochado) - Tá curiosa, hein, boneca?!...

PRESIDENTE - Eu não sei por que raios estou dando atenção para o

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senhor... Há milhares de pessoas que neste exato instante gostariam,
e muito, de ter uma audiência comigo. De falar com o Presidente, de
tirar uma foto ao meu lado, de pedir coisas para si, para sua cidade, um
hospital, mais policiais, um empreguinho numa repartição, verba para uma
hidroelétrica, sei lá!... E eu perco meu precioso tempo dando atenção a
um idiota que invade minha sala, senta-se à minha mesa e acha que pode
fazer gracinhas comigo! Você me respeite! Me respeite! Seu merdinha!...

DADO - Calma, Excelência, o senhor está muito estressado... E,


convenhamos, pensando no tamanho do Brasil, não é pra menos!...
Vamos, Presidente, sente-se...

DADO acompanha o PRESIDENTE e o acomoda na cadeira


presidencial.

PRESIDENTE - Você acha que manda em mim?

DADO - Não, não. Só estou pedindo... Aconselhando que o senhor se


acomode melhor... Se acalme...

PRESIDENTE pega o telefone.

DADO - Está desligado.

PRESIDENTE (Procura o celular do bolso) - Puta que o pariu...

DADO (Mostra o celular em sua mão) - Está aqui.

PRESIDENTE - O que que você quer?...

DADO - Tudo sem comunicação. Sem nenhum soldado, sem nenhum


assessor, secretária... Só eu e você...

PRESIDENTE - Como eu sou bobo, meu Deus!... Acreditei que não era
um atentado.

DADO - E não é...

PRESIDENTE - E o que é, então?

DADO - Se você tiver calma, paciência e for um pouquinho menos


arrogante, vai entender tudo, tudinho...

PRESIDENTE - E se eu não quiser?...

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DADO - Eu vou embora.

PRESIDENTE - Vai embora, mas antes me mata...

DADO - Já disse que não. Vou embora e ponto.

PRESIDENTE - Por favor, me diz: o que você está fazendo aqui?...

DADO - O que é a curiosidade, hein?!...

PRESIDENTE - Eu não estou mandando, estou pedindo: por favor...

DADO - Olha, ele até solta a palavrinha mágica da boca poderosa...

PRESIDENTE - Nossa, você muito provocativo!

DADO - Finalmente uma visão crítica.

PRESIDENTE - Quê?

DADO - Parte do que vim fazer aqui se cumpriu... Fiz um político falar
sinceramente. Você acabou de fazer uma crítica honesta e direta. Olha
só a expressão que você usou: provocativo. E você tem razão. Eu sou
provocativo.

PRESIDENTE - Bela merda.

DADO - Você gosta deste palavrão.

PRESIDENTE - Qual?

DADO - Merda. Acho que é terceira ou quarta vez que você fala merda...
E olha que na boca de um político, merda é muito propício! Chega a ser
óbvio!!!

PRESIDENTE - Eu falo poucos palavrões.

DADO - Hoje. Quando tinha uns vinte e poucos anos era um boca-suja
dos infernos!...

PRESIDENTE - Você está me confundindo...

DADO - Você não foi líder do M.E.? Não discursava nas assembléias
e colocava fogo na estudantada?... Não comia todas as meninas da
faculdade? Depois, virou líder comunitário e tentou ser vereador... Em

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todos esses momentos, eu estava ao seu lado...

PRESIDENTE - Você me conhece? De verdade?

DADO - Sim. Pega aquela foto ali atrás... (Aponta alguns porta-retratos
sobre a mesa) Não essa... (Aponta) A outra... (Aponta) Essa!

PRESIDENTE (Pegando o porta-retrato indicado) - Que que tem?

DADO - Diz para mim: Quem são estes aí na mesa de debates do


sindicato?...

PRESIDENTE - Esse foi o dia que eu fui preso...

DADO - Eu sei... Vê se você lembra cada um que está com você na


mesa...

PRESIDENTE - Deixa pôr os óculos... (Tira-os do bolso)

DADO - É... O poder cansa...

PRESIDENTE (Menos irritado e mais brincalhão) - Não! Deixa míope.


(Olhando a foto) Vejamos, esse é o Odilon, que hoje é meu ministro do
Trabalho, aqui está o Luiz, que passou para a situação naquela época
e, hoje, é oposição... Esse aqui é o... o... Sílio... Sírio, algo assim, era
do Jurídico... Não sei onde foi parar. A Benedita, que agora é minha
assessora; o Déco, porra!, é o senador Déco!... O Vilaça que até hoje é
vereador em Pirajuí-Açu... E esse aqui... Esse eu não lembro...

DADO - Achou!

PRESIDENTE - Você?

DADO - Imagina sem a barba, mais gordo e uns aninhos mais velho...

PRESIDENTE - É parecido...

DADO - Que parecido?! Sou eu, porra... (Aponta outro porta-retrato) Veja
aquela outra...

PRESIDENTE - Mas esta aqui é na minha posse de governador...

DADO - Sim... Você no palanque, sua mulher, o senador Déco e...

PRESIDENTE - Aqui está mais parecido...


DADO - Sem a barba...

PRESIDENTE - Também tirei a minha e troquei os óculos, foi antes de ser


governador, quando me elegi para federal...

DADO - Idéia de algum marqueteiro?

PRESIDENTE - Não, foi uma briga com minha mulher... Mas funcionou.

DADO - Como assim?

PRESIDENTE - Fiz de propósito. Sempre brigo com minha mulher antes de


alguma eleição... Aí ela descarrega tudo-tudo-tudo que ela odeia em mim.
É tiro certo! Pego o que ela falou e mudo. Não tenho dó. Mudo mesmo.
Ajeito minha imagem e em dois segundos zupt!, subo nas pesquisas.

DADO (Irônico) - Genial. Simplesmente genial.

PRESIDENTE joga suavemente o porta-retrato sobre a mesa e abre uma


garrafa de uísque.

PRESIDENTE - Quer um uísque?

DADO - Desculpe, Presidente, mas não tem dois minutos que o senhor se
dizia ameaçado achando que era um atentado e, agora, me convida para
tomar um uísque...

PRESIDENTE - Uma coisa não tem nada a ver com a outra...

DADO - Talvez... Mas eu não quero beber com o senhor...

PRESIDENTE - Não há espécie pior de solidão que o poder, meu caro.


Aceite.

DADO - O senhor é um puta filósofo, Presidente!... O meu sem gelo, por


favor.

PRESIDENTE - Muito bem, começamos a ter uma conversa civilizada...

DADO - Ainda bem.

PRESIDENTE - Você diz que me conhece e eu não lembro de você.

DADO - Exatamente.
PRESIDENTE - Que tal esclarecermos tudo... Eu ficaria mais confortável
sabendo o que você quer e, aí, posso ajudá-lo...

DADO - E você acha que eu vou acreditar no que você fala...

PRESIDENTE - Papo furado... Você leu minha biografia na internet e


agora quer me convencer que nos conhecíamos antes... Sei até de onde
tirou essa balela de que eu era metido a galã...

DADO - Metido a galã? Você sempre foi feio... Mas que comia todas,
comia...

PRESIDENTE - Você já está querendo entrar em intimidades... Está


invadindo minha privacidade...

DADO - Sei, quando você comeu minha namorada, não estava nem aí por
invadir a privacidade alheia... (Saca um revólver) Você entrou na minha
vida...

PRESIDENTE (Irritado e morrendo de medo) - Entendi! É uma vingancinha


passional?! Puta que o pariu!... Quando eu iria imaginar que o que poderia
me ameaçar na presidência seria um corno que guardou rancor por mais
de trinta anos...

DADO (Aponta o revólver) - Tá com medo agora?

PRESIDENTE - Como é que este revólver passou pelos detectores de


metal?...

DADO (Baixa o revólver) - Você se vangloria do seu governo, mas não


sabe como isso aqui funciona... Ou melhor, como não funciona!

PRESIDENTE - Vai querer me dar alguma liçãozinha?... Porra, essa merda


está começando a ficar engraçada!

DADO - Tá vendo? Merda.

PRESIDENTE - Quê?

DADO (Aponta novamente o revólver) - Falou de novo!... Só pra constar.

PRESIDENTE - Você tem cisma com palavrões, é?

DADO (Baixa a arma) - Não... Só acho que ninguém dá mais valor a


eles...
PRESIDENTE - Valor? Que valor eu devo dar para algum palavrão se tem
um idiota apontando uma arma para mim?

DADO - Cu, buceta, bosta, puta, pinto, merda... Isso vale ouro! Ouro!
(Aponta o revólver) Repete!

PRESIDENTE - O quê?

DADO (Mais violento) - Repete! Cu, buceta, bosta, puta, pinto, merda...
Vamos!

PRESIDENTE - Cu, buceta, bosta, puta, merda...

DADO (Muito alterado) - Faltou o pinto! Fala pinto! Fala!

PRESIDENTE (Tímido) - Pinto... Caralho... Pau...

DADO (Guarda o revólver) - Tá vendo? Cada vez que um palavrão sai da


boca de alguém, lembramos que somos feitos de carne e osso, que somos
animais que cagamos, trepamos, mijamos, que temos tesão... Cada vez
que alguém manda um “porra, caralho”, algo se liberta... É o prazer em
seu gozo máximo. O prazer criando e recriando o mundo! Exatamente
como a porra saindo do caralho!...

PRESIDENTE - Confesso que em trinta anos de vida pública nunca


tive uma conversa tão baixa, tão louca e absurda... E olha que estou na
presidência, meu caro... Imagina o monte de mer... o monte de coisas
absurdas que eu já vi e ouvi... Mas, realmente, esse seu jeitão meio tolo
esconde um maluco da pior espécie... Um cornudo envelhecido em barris
de álcool ou de alguma outra droga! E, agora, quer se vingar por causa de
uma namoradinha vesga...

DADO - Peraí! Como é que você sabe que ela era vesga?...

PRESIDENTE - Porque sempre tive tesão por mulheres vesgas...

DADO - Não é possível... Tesão por mulheres vesgas?... Mas que tipo
de gente o senhor é?

PRESIDENTE (Desanimando) - Olha... Essa conversa está tão fora de


contexto, tão longe da realidade, que eu posso até brincar de confessar...

DADO - Confesse o que quiser, não sou da imprensa, não estou aqui para
isso, mas que eu estou curioso para caralho, eu estou!
PRESIDENTE - E que a primeira dama nunca fique sabendo... Eu tenho
é tesão por vesgas!

DADO - Tem?

PRESIDENTE - Tenho...

DADO - Jura?

PRESIDENTE - É...

DADO - Deve existir alguma coisa que Freud ainda consiga explicar...

PRESIDENTE - Freud?

DADO - Dizem que é um sujeito que entende bastante sobre sexo!

PRESIDENTE - Pois é... (Faz um muxoxo) Meu... pequeno...

DADO - Quê?

PRESIDENTE - Bem, o que explica meu tesão por vesgas é que meu...
Meu pau é pequeno... Pronto! Falei.

DADO - E daí?

PRESIDENTE - Fico mais excitado com mulheres vesgas, porque quando


eu tô lá, metendo, a mulher fica assim (Fica vesgo)... quer dizer, já é assim
(Fica vesgo)... E aí parece que meu pau é grande... Muito grande!

DADO - E depois eu é que sou louco.

PRESIDENTE - Você acha isso muito pervertido?

DADO - Não... Não. (Tempo) Quer dizer, acho. Acho muito.

PRESIDENTE - Acha?

DADO - Mas também não tenho moralismo nenhum. Para mim, qualquer
festa diverte...

PRESIDENTE - Como não tem moralismo? Você seqüestra o Presidente


da República por causa de uns chifres que ganhou no passado e vem
dizer que não é moralista? Peralá!
DADO - Primeiro, eu não te seqüestrei. Você está na sua sala, na sua
mesa e eu não fiz nenhuma ameaça...

PRESIDENTE - Me apontou uma arma.

DADO - Isso é circunstancial!

PRESIDENTE - Tão circunstancial como a segurança do meu gabinete...

DADO - Sem dúvida. Segundo, não estou aqui por causa de vesguinha
nenhuma... Você nunca me chifrou. Eu só roubei a história de um
companheiro de partido, que tentou se matar porque, na época, você
comeu a mulher dele...

PRESIDENTE - Tentou se matar?

DADO - É. Ele agüentou uma mulher que ele não amava por onze anos e
você estragou tudo...

PRESIDENTE - Se ele não amava, não estraguei nada.

DADO - Estragou, sim. Ele viveu onze anos com uma mulher que não
amava, por ter medo de ser chifrudo. O cara tinha tanto medo, mas tanto
medo de ser corno que se casou com uma baranga horrorosa só para não
correr o risco. Entendeu?

PRESIDENTE - Que merda.

DADO - Ele não podia imaginar que existiam tarados que têm tesão por
vesgas!

Cena 2

Entra BENEDITO , o garçom, com uma bandeja, que traz duas jarras de
água, dois copos, um bule e duas xícaras de café.

BENEDITO - Com licença... Posso servir?

PRESIDENTE - Claro.

BENEDITO - Água ou café, doutor?

DADO - Obrigado, já estou tomando um uísque...

BENEDITO - Excelência?
PRESIDENTE - Não, obrigado... Não está reconhecendo ele, Seu
Benedito?

BENEDITO - Mais ou menos...

PRESIDENTE - O Dado... Do “Dado Riso Show”! Lembra do programa?


(Cantarola:) “A CiDaDeDoDaDo!... Ééééééééé Show!”... Muito bom!... E,
agora, o “Dado Talk Show” é um sucesso!

BENEDITO - É. Eu sei.

PRESIDENTE - Pode pedir um autógrafo, se quiser...

BENEDITO - Não, Excelência, obrigado.

PRESIDENTE - Pede. O Dado vai ficar feliz em dar um...

BENEDITO - Desculpe, Excelência, mas tenho orientações de não pedir


nada às pessoas que circulam pelo gabinete...

PRESIDENTE - Sim, mas estamos somente nós...

BENEDITO - Eu sei, não queria incomodar, mas foi a doutora Maria Teresa
do Cerimonial que mandou que eu servisse o café...

PRESIDENTE - Não se preocupe, você não está atrapalhando nada.


Pegue um autógrafo...

DADO - Deixe, Presidente, me parece que o Seu Benedito está um


pouco encabulado...

BENEDITO - Não. Eu não estou encabulado.

DADO - Já sei! Você é daqueles que não gosta das minhas piadas!? (Ri
sozinho)

BENEDITO - De jeito algum... Sou seu fã! (Ri, meio sem jeito)

DADO - Então, vamos lá... (Pega um papel no bolso)

BENEDITO - Não, senhor. Eu não posso e não quero pegar nada daqui.
Não posso me aproveitar do fato de que convivo com os homens do poder,
com gente famosa, para ter benefícios próprios.

DADO - Sim, mas o senhor trabalha aqui...


BENEDITO - E ganho para isso.

DADO - Então, não tem nada demais...

BENEDITO - Tem sim. Quer dizer, não... Talvez, para os senhores não
tenha nada demais. Com licença.

PRESIDENTE - À vontade, seu Benedito. (T) Ah, volte rápido... Não gosto
dessas xícaras e copos espalhados sobre a minha... sobre a mesa da
presidência.

BENEDITO sai.

Cena 3

DADO e o PRESIDENTE se entreolham um pouco e depois desabafam.

DADO - Caralho!... Que susto!

PRESIDENTE - Susto?... Esse filho-da-puta estragou tudo...

DADO - É, Presidente, por mais que o senhor avise a segurança, ela


falha.

PRESIDENTE - Isso é uma crítica?

DADO - Claro!... Somos duas figuras mais do que públicas, se alguém


descobre, a gente está é fodido!...

PRESIDENTE - Eu tenho uma enorme assessoria para garantir a minha


imagem...

DADO - Eu não tenho imagem, não sou uma televisão...

PRESIDENTE - Ah, não! Você é a televisão... A televisão. A te-le-vi-são é


você. Pode ter certeza, Dado!

DADO - Será que ele percebeu?

PRESIDENTE - Tá na cara que não.

DADO - É. Não precisamos ter vergonha.

PRESIDENTE - Êpa! Esta palavra não pode constar do meu dicionário...


DADO - Tem razão, político com vergonha nunca sairia de casa!...

PRESIDENTE - Seu Benedito é de total confiança...

DADO - Também, a gente não estava comendo o cu um do outro...

PRESIDENTE - Não sei que merda que eu fui topar essa sua idéia desses
seus joguinhos para me preparar para as situações mais adversas.
Babaquice! Sempre me safei!... E você? De onde inventou essa história
de Bobo da Corte contemporâneo?

DADO - Porra! Tem dado certo... Sua popularidade nunca mais caiu.

PRESIDENTE - Por causa da economia! Ela é que manda! E vai bem,


muito bem, obrigado.

Cena 4

BENEDITO volta.

BENEDITO - Desculpe, Presidente, mas dona Maria Teresa solicitou que


eu limpe os cinzeiros e não sei se devo....

PRESIDENTE - Faça seu trabalho à vontade, seu Benedito. Faça de conta


que não estamos aqui.

BENEDITO - Obrigado, Excelência.

DADO - Benedito, desculpe perguntar, mas fiquei curioso: há quanto


tempo o senhor trabalha aqui?

PRESIDENTE - Ih, Dado!... O Seu Benedito sabe trinta anos de bastidores


da História da República. Desde a redemocratização, ele já serviu a todos
os presidentes aqui em Brasília. Não é, Seu Benedito?

BENEDITO - Desculpe discordar, Excelência, mas não sei nada disso,


não...

PRESIDENTE - Como não?

BENEDITO - Esqueci.

PRESIDENTE - Esqueceu?

BENEDITO - É meu dever profissional não lembrar o que se passou nestas


salas do gabinete, senhor.

PRESIDENTE - Bem, isso é muito prudente... Limpar os cinzeiros e não


ouvir nada.

DADO - Peraí, Seu Benedito, o senhor não imagina as conseqüências de


tudo o que se decide aqui?

BENEDITO - Imaginar, eu imagino, mas esqueço logo, para não correr o


risco de falar para alguém. E, se me permitem, não convém imaginar.

DADO - Como?

BENEDITO - A imaginação é um perigo para a humanidade!

DADO - Que isso, Seu Benedito? A imaginação é imprescindível para a


humanidade.

BENEDITO - Só que é perigosa. Por exemplo, se um goleiro pensa em


adivinhar o canto em que será cobrado o pênalti...

DADO - Tem chance de defender!

BENEDITO - Só a chance não basta... Mas se o goleiro tiver a visão


exata para qual lado a bola vai, além de poder defender, ele irá se realizar
completamente com uma atitude que sabe que foi sua e não apenas
sorte!

PRESIDENTE - Adoro a sabedoria popular!

BENEDITO - Se eu imaginar o que pensa o Presidente, nunca vou


acertar!

PRESIDENTE - Está certo! Certíssimo!

DADO - Óbvio, porque o Presidente nunca está certo!

BENEDITO - Se Otelo, por exemplo, não tivesse imaginação, não teria


matado sua Desdemôna.

DADO - Sim, o ciúmes é uma doença alimentada pela imaginação...

PRESIDENTE - Dado, você também conhece esse tal Otelo?

BENEDITO - O monstro de olhos verdes...


PRESIDENTE - É um sujeito perigoso?

DADO - Digamos que foi, Excelência...

PRESIDENTE - Foi? Morreu o coitado?

DADO - É um personagem de Shakespeare...

PRESIDENTE - Ah, ainda bem que não tenho que me preocupar com
mais esse problema...

BENEDITO - O senhor é um homem culto, sabe do que falo, Doutor


Dado...

DADO - Culto é o senhor. Um garçom que cita Shakespeare.

BENEDITO - Alguém aqui tem que limpar os cinzeiros... Com licença. Já


volto.

BENEDITO sai com cinzeiros na mão.

Cena 5

DADO - Boa! Essa é boa!... Tem ótimo humor, esse garçom. O cara fala de
Shakespeare e limpa os cinzeiros! É um concorrente!...

Tempo. PRESIDENTE mexe em alguns papéis e se mostra


desinteressado.

DADO - E, então, vamos retomar o jogo?

PRESIDENTE - Não, acho que perdi o embalo.

DADO - Tudo bem, tenho que voltar para a emissora até as oito da noite.
A retransmissora daqui quer fazer um link...

PRESIDENTE - Falando em tevê, aquelas duas concessões de Mato


Grosso e Tocantins já estão na boca do forno...

DADO - Alguém no Congresso?

PRESIDENTE - Não vou revelar o santo... Agora, essas duas concessões...


Mais essas duas! Duas concessões que serão suas!
DADO - Quando você lembra das anteriores, isso quer dizer que o preço
subiu...

PRESIDENTE - Preço político. Preço político, meu caro... Aqui não se fala
em cifras... É do Cerimonial...

DADO - Tudo bem, não vou entrar numa discussão boba!

PRESIDENTE - Boba, não. Discussão retórica!

DADO - Presidente, toda discussão é retórica!...

PRESIDENTE - Você é chato, hein?... Alguém já te disse que você é


muito chato?!...

DADO - Que é? Está parecendo minha namorada!

PRESIDENTE - E, por acaso, ainda é a mesma?

DADO - Presidente, o senhor precisa aprender a dizer o que os outros


querem ouvir, falar a linguagem da sobrevivência!

PRESIDENTE - E você acha que, justo eu, não sei como é?...

DADO - Sabe, eu gosto de frases engraçadinhas que dão um toque


humano em nosso jeito de ser... Tipo: “O hábito faz o monge. E a ocasião
faz o hábito do ladrão.”

PRESIDENTE - Dado, que saco!... Como você se repete...

DADO - Não. Isso é o apuro da linguagem! É o que funciona.

PRESIDENTE - Funciona?

DADO - Quando estou entre executivos, uso termos incríveis, códigos


em inglês empresarial, ditos aos caras que fizeram MBA e querem ser um
CEO ou um CFO!... Ah, vão se foder!...

PRESIDENTE - Quê?

DADO - Aparentemente mais difícil que Shakespeare, meu caro Watson.

PRESIDENTE - Esse Watson era personagem de Shakespeare?


DADO (Impaciente) - Filho. Sim, filho. Era o filho da ignorante mãe do
Bardo!...

PRESIDENTE - Bardo? Você está querendo me confundir?

DADO - Porra, Presidente. Watson parceiro de Sherlock Holmes, o


detetive!

PRESIDENTE - Puta merda. Estou ficando burro!... Ou distraído. É muita


coisa na cabeça... É claro que sei quem é o Watson de Shakespeare!

Cena 6

Seu BENEDITO volta com cinzeiros limpos.


Antes de entrar completamente na sala sussurra.

BENEDITO (Quase inaudível) - Licença.

PRESIDENTE (Em tom formal, falando alto) - Claro, Dado, que um apoio
seu, formal, público, evidente, ao projeto Cultura Seleta não entusiasmaria
somente a base aliada, até a oposição iria gostar... Sua presença no
Congresso vai chamar a atenção da mídia.

DADO (Um pouco desnorteado, não sabendo do que fala o Presidente)


- Bem, posso convidar dois deputados para meu talk show. Um da base e
outro da oposição. Acho que rende. Rende muito!... Bem interessante!...
Interessa muito, mesmo!... Rende...

PRESIDENTE faz sinal indicando BENEDITO, mostrando que voltam ao


assunto depois. DADO coloca a mão sobre o local de onde Benedito havia
retirado um cinzeiro sujo.

BENEDITO (Para DADO) - Posso recolocar o cinzeiro aqui, Doutor?

DADO - Que doutor? Que é isso, seu Benedito? É só me chamar de


Dado!

BENEDITO - Doutor Dado. É apenas uma formalidade...

DADO - Formalidade? Comigo? Pera lá, rapaz!... Sou um comediante


popular...

BENEDITO - Aos que passam pela porta de entrada do Palácio da


Alvorada, sejam de que origem for, de que idade for, não importando sexo
ou religião, capacidade ou incapacidade intelectual, tenho a obrigação de
chamar de doutor...

DADO - Jura?

PRESIDENTE - O Cerimonial do Palácio... Desde a época do Getúlio é


assim. Eu, por mim, deixava tudo mais informal, à vontade.

DADO - Bem, eu a cada sessão... Eu, cada vez que venho aqui, faço
questão de vir de terno...

BENEDITO - O terno é um ótimo traje, doutor.

DADO - Obrigado.

BENEDITO - Iguala as pessoas.

DADO - Sei.

BENEDITO - É um uniforme elegante.

DADO (Para o PRESIDENTE) - Lembra de quando você disse que nunca


usaria terno? Que se fosse eleito deputado federal, viria ao Congresso de
boné e com aquelas camisetas polos horrorosas que eram a sua marca?

PRESIDENTE (Irritado) - Esse é um assunto que eu prefiro esquecer.

DADO (Para o PRESIDENTE) - Desculpe. Não está mais aqui quem falou.
(para Benedito) Mas um terno importado não é bem lá um uniforme, não
é?

BENEDITO - Meu uniforme pode não ser elegante, mas identifica minha
função melhor que um terno.

DADO - Isso é verdade.

BENEDITO - Aqui sou diferente, diante de tantos ternos tão parecidos.


Todos tão iguais. Às vezes, só se percebe a diferença entre um e outro por
causa da cor da gravata.

DADO - Realmente o senhor se destaca aqui.

BENEDITO - Aqui e somente aqui, é onde devo e posso usar meu uniforme.
Assim, todos compreendem que sou um subalterno. Na rua, por dever e
coerência, uso trajes esporte, modestos, é claro. E também, devo frisar,
que jamais passaria o ridículo de andar de gravata borboleta em plena
Taguatinga.

PRESIDENTE ri.

DADO - O que que o senhor tem contra gravatas borboleta?

BENEDITO - Eu nada. Mas onde eu moro é meio...

PRESIDENTE (Interrompendo) - O Dado adora fazer piadas com os


outros, mas quando é com ele, perde o rumo de casa...

DADO - Não sei qual é o problema de se gostar de gravatas borboletas...

BENEDITO - Posso voltar depois para recolher as xícaras e os copos?...

PRESIDENTE - Claro, seu Benedito. Adoro ver o senhor, sempre. Fique à


vontade para entrar e sair.

BENEDITO - Obrigado, Excelência. Com licença.

Seu BENEDITO sai.

Cena 7

DADO - Porra!... É tão comum para você fazer de conta que gosta das
pessoas?...

PRESIDENTE - Mas eu gosto do seu Benedito. Agora, política é isso,


meu nego.

DADO - Não. Política é negócio, televisão é negócio, humor é negócio...

PRESIDENTE - Isso é fato! Até sexo é negócio... E dos mais antigos.

DADO - Taí! Eu sou uma puta! Eu vendo prazeres, tal e qual uma puta...

PRESIDENTE - E você lá entende de putaria, Dado?

DADO - Melhor que você!... Você, por exemplo, já beijou uma puta?

PRESIDENTE - Tem certeza que não tem microfones aqui?

DADO - Porra, quem manda na Segurança Nacional é você!...


PRESIDENTE - Comer puta, eu já comi. Fomos até juntos num puteiro,
uma vez...

DADO - Várias!... Agora eu perguntei: Beijar? Você já beijou uma puta?

PRESIDENTE - Claro, que não. Que nojo...

DADO - Nojo?... Só se ela tiver nojo de você, porque na hora da trepada


aposto que você fica louco para beijar! E puta nenhuma beija, meu caro.

PRESIDENTE - É óbvio. Elas têm que ter cuidado...

DADO - Que cuidado, que nada!... Ela vende o corpo, mas não é boba de
te dar o seu melhor...

PRESIDENTE - Quê?

DADO - Se ela beija, ela te dá o que ela jamais poderia vender: a


intimidade...

PRESIDENTE - Não beija para não apaixonar, não amar...

DADO - Babaquice! Romantismo!... Não tem nada a ver com amor! Não
beija para não te deixar íntimo.

PRESIDENTE - E puta tem lá intimidade, Dado? Em que mundo você


vive?...

DADO - Talvez num planeta diferente do seu, Presidente.

PRESIDENTE - Bem diferente!

DADO - Eu sei como é. É a mesma coisa comigo, num show ao vivo... Estou
lá, diante da platéia lotada. Eles riem alto, todos juntos, gargalham forte
e eu... Eu que gerei aquele instante de prazer, no fundo, estou solitário.
Ninguém compartilha do que realmente estou pensando, sentindo...

PRESIDENTE - Meu amigo, se é assim que você convence uma puta a te


dar graça, vá lá!... Mas que essa sua conversinha brocha qualquer um, ela
brocha! Que coisa mais chata, Dado!

DADO - Eu sou como uma puta. Dou prazer, mas vendo minha
intimidade.

PRESIDENTE - A diferença é que você ganha bem mais!


DADO - Não mais que um Presidente da República!

PRESIDENTE - Sei. Sabe quanto é o meu salário?...

DADO - Peraí, ninguém está falando de miséria. (Aproxima o rosto do


PRESIDENTE, imitando uma puta:) Agora, que eu já te dei tudo... Quanto
você me pagaria para te dar um beijo na boca?

PRESIDENTE (Irônico, testando os limites de DADO, não desvia do


possível beijo) - O seu problema, Dado, é que você acha que tudo que
acontece pode ser transformado, por você, em uma conclusão inteligente
e engraçada...

Cena 8

Seu BENEDITO retorna apressado. O PRESIDENTE e DADO assustam-


se e se afastam subitamente.

BENEDITO - Desculpe... Esqueci os cinzeiros ali.

Pega o cinzeiro.

BENEDITO - Ah, este é limpo. Desculpe, Excelência... Eu não precisava


ter voltado...

PRESIDENTE (Humorado, mas impaciente) - É. Ainda não esvaziamos


os copos...

Seu BENEDITO começa a sair e DADO o interrompe no caminho.

DADO - Seu Benedito, por favor, fale mais dessa sua teoria sobre a
imaginação...

BENEDITO - Não é minha. É, em parte, minha.

DADO - Shaksepeare de novo?

BENEDITO - Não.

DADO - Ah!...

BENEDITO - Desta vez tive a colaboração de Platão.

DADO - Para um garçom, o senhor é bastante culto...


BENEDITO - Certamente, alguém aqui tem que ser.

PRESIDENTE - Também acho!... Falta gente culta em meu gabinete.

BENEDITO - Desculpe mais uma vez, Excelência, mas já tivemos gente


muito culta aqui e isso não resolveu nada.

PRESIDENTE - Verdade. (Tempo) E esse Platão? É vivo?

BENEDITO - Muito!... (Tempo) Muito esperto!

PRESIDENTE - E o que ele te ensina? De prático? Objetivamente, sem


teorias...

BENEDITO - Que não posso imaginar.

PRESIDENTE - Explique.

BENEDITO - Veja, se um homem imagina, ele quer realizar. Se ele


realiza, ele acredita que o que fez foi fruto de sua imaginação. Isso o torna
poderoso. Poderoso demais.

DADO - Isso é bom.

BENEDITO - Aí é que está. Se o homem tem poder, se é realmente


poderoso, está sujeito a se corromper.

PRESIDENTE - Concordo. Não é fácil.

BENEDITO - Posso dizer, vivendo neste palácio há mais de trinta anos,


que aqui dentro isso é inevitável...

PRESIDENTE - Sim!... Quer dizer, não.

DADO - Discordo. O senhor, seu Benedito, não me pareceu corruptível.


Recusou meu autógrafo, deu justificativas...

BENEDITO - Porque eu não imaginei o que poderia fazer com ele...

DADO - Bravo!... Então, nunca se corrompeu?

BENEDITO - Claro que sim. Eu tenho imaginação! E muita!

DADO - Ah, temos um ser humano entre nós!


PRESIDENTE - Seu Bendito é um pilar da República.

DADO - Posso perguntar como o senhor se corrompeu?

BENEDITO - Claro.

BENEDITO fica quieto, imóvel. DADO se incomoda.

DADO - Eee?

BENEDITO - Pergunte.

DADO - Ah, sim!... (Formal) Seu Benedito, como é que o senhor se


corrompeu?

BENEDITO - É simples. Pego os cartões de visita que esquecem nas


mesas...

DADO - E daí?

BENEDITO - É muito comum.

PRESIDENTE - Eu sei! É assim, sempre...

BENEDITO - Distribuem-se muitos cartões nas reuniões e, ao final, todos


esquecem os cartões sobre a mesa. Recolho e, quando necessito, eu
uso.

DADO - Vai me dizer que você se passa pelas pessoas que vêm aqui?

BENEDITO - Nunca! O senhor está louco? Isso seria falsidade ideológica!...


Quem gosta de trocar de papéis, de usar disfarces ou são pessoas
inseguras, incapazes ou, então, são verdadeiros canalhas...

PRESIDENTE tem um rápido e pequeno acesso de tosse.

DADO (Para o PRESIDENTE) - Isso não foi comigo!... (Para Seu


BENEDITO) E o que você faz com os cartões que recolhe?

BENEDITO - Apenas uso os cartões para me defender! É uma defesa


que eu tenho!

DADO (Irritado) - Sim, mas como???

BENEDITO - Se algum guarda me pára e pede os documentos, eu faço


de conta que vou mostrar meus documentos e junto os documentos, como
se fosse sem querer, ponho um dois cartões de alguém muito importante
aqui de Brasília! (Pausa) Sempre dá certo. O guarda me pede desculpas
e me manda embora.

DADO - Mas você não teria nada a temer de um guarda.

BENEDITO - Acontece que os guardas têm sempre do que temer! É


melhor assim.

DADO - Não vejo corrupção nisso.

BENEDITO - Eu também, não. Não em mim. Já no guarda, que imaginou


que eu fosse importante para alguém muito importante, sim.

DADO - Você poderia se identificar, dizer que...

BENEDITO - Dizer que trabalho diariamente ao do lado presidente?...


Nunca!

PRESIDENTE - Nunca?

BENEDITO - Vai que alguém descobre.

DADO - Não é bom que saibam?

BENEDITO - Certamente! Se soubessem, meus amigos, vizinhos, parentes


iriam viver me pedindo favores. Para eles todos, eu minto. Digo que sou
encarregado de serviços gerais da manutenção, pintor de paredes no
palácio, porque é um serviço externo.

DADO - Brilhante! Genial! A ética platônica de Taguatinga! Obrigado, Seu


Benedito.

BENEDITO - Muito prazer, doutor Dado.

DADO - E agora? Não quer mesmo o autógrafo?

BENEDITO - Não, obrigado. Continuo sem imaginar o que fazer com ele.

PRESIDENTE - Que tal se...

DADO (Interrompendo o PRESIDENTE) - Pchiu!...

Seu BENEDITO sai.


Cena 9

DADO - Ô, Presidente, está perdendo sua diplomacia de grande chefe de


Estado? Ia mandar o homem enfiar o autógrafo no cu?

PRESIDENTE - Somente porque seria a sua assinatura enfiada na coisa.

DADO - Gostei. O humor é ótimo para a discussão da modernidade na


política...

PRESIDENTE - Humor não serve para nada.

DADO - Vai dizer que o senhor não se incomoda com aquelas caricaturas
redondas: o presidente bolacha!

PRESIDENTE - Que nada! São homenagens... Eu tenho uma coleção


delas, de todos os cartunistas do país inteiro. (Saca um fichário gordo) Tá
aqui, dá uma olhadinha...

DADO - Tudo isso?! (Folheando o fichário) Você é muito ingênuo mesmo.


Olha essa, que sacanagem!... (Ri, vira a página) Aqui o cara te fodeu. É
bem isso mesmo... (Vê outra e ri mais) Você de Papai Noel entregando
a CPI de presente na mão da oposição! (Cai na gargalhada) Puta que o
pariu, que engraçado! (Tem um acesso de riso incontrolável, depois pára
subitamente) Será que você não vê? Os caras fazem isso para te atingir.

DADO ri mais e mais e, subitamente, interrompe o riso. Longa pausa.

PRESIDENTE - Mas não me atingem... (Tempo. Pensa um pouco) Você


acha que eu mudaria alguma resolução política por causa de um bando
de rabiscos?

DADO - Fala a verdade! Incomoda...

PRESIDENTE - Só quando se é jovem... Depois, passa a ser interessante,


ganha um outro objetivo. Quando começam a ser publicados em quantidade
é sinal que você já está com um pé garantido na história. Isso é o que
interessa.

DADO - Pé na História?... O que interessa é ganhar bem!

PRESIDENTE - Essa é a sua visão de astro da TV!

DADO - Astro, não. Comediante. Eu faço rir e você governa. Cada um na


sua!
PRESIDENTE - Se é cada um na sua, o que você está fazendo aqui? Por
que inventou essa história toda?!

DADO - Todo mundo quer fazer algo para mudar o mundo.

PRESIDENTE - Eu não. Do jeito que está já é foda de tocar adiante,


imagina com tudo mudando o tempo todo. Você fala isso porque nunca
sentou numa cadeira como essa!

DADO - Sentei, sim. No nosso treinamento! Foi de brincadeira, mas sentei!


E você ficou puto!...

PRESIDENTE levanta-se subitamente e, visivelmente irritado, guarda o


fichário.

DADO - Que foi? Não gostou? Não sabe brincar?

PRESIDENTE - Sei. Sei brincar, sim. Apenas não vejo motivo para me
trancar duas horas por semana com um idiota...

DADO - Profissional!

PRESIDENTE - Com um idiota profissional para treinar meu


comportamento no poder!

DADO - Era assim na Idade Média! Os Bobos da Corte!

PRESIDENTE - Bobo da Corte? Bobo da Presidência?! Sou eu o Bobo!


O Bobo sou eu!

DADO - Você pode não gostar, mas eu estou me divertindo. Ainda mais
que é uma atividade secreta... Para garantir a Segurança Nacional.

PRESIDENTE - E Bobo da Corte é coisa para um homem adulto? Já


muito bem de vida, pai de família?

DADO - Você não tem respeito histórico... Sou um Yorick moderno!

PRESIDENTE - Mas será o Benedito?! Lá vem você com esses caras que
não conheço!... Yorick? Que porra de Yorick é o caralho! Quero que morra!
E se for algum personagem ou alguém já morto que seu esqueleto vire
poeira no infinito da puta madre que te pariu!

DADO - Nervosinho, hein?!... Eu estou aqui ganhando o meu e rindo da


sua cara!
PRESIDENTE - Que ganhando? Você é milionário, não vem com
conversinha...

DADO - Foi uma tentativa...

PRESIDENTE - Tentativa de merda!... Você quer é me puxar o saco e


pronto. Aí inventou essa...

DADO - Não é assim. Já fiz muito disso para grandes executivos, faturei
uma grana preta com palestras motivacionais... Gerei relacionamentos...
Construí uma história...

PRESIDENTE - E por que inventou essas brincadeiras? Essa última, clima


de atentado, é humilhante! Não, é ridículo! Atentado? Com uma arma de
plástico?!... Nós estamos no Brasil, meu nego! Que mané atentado?... E
eu sou lá homem de ficar fazendo teatrinho de Bobos da Corte?

DADO - É! Fez até minutos atrás! Aliás, vive fazendo teatro! Eu vi sua foto
comendo buchada de bode!... Vai dizer que gosta?

PRESIDENTE - Desculpe, eu tenho mais o que fazer, meu nego! O Seu


Benedito estava certo, eu não deveria aceitar nem um autógrafo seu! Mas
que que eu fiz? Dei ouvidos a um dos homens mais populares do país, só
porque ele teve uma iluminação para ajudar o Brasil! Para que eu pense
melhor as coisas do Brasil! Que porra de Brasil? Eu estou cagando pro
Brasil, caralho!

DADO - Agora vai encher a boca de caralho? Não bastava a merda?!!

Cena 10

Subitamente Seu BENEDITO entra na sala.

BENEDITO - Desculpe a indiscrição, Excelência, mas é que Dona Maria


Teresa do Cerimonial mandou perguntar se está faltando papel...

PRESIDENTE - Papel? Que papel, Seu Benedito?...

BENEDITO - Higiênico. (Tempo. Aponta) Na sua cabine.

PRESIDENTE - Sim. Está.

BENEDITO - Vou providenciar.

Seu BENEDITO sai e volta.


BENEDITO - Posso voltar de novo sem “pedir licença”?

PRESIDENTE - Já disse que sim, Seu Benedito. Pode entrar e sair. Aqui
é um lugar público, aberto, transparente, democrático, onde também falta
papel higiênico!...
Seu BENEDITO sai.

Cena 11

DADO - Glorioso! Este homem só pode ter caído do céu! É um anjo...


Não é esse demônio que só fala merda, caralho, porra e puta-que-o-pariu!
Boca-suja!

PRESIDENTE - Que é isso? Toda hora me cutuca por causa de palavrões?


Sua visão sobre um presidente é muito podre...

DADO - Só reparei que você que falava merda toda hora.

PRESIDENTE - Merda não é palavrão!

DADO - É sim! Na tevê, eu não posso falar merda... Portanto, para mim,
é palavrão!

PRESIDENTE - Lá não pode e aqui, na sala do Presidente, pode? Você


acha que pode?

DADO - Você não sabe a dificuldade que é para uma cara que vive às
custas de palavrão, não poder falar nenhum...

PRESIDENTE - Quem pôs essa regra?

DADO - Alguém da televisão, da Igreja, do governo...

PRESIDENTE - Não, não. Não vem culpar o governo, não. Disso nós
não temos culpa!

DADO - Têm, sim.

PRESIDENTE - Você se acha especial porque pode falar um monte de


mer... de bosta nos seus shows. Escuta, como você acha que as pessoas
conversam no poder? É impossível tomar decisões sem soltar uns
palavrões!

DADO - Você era um homem sério. Agora é esse deboche, esse cinismo.
Perdeu a medida.
PRESIDENTE - Não vem não. Você me conhece desde muito bem!...
(Indica o porta-retrato. Tempo) Nunca tive medida.

DADO - Tá vendo? Cinismo. Sempre!

PRESIDENTE - Justo você vai me falar de cinismo?... Você é o pior dos


cínicos! Aposto que me propôs este negócio de Bobo da Corte para depois
zombar de mim e tudo isso aqui! Mas a mim você não vai fazer de besta
de novo, não!

DADO - Vou, sim!

PRESIDENTE - Você acha que tudo é feito para rir.

DADO - Nem tudo... Mentira, tudo é feito para rir.

PRESIDENTE - Você acha que todo mundo nasceu para você poder
ridicularizar.

DADO - Somos risíveis por natureza, meu caro Watson. Mal a gente
nasceu e já batem na nossa bunda. A gente chora. Quando é criança e
faz coisa errada, a mãe bate na bunda e a gente chora. Cresce um pouco,
descobre o amor, leva um pé na bunda e chora. Tenta ganhar a vida,
remar contra a maré, não agüenta o tranco. Só se esfola! Esfola a bunda!
E chora, chora e chora! Até que um dia se vai dessa vida. É enterrado e
vira uma caveira. Ganha um sorriso eterno. Então, eu pergunto: Para que
resistir?...

PRESIDENTE - Resistir?

DADO - Ria logo a vida inteira!

PRESIDENTE - Se for alguém como o seu ídolo, o Seu Benedito, não vai
rir nunca.

DADO - Pois é. Um cara que não quer imaginar nada para não se
corromper... Nunca que ele olharia aquelas fotos com o mesmo olhar que
você.

PRESIDENTE - De onde você tirou a idéia de um companheiro de partido


que veio se vingar por causa de chifres?...

DADO - Não era essa a intenção... É que realmente aquele cara das
fotos... Ele existe... Ou melhor, não existe. Ele está em várias fotos, mas
nunca ninguém sabe quem é. Eu até fantasiei que o cara que vai vir te
matar...

PRESIDENTE - Caralho, você tem uma imaginação fértil!...

DADO - Sim, sou um comediante, não sou um político.

PRESIDENTE vai até a porta e chama:

PRESIDENTE - Seu Benedito! Seu Benedito!?... Pode vir retirar os copos


vazios... (Tempo) Caralh... (Disfarça) Puxa, o homem interrompeu a gente
o tempo todo e quando eu preciso dele, ele não está. Evaporou...

DADO - Vai ver acabou a campanha eleitoral dele!

Cena 12

Seu BENEDITO entra.

BENEDITO - O senhor me chamou, Excelência?...

PRESIDENTE - Sim. (Toma fôlego) Seu Benedito, eu estava aqui


conversando com meu amigo Dado...

BENEDITO - Eu sei, eu vi... Várias vezes.

PRESIDENTE - Pois, então... E nós discutíamos sobre sua maravilhosa


teoria de Plas... Plad...

BENEDITO - Platão.

PRESIDENTE - Esse mesmo. Agora, seu Benedito, o senhor poderia


matar uma curiosidade que eu tenho?

BENEDITO - Claro! Se a curiosidade é sua, realmente é o senhor que a


tem.

PRESIDENTE - Exatamente. Seu Benedito, o que o senhor faz para não


imaginar... não imaginar... coisas?

BENEDITO - Eu sigo rigorosamente minhas tarefas. Minha função é servir


água ou café. Duas opções básicas, que derivam em mais duas variantes:
água normal ou gelada; café com açúcar ou adoçante. São apenas quatro
opções, entre as básicas e as variantes, nas quais eu tenho que me
concentrar. Faço o que tem que ser feito. Fazer é mais importante...
DADO - Alguém tem que pensar o que vai ser feito.

BENEDITO - Sou um servidor público, recebo do contribuinte um salário


para que, de sala em sala do gabinete, eu ofereça quatro opções: água
normal ou gelada; café com açúcar ou adoçante. Só isso. Não me desvio
da minha função. O que ouço esqueço, o que vejo, apago. Sem resquícios,
sem memória, sem imaginação. Assim, sou feliz.

PRESIDENTE - Seu Benedito, sou obrigado a confessar que não entendo


como é que pessoas do povo conseguem ser felizes desta maneira...

BENEDITO - Exatamente. Elas não imaginam o que se passa aqui


dentro...

PRESIDENTE (Dispensando) - Muito obrigado, Seu Benedito. Boa noite.

Seu BENEDITO começa a sair. O PRESIDENTE o interrompe.

PRESIDENTE - Só mais uma pergunta. (Tempo) De que maneira chegou


a estas conclusões?

BENEDITO - “Assim como o pintor que observa entretido do alto da


montanha para pintar toda a paisagem, para conhecer a natureza dos
povos é preciso ser príncipe, e para conhecer a dos príncipes, ser do
povo”.

DADO - Lindo! Maravilhoso.

PRESIDENTE - Confesso que nunca havia pensado desta maneira.

BENEDITO - Nem eu. A frase não é minha. É Maquiavel.

DADO - Olha, Seu Benedito, sou seu fã.

BENEDITO - Não deveria. Eu não daria autógrafos. Acho isso uma


idiotice.

PRESIDENTE - Boa noite, Seu Benedito.

BENEDITO - Boa noite, doutor. Boa noite, Excelência.

Seu BENEDITO sai.


Cena 13

DADO - Bem, eu não preciso vir mais aqui. O Presidente já desfruta do


melhor Bobo da Corte jamais imaginado.

PRESIDENTE (Irado, possesso e descontrolado) - Você tem razão! Quer


saber?! Esse seu papo, essa sua brincadeirinha já me deram no saco!
(Subitamente calmo:) Vá ààààààà merda.

DADO - Seu problema, Presidente, é não gostar e não querer prestar


atenção em nada. Qualquer coisa que não seja um discurso, que não seja
o seu discurso, te dá sono...

PRESIDENTE - Eu gosto de política, você de contar suas piadas... Qual


é o problema?

DADO - Tudo bem, se for futebol até que o senhor presta atenção...
PRESIDENTE - Resolveu me afrontar, agora?!

DADO - Não, estou oferecendo as minhas quatro opções: água gelada ou


normal; café com adoçante ou açúcar.

PRESIDENTE - Eu sabia que alguma coisa naquele imbecil tinha mexido


com você...

DADO - E muito! Disse e fui claro: me tornei fã do cara!

PRESIDENTE - Eu também gosto do Seu Benedito, mas não quero ser


igual a ele.

DADO - Sei! Gosta dele, mas tem um amor intenso por esta cadeira!

PRESIDENTE - Você ficou assustado quando gritei para você sair da


minha cadeira?...

DADO - Não. Interpretei. Bem diferente. Sou também um ator, aquele


ofício que é o estágio básico de quem quer ser comediante.

PRESIDENTE - Devo confessar, achei que era um jogo mais fácil... Odeio
quando alguém olha para aquela cadeira... Se pegar um idiota sentado ali,
sou capaz de matar... Estou falando sério.

DADO - E tem alguém rindo, aqui?

PRESIDENTE - Não. Só que você está com estas covinhas típicas de


quem não está levando a sério o que o outro fala. Isso me irrita.

DADO - O que te irritou foi que eu mostrei o celular do Presidente... Como


é que um homem misterioso, que surgiu do nada no gabinete presidencial,
conseguira furtar o celular? Eles nem tinham se encontrado antes! Você
caiu feito um bobo!

PRESIDENTE - Usei as armas que eu tinha. Política como arte do


possível...

DADO - O possível é muito limitado, concorda?... Tem que jogar com o


absurdo, o inusitado! É o único jeito da criatividade se colocar a serviço do
poder! Tipo: brigar com a mulher antes de cada campanha...

PRESIDENTE - Acho que daria certo. E, no mínimo, seria bem mais


barato!

DADO - Mas você tremeu quando eu joguei a história da vesguinha!

PRESIDENTE - Óbvio que não, até minha mulher sabe que eu gosto de
uma vesguinha. É gosto. Não se discute... E depois, não precisava tratar
como uma perversão.

DADO - Foi você que falou em perversão...

PRESIDENTE - Sim, mas estava fazendo o meu papel!

DADO - Mas você interpreta o seu papel como você quer.

PRESIDENTE - Não, aquele ali é você.

DADO - Não sou.

PRESIDENTE - É.

DADO - Não sou.

PRESIDENTE - É.

DADO - Você não fez exatamente o seu papel, mas uma vaga idéia do
medo que teria se chegasse um invasor, alguém armado confrontando o
seu poder...

PRESIDENTE - E você? Que é profissional? Sua voz é péssima.


DADO - Eu não estava imitando a voz de ninguém, é meu timbre
misterioso...

PRESIDENTE - Não estou falando do jogo... No seu programa, aquelas


imitações, aquilo é um lixo...

DADO - Aquele lixo insere você na História muito mais que aquele bolo de
caricaturas idiotas ali!

PRESIDENTE - Não preciso de você para entrar na História. Você é


um insatisfeito, um autoritário, nada democrático que quer impor suas
piadinhas para a audiência!...

DADO - Agora eu entendo o Grimaldi!

PRESIDENTE - Outro desconhecido! Chega! (Tempo) Quem é esse?

DADO - Um bufão... Deixou o palácio e foi trabalhar nas ruas para o povo.
Um Bobo da Corte que fraquejou.

PRESIDENTE - Fraquejou?

DADO - É. Fraquejou e virou palhaço. Grimaldi: o pai dos palhaços! E


ainda teve orgulho disso, o tolo.

PRESIDENTE - E tem diferença entre ele e você?

DADO - Se tem? Claro! Sou um comediante. O comediante não se expõe


assim. Fazemos uns rirem dos outros. Já o palhaço se escancara, dá a
cara a tapa e deixa que riam dele próprio. Ele é o idiota, o bobo, o ridículo.
Protege demais a platéia. É um vendido. Se entrega demais... Eu não
aceito.

PRESIDENTE - E qual é o problema de ser ridículo? Olha só para mim...


Sou o Presidente... É ridículo.

DADO - Você olha para o que eu faço com maldade... Não aceita
brincar...

PRESIDENTE - Como não? Até antes do Seu Benedito entrar aqui na


sala, eu estava aqui feito bobo, fazendo de conta que meu amiguinho
era o Presidente que eu sou. Porra, eu me sentia brincando de casinha
com minha irmã de sete anos. Vá se foder, Dado! Não venha com
sentimentalismos baratos!
DADO - É isso! Sua irmã...

PRESIDENTE - Que tem ela?


DADO - Quando vocês tinham sete anos, brincavam, jogavam, sem noção
de nada. Sem dar atenção ao tempo que passava. Sabe, a primeira coisa
que passou na cabeça, logo que começamos a brincar, foi: se alguém
entra na sala e eu sou o Presidente, eu não sei quem é o cara, ninguém
deixou ele entrar... É explícito, esse cara vai matar o Presidente. Quem
não teria esse medo? Todo mundo tem medo da morte! Eu tenho um puta
medo de morrer! Se você acha que não tem, aí são outros quinhentos!

PRESIDENTE - Eu, realmente, acho que não tenho medo da morte...

DADO - A noção de tempo é o que interessa.

PRESIDENTE - Quê?

DADO - A noção de tempo é que dá o medo de morrer... Não ficaria nada.


Nem as minhas piadas, nem meu poder... Compreende?

PRESIDENTE - Sinceramente. Não.

DADO - As crianças não enxergam tão facilmente a possibilidade da


morte. A morte está longe para elas, por isso brincam com as coisas...
Brincar é perigoso. Brincar é desafiar a morte. E para brincar é preciso
imaginação. E seu Benedito tem razão. Imaginação gera poder. Isso é
pólvora, energia atômica. É perigoso! Muito perigoso, pois torna qualquer
um poderoso... Olha que contradição!... E eu que vivo disso?!... E nunca
entendi direito! Mas agora...

PRESIDENTE - Olha aqui, seu merda. Você ficou rico, encheu o cu de


dinheiro com seus shows, com a sua rádio e, depois, com suas tevês no
interior. Fez shows para ajudar minha primeira candidatura a vereador.
Ganhou rios de dinheiro. Tanto, que até fez doações para minhas primeiras
campanhas. Coisa que paguei, como é certo, com o que eu podia. Isso
não te dá o direito de querer que eu imagine as merdas que você imagina,
correto?!

DADO - E você quer que eu imagine o quê? O que eu vou imaginar? O


que você vai imaginar? Um mundo melhor? O fim das guerras? Acabar
com o aquecimento global? Puta mediocridade!... Presidente, quando eu
falo que você me olha com maldade, é que eu acho que você deveria
recuperar o seu olhar de criança. Seja uma criança no olhar...

PRESIDENTE - Eu já vi pessoas pirarem, mas com tanta dose de pieguice,


nunca! Fora daqui! Fora!!

DADO olha o PRESIDENTE nos olhos por uns instantes. Dá uma risada
forçada e cínica e, com calma, sai batendo a porta.

PRESIDENTE - Vai embora, vai. (Tempo) O expediente acabou. Agora, é


um vinho, um charuto e olhe lá.

PRESIDENTE pega a caixa de charutos. Tempo. DADO abre a porta e,


somente, com meio corpo para dentro:

DADO - É porque você sabe que vai morrer, que você tem tanta ambição
de poder.

PRESIDENTE - E não é por esta mesma razão que você se tornou


milionário?

DADO retorna à sala.

DADO - Essa discussão funcionou mais que minha arma de plástico.


Saca a arma

PRESIDENTE (Saca uma arma real) - Tem pessoas que nunca reconhecem
que perderam. Sabe por quê? Porque já não têm mais condições de ver
que perderam.

DADO - Tudo bem. Ao vencedor as batatas!...

PRESIDENTE - Quanto medo, hein, Dado?

DADO - Acho, mesmo, que não faz mais sentido vir aqui, inventar
exercícios para que você compreenda melhor o seu poder.

PRESIDENTE - Acho que você brincou com fogo. Vai acordar mijado.
(Guarda a arma) Fique tranqüilo. Eu apenas blefei mais forte: jogo melhor
que você!

DADO - Porra, eu achei que ser um Bobo da Corte ajudaria o Presidente...


Talvez não tenha mesmo uma saída.

PRESIDENTE - Nunca acreditei que houvesse.

DADO - Ou, talvez, a esperança sejam caras como o Seu Benedito. Esse
sabe muitas coisas!
PRESIDENTE - Não sabe muitas, não, mas certamente sabe a pior...

DADO - Sabe o quanto somos ridículos?...

PRESIDENTE - Não. O filha da puta sabe citar Maquiavel.

DADO sai em silêncio. PRESIDENTE dá um tempo. Vai até a porta e


certifica-se de que ele está longe. Volta e pega o telefone.

PRESIDENTE - Maria Teresa?... (Tempo) Claro que sou eu, o Presidente.


Ou tem alguém imitando a minha voz por aí?... (Tempo) Está desculpada,
doutora. Me diga uma coisa, como é o nome daquele senhor que serve
água e café aqui no gabinete? (Tempo) Benedito? Seu Benedito. (Tempo)
Esse mesmo. (Tempo) Faça a gentileza de transferi-lo para outro lugar...
(Tempo) Não, não. Não fez nada... (Tempo) Sei, trinta anos aqui no palácio,
todo mundo sabe. Apenas quero renovar. Mande-o para o Congresso,
pros gabinetes dos Senadores da oposição... Não, melhor, mande-o
para algum ministério... Já sei! Para o da Cultura, ele vai se dar bem lá.
(Tempo) É que eu percebi que ele gosta daquele tipo de conversa deles
lá. E, depois, ali nunca acontece nada, não correremos nenhum risco...
(Tempo) Deixe para lá. (Tempo) Cumpra a minha ordem, sim. (Tempo)
Obrigado. Boa noite!

O PRESIDENTE senta-se em sua cadeira, saca um charuto da caixa,


prepara-o e acende. Enquanto fuma, a luz cai lentamente. Cresce a
música “Não leve nada a sério” (Guilherme Lamourier), na versão das
Frenéticas.

FIM

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