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Everton Rangel

Camila Fernandes
Fátima Lima
(Orgs.)

(Des)Prazer da norma

(Des)Prazer da norma
As tensões que se en- A categoria de dissidência,
trelaçam nas fronteiras entre que atravessa parte das contribui-
o público e o privado nestas ções, certamente permite apontar
nossas sociedades modernas para esse impulso ambivalente, tra-
ensejam inúmeras teorias e balho contínuo da experiência vital,
modelos interpretativos. Mui- em que a autoafirmação enfrenta o
tos deles se entrecruzam nesta desafio inquietante da Esfinge. Ali
coletânea, votada a perseguir, onde mais viva reponta a des-ordem
com base em pesquisa empíri- ou a anti-ordem, também se dese-
ca sistemática, as vozes, ecos, nha uma ordem, mais reveladora do
ressonâncias, que instituem, que a aparente, que se expressa no
desafiam, soerguem e abatem senso comum cotidiano.
os sujeitos, na prática desse A coletânea é ainda teste-
“paradoxo da subjetivação” e munho da eficiência desse coletivo
dessas “artes da existência” a dinâmico que é o NuSEX – Núcleo
que se referiu Foucault – e que de Estudos em Corpos, Gênero e
perpassam a filigrana dos arti- Sexualidade, lócus universitário
gos aqui reunidos. de enfrentamento das adversida-
A ambiguidade do título des que nunca cessam de crescer
remete justamente aos jogos neste país, instado a avançar na
complexos em que a norma e produção de um conhecimento so-
o desejo se engatam – redivivo bre as dimensões mais invisíveis,
Jano – pelas vias fascinantes sutis – subterrâneas tantas vezes –
das experimentações com a da vida social; essencial para argu-
vida e suas pulsões multifor- mentar com propriedade e autori-
mes. Não à toa têm preeminên- dade na defesa de uma “sociedade
cia na obra os temas da sexua- livre de discriminações de raça,
lidade e do gênero, cada vez gênero, classe, sexualidade, entre
mais aguçados numa cosmolo- outras formas de injustiça social”
gia que, por um lado, pro-cura – como dizem os organizadores, de
petrifica-los em fórmulas nor- forma mais que oportuna.
mativas naturalizadas e, por
outro, exalça as virtudes da Luiz Fernando Dias Duarte
liberdade, da criatividade, da Museu Nacional/UFRJ
singularidade – da transgres-
são, no limite.
Everton Rangel
Camila Fernandes
Fátima Lima
(Orgs.)

(Des)Prazer da norma
© Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima, 2018
© Papéis Selvagens, 2018

Coordenação Coleção Stoner


Rafael Gutiérrez, María Elvira Díaz-Benítez

Projeto gráfico e diagramação


Martín Rodríguez

Arte de capa
Aline Besouro, Bendita Gambiarra, 2017

Edição de imagem
Nathalia Ferreira Gonçales

Revisão
Brena O’Dwyer e Carolina Maia

Conselho editorial
Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP)
Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)
Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá)
Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

D473 (Des)prazer da norma / Organizadores Everton Rangel, Camila


Fernandes, Fátima Lima. - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2018.
412 p. : 16 x 23 cm - (Stoner; v. 8)

Bibliografia: p. 387-410
ISBN 978-85-85349-06-6

1. Identidade de gênero. 2. Minorias sexuais - Condições sociais.


I. Rangel, Everton. II. Fernandes, Camila. III. Lima, Fátima. IV. Título.
V. Série.

CDD 306.76

[2018]
Papéis Selvagens
papeisselvagens@gmail.com
papeisselvagens.com
Sumário

Prefácio
Governo, Desejo, Afeto
Maria Elvira Díaz-Benítez, Everton Rangel, Camila Fernandes 11

Governo

Gestão de corpos, regulação de integridades: uma reflexão sobre


direitos e intersexualidade
Barbara Pires 45

Dos limites de uma promessa: reflexões sobre a “terapia de mudança


de sexo”
Lucas Freire 67

Das ruínas do corpo sudaca: marcas de vulnerabilidade em


performances artísticas
Nathalia Ferreira Gonçales 93

Aleeegreeem-se!!: sabores negros, paladares brancos


Samara Freire 115

Raça, gênero e sexualidades: interseccionalidades e resistências


viscerais de mulheres negras em contextos bio-necropolíticos
Fátima Lima 141

Desejo

O “princípio da putaria” nas orgias masculinas: diferença e


singularidade no corpo orgiástico
Victor Hugo de Souza Barreto 161

Entre pecados e mercados: gênero, religião e práticas pedagógicas no


consumo de artigos eróticos
Lorena Mochel 183
Bombom: esse escuro objeto do desejo
Michel Carvalho 207

Matérias, corpos e lugares: o trabalho no barracão de escola de samba


e a construção de homossexualidades masculinas
Lucas Bilate 223

As muitas faces de um livro: sexualidade e moralidade no mercado


editorial brasileiro
Nathanael Araújo 247

Afeto

Descasadas. Ruptura conjugal e individuação


Carolina Castellitti 275

O tempo do cuidado: batalhas femininas por autonomia e mobilidade


Camila Fernandes 297

Escritas lésbicas, construções afetivas: uma análise do boletim Um


Outro Olhar
Carolina Maia 321

Em meio a sonhos e normas: amor, família e futuro entre três mulheres


trans/travestis
Oswaldo Zampirolli 345

Amores Censurados: sobre gritos, olhares, tapas e fissuras


Everton Rangel 367

Referências bibliográficas 387


Governo, Desejo e Afeto

María Elvira Díaz-Benítez, Everton Rangel


e Camila Fernandes1

Este livro é parte de um esforço coletivo iniciado no ano de


2013 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional (PPGAS/MN), da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).  Naquele ano, uma série de fatores confluíram
para a criação do NuSEX – Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero
e Sexualidade. A chegada da professora María Elvira Díaz-Benítez
ao programa veio de encontro aos trabalhos desenvolvidos pelos
professores Luiz Fernando Dias Duarte e Adriana de Resende
Barreto Vianna, cada qual com um longo histórico de pesquisas
nos campos dos estudos de gênero, sexualidades, moralidades
entre outros temas correlatos. Além deste cruzamento fecundo de
interesses e trabalhos, outra linha de força veio adensar pontos
estratégicos de convergência; a afinidade e a aproximação dos alunos
dos respectivos professores do núcleo, que a partir de diferentes
pontos de intersecção, estabelecem pesquisas, diálogos e inúmeras
pontes de comunicação entre matrizes teóricas e metodológicas das
mais variadas vertentes.
É neste contexto híbrido de encontros, proximidades e
diversidades que nasce o NuSEX, porém, é crucial ressaltar que este
agenciamento não se limita a estes professores, nem tampouco a
seus respectivos alunos, mas é parte de um processo histórico em
que lutas, pesquisas, militâncias e ativismos foram travados em
busca de uma sociedade livre de discriminações de raça, gênero,
classe, sexualidade, entre outras formas de injustiça social. Com esta
afirmação, queremos dizer que nossa existência enquanto grupo é
resultado do trabalho relacional de muitos outros pesquisadores que
estão dispersos ao longo das páginas dos 15 artigos que compõem
esta coletânea, além daqueles que se encontram registrados nesta

1
María Elvira Díaz-Benítez é professora do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional (MN), Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), Everton Rangel é doutorando e Camila Fernandes é doutora pelo
mesmo Programa.
12 | (Des)Prazer da norma

apresentação. Portanto, o emprego da palavra “coletivo” na primeira


frase desta introdução não é de mero recurso descritivo, mas diz
respeito ao espírito de um grupo que ao longo de seus cinco anos
de existência tem agregado um esforço consistente em manter viva
as trocas acadêmicas, afetivas e intelectuais mesmo em um contexto
político tão adverso para a produção do conhecimento.
Ao falar das adversidades, estamos nos referindo a
momentos críticos em que a Universidade Pública têm sido
alvo de processos políticos brutais de precarização que atingem
frontalmente a maneira de produzir, sustentar e compartilhar
o conhecimento. Registrar este processo de fragilização é parte
fundamental das forças políticas que atravessam um livro deste
porte.
A partir de 2014 até os dias atuais, inúmeros cursos de
graduação e pós-graduação em várias partes do país sofreram
cortes orçamentários avassaladores no repasse de verbas do
governo. Desde então, os humores e engajamentos que possibilitam
a manutenção das atividades acadêmicas têm sofrido impactos
significativos. O investimento em Ciência e Tecnologia foi reduzido
consideravelmente, sobretudo aquele voltado ao campo das ciências
humanas. Ademais, a intensificação de um discurso sobre a “crise
do Estado” acirrou um clima de penúria econômica em que diversos
auxílios, projetos, bolsas e pesquisas foram diretamente afetadas e/
ou canceladas. Este é o caso do Edital APQ4 da FAPERJ (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) que em 2015, mesmo
sendo aprovado, foi inviabilizado devido aos cortes orçamentários
para publicações, o que impossibilitou a viabilidade deste livro
naquela ocasião. Os artigos produzidos foram engavetados, enquanto
um aprofundamento de crises, cortes e faltas se intensificou nos
programas de pós-graduação em todo o país.
Além dos muros da universidade, durante o ano de 2015,
acompanhamos tentativas contundentes de ataque aos direitos
das mulheres, a exemplo da discussão sobre o “PL 5069/2013” de
autoria do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, na tentativa
de alterar garantias consolidadas às mulheres vítimas de violência
sexual, sobretudo no acesso a profilaxia e no direito ao aborto legal.
No ano de 2016, sofremos o impedimento da primeira mulher eleita
como presidenta do Brasil, em meio a gritos conservadores que
enalteciam os valores das “famílias de bem” enquanto clamavam o
Prefácio | 13

fim da “ideologia de gênero” nas escolas. Logo no início de 2017,


Dandara dos Santos foi espancada até a morte de maneira brutal
por um grupo de homens na cidade de Fortaleza. As imagens
deste crime atroz foram divulgadas por um dos participantes,
fato que desencadeou a repercussão internacional deste episódio
assombroso de transfobia. Estes e outros episódios fizeram parte
do campo de “golpes” e “embates” no cenário das discussões de
gênero e sexualidade na política brasileira, conforme analisam Díaz-
Benítez e Gonçales (2018) em ensaio que discute as transformações
relativas a este panorama. Neste ano de 2018, perdemos Marielle
Franco, mulher, negra, mãe, favelada, quinta vereadora mais votada
da cidade do Rio de Janeiro e militante de Direitos Humanos,
brutalmente executada em um crime bárbaro e infelizmente
ainda não resolvido pelas autoridades do Estado. Se evocamos a
presença de Marielle nesta introdução, é porque sua atuação como
parlamentar representava uma grande inspiração aos ideais de
mundo que o NuSEX acredita. Seguir adiante sob o canto da sua luta
é uma obrigação central que nos constrói como sujeitos políticos.
Como se tais processos não fossem suficientes para atingir o
cotidiano acadêmico, no domingo 2 de setembro de 2018 o palácio
do Museu Nacional foi consumido por um incêndio devastador,
uma perda sem precedentes para a história dos povos que foram
vítimas do imperialismo colonial, aqueles que hoje revisitavam esse
passado de apagamento e esquecimento procurando possibilidades
de imaginar um futuro alternativo às lógicas autoritárias e
aniquiladoras da diferença cultural. Na sucessão de todos estes
eventos, vividos em um espaço tão curto de tempo, fomos todos de
diferentes maneiras forçados a caminhar em meio às perdas, faltas,
ausências, ruínas e dores nem sempre simples de serem enunciadas
e tornadas dignas de luto, como escreve Judith Butler (2015).
Em seus trabalhos, a antropóloga indiana Veena Das (2007)
acompanha suas interlocutoras frente a inúmeras violências que
“descem ao ordinário”, mostrando os esforços contínuos feitos pelas
pessoas para que os seus respectivos mundos sejam habitados em
meio às dores, traumas e feridas de guerra. Guardadas as devidas
proporções, não é exagero dizer que a reunião destes artigos vai
além das discussões que cada um se propôs a realizar, é parte desta
universidade que entre trancos e barrancos procura se manter
ativa, reunindo pessoas, agregando discussões e se esforçando
14 | (Des)Prazer da norma

coletivamente para que o sentido da luta pela educação pública e


de qualidade não se perca em meio a tantos desmandos exercidos
em tempos sombrios, obscurantistas e em pleno avanço da extrema
direita em diferentes regiões do mundo.  
Por todos esses motivos este livro celebra a capacidade
de atravessarmos contextos adversos de maneira conjunta. Cada
pessoa envolvida neste projeto acreditou que era possível seguir
adiante, escrevendo, revisando, doando tempo, trabalho e escuta,
mesmo em meio à produção da descrença e ao desmonte das
nossas instituições. Aqui, encontram-se trabalhos que partem
de diferentes momentos acadêmicos, alguns de dissertações de
mestrado já defendidas, outros de projetos de doutorado que estão
em curso e alguns são produto de teses de doutorado concluídas.
Entre todos artigos há um ponto comum que se destaca: todos os
autores apresentam etnografias consistentes e caminhos originais,
perseguidos de modo a evitar conclusões generalizantes. Ao longo
destas páginas procuramos agregar discussões que adentram
territórios existenciais plenos de ambivalências, nos quais o (des)
prazer e a norma andam em conexões íntimas, profundamente
reversíveis e intensamente conectadas. Finalmente, com esta
publicação comemoramos 5 anos da existência do NuSEX e os
50 anos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS) do Museu Nacional (MN), que, neste fatídico ano, completa
os seus 200 anos.

Percursos e questões

O NuSEX carrega desde sua conformação a marca da categoria


dissidência, não apenas pela fertilidade dessa noção nos estudos
e políticas queer que muito nos interessam, mas também porque
a mesma remete a uma agenda de pesquisa bastante específica
que ficou materializada no livro Prazeres Dissidentes (2009), do
qual María Elvira foi co-organizadora. Naquele livro, indagávamos
sobre experiências que no território do sexo/gênero estariam
operando nas fronteiras das eróticas normativas e também sobre
as configurações de corpos ininteligíveis, que, por tal, constituiriam
expressões, desejos, prazeres e práticas perturbadoras. Como se
constituem? Como são vivenciadas? Anunciam novas categorias
Prefácio | 15

sexuais e identitárias? Como agem os diferentes marcadores sociais


da diferença na conformação de subjetividades e de identidades
coletivas alternativas? Como se reorganizam normatividades e
hierarquias em meio a apelos transgressores? Foram questões
discutidas naquele momento. Assim, variados universos receberam
atenção etnográfica, dentre os quais se destacaram os espaços de
sociabilidade de homens homossexuais, os de mulheres lésbicas
e os diversos contextos do mercado do sexo (online e off-line).
Foi indiscutível a interlocução do livro Prazeres Dissidentes com a
produção de Michel Foucault, Gayle Rubin, Judith Butler e outros
autores vinculados aos estudos queer, além de antropólogos que
têm sido fundamentais para a conformação do campo de estudos
em gênero e sexualidade no território nacional: Néstor Perlongher,
Peter Fry, aqueles associados ao CLAM (Centro Latino-americano
em Sexualidade e Direitos Humanos, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro) e ao Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da
Universidade Estadual de Campinas.
Naquele momento, estávamos movidos por um ímpeto
político, teórico e metodológico claro: contribuir para uma teoria
radical do sexo (Rubin, 1984), que viesse a ajudar na criação de um
pensamento libertador sobre o sexo. Para tal teoria, diz Rubin (1984,
p. 149), faz-se preciso “identificar, descrever, explicar e denunciar
a injustiça erótica e a opressão sexual”. Esse “espírito” do que
chamamos de dissidência foi vital na criação do NuSEX e continua a
inspirar muitas de nossas reflexões. Isso é perceptível neste volume,
por exemplo, no trabalho de Victor Hugo Barreto que descreve festas
de orgia entre homens no Rio de Janeiro, perguntando-se, dentre
outras questões, como a visitação de corpos por outros corpos
provoca nos picos de intensidade sensorial arranjos não previstos,
práticas e encontros inusitados do ponto de vista normativo.
Inspirou também, neste volume, as reflexões que Nathália Gonçales
elaborou sobre performances, bem como sobre as experiências
daqueles que as produzem. A autora examina práticas que vazam
aos imperativos sociais na medida em que agenciam o potencial
da crítica, tanto feminista quanto racial, articulada em circuitos
artísticos.  
Não obstante a dissidência se apresente como uma
importante ferramenta, as preocupações fundamentais desta
coletânea escoltam vários caminhos. É oportuno entender este
16 | (Des)Prazer da norma

livro como um reflexo das diversas trilhas temáticas e teóricas que


o NuSEX tem seguido desde o curto tempo de sua formação. Esses
percursos muito devem à influência acadêmica dos professores que
orientam os trabalhos aqui apresentados, assim como ao vigor com
o qual o coletivo tem recebido e assumido premissas da agenda
feminista, a saber, os modos de regulamentação do gênero. Como
sugere Judith Butler (2003), as normas existem através da prescrição
e reiteração contínua de comportamentos, gestos, discursos e atos,
fundados em uma matriz heterossexual. O gênero requer e institui o
seu próprio regime de inteligibilidade. Com Butler compreendemos
que, se o gênero é o aparato através do qual tem lugar a produção e
normalização do masculino e do feminino, ele é também o aparato
a partir do qual esses termos se desconstroem e desnaturalizam,
isto é, o fato do gênero estar radicalmente condicionado não
significa que esteja radicalmente determinado. A norma se abre
ao deslocamento e à subversão desde o seu interior. Nesse sentido,
a performatividade pode ser entendida como inextrincável ao
processo de (re)fazer e/ou deslocar o sujeito de gênero e a própria
ordem social.
Os artigos aqui reunidos discutem os diversos modos como
os sujeitos vivenciam os paradigmas do gênero: o âmbito dos
afetos (casamento, divórcio, cuidado dos filhos e amor romântico);
o âmbito dos desejos, do erotismo, da fantasia e da violência; e o
âmbito em que saberes e poderes atuam de modo mais vertical no
exercício de regulamentações. Em outras palavras, nosso interesse é
discorrer sobre como persistem e são atualizadas certas gramáticas
de gênero, interseccionadas por raça, classe e sexualidade, em
meio a governos, desejos e afetos, tríade que utilizaremos como fio
condutor da narrativa. Várias etnografias apresentadas neste livro
não necessariamente manifestam uma preocupação com as formas
como os sujeitos resistem às regulamentações ou as subvertem,
pois visam pensar sobre as artes da vivência por entre normas. Esta
perspectiva é enormemente inspirada em Saba Mahmood (2005),
autora citada em diversos artigos desta coletânea e cujas reflexões
apontam a necessidade de explorarmos os modos pelos quais os
sujeitos agem de forma a habitarem com empenho, esforço, luta e
engajamento as mais diversas normas sociais. A discussão proposta
pela autora coloca em cena o paradoxo da subjetivação (Foucault,
1982): o sujeito é habilitado por relações de subordinação
Prefácio | 17

específicas e apenas através das mesmas se torna apto a agir de


uma dada maneira. Não se trata, portanto, da conceituação da
agência como livre escolha e nem mesmo da suposição de que os
sujeitos são aqueles que somente seguem ordens.
Em sua crítica à teoria da performatividade proposta por
Butler (2003), Saba Mahmood infere que há uma inclinação dualista
na forma de pensar as normas: ora a partir de sua atualização, ora
através de sua subversão. O problema estaria no fato da agência
ser localizada por Butler expressivamente nos momentos de
ressignificação das normas. Mahmood defende que seria preciso
não delimitar a priori os modos de agência, já que estes revelam-
se não apenas na capacidade de resistir ou subverter, mas também
como algo que se realiza de múltiplas maneiras. Partindo desse
ponto de vista, a autora demonstrou em seu livro, Politics of Piety,
como mulheres adeptas a um movimento político religioso no
Egito trabalhavam sobre si mesmas de modo a constituírem as suas
condutas como virtuosas. A agência foi entendida como manifesta
no exercício cotidiano de fazer de si uma muçulmana melhor.
Mahmood mostra a capacidade de agência possível no interior de
relações de subordinação historicamente específicas e também
como essas ideias sobre subordinação são vividas no âmbito do
cotidiano. Pode-se dizer que está em jogo no trabalho da autora
a possibilidade de formular uma teoria da agência que leve em
consideração noções de sujeito que nem de longe se esgotam na
imaginação liberal que alimenta as políticas feministas. Levado ao
limite, o projeto de Saba Mahmood não é apenas o de nos ofertar
uma antropologia do Islamic Revival, mas também o de fazer seu
material etnográfico falar sobre a normatividade dos projetos
emancipatórios.
Em contrapartida, deveríamos nos perguntar sobre os
efeitos políticos de uma análise centrada no habitar às normas.
Se a empreitada de Mahmood pode ser pensada como uma
crítica antropológica aos ideais de fundo que norteiam as mais
variadas práticas feministas, cabe-nos atentar para o risco da
aposta de analisar o engajamento dos sujeitos com as normas se
enrijecer a ponto de enfraquecer o compromisso feminista com a
transformação social. Os aspectos perversos da vivência das normas
não podem ser obliterados, bem como não podemos perder de
vista que, ainda que discordemos quanto ao que idealizamos como
18 | (Des)Prazer da norma

transformação, a própria teoria social pode ser transformadora


Butler (2004). As proposições analíticas sugerem ângulos de
visualização dos fenômenos sociais que não necessariamente
correspondem às doxas disseminadas e que podem informar as
práticas de figuras públicas que ocupam posições estratégicas de
poder. Não estamos sugerindo que o analista pode ou deve per
se definir o sentido da transformação, e sim que as formulações
antropológicas fazem parte dos cenários políticos nos quais os
antropólogos, como sabemos, são atores que, tais como outros,
ocupam lugares sociais a partir dos quais disputam e acionam
significados, recursos, agendas, pessoas e redes. É deste ângulo
que a teoria social pode ser vista como transformadora, mesmo
não sendo sozinha suficiente à realização das mais variadas
demandas dos mais variados feminismos. O trabalho de Mahmood,
ao mesmo tempo em que guarda o potencial de nos chamar atenção
aos contornos e às fronteiras da nossa imaginação política, nos
obriga a pensar sobre como as nossas etnografias circulam e como,
por intermédio delas, nos colocamos contra a injustiça social e
defendemos certos mundos possíveis, mas não outros.   
Parece suficiente sinalizar que o que estamos tentando
dizer é que se inicialmente abjeção e dissidência nos permitiam
ressaltar que existem regras, vidas, prazeres e relações nas margens
do social, agora desejamos explorar também os modos como os
sujeitos movimentam seus mundos dentro das normas e governos
que os constituem. Seria, no entanto, bastante limitado entender
este movimento como uma simples mudança de ênfase. Estamos, na
verdade, interessados na combinação de perspectivas e em refletir
sobre a dissidência não apenas como discursos/práticas desveladas
por sujeitos que se querem transgressivos, como também por
aqueles que, distante deste tipo de motivação, realizam em suas
vidas cotidianas “pequenos” gestos que deslocam o mundo a duras
penas. Nesta coletânea, tal ênfase é particularmente clara no artigo
de Camila Fernandes. Pode-se dizer que a aposta mais generalizada
se centra então na ideia de ambivalência, demarcada já no título
do livro que claramente convoca à percepção de que tanto prazer
quanto desprazer confluem na experiência daqueles(as) que
habitam normas, que, por vezes, conflitam umas com as outras.
Sujeitos que cultivam a adesão a projetos de vida normativos no
quesito religioso podem em certos registros da vida, em certos
Prefácio | 19

contextos, adotarem práticas que contorcem o conjunto de práticas


e saberes que lhes servem de referência e que os mesmos tendem
a cultivar no plano ordinário. Os leitores encontrarão neste livro
descrições minuciosas de processos que revelam deslocamentos,
inconsistências, ambiguidades, incertezas e vacilações em torno
das normas que articulam o horizonte das ações e das expectativas
sociais. Encontrarão formas de fracassar, que, sempre de maneira
singular, atentam para os limites das normas e para os limites da
possibilidade dos sujeitos forjarem a si mesmos de acordo com
desejos individuais, atravessados pelas coletividades, e de acordo
com os modos bons e belos de ser e de se portar vigentes em cada
contexto, em cada situação da vida.
A crítica de Schielke (2009) à etnografia de Mahmood
enquanto produto intelectual revelador de “histórias de sucesso”
aponta justamente a necessidade de percorrermos o caminho
que diversos autores nesta coletânea seguiram: descrever e
analisar práticas sociais que constituem, demarcam e sugerem a
ambivalência das normas no cotidiano. Se há vitalidade – luta, dor e
prazer, se vinculando continuamente –, quando alguém efetiva uma
conduta virtuosa no interior de certas normas, pode existir também
uma aposta radical no desfazer de si no interior das prescrições
sociais. Falência, autodestruição, passividade e negatividade são
vistos, por Jack Halberstam (2011), como possibilidades analíticas-
políticas que se contrapõem à ênfase na formação dos sujeitos e
que requerem a caracterização do deixar de ser, pois o vir a ser
é encarado como entranhado ao modo capitalista de produção
e às promessas de sucesso e reconhecimento sempre escassas,
desiguais e excludentes. Trata-se da deflagração da urgência dos
modos de evasão. Sabemos, porém, que os sujeitos que habitam
normas podem se sentir repletos de tédio, insatisfações e mágoas,
e, concomitantemente, podem imaginar um futuro outro, dias
melhores, a felicidade por vir e o sucesso ainda a alcançar. O desfazer
dos sujeitos não está necessariamente em oposição ao fazer. Se
as normas existem em dinâmicas sociais passíveis de serem
descritas, tanto a estabilidade quanto a instabilidade das múltiplas
respostas individuais devem ser consideradas. O questionamento
das fórmulas de sucesso e de felicidade atravessa a compreensão
das formas de participação dos sujeitos.
Não se busca aqui simplesmente contrapor uma agenda
20 | (Des)Prazer da norma

de pesquisa a outra, como se proposições teóricas e políticas se


anulassem, mas sim realizar um trajeto em busca das várias portas
de entrada e de saída que permitiram aos autores desta coletânea
descreverem esperanças, negatividades, prazeres, perigos,
desprazeres, mortes, expectativas e realizações, sempre a partir de
relevos distintos e do realce de aspectos específicos. A ambivalência
é uma aposta etnográfica na complexidade da vida ordinária que
demanda dos(as) antropólogos(as) o reconhecimento dos marcos
a partir dos quais certas práticas são categorizadas como agência,
resistência e dissidência. Laidlaw (2002, p. 315) desconfia que
“apenas as ações que contribuem para o que o analista vê como
estruturalmente significativo contam como agência. Sem rodeios,
nós somente as marcamos como agência quando as escolhas das
pessoas parecem ser corretas para a gente”.2 Por isso, insistimos:
qual é a abrangência e quais são os limites dos repertórios políticos e
antropológicos? Não se trata de denunciar a veiculação de discursos
políticos e morais através da pesquisa acadêmica. A neutralidade
axiológica é uma falácia. O perigo existe quando não estamos atentos
às conformações histórico-culturais que nos permitem enquadrar os
fenômenos. Para além da explicitação das nossas modalidades de
enquadramento, devemos questionar os processos de conformação
e sedimentação dos quadros disponíveis. Através desse tipo de
trabalho reflexivo contínuo, infindável, podemos deslocar as nossas
perguntas e ver as nossas próprias modalidades de enquadramento
sujeitas a uma transformação contínua. O esforço do NuSEX tem
sido, portanto, o de não trabalhar com a pressuposição de um único
e adequado frame, para novamente lembrar Butler (2015).

Governo: corpos e formas de habitar as experiências de vida

Que governos são esses que criam corpos generificados e


que os submetem a verificações? Como os corpos são fixados por
meio do que Foucault chamou de dispositivo? Quais são os roteiros
morais e emocionais que certos indivíduos e instituições acionam

2
No original: “Only actions contributing towards what the analyst sees as
structurally significant count as instances of agency. Put most crudely, we only mark
them down as agency when people’s choices seem to us to be the right ones”.
Prefácio | 21

em situações de poder e decisão? Barbara Pires e Lucas Freire,


autores desta coletânea, perseguem essas questões analisando
modos de gerenciamento da intersexualidade e da transexualidade;
respectivamente, discorrem sobre modelos de governança – médica
e jurídica – de normalidades e verdades sobre sujeitos e vidas.
Seus trabalhos iluminam a compreensão do que é sexo e gênero,
categorias que aparecem como indissociáveis na construção dessas
experiências, ao mesmo tempo que discutem sobre o direito ao
corpo. Corpo pensado como o arcabouço da existência humana,
como carne através da qual os sujeitos pertencem a grupos sociais
e se relacionam, e que é fundamental na conformação de uma
compreensão de si e dos demais. Lembremos Merleau-Ponty (1945)
quando disse que o corpo é o veículo do ser no mundo: ter um corpo
é juntar-se a um meio definido. Os saberes, tanto médico quanto
jurídico, ocupam posições estratégicas na definição do que são os
corpos, procuram seus enquadramentos técnicos nos parâmetros
da normalidade e da inteligibilidade que foram culturalmente
estabelecidos. Para assim fazer, recorrem a algumas metáforas:
bem-estar (e as ideias sobre reprodução que acompanham o
bem-estar), felicidade, liberdade, adequação, não-sofrimento:
dispositivos que criam cultura, que enunciam o sexo verdadeiro e
simultaneamente o produzem, impondo modelos dicotômicos como
norma para a compreensão das existências. O que os autores nos
mostram são chaves de compreensão da regulação de corpos e vidas
que não deixam de lado a consideração da experiência dos sujeitos:
dores, felicidades, expectativas.
Barbara Pires recorre à análise de três casos de
atendimento a pessoas intersexo: Gustavo, Wagner Luis e Marcos/
Marta. O leitor perceberá como dinâmicas familiares, inscrições
nos corpos de certos marcadores sociais da diferença e crenças
relativas ao modo como determinados corpos podem ser ou devem
“fazer sexo” atuam na configuração de modalidades específicas
de atendimento de pessoas intersexo no espaço hospitalar. Os
modos intrincados em que os marcadores sociais da diferença
geram efeitos nas interações no território biomédico permitem
que Bárbara olhe para como opera o consentimento e questione:
o que significa consentir e quais são os limites do consentimento
em condições de desigualdade e vulnerabilidade? E quando se trata
de menores, isto é, sujeitos tutelados pelo Estado? Esta etnografia
22 | (Des)Prazer da norma

aborda a hierarquia no governo da normalidade levantando


uma crítica ao privilégio do discurso médico e a suas técnicas de
veridicção da sexualidade que visam a construção de humanidades
e de corpos sexuados coerentes segundo um regime de verdade
específico. A noção de integridade, tal como trabalhada pela autora,
guarda em si o potencial de atentar para o modo como a imaginação
social quanto ao que pode ou deve ser uma totalidade corporal
consistente, precisa, pura, autêntica e única afeta a vida daqueles
que estão sujeitos a travar longas batalhas pela afirmação da
autonomia e do direito de autodeterminação. Pode-se dizer que são
os modos de governar e ser governado em horizontes modernos,
informados por preceitos liberais, que estão sob escrutínio nesta
análise de notória envergadura conceitual. São os critérios que
definem as existências, bem como os futuros possíveis dos corpos
dos interlocutores de Pires, que estão sendo disputados por famílias,
militantes, antropólogos, médicos, juristas e pessoas intersexo.
Lucas, ao se debruçar sobre as petições iniciais de
“requalificação civil” de pessoas transexuais no âmbito do
Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos
(NUDIVERSIS) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
(DPGE-RJ), examina os recursos argumentativos acionados
para que tais pedidos sejam avaliados como procedentes. Nesse
processo, são colocadas em prática diversas estratégias que
relacionam compromissos políticos a apelos emocionais, morais
e médicos. Na dinâmica ao redor da “requalificação civil”, a
vulnerabilidade dos sujeitos transexuais tem um peso simbólico
efetivo: experiências de discriminação e violência são utilizadas
como técnicas de vitimização, meios de criar mecanismos que
permitam o acesso a direitos, cidadania e dignidade – terminando,
em tese, um ciclo de sofrimentos. A dramática história de Raissa
opera como fio condutor de uma etnografia dedicada à análise dos
limites da dita “terapia da mudança de sexo”. Como as promessas
de uma nova vida, de felicidade e de sucesso em torno do “processo
de requalificação civil” e da cirurgia de “redesignação sexual”, são
frustradas? Como documentos pelos quais se batalhou tornam-se
“presentes envenenados” (Vianna, 2005)? Como a gratidão passa a
operar como mecanismo de produção de hierarquia entre quem dá
o presente e quem o recebe? O que atravessa a tristeza e o suicídio
de Raissa? Lucas Freire mergulha na difícil tarefa de etnografar
Prefácio | 23

as ambiguidades das normas sociais, demonstra-nos práticas


de administração de sujeitos e corpos que não necessariamente
acompanham as expectativas dos administrados, nos termos das
variações dos seus desejos. O autor, reconhecendo a qualidade
domesticadora de qualquer tentativa de explicação sobre o que
torna o mundo insuportável, nos oferta uma fértil aproximação
entre a teoria da magia de Mauss e as tecnologias de governo.
Foucault é perspicaz ao sugerir a possibilidade de pensarmos
não apenas em relações de poder positivas, isto é, em técnicas,
estratégias e táticas capazes de constituir os sujeitos e os corpos que
governam, como também de atentar para o trabalho que efetuamos
sobre nós mesmos de modo a nos constituirmos enquanto
determinados sujeitos histórico-sociais. Isto foi chamado pelo autor
de artes da existência: práticas a partir das quais os sujeitos tanto
esculpem códigos a partir da conduta quanto investem na fabricação
e modificação de quem são. É fundamental, nesse sentido, perceber
como o sujeito reconhece a sua relação com as normas sociais que
o atravessam, afinal, “existem diferentes maneiras de ‘se conduzir’
moralmente, diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar
não simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa
ação” (Foucault, 1998, p. 27). As práticas de produção e governança
dos corpos sexuados e generificados assumem no artigo de Nathalia
Gonçales um caráter mais pulverizado, dada a ênfase na arte da
existência. A autora percorre as performances de corpos “sudaka”,
categoria de acusação usada por espanhóis e outros europeus para
identificar pessoas da América Latina. A partir das experiências
de dois artistas brasileiros, Michele Matiuzzi e Kléper Mendonça,
Gonçales descreve os sentidos e significados que tais usos dos
corpos mobilizam em performances realizadas na cena política
contemporânea. As trajetórias desvelam corpos marcados pelas
violências raciais e de gênero, seja no corpo que é embranquecido
ao longo da vida e que se descobre negro em um processo de
constituição racializado de subjetividades, seja no corpo de “bicha
nordestina”, nascido em um contexto familiar religioso, no qual a
simples aparição deste corpo desviante causa escrutínio público.
A partir de uma escuta atenta e tratamento analítico
refinado, Nathalia Gonçales mostra como Kléper e Michele
questionam duas normas que se complementam entre si, por
um lado, a matriz do embranquecimento e por outro, a matriz
24 | (Des)Prazer da norma

da heterossexualidade compulsória, ambas ancoradas em raízes


colonialistas e operadoras da homogeneização das diferenças.
Ao analisar as trajetórias e as performances desses artistas, a
autora mostra como os corpos são acionados e como eles surgem
como instrumento de interrogação artística e política. Se uma
das pedras angulares da formação das ciências sociais no século
XIX foi justamente a invisibilidade de determinados corpos, tais
como, o apagamento das mulheres, o silenciamento dos negros
e a patologização dos homossexuais na literatura do estudo do
“homem”, os interlocutores de Gonçales questionam a partir de
suas performances, o quanto esse apagamento produzido pelas
ciências modernas como episteme privilegiada pode ser deslocado.
A autora mostra que, quando artistas oriundos da periferia
escolhem conscientemente trabalhar seus corpos em espaços
públicos, não há qualquer inocência nesses atos, mas antes de tudo,
está presente a motivação em trazer à tona os que sempre foram
objetos de estudo das humanidades, para, agora, situá-los como
sujeitos produtores de conhecimento. Ao final do texto, Gonçales
defende que a prática das performances pode ser um lugar para
habitar as feridas da violência institucional e cotidiana que pesam
sobre determinados sujeitos, mostrando como é possível dar lugar
a estratégias de cuidado e de ressignificação da dor.
Ainda no tocante a produção dos corpos, suas subjetividades
e cartografias de mobilidades, veremos a partir do trabalho de
Samara Freire, de que maneira mulheres negras moradoras de
San Basilio de Palenque, no caribe colombiano, produzem sua
sobrevivência em meio a um contexto de pobreza e profundas
desigualdades sociais. A partir de trajetórias femininas, Freire
acompanha os trânsitos e as formas de agenciamento de um trabalho
informal vital para manutenção destas famílias: a venda de doces.
Em sua análise, vemos como a venda dos doces demanda um “saber
fazer” tradicional, que articula tanto a história das diásporas nesta
localidade quanto o conhecimento no tempo presente; as rotas boas
para se vender, a permanência no local de moradia e a migração de
demais parentes da família. No percorrer das mulheres dulceiras e
seus trajetos, Samara Freire desvela os sentidos e significados de
um trabalho que mescla a alegria ao cansaço advindo da venda
dos doces. O preparo, o planejamento, as caminhadas e os ganhos
obtidos com esta produção intercalam momentos de esperança,
Prefácio | 25

sonhos, expectativas e sofrimentos, bem como permitem que filhas e


filhos possam habitar espaços aos quais essas mulheres não tiveram
a oportunidade de trilhar, a exemplo da escolarização universitária.
Nos caminhos descortinados, vemos como raça, gênero e trabalho
apresentam-se articulados na vida de mulheres batalhadoras
que, ora se situam como mulheres em busca da liberdade e da
autonomia, sendo “donas de seu próprio destino”, ora podem ser
capturadas enquanto “escravas dos doces”, ao terem que sustentar
um trabalho que cansa, que leva à exaustão, que prende e produz
adoecimentos no futuro e, ao mesmo tempo, permite que a família
negra se mantenha viva. A partir do protagonismo feminino, Samara
Freire nos mostra de que forma mulheres negras se atualizam como
sustentáculo da família, confirmando observações descortinadas
pelo feminismo negro, a exemplo das análises de Angela Davis
(2016) e bell hooks (2000).
Não por acaso para as feministas negras dos Estados Unidos
o trabalho foi justamente uma questão fundamental que serviu para
reivindicar outras diferenças sociais, para além do gênero, dentro do
movimento feminista. Estas autoras demonstraram que a insatisfação
que as mulheres brancas manifestavam por se sentirem confinadas
e submetidas à vida do lar como donas de casa era, na verdade,
uma crise para apenas um grupo de mulheres, porque as negras,
chicanas, operárias e outras mulheres de cor já trabalhavam fora
dos seu lares como alternativa de subsistência. Patricia Hill Collins
(2012) argumentou que as longas horas de trabalho das mulheres
negras em troca de salários baixos aglutinava-se à responsabilidade
de cuidar de seus próprios filhos e do trabalho doméstico em suas
próprias casas. A ideia feminista de “sair do lar” como forma de
libertação não era uma utopia que as contemplava. Em resumo,
o que essas autoras denunciavam era o quanto o feminismo, por
meio da invisibilização das experiências racializadas, estaria dando
as costas também à feminização da pobreza, de tal modo que lutas
concretas contra as práticas de governo que estariam criando
políticas prejudiciais para as mulheres dos guetos e para mães
solteiras, ou o desmonte de programas de bem-estar, não estariam
sendo privilegiadas.
Se trabalhos domésticos e outros trabalhos precários, a
segregação racial e espacial, a vida nos bairros, etc., são experiências
compartilhadas que criam pontos de vista coletivos entre mulheres
26 | (Des)Prazer da norma

desfavorecidas, esses mesmos espaços lhes permitem compartilhar


um corpo coletivo de saberes positivado e passível de se converter
em meios de ação. Estamos fazendo alusão à sabedoria relativa a
“como sobreviver como mulheres negras”, nas palavras de Hill
Collins (2012). Pode-se dizer que a etnografia de Samara atravessa
a compreensão da conformação desse sentimento coletivo, sem
pressupor que os marcadores sociais da diferença se interseccionam
exclusivamente em termos de desigualdade. Tal como os demais
autores desta coletânea procuram trabalhar, a autora entende que as
relações de poder, no sentido foucaultiano do termo, não podem ser
homogeneizadas e nem os marcadores simplesmente sobrepostos,
pois o poder não é algo que uns têm e outros não. As categorias
sociais da diferença articulam-se de modo a facultar também
agências, certas modalidades de ação e certos modos de sobreviver.
A questão, como demarca Brah (2006), é saber não somente “como
as fronteiras da diferença são mantidas ou dissipadas”, mas também
como “a diferença diferencia”, se lateral ou hierarquicamente. Porque
estamos nos deslocando entre distintas proposições feministas,
sem um grande aprofundamento de contextos históricos, analíticos
e políticos, cabe-nos sinalizar que as abordagens interseccionais
se diferenciam entre si de acordo com os modos como é pensado
o poder, a própria noção de diferença e na medida em que tais
abordagens oferecem importância, maior ou menor, à agência dos
sujeitos (Piscitelli, 2008).
O investimento do NuSEX em abordagens interseccionais
reclama que os seus membros se perguntem, cientes da
multiplicidade das formas de opressão e de produção da
desigualdade, como tais processos se dão: em que contextos, quais
agências se tornam possíveis, onde, em relação a quais grupos
sociais, em que momento da vida, de que forma diferenças se
convertem ou não em desigualdades. Tratam-se de mandamentos
etnográficos que nos permitem não congelar as intersecções,
como se operassem sempre da mesma maneira, e também nos
permitem não reduzir a complexidade dos fenômenos sociais
apelando a entidades monolíticas de poder. O que, entretanto,
não quer dizer que estejamos deixando de lado a compreensão
em torno da maneira como os nossos interlocutores, por vezes,
em circunstâncias precisas, constroem e/ou mobilizam unidades
– a sociedade, a família, o patriarcado, etc. – que permitem que
Prefácio | 27

certos campos de lutas, dores, violências, prazeres e afetos sejam


explicitados. O artigo de Zampiroli neste volume é especialmente
claro nesse sentido. Já o de Fátima Lima, sustenta uma proposta de
leitura em torno da pergunta: o que é interseccionalidade e a que
ela nos serve? Desafia-nos a repensar as relações raciais no Brasil.
A autora propõe descortinar como a perspectiva interseccional
vem dialogando com as ficções raciais à brasileira, bem como com
o modo como tais ficções são atualizadas, seja no cotidiano, seja
nas práticas estatais. Para tanto, o genocídio do negro brasileiro
(Nascimento, 2017), a luta das mães que perderam os seus filhos
em confrontos com a polícia (Vianna & Farias, 2011), o governo
das mortes (Farias, 2014), dentre outras análises, são costuradas
às reflexões de Crenshaw (2012),  às proposições de feministas
negras, como cada uma das anteriormente citadas, e ao pensamento
decolonial de Aníbal Quijano (2000).
Fátima Lima percebe o mito da democracia racial, aliado
ao imperativo do embranquecimento, bem como aos preceitos
da cordialidade, enquanto relações que se tornaram visíveis e
dizíveis de maneira bastante específica, isto é, ocultando violências,
desigualdades e assimetrias. A autora defende que a crítica à
modernidade está inacabada, depende de uma revisão sistemática
do modo como o colonialismo e a invenção da raça, da figura
subalterna do negro e da mulher negra, permitiram ao Brasil se
construir enquanto nação. A escravidão seria a espinha dorsal
da compreensão de como gênero e sexualidade não somente se
interseccionavam, como podem, ainda hoje, conformar as relações
sociais de maneira singular. Nesse sentido, pode-se dizer que o fim
do domínio colonial não interrompeu a projeção de certa armação
das relações sociorraciais. Esse fim que nunca se concretiza, essa
marcha dos discursos e das práticas que se dá no cotidiano dos
diferentes contextos latino-americanos, pode ser chamado de
colonialidade. O ponto alto da análise de Lima está justamente no
esforço de intercalar essa discussão com a da biopolítica (Foucault,
2008), enquanto governo da vida e dos vivos, e a da necropolítica
(Mbembe, 2018), enquanto política de matabilidade e economia de
morte. Na colonialidade, o bios da biopolítica precisa ser racializado,
precisa ser compreendido nos termos da história do Brasil, e não
exatamente da Europa. Se o racismo é o corte que divide a linha entre
o fazer viver e o deixar morrer nas sociedades normalizadoras,
28 | (Des)Prazer da norma

não seria necessário contrabalancear essa concepção levando em


consideração as formas excessivas, mas ao mesmo tempo rotineiras,
de fazer morrer corpos de raça, idade e gênero notavelmente
marcados nas favelas e periferias? Fátima finaliza nos convocando
a pensar sobre uma bionecropolítica. A proposta vem se somar
ao conjunto de autores que, recentemente, realizam movimentos
analíticos que, ora se aproximam, ora se distanciam, na maneira
como articulam as ideias de Foucault às de Mbembe – a citar por
Bento (2018), Vianna (2018) e Fernandes (2017).

Desejo: prazeres dissidentes, prazeres normativos

Aquilo que chamamos de desejo em relação à sexualidade


tem sido objeto de árduas interpretações. Desde Sigmund
Freud e Wilhelm Reich, para os quais a sexualidade (desejos
e comportamentos) estaria moldada por fatores biológicos e
ambientais que encontrariam canais de desenvolvimento nas
dinâmicas familiares; passando por Alfred Kinsey e suas polêmicas
visões naturalistas em que a sexualidade se define em relação
à mensuração do prazer; ou sexólogos como William Masters
e Virginia Johnson que dedicaram suas pesquisas às práticas
terapêuticas dirigidas às disfunções sexuais ainda a partir de
uma concepção biologizante da sexualidade e do desejo; a Helen
Kaplan que teve um ímpeto pioneiro de análise científica do desejo,
interpretando-o como “apetite ou impulso produzido pela ativação
no cérebro de um sistema neural específico” (Kaplan, 1979, p.
9). Impulsos, motivações, ausência, excessos ou transtornos têm
sido fundamentais para o conhecimento do desejo via sexologia,
psicanálise e terapêutica, seguindo uma necessidade de mapear o
desejo e suas várias manifestações no corpo, porque é justamente
no corpo que, acreditavam, o desejo se localiza.
Dessa crença pulsante do século XVIII, como analisa Jeffrey
Weeks (1991, p. 70), de que “o desejo era uma força perigosa
preexistente ao indivíduo, arrebatando seu corpo (geralmente
do homem) frágil com fantasias e distrações que ameaçavam sua
individualidade e sanidade”, chegou-se às ciências e saberes do
século XIX que encapsularam desejos em diagnósticos e colocaram
a sexualidade em discursos como modo de apreendê-la, nos ensinou
Prefácio | 29

Foucault (1980). Assim, corpos, desejos e prazeres se tornaram


objetos de normas e perspectivas morais.
Partindo de um ponto de vista construcionista, William
Simon e John Gagnon reivindicam a conduta sexual como um
campo de análise sociológico alheio à biologia e a psicologia. Para
os autores, desejo é roteiro, sexo é roteiro, o que implica dizer
que demandam uma aprendizagem e “que somente por estarem
inseridos em ‘roteiros’ sociais é que os atos físicos do corpo se tornam
possíveis” (Scoffier, 2006, p. 21). Apesar das diferenças de enfoque
entre Foucault e Gagnon e Simon, os autores têm em comum a ideia
de que a sexualidade é regulada por processos de categorização e
imposição que guiam as possibilidades do corpo, do sexo e de suas
expressões, o que, por sua vez, “deve orientar nossa atenção para
as várias instituições e práticas sociais que desempenham esse
papel de organização, regulação e categorização” (Weeks, 1980,
p. 14).   Weeks menciona a família, a regulamentação jurídica, as
práticas médicas e as instituições psiquiátricas. Nesta seção do livro,
atendendo o chamado do autor, queremos adicionar a literatura, o
carnaval, a pornografia e outras arestas do mercado do sexo.
Os autores aqui presentes se perguntam de diferentes
maneiras sobre produção de corpos e desejos e sobre modos como
estes se atrelam a diferentes formas de produção de normativas
de gênero, sexualidade e raça, assim como sobre a relação
entre fantasias e mercado em sua fabricação de enunciados de
transgressão. Os trabalhos de Victor Hugo Barreto e de Lorena
Mochel chamam atenção a agências que os sujeitos empreendem
no caminho de se deleitarem com experiências-outras no domínio
das práticas sexuais, ambos sendo ricos para pensarmos a respeito
dos mecanismos e dos territórios que abrem suas potencialidades
para erotismos que, pelo menos em seu apelo inicial, estariam
desafiando as convenções da tradição.  
As questões de ambos os autores acompanham
preocupações chaves da agenda do feminismo pró-sex dos anos
1980: a indagação sobre o que há de transgressor no erotismo e
o sentido dessa transgressão no que concerne à liberdade sexual.
Victor e Lorena encontraram respostas para suas ponderações
sobre erotismo e prazer no âmbito do mercado do sexo e de modos
diversos, tentaram responder um questionamento proposto por
Maria Filomena Gregori em Prazeres Perigosos: por quê estudar
30 | (Des)Prazer da norma

convenções de erotismos e sexualidades no âmbito do mercado, e


não apenas em relação a universos institucionais e suas maquinarias
de poder e produção de saberes como foi inaugurado por Foucault?
Porque “para as novas alternativas eróticas o mercado é significativo
(...) ele constitui atualmente uma das figuras mais paradoxais. Nesse
cenário reúnem-se experiências que alternam, de modo intrincado,
esforços de normatização e também de ressignificação e mudanças
de convenções sobre sexualidade e gênero” (Gregori, 2010, p. 78).
Victor Hugo adentra festas de orgias entre homens nas quais
o principal marcador social da diferença que atua na valorização
dos sujeitos é a masculinidade. Se nos picos altos do prazer
durante o sexo grupal outras diferenças (raça, classe, estilo, beleza,
idade) tendem a ser borradas em prol da importância de uma
potência ou atitude do sujeito: sua capacidade para ser puto, o autor
nos lembra como o gênero está ali para tensionar as diferenças.
Nessas festas, as formas de subjetivação vividas em gramáticas de
intensidade estariam refletindo a putaria como “modo singular de
engajamento no mundo”, argumenta o autor: agenciamentos onde
o êxtase marcaria o descentramento de si, uma experiência no
plano do sensorial percebido pelos sujeitos como “desafiante” de
outros aspectos de suas vidas. A transgressão se daria, para esses
sujeitos, não apenas pelo exercício de práticas sexuais relativas
à orgia, mas pelo próprio movimento em relação à deriva. Esta
última, apreendemos com Perlongher (1987), implica uma maneira
específica de habitar a rua (imaginemos a festa como rua), uma
disponibilidade para o novo e uma vontade de nomadização. O
desejo sexual é chave na deriva e, como estilo de sexualidade, ela
não existe como resultado do vazio ou da solidão, e sim como uma
defesa da mobilidade e da fugacidade.
Lorena Mochel, por sua vez, nos convida a caminhar por
outras trilhas. Após realizar trabalho de campo em uma boutique
erótica no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, a autora discute
significados e experiências relativas ao erotismo, especificamente ao
uso feminino de toys sexuais e outros objetos criados pelo mercado
para a sedução. Se, por um lado, sua etnografia mostra os percursos
que os sujeitos empreendem em meio a uma sensibilidade
contemporânea marcada pela procura dos prazeres em uma ética
de cuidado de si e pela valorização da experimentação dos gozos
sensoriais; simultaneamente, seu trabalho mostra as tensões e
Prefácio | 31

limites acionados – traduzidos em uma linguagem de gênero –


presentes nesses percursos. As protagonistas desta etnografia não
recorrem a derivas nem a experiências baseadas na fugacidade,
ao contrário, seus movimentos se dão para dentro do lar, como
autogoverno do prazer, gestos de alargamento e estreitamento da
sexualidade no interior de um campo de normativas relativas ao
casamento, à heterossexualidade, às gramáticas de gênero e, mais
recentemente, à religião. A esse respeito, o novo mercado gospel,
voltado para mulheres e casais evangélicos, reflete não apenas
como se efetivam deslocamentos no sentido da antiga ideia sobre
transgressão associadas aos sex shops, nem apenas a flexibilidade
do mercado para se adaptar “dentro da palavra divina”, mas também
impulsiona a produção e reinvenção de engajamentos femininos e,
sobretudo, os modos como as mulheres realizam agências dentro de
marcos normalizadores, isto é, habitando normas.
Há por detrás dos trabalhos de Victor Hugo e de Lorena uma
noção que é também rentável analiticamente no trabalho de Michel
Carvalho: a fantasia, dispositivo fundamental na pornografia. A
fantasia, sabemos, faz parte do que não é visível na sexualidade,
devido a sua capacidade de criar significados não apenas por
intermédio daquilo que as coisas são, mas também via aquilo que
evocam. O artigo de Michel fala da fantasia sexual a respeito de
corpos negros.  Bombom, Nego Catra, Capoeira, entre outros nomes
de porn stars nacionais, junto a enunciados de legendas e sinopses,
tais como “buceta de preta”, “cu preto”, “rabo da mulata”, integram
a face explícita da fantasia em seu regime de visibilidade. E, a seu
turno, tudo o que os corpos negros evocam – luxúria, selvageria,
desenfreio sexual –, permanece na pornografia como marcas
que obrigatoriamente antecipam a compreensão dos mesmos.
Dissemos obrigatório porque essa é a força do estereótipo racial, é
a sua qualidade stickness, diz Michel em consonância à proposta de
Juana Maria Rodríguez (2014): aquele código ou gesto que se cola
e toma contornos morais, demarcando e restringindo a produção e
vivência do desejo.  
Se no trabalho de Victor Hugo não há consumação apenas
de um corpo másculo, mas de uma fantasia de masculinidade, e no
de Lorena há não apenas o consumo de toys, mas da fantasia de
suas proezas e sensações picantes, com Michel podemos perceber
como a pornografia não apenas vende corpos negros, mas tudo
32 | (Des)Prazer da norma

o que a eles se associa: hiperssexualização e, simultaneamente,


subalternidade.  É nessa via que o autor afirma: “um corpo negro
dentro da pornografia é sempre um corpo negro”, representação
sempre atravessada por uma “economia racializada do desejo”
(Pinho, 2012), em que se conjuga a fascinação com a diferença racial
e suas variações.
Por meio de uma etnografia nos prêmios da indústria
do pornô brasileiro e do acompanhamento da única atriz negra
presente nesse universo no curso da pesquisa, Giovana Bombom,
o autor pensa ao redor dos limites desse fascínio que, se pode
permitir que ela transite por esses mundos, simultaneamente lhe
recorda que há fronteiras para seu sucesso, pois ali impera uma
política erótica da branquitude. Segundo Michel, a raça opera,
nos termos da experiência de Bombom, por um lado, facultando o
acesso à visibilidade via filmes pornôs que, embora paguem pouco a
ela em comparação ao cachê de atrizes brancas, auxiliam-na a forjar
uma frequentação da prostituição de luxo, que, por mais instável
que seja, rende dinheiro para ir tocando a vida. Por outro lado, a
raça que a faz ser convidada para certas produções é a mesma que
a faz não ser escalada para filmes que não precisam de uma negra
que faça o papel de negra. Bombom, escuro objeto do desejo, não
somente sente-se preterida, como também vive relações de trabalho
precárias. Michel, ao mesmo tempo em que faz do fracasso um modo
de descrever o desfazer do sujeito, e não exatamente a sua formação,
aponta em direção às práticas, quase singelas, de reelaboração de si.
Os interlocutores da pesquisa de Lucas Bilate, por sua
vez, fabricam fantasias, literalmente.  São jovens que trabalham a
cada ano durante vários meses no barracão de uma famosa escola
de samba carioca criando as cores e vestes do carnaval. Roupas,
adereços e alegorias cheias de glitter e lantejoulas, ao mesmo
tempo que fazem do carnaval um universo de glamour, inventam
o brilho e o próprio glamour como uma fantasia que cria corpos
e subjetividades. A etnografia de Lucas não economiza detalhes
sobre como o barracão de uma escola de samba é um universo de
trabalho pesado onde os corpos se fazem em relação aos objetos
com os quais interagem na labuta. Seu esforço foi interpretar como
no âmbito do carnaval existem trabalhos, personagens, materiais e
performances que fazem gênero: um cabelo comprido (imaginário
ou não), uma pistola de silicone, glitter, o uso de um martelo, de fibra
Prefácio | 33

de vidro ou de uma ferramenta de grande porte. Na etnografia, os


materiais se tornam extensões dos corpos, “corporeidade pessoa-
ferramenta-material”, diz o autor. O trabalho de adereçamento se
relaciona com uma dimensão simbólica chave para a compreensão
das homossexualidades nesse mundo, via brilho, requinte e
beleza. Assim, enquanto os trabalhos de base estariam ligados à
brutalidade e à força, pressupondo a heterossexualidade de seus
executores, a sutileza/delicadeza do adereçamento se enquadraria
na dimensão dos sonhos – categoria que faz parte dos modos locais
de construção do gênero.  
O interessante é que enquanto o autor mostra como o
gênero e o corpo são construções sociais que encontram formas de
fazimento e de vazão no carnaval (e no barracão), os interlocutores
manifestam pontos de vista naturalizantes sobre a relação carnaval/
homossexualidade, isto é, visões que estabilizam corpos, gêneros
e sexualidades. “Porque é assim” e “porque viado gosta disso” são
expressões utilizadas pelos agentes para explicar, sem sombra
de dúvidas, os motivos pelos quais o barracão e o glitter que nele
existe estão inextricavelmente associados à homossexualidade,
especialmente àqueles estilos mais próximos do feminino. Por essa
via, o trabalho se torna vital para a formação de subjetividades,
“os trabalhos manuais fazem subjetividades e as subjetividades
emolduram os trabalhos manuais”, argumenta Lucas. E o espaço é
fundamental também nessa construção. Não por acaso o autor cita
Linda McDowell, geógrafa feminista que pensa o gênero em relação
à espacialidade. Se há “naturalmente” um “monte de bichas” no
barracão é porque este é um “portal mágico”, e o portal é aquilo
que promete um atravessamento, que implica uma diferença em
relação aos espaços de fora. Se ele é um lugar em que “todos liberam
seus demônios”, em que aqueles poucos que não entram viados
se tornam viados, é porque se revela para seus agentes como um
espaço propício para a construção de subjetividades, sexualidades
e erotismos, conclui.
Desprendemos uma pergunta deste artigo inspirados nas
questões que acompanharam Michel. Sabemos pela descrição
etnográfica que os mesmos rapazes que criam a magia são as
bases da hierarquia do carnaval, sendo mal pagos, em condições
de trabalho pouco favoráveis. O fato de que seja um trabalho mal
pago tem a ver com o tipo de pessoa que é recrutada para fazê-lo?
34 | (Des)Prazer da norma

De alguma forma isso, e não só a boa “predisposição” para o brilho,


explicaria a presença de rapazes do barracão que possuem as
características sociais no artigo descritas? Propomos que o trabalho
de Lucas Bilate seja lido como uma análise crítica das formas de se
fazer homossexual/heterossexual no mundo contemporâneo.
A construção das sociabilidades e subjetividades
homossexuais está presente também na discussão de Nathanael
Araújo. O autor segue a trilha do romance Águas Turvas de Helder
Caldeira para discutir os modos como o amor entre homens é
representado em literatura que se pretende de consumo maciço
para além de sujeitos LGBT. Araújo  parte do princípio que
“textos não são necessariamente livros”, mas fazem parte de um
trabalho coletivo que influenciam não apenas os leitores, como
parte considerável do mercado literário. De forma articulada e
inspiradora, acompanhamos as múltiplas fases e processos que
tornam um livro possível, a saber; a produção, publicação e a
circulação da obra são mais do que meros momentos sucessivos da
composição de um produto, mas engendram redes de sociabilidade,
estas que por sua vez possuem a capacidade de transformar os
próprios símbolos e termos que estão em circulação, a exemplo da
questão homossexual na literatura e seu suposto lugar minoritário
de dissidência. Na sua análise, entretanto, vemos de que forma os
estigmas relacionados à homossexualidade são negociados dentro
das narrativas e ficções, uma vez que percorrermos formas de
vivenciar e habitar a homossexualidade que não são homogêneas,
nem possuem roteiros estáveis, mas que ainda assim podem girar
em torno da ficção de um “final feliz”. No seu plano analítico, ao
lado do exame dos itinerários homossexuais, que podem incluir
erotismos bem ou mal sucedidos (o protagonista sofre um estupro
e é também o desejo de esquecimento desse fato traumático que
o leva à procura de relações afetivas benéficas), Araújo persegue
também os desdobramentos das relações afetivas-sexuais
heterossexuais, mostrando como estes pólos mantêm paralelos
e pontos de ruptura em um processo de espelhamento mútuo e
reificação de categorias normativas. O artigo de Nathanael convida
ao leitor a indagar sobre a relação entre as estratégias literárias de
construção de personagens e as estratégias de mercado. O “final
feliz” não é uma aposta a um só tempo moral e econômica?
Prefácio | 35

Afetos: amor, cuidado e controle na vida cotidiana

As práticas de cuidado e os engajamentos continuados com


o outro, seja através de relações heterossexuais, seja via relações
homossexuais, revelam camadas ambivalentes das gramáticas de
gênero e sexualidade que povoam o cotidiano de casais, amantes,
mães, pais, filhos e amigos. Nos artigos destacados nesta seção,
veremos como a “negociação da intimidade”, tal qual formulada
por Viviana Zelizer (2011), se realiza em diferentes contextos de
vida, mostrando o “trabalho relacional” de gerir as fronteiras entre
afeto, dinheiro, cuidado, controle e interesse. Neste sentido, cabe
lembrar dos ensinamentos de Marcel Mauss (1979[1921]) quando
se refere ao plano obrigatório dos sentimentos, criando perspectivas
para a compreensão das diferentes expectativas presentes nas
inúmeras posições de parentesco, namoro ou casamento. Estes
textos nos alertam para as cargas afetivas presentes nos itinerários
examinados, bem como atentam às ambivalências contidas na
expressão dos sentimentos e na negociação dos mesmos no fluxo
da vida ordinária. Na medida em que nos dedicamos à análise
das emoções em termos passíveis de serem identificados como
micropolíticos, somos tributários da perspectiva aberta por
Claudia Barcellos Rezende e Maria Claudia Coelho, que, a partir
de diversos trabalhos (Coelho, 2006; Coelho & Rezende, 2010),
nos incitam a pensar a gratidão, o amor, o carinho, a vergonha,
o medo, a solidão, entre outras emoções, em interface com
moralidades. Os caminhos percorridos pelos autores alternam-se:
nem sempre eles se dedicam a uma descrição exaustiva de dada
emoção ou um dado complexo emocional, mas costumeiramente
atravessam os  sentimentos enquanto campo de conflitos, tal qual
estabelece Georg Simmel (2006). Cabe, portanto, destacar que as
relações afetivas, quando pensadas sob o signo do cuidado, não
são antagônicas ao controle – postura analítica que desloca uma
perspectiva essencialmente romântica e idealizada das relações de
proximidade. Ao advertirem as prerrogativas e as vicissitudes do
dia a dia, Carolina Castellitti, Everton Rangel, Carolina Maia, Oswaldo
Zampiroli e Camila Fernandes neste volume demarcam uma plêiade
de trabalhos, empenhos e vigores afetivo-reflexivos indispensáveis à
formação dos sujeitos. Eles demarcam as práticas através das quais
nos tornamos aquilo que somos e nos deslocamos a outros mundos
36 | (Des)Prazer da norma

possíveis. Pode-se pensar que nesses artigos a preocupação com o


cotidiano reverbera em uma análise do processo de conformação
das disposições dos sujeitos generificados ou, melhor dizendo, na
descrição do florescimento lento de potencialidades, capacidades
ou sensibilidades individuais e coletivas.
O artigo de Carolina Castellitti é uma artesania com
fragmentos de histórias de vida de diversas mulheres argentinas
capaz de revelar dimensões tão íntimas quanto aquelas que
remetem às expectativas de uma vida a dois e às tristezas oriundas
do desamor. A autora descreve processos de desconjugalização,
suas etapas e os recursos mobilizados para vivenciá-lo e superá-
lo. Trata-se, de fato, de um longo processo de negociações com o
outro e consigo mesmo. A ruptura conjugal deriva na reconquista
de si de um tipo muito particular: é uma “individualidade forçada”,
uma aquisição de autoridade sob a casa, os filhos e sobre a vida,
que, mesmo quando reivindicada, é vivenciada como um fardo,
especialmente nos casos em que essa autonomia se transforma em
“solidão”. Carolina está questionando, então, como as experiências
de divórcio e separação denotam ambiguidades relativas aos papéis
de gênero. Se hoje em dia existem mais rupturas conjugais, refletem
algumas de suas interlocutoras, é porque as mulheres passaram a
“tolerar menos” ou a ter “menos paciência para aguentar”. O caráter
positivo das mudanças sociais que permitiram uma melhor inserção
social das mulheres e, por tal, maior independência econômica,
se vêm tensionadas pelas experiências a partir das quais tais
mudanças estariam jogando as mulheres para fora de seus ditos
“papéis naturais”: um feminino ligado às virtudes da paciência, da
compreensão, do cuidado e da entrega. A oposição entre Susanita e
Mafalda, personagens da popular história de quadrinhos de Joaquín
Lavado (Quino), permitem que Castellitti compreenda as trajetórias
e expectativas de suas interlocutoras em um plano que remete
às transformações sociais pelas quais a Argentina passou nas
últimas décadas. A autora nos faz ver como questões macrossociais
são dramatizadas no plano micropolítico; em outras palavras, a
dimensão subjetiva da vida social é trabalhada neste artigo a partir
dos seus vínculos nevrálgicos com a dimensão sociológica.
Paciência, cuidado e entrega requerem tempo. E o tempo
é, como ressalta Camila Fernandes, “uma das marcas mais radicais
da assimetria de gênero”. Em seu artigo, a autora analisa trajetórias
Prefácio | 37

de sujeitos e rupturas conjugais que mostram como nas disputas


em torno do tempo dedicado ao cuidado dos filhos convergem
disparidades que revelam as expectativas sociais generificadas em
relação a pais e mães. O tempo, que geralmente pensamos como
sucessão de acontecimentos, adquire o seu sentido preciso nas
relações interpessoais, nas experiências do cuidado dos outros e
de si. O tempo que a criança toma, quando contado, é descontado,
sobretudo, do tempo que os pais, as figuras paternas, teriam para
si mesmos. Para eles, usualmente, o “tempo para si” acontece
sem a necessidade de sistematicamente disputá-lo, sem que um
grande peso afetivo-moral sobre eles se abata. O mito ao redor
da “maternidade correta”, aquela propagada a partir da figura
da mãe sacrificial, é acionado nas relações para justificar abusos,
para provocar o assujeitamento das mães à conversão contínua do
“tempo para si” em tempo dedicado ao cuidado do outro, dinâmica
que opera com maior eficácia nos casos dos sujeitos atravessados
por vulnerabilidades sociais. Essas assimetrias que reverberam no
interior de territórios existenciais podem tanto ser negociadas
quanto se cristalizarem como desigualdades. As múltiplas
possibilidades de uso do tempo, quando facultam às mulheres
movimentos no sentido da agência e da mobilidade social – tais
como o de  “cuidar menos”, o de partilhar o cuidado dos filhos com
terceiros e o de cuidar de si –, configuram-se como uma política
dos pequenos atos que (re)estruturam no cotidiano relações e
afetos, ou como preferimos dizer, tratam-se de pequenos gestos
que movimentam o mundo a duras penas. O que não quer dizer
que a figura da mãe sacrificial deixe de resistir no interior desses
movimentos gerando constrangimentos, encargos de consciência
e avaliações de cunho moral. Debora, principal interlocutora de
Fernandes, ao reivindicar o “tempo para si” se viu obrigada a
mobilizar justificativas, como se a aquisição de “tempo para correr
atrás” fosse moralmente questionável. A autonomia relativa que
ela angariou está longe de ser simplesmente individualista, pois
permanece relacional. Assim, a autora discute a usurpação do
tempo feminino, as “prisões” instauradas pelo cuidado das crianças,
os gestos de partilha do cuidado entre mulheres, os diferentes
valores atribuídos ao trabalho realizado em casa e na rua, os alívios
acompanhados de sofrimento. Tempos generificados nas batalhas
do dia a dia.
38 | (Des)Prazer da norma

Ao lado das rupturas relacionais, encontramos o poder


do desejo por encontros amorosos. O artigo de Carolina Maia
aborda publicações feitas a partir dos anos 1980, produzidas por
mulheres lésbicas e voltadas para um público lésbico. A construção
e consolidação do boletim “Um Outro Olhar”, publicação veiculada
durante os anos 1980 e 1990, parte da ação do Grupo de Ação
Lésbica Feminista (GALF). Tais periódicos mostram a força da
escrita e da apresentação de si como importantes formas de
fortalecimento das subjetividades homossexuais. A partir dessas
escritas, em suas variadas estratégias discursivas, as sujeitas
presentes nos textos analisados mostram que episódios de
isolamento, solidão e violências cotidianas podem ser reelaborados
a partir do compartilhamento das vivências em comum. Seja nas
experiências de amizade, afeto ou amor, os textos produzidos pelas
leitoras compõem um corpus de vivências que uma vez reunidas e
sistematicamente publicadas, descortinam um universo no qual as
sociabilidades lésbicas conviviam frente às normas heterossexuais,
produzindo a invenção de novos amores, linhas de desejo e afeto
em um universo pautado por valores patriarcais. Carolina Maia
mobiliza documentos, cartas e registros textuais, mostrando com
habilidade etnográfica um rico instrumental analítico presente
nestas fontes. A partir de um processo de desvelamento de
lembranças, memórias da luta dos movimentos LGBTs vem à tona,
demonstrando a batalha pelo reconhecimento da humanidade de
seus sujeitos, na busca do direito ao amor e de viver uma vida digna
e plenamente reconhecível enquanto tal.
Por outros caminhos, seguindo as continuidades entre o amor
e o conflito, Oswaldo Zampiroli discute a trajetória de mulheres
trans/travestis em seus relacionamentos afetivos e amorosos. Se
por um lado, tais trajetórias se situam nas sociabilidades entendidas
como dissidentes, tais como o trabalho na prostituição, ao mesmo
tempo, suas interlocutoras buscam no casamento monogâmico a
promessa da realização de si enquanto mulheres “de verdade” e
apostam na formação da família como uma grande expectativa de
futuro. A união com homens “cisgêneros” é feita a partir da luta
diária pelo amor, categoria esta que se mistura à perspectiva do
“sonho”, ambas condensadas na idealização de um projeto de vida.
O casamento e o amor monogâmico se apresentam como ideais
importantes de serem alcançados, demonstrando a força da norma
Prefácio | 39

em, para usar uma expressão do autor, “transbordar” também


sobre as rupturas e comportamentos dissidentes. Assim, Zampiroli
articula de forma coexistente a transgressão e a norma, em um
processo que ativa uma premissa antropológica fundamental, a
saber, que a margem e o desvio são parte das regras estabelecidas
em cada sociedade, e que ambos são co-criados uns em relação aos
outros em um processo de espelhamento mútuo; tal premissa é
tributária de análises promovidas por diferentes autores, tais como,
Howard Becker, Erving Goffman e Gilberto Velho.
A etnografia feita por Zampiroli é fina e sensível ao
acompanhar de que maneira mulheres trans/travestis podem
negociar os signos dos desvios e ao mesmo tempo buscar
relacionamentos reconhecidos como padrões legítimos na nossa
sociedade, mostrando de que maneira o “fazer família” opera
como um valor precioso e central. O amor se apresenta como
possibilidade política, em meio a tantas batalhas, normas e
moralidades. Habitar um casamento é uma forma de cultivar uma
existência digna. Neste aspecto, destacamos as contribuições de
Luiz Fernando Dias Duarte, que em suas reflexões sobre carreiras,
trajetórias de vida, famílias e universo popular produziu um
conjunto de trabalhos acerca das moralidades e emoções, postas
em relação aos valores modernos, igualitários ou hierárquicos das
camadas médias e populares (Duarte, 1988, 2008, 2009, 2011).
Ao lado da sua contribuição, situamos também autoras, tais como,
Claudia Fonseca (1995, 2000), Tania Salem (1989, 2006) e Maria
Luiza Heilborn (2004, 2006), que conferiram atenção especial às
diversas configurações e experiências de classe, acompanhando
determinadas sociabilidades, práticas e discursos, bem como seus
usos sociais e políticos. Em suma, esses trabalhos nos inspiram
a apreender os significados produzidos em torno de diferentes
trajetórias, considerando a produção de teorias sobre o universo
popular e das classes médias que alimentam muitas das reflexões
do NuSEX sobre gênero, sexualidade e família.
Em continuidade às reuniões e encontros amorosos, Everton
Rangel discute as justificativas e práticas acionadas pelos sujeitos
para manterem seus relacionamentos apesar das adversidades. Um
circo estadunidense que percorre o país em dois enormes trens é
o pano de fundo de sua etnografia. Em um cenário caracterizado
pela interação de pessoas de diversas nacionalidades, o autor se
40 | (Des)Prazer da norma

preocupou em refletir sobre os laços afetivos, bem como sobre a


própria noção de amor, entre mulheres brasileiras que atuavam
nesse circo como dançarinas e seus namorados. Amores imantados
de conflitos, que persistem em meio a possíveis e iminentes
separações em função de decisões empresariais e diante dos olhos
de um coletivo que fabricava sentenças sobre a legitimidade das
demonstrações de afeto. Após presenciar episódios de acusações,
brigas, tapas e choros, Everton indaga sobre o modo como as
gramáticas de gênero atuam nas situações de confronto marcadas
pela veiculação do ideal do amor romântico. Pelo menos na
temporalidade do trabalho de campo, certas práticas podiam
ser consideradas abusivas, mas não podiam, nem deviam serem
chamadas de violência do ponto de vista dos mais diversos atores
envolvidos. Aqueles momentos em que os conflitos chegavam
a instantes de excesso e de aparente extrapolação de limites do
tolerável, o autor chamou de fissuras, pequenas fendas que eram
logo submetidas a pequenos gestos da reparação que denotavam
o quanto as moralidades podem ser contorcidas e esticadas frente
às expectativas do cuidado, da duração e do desejo. Trata-se de um
deslocamento semântico das considerações de Díaz-Benítez (2015)
sobre as fissuras; estas deslocam-se do terreno das práticas de
fetiche extremo e passam a habitar também as dinâmicas conjugais.
Ao problematizar a ideia de violência nas relações íntimas, Rangel
não pretende relativizá-la nem minorá-la, mas mostrar de que
maneira a enunciação da violência cria um impasse na manutenção
das relações, obrigando os atores a se posicionar e eventualmente
limitar chances de ação dentro de um contexto de escassez, no qual,
acessar um relacionamento é aceder a possibilidades de futuro e
recursos sociais. A gramática da violência não está descartada, ela
pode ser acionada caso seja necessário, mas, antes disso, os agentes
mostram que viver o amor é aceitar negociar relações de poder.

***

Para concluir, gostaríamos de fazer um último comentário.


No prefácio de 2009 do já mencionado livro Prazeres Dissidentes, a
antropóloga Adriana Piscitelli chamava atenção ao diálogo restrito
com os referenciais feministas tanto na coletânea em questão como
dentro do campo de estudos a um nível mais amplo no Brasil entre
Prefácio | 41

as últimas gerações. A essa ausência, somava-se a pouca atenção


concedida a experiências de e entre sujeitos heterossexuais
para além do mercado do sexo. Nesse sentido, esperamos que os
esforços empreendidos para refletir sobre esses outros marcos
permitam que (Des)Prazer da Norma faça uma contribuição ao
nosso cenário acadêmico.
Impossível finalizar este texto sem mencionar as pessoas
que integram o NuSEX e que de diversos modos tem alimentado
nossas reflexões temáticas, teóricas e políticas: Natânia Lopes,
Felipe Magaldi, Rodrigo Coelho, Vinicius Mauricio-Lima, Brena
O’Dwyer, Aymara Escobar, Jefferson Scabio, Montserrat Valle,
Annelise Campos, Natalia Maia, André Souza, Rafael França, Ricardo
Caramillo, Thiago Soliva, Nicolas Wasser, Helmut Kleinsorgen, José
Ramón Díaz-Benítez, Erica Sarmet, Letícia Ribeiro, Hugo Prais e
Raquel Oscar. Outros colegas têm sido fundamentais pela parceria
intelectual ou pela sua participação nos eventos organizados
pelo coletivo: Sérgio Carrara, Jorge Leite Jr., Isadora Lins França,
Guilherme Almeida, Peter Pál Pelbart, Stephanie Lima, Vinicius
Ribeiro, Laura Lowenkron, Maria Filomena Gregori, Jane Russo,
Regina Facchini, Peter Fry, Horacio Sívori, Paula Lacerda, Silvia
Aguião, Martinho Tota, Marco Martínez, Luisa Belaunde, Carlos
Guilherme do Vale, Angela Donini, Rodrigo Vianna, Camila Bastos
Bacellar, Tedson Souza, Gleiton Bonfante, Alexandre Oviedo, Bianca
Arruda, Martinho Braga, Claudia Carneiro da Cunha, Magareth
Gomes, Aureliano Lopes, Nelson Mugabe, Amana Mattos, Lívia Reis,
Isabela Rangel, Abgail (Bibi) Campos, Mario Carvalho, Kaciano
Gadelha, John Comerford, Renata Menezes, Laura Murray, Raphael
Bispo, Leonardo Hincapié, Eric Fassin, Matthew Guttman, Carla
Rodrigues, Carla de Castro Gomes e José Miguel Nieto Olivar. A
vocês, assim como a Luiz Fernando Dias Duarte e a Adriana Vianna,
muito obrigado.
Governo
Gestão de corpos, regulação de integridades:
uma reflexão sobre direitos e intersexualidade

Barbara Pires1

Falar sobre “integridade” pressupõe a imaginação de uma


unidade, que se associa intimamente com noções de totalidade, con-
sistência e precisão. O modelo de ética do íntegro reitera a etimologia
da palavra: buscamos aquele que age de acordo com uma veracidade
interior – que se pauta, por sua vez, segundo uma verdade esten-
dida em culturas, contextos e valores coesos. De tal forma, quando
falamos da qualidade do que é inteiriço também observamos a siste-
matização de noções sobre o que é autêntico, puro, único, verdadei-
ro. Dentre os domínios possíveis de representação, a linguagem tem
certa primazia sobre o movimento de circunscrição do que é mais
íntegro e, portanto, também do que seria mais completo e ideal. Em
Bodies That Matter (1993), Judith Butler analisa a teoria lacaniana
sobre o Simbólico para explicar como a “integridade corporal” efe-
tiva-se na medida em que um determinado corpo é nomeado e ins-
crito no regime do parentesco que possibilita esta linguagem. Neste
registro psicanalítico, a materialidade de um corpo seria atingida
dentro de uma estrutura patriarcal de classificação generificada, em
que versões de integridade corporais seriam acionadas e sustenta-
das segundo enunciações, ações performativas e repetições ficcio-
nais de modelos baseados no dimorfismo sexual.
Em minha dissertação (2015), inspirada pelas reflexões de
Mauro Cabral (2005) e Paula Sandrine Machado (2008), discorri
sobre a contínua normalização do corpo intersexo em face aos
saberes e práticas que ainda qualificam o dimorfismo sexual como
um valor do humano. Pensar a intersexualidade a partir dessa
construção de um corpo íntegro segundo versões binárias do sexo/
gênero pode ajudar a entender suas classificações e manejos para
além dos maniqueísmos de uma biomedicina costumeiramente
qualificada como violadora. Assim, o peso deste gerenciamento
estaria na compreensão de que a ética dos atendimentos às

1
Barbara Pires é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
46 | (Des)Prazer da norma

pessoas com variações intersexuais se pautaria mais em uma


noção de direitos humanos enquanto “direito à saúde” do que
como “direito sexual”. Em outras palavras, as conhecidas práticas
de normalização seriam pensadas como garantias de direitos
fundantes para as pessoas intersexo justamente porque essa
autonomia e integridade corporal estão diretamente vinculadas à
necessidade constituinte de sujeição dos indivíduos ao regime de
inteligibilidade do dimorfismo sexual.
Seja por uma inscrição no imaginário patriarcal, seja pela
linguagem generificada, seja por limites da lei ou seja pelos sentidos
que imbuímos e repetimos no cotidiano, a construção de sexos e
gêneros distintos, particularizados e essencialmente desvinculados
opera como uma retórica significativa em diversos segmentos
científicos, políticos e sociais. Rastrear essa valoração do dimorfismo
sexual a partir da ideia de integridade e seus efeitos me parece um
caminho produtivo para interpretar os saberes e práticas implicados
nos atendimentos de pessoas intersexo.
Dentro desta trama, acredito ser possível iluminar um de
seus principais movimentos, a saber: a produção de integridades
corporais específicas ao tencionar as múltiplas relações de
vulnerabilidade e consentimento presentes na gestão e no
gerenciamento da intersexualidade na medida em que se busca
encapsular as ambiguidades desses corpos e vidas. A regulação
dessas “zonas de ininteligibilidade” constitui não só os limites de
sujeição, mas também a própria capacidade de garantir “autonomia”
e “agência” dentro das normas que possibilitam a existência humana
(Butler, 1993). Destarte, podemos inferir que ao acompanhar as
produções de integridades, funcionalidades e modelos a partir
dos manejos de um corpo intersexo, é possível potencializar as
estratégias discursivas colocadas em jogo para sanar ou corrigir
o que se compreende enquanto precário – sejam essas diferenças
fisiológicas, psicológicas, afetivas ou sociais.
Veremos este minucioso trabalho de moldar corpos, gêneros
e relações a partir de três casos que integram minha etnografia
de mestrado. As histórias de Gustavo, Wagner Luis e de Marcos/
Marta2 ilustram não só movimentos de produção de integridade e
vulnerabilidade de corpos tidos como ambíguos e/ou ininteligíveis.

2
Para manter a confidencialidade e o anonimato, todos os nomes foram ficcionalizados.
Governo | 47

Suas histórias também exprimem a capacidade dos gerenciamentos


médicos, dos protocolos científicos e das expectativas sociais de
reinscrição de corpos, constituição de gêneros, mobilização de afetos
e recomposição de dinâmicas familiares.

Atendimentos emergenciais, desconfortos sociais e limbos


existenciais

Antes de narrar essas histórias, importa dizer que entendo


a maleabilidade do sexo/gênero na mesma medida em que
compreendo a ciência médica e o diagnóstico como um fenômeno
socialmente construído (Latour, 2000; Bonet, 2004). Em outras
palavras, interessa neste fazer antropológico “como” se mediam
e desenrolam os caminhos para que um enunciado científico, um
atributo legal, ou um diagnóstico seja incorporado como consensual,
legítimo e normalizado. Dito isto, não significa que alterações
genéticas, disposições anatômicas e tratamentos médicos não
tenham relevância para a diferenciação e sustentação material de
um corpo. A biologia importa, ainda que não de modo essencialista
(Haraway, 2000; Fausto-Sterling, 2000). O que aponto, antes de
tudo, são as inscrições, os efeitos e as apreensões desiguais que
cada biologia, cada diagnóstico, e cada vida terá segundo noções
culturalmente hegemônicas e cientificamente predominantes sobre
esses assuntos.
Durante o trabalho etnográfico que realizei em 2014 em três
hospitais da cidade do Rio de Janeiro, pude acompanhar algumas
histórias de atendimentos hospitalares de pacientes intersexo. Uma
dessas histórias ajuda a compreender que nem toda vontade de
coerência entre sexo, gênero e papel social se inicia e se perpetua
na clínica, ao contrário, muitas das demandas de normalização
partem do senso comum, dos familiares e dos próprios indivíduos.
Essa intensificação das demandas e dos problemas de saúde/
doença pode ser inserida em uma discussão mais abrangente sobre
a “medicalização” da vida (Conrad, 2007). Dentro deste registro, a
história de Gustavo, um menino de 7 anos de idade com a variação
cromossômica 47, XXY, começa para mim quando ele chega no
ambulatório de endocrinologia pediátrica de um hospital na Zona
Norte do Rio a partir da reclamação materna de que ele teria uma
48 | (Des)Prazer da norma

genitália muito pequena.


Gustavo já havia passado por duas cirurgias, uma com 3
anos e outra com 5 anos. A primeira aconteceu para tratar uma
fimose, condição em que o prepúcio dificulta ou impossibilita a
exposição total da glande do pênis, e a segunda cirurgia para tratar
uma hipospádia, condição caracterizada por um posicionamento
atípico do meato urinário (isto é, o orifício por onde sai a urina pode
se localizar na parte de baixo do pênis ou mais raramente na bolsa
escrotal). Ainda assim, durante os atendimentos registrados em
prontuários a mãe relatava seguidos desconfortos com a genitália
atípica do filho e também com sua “obesidade”.
Pessoas com a “Síndrome de Klinefelter” normalmente
apresentam hipogonadismo, em que as glândulas sexuais
produzem menos hormônios do que o considerado padrão para um
desenvolvimento masculino. É uma variação intersexual bastante
comum, com incidência de 1 para cada 500 a 1.000 nascidos vivos
do sexo masculino (Lee et all, 2016, p. 3). Sua aparência, portanto,
será menos virilizada. A pessoa também será infértil. No entanto,
apesar do pouco desenvolvimento dos caracteres secundários
masculinos e a infertilidade, a pessoa não terá nenhum risco de vida.
O desconforto, como se nota, é estritamente social.
O incômodo materno com a genitália pequena do filho foi,
então, traduzido no atendimento médico. O protocolo para esses
casos é a reposição de testosterona. Não existe possibilidade de
recuperar a fertilidade da criança, mas é possível ajustar suas taxas
hormonais para minimizar a “deficiência” androgênica. Com 7 anos,
o menino recebeu doses de testosterona sintética, uma injeção por
mês durante três meses, para promover estímulo fálico, virilização
e desenvolvimento dos caracteres secundários tipicamente
masculinos. A equipe médica estava desconfortável em realizar este
procedimento, pois era uma antecipação da puberdade da criança.
De todo modo, os profissionais de saúde cederam ao desconforto
maior, familiar e social, e sanaram por hora as demandas maternas.
Depois dessas aplicações de hormônio, Gustavo foi encaminhado
para a nutrição para tratar seu sobrepeso.
Uma outra história que acompanhei foi a de Wagner Luis,
um bebê de apenas 2 meses de idade. Ele foi transferido para o
mesmo hospital na Zona Norte porque os médicos responsáveis pelo
parto não conseguiram identificar o sexo da criança no momento
Governo | 49

do nascimento. Com a impossibilidade de designar um sexo ao


nascimento, os médicos não produziram a “Declaração de Nascido
Vivo”, documento necessário para que qualquer bebê seja registrado
civilmente em cartório. Os domínios de produção e administração
da intersexualidade são múltiplos – sem este documento médico
atestando o sexo da criança, ela não terá registro civil aos olhos
do Estado. Este, por sua vez, distribui aos profissionais de saúde
a responsabilidade de determinar o diagnóstico e o sexo do bebê.
Neste sentido, Wagner Luis foi encaminhado para o hospital porque
precisava ter seu sexo averiguado e designado por especialistas.
Somente assim poderia ter um registro, um prenome, produzir
outros documentos, tomar as vacinas no posto de saúde, ser
socializado na gramática de gênero coerente ao seu sexo designado,3
enfim, começar uma vida de fato.
Ele só foi registrado 4 meses depois, quando já tinha 6 meses
de idade. Neste tempo, passou por várias anamneses, exames e
procedimentos, entre eles a reposição de testosterona também citada
no caso anterior. Aqui a prática não tinha a finalidade de virilizar o
bebê – que mesmo assim tornou-se mais virilizado pela quantidade
de testosterona sintética injetada em seu corpo4 –, a finalidade

3
O bebê era chamado de Ana Luisa pela família. A mãe e a prima levavam a criança
ao ambulatório com vestidinhos, saias, sempre em tons rosas e roxos. Com a
continuidade do atendimento e os procedimentos feitos, a família passou a chamar
Ana Luisa de “bebê”. Começaram a vestir a criança de outras cores mais “neutras” –
uma das vezes, o bebê estava com um vestidinho amarelo. No final do atendimento,
após os testes de virilização feitos pela equipe médica, a família se convenceu de
que a criança era mesmo um menino e modificou o nome para Wagner Luis. Foi
registrado com o mesmo nome do pai.
4
“Um endocrinologista disponibilizou uma caixinha de Deposteron através da
farmácia do serviço de atenção especializada para pacientes transexuais do
hospital, contendo três ampolas de 2 ml com 200 mg de cipionato de testosterona
cada, exatamente para os três meses do teste de virilização. A aplicação foi custosa
para a médica responsável. O líquido da testosterona era oleoso, de tal forma que
essa viscosidade dificultou a aplicação imediata. O bebê chorava muito. Parecia
doer bastante. Na bula do remédio, aponta-se os efeitos colaterais: possibilidade
de ginecomastia; alterações cutâneas, como alopecia, seborreia e acne; aumento da
retenção de água, sódio, potássio, cálcio e fosfatos inorgânicos; náusea, dor de cabeça,
ansiedade e depressão; inflamação e dor no local da administração intramuscular.
Por fim, um aviso que alerta para o contrassenso desse manejo médico frente ao
guideline científico, cuja prioridade é a preservação da funcionalidade gonadal
– o tratamento com altas doses de testosterona pode reduzir ou interromper a
50 | (Des)Prazer da norma

do procedimento era, antes de tudo, testar se seus receptores


de hormônios androgênios (isto é, hormônios ditos masculinos)
estavam funcionando corretamente. Com esse teste, sua genitália,
que era ambígua, também se virilizou. Ainda assim, Wagner Luis
foi encaminhado para a urologia pediátrica para realizar cirurgias
corretivas, ou seja, cirurgias normalizadoras que tem como objetivo
tornar mais masculina a aparência da genitália da criança.5
Essa busca em readequar o que seria o funcionamento lógico
e correto do corpo humano se torna uma busca por precisão. A
retomada de uma integridade perdida – uma vontade que embasou,
ao longo do tempo, o trabalho científico de descobrir a “localização
do sexo”. Ainda hoje, a literatura médica discute sobre qual seria o
melhor marcador biológico para diferenciar homens e mulheres
(Lee et all, 2016, p. 11). De modo que essa totalidade corporal
não é estática, não é natural, ela é sempre revista e requalificada.
A interpelação e o reforço dessas gramáticas generificadas
pressupõem a exclusão de variações corporais que são “recusadas
à possibilidade de articulação cultural” (Butler, 1993, p. 8). Neste
sentido, a sedimentação da primazia da diferenciação sexual passa
tanto pela regulação das condições e dos efeitos da materialização
de corpos segundo modelos de uma integridade funcional específica
como pelo governo das atribuições articuladas com a noção de
integridade em jogo (Ibid., pp. 134-135). Essas atribuições seriam
rastreadas pelos diversos marcadores sociais da diferença (gênero,
sexualidade, raça, classe, idade etc.) em que as estruturas de poder

espermatogênese, como também pode agir na redução dos testículos. Afinal, qual
seria a dose “correta” para um recém-nascido?” (Pires, 2015, pp. 85-86).
5
No exame físico de cada consulta, a genitália do bebê também é examinada. No
primeiro exame físico, media 2,1 centímetros, abaixo da média definida pela
literatura médica, na qual a medida infantil para um norte americano do sexo
masculino seria de 3,4 centímetros com desvio padrão de 0,3 centímetros, ou seja,
abrangendo um intervalo de normalidade entre 3,1 a 3,7 centímetros (Lee et all.,
2006, p. 490). No segundo exame físico, a genitália diminuiu ainda mais, a medida
foi de 1,5 centímetros. As gônadas estavam palpáveis bilateralmente, com cerca de
1 milímetro, mas as saliências labioescrotais apareciam como pouco pragueadas
e pigmentadas. Na escala médica, considera-se tal genitália um Prader III. No
prontuário, entre as opções “pênis”, “clitóris” ou “falus”, assinalaram a última opção
na definição da genitália. Nas discussões clínicas do caso, referiam-se ao bebê como
um DDS 46, XY com falus indeterminado/ambíguo. Para os médicos, se tratava de
um menino pouquíssimo virilizado (Pires, 2015, p. 81).
Governo | 51

e o simbólico se constituem. Para Butler, apreender as formações


dessas normas, que são generificadas e racializadas, e estão em
constante articulação, permite entender como a autodeterminação
corporal está implicada nessas formas de poder hegemônicas.6
A última história que compartilho é de um bebê com risco de
vida. A “Hiperplasia Adrenal Congênita” é uma das poucas condições
de intersexualidade que constitui uma emergência médica. Em sua
forma clássica a “HAC” é perdedora de sal, a pessoa com a condição
desidrata de forma grave que se não tratada resulta em risco de
morte. A “HAC” é definida por mutações genéticas autossômicas
recessivas que provocam alterações enzimáticas que modificam a
biossíntese de hormônios na suprarrenal.7 Essa alteração transforma
todo o quadro de conversão e secreção hormonal, de modo que
desenvolve a hiperplasia na glândula e gera a superprodução
colateral de hormônios androgênios.8 Acontece em pessoas 46, XX,
ou seja, cromossomicamente tidas como mulheres. Dessa forma,
essa alteração e desregulação hormonal, que ocorre desde a vida
intrauterina, acaba por virilizar o feto e posteriormente continua a
virilizar o bebê. Então, um bebê com cromossomo sexual feminino
vai nascer parcialmente ou completamente masculinizado.
A história que descrevo agora ilustra essa condição.

6
Além da discussão sobre autodeterminação, o livro de Butler é fundamental para
entender a complexidade da categoria “agência” e o uso da “performatividade” para
descrever a contestação e a produção de outras modalidades de poder. Ver também
Mahmood, 2005.
7
A mutação mais clássica, que altera a função da enzima 21-hidroxilase, gera uma
desregulação na produção de hormônios esteróides como a aldosterona e o cortisol,
responsáveis (entre outras funções) pela homeostase de sódio e potássio no corpo,
o prejuízo dessa produção desregulada que leva aos sintomas de desidratação e
vômitos.
8
Hormônios androgênios, ditos masculinos, são tipos de hormônios esteróides.
Funcionalmente, eles são agrupados em certas classes, como os corticosteroides
(glicocorticoides e mineralocorticoides), os esteróides sexuais (progestogênios,
androgênios e estrogênios), hormônios derivados da vitamina D, entre outros.
Todos derivam do metabolismo do colesterol. Com a desregulação enzimática
da síntese desses hormônios, alguns ficam com taxas mais ou menos elevadas.
É o caso da 17-hidroxiprogesterona, esteróide intermediário na biossíntese do
cortisol, usado para a avaliação da “HAC” em teste laboratorial, que se converte
alternativamente em di-hidrotestosterona e contribui para o excesso de andrógenos
da condição (Witchel, 2017).
52 | (Des)Prazer da norma

O bebê foi internado na emergência de outro hospital de alta


complexidade na Zona Norte do Rio sofrendo uma desidratação
acentuada, com mal-estar e vômitos. Na época, ele tinha 1 mês
de vida. No acompanhamento de seu caso os médicos notaram
se tratar do modelo clássico de “HAC”, a forma perdedora de sal.
Tratado e monitorado para a desidratação, a equipe médica voltou-
se para a designação sexual do bebê. Entretanto, o bebê já estava
registrado com sexo e prenome masculino. Era chamado de Marcos
pela família e usava roupinhas azuis quando estava internado na
enfermaria do hospital. Ainda assim, o protocolo médico para esses
casos é de acompanhar o sexo cromossômico da criança, ou seja, o
sexo feminino.
A controvérsia aumentava porque a aparência da genitália da
criança era completamente masculina.9 A virilização que acontece
é forte e age bastante no corpo do bebê. Nesses casos de 46, XX
muito virilizados ainda não se sabe pela literatura médica como
a incidência de hormônios andrógenos durante a gravidez pode
impactar no desenvolvimento da psique e da identidade de gênero
futura da pessoa.10 Como era um caso delicado, a equipe médica
se reuniu para decidir o melhor encaminhamento. Profissionais da

9
“Segundo os relatos em prontuários, a aparência da genitália dele não era ambígua.
Ao contrário, o pênis estava no tamanho padrão para uma criança do sexo masculino
e daquela idade, com o meato urinário na ponta e fusão lábio escrotal completa. Sua
bolsa escrotal era pigmentada e pregueada. Ainda assim, sua genitália não podia
ser inteiramente masculina, já que não possuía os testículos. A bolsa escrotal estava
vazia” (Pires, 2016, grifo original).
10
Várias publicações médicas discutem esses impactos a longo prazo. Alguns
consensos se delineiam na medida em que meninas ou mulheres 46, XX com “HAC”
que vivenciaram uma grande virilização durante a gestação e a infância (Prader IV ou
V) parecem ter comportamentos menos tradicionalmente femininos e/ou orientação
sexual não-heterossexual. Por exemplo, um artigo de pediatras sul-coreanas diz:
“Exposição excessiva aos andrógenos durante o período pré-natal influencia o
desenvolvimento cerebral de mulheres com HAC clássica; elas podem apresentar mais
preocupações sexuais e comportamento masculino do que mulheres não afetadas”
(Choi & Yoo, 2017). Outro artigo de urologistas pediátricos alemães também reitera
que “aquelas com maior grau de exposição aos andrógenos durante o período pré-
natal (Prader IV e V) criadas como mulheres passam a se identificar como mulheres,
mas experimentam um comportamento mais masculino na infância, também possuem
uma taxa maior de homossexualidade e sentem mais dificuldade com a penetração
vaginal e a manutenção da gravidez” (González & Ludwikowski, 2016). Para uma
abordagem crítica sobre essas análises e consensos, ver Jordan-Young, 2010.
Governo | 53

pediatria, genética, urologia cirúrgica, endocrinologia, psicologia e


residentes, todos participaram do debate.
A família, por outro lado, estava convencida de que sua
criança era um menino. Estavam confusos e, pelos relatos dos
prontuários, eles não sabiam como processar a informação dada
pelos médicos de que seu filho era, na verdade, uma menina. A
mãe, que sempre acompanhava o bebê durante a internação,
sofreu com constrangimentos no momento em que informaram
a família da condição de Marcos. A psicologia foi acionada para
auxiliar no atendimento. Uma profissional relata que a mãe “ficou
mais angustiada com o fato de terem dado essa notícia no meio da
enfermaria pediátrica, onde todas as outras crianças e familiares
ficam internados” (Pires, 2015, p. 69). O desconforto associado a
ambiguidade ou a falta da designação sexual, como já vimos, gera
um grande impacto familiar. Reorganizam-se expectativas ou há
um investimento em sanar essas incongruências, como surge na
história de Gustavo. Nesse caso a situação se agravou pela exposição
da vulnerabilidade e da limiaridade do bebê, fazendo com que a
família tenha que lidar com essas informações, consentimentos e
encaminhamentos em um ambiente cheio de gente e notadamente
desigual.11
A resolução do caso acontece em duas etapas. Primeiro,
receitaram a aplicação de uma medicação que se assemelha aos
hormônios esteroides do tipo “glicocorticoide” para restabelecer o
metabolismo da suprarrenal. Essa medicação é receitada durante
toda a vida do paciente com “HAC” clássica. Somente assim a alteração
enzimática será regulada e evitará outras crises de desidratação.
O segundo encaminhamento relaciona-se à designação sexual de
Marcos. Depois de muito debate, a equipe médica decidiu seguir o
protocolo e redesignar o bebê de acordo com seu sexo cromossômico.
A família aceitou e consentiu esta mudança com a promessa de
que a funcionalidade reprodutiva da criança seria assegurada.
Uma das endocrinologistas do caso afirmou durante a reunião
multidisciplinar que “a marca da fertilidade é imprescindível”.12

11
Para uma discussão mais detalhada sobre as relações entre consentimento,
vulnerabilidade, sofrimento e bem-estar neste atendimento hospitalar de Marcos/
Marta, ver Pires, 2016.
12
A virilização pode afetar de algum modo a funcionalidade das gônadas,
por exemplo, mulheres com HAC clássica possuem ciclos de menstruação
54 | (Des)Prazer da norma

Mais uma vez, vemos que essa garantia de funcionalidade


implica uma noção de integridade e de bem-estar associado à
reprodução heterossexual. “Em termos psicanalíticos, a relação entre
gênero e sexualidade é em parte negociada através do relacionamento
entre identificação e desejo” (Butler, 1993, p. 183).13 Neste sentido, a
preocupação com o bem-estar do paciente é diretamente associada
com a possibilidade de manter o corpo fértil justamente porque a
funcionalidade reprodutiva prescinde da funcionalidade sexual. A
lógica médica que guia esses protocolos toma como norte funções
heterossexuais para a manutenção de capacidades reprodutivas.
A necessidade de coerência entre essas esferas é um sinal, tal
como Butler apontou, que a materialização do “sexo” nunca está
totalmente completa. Essas instabilidades apontam para o trabalho
de reinscrição de corpos tidos como ininteligíveis, que constituem
de forma exclusiva a própria noção de integridade corporal prezada
enquanto valor discursivo. Neste sentido, o bem-estar pode ser lido
como efeito de uma qualidade de vida generificada em normas,
saberes, práticas e moralidades desta totalidade binária.
Por isso, entre as indicações médicas para a família,
duas são fundamentais para entendermos esses manejos como
materializadores de corpos, relações e subjetividades: os médicos
pediram para os pais vestirem a criança com roupas rosas nas
próximas consultas e também definirem um novo nome para o bebê.
Marta surge desta indagação. “Em casos assim, um dos profissionais
de saúde me confessou, não adiantava de nada a decisão médica
de designar para o sexo feminino se a família não reforçasse este
sexo social cotidianamente” (Pires, 2016, p. 18). Ainda assim, serão
necessárias múltiplas cirurgias ao longo do tempo para que a genitália
de aparência masculina se altere para uma genitália tipicamente
feminina. Marta foi encaminhada para a urologia pediátrica do
hospital, pois a primeira genitoplastia reparadora14 teria que ser

irregulares e em alguns casos podem ser inférteis. Ainda assim, dentre muitos
fatores e desconsiderando a forte alteração anatômica que a variação produz,
principalmente na genitália do bebê, as gônadas femininas existirão e serão
completamente formadas (Witchel, 2017).
13
No original: “In psychoanalytic terms, the relation between gender and sexuality
is in part negotiated through the question of the relationship between identification
and desire”. Tradução da autora.
14
Um conjunto de cirurgias feminizantes que englobam reconstruções clitorianas
Governo | 55

realizada antes dela completar 1 ano de idade. Não há garantias nem


previsões de que os procedimentos feitos melhorem a qualidade
de vida atual ou futura da criança. A importância do “sexo social” é
tão qualificada e reforçada pela equipe médica justamente porque é
impossível dar certeza sobre o desenvolvimento psicológico e social
de um indivíduo baseado apenas em uma suposta coerência entre o
que seria o sexo cromossômico e a aparência física da pessoa.15
Em relação à “HAC”, alguns dos objetivos cirúrgicos são a
abertura de um canal vaginal para manter o fluxo menstrual, o uso de
absorventes e a penetração durante o sexo, bem como a preservação
das terminações microvasculares para minimizar a perda da
sensação do clitóris reconstruído. Em muitos casos, há a necessidade
de cirurgias complementares para dilatar o canal vaginal durante a
adolescência (Witchel, 2017, p. 25).
Esses procedimentos invasivos e controversos ainda são
realizados porque há uma necessidade de normalização dessas
diferenças. A materialização de corpos “homens-masculinos” e
“mulheres-femininas” está atrelada a uma noção de pessoa moderna
e ocidental construída a partir de uma humanidade sexuada. Na
Antiguidade, por exemplo, a noção de diferença sexual não era pensada
de maneira tão distinta. Homens e mulheres eram compreendidos
enquanto semelhantes, possuindo uma única carne que se distinguia
em termos de calor e de fluidos, a variação era entendida em seu
grau de desenvolvimento e de potência. A diferença era explicada de
modo relacional, ou seja, se dava no nível das coisas, das palavras, da
posição e do papel generificado que cada um ocupava em sociedade
(Laqueur, 2001). O dimorfismo sexual como entendemos hoje, ou

e vaginais, como a clitoroplastia e a vaginoplastia. A informação me foi dada


pelo endocrinologista responsável pelo caso. Ainda assim, esse procedimento
é protocolar para a condição: “bebês do sexo feminino com ambiguidade genital
podem ser submetidas a cirurgia de genitoplastia feminilizante durante o primeiro
ano de vida” (Witchel, 2017, p. 25, tradução da autora).
15
Como já pontuado em notas passadas, em alguns estudos médicos existem indícios
de mulheres com “HAC” clássica, especialmente as que sofreram muita virilização,
que apresentam comportamento “atípico” em relação ao modelo hegemônico
de feminilidade e/ou possuem “inclinações homossexuais”. A endocrinologista
pediátrica Selma Witchel aponta algumas referências da literatura médica que
relaciona essas identidades e comportamentos com a “severidade” da mutação
do gene CYP21A2 – principal variação genética da hiperplasia adrenal congênita
(2017, p. 24).
56 | (Des)Prazer da norma

seja, segundo uma noção de homens e mulheres essencialmente


diferentes, em suas biologias, mentes e papéis sociais, começou a
existir e ser reforçado principalmente a partir do século XVIII.
Descrever essas experiências de intersexualidade me parece
fundamental para a compreensão do processo repetitivo que é a
regulação de integridades corporais específicas através da gestão
desses corpos marginalizados. Dor, insensibilidade, cicatrizes,
estenose, falta de lubrificação, ansiedade, estigma, constrangimento
– esses efeitos pouco abalam a contínua necessidade de sujeitar
pessoas intersexo à materialização de uma humanidade sexuada. O
que existe é uma reavaliação crítica dessas demandas, circunscritas
enquanto “direitos à saúde”, através de um atendimento mais
holístico, com participação de movimentos sociais, familiares e
grupos de suporte. Conforme indica a atual revisão do Consenso
médico sobre os avanços dos manejos da intersexualidade:16

Grupos de suporte [peer support (PS)] são componentes


fundamentais do Plano de Ação para Saúde Mental da OMS
para 2013-2020 (…) Ao invés de uma abordagem monolítica do
tratamento, membros de várias comunidades agora pedem por
intervenções baseadas em evidências, pela inclusão consistente
de evidências e de controvérsias nos processos de consentimento
informado e pela identificação criativa de estratégias alternativas,
incluindo apoio psicossocial e grupos de suporte como modos de
intervenções primárias (...) A colaboração com os grupos de suporte
existentes se torna crucial para o desenvolvimento de um maior
apoio para condições específicas, tanto para integrar os grupos de
suporte nos modelos de cuidado e de saúde, como para incentivar
pesquisas centradas no paciente (Lee et al, 2016, p. 3).17

16
Importa notar que a literatura médica atual ainda utiliza a terminologia “distúrbios
do desenvolvimento sexual” para se referir às variações de intersexualidade. Para
saber melhor sobre as controvérsias desta terminologia e os impactos de etiologias
cada vez mais descritivas e específicas, ver Machado, 2008b.
17
No original: “Peer support (PS) is a key component of the 2013–2020 WHO
Mental Health Action Plan. (…) Rather than the monolithic approach to treatment,
community members now call for evidence-based interventions, the consistent
inclusion of evidence and of controversies in informed consent processes and the
creative identification of alternative strategies, including psychosocial support and
PS as primary interventions (...) The collaboration with existing PSGs is crucial for
developing more support for specific conditions, for integrating PS into the model
of healthcare and for encouraging patient-centered research”. Tradução da autora.
Governo | 57

Em outras partes do artigo,18 os autores indicam que o


bem-estar do paciente intersexo, ainda que definido por escalas
de qualidade de vida gerais (QoL), deve ser pensado segundo
múltiplos fatores externos e intrínsecos ao sujeito, incluindo “saúde
física, idade, valores sociais, acesso a recursos incluindo trabalho,
educação, relações de suporte e experiências de cuidado médico”
(Ibid., p. 10). Também pontuam que os guidelines não devem ser
aplicados em todos os casos, pois há a recomendação de avaliar cada
caso individualmente de acordo com o diagnóstico, a severidade
da condição, os impactos psicológicos, o suporte familiar para cada
designação sexual, os riscos cirúrgicos, o potencial de fertilidade e
a antecipação da qualidade da função sexual. Ainda assim, há uma
desconexão profunda entre os modelos de cuidado propostos e as
práticas observadas em contextos hospitalares de saúde pública.
Como as histórias narradas indicam, os procedimentos cirúrgicos
(mesmo sem consenso sobre suas indicações, avaliações e tempo de
intervenção) ainda são práticas usuais que muitas vezes esbarram
em tensões entre a responsabilidade familiar de consentir e
o direito individual de autonomia. Nos casos de crianças com
variações intersexuais, o respaldo para essas intervenções se torna
cada vez mais escasso a medida em que governos e organismos
internacionais questionam o marco ético e legal deste tipo de
cuidado clínico e cirúrgico.

A regulação dos direitos sobre a intersexualidade: tensões entre


integridade, autonomia, consentimento e vulnerabilidade

Publicado em 2007, os Princípios de Yogyakarta19 foram

18
Além dos 17 autores principais, o artigo teve revisão e colaboração de mais de 60
especialistas que trabalham com o tema, da área médica, da bioética, dos direitos
humanos e alguns ativistas intersexo, compondo o que chamaram de “Global
DSD Update Consortium”. O único especialista brasileiro que contribuiu para o
documento foi o Dr. Gil Guerra-Junior do Departamento de Pediatria da UNICAMP.
19
Os princípios não foram assinados como um tratado, isto é, não tem caráter
vinculante como lei internacional. Contudo, os 29 juristas e especialistas signatários
que representaram estados-nações, organizações internacionais, sociedade civil e
escritórios da ONU consideram o documento como uma normativa universal para
guiar legislações e tratados específicos. Os princípios inspiraram, por exemplo,
58 | (Des)Prazer da norma

propostos com a finalidade de servirem de parâmetro para a


aplicação da legislação internacional dos direitos humanos sobre
orientação sexual e identidade de gênero. Sua construção é
importante pois busca sistematizar algumas normas universais
sobre questões de soberania individual, identidade e abuso no que
tange pessoas LGBTI. Frente ao paradigma da sociedade de direitos
que vivemos (Gregori, 2014), torna-se fundamental a compreensão
dessa linguagem política, bem como suas aplicações, restrições e
atualizações em relação às experiências de intersexualidade.
Mauro Cabral, filósofo argentino e ativista trans e intersexo,
participou da organização dos Princípios de Yogyakarta. Em 2016,
em entrevista para a Heinrich Böll Foundation, ele comenta sobre
o desenvolvimento do documento, os impactos com governos,
organizações e grupos de advocacy, e os avanços na área. Um ponto
interessante da entrevista é quando assinala que a intersexualidade
aparece implícita no texto.20 No princípio 18, “Proteção contra
abusos médicos”, indica-se que sejam tomadas medidas legislativas
e administrativas para assegurar que

(...) nenhuma criança tenha seu corpo alterado de forma


irreversível por procedimentos médicos, numa tentativa de impor
uma identidade de gênero, sem o pleno e livre consentimento da
criança que esteja baseado em informações confiáveis, de acordo
com a idade e maturidade da criança e guiado pelo princípio de que
em todas as ações relacionadas a crianças, tem primazia o melhor
interesse da criança (2007, p. 26).

As práticas normalizadoras feitas em crianças com


variações intersexuais se enquadram, portanto, dentro do marco
da “identidade de gênero” assegurada enquanto direito sexual
e reprodutivo. Os deslocamentos entre esses direitos, como os
direitos à saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, podem ser

documentos e resoluções apresentadas na Assembleia Geral das Nações Unidas


em 2008, 2011 e 2014. Ver, http://www.un.org/press/en/2008/ga10801.doc.htm,
http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Discrimination/A.HRC.19.41_English.
pdf, e https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G14/177/32/PDF/
G1417732.pdf?OpenElement.
20
Link para a entrevista: https://www.boell.de/en/2016/05/13/we-need-intersex-
version-principles.
Governo | 59

entendidos seguindo as linhas argumentativas propostas por


autoras como Lowenkron (2015), Díaz-Benítez (2012) e Gregori
(2014). Em outras palavras, dentro desta análise sobre o paradigma
discursivo contemporâneo sobre violência e direitos, acredito que
seja possível enquadrar o processo de sujeição e subjetivação que
atravessa os saberes e os gerenciamentos da intersexualidade ao
relacionar algumas categorias, sendo elas: integridade, autonomia,
consentimento e vulnerabilidade. Neste sentido, é preciso pensar
como essas categorias aparecem em ambientes hospitalares, nas
apreensões familiares, em representações midiáticas, nos ativismos
contemporâneos, em discussões acadêmicas, em suma, nos variados
registros capazes de mobilizar esses saberes, práticas e experiências.
O argumento que proponho se desenvolve, afinal, de duas
maneiras. Primeiro, de forma complementar ao debate sobre a
regulação da sexualidade a partir de ideias e ideologias liberais, que
em suas constituições formariam não só os modelos normativos e
valorizados de identidades e práticas sexuais, mas produziriam, ao
mesmo tempo, resíduos e/ou fissuras em subjetividades e relações.
A inscrição e repetição de integridades corporais específicas dentro
do manejo da intersexualidade demonstra esse duplo processo de
marginalização e acolhimento.
O ponto nevrálgico que esses documentos internacionais,21
bem como os ativismos e os próprios guidelines médicos mais atuais,22
buscam acionar é a centralidade da autonomia da pessoa com variação
intersexual. A categoria tem lastro em tradições da filosofia política
e moral, com base tanto em Immanuel Kant quanto em John Stuart
Mill, que qualificam a pessoa de acordo com uma capacidade de agir
segundo seus próprios valores e razões. Essa habilidade de governar
a si mesmo, tomada como um valor moderno, teoricamente coloca

21
Alguns escritórios das Nações Unidas, como o Escritório do Alto Comissário das
Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR), já produzem documentos mais
explícitos sobre os manejos, os direitos e as violências envolvidas nos atendimentos
de variações intersexuais. Ver, por exemplo, a campanha UN Free & Equal lançada
pelo OHCHR – https://www.unfe.org/.
22
A revisão do Consenso finaliza o artigo com a indicação de que “os médicos que
trabalham com essas famílias devem estar cientes de que a tendência, nos últimos
anos, tem sido para que os órgãos legais e de direitos humanos enfatizem cada vez
mais a preservação da autonomia dos pacientes” (Lee et all, 2016, p. 20, tradução e
grifo da autora).
60 | (Des)Prazer da norma

em igualdade todo ser humano – independente dos contextos e das


contingências de cada ordenamento político e social. Tal concepção
de autonomia individual é “um princípio processual”, como assina-
la Saba Mahmood (2005), e não uma característica ontológica ou
substantiva do sujeito, pois delimita a própria “condição necessária
para a promulgação da ética da liberdade” (Ibid., p. 11).23
A autonomia está ligada, por sua vez, a noção de escolha e de
consentimento do sujeito liberal no debate jurídico contemporâneo.
A categoria é traduzida, “na maioria das teorias do direito, como uma
aprovação mútua que contempla sujeitos capazes de poder expressar
conscientemente e com responsabilidade que consentem” (Gregori,
2014, pp. 53-54). Neste paradigma de direitos, as crianças são vistas
como sujeitos de direitos especiais, isto é, “sujeitos que devem ser
tutelados e protegidos pela sociedade, a família e o Estado” (Díaz-
Benítez, 2012, p. 258). Essa diferenciação ocorre porque se atribui
às crianças uma condição de vulnerabilidade visto que elas “não
possuem maturidade nem psicológica nem física” para consentir
plenamente de acordo com a noção de sujeito autônomo e liberal. A
possibilidade de consentir, portanto, vincula-se à idealização de uma
autonomia individual que tem clara relação com a construção da
soberania moderna e com a própria possibilidade de governabilidade
(por exemplo, Foucault, 2008 e Mbembe, 2003 – uma relação que
aproximaremos a seguir).
De todo modo, a dimensão da “vulnerabilidade” não aparece
aqui concentrada nas interpretações dos atributos individuais, em
que a categoria (associada com a menoridade, a “doença mental”
e a incapacidade de oferecer resistência) é entendida como uma
contaminação da autonomia pela redução da capacidade de agência,
seja por uma falta de discernimento racional, seja por uma relação
de desigualdade, que impossibilita o consentimento pleno do
sujeito liberal (Lowenkron, 2015). Ainda sobre as dinâmicas de
reconhecimento e consentimento, especialmente nos ambientes
hospitalares, de fato há uma formação de vulnerabilidade (associado
com marcadores sociais da diferença) que surge das relações de
constrangimento e/ou assimétricas em contextos de atendimento e
tratamento. Como Gregori apontou sobre o trabalho de Cynthia Sarti,

23
No original: “necessary condition for the enactment of the ethics of freedom”.
Tradução da autora.
Governo | 61

às vezes o discurso médico vincula de modo restritivo condições


de vulnerabilidade com uma noção de proteção integral, o que
transforma marcas “de diferenciação social e de desigualdade em
atributos individuais, dificultando o fluxo e dinâmica dos processos
de mudança” (2014, p. 56). Contudo, seria a partir das dinâmicas
relacionais que a vivência da vulnerabilidade se expõe e se intensifica,
alterando os processos de autodeterminação e consentimento dos
roteiros que aparecem nos guidelines científicos e documentos
políticos internacionais.
A estratégia de Butler em Undoing Gender (2004) é
produtiva para pensar a vulnerabilidade “sem presumir as ideias
de irracionalidade, inocência e passividade bem como imaginar a
possibilidade de agência sem associá-la imediatamente ao ideal
político liberal de autonomia ou resistência e nem às noções
jurídicas de responsabilidade e culpa” (Lowenkron, 2015, p. 253).
A vulnerabilidade aqui surge de uma readequação estratégica da
própria condição humana, afastada do paradigma liberal, para
pensar a relacionalidade e interdependência dos corpos na medida
em que todos seríamos suscetíveis a ação de outrem. Essa exposição
compartilhada exige que a autonomia seja concebida como imanente
aos dispositivos de poder.
Assim, como a integridade está associada às formas
hegemônicas de pensar o corpo humano, o que o constitui e os
seus limites, a vulnerabilidade também está implicada nesta
regulação dos corpos e das vidas possíveis de serem reconhecidas.
Nas palavras de Butler, “nosso próprio senso de pessoa está ligado
ao desejo de reconhecimento”, de tal forma que esse “desejo nos
coloca fora de nós mesmos, num reino de normas sociais que não
escolhemos completamente, mas que fornece o horizonte e o
recurso para qualquer sentido de escolha que podemos ter” (2004,
p. 33).24 Essa interdependência e relacionalidade, que caracterizam
a vulnerabilidade, esclarece bastante a disputa de direitos, na qual o
que está em jogo é a transformação da própria noção de humanidade
a partir da discussão de modos de existência e não mais da atribuição
e qualificação do que é o humano fora dos processos políticos e

24
No original: “our very sense of personhood is linked to the desire for recognition,
and that desire places us outside ourselves, in a realm of social norms that we do not
fully choose, but that provides the horizon and the resource for any sense of choice
that we have”. Tradução da autora.
62 | (Des)Prazer da norma

sociais que o articulam.


Neste sentido, as experiências de atendimento e tratamento
de pessoas com variações intersexuais podem ser consideradas
violações no quadro de direitos contemporâneo, mas essas
experiências não se restringem ao debate sobre autonomia e
consentimento em relação à identidade de gênero (direito sexual)
nem sobre abusos de autoridade e prática médica (direito à saúde).
Outras linguagens surgem e se complementam para compreender os
movimentos de sujeição aos protocolos e às práticas normalizadoras
– como a busca por visibilidade e reconhecimento de organizações
sociais, de reparação e resistência por alguns ativismos, a
sistematização de novas legislações e tutela em alguns países, e a
ampliação do debate para outros registros, como princípios de
proteção ligados ao combate da tortura.
O advogado e ativista argentino Juan Méndez, atual
especialista independente da ONU sobre “Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes” publicou
um parecer, em 2016, no qual relaciona as práticas normalizadoras
feitas em crianças e pessoas intersexo aos procedimentos
esterilizantes, práticas prejudiciais e também às mutilações genitais.
Em suas palavras,

Em muitos Estados-nações, crianças nascidas com características


sexuais atípicas são frequentemente submetidas a designações
sexuais irreversíveis, esterilizações involuntárias e cirurgias genitais
normalizantes, que são realizadas sem o consentimento informado
dos pacientes ou seus pais, deixando-as permanentemente
inférteis, causando severos sofrimentos mentais e contribuindo
para suas estigmatizações. Em alguns casos, o tabu e o estigma
levam a morte desses bebês intersexo (OHCHR, A/HRC/31/57, p.
14).25

A linguagem que centraliza a autodeterminação e a

25
No original: “In many States, children born with atypical sex characteristics are
often subject to irreversible sex assignment, involuntary sterilization and genital
normalizing surgery, which are performed without their informed consent or that of
their parents, leaving them with permanent, irreversible infertility, causing severe
mental suffering and contributing to stigmatization. In some cases, taboo and stigma
lead to the killing of intersex infants”. Tradução da autora.
Governo | 63

integridade volta a aparecer neste documento. Nota-se como a


garantia da integridade, física e mental, parece estar articulada
com o exercício de soberania segundo essa determinada tradição
moderna de pensar o sujeito liberal e autônomo. Tal como Achille
Mbembe aponta em Necropolitics (2003), a capacidade de razão é
central para a liberdade, que é também elemento constitutivo da
noção de autonomia gestada pela filosofia moral e política. Neste
sentido, a soberania torna-se um processo de autoconstituição e
autolimitação, “consiste na capacidade de autocriação da sociedade
através do recurso a instituições inspiradas por significados sociais e
imaginários específicos” (Ibid., p. 13).26 No que tange as significações
e atribuições ligadas à diferenciação sexual, bem como as implicações
destas especificidades, vemos um processo que condiciona
vulnerabilidades às pessoas com variações intersexuais na medida
em que elas não podem consentir sobre seus atendimentos e
tratamentos, nem ter a garantia de autodeterminar um corpo íntegro
e uma identidade de gênero como sustenta o marco ético e político
de direitos na atualidade.
Dito isto, o segundo ponto que o argumento deste paradigma
de direitos potencializa é o gerenciamento da intersexualidade a partir
de um modelo de doença crônica. Como estou falando de sujeição,
da condição de pessoa e das possibilidades de concepção do que é
humano, é evidente que a construção e sustentação da humanidade
sexuada se transforma a medida em que esses corpos, experiências
e demandas se tornam cada vez mais visíveis. As políticas “da vida
em si”, como sintetiza Nikolas Rose (2007) sobre as negociações
políticas, éticas e morais relativas de um mundo paulatinamente
mais tecnológico, descritivo e medicalizado, atravessam campos
sociais dos mais diversos, reorganizando as vidas em tramas cada vez
mais biossociais, as quais, por sua vez, expandem as relações globais
de saúde, política e direitos. É preciso atentar, portanto, como esta
busca por integridade e autonomia embasa processos de governo de
corpos em segmentos de mercados terapêuticos específicos.
Similar à conjuntura de HIV/aids acompanhada e descrita
por João Biehl (2008, 2011), quando se trata dos “distúrbios

26
No original: “consists in society’s capacity for self-creation through recourse to
institutions inspired by specific social and imaginary significations”. Tradução da
autora.
64 | (Des)Prazer da norma

do desenvolvimento sexual” existe um processo semelhante


de articulação entre diferentes atores gerindo o atendimento
e tratamento da intersexualidade. Há uma vinculação entre
organizações não governamentais, movimentos políticos intersexo,
instituições privadas (de pesquisa e/ou biomédicas) e agências
estatais de saúde, na tentativa de padronizarem seus discursos
a fim de garantirem parcerias no atendimento e na intervenção
clínico-cirúrgica das pessoas intersexo. O Consenso médico de 2006
sobre o manejo da intersexualidade garantiu “suporte educacional
irrestrito” concedido pela Pfizer Endocrine Care, Novo Nordisk,
Ferring e Organon (Lee et all., Ibid., p. 497). Sua atualização, dez
anos depois, somente indica os apoios institucionais, são eles:
European Society for Pediatric Endocrinology (ESPE), Pediatric
Endocrine Society (PES-NA), Australian Pediatric Endocrine
Group (APEG), Asian Pacific Pediatric Endocrine Society (APPES),
Japanese Society of Pediatric Endocrinology (JSPE), Sociedad Latino-
Americana de Endocrinologia Pediatrica (SLEP), Chinese Society of
Pediatric Endocrinology and Metabolism (CSPEM). Neste registro, é
interessante ecoar o questionamento de Biehl:

Como obrigar doadores a prestar contas a longo prazo,


especialmente nesta época financeiramente volátil? Como as
tendências de saúde global afetam o papel dos governos e suas
obrigações com os direitos humanos? Além disso, como estão sendo
tratadas as outras doenças mortais da pobreza que têm menos apoio
político? Que projeções e sistemas de valor subscrevem as decisões
políticas e a triagem médica? Problemas e questões que não eram
necessariamente previstos e que agora têm de ser tratados como
imperativos para salvar vidas foram transformados em novo capital
geopolítico e farmacêutico (2011, p. 265).

Trocando “doenças mortais da pobreza” pelas variações


intersexuais, que se transformam cada vez mais em condições
crônicas segundo o modelo de cuidado médico gestado atualmente
(atravessado por desigualdades e tensões entre integridade,
autonomia, consentimento e vulnerabilidade), podemos também
pensar, assim como fez o autor, sobre as projeções e os sistemas
de valor que tangenciam as negociações políticas desses “corpos
ambíguos” enquanto biocapitais.
Governo | 65

Não espero formular respostas para tais questões, mas


apontar para o fato que a cidadania e a vida dessas pessoas se
restringem sobremaneira quando a ética e a política, em suas
múltiplas camadas, se reduzem às “emergências biológicas e sociais”
(CFM, Resolução nº 1.664, 2003). Por fim, o risco de escrever
que uma variação corporal não é necessariamente um problema
médico, isto é, de se posicionar criticamente e não apenas indicar as
atribuições médicas e as implicações sociais dos atendimentos das
condições de intersexualidade, vem da vontade de participar de um
fazer antropológico que demonstre politicamente as desigualdades e
as tensões de categorias básicas para a compreensão científica, ética
e ideológica da condição humana. Considero fundamental relacionar
esses saberes e práticas, pois é possível demonstrar não só novas
enunciações e dispositivos para conceber e gerir esses “corpos
ambíguos” dentro do paradigma de direitos, mas também indicar
como esses sujeitos não questionam necessariamente suas violações
justamente porque buscam afinar suas agências e subjetividades
de variadas maneiras a fim de habitar as gramáticas e as normas
vigentes.
Dos limites de uma promessa:
reflexões sobre a “terapia de mudança de sexo”

Lucas Freire1

Introdução

O conjunto de concepções e “sintomas” que compõe a


atual definição da “disforia de gênero” – que já recebeu o nome de
“transexualismo”, “desordem da identidade de gênero” e “transtorno
da identidade de gênero” – possui uma longa e complexa genealogia,
marcada por tensões, disputas e consonâncias entre atores ligados
a distintos campos do conhecimento, tais como a endocrinologia, a
psicanálise e a psiquiatria. Como sugerido por Castel (2001), esses
embates podem ser divididos em quatro fases que estão ligadas
ao desenvolvimento e especialização de saberes sobre corpo, sexo
e gênero: a primeira, relacionada às origens da nascente disciplina
da sexologia; a segunda, marcada pelo avanço da endocrinologia na
compreensão não só do funcionamento corporal, mas também do seu
papel preponderante no comportamento humano; a terceira, na qual
se dá a entrada de concepções mais sociológicas sobre o que seria o
“gênero” – e como esse se distingue do “sexo” – nas teorias acerca da
transexualidade; e a quarta fase, iniciada nos anos 1970, na qual o
debate sobre o “problema da transexualidade” começa a se deslocar
da pessoa transexual para as normas e discursos que produzem o
dimorfismo sexual, dando início a luta pela despatologização.2
A primeira aparição da transexualidade no Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação
Americana de Psiquiatria – conhecido pela sigla DSM3 –, se deu em

1
Lucas Freire é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ).
2
Para uma cronologia mais detalhada do desenvolvimento das múltiplas teorias
sobre a transexualidade consultar Castel (2001), Arán (2006), Leite Jr. (2011) e
Lima (2011).
3
Cabe destacar que o DSM é adotado como guia para os profissionais de saúde
mental em diferentes lugares do mundo, inclusive no Brasil. Junto com a Classificação
Internacional de Doenças (CID), estes dois documentos fornecem uma espécie de
padronização da categorização de problemas de saúde no âmbito global utilizada
68 | (Des)Prazer da norma

1980, com a publicação de sua terceira edição. Neste momento,


a transexualidade era classificada como uma “desordem da
identidade de gênero.” Em sua 5ª e mais recente edição – publicada
em maio de 2013 –, a transexualidade é descrita como uma
experiência que marca a vida dos sujeitos com um “sofrimento
clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social,
profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo”
(APA, 2014, p. 453). Esta última edição do DSM trouxe importantes
mudanças em seu capítulo sobre transexualidade em relação às
versões anteriores: a retirada da “disforia de gênero” da categoria
de “doença mental” e a inclusão de critérios diagnósticos para a
“disforia de gênero” em crianças.
Antes de entrar na discussão propriamente dita, quero
destacar que é preciso ter em mente que os critérios diagnósticos
daquilo que é considerado um “transtorno mental” se diferenciam
radicalmente de outros tipos de doenças. Enquanto o aumento da
temperatura corporal e a indisposição física podem indicar uma
gripe, por exemplo, a “disforia de gênero” é diagnosticada através da
patologização de gostos, desejos, experiências e comportamentos.
Esta “patologização da vida” se torna ainda mais clara com a inclusão
de um tópico específico para a identificação da transexualidade em
crianças, de modo que condutas como preferir brinquedos, jogos,
roupas e atividades que são consideradas como parte do estereótipo
do sexo oposto, ou preferir brincar com colegas do sexo oposto,
passam a figurar como indicativos de uma ruptura com o sexo/
gênero designado no nascimento do sujeito.
Neste sentido, mais que descrever certos critérios
diagnósticos, as formas pelas quais a “disforia de gênero” é
identificada prescrevem também modos específicos de subjetivação
e de compreensão das experiências vivenciadas pelas pessoas
transexuais. Acredito que ao elencar determinadas características
como critérios diagnósticos da “disforia de gênero” em crianças, os
médicos não visam identificar um tipo específico de “transtorno
mental”, mas sim assegurar um desenvolvimento “correto”
do sexo/gênero ao produzir meninos-masculinos e meninas-
femininas, ditando como, com o que e com quem as crianças devem
conviver e brincar. Conforme sinaliza Bento (2004), no caso da

por médicos, pesquisadores, planos de saúde, companhias de seguro etc.


Governo | 69

transexualidade, os médicos não tratam terapeuticamente nem


o corpo nem a mente, mas sim realizam uma função moral de
manutenção do padrão de normalidade.
Autores como Leite Jr. (2011), Bento (2006), Ventura (2010),
Arán (2006) e Castel (2001) apontam que o surgimento de um
discurso sobre a “patologia” da transexualidade foi simultâneo à
formulação do “tratamento” indicado para sua “cura”, conhecido
popularmente como “terapia de mudança de sexo” (Ventura,
2010) ou “terapia de redesignação sexual”. Esta “terapia” inclui
uma série de procedimentos como a utilização de hormônios, o
acompanhamento psicoterápico, as intervenções corporais sobre as
gônadas e os caracteres sexuais secundários – tais como a raspagem
do pomo de adão, a retirada de mamas, ovários e útero, entre outras
– e aquilo que é tido como seu ápice: a cirurgia de transgenitalização
ou de “redesignação sexual”. Para além dos consultórios médicos
e psicológicos, esta terapia estende-se para o âmbito jurídico ao
incluir como parte do “tratamento” a aquisição de um determinado
bem social: a alteração de nome e/ou sexo no Registro Civil, ou, como
chamada no jargão jurídico, a requalificação civil.
Apesar de aparentemente problemática, opto por utilizar a
expressão “terapia de mudança de sexo” não apenas no título, mas
também ao longo do texto, por quatro razões. Primeiro, porque
meu objetivo é justamente discutir os limites da ideia de “mudança
de sexo”. Em segundo lugar, porque o desejo de “mudar de sexo”
constitui um dos principais “sintomas” que indicariam a “disforia
de gênero” em uma pessoa e ele foi recorrentemente mencionado
tanto por várias/os das/os interlocutoras/es ao longo do meu
trabalho de campo, quanto por sujeitos ouvidos em estudos sobre
transexualidade empreendidos por Zambrano (2005), Bento (2006),
Ventura (2010), Teixeira (2013), entre outros. Em terceiro lugar, a
expressão “terapia de mudança de sexo” aparece não apenas nos
escritos de Ventura (2010), mas também em um texto publicado na
página de comunicação institucional do Governo Federal brasileiro
cujos objetivos eram explicar o que é uma “cirurgia de mudança de
sexo” e noticiar que estas vêm sendo realizadas pelo Sistema Único
de Saúde (SUS) desde 2008 (Brasil, 2015). Por último, mas não
menos importante, é preciso destacar que o caráter “terapêutico” da
“mudança de sexo” – seja ela fenotípica e/ou registral – possui um
enorme peso na argumentação em favor da efetivação dos desejos
70 | (Des)Prazer da norma

e direitos de pessoas transexuais nas esferas médica e jurídica.


Sobre este último ponto, é fundamental recordar que, ao passo que
cirurgias com fins estéticos como a implantação de próteses de
silicone ou de redução dos seios dependem apenas da vontade da
pessoa, procedimentos como a retirada total das mamas, do útero ou
de qualquer outra parte do corpo só podem ser realizados em função
de um tratamento para uma determinada patologia, como, por
exemplo, o câncer de mama. Isto é, no caso de pessoas transexuais,
é o diagnóstico da “disforia de gênero” que autoriza médicos a
efetivarem certas intervenções corporais sem sofrer sanções éticas e
criminais (Freire, 2016).
De modo bastante resumido, a “terapia de mudança de
sexo” traz consigo uma promessa de “transformação de homens
em mulheres” e vice-versa, que é fabricada como a solução para
os “sofrimentos e conflitos inerentes à transexualidade”. Uma
vez que, como destacado por Teixeira (2013), há uma hegemonia
do discurso médico-jurídico no processo de reconhecimento da
legitimidade e inteligibilidade das experiências transexuais, seria
essa “transformação” o que oferece aos “portadores da disforia de
gênero” a oportunidade de “renascer” e “viver dignamente”.
Em outras palavras, é através de um conjunto de prescrições
que potenciais ambiguidades são eliminadas e as possibilidades
de significação, inteligibilidade e interpretação dos desejos e
comportamentos dos sujeitos são restringidas. Tal movimento acaba
por reforçar a construção de uma imagem única e coerente para a
pessoa transexual produzida pelo “dispositivo da transexualidade”:
a/o “verdadeira/o transexual” (Bento, 2006). Além disso, a fabricação
e consolidação de um modelo uno de compreensão das experiências
transexuais é uma condição fundamental para o estabelecimento de
um “protocolo de tratamento” que não permite “desvios” daquilo
que está previsto, seja no sentido de “parar” no meio do caminho,
retroceder ou propor alternativas.
Ao pesquisar os pedidos judiciais de requalificação civil de
pessoas transexuais no Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e
Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS)4 da Defensoria Pública Geral

4
O NUDIVERSIS é classificado na estrutura de instituições que compõem a
Defensoria Pública como um “núcleo especializado de primeiro atendimento”.
O termo “especializado” indica que as atividades do núcleo são direcionadas às
questões e demandas apresentadas por uma determinada “população” ou grupo,
Governo | 71

do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ), pude perceber como os


diferentes tipos de “documentos” – fotografias, laudos, certidões,
atestados, declarações, relatórios etc. – mobilizados nesses processos
são, ao mesmo tempo, produtos e produtores do “dispositivo
da transexualidade”, visto que funcionam como tecnologias que
engendram e sedimentam determinadas “verdades” sobre os
corpos, cérebros, subjetividades, experiências e trajetórias destes
sujeitos (Freire, 2015 e 2016). Ou seja, é por meio destes papéis
que as pessoas conseguem se constituir como “verdadeiramente
transexuais” (Bento, 2006), condição imprescindível para o acesso
aos procedimentos médicos e legais previstos na “terapia de mudança
de sexo”. Ademais, a crença na capacidade destes documentos de
fabricar a realidade é um dos elementos que sustentam a ideia de
transformação contida em tal “terapia”.
Entretanto, se, por um lado, estes documentos produzem
classificações que são tidas como indispensáveis à gestão e
administração do acesso ao direito de requalificação civil; por outro,
tais papéis não dão conta das complexidades experimentadas pelos
sujeitos na realidade cotidiana. A partir da narrativa de um caso
vivenciado durante o período em que empreendi minha pesquisa
etnográfica, busco refletir sobre os limites e o alcance tanto da
promessa contida na “terapia de mudança de sexo”, quanto da
requalificação civil enquanto uma tecnologia de governo e de cuidado
que tem por função minimizar o sofrimento das pessoas transexuais.

A história de Raissa5

Raissa era uma jovem mulher transexual de 24 anos. Nascida


no interior do Ceará, ela conta que se mudou para o Rio de Janeiro
na busca por “melhores oportunidades de vida”, mais “liberdade” e
“opções de lazer”. Ela iniciou seu acompanhamento com profissionais
da Defensoria Pública em 2010, quando o NUDIVERSIS ainda não

no caso, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). Já


a expressão “primeiro atendimento” aponta para o fato de que o núcleo atua, ao
menos oficialmente, somente em uma etapa pré-processual.
5
Apesar de ser de praxe nas pesquisas antropológicas a utilização de pseudônimos,
escolhi manter o nome verdadeiro de Raissa ao longo do texto como forma de
demonstrar respeito pela sua história e de dar visibilidade ao seu caso.
72 | (Des)Prazer da norma

existia e o atendimento a pessoas transexuais era realizado por


funcionários do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH).
Raissa fazia parte do programa de assistência a pessoas transexuais
do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) desde 2009. No
início de 2012, ela deu entrada no processo de requalificação
civil e em dezembro de 2013 obteve o direito de ser reconhecida
oficialmente pelo seu nome feminino, modificando assim seu registro
civil e seus documentos. Meu primeiro contato com sua trajetória
ocorreu de modo indireto, quando uma das estagiárias relatou, um
tanto perplexa, que a pessoa que estava ao telefone queria “reverter
seu processo de requalificação civil”, gerando assim um diálogo
sobre os possíveis motivos que levariam alguém a tomar tal atitude.
A hipótese principal era de que Raissa teria se convertido a alguma
religião que condena a transexualidade.
No dia seguinte, 3 de abril de 2014, a expectativa em relação
ao caso de Raissa dominou as conversas entre as profissionais do
núcleo, das quais eu usualmente participava. Muito se falou sobre os
motivos que teriam levado a assistida6 a “desistir” da modificação do
registro civil e os impactos que uma ação deste tipo poderia causar
tanto nas teorias sobre a transexualidade quanto nas reivindicações
e argumentações utilizadas por movimentos militantes pelos direitos
de pessoas transexuais.
Raissa retornou ao NUDIVERSIS para solicitar que seu
processo fosse “desfeito”, ou seja, para que ela pudesse ter seu nome
masculino novamente. Ela disse que estava passando por momentos
muito difíceis nos meses anteriores e alegou que a mudança de
documentos não alterou sua vida de forma significativa. Ela contou
ainda que estava em acompanhamento pelo programa de assistência
a pessoas transexuais do HUPE, mas que, por possuir alguns
problemas de saúde que a impediam de obter bons resultados
com o tratamento hormonal prescrito para as pessoas transexuais,
ela ainda possuía uma série de “características masculinas” que a
incomodavam e faziam com que ela não se enxergasse “plenamente
como mulher”. Além disso, ela também contou que não passou pela

6
“Assistida/o” é a categoria utilizada para fazer referência às/aos usuárias/os
do serviço da Defensoria Pública no Rio de Janeiro. O termo permite uma dupla
apreensão: por um lado, uma/um assistida/o é alguém que recebe algum tipo de
assistência ou ajuda; por outro, ser assistido remete ao ato de ser observado por
terceiros.
Governo | 73

cirurgia de transgenitalização, sem explicitar exatamente os motivos.


Raissa dizia estar insatisfeita com seu trabalho e enfrentando
dificuldades financeiras devido ao aumento do custo de vida na cidade
do Rio de Janeiro. Ela trabalhava há quase dez anos como caixa de
um café localizado em um cinema na Zona Sul da cidade. Ela relatou
ter sofrido alguns assédios morais em seu emprego, uma vez que seu
chefe, por vezes, a escalava para trabalhar sem folgas e quando ela
protestava, ele dizia a Raissa que ela deveria agradecer, pois nenhum
outro lugar “daria emprego para uma travesti”. Contudo, Raissa não
abandonava o trabalho por não ter encontrado outra oportunidade
até então. Além de um baixo nível de escolaridade – Raissa não
concluiu o ensino médio –, a assistida dizia que enfrentava muitos
problemas na busca por vagas no mercado de trabalho devido ao
preconceito vivenciado por pessoas transexuais. Segundo ela, a
alteração apenas de seu nome e não do “sexo” em seu registro civil
produziu uma situação de confusão e ambiguidade. Raissa relatou
que muitas pessoas não entendiam quando ela entregava seu
currículo com o nome feminino e o sexo masculino. Neste sentido,
ela sentia que era associada à travestilidade e seu currículo era
descartado quase que imediatamente.
Raissa relatou também que tinha um namorado, mas que
a relação não estava boa, pois seu parceiro já havia terminado o
relacionamento algumas vezes alegando que gostaria de ter filhos
biológicos com ela e que isso era algo ela nunca poderia fazer. Segundo
Raissa, a atitude do namorado contribuía de forma substancial para
que ela não se enxergasse como uma “mulher completa”.
De acordo com a própria assistida, o somatório de todos
esses problemas gerou um quadro de depressão. Ela estava fazendo
acompanhamento com um psiquiatra no HUPE, mas disse não
estar tendo bons resultados. Diante disso, Raissa explicou que não
queria somente “reverter” o processo de requalificação civil, mas
também pretendia desfazer as modificações corporais realizadas,
como, por exemplo, retirar as próteses de silicone e cortar o
cabelo. Raissa dizia que não era assim que ela gostaria de viver,
mas que acreditava que essa atitude seria a solução para muitos
dos problemas enfrentados. De um modo um tanto ressentido,
Raissa falou que os gays sofrem menos preconceito que as travestis
e transexuais. Assim, ela acreditava que sua vida seria mais fácil
caso ela “voltasse a ser menino”.
74 | (Des)Prazer da norma

O atendimento de Raissa consistiu, basicamente, em uma


tentativa de fazer com que ela avaliasse melhor seu pedido e,
até mesmo, desistisse de alterar novamente seu registro civil. A
recepcionista7 contou diversos casos de pessoas transexuais que
obtiveram sucesso em suas vidas profissionais e se prontificou em
acionar sua rede de contatos para tentar arranjar um novo emprego
para Raissa. A estagiária, por sua vez, contou uma série de casos de
preconceitos vivenciados por ela e por pessoas próximas por conta
de machismo, racismo, homofobia etc. como forma de “naturalizar”
a discriminação e mostrar para Raissa que ela não está “sozinha no
mundo” e que é preciso enfrentar certas situações.
A estagiária também argumentou que por conta do estado
depressivo, Raissa não estaria em condições de tomar uma decisão
tão importante e que qualquer juiz entenderia a questão dessa forma,
extinguindo o processo. Neste sentido, a estagiária recomendou
que Raissa continuasse em acompanhamento psiquiátrico e que
só retornasse à Defensoria Pública com uma decisão quando
ela estivesse se sentindo melhor. Raissa se manteve firme, disse
que trocou de nome a primeira vez de forma precipitada e que se
trocasse novamente, não se arrependeria, pois sabia que alterar o
registro civil “não era brincadeira” e ela também não teria condições
financeiras de colocar e retirar próteses de silicone tantas vezes.
O atendimento de Raissa durou ao todo quase três horas.
Na maior parte do tempo, a assistida foi ouvida e questionada pela
estagiária e pela recepcionista. Dentre as soluções alternativas
oferecidas estavam a tentativa de processar o Estado com base no
direito à saúde para que este fosse obrigado a realizar a cirurgia
transgenitalizadora; e a tentativa de alteração do sexo no registro
civil para que a ambiguidade descrita pela assistida se dissipasse.
Nos meses que se seguiram, a situação de Raissa foi muito
discutida. A assistida teve os atendimentos agendados diretamente
com a Defensora Pública e foi chamada a comparecer no NUDIVERSIS
algumas vezes. Em uma destas ocasiões, Raissa teve que buscar
um ofício que a encaminhava para a realização de um novo Estudo

7
A recepcionista não era uma funcionária do quadro oficial do NUDIVERSIS.
Entretanto, ela adquiriu uma posição singular no caso da Raissa, pois era também
uma mulher transexual.
Governo | 75

Social8 com psicólogos e assistentes sociais da Defensoria Pública.


Em maio de 2014, Raissa foi atendida por uma psicóloga da DPGE-
RJ, que se recusou a fazer um relatório recomendando uma nova
alteração no nome de Raissa. Este episódio fez com que o caso se
tornasse novamente pauta das conversas entre as funcionárias do
núcleo. Um dos assuntos deste dia foram as alegações que poderiam
ser apresentadas para que o NUDIVERSIS se recusasse oficialmente
a atender a demanda de Raissa. Após alguns debates, chegou-se à
ideia de que esta ação poderia, a longo prazo, trazer certos danos
para a assistida e que, portanto, não era recomendável fazê-la.
Em meados de julho, período em que eu começava a me
preparar para deixar o campo, o caso de Raissa voltou a circular
intensamente pelos corredores do NUDIVERSIS. No início do
mês, a Defensora Pública pediu que as estagiárias marcassem um
atendimento para que a situação fosse resolvida em definitivo. Neste
dia, a Defensora comentou que Raissa já havia conversado com
a psicóloga e com a assistente social da DPGE-RJ três vezes e que
em todas as vezes a assistida insistiu em dizer que “já não via mais
sentido em ser mulher”. A Defensora pediu que o agendamento fosse
feito com urgência, pois ela estava preocupada com Raissa, uma
vez que a psicóloga comentou que a assistida relatou ter comprado
chumbinho9 para cometer suicídio, mas que não tinha tido coragem.
Perto do fim do mês de julho, Raissa foi atendida novamente,
desta vez pela Defensora Pública. De início, ela apresentou uma
declaração dada por uma psicóloga do HUPE dizendo que ela não
fazia mais parte do programa de assistência a pessoas transexuais
e que não tinha mais intenção de fazer a cirurgia de redesignação
sexual. Ela elencou as mesmas razões que havia mencionado na
primeira vez que retornou ao núcleo: insatisfação com o próprio
corpo, dificuldades financeiras devido ao aumento do custo de vida
no Rio de Janeiro e dos gastos necessários para a “manutenção da
feminilidade” – compra de roupas, maquiagem, cuidados com o
cabelo, depilação etc. –, problemas no relacionamento e dificuldades

8
O Estudo Social consiste basicamente em entrevistas realizadas com assistentes
sociais e psicólogos servidores da Defensoria Pública. Seu objetivo é avaliar a
procedência do pedido de requalificação civil da pessoa transexual.
9
Chumbinho é o nome dado a um produto químico clandestino popularmente
utilizado como raticida e que figura como um dos meios pelos quais as pessoas
tentam e/ou cometem suicídio no Brasil.
76 | (Des)Prazer da norma

no ambiente de trabalho. Ela também reiterou que a mudança de


documentos não efetivou nenhuma grande mudança em sua vida,
como ela acreditava que faria, dizendo que de nada adiantava ter
um documento feminino se as pessoas continuavam tratando-a com
diferença e discriminando-a onde quer que fosse. Além disso, Raissa
acrescentou que pretendia voltar para sua cidade de origem, mas
que só poderia fazer isso após “se tornar menino novamente”, pois
sua família não a aceitaria utilizando próteses de silicone, cabelos
compridos e com nome feminino.
Durante todo o atendimento, Raissa se referiu à alteração do
nome como “resolver isso”, indicando a existência de um “problema
a ser solucionado”. Ela reclamou também das dificuldades que
enfrentava para ter sua demanda atendida e do tempo despendido
em conversas repetidas com assistentes sociais, psicólogos,
advogados e médicos.
Após ouvir Raissa, a Defensora explicou à assistida que não
era possível reverter um processo judicial deste tipo. O que poderia
ser feito era a abertura de um novo processo de requalificação civil,
no qual a primeira alteração do nome não poderia ser omitida. A
Defensora enfatizou que queria que ela solucionasse suas angústias,
mas que ela, enquanto operadora do Direito, não poderia perder
de vista o horizonte jurídico. Deste modo, a Defensora reiterou
que compreendia os motivos pelos quais Raissa desejava viver
novamente com um nome masculino, mas que estes não poderiam
ser juridicamente sustentados em uma nova ação de requalificação
civil. Assim, a única estratégia possível era a mesma dos outros
procedimentos de alteração de nome e sexo no registro civil:
convencer o juiz de que Raissa era, na verdade, um homem e que
seu documento, do jeito que estava, não “refletia a realidade” e era,
também, uma verdadeira fonte de aflição e sofrimento. Para isso,
Raissa precisaria entregar, do mesmo modo que as/os outras/os
assistidas/os, laudos afirmando sua condição masculina e também
fotos suas retratando sua vivência do gênero masculino.
Ao ouvir isso, uma ideia passou pela minha cabeça.
Curiosamente, antes de conseguir ser reconhecida oficialmente
por um nome feminino, Raissa precisou comprovar sua
feminilidade “apesar de ter um pênis”; agora, para recuperar
o nome masculino, a assistida precisaria provar que é homem
“mesmo tendo um pênis”.
Governo | 77

Uma semana depois desse encontro na Defensoria Pública


encerrei oficialmente o campo no NUDIVERSIS. O relativo isolamento
imposto pelo processo de escrita fez com que meu contato com
as pessoas do campo se tornasse reduzido, limitado à troca de
mensagens. A última vez que encontrei Raissa foi no dia 11 de
outubro de 2014, em seu local de trabalho, durante o expediente.
Ela utilizava o crachá com o nome feminino, os cabelos loiros
compridos e ainda não havia retirado a prótese de silicone, como
dizia sentir vontade alguns meses atrás. Perguntei como ela estava e
quais eram as novidades sobre seu processo de requalificação civil.
Raissa reclamou que nada havia sido feito até então, que ela já não
aguentava mais ir e voltar nos psicólogos e assistentes sociais da
Defensoria Pública para dizer e ouvir as mesmas coisas e que ela já
não sentia mais ânimo em fazer nada. Pouco tempo depois, um dos
funcionários do café começou a chamar seu nome enfaticamente e
eu entendi que poderia estar atrapalhando-a, afinal, ela estava em
horário de trabalho.
Um mês depois, no dia 06 de novembro de 2014, estava
escrevendo a dissertação quando recebi uma mensagem de uma das
estagiárias do NUDIVERSIS noticiando que, ao que tudo indicava,
Raissa havia se suicidado há alguns dias. Naquele momento a
informação ainda não havia sido verificada por nenhuma das
profissionais do núcleo. Uma rápida busca na internet através da
rede social Facebook confirmou a história. Uma página dedicada aos
mais diversos assuntos relacionados a travestis e transexuais postou
uma nota sobre o falecimento de Raissa no início da tarde daquele
mesmo dia, a qual reproduzo um trecho:

Raissa era funcionaria no Espaço Itaú de Cinema, e há pouco tempo


foi notícia por vencer na Justiça o direito de ser reconhecida pelo
nome conforme a sua identidade de gênero. Mesmo com todas
as conquistas Raissa estava insatisfeita com a vida em continuar
não sendo aceita mesmo depois da cirurgia de readequação sexual
e passava por problemas de depressão, e tirou sua própria vida
(suicídio).

O registro no Facebook continha um link para outra nota


publicada na versão online de um dos mais importantes jornais que
circulam no Rio de Janeiro. Tomo a liberdade de copiar o conteúdo
desta na íntegra:
78 | (Des)Prazer da norma

CRIME
Travesti que mudou de nome é encontrada morta no Catete
A travesti Raíssa, que trabalhava no Espaço Itaú de Cinema, em
Botafogo, foi encontrada morta pelo seu namorado, ontem, no
apartamento dela no Catete. Há pouco tempo, Raissa ganhou na
Justiça o direito de ser chamada pelo nome.10

Esta pequena nota consegue, em apenas três linhas,


reproduzir as violências que as pessoas transexuais vivenciam
cotidianamente. Sem se preocupar em informar corretamente o
leitor nem sobre Raissa e nem sobre o acontecido, a nota, escrita
de forma extremamente ambígua, permite uma multiplicidade de
interpretações. A primeira violência se faz ver quando a despeito
do modo pelo qual Raissa se identificava, o autor da nota diz que
“a travesti Raissa foi encontrada morta”. Localizada em uma coluna
cujo título é “crime”, o texto reforça um estigma que associa travestis
à criminalidade. Além disso, ao tratar a morte de Raissa como
um delito, sugere-se que sua vida tenha sido tirada por alguém
– possivelmente o próprio namorado? –, e não que ela tenha se
suicidado, como aconteceu.

Uma via de mão única: sobre a dificuldade de quebrar um


protocolo

A nota de falecimento publicada no Facebook descreve


Raissa como um tipo de “modelo exemplar” ao enfatizar uma série
de “sucessos” que ela obteve ao longo de sua vida, os quais não são
tão comuns nas biografias de pessoas transexuais: um emprego
formal, um relacionamento estável, a cirurgia de transgenitalização
e o direito a ser reconhecida oficialmente pelo nome e sexo com
os quais se identificava. Entretanto, o discurso de Raissa sobre a
própria vida era diferente, afinal: 1) uma das soluções propostas
pela Defensoria era tentar obrigar o Estado a realizar a cirurgia de
transgenitalização; 2) em diversos momentos Raissa disse que seu

10
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/posts/2014/11/03/
travesti-que-mudou-de-nome-encontrada-morta-no-catete-553856.asp>. Último
acesso em fevereiro de 2016.
Governo | 79

relacionamento não era tão estável, o que ameaçava sua moradia,


pois o apartamento pertencia ao namorado; 3) Raissa reclamou
das condições de trabalho e relatou estar em busca de outras
oportunidades; e 4) ela adquiriu somente a modificação de seu
nome de registro, não do sexo, o que, segundo seus relatos, gerou
uma situação de ambiguidade e confusão “pior que a anterior”.
Em outras palavras, as declarações contidas na postagem
do Facebook não levam em consideração a visão que Raissa tinha
da própria vida. Contudo, ao fazer uma afirmação deste tipo –
extremamente perigosa entre antropólogos – não pretendo oferecer
uma explicação que torne o suicídio de Raissa compreensível ou
determinar aquilo que ela considerava como “mais importante”. Como
Kleinman (2006) sugere ao se questionar sobre o que “realmente
importa” nas vidas dos indivíduos, os sujeitos buscam viver “vidas
morais” e viver uma “vida moral” significa agir de acordo com aquilo
que se considera o mais correto. Deste modo, as pessoas constroem
o sentido de suas vidas de formas particulares e, assim, sempre
existirá algo inapreensível a todos os demais. Ressalto, então, que
ao trazer o caso de Raissa para o centro da discussão, não pretendo
oferecer uma narrativa que domestique este “inapreensível” ou que
a apresente como um caso exemplar, mas sim tento objetivar os
acontecimentos através do enquadramento das complexidades de
sua vida a partir das indexações disponíveis, isto é, com base naquilo
que tive acesso enquanto um pesquisador atuante em um núcleo
da Defensoria Pública. Assim, busco descrever Raissa como mais
do que um sujeito absolutamente definido por questões ligadas ao
sexo/gênero – como a “terapia de mudança de sexo” tenta enquadrar
as pessoas transexuais –, ainda que boa parte de minhas reflexões
estejam relacionadas a este aspecto de sua vida.
A imagem construída pelas informações mencionadas na
nota encontrada na página do Facebook representa aquilo que se
espera do cumprimento de uma promessa de transformação radical
da vida e solução instantânea dos problemas que é amplamente
disseminada e consolidada entre as pessoas transexuais. Como
mencionado na introdução, tal promessa é promovida pelo discurso
que constrói a “terapia de mudança de sexo” enquanto uma espécie
de “cura” para os sofrimentos que podem estar envolvidos nas
experiências de pessoas transexuais: o incômodo em relação ao
próprio corpo, a discriminação vivenciada cotidianamente etc.
80 | (Des)Prazer da norma

A incorporação subjetiva desta promessa de resolução


mágica das atribulações pode ser percebida não apenas nos relatos
de Raissa, mas também de muitas/os outras/os assistidas/os do
NUDIVERSIS, que descrevem tanto a cirurgia de transgenitalização
quanto a alteração do registro civil como uma espécie de
“renascimento” e recomeço da vida. Visões muito semelhantes
acerca da “mudança de sexo” e da alteração dos documentos
foram encontradas nas investigações empreendidas ao longo dos
últimos anos por Zambrano (2003), Bento (2006), Ventura (2010)
e Teixeira (2013).
Além disso, esta crença também ficou visível no teor da nota
de falecimento publicada na rede social, que faz questão de ressaltar a
insatisfação de Raissa mesmo com todas as conquistas. As/os usuárias/
os do Facebook que acessam a página responsável pela publicação,
na sua grande maioria travestis e transexuais, deixaram comentários
que expressam, ao menos implicitamente, certo ressentimento por
Raissa ter tirado a própria vida mesmo após ter conseguido coisas
que outras pessoas transexuais – possivelmente elas/es mesmas/os
– ainda buscam. Alguns destes sujeitos se manifestaram no espaço
virtual através de uma pergunta aparentemente retórica: “como
Raissa poderia estar em depressão e insatisfeita com a vida mesmo
após ter conseguido a alteração de seu registro civil e a cirurgia de
transgenitalização?”.
Uma pergunta deste tipo só faz sentido em um contexto no
qual os “direitos” são construídos como “bens escassos” concedidos
somente àqueles que provam serem merecedores legítimos de
tais “benefícios” (Vianna, 2013). O cenário brasileiro é marcado
pela precariedade e pouca oferta de instituições públicas de saúde
que possuem serviços específicos para o atendimento de pessoas
transexuais,11 bem como pela inexistência de uma lei de identidade

11
O processo transexualizador foi instituído no SUS em 2008, com a publicação
da portaria nº 457/2008. Até meados de 2013, apenas quatro hospitais públicos
estavam habilitados a oferecer a cirurgia de transgenitalização, concentrados na
região centro-sul do Brasil: o Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); o Hospital de Clínicas de Porto Alegre da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); o Hospital de Clínicas Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo (USP); e o Hospital de Clínicas da
Universidade Federal de Goiás (UFG). Em novembro de 2013, o Ministério da Saúde
acatou uma ordem judicial e publicou uma nova portaria (Portaria nº 2.803/2013)
que criou o Serviço de Atenção Especializado no Processo Transexualizador, o que
Governo | 81

de gênero que permita que travestis e pessoas transexuais acessem


o direito à alteração do registro civil de forma legalmente prevista.12
Uma vez que os procedimentos não estão uniformizados e nem mesmo
a “jurisprudência está pacificada”,13 o processo de definição dos
“sujeitos de direitos” acarreta a construção da “terapia de mudança
de sexo” – e, consequentemente, da requalificação civil – como um
tipo de “privilégio” conferido a poucos. Assim, é preciso atentar para
os perigos que um determinado ganho traz, ou, em outras palavras,
para os “possíveis venenos que os presentes guardam” (Vianna,
2005, p. 49). Ao ser considerada como merecedora do direito à
requalificação civil, a pessoa é inserida em um tipo de relação de
“dívida moral”, cujo pagamento deve ser feito por meio da expressão

redefiniu e ampliou o acesso à serviços de saúde voltados para o atendimento de


pessoas transexuais, incentivando a criação de novos centros especializados em
unidades públicas de saúde. Segundo informações divulgadas pelo Governo Federal
brasileiro, há atualmente nove serviços que realizam o processo transexualizador
no SUS (Brasil, 2014).
12
No cenário contemporâneo, temos a tramitação do PLC 5002/2013, também
conhecido como Lei João Nery, proposto pelos deputados federais Jean Wyllys do
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL/RJ) e Érica Kokay do Partido dos Trabalhadores
(PT/DF), que visa estabelecer uma “lei de identidade de gênero”. O projeto tem por
intenção regulamentar não só o processo de alteração do registro civil de travestis,
pessoas transexuais e intersexuais, como também modificar as condições de acesso
à serviços de saúde, tais como a hormonização e a cirurgia de transgenitalização,
as quais não seriam mais encaradas como parte de um “tratamento” para uma
patologia e, portanto, não dependeriam mais de um diagnóstico e/ou autorização
judicial. Entretanto, o projeto parece caminhar a passos lentos. Após ter sido
desarquivado no início de 2015, o PLC está atualmente na Comissão de Direitos
Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados e recebeu parecer favorável
à aprovação com emendas do relator deputado Luiz Albuquerque Couto do Partido
dos Trabalhadores (PT/PB). Apesar da lei de identidade de gênero ainda não existir,
a utilização do nome social por instituições públicas e privadas tem se constituído
enquanto um mecanismo que tenta minimizar os constrangimentos enfrentados
por pessoas transexuais em situações em que os documentos de identificação são
solicitados. Neste sentido, uma série de manobras políticas foram acionadas por
instâncias como o Ministério da Educação (MEC) e Ministério da Saúde (MS), para
que as/os usuárias/os do Sistema Único de Saúde (SUS) e de instituições públicas
de ensino possam ser identificados pelo nome utilizado publicamente.
13
Jurisprudência ou entendimentos “pacificados” são expressões que designam a
consolidação da jurisprudência sobre um dado assunto, ou seja, é quando conclui-
se que uma determinada interpretação é a mais adequada para julgar casos
semelhantes.
82 | (Des)Prazer da norma

da gratidão. Como demonstrou Coelho (2006), nas relações de troca


entre pessoas de status desiguais, a demonstração da gratidão figura
como forma possível de retribuição da dádiva, pois opera para a
manutenção da hierarquia.
Entretanto, se existe uma dívida, se faz necessária a
pergunta: se deve a quem? No caso de Raissa, quando ela renuncia
tanto ao direito à requalificação civil quanto à vaga no programa
de assistência a pessoas transexuais do HUPE, ela não retribui as
“dádivas” que lhe foram concedidas. Pelo contrário, Raissa, de certa
forma, “ofendeu” um amplo conjunto de sujeitos: as profissionais
da Defensoria Pública, que despenderam seu tempo e energia
realizando os procedimentos de assistência para que ela pudesse
protocolar a ação de requalificação civil; os juízes e promotores –
os quais representam o “Estado” através do Judiciário – que deram
procedência ao pedido de alteração do registro civil, abrindo assim
uma “exceção” à regra de imutabilidade do prenome; e, até mesmo,
as outras pessoas transexuais que ainda aguardam na fila para terem
seus desejos atendidos. Isto é, a renúncia de Raissa foi vista, ao
menos em um primeiro momento, como uma forma de “ingratidão”.
Com relação ao ressentimento manifestado pelas/os leitoras/
es da página do Facebook, acredito que a resposta mais honesta
para o questionamento feito por elas/es pode ser encontrada na
própria nota de falecimento publicada pelas/os administradoras/
es da página. Como o texto expõe de modo claro, apesar de –
supostamente – ter passado por todos os procedimentos previstos
na “terapia de mudança de sexo”, Raissa continuava não sendo
aceita socialmente como mulher e, de acordo com suas constantes
reclamações apresentadas nos corredores do NUDIVERSIS, essa
era uma das fontes de sua insatisfação. Outras frustrações, não
menos importantes, eram oriundas das dificuldades econômicas
enfrentadas, das condições de trabalho, da situação de habitação etc.
Assim, há uma característica da “terapia de mudança de
sexo” que precisa ser urgentemente discutida. Esta, do modo como
se encontra construída discursivamente, invisibiliza críticas e não
admite interpelações. Ao comparecer no NUDIVERSIS para solicitar
a “reversão de seu processo”, Raissa se deparou não apenas com
uma série de obstáculos, mas também com muitos apelos para que
desistisse da ideia de alterar seu registro civil novamente. Nenhuma
das propostas oferecidas como “solução” pelas funcionárias do
Governo | 83

núcleo – processar o Estado para garantir a realização da cirurgia de


transgenitalização; abrir um novo processo solicitando a alteração
do sexo no registro civil; ou passar pelo mesmo procedimento para
obter um registro no masculino novamente – escapam ao roteiro
previsto pela “terapia de mudança de sexo”.
Deste modo, concordo com Ventura (2010) quando a
autora argumenta que a “terapia de mudança de sexo” impede o
exercício de uma ampla autonomia, uma vez que a única liberdade
que o sujeito tem é a de “procurar o tratamento”, e não decidir por
quais procedimentos e intervenções quer passar. Além disso, como
observou Mauss (2003) muitas décadas atrás, quando a magia dá
errado, a crença protege a magia de ser questionada e atribui ao
mágico a responsabilidade pela falha. Quando a “terapia de mudança
de sexo” não funciona, a autoridade médico-científica impede que
o “tratamento” seja contestado, pois, uma vez que o “problema”
se encontra no indivíduo transexual, somente o próprio pode
ser responsabilizado pelo insucesso da “terapia”. Logo, mais do
que proteger sujeitos supostamente vulneráveis – como descrito
no documento que fundamenta a necessidade de criação de um
núcleo especializado para o atendimento da “população LGBT” –,
esta construção tem por função resguardar os aparatos do Estado
e a manutenção do dispositivo da transexualidade (Bento, 2006).
No caso de Raissa, tal preservação do Estado fica clara na medida
em que a patologia é retransferida para ela – não mais a “disforia
de gênero”, mas sim a “depressão” – e o “problema” é novamente
localizado apenas nela.

Dos limites da promessa: os trânsitos de gênero e suas (im)


possibilidades

De acordo com Bento (2004), a experiência transexual é


caracterizada por uma série de deslocamentos, principalmente no
que diz respeito às normas de gênero. Para a autora, uma afirmativa
do tipo “eu sou uma mulher/um homem que nasceu em um corpo
errado” revela a maleabilidade dos corpos ao lançar luz sobre as
constantes tensões entre o gênero e o corpo-sexuado nas vidas
de pessoas transexuais. Mesmo concordando com Bento quando
ela faz coro com a teoria da performatividade de gênero de Butler
84 | (Des)Prazer da norma

(2003) e destaca o caráter notoriamente plástico dos corpos a


partir das experiências transexuais, acredito que é preciso prestar
maior atenção aos limites e possibilidades desses trânsitos de
gênero, de modo a fomentar uma urgente discussão sobre o tema
que se mantenha distante da dicotomia natureza versus cultura
e que, sobretudo, esteja alerta ao perigo de resvalar em uma (re)
essencialização do sexo.
Questionar os limites dos trânsitos de gênero – ou da
performatividade, se preferirmos – não é uma novidade nos debates
sobre a temática. A própria Butler (1993 e 2004) já ofereceu uma
série de considerações a partir das críticas que foram feitas ao seu
livro Problemas de Gênero. Para a autora, uma leitura apressada e
simplista de suas proposições fez com que muitos acreditassem que
ela defendia o gênero como uma escolha livre e autônoma, baseada
apenas na performance dos sujeitos. Assim, seu pensamento era
visto como, de certa forma, alinhado com teorias construtivistas
que colocavam o gênero – que estaria ao lado da “cultura” – em
oposição ao sexo – que seria parte da “natureza”. Butler responde a
essa leitura e busca afastar sua teoria de abordagens construtivistas
enfatizando o processo de “materialização” dos corpos, pois, segundo
ela, o construtivismo elabora um discurso sobre o gênero como um
elemento cultural, o que posiciona o sexo em um lugar de natureza
que é pré-discursivo e inquestionável.14 Para Butler, a distinção
entre sexo e gênero não faz sentido, uma vez que não existe um
sujeito prévio ou exterior aos mecanismos de regulação que operam
simultaneamente a sujeição e a subjetivação dos indivíduos.
A materialidade dos corpos, por sua vez, é efeito de
um poder produtivo e é governada por normas culturais que
determinam a possibilidade de reconhecimento da existência
do sujeito. Assim, o limite da invenção da performatividade é o
olhar do outro, já que é esse olhar que confere a materialidade dos
corpos. Logo, os “corpos importam”, pois, é o corpo que oferece a
matriz da performatividade de gênero possível, uma vez que este
é visto como uma espécie de “lugar” no qual as normas sociais são

14
Butler apresenta duas críticas principais ao construtivismo: por um lado, ela
aponta um paradoxo inerente a esta abordagem, uma vez que o pré-discursivo
é delimitado justamente por um dado discurso; e por outro, argumenta que o
conceito de “natureza” é histórico e ligado à emergência dos meios tecnológicos de
dominação.
Governo | 85

incorporadas e atualizadas (Butler, 1993).


Se questionar a possibilidade dos trânsitos de gênero não
representa um grande avanço na discussão, apenas atentar para a
existência dos limites da promessa da “mudança de sexo” também
não é inédito, uma vez que isso foi sinalizado por Zambrano (2005) há
mais de dez anos. Segundo ela, após a cirurgia de transgenitalização,

(...) os transexuais deixam de pertencer ao sexo de nascimento,


mas não passam a pertencer inteiramente ao outro. Quero
chamar atenção para o fato de a medicina continuar classificando
transexuais como tais, reafirmando que serão sempre transexuais,
jamais homens ou mulheres (Zambrano, 2005, p. 109).

Contudo, acredito que ao trazer para a discussão a história


de Raissa, posso contribuir com algumas reflexões e propor certas
perguntas ainda não formuladas ou que não receberam a devida
consideração. Quando Butler (1993) aponta o “olhar do outro” como
elemento constitutivo da materialidade dos corpos, entendo que ela
está tentando chamar atenção para a importância da dimensão do
“reconhecimento social” na definição do sexo/gênero dos sujeitos.
No caso de Raissa, a negação de sua identidade fica evidente quando
lemos na nota publicada no jornal que ela era uma “travesti que
mudou de nome”, cuja morte, quase que obviamente, não pode estar
relacionada a outro fator que não um crime. Suas dificuldades em
transicionar15 foram relatadas em inúmeras ocasiões e situações,
como descrito ao longo do texto.
Dito isso, quero deixar claro que meu objetivo não é, de
forma alguma, “provar” que a “mudança de sexo” é algo impossível
porque o “sexo” é, no fim das contas, imutável. Um posicionamento
como esse implicaria em tomar o “sexo” como algo dado, natural
e essencializado. Minha intenção é formular críticas acerca da
“terapia de mudança de sexo” ao trazer para o primeiro plano
da discussão a questão do “reconhecimento social”, tendo em
vista que é o não reconhecimento das formas pelas quais as
pessoas transexuais se identificam que revela as fragilidades do
discurso sobre a “terapia de mudança de sexo” e da promessa de

15
O verbo “transicionar” tem a ver com fazer uma transição. Entre as pessoas
transexuais, o termo é utilizado para descrever o processo pelo qual os sujeitos
fazem a transição de um gênero para o outro.
86 | (Des)Prazer da norma

reconstrução da vida que a acompanha.


Em primeiro lugar, considero fundamental destacar que
as tensões entre diferentes mundos sociais não se esgotam com
a aquisição de um documento, que é perigosamente fetichizado
como aquilo que resolverá o “problema” das pessoas transexuais
através da fabricação de uma suposta coerência entre corpo, mente
e identidade. Como já abordado por autores como Goffman (1975
e 1988), a identidade não é fixa e sem contradições, de modo que
seu reconhecimento faz parte de jogos relacionais e interativos
complexos, dos quais os documentos de identificação, apesar de
extremamente importantes, figuram apenas como mais um elemento.
No caso de Raissa, foi justamente a aquisição dos documentos
devidamente alterados que significou a disjunção insuportável e o
desencaixe absoluto. A figura da travesti, reiteradamente apagada
pelos procedimentos que compõem a “terapia de mudança de sexo”,
reapareceu nas suas interações cotidianas como, por exemplo,
quando ela foi buscar um novo emprego e até mesmo após sua morte,
quando a nota publicada no jornal a descreveu como uma “travesti
que mudou de nome”.
Além disso, o Estado, enquanto produtor de categorias que
regulam e dão significado à vida (Bourdieu, 1989), não é capaz
de dar conta das complexidades vivenciadas pelos sujeitos. O
caso de Raissa revela a ilusão da homogeneização e estabilização
das múltiplas formas de experiência da transexualidade que são
pretendidas pelo aparato administrativo estatal e construída através
da série de mecanismos e tecnologias de gestão. Neste sentido, o
ruído provocado pela “denúncia” de ineficácia dos serviços e pelo
desejo de propor uma solução própria para o que Raissa julgava
serem seus problemas, ilumina o efeito de “naturalização” – e,
consequentemente, de apagamento das relações de poder envolvidas
neste processo – promovido pelos inúmeros discursos que
circundam a “terapia de mudança de sexo” na medida em que estes
tentam equalizar procedimentos políticos, administrativos e morais,
todos produzidos para serem vistos como os únicos “corretos” e
indiscutivelmente eficientes.
Dito isso, acredito que seja possível afirmar que a promessa
de “mudança de sexo” nunca poderá ser efetivamente cumprida16

16
Da mesma forma que a “mudança de sexo” nunca poderá ocorrer efetivamente, as
Governo | 87

enquanto as normas que regulam os gêneros se mantiverem em


uma oposição binária que não apenas reproduz, mas também está a
serviço de uma noção restritiva de sexo (Butler, 2003). A não aceitação
da identidade relatada por Raissa e descrita na nota publicada
no Facebook sugere que há uma determinada concepção de sexo,
marcada pelo essencialismo, disseminada no senso comum. Ainda
que não vincule o sexo à presença das genitálias, esta concepção
pode ser considerada essencialista na medida em que o sexo é
tomado como algo natural e certamente biológico, mas cuja essência
é difusa e não localizável, acarretando assim a sua imutabilidade, ou,
como aponta Butler (2004) ao analisar o caso de David/Brenda,17 há
algo na experiência de gênero vivenciada por David que possui um
significado profundo, algo como uma verdade interna e necessária, a
qual nenhum tipo de socialização ou intervenção corporal é capaz de
alterar (Butler, 2004, p. 62). Ou ainda, como discute Foucault (1980)
ao comentar os diários de Herculine Barbin, parece existir uma
necessidade das sociedades ocidentais modernas em desvendar
o “sexo verdadeiro”, o qual é “primário, profundo, determinado e
determinante da identidade sexual” (Foucault, 1980, p. viii). No caso
das pessoas transexuais, tal inalterabilidade do “sexo verdadeiro”
pode ser percebida através das máximas que podem ser ouvidas
cotidianamente, tais como “fulano nasceu mulher”, “fulana nasceu
homem”, “nunca será mulher porque nunca gerará filhos”, “mulher/
homem de fábrica”, entre tantas outras.

normas de gênero também nunca poderão ser plenamente satisfeitas por um sujeito
e, portanto, ambas serão sempre violentas, como já salientou Butler (2003 e 2004).
17
David/Brenda – ou caso John/Joan, como ficou mais conhecido – foi um rapaz que
teve seu pênis severamente lesionado durante um procedimento de circuncisão nos
anos 1960. Após terem contato com as teorias de John Money sobre o sexo/gênero
como algo que depende muito mais da socialização do que da fisiologia, os pais de
David resolveram criá-lo como uma menina, sob o constante acompanhamento
de Money. Contudo, David passou por uma série de conflitos identitários na
adolescência, pois não se via como uma menina. Quando seus pais lhe contaram que
ele havia nascido menino, David adotou uma identidade masculina e passou pelo
processo cirúrgico de reconstrução do pênis. Ele se suicidou aos 38 anos, período
em que estava enfrentando um quadro depressivo. Esse caso é até hoje polêmico
e alvo de disputas. O psicólogo John Money o utilizou exaustivamente para provar
suas teorias sobre a “socialização do sexo”, ao passo que o jornalista John Colapinto
(2000) escreveu um livro sobre a vida de David denunciando os abusos cometidos
por Money e sua equipe.
88 | (Des)Prazer da norma

Uma série de críticas já foi feita por outras pesquisadoras


à ideia da “terapia de mudança de sexo”. Segundo Teixeira (2013),
a definição de “disforia de gênero” que consta no DSM pressupõe
que a causa do sofrimento vivenciado por pessoas transexuais é o
“transtorno” ou a “perturbação”, enquanto a verdadeira fonte destas
dores – as normas sociais – não são problematizadas. Na mesma
linha, Bento (2004 e 2006), salienta que a construção desta “terapia”
reforça uma lógica que aloca a fonte dos conflitos que perpassam
as experiências transexuais nos “indivíduos transtornados” e não
nas normas de gênero. De acordo com a autora, é esta localização
do conflito única e exclusivamente nos sujeitos que atua para a
naturalização e despolitização da questão e reproduz os mecanismos
operativos do dispositivo da transexualidade. Em suas palavras,

(...) o que antecede aos conflitos com as genitálias são aqueles com
a própria construção das verdades para os gêneros, efetivadas nas
obrigações que os corpos paulatinamente devem assumir para
que possam desempenhar com sucesso os designíos do seu sexo
(Bento, 2006, p. 164).

Partindo das proposições das autoras citadas, minha


contribuição para as discussões acerca da “terapia de mudança
de sexo” se concentra na problematização da promessa de
transformação de homens em mulheres e vice-versa. A construção de
uma única forma legítima de apreensão das experiências transexuais
– o diagnóstico da “disforia de gênero” – e, consequentemente, de
uma única possibilidade de “tratamento” – a “terapia de mudança
de sexo” – impõe uma única forma de reconhecimento destas nos
marcos daquilo que é considerado como “humano”, o que, por sua
vez, pode inviabilizar não somente o exercício da cidadania, mas a
vida como um todo.
Ao apreender as pessoas transexuais como sujeitos
unicamente do sexo/gênero – ignorando assim uma série de outros
fatores preponderantes, tais como raça, classe, idade etc. – e localizar
o “problema” exclusivamente na pessoa, a “terapia de mudança
sexo” passa a ser vista como um “protocolo de tratamento”, como a
única forma possível de resolução dos diferentes tipos de conflitos e
sofrimentos. Em outras palavras, tal promessa extrapola a dimensão
do sexo/gênero ao promover a ideia de um “renascimento”, como
Governo | 89

se através da “mudança de sexo”, questões relativas ao racismo,


discriminação etc. pudessem ser magicamente solucionadas.
A incapacidade da “terapia de mudança de sexo” de resolver
todos os “problemas inerentes à transexualidade” é exposta de um
modo visceral nos relatos de Raissa. Contudo, até mesmo no que
diz respeito ao sexo/gênero, a possibilidade desta “terapia” falhar
em algum ponto é grande – ainda que todas as suas etapas sejam
executadas como previsto – e, assim, a promessa de transformação
radical da vida pode nunca ser efetivamente cumprida.

Considerações finais

Antes de mais nada, é preciso reiterar que ao partir do


caso de Raissa como eixo central das discussões aqui expostas, não
tenho como objetivo oferecer uma narrativa que de algum modo
“justifique” ou “explique” seu suicídio, muito menos questionar a
legitimidade das demandas de pessoas transexuais por determinados
bens de cidadania. Saliento que ao descrever e discutir as práticas
administrativas e interações entre as profissionais da Defensoria
Pública e Raissa, não pretendo me colocar na posição daquele que
pode fazer uma “denúncia” sobre a desigualdade das relações de
poder entre administradores e administrados; “revelar a verdade”
sobre o funcionamento do Judiciário e suas instâncias anexas; ou
oferecer uma “fórmula correta” de realização dos procedimentos no
interior do NUDIVERSIS. Minha intenção é tentar iluminar algumas
questões sobre como tal gestão implica um processo complexo de
constituições múltiplas de “sujeitos de direitos”, políticas públicas e
aparatos de Estado, que é perpassado por inúmeras contradições.
Dito isso, gostaria de terminar esse texto com algumas
reflexões. Butler (2003 e 2004) demonstra que as condições de
inteligibilidade das figuras humanas são compostas por normas
e práticas que são tomadas como pressupostos lógicos. No que se
refere ao sexo/gênero, essas normas e práticas conformam o que
a autora denomina de “matriz heterossexual”, na qual apenas as
equações “homem-pênis-masculino” e “mulher-vagina-feminino”
produzem seres humanos inteligíveis. Partindo da percepção de
que a ordem heteronormativa se impõe e estabelece formas muito
específicas de significar os corpos, penso na “terapia de mudança
90 | (Des)Prazer da norma

de sexo” como um conjunto de procedimentos que tenta fazer


com que determinados corpos e sujeitos se enquadrem nessa
matriz por meio de promessas baseadas nos possíveis ganhos que
essas pessoas terão se elas “habitarem as normas”, para utilizar a
expressão cunhada por Mahmood (2005).
Contudo, ao me deparar com histórias como a de
Raissa, que de modo algum é uma exceção quando falamos de
pessoas transexuais, parece-me imperativo questionar: o que
acontece quando a única “solução” que é oferecida não surte o
efeito prometido? O que fazer nas situações em que os sujeitos só
podem habitar as normas de forma ambígua ou quando não há a
possibilidade de habitar as normas de uma maneira satisfatória?
De que modo é possível produzir respostas para os problemas
enfrentados por pessoas transexuais sem cair em uma armadilha que
acaba por reforçar a heteronormatividade? Como tratar as histórias
de vida de pessoas transexuais em seus próprios termos e anseios, e
não apenas como alegorias de uma luta política contra o binarismo
de gênero? Ou, simplesmente, como questiona Butler (2004), como
fazer justiça a alguém ao analisar um caso tão dramático quanto o de
um suicídio?
As respostas para essas perguntas são inúmeras e
extremamente complexas, de modo que não pretendo oferecer aqui
conclusões definitivas, mas apenas algumas pistas para pensarmos
essas questões. Primeiro, é preciso lembrar que, como mencionado
anteriormente, as normas nunca serão plenamente satisfeitas
por uma pessoa e é isso que as torna permanentemente violentas
(Butler, 2003 e 2004). Além disso, a situação vivenciada por Raissa
faz com que as condições desiguais de possibilidade de habitar as
normas que certos corpos e sujeitos possuem sejam drasticamente
explicitadas.
Ao discutir as ideias de “sucesso” e “fracasso” propagadas
em regimes capitalistas e heteronormativos, Halberstam (2011)
pergunta: o que vem depois da esperança quando os sonhos e
ilusões são despedaçados? Com esse questionamento, o autor não
intenta reordenar ou substituir os critérios que definem as vitórias
e as perdas, mas sim desmontar as lógicas que sustentam tais
conceitos. Assim, ao escrever sobre uma “arte queer do fracasso”, ele
propõe que o fracasso seja encarado como um “modo de vida” que
exigiria menos esforço e que traria outros tipos de “recompensas”,
Governo | 91

não inseridas em uma lógica de consumo.


Isto é: se, para Halberstam, a adoção do fracasso enquanto
perspectiva se configura como um caminho possível para “escapar
das normas punitivas que disciplinam o comportamento” (2011, p. 3)
e das promessas de sucesso que são inalcançáveis para determinados
sujeitos, é fundamental que questionemos etnograficamente de que
maneiras um projeto político como este adquire concretude nas
vidas e nas formações subjetivas.
Para Raissa, eu ousaria dizer que as reiteradas tentativas
frustradas de fazer da sua vida algo melhor a levou a um
esgotamento brutal, de modo que o não cumprimento da promessa
e a impossibilidade de habitar as normas tornou o mundo um lugar
insuportável.
Das ruínas do corpo sudaca: marcas de
vulnerabilidade em performances artísticas

Nathalia Ferreira Gonçales1


Este trabalho pretende analisar práticas corporais
dissidentes na elaboração de um projeto artístico-político sudaca. O
exercício performativo do termo sudaca, uma expressão depreciativa
de uso comum na Espanha e em outros países da Europa para se
referir a pessoas de origem latino-americana, ganha outra indicação
de sentido ao fazer da injúria uma proposta de enfrentamento
aos processos históricos de dominação colonial. A partir das
performances “Merci Beaucoup, Blanco!”, de Michelle Mattiuzzi, e “Cu
é lindo”, de Kleper Reis, traço quatro linhas de afetação para pensar
determinadas manifestações contemporâneas vinculadas ao corpo: a
heterossexualidade, a branquitude, a colonialidade e a tradição cristã.
Em seus trabalhos, Kleper e Michelle vão compondo um movimento
pessoal de cura diante das marcas de inúmeras experiências de
violência inscritas em seus corpos. É precisamente essa dimensão
devastadora dos processos históricos de assujeitamento que
permite a criação de uma narrativa na busca de instrumentos para
uma recomposição particular. O compromisso de identificar as
dores, recolher os danos e aprender com eles é propulsor da força
que possibilita outros modos de habitar as feridas desse corpo em
ruínas. Sendo assim, procuro mostrar como tais práticas artísticas
produzem e reinscrevem as políticas do corpo ao disparar uma
tomada de reconhecimento do caráter precário impresso sobre
algumas vidas.

Merci Beaucoup, Blanco!



Ex-bancária, ex-recepcionista, ex-operadora de telemarketing,
ex-auxiliar de serviços gerais, ex-dançarina, ex-mulher, ex-atendente
de corretora de seguros. É assim que Michelle Mattiuzzi define a si

1
Nathalia Ferreira Gonçales é doutoranda do Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
94 | (Des)Prazer da norma

mesma, em um olhar que lança perspectiva à sua trajetória enquanto


artista negra. Atualmente, Michelle se ocupa em fazer e tentar
viver de performance, embora sua fala pontue a todo momento a
instabilidade da sua escolha. Após graduar-se em Comunicação das
Artes do Corpo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, elege
a cidade de Salvador como possível destino para viver. O interesse
na mudança de residência acontece em função de uma busca pelo
seu lugar de pertencimento dentro de relações raciais, discussão
que chegou tardiamente nas suas inquietações como mulher negra.
“Salvador para mim é o meu amor, porque aqui eu começo a saber
quem eu sou, em que corpo eu vivo”, perceber-se negra em Salvador,
onde “ser uma pessoa negra é uma divindade”, ela diz, permite um
outro panorama de circulação pela cidade e de entendimento de si. É
precisamente no trânsito entre essas duas metrópoles brasileiras que
Michelle forja territórios afetivos capazes de fazer emergir marcas
raciais não como características originárias, mas como experiência
de pertencimento.
O questionamento sobre raça chegou tarde, entre outros
motivos, pela “criação correta” de seus pais, que Michelle acredita
ter estreitado as possibilidades de problematização da sua existência
racializada no espaço social. Ser correta tem o peso de se enquadrar
em um sistema hegemônico branco que, inevitavelmente, anula uma
sorte de questões e outras possibilidades de habitar o corpo. “Eu fui
criada pela minha família para não pensar sobre isso”, ela diz. Quando
Michelle sai do Brasil para viver no exterior percebe e experimenta
diferenças culturais e uma escala sem fim de estereótipos sobre o
corpo negro que, na volta para São Paulo, trazem diversas indagações.
Assim, questões relacionadas à racialização do corpo aparecem de
modo latente em sua vida e, pouco a pouco, ganham contorno em
seus trabalhos:

E aí quando eu saio de São Paulo e volto de novo eu vejo todos esses


questionamentos que o movimento negro trazia que para mim não
fazia efeito (...) Aí surge uma revolta, pois fiz tudo para ser uma
‘pessoa de bem’ dentro das expectativas sociais e de repente era
nada.

No ano de 2012, Michelle se torna Musa de dois coletivos
importantes na cena artística brasileira: coletivo GIA, da Bahia,
Governo | 95

e coletivo Opavivará, do Rio de Janeiro. Ser musa lhe concede


participações especiais nas intervenções públicas dos coletivos
como, por exemplo, distribuir marmitas ao público na abertura para
convidados da Bienal de São Paulo, trabalho realizado em conjunto
com o Opavivará. Do Sudeste em diáspora para o Nordeste, Michelle
acessa uma elite da arte contemporânea da cidade de Salvador
e passa a integrá-la, ainda que de modo marginal, “A Musa é uma
negação, eu nego ser Musa, mas ali eu aceito para poder entrar. Eu
aceito para poder distorcer e negar totalmente tudo isso”. Ao chegar
na Bahia, estabelece residência no bairro de Santo Antônio Além
do Carmo, centro histórico intelectualizado ocupado por artistas
e permeado por um contexto político alternativo, embora seja, ao
mesmo tempo, precário. Perambulando pelos becos de seu bairro,
o olhar de Michelle vasculha um pequeno número de sinais. Indícios
reais das fronteiras que partem a cidade: recai sobre o corpo negro
a precariedade de habitar as ruas. O trânsito de corpos e o acesso
aos territórios nunca foi possibilidade irrestrita para todos. Ao se
perguntar quem são as pessoas que a representam e que lugar elas
ocupam no fluxo da cidade, Michelle percebe que seus pares são
aqueles que “estão sempre no lugar do açoite, no lugar do subalterno,
sempre pedindo uma moeda, estão sempre semi-nuas na rua, estão
sempre no lugar mais desgraçado”. Nesse balanço de inquietudes,
Michelle lança perguntas que se conectam definitivamente ao seu
trabalho artístico.
O começo de sua composição com performance foi
definido na faculdade, espaço de criação artística por excelência,
estabelecido como o lugar irrefutável da formação em artes. Esses
marcos canônicos não fizeram sentido para Michelle, que buscou na
performance uma possibilidade de feitura artística que a deslocasse
das tradicionais representações do ofício. A escolha pelo uso do
corpo decorre de um fracasso com a instituição artística e com
a representação das artes cênicas, apostas pelas quais Michelle
afirma não poder disputar no interior da estrutura que constitui
seus fluxos de mercado. Operar dentro do fracasso da arte significa
abraçar a rua como zona de produção, trabalhar sem ateliê, apostar
em espaços desinstitucionalizados, romper com a linguagem
cênica, mas ao mesmo tempo usá-la sem nenhum compromisso ou
respeito em relação ao que seria rigorosamente adequado. “Para
mim, performance é justamente isso: a minha desculpa para viver o
96 | (Des)Prazer da norma

fracasso”, ela me conta.


No jogo das ambivalências, Michelle tece produções criativas
através de um uso específico do próprio corpo. Em uma altura
imprecisa de nossa conversa, falo principalmente sobre sua relação
com a cena pós-pornográfica e com as manifestações queer no
campo da performance. Michelle não vacila em afirmar que seu
envolvimento com essas linhas de experimentação só pode se dar
a partir de um movimento de negação: “Eu fico me vendo dentro
desses espaços, e eu me aproximo deles por negação”. Ao localizar
um tipo de prática e produção discursiva sobre modos de vida
dissidentes que “vem de um lugar europeu”, Michelle reivindica
para seus trabalhos uma marca irrevogável do lugar de fala que
tanto custou construir para si. É essa dimensão de mulher negra
sudaca que ela tangencia, perpassando as ruínas da colonialidade,
para elaborar sua própria narrativa sobre os processos históricos de
assujeitamento e embranquecimento traçados de forma concreta em
seu corpo. “Eu já alisei cabelo, eu nasci embranquecida. Por isso que
meu trabalho é violento para caralho. Porque eu preciso liberar a
violência que recebo”.
Negar uma filiação ou pertencimento a movimentos
do Norte Global, como as ondas de performances queer e pós-
pornô, ao mesmo tempo em que habita esses espaços em posição
ambivalente, implica provocar ressentimento no modo pelo qual tais
produções inscrevem suas propostas de desestabilização corporal,
revisando o exercício de poder da supremacia branca em função de
seus privilégios geopolíticos de pertencimento. Por isso, Michelle
reivindica penetrar esses espaços para distorcer sua estrutura. “Eu
não vou entrar nesses espaços e ser pacificada, com esse discurso de
‘vamos empoderar’ só para ficar pacificada. Não, não!”, a branquitude
se torna alvo de crítica sobretudo na performance “Merci Beaucoup,
Blanco!”, na qual as práticas artísticas ganham outros contornos ao
serem reescritas na cena brasileira.
Cidade de Malmö, Suécia. “Merci Beaucoup, Blanco!”. Muito
obrigado, branco. Como cenário, um palco totalmente escuro, com
um pequeno banco giratório, uma lata de tinta branca e um pincel.
Michelle invade a cena sem roupa, com o corpo nu em pelo, montada
em um salto alto, tendo a boca tapada por um pedaço de metal
colocado na frente do rosto e preso detrás da cabeça por meio de
duas cordas. Extensamente usada no período colonial com intenção
Governo | 97

de impedir a ingestão de alimentos, bebidas ou objetos de valor, a


“máscara de flandres” submetia pessoas escravizadas à privação, dor
e humilhação, sendo implementada como instrumento concreto de
um projeto brutal de conquista e dominação.
No seu livro “Plantation Memories: Episodes of Everyday
Racism”, a escritora e artista interdisciplinar Grada Kilomba
narra, a partir de uma memória familiar, o uso da máscara como
um instrumento de tortura inseparável das políticas coloniais de
silenciamento do corpo negro. A boca enquanto lugar de enunciação
e de fala por excelência torna-se, por esse motivo, o principal órgão
a ser controlado e repreendido pelas pessoas brancas. De tal modo,
a boca também serve como uma metáfora para a posse. Na fantasia
branca, supõe-se que o sujeito negro ambiciona possuir algo que
pertence ao senhor branco – os frutos, a cana-de-açúcar, o ouro –,
forçando um movimento que intenciona desapropriar o mestre de
seus bens (Kilomba, 2010). Representando o colonialismo em sua
plenitude, a “máscara do silenciamento” tinha como principal função
implementar um senso de mudez e de medo. Caso a boca dos negros
escravizados não estivesse tapada e o silêncio cedesse lugar à fala, o
que poderia ter acontecido?
Tal dispositivo de metal teria como função impedir a fala,
fechar a boca, guardar a verdade a respeito de uma incômoda
relação de violência cuja base foi o apagamento da voz dos sujeitos
negros para a ascensão de uma fantasia branca de poder. É a respeito
dessa memória viva enterrada que Michelle Mattiuzzi ousa contar
em sua performance. No momento em que a máscara é retirada da
boca, a ação performática desponta. A cada pincelada de tinta em
seu corpo, Michelle evidencia como a branquitude só existe através
de um processo de negação de um outro definido como racialmente
diferente de si. A dor de se encontrar presa nessa ordem colonial
reflete o impacto corporal de um imaginário branco que evita a todo
custo uma confrontação desconfortável com as verdades do outro.
Ao pintar seu corpo nu de branco, Michelle traz para a cena uma
série de incômodos:

Eu comecei a pensar nesses constrangimentos. [Na performance,]


esse corpo nu vai ter que fazer situações constrangedoras que o
outro que vai estar vendo esse corpo nu, ele vai se constranger.
Então as posições que eu escolho fazer com o corpo nu é um lugar
98 | (Des)Prazer da norma

de provocação e constrangimento para o outro.

Nesse momento, a artista reverte a posição de enunciação ao


posicionar o corpo branco no lugar do outro, do diferente em relação
a um eu negro como medida da alteridade. É como se ela apontasse
o dedo para cada pessoa branca da plateia dizendo – o racismo é um
problema de vocês –, interrogando a aparente neutralidade e falta
de reconhecimento da identidade branca na perpetuação de uma
hierarquia racial. Desta forma, a performance sugere que a opressão
racial não é uma vicissitude na qual apenas as pessoas “oprimidas”
estão implicadas. Expor a branquitude enquanto modelo universal
de construção racializada sobre o corpo desvela uma espécie de
pacto, de acordo tácito entre um grupo de pessoas que não precisam
reconhecer suas diferentes dimensões de privilégio como parte
essencial na permanência das desigualdades raciais no Brasil.
Se, por um lado, Gayatri C. Spivak (2010) conclui que o
subalterno não pode falar, referindo-se ao fato de que a fala de
grupos marginalizados ou oprimidos é sempre intermediada por
uma voz hegemônica que se coloca em posição de reivindicar algo
em nome do outro, de modo complementar, Kilomba (2010) mostra
como os atos de falar e silenciar emergem de um projeto político
bastante semelhante. Nesta dialética, alguém só pode falar quando
sua voz é ouvida, estabelecendo assim uma negociação entre o
sujeito que escuta e o sujeito que fala. A máscara utilizada no início
da performance de Michelle simboliza este projeto de silenciamento
que busca controlar a possibilidade de que corpos não-brancos
possam falar e, consequentemente, sejam ouvidos.
São aproximadamente vinte minutos de performance. Na
ação de pintar-se de branco, Michelle vai compondo imagens com
o corpo em movimento em um gesto mínimo que pouco a pouco
adquire intensidade. Uma série de posições sensuais e provocativas
envolvem aquele sexo agora travestido de branco, as mãos acariciam
seus seios e coxas até adentrarem seus orifícios não penetrados
pela tinta. Da cavidade vaginal, retira um extenso colar de pérolas
que esteve presente durante toda a ação e, no final, arranca um
texto escrito2 em um pedaço de papel: “Qué ficar bunitu?”. O
fragmento descreve os serviços que um salão imaginário oferece

2
Texto do artista Paulo Nazareth.
Governo | 99

para embelezar seus clientes: alisamento de cabelo, clareamento


de pele, estreitamento de nariz, etc. Desde sua concepção, “Merci
Beaucoup, Blanco!” foi apresentada inúmeras vezes. Em uma das
primeiras execuções da performance, a interpretação do texto não
sofreu nenhum tipo de tradução ainda que estivesse sendo exibido
na Suécia. “Eu leio em português, bem garota. Quem não entendeu,
vai no Google. Vai se virando aí, eu também tô me virando aqui com o
inglês”, me diz Michelle gargalhando.
Em março de 2016, seu apartamento é acidentalmente
queimado por incidência de um curto-circuito devido à má
manutenção do sistema público de energia elétrica no centro de
Salvador. Enquanto o apartamento se torna ruína, Michelle está no
mar. “Eu poderia ter morrido, poderia estar toda queimada porque
com certeza eu ia ficar tentando apagar o fogo em relação às minhas
coisas. Queimou, acabou, não tem mais nada. E o nada tá aqui”. De
repente, o impacto de perder tudo o que havia acumulado na sua
casa, materializações de tempos dilatados, e perceber que ainda
está viva, que seu corpo perdura no presente. Caminhando entre
as ruínas concretas de seu apartamento, Michelle escava memórias
e afetos que permanecem enterrados ao abrigo dos escombros. A
ruína que importa aqui não é apenas a destruição efetiva de todas
as suas coisas, mas a precariedade agravada em consequência dessa
situação de perda.
Revendo nossa conversa para a elaboração deste texto,
me deparo com a seguinte frase de Michelle: “A ruína do que é a
colonialidade me coloca como um corpo de fracasso, um corpo de
subalternidade, um corpo que não é pra viver, praticamente, é um
corpo para definhar”. Impossível não traçar um paralelo entre os
resíduos de violações e destruições deixados pela colonização e o
episódio trágico na vida de Michelle. As ruínas de sua subjetividade,
como efeito de uma ressaca devastadora após um evento crítico,
ganham sentido na busca de instrumentos para uma recomposição
pessoal. Ela me pergunta como lidar com esse drama de uma
maneira que inevitavelmente não a deprima. Medito ideias soltas
e permaneço em silêncio. Como bem disse Jota Mombaça no artigo
The Embodied Margins (2016b), o posicionamento de Michelle em
relação a suas ruínas é de preservá-las ao máximo, aprender com
elas, reconhecer os danos e, em um movimento quase poético, extrair
forças para traçar outras perspectivas. Deste modo, a ruína torna-se
100 | (Des)Prazer da norma

corpo precisamente no gesto de escavar feridas íntimas circunscritas


por um conjunto de violências sofridas nos processos históricos de
colonização. Refletindo sobre o que mobiliza essas experiências,
tanto no nível pessoal como em seus trabalhos de performance,
se é que posso distinguir esses dois planos com precisão, Michelle
reivindica o lugar da dor como um trajeto possível para a cura de
questões que se transpõem no tempo.

Verás que um filho teu não foge à luta

RIO - Num intervalo de sete meses no ano passado, o professor e


performer Kleper Reis, de 31 anos, foi vítima de duas agressões
físicas motivadas pela homofobia, que o levaram a crises de pânico
e o forçaram até a mudar de endereço. Na primeira, três amigos
e ele foram espancados por cerca de 20 homens na Lapa. Na
segunda, Kleper e seu companheiro deixavam uma festa em Pedra
de Guaratiba quando foram abordados por dois homens, um deles
com um pedaço de madeira na mão. Eles arrancaram a saia que o
professor vestia, aos gritos de que ali homem não andava daquele
jeito.3


A escrita deste texto está povoada por memórias de encontros
e pequenas histórias. Abro essa passagem com a matéria de jornal
sobre o espancamento homofóbico sofrido por Kleper e seus amigos,
que eu talvez não pudesse recontar sem dissimular sentimentos
mistos de raiva e pavor. No mesmo movimento, ele me conta sobre
essas violências como algo disparador para a tessitura de seus
trabalhos acerca do corpo, ou “tecnologias de vida”, maneira como
Kleper delicadamente elabora suas imersões de criação cotidianas. O
temor da agressão covarde e as marcas rasgadas nesse corpo de bicha
mestiça do Nordeste vivendo na cidade do Rio de Janeiro convergem em
processos de isolamento, alimentação viva, jejum e zonas de silêncio.
Pouco a pouco, os aniquilamentos profundos de quem apanhou e tem
medo da rua cedem espaço para as composições de um corpo em cura.

3
Trecho da matéria do Jornal O Globo de 27/07/2013. http://oglobo.globo.com/rio/
homofobia-odio-que-cresce-sombra-da-impunidade-9224591#ixzz4JKNEOT6d.
Acesso em agos. 2018.
Governo | 101

Conheci Kleper por intermédio de um relato contado por


uma amiga no ano de 2013. No decorrer de uma festa que acontecia
atrás do instituto no qual conclui minha graduação, em uma praça
pública situada entre o colonial prédio do Real Gabinete Português
e a estátua de D. Pedro I, Kleper enfia a bandeira do Brasil no cu
enquanto executa o hasteamento do símbolo nacional em cima de
uma enorme cruz fincada no centro da cidade, sustentando com
rebolados cadenciados a constelação do cruzeiro do sul e a imponente
ordem e progresso cravada em sua bunda ao som do hino cantado
por Vanusa.4 Dois anos se passam e estou em outra festa. Me dou
conta, como em uma experiência de retorno quase palpável a algo
que não vivi, que assisto a mesma performance de Kleper que me
foi narrada com minúcia há algum tempo atrás. Prestando atenção
ao entorno, procuro rapidamente afastar as pessoas da minha frente
para conseguir ver com mais horizonte a execução amariconada
do hasteamento. A costura da continuação que me vem à memória
conduz imprecisamente para meu primeiro encontro com Kleper,
resultando numa conversa de poucas palavras entrecortada pelo
barulho da festa.
O hasteamento da bandeira faz parte de um projeto maior
chamado “Cu é lindo”, que se estende por capítulos e versículos
em forma de pichação e pintura nos muros da cidade. Sobre o
hasteamento, performance realizada após os reflexos do primeiro
espancamento, Kleper, filho de pai militar e mãe evangélica, me
conta que busca pensar as violências infligidas ao corpo desde sua
infância, quando ainda garoto vivia com os pais e irmãos em uma vila
militar no estado de Natal, Rio Grande do Norte.

Tem a dimensão desse ato de amor, desse casamento entre a


religiosidade e o Estado. A questão do Estado, da coisa do meu
pai militar, de um nacionalismo muito forte com a coisa da
religiosidade, minha mãe é muito evangélica. Essa coisa sensual na
cruz e a bandeira no cu, esfregando o pau. Tem toda a dimensão
desse casamento e têm essas memórias da infância (...) O que
acontece: quando eu nasci, comecei a me entender no mundo, fui
crescendo... eu sempre me identifiquei com o universo feminino.

4
A cantora Vanusa faz uma apresentação desastrosa ao cantar o hino nacional na
Assembleia Legislativa de São Paulo. https://www.youtube.com/watch?v=lOhJ-T-
IKTg. Acesso em agos. 2018.
102 | (Des)Prazer da norma

Eu queria andar como menina, vestir roupa de menina, e gostava


muito de planta, de bicho. Eu sofri muita violência quando criança,
muita repressão, eu cresci numa vila militar, então eu apanhei muito
nessa vila militar dos outros meninos que eram tudo machinho.

Ao mapear a trajetória de Kleper, sua infância compartilhada
com os pais e as principais questões em diálogo com a presença da
religiosidade materna nas suas performances, percebe-se, por um
lado, sua crítica aos códigos morais do conservadorismo religioso
e, por outro, a legitimação por parte do Estado a uma série de
interdições impostas no plano da sexualidade, da feminilidade e do
corpo. Assim, a performance desloca o discurso religioso do lugar
da transcendência, como uma espécie de reino metafísico abstrato,
para enfatizar seus desdobramentos no plano da imanência, ou seja,
na experiência humana de habitar o mundo. O que Kleper denuncia
são os efeitos de numerosos dogmas e condenações sobre condutas
consideradas desviantes pela Igreja, que não apenas maldiz prazeres
dissidentes, relações homossexuais e pessoas transgêneras,
como também afirma publicamente que as mesmas são o mal da
humanidade, uma deturpação do ser humano e uma ameaça ao
heterofuturo.5 A sexualidade renegada pelas regras morais religiosas
volta encarnada na erotização da cruz para reivindicar a existência
de corpos, desejos e gêneros em dissonância com a normatividade
hétero e com o pensamento conservador.
Em território conquistado e colonizado por uma moral
cristã com amplitude nas mais longínquas dimensões da vida, o
hasteamento da bandeira na cruz ativa um processo de profanação
do sagrado, misturando elementos religiosos e eróticos para
expurgação do empreendimento de cristianização sobre o corpo de
Kleper. Ao fazer uso de uma dimensão pornográfica como tática de
subversão e deboche da ordem social, tal projeto vai ao encontro
de uma tradição performática latino-americana anterior, como
o polêmico trabalho de Marcia X. ou a apropriação da imagem da

5
Proponho a categoria heterofuturo para me referir à retórica de família, reprodução
e heteronormatividade sob a qual a civilização ocidental está fundada. O problema
do futuro, que Lee Edelman (2004) evidencia claramente no livro No Future: Queer
Theory and the Death Drive, é que quando pensado como desenvolvimento linear e
coerente do passado e do presente, monopoliza a imaginação política, impedindo de
ressignificar de maneira criativa conceitos como comunidade ou parentesco.
Governo | 103

Virgem de Guadalupe por artistas feministas chicanas. A trajetória


artística de Marcia X. é marcada por censuras. A última delas, em
abril de 2006, ocorre em função da obra “Desenhando com terços”,
na qual a artista realiza desenhos de pênis com terços no chão. A
obra foi considerada ofensiva por misturar religião e erotismo e, após
diversas manifestações de católicos, finalmente retirada da mostra
“Erótica – Os sentidos na arte”, exibida no Centro Cultural do Banco
do Brasil do Rio de Janeiro. Esta tradição encontra na blasfêmia uma
estratégia política e estética de questionamento da moral sexual
cristã no contexto latino-americano. Neste caso, a blasfêmia, o
insulto a algo divino ou sagrado, cria lugares de enunciação a partir
da reprovação ao conservadorismo religioso que opõe o sagrado às
dimensões mais ordinárias da vida, especialmente à sexualidade.
A violência que ritmou incansavelmente todo o arranjo
colonial vem à tona na representação da cruz, um dos símbolos
de domínio durante o projeto de expansão dos jesuítas nas
Américas. No ato de cruzar fronteiras proibidas capazes de
macular o objeto sagrado, o trabalho de Kleper propõe outro
sentido ao valor monástico da cruz por ironicamente conjugar
religião e sexualidade. Ao destituir o caráter sagrado do objeto
religioso, utilizando-o em uma interação erótica com seu corpo,
Kleper profana a valorização cristã do auto-controle, da culpa e
da contenção através de uma paródia exagerada da libertinagem
e do embaralhamento entre múltiplos elementos, como a bandeira
do Brasil representando a pátria, o Estado e sua associação
pouco discreta com o fundamentalismo religioso. Pouco a pouco,
o desconforto causado pelo deboche aos códigos morais cristãos
cede lugar ao entendimento da opressão que o discurso religioso
habitualmente suscita a esse corpo de bicha sudaca submetido a
históricas violências de colonização e catequização (Sarmet, 2015)
Longe das narrativas festivas de liberação sexual exaltadas
pelas políticas anais, “Cu é lindo” busca revelar as forças que
inscrevem sobre determinados corpos uma combinação das marcas
indistintas de exotismo, ódio, desejo e vigilância. Se o corpo é a
superfície marcada pelos acontecimentos de uma vida, o registro da
experiência de “Cu é lindo” nasce de um drama, desponta de uma
sequência de evocações da dor na trajetória desse indivíduo. Este
processo autobiográfico desperta com o impulso do dia em que
Kleper vai para a rua trajando uma saia e, no caminho de volta, é
104 | (Des)Prazer da norma

agredido e insultado verbalmente. Chegando em casa sufocado, se


retira para o quarto e pinta na parede a frase: cu é lindo.

Me tranquei no quarto e escrevi num momento que não sei nem


explicar exatamente o surgimento dessa imagem. Mas é uma
imagem que tá possuída de dor, de sofrimento. Na verdade, o cu é
lindo não tem nada de bonito, é muita dor, velho (...) Meu corpo foi
construído na base da violência. Eu apanhei muito na rua, fui muito
humilhado no colégio. É um processo de vida que nunca acabou.
Nunca acabou! Nunca deixaram de me bater, desde muito pequeno
até... Só em 2012 eu fui espancado duas vezes. Então, são trinta
anos de história de porrada e eu tenho muitas marcas de medo.

Um corpo impresso de um sem-número de violências que cria
para si pequenas ações para enfrentar o medo dessa ferida histórica.
“A horta me ensina muito”, ele me diz. Observo sua horta no exterior da
casa, a germinação das sementes através da técnica de compostagem
de sua própria merda. Elaboro essa passagem excrementícia
enquanto momento de abertura no qual o interno devém externo,
borrando com ironia a frágil fronteira que reveste e assegura a
impermeabilidade dos corpos dotados de coerência dentro da matriz
heterossexual (Butler, 2003). Tal fissura forçosamente nos recorda
que alguns modos de permeabilidade corporal invalidados pela
ordem hegemônica constituem, nesse sentido, um lugar ameaçador
ao evidenciar a luta pela inalcançável estabilidade que pressupõe
tal corpo provido de coerência. Consequentemente, a elaboração
de contornos corporais estáveis repousa sobre zonas mediadas por
fronteiras reguladoras de sua própria permeabilidade.
Diante da iminência de perigo anunciada nos persistentes
assédios e ataques homofóbicos, Kleper rebate com o perigo que as
fronteiras permeáveis de seu corpo, em particular, representam para
o regime heterossexual. Pensar o cu como uma das fronteiras do
corpo, e reivindicá-la como potencialmente penetrável ao deslocá-
la de seu locus exclusivamente abjeto, sugestiona a vulnerabilidade
dos sistemas que regulam e demarcam os lugares somáticos de
poluição e perigo. Em relação a outras zonas corporais, o cu só
pode ser considerado poluído e poluidor se for tomado como
constitutivo do sistema simbólico heterossexual. Mary Douglas
(1976) afirma que sujeira é, essencialmente, desordem. A sujeira do
cu pode ser pensada, a partir de Douglas, como subproduto de uma
Governo | 105

ordenação e classificação sistemática da heteropartição do corpo e


do estabelecimento de determinados órgãos como inteligíveis para
o uso do sexo, do desejo e do prazer.
O orifício de Kleper, cuja permeabilidade escapa à validação
da norma, denuncia a construção de um modelo corporal regido
pela exclusão e negação da porosidade de seus contornos. Em
outras palavras, ele contradiz um corpo marcado por ausências
e camadas estancadas. Judith Butler (2003) afirma que o corpo
não é um “ser”, mas precisamente uma fronteira variável, uma
superfície politicamente regulada através de sua permeabilidade. No
momento em que Kleper reinscreve a fronteira de seu orifício anal
ao dramatizar sua unidade fabricada, tanto em suas performances e
penetrações públicas como em práticas cotidianas – ou “tecnologias
de vida”, sejam elas eróticas ou excrementícias –, ele produz para si
uma desagregação corporal capaz de deslizar na ficção reguladora
de adequação hétero.
Em setembro de 2015, aconteceu na cidade de Salvador,
Bahia, o II Seminário Internacional Desfazendo Gênero. Com uma
programação intensa ao longo de quatro dias integrados por
simpósios, palestras e minicursos, o seminário teve como objetivo
celebrar a aliança entre teoria e prática com o tema “ativismo das
dissidências sexuais e de gênero”. Compondo a numerosa lista de
oficinas oferecidas, o primeiro dia de seminário trouxe a ativista
espanhola Diana Torres e suas práticas pornoterroristas. O espaço
da oficina é uma sala fechada dentro da Universidade Federal
da Bahia. Chego atrasada e de imediato localizo muitas pessoas
conhecidas e amigos, percorro cada um dos rostos e logo distingo
o de Kleper sentado na minha direção. Diana fala lentamente,
se esforçando para que seu castelhano seja compreensível aos
nossos ouvidos. Algumas pessoas arriscam fazer uma tradução
improvisada. A proposta da oficina é descomplicada: cada uma de
nós deve escrever no papel um medo bem assombroso e depois
compartilhá-lo coletivamente. A partir da exposição dos medos,
pensaríamos uma performance onde todos pudessem colaborar
de alguma maneira. Entre segredos, confissões e zonas cinzentas,
vamos tecendo com nossos próprios corpos em sintonia uma
expurgação pública dos mais íntimos temores.
Um rápido intervalo é proposto por Diana, que logo em
seguida convida todos para descer até o pátio externo do campus.
106 | (Des)Prazer da norma

Concordamos com a ideia, afinal, fazia calor no interior da abafada sala


universitária. Aos poucos, as pessoas vão se instalando no gramado
e tirando suas roupas sem pretensão. Completamente nus, sentamos
em círculo debatendo como seria a performance, programada para
a noite do dia seguinte em uma rua nas imediações da Universidade.
Entretida com o excitante clima de proposição, não me dou conta que
um grupo numeroso de pessoas nos cerca pelas costas, registrando
cada detalhe do acontecimento em seus celulares como se assistissem
a um espetáculo. Percebo a situação no momento em que Diana
levanta, visivelmente incomodada, e pede para que eles parem de
fotografar nossos corpos nus sem autorização. Interrompemos a
oficina lançando um olhar de desinteresse para aquelas pessoas
que, em uma mistura de voyeurismo erótico e aversão, riem e fazem
piadas sobre nossos corpos tão à vontade espalhados pela grama.
No dia seguinte, uma das manchetes estampadas em quatro
dos principais jornais do Estado da Bahia anuncia com surpresa:
“Estudantes são flagrados assistindo palestra pelados na UFBA”.
Fatalmente, as fotos vazaram e foram expostas no Facebook, criando
“burburinho nas redes sociais”, conforme informa a matéria. Na
postagem que veio à tona, a pessoa se mostra escandalizada com a
situação e questiona o motivo da nudez explícita no pavilhão de aulas.
Manifestando total desaprovação, o texto dispara: “Só falta afirmar
que estão gastando a grana suada e sagrada do contribuinte pagando
bolsas de ‘pesquisa’ a essa galera. Esse povo não tem mais o que
inventar”. No momento em que caíram na Internet e se multiplicaram
viralmente, as fotos da ação serviram de inspiração para o arcebispo
metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba, Dom Eduardo Benes de
Sales, escrever sobre a vergonha e o perigo da ideologia de gênero
no imaginário das crianças, localizando o pornoterrorismo como
um instrumento repugnante de destruição de símbolos cristãos. O
arcebispo se mostra preocupado:

Por sentir vergonha de publicar outras fotos que esclarecem um


pouco mais o que significa pornoterrorismo, apenas sugiro que
você as encontre na internet pesquisando; “Pornoterrorismo, Diana
J. Torres”. (Clique em Imagens, mas prepare seu estômago). E cuide
bem de seus filhos.6

6
Para ler a matéria completa: http://www.jornalcruzeiro.com.br/materia/643558/
pornoterrorismo. Acesso em 20 jan. 2017.
Governo | 107

Fazia tempo que Kleper desejava produzir uma intervenção


do “Cu é lindo” versão culetiva, como ele gosta de brincar. Em
colaboração com Diana Torres e os demais participantes da oficina,
ele concretiza sua ideia em uma foto. Na verdade, trata-se de uma
recordação para todos aqueles que, perturbados diante de nossos
corpos nus, não obtiveram sucesso em nos constranger. Algumas
pessoas agachadas acomodam-se de quatro na grama, outras inclusive
afastam suas nádegas com a ajuda das mãos. Assim, formamos uma
fileira de corpos sem troncos, apenas pernas e bundas oferecidas ao
olhar atento da plateia improvisada. Na parede ao fundo pode-se ler
em fonte rosa fúcsia a sentença: cu é lindo e geralmente tem cabelo.
Expondo os cus a céu aberto na presença de eventuais voyeurs,
nossos corpos encenam uma espécie de conquista e sexualização de
um espaço restrito a determinados usos, colocando em prática uma
estratégia de reviravolta das fantasias regulatórias que separam o
público do privado.

Oficina de Pornoterrorismo com Diana Torres. Intervenção realizada por Kleper Reis e
colaboradores durante o Seminário Internacional Desfazendo Gênero em Salvador, 2015.
108 | (Des)Prazer da norma

Rumo a uma ética menor



Tentei evidenciar, por meio de violências sofridas a
contragosto, a vulnerabilidade que atravessa a construção dos
corpos aqui narrados. Situações de exclusão e violência sistêmica
compõem parte da vida diária de pessoas trans, sapatonas e bichas,
principalmente as racializadas e empobrecidas, assim como outros
corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero. Nesse sentido,
a violência sexual e de gênero funciona para lembrar que os corpos
dissidentes perturbam as normas sociais ao traírem a permeabilidade
das próprias fronteiras e categorias que mantêm essa visão de mundo
(Mason, 2002). Dito de outro modo, a violência pode ser lida como
lembrança e reforço das regras rompidas pelos modos de vida não-
normativos. Como Jota Mombaça (2016) propõe, nomear a norma
seria o primeiro passo para desmantelar esse monopólio irrestrito
da brutalidade que se abate sobre nossos corpos. Principalmente
porque deve-se entender que a norma é aquilo que não se nomeia
e é nisso que consiste o seu privilégio. Ao marcar a branquitude,
a colonialidade, a heterossexualidade e as tradições cristãs como
parte de um projeto histórico de assujeitamento, tentei deslocar
essas posições de seu conforto ontológico insuspeito, expondo os
mecanismos que asseguram o seu funcionamento e garantem suas
técnicas de poder.
Minha escolha por manifestações artísticas contemporâneas
no campo da performance tem a ver com a utilização do corpo como
matéria e suporte de investigação e exploração da ordem social.
Os atos corporais disruptivos de Michelle e Kleper visibilizam
a vulnerabilidade de seus corpos, disparando uma tomada de
reconhecimento do caráter precário impresso sobre suas vidas. Julia
Kristeva (1988 apud Seligmann-Silva & Nestrovski, 2000) aponta
que onde não é mais possível representar, o que resta é a experiência
da ferida. Não é preciso passar por uma violência para reconhecer as
contingências traumáticas dessa experiência. Os acontecimentos na
vida de Kleper e Michelle deixaram marcas profundas. Aproximando-
me do pensamento de Seligmann-Silva (2000), mostro como as
performances narradas buscam expor, através do contato com o
real, as violências às quais esses sujeitos veem sendo submetidos
ao longo de suas vidas. Seja na repetição das pinceladas de tinta
branca espalhadas pelo corpo, nas pérolas arrancadas de dentro da
Governo | 109

vagina, ou na bandeira do Brasil cravada no cu e hasteada na cruz,


a representação da violência imputada em vida e evocada nos atos
performáticos provoca uma retomada da memória da carne como
forma política de resistir às experiências de sofrimento.
É certo que o monopólio da violência não se configura
apenas pelo controle efetivo de ferramentas e dispositivos para
performá-la, mas acima de tudo pelo manejo sobre os limites de
sua definição. Talvez a olhos desavisados, as performances de
Kleper e Michelle possam chocar por manifestar um certo grau
de ferocidade – que muitos vão enquadrar como uma expressão
proponente de violência. No entanto, o que pode ser reconhecido em
ambas as experiências partilhadas é a tentativa de devolução, como
um presente a contragosto, das sistemáticas violências sofridas ao
longo de suas vidas. O uso da raiva como resposta às violências que
formam parte inevitável e estruturalmente integral da configuração
social pode fazer sentido para aquelas pessoas que nunca tiveram a
possibilidade de diálogo como opção. Constitui uma virada reflexiva
o entendimento de que “há formas de violência que estão destinadas
a se contrapor ou a deter outras violências” (Butler, 2015, p. 235) – e
que esses dois tipos de manifestação estão, fatalmente, em diferentes
graus de perspectiva.
A partir do momento que Michelle retira a máscara do
silêncio em sua performance, aquele corpo que foi historicamente
emudecido pelas políticas coloniais assume o lugar de enunciação
para proferir seu desacato mais indomável. Me lembro de um
episódio narrado pela escritora negra e lésbica Audre Lorde (1984)
no livro Sister Outsider. Em uma situação vivida ainda na infância,
a escritora conta que está com sua mãe no metrô a caminho do
Harlem em pleno inverno, o trem cheio balança em alta velocidade
e de repente sua mãe a empurra de golpe para que ocupe o assento
há pouco vago. De um lado do banco, um homem lê os jornais. De
outro, uma mulher com um casaco de pele a olha fixamente. Sua boca
se contrai enquanto a luva de couro puxa seu casaco lustroso para
perto de si. Lorde pensa que a mulher vê algo terrível no assento
entre as duas – provavelmente uma barata. Acompanhando a mirada,
a criança não consegue notar qualquer coisa terrível no assento, mas
a mulher comunica seu horror. Deve ser algo muito ruim pelo jeito
que ela está olhando. De repente, Lorde percebe que não há nada
rastejando no assento entre elas, e entende que a mulher não quer
110 | (Des)Prazer da norma

que seu casaco de pele a toque. Nenhuma palavra é dita. Lorde tem
medo de demonstrar qualquer coisa à sua mãe por não saber o
que havia feito. Olha secretamente para sua roupa de inverno. Será
que há algo nela? Alguma coisa acontece e ela não entende, mas
nunca esquecerá. Os olhos daquela mulher, as narinas abertas em
repulsa. O ódio. Para Lorde, falar sobre a intensidade da raiva das
mulheres negras é antes falar sobre o ódio venenoso que alimenta
essa raiva e sobre como suas vidas foram profundamente marcadas
por crueldades muito antes de saberem de onde procedia tamanha
ira. Ao defender o uso legítimo da raiva como resposta ao racismo,
Lorde retorna às pessoas brancas o horror da exclusão, do privilégio
inquestionável, dos silêncios e dos inúmeros maltratos sofridos.
Vejo as performances narradas não somente enquanto
possibilidade de representação artística, mas igualmente como
alternativa de partilha de modos de existência que se colocam
em risco quando anunciam sua própria visibilidade. As ações
performáticas tensionam, no limite, quais são os corpos que podem
ser visíveis sem que paire sobre eles a força da violência nas
relações sociais. A performance de Kleper notoriamente confronta
esta impetuosa dimensão do poder. A partir das marcas deixadas
por agressões homofóbicas sofridas na rua, é possível compreender
como determinadas dinâmicas da heteronormatividade são capazes
de produzir a precariedade de algumas vidas e a integridade
de outras. A violência homofóbica, dentre outras expressões de
hostilidade, é uma forma de inferiorizar e desumanizar os sujeitos
que vivem práticas sexuais e afetivas fora da heterossexualidade
e que manifestam performances de gênero distintas aos
padrões hegemônicos de masculinidade e feminilidade. Em uma
releitura de Monique Wittig, Butler (2003) propõe o conceito de
matriz heterossexual como uma formulação fundamentada no
suposto alinhamento entre sexo, gênero e desejo, e implicada
na pressuposição da heterossexualidade como princípio dado
da estrutura social. A homofobia seria então uma expressão de
desconforto moral causado pela ruptura desse alinhamento ou, dito
de outro modo, pela provocação da suposta naturalização da ordem
do desejo e das posições de gênero (Borrillo, 2010).
A violência não é tão somente uma punição justa aplicada
a alguns, tampouco uma vingança acertada pelo incômodo de uma
existência. Ela delineia uma vulnerabilidade física da qual, segundo
Governo | 111

Butler (2015), não se pode escapar. Porém, afirmo categoricamente


que as vulnerabilidades não são nem nunca foram proporcionais.
Ao longo da nossa conversa, Michelle denuncia como a violência
presente no racismo de Estado funciona nos intervalos da lei ao
permitir que parte da população seja livremente assassinada
e outra seja ferozmente protegida. A partir da experiência de
vulnerabilidade e das diferentes formas de exposição de algumas
populações a violências arbitrárias, Michelle demarca precisamente
qual é o corpo que está em risco num regime de abusos legais que
afeta, sobretudo, a vida de pessoas racializadas: “pergunte a um
policial, ele sabe definir pessoas negras”, ela me diz como quem
lamenta uma tragédia já anunciada. Judith Butler (2006) também
indica um caminho para pensar como a vida pode tomar dimensões
de existência e de distribuição de vulnerabilidade física de modo
drasticamente diferentes. A autora radicaliza a construção ontológica
ocidental ao questionar uma certa concepção restrita do que poderia
ser considerado como humano.
Quando Butler (2015) reflete sobre os diferentes frames
que operam para demarcar as vidas que podemos apreender, em
oposição às vidas que não podemos, ela está reivindicando o lugar da
ontologia como parte de uma estrutura fundamental na construção
do ser, que em nada difere de outras organizações sociais e políticas.
A ideia de ontologia não poderia, portanto, existir fora da sua
organização e interpretação política pois ela se refere à existência de
um determinado corpo circunscrito e entregue aos outros e às normas
sociais. Assim, esses frames que atuam na diferenciação das vidas,
fabricam também ontologias específicas do sujeito, sendo capazes
de reconhecê-lo como uma vida concreta. Se há sujeitos que não são
reconhecidos como sujeitos, suas vidas não são reconhecidas como
vidas. Com essa sugestão, não existe a possibilidade de determinadas
vidas serem perdidas se desde o princípio elas não são apreendidas.
As vidas que tocam o extremo da precariedade são
designadas como dispensáveis, pessoas que podem ser presas,
detidas ou até mesmo mortas ao caminhar na rua (Azevedo, 2016).
Retomo mais uma vez as experiências de violência narradas através
das performances para chamar atenção a uma ética do cuidado de si
através da necessidade de cooperação e aliança com o outro como
um modo de tornar a vida mais vivível. Agir em manada, produzindo
novos modos de cooperação e coletividade, torna-se estratégia de
112 | (Des)Prazer da norma

resistência, forma de sobrevivência. As vidas precárias precisam


manter em alerta o cuidado de si e do outro. Quando falo em aliança,
não pretendo evocar uma identidade comum entre um grupo de
pessoas. Seria antes uma proposição de conexão política na afirmação
da diferença que não é tão só unificada identitariamente – apesar
de reconhecer a relevância das identidades políticas estratégicas.
Assim, pensar que outro gesto político é possível implica um modo
particular de estar junto e de fazer a minha vida e a vida do outro
mais vivível, um movimento que se dá através da transformação da
dor da vulnerabilidade em potência de vida. O estar junto, para os
modos de vida desgarrados da norma, torna-se necessário e político
no sentido de criar outras formas de existir no ordinário.
Partindo da leitura de “Ética Marica”, livro de Paco
Vidarte (2007), proponho o estabelecimento de uma ética menor
como parte constitutiva da singularidade de pertencer a uma
coletividade de sujeitos vulneráveis. Aqui, menor não é empregado
na acepção quantitativa do termo, mas no modo proposto por
Deleuze e Guattari (1997): como princípio de uma praxis política
alternativa. O devir-menor se desenvolve no sentido oposto às
lógicas organizativas arborescentes dos movimentos políticos
tradicionais, uma vez que as linhas de fuga fazem rizoma com o
mundo, agenciam outros devires, entrecruzam singularidades
para criar territórios políticos e existenciais fugazes, tecem mapas
abertos, conectáveis, dobráveis, cartografias suscetíveis de serem
modificadas a qualquer momento, por qualquer natureza, contendo
múltiplas entradas e múltiplas saídas.
Uma ética menor deve recuperar a solidariedade entre
aquelas pessoas que são oprimidas, discriminadas e perseguidas
pelas forças que servem à manutenção exclusiva de algumas vidas
em detrimento de outras. Toda ética que intenciona ser universal é,
no fundo, absolutamente particular: é uma ética de classe, de raça,
de gênero e de performatividades hegemônicas, de uma maioria
que pretende impor um modo de vida a todos ao seu entorno para
benefício próprio e em prejuízo àqueles que não pertencem ao
seu projeto violento de poder. A fundação ou proclamação de uma
ética sempre é uma operação de poder, de opressão, de controle
social. Exceto talvez no caso de que dita ética sirva aos interesses
de um devir-minoritário, então sua proposta ética será uma ética do
cuidado, uma ética libertária, uma ética de luta contra situações de
Governo | 113

subalternidade e privilégios alheios. Às voltas com essa vivência ética,


seria preciso recuperar o corpo naquilo que lhe é mais particular, na
sua dor, no seu encontro com o outro e na sua possibilidade de ser
afetado como uma maneira de construir uma contra-narrativa ao
poder sobre a vida.
Talvez seja questão de tratar a vulnerabilidade precisamente
como algo que antecede as ruínas que intitulam esta escrita. A
vulnerabilidade ocupa esse lugar que oscila entre o desmoronamento
total de uma condição que ainda está, por assim dizer, inteira. Seria
esse justo meio que se mantém em suspensão, em frágil equilíbrio,
e que possibilita estabelecer uma conexão com a transitoriedade
do corpo. O entendimento de que uma vida é vulnerável,
passível de dano ou que pode ser perdida a qualquer momento
implica remarcar a sua finitude e também sua precariedade. Tal
precariedade demanda, em certo sentido, encarar o fato de que as
nossas vidas estão sempre expostas aos outros, entregues nas mãos
dos outros e que essa revelação afeta a todos. O corpo pressupõe
mortalidade, vulnerabilidade e, de algum modo, todos nós vivemos
com essa particular ameaça de dano. Partilhamos essa condição
de precariedade, ainda que algumas de nós sejam mais precárias
que outras. É um gesto ético fundamental, portanto, reconhecer as
diferentes condições de precariedade que nos atravessam e, a partir
desse reconhecimento, transformar essas condições em um trabalho
político e existencial de refazer as nossas próprias vidas.
Aleeegreeem-se!!: sabores negros,
paladares brancos

Samara Freire1

Esse artigo busca refletir sobre a especificidade do trabalho


de fazer doces realizado por mulheres negras da comunidade
Palenque de San Basílio, localizado no município de Mahates, no
departamento2 de Bolívar, na Colômbia, distante 45 quilômetros
da capital do estado, Cartagena de Índias. O que me interessa e
possibilita essa escrita é a vivência desse tipo de trabalho informal,
de mulher negra, de agência, e os desdobramentos dessa experiência.
A tentativa é a de acompanhar o movimento das mulheres
palenqueras em circulação com os doces e assim pensar nos fluxos,
nos deslocamentos, nas interações e nos significados desta atividade
em termos de relações de gênero, trabalho, raça e classe social.
Assumindo que a raça e o gênero estão inexoravelmente conectados
à oportunidade ocupacional (Branch, 2007), pretendo articular
como gênero, raça/cor e classe são vivenciadas através dos corpos
dessas mulheres; ao final, busco ponderar sobre o entendimento
das interlocutoras em torno da especificidade dos seus trabalhos
com os doces.
San Basílio de Palenque é um território negro rural que foi
formado por cimarrones, negros e negras que fugiram do processo
escravocrata e foram estabelecer comunidades em territórios
distantes. Essa comunidade se destaca por apresentar uma língua
própria, um jeito peculiar para lidar com o território; suas famílias
são predominantemente endogâmicas; destacam-se em sua lógica
interna os ritos fúnebres que somente existem nesta localidade, em
que se faz o uso de tambores como forma de evocação da vida e da
morte. Ao refletir sobre os meandros da atuação das mulheres negras,
em especial as dulceras, moradoras do San Basílio de Palenque,
acredito que estas passam a desempenhar papéis e posicionamentos

1
Samara Freire é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Departamentos são as regiões político-administrativas nas quais a Colômbia está
dividida. A noção é equivalente a “estado”, relativa à divisão do Brasil.
116 | (Des)Prazer da norma

cruciais dentro e fora da comunidade. Esse movimento está


inserido numa configuração maior na problematização da luta pela
sobrevivência da população negra na América Latina, com um olhar
voltado para a peculiaridade do agenciamento das mulheres negras
em contextos de luta pela existência social.

Embolando Alegrías

São oito horas e quarenta minutos da manhã de um


domingo ensolarado, numa comunidade negra rural na Colômbia.
Ao caminhar pelas ruas de terra batida, já é possível perceber a
movimentação de pessoas. São mulheres, homens e crianças que vão
para o espaço da rua para providenciar o que é necessário para o
dia. Saem para comprar mantimentos, trabalhar, visitar familiares.
Em uma dessas, percebe-se o intenso fluxo de pessoas, de carros e
mercadorias; domingo é um dia, por excelência, de efervescência na
localidade. É dia de receber os turistas que chegam para conhecer
un rincón de África na Colômbia,3 é dia dos parentes distantes se
verem. É dia de festa, bebida e de champeta.4 Na praça principal,
nota-se o deslocamento de diversas mulheres palenqueras que vão
até os municípios vizinhos para trabalhar e retornam no final do
dia para suas casas. Elas trabalham vendendo doces de diferentes
tipos, em diversas cidades pela Colômbia e em países fronteiriços.
São reconhecidas em Palenque como comerciantes e desbravadoras.
Caminhando mais um pouco, às nove horas da manhã,
encontro-me na casa de uma comerciante que está prestes a iniciar
sua rotina de venda. Ela termina de tomar seu café reforçado, à base
de peixe, macaxeira e banana da terra, junto com uma sopa, para logo
calçar suas sandálias, passar um óleo corporal nos seus pés e pernas

3
Um pedaço de África na Colômbia, é assim que tanto os moradores locais quanto os
meios de comunicação evocam e referenciam a comunidade.
4
Champeta é um ritmo musical presente desde a década de 1960 na região do Caribe
colombiano. Ganhou notoriedade nas áreas de concentração da população negra
no país, principalmente em Cartagena e Barranquilla, assim como em San Basílio
de Palenque. A champeta foi influenciada por meio de diversos gêneros musicais
do continente africano. Esse universo musical diaspórico foi ressaltado por Claudia
Mosquera e Marion Provenzal (2000) e também por Luis Gerardo Martinez (2011).
Governo | 117

e dispor seu avental em sua cintura. Pega a sua porcelana5 carregada


de doces e leva alguns instantes para colocá-la sobre sua cabeça.
Para aliviar a pressão dos vinte e cinco quilos que ali se equilibram,
coloca-se um pedaço de trapo em forma de rodilha antes de alojar a
bacia de alumínio. A moto que nos conduzirá até a saída de Palenque
já se encontra posicionada em frente à sua casa. A bacia com os doces
é disposta na parte dianteira da moto, e na parte de trás a senhora
carrega, em uma de suas mãos, o banquinho de plástico que servirá
para apoiar os seus produtos em alguns momentos. É chegada a hora
de subir na moto e sair de Palenque.
A feitura dos doces é a base da renda familiar e, na maioria dos
casos, a principal fonte econômica do grupo doméstico. Esta atividade
vem de um saber-fazer tradicional das famílias, que é transmitida
de geração em geração. A comercialização dos produtos pode ser
feita em San Basílio, em outros municípios da Colômbia e até mesmo
em países vizinhos, como a Venezuela e o Equador. Em Palenque,
as mulheres costumam vender diariamente seus doces pelas ruas
e na praça da comunidade; nos municípios que circunscrevem a
comunidade, comercializam principalmente nos finais de semana,
nos bairros, nos comércios e em escolas; e nas cidades mais distantes
elas costumam ficar de um a três meses morando e trabalhando
no ofício da venda dos doces, para então retornar os lucros para a
comunidade. Para localidades mais distantes viajam e lá residem em
grupo de três a sete mulheres.
Os produtos elaborados, em sua maioria, são: cocadas
brancas (somente com leite), cocadas negras (com leite e rapadura),
cocadas de goiaba, cocadas de abacaxi, os doces de mamão, doce de
tamarindo, doce de gergelim, bolo de macaxeira, as alegrías (doce à
base de milho, coco e rapadura). Há também doces em forma pastosa.
São doces cujos componentes principais são o coco, o leite e o açúcar.

5
Porcelana, palagana e ponchera são sinônimos para se referir às bacias de alumínio
usadas por essas mulheres negras palenqueras.
118 | (Des)Prazer da norma

Los dulces

Nos finais de semana, é possível ver as mulheres em Palenque


de saída para trabalhar nos municípios vizinhos, a caminho de
Turbaco, Cartagena, Carmen de Bolívar, Sincelejo e Malagana. Até
as 10h30 do sábado podemos ver o deslocamento delas para estas
localidades. Nas sextas-feiras, como declarou a comerciante La
Burgo, em Palenque todas as mulheres que vendem doces estão
fazendo os seus: “hoje é dia de embolar alegrías”.
As idades dessas empreendedoras variam. Há mulheres que
a trabalhar desde os dez anos, outras na adolescência. A maioria
é de mulheres que aparentam ter de 20 a 60 anos. Muitas delas
são mulheres mais velhas que já têm filhos e netos, ou outras mais
jovens que saem para acompanhar suas mães e depois passam a
vender sozinhas.
A rotina de trabalho começa em casa, ou antes, quando
elas saem em direção aos municípios vizinhos a fim de comprar
os insumos para os doces. São elas que realizam o trabalho da
negociação e compra dos produtos necessários para a feitura
destes. Durante a permanência em San Basílio de Palenque, pude
acompanhar com proximidade as rotinas de trabalho e venda de três
mulheres: Andrea Simarra, Sol Maria e La Burgo. Fora de Palenque
(para além da cidade de Turbaco), fui até a cidade de Bucaramanga,
no departamento de Santander, e acompanhei as rotinas de outras
sete mulheres durante um mês neste outro estado colombiano.
Governo | 119

Andrea (55 anos), La Burgo e Teresita (gêmeas de 54 anos),


todas casadas e com filhos, são aquelas poucas mulheres que
trabalham vendendo os doces em Palenque e, em algumas ocasiões,
quando a venda em Palenque não é satisfatória, saem para exercer
seu ofício em municípios vizinhos. Essas três mulheres usualmente
trajam vestidos coloridos e turbante nos cabelos como estratégia de
venda de seus doces, ofertados aos turistas que diariamente visitam
Palenque. No período de meu trabalho de campo, raras vezes as vi
vendendo para os palenqueros. O cliente é sempre o outro, de fora;
a sua grande maioria é de pessoas brancas de estados colombianos,
mas também de países vizinhos, como Argentina, México, Chile,
Uruguai e dos Estados Unidos. De vez em quando, presenciam-se
pequenos fluxos de turistas negros provenientes deste último país.

Casera, ¡cómpreme a mí!

Descemos de um micro-ônibus na pequena cidade de


Turbaco, primeiramente eu, depois Sol Maria, que, com ajuda do
cobrador, consegue descer as escadas do veículo com sua porcelana.
Vamos adentrando pelas ruas da pequena cidade, chegamos a parar
alguns instantes. Na primeira vez, fomos para a casa de um senhor,
onde costumávamos parar para prosear um pouco, para beber
refrigerante e para Sol me apresentar às pessoas, com a principal
motivação aparente de vender suas cocadas. E de lá seguimos
pelas ruas de barro quanto asfaltada de Turbaco, ao longo de um
percurso que perfaz cinco horas de caminhada. Quando parávamos
nas residências dos clientes, era notável o reconhecimento destes,
demostrando familiaridade com Sol: uma vez ou outra, diziam que
queria conhecer San Basílio, ir para as festas que lá aconteciam,
mas ao que me parece essas pessoas nunca chegaram a conhecer
a localidade da mulher que vende doces para elas há décadas. O
que se conhece de Palenque é o estigma do homem preguiçoso e
da mulher trabalhadora, que por vezes escutávamos na cidade em
questão e em Bucaramanga.
O município de Turbaco fica próximo a San Basílio de
Palenque, distante 45 minutos de ônibus. Acompanhei Sol Maria
Cassiani, de 49 anos e comerciante desde os 19. Ela trabalha nas
quartas-feiras, sábados, domingos e feriados. Nas quartas-feiras,
120 | (Des)Prazer da norma

costuma vender em um colégio, na hora do intervalo, para alunos e


funcionários, e só depois sai a caminhar. Nos sábados e domingos,
as mulheres passavam o dia todo caminhando, sem paradas, das
9h40/10h até as 16h30/17h. Eu a acompanhava sempre aos
domingos. Sol tem o hábito de pegar folhas de arruda, que ela coleta
durante as caminhadas, e colocar atrás da orelha. Segundo ela, esse
ato atrai sorte para as vendas. Outro gesto que Sol realizava era a
prática de se benzer, fazendo o sinal da cruz em sua face assim que
saía de sua residência.
Sol Maria já é reconhecida em Turbaco, e uma referência
para as mulheres que vendem cocadas. As pessoas a chamam
de “Case”, que é uma abreviação de “Casera”, pessoa que vende
comidas caseiras. Éramos convidadas para entrar e tomar suco ou
refrigerante em suas casas, e nós aproveitávamos esses momentos
para fazer uso do banheiro. Entrei nas residências de diversos
clientes que se mostravam atenciosos. Sol me contou que já recebeu
ajuda de algumas clientes, por exemplo, quando do nascimento de
sua primeira filha, ela recebeu roupas de recém-nascido e sapatos, e,
recentemente, uma cliente deu uma roupa de formatura para a sua
filha. Sol, mesmo estando grávida, saía para vender. A maioria delas
trabalha até mesmo faltando poucas horas para o filho nascer.
Comumente fazia a minha apresentação da seguinte forma:
“essa é uma amiga brasileira que veio aqui para conhecer Turbaco,
e está aqui caminhando comigo para saber como eu trabalho”. E
continuava: “ela quer saber como é o trabalho das palenqueras”.
Algumas pessoas falavam: “coitadinha! Está fazendo-a caminhar
nesse sol tão quente!”.
Nas primeiras idas, Sol solicitava que eu caminhasse à sua
frente. Creio que seu intuito era ter uma visão das coisas, ou melhor,
de mim, para que nada de ruim me acontecesse. No momento de
cruzar a rua, ela pegava na minha mão e falava: “pare aí! Agora vamos,
cuidado com a moto”. E sempre pedia que eu ficasse atenta aos
veículos e às pessoas, sobretudo me recomendava não pegar a minha
câmera fotográfica nos bairros populares muito movimentados,
porque poderia sofrer um assalto. Se nessa pequena cidade eu
poderia sofrer um assalto, em outra localidade, no caso a cidade de
Bucaramanga, com um contingente populacional maior, ao circular
com a minha câmera entre os bairros de classe média fomos alvo
dos olhares desconfiados dos seguranças particulares de suas ruas.
Governo | 121

Elas me recomendavam não tomar fotos delas em atividade nesses


locais, pois seria junto a elas alvo de suspeição em caso de assaltos
a residências.
Seis horas de trabalho. Na região do Caribe Colombiano, a
temperatura varia entre 34 a 36 graus, mas a sensação térmica é
bem maior. Somando ao peso que carregam, é necessário ter uma
boa voz para anunciar o produto em tom alto: Aleeegreem-se!, grito
alusivo à alegría, um dos principais doces comercializados, depois
das cocadas. Quando circulava em ruas onde havia a presença de
crianças brincando ou dentro de suas casas, quase sempre estas as
imitam verbalizando a mesma frase.
A rotina de venda começa com uma pequena parada em
uma tenda que vende os papéis de seda com os quais se agarram os
doces. Em seguida, vamos até um mercado para recolher sacolinhas
plásticas, a fim de ensacar os doces comprados pelos clientes. No
final do trabalho, ela passa nesse mesmo mercado e realiza pequenas
compras para sua residência, sobretudo de verduras e cereais.
Também costuma passar em outro mercado para comprar carne, ou
em outro estabelecimento que vende frangos assados que leva para
comer em casa, após a jornada de trabalho.
Por volta das 15h, começa o horário mais emblemático, pelo
menos eu assim senti. É nesse momento que o corpo pede descanso
e ela tenta “ludibriar” a mente, dizendo que não está cansada e que
pode aguentar mais duas ou três horas de caminhada no sol intenso.
Na caminhada disputa-se o espaço com os carros, com as motos,
com os caminhões, com os animais na pista, com os transeuntes.
Algumas ruas da cidade são pavimentadas e outras são de barro e
íngremes, exigindo esforços a mais para quem carrega pesados doces
sustentados na cabeça. Sol Maria já conhece os bairros onde as pessoas
compram e os diferencia daqueles onde não há clientes. Há outras
mulheres que vendem em Turbaco, e cada uma delas fica responsável
por percorrer uma determinada área. No trajeto, passamos nas ruas
residenciais desses bairros e circulamos na frente de supermercados,
postos de gasolina, centros comerciais, farmácias: qualquer lugar onde
existissem aglomerações poderia ser uma boa oportunidade para as
vendas. O dia da venda é também o dia da compra de insumos para
fazer mais doces. Compra-se cocos secos, mamão, abacaxi, em sua
maioria fiados e que serão pagos na semana seguinte, em pequenas
tendas próximas às residências dos seus clientes.
122 | (Des)Prazer da norma

O momento em Turbaco, para além do trabalho, é


aproveitado para realizar ligações telefônicas. Nessa localidade há
uma maior oferta de ambulantes que alugam os telefones celulares
vendendo minutos.6 Com o dinheiro arrecadado das vendas dos
doces, Sol paga as chamadas realizadas. Nos raros momentos
de pausa das caminhadas, Sol Maria realiza ligações para o seu
marido, que hoje vive na Venezuela, para onde foi há pelo menos
três anos em busca de trabalho e não retornou mais para casa, e
para sua filha, que vive em Cartagena, pois recentemente passou no
vestibular para o curso de Comunicação Social. Sol Maria é quem
custeia a faculdade da filha com a venda dos doces, porque, apesar
de estudar em uma universidade pública, não há isenção de custos
para o semestre letivo.
Durante uma tarde na sua casa, entre conversas e feituras das
suas cocadas, aliadas às cenas de touradas que ela insistia me fazer
assistir, uma frase durante o intervalo das cenas em que homens
eram arremessados para o alto pelos chifres do boi despertou-me
a atenção. Sol, olhando para seu instrumento de trabalho, afirmou:
la fuerza de la porcelana,7 e completou: “tudo que está dentro dessa
casa foi possível devido à força disso daqui [já pegando em suas
mãos a bacia de alumínio e mostrando-a a mim], isso daqui tem
força e poder”. Acreditando no efeito da frase, este objeto, que é
um dos seus instrumentos de trabalho, assume a materialidade da
energia, do ânimo que ela deposita no seu dia a dia ao lidar com suas
diversas responsabilidades. Uma força que a fez estar ali naquele
espaço falando comigo. Foi esta força que fez com que construísse a
sua nova residência e mantivesse a sua existência social. Sol reside
hoje em um bairro dentro de Palenque que reúne pessoas vítimas do
desplazamiento forçado.8 A força é transmutada da porcelana para

6
Na Colômbia é muito comum a comercialização de minutos para ligações
telefônicas. As antigas cabines que se encontravam espalhadas especialmente pelo
centro das cidades foram substituídas por pessoas que possuem celulares de várias
operadoras e que por preços módicos vendem minutos de ligação. Assim, “vender
minutos” é uma expressão comum na Colômbia, entendida pelos colombianos, mas
que pode causar estranhamento nos forasteiros.
7
Em português: “a força da porcelana”. Tradução da autora.
8
Na história da Colômbia se fazem presentes os diversos casos de desplazamiento
forçado, decorrentes do conflito armado interno, de pessoas campesinas, sejam
elas de grupos indígenas ou negros, que por imposição tiveram que deixar seus
Governo | 123

a sua pessoa, permitindo buscar soluções e alternativas por longos


anos para a sobrevivência. Da materialidade dos objetos vão se
criando formas e funções, a porcelana por si só não possui essa força,
mas o corpo da mulher que se utiliza dele vai tecendo a construção
de si como potência criadora da vida e da luta.
Por outro lado, a brincadeira, o riso, as piadas e certas frases
compõem o universo de estratégias facilitadoras da comercialização
dos produtos. As dulceras constantemente fazem usos de frases
que chamarei aqui de apelativas. São frases que apelam, convidam,
incitam e chamam a atenção do público comprador. São estratégias
persuasivas de venda. As frases apelativas como “¿No me quieres?
¡Venga a comprar de la negrita que está caminando en el sol caliente!”9
ou até mesmo o “¡Aleegreeen-se!” são frases chaves na interação
entre a vendedora e o cliente.
O ¿No me quieres? geralmente é anunciado para possíveis
compradores masculinos. ¡Venga a comprar de la negrita que está
caminando en el sol caliente! faz com que o possível cliente tenha
piedade da condição dessa mulher que caminha horas a fio sob sol
intenso, sustentando uma bacia de alumínio extremamente pesada.
E outra, mais comumente usada nas ruas de Palenque, Turbaco
e Cartagena, como mencionei anteriormente, é o ¡Aleeegreeen-
se!10 Algumas dessas frases apresentam uma certa poesia em
sua enunciação. Sol Maria costuma usar parte de uma frase que é
conhecida entre aquelas que comercializam em Cartagena: Alegría
con coco y aní, casera, cómpreme a mí, que vengo del barrio Getsemaní11
[bairro da cidade de Cartagena].
Há também aquelas frases de duplo sentido, quando se usa
o “¿Mi amor, que vas a comprar?”12 e a complementação: “¿Mí amor,

territórios migrando para outras localidades. Assim, em Palenque há um bairro com


presença de indígenas conhecido como bairro “chino”, e “La Bonquita”, onde reside
Sol, que também concentra um outro contingente populacional.
9
Em português: “Não me queres?”, “venha comprar desta neguinha que está
caminhando no sol quente”. Tradução da autora.
10
Na cidade de Bucaramanga, as mulheres utilizam outras frases enunciativas para a
venda. O ¡Alegrem-se! deixa de existir nesse contexto.
11
Em português: “Alegria com coco e anis, caseira, compre-me a mim, que eu venho
do bairro de Getsemaní”. Tradução da autora.
12
Em português: “Meu amor, o que vai comprar?”. Tradução da autora.
124 | (Des)Prazer da norma

que vas a chupar?”,13 ou então “le traigo el redondo, el grande y el


peludo, no se burle niña, yo hablo del coco”.14 Assim como professam
que, ao comprar determinado tipo de doce, a “atividade em casa”
(numa conotação sexual) vai melhorar. São frases que compõem
duplos sentidos, demostrando a comicidade dos enunciados e
utilizando essa comicidade como modo de criar empatia com
as pessoas de seu entorno. Podemos dizer que cada uma dessas
frases tem como efeito criar relações, as quais podem ser efêmeras
e circunstanciais, mas efetivas no sentido de possibilitar as
interações com os desconhecidos e em alguns casos permitir o
acréscimo nas vendas.
Para além das frases acionadas, outra estratégia que
possibilita a venda é a criatividade estética dos produtos, outro
gradiente que desperta a curiosidade e interesse dos clientes. As
porcelanas são minuciosamente arrumadas, todas as comerciantes
dedicam vários minutos na preparação destas no intuito de
encontrar uma melhor forma de apresentar e dispor os doces na
bacia de alumínio. Cada doce é organizado de uma forma específica
dentro desta: após a acomodação, os doces são envolvidos por um
papel filme ou envoltos por um saco plástico transparente, assim
protegendo-os da poeira, insetos, fumaças ou qualquer outro
objeto externo que possa inferir na qualidade, higiene e aparência
do produto.
Lançando o olhar desta vez para os preços dos seus produtos,
estes podem variar de acordo com a localidade da venda e do perfil
do consumidor. No Palenque custam em torno de mil a dois mil pesos
colombianos.15 Nas saídas para Turbaco, as cocadas custavam mil e
quinhentos pesos colombianos, embora para os clientes antigos Sol
Maria vendesse a mil pesos. Quando os clientes novos reclamavam
do preço, ela passava a cobrar mil pesos e tentava recompensar esse
déficit de renda nas próximas transações, vendendo ao preço normal
ou oferecendo vários por um valor em que o lucro compensasse.
Por vezes, vendia fiado para ser pago na próxima semana. Já em

13
Em português: “Meu amor, o que vai chupar?”. Tradução da autora.
14
Em português: “Lhe trago o redondo, o grande e o peludo, não ria, menina, eu falo
do coco”, tradução da autora.
1.000 pesos colombianos (COP) equivalem a R$1,40 (em reais, BRL). Cotação do
15

mês de agosto de 2018.


Governo | 125

Bucaramanga os doces são vendidos a dois mil pesos colombianos


e nunca fiado. Há uma crença entre as Palenqueras de que se elas
contam o número de doces que produzem, suas vendas não terão êxito,
então “não se sabe ao certo” quantas quantidades são produzidas e
vendidas. O “não se sabe ao certo” quantas cocadas são elaboradas
nos informa que a preocupação é obter o essencial necessário para
retornar às suas casas, há uma preocupação que se baseia não em um
lucro excessivo, mas um lucro do agora, do presente, do que é viável
reunir naquele período, porque no dia posterior haverá novamente a
feitura de outras cocadas. Para além de uma equalização econômica,
os seus trabalhos visam sustentar relações.

As irmãs La Burgo e Teresita empacotando seus doces.


Casa da cultura em San Basílio de Palenque

Nesse sentido, a renda mensal adquirida pela venda pode


variar muito. É possível obter 500 mil pesos (ou menos) mensais
até 1.500.000, quando a procura for muito boa, levando em conta
a localidade, o mês, os clientes e as estratégias utilizadas. É Yosaín
Perez, 36 anos, casada, que nos informa:

Eu posso dizer, não é fácil. Mas quando eu vendia a esse tempo, já


não se vende, em minha casa eu tinha um milhão de pesos, em um
mês tinha um milhão e quinhentos. Isso nos meses de novembro
e dezembro, como todo mundo tem dinheiro nesse período, as
126 | (Des)Prazer da norma

pessoas têm dinheiro, compram muito. Eu não levava cocadas de


volta, pelo menos em dezembro todo mundo estava comprando
roupas para os seus filhos. Eu dizia: meu amor, às suas ordens, leva
algo a seu esposo, as pessoas diziam: “não, não”. E eu: “por que
não?”. Se isso é um doce, um aperitivo de tal coisa, eu até colocava
nome e dizia “isso é um afrodisíaco”, e compravam. Como nós, as
palenqueras temos um sotaque bonito.

Com o comércio é possível comprar bens domésticos para


a casa, adquirir produtos alimentícios e vestuário, assim como
quitar a mensalidade da faculdade dos filhos. O uso do seu dinheiro
é amplo. Segundo o antropólogo Frederico Neiburg, ao se referir
aos significados e usos sociais do dinheiro,16 “as pessoas continuam
experimentando o mundo social segundo categorias ordinárias”
no uso do seu dinheiro (Neiburg, 2007, p. 122). Este, quando é
adquirido em decorrência da venda dos seus doces, permite não
só um acrescimento econômica na renda familiar, mas também
é gestor da interação (a possibilidade de uma ligação telefônica
para os familiares) e da mobilidade social (com a inserção dos
filhos nos ensinos superiores e consequentemente rumo a novas
possibilidades empregatícias).

Doces caminhos

A circulação das mulheres palenqueras para outras regiões


também possui relação com a entrada de seus filhos na universidade.
Josefa Hernandez, 32 anos, solteira, que atualmente é cientista
política, mas que em outro momento trabalhou vendendo doces para
custear a sua carreira universitária, nos aponta:

Cerca de vinte anos atrás se pode dizer que começou o auge dos
palenqueros e palenqueras a entrar na Universidade de uma forma
muito massiva. Então, obviamente os doces que se vendiam por
aqui simplesmente chegavam para a alimentação, mas não para
pagar os estudos dos filhos. Então, aí começaram a sair.

16
Nas sociedades que mereciam a atenção dos antropólogos, o dinheiro possuía
significados múltiplos que estavam atrelados às relações entre as pessoas, às
esferas ou aos circuitos singulares de troca (Dalton, 1967; Bohannan, 1967 apud
Neiburg, 2007).
Governo | 127

Ao trazer essa referência, lembro que, quando estava na


cidade de Bucaramanga, uma das discussões que surgiu durante
a noite na nossa casa era sobre a filha de uma vendedora, que
pretendia cursar Medicina. As mulheres falaram que o curso
era muito caro para ser sustentado pela venda das cocadas, e a
recomendação daquela noite seria que a mãe orientasse a filha
a escolher um curso que fosse viável. Recordo que sugeriram
Enfermagem ou Serviço Social, cursos, segundo elas, que tinham
valores mais baixos, pois o ensino nas universidades, mesmo nas
públicas, demanda despesas financeiras.
O deslocamento para áreas mais distantes de Palenque
tem datação de três décadas. Antes dessa época, é possível afirmar,
pela memória local, que essas mulheres saíam para vender frutas,
legumes, arroz e pescados nos municípios próximos. Foram, aos
poucos, se tornando “nômades”, de acordo com a explicação de
Bernada, 43 anos, casada, que percorreu cerca de cinco capitais
dentro da Colômbia e teve uma passagem pela Venezuela:

Não era como agora. Quando já estava prejudicando a venda por lá,
se tocava levar para longe, deixar a família, que é difícil. Deixar as
criancinhas com a avó, com o pai. Vir por um mês, por dois meses,
porque tudo ficou mais complicado. As vendas não eram as mesmas
e todo mundo tem açúcar [diabetes], não quer comer doce, e, como
as vendas caíram, foi necessário sair e expandir esses doces para
outras partes que não conhecíamos. Aí ficamos lá nômades. Hoje
estamos aqui, amanhã estamos em Palenque. Ou se eu não quero
vir aqui, vou para Montería [capital do departamento de Córdoba],
vou para Sincelejo e assim por diante.

Recuperando o movimento através dos doces, é importante


notar que a primeira ida para territórios longínquos a fim de
desbravar o interior do país se deu com uma “olhada” no mapa
colombiano. Assim destacou Josefa Hernandez:

Saíram inclusive sem saber para onde iam, porque não conheciam
o interior do país, por exemplo. Então começaram a olhar no
mapa, olharam no mapa! [Surpresa] A primeira cidade em que
começaram a ir foi Bucaramanga.

A primeira cidade escolhida foi Bucaramanga (capital do


128 | (Des)Prazer da norma

departamento de Santander), circularam por Cúcuta (capital do


Norte de Santander, cidade na fronteira com a Venezuela), Pamplona
(município do Norte de Santander), Bogotá (capital da Colômbia),
Fusagasugá (departamento de Cundinamarca, a 59 km de Bogotá),
Medellín (capital do departamento de Antioquia), Caucasia,
Apartadó, Carepa, Chigorodó (municípios do departamento de
Antioquia), Montería (Capital do departamento de Córdoba), Tierra
Alta (município do departamento de Córdoba), Villavicencio (capital
do departamento de Meta), Yopal (capital do departamento de
Casanare), Tunja (capital do departamento de Boyacá), Sogamoso
(município do departamento de Boyacá, Ibagué (capital do
departamento de Tolima), Neiva (capital do departamento de Huila),
Pitalito (município do departamento de Huila), Riohacha (capital do
departamento de La Guajira) e Arauca (capital do departamento de
Arauca). As cidades próximas de San Basílio que percorreram são:
Cartagena (capital do departamento de Bolívar), Turbaco, Arjona,
Malagana, El Viso, El Carmen de Bolívar, Santa Rosa de Lima (todos
municípios de Bolívar), Barranquilla (capital do departamento do
Atlântico) e Sincelejo (capital do departamento de Sucre).
As capitais dos departamentos colombianos serviram
como ponto de partida para explorar os municípios vizinhos: se
estavam em Bucaramanga, poderiam ainda explorar o interior do
departamento se deslocando para Barrancabermeja, Floridablanca
ou Carmen, que estava a duas horas de distância de Bucaramanga
(todos municípios do departamento de Santander). Elas chegaram a
trabalhar também em outros países, como a Venezuela, nas cidades
de Caracas, Barquisimeto, Ojeda, Bachaquero, San Félix, Mérida e
em Maracaibo (fronteira entre Colômbia e Venezuela). Em Equador
trabalharam em Quito (capital do país) e em Imbabura.
No mapa, conseguimos visualizar a viagem dessas mulheres
com a venda dos doces pelas capitais da Colômbia e também na
Venezuela.
Governo | 129

Mapa 1: Doces caminhos

Essas viagens são programadas no espaço da casa, ou melhor,


do pátio ou quintal da casa, que configura-se como uma oficina; é a
área onde a oralidade e a corporalidade se misturam para dar como
resultado os doces, a proclamação e a venda desses produtos. Aqui,
onde avós, mães, tias, primas, amigas e irmãs cumprem o papel de
instrutoras e professoras, todos os ensinamentos necessários são
produzidos para trabalhar e conviver com outras mulheres durante
longos períodos de viagens. Os mecanismos de negociação acionados
nas vendas, nas viagens, nas trocas, na relação com a clientela, esses
circuitos em função da venda dos doces, são constituídos de relações
que são para além da economia, são pautadas por relações pessoais,
de parentesco, de afinidade. As redes de apoios (amigas, comadres),
130 | (Des)Prazer da norma

assim como as redes de parentesco, contribuíram para a migração


laboral, uma migração voltada para o trabalho, esse que é apreendido
em casa de forma geracional entre famílias. Essa lógica interna
familiar favoreceu o protagonismo das minhas interlocutoras tanto
na questão que envolve o mercado como na formação de redes, das
redes dos cuidados e dos afetos.

Das alegrías às escravas dos doces. Sentidos do trabalho

Na tentativa de fazer uma análise da noção de trabalho


exposta nas falas das interlocutoras em questão, busquei expandir a
noção apresentada por Sidney Mintz, autor que traz alguns aspectos
para pensar essa categoria: o trabalho como meio de conferir
sentido à vida, e o trabalho como fonte de orgulho e autoestima para
o indivíduo (Mintz, 2010, p. 64). É com base nesses aspectos acima
citados que procuro conduzir a discussão.
Aqui também busco pensar o sentido do trabalho, suas
representações, assim como as idealizações acerca do sentimento
de liberdade e autonomia dessas mulheres, advindo do exercício de
comercializar doces. A pergunta é: como as palenqueras se sentem
a respeito de seu trabalho? Como é percebido e experimentado o
seu ofício?
A atividade laboral e a comercialização dos doces são
extenuantes. Pude acompanhar o trabalho em outra cidade e nesta
ocasião foi possível perceber que o descanso do corpo físico só é
realizado enquanto se dorme. Mas também é intenso para aquelas
que trabalham no Palenque e que circulam nos municípios vizinhos,
começando pela preparação dos doces, seguido pelo próprio percurso
exaustivo da venda. Caminhar em longas distâncias por cerca de sete
ou mais horas, muitas vezes sob sol intenso ou então sob chuva e frio,
sustentando em suas cabeças pesos que podem alcançar dezenas de
quilos, traz sofrimento ao corpo e exige disciplina para suportar a
maratona diariamente.
Escutei delas que o trabalho é uma tradição de Palenque
que foi passada por familiares, e que há várias décadas as mulheres
trabalham dessa maneira. É certo que, de algumas décadas para cá,
houve modificações na forma de preparar os doces, com o uso do
forno a gás em vez do fogão à lenha em determinadas localidades,
Governo | 131

por exemplo. Elas falam que com o comércio dos doces foi possível
comprar utensílios para suas residências, como: fogões, geladeiras,
televisões, roupas e sapatos para os filhos, produtos alimentícios, de
higiene pessoal; fazer reformas e construção de novos cômodos em
casa. O maior motivo de orgulho para elas é que, com esse trabalho,
foi possível sostener la familia y los hijos.17
Entretanto, as queixas sobre o trabalho vão se acumulando
aos poucos, para depois ser afirmado que o sofrimento vivenciado,
domesticado e disciplinado poderá trazer momentos de satisfação
pessoal. A partir de Mintz (Ibid.), podemos refletir sobre o que
é trabalhar no nível da exaustão humana e entender como elas
conseguem enxergar o que é um trabalho que mata, e, ainda assim,
recorrem a essa prática para sobreviver e trazer dignidade ao seu
feito.

Espero que não pensem que pretendo glorificar o efeito no espírito


humano de uma labuta física extenuante sob condições terríveis.
Ninguém deveria ter que trabalhar como estas pessoas trabalhavam
– e em certas partes da região caribenha, ainda devem trabalhar.
Pretendo, em vez disso, comentar a respeito de como o espírito
humano sobrevive e transforma tais abusos, ao permanecer
humano (...) As pessoas conseguem extrair significação de seus atos,
eles podem ter prazer no seu trabalho, mesmo extrair significação
de seus atos; eles podem ter prazer no seu trabalho, mesmo quando
este é um trabalho exigente e difícil do ponto de vista físico. E eles
podem fazer isto no mundo moderno, se o trabalho que realizam
é percebido por eles como socialmente valioso (Ibid., pp. 64- 65).

Dentro desse contexto acima exposto, a seguir, disponho de


narrações do que essas mulheres negras apontam sobre o trabalho
com os doces: “Esse é um trabalho que mata”, afirmou Sol Maria, e
continua: “a venda ajudava a comprar os materiais e comer, nada
mais. Mas isso se faz porque já é uma tradição. A necessidade faz
fazer esse trabalho, mas é um trabalho que mata. As mãos doem, é
um trabalho duro”. Por sua vez, La Burgo dizia: “essa é uma herança
que também estou deixando aos meus filhos, quando eles não
tiverem emprego, que recorram a esse”.

17
“Sustentar a família e os filhos”, tradução minha.
132 | (Des)Prazer da norma

La Burgo em certa medida corrobora com Sol ao mencionar


que o ofício é decorrente de uma tradição, de uma herança familiar
que se perpetua por gerações e que tem como centro e como
proliferadoras da atividade as mulheres de Palenque, bem como
uma atividade que poderá ser acionada quando não houver outro
tipo de trabalho remunerado. Porém, Sol Maria reafirma o tempo
todo que esse é um trabalho que pode matar quem o realiza,
verbalizando as extensões que são sentidas e vivenciadas no corpo
da mulher negra palenquera.
Flor Maria, 57 anos, casada, em relação ao seu empenho no
trabalho, comentou:

Nicolas [esposo] me ajudava, mas eu colocava mais força. Dava


de tudo para os meus filhos: roupa, sabão, desodorante, sapatos.
Nunca deixei faltar nada. Deixava de comprar para mim e dava para
eles. Queria que eles tivessem tudo, que estudassem para não ficar
como eu. Graças a Deus meus filhos saíram agradecidos a isso.

Nayelis Miranda, 26 anos, solteira, argumentou:

É um trabalho forte! Quando vir de lá [Venezuela], disse a minha


mãe: papel e lápis, mãe! Papel e lápis! Porque esse trabalho não
é para mim, é muito forte. Eu trabalhava com isso enquanto me
formava academicamente, profissionalmente, mas esse trabalho
é muito duro [pesado] para ter como perspectiva de vida. Eu fui
à Venezuela para conseguir minha roupa, meu perfume e minhas
coisas pessoais, mas já tinha uma visão. Vou porque vou reunir
minhas coisas, mas não que isso seja um trabalho para a vida.

As duas falas acima, a primeira de uma mãe e a segunda de


sua filha, evidenciam o caráter geracional do trabalho. A mãe, na sua
generosidade, afirma que todo o esforço realizado foi para dar aos
filhos aquilo que muitas vezes lhe faltava, e ao final se tornou grata
por ter tido o reconhecimento destes do esforço ofertado. A filha,
por sua vez, reconhece a labuta perpetrada pela mãe e visualiza no
universo dos estudos um caminho para outro tipo de possibilidade,
de trajetória laboral distinta da de sua mãe, embora tenha precisado
recorrer ao comércio dos doces enquanto estava na graduação,
quando parte do dinheiro adquirido serviria, entre outras coisas,
para o custeio da carreira universitária. Nayelis, que tem graduação
Governo | 133

em Engenharia de Alimentos pela Universidade de Cartagena,


integra parte do grupo das jovens negras que concebe o trabalho
com os doces como uma experiência pontual e transitória. Essa
marcação geracional foi alvo de investimento no trabalho de Orlando
Santos (2010), que se debruçou sobre experiências de mulheres
negras comerciantes da cidade de Luanda, capital de Angola. O
autor direcionou sua reflexão para a participação das mulheres
no comércio de rua na cidade e, a partir daí, identificou rupturas e
continuidades nas práticas rotineiras das antigas e novas gerações
de mulheres comerciantes. Deste modo, as mulheres mais jovens
e com menos responsabilidade familiar têm maior oportunidade
de investir em si mesmas, em relação às mais velhas e com maior
responsabilidade familiar.
Foi no comentário de Catalina Herazo, 57 anos, separada,
que o conceito de exaustão e a aproximação do ofício com a servidão
e a dependência foram destacados:

Com os doces ficamos escravas do trabalho, escravas dos doces.


Tem que ficar o tempo todo ralando coco, cortando mamão. A
pessoa se levanta fazendo o mesmo e dorme todos os dias fazendo
a mesma coisa. Não é como outros trabalhos, em que você sai e
quando chega em casa seu trabalho já acabou e pronto. Tu sabes
que quando chega em casa tem que partir o coco para adiantar o
trabalho, porque se você não fizer a tempo para o dia seguinte vai
se atrasar muito. Tem que começar à noite para terminar de fazer
no dia seguinte de manhã cedo.

Contudo, Yosaín apontou para outro lugar que esse trabalho


ocupa no imaginário das palenqueras: “bom, graças a isso conheci boa
parte da Colômbia, ou seja, é muito bonito. Eu sou das palenqueras
que, no lugar em que trabalhei, tirava fotos. Tudo era muito bonito”.
Há concepções distintas sobre o que o trabalho propicia
ou proporcionou entre as colocações de Catalina e a de Yosaín. A
fala expressiva de Catalina associa o seu ofício ao trabalho escravo,
a mulher neste momento se encontra refém dos seus produtos
comercializados, refém da sua rotina de trabalho que é árdua,
trabalhosa e intensa. Yosaín, no que lhe concerne, visualiza neste
universo dos doces uma oportunidade para conhecer e admirar
outras cidades colombianas, o que mostra a relação que também
tinha de circular e transitar em outros contextos geográficos,
134 | (Des)Prazer da norma

sociais, econômicos.
Catalina, ao comparar seu trabalho análogo ao de um escravo,
nos traz para a análise a ponderação de Angela Davis (2016), que
apontou questões fulcrais:

Como leiga, posso apenas propor algumas hipóteses que talvez sejam
capazes de orientar um reexame da história das mulheres negras
durante a escravidão (…) O enorme espaço que o trabalho ocupa
hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido
durante os primeiros anos da escravidão (…) Aparentemente,
portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das
mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel
como trabalhadoras (Ibid., p. 24).

O papel da mulher negra como trabalhadoras muitas


das vezes as confina em situações de esgotamento físico. Todas,
digo todas as mulheres com quem convivi ao longo da pesquisa
apresentam alguma enfermidade em decorrência dos anos de
trabalho e das condições destas. Caminando como loca llevando el
sol como la tierra18 foi a frase dita por Flor Maria, ao rememorar
seu tempo de trabalho: “caminhava muito para vender, caminhava
por essa rua e na outra, caminhava e caminhava. Por isso, ando
desgastada”. O efeito disto, como apontado, é o desgaste físico. Flor
apresentava dificuldades para caminhar advindas também do seu
sobrepeso, parou de trabalhar vendendo doces há cerca de quatro
anos e, de vez em quando, faz bolos simples para vender na praça
de San Basílio ou sob encomenda. Constantemente a via balançar as
suas mãos e perguntava o que sentia, ela falava que as suas mãos já
não “prestavam” tanto. Sentia dores e dormência pelo fato de ficar
fazendo movimentos repetitivos ao mexer a panela para preparação
dos doces, além disso, sofria de varizes, as pernas estavam sempre
apoiadas (quando sentada) sob um banquinho a fim de dar
“descanso” àquelas pernas inchadas. Quando estava trabalhando na
Venezuela em São Felix, ainda jovem, caminhava muito em bairros, e
lá era pura “loma”,19 pura subida e descida, e, então, naquele tempo
tinha disposição. No final, quando as pernas já não aguentavam mais,

18
Em português: “Caminhando como louca, levando sol como a terra”. Tradução da
autora.
19
Morro.
Governo | 135

ela trabalhava sentada, e os carros passavam e compravam porque


já sabiam onde ela vendia e iriam até lá. Quando iniciava a sentir
dores, pedia para as companheiras comprarem as matérias-primas
dos doces, relatou que já não ia ao mercado comprar, porque ficava
muito cansada e isso às vezes molestava as companheiras. Tempo
depois, parou de viajar.
Catalina, durante à noite, na hora de dormir, deitada sobre o
delgado colchonete ao meu lado, reclamava de dores na coluna: “ay
mija, tengo mucho dolor en la espalda”.20 Ela passava um bom tempo se
automassageando nas costas, nas pernas e no quadril, e antes de sair
para o dia de trabalho também tomava um comprimido que evitava
dores musculares. As partes dos corpos que mais sofrem são as mãos,
os pés, as pernas, a cabeça e a coluna. Em algum momento da vida,
tenha-se trabalhado poucos ou muitos anos, alguns desses efeitos no
corpo vão se fazer presentes. Elas vão sofrer de dormência nas mãos
momentaneamente, vão padecer de dores nos joelhos, nos pés e nas
pernas, dores na cabeça, algumas vezes no pescoço, dores na coluna;
e quando estão cozinhando no fogão a lenha, a fumaça liberada pode
causar cegueira. Por isso é recorrente se automedicarem antes de
dormir e algumas vezes ao sair para a rua quando estão em outras
cidades, usando remédios à base de paracetamol, anti-inflamatórios
e relaxantes musculares que prometem aliviar as dores.
A rotina para aquelas que passam longas temporadas fora de
casa é intensa: cinco e meia da manhã é hora de levantar, colocar a
panela no fogão, adicionar leite, adicionar coco; coloca coco, mexe
panela, tira panela, prepara a mesa para receber as cocadas, coloca
as cocadas, vira de um lado, vira de outro, corta mamão, panela no
fogo, coloca açúcar, coloca leite, coloca mamão, tira panela, prepara
a mesa para o mamão, rala macaxeira, rala coco, panela no fogão,
tira panela. Ornamenta a bacia de alumínio, faz comida, toma banho,
coloca o avental, pega a condução, vende doces, compra insumos,
chega em casa, coloca a panela no fogão, coloca o açúcar, coloca
o leite, coloca o coco, tira panela, come, rala macaxeira, rala coco,
dores, remédio, dorme, acorda, coloca a panela no fogão, coloca o
leite, coloca o açúcar...
O que se espera aqui é refletir sobre um tipo de atividade
autônoma que beira o esgotamento físico. Sobre quando e como

20
Em português: “Ai, minha filha, tenho muita dor nas costas”. Tradução da autora.
136 | (Des)Prazer da norma

se age quando a liberdade e autonomia se fazem dentro de um


campo restrito de possibilidades. Liberdade e autonomia que foram
princípios constituintes para a formação de comunidades negras,
como a de Palenque ao longo dos anos. Como esse sentimento e
vontade de se tornar liberta e autônoma das suas ações ganham
profundidade nas relações que norteiam o trabalho delas. “Escrava
dos doces”, para além de uma metáfora, atualiza uma história de
luta por uma autonomia e liberdade que têm como pano de fundo o
processo político-histórico desencadeado desde a escravatura e que
foram reinventados à luz da diáspora.
Apesar de ser um trabalho feito na linha da exaustão,
encontram-se espaços de autonomia e liberdade pelo simples
fato de não ter que trabalhar para outrem e pela possibilidade de
administrar o seu dinheiro, presumindo onde poderá ser aplicado e
investido, o que dá a essas mulheres um estatuto de serem donas de
seu próprio destino. É por meio de suas mãos que advêm o alento e a
fonte de renda familiar. É por meio dessas mãos pretas que famílias
inteiras são sustentadas, alimentadas e educadas.

À guisa de conclusão

O trabalho, para as palenqueras comerciantes de doces,


é vivenciado como sinônimo de luta, autonomia, dor, resiliência,
força, respeito, independência e legado familiar. É, pois, na esfera
do comércio, na comercialização de alimentos, que essas mulheres
negras buscam obter dignidade. Se sentem valiosas e benfeitoras
perante a família e a comunidade ao executar o ofício, ainda que
exaustivo física e mentalmente. O trabalho é uma forma de sentirem
ativas. Desde crianças, o trabalho se tornou determinante na
organização das suas vidas e das suas próprias existências e assim dá
sentido a elas, apesar da ambivalência, do tornar-se cansativo, árduo,
colocando em xeque a sua saúde. Vemos que o corpo adoece, é um
trabalho que pode matar, por ser uma atividade pesada, que demanda
força muscular e movimentos repetitivos, preponderantemente,
de esforço físico. Por conta disso, as mulheres apresentam queixas
como dores musculares, lesões, doenças osteoarticulares, problemas
de coluna são comuns, é chegado o tempo das doenças, não é à toa
que a volta para as suas residências após longas estadias fora é
Governo | 137

acompanhada pela visita ao único posto de saúde do local, onde são


medicadas e quase sempre recebem a indicação de fazer fisioterapia.
Os dados do trabalho de campo permitem afirmar que,
embora o trabalho feminino seja visto como um meio de angariar
subsistência no âmbito das responsabilidades familiares das
mulheres, a obtenção de rendimentos monetários é, igualmente,
valorizada pelas mulheres, porquanto permite obter autonomia e
poder econômico e social. Assim sendo, o trabalho é crescentemente
valorizado, enquanto estratégia de autonomia social para elas e de
garantia de mobilidade social para os filhos. Segundo a socióloga
afro-americana Winnifred Brown-Glaude (2011) há um padrão
internacional que evolui em termos de economia informal, e as
mulheres pobres negras passam a ocupar essa seara desenvolvendo
formas criativas para “ganhar a vida”, fornecendo um meio pelo qual
elas podem estabelecer sua autonomia e garantir um futuro para
suas famílias.
O deslocamento para outros estados da Colômbia e para
países vizinhos, como a Venezuela, dá a estas mulheres uma visão
ampliada de mundo, distinta daquela de seus maridos e outros
familiares. Elas se tornam agentes de suas ações cotidianas.
Parafraseando Saba Mahmood: a agência não é simplesmente um
sinônimo de resistência a relações de dominação, mas sim uma
capacidade para a ação criada e propiciada por relações concretas
de subordinação historicamente configuradas (Mahmood, 2006, p.
123). A autora traz um discurso positivo de estar e habitar o mundo,
na busca de formas de agir dentro de um ambiente de adversidades.
Se o trabalho é duro, ainda assim elas decidem aonde ir e quanto
tempo permanecer, e escolhem o momento favorável para um breve
descanso. Isto remete também à pergunta de Anne McClintock
(2010): quais são as possibilidades de agência em contextos de
extrema desigualdade social? As possibilidades para uma possível
agência se fazem mapeando rotas, caminhos e trajetos já enfrentados
por outras mulheres diante de um leque limitado de possibilidades.
É na certeza de que as amigas e familiares conseguiram êxito nesta
investida que elas se lançam diariamente no universo da rua onde
comem, trabalham, dormem de exaustão, estabelecem relações que
possibilitam a permanência em outra cidade, relações que se dão
com as pessoas na localidade onde circulam e relações entre elas,
relações de cuidado, solidariedade, afinidades, desavenças e afeto.
138 | (Des)Prazer da norma

As mulheres aprendem a reconhecer, por exemplo, as


localidades que poderiam ser mais rentáveis financeiramente para
as vendas (bairros residenciais de classe média, centros comerciais),
e os horários propícios. O êxito das vendas também depende desses
fatores, assim como da personalidade de cada uma, do timbre de voz
bom e alto para anunciar os produtos, das estratégias persuasivas de
venda – se é a dança, se é o canto, se são as duas coisas juntas, se são
os vestidos chamativos, se são as frases de duplo sentido.
Refletindo sobre o sentido do trabalho como uma estrutura
afetiva plena de significados, o trabalho que pode causar sofrimento,
aludindo à fala de Catalina, que se torna escrava dos doces, esse
sofrimento poderá se transformar em prazer pela utilização de
suas competências e liberdades individuais, o trabalho é que pode
transformá-las em protagonistas no processo de manutenção
histórica de si e das suas famílias negras. Surge assim a capacidade
das mulheres negras de transformar a natureza da dor vivida numa
autonomia que confere sentido positivo ao seu fazer. Deste modo, as
vendas dos doces se tornaram um artefato que as mulheres negras
palenqueras encontraram para ressignificar o trabalho, como forma
de trazer dignidade e prosperidade à família negra na sua localidade.
O trabalho se apresenta para as mulheres palenqueras como fonte de
satisfação, realização de tarefas, ato criativo; enfim, elas produzem
para atender às suas necessidades, como comer e vestir, é o meio
de sobrevivência da família como também uma conquista de sua
autonomia e autoestima. O trabalho para elas significa o próprio ato
de viver, são tecnologias do viver.
Nas narrativas em torno do trabalho, elas encontraram no
universo dos doces uma dignidade ao feito. Mesmo argumentando
e vivenciando nos seus corpos que esse trabalho pode matar,
deparam com valorações positivadas sobre o seu exercício laboral,
fato que revela as incongruências dos sentidos e significados da
luta pelo trabalho interdependente e informal. Como apontou Anne
McClintock (2010), é na encruzilhada das contradições que as
estratégias de mudanças podem ser encontradas.
Ressalto que mulheres palenqueras tiveram um papel econômico
fundamental no processo de circulação mercantil da produção do
espaço agrário, pois foram elas que passaram a comercializar os
produtos advindos da plantação de seus maridos. São elas que saem
para a calle para vender os produtos e que assumem papéis decisivos
Governo | 139

na organização socioeconômicas das unidades domésticas.


Não existe nem sol nem chuva, nem sábado nem domingo,
quando se trata de ganhar o mundo nas calles. As questões elencadas
foram organizadas ressaltando a comércio e os agenciamentos em
torno deste como potencialidades do protagonismo da mulher negra
nas diásporas africanas, o ¡Aleegreen-se! usado aqui como metáfora
ambígua que compõe a vida dessas mulheres negras na árdua tarefa
de ser e habitar um mundo que as exclui permanentemente.
Raça, Gênero e Sexualidades: Interseccionalidades
e Resistências Viscerais de Mulheres Negras em
Contextos Bio-Necropolíticos

Fátima Lima1

Tomando a ideia de raça enquanto uma ficção materializada


em corpos e processos de subjetivação entendidos(as) enquanto
negros(as), a multiplicidade de modos de vida e os enfrentamentos
vivenciados por mulheres negras em diferentes contextos brasileiros
são os pontos centrais das discussões levantadas neste texto. A partir
da perspectiva interseccional, as experiências raciais são entendidas
de forma transversalizadas pelas performatividades de gênero e
pelas sexualidades; tornando visível e dizível as relações entre raça,
gênero e sexualidade; tendo nas questões raciais a espinha dorsal das
situações que marcam a vida das mulheres negras, principalmente
as que estão em espaços e territórios que ativam e aumentam
vulnerabilidades. Para tanto, as questões raciais presentes nas
diferentes práticas sociais serão discutidas a partir da ideia de
colonialidade e de que elementos coloniais continuam moldando as
relações de saber-poder; retroalimentando uma cultura do racismo.
Esta última não passa mais tão silenciosa nos enfretamentos na
agenda atual. Por fim, o texto sustenta a ideia de uma colonialidade
em colapso e de uma política da matabilidade – Necropolítica, como
salienta Achille Mbembe (2017; 2018), uma bio-necropolítica que
tem, principalmente, nos corpos e subjetividades das mulheres
negras, um espaço privilegiado de violências. Ao mesmo tempo,
corpos e subjetividades negras vão reinscrevendo e reexistindo a
partir de novas-outras configurações que têm no enfrentamento do

1
Antropóloga e Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro/IMS/UERJ. Pós Doutora em Antropologia
Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/PPGAS do Museu
Nacional/UFRJ. Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro/
Macaé. Professora do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada- PIPGLA da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico - Raciais/ CEFET/RJ. É autora do
livro “Corpos, Gêneros, Sexualidades - políticas de Subjetivação” publicado pela
Editora Rede Unida.
142 | (Des)Prazer da norma

racismo no Brasil o principal desafio não apenas do presente, mas de


um futuro ainda condenado pela ficção racial.

Sobre Raça, Gênero e Sexualidades - perspectivas a partir das


mulheres negras

Em resumo, se tivéssemos que explicar simplesmente como


aplicar a interseccionalidade, diríamos que é uma mirada que nos permite
levar a evidenciar as relações de poder e privilégios que existem.
Platero, 2012, p. 30

As mulheres de Cor estão situadas de forma diferencial nos


âmbitos econômicos, sociais e políticos.
Kimberlé Crenshaw, 2012, p. 96

Falar sobre raça, gênero, sexualidade é desafiante na medida


em que três marcadores categoriais e dinâmicos da diferença –
Raça, Gênero e Sexualidade –, são colocados em debate a partir do
que se consolidou como a perspectiva interseccional. É provocadora
no sentido em que precisamos pensar – de forma crítica –, o que
queremos dizer com interseccionalidade? O que vem a ser uma
perspectiva interseccional? Onde e como ela pode contribuir nas
reflexões sobre modos de vida atravessados por raça, gênero,
sexualidades, classe, geração, territórios, entre outros eixos de
assimetrias e opressões? E, principalmente, como a perspectiva
interseccional dialoga com as questões raciais, suas vicissitudes e
transformações? Como o campo dos estudos interseccionais pode
ser um lugar epistemo-metodológico que pode contribuir para
entendermos melhor os processos de racialização materializados
nos corpos-subjetividades de mulheres negras e, principalmente,
como esse conceito-intercessor pode ser útil para entender os
diferentes contextos brasileiros contemporâneos marcados por
características singulares na forma como as práticas racistas
foram e são construídas e reatualizadas pela colonialidade
fortemente presente e por processos necropolíticos que compõem
os traços de poder na agenda social contemporânea que tem nos
Governo | 143

grupos populacionais negros um espaço privilegiado de atuação,


configurando o que tem sido denunciado como o genocídio da
população negra (Nascimento, 2017).
É importante assinalar a multiplicidade das relações
sociorraciais nos diferentes cenários brasileiros. Isso aponta
para uma pluralidade de experiências de e em mulheres negras,
mas, a partir dessas diferentes experiências, podemos apontar
um comum: o processo de opressão e exclusão racial e de gênero.
Essas experiências são singulares e pedem, por vezes, análises
diferenciadas. Aqui elas são percebidas e tomadas de forma
interseccionalizadas, tendo nas questões raciais uma certa primazia,
sendo a raça e seus desdobramentos o que tenho chamado de
espinha dorsal em inúmeras questões que constituem as atuais
problemáticas brasileiras (Lima, 2017).
Descrevo essas questões porque discutir sobre organizadores
sociais da diferença e suas dinâmicas, a partir de uma perspectiva
interseccional, é nos dar conta de como estes modelam as práticas
sociais, atravessadas por relações de saber-poder, que produzem
assimetrias, opressões e violências, principalmente nos corpos-
subjetivação de mulheres negras e racializadas,2 ao mesmo tempo
em que, nas fissuras da colonialidade, esses corpos-subjetividades
são capazes de reinventar e reexistir em suas diferenças, no
espaço da diferença colonial (Lugones, 2008), um lugar de fraturas
epistemológicas, de crítica ao eurocentrismo, um espaço tanto
físico quanto imaginário, onde é possível fazer emergir enunciações
fraturadas (Mignolo, 2003) e os corpos, no sentido mais profundo,
respondem visceralmente às diferentes opressões (Mbembe, 2016).

Interseccionalidades

Muito antes da interseccionalidade se configurar enquanto


um conceito forjado por Kimberlé Crenshaw (1994, 2002) e um
domínio de investigação; muitas pensadoras, principalmente sob
a égide do pensamento de mulheres negras e o feminismo negro,

2
Uso o termo racializadas para destacar mulheres de cor ou não-brancas que aliadas
a outros marcadores sociais da diferença como classe, territórios, entre outros, por
exemplo, as colocam em relações assimétricas de poder.
144 | (Des)Prazer da norma

tomaram as questões que atravessam as experiências das mulheres


negras a partir de diferentes eixos de opressão, principalmente o
racismo, o sexismo e o classismo, entre estas bell hooks (2000),
Audre Lorde (1984), Angela Davis (2016; 2017), Patricia Hill
Collins (2012), Lélia Gonzalez (1984), Sueli Carneiro (2011), entre
outras.
Assim, uma certa gênese dos estudos interseccionais pode
ser encontrada com teóricas entendidas e autocompreendidas como
mulheres negras e mulheres de cor (termo usado pela mulheres nos
contextos estadunidense e que agregava não apenas as mulheres
negras, mas também mulheres racializadas a exemplo de latinas,
chicanas, nipônicas, indianas, islâmicas, entre outras) tentando
criar não apenas um conceito, mas análises que dessem conta
das múltiplas opressões que atravessam diferentes experiências
de mulheres que estavam e estão fora da branquitude enquanto
relações de poder hegemônicas.3
Como aponta Velasco (2012) os movimentos do que viria a
se chamar posteriormente interseccionalidade remetem às posições
discursivas de mulheres negras que datam do final do século XIX, ou
seja, “(...) o que desde o feminismo pós-moderno tem sido traduzido
como teoria da interseccionalidade está na base genealógica do
feminismo negro afro-americano. Remonta ao discurso “Não sou
eu uma mulher” de Soujouner Truth na Convenção dos Direitos da
Mulher em Akron de 1852” (Velasco, 2012, p. 28).
Em um exercício cartográfico de estabelecer alguns marcos
do pensamento interseccional destaca-se também a “Coletiva
Feminista Negra Estadunidense – Coletiva do Rio Combahee” onde
o texto “Um Manifesto Negro” publicado originalmente em 1977
já ressaltava “(...) o compromisso ativo contra a opressão racial,
sexual, heterossexual e de classe” (Combahee River Collective,
2012, p. 75) evidenciando como estas opressões estavam inter-
relacionadas. Escrever sobre mulheres negras é uma escrita
interseccional e um traço reflexivo que carrega a experiência
racial (negra) e a experiência de gênero (mulher) entre outros
atravessamentos. Como ressalta Platero (2012, p. 35) “(...) para
as feministas negras, não se podia entender as experiências como

3
Sobre a noção de branquitude ver Carone, Iray & Bento, Maria Aparecida da Silva
(orgs.). 2014. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes.
Governo | 145

a classe, gênero, sexualidade, etc., sem entender a influência dos


processos de racialização”.
Sem dúvida, Kimberlé Crenshaw (1994; 2012) arredondou
o termo interseccionalidade por dentro das discussões no âmbito
jurídico, refletindo principalmente sobre as violências sofridas pelas
mulheres negras e como estas se diferenciam tanto estatisticamente
quanto subjetivamente das experiências de mulheres não-brancas.
Esse movimento de Crenshaw foi fundamental para consolidação de
um certo campo: os estudos interseccionais. Partindo da ideia de uma
interseccionalidade estrutural, Crenshaw (2012) reflete criticamente
sobre a posição das mulheres de cor na interseccionalidade entre
raça e gênero, evidenciando que as violências sofridas por estas
são qualitativamente distintas das mulheres brancas, levando
em consideração várias dimensões como as condições de classe
(pobreza), as atividades laborais, a responsabilidade de cuidar
dos filhos na maioria dos casos, entre outras. Salientando que a
interseccionalidade não é uma teoria nova ou totalizadora, nem
também que as violências sofridas pelas mulheres são capazes de ser
compreendidas apenas através de certos marcos raciais e de gênero,
a autora, no entanto, torna visível que tanto o feminismo hegemônico
quanto a luta antirracial não abarcaram as complexidades presentes
nas mulheres de cor e negras onde

Tanto as iniciativas feministas por politizar as experiências


das mulheres, como os esforços antirracistas para politizar as
experiências das pessoas de cor, frequentemente se produzem
de tal forma que parecem mutuamente excludentes. Ainda que
facilmente possamos ver que nas vidas reais das pessoas, o racismo
e o sexismo se cruzam, isto não é assim nas práticas feministas e
antirracistas (Crenshaw, 2012, p. 88).

Sem dúvida, as considerações de Crenshaw não apenas


consolidaram um campo de denúncias em relação a forma como as
mulheres de cor eram vistas tanto no feminismo mainstream quanto
na luta antirracial bem como no campo jurídico.
Partindo dessas considerações, penso que uma perspectiva
interseccional deve atentar para o fato de que os marcadores
sociais da diferença são singulares apesar de se atravessarem
constantemente, e que essa singularidade, no caso das vicissitudes
que o Brasil tem vivenciado, principalmente na última década,
146 | (Des)Prazer da norma

confere a ficção racial à brasileira uma força e requer de nós um


enfrentamento urgente na agenda contemporânea brasileira
marcada pela raiva, pelo tormento, pelo ódio e pelo desassossego. O
que quero reafirmar é que a ficção racial à brasileira construída sobre
e sob o mito da democracia racial, do imperativo da miscigenação, de
políticas de branqueamento e da cordialidade presente nas relações
raciais (Nascimento, 2017; Munanga, 2017) adquire destaque e
importância singular quando nos propomos a entender diferentes
processos a partir da perspectiva interseccional.
Essa aposta inscreve o debate interseccional frente as
discussões que dizem respeito ao poder, elemento central nas
investigações interseccionais onde os “(...) sistemas de poder são
implantados, mantidos e reforçados através dos eixos de raça,
classe e gênero” (McCall, 2009, p. 1). Essas relações de poder
são expressas a partir de diferentes eixos de opressão e acabam
muitas vezes essencializando as opressões e naturalizando as
violências. Nesse sentido, é preciso olhar para os diferentes
contextos não apenas a partir das diferenças que separam as
experiências, principalmente de sexismo, entre mulheres brancas
e negras, mas perceber os processos diferentes que se dão dentro
dos grupos identitários. Esse é o desafio sempre atual em tomar a
interseccionalidade como uma ferramenta teórica e metodológica,
não esquecendo-nos que são nas multiplicidades dos modos de
vida, nos enfrentamentos sociais que estão os maiores desafios
para compreensão e mudança nas condições de vidas das mulheres,
principalmente as mulheres negras.

Raça - Sobre esse grande delírio

Em uma entrevista intitulada As Sociedades Contemporâneas


sonham com o Apartheid, Achille Mbembe nos diz: “A crítica da
modernidade estará inacabada enquanto não compreendermos
que o seu advento coincide com o princípio da definição de raça e
da lenta transformação deste princípio em matriz privilegiada de
dominação ontem como hoje” (Mbembe, 2014, p. 6). Em outra obra
do mesmo autor chamada Crítica da Razão Negra, Achille Mbembe
(2018) adensa as reflexões sobre a categoria raça e o sujeito racial
quando coloca que
Governo | 147

Se aprofundarmos a questão, a raça será sempre um complexo


perverso, gerador de medos e tormentos, de problemas de
pensamento e de terror, mas sobretudo de infinitos sofrimentos
e, eventualmente, de catástrofes. Na sua dimensão fantasmagórica
é uma figura da neurose fóbica, obsessiva e, por ventura, histérica
(Mbembe, 2018, p. 27).

Tomo essas duas ideias – uma crítica ainda mal-acabada sobre


a modernidade e, por extensão a colonialidade e a ideia de grande
delírio fóbico que é a invenção das raças, em particular a raça negra
–, como elementos centrais para pensarmos o que temos aprendido
sobre modernidade, colonialidade e as infindáveis discussões se
vivemos ou não em uma pós-modernidade e, por extensão em uma
pós-colonialidade.
Parto da ideia de que precisamos tomar outras lentes
conceituais e metodológicas (lentes decoloniais e anticoloniais)
(Quijano, 2000; Mignolo, 2000; 2003) que permitam perceber com
mais vigor e luminosidade o que nos atravessa cotidianamente,
principalmente nos embates raciais que estamos vivendo em
diferentes cenários brasileiros. Isso requer tomar a compreensão
da construção da sociedade latino-americana e brasileira através
de outro eixo analítico que tem no violento processo da escravidão
e suas complexidades, a espinha dorsal para compreensão das
relações sociais (Nascimento, 2017; Munanga, 2017).
A partir dessa outra leitura, não tão presente nas formas de
contar a história do Brasil, da América Latina e Caribe; o processo
escravocrata e suas singularidades tornam-se o elemento central,
alimentado por diferentes dispositivos sejam estes narrativos
configurando-se em um grande processo de enfabulação que tem
no signo negro e na África lugares privilegiados nas construções
narrativas ou nas relações sociais que tiveram no modelo da
plantation (grandes latifúndios baseados na mão-de-obra escrava)
o exemplo do paradigma biopolítico e necropolítico, ou melhor,
bio-necropolítico.
Tomo neste texto a noção de bio-necropolítica a partir do
conceito de biopolítica forjado por Michel Foucault (2010, 2008;
2008b) e de Necropolítica trazido nas obras de Achille Mbembe
(2017; 2018). Por bio-necropolítica compreendo um acoplamento de
saber-poder que coaduna elementos da biopolítica como a disciplina,
o biopoder, o controle das populações, mas incorpora também
148 | (Des)Prazer da norma

elementos de uma necropolítica como, por exemplo, a constante


possibilidade de extermínio e a marca da exceção presente na
organização social, econômica, jurídica, entre outras características
decorrentes dos processos de colonização e neocolonização que
tiveram na ficção racial, na constituição das colônias e no sistema de
plantation características fundamentais.
A ficção racial foi fundamental para a constituição do que
chamamos modernidade. Michel Foucault toma de forma muito
interessante esse debate, principalmente no livro Em Defesa da
Sociedade (2010) quando forja a ideia de racismo de estado, deixando
evidente que a invenção e materialização das raças foi o elemento
central da modernidade e do que ele chamou de biopolítica. Foucault
não se debruça sobre a questão racial de Áfricas e seus povos, mas
pensa a questão racial em uma abertura geopolítica as vicissitudes
pelas quais a Europa passou do século XV ao século XIX, percebendo e
pensando os fluxos migratórios de povos não brancos que circulavam
e/ou habitavam a Europa há muito tempo. O que vale destacar em
suas análises é como a invenção das raças constituiu o motor da
biopolítica e da consolidação da sociedade capitalista onde “(...) se
o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por
uma volta ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa
e é exercido no nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos
maciços de população (...)” (Foucault, 2014, p. 148).
Essa ideia encontra reforço no pensamento decolonial que
tem pensado, a partir da categoria raça, o processo de colonização na
América Latina e Caribenha. Aníbal Quijano (1999) no texto “Qué tal
raza” coloca que “a ideia de raça é com toda seguridade o mais eficaz
instrumento de dominação nos últimos 500 anos. Produzida no mero
começo da formação da América e do capitalismo, na passagem do
século XV ao XVI e nos séculos seguintes foi imposta sobre toda a
população do planeta como parte da dominação colonial de Europa”
(Quijano, 1999, p. 141).
Mas foi Frantz Fanon, um martinicano, negro, psiquiatra que
muito cedo se despede de nós, em 1961 aos 36 anos de idade, que
lançou as mais instigantes reflexões sobre a ficção racial tendo na
experiência vivida do negro o elemento central de suas análises
nas obras Pele Negra, Máscaras Brancas publicada em 1952 e,
posteriormente em Os Condenados da Terra publicada em 1961.
Embora, as análises se constituam sob e sobre o homem negro é
Governo | 149

impossível ler a obra sem pensar como estes elementos e reflexões


perfazem também as experiências de subjetivação de mulheres
entendidas e marcadas socialmente como mulher negra e/ou
racializada. Para Fanon (2008), perceber-se negro é se ver “objetos
em meio a tantos objetos”, essa zona de não-ser, mas sendo, na
medida em que ao intitular-se “branco”, os europeus caucasianos
elegeram aqueles de pele não branca como negros, inventando,
assim as raças onde uma dessas – a dita raça negra –, se constituiria
através de esquemas corporais e subjetivos marcado por opressões,
ausências, negação e violências, configurando-se, esse movimento,
em uma experiência a qual chamou de epidérmico racial. No entanto,
foi e é em virtude de ser arremessado nesse processo de inexistência
que Fanon se deu conta de sua negritude, essa tomada de uma
consciência fundamental nos processos de reconhecimento e de luta
enquanto negro(a) onde

(...) a consciência negra é imanente a si própria. Não sou uma


potencialidade de algo. Sou plenamente o que sou. Não tenho que
recorrer ao universal. No meu peito nenhuma probabilidade tem
lugar. Minha consciência negra não se assume como a falta de algo.
Ela é. Ela é aderente a si própria (Fanon, 2008, p. 122).

É a partir da ideia de que a raça e, consequentemente a raça


negra é uma ficção materializada em corpos e subjetividades e que
só na experiência do vivido, sua imanência (vida nas suas formas
de diferença) e na experiência da negritude que as questões raciais
precisam ser discutidas e, aqui em particular, as experiências que se
encontram nos cotidianos das mulheres negras em que o racismo
e o sexismo, acompanhado pelo machismo e pela misoginia são
elementos presentes.
No que se refere à ideia de colonialidade e a sustentação
da ideia de que vivemos um padrão de poder marcado pela
colonialidade é importante ressaltar que não somos mais colônia,
no entanto alguns desses elementos perfazem e são reiterados nas
práticas sociais. Findo, de um certo modo, o domínio colonial; o que
alguns pensadores e pensadoras têm chamado de colonialidade
permaneceu e permanece se atualizando cotidianamente nos
discursos e práticas nos diferentes contextos latinos e brasileiros.
Nesse sentido, tomo mais uma vez as ideias de Aníbal Quijano
150 | (Des)Prazer da norma

que junto a outros e outras pensadores e pensadoras latino-


americanos(as) têm tomado como construção epistemológica as
experiências na América Latina e Caribe pensando a relação entre
colonialismo e colonialidade, contribuindo para a construção de um
pensamento decolonial. Entre os conceitos intercessores forjados
pelo autor tomo aqui emprestado, principalmente, o debate sobre a
colonialidade do poder; diferenciando colonialidade de colonialismo
e entendendo que a colonialidade é a pedra fundacional do padrão
de poder mundial capitalista, colonial/moderno e eurocentrado.
Essa colonialidade do poder que persiste e se reitera tem provado
ser mais profunda e duradoura que o colonialismo, presentificando-
se nas práticas sociais, entre estas as relações sociorraciais. Assim,
para Quijano (2000)

A Globalização em curso é, num primeiro termo, a culminação


de um processo que começou com a constituição da América e
do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo
padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão
de poder é a classificação social da população mundial sobre a ideia
de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica
da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões
mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade
específica o eurocentrismo. Este eixo tem, pois, origem e caráter
colonial, mas tem demonstrado ser mais duradouro e estável
que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, em
consequência, um elemento de colonialidade no padrão de poder
hoje mundialmente hegemônico. No que concerne, o propósito
principal é abrir algumas questões teoricamente necessárias acerca
das implicações dessa colonialidade do poder a respeito da história
da América Latina (Quijano, 2000, p. 201).

Partindo dessa ideia e ampliando as possibilidades de


exercício de um pensamento crítico argumento que a colonialidade
à brasileira assumiu características singulares como o já citado
mito da democracia racial e o imperativo da miscigenação. Essas
construções discursivas formam um conjunto semiótico que
evidencia como as práticas racistas no Brasil são, muitas vezes,
silenciosas e/ou mascaradas por discursos, e quando expostas
visibilizam as suas faces mais perversas; fazendo da materialização
dessas experiências intersubjetivas um dos grandes desafios que
Governo | 151

precisamos enfrentar na agenda social contemporânea brasileira.


É nessa maquinaria que situo as diferentes experiências
subjetivas vivenciadas por mulheres negras em situações cujos
marcadores sociais da diferença acentuam-se. Tomando a geopolítica
da cidade do Rio de Janeiro, ressalto que na medida em que estas
mulheres vivem em comunidades e/ou favelas, nas periferias da
cidade, na Baixada Fluminense, na Zona Oeste e na Zona Norte;
regiões marcadas por uma geografia espacial e humana da exclusão
e de opressões aumentam as possibilidades de vulnerabilidades e
violências onde

A localização simbólica dos moradores de favelas no contingente


inimigo da “guerra” tem não apenas permitido a naturalização de
suas mortes, como estabelecido uma gramática moral centrada
na trajetória das próprias vítimas como condição para a eventual
apuração das condições dessas mortes e a tentativa de penalização
judicial dos responsáveis por elas (Vianna, 2015, p. 406).

Dessa forma, atravessadas por marcadores sociais e


dinâmicos de classe, sexo, gênero, e tendo a raça como espinha
dorsal, infelizmente fazem parte das estatísticas de subempregos
ou desemprego, habitam territórios marcados pelas violências,
compõem o número de mães que perderam seus filhos nas mãos –
principalmente –, da polícia militar, transformando esse processo
de dor e luto em uma dimensão não apenas individual, mas
coletiva (Vianna & Farias, 2011), habitam os espaços psiquiátricos
evidenciando a relação entre racismo e sofrimento psíquico,
compõem majoritariamente a população carcerária feminina;
elencam, infelizmente, ainda que de forma sub notificada ou muitas
vezes não notificada as violências nos espaços de cuidado à saúde,
destacando aqui a violência obstétrica e os abortos inseguros; lotam
as filas da defensoria pública.
Assim, tomando como parâmetro as questões trazidas,
ressalto que para tomarmos as vicissitudes que atravessam as vidas
das mulheres negras a partir da perspectiva interseccional torna-
se necessário desmantelar as ruínas do mito da democracia racial,
o imperativo da miscigenação, a política de embranquecimento
que funcionaram e funcionam ainda e com muita força como
elementos mascaradores das assimetrias e desigualdades, mas
152 | (Des)Prazer da norma

precisamos, principalmente, enfrentar o assombro e desassossego


que vem hora da visibilidade e dizibilidade dos modos de
vidas das populações negras hora da urgente necessidade de
políticas de reparação e do compromisso urgente em diminuir as
desigualdades raciais; expressas pelas incomensuráveis violências
que explodem diariamente no âmago das opressões e que tem nos
corpos-subjetividades das mulheres negras espaço privilegiado
nas relações necropolíticas.

Bio-Necropolíticas
Achille Mbembe (2017; 2018) no ensaio Necropolítica cuja
primeira publicação data de 2006 bem como as recentes reflexões
na obra Políticas da Inimizade na qual consta um capítulo chamado
“Necropolítica” uma questão salta e nos provoca. Nos pergunta o
autor:

A noção de biopoder será suficiente para designar as práticas


contemporâneas mediante as quais o político, sob a máscara
da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, opta pela
aniquilação do inimigo como objetivo prioritário e absoluto? A
guerra, não constitui apenas um meio para obter a soberania, mas
também um modo de exercer o direito de matar. Se imaginarmos a
política como uma forma, devemos interrogar-nos: qual é o lugar
reservado à vida, à morte e ao corpo humano (em particular o
corpo ferido ou assassinado)? Que lugar ocupa dentro da ordem do
poder (Mbembe, 2017, p. 108).

Assim, pelo olhar do Achille Mbembe, a noção de biopolítica


sofre um deslocamento saindo de análises centradas em contextos
europeus para pensarmos a forma de constituição desses diagramas
de poder não apenas nos contextos pós-coloniais de Áfricas, mas
também nos processos de colonização e nos traços de colonialidade
que ainda imperam com força nos contextos latino-americanos,
caribenhos e brasileiros. Dessa forma, muda o eixo de olhar para
processos históricos e o holocausto judaico deixa de ser o modelo
paradigmático, passando o processo de colonização e neocolonização
e, consequentemente o extermínio das populações indígenas e a
escravidão, a ser o centro do debate biopolítico onde essas vidas,
Governo | 153

essa bios precisam ser tomadas de uma perspectiva racializada.


Na perspectiva Necropolítica, a forma como as colônias se
organizaram operaram como lugares parecidos com as fronteiras,
habitados por selvagens, abaixo da ordem estatal, não conseguiu
gerar um mundo possivelmente ‘humano’, constituindo um mundo
do terror. A escravidão ou o processo escravocrata, na forma como o
toma o Achille Mbembe, constituiu o elemento central dos processos
necropolíticos onde

Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa


tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras
manifestações da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos,
a própria estrutura do sistema de plantation e suas consequências
manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção
(Mbembe, 2018, p. 27).

Em resumo, as colônias são zonas em que a guerra e a


desordem, as figuras internas e externas do político, se tocam e se
alternam umas com as outras. Como tais as colônias são o lugar por
excelência em que os controles e garantias da ordem judicial podem
ser suspendidos, onde a violência do estado de exceção supostamente
opera a serviço da civilização (Mbembe, 2018, p. 35).
Ou seja, nós nos constituímos desde o principio e no seu fim
em uma zona de exceção, espaços onde “(...) a soberania consiste
fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei”
(Mbembe, 2017, p. 32). A exceção nos marca e os seus efeitos modelam
as práticas discursivas reatualizando os traços de colonialidade;
colocando em suspensão o que realmente almejamos ou queremos
dizer quando falamos em democracia. O primeiro capítulo do livro
Políticas da Inimizade chama-se justamente a “Saída da Democracia”
e em meio a tantos inquietantes reflexões, Achille Mbembe (2017, p.
43) nos lembra

(...) que a ordem democrática, a ordem da plantação e a ordem


colonial mantiveram, durante muito tempo, relações geminadas.
Estas relações estão longe de ter sido acidentais. Democracia,
plantation e império colonial fazem objetivamente parte de uma
mesma matriz histórica. Este fato originário e estruturante é central
a qualquer compreensão histórica da violência da ordem mundial
contemporânea.
154 | (Des)Prazer da norma

Parafraseando Achille Mbembe coloco que: este fato


originário e estruturante é central a qualquer compreensão histórica
das violências que têm se tornado cada vez mais visíveis e dizíveis
em contextos brasileiros, acentuando tempos de tormentos, dores,
embates, contra discursos, tempos de guerras, novas/outras guerras
raciais, de repovoamento da terra, da condição terrestre e de um
futuro ameaçado por tudo aquilo que corrói o presente, ou seja – um
desencantamento de mundo, um desmantelamento do humanismo
e do imperativo racional, um tempo que não se explica mais a partir
apenas do biopoder e da biopolítica, mas de uma necropolítica, ou de
uma bio-necropolítica –, uma política da matabilidade, uma economia
de morte, do excedente, do eliminável, porque sobra aquilo que não se
sacraliza; tempos de necropoder – este que sempre esteve presente
enquanto linha de força em contextos marcados pela colonialidade
e, consequentemente por relações demasiadamente assimétricas e
opressivas. Mas também é um tempo de levantes e de resistências
viscerais. Mais uma vez é o corpo – corpos-subjetividades que estão
presentes, que são interpelados, subjugados, atingidos, dilacerados,
cravados de balas, mas também são corpos-subjetividades que
teimam corpos racializados em uma gramática sociorracial que já
não é mais a mesma e nunca mais será.
As reflexões apontadas na obra Necropolítica bem como
em Políticas da Inimizade vão tornando potente este conceito para
compreensão das relações de saber-poder nos contextos brasileiros,
percebendo como uma bio-necropolítica é o diagrama por onde se
instauram, atuam e renovam as relações de poder ainda sustentadas
nas práticas raciais e marcadas por um governo de mortes (Farias,
2014). A partir das discussões proporcionadas pelo conceito de
Necropolítica levanto algumas reflexões sobre os modos de vidas
de mulheres negras em contextos brasileiros marcados pelo comum
das práticas racistas:

- As mulheres negras, seus corpos-subjetividades tornam-se, a


partir desse lugar de ser mulher e negra um espaço privilegiado
de relações de poder, violências, assujeitamentos, opressões onde
uma economia da matabilidade (vidas que se tornam cada vez mais
matáveis), um necropoder (poder de morte) e uma necropolítica
(política da morte) se acoplam a biopolítica contemporânea. As
mulheres negras (corpos e subjetivação), em virtude do marcador
Governo | 155

‘mulher’ e do marcador ‘negra’ constituem duplamente espaços onde


a necropolítica contemporânea atua de forma incisiva expressa nas
altas taxas de violência e feminicídio e nos números assombrosos
de mães negras que perdem seus filhos na maquinaria de poder que
tem na juventude negra o espaço de eliminação do presente e de
extirpação de um futuro.

- É impossível enfrentar o debate dos modos de vidas de mulheres


negras e/ou racializadas, sem enfrentar as questões raciais,
entendendo a raça como uma ficção materializada nos corpos e
processos de subjetivação que são singulares, pigmentocrático,
interseccionalizados com territórios, origem, idade, escolaridade,
entre outros, mas marcados pelo comum da exclusão. É impossível
enfrentar essa discussão sem tomar o marcador raça como a espinha
dorsal pela qual as práticas discursivas racistas perpassam os corpos-
subjetividades de mulheres negras, evidenciando o gendramento e
sexualização da raça bem como a racialização das performatividades
de gênero e sexualidades.

- Para enfrentar as questões raciais e as práticas racistas nos


contextos brasileiros, precisamos enfrentar a urgente necessidade
de desmantelarmos por completo o mito da democracia racial e
o imperativo da miscigenação como elementos modeladores das
relações raciais no Brasil. Falar sobre o mito da democracia racial é
tomar um conjunto semiótico complexo, um dispositivo discursivo
e prático que produziu um discurso da cordialidade que sustentou
durante um bom tempo as relações sociorraciais no Brasil. Aqui
não levanto a ideia de que o mito resiste, mas, pelo contrário, falo
dos incômodos que permanecem em suas ruínas, incômodo esse
visível e dizível cada vez mais por uma recusa em tomar a presença
atuante de negros e negras em espaços onde sua participação
era quase insignificante, principalmente as universidades, as
expressões culturais, as artes, entre outros marcados pela força do
imperativo branco.

- Isso, na minha análise, só se torna possível se encararmos os


elementos de colonialidade que estão presentes nas nossas práticas
cotidianas, principalmente as linhas de força que ressoam, a partir
do processo escravocrata e dos elementos que estão presentes no
156 | (Des)Prazer da norma

imaginário e práticas sociais e que se tornou mais visível e dizível


na última década, a partir de políticas sociais e de ações afirmativas
que possibilitaram uma precipitação das relações raciais que
enfrentamos cotidianamente.
- Ressalto que falar sobre a política da matabilidade não significa
que tomamos a morte ou as vidas matáveis como um fato do qual
não há possibilidades de saída. Pelo contrário. Necropolítica é um
agenciamento de poder e, seguindo a máxima foucaultiana “onde tem
poder, há resistência”, é na necropolítica que se ativam os pontos de
resistência viscerais. Como nos diz o Achille Mbembe na entrevista:
“Quando o poder brutaliza os corpos, a resistência assume uma
forma visceral”.4

Sobre tempos de agora, sobre o futuro e o comum em nós

Não há outro mundo. Só há um mundo, plural, mas um único


mundo e faz parte de ser no mundo o desejo ilimitado de a ele
pertencer. Esse movimento, por direito de todos os povos, é o que
de mais frágil e angustiante carregamos. Acadêmicas e acadêmicos
que somos precisamos nos implicar nesse processo, a academia
precisa romper o silêncio, muitas vezes, perpetuado diante das
opressões, principalmente as opressões raciais bem como romper
com os ‘encantamentos’ acadêmicos pela excessiva teorização,
muitas vezes desnecessária para além do jogo epistemológico. Aqui
me alinho, mais uma vez, a Achille Mbembe quando na obra Sair da
Grande Noite nos provoca dizendo: “Também é necessário resistir
à cumplicidade por encantamento e saber para onde se encaminha
o nosso canto, e qual é a sua filiação no destino da grande noite do
mundo” (2014b, p. 31). A grande noite do mundo é uma ideia que o
autor toma emprestado de Frantz Fanon quando este nos convoca
a emergencial necessidade de sairmos da noite da colonização/
descolonização e de tudo aquilo que ela produziu, principalmente
a coisificação do negro e, consequentemente das negras, que
estiveram, durante um longo tempo fora da categoria (marcador)

4
“Cuando el poder brutaliza el cuerpo, la resistencia asume una forma visceral”.
Entrevista. Disponível em: https://www.eldiario.es/interferencias/Achille-
Mbembe-brutaliza-resistencia-visceral_6_527807255.html.
Governo | 157

“mulher” e fora da categoria (marcador) “negro”.


Assim é preciso ter claro onde nós nos alinhamos nesse
gigantesco labor que é “forjar um sujeito humano novo emergindo
inteiro da “argamassa do sangue e da cólera”, livre do fardo da raça e
desembaraçado dos atributos de coisa. Um sujeito quase-indefinível,
sempre em remanescente porque nunca acabado, tal desvio que
resiste à lei, mesmo a qualquer limite” (Mbembe, 2011, p. 2).
Por fim, argumento e defendo que uma perspectiva
interseccional deve atentar para o fato de que os marcadores sociais
da diferença são singulares, apesar de se atravessarem o tempo
inteiro, e que essa singularidade, no caso das vicissitudes que o Brasil
tem vivenciado, principalmente na última década, confere a ficção
racial à brasileira uma força e requer de nós um enfrentamento na
urgente agenda contemporânea brasileira marcada pela raiva, pelo
tormento, pelo ódio e pelo desassossego.
Não há processo de luta que responda à ficção racial sem
dor, sem tormento, sem raiva e sem violência. E nesse devir, sem
dúvida, as mulheres negras tem um lugar e uma força fundamental
de transformar realidades.
Desejo
O “princípio da putaria” nas orgias masculinas:
diferença e singularidade no corpo orgiástico
Victor Hugo de Souza Barreto1

Um momento de efervescência
É o segundo domingo do mês e novamente chego à “Festa do
Vale Tudo” para mais um dia de trabalho de campo em minha pesquisa
sobre as festas de orgia entre homens no Rio de Janeiro. Fico de sunga (o
vestuário permitido nessas festas é sunga, cueca ou nada) e vou andar
pelos ambientes da casa procurando acompanhar os encontros dos
em torno de cento e cinquenta homens ali presentes. Dentre as várias
interações eróticas observadas durante as sete horas de festa, trago
a descrição de um dos “picos de intensidade” ou um dos momentos
efervescentes em que estava presente.
Nesse dia conheci um dos participantes que vou chamar de Léo.
Ele é alto, se destacava pela altura diante dos outros homens presentes,
moreno,2 cabelo raspado, parecia estar na faixa dos 30 anos, morador
de Caxias, tinha um corpo magro normal, ainda que tivesse dito que
trabalhava como professor de educação física em uma academia; e
também possuía uma perna um pouco mais curta do que a outra o
que fazia com que tivesse um andar um pouco arrastado. Vi Léo pela
primeira vez em uma interação à três em uma das suítes coletivas da
casa. Quando me viu, abandonou os outros dois homens com quem
estava e veio conversar comigo. Me fazia perguntas aleatórias enquanto
me levava para um sofá um pouco afastado das atividades eróticas
que aconteciam ao nosso redor. Aproveitei para perguntar coisas
referentes à pesquisa, mas Léo era muito insistente, ficava pegando
em meu corpo a todo momento, me beijando o pescoço e a nuca e

1
Victor Hugo de Souza Barreto é doutor em Antropologia pela Universidade Federal
Fluminense. Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional/UFRJ.
2
Assinalo desde já que os termos de classificação que utilizo nas descrições dos
corpos dos participantes, incluídos aí os modos de classificação racial marcados
ou não com aspas, foram aqueles verbalizados pelos meus interlocutores (ainda
que não tenham sido pronunciados naquele exato momento ou só tenham sido
informados posteriormente).
162 | (Des)Prazer da norma

queria ficar de mãos dadas. “As pessoas aqui me assustam um pouco.


Você parece ser legal. Eu não sei ser putão, sabe?”, me disse, “pergunto
logo o nome, quero saber da vida da pessoa, conversar, me apego”.
Em pouco tempo estava contando sobre o seu último relacionamento
amoroso que era à distância e tinha terminado recentemente. Disse ter
conhecido o ex-namorado em um outro espaço voltado para interações
eróticas entre homens no Rio e que após um mês de namoro o outro
terminou a relação por mensagem de texto. Falei para darmos uma
volta enquanto continuávamos a conversa. “Você quer ver a putaria,
né?”, respondeu me seguindo, mas ainda segurando a minha mão.
Após passarmos pelas outras suítes chegamos ao ambiente que
é conhecido aqui como “aquário”, um quarto com sofás e uma parede
de vidro que deixa ainda mais visível para os outros o que acontece
ali. Quando chegamos havia uma interação acontecendo. Um rapaz
de barba e sunga vermelha penetrava outro, com uma tatuagem na
panturrilha, que estava deitado no sofá de pernas abertas. Nesse
espaço estavam esses dois, eu, Léo e mais três ou quatro pessoas que
estavam “participando” da interação do casal. Falavam “sacanagens”,
incentivavam o ato, passavam a mão e seguravam as pernas do rapaz
com a tatuagem no sofá mantendo-as bem abertas para que o rapaz
de barba pudesse continuar a penetração. Muitas mãos e cabeças
e corpos se aproximando, se agrupando, para ver melhor ou para
sentirem melhor o que ocorria. O rapaz de barba fala: “tô me segurando
muito para te leitar” e o outro responde que ele não precisa segurar e
pode gozar, e todos acompanham em suspenso os gemidos mais altos
do rapaz de barba. Léo, que foi se agitando com o decorrer da cena,
diz no meu ouvido: “Quer me ver comendo ele também?”. Sem esperar
minha resposta ele se aproxima do casal e sem falar nada, apenas com
gestos, comunica que também deseja penetrar o rapaz de tatuagem
que estava de pernas abertas no sofá. O rapaz de barba incentiva:
“Aproveita que já está larguinho e dá para ele”. O outro aceita e os
corpos se afastam por um momento e se reposicionam no ambiente.
Léo fica de pé, encostado na parede enquanto segura o rapaz que
antes estava no sofá pelo quadril com uma mão e com a outra me puxa
para ficar a seu lado. Alguém dá uma camisinha para Léo também
incentivando a transa. Em pouco tempo, eles se encaixam enquanto
Léo puxa o cabelo do rapaz para trás. O rapaz de barba continua ali,
observando a cena, ainda ofegante e suado do gozo anterior, mas já
sendo chupado novamente por alguém. A quantidade de pessoas cresce
Desejo | 163

atraídas pela interação, chego a contar em torno de 15 homens, uma


aglomeração, uma multidão, todos juntos, se ligando, conectando,
partes já indistintas de corpos se misturando. O ambiente é tomado
por um cheiro de umidade, suor, de “cheiro de sexo e de homem”. Léo
acelera a penetração cada vez mais a pedido do rapaz: “Fode! Com
mais força!”. A parede em que estamos encostados chega a tremer com
os movimentos. A todo momento, Léo busca contato visual comigo e me
aperta com uma das mãos na cintura. Olha ao redor para a multidão e
sorri também. As pessoas chamam tanto ele quanto o outro de “puto”
e “safado”. Passam a mão pelos corpos, beliscam, lambem e mordem
os mamilos de Léo, masturbam e chupam o rapaz que está sendo
penetrado. Os movimentos se aceleram até alcançar um clímax entre
muitas mãos, cabeças, suspiros, falas entrecortadas e gemidos. Depois,
a multidão logo se desfaz, as pessoas se dispersam e Léo desaba no sofá
descansando e continua conversando comigo. Olhamos enquanto as
pessoas vão para outros espaços e continuam em trocas eróticas. Em
determinado momento diz: “Aqui é tudo pela putaria”.

***
É meu objetivo neste trabalho apresentar uma reflexão sobre
determinadas práticas sexuais realizadas entre homens na cidade do
Rio de Janeiro em reuniões de orgia. O que a experiência, ou melhor
dizendo a experimentação, da sexualidade nessas festas parece
colocar em jogo são outros modos de subjetivação e corporalização,
maneiras propriamente intensivas, nas quais a intensidade do
instante de vida (ou de gozo) se impõe sobre a duração da vida
em extensão, ou sobre os outros aspectos da vida dessa pessoa.
Com base em dados de campo de uma pesquisa que desenvolvi
para o Doutorado em Antropologia,3 meu interesse neste trabalho
é refletir melhor sobre a ideia de “putaria” como modo singular de
engajamento no mundo.

3
Tese que deu origem à publicação Barreto (2017a).
164 | (Des)Prazer da norma

A química da orgia

É preciso saber fazer os encontros que lhe convêm
(Deleuze, 1978)

Pouco antes de iniciar o trabalho de campo e as idas às
festas de orgia, tive uma conversa com um amigo que de vez em
quando participava delas. Nessa conversa ele disse que ao observar
os homens andando pelo dark room da casa procurando interações
sexuais uns com os outros, lembrava-se de cenas dos filmes de
terror de zumbi, em moda atualmente. Assim como os zumbis, ele
via aqueles homens na orgia como seres sem vontade própria e
sem personalidade, com um andar constante na penumbra local,
apenas respondendo a um instinto e se alimentando com a carne e
a vida alheia.
Em pouco tempo percebi que a imagem dos zumbis não era
a mais adequada para dar conta do que acontecia naquele espaço
durante as festas. Aquelas pessoas estavam longe de serem seres
apáticos ou sem consciência que se consumiam. Uma imagem
mais adequada para a deriva das pessoas e suas interações nesses
eventos são as ligações e reações químicas entre os elementos.
Aqueles homens parecem muito mais átomos que procuram se ligar
(e, de acordo com a química, existem diferentes tipos de ligação),
de forma a trocar, doar ou compartilhar elétrons, formando assim
moléculas. Não há consumo unilateral da “vida” do outro, o que há
são composições, ligações, afecção dos corpos e encontros.
Em uma de suas aulas sobre Espinosa, Deleuze explica que
para esse pensador o mundo é uma construção ou um movimento
permanente feito a partir dos encontros dos corpos, tudo o que
existe se constituiria a partir do encontro. Na filosofia espinosista,
esses encontros nos constituem na medida em que tem a potência
de, a cada vez, transformar os corpos, compor ou decompor, e até
mesmo produzir um novo corpo. Aqui, como na analogia que trouxe
das ligações e reações químicas, “no encontro não existe aquele que
afeta e o que é afetado: alguma coisa acontece em ambos (ou nos
vários) elementos envolvidos” (Silva, 2004, p. 9).
Assim, para Espinosa, um bom encontro seria aquele no
qual os homens se sentem alegres, quando potencializam seu agir e
existir, quando compõem com outro corpo, aumentando sua vontade
Desejo | 165

de potência. O oposto se daria em um mau encontro, em que há


diminuição dessa potência ou mesmo destruição. Tudo se dá a partir
dos encontros dos corpos e de como somos afetados por eles. Viver
seria oscilar, portanto, entre bons e maus encontros, entre a alegria e
a tristeza. Ou mesmo entre o prazer e o desprazer.
Como não há nada que permita prever se o encontro vai
ser bom ou ruim, apenas a experiência, o encontro efetivo, é que
o dirá. O que significa que não se possa construir um saber, ou
uma técnica, baseada em encontros anteriores, os quais permitam
controlar, um mínimo que seja, o resultado destes visando efeitos
positivos. Ainda assim, mesmo com toda a “técnica” utilizada, o
momento efetivo do encontro é do acaso. E talvez possa residir
aí, nesse se arriscar e se colocar no acaso dos encontros, um dos
maiores prazeres encontrados em algumas práticas como uma
aposta no jogo, o uso de uma droga, uma “pegação” em local público,
a ida em uma orgia etc. Cabe a pergunta: o que faz um encontro
ser bom ou ruim em um contexto de orgia? Como saber organizar
bons encontros nesse contexto? No caso da orgia, me parece ser
a intensidade, caracterizada e performatizada pela “putaria”, que
determina os bons ou maus encontros.

Intensidade e experimentação

Um dos principais desafios desse campo é que os participantes


da festa pouco buscam explicações sobre suas práticas ou possuem
discursos elaborados sobre aquilo que se passa nesses eventos.4
Minhas perguntas são acompanhadas dessa dificuldade em elaborar
algo que eles dizem que apenas sentem. Minha estratégia, portanto,
esteve em cartografar esse mapa, essa zona de intensidades que perfaz
as festas de orgia. A intensidade, performatizada nesse caso na/pela
putaria, é um elemento chave, já que é ela que força, desencadeia e
alimenta as práticas. A intensidade é aquilo que só pode ser sentido.
Isto significa que é ela, e só ela, que dá a sentir, que faz sentir, que
força a sentir, que pelo que me falam os participantes não pode ser
objeto de nenhuma outra faculdade nem capturado em um discurso

4
Sem contar que os espaços da festa também não são os locais mais apropriados
para emitir “explicações”.
166 | (Des)Prazer da norma

explicativo. Não é que não haja “razão” ou “racionalidade” nos


eventos etnografados. Pelo contrário, como espero explicitar, nessas
festas é preciso um saber “técnico” e mesmo performático para que
a fruição alcance níveis maiores de intensidade. Minha proposição
é sobre a dificuldade de “procurar explicações” para aquilo que
primordialmente se sente.
Em nossa concepção de ciência, de forma geral, não cabe
o que vem da sensibilidade, dos sentidos; há a criação de uma
hierarquia entre o superficial e o profundo. Deleuze criticava essa
posição que valoriza a profundidade em detrimento da superfície,
isto é, a concepção segundo a qual “superficial” significaria de pouca
profundidade e não de vastas dimensões, e “profundo”, de grande
profundidade e não de pouca superfície. “O mais profundo é a pele”,
diz uma das belas expressões de Deleuze (Machado, 2013, p. 35), e a
que melhor define o que se passa nas festas de orgia.
A intensidade é a “razão” desses eventos, criando e
produzindo a sensibilidade do fenômeno. Algo da ordem da
experimentação e, dessa forma, aquilo que acontece ali é ou só
poderia ser experimentado. Por isso, inclusive, minha participação
ser continuamente reivindicada pelos “nativos”. Esse questionamento
vem do entendimento que as coisas que acontecem ali só possuem
uma compreensão na medida em que são sentidas, experimentadas.
Irônico perceber isso, em uma questão também apontada por
Caiafa (2007, p. 154), que durante minha experiência nesses anos
de formação acadêmica ao participar e assistir a muitas bancas e
falas em congressos, a grande preocupação em nossas pesquisas
parece ser o de se “relativizamos o suficiente” o que observamos,
se nos “distanciamos” do que acontece no campo, enfim, o grande
questionamento é se estamos “longe o suficiente” do que estudamos,
quando o que meus interlocutores questionam e que não parece ser
preocupação acadêmica é se, em nossas pesquisas, conseguimos estar
“perto o suficiente”, se de fato nos aproximamos e compreendemos
aquilo que acontece em campo.5

5
Ou, como afirma Favret-Saada, em seu já clássico texto sobre a afetação no trabalho
de campo: “Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica
identificar-se com o ponto de vista do nativo, nem aproveitar-se da experiência
do campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se
assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de
conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa
Desejo | 167

O corpo orgiástico
Uma pesquisa que se faça entre pessoas interagindo em
atividades de sexo coletivo não pode se furtar a uma discussão
sobre corporalidade. Não apenas porque seja uma “problemática
obrigatória”, mas porque, de fato, é a linguagem principal que
pude encontrar nesse campo. Essa característica apresenta uma
forma de produção da subjetividade que foge, pela corporalidade,
ao debate dicotômico muito presente nas ciências sociais entre
“pessoa” x “indivíduo”. Nem pessoa nem indivíduo; os atores aqui
se reconhecem e se constroem pela apresentação e uso de seus
corpos.6 A especificidade é tanta que esse corpo chega ao nível da
fragmentação: partes do corpo que se separam, ganham agência e
vão de encontro ao desejo do Outro. Torna-se inevitável, portanto,
que a discussão das orgias aponte para a discussão do que Mauss
(2003, p. 401) chamou de técnicas corporais, isto é, “as maneiras
como os homens, sociedade por sociedade e de uma maneira
tradicional, sabem servir-se de seus corpos”. O contexto dessas festas
obriga a um relacionamento diferenciado com o próprio corpo. E
se queremos nos aproximar de um entendimento do que se passa
nesses encontros teremos que levar isso em consideração.
É por conta disso que, se o evento das festas de orgia é tema
de interesse deste trabalho, ele o é na medida em que oferece um
terreno privilegiado para a investigação da produção social, tanto
material quanto simbólica, dos sujeitos e dos corpos humanos,
“bem como das concepções e das experiências de vida e de morte
implicadas nessa produção” (Ibid.). Nesse sentido, tal como ressalta
Vargas, é importante considerar que nem sempre os humanos se
definem como sujeitos e servem-se de seus corpos de uma maneira
extensiva, ou segundo critérios extensivos (Vargas, 2001, pp. 214-
215); o que pretendo demonstrar neste trabalho é que a experiência

e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma


etnografia é possível” (Favret-Saada, 2005, p. 160).
6
Não por acaso, os meus relatos e narrativas do campo são pautados pela descrição
dos corpos dos “nativos”. Ao me deparar com a óbvia dificuldade em se descrever
uma orgia, fui percebendo que, ainda que venha nomear uma ou outra pessoa, os
participantes são apresentados por suas características corporais. O que estou
dizendo é que isso não é apenas um recurso narrativo do qual estou me valendo,
é pelo corpo (e seus encontros, suas “ligações químicas”) que essas pessoas se
constroem e se dão a conhecer nesse contexto.
168 | (Des)Prazer da norma

da sexualidade nessas festas coloca em jogo outros modos de


subjetivação e corporalização, modos propriamente intensivos,
como venho dizendo, onde o “se jogar” nos instantes de intensidade
das interações sexuais possíveis nas festas é “se perder” e fazer fugir
os aspectos extensivos como trabalho, família, casa, saúde e todos os
valores morais correspondentes a eles.7
Ao atentar para esses eventos intensivos me aproximo de
etnografias que trazem um deslocamento de questões para uma
busca de um entendimento mais próximo ao que as pessoas dão
às práticas que realizam. Pesquisadores como Vargas (2001),
Eugenio (2006), Ferreira (2006) e Rocha (2011) apontam como
em diferentes contextos como de uso de drogas, shows de música
eletrônica, a prática de esportes radicais e idas a boates, existem
eventos que envolvem agenciamentos paradoxais de autoabandono,
que visam “sair de si”, o êxtase e o descentramento. Tomam a “onda”,
a “vibe”, a “loucura” (assim como eu tomarei a “putaria” aqui), como
envolvendo modos singulares de engajamento no mundo. “Tais
descentramentos dizem respeito quer à “razão”, quer ao “corpo”
ou, melhor dizendo, a ambos simultaneamente”. Portanto, o que
parece estar em jogo nessas alterações de percepção é a fabricação
de outras maneiras de produção da subjetividade ou de subjetivação
dos corpos. “Outras maneiras de ser (a)gente” (Vargas, 2001, p. 22),
de criar singularidade.

A repetição na orgia
Venho mostrando nesse texto como a ida às orgias é, ela
própria, uma forma, uma maneira e uma busca de singularização,
de criar diferença, de saltar do fundo indistinto do cotidiano para
um acontecimento de pura intensidade, pela própria vontade de
potência dos participantes. Não caberia aqui uma moral onde as

7
Ao contrário do que possa ter dado a entender aqui, não quero dizer que os
homens que frequentam essas festas trabalhem em uma lógica disjuntiva (ou...ou...).
A maneira como eles parecem lidar com os diferentes “mundos” e “categorias” em
que vivem assemelha-se muito mais a uma lógica da conjunção (e...e...). Aproxima-se
daquilo que Eugenio (2006) chama de “hedonismo competente”, uma competência
em saber articular os compromissos da vida cotidiana com as práticas de “perdição”,
de “êxtase”, do que eles chamam aqui de “putaria”.
Desejo | 169

coisas são pensadas em termos de “certo”, “errado”, “bem”, “mal”,


“castigo”, “dever” ou “proibição”, todos baseados em valores que são
tomados como transcendentes à vida e à sua extensividade (e isso
nem se encontra presente no discurso nessas festas). Há aqui é o
que Deleuze chama de “ética da potência” (Machado, 2013, p. 72).
Essa vontade de potência que alimenta o retorno às festas chamou
a minha atenção devido a uma frase inscrita logo no início de seu
Diferença e Repetição: “A festa não tem outro paradoxo aparente:
repetir um ‘irrecomeçável’. Não acrescentar uma segunda e uma
terceira vez à primeira, mas elevar a primeira vez à uma ‘enésima’
potência” (Deleuze, 2009, p. 20).
É na elaboração que Deleuze faz sobre o conceito nietzschiano
de “eterno retorno” que podemos trazer elementos que contribuem
para pensar sobre as festas de orgia. Para Deleuze, “repetir é
comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não
tem semelhante ou equivalente” (Ibid.). Faz eco aqui ao pensamento
nietzschiano de que “o que você quiser, queira-o de tal modo que
também queira o seu eterno retorno”. O pensamento do eterno
retorno propõe uma seleção, porque elimina da vontade tudo o que
não se adequa a esse pensamento, eliminando os “semiquereres”, as
meias-vontades, estabelecendo uma vontade criadora. Eis o sentido
da vontade de potência como vontade afirmativa: seja o que for que
se queira, elevar o que se quer à última potência, à enésima potência,
que é a potência do eterno retorno (Machado, 2013, p. 97).
Porém, é claro que a busca, a vontade de alcançar essa
“enésima” potência, ao mesmo tempo em que pode se apresentar
como força criadora, maneira de singularização e (por que não?) de
extremo prazer, tem também um potencial destruidor, de risco, de
aniquilação. São como os momentos de “fissura” conceituados por
Díaz-Benitez em sua análise das filmagens de filmes pornográficos
de humilhação:

Fissuras seriam aqueles instantes de fronteira em que as emoções


extrapolam o sentido dado de antemão às práticas, são momentos
em que, em meio a um ato sexual, transpassa-se do consentimento
ao abuso (...) Ou seja, houve consentimento, mas a prática trouxe
uma intensidade que não é possível de prever ou de antecipar e que
rompe com o pacto empreendido com o outro e consigo mesmo,
ocasionando emoções que evocam mais perigo do que prazer. A
fissura é a evidência de que a prática extrapolou a expectativa da
170 | (Des)Prazer da norma

dor, é uma fenda onde o ato (ou representação do ato) se torna


violência, embora logo a fissura possa se refazer por meio da
sociabilidade ou a amizade que envolve a dinâmica de grupo nos
sets de filmagem (2014, p. 1).

A questão a todo tempo nas festas de orgia tem a ver justamente
com essa manipulação dos limites, o controle de si e a imersão nesses
êxtases, devires e estados de alta intensidade. Nesse sentido, as festas
de orgia seriam acontecimentos onde determinadas práticas sexuais
estariam na borda do que Gregori chama de “limites da sexualidade”,
que seria “a zona fronteiriça onde habitam norma e transgressão,
consentimento e abuso, prazer e dor” (2010, p. 3). A questão é,
embora possa ser destruidora, ou mesmo mortal dependendo das
circunstâncias, o importante é como essa experimentação possa ser
vivida. Deleuze já alertava para a necessidade de uma prudência,
de uma “embriaguez em que não se perde a sobriedade, a lucidez”
(Machado, 2013, p. 220): “Procuramos extrair da loucura a vida que
ela contém, mas odiando os loucos que não cessam de matar essa
vida, de voltá-la contra si própria” (Deleuze, 1998, p. 67).
Eu caracterizei acima esses eventos e experiências, esse sair
de si, como paradoxal também pelo fato de, em campo, ter observado
uma “sobriedade” dos “nativos” que eu não esperava encontrar em
um evento como uma orgia e que, da mesma forma, não costuma
ser descrita na literatura sobre rituais orgiásticos. O uso de drogas
não é explícito e poucas vezes presenciei o consumo exagerado de
bebidas alcoólicas durante as festas. Da mesma forma há todo um
discurso e um controle subentendido ao cuidado na proteção de
doenças sexualmente transmissíveis já que o uso da camisinha e do
gel lubrificante é sempre incentivado.8 Ao mostrar minha surpresa
para um dos meus interlocutores por não ter visto o consumo de
álcool e drogas como esperava, ele me respondeu: “As pessoas vão
lá para curtir a putaria, se elas se entorpecem não vão aproveitar.
Quando eu estou ali fodendo, eu não quero que nada atrapalhe a
minha percepção e sensação do que eu estou fazendo”.9

8
A questão do uso da camisinha e a exposição a situações de risco relacionadas,
como a prática do sexo bareback (sem camisinha), mereceria uma atenção maior
para qual me falta espaço aqui.
9
Sobre substâncias utilizadas, o que pude encontrar explicitamente é o uso de
Viagra ou Pramil e poppers (substância que tem efeito semelhante a lança-perfume
Desejo | 171

Portanto, como todo evento, esse também tem de ser feito, vale dizer,
minuciosamente fabricado e realizado (uma preparação do espaço,
da iluminação, da música, do corpo que se lava, se depila, se prepara
etc.), ainda que, como todo evento, seus resultados sejam imprevistos
e, de um modo ou de outro, escapem àquilo que os condicionam e
introduzem alguma surpresa, diferença ou alteração.

A putaria

Acredito que o diagrama das principais linhas de força que


compõem a forma como o corpo se apresenta e age nas festas de orgia
ficará mais claro quando desenvolver melhor a ideia de “putaria” que
aparece nas falas das pessoas. Aqui, apenas iniciarei essa discussão.
Com poucas idas a campo, percebi que o termo “putaria”
era constantemente acionado em diferentes situações. Compreendi
também o uso do termo “safadeza”, mas me parece que esse seria
um nível abaixo do que a putaria em uma escala de intensidade.
Ambos são termos valorativos, adjetivam alguém que “puxa os
limites” ou que tem uma performance que chama atenção: “seu
safado”, “aquele cara é safado”, “você é muito puto”. Ao mesmo
tempo são usados para valorar as práticas efetuadas e o próprio
ambiente, sempre como meta a ser buscada. As próprias festas de
orgia são chamadas por seus frequentadores como putaria, “você
não pode vir pra putaria querendo romance”, “aqui é putaria, quer
intimidade vai pra um motel”.
Características, por exemplo, que são buscadas e admiradas
nos atores que se apresentam no show de sexo ao vivo que ocorre
no final de uma das festas de orgia acompanhadas. Quando em uma
das festas nas quais estava presente, um dos atores foi tentar fazer
um “trenzinho”, ou seja, penetrar um ator que estava penetrando um
terceiro, a plateia correspondeu com gritos, assobios e aplausose foi
possível ouvir comentários: “esse cara é muito safado, esse gosta de

e loló) que funcionam mais como aditivos sexuais para melhorar a performance do
que para “dar onda”. É claro que existe o uso de outras drogas e álcool nas festas. Os
organizadores me disseram ser normal encontrar papelotes e saquinhos de cocaína
nos banheiros e também já tiveram que expulsar pessoas alcoolizadas que estavam
incomodando e atrapalhando as outras. O que quero dizer é que há como um acordo
implícito de controle dos corpos nesse sentido.
172 | (Des)Prazer da norma

uma putaria!”.
A putaria é o elemento organizador das práticas nesses
espaços. Pela fala dos “nativos” percebe-se que, ali na orgia, não basta
ser safado, tem que ser puto. Por isso um corpo bonito, um “cara de
elite”, uma “gracinha” ou “para casar” não se torna necessariamente
o centro das atenções. O que vale ali é a disposição para a putaria. Daí
que corpos que em outros ambientes talvez não tivessem atenção ou
talvez fossem considerados como abjetos (como deficientes, velhos,
gordos etc.), nessas festas podem tornar-se desejáveis, até mesmo
dando sentido ao próprio nome de uma das festas: “Vale Tudo”.
Interessante comparar com outro local onde fiz pesquisa de
campo, também localizado no Centro do Rio, no qual apresenta-se
uma proposta diferente: uma festa de orgia onde só podem entrar/
participar pessoas que correspondam a um perfil pré-determinado,
que seria: “homens magros, sarados, boa pinta, em boa forma física
e dotados”. Como se identificam como um “club privé” (não aberto
ao público) é necessário ser convidado por algum frequentador ou
mandar foto antes para avaliação ou ser avaliado na recepção da
festa (como aconteceu comigo em minha primeira ida).10 Aqui, já
se poderia observar uma tentativa de estratificação do desejo, pela
forma de exclusão através da hierarquia dos corpos, ou mesmo de
outros marcadores sociais de diferença. Voltarei a isso mais adiante.
A meu ver, a putaria, além de pautar e qualificar as práticas,
os participantes e o ambiente, é uma potência oriunda das vontades
e impulsos dos participantes das festas, como uma disposição.
Guardadas as especificidades de cada contexto, estou usando
disposição aqui no sentido que os presos estudados por Biondi dão
a esse termo:

Disposição e apetite são termos utilizados pelos prisioneiros para


indicar a intensidade e o alcance de suas vontades, em seus mais
variados formatos, expressões ou manifestações. Desta forma,

10
A mesma busca por “seleção”, por exemplo, encontrado em muitos perfis no
Grindr (aplicativo de celular de encontros masculinos que exibe uma grade de
imagens dos homens dispostos a partir do mais próximo ao mais distante). Os perfis
normalmente trazem fotos de partes do corpo que o usuário acha mais atraente,
dificilmente fotos de rostos são colocadas. Uma frase que pode ser lida em muitos
perfis é: “Tenha bom senso. Não me cuido para pegar bagulho”, ou então: “Não sou e
nem curto afeminados. Se for bichinha, nem chama”.
Desejo | 173

permitem a criação de contornos, torções, soluções improvisadas


que contam muitas vezes com o acaso para sua execução. Ademais,
ao adquirir velocidade, são capazes de oferecer resistência ao poder
que incide sobre os corpos, aquele que modula e limita (Biondi,
2010, p. 181).

Sendo uma disposição, a putaria não é da essência do
indivíduo. Podemos lembrar de Léo, em minha descrição no início do
trabalho, que logo alertou que “não era putão”, que se comportava de
forma diferente das pessoas ali. Mas que, ao presenciar a interação
no “aquário”, foi meio que tomado, atravessado por um fluxo, por um
“devir-putaria”, ou um “devir-puto”. O corpo e como ele age/reage
à putaria é, portanto, fundamental para a definição do status dos
agentes nesse contexto de sexo grupal/coletivo e, consequentemente,
como veículo privilegiado para as estratégias de distinção, sendo,
simultaneamente, por elas condicionado.11

Novo mergulho

Em uma outra festa da qual participei, pude presenciar uma


situação que ilustra o que eu estou descrevendo sobre a disposição e
o proceder do puto. Conheci Rafael em uma festa organizada em uma
sauna em Botafogo. Rafael tem um porte atlético, alto, loiro, usava
cordão de prata e uma sunga estampada de flores na festa. Alguém
o descreveu como tendo um “jeito malandro” e sua postura chamava
a atenção das pessoas ali presentes. Tentei chamar sua atenção para
que viesse falar comigo, o que consegui: “o que tenho que fazer para
beijar essa boquinha gostosa?”. Expliquei os motivos de estar ali, o que
não o impediu de tentar uma aproximação erótica, mas ao falar para
ele que era comprometido não insistiu em fazer sexo, mas não quis
me afastar. Comecei a puxar assunto com ele. Me disse ter 26 anos,
morar na Ilha do Governador e estudar psicologia em uma faculdade
particular. Sua atenção foi alta comigo e como aconteceu com o Léo
no relato anterior suas interações seguintes contaram com a minha
presença e participação. Naquele momento formamos um “casal” que

11
A ideia da “putaria” enquanto um conceito elaborado por meus interlocutores é
apresentada com mais detalhes em Barreto (2017b).
174 | (Des)Prazer da norma

chamava a atenção, muitos queriam se aproximar e interagir, mais


com o Rafael, claro. As pessoas se aproximavam tentando chupá-lo, me
empurravam discretamente e ele brigava: “não, não, estou com ele!
Chupa aí, mas ele fica aqui”.
Rafael quis ir para uma cabine, escolheu a que tinha uma luz
mais forte e queria deixar a porta aberta, gostava de ver e que todos
vissem o que aconteceria ali, toda vez que alguém tentava fechar a
porta, chamava a atenção da pessoa. Logo quando entramos nós dois,
entraram dois outros homens. Um deles, um rapaz negro de sunga
vermelha, tinha sua atenção voltada para Rafael, mas este quis que ele
ficasse com o outro, um moreno de cabelo raspado, que entrou junto,
o que não deixou o primeiro muito satisfeito. “Dá para ele primeiro!”,
incentivava Rafael. O moreno de cabelo raspado chegou a colocar a
camisinha, mas o negro de sunga vermelha continuava hesitando.
O moreno de cabelo raspado, já sentado na cama da cabine, com o
“pau encapado” (com a camisinha) deu uma mordida na bunda do
primeiro, o que gerou um estresse e logo uma discussão. O rapaz negro
de sunga vermelha que já não queria muito “dar” para o outro falou
que ele o tinha machucado com a mordida e com isso deu início a uma
discussão. O outro sentado falou: “Cara, quer saber? Chega, acabou”.
Tirou a camisinha e com gestos amplos a jogou para o lado, mandou
o primeiro “se foder” e saiu da cabine batendo a porta. Rafael ainda
falava tentando apaziguar. O rapaz negro de sunga vermelha saiu
também, mas logo voltou com outra camisinha na mão e um sorriso
no rosto. O estresse tinha passado e ele ia conseguir ter a interação
que desejava. Rafael ainda fazia um jogo deixando e não deixando que
ele colocasse a camisinha nele. Mas acabou conseguindo fazer com
que Rafael sentasse e ele subisse por cima. A ação não durou muito,
logo o rapaz negro gozou em grande quantidade. Satisfeito, quis
sair, mas Rafael não deixou: “Ué, mas já? Ah não! Você não fez tanta
questão? Agora tem que aguentar. Agacha aí”. Colocou-o de quatro na
cama e começou a penetrá-lo com força. O rapaz negro repetia que
“não” sem muita força, tentou por um momento afastar Rafael com as
mãos, mas do susto passou a rir e fazia cara de dor e de prazer. Com
a cena o burburinho na porta aumentou, as pessoas se acotovelavam
para conseguir assistir ao que acontecia. Rafael ainda fez alguns
movimentos e falou para ele ir embora, se despedindo com uma
sonora palmada na bunda do de sunga vermelha que saiu sorrindo.
Mal fechou a porta, entrou outro rapaz, que Rafael logo chamou de
Desejo | 175

“novinho”, já que ele tinha uma aparência adolescente. Rafael olhou


para mim e disse: “lá vamos nós outra vez”. Perguntou se o rapaz tinha
camisinha, respondeu que não, mas logo uma camisinha caiu entre nós
jogada por alguém lá de fora que ouviu a pergunta e queria que a cena
continuasse. O “novinho” pegou a camisinha, colocou em Rafael que
o posicionou de quatro também e começou as fortes investidas. Disse
que estava muito seco, cuspiu no ânus do rapaz, penetrou mais. Em
pouco tempo, ele tirou a camisinha e deitou na cama para descansar
sinalizando que a transa tinha terminado. “Mete mais”, pediu o rapaz.
“Não”, respondeu sorrindo. À saída desse, nova entrada na cabine.
Dessa vez foi um baixinho musculoso que chamava a atenção de outros
na festa por ter um pênis grande e grosso. Ao ver essa característica,
Rafael se empolgou de novo. Enquanto passava a mão na bunda do
baixinho disse que estava na dúvida se queria comê-lo ou dar para ele,
já que ele tinha tanto um pau quanto uma bunda boa. “Você é muito
puto”, falou o baixinho para Rafael. O baixinho ficou manipulando e
dedando a bunda do Rafael a pedido deste. Foi comandando e narrando
a ação o tempo todo. O baixinho não tinha camisinha também, Rafael
disse que ia lá embaixo buscar, mas acabou não voltando. Quando
desci o vi interagindo em um grupo de outras cinco pessoas e quando
me viu me chamou para se aproximar. Rafael durante toda a interação
aqui descrita foi o operador, o orquestrador, o catalisador da putaria
naquela noite da festa.

O que pode o corpo?

Como aponta Vargas (2001, p. 539),

Estar atento à “importância intrínseca” das técnicas corporais e às


“numerosas e variadas possibilidades do corpo” humano implica,
a meu ver, o desembaraço da alternativa entre abordagens que
tendem, num polo, a reduzir o corpo a um organismo individual,
sede de instintos, necessidades, funções ou pulsões que formariam
a base ou a pauta da vida social e, no outro polo, a reduzi-lo a uma
representação mental, quando não a um “suporte de símbolos” ou
a um “portador de significados sociais”, como se o corpo, sendo
também uma ideia, também fosse apenas uma ideia.

176 | (Des)Prazer da norma

Por isso o autor ressalta a importância de se incluir em


pesquisas que se debruçam sobre a corporalidade e, “para além das
questões em torno da produção social e dos imperativos biológicos,
a questão que, como notaram Deleuze e Guattari (1995, vol.4, pp. 39-
47), é espinosista (mas de certa forma também colocada por Mauss):
“o que pode um corpo?”. O que também significa perguntar sobre “o
que ele não pode” (Ibid.). Quais são seus limites? Qual o mundo que
cerca o corpo? Que conexões (ligações, encontros) se oferecem a ele?
A pergunta “o que pode o corpo?” não é minha, no sentido
de que não sou eu que a está trazendo de fora. Ela é colocada a todo
momento por esses homens em prática a cada ida nesses eventos,
cada interação é uma oportunidade para se testar: “quais os meus
limites? o que eu posso fazer? o que o outro pode fazer? até quanto eu
ou ele aguenta?”. Seja como uma questão quantitativa (de “quantos
cus eu comi”, pra “quantos caras eu dei”, ou “quantas vezes eu
gozei”), mas também qualitativa, de intensidade das interações, “até
onde eu aguento nesse encontro?”, “mais forte ou mais calmo, mais
rápido ou mais devagar?”, “está me machucando, mas permaneço
aqui ou não?”; “o que pode o meu (seu) corpo?”. Essas perguntas
são feitas até mesmo na perda da conta das interações realizadas
durante a festa.
Como bem aponta Lima (2015, pp. 113-114) vivemos
acreditando que existe um limite pré-determinado para nosso corpo:
“acredita-se que já sabemos o que pode um corpo. Existe sempre
um especialista para determinar o que pode um corpo”. Entretanto,
experiências intensivas (como drogas, música, bebidas, esportes
radicais, sexo etc.) apresentam experimentações que empurram,
contornam, atravessam, enfim, retraçam as linhas de nossos limites.
“Todas as faculdades podem ser levadas a seu limite, através da
potência de algum estado” (Perlongher, 2012).
Um cuidado, apontado anteriormente, é o do risco e perigo
implícito nessas experimentações, já que “o que rompe, se rompe
forte demais pode destruir tudo” (Perlongher, 2012). A questão é
que não se sabe de antemão até onde se pode ir, “como se vai até o
limite visto que ele não preexiste e precisa ser inventado, traçado?”
(Lima, 2015, p. 114) O que os participantes das festas praticam
pelo princípio da putaria é essa experimentação intensiva de seus
próprios limites.
Desejo | 177

E não existe desigualdade?

O fato de perceber a orgia como um espaço privilegiado de


singularidade e de usos outros do corpo, não quer dizer que não
perceba o quanto ele é atravessado pelos chamados marcadores
sociais de diferença (como classe, status, cor da pele, etc.) seja na
configuração de desigualdades, seja na própria composição de
prazeres. Pelo contrário, é possível perceber uma tensão constante
nesse sentido.
Existe uma discussão nas ciências sociais, principalmente no
âmbito da sexualidade, de como alguns “agenciamentos” de desejo
possuem o poder como uma dimensão estratificada. Para ficar
em apenas dois exemplos e contextos distintos, tanto a etnografia
de Perlongher sobre a prostituição masculina (1987), quanto a
análise de McClintock sobre a dominação de gênero e de classe no
imperialismo inglês (2010), mostram experiências nas quais prazer,
dor, poder e submissão, não só estão misturados como também são
fatores que “criam” esses desejos:

Seguindo tal perspectiva, é interessante analisar [essas


experiências], como alternativas que, no limite, problematizam
os modelos que supõem naturalidade, inatismo ou normalidade
entre as fronteiras que delimitam homens e mulheres e, mais
particularmente o comportamento sexual masculino (ativo) e o
feminino (passivo); assim como as fronteiras que separam o prazer
da dor, o comando e a submissão. Tratam-se de experiências que
ousam lidar com o risco social, ou melhor, com aqueles conteúdos
e inscrições, presentes nas relações entre a sexualidade e, as suas
assimetrias em termos de gênero, de idade, de classe e de raça
(Gregori, 2010, p. 195).

Da mesma forma, não nego a existência nesses ambientes


de uma hierarquia dos corpos e daqueles que são tidos como mais
desejáveis em detrimento de outros. Aliás, é possível observar nesses
eventos uma tensão constante entre esses marcadores de diferenças
e desigualdades e o princípio “disruptor” que a putaria proporciona.
Trarei dois resumos de acontecimentos presenciados em campo que
podem servir de exemplo a essas tensões.
O primeiro é relativo à como conheci um dos interlocutores
dessa pesquisa que chamarei aqui de Marcos. A primeira vez que
178 | (Des)Prazer da norma

Marcos foi em uma das festas Vale Tudo foi presenciada por mim.
Ele passou toda a primeira hora da festa do meu lado conversando
e se dizendo muito “injuriado” com a situação, porque as pessoas
que estavam ali não despertavam interesse nele. Reclamou
bastante e pelo fato de eu estar ali “fazendo pesquisa” se sentia à
vontade para “falar mal dos outros” só comigo. Marcos tem 35
anos, é branco, trabalha com Desenho Industrial, recém-divorciado,
morador da Zona Sul do Rio de Janeiro e foi ali, porque imaginava
que seria uma oportunidade de colocar o fetiche de “fazer uma
orgia” em prática aqui no Brasil, já que só tinha participado de
algumas no tempo em que morou na Europa, em Londres. Só que
o que ele chamava de “perfil baixa renda” das pessoas presentes o
“desanimou”. Apesar das reclamações e comentários irônicos sobre
os outros participantes, Marcos não foi embora. Não demorou muito,
diminuiu as reclamações e piadas e se deixava ser tocado e não se
afastava nem repelia as tentativas de aproximação dos outros. Pelo
restante da festa, a cada vez que o reencontrava, o via em alguma
interação sexual, com duas ou mais pessoas. Em uma específica (que
concentrava uma grande quantidade de gente) ele percebeu a minha
presença e me chamou com um sorriso. Estava nu, agachado em uma
cama das suítes, segurando a sunga na mão, enquanto três rapazes
se revezavam para penetrá-lo (dois deles inclusive já tinha sido alvo
das piadas de Marcos). Essa ação era o centro das atenções naquele
momento na suíte atraindo muitas pessoas que também buscavam
participar. Quando me aproximei, Marcos fez questão de me dar um
abraço, mesmo não saindo da posição para ser penetrado. Estava
bastante suado, com muitas marcas de mordida e arranhões pela
pele. “Tô aproveitando”, me falou. Conversando antes do final da
festa me disse que ainda achava a “putaria” na Europa muito melhor
(não sendo exato se melhor nas práticas ou no público), porém disse
ter “curtido bastante a tarde”. Marcos continuou a ir a várias edições
da festa, como pude acompanhar, apesar de eventualmente ainda
criticar alguns participantes.
Um segundo exemplo foi uma discussão presenciada por mim
na recepção de uma das festas. Quando cheguei havia um tumulto
na entrada, porque dois homens que chegaram juntos pediram para
conhecer o evento e após o passeio pela casa, desistiram da entrada
alegando que só tinha gente feia. Um dos organizadores discursava
irritado aos presentes, após a saída dos dois:
Desejo | 179

Quero deixar uma coisa bem clara aqui: suruba, orgia, não é lugar
para encontrar príncipe encantado, nem ver corpo, quem gosta
de corpo é IML. Suruba é para ver pirocas e bundas, foder, chupar,
dar e comer, sacou? Tem que vir disposto à putaria. Quem quiser
ver cara que vá para boate gay, tem várias por aí (vendo o sinal
de consentimento dos presentes continuou) gente, quem vai para
suruba para ver cara? Por isso que adoro homens feios. Eles quando
pegam...nossa! Fodem gostoso! ‘As bonitas’ só fodem com espelho,
se pudessem se comiam! (com as risadas dos presentes concluiu)
porque em uma orgia não tem que rolar isso. Tem sim, que ver
picas e rabos gostosos. A festa é pra foder e rolar uma amizade sem
cobranças sentimentais e sexuais. Entendem, né?

Se Marcos, aos poucos, vê os seus valores sobre as diferenças


borrados pela efervescência das interações, a fala do organizador
vem a esse encontro ao definir como devem ser as práticas em uma
orgia, diante da recusa de participação dos dois rapazes (que, em sua
visão, não tinham “disposição para a putaria”), por essas mesmas
diferenças. A tensão que eu aponto entre marcadores de diferença
e desigualdade, hierarquização de corpos e o princípio da putaria
é, portanto, presente nessas festas, alcançando uma proximidade
daquilo que Perlongher (1987) chama de “tensor libidinal”.12 Podendo
se apresentar, portanto, tanto como fonte de prazer, quanto também
como geradora de conflitos. Esses fatores de “desigualdade” surgem
e são mais marcados como conflitos, me parece, principalmente no
que diz respeito a um dos princípios mais importantes nessas festas
de orgia que é o da masculinidade, ao que eles entendem do que é
ser homem. Entretanto, o aprofundamento sobre esse princípio
implicaria outra discussão que não tenho espaço aqui.
O que quero dizer, por ora, é que essas festas possuem
um ritmo, um tempo que alterna momentos de maior ou menor
intensidade. Há tempos e espaços de efervescência, de descanso, de

12
Como explica Gregori: “Os tensores libidinais, expressão que empregou
[Perlongher], são resultantes da noção de que o desejo é feito daquilo que desafia,
que arrisca e que assinala a diferença. O que essa sugestão implica é que os
marcadores sociais de diferença – e entre eles o gênero, a idade, classe e status, cor/
raça – que operam como eixos na configuração das posições desiguais, em relações
de abuso, também atuam na configuração daquilo que proporciona prazer. As
hierarquias, as normas e proibições formam o repertório para o erotismo, a partir
de todo um esforço de transgressão” (Gregori, 2010, p. 5).
180 | (Des)Prazer da norma

torpor e de reativação dos prazeres. Estou chamando a atenção nesse


trabalho tanto para a busca quanto para os próprios momentos de
“picos de intensidade”. São esses momentos de efervescência que
têm não só a potência de criar “fissuras” (Diaz-Benitez, 2014), como
explicitado, mas também de borrar esses marcadores, colocando
todos em um plano no qual o que importa, o que diferencia, o
que singulariza esses atores é sua “disposição” na putaria, sua
desenvoltura durante os encontros, seja aumentando ou diminuindo
a potência das “ligações”, seja catalisando e/ou capturando o desejo
do outro, enfim, sua capacidade de dar ou receber prazer.

À fim de concluir

O que percebo estar em jogo nas festas de orgia, pensando-as


como um fenômeno coletivo e relacional, é mais do que apenas um
conjunto de pessoas que se encontram para fazer sexo umas com as
outras. O que está em jogo é a tentativa de inventar e compartilhar com
o outro, num movimento de deriva e captura, de desterritorialização
e reterritorialização, de “prender e dar fuga”, relações singulares
que fujam aos cânones (morais, familiares, institucionais, religiosos,
sociais etc.), ou que, melhor ainda, coloquem esses cânones em outros
termos, acionando ou fugindo de seus elementos estrategicamente a
partir de seus desejos. Compondo uma forma de “resistência criativa”.
Para usar uma imagem elaborada por Deleuze e Guattari: as práticas
desse campo seriam como rizomas que brotam nos cotovelos dos
galhos da “vida real”.
É de intensidades que, primeiramente, tratam-se esses
territórios. Ao contrário de “traduzir os estados vividos em
representações ou fantasmas, fazendo-os passar pelos códigos da
lei, do contrato ou da instituição”, prefiro (assim como me mostram
meus interlocutores em suas práticas), ligá-los ao intensivo, torná-
los fluxos capazes de nos levar mais além, na exterioridade:

O estado vivido não é subjetivo ou imposto. Não é do individual.


É o fluxo, e o corte do fluxo, uma vez que cada intensidade está
ligada com uma outra intensidade de tal maneira que algo passe.
É isto que está sob os códigos, o que lhes escapa e o que eles
querem traduzir, converter, fazer valer. Porém Nietzsche, com sua
Desejo | 181

escrita de intensidades, diz-nos: não troque a intensidade pelas


representações (Deleuze & Guattari, 1995, vol.5, pp. 51-52).
Entre pecados e mercados: gênero, religião e práticas
pedagógicas no consumo de artigos eróticos

Lorena Mochel1

Eu me coloco aqui como mercado erótico. A gente tem lojas,


fabricantes, nós temos aqui um representante uma fábrica, temos
consultoras... Então, tem todo um mercado que precisa atender
melhor. Qual é a forma? [...] A gente pode unir dentro disso. Não
é mudar a doutrina da igreja, é como adaptar o mercado dentro
da Palavra. (Cíntia, proprietária e vendedora da loja Sensualidade
Carioca).2

Este trecho proferido durante um evento ocorrido em


fevereiro de 2014 no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio
de Janeiro, fundamentou as questões centrais discutidas em um
encontro entre empresários(as) de diferentes denominações cristãs
que compartilhavam um objetivo comum: anunciar a importância dos
produtos eróticos para o fortalecimento do matrimônio evangélico.
Entre os principais emissores da mensagem, estavam um casal
heterossexual que se autodenominava católico, proprietários da
loja Sensualidade Carioca. Os participantes e ouvintes eram, em sua
maioria, empresários do mercado erótico e também fiéis e pastores
de igrejas pentecostais locais ou próximas ao Complexo.
O formato de palestra fornecia o tom da proposta para a qual
o público presente havia sido convidado: a edição carioca do Projeto
Gospel para sex shops. Fruto de uma parceria entre a loja e a ABEME
(Associação Brasileira de Empresas do Mercado Erótico e Sensual),
o projeto tinha como principais porta-vozes Cíntia, proprietária da
loja, e Carolina, representante da ABEME. De um lado, as empresárias
defendiam como a ampla gama de produtos associados à linha de
“cosméticos sensuais” disponível no mercado, tais como géis, cremes
de massagem, mousses, sprays etc., poderia “apimentar” a vida sexual
dos casais evangélicos para evitar divórcios. De outro, uma plateia

1
Lorena Mochel é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Para preservar a identidade das(os) interlocutoras(es) e estabelecimentos
comerciais em questão, os nomes divulgados são fictícios.
184 | (Des)Prazer da norma

atenta e participativa, compartilhava experiências vivenciadas a


partir do encontro entre religião, gênero e sexualidade e, de forma
simultânea, também apontava desafios originados pela presença do
mercado como principal mediador nesta relação.
Ao final do debate, as impressões resultantes da troca com
o público ajudaram a compor a posterior publicação de um guia de
negócios, lançado no mesmo ano com o título “Guia gospel para sex
shops e consultores de casais”. O livro foi escrito por um grupo de
empresárias(os) do mercado de produtos eróticos que se dispôs
a elaborar ações e estratégias mais adequadas para atender ao
público consumidor evangélico cada vez mais frequente. De forma
geral, os argumentos que se desenvolvem sobre as sugestões ao
uso da cosmética sensual se baseiam tanto no que Cíntia chamou
de “Palavra”, através de interpretações sobre passagens bíblicas
que enfatizavam o componente erótico do casamento, como
na preocupação em não se limitar à uma única denominação
cristã. Esta justificativa se dirigia sobretudo para aqueles que
não são evangélicos, grupo no qual ela e outros comerciantes
e consumidores do mercado erótico mais amplo se incluíam,
evidenciando a existência de disputas nas interações do comércio
erótico na rede englobada pela categoria “cristã”.
Apesar dos conflitos manifestados a partir da apropriação
entre os agentes interessados em atingir a um mesmo público
classificado como “evangélico” ou “gospel”, neste cenário havia,
no entanto, um consenso que possibilitava o trânsito cristão entre
as denominações católicas e evangélicas: o compartilhamento de
um “mercado voltado para a família”. Este conceito é descrito por
Karina Bellotti (2009, p. 640) como parte do que chama de “cultura
evangélica transdenominacional” que, no Brasil, seria abrangente a
três fatores: as estratégias de propaganda fundadas no crescimento
pentecostal, a inserção fundamentalista americana e a mídia infantil.
A autora analisa a abertura do mercado de bens cristãos no
Brasil entre as décadas de 1950 e 2000 e aponta que a circulação
de bens culturais evangélicos esteve diretamente relacionada ao
investimento pedagógico em valores familiares e na educação
infantil. É no papel exercido pela última através da mídia voltada
para crianças que irão se centrar seus principais argumentos,
situando a importância do personagem Smilinguido, que se tornou
ícone cristão na cultura de massas a partir dos anos 1980 e circulou
Desejo | 185

vinculado a mensagens evangelizadoras. A aspiração missionária


deste e outros símbolos do mercado religioso faz parte de uma
especificidade explorada por Bellotti quando chama a atenção que
“para seus consumidores e produtores, essa mídia carrega a missão
de evangelizar e converter” (Bellotti, 2009, p. 624).
Seguindo esses passos, inspirados em identificar a construção
das religiosidades nas diferentes instâncias de trocas que pertencem
ao domínio da cultura – a exemplo da autora, nas dimensões das
materialidades e da mídia –, busco percorrer um caminho semelhante
para refletir sobre as possibilidades e limites negociados através
da construção das identidades cristãs a partir do encontro com o
mercado erótico. Nesse sentido, privilegiarei o sex shop como lugar
de produção de significados e compartilhamento de dispositivos
pedagógicos sobre gêneros e sexualidades. A partir da reivindicação
cristã de Cíntia em sua trajetória empresarial, buscarei discutir como
suas estratégias de venda durante os atendimentos e as mudanças
estéticas introduzidas no espaço físico da loja ao longo do tempo
mimetizaram referências do âmbito mais geral do mercado erótico,
tanto para sobreviver e lidar com a competitividade econômica
como para lidar com ambiguidades próprias do contexto em que se
encontrava. Ao final, percorrerei alguns dos conflitos morais que se
apresentaram durante a reunião do Projeto Gospel, apontando as
estratégias adotadas pelos agentes do mercado de produtos eróticos
para se inserir como mediadores seculares na relação com o sagrado.

Partindo do Complexo: aberturas, percursos e sentidos

Quando chego ao Complexo do Alemão em maio de 2013, já


havia visitado diversos sex shops e boutiques eróticas na tentativa
de me inserir como pesquisadora. Diante de sucessivas frustrações
optei por fazer algumas entrevistas com proprietárias(os) e
vendedoras(es) de sex shops na cidade. A primeira e única delas
foi com Cíntia, então proprietária da loja Sensualidade Carioca,
no Complexo do Alemão. A proposta de frequentar o local como
pesquisadora foi feita logo em nossa primeira entrevista e, após
alguns meses em campo, algumas justificativas para o sucesso tão
rápido apareceram através de informantes com quem costumava
conversar sobre minhas dificuldades iniciais: “Comunidade é assim
186 | (Des)Prazer da norma

mesmo, não tem frescura!”. O que parecia remeter ao tradicional


sentido de cordialidade atribuído aos estereótipos associados
aos subúrbios e favelas nas grandes cidades se fazia, no entanto,
apressado para explicar mecanismos mais profundos sobre o que
significava receber alguém “de fora da comunidade”.
Os códigos acessados eram múltiplos e diversos, visto que
o espaço naquela favela estava ocupado não somente pelo Estado
militarizado diante de sua recente “pacificação”.3 Na parte baixa,
havia também a presença diária de cinegrafistas, repórteres e
“globais” que se protegiam com a escolta do maior contingente de
policiamento destinado a esta área. Na parte alta, grupos de turistas
cotidianamente realizavam o popular passeio guiado de teleférico,4
maior símbolo do poder estatal para denotar prosperidade social e
econômica da região. O Complexo do Alemão carregava um fenômeno
turístico comemorado pelo Governo do Rio de Janeiro por possuir
um quantitativo de visitantes superior ao registrado pelos vagões do
Pão de Açúcar.5
O fato de já ter estado antes em outras favelas cariocas me
fez perceber algumas das principais diferenças que distinguem o
“Alemão”, como costumava ser chamado por quem é “de fora”, ou
“Complexo”, por boa parte das(os) informantes com quem convivi.
Suas dimensões de cidade eram medidas não só na quantidade
de habitantes – em torno de 60 mil, divididos em mais de 18
mil domicílios6 –, mas também através da relativa autonomia de
suas divisões internas e em relação a outros bairros próximos. Os
locais pelos quais mais circulei durante o período de um ano de

3
A ocupação militar do Complexo do Alemão ocorreu em novembro de 2010 pelas
forças armadas do Estado do Rio de Janeiro e ficou caracterizada como uma das
mais violentas da história em favelas cariocas. Além da ostensiva presença policial
nos territórios ocupados, o controle estatal também possui como proposta atingir
objetivos baseados no programa “polícia de proximidade”, sugerindo a “promoção
de cidadania, desenvolvimento urbano, social e econômico, além da integração
plena dessas áreas ao conjunto da cidade” (Fonte: Programa Rio+Social. Disponível
em: http://www.riomaissocial.org/programa/ Acesso em 22 set. 2013).
4
Meio de transporte inaugurado no ano de 2011, pouco antes da instalação das
UPPs.
5
Fonte: http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20130121.
html. Acesso em 23 fev. 2014.
6
Dados do Censo, 2010.
Desejo | 187

pesquisa de campo eram, majoritariamente, parte das imediações


da Sensualidade Carioca. A loja tinha localização considerada
economicamente privilegiada por estar mais próxima ao asfalto,
fator que a distanciava simbolicamente de elementos que eram
observados em pontos mais distantes e mais altos da favela como, por
exemplo, a presença de crianças brincando nas ruas e moradoras(es)
conversando nas portas das casas.
A entrada das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) é
identificada por Cíntia como o principal motivo para a valorização
socioeconômica da área. Em 2009, acompanhando os rumores
sobre a ocupação policial que ocorreria em breve, ela e uma amiga
(sua sócia na época) resolveram investir na casa que seria a sede
da loja posteriormente. Contando com o apoio midiático investido
em matérias cada vez mais frequentes sobre as transformações
ocorridas após a entrada das UPPs, elas entram em contato com o
departamento jornalístico de um importante veículo midiático na
tentativa de divulgar sua história de “empreendedorismo feminino”
na favela. A matéria ocupou duas páginas inteiras da edição de
domingo do jornal e sua repercussão trouxe os holofotes necessários
para uma imagem que buscava afastar quaisquer sinais de confronto
e violência que lembravam velhos estereótipos sobre o Complexo.7
A Sensualidade Carioca estava localizada em um importante
ponto comercial de uma das principais favelas do Complexo do
Alemão. Ao lado da discreta porta vermelha e branca havia um
cavalete no chão encostado a um manequim de outra loja de roupas
e acessórios femininos que funcionava no térreo da mesma casa.
Nesta placa, a entrada para a loja de Cíntia era sinalizada por uma
seta: “Sensualidade Carioca: a sua Boutique Sensual”. A propaganda
destacava uma chamada para “consultoras”, revendedoras de
produtos eróticos que representavam grande parte do investimento

7
No período que precede o recorte analítico da pesquisa até a escrita deste artigo,
o Complexo do Alemão passou por diversas mudanças. Os confrontos policiais
aumentaram e a visibilidade midiática de prosperidade econômica que encontrei
entre 2013 e 2014 foi substituída por um cenário cada vez mais agudo de violência,
com altos índices de mortalidade entre moradores, culminando em denúncias sobre
as políticas de Estado que partiram, principalmente, de veículos midiáticos locais.
Entre as mortes que alcançaram maior visibilidade, está a do menino Eduardo de
Jesus Ferreira, em abril de 2015, que foi atingido por um tiro de fuzil disparado por
policiais enquanto brincava na porta de casa.
188 | (Des)Prazer da norma

comercial de Cíntia: “Seja uma consultora de produtos sensuais.


Trabalho descontraído, excelentes ganhos!”.
Caminhando por um corredor com duas portas entreabertas,
um banheiro e uma copa, avistava-se ao fundo uma pessoa
posicionada atrás de um balcão em vidro transparente que abrigava
lingeries coloridas e dobradas organizadamente. Quem recebia
as(os) clientes nesta posição era Roberta, a outra vendedora que
revezava a função com a própria Cíntia. À esquerda, outros conjuntos
de sutiãs, calcinhas, corseletes e camisolas. Todos os modelos
eram femininos, com exceção de uma única sunga que vestia um
manequim masculino em tamanho menor e mais afastado. À direita,
mais um balcão de vidro, em tamanho similar, apresentava os
cosméticos eróticos: lubrificantes, cremes aromatizados e géis com
a função de esquentar e/ou refrescar. Também havia velas, pétalas,
pequenos massageadores para as costas, calcinhas comestíveis e as
chamadas “brincadeiras” eróticas (baralhos, dados e raspadinhas
que ilustravam posições sexuais). Na parede à esquerda e bem
próximos a este balcão, alguns produtos ficavam pendurados em
ganchos de metal, presos a uma estrutura de madeira branca, fixada
à parede. Eram preservativos masculinos, bolinhas explosivas,8
corações de pelúcia e bichos do mesmo material como ursinhos e o
coelho exibido no filme De pernas pro ar.9
Logo ao fundo estavam os objetos eróticos. Todos
permaneciam embalados em caixas ou plásticos transparentes
e pendurados em ganchos presos à parede. Eram dildos e
estimuladores em diversos formatos e tamanhos, plugs anais,10 bolas
de pompoarismo, cintas, algemas, acessórios em couro que sugerem
práticas sadomasoquistas, bombas de extensão peniana, vibradores

8
Cápsulas em formato redondo ou oval que contêm óleos de consistência
gelatinosa, na maioria perfumados e indicados para inserção na vagina ou ânus
antes da penetração. Inicialmente concebido para uso sobre a pele após o banho,
elas acabaram sendo incorporadas pelo mercado erótico com a sugestão de
proporcionar um efeito lubrificante na região genital.
9
Filme nacional exibido em duas edições (2010 e 2012), protagonizado por Ingrid
Guimarães. Para uma análise mais aprofundada das representações da mulher
“moderna” como alvo das estratégias do mercado erótico contemporâneo, ver: Reis,
Lorena Mochel (2014).
10
Estimuladores em formato cônico com base mais larga. Podem ser encontrados
em silicone ou látex.
Desejo | 189

clitorianos em diversos formatos, chaveiros e miniaturas de velas


que imitavam partes do corpo humano como pênis, seios e bundas.
Ainda ao fundo, fantasias femininas em diversos modelos. A maior
parte era destinada às fantasias de colegial, bombeira, tigresa e
empregada doméstica, todas em tamanho único, expostas em outros
quatro manequins femininos igualmente distribuídos no interior
da loja. Também havia fantasias em tamanho maior que ficavam
embaladas, mas penduradas em um local bastante visível. Nas fotos
que representavam estes produtos eram vistas modelos femininas
vestidas em tamanhos plus size.11
É a partir deste cenário da cultura material que se desdobra
boa parte da descrição etnográfica que apresentarei a seguir. Nos
meses finais da minha presença no trabalho de campo, uma grande
reforma subiu a loja para o andar de cima e fez surgir um ambiente
mais iluminado, considerado mais clean e mais distante da rua,
aproximando-se cada vez mais do padrão seguido por lojas de maior
poder aquisitivo do mercado erótico. O conceito de higiene, saúde e
bem-estar feminino que busca se distanciar da erotização imbricada
nas representações à sujeira também migrou progressivamente do
modelo de varejo para o atacado, e cada vez menos clientes eram
vistas(os) frequentando a loja.
Mesmo com tantos fatores favoráveis a um novo negócio,
Cíntia e Alexandre, seu marido e sócio na Sensualidade Carioca,
costumavam relatar que haviam arriscado demais para um primeiro
negócio. Como muitas microempresas brasileiras, esta poderia ser
mais uma a fracassar logo no ano da inauguração, mas a apurada
leitura do contexto feita pelo casal aparentemente conseguiu
neutralizar os efeitos catastróficos que a presença de uma loja de
produtos eróticos poderia produzir, especialmente em ambiente
onde “a questão da falta de privacidade se apresenta de forma aguda:
61% das casas têm parede compartilhada e/ou laje com outra(s)”
(Castilho, 2012, p. 6). Os problemas enfrentados por um comércio de
base individualista e íntimo em um ambiente em que o privado tem
menos lugar são lembrados por Cíntia no seguinte trecho:

Uma dificuldade que a gente esbarrou aqui que eu até esqueci de

11
Este termo é utilizado pelo mercado de vestuário feminino para se referir a
modelos que vestem tamanhos a partir do 46, mas não há consenso sobre quais
seriam os números limites que agrupariam este nicho de consumidoras.
190 | (Des)Prazer da norma

falar é que o povo daqui é preconceituoso! Moradores, vizinhos...


“Ah, aqui tem sex shop!” Então nós esbarramos muito nessa situação
assim “ah, eu não posso entrar ali porque as pessoas vão me ver
entrando na sex shop! Então, o que que vão falar de mim?” É aquela
coisa de que as pessoas se preocupam muito com o que vão achar
que elas estão fazendo ou não. Como se ninguém fizesse! Assim que
nós abrimos aqui, tem uma história engraçada, tem esse açougue
ali na frente, tem um cara pequenininho no açougue, mas ele tem
uma voz alta pra caramba e ele fica gritando ali na fila, quando tem
fila que eu falei pra você, ele fala “Próximo! Próximo!”, gritando
altão, sabe? Assim que nós abrimos, quando alguém saía daqui
que era conhecido, ele gritava lá do açougue “Aê fulano!” Aí aquilo,
assim, todo mundo olhava, porque todo mundo se conhece muito.
Uma pessoa tá entrando aqui, tipo assim, pra quem tá entrando,
as pessoas que vigiam a vida dos outros, isso acontece muito...
(Entrevista concedida em maio de 2013).

Para alcançar a aceitação no jogo entre o público e o privado,


Cíntia buscou estratégias que aproximassem a imagem da loja a
seu local de origem. Nascida e criada no Complexo do Alemão,
aproveitava sua popularidade nas caminhadas pela comunidade
para convidar os vizinhos e comerciantes a conhecerem sua “lojinha
de lingerie lá em cima”, evitando utilizar o termo sex shop. Quando
questionada sobre o que vendia, ela se referia às calcinhas, sutiãs
e “produtinhos para apimentar a relação”. A combinação destes
valores típicos e próximos ao que Maria Filomena Gregori (2010)
chamou de “sex shop de bairro”12 reunia produtos que podiam ser
comprados também em camelôs da região. Isto era, inclusive, um
fator aproveitado por Cíntia para distanciar a Sensualidade Carioca
do aspecto frio de uma loja com estilo similar às franquias.
Nesse sentido, receber casais na loja também era um
fator utilizado para posicionar este público como livre dos
constrangimentos morais que o consumo de produtos eróticos

12
A autora sistematiza os modelos de lojas que encontrou em sua pesquisa no eixo
Rio e São Paulo entre: lojas do “centrão”, organizadas para um público popular e por
empreendedores, em sua maioria homens, de estratos mais baixos de classe média;
sex shops de bairro, voltados ao público familiar e feminino, majoritariamente
organizados por mulheres; e, finalmente, boutiques eróticas, localizadas em
shoppings e áreas mais valorizadas da cidade, voltadas ao público feminino com
maior poder aquisitivo (Gregori, 2010).
Desejo | 191

em uma comunidade lhes acarretaria. Assim, Cíntia e Roberta


costumavam atendê-los através de diferenciações em que o gênero e
a relação de intimidade com as(os) mesmas(os) era preponderante.
Dentre as(os) freguesas(os) fidelizadas(os), a maior parte eram
amigas(os) próximos de Cíntia e Alexandre, indicando que as
relações de confiança ali construídas, sobretudo sob mediação do
feminino, representam o capital necessário ao estabelecimento de
vínculos que se associem à sexualidade naquele contexto.
A combinação destes valores típicos de um comércio
de bairro como o tom familiar, simpático e íntimo, com as
sociabilidades femininas do mercado erótico tinha na presença
de Cíntia um peso fundamental para as relações estabelecidas por
muitas consumidoras com a loja. Muitas só compravam quando ela
estava presente e o movimento na loja era bastante superior no
seu turno de trabalho. Também era visível que a eventual presença
de Alexandre no balcão ou circulando pelo local despertava
acanhamento em muitas clientes, que perguntavam sempre em
tom de voz baixo pelos produtos e após a maioria dos atendimentos
acabavam nada comprando. De forma geral e em cada detalhe, a
Sensualidade Carioca era a personificação de Cíntia. Seus valores,
narrativas e história de vida refletiam efeitos relevantes para
compreender a construção das estratégias de mercado e exerceram
fundamental importância na análise sobre a articulação da religião
com outras interseccionalidades de sua trajetória.

Uma trajetória cristã

Aos 39 anos, Cíntia estava casada há uma década com


Alexandre. Este também era o tempo que fazia desde que ela
escolheu se mudar da favela para um bairro vizinho com o atual
companheiro, com quem também divide há dois anos o posto de
proprietária na Sensualidade Carioca. Antes de conhecê-lo, ela
esteve em outro casamento que durou poucos meses. A maior
parte de sua rede de relações pessoais, incluindo o ex-marido,
pertencia ao grupo de uma igreja de renovação católica carismática
que frequentou durante boa parte da vida e também do trabalho
com locução e organização de eventos em uma emissora de rádio
vinculada à arquidiocese da cidade.
192 | (Des)Prazer da norma

À época da pesquisa, Cíntia estava afastada da igreja, bem


como do grupo de relações que estabeleceu no local. A abertura da
Sensualidade Carioca também facilitou este distanciamento, pois
muitas destas pessoas decidiram parar de falar com Cíntia assim que
souberam de seu comando em um empreendimento voltado para a
sexualidade. Antes de abrir sua “boutique sensual”, ela mantinha
segredo sobre as revendas que fazia de produtos eróticos como
sacoleira para ganhar uma renda extra. A possibilidade de abrir um
negócio no ramo foi adiada não só por temer retaliações no âmbito
pessoal, mas também por uma possível demissão do emprego na
rádio. Após seis anos de trabalho, resolveu abandonar este caminho
para iniciar um investimento no que seria a primeira loja de produtos
eróticos no Complexo do Alemão.
As ambições de Cíntia contavam com uma dimensão
pedagógica que ultrapassava os possíveis lucros financeiros e
tencionava conflitos entre a identidade cristã e o desejo de ampliar
o escopo de possibilidades sexuais aos já deslocados limites de
transgressão para a sexualidade feminina contemporânea.13 O
projeto pessoal e evangelizador que visava diminuir o preconceito
do público cristão com o sex shop sempre esteve presente em
sua narrativa, indicando a busca constante por alternativas que
associassem a imagem da loja à sua trajetória:

O público daqui é 90% mulher, né, a maioria mesmo. Mas eu gosto


que tem muito casal, uma coisa que me surpreende é que vem muito
casal, inclusive evangélico! Os evangélicos, que é um mercado que
eu tenho muita vontade de trabalhar, não só com evangélico, mas
com cristão de forma geral [...] Então, apesar de todo o preconceito,
eu quero muito fazer um projeto que tire o preconceito do cristão
com o sex shop, entendeu? [...] Independente de ser cristão,
independente de religião, todas as pessoas praticam sexo! E é
uma área da vida, que é o casamento, que se não tiver muito bem,
influencia em tudo na sua vida, né? (Entrevista concedida em maio
de 2013).

Não por acaso, boa parte das clientes e consultoras da


Sensualidade Carioca eram evangélicas. Havia aquelas que faziam
deste fato uma constatação verbalizada durante os atendimentos,

13
Ver Gregori, 2010.
Desejo | 193

o que levava as vendedoras a acionarem um repertório nativo no


reconhecimento de que as corporalidades ali presentes faziam
parte de um grupo que demandava atenção redobrada com o
vocabulário e na escolha dos produtos a serem apresentados.
Porém, na grande maioria das vezes, ser evangélica não era um
dado suficientemente relevante, passando desapercebido entre
minha interação com as funcionárias.14
Para cumprir o que considerava como missão evangelizadora,
Cíntia desenvolveu uma série de práticas pedagógicas que inseriam a
loja dentro do conjunto de valores baseados na fé e na ascensão social
por meio de uma narrativa que privilegiava os ganhos alcançados
pelo “empreendedorismo feminino”, categoria frequentemente
acionada em seu repertório. Os cursos e reuniões dedicados a
estabelecer contatos entre mulheres “empresárias” abrangiam parte
das sociabilidades privilegiadas por Cíntia, tanto no Complexo do
Alemão, como fora dele. A noção de empreendedorismo feminino
encontra no diálogo entre gênero e religião um terreno fértil para
compreender como os agentes religiosos acionam estas categorias
através do circuito das “pedagogias da prosperidade”, definido por
Jacqueline Moraes Teixeira (2012) como parte de um conjunto de
dispositivos disciplinares voltados para a participação da mulher no
seio familiar.
A análise da autora se centraliza entre as diversas práticas
rituais veiculadas na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), o
que, para nossos propósitos analíticos, encontra rentabilidades na
investigação da trajetória de Cíntia enquanto empresária cristã.
Teixeira (2012) afirma que as produções rituais que circundam a
ideia de uma vida próspera ultrapassam a dimensão do dinheiro
e possuem na conjugalidade e no cuidado de si (Foucault, 2007)
razões pedagógicas da IURD. Para sustentar o planejamento familiar
como um de seus principais pilares, o investimento se volta para

14
A dimensão sobre a frequência de consumidoras evangélicas à loja também
pôde contar com o auxílio de um questionário individual, fechado e anônimo,
aplicado entre as consumidoras da loja durante o período de outubro e novembro
de 2013. Seguindo a sugestão de Cíntia, formulamos a pergunta sobre religião com
as seguintes opções: “católica”, “evangélica”, “sem religião” e “outras”, esta última
com espaço adicional para possíveis definições. As fichas foram preenchidas após
cada atendimento e depositadas em uma urna, contabilizando que metade das
consumidoras se declarou evangélica.
194 | (Des)Prazer da norma

um enfoque no público feminino e no modelo de família centrado


no casamento. Do gerenciamento de seus corpos ao cuidado da
família, as fiéis contam com o auxílio de serviços que incluem cursos
para casais e encontros de mulheres como parte da política de
aprendizado para desenvolver a intimidade necessária com Deus.
Por outro lado, não era menos importante que o diálogo com
o público evangélico fosse feito a partir de uma empresária católica.
O pertencimento à renovação carismática que aproximava Cíntia
aos circuitos pentecostais ocorria de forma mais ampla no âmbito
do mercado e da política, conforme apontado por Maria das Dores
Campos Machado (2015). A autora chama atenção para as “múltiplas
modernidades e formas de secularização” (p. 47) de uma atuação
político-religiosa marcada pela busca da preservação do “caráter
cristão da moralidade pública brasileira” (p. 48). A correlação entre
estas forças – política, religiosa e econômica – ajuda a compreender
as possíveis justificativas para a frequência de evangélicas na loja e
as categorias de mediação utilizadas para posicionar este mercado
erótico como “gospel”.
Aposto na rentável articulação entre gênero, sexualidade e
religião neste mercado que se constrói na chave das sociabilidades
femininas, para enfraquecer possíveis argumentos em torno de
justificativas sobre a inevitabilidade da alta frequência de evangélicas
perante a igualmente grande quantidade de igrejas de denominação
evangélica no Complexo do Alemão. O alto número de academias de
ginástica que circundavam a região na qual a Sensualidade Carioca
estava localizada trazia muitas clientes e otimizava parcerias
frequentes entre a loja e estes estabelecimentos, construindo
espaços de diversão e convivência como eventos, cursos, chás de
lingerie, consultorias domiciliares e palestras para mulheres. Havia
uma peculiaridade que também se constituiu como dado importante
nesse contexto: as academias eram, em sua maioria, voltadas
exclusivamente ao público feminino.
Esta dinâmica de exclusividade feminina, já compartilhada
entre o mercado de produtos eróticos brasileiro mais amplo, foi
denominada por Gregori (2010) como parte integrante de um
“erotismo politicamente correto”. O enfoque, que anteriormente
atingia o consumo masculino, passa a se feminizar através
desta proposta, e as consequências deste deslocamento levam a
pornografia a perder sua conotação de obscenidade para adquirir
Desejo | 195

significados que a associam a saúde, bem-estar e qualidade de vida.


A autora também identifica ter sido exatamente este deslocamento
proporcionado pelas boutiques eróticas que possibilitou a expansão
de fronteiras para a inserção de mulheres neste mercado, quebrando
tabus e preconceitos em torno da sexualidade feminina.
A análise feita por Jane Russo (2013) identifica um dos
componentes mais importantes nos quais o mercado erótico se
sustenta, isto é, a partir de uma sexologia medicalizada, psicologizada
e centrada na fisiologia corporal, mas sobretudo no conceito de
“saúde sexual” difundido pelo casal William Masters e Virginia
Johnson.15 A partir destas classificações, o cerne da concentração
passa a ser as sexualidades “normais” ou mainstream, sustentado
pela ênfase no orgasmo feminino que ambos acreditavam ser
superior ao masculino.
Para compreender como se construía esta relação entre a
trajetória de Cíntia e o modelo das boutiques eróticas, é necessário
retornar o olhar para o interior da loja, espaço no qual as práticas
pedagógicas desenhavam as interações cotidianas. Os aprendizados
se estendiam desde a sequência de apresentação dos objetos às(aos)
clientes, nos controles mais rígidos com relação à vestimentas e
linguagem, até o domínio de técnicas para lidar com diferenças de
gênero e possíveis tensões sexuais que emergiam desta relação.
A sequência de produtos apresentados às clientes iniciava com
os cosméticos considerados “mais leves” até chegar aos “mais
pesados”. A ordem buscava contemplar as fases da simulação de
uma relação sexual: para o beijo, produtos “beijáveis” (gloss labial,
spray bucal, lâminas para refrescar o hálito); para as preliminares,
os “comestíveis” (tapa sexo de gelatina, calcinha comestível, géis
aromatizados para o sexo oral); para a penetração, os “funcionais”
(óleos que esquentam e/ou esfriam, adstringentes, excitantes,
retardantes e aumentadores de ereção, anestésicos anais, bolinhas
explosivas etc.). A ordem era a mesma para todas as clientes, inclusive
entre as evangélicas, para as quais os produtos ligados à cosmética
sensual eram os mais vendidos. Os acessórios em tamanho menor
que recebiam e a recomendação para serem utilizados entre o casal

15
Herdeiros dos estudos divulgados pelo Relatório Kinsey, suas pesquisas realizadas
nos anos 1960 migram os interesses científicos do prazer de sexualidades
periféricas – preponderantes na primeira sexologia do início do século XX e também
nos estudos de Alfred Kinsey – para o prazer do casal heterossexual.
196 | (Des)Prazer da norma

também interessavam as clientes deste perfil majoritário da loja, a


exemplo dos anéis penianos disponíveis nas cores rosa e lilás que
atendiam a temáticas do mundo animal, tais como leão, gato e urso e
eram sempre tratados no diminutivo.16
Para lidar com a diferença de gênero, Cíntia empregava um
saber feminizado como parte integrante de suas abordagens, o que
gerava proximidade com as mulheres e distanciamento com relação
aos homens. As consumidoras eram sempre chamadas pelo nome
e recebiam sugestões em primeira pessoa sobre como utilizar os
produtos com o parceiro, já que ela também era casada e se colocava
como usuária das mercadorias que vendia. A abordagem com o
público masculino que chegava sem suas acompanhantes à loja era
diferente. No lugar de sugestões como “eu gosto de usar com o meu
marido”, eram utilizadas generalizações como “todo mundo gosta”
ou “o pessoal costuma elogiar”. A demarcação que sublinhava as
gramáticas de gênero naquele espaço indicava que boa parte dos
homens ficaria intimidada com uma abordagem muito direta do
assunto por uma mulher, e assim a loja perderia clientes.
As novas vendedoras eram ensinadas, desde seu ritual de
treinamento, sobre o uso de roupas e vocabulário mais apropriado.
A roupa não deveria ser curta e nem ter decotes ousados, o linguajar
adaptado para “impor respeito ao cliente” e não era permitido o
uso de palavrões. Era na comercialização de produtos para o sexo
anal que se revelavam diversos aspectos sobre a articulação da
dimensão da linguagem com a divisão entre os gêneros. A demanda
pelos produtos lubrificantes e anestésicos anais era tão frequente
na loja que Cíntia já havia participado de treinamentos dedicados
exclusivamente ao tema, promovidos por fabricantes do mercado
erótico. Esta qualificação modificou a forma como ela se referia ao
ânus durante os atendimentos, quando preferia utilizar o termo
“esfíncter” para sugerir um diálogo com o discurso médico e conotar
seriedade ao serviço:

Se chegarem aqui perguntando ‘Você tem alguma coisa pra dar


o cu?’, eu falo: ‘Não, eu tenho pra sexo anal. Tem anestésico, tem
lubrificante, pra dar mais conforto pro sexo anal’. Aí a pessoa já

16
Feitos em material de borracha, são reguláveis para ser acoplados ao pênis e
acompanhavam minúsculos estimuladores vibratórios para o clitóris, recomendados
para a penetração pênis-vagina.
Desejo | 197

bloqueia, ou não volta mais ou vai falar daquela maneira que você
tá conversando, sabe? (Treinamento de uma vendedora. Diário de
campo, julho de 2013).

Durante diversos atendimentos em que apareciam os


cosméticos voltados para o sexo anal, pude observar desabafos e
confissões femininas como: “faço só porque ele gosta” ou “tive que
me acostumar”. Cíntia e Roberta positivavam estes argumentos pela
via da salvação do casamento. Nas palavras de uma consultora, o
sexo anal representava o “troféu máster”, a moeda de troca mais
importante para manter uma relação heterossexual e monogâmica
estável. O gel anestésico, um cosmético para uso anal que visa
diminuir a sensibilidade nesta região do corpo, era o produto
mais procurado e também mais vendido às clientes na loja. Nesta
articulação entre prazer e dever associados ao masculino e feminino
respectivamente, no que diz respeito ao sexo anal havia outra
dinâmica operando, desta vez interna do gênero feminino: o fator
competição entre as que “não fazem”, em possível desvantagem com
relação às que “fazem”.17
Com efeito, Cíntia compartilhava muitas das pedagogias de
gênero e sexualidade presentes em manuais e guias de negócios
destinados aos empresários do mercado de produtos eróticos,
mas a potência criativa nas dinâmicas possibilitadas pelo encontro
entre mercado, religião e erotismo proporcionava diferentes
agenciamentos como os que se encontram aqui descritos. A parceria
estabelecida com a ABEME para a realização do Projeto Gospel para
sex shops revelava-se, assim, como uma consequência de um trabalho
já consolidado nas práticas cotidianas de sua trajetória enquanto
empresária cristã. A reunião, que contou com sua coordenação junto
a Carolina Belo apresentou, no entanto, um olhar externo à realidade
da loja, de suas clientes e das consultoras evangélicas, marcado por
tensões entre a identidade cristã e o mercado de produtos eróticos.

17
A temática do sexo anal também esteve presente nas narrativas de vendedoras
de lojas de produtos eróticos entrevistadas em Curitiba para a pesquisa de Anelise
Alcântara (2013), indicando que este possa fazer parte do repertório de códigos
compartilhados pelo mercado erótico mais amplo. A autora indica que discursos
semelhantes aos significados sobre a barganha, recompensa e merecimento dos
companheiros se destacam para reafirmar a apropriação desta prática no repertório
de consumo feminino.
198 | (Des)Prazer da norma

A sexualidade entre projetos cristãos

A ideia é mantê-los unidos para sempre. O que pode ser mais


fundamental que isto numa relação matrimonial? E porque
não compreender e respeitar seus fundamentos doutrinários
apresentando apenas produtos adequados ao seu estilo de vida?
(Guia Gospel para Sex Shops e Consultores de Casais, 2014).

O Projeto Gospel para sex shops resultou de uma articulação


entre empresários do mercado erótico, cujo principal objetivo
foi buscar parcerias com lideranças de igrejas evangélicas para
apresentá-los a um modelo de consumo baseado em como os
produtos eróticos podem auxiliar na diminuição de divórcios e
manter a união matrimonial e familiar. Sob autoria de Carolina
Belo, o projeto contou com duas reuniões: uma na capital paulista
e outra no Complexo do Alemão, esta com a coordenação de Cíntia.
Segundo a Associação, as reuniões serviram como parte da pesquisa
exploratória para a formulação de um guia de negócios que orienta a
comercialização e o consumo de produtos eróticos por evangélicos,
o “Guia Gospel para Sex Shops e Consultores de Casais”.
Apesar do contato já consolidado com Carolina Belo,
o convite para fazer parte do Projeto Gospel surgiu após um
workshop promovido no Rio de Janeiro alguns meses antes, que
também pude acompanhar presencialmente. Na ocasião, um dos
assuntos mais discutidos fora o crescimento de consumidoras que
se denominavam evangélicas, e a palestra de Carolina destacava
algumas sugestões para um atendimento focado neste público:
mudança no termo “vendedora” ou “consultora” de produtos
eróticos para “conselheira matrimonial” ou “consultora de casais”;
alteração também para a nomenclatura, que já vinha migrando de
“sex shop” para “boutique erótica, sensual” etc., para se chamar
“casa de ajuda marital”; e ainda, a importância de que os donos do
estabelecimento sejam preferencialmente casais casados, formados
sempre por um homem e uma mulher, presentes na comunidade
religiosa do local em que atuam.
A reunião do Projeto Gospel ocorreu em uma sala com
capacidade para cerca de 30 pessoas em um prédio localizado em um
importante ponto de circulação do Complexo do Alemão. Além dos
representantes da ABEME, da Sensualidade Carioca e consultoras
Desejo | 199

da loja,18 o grupo que se declarou religioso mostrou-se vinculado a


programas de evangelização para casais, os chamados “encontros
de casais”.19 De forma geral, a dinâmica se deu em duas etapas: na
primeira, Carolina e Cíntia se apresentaram como lideranças do
projeto, destacando suas trajetórias pessoais como mulheres cristãs
e constituintes de composições tradicionais da família nuclear, com
Carolina indicando, em seguida, seu conhecimento prévio acerca do
público com o qual desejavam trabalhar:

Evangélico não consome produtos fálicos, não consome produtos


para sexo anal e nem nada que tenha algum tipo de conotação
homossexual. As estatísticas hoje são bem claras. Se as pessoas
acham que a gente vende produto para homossexual, o percentual
é muito pequeno!

Diante da proposta de organizar um movimento de mercado


que buscasse a permissão de lideranças locais para levar os sex shops
até suas igrejas, Carolina orienta às lideranças evangélicas sobre
como seria o trabalho de inserção nestes locais: “Por que não ter um
conselheiro, um consultor matrimonial que tenha um conhecimento
da sexualidade humana, de produto e de repente orientar antes
da separação (do casal)? A gente tem que mudar a imagem que a
sociedade tem do sexo”.
Na segunda parte da reunião, o espaço foi aberto para
que o público falasse sobre suas percepções a respeito do projeto

18
Também conhecidas como revendedoras de produtos eróticos, este é o mesmo
filão explorado pela venda por catálogos, a exemplo de empresas nacionais como
Avon e Natura. 38 consultoras atuavam na Sensualidade Carioca e recebiam 25%
de comissão do total de produtos que revendiam. Grande parte era heterossexual,
casada e residia no próprio Complexo do Alemão.
19
O modelo original é do ECC, sigla para o Encontro de Casais com Cristo, um
dos serviços mais antigos da Igreja Católica e que funciona em mais de 200
arquidioceses brasileiras desde a década de 1970, segundo dados do Conselho
Nacional dos Encontros de Casais com Cristo. Uma das referências mais citadas
pelos fiéis evangélicos foi o curso “Casados para sempre”. Tal serviço é oferecido
em 18 estados brasileiros por uma Associação que apoia igrejas nos trabalhos de
edificação familiar e também oferece cursos para pais e mães, sexo na gravidez e
ensinamentos sobre as performances de gênero (masculinidades e feminilidades),
todos com o objetivo de proporcionar a fidelidade matrimonial entre os casais
evangélicos.
200 | (Des)Prazer da norma

e trouxesse ideias para incorporação dos produtos nas igrejas.


A estratégia utilizada pelo mercado erótico que diz respeito à
associação com a sexologia medicalizada, psicologizada e focada na
fisiologia corporal (Russo, 2013), fazia parte do discurso coincidente
entre empresárias(os), consumidoras(es) e líderes religiosos
presentes. A associação com este discurso entre os presentes
traduzia-se, sobretudo, na ênfase em apresentar dados quantitativos
de pesquisas que comprovassem que os produtos tinham efeitos na
fisiologia corporal. “É importante chegar com dados. ‘Você sabe qual
é o percentual de desconforto que tem no relacionamento por causa
do sexo?’ Isso é causa de separação!”, enfatizou um dos participantes.
Outro, que se apresentou como pastor de uma igreja evangélica local,
destacou a parceria com a medicina para falar sobre sexualidade em
um evento organizado pela igreja da qual faz parte: “Eu usei uma
tática mais científica. Convidei uma ginecologista. Vamos falar sobre
saúde da mulher que vai entrar menopausa, lubrificação e ela (a
ginecologista), por ser evangélica, vai entrar na criação que a pessoa
teve até aquele momento”.
As formas de controle observadas nestas narrativas apontam
para a adaptação entre as doutrinas das igrejas cristãs, as alianças das
pastorais religiosas e os saberes científicos. Para Duarte (2004b, p. 6),
as estratégias se organizavam através de “sucessivas cruzadas contra
o onanismo, a prostituição, a pornografia, a promiscuidade proletária
ou o relaxamento moral das elites e nutriram-se de racionalizações
eruditas baseadas em fragmentos mais ou menos consequentes dos
saberes biomédicos e psiquiátricos”. Segundo o autor, o que sustenta
estes desenvolvimentos doutrinários é “o conceito de uma ‘natureza’
dada, com implicações diretas sobre a vida humana, sob as espécies
de um ‘direito natural’ e de uma ‘natureza humana’” (Ibid.). A fala
de uma das participantes remete à existência destes elementos na
sexualidade quando expressa o fato de que o prazer seria inato o
que, portanto, faz com que deva ser vigiado e controlado, sobretudo
durante o processo de educação infantil:

A sexualidade é algo tão divino que já nasce com a gente! Se


você já começa a deixar a criança assistindo novela, na internet,
dar muita liberdade pra criança desenvolver, se você estimular,
ela vai conhecer a sexualidade, e com três anos de idade ela vai
compreender que a vagina e o pênis dão uma sensação prazerosa.
Desejo | 201

Neste contexto, a aproximação entre representantes de


igrejas de denominação evangélica e agentes do mercado também
não se construía de forma unilateral. Cíntia costumava reconhecer
a maior abertura entre as igrejas evangélicas, em comparação às
católicas, para discussão de assuntos relacionados à sexualidade
entre seus fiéis, citando frequentemente o pastor Claudio Duarte
durante os atendimentos na loja. O líder religioso estava à frente de
cultos bem-humorados nos quais costumava dar dicas para casais
sobre comportamento entre marido e mulher, ganhando a simpatia
do mercado erótico quando passou a sugerir que não via problemas
em fiéis utilizando alguns produtos de sex shops. Na gravação
de um de seus cultos, publicada na plataforma virtual Youtube, o
pastor destaca a proibição do uso de produtos fálicos ou voltados
para o sexo anal e masturbação. Além disso, os demais estariam
liberados somente para tratar problemas hormonais decorrentes
da menopausa feminina, como o ressecamento vaginal, ou para a
ejaculação precoce masculina.
A flexibilização da moral e dos costumes nos últimos quinze
anos foi pesquisada entre os segmentos pentecostais por Machado
(2005), apontando para resultados que indicam uma crescente
capacidade desta denominação religiosa em “selecionar, ressignificar
e incorporar elementos de outras tradições confessionais e da
cultura política dos movimentos sociais” (p. 388). Para a autora,
a reconfiguração das subjetividades pentecostais faz frente à
intensa mobilidade religiosa e assume um contorno de gênero que
possibilita arranjos familiares mais igualitários, com masculinidades
mais dóceis e cuidadosas e concomitante conquista de uma maior
autonomia feminina. As redes de sociabilidade extradomésticas já
destacadas entre o mercado erótico também ganham espaço entre
as denominações evangélicas e chamam atenção para a extrapolação
da individuação feminina, conforme coloca uma das participantes
presentes na reunião:

Quando você, dentro da igreja, se depara com essa situação, (falar


de sexualidade) entre as mulheres é um tabu muito grande. Não se
entra no sex shop, o acesso que é feito às vezes é através de uma
consultora, eu tenho uma amiga que vende. O conhecimento desses
produtos vem através disso, porque ainda existe infelizmente esse
tabu, de que o sex shop é pra prostituição, pornografia. Eu acho que
o projeto é ideal e vai trazer uma ideia muito contrária do que hoje
202 | (Des)Prazer da norma

é falado dentro da igreja, de que ‘você não pode isso, você não pode
aquilo, você não pode aquilo outro’.

No que diz respeito às masculinidades, assim como as


disputas entre os diversos grupos religiosos que se configuram
para além do campo pentecostal, os discursos dos participantes
presentes não coincidiam em um padrão único e homogêneo sobre
a possível parceria entre “igrejas e mercado erótico”. Um lado mais
resistente à plasticidade e dinamismo que as identidades sexuais
masculinas poderiam assumir dentro de um sex shop foi exposto
por um dos fiéis:

Eu acho que a questão do sex shop, principalmente dentro da igreja


nesse movimento de casais evangélicos, é uma coisa que já de início
a palavra “sex shop” se associa à pornografia. E hoje em dia ainda
é um meio de prostituição, até mesmo pra satisfação extraconjugal.
Eu não sei como funciona a proposta da Sensualidade Carioca,
por uma visão de uma proprietária cristã, que tem o seu comércio
baseado na palavra, e aí eu não sei como que se coloca dentro em
relação aos clientes, se é realmente pra casados, se é realmente
pra pessoas independentes de sexo, de formalidade sexual, opção
sexual. Pra quem atende? Se a gente busca realmente fazer algo,
mesmo que seja um negócio, se a gente tem a visão da palavra
daquilo que nos é orientado, se a gente busca abençoar ou até
mesmo orientar pessoas que sejam desse meio, então eu penso
que também muitas vezes eu impossibilito ou impeço muitas
pessoas de entrarem porque “aqui não só entra casais”, né? Se eu
sou proprietário de um sex shop e sou evangélico, a minha visão
é abençoar vidas, independente da proposta ser “sex shop”. Se me
chega um casal homossexual, vai prevalecer o quê, o proprietário
ou o evangélico?

Esta narrativa instaurou um ponto de tensão entre alguns fiéis


e representantes do mercado. Dividindo, de um lado, participantes
com opiniões concordantes ao veto do público homossexual e, de
outro, aqueles que priorizavam o lado empresarial e não concordavam
com este tipo de discriminação no mercado de artigos eróticos.
Buscando equilibrar o impasse, Carolina Belo orientou que a solução
estaria na eleição de um conjunto de produtos que expressassem
escolhas valorizadas pelo(a) empresário(a) evangélico(a):
Desejo | 203

Eu conheço muitos empresários, e o empresário escolhe o seu


mix de produtos, e o mix de produtos diz o meu público. Se você
é evangélico e quer ter uma boutique sensual, uma loja de ajuda
marital, ou mesmo quer usar a nomenclatura sex shop, vai entrar
um homossexual e ele ver que ali não tem produto para ele, ele não
vai ficar. Esse mix de produtos faz a triagem. Por isso a importância
do conhecimento em produto [...] Sabe-se claro: evangélico não
consome produtos fálicos, não consome produtos para sexo anal e
nem nada que tenha algum tipo de conotação homossexual.

Os mapas destas novas alternativas sexuais cristãs exibem


outras pedagogias, localizadas no universo criativo de produções e
agenciamentos humanos e evidenciam outros possíveis “erotismos
politicamente corretos” (Gregori, 2010) a serem analisados a partir
de novos arranjos e novos mobilizadores sociais. Neste caso, os
agentes religiosos se inserem na disputa via mercado, em busca do
compartilhamento de uma verdade sobre os modelos de sexualidade
que devem estar disponíveis para o consumo entre evangélicos.
As narrativas presentes nesta breve descrição do Projeto Gospel
abordam desafios analíticos ainda em construção sobre as mudanças
no mercado erótico brasileiro. Consequentemente, é importante
possibilitar a abertura reflexiva para etnografias que se mantenham
atentas para as dinâmicas relacionais entre gênero, religião e
sexualidade nas práticas de consumo contemporâneas.

Considerações finais

As práticas pedagógicas analisadas no Projeto Gospel para


sex shops e no cotidiano da Sensualidade Carioca possibilitam
analogias que dizem respeito ao compartilhamento de um universo
moral comum do chamado “mercado voltado para a família”
(Bellotti, 2009). No entanto, ao ser articulado ao âmbito do erotismo,
a pretensão englobante deste nicho de consumo revela tensões
características entre o caráter evangelizador do mercado religioso
e o necessário convívio com as diferenças, defendido por boa parte
das(os) empresárias(os) neste segmento.
Entre os limites e potencialidades que se conformam
nas articulações observadas entre religião, erotismo e mercado
surgem, nos discursos das mulheres evangélicas, novos arranjos
204 | (Des)Prazer da norma

que desafiam as retóricas conservadoras instauradas no cenário. O


fortalecimento de sociabilidades femininas no mercado de artigos
eróticos parece ter permitido, entre muitas destas interlocutoras,
uma brecha ao acolhimento às diferenças. É o que demonstra a fala a
seguir, pronunciada por uma das agentes do mercado, no momento
de instalação de um conflito a respeito da presença de homossexuais
nas lojas:

Eu acho que é como diz a Palavra: a nossa consciência é quem


vai falar pra gente se estamos bem ou não. A Palavra fala muito
sobre isso, sobre a nossa consciência, é ela que vai limitar as
coisas pra gente. Nesse caso, eu me vejo como empresária. Eu não
posso discriminar. Se entrou dentro do meu negócio, e ele quer
um determinado produto, eu não posso falar pra ele que não vou
vender.

A confluência secular proporcionada pelo tom religioso,


dado tanto à consciência moral como ao “empoderamento feminino”,
requer cuidados analíticos que compreendam estas categorias
tanto a partir de seus agenciamentos e flexibilizações como através
da manutenção de hierarquias, efeitos das reificações de alianças
entre o Projeto Gospel e o modelo econômico liberal. Assim como
o apelo às diferenças só pôde ser acionado a partir de um discurso
que se direciona a quem pode comprar, também a mobilização pela
autoestima e pela independência financeira feminina compõem parte
dos mecanismos responsáveis por conectar mercados e seus modos
de consumo. O exemplo de como estratégias voltadas para mulheres
ganham receptividade no interior de igrejas pentecostais (Teixeira,
2012) aponta para possibilidades múltiplas e paradoxais nos usos
de um poder que condena o comportamento de “dependência”
feminina em relação aos homens, ao mesmo tempo em que reforça
hierarquias de gênero nas quais mulheres permanecem ocupando
espaços subalternos e desprivilegiados, justificando o domínio
masculino através de aspectos da natureza.
Finalmente, por meio da desvinculação ao desejo liberal pela
liberdade, alvo de críticas elaboradas por Saba Mahmood (2005) e
da aposta na flexibilidade e grande elasticidade das fronteiras que
nomeiam os gêneros, apresentam-se propostas por outras formas de
construir antropologias que pensem sobre diferentes expressões do
desejo, da agência, e da capacidade de ação ética. As possibilidades
Desejo | 205

analíticas apresentadas pela sexualidade cristã no mercado apontam


para reflexões que buscam mesclar estas propostas ao olhar atento
para as estratégias pela manutenção de um poder que se movimenta
por meio de “modos comercializados de disputa” (Mukherjee &
Banet-Weiser, 2012), alvo e efeito das reinvenções do encontro entre
carne e espírito.
Bombom: esse escuro objeto do desejo

Michel Carvalho1

O presente trabalho tem como fio condutor as etnografias


das edições 2016 e 2017 do Prêmio da Indústria Pornô, cerimônia
anual que congrega os maiores astros e estrelas do mercado porno-
gráfico nacional. Na ocasião, os participantes disputam troféus que
atestam a excelência de suas performances, laureadas em treze dife-
rentes categorias, como “Melhor Cena de Sexo Anal”, “Melhor Cena
de Orgia” e “Melhor Diretor”. Analiso os dois diferentes eventos sob a
perspectiva da única atriz negra concorrente no período expresso –
Giovanna Bombom. Através de entrevistas a mim concedidas, busco
compreender sua carreira lida como desviante e seus discursos so-
bre si. Munido dessas informações, parto para o escrutínio das cenas
por ela protagonizadas, de material jornalístico veiculado na mídia
tradicional e de grupos de discussão online (no WhatsApp e no Face-
book); com vistas a refletir sobre branquitude, desejo, preconceito e
as (des)valorizações do corpo negro na pornografia brasileira.

Da primeira vez era a cidade

E onde as palavras das mulheres estão chorando para ser ouvidas,


cada um e cada uma de nós precisa reconhecer nossa responsabilidade
de procurar essas palavras, lê-las e compartilhá-las e examiná-las em sua
pertinência para nossas vidas
Audre Lorde2

Em junho de 2016 estive na cidade de São Paulo para o 3º


Prêmio Sexy Hot, cerimônia anual organizada pelo canal a cabo Sexy
Hot que congrega os maiores astros e estrelas do mercado porno-
gráfico nacional. No evento, os participantes concorrem a troféus

1
Michel Carvalho, doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós Graduação
em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ.
2
No original: “And where the words of women are crying to be heard, we must each
of us recognize our responsibility to seek those words out, to read them and share
them and examine them in their pertinence to our lives” (Lorde,1984, p. 43).
208 | (Des)Prazer da norma

que atestam a excelência de suas performances, laureadas em tre-


ze diferentes categorias, como “Melhor Cena de Sexo Anal”, “Melhor
Cena de Orgia” e “Melhor Diretor”. Considerada “o oscar da indústria
pornô”, a festa possui de fato ares de premiação internacional: litros
e litros de champanhe são servidos ininterruptamente, os convida-
dos esforçam-se em suas indumentárias, com vestidos para elas e
suit-and-tie para eles, a presença da imprensa é maciça, registrando
cada movimento dos astros e estrelas da noite que ao final levam
para casa uma estatueta, que lhe confere status e honra.
Ali, em meio a subcelebridades e personalidades da mídia
brasileira,3 atores, atrizes, produtores e diretores pornográficos, es-
tava um antropólogo perdido. Após a premiação propriamente dita,
munido de uma taça de champanhe, tomei fôlego e coragem e fui me
apresentar para aqueles de quem já sabia muito, mas que nada co-
nheciam sobre mim: os personagens de meu campo de investigação.
Alguns já estavam altos demais e, portanto, sem paciência para me
atender, outros preferiram desprezar-me conscientemente, uma vez
que buscavam e solidificavam seu networking profissional: propos-
tas eram feitas, contatos eram acionados, contratos eram selados.
Três pessoas, porém, abdicaram daquilo tudo que estavam fazendo
e me deram alguma atenção – o diretor Giovanni Junior4 e as duas
únicas atrizes negras, Wallery Sindhel5 e Giovanna Bombom.6 Feliz
pela atenção, anotei seus telefones e no dia seguinte marquei com
eles pequenas conversas que iriam compor o campo exploratório
preliminar de minha pesquisa, que se delineava pela primeira vez.

3
Cada categoria era apresentada por uma “subcelebridade” diferente que subia ao
palco e entregava o troféu ao vencedor. O critério para a escolha de tais ciccerones
ainda me é obscuro – ex-assistente de palco de programa de auditório, um rapper,
um cantor de pagode, um blogueiro famoso entre adolescentes, um ator de
pornochanchada, ex-participante de reality show.
4
Indicado na categoria “Melhor Diretor” pelo filme Sonhos Eróticos Profissões – O
Motoboy, da produtora Mastro Produções.
5
Indicada na categoria “Melhor cena de orgia/gang-bang” pelo filme Cobiça: Taras
de um Fotógrafo, dirigido por Helaine Muzy, da produtora Redfire.
6
Vencedora na categoria “Melhor cena de orgia/gang-bang” pelo filme Orgia na
Piscina, da produtora BM Video.
Desejo | 209

Giovanna Bombom, ao centro, de colete e saia branca, e os demais vencedores do Prêmio


Sexy Hot 2016. Do G1 (“Prêmio Sexy Hot”, 2016), sem indicação de autoria.

Como uma espécie de reação ao clamor de Audre Lorde des-


crito na epígrafe acima, convido o leitor a uma reflexão acerca do
lugar político estratégico da voz de Giovanna sobre sua participação
no prêmio da indústria pornô. As projeções e os desejos indicados
por Giovanna naquele momento também são salutares a uma maior
compreensão do baque que viria no ano seguinte. Destaco abaixo um
trecho da entrevista:

O Prêmio foi maravilhoso. Eu era a única negra lá em cima do palco


com troféu… É um espaço que a gente conquistou. Um pouquinho,
pouca gente, mas a gente tem nosso espaço. Vamos seguir até vir
mais pessoas negras (…) É uma coisa nova, é só o terceiro ano, né?
Então é novo, eu acho que isso aí é bem legal pra mostrar mais um
pouco do pornô nacional. Pra também mostrar mais um pouquinho
do hot das brasileiras, dos brasileiros. Porque os filmes bons são
de fora, né? Mas aqui também não tá pra perder, não, o Brasil.
Aqui também tá foda e cada vez tá melhorando, melhorando. E
esse prêmio é maravilhoso porque dá mais fôlego e tesão em fazer.
Tipo, agora eu tô super empolgada pra gravar mais porque eu já tô
pensando na premiação no ano que vem, ele dá uma empolgação.
Você se dedica muito mais em fazer um trabalho melhor. É nisso
que eu já tô pensando. Já tô me preparando pro ano que vem.
210 | (Des)Prazer da norma

Da segunda, o cais e a eternidade...

No início de junho de 2017, me dirigi novamente a São Paulo


para mais uma edição do Prêmio Sexy Hot. Desta vez o canal trans-
mitiria o evento ao vivo pela internet;7 ainda assim, preferi apostar
no deslocamento e numa observação participante da cerimônia. Das
atrizes negras que acompanhara no ano anterior, somente Giovanna
estaria presente. Wallery Shindel engravidara, e dedicava-se a cui-
dar de seu bebê, deixando para trás o mercado pornô. Na Rodoviá-
ria Novo Rio, em meio a documentos, malas, lanches para a estra-
da e muita sonolência, encontrei-me coincidentemente com a mais
importante interlocutora de minha tese até o momento – Giovanna
Bombom. Embarcaríamos no mesmo ônibus. Ela estava na compa-
nhia de uma amigo, razão pela qual não pudemos nos sentar lado a
lado pelas seis horas que ainda enfrentaríamos Dutra afora.
Na primeira oportunidade que tivemos, iniciamos uma con-
versa. Durante a parada de meia hora na cidade de Guratinguetá,
perguntei a ela acerca de suas expectativas para aquela noite. Dife-
rentemente do ano anterior, quando ela havia acabado de surgir na
indústria pornô, agora ela estava indicada a três categorias: “Melhor
Cena de Ménage”, “Revelação do Ano Hétero” e “Melhor Atriz”. Re-
centemente, havia sido escolhida para uma noite de autógrafos com
os fãs na feira erótica Sexy Fair (RJ) e vinha sendo convidada para
gravar inúmeros filmes.
De forma sincera e bem humorada, Bombom me respondeu:

Eu acho que vou ganhar porque quem tá bombando sou eu. Acho
que a Elisa não ganha, não. Pra entrar na Hard ela teve que tirar a
roupa pra fazer strip-tease e desfilar pra eles. Eu não quis fazer isso.
Eles podem mexer e mudar tudo. Só sei que o Sexy Hot gosta de
mim, me chamaram pro estande deles na Feira Erótica.

Finalmente chegamos à cidade de São Paulo. Na rodoviária


mesmo, Giovanna pediu a mim e a seu amigo que a ajudássemos a
escolher bijuterias e uma bolsa para usar na festa. Segundo ela, com-
praria ali mesmo por saber que os preços seriam mais em conta. A
bolsa foi substituída por uma carteira, que eu mesmo emprestei.

7
O streaming da premiação conta com mais de 64 mil visualizações (em oito de
outubro de 2018).
Desejo | 211

Assim como no ano anterior, a festa do Prêmio Sexy Hot8


transcorreu em uma noite de gala, em um elegante espaço de festas,
com a presença de importantes veículos de comunicação brasileiros,
apresentadores de televisão, digital influencers. Diferentemente de
2016, porém, naquele momento eu já não era um completo estra-
nho. Já mantinha algum contato via redes sociais com alguns atores
e diretoras, já havia acompanhado a gravação de um filme de orgia
com a presença de vários perfomers que por ali também figuravam,
algumas pessoas vieram me cumprimentar sem que eu sinalizasse
previamente…
Passei toda a cerimônia de entrega de prêmios sentado ao
lado de Giovanna Bombom, acompanhando seu nervosismo e todas
as suas reações – euforia, entusiasmo, expectativa, decepção. Para
nossa surpresa, Giovanna não venceu em nenhuma das três catego-
rias a que concorria.
Um dos prêmios mais aguardados é o de “Melhor Filme”, gló-
ria que é escolhida por um júri técnico9 e contempla não somente a
capacidade de um profissional, mas de toda a equipe – atores, dire-
tor, fotógrafos, etc. A obra escolhida foi Loucuras de Casal, dirigida
por André Garcia através da produtora Fita Safada, protagonizado
por Capoeira, Elisa Sanches e Polly Petrova. A apresentação da ca-
tegoria ficou a cargo do funkeiro negro Mister Catra. Quando subiu
ao palco para receber seu prêmio, André não se conteve e gritou ao
microfone: “Black, porra!… Agora a porra ficou preta”. Catra também
não se conteve e entre sua inconfundível risada, pontuou: “escureceu
mesmo, caralho”.
Black Brothers é um canal pornográfico dentro da produtora
Fita Safada, comandado por André, cuja propaganda informa:10

Se você está a fim de ver os negros mais bem dotados da vizinhança

8
De acordo com Maurício Paletta, um dos organizadores do evento: “esse ano
recebemos 200 inscrições nas 17 categorias, que é um número ainda maior do que
ano passado. Isso mostra que cada vez mais as pessoas envolvidas na produção dos
filmes querem fazer um bom trabalho e ver seu esforço reconhecido” (“Prêmio Sexy
Hot”, 2017).
9
Este ano composto pelo roteirista Paulo Cursino, a doutora em Comunicação
Mariana Baltar, o diretor pornô Stanley Miranda e o humorista Rafinha Bastos.
10
Ver no site da produtora, disponível em: https://www.safada.tv/canal/black-
brothers/. Acesso em 08 out. 2018.
212 | (Des)Prazer da norma

transando com as meninas mais lindas do pornô nacional, não perca


mais tempo e assine o Canal Black Brothers! Eles adoram trabalhar
em duplas, ou em trios, e foder ao mesmo tempo o cuzinho e a
bucetinha das safadas. Canal perfeito para quem gosta de: sexo
interracial, sexo anal, dupla penetração, orgias, loiras e negros,
homens bem dotados e sexo hard core.

No dia seguinte à festa, Garcia fez um post feliz e emocionado


em sua página no Facebook, que reproduzo sem alterações: “Agora
a coisa ficou preta porra! Satisfação em representar minha raça, já
teve filme que não pude gravar, já gravei com atriz racista, mais o po-
der da cor vai sempre está presente! 17 anos de pornô, uma vitória
100% black!”.

Ganhadores do Prêmio Sexy Hot 2017.


Do G1 (“Prêmio Sexy Hot”, 2017), sem indicação de autoria.

Aqui proponho uma pequena digressão porque preciso cha-


mar a atenção aos significados simbólicos dos nomes dos atores
negros: Bombom, Capoeira, Nego Catra… signos que carregam em
si elementos que remetem à cor escura da pele e à “cultura” negra.
Sobre este tópico, venho pensando nos escritos de Saba Mahmood
(2005) sobre formas de agência que não apontam para a subversão,
antes indicam os modos pelos quais os sujeitos agem no interior das
normas que habitam.
A apropriação de tais estereótipos ligados à negritude pro-
duz efeitos proveitosos em suas carreiras. Signos que remetem à sa-
Desejo | 213

gacidade e esperteza do homem negro ou que fazem explícita refe-


rência aos tamanhos de suas genitálias, como “Kid Bengala”, “Erick
Dotadão” e “Marcelo Pauzão”, despertam atenção do espectador e
geram cliques e comentários nos sites onde as cenas são veiculadas.
Já no que concerne ao nome escolhido pela protagonista
deste artigo, podemos dizer que um nome como “Bombom”, além de
aludir à cor negra, também carrega uma ideia de sabor e gostosura.
Não são raras as frases de duplo sentido, como “comer bombom”,
“bombom delicioso”, “venha provar desse bombom”, advindas tanto
nos sites pornográficos quando nos posts de autopromoção da atriz
em suas redes sociais. Aliada a estes marcadores estratégicos que a
apresentam a partir de sua negritude, podemos perceber uma ideia
de prazer, um prazer que beira a picardia, que ao mesmo tempo que
a diferencia frente às outras performers também a associa direta-
mente a um doce, desejado, saboroso e preto.

Das possibilidades de fracasso e resistência

As brigas que ganhei, nenhum troféu


como lembrança pra casa eu levei.
As brigas que perdi, estas sim, eu
nunca esqueci, eu nunca esqueci.
Pato Fu

Se a pornografia já é, por definição, identificada por meio de


estigmas, quem dentro da própria rede estaria mais sujeito a sofrer
estigmatização? Em sua etnografia, Maria Elvira Díaz-Benítez (2010)
responde que são os atores e atrizes de tal indústria, aqueles que dão
suas caras, e seus corpos, para bater. São suas carreiras, sobretudo,
aquelas que são vistas como desviantes, transgressoras… outsiders.
Para Howard Becker (2008), os outsiders são indivíduos con-
siderados transgressores de uma determinada norma social, sendo,
portanto, vistos como desviantes por aqueles que as criam e cum-
prem. O desvio não existiria em essência, antes sendo construído na
interação com os indivíduos ou grupos que elaboram as normas e
os estilos de vida comumente normativos. Assim como o desvio, a
dissidência também constrói-se na interação. Ninguém é dissidente
214 | (Des)Prazer da norma

per se, mas em relação a outra coisa, neste caso visões de mundo e
convenções sociais de caráter dominante.
Devido à transgressão a uma das normas mais propagadas
socialmente – aquela que prescreve a não-publicização dos atos se-
xuais –, somos compelidos a imaginar a vida e a carreira dos porns-
tars como trajetórias compostas por trabalho fácil, altos rendimen-
tos e alguma glória. Uma vez que como explicitei que tal carreira é
repleta de estigmas sociais, qual seria o “lado bom” de tal empreen-
dimento profissional?

Giovanna Bombom
1h e 30 min
Atendo em hotel ou motel
R$ 300,00 (sexo oral depende da sua higiene)
Com anal R$ 400,00
Atendo somente na Zona Sul ou Centro
Prazer garantido
(Anúncio de Giovanna Bombom replicado via
WhatsApp a possíveis clientes)

Giovanna mora de aluguel em um modesto apartamento


conjugado em Santa Teresa, área central da cidade do Rio de Janei-
ro. Ao longo de nossa convivência em entrevistas, mesas de bar e
transportes públicos, posso perceber certa precariedade em sua fala
e/ou atos, em frases como “eu não tinha [acesso à Internet]… Botei
até wifi em casa pra poder votar em mim. Mas agora tirei de novo”;
“vamo comer nesse aqui que é mais barato”, referindo-se a um res-
taurante paulistano onde o prato feito custava apenas R$ 5,00; “eu
compro aqui porque é mais baratinho”, quando procurávamos biju-
terias para que ela usasse na noite de premiação, adquirindo-os em
uma loja localizada no interior da rodoviária de São Paulo; “consegui
entrar na boate de graça, se não eu não ia”, quando me relatava uma
experiência na noite com amigos e ex-parceiros de cena.
É importante ressaltar, entretanto, que esta “precariedade”
não representa em si um signo penalizante. O ato de pechinchar,
economizar, de procurar por coisas e lugares mais simples revelam
também um certo ethos de classe, de quem sabe valorizar o dinheiro
que ganha através de muito trabalho. E um trabalho instável e
estigmatizante como é o da pornografia.
Desejo | 215

Sobre ter concorrido em três categorias e não ter vencido


nenhuma delas, perguntei a Giovanna se ela sabia, ou imaginava, as
razões de sua derrota. Ela respondeu:

Foi uma categoria muito boa pra não divulgar nada. Uma categoria
muito importante. E eu não fiz. Fiquei desligada. Não fiz campanha,
fiquei desligada, não fiz. E elas [as atrizes vencedoras] fizeram em
rádio, fizeram vídeos, fizeram várias coisas, prometeram várias
coisas pros fãs, de ficar pelada, sei lá. E eu fiquei dormindo nisso
tudo (…) E eu também eu não entendo, amigo, porque quando o
André Garcia ganhou lá na festa, ele veio logo diretamente a mim
lá na festa, né? Olha, esse aqui é pra vingar a nossa raça, nossa cor.
Ele veio falar isso. Então quer dizer que isso rola, tá rolando lá.
Entendeu? Porque se o produtor veio com esse papo, né? Então é
porque rola racismo sim. Eu é que tô por fora na verdade.

Jack Halberstam (2011) aponta, através da análise de perfor-


mances artísticas e textos literários, a importância de considerarmos
– em termos analíticos e, sobretudo, políticos – as “formas de ser e
conhecer fora dos modelos convencionais de sucesso” (2011, p. 125),
já que as histórias de fracasso poderiam nos assinalar caminhos para
não apenas “falar sobre” a formação do sujeito como também sobre
o desfazer do mesmo. Trata-se de uma política fundada no fracasso,
insuficiência ou falência como modo de existência anticapitalista e
anticolonial.
Nas palavras do autor:

Como narra Sandage em seu emocionante estudo, perdedores não


deixam registros, enquanto vencedores não conseguem parar de
falar. Assim, o registro do fracasso é “uma história escondida de
pessimismo em uma cultura de otimismo”. Essa história escondida
de pessimismo, que jaz silenciosamente por trás de toda história de
sucesso, pode ser contada de diferentes formas; enquanto Sandage
a conta como uma história secreta do capitalismo estadunidense,
eu a narro como um conto de luta anticapitalista e queer. Também
a conto como uma narrativa sobre a luta anticolonial, a recusa à
legibilidade e uma arte do destornar-se. Esta é uma história da
arte sem mercados, um drama sem roteiro, uma narrativa sem
progresso. A arte queer do fracasso se volta para o impossível, o
improvável, o inesperado, o comezinho. Ela perde silenciosamente,
e ao perder ela imagina outros objetivos para a vida, para o amor,
216 | (Des)Prazer da norma

para a arte e para ser (Halberstam, 2011, p. 88).11

Perseguindo as pistas anunciadas por Halberstam acerca de


uma nova produção de vida, provoco que o sucesso de Giovanna é
outro que não necessariamente aquele das atrizes brancas do pornô.
É um sucesso que lança mão o tempo inteiro de um reinventar-se de
si mesma oportunizado por dezenas de posts diários em suas redes
sociais e pelo discurso sempre inflamado e pronto a responder de
forma rápida e orgulhosa acerca de sua negritude. Os privilégios da
branquitude também se expressam no mercado erótico. Giovana não
possui uma assessoria de imprensa ou uma equipe e site próprios,
como a recordista de estatuetas do Prêmio Sexy Hot, Patrícia Kim-
berly (vencedora do prêmio de “Melhor Atriz” na edição de 2017).
Giovanna também não possui um canal erótico só para si,
como é o caso de Fabiane Thompson (uma das vencedoras do prê-
mio de “Melhor Orgia”). Não possui uma produtora por trás de si rea-
lizando campanha de votação maciça em grupos de WhatsApp e Fa-
cebook, como aconteceu com Elisa Sanches (vencedora do prêmio de
“Atriz Revelação” em 2017). Não é convidada para filmes da produto-
ra de maior nome, a Brasileirinhas. Além de tudo isso, soma-se o fato
de que Bombom é uma das pouquíssimas performers pornográficas
que mora no Rio de Janeiro, e periodicamente perde oportunidades
de trabalho por não residir em São Paulo, maior expoente nacional
de tal indústria.
Mas ao mesmo tempo, ela é querida pelo veículo de porno-
grafia mais importante do país, o canal Sexy Hot. Possui cerca de 116
mil seguidores na rede social Instagram. Na cidade de São Paulo, ela
é reconhecida por onde passa e faz questão de atender a cada pedido
de foto e beijo dos fãs; se não recebe um cachê considerável em seus

11
No original: “As Sandage narrates in his compelling study, losers leave no records,
while winners cannot stop talking about it, and so the record of failure is ‘a hidden
history of pessimism in a culture of optimism’. This hidden history of pessimism,
a history moreover that lies quietly behind every story of success, can be told in a
number of different ways; while Sandage tells it as a shadow history of U.S. capitalism,
I tell it here as a tale of anticapitalist, queer struggle. I tell it also as a narrative about
anticolonial struggle, the refusal of legibility, and an art of unbecoming. This is a
story of art without markets, drama without a script, narrative without progress.
The queer art of failure turns on the impossible, the improbable, the unlikely, and
the unremarkable. It quietly loses, and in losing it imagines other goals for life, for
love, for art, and for being”. Tradução do autor.
Desejo | 217

filmes, pode cobrar um valor comparativamente alto por seus pro-


gramas, sobretudo aqueles que envolvem a penetração anal.
Deste modo, poderíamos situar Bombom dentro da chama-
da prostituição de luxo, “categoria nativa que se refere a programas
consumidos por um público de classe média à classe alta e que cus-
tam entre 300 reais e 20 mil reais”, conforme aponta a pesquisado-
ra Natânia Lopes (2015). De um jeito ou de outro, seu corpo negro
resiste, deseja e é desejado. São estes valores obtidos pelos progra-
mas, uma vez que o chamado ao pornô é absolutamente volátil, que
garantem o compromisso do aluguel mensal, as contas domésticas e
os frequentes rolês pela cidade do Rio de Janeiro.

O corpo negro e pornográfico

A leitura de Pinho (2012), por sua vez baseada no traba-


lho de Miller-Young indica que a pornografia está atravessada por
uma “economia racializada do desejo”, como uma forma de “political
theater”, uma vez que apresenta uma verdadeira fascinação com a
diferença racial e suas variações. Ao considerar a própria diferença
como categoria analítica, e não exatamente os marcadores sociais
de diferenciação, que podem ou não converter-se em desigualdades,
Avtar Brah salienta:

Como a diferença designa o “outro”? Quem define a diferença? Quais


são as normas presumidas a partir das quais um grupo é marcado
como diferente? Qual é a natureza das atribuições que são levadas
em conta para caracterizar um grupo como diferente? Como as
fronteiras da diferença são constituídas, mantidas ou dissipadas?
(…) A diferença diferencia lateral ou hierarquicamente? (Brah,
2006, p. 359).

Seguindo as pistas deixadas por Brah e por Laura Lowenkron


em sua análise acerca do tráfico de pessoas, sustento que “discursos
específicos sobre a diferença são não apenas constituídos, contes-
tados, reproduzidos e ressignificados (Brah, 2006; Piscitelli, 2008),
mas também encarnados, corporificados e materializados em cate-
gorias sensoriais” (Lowenkron, 2015b).
Piscitelli (2008) ainda mostra que, para além da simples ten-
tativa de caracterizar a articulação entre classe, raça, gênero e outras
218 | (Des)Prazer da norma

categorias identitárias, como se fossem marcas previamente consti-


tuídas, o que está em jogo é precisamente o processo de constituição
dos sujeitos através dos processos de diferenciação. Ou seja, tal en-
tendimento “resulta em deslocamento da noção de ‘identidade’ para
a ideia de diferença” (Lowenkron, 2015b, p. 24).
Destarte, a materialidade dessas diferenças se produz através
de enunciados. É a “preta linda”, a “buceta de preta”, é o “cu preto”, é
o “rabo da mulata”, como nos mostram os enunciados, títulos, sinop-
ses e legendas dos filmes protagonizados pela atriz. É o “bombom”…
A antropóloga Juana María Rodríguez (2014) chama este fenômeno
pluricausal de “stickness”, algo grudento e pegajoso que seria parte
constitutiva dos sujeitos e do qual eles não conseguem se livrar; có-
digos, símbolos, gestos, falas, marcadores sociais de diferenciação,
aparências estético-morais que demarcam a produção do desejo e a
própria produção de raça dentro da pornografia.
Minha hipótese com este artigo sobre uma mulher negra
atriz pornográfica é a de que um corpo negro dentro da pornografia
é sempre um corpo negro. Não é qualquer corpo que performa sexo
diante das câmeras. Tal dimensão se expressará de alguma forma
– seja no fracasso em uma premiação pelo desempenho nas cenas,
seja na ausência de convites para gravar, pois em muitos filmes este
corpo negro não se faz necessário; seja no momento da gravação em
si, onde enunciados linguísticos servirão para marcar aquele corpo
como negro; seja no momento em que o filme estiver disponível nas
plataformas online.
Como aponta Rodríguez, stickness, a raça sempre os perse-
guirá. O bombom será sempre preto. E por este motivo ora será valo-
rizado, ora desvalorizado, a depender da obra, da cena, do cliente em
questão. Esse casting, para usar o termo utilizado pelos produtores,
será, em alguma medida, injusto, uma vez que não leva em conta a
aptidão de seus performers e sim os traços fenotípicos, e os marca-
dores agenciados a partir daí, dos mesmos. Como me confidenciou
diversas vezes, Giovanna se sente preterida no mercado pornográfi-
co, sendo chamada para trabalhar por diretores e produtores especí-
ficos, sobretudo quando estão em busca de uma “negra”.
Desejo | 219

O fim - desejos racializados

Meu interesse de pesquisa se concentra em refletir acerca de


como os marcadores sociais da diferença operam na pornografia
brasileira, as opressões manifestas no seio de tal segmento do entre-
tenimento e prazer adulto, sobre corpos que estão sempre transitan-
do entre o desejo e o preconceito. A atriz que estou tendo a oportuni-
dade de acompanhar em minha etnografia é uma mulher oriunda de
camadas populares – não possui vínculos familiares e complementa
sua renda de performer pornô com a prostituição. Advinda de um lu-
gar de subalternidade, Bombom encontra no mercado pornográfico
um trabalho relativamente rentoso e que também lhe proporciona
algum tipo de prazer, evidenciado por falas que me foram ditas como
“porque eu queria”, “porque eu gostava”, “por tesão”.
Nesse sentido, um outro aspecto que merece ser destacado
é o momento onde o sexo perde a centralidade diante das trajetó-
rias de racismo, preterição e preferências. Esta vivência localizada
no pornô poderia se equiparar à de qualquer outro de trabalho ou
profissão. O mercado de produção pornô pode, por vezes, refletir o
lugar de subalternidade e desvalorização que a mulher negra ocupa
em nossa sociedade. Um espaço tão efervescente como indústria, ao
mesmo tempo que abriga e permite muitas linhas de fuga para se-
xualidades ditas dissidentes, também encena e arregimenta clichês
e dominações do mundo comum.
Outro ponto que se pode depreender a partir de meu tra-
balho é o da invisibilidade da mulher negra dentro da pornografia
nacional. O racismo quando conjugado ao sexismo, tal como aponta
Lélia Gonzalez (1984), produz efeitos violentos sobre as mulheres
negras. De certa maneira, Bombom aponta para uma tensão entre
uma imagem hipersexualizada e enaltecida que concomitantemente
possui pouco espaço, pouco lugar, pouco prestígio. Esta dimensão
tem algo de esquizofrênica, como aponta Frantz Fanon (1983) na
constituição da própria subjetividade da mulher negra: ser deseja-
da demais por um lado e ser preterida nos espaços de circulação de
privilégio e poder.
O Prêmio da Indústria Pornô tenta criar no Brasil um star
system aos moldes da indústria pornográfica norte-americana, ao
aproximar público e atores e ao prestigiar e congratular as perfor-
mance dos artistas. Desta maneira, aparições em filmes de conteúdo
220 | (Des)Prazer da norma

adulto convertem-se em carreiras e no vislumbre de projetos12 de


vida, como elucidado na fala de Giovanna, que já se prepara para seus
novos filmes, almejando ser indicada na premiação do ano seguinte.
Neste rastro, é interessante notar também que ao acre-
ditar que deve trabalhar, correr atrás e “fazer o nome”, podemos
entender certos alinhamentos com valores meritocráticos. Porém,
à medida em que nossa convivência se estreita, acabam se desve-
lando os filtros de privilégios que o pornô utiliza, seguindo uma
narrativa estética da hegemonia da mulher branca na pornografia
brasileira, a “branquidade do pornô” anunciada pela antropóloga
Díaz-Benítez (2010).
É importante salientar que os vencedores são escolhidos por
voto popular, evidenciando uma aparente preferência do público
espectador de pornografia nacional pelos corpos de pele branca.
Tal privilégio seria, então, incitado por produtores, diretores e
demais membros das redes do pornô em razão de uma organização
de mulheres numa capitalização sexual-racial ou representaria um
reflexo e uma sujeição às expectativas do público consumidor?
Sem uma resposta definitiva, pontuo apenas que mulheres
negras foram, e são, historicamente objeto de fascínio e desejo. Seja
como mulatas de escolas de samba (Corrêa, 1996), seja como as
mães pretas e amas de leite (Segato, 2007), seja como atrizes porno-
gráficas que desafiam a “branquidade” do mercado erótico (Díaz-Be-
nítez, 2010). Representam um obscuro objeto do desejo mesmo que
negado, escondido e sublimado.
Após a noite da premiação, Bombom decidiu que ia encerrar
sua carreira. Em suas palavras, ficou “destruída” com o resultado, de-
cepcionada com a perda, com a baixa remuneração, com o estigma.
Estava também namorando um rapaz negro, bacana e que de fato
a valorizava. A decisão, contudo, durou poucas horas. A mudança
se deu por conta de um áudio enviado por uma produtora do Canal
Sexy Hot, organizador do prêmio da indústria pornô.
A mensagem era repleta de elogios e exaltação, tudo que
alguém de signo, ascendente e lua em Leão precisava ouvir.13 Dias

12
Conforme indica Gilberto Velho (1994, p. 32): “conduta organizada para atingir
finalidades específicas”.
Embora tal análise não seja o escopo deste artigo, a astrologia aparece a todo
13

momento no discurso da atriz.


Desejo | 221

depois, Giovanna foi novamente convidada a gravar. O ciclo reinicia.


Todos os esforços para atuar em boas cenas, ser indicada e arre-
cadar troféus em 2018 começam novamente. Transcrevo parte da
admoestação:

Não fica assim, não. Eu te falei o quanto a gente acha você boa, o
quanto a gente do Sexy Hot acha você boa. A programação do canal
que analisa sempre os filmes… a gente sempre fala de você. Tanto
é que a gente te chamou pra Feira Erótica. Nada do que a gente faz
é à toa. Se a gente chama você é porque a gente acha que você vai
atrair público e de fato atraiu. E a gente já falou aqui no canal: não
vamo deixar a Bombom parar de gravar porque ela é muito boa. A
gente precisa de atrizes assim como você. A gente conta com você,
com a sua dedicação. De verdade. A gente que bota os filmes na
final. A gente recebe material e coloca os filmes na final. A gente fez
questão de colocar seus filmes porque a gente realmente acha bom,
muito bom. Foca pra caramba na campanha ano que vem. A Patty
foca muito na campanha. E pela gente do canal, com certeza você
tem que ficar. Por favor, não faz isso com a gente, que você é ótima.
Não fica triste. Isso acontece. Fica tranquila, você é a cara do Sexy
Hot. Você é a cara do pornô brasileiro (Nicole, produtora do Canal
Sexy Hot).

Nos meses que se sucederam em 2017, Giovanna de fato em-


preendeu investimentos em sua carreira. Esteve presente em quase
uma dezena de novas cenas, algumas das quais pude acompanhar a
feitura, sobretudo com a produtora XPlastic, que estabeleceu uma
profícua parceria com a atriz. Gravou com a produtora BM Video, de
Brad Montana, encarnando a figura da “mulata boazuda”. Gravou ce-
nas com o ator Nego Catra pelo selo Fetishboxxx.
No segundo semestre de 2018, ela recebeu a notícia de que
nenhum de seus filmes havia sido indicado a nenhuma categoria no
Prêmio Sexy Hot do ano vigente. No extremo oposto, Nego Catra foi
indicado ao prêmio de Melhor Ator pelo filme No Íntimo do Perver-
so, onde contracena com Giovana, que interpreta sua escrava sexual.
Temerosa de sequer ser convidada para a noite de gala da cerimônia,
ela me diz em tom sério: “não quero ter esperança de mais nada”.
Ainda que trágica, a frase é repleta de significados. Nada.
O que significaria não querer mais nada? Seria continuar a reali-
zar seus programas, atendendo e recebendo fãs? Seria lucrar com a
222 | (Des)Prazer da norma

exposição e visibilidade de seu corpo nas redes sociais, sem nunca


ganhar o reconhecimento esperado nas premiações? É seguir produ-
zindo e reinventando a si mesma não somente como desejável, mas
também como alguém capaz de suportar a perda contínua nos espa-
ços de circulação e poder? Encarnar este bombom seria também en-
carnar esse escuro objeto do desejo que nos meandros do mercado
erótico pode até fracassar, mas também se reinventa, ocupa, deseja
e é desejado.
Matérias, corpos e lugares: o trabalho no
barracão de escola de samba e a construção de
homossexualidades masculinas
Lucas Bilate1

O barracão de uma escola de samba é uma das partes


fundamentais para a elaboração do carnaval, nele ocorrendo
a confecção dos carros alegóricos e de parte das fantasias que
desenvolvem o tema apresentado naquele ano (Cavalcanti, 1994).
Funcionando sob a forma de galpões, esses espaços são ciclicamente
preenchidos e esvaziados por pessoas, madeiras, vidros, tintas,
isopores, tecidos e uma infinidade de outros materiais que, com
imenso trabalho, são transformados em carnaval. Mas um barracão
é mais do que isso – e não são todos iguais, para início de conversa.2
Neste artigo exploro minha experiência junto a rapazes
aderecistas para discutir como homossexualidades masculinas
podem ser construídas em relações com trabalhos manuais. Não
apenas os trabalhos manuais, mas também o ambiente do barracão
com suas dinâmicas próprias faz parte desses processos. Estarão
aqui em questão os modos como homossexualidades masculinas são
vividas nesses contextos, chamando a atenção para os papéis que
atividades laborais e concepções espaciais têm nessas experiências.
Antes, no entanto, precisamos falar sobre o carnaval das escolas de
samba no Rio de Janeiro.
Para caracterizar o contexto das escolas de samba precisamos
entender como elas se constroem enquanto lugares de experiências
singulares. A própria formação delas se dá no processo de construir,
reconstruir e resignificar elementos mais abrangentes. Isto significa
dizer que o “mundo do samba”3 lida com tensões da “sociedade”,

1
Lucas Bilate é doutor do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro..
2
Barbieri (2009) explora as mudanças ensejadas pela ocupação da Cidade do
Samba. Tensões e hierarquias entre as agremiações foram reelaboradas no processo
de transferência dos antigos galpões da zona portuária do Rio de Janeiro para o
novo espaço dedicado à produção do carnaval.
3
Para Howard Becker (1977), a ideia de mundo é útil para pensar os universos que
se constituem em torno de produções artísticas. O mundo do samba, deste ponto de
224 | (Des)Prazer da norma

interpretando-as a seu modo.


A experiência do carnaval das escolas é, deste ponto de vista,
uma percepção de mundo. Modos de ser e estar diferenciados, uma
moldura interpretativa. Ao mesmo tempo, é feita dos elementos
abrangentes da sociedade na qual se insere, fala dos diversos
segmentos sociais de uma cidade. É urbana em toda sua acepção
antropológica (Velho, 1997 [1981]). É uma maneira ritualizada de
interpretar e transformar a cidade, as relações, as hierarquias, o
tempo e o espaço.4
Além disso, o mundo do carnaval lida não só com
experiências particulares de tempo e espaço, mas se constrói a partir
de um imaginário. Autores situados no campo da antropologia não
cansam de demonstrar como a festa elabora imagens, personagens
e situações a seu modo. Passistas, casais da realeza, malandros, fatos
históricos, baianas, lugares, lendas e uma infinidade de elementos
que certamente não são exclusivos ao carnaval são, no entanto,
postos em ação e vividos sob a sua égide. Os materiais de que se
vale são ressignificados. Garrafas PET viram alegorias. Nada escapa;
tudo que entra sai diferente. O carnaval das escolas de samba é uma
verdadeira máquina cultural.
Para Roberto DaMatta (1997 [1977], p. 88), o carnaval é
um “reflexo complexo, um comentário complicado sobre o mundo
social brasileiro”. A ideia de reflexo complexo é uma tentativa de
diferenciação das teorias que colocam o carnaval como reprodutor
dos conflitos da sociedade brasileira nas quais o “senso comum é
inflacionado”. Na perspectiva do autor sobre o carnaval,

(...) o ponto de partida é que o carnaval cria não só seus vários


planos, mas seu próprio plano. Ou seja, o carnaval – como o teatro,

vista, seria nada mais do que as pessoas, organizações e grupos que produzem os
acontecimentos e objetos entendidos como produtos “do samba”. Isso implica em
dizer que há contextos vividos como singulares que envolvem a produção em que
estão engajados. Fazer carnaval é estabelecer redes de relações nas quais tanto a
produção quanto as realidades à volta ganham conotações particulares.
4
O carnaval é uma maneira de estar na história, um conhecimento de tempo. O ciclo
anual do desfile (Cavalcanti, 1994), regimento temporal próprio ao carnaval que se
organiza em torno da produção do espetáculo, é experimentado como independente
do (apesar de relacionado ao) tempo secular. Um calendário próprio, por assim
dizer. Mais do que isto, ele é um tempo diferente, progressivo e sentido em termos
de pressão ou possessão. Ver Bilate (2017) e Cavalcanti (2015).
Desejo | 225

o futebol, o jogo e as situações em geral – inventa seu espaço social


que, embora possa estar determinado, tem suas próprias regras,
seguindo sua própria lógica (Ibid.).

Uma das inúmeras consequências disso é a impossibilidade


de se compreender esses processos fora da moldura interpretativa
que é a própria festa. O carnaval como visão de mundo se
impõe a quem o deseja perscrutar. É neste sentido que devemos
observar as situações trazidas aqui. As relações entre diversas
homossexualidades masculinas e o carnaval das escolas de samba
devem ser entendidas a partir do contexto em que emergem.
Não só homossexualidades se constroem com o carnaval e o
carnaval é construído com homossexualidades, mas a festa oferece
interpretações sobre esses processos.

Um barracão

Se um barracão é um espaço em que tintas, madeiras, colas,


plumas, espelhos e ferros são transformados em carros alegóricos e
fantasias ele também é um lugar em que pessoas, cheiros, sensações,
temperaturas, palavras, gestos, músicas e sons se conectam. Em cada
um, no entanto, esses processos ocorrerão de maneira particular.
Cada barracão é um universo em diálogo. Todos eles, no entanto, são
espacialmente organizados da mesma forma. No pavimento térreo
os setores de serralheria, marcenaria e ferragens dividem o lugar
com os carros alegóricos e com o setor de almoxarifado. O segundo
andar é ocupado pelos refeitórios, vestiários, cozinha e, algumas
vezes, uma parte do setor administrativo. O terceiro pavimento é
tomado por escritórios da administração da agremiação – salas
para a equipe de carnavalescos, salas de reunião e escritórios dos
dirigentes. O último andar, que recobre toda a extensão do galpão,
abriga os setores de escultura, pintura, costura e adereços.
Cada um funciona a seu modo, por mais que tenha
seus pavimentos organizados como os outros. Horários dos
trabalhadores, formas de remuneração e outras características
imprimem dinâmicas de operação e convivência diferentes em cada
agremiação. Além disso, cada barracão se diferencia também pelo
que podemos provisoriamente chamar de “estilo” ou “identidade”
226 | (Des)Prazer da norma

da escola. Apesar de podermos comparar cada um desses ambientes


entre si, essas dinâmicas internas nos exigem muita atenção.
As formas pelas quais os barracões são ocupados por pessoas,
materiais, máquinas e ferramentas dependem do desenrolar da
produção. Isto quer dizer que esses espaços, além de padronizados
e diferentes entre si, são espaços mutantes ao longo do ano. A cada
momento em que alguém se depare com o seu interior, encontrará
um ambiente diferente. No período após o carnaval o desmonte das
alegorias é feito lentamente por alguns funcionários. Durante essa
“baixa estação” uma equipe básica continua trabalhando (geralmente
os funcionários dos setores administrativos, do almoxarifado,
cozinha, etc.), enquanto a maioria dos profissionais está dispensada.
O retorno desses trabalhadores é paulatino e obedece ao calendário
da produção do desfile. Ferreiros começam a trabalhar fazendo as
estruturas das alegorias e se confundindo com o setor da marcenaria,
que começará a forrar os carros com madeira. Esta primeira fase
é seguida do trabalho de vidraceiros, escultores, profissionais de
iluminação e aderecistas, que farão os acabamentos. No entanto,
como o processo é realizado em cada alegoria, há um momento em
que todos esses profissionais ocupam juntos o espaço do barracão
operando fases diferentes em determinados carros alegóricos.
Tomando o carnaval como um processo cíclico e de tempo-
espaço específico, como defende Cavalcanti (1994), podemos
perceber que cada tipo de produção e de participação nesse universo
está localizado e significado dentro de um contexto simbólico
próprio a esse mundo social. Quero com isso dizer que os trabalhos
de ferragem, carpintaria ou adereços não são apenas entendidos por
suas características técnicas gerais, mas pelos significados inerentes
ao lugar que ocupam na produção do carnaval.
Isso significa que os tipos de atividades desempenhadas
nas construções das alegorias e fantasias são simbolizados de
acordo com seu lugar nesse processo: a carpintaria é vista então
como um trabalho relacionado à estrutura de base de uma alegoria,
enquanto o trabalho de adereçamento é entendido como finalizador,
agregador dos elementos finais que darão contorno, brilho e cor ao
todo alegórico. Mais do que isso, a atividade de adereçamento, por
ocupar esse espaço no esquema de produção, se relaciona de perto
com uma dimensão simbólica importante para a compreensão da
produção de homossexualidades nesse contexto. Os adereços são
Desejo | 227

entendidos como um trabalho de requinte, de detalhamento, de


sutileza e beleza associadas à cor e ao brilho – aspectos fundamentais
tanto para o entendimento do que significa esse tipo de trabalho no
carnaval quanto para a compreensão dos processos de formação das
subjetividades dos trabalhadores: “um carnaval, dizia Renato, ganha
forma e cor com o seu trabalho. Geraldo Cavalcante, carnavalesco da
União da Ilha em 1984, falava também da função dos adereços de
“dar vida, dar cor, transformar a realidade de madeira e ferragens
em sonho” (Cavalcanti, 1994, pp. 151-152). A passagem da dimensão
de realidade para a dos sonhos é, portanto, fundamental para
o entendimento dessa atividade de adereçamento no carnaval.
Encontra-se relacionada à visão de que os trabalhos de base estão
ligados à brutalidade enquanto a dimensão dos sonhos está ligada à
sutileza. Esses elementos fazem parte dos processos de construção
local do gênero.
A construção das subjetividades dos trabalhadores se
relaciona com o lugar dos seus trabalhos no processo de produção
do carnaval e com os materiais e as ferramentas que os caracterizam.
Cavalcanti aponta para a importância que os materiais têm na
concepção das diferentes atividades. Os trabalhos de ferragem,
carpintaria e mecânica, por exemplo, podem ser percebidos não
como arte, mas como “serviço”, devido ao fato de ficarem recobertos
por outras dimensões materiais em uma alegoria. A autora cita a
definição de Tião, um ferreiro: “não é arte porque ninguém vê. Meu
trabalho fica todo escondido” (Cavalcanti, 1994, p. 136). O trabalho de
ferragem lida com ferramentas como a solda e máquinas destinadas
a serrar (assim como a carpintaria). O isopor, material utilizado
pelos escultores, é trabalhado em grandes blocos com ferramentas
como facas, estiletes, fios elétricos, escovas de pregos e lixas. Apesar
de ser entendido como um trabalho que exige “delicadeza” e de ter
um caráter artístico fortemente enfatizado (inclusive como portador
de um status superior frente às outras atividades), a escultura
parece corresponder à grandiosidade característica das formas das
alegorias. As obras são muitas vezes de grandes proporções – de
modo que essa “imponência” parece diluir o caráter de detalhamento
da escultura, desfeminilizando-a. Cavalcanti comenta ainda como se
dá o processo de moldagem das esculturas, etapa necessária para
sua reprodução. Esse estágio guarda riscos intensos à saúde dos
trabalhadores, pois envolve o trato com “produtos miseráveis”. Fibra
228 | (Des)Prazer da norma

de vidro, compostos químicos fortíssimos e resinas formam um


léxico tóxico com o qual necessariamente esses trabalhadores têm
de lidar.
O trabalho de adereçamento, ao contrário dos outros, lida
com uma infinidade de materiais. Não há somente ferro, madeira,
isopor ou vidro, mas uma miríade de pedras, plumas, tecidos, paetês,
espelhos, placas e tudo mais quanto for entendido como necessário
para a decoração de uma alegoria ou fantasia. As ferramentas
utilizadas, por sua vez, geralmente se reduzem a duas: a cola (em
variadas formas) e a tesoura. As subjetividades desses trabalhadores
são formadas nos processos produtivos, em conexão com os materiais
com que trabalham, com os procedimentos de como trabalham e
com os espaços onde trabalham.


O trabalho manual

Quem chega a um barracão não passa incólume. A entrada
num espaço de tamanha proporção, ocupado esfuziantemente
por um número espantoso das mais variadas pessoas realizando
diversas e simultâneas atividades, é capaz de desafiar os sentidos
e atordoar o olhar diante da complexidade da experiência. A ação
do tempo promove uma familiarização paulatina com o universo,
e as regularidades começam a aparecer. Essas regularidades que
se impõem aos olhos do observador são, antes de tudo, ilusões,
criadas por uma tentativa de ordenação que está primordial e
literalmente nos olhos de quem a vê. No entanto, é possível levá-las
ao escrutínio alheio e ao crivo da interação para então verificar se
essas organizações fazem sentido.
A ordenação ou convenção assim organizada guarda sempre
uma armadilha: a confusão entre os olhares de quem observa e de
quem é observado. Procurar explicitar as convenções que acreditamos
dar sentido a experiências em quaisquer contextos é, assim, uma
tarefa complexa. A dificuldade é agravada por outra característica.
A ideia de convenção supõe um compartilhamento de sentidos; é,
por assim dizer, simbólica. Considerando a argumentação de autores
como Strathern (2006) e Sahlins (2008), é preciso lembrar que todo
compartilhamento é inevitavelmente contextual e contingencial. Isto
significa que determinada compreensão pode fazer sentido entre
Desejo | 229

um grupo de pessoas e ser incompreensível a outro. Ou mesmo uma


convenção compartilhada de modo abrangente pode ser refutada
pelo “mesmo grupo” em outra situação. Quero dizer, por mais que
compartilhemos uma mesma convenção, seus significados podem
ser diferentes.
Estas ressalvas gerais são necessárias na medida em que
pretendemos abordar uma temática suscetível a mal-entendidos.
Compreender o papel do trabalho manual na construção das
subjetividades em um barracão de escola de samba requer a
aproximação a um universo enervado por múltiplas convenções.
É preciso procurar tangenciar o entendimento da inextrincável
relação entre determinadas convenções de gênero e sexualidade
e experiências subjetivas. O trabalho manual é ali um elo entre
“cultura” e “subjetividade”.5
Ao conversar com alguns carnavalescos sobre a presença
homossexual mais intensa na seção de adereços, ouvi respostas que
poderiam ser consideradas naturalizantes. O “olhar glitterizado”
do homossexual, a inclinação da bicha pelo brilho, a sensibilidade
para o trabalho de adereçamento e tantas outras maneiras de
expressar relações semelhantes procuravam explicar uma conexão
entre determinada convenção de gênero e certa dimensão subjetiva.
Nos termos de Margaret Mead (2009 [1935]), essas elaborações
conectavam sexo e temperamento. A etnografia de Cavalcanti
já apontava para a equipe de adereços como lugar de certa
homossexualidade:

A equipe de adereços, chefiada por Geraldo, era composta


de rapazes jovens (havia apenas uma mulher entre eles) que
transitavam alegres, e por vezes desafiadoramente, por todo o
barracão. No conjunto do barracão, os adereços eram o lugar da
jovialidade irreverente, do homossexualismo assumido, da crítica
jocosa e perspicaz àquele ambiente de trabalho. Lá, em meio a
risos e gírias, aludia-se a todos os assuntos tabus do cotidiano do
trabalho: interesses amorosos, consumo de drogas, o mandonismo
reinante (Cavalcanti, 1994, p. 176).

5
Esta divisão é claramente insuficiente e reducionista, já que a proposta a ser
defendida aqui caminha para uma diluição dessa oposição. Optei por esses termos
aqui apenas por exprimirem uma alusão às dimensões “simbólica” (social e
compartilhada) e “psicológica”.
230 | (Des)Prazer da norma

Como este tipo de trabalho manual conecta, produz e estabiliza


homossexualidades? Que lugar é esse da “homossexualidade
assumida”? A exploração dessas inquietações nos conduzirá
primeiramente ao processo de fabricação de um desfile.
Corroborando a posição da autora, acredito que a realização
do carnaval é um processo particular, que obedece e formula
regularidades próprias, fazendo com que deva ser compreendido
também em seus termos. É preciso então levar em consideração
o espaço ocupado pelo trabalho de adereçamento no conjunto da
confecção do desfile. Como já foi dito, a equipe de adereços realiza
uma atividade de finalização dentro de todo o processo; oposições
entre “realidade” e “sonho” são usadas para contrapor o trabalho
de ferragens ao de adereços. Este papel de transformação de uma
dimensão em outra, da “dura realidade da madeira” ao universo dos
sonhos, elabora outra distinção, entre “concreto” e “abstrato”, que
parece fazer sentido nesta compreensão.
Mais do que isso, o adereçamento no carnaval opera com
outras proporções materiais. As etapas iniciais de ferragem,
carpintaria e escultura, por exemplo, lidam com metragens
consideravelmente discrepantes em relação ao trabalho de
adereços. Metros a perder de vista de ferros e tábuas de madeira
são dispostos em harmonia para que esculturas muitas vezes
colossais componham uma alegoria. Pequenos e elaborados
elementos alegóricos realizados pela equipe de adereços são então
justapostos ao complexo para finalizar o projeto que ainda receberá
composições humanas para entrar na avenida. Paradoxalmente, é
a minúcia dos adereços que preenche visualmente uma alegoria.
Um mundo de miudezas. Apesar das dimensões comparativamente
agigantadas dos trabalhos de ferragem e carpintaria, tudo deverá
ficar suplantado pela multiplicidade de adereços.
Cabe aqui ainda outra distinção relevante na compreensão
do trabalho de adereçamento em relação aos demais na confecção
de um carro alegórico: multiplicidade x unidade. Esta diferença
relaciona duas propriedades: a das formas e a dos materiais. As
formas utilizadas para composição dos trabalhos de ferragem e
carpintaria são basicamente unívocas; as estruturas de ferro e
madeira são compostas por sobreposições complexas de formas
semelhantes. A atividade de escultura não obedece à mesma
padronização de formas, apesar de se manter quase constante em
Desejo | 231

relação à enormidade das suas dimensões. Todas essas produções


guardam, no entanto, uma semelhança que parece primordial e as
distingue do trabalho de finalização dos adereços: a constância
dos materiais.
Chegaremos ao ponto que, como procuramos defender aqui,
conecta mais intensamente os trabalhos manuais às subjetividades.
Madeiras, ferros, gesso e fibra de vidro são basicamente as
matérias-primas dos ferreiros, carpinteiros e escultores. No caso
do trabalho de adereços, vemos uma pulverização de materiais,
uma multiplicidade quase infinita, em constante aprimoramento
e inovação, e utilizada de maneiras tão variadas que seria inútil
tentar descrever. Essa infinidade guarda, no entanto, uma
regularidade já exposta quanto à dimensão. Enquanto os demais
trabalhos manuais para elaboração de uma alegoria se relacionam
com materiais de dimensões comparativamente maiores, o
trabalho de adereços depende de matérias-primas que chegam
a tamanhos minúsculos. Pedras de apenas alguns centímetros,
tecidos nos recortes mais diversos e toda uma miríade de outros
elementos materiais ganham forma e dimensão pelo agrupamento
maciço sobre as estruturas pesadas.
Da minúcia de tecidos, pedras, espelhos e paetês emerge
a composição de um elemento alegórico que será agregado a um
carro. Além disso, o setor de adereços decora diretamente as
fantasias, fazendo com que os tecidos costurados se tornem roupas a
representar parte de um enredo. O trabalho de decoração de carros
e fantasias é feito diretamente nas peças. Cabe então outra diferença:
o adereçamento ocorre tanto diretamente, sobre uma fantasia ou
carro, quanto indiretamente, por meio da elaboração de peças
decorativas aplicadas às roupas e alegorias.


O fazer e a subjetividade

Tornamo-nos aquilo em que trabalhamos.


Richard Sennet

Ao explicarem as razões que acreditavam conectar os


homossexuais ao setor de adereços, os carnavalescos com os quais
conversei demonstravam certo comedimento. Respostas curtas,
232 | (Des)Prazer da norma

geralmente finalizadas com expressões que buscavam encerrar o


assunto pedindo alguma intervenção em concordância com o que
diziam, eram comuns. Também apareceram recorrentes formas
de expressar o que acreditavam ser um ponto de vista “natural”,
“estabilizado” ou quase completamente compartilhado socialmente.
Ao dizerem “porque é assim”, “porque viado gosta disso” ou pedirem
que eu confirmasse suas afirmações, eles pareciam querer se
esquivar do assunto.
Durante o processo de pesquisa, aquelas explicações me
acompanharam e angustiaram. De certa forma não me conformava
com o que eu via como aparente superficialidade. Mais ainda, ao
conectarem a homossexualidade ao brilho, ao glitter e à habilidade
de decoração, as respostas me faziam lidar com variados julgamentos
meus a respeito daquelas perspectivas. Percebi somente depois o
quanto elas eram reveladoras e estavam dizendo exatamente o que
precisava ouvir.
O que julgava como superficial, guardava na verdade a real
profundidade. Talvez quanto mais simples e superficial seja uma
resposta, mais complexidade ela traga em si – isto porque, ao fim,
complexidade e simplicidade não fazem sentido aqui; tanto quanto é
improdutiva uma distinção entre superficial e profundo. O indizível é
simples a alguns olhos, o profundo pode se mostrar como a expressão
mais rasa. Estavam me falando de algo relevante, talvez primordial:
os trabalhos manuais fazem subjetividades e as subjetividades
emolduram os trabalhos manuais.
Como ocorrem esses processos é o que irei abordar. O trabalho
manual tem algumas especificidades que devem ser consideradas
para esta compreensão. Richard Sennett, em O Artífice (2008),6
explora as conexões entre o mundo material e subjetivo, levando, ao
fim, a uma supressão dessa oposição tão cara à nossa imaginação.
É precisamente a ideia de que há um diálogo entre pessoas
e materiais ou que, em outras palavras, há uma conexão e um
processo que relaciona pessoas e materiais que acredito ser útil.
Defendo, assim, que um trabalhador manual não só é capaz de
pensar com os materiais, fazendo da manipulação deles um discurso
e uma gramática, mas que a própria conjunção dos dois produz

6
Meu contato com essa bibliografia decorreu de conversas com Raphael Bispo, a
quem agradeço.
Desejo | 233

subjetividades. Uma frase dita recorrentemente por um apresentador


de quadra7 pode nos ajudar a lidar com as proposições de Sennett.
“Conversa de sambista é samba” nunca deixou de ecoar nos meus
pensamentos porque em algum momento aquilo fez um grande
sentido. Quando alguma cerimônia, discurso ou intervalo tomava
um tempo considerável na noite dentro da quadra, ao receber o
microfone do palco em suas mãos, o apresentador empunhava a
frase para retomar a apresentação de um samba. De fato, parece que
os sambistas conversam mais quando estão fazendo samba do que
quando estão parados conversando. Acredito que a frase do mestre
de cerimônias significou para mim a consciência de que aquelas
pessoas (e, muitas vezes, eu)8 estavam dizendo e comunicando mais
entre si tocando, dançando, sambando, girando e cantando do que
quando palavras eram proferidas.
O ponto de vista de Sennett a respeito do artífice pode ser
entendido como caminhando na direção de um entendimento holista
da experiência do trabalho.9 O artesão não só está dizendo algo com
a manipulação do material, ele está conversando com os que falam
aquele idioma, está subjetivando a matéria e sendo subjetivado
por ela. O adereçamento numa escola de samba é uma atividade
construída em relação com homossexualidades. No entanto, os
processos de gênero operam o papel primordial nessa produção.
Mais do que “a homossexualidade”, estão em jogo masculinizações
e feminilizações.
O trabalho do artífice é ainda marcado por outras
características propostas por Sennett, que podem facilitar a
compreensão do que tentamos abordar. Ao se deter sobre a
proeminência da mão na formação das subjetividades do artífice,
o autor explora uma ideia que nos será cara, a de que há uma
continuidade entre corpo e material. A retomada por ele da frase

7
Um apresentador de quadra ou mestre de cerimônias é um dos personagens das
escolas de samba. Nas quadras eles desempenham a função de anunciar sambas, a
presença de convidados e fazer comunicados aos presentes. Alguns desenvolvem
uma maneira particular de realizar essas atividades, com “cacos” e frases de efeito.
8
Incluo-me porque sou ritmista de baterias de escolas de samba. Minha inserção
nesses universos foi alvo de reflexões (Bilate, 2017).
9
Esta perspectiva tem como foco uma investigação integradora e concatenada das
experiências. Neste sentido, pensar o trabalho manual seria também compreender
as maneiras pelas quais os sujeitos se conformam através destas vivências.
234 | (Des)Prazer da norma

de Kant é reveladora: “a mão é a janela que dá para a mente”. O


trabalho manual envolve processos de conscientização do corpo
para a manipulação do material que envolvem uma desmarcação
dos limites entre eles, para oferecer ao artífice maior eficiência e
controle.
Na feitura de sua atividade, o trabalhador é então levado a
um constante e repetitivo uso e manuseio das ferramentas e seu
material. Nesta relação íntima, porém constantemente atravessada
pela coletividade (seja objetivamente, quando o trabalho é
setorizado e um aderecista realiza uma parte de fantasia ou alegoria,
seja indiretamente, quando ele recebe instruções e orientações), o
trabalhador se coloca e é posto em relação com aquilo que elabora.
Tornando esse contato constante, ele é levado a uma conscientização
dessa relação que se estabelece entre pessoa e material,
conscientização que leva a uma “inconsciência”10 dos limites entre
pessoa e coisa.11
A apreensão totalizante de uma técnica corporal aparece no
início do século XX nas proposições de Marcel Mauss. Em Técnicas
do corpo (2003), ele sugere que toda técnica corporal, seja o nado,
a corrida, a dança ou o uso de ferramentas deva ser analisada sob
o tríplice ponto de vista do “homem total”. A dimensão psicológica
e sociológica juntar-se-ia então à fisiológica e à mecânica para
permitir compreender os usos do corpo. Ao se deter sobre técnicas
consideradas elementares, como os modos de dormir, comer, saltar,
etc., Mauss incluiu a sociologia no estudo de fatos considerados
intuitivos. Se até mesmo as técnicas do sono variam e estão enervadas
não só por elementos fisiológicos, mas também psicológicos e
sociais, aquelas entendidas como claramente aprendidas poderiam
ser compreendidas como estritamente sociais.
No entanto, é sobre este ponto que Mauss pode nos ser ainda

10
Falar em consciência e inconsciência não é propriamente adequado. Desejo
exprimir apenas que esta relação entre pessoa e material é construída de maneira
específica no trabalho manual. Passa-se por um processo de elaboração dessa
fronteira que envolve um borramento.
11
Este aparente paradoxo está pulsante nos escritos de Merleau-Ponty a respeito
da sua proposta para entendimento do corpo. O enigma, diz ele, “(…) consiste em
meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível (…) ele se vê vidente, ele se toca
tocante” (Merleau-Ponty, 2004, p. 19). O toque nos conscientiza da tatibilidade e ao
mesmo tempo a naturaliza, tornando-a inconsciente.
Desejo | 235

mais útil. Até mesmo as técnicas vistas como mais aprendidas que
naturais devem ser analisadas sob o ponto de vista “total”: modos
de cortar tecidos, colar paetês, soldar vigas de ferro ou serrar
placas de madeira têm assim dimensões psicológicas. Atos técnicos
falam dos corpos, das sociedades e das noções de pessoa que se
constroem neles.
É possível dizer, portanto, que os trabalhos manuais em um
barracão de escola de samba estão construindo pessoas. Ou ainda
que noções de pessoa estão em processos de construção em relação
com as atividades desempenhadas. Esta coordenação passa pelo
uso dos materiais e ferramentas. O material contamina a pessoa,
assim como a pessoa contamina seu material de trabalho. Temos, a
princípio, uma maior elaboração consciente em relação ao segundo
processo. A ideia de autoria, por exemplo, se baseia na noção de que
imprimimos algo nosso, com nosso trabalho, a uma matéria. Já o
primeiro vínculo não parece tão enfatizado, de modo que tendemos
a obliterar o quanto os materiais nos contagiam com o trabalho.
Consequentemente, somos levados a pensar a respeito
do papel que os diversos materiais utilizados nos trabalhos
desempenhados num barracão exercem sobre as subjetividades dos
trabalhadores. É neste sentido que é possível falar em processos
de construção de gêneros em relação com madeiras, ferros, gesso,
plumas e espelhos. Na fabricação de vidros (exemplo usado por
Sennett), o trabalho passa por uma continuidade entre carne e
vidro. O artífice se deixaria absorver pelo material como um fim
em si mesmo, experiência que, para Merleau-Ponty (2004), é “o
ser como coisa”. A matéria-prima do trabalho não é, no entanto,
neutra. Convencionadas e simbolizadas, podendo ser carregadas de
potencial generificante, elas conformam subjetividades. Não apenas
os materiais que servem ao uso do trabalhador se relacionam com
ele mais substancialmente, também as ferramentas utilizadas se
incluem nesses processos.
Aqui a relação entre forma e conteúdo parece mais relevante.
É preciso compreender as ferramentas a partir desta relação; cada
instrumento não é apenas “o que ele faz”, mas também “o corpo que o
desempenha”. A utilização de instrumentos de trabalho num barracão
não ocorre de forma menos plural. Serralheiros empunham suas
ferramentas de corte mecânicas ou automáticas, ferreiros estalam
suas soldas, escultores cortam e desgastam placas de isopor com os
236 | (Des)Prazer da norma

mais variados instrumentos. Aderecistas contam basicamente com


suas duas ferramentas, a pistola de cola e a tesoura.
O ato de martelar um prego é usado como exemplo por
Michael Polanyi e retomado por Richard Sennett:

Quando baixamos o martelo, não sentimos que seu cabo golpeou


a palma da nossa mão, mas que sua cabeça golpeou o prego (…)
Tenho uma consciência subsidiária da sensação na palma da mão,
que se mistura à minha consciência focal de estar impelindo o
prego (Sennet, 2012, p. 195).

Parte de um corpo, a ferramenta o prolonga até o contato


com seu material. Além disso, o movimento no desempenho deste
utensílio passa a ser também parte dessa corporeidade. Buscando
resignificar o diálogo entre ciência e filosofia, Merleau-Ponty elabora
uma percepção que revisita certas distinções. Uma delas recoloca a
relação entre corpo e instrumento: “longe de nossos órgãos serem
instrumentos, nossos instrumentos, ao contrário, é que são órgãos
acrescentados” (Merleau-Ponty, 2004, p. 39).12
Essa corporeidade pessoa-ferramenta-material inclui o
movimento operado no desempenho do trabalho. Defendo, portanto,
que haja uma performance dessa corporeidade formada no processo
da atividade laboral que também esteja conformando gêneros.
Acredito que, ao exprimirem suas perspectivas em frases como
“viado gosta de brilho”, os carnavalescos com os quais conversei
poderiam estar chamando a atenção para algumas relações que
produziam certas homossexualidades em conexão com os trabalhos
manuais, suas técnicas, ferramentas e materiais.
Richard Sennett ressalta a consideração da atividade de
costura como artesanato medieval estendido às mulheres, de
forma a combater a ideia de licenciosidade sexual feminina. Nas
guildas, espaços então aliados aos processos de construção de
masculinidades, não se aceitavam mulheres como membros para o
ofício artesanal. O trabalho manual da agulha foi sendo sedimentado
como prática feminina (Sennet, 2012, p. 72). Em Working Bodies

12
Em minha dissertação de mestrado, explorei conexões entre pessoas e objetos.
Tratando das construções de gênero entre ritmistas de baterias de escolas de
samba, procurei ressaltar a proposta de que noções de gêneros e classe social, por
exemplo, eram produzidas em relação com os instrumentos musicais.
Desejo | 237

(2009), Linda McDowell reflete sobre a associação dos corpos


a diferenças, vergonhas, sujeiras, assim como a saúdes, belezas,
adornos e decorações em caminhos nos quais essas características e
atributos se associam a diferenciações de gênero, raça e classe.
A autora se detém naquelas atividades em que trabalhador
e consumidor estão presentes em interação, nas quais o serviço
prestado é utilizado no momento da troca. Ela esteve mais atenta a
trabalhos considerados como prestação de serviço e relacionados à
esfera do cuidado e da saúde. Ao se debruçar principalmente sobre
esses setores para explorar a construção da ideia de “carreiras
femininas”, ela acaba atribuindo às atividades manuais o lugar
da masculinidade. A observação dos modos de construção de
feminilidades nos trabalhos manuais acaba caindo na obscuridade.
Ainda assim, há propostas relevantes para nossas considerações. A
ligação entre gênero, espaço e atividade laboral, mote da publicação,
é fundamental. A autora considera também o local de trabalho como
arena mais significante de construção social da masculinidade, o
que pode nos ajudar a compreender as experiências com as quais
lidamos aqui.
O mundo do trabalho é, portanto, um ambiente-agente
nos processos de gênero. Ainda mais enervado por determinadas
convenções de gênero é o meio do trabalho manual, geralmente em
torno do qual se constroem noções de masculinidade. Isso não impede,
contudo, a formação de processos de feminilização. A atividade da
costura, simbolicamente carregada neste sentido, não esgota essas
possibilidades. Em um barracão podemos encontrar outras maneiras
de relacionar construções de gênero a trabalhos manuais.

Portal Mágico

Deve-se compreender a construção do espaço do barracão
como complexo agente e componente nos processos de formação
das subjetividades dos trabalhadores. Como seria possível abordar
processos de construção de gêneros e sexualidades sem atentar
para as relações com o espaço? Afinal de contas, se o trabalho de
adereçamento relaciona pessoas a materiais, técnicas e ferramentas,
é preciso considerar também as conexões entre trabalho e “ambiente”.
Para isso usaremos uma ideia sugerida por um dos carnavalescos, a
238 | (Des)Prazer da norma

de que o barracão é um “portal mágico”.


Para entender porque esse ambiente é visto como marcador
de experiências singulares é preciso compreender o tipo de rotina e
de trabalho da maioria dos sujeitos. Por ser um tipo de atividade que
segue um calendário próprio, o carnaval tem um regime peculiar de
contratação, permanência e pagamento dos trabalhadores. A grande
maioria deles (ferreiros, carpinteiros, aderecistas, figurinistas,
escultores, pintores, costureiras, etc.) trabalha sazonalmente
durante alguns meses do ano, sendo os mais intensos geralmente
os dois ou três antecedentes à festa. Por pelo menos dois meses a
maioria dos rapazes com os quais convivi dormia nos barracões.13
O regime de trabalho muitas vezes impõe essas condições, mas
muitos rapazes decidem simplesmente dormir nos barracões,
mesmo havendo a possibilidade do retorno. Isso ocorre por diversas
razões (como condições materiais para ir e vir, ambiente familiar
conturbado, etc.). O fato é que a maioria dos rapazes lá permanece
durante toda a semana. Isso implica na produção de uma dinâmica
de experiências muito próprias e na consequente ênfase simbólica
na separação dos espaços de dentro e fora de um barracão. Creio
ser relevante considerar que contextos profissionais podem estar
relacionados a experiências particulares de tempo e espaço. Isto se
torna proeminente no barracão na medida em que ele não apenas
impõe um ritmo de trabalho, mas se constrói diferencialmente em
relação aos ritmos das demais atividades laborais.
No seu fluxo progressivo até chegar ao ápice do desfile, o
trabalho no barracão vai se inflamando em consonância com o calor
da cidade à sua volta. Enquanto o ritmo esquenta no seu interior, a
interação diária produz laços mais densos. Passar pela construção de
um carnaval pode ser, deste ponto de vista, uma experiência intensa.
As brigas enervadas por esta convivência ressoam nos gritos de “não

13
Isto também está relacionado ao perfil desses trabalhadores (em geral, rapazes
de 17 a 30 anos). São geralmente pessoas que precisam se deslocar por muitas
horas até chegar à cidade do samba e, como o trabalho pode começar muito cedo e
terminar tarde, acabam preferindo dormir nos locais de trabalho. Os horários não
são muito fixos porque dependem da produtividade e de uma série de imprevistos
aos quais eles estão sujeitos (como a falta de material, mudanças em fantasias e
alegorias, entre outros); dependem também, em última instância, da liberação ou
não pelo “chefe da bancada” que pode solicitar que eles façam “serões” para adiantar
o trabalho.
Desejo | 239

aguento mais você” e “quero que este inferno acabe”, ouvidos mais de
uma vez nos meses que antecedem a festa. Esta rotina avassaladora
de deslocamentos espaciais e temporais imprime modos particulares
de experiências.
Essa atmosfera inebriante possibilita a construção de vínculos
específicos. A comparação entre essas relações e a constituição de
uma família é recorrente, como podemos constatar nas observações
de Cavalcanti (1994, p. 179): “sua equipe era como uma ‘família que
come, dorme, almoça junto’”. Sabemos que a comensalidade pode
ser encarada como um rito de agregação. Van Gennep (2011, p.
43) sugere que o ato de comer e beber em conjunto seja “de união
propriamente material”, o que não só nos leva a pensar essa atividade
como possibilidade simbólica de produção de uma coletividade, mas
alarga essa perspectiva. Desse ponto de vista não é arriscado dizer
que a comensalidade elabora fortemente um dualismo intensamente
presente entre material e imaterial. Ela conecta esses âmbitos fazendo
com que a agregação no sentido imaterial seja realizada junto, com e
por meio da experiência material, sendo, ao fim, impossível dissociar
essas esferas na experiência. Como modo de produção desse coletivo,
que ganha às vezes tons de “família”, a atividade de comer e beber em
conjunto se mostra presente e eficaz no ambiente dos barracões.
Este regime de atividades diárias que vai desde o momento
em que se levantam até a hora em que vão dormir (ou ficar acordados)
é uma força rítmica avassaladora capaz de produzir laços intensos.
Essa pujança do cotidiano de trabalho em um barracão, aliada à
potência que atividades diárias como comer e dormir exercem
quando praticadas em conjunto, leva não só às relações intensas.
A própria perspectiva da experiência se torna marcada por essas
dinâmicas. Trabalhar em um barracão leva a tamanha contaminação
pelos ritmos, cheiros, formas, cores, materiais, pessoas, horários,
palavras, músicas, e por uma infinidade de outras informações, que
faz com que aquela vivência seja percebida como totalizante. Talvez
por isso esse trabalho “vicie”. Tanto mais isso acontece quanto o
próprio barracão for regido mais ou menos uniformemente.14
Um colorido que tinge a ideia de magia é a percepção

14
Essa diferença ficou evidente para mim na medida em que frequentei dois espaços
com regimes de trabalho diferentes. Em Bilate (2017) exploro consequências que
essas diferenças podem ensejar.
240 | (Des)Prazer da norma

desse espaço sob a aura do sonho. A noção de que o barracão é um


espaço “de sonhos”, “para construir sonhos” ou “onde os sonhos
viram realidade” (Cavalcanti, 1994) enfatiza essa dimensão de
especialidade. Em contraposição à realidade, se situam o sonho e a
magia no imaginário do lugar. “Você não imagina o que acontece aqui
dentro”, como ouvi algumas vezes, sinaliza tanto a excepcionalidade
daquele lugar quanto a dimensão fantasiosa na qual ele é embalado.
Produtor de fantasias e produto das fantasias, ele é o próprio elo
entre a criação e a criatura.
Outras experiências e comportamentos demonstram a
produção do espaço do barracão atrelado à identidade dos sujeitos,
uma delas sendo a nomeação. Certa vez conheci alguém que havia
começado a trabalhar no barracão naquela semana. Apresentaram-
nos: “Lucas, essa é a Mayara”. Ela aparentava uns 17 anos de idade
e permaneceu aquele dia sem conversar muito durante o trabalho.
Alguns dias depois fui descobrindo mais sobre Mayara: ela é de
Paracambi (município próximo ao Rio) e dizia que o carnaval de
lá agora havia acabado por falta de repasses da prefeitura. Sua
ida ao Rio de Janeiro estava relacionada à sua família “estar se
acostumando” com o fato de “ser bicha” – como disse-me ela – e
com a sua vontade de trabalhar em um barracão. Perguntei mais
sobre como é o carnaval na sua cidade e as respostas demonstravam
bastante controle das informações (quantas escolas e a que bairros
estavam ligadas, quem havia ganhado os últimos campeonatos,
etc.), o que demonstrava certo interesse dela pelo assunto. Passados
poucos dias eu perguntei a Mayara se ela já havia ido à quadra da
escola (nessa altura eu já sabia que ela era torcedora da agremiação
na qual estava trabalhando) e ela respondeu: “eu ia ainda outro
dia, mas a Beiçola, minha mãe, não deixou”. Eu já sabia que Mayara
estava dormindo todos os dias no barracão e estranhei esse controle
materno; além disso, havia estranhado o nome da mãe e perguntei:

Lucas: “Sua mãe?”


Mayara: “É, logo que cheguei aqui me deram uma família. A Déia é
minha madrinha, a Beiçola minha mãe”
Lucas: “E o pai?”
Mayara: “O pai, não tem [Ela ri] Me deram também um monte de
nomes, cada hora me chamam de uma coisa: Tailandesa, Xuxa,
Desejo | 241

Índia, Sabrina Sato, Yakisoba…”15

Em outro barracão trabalhava Ossanhe, um rapaz que


aparentava estar entrando na casa dos trinta anos. Ossanhe
(também um apelido, mas em referência ao nome do orixá) estava
um dia especialmente cansado e reclamava do trabalho que parecia
não acabar: “não aguento mais isso aqui, Jesus!”. Ele finalizava
o adereçamento de uma janela que, se aprovada pela equipe do
carnavalesco, seria reproduzida para ser colocada em grande
quantidade no alto de um dos carros alegóricos. Sandrinho, marido
e assistente do carnavalesco, esperava o trabalho de Ossanhe chegar
ao fim para decidir o destino daquela peça. Conversávamos todos
enquanto isso. Ossanhe tinha uma personalidade bastante bem
humorada e passava a maior parte do dia brincando e falando com
seus orixás.16 Entre uma brincadeira e outra ele pedia a Sandrinho
algum material. Sandrinho, depois de entregar diversas vezes
diferentes materiais a Ossanhe, brincou: “o que você quer mais,
bicha? Cada hora é uma coisa!”. Ele prontamente respondeu: “O que
eu quero? Eu quero é terminar isso aqui, ir embora dessa cidade do
samba. Esse lugar aqui não presta, ninguém tem nome, é todo mundo
‘viado’, ‘bicha’”.17 E todos rimos.

15
É fundamental ressaltar que a agremiação na qual Mayara trabalhava enfatiza
o caráter “familiar”. Certamente esse caráter agrega tons especiais às vivências
relacionadas ao trabalho nesse ambiente. Um dos principais “slogans” ou
“gritos” (como costumam se chamar em escolas de samba essas frases de efeito
que caracterizam a identidade da agremiação) da escola em questão exalta
essa característica: “a família Beija-Flor te ama”. Outro “slogan” derivado deste
homenageia o presidente de honra e patrono da Escola: “alô papai, a família Beija-
Flor te ama”.
16
A relação desses rapazes com as religiões e cultos afro-brasileiros é intensa.
Muitos deles são “do santo” e os assuntos sobre oferendas, rituais, orixás e
entidades eram frequentes. Samir certa vez pediu que eu assistisse a um vídeo em
seu celular, no qual ele fazia uma apresentação pública no Dia da Consciência Negra
dançando “para Oxossi”, seu orixá. Ele mesmo, além de trabalhar, dançava como
passista em duas agremiações. Em um dos barracões, por exemplo, havia santos
e estátuas espalhados por quase todo o lugar. Muitas delas tinham oferendas aos
seus pés e a maior delas, a de São Jorge (padroeiro da escola), media mais de três
metros de altura.
17
Creio ser importante salientar que estes termos eram utilizados largamente nos
ambientes dos barracões sem, entretanto, deixar explícita alguma conotação de
violência verbal – até porque estas palavras eram majoritariamente empregadas de
242 | (Des)Prazer da norma

A pequena passagem anedótica reforça o papel que a


nomeação tem na construção de um espaço próprio. De fato, a
maioria dos rapazes se tratava simplesmente por “viado” ou “bicha”,
fazendo entre si poucas referências aos seus nomes “verdadeiros”.
Essa atitude de apagamento das identidades ou características que
as conformam fora e a criação de maneiras para se referirem a si
próprios no espaço de dentro também produz essa fronteira. Kulick
(2008), ao tratar das vidas das travestis de Salvador, ressalta o papel
que a nomeação tem na construção das trajetórias. Os contextos
analíticos dele e meu são consideravelmente diferentes, mas desejo
apenas chamar a atenção para o impacto social/subjetivo que os
processos de nomeação envolvem.
Nas vidas das travestis trazidas por Kulick, a saída de casa
é vivenciada como momento crucial de ruptura. As mudanças na
composição da vestimenta geralmente são acompanhadas pela
mudança de nome (Kulick, 2008, p. 79). A adoção de outro nome
no barracão (geralmente sob a forma de apelido), tanto quanto
envolve uma dinâmica social, nos fala menos da produção de uma
ruptura na concepção de si e mais da produção de uma atmosfera
coletiva de separação. Em outras palavras, “esse não é meu nome,
mas aqui me chamam assim”. Van Gennep (2011), referindo-se aos
ritos de passagem, aborda os ritos de nominação. Para ele, esses
ritos haviam sido insuficientemente estudados àquela época em
termos da revelação do seu “verdadeiro aspecto”. Aqui nos interessa
a capacidade de agregação à sociedade ou a um grupo (família,
linhagem etc.) vista por Van Gennep nessas atitudes. Podemos
extrair, não sem considerar os encalços comparativos, a sugestão do
autor do papel da nominação. Desejamos enfatizar o fato de, em um
barracão, ela produzir justamente esse efeito agregador a um grupo.
É por meio dela também que se constrói a fronteira entre o mundo
de dentro e o de fora do barracão.
A perspectiva de que há um modus operandi dentro e
outro fora daquele espaço envolve uma série de outras produções.
Abordaremos as particularidades que esse ambiente mágico enseja
nos modos de construção de si no tocante ao gênero e sexualidade

maneira autorreferencial. Esta perspectiva de que eram todos “viados” e “bichas”


desejava, mais do que apontar um uso pejorativo, chamar a atenção para certa
“homossexualidade predominante”.
Desejo | 243

dos trabalhadores. Um dos carnavalescos com os quais conversei


fazia uma retrospectiva de como ele percebe uma mudança no perfil
dos homossexuais que trabalham nos barracões de escolas de samba
nos últimos 25 anos:

O barracão era um espaço, tirando os oficiais, boate e etc., que são


preparados para receber o público gay, o barracão era um espaço
mais democrático. Os mais afetados andavam igual um robozinho
na rua, mas no barracão não. Era como se a porta do barracão
fosse um portal mágico. Não é que eles fossem hipócritas, é que os
tempos eram mais complicados. Então quando eles atravessavam
esse portal mágico, eles caíam num mundo onde eles eram bem-
vindos, eram respeitados na sua imposição sexual (porque
ninguém escolhe ser gay, é uma desgraça). Essa situação perdurou
durante um bom tempo. Era um espaço de libertação, de estar, de
ser exatamente o que a criatura era sem máscaras, disfarces ou
fantasias. O trocadilho é engraçado, porque no templo das fantasias
o cara se desfazia da fantasia de ser um hetero do lado de fora.

A percepção do carnavalesco de que a situação da
homossexualidade nos barracões teria mudado é relacionada em
sua fala com a hipótese de que a sociedade teria paulatinamente
diminuído essa diferença – ou seja, a homossexualidade teria se
tornado mais aceita. O estigma, em relação ao trabalho na escola
de samba, de que “era coisa de gay ou marginal” teria diminuído: “a
gente lutou muito pra fazer disso aqui uma empresa”. Essa diminuição
do estigma teria, por sua vez, facilitado o acesso das pessoas ao
mundo do carnaval, o que permitiu que, segundo ele, houvesse hoje
um número maior de homossexuais trabalhando, embora com um
“talento” menor: “a dificuldade fazia com que aqueles que chegassem
até o barracão estivessem com o olhar glitterizado. Perdeu o artista,
a coisa se mercantilizou”.
No entanto, o ambiente do barracão continua sendo, para
ele, receptivo aos homossexuais: “Hoje são adolescentes que, por
dificuldade devido à opção sexual, têm problemas pra se colocar no
mercado. Ou porque não estudaram ou [porque] a afetação atrapalha.
Eles vêm pro barracão em maior quantidade por não ter preconceito
com o carnaval”. A principal diferença percebida por ele nessa
comparação de mais de duas décadas (tempo em que está atuando
profissionalmente no carnaval) está na existência daquilo que ele
244 | (Des)Prazer da norma

chamou de “portal mágico”. Essa imagem enfatiza a produção de


uma separação entre os ambientes internos e externos ao barracão
em relação ao comportamento dos homossexuais. Para ele, antes,
existiria uma “vida paralela”, ao passo que hoje, ao contrário, seria
preciso “colocar freios” nos meninos homossexuais. Ele explica:
“hoje aqui a gente põe um cabresto; não é engessar a turma, mas nós
temos um padrão de comportamento”.
Que papel teria então esse espaço na conformação daqueles
sujeitos já que, a princípio, eles não viveriam mais uma “vida
paralela” (sendo “heterossexuais” fora e “homossexuais” dentro de
um barracão)? Suspeito que, para alguns sujeitos, esse caráter “de
portal” que pode ter um barracão ainda seja importante na construção
de suas identidades sexuais. Se, para alguns homossexuais que já
teriam “se assumido”, aquele ambiente não parece se relacionar tão
fortemente com suas identidades, para outros, isso seria diferente.
Xanda, uma menina de vinte e poucos anos e também
aderecista, pode nos dar pistas sobre esses matizes. Conversando
com ela num dia em que havia somente nós dois ao redor da mesa
(os rapazes tinham descido para adereçar um carro alegórico),18
comentávamos a entrada recente de novos rapazes na equipe. Ela
dizia: “eu não aguento, viu. O Sávio entrou aqui hétero. Comecei a
conversar com ele e depois de uns dias ele já era bi. Uns dias depois
já gostava de viados, mas daqueles ‘mulheres’. Aí no fim o que eu
descubro? Que é uma dadeira de cu”.
Passando alguns dias depois por outra mesa nesse mesmo
barracão em que Xanda trabalhava, fui chamado por uma menina:
“ei, menino, vem cá. Você não é da bateria da Beija-Flor?”. Fui
imediatamente levado à proximidade dela, que trabalhava com
mais duas meninas também adereçando fantasias, mas sob a chefia
de outro rapaz. Respondi afirmativamente e logo começamos a
conversar. Rafael, que para mim naquele momento era uma menina
de quase vinte anos, refrescou minha memória a respeito de como
me conhecia: “você não lembra de mim? Eu ia toda quinta-feira na
quadra e te chamava na beirada do palco pra você tirar foto comigo.
Lembra? Eu dizia que ia casar contigo, lavar sua roupa…”. Naquele

18
Creio ser importante dizer que Xanda era a única mulher naquela equipe em que
trabalhavam sete pessoas. Esse padrão tende a se repetir, havendo poucas mulheres
como aderecistas.
Desejo | 245

mesmo momento a lembrança me veio, e eu disse: “é verdade!


Poxa, me desculpa, é que você está diferente agora”. “Agora eu sou
menina”, brincou. Ela não hesitou em perguntar o que eu fazia ali, ao
que respondi informando sobre a pesquisa: “estou fazendo minha
pesquisa aqui, fico quase todos os dias ali na mesa com os meninos
do Sandrinho”. Tainá, uma transexual que trabalhava na mesma mesa,
ouvindo nossa conversa, perguntou mais sobre a pesquisa. Tendo
ouvido de mim que se tratava de uma pesquisa sobre o barracão
da escola de samba e a homossexualidade, ela disparou: “quer
entender porque aqui tem tanto viado? Você quando vai num lugar
de rico você não fica rico? É a mesma coisa, aqui só tem viado, então
a pessoa que entra vira viado”. Tainá prosseguiu: “Esses espaços
influenciam a pessoa a ser o que ela não é ou o que está internalizado
nela. O carinha que é gay, quer se montar mas não faz… aqui é o
momento. Ninguém vai olhar ele estranho, o espaço é propício. Aqui
todos liberam seus demônios”. “E as mulheres?”, perguntei; Rafael
respondeu rindo: “mulher aqui vira piranha!”.
É importante dizer também que estas categorias (“homens”,
“viados”, “gays”, etc.) são relacionais. Sujeitos percebidos como
“homens” ou “bofes” podem ser, em outros momentos de visão,
“homossexuais” ou “viados”. Isto dependerá das relações que darão
sentido às experiências. Alguns episódios ocorridos nos barracões
elaboram justamente a possibilidade da masculinidade daqueles
vistos como homens ser instável, construindo o ambiente do
barracão como lugar possível de borramento dessas fronteiras.19
Esses pequenos relatos podem trazer à luz o papel que o espaço do
barracão parece ter para a formação dos sujeitos. É certo que, para
alguns, esse ambiente não se relaciona tão fortemente com suas
identidades sexuais, mas, para outros, ele continua sendo um portal
capaz de agir sobre a forma como essas pessoas pensam e vivenciam
suas subjetividades.
A noção de que aquele espaço funciona como um portal
mágico para a construção de subjetividades revela um importante
componente na conformação de sexualidades e erotismos. A ênfase
no caráter alterador que o barracão exerce sobre as experiências

19
Em outra ocasião (Bilate, 2017), elaborei as construções de convenções em torno
das categorias de “homens” e “viados” nesses contextos. Sugiro que as fronteiras
entre homens e viados sejam produzidas não apenas para diferenciá-los, mas
principalmente para aproximá-los.
246 | (Des)Prazer da norma

eróticas e afetivas, encontrada mais ou menos fortemente, chama


a atenção para a possibilidade dessas dimensões serem vividas de
maneira particular. Esse estado não implicaria em uma diluição
das convenções, mas sim no seu uso para mobilização erótica e na
possibilidade de intensificação das experiências de transgressão
das mesmas.
De alguma forma o barracão é visto como um lugar em
que a experiência da homossexualidade é vivenciada de maneira
particular. Isso fica mais evidente quando entendemos uma
construção relacional importante para a delimitação simbólica do
espaço do barracão. De acordo com estudos nos campos da geografia
(Massey, 1995; 2000) e da antropologia (França, 2012), os espaços
são construídos relacionalmente. Nesse sentido, podemos dizer
que o espaço do barracão existe na relação com outros. A quadra
de uma escola de samba oferece outras percepções e experiências
de homossexualidades masculinas. Mas esta é outra face da mesma
história que não cabe agora apresentar.
O trabalho de adereçamento em um barracão pode ser
encarado como uma maneira de viver homossexualidades. Os
modos como a atividade laboral participa da construção dessas
experiências é elucidativo das conexões entre subjetividades,
materialidades, espaços e convenções. Se o carnaval oferece
comentários complicados sobre o mundo social (DaMatta, 1997),
sobre as homossexualidades masculinas ele parece estar nos
dizendo que elas são feitas por meio de experiências concretas.
Neste sentido, “ser homossexual” em um barracão pode significar
se construir na relação com plumas, tesouras, pistolas de cola
quente e paetês. É fazer seu corpo em continuidade com esses
materiais, ferramentas e com aquele espaço mágico.
As muitas faces de um livro: sexualidade e
moralidade no mercado editorial brasileiro

Nathanael Araujo1

– É discrepante. Um verdadeiro exército guerreando pela vida


e o único e verdadeiro instrumento pacificador é a morte.
– Nem sempre é assim, Gabriel. Pense que a vida é como um
cookie: a superfície é árida, às vezes é duro demais, quase nunca
está do jeito que gostamos, mas há sempre gotas de chocolate
para consolar o nosso paladar, para adoçar a alma e compensar
todo o resto que pode não estar tão bom quanto esperávamos. 
– Você acredita que eu só como os cookies por causa
das gotas de chocolate? – disse Gabriel quase infantil.
– Compreende a dinâmica? Se quiséssemos apenas chocolate,
pegaria um e comeria. Mas o prazer está justamente em encontrar
as pequenas gotas de paz ao longo da vida (Caldeira, 2014, p. 69).

Introdução

A literatura frequentemente encontra-se conformada por


elementos que fazem parte da vida cotidiana dos indivíduos em
dada sociedade. Enquanto produto cultural, ela não apenas reflete
ou refrata modos de agir, pensar e sentir daqueles que a elaboram,
como também produz realidades (Williams, 1979, 1989; Said, 1990,
2011; Becker, 2009; Silva, 2016; Araujo, 2017; Tennina, 2017). Este
artigo tem como objetivo analisar a obra literária Águas Turvas, do
escritor brasileiro Helder Caldeira, publicada em 2014 pela Editora2
Quatro Cantos, fundada, por sua vez, pelos editores Renato Potenza
Rodrigues e Rosana Martinelli em 2012.
Partindo da compreensão de que “textos não são
necessariamente livros”, sendo estes “uma modalidade de produção,

1
Mestre em Ciências Sociais pelo PPGCS da UFRRJ. Atualmente é doutorando em
Antropologia Social pelo PPGAS da UNICAMP. Pesquisador do Núcleo de Estudos
de Gênero PAGU e do Ateliê de Produção Simbólica e Antropologia. Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
2
Para manter o texto mais fluído, adoto a grafia da palavra “Editora” com inicial em
letra maiúscula para me referir a uma empresa cultural e “editora” com letra inicial
em minúsculo para me referir à profissão.
248 | (Des)Prazer da norma

de conservação e de comunicação do escrito” (Chartier, 1999, p. 107)


dados em uma determinada época, tomo o livro enquanto obra que
deriva do trabalho coletivo de inúmeras pessoas que, em cooperação,
conformam o “mundo dos livros” e afetam não apenas sua produção
como também o seu consumo (Becker, 2010).
Analisá-lo como obra se inscreve, portanto, no trato de sua
textualidade bem como na apreensão dos eventos por ela provocados
ou a ela destinados, correlacionando estas ações e produzindo dois
movimentos simultâneos que operam de modo a dar densidade e
complexidade à leitura proposta. De um lado, escrutino as condições
de possibilidade da vivência da homossexualidade, por parte
dos protagonistas, em uma “narrativa pró-final feliz”. Para tanto,
destaco não apenas a trama destes, mas os disponho em relação às
das personagens secundárias do livro. A partir desta perspectiva,
traço paralelo a respeito das relações afetivo-sexuais – hétero e
homossexuais – existentes no romance. De outro lado, desnudo o
processo de produção, publicação e circulação do livro, evidenciando
as práticas acionadas para a inserção do mesmo na plêiade das
produções simbólicas e culturais por parte de profissionais do livro,
termo mobilizado para agrupar editores, livreiros, tradutores,
críticos, agentes literários, etc. que atuam como mediadores da
relação entre as obras e o público leitor, operando em “sistemas de
categorias de classificação, de percepção e apreciação” (Sorá, 1994,
p. 4) por eles ordenados.
Se o primeiro movimento aponta para a existência de um
trabalho de limpeza moral pelo qual os protagonistas passam, sendo
este dependente da assunção do amor enquanto aspecto fundamental
que apaga as expressões de sexualidade não heteronormativas, o
segundo movimento permite apreender estratégias de construção
de uma agência do objeto aqui analisado que visam permitir sua
circulação com a expectativa de prolongamento da mensagem ali
presente – que, sob esta ótica, deixam de apontar para aspectos
prescritivos para lançar luz a dimensões transformadoras, sendo
seus editores os primeiros leitores e “vítimas” desta transformação.
Desejo | 249

Noite de lançamento

Cheguei ao Instituto Cervantes,3 um pouco depois das


18h, ocorreria o lançamento do livro Águas Turvas, do escritor
Helder Caldeira, publicado pela jovem Editora Quatro Cantos. Seu
lançamento estava inscrito dentro das atividades do Rio Festival
Gay de Cinema,4 evento de exibição de películas de longas e curtas
metragens e documentários de “temática homossexual”. Embora
o Festival estivesse sendo massivamente divulgado, com suas
atividades distribuídas por vários espaços da cidade, com relação ao
livro, chamava a atenção o modo com que a obra havia sido, até aquele
momento, apresentada ao público. Comparando-a com as demais
produções que vinha mapeando, diferentemente destas, não era
possível observar por meio da sinopse sobre a história do romance,
da capa do livro, no site ou clipping de divulgação, elementos que
evidenciassem a tentativa de marcar um “pertencimento” específico
dentro da dinâmica classificatória presente no mundo dos livros,
embora sua inserção no Festival o fizesse pela primeira vez.5
De forma mais precisa, tinha descoberto aquela atividade
por meio do escritor Sergio Viúla, que havia me sido apresentado
pela editora Lea Carvalho, ambos interlocutores de minha pesquisa
de mestrado e importantes atores na defesa e conformação de uma
“Literatura LGBT”.6 Na convivência com eles e por meio das redes
sociais e do blog de Sérgio, tomei conhecimento não apenas do

3
Localizado na Rua Visconde de Ouro Preto, número 62, Zona Sul do Rio de Janeiro.
4
Em geral, após a exibição dos filmes, é frequente a ocorrência de debates com
atores e diretores envolvidos nas produções fílmicas, o que lhes permitia apresentar
seus processos criativos e suscitar discussões sobre temas presentes na dinâmica
social.
5
Em minha dissertação, me detive na percepção da existência de um discurso
promovido por editores e autores que se afirmavam LGBTs (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais) e produtores específicos de “livros de literatura
LGBT”. A investigação tratou-se de uma etnografia da produção e circulação de obras
sob esta rubrica difundidas particularmente por Editoras criadas especificamente
para tanto, mas não apenas (Silva, 2016).
6
Embora outros termos apareçam, utilizo “literatura LGBT” por se tratar da grafia
mais adotada e difundida atualmente pelo conjunto de interlocutores abarcados
em minha pesquisa de mestrado, na qual busquei refletir também acerca dos usos
estratégicos feito destes termos seja no que se referem as suas aproximações e
englobamentos ou diferenciações por parte dos pesquisados. Ver Silva, 2016.
250 | (Des)Prazer da norma

lançamento do livro naquela noite, mas também de um debate onde


ele comporia uma mesa junto com Helder Caldeira, a ocorrer no dia
seguinte ao lançamento.
Chegando ao endereço, estranhei a falta de divulgação
na porta do local sobre as atividades referentes ao Festival e ao
lançamento. A impressão era mesmo de o lugar estar fechado.
Passei pela entrada, que estava vazia, e não encontrei porteiro ou
recepcionista que pudessem dar quaisquer informações. Ao circular
pelo lugar, ouvi um som distante ecoando pela escada. Subi até o
terceiro andar, onde me deparei com um espaço pequeno que mais
parecia ser de passagem do que de permanência ou próprio para
atividades. Notei que seu tamanho não possibilitava a permanência
de um contingente de pessoas expressivo. Se aquelas que fossem ao
evento desejassem ali permanecer, seria difícil devido a sensação de
este constituir-se como espaço de passagem.
Ao “entrar”, avistei o autor, depois de reconhecê-lo pela foto
de divulgação nas redes sociais, posicionado atrás de uma mesa e
à frente de um banner com a imagem da capa do livro. A capa do
romance era composta por uma fotografia de um chão de madeira
rústica ornada com alguns seixos ao lado de um vaso cilíndrico
transparente a conter outros seixos imersos a um líquido aquoso
e três tulipas vermelhas sobre uma parede de pedra ao fundo. Já
o banner trazia a figura de um jovem do sexo masculino trajando
calça e jaqueta jeans e um gorro com a bandeira dos EUA beijando
os lábios de outro jovem também do sexo masculino trajado com
calça jeans e blusa social listrada, estando ambos em uma paisagem
entre montanhas.
Do lado esquerdo do ambiente, uma estante exibia alguns
exemplares do livro e, mais à frente, em uma segunda mesa próxima
a uma pilastra, caixas discretamente posicionadas deixavam ver
outros tantos exemplares da obra a serem vendidas. Dentro da
dinâmica de visibilização de pequenas e médias Editoras, há um
agrupamento de funções que, ao contrário de empresas culturais
de grande porte, operam de modo conjugado a fazer com que a
materialização destas ao público se dê por meio da disposição de
livros sobre uma determinada mesa e a fixação de um banner ao lado
e/ou fundo, sendo este informativo do slogan e contatos da própria
Editora e/ou do livro em destaque ou lançamento.
Na configuração descrita, onde não é possível utilizar recursos
Desejo | 251

que se encontram convencionalmente definidos e distribuídos entre


profissionais, com funções segmentadas, os editores fazem as vias
de distribuidores e livreiros. Longe de soar mera impossibilidade
competitiva, a não possibilidade de desempenho de tarefas específicas
dentro desta atividade coletiva reflete-se aqui em oportunidades de
novas perspectivas (Becker, 2010, p. 31), dentre as quais destaco
os tipos de pesquisas etnográficas que venho desenvolvendo, na
qual é possível captar, em um evento de lançamento, novas formas
organizacionais que conformam mundos da arte.
No momento em que cheguei, o autor concedia uma
entrevista na qual afirmava ser sua obra um “romance de temática
LGBT”, ressaltando serem reais os cenários da narrativa, embora
as personagens fossem todas ficcionais. “Por fim, tem pensado no
próximo livro, uma continuação?”, perguntou a jornalista. “Não
penso em uma continuação. Mas já tenho escrito algumas linhas
do próximo livro”, respondeu Helder. “Também nesta temática?”,
retrucou. “Sim, também na temática LGBT. Acho importante, é um
mercado muito carente”, concluiu o autor. Enquanto a entrevista
ocorria, aproximei-me de Renato Potenza, em pé próximo a Rosana
Martinelli, que trajava sobre a roupa um avental com a logomarca
da Editora e, sentada, repunha os livros que iam sendo vendidos
sobre a mesa.
Comprei o livro e, mediante a impossibilidade de ficar em
algum canto a observar o espaço e as pessoas, esperei a entrevista
terminar para então me encaminhar à mesa onde estava o escritor.
Sorridente, me cumprimentou e perguntou meu nome para
poder autografar o livro. Apresentei-me como pesquisador que
realizava uma investigação sobre mercado e livros de literatura
autointitulados como LGBTs. Helder se interessou por me ouvir,
dizendo possuir conhecimento sobre algumas “Editoras LGBTs”
que pudessem interessar a minha pesquisa, muito embora não as
tenha escolhido para publicar pois “não queria ficar tanto no gueto”,
desejando “ser lido por todos” uma vez que “queria produzir uma
literatura de entretenimento, ser uma Stephenie Meyer ou Nicolas
Spark nacional”.
O acionamento da noção de uma “literatura de
entretenimento” revela a ideia de entretenimento como sinônimo
de fenômeno de vendas, sinalizando para a dimensão mercadológica
do objeto livro. Semelhante ao que foi tratado por Pierre Bourdieu
252 | (Des)Prazer da norma

(1996) no que se refere a uma “alta” e “baixa literatura”, sendo a


primeira pouco lida se comparada à segunda, ao passo em que esta
menos nobre em relação à primeira. A distinção entre suas reflexões
para a que aqui apresento está ensejada nas transformações do
próprio mercado editorial, onde editores e autores contam com
o advento da Internet e mudanças na cadeia produtiva dos bens
culturais. Assim, “literatura de entretenimento” neste artigo não é
pensada em aspectos de gosto estéticos definidos por determinados
agentes, mas como modo classificatório cujo intuito maior é o de ser
publicado, lido e comentado por parte dos leitores e crítica. É sobre
esta lógica que o escritor opera ao escolher uma Editora recém-
criada em detrimento de outras cuja marca, aspecto que objetiva
sempre definir diferenciações e distanciamentos frente às demais
(Sorá, 1997), já se encontravam delimitadas tendo a identidade
sexual e de gênero como elementos de distinção.7
Sobre o processo criativo e de elaboração do romance, Helder
Caldeira disse-me:

Você vai perceber no romance que os personagens são ficcionais,


mas os lugares são todos reais. Eu precisava que a história se
passasse nos EUA porque eu tinha interesse em escrever sobre
aquele lugar, aquele período, sobre uma família republicana para
isso eu fui pra lá, fiz uma longa pesquisa, pedi autorização para
reproduzir os cardápios dos restaurantes. Uma curiosidade é que,
em uma parte do livro, os personagens trocam e-mails. Eu criei
endereços eletrônicos reais. Alguns leitores mandam e-mails não
para mim, mas para os personagens. Eu os respondo, mas não
se trata de continuação da história, apenas dou algumas pistas,
desdobramentos possíveis. As histórias, como as vidas, seguem:
não é bacana?

Neste ponto, realidade e ficção, elo sobre o qual a literatura


estaria frequentemente tensionada, assumem fronteiras pouco
definidas nas quais o aspecto relacional sobressai-se na perspectiva
entre criação e invenção, visto que, como informa o filósofo francês
Jacques Rancière, “a ficção não é o oposto da realidade, mas a
construção de um senso da realidade” (2010). O debate sobre ficção e
realidade diz respeito à própria conjectura social sobre as quais a arte

7
Sobre a conformação dessas Editoras, ver Silva, 2016.
Desejo | 253

se encontra compreendida em dada sociedade e período histórico.


Deste modo, a concepção de arte localizada a partir do século XIX
ainda parece fazer ecoar a ideia de arte como “um domínio especial
de criatividade, espontaneidade e pureza, um reino de sensibilidade
refinada e de ‘gênio’ expressivo”, onde “o ‘artista’ era posto à parte
da sociedade, frequentemente contra ela – quer fosse ‘do povo’ ou
‘burguês’” (Clifford, 1994, p. 81).
O que está em jogo aqui, não apenas nesta fala do autor,
mas em outras e também na de seus editores, como mostrarei mais
adiante, visa pensar a obra permeada por valores exteriores que
refletem sobre a importância da obra artística na/para a sociedade,
mas também põe em xeque pensá-la segundo essas percepções ou
não, deixando aos leitores suas próprias construções na relação com
o objeto artístico (Becker, 2010, p. 37 e pp. 43-44).
Ao ser perguntado sobre os personagens principais e o enredo
sobre o qual versa o livro, Helder me respondeu: “Eu acredito, como
na novela que acabou há pouco, em um processo de humanização
dos personagens [homossexuais], de sensibilização mesmo, para
que sejam assimilados”. O autor se referia à novela exibida pela TV
Globo, intitulada Amor à Vida, exibida entre maio de 2013 e janeiro
de 2014. O antagonista, alardeado como o “primeiro vilão gay da
TV”, passa por uma sequência de acontecimentos que lhe redimem
de suas “vilanias”, fruto de intempéries sobre as quais suas ações
passam a estar de certo modo justificadas a ponto de merecer “um
desfecho com final feliz”.
As antropólogas Iara Beleli (2007; 2009) e Heloisa
Buarque de Almeida (2007; 2012; 2014) vem produzindo trabalhos
instigantes a respeito do modo como produções televisivas, junto
com a publicidade e a propaganda, tem mobilizado aspectos
de gênero, corpo e sexualidade. De acordo com Buarque, uma
“pedagogia feminista” adentrou a teledramaturgia brasileira a
partir do seriado Malu Mulher, exibido pela TV Globo entre 1979
e 1980. Correlato a isso, o tema da homossexualidade também
ganhou espaço de forma inovadora na televisão (Almeida, 2014,
p. 290), estando ambos os elementos vinculados ao próprio
desenvolvimento do debate feminista no país, iniciado nos
meados dos anos de 1970 (Heilborn & Sorj, 1999). No contexto de
produções televisivas mais recentes da TV Globo, como as novelas
Páginas da Vida (2006) e A Favorita (2008), Beleli argumenta que
254 | (Des)Prazer da norma

se nota um “encapsulamento dos personagens gays e lésbicas em


um modelo de família [que] parece ser um recurso utilizado para
aproximar ainda mais esses sujeitos das convenções estabelecidas”
(2009, p. 128).
Inspirado nos trabalhos de Almeida e Beleli traço uma
análise do romance escrito por Helder Caldeira para compreender
como, no processo intitulado pelo escritor como “de humanização”
e “de sensibilização”, um somatório de perdas afetivas e violência
sexual acometida sobre o protagonista da história lhe destitui a
condição de pessoa, somente reconstituída por meio da aquisição
de um relacionamento que avança para um casamento, adoção de
um filho e vínculos familiares normativos. Dentro desta perspectiva,
enunciarei de que forma certa concepção de amor é mobilizada
como elemento que se intersecciona a elementos de classe, gênero,
nacionalidade, território e sexualidade. Neste escrutínio, é possível
observar o apagamento da sexualidade homossexual quando
contrastada com a sexualidade de personagens heterossexuais
também presentes no enredo.

Escavando escrituras

Águas Turvas narra a história de Gabriel Campos. Nascido


em uma cidade da região serrana do Estado do Rio de Janeiro, o
rapaz é descrito como dono de um par de olhos tom de mel, “um
metro e oitenta e cinco, corpo atlético esculpido pela lida de uma
vida no sítio, traços faciais de grande delicadeza, um cabelo curto cor
de chocolate e com as pontas completamente desfiadas” (Caldeira,
2014, p. 28). Filho único, criado na zona rural, cresceu sozinho
tendo como diversão os animais e um amigo imaginário. Ainda
neste ambiente, começou a ter “suas primeiras experiências sexuais
solitárias” (Caldeira, 2014, p. 20) escondido entre as sombras das
copas de volumosas árvores. Desenvolveu seu erotismo em meio a
beijos praticados em pedras retiradas do riacho cujo trajeto dividia
ao meio o sítio onde morava com seus pais, um agricultor e uma
dona de casa.
O fato de ter crescido sozinho é narrado como tarefa difícil,
causando sensação de não caber dentro na vida rural. Ao longo
do tempo, essa sensação constitui-se como um impasse para a
Desejo | 255

realização dos desejos do personagem e motivo de conflito familiar,


superado ao comunicar aos pais a vontade de se tornar médico e
sair daquele ambiente. Gabriel sai de casa aos vinte e cinco anos, se
mudando para Petrópolis quando dá início aos estudos na Faculdade
de Medicina. A transição da vida rural para a vida urbana implicará
em uma mudança de perspectiva; a cidade se revela como “um
mundo de socialização possível” que “permite superar a solidão
tanto quanto protege[r] o anonimato” (Eribon, 2008, p. 34).
As práticas e experiências até então desenvolvidas em
relações de amizade fruto da imaginação e de incursões sexuais
erotizadas com pedras passam a ser contrastadas com aquelas
desenvolvidas com seres humanos. Morar em um apartamento com
outros dois estudantes de medicina, um oriundo de Minas Gerais
e outro de São Paulo, evidenciará esse trânsito de aprendizagens
entre a “anatomia humana e a anatomia da sociedade” (Caldeira,
2014, p. 21). As relações desenvolvidas com seus dois colegas
de faculdade e moradia incitarão a realização dos desejos e das
fantasias da personagem.
Pelo colega de Minas Gerais, Gabriel não desenvolve qualquer
frenesi afetivo-sexual, tendo-o, sim, nutrido e desenvolvido por seu
colega vindo de São Paulo. Na urdidura do afã, correlaciona-o aos
enredos amorosos ficcionais de romances de Jane Austen, “que
o encantaram na adolescência, onde o confronto romântico dos
sentimentos é adornado por uma espécie de sermão dramático,
permeado de preconceitos e orgulhos tolos, mas que sempre
colocam em duelo o racional e o passional de cada personagem”
(Caldeira, 2014, p. 22).
A evocação feita pelo autor a Jane Austen na narrativa não
deve passar a largo. Por meio desta, é possível inferir vinculações,
manutenções ou remodelamentos presentes no enredo, herdadas
de realidades capturadas em romances do passado (Said, 2011).
Autora inglesa do século XVIII e início do século XIX, Jane Austen
traz em suas obras um debate caro à época no qual a racionalidade
se contrapunha à sensibilidade, cabendo à literatura refletir,
representar e propagar preceitos morais e sociais com finalidades
instrutivas em um contexto onde a ficção adquire importante status
simbólico na Inglaterra do período (Said, 2011).
De modo correlato, o que se apresenta no livro é um
personagem atravessado pela descoberta de seus desejos sexuais.
256 | (Des)Prazer da norma

Nota-se um delicado impasse acerca do modo pelo qual a elaboração


de tais sentimentos pode ser dada uma vez que o objeto de desejo
é seu amigo de moradia e faculdade, um rapaz descrito como
heterossexual. As madrugas varadas a velar o sono deste colega, e
o brilho nos olhos toda vez que percebia neste uma ereção noturna,
representa um momento de descoberta dos próprios desejos,
tensionado quando percebe estar sendo observado pelo colega
mineiro. A tentativa de superação deste encontro entre o desejo e a
repressão, instaurados por outrem, se dará, por parte de Gabriel, ao
aceitar namorar duas das amigas do mineiro dentre as muitas que
este insistentemente passa a lhe apresentar.
O protagonista é descrito em toda a trama dentro das
performatividades de gênero cristalizadas socialmente. Sobre
esta perspectiva, aceitar um namoro heterossexual arranjado diz
respeito à reafirmação desta condição de inteligibilidade, alicerçada
na noção de uma heterossexualidade compulsória, por meio de um
reordenamento e vinculação coerente entre o seu sexo biológico
e seu gênero, bem como os efeitos que produzem, expressos por
meio do seu desejo e prática sexual (Butler, 2003). Esta posta uma
vigilância: as ações controladoras do amigo mineiro cerceiam as
fantasias de Gabriel com o colega paulista, só podendo ocorrer
quando o sono do amigo lhe retirava sua “reprovação, vigilância
ou até mesmo alguma tara sexual reprimida ou puro voyerismo”
(Caldeira, 2014, pp. 22-23).
Esta condição adquire novos contornos com a morte do
pai de Gabriel, episódio ocorrido próximo à sua formatura e que
o colocará na função de cuidar de sua mãe, deprimida. Destarte, o
luto desencadeia mudanças no comportamento do personagem.
O esmorecimento dos seus desejos em relação ao amigo paulista
se dá ao passo em que também ocorre o rompimento de seus
relacionamentos heterossexuais, espécie de imbricação repressiva
imposta pelo amigo mineiro. Ambas as ações parecem, ademais,
vinculadas à ausência do elemento central observado pelo
protagonista em sua família de origem: diferentemente de seus pais,
suas relações pareciam desprovidas de amor.
O distanciamento e recusa em comungar dos ritos para
com seus colegas de apartamento e mesmo com as do término da
graduação são apontados como reações ao sofrimento de Gabriel. A
entrega do apartamento, as notícias sobre a partida dos dois amigos,
Desejo | 257

cada qual para seu Estado de origem e a sua para o Rio de Janeiro a fim
de iniciar residência médica se dão sem grandes elucubrações. Era o
ponto final de uma fase repleta de desejos e fantasias imaginadas
em um momento pessoal, encerradas bruscamente pela perda de
laços sanguíneos e reflexões afetivas decorrentes, sobrepostas as de
cunho sexuais até então evidenciadas.
Ao retornar para o seu apartamento depois das obrigações
com a morte do pai e a faculdade, o jovem médico decide tomar
um longo banho quente. Crendo estar sozinho, e imerso em seus
pensamentos, o rapaz não percebe quando seu amigo mineiro
invade o banheiro e, nu, o imobiliza se utilizando de agressões
físicas e ameaças de morte. Sobre a alegação de que receberia,
enfim, o que sempre havia desejado e o que gostava, Gabriel tem sua
primeira relação sexual, aos trinta anos de idade, com outro homem.
Materializada na forma de um estupro, a cena é descrita seguida
por um desmaio, ficando submerso sobre águas “tão quente quanto
aquela em que sua mãe enfiava os frangos mortos para depená-los”
(Caldeira, 2014, pp. 25-26).
Pode-se entender a violência acometida como um mecanismo
mimético de educação moral. Este último evento soma-se aos
anteriores para reforçar processos repressivos quanto à sexualidade.
Ao extremo, a falha na imposição de um rearranjo entre desejo,
sexualidade e gênero parece desembocar no processo de sofrimento
que permitirá ao escritor do romance propor o que considera como
“processo de humanização da personagem”.
Nos dois anos subsequentes ao ocorrido, Gabriel muda-se
para o Rio de Janeiro onde consegue fazer um curso de inglês para
ir morar nos Estados Unidos a fim de esquecer o passado que o
assombrava (Caldeira, 2014, p. 27). Desembarcar no aeroporto de
Boston marca a esperança de construir novos rumos, explícitas na
“sensação daquele que acaba de nascer” (Caldeira, 2014, pp. 26-
27) e se encontra prestes a conhecer coisas novas. Balizado pela
ideia do tempo como elemento que impõe aos seres a “liberdade e
responsabilidade de sermos nós mesmos e tomarmos nossas próprias
decisões” (Caldeira, 2014, p. 19), a constituição do protagonista
enquanto pessoa parecerá vinculada a esse deslocamento territorial,
saindo do Brasil e indo morar e estudar nos Estados Unidos.8

8
Os sucessivos descolamentos territoriais do personagem de cidades pequenas
258 | (Des)Prazer da norma

Uma vez nos EUA, Gabriel Campos é recepcionado por sua


tutora de especialização e residência em cardiologia, Nancy Taylor,
que lhe arranjará moradia na parte não mais utilizada da casa de uma
paciente e amiga, a viúva septuagenária Gertrude Rose. Com elas o
rapaz terá novamente a possibilidade de desenvolver relações de
amizade e familiares (Caldeira, 2014, p. 67 e p. 73), respectivamente.
Nota-se, a reconstituição dos elos que constituem um sujeito em
sociedade bem como a presença de uma rede de interações que
passam a imprimir outras dimensões morais que o instigam a
ação (Caldeira, 2014, p. 70). Chama a atenção, neste processo, o
fato dessas relações familiares não se encontrarem alicerçadas por
noções de consanguinidade ou parentesco, mas alijadas na esfera do
afeto: enquanto sua tutora torna-se uma amiga (Caldeira, 2014, p.
67), sua locatária assume status de “avó adotiva” (Caldeira, 2014, p.
73). E um novo integrante surgirá em seguida.
Próximo a um acidente de carro, o médico salva a vida de
Matthew Genezen. De origem belga, nascido em Turnhout, Antuérpia,
na região de Flandres, o menino morou até os 12 anos neste país
(Caldeira, 2014, p. 14) e havia acabado de chegar aos EUA com sua
mãe, Sybille. A missão desta era encontrar o pai do jovem para que
ele lhe ajudasse a cuidar do futuro do filho, fruto de uma relação
extraconjugal (Caldeira, 2014, pp. 82-86).9 Com a morte da mãe
do menino, única parenta do qual Gabriel possuía conhecimento, o
médico acaba por desenvolver um profundo afeto para com o menino,
dedicando-se a permanecer meses em seu quarto no hospital até que
enfim despertasse do coma.
Ao longo da história, desvenda-se o fato do menino ser
biologicamente filho ilegítimo de Edward Thompson, o que o
levaria a condição de irmão de Justin Thompson, personagens que

para cidades cada vez maiores representam um novo contexto e situação onde a
identidade deste pode ser construída, reconstruída ou apagada em uma tentativa
de fuga à estigmatização (Guimarães, 2004, p. 63). Semelhante às análises de Eribon
(2008, p. 31), parece haver, nesta ocasião, ainda a prerrogativa de que “um dos
princípios estruturantes das subjetividades gays e lésbicas consiste em procurar os
meios de fugir da injúria e da violência, que isso costuma passar pela dissimulação
de si mesmo ou pela emigração para lugares mais clementes”.
9
Como narra Matthew, Sybille possuía uma empresa de produção de chocolates que
faliu após sucessivas crises econômicas, o que os fizeram migrar da Bélgica para os
EUA em busca do pai biológico do menino que desconhecia sua existência.
Desejo | 259

apresentarei mais adiante e que seriam, respectivamente, o sogro


e o namorado de Gabriel. Ocorrerá, no entanto, uma recusa do
jovem menino a essa condição de parentesco genético em prol da
filiação a Gabriel e Justin como seus pais. Entretanto, cabe apontar
que, diferentemente do observado por Barbara Yngvesson (2007)
em pesquisa sobre adoções em contexto transnacionais, aqui não
se nota tensões com relação à identidade nacional do adotado e
muito menos com a do adotante. Igualmente, não há a tentativa de
cisão entre a família denominada como “real” ou “natural”, porque
ensejada na dimensão da consanguinidade, da família adotiva.
Não se opera, por fim, na proposta de omissão da existência
desses laços sanguíneos por parte da família adotiva uma vez que
essa chave diz respeito à própria natureza da narrativa onde é o
adotado que a revela, por conhecer sua história desde o início, e
acaba por optar pela adoção ao invés de decidir por se incorporar
aquela que poderia ser lida como sua “família de sangue” dos EUA ou
ainda pela volta para a Bélgica para viver com o avô materno.10
A afetividade aparece sobreposta a consanguinidade, na
qual noções de parentesco podem ser pensadas, por exemplo, como
relações intensas oriundas de vínculos de amizade ou de pertença
comunitária (Butler, 2003).11 A emergência de uma família não
heterossexual na narrativa se dá mediante a reconfiguração de
uma família heterossexual e biológica/geneticamente interligada:

10
“Muito além da relação estabelecida pelo destino, havia uma força inexplicável que
unia Gabriel e Matthew. Na maioria das vezes, os laços que unem verdadeiramente
duas pessoas não precisam estar expostos a causas ou esclarecimentos. Eles
simplesmente existem. Ou passam a existir. Também não são necessários grandes
movimentos ou feitos para que essas relações se descortinem entre as pessoas. Às
vezes, basta um olhar, um aperto de mão, uma expectativa. Trata-se de uma energia
silenciosa e harmônica, em que qualquer explicação estaria aquém de sua real
dimensão” (Caldeira, 2014, p. 146).
11
Como na seguinte passagem: “Hoje estou prestes a completar quinze anos e vivo
bem com essa nova família, que há três anos está se desenhando à minha volta. Ainda
acordo todas as manhãs e sinto o cheiro do chocolate da minha mãe, num anuncio
de que essa saudade é uma daquelas lacunas que jamais conseguirei preencher
(...) Por outro lado, descobri um pai incrível, carinhoso, inteligente, companheiro
e leal. Um homem de sinceridade rascante e generosidade espontânea. Corajoso e
determinado naquilo que lhe parece correto e impiedoso com o que julga errado.
É uma daquelas pessoas raras que consegue, com maestria, mesclar ousadia com
um comedimento polido. Sobretudo, meu melhor amigo” (Caldeira, 2014, pp. 14-15,
grifos do autor).
260 | (Des)Prazer da norma

a família Thompson que, a seguir, pretendo apresentar e analisar.


Para isso, como se verá, será preciso recuar um instante.
Dentre os encontros com novas pessoas, o mais significativo
se dará com o outro protagonista do livro. Justin Thompson, rapaz
com idade aproximada a de Gabriel, acidentalmente lhe esbarra no
saguão do aeroporto. Dono de um par de olhos azuis, também com
um metro e oitenta e cinco, cabelos curtos e lisos em tom castanho-
claro, “corpo escultural, mas sem exageros, era valorizado por roupas
levemente justas, deixando alguns músculos visíveis” (Caldeira,
2014, p. 32). O encontro representará um marco para o personagem.
Fruto da circunscrição relacional com o outro, e ensejada pela
discursividade emocional outrora perdida com a morte dos pais e
violência sexual, o encontro entre os dois personagens impulsionará
novamente as centelhas do desejo (Caldeira, 2014, pp. 29-30).
Apesar da ausência na narrativa no que se refere a
relacionamentos afetivo-sexuais com outros homens por parte de
ambos os protagonistas (a exceção do estupro), será este primeiro
encontro inesperado no saguão do aeroporto que desenhará o
mote da trama a partir de então: a expectativa de que a sucessão
dos desencontros entre os protagonistas ceda lugar ao encontro
derradeiro que possibilite a concretização amorosa dos dois
rapazes. Antes de expor esse acontecimento, contudo, cabe-me
apresentar a história de Justin e de sua “família de republicanos do
norte: uma espécie liberal-conservadora avançada” (Caldeira, 2014,
p. 50) que gira em torno do patrimônio automotivo construído
pelo patriarca, mas que será abalado pela crise econômica norte-
americana de 2009.
Justin é o segundo filho de Catherine e Edward Thompson.
Seu irmão mais velho, Ethan, é casado com Helen e seus conflitos se
desenvolvem na cobrança familiar para que estes consigam gerar um
herdeiro (Caldeira, 2014, p. 41). Sua irmã caçula Nicole, por sua vez,
tem dezessete anos e sua trama gira em torno da relação que passa a
ter com Christian Taylor, homem de quarenta e três anos e professor
de História recém-chegado de Los Angeles à Holden, nome da escola
e cidade onde a trama passa a ocorrer.12 Por fim, somos apresentados

12
Os conflitos se darão no desejo de Christian em manter o relacionamento às
escondidas.
Desejo | 261

à Mildred e seu marido, John Collins, tios paternos de Justin.13


Diferentemente de Gabriel, a orientação sexual de Justin se
constitui como um dado para o núcleo onde o mesmo encontra-se
inserido. Ela é questionada e inferiorizada moralmente por seus
tios, que pejorativamente o chamam de “mulherzinha” e “bichinha
arrogante” (Caldeira, 2014, pp. 51-52), muito embora seja apreendida
pelos demais familiares segundo outros aspectos. Por sua irmã, por
exemplo, de modo a produzir uma concepção essencialista na qual o
jovem seria “a única pessoa que conseguia acessá-la, de fato, em seu
íntimo” devido ao “fato de ele ser gay e ter um nível de sensibilidade
e compreensão um pouco acima da família” (Caldeira, 2014, p. 72).
Já em uma discussão com seu irmão mais velho, não se observa a
referência à sexualidade como estigma, mas sim a sua solteirice, uma
vez que esta condição o impossibilitaria de opinar sobre questões
amorosas posto que ausente destas (Caldeira, 2014, pp. 42-43). Por
fim, na relação com sua mãe observa-se uma explícita cumplicidade
por meio da qual esta deixa nítida sua confiança no filho bem como
revela seu desejo de que ele encontre um bom rapaz para um
relacionamento.14
O personagem possui, desde o princípio, aquilo que Gabriel
só adquire quando adulto e morando nos EUA: relações que lhe
permitam constituir uma identidade de modo que sua sexualidade
esteja circunscrita, porém não encerrada nestas. Não à toa, o
primeiro desencontro entre os protagonistas se dará justamente
por uma interpretação errônea de Gabriel. Ainda no aeroporto, ao
ver o executivo abraçar afetuosamente ao seu irmão que acabara de

13
Tendo perdido subitamente seu único filho, o que os teria abalado profundamente,
se autodeclaram como “verdadeiros republicanos”, muito embora falidos e
dependentes dos negócios de Edward. Serão estes últimos os personagens
simbolicamente construídos para trazer a narrativa os “aspectos morais
conservadores”. Como no fragmento onde a tia sexagenária estigmatiza a toda a
família: “– Agora eu quero só ver... – espalmou as mãos aos céus. – Que fim terá
essa família, meu Deus? Um casal jovem que não consegue colocar filhos no mundo,
um filho marica e uma pequena vadia loira. Onde pensam que vão chegar assim?”
(Caldeira, 2014, p. 53).
14
A naturalidade com que esta lhe pergunta sobre se haveria surgido um possível
pretendente ao coração do jovem, e a assertiva deste de que sim, os faz ficar “na
cozinha por longo tempo (...) Justin relatou a Cathy todos os detalhes daquela
história que nascera sob a égide do destino, várias vezes foram às gargalhadas com
os encontros e desencontros dos dois rapazes” (Caldeira, 2014, pp. 115-116).
262 | (Des)Prazer da norma

retornar de viagem, os interpreta como um casal de namorados.


Três meses após o primeiro e desajeitado encontro no saguão
do aeroporto, os protagonistas novamente voltam a se encontrar
acidentalmente em um restaurante, acabando por jantar juntos.
Estando “à mesa, dois homens dominados pela força ancestral das
emoções, aquelas que nos fazem reconhecer, desde a primeira vista,
as pessoas que podem nos acompanhar pelo resto da vida” (Caldeira,
2014, p. 87). Ainda que as más interpretações surgidas do primeiro
encontro sejam desfeitas, novamente a narrativa confluirá em um
jogo de aproximações e distanciamentos entre os protagonistas.
Trata-se, aqui, da ação do médico em salvar a vida daquele que
viria a se tornar seu filho adotivo, já descrito anteriormente. Após
este segundo desencontro, os jovens só voltarão a se encontrar
após quatro meses devido à procura de Justin e aceite de Gabriel,
incentivado mais uma vez pela rede de relações que constrói, e agora
acrescida por Matthew.
O jovem médico reflete sobre a paixão desperta, fato inédito
em sua vida e descrita como fruto da coragem para “desenterrar
aquele coração refém do medo primaz de sofrer” (Caldeira, 2014,
p. 151). Seu encontro com Justin se dá não mais em “um momento
desenhado pelo destino”, mas em um ato “milimetricamente
elaborado, pensado, calculado” de modo que “não era necessário dizer
nada. Em momentos, quando as palavras faltam ou são dispensáveis,
o império do silêncio é um impulso as ações que clamam” (Caldeira,
2014, p. 152).
Posto que “já tinham esperado tempo demais para aprofundar
aquela história” (Caldeira, 2014, p. 161), este encontro, diferente
dos outros dois anteriores, produzirá uma continuidade sem novos
intercursos até o término da narrativa. Insere-se, assim, na trama, a
existência de uma relação que segue se aprofundando entre os dois
homens. Em continuidade ao primeiro beijo entre os personagens,
tem-se a primeira relação sexual homossexual de Gabriel Campos
(Caldeira, 2014, p. 161) dentro da noção de consentimento que, neste
contexto, envolve elos afetivos capazes de reconstruir as memórias
que constituem parte significativa dos processos de subjetivação:

O dito popular garante que a primeira vez jamais é esquecida. É


fato. No entanto, essa afirmação tende à restrição de um único
momento da vida. Na verdade, trata-se de uma certeza de maior
Desejo | 263

amplitude: ainda que não seja a primeira vez, há sempre aquela


que merece a eternidade.
Foi com essa convicção que Justin e Gabriel acordaram naquela
manhã de domingo, ouvindo a chuva cair sobre Pine Hill e o vento
cantar por entre as pedras e rochedos. Nenhum deles sequer
cogitou a possibilidade de levantar do conforto daquela cama. Não
tinham a menor noção das horas. Não queriam ter. O amor os tinha
dominado (Caldeira, 2014, p. 164).

É perceptível, seguindo uma perspectiva comparada, a


diferença entre a descrição no que se refere à concretização sexual
dos protagonistas com as vivenciadas por Nicole, a jovem de
dezessete anos, irmã de um deles, e Christian, professor do colégio
onde a moça estuda, de quarenta e três anos. Embora também
apresentadas como fruto de uma paixão à primeira vista, a estes
cabem maiores enredos sobre suas relações sexuais, seja dentro do
banheiro da biblioteca ou abrasados na casa de inverno da família
Thompson. Se os protagonistas são descritos como um casal que
pensa em “saborear cada beijo de amor que ainda não foi dado”
(Caldeira, 2014, p. 161), Nicole e Christian fazem “amor feito feras
selvagens (...) entocados no banheiro dos funcionários” da biblioteca
(Caldeira, 2014, pp. 118-119). Enquanto “abraçar a pessoa amada e
desejar a eternidade” em “um lugar mais quente e reservado, onde
pudessem namorar até a noite cair” (Caldeira, 2014, p. 161) é o ápice
da explicitação afetivo-sexual destinada à Justin e Gabriel, ao outro
casal emergem cenas nas quais:

Sem camisa e com a calça aberta, Christian sentou no vaso sanitário,


em êxtase e admirando sua bela conquista, ela colocava de volta a
delicada calcinha, passando as mãos sobre a barra do vestido roxo,
tentando se recompor depois de todo aquele frenesi [...] Seus corpos
ainda estavam sob o efeito daquela feroz relação sexual (Caldeira,
2014, p. 119 e p. 121).

Intui-se certo ocultamento da sexualidade no que se refere


às experiências individuais dos dois protagonistas e também destes
quando um casal de namorados. Ao mesmo tempo, a constituição
do relacionamento entre Gabriel e Justin e sua formação familiar
se desenvolve na eminência de um declínio da estrutura familiar
de origem deste último personagem. Se, por um lado, não se veem
264 | (Des)Prazer da norma

esboçados atributos sexuais que chamem atenção, por outro, se


ergue uma estrutura familiar inserida não na consanguinidade,
mas nos afetos. Esta reverbera na família Thompson e em sua
reconfiguração mediante o declínio.
A tia do protagonista, Mildred, é descrita como uma
mulher amargurada pela morte do filho e inconformada de
depender economicamente de seu irmão. Junto a seu marido, John,
funcionam como apêndice da família de seu irmão. Ethan tenta
uma manobra escusa para se apropriar do controle da empresa da
família, assumindo o lugar de seu irmão, Justin, como presidente
da empresa. Helen, esposa de Ethan, tem seu enredo desenhado
em torno do seu vício em compras, forma de fuga aos problemas
impostos pela cobrança por parte do marido e de seus familiares
para que gere um herdeiro.
Não desejar ser mãe a desloca do ordenamento naturalizado
na sociedade euro-americana (Strathern, 1995), de modo que este
ato representa o rompimento da lógica constitutiva da parentalidade,
ou seja, modo pelo qual relacionamentos íntimos são estabelecidos
e nos quais ocorre a união de partes distintas que estão, todavia,
instauradas nas diferenças entre os gêneros. Seu agenciamento se
dá não apenas pelas compras, mas por meio do uso de remédios
abortivos. Por sua vez, o pai do protagonista, Edward, é condenado
pela família quando esta descobre que ele teve um filho fora do
casamento. Sua esposa, Catherine, passa a ser assolada pelas
lembranças de um amor do passado e decide ir atrás desta relação.
A filha caçula do casal, Nicole, tem um tórrido caso com um homem
mais velho que teme assumir o relacionamento e com o qual, após
muitos conflitos, decidem levá-lo secretamente até que a moça
assuma a maioridade.
É possível, nesta seara, ainda investir na reflexão sobre os
modelos de masculinidade presentes na obra tendo como referência
as análises de Miguel Vale de Almeida (1995, 1996). Segundo o autor,
as emoções e os sentimentos costumeiramente são apresentados
como elementos dados ao feminino enquanto que a racionalidade
competiria ao masculino. No que concerne aos personagens
masculinos, nenhum deles se inscreveria diretamente dentro de
uma cultura da masculinidade por meio das ações que as constitui
(Almeida, 1995; 1996, p. 12). Pensando as personagens dentro de
um contexto específico e relacional, o que se teria é um processo no
Desejo | 265

qual a figura do patriarca, Edward, seria, em um primeiro momento,


passível de ser enquadrada como expressão de masculinidade
hegemônica. Contudo, ele é destituído desta condição ao se ter
revelada sua relação extraconjugal bem como sua não ajuda ao filho
ilegítimo. Esse acontecimento será alçado como um desvio moral
que lhe esvazia de sua condição de modelo hegemônico.
Ethan, o filho mais velho, irá expressar sua condição
subordinada ao tentar ascender na empresa da família por meio de atos
escusos e em parceria com seu tio, também em condição subordinada,
voltando-se contra seu irmão. Christian, por sua vez, é descrito como
um quarentão irresponsável e imaturo emocionalmente. Justin e
Gabriel encontram-se impossibilitados de ascender à masculinidade
hegemônica devido a sua homossexualidade. Esta elaboração é
visada no romance por meio do apagamento das expressões de suas
homossexualidades como elementos de aspectos condenatórios
(Almeida, 1996, p. 12), em que pese classe e raça como marcadores
basilares para a construção de uma masculinidade hegemônica das
personagens que não se concretiza em sua totalidade.
É em relação aos casais heterossexuais que o casal de
protagonistas ascende como espécie de modelo positivado, muito
embora tal empreendimento pareça ser consolidado por meio da
destituição de variáveis críveis, como as de perspectivas sexuais, por
exemplo, estando alocados em uma imaculabilidade que os exime de
qualquer tom moralmente condenável. A consolidação destes sobre
o signo familiar, com a adoção de um filho, marca, em contraponto,
a reconfiguração das demais relações familiares presentes na obra,
todas heterossexuais e rubricadas por noções de filiação biologizante.

Debatendo a “Literatura LGBT”

No dia seguinte ao lançamento do livro, ocorreu na livraria


Travessa do Shopping Leblon,15 um debate denominado “A Literatura
LGBT”, com Helder Caldeira e Sergio Viúla, autor de dois livros
autoclassificados como de “temática LGBT”. Nesta noite de domingo,
Sergio iniciou o debate apresentando historicamente a existência de
uma “literatura homossexual”, fazendo um recuo a Grécia Antiga para

15
Também localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.
266 | (Des)Prazer da norma

trazer à baila a poetisa Safo de Lesbos, que teria escrito poemas de


amor para uma de suas pupilas. Em contínuo, o autor citou um poema
de Fernando Pessoa, referendou Oscar Wilde até se encaminhar para
o contexto brasileiro.
Na literatura nacional, apresentou o livro O Bom-Crioulo, do
escritor Adolfo Caminha, publicado em 1895, como sendo o “primeiro
romance homossexual brasileiro e, possivelmente, mundial”.16 Em
seguida transitou entre outras obras e autores até encerrar com
o livro de Helder Caldeira. Em seu ato, ficava explicito o processo
de construção genealógica de pais fundadores do que se intitula
“literatura de temática LGBT”.
Autores, editores, ativistas, críticos literários e acadêmicos
têm operado elencando expressões de gênero, sexo e sexualidade
em narrativas ficcionais anteriores não somente à construção da
figura do homossexual, historicamente descrita por Michel Foucault
(2014), como pelo próprio debate identitário no Brasil, ocorrido
apenas a partir dos anos 1970. Atuando como colecionadores,
observa-se um processo onde “os diversos fatos e experiências são
selecionados, reunidos, retirados de suas ocorrências temporais
originais”, recebendo “um valor duradouro num novo arranjo”
(Clifford, 1994, p. 79) que contribui para conformar a constituição
do que deliberam enquanto uma “cultura identitária LGBT”.17
Tal mobilização inicialmente desponta no país no âmbito das
políticas públicas, sobretudo a partir dos anos de 1990, quando as
reivindicações do movimento LGBT deixam de estar restritas ao
âmbito da saúde e se ampliam na busca por garantias de outros
direitos (Facchini & França, 2009; Aguião, 2014) e na imbricação
entre movimentos sociais e mercado de consumo (Simões & França,
2005; França, 2006, 2012).

16
Venho dedicando atenção para o que denomino como o estabelecimento de
uma insígnia do primeiro, elemento que visa inaugurar um campo discursivo,
uma realidade, de modo que ser “a primeira obra”, a despeito da qualidade e das
condições históricas de sua produção, visa envolvê-la de valores mais autênticos
apenas por esta condição. Ver Silva, 2016.
17
Tal definição aparenta ter mais relação com certa instrumentação política
do termo “cultura” do que com a ideia de cultura na Antropologia, tratando-se,
portanto, menos de um conceito e mais de um instrumento de reivindicação política
e, neste sentido, volátil.
Desejo | 267

Neste cenário, torna-se possível endossar o argumento


de James Clifford (1994) ao afirmar que “coletar, pelo menos
no ocidente, onde geralmente se pensa o tempo como linear e
irreversível pressupõe resgatar fenômenos da decadência ou perda
histórica inevitáveis: a coleção contém o que ‘merece’ ser guardado,
lembrado e entesourado” (Clifford, 1994, p. 79) na construção de
uma memória e de um grupo específico dotado de uma história que
se quer singular.
Assim, afora as obras, outros modos de classificação utilizados
têm sido aqueles que inserem escritores já canônicos no campo
literário como “autores (de obras) LGBTs” por terem tido práticas
sexuais não heterossexuais, vinculando suas experiências pessoais
às produções textuais, tais como os escritores contemporâneos o têm
feito. Este fenômeno tem se dado não apenas por autores, editores e
críticos, como também em trabalhos acadêmicos de intelectuais das
mais diversas áreas do conhecimento.
O que parece consenso é a lógica na qual o fazer artístico
encontra-se vinculado ao próprio fazer-se, de modo que elencar e
requisitar a reclassificação de obras sobre o escopo da identidade
sexual e de gênero a qual teria pertencido seus autores, diz respeito
à construção da vinculação entre uma biografia da obra com uma
biografia de seus produtores (Kopytoff, 2008, p. 110).
É importante salientar que embora haja esta revisitação
e acionamento daqueles que hoje são considerados escritores
clássicos por parte do Sergio Viúla, por exemplo, Helder Caldeira
marca o desejo de produzir uma “literatura de entretenimento”. Esta
classificação imprime uma forma de visualizar a oposição traçada por
Bourdieu (1996) sobre “alta” e “baixa cultura” de modo instigante. Se
Sérgio propõe uma vinculação biográfica entre a vida dos autores e
suas obras de modo externo, ou seja, sem partir destes, para Helder
esta vinculação varia de acordo com os rendimentos da empreitada.
Ou seja, embora o valor artístico não esteja sendo questionado, o que
se vislumbra é a oposição entre aspectos de prestígio e vantagens
econômicas, confirmando a percepção de que formas de se classificar
vinculam-se ao ato de consumir (Douglas & Isherwood, 2004) e de
se posicionar no mundo.
Após a intervenção de Sergio Viúla, Helder Caldeira falou
brevemente sobre seu livro, enfatizando sua satisfação ao tomar
conhecimento que tem sido lido por jovens do interior da Bahia e
268 | (Des)Prazer da norma

de demais lugares interioranos do país. Falou da necessidade de


existência de uma literatura que retrate possibilidades de afeto,
expressando vinculações sobre produção e consumo da obra como
elementos fundamentais para a relação de manutenção do mesmo
na esfera do grupo social e da multiplicação de significados (Dias,
2013, p. 198).
Findado o debate, indaguei aos editores-proprietários da
Quatro Cantos sobre como teria se dado o recebimento do original,
aceite e processo de produção em livro. Rosana me contou que o
manuscrito havia sido encaminhado primeiramente a Renato por
meio eletrônico e que, ao lerem, se encantaram com a história e
aceitaram publicá-la. Disse-me ainda que, ao começar o processo de
produção do romance, foi “pesquisar sobre o assunto” e que assim
acabou conhecendo o blog de Sergio Viúla: “Nós decidimos deixar o
livro ser lançado e seguir seu curso. Então vieram os convites para
lançá-lo no Festival e para o debate na livraria, para o qual convidamos
o Sergio”, revelou a empresária, concluindo por fim: “Quando comecei
a pesquisar e achei o blog dele, nossa tinha muitas coisas que eu não
sabia como, por exemplo, que é possível você ter uma identidade de
gênero e uma orientação sexual não correlacionada”.
A fala de Rosana apontava para a extensão de um aprendizado
pedagógico a pessoas que não possuem uma identidade e orientação
sexual discordantes da matriz heterossexual. A partir do contato com
a trama, a empresária demonstrava ter apreendido valores expressos
nas trocas, nas imagens e nas metáforas que os livros possibilitam
ao desnaturalizar as convenções em voga na sociedade. Atrelado a
perspectiva “de humanização” e “de sensibilização” declarada pelo
autor e sua recusa a vincular-se “ao gueto” por meio da publicação
da obra partindo de “Editoras LGBTs”, observa-se a tentativa de
prolongamento da mensagem a ser transmitida, por um lado, mas
dinâmicas de mercado com finalidades ampliadas, por outro.
Se no primeiro evento a obra e Editora vinculam-se e
circulam em um segmento específico, um Festival de Cinema Gay,
neste segundo evento, por meio deste elemento que poderia ser
considerado negativo, ambas adentram em uma livraria, espaço de
reconhecimento e de consagração no campo literário. Estando na
livraria, a empresa cultural deixa de acumular funções, seus editores
deixam de ser livreiros, ao passo em que perde economicamente
uma vez que, em geral, a livraria costuma ficar com 50% do preço de
Desejo | 269

capa do livro por eles exposto e vendido, em geral em consignação.


O contraponto, ademais, é a disponibilização física do
livro dentro do espaço, estando no campo da distribuição e de um
valor simbólico e de prestígio que é o pertencimento desta em um
catálogo físico. Até o corrente ano,18 o livro teve tiragem de mil
exemplares na primeira edição; dois mil exemplares na primeira
reimpressão; e três mil exemplares na segunda reimpressão, esta
última ainda não esgotada. Trata-se de um número expressivo para
uma pequena Editora, em que pese a obra não ter sido distribuída
em livrarias físicas, à exceção do evento supracitado, sendo suas
vendas ocorridas prioritariamente pelo site da empresa e em feiras
de livros e lançamentos.
De todo modo, evidencia-se aqui a maneira como os objetos
mudam de estatuto a todo o instante bem como as pessoas a
eles relacionadas. Não se trata exclusivamente da construção de
“identidades LGBTs” ou de uma “cultura LGBT”, mas possivelmente, me
apropriando com devidas mediações, das proposições da socióloga
Nathalie Heinich (1991), de um espaço hermenêutico. Assim, cabem
tantas definições e estratégias quanto forem necessárias para que
as pessoas possam se identificar ou não a partir do acionamento
de uma gama de “elementos de composição” como: ser escritor, ser
LGBT ou ser escritor LGBT, tudo a depender do contexto.
Quis saber de Rosana sobre o processo de produção do
objeto livro. Ao informá-la de que o havia comprado no dia anterior,
ela me respondeu que não iria adiantar muita coisa, pois tudo ali
estava relacionado com a narrativa, inclusive a capa que recebia
sua assinatura:

Mas um fato interessante é que quando fomos pensar o material


de divulgação do livro, me sugeriram um beijo e eu pensei “Mas
um beijo? Que coisa clichê!”, respondi. Só depois que percebi que
não, que para nós, heterossexuais, isso soava clichê, batido, mas
que era importante; então foi aí que fizemos uma divulgação com
os meninos e um beijo.

Há, evidentemente, a presença de elementos artísticos e


políticos em torno do livro. Ao relatar as diversas aprendizagens
que adquiriu a partir da decisão e processo de publicação da obra,

18
Informações atualizadas em maio de 2018.
270 | (Des)Prazer da norma

a empresária imprime ao produto não apenas a marca de sua


recém-criada empresa cultural, mas exprime ainda os sentidos
produzidos pelo fazer do livro. Estes sentidos são expressos
enquanto aprendizado profissional e, posteriormente, pessoal que
influencia o anterior e é expresso ao público na vinculação da capa
ao banner da obra.
Em um primeiro momento, o banner aparentemente
materializa aspectos considerados explicitamente políticos
se comparado à capa, ficando esta última, em grande medida,
responsável por não segmentar explicitamente o objeto, o
rotulando imediatamente como “produto de/para homossexuais”
e garantindo, por exemplo, que os livros possam ser comprados e
portados, lidos em público, por pessoas que ainda não se encontram
confortáveis com sua sexualidade. Mas a reconfiguração desse
aspecto se altera quando, ao longo da leitura, descobre-se que a
imagem que compõe a capa é o espaço onde os personagens tem
sua primeira relação sexual.
A sexualidade dos protagonistas, sob este ângulo, não é
narrada sobre a forja das letras, espraiando-se por espaços que,
embora manifestos, exigem um tipo de cumplicidade que somente
o leitor é capaz de desvelar na relação com o objeto. Neste jogo, não
se opera sobre a égide da gramática da resistência, mas da agência
de pessoas e objetos. Todavia, seguindo pistas atinadas da análise
feita por Paul Beatriz Preciado sobre arquitetura e sexualidade nas
Revistas Playboy, nota-se também aqui, na escolha da imagem da
capa e o que ela contém em suas camadas de leituras e de sentidos, a
“produção pública do privado” (Preciado, 2010).

Seixos, cookies e a instabilidade dos significados



Neste artigo, procurei analisar a obra literária contemporânea
Águas Turvas atentando para as condições e possibilidades da
vivência da homossexualidade, por parte dos protagonistas, em uma
narrativa pró-final feliz. Argumentei que o uso do discurso amoroso
segundo o qual os personagens homossexuais tornam-se inteligíveis
não se dá mediante uma ausência familiar, mas por meio de sua
configuração, ressignificadas pelo âmbito dos afetos, em detrimento
ao discurso biológico ou genético do parentesco. Ao mesmo tempo,
Desejo | 271

mostrei a destituição de aspectos referente à sexualidade dos mesmos


na narrativa se comparado aos demais personagens da trama.
Sob a égide do amor, a inteligibilidade forja a integração de
Gabriel e Justin dentro de vínculos sociais e não irrompidos destes,
não acarretando na perda de coletividade em prol de liberdade
particular. Ao contrário, amor e sofrimento visam agir na construção
de empatia e aceitação da trama com fins a gerar possibilidades de
existência aos personagens, fazendo com que as emoções acabem
por reconfigurar possíveis conflitos decorrentes de aspectos que
poderiam operar como marcas de diferença e, possivelmente,
produtoras de desigualdade – no romance, em específico, questões
de classe, gênero, sexualidade, nacionalidade e território.
A partir de um tecido social dotado de sentidos, os
personagens podem ser erigidos enquanto protagonistas de uma
história positivada e, deste modo, com possibilidades de um final
feliz. Este desfecho positivado ocorre dentro de uma estrutura
construída para tanto na qual: (1) nota-se uma assepsia indiscutível,
estando dada por meio das características físicas dos personagens –
são dotados dos atributos ocidentais de beleza – e a não observância
de performatividades de gênero dissonantes daquelas socialmente
esperadas e desejadas; (2) os protagonistas possuem profissões de
reconhecido prestígio, sendo, ambos, bem-sucedidos; (3) percebe-
se a ocorrência da aceitação destes por parte da família de origem
de um deles; (4) ocorre a construção de uma família em moldes
análogos; (5) tem suas personalidades dotadas de um caráter
admirável e imaculável; e (6) a não presença explicita da sexualidade
destes, outrora estigmatizadas seja pelo amigo mineiro de Gabriel ou
pelos tios de Justin.
Atinando para o pressuposto de que “idéias e obras estão
ancoradas em processos sociais concretos e contextos intelectuais
precisos” (Pontes, 1998, p. 14), adentramos, assim, em uma caudalosa
construção com fins a efetivação contemporânea do amor dentro de
um contexto não heterossexual. Elas preservam em si tensões da
pulsão romântica fruto do século XVIII e XIX (Duarte, 2004) e que tem
na menção à romancista Jane Austen a fixação visível das relações
entre formas sociais e ideias culturais e o modo como circulam (Said,
2011, Becker, 2009). Este fator também é observado pelo desejo do
escritor de “ser uma Stephenie Meyer ou Nicolas Spark nacional”.
272 | (Des)Prazer da norma

Seguindo pistas de Douglas & Isherwood (2004, p. 119) esse


ocorrido chama atenção para a consideração de que, embora bens
culturais portem significados, não o fazem em si mesmos, sendo
necessárias relações, mediações, interpretações. A apreensão das
perspectivas de Rosana Martinelli e Renato Potenza, nesta esteira,
evidenciam a atuação dos profissionais dos livros na inserção da obra
no mundo social e a construção de agenciamentos que permitam as
ideias contidas no romance terem difusão não apenas dentro de um
circuito particular como o que investiguei em minha dissertação de
mestrado (Silva, 2016). Os editores, aqui, funcionam como primeiros
leitores do texto e construtores, junto ao escritor, do livro, revelando
também as transformações provocadas que se deseja perpetuar,
incitando a obra à flutuação entre o beijo explícito e o sexo tácito.
Afeto
Descasadas. Ruptura conjugal e individuação

Carolina Castellitti1

Introdução

Em 2013, como parte da pesquisa para minha dissertação


de mestrado em Antropologia Social, entrevistei onze mulheres
de minha cidade natal (Santa Fe, Argentina) com o objetivo de
conhecer suas experiências de separação conjugal.2 Foram longas
entrevistas durante as quais a distância do desconhecimento foi
progressivamente superada, e através da escuta atenta me foi dada a
possibilidade de conhecer suas histórias de vida, em dimensões tão
íntimas como as que remetem às expectativas de um amor e a tristeza
do desamor. Apesar de ser uma desconhecida, bastante curiosa aliás,
essas mulheres foram muito receptivas e me surpreenderam com
seus relatos de experiências fortes, de muito afeto, mas também de
conflito e variadas violências. Depois de algum tempo percebi que
esse desconhecimento pode ter sido meu melhor recurso, pois a
situação de entrevista funcionou para muitas delas como uma carta
de apresentação (Pollak, 1990, p. 179). Uma reavaliação da trajetória
que lhes apresentava a oportunidade de, em primeiro lugar, se dar
o tempo de pensar e falar;3 e assim, reconstruir tais experiências
como experiências de sucesso ou superação.

1
Carolina Castelliti é Doutora do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
O trabalho de campo para a dissertação foi realizado principalmente entre os meses
de fevereiro e março de 2013, na cidade de Santa Fe, Argentina. Durante esse período
realizei sete entrevistas, às quais adicionei outras quatro que tinha realizado em
2011, para minha pesquisa de graduação em Sociologia, na Universidad Nacional
del Litoral. Para obter esses contatos, comentei sobre minha pesquisa com amigos
e familiares, e expliquei que precisava entrevistar mulheres de entre 30 e 40 anos,
divorciadas ou separadas. Essas pessoas em geral contatavam amigas ou parentes,
lhes perguntavam se estariam dispostas a conversar comigo, e se elas autorizavam
me davam seu e-mail ou telefone.
3
Uma de minhas interlocutoras que via na falta de diálogo com seu marido uma das
principais causas de sua separação, referiu-se à situação da entrevista como algo
que “nunca pode ter” com ele.
276 | (Des)Prazer da norma

O pano de fundo dessa indagação foi o de uma inquietação


sobre as transformações sociais e culturais contemporâneas,
principalmente aquelas que atingem às configurações familiares
e aos relacionamentos conjugais e afetivos. Além dos desafios
impostos à imagem tradicional de família pelas demandas de
democratização e de espaços para os afetos, vivemos em um mundo
no qual as três dimensões que conformam a definição clássica de
família (a sexualidade, a procriação e a convivência) têm sofrido
enormes transformações (Jelin, 1996, p. 24). Nas ciências sociais,
não há consenso sobre as causas, características e sentidos dessas
mudanças, mas existe um acordo mínimo sobre o fato de serem
transformações de um tipo ou modelo de família, conhecido como
família nuclear: o casal heterossexual formalizado pelo casamento
civil (e também religioso, frequentemente) com dois ou três filhos.
Segundo assinalam sociólogos franceses especialistas
no tema, as teorias contemporâneas sobre família partem das
elaborações de autores do século XIX, particularmente em suas
análises sobre a contribuição do grupo doméstico na manutenção
do vínculo social (Cicchelli-Pugeault et all, 1999). Assim, se a família
foi (e continua sendo) um objeto de estudo abordado a partir da
sua contribuição para a manutenção do laço social, o divórcio, em
contraposição, constituiu durante muito tempo um objeto marginal
nas ciências sociais, abandonado a disciplinas como a psiquiatria, o
direito e a criminologia. Até meados do século XX, o casamento era
pensado como o modo normal de união conjugal e o divórcio era visto
como um fracasso individual ou como um problema social (Lambert,
2009, p. 147). No caso francês, como resposta ao repentino e massivo
incremento do divórcio em meados da década de 1960, os primeiros
impulsos para novos trabalhos surgiram no campo da demografia,
quando um grupo de pesquisadores começou a desenvolver
gradualmente um corpus de conhecimento sociodemográfico e
estatístico sobre a ruptura matrimonial. Em contraste com a escala
macrossocial desses primeiros estudos, as análises contemporâneas
da ruptura matrimonial adotam um enfoque microssociológico,
influenciado por modelos interacionistas. Por outro lado, em
paralelo a sua multiplicação, o foco das pesquisas deixou de estar nas
causas e circunstâncias e passou a ser a vida posterior ao divórcio.
Tendo em conta essas tradições acadêmicas, durante
minha pesquisa enfrentei algumas dificuldades. Em primeiro lugar,
Afeto | 277

coerente com a hegemonia de uma tradição sociológica quantitativa


na Argentina, que vem desenvolvendo estudos importantes
sobre o impacto das variações demográficas nas estruturas
familiares, existem poucos esforços para estudar empiricamente
as transformações no universo de valores e os significados dessas
mudanças (Torrado, 2007, pp. 435-436). Por outro lado, mas ainda
parte do mesmo fenômeno das tradições hegemônicas nacionais, os
estudos se centram na região metropolitana de Buenos Aires e no
máximo propõem algumas hipóteses gerais, tomando o território
nacional em sua totalidade. Tendo em conta essas particularidades,
neste artigo recupero e faço uma leitura de algumas observações
relativas ao processo de ruptura conjugal do ponto de vista feminino,
no contexto não metropolitano da cidade de Santa Fe, Argentina.

Susanitas e Mafaldas

Antes de mergulhar na análise dos discursos, é importante


fazer uma pequena contextualização regional. A província de
Santa Fe é a terceira mais populosa do país (com 3.194.537
habitantes em 2010, segundo o último Censo), depois de Buenos
Aires (15.625.084) e Córdoba (3.308.876). Como mencionei,
as mulheres que entrevistei moravam na cidade de Santa Fe,
capital da província e segunda cidade mais importante em
termos populacionais, depois de Rosario (no ano 2010, Santa Fe
possuía 525.093 habitantes e Rosario 1.193.605).4 Suas idades
no momento das entrevistas variavam entre 30 e 43 anos. Tomei
como principais indicadores de classe social o grau de escolaridade
e o local de moradia: todas elas tinham realizado estudos
universitários (não necessariamente concluídos) e moravam em
bairros considerados pelos “santafesinos”5 como correspondentes
às camadas médias da cidade. Suas profissões variam em áreas
como engenharia, psicologia, jornalismo, design, pedagogia,
antropologia e arquitetura, e se distribuem nos âmbitos público

4
Fonte: Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC). Disponível em: http://
www.indec.gov.ar/index.asp. Acesso em 30 mai. 2017.
5
Ao longo do texto, utilizarei aspas para indicar termos ou frases extraídas das falas
de minhas interlocutoras, ou para citações literais da bibliografia indicada.
278 | (Des)Prazer da norma

e privado. Todas estavam separadas, mas só oito delas estavam


legalmente divorciadas. Os outros três casos correspondem a
uniões consensuais, e uma separação que nunca foi formalizada
legalmente. Os casamentos duraram entre quatro e quinze anos (o
casamento mais longo foi o de Cecilia), e algumas delas conviveram
com seus parceiros alguns anos antes da união civil (entre dois e
seis anos). Portanto, foram relacionamentos longos, que passaram
por várias etapas: namoro, convivência, casamento e separação.
Finalmente, das onze, seis tiveram filhos dentro das uniões cujas
rupturas são aqui narradas, e só três delas haviam constituído
um novo relacionamento estável – sendo Luciana a única que teve
filhos com esse novo parceiro. Mencionarei brevemente essas
características antes de introduzir cada fala, pois são elementos
que devem ser considerados para a compreensão da gramática das
narrativas.
Por outro lado, é importante mencionar que a lei de divórcio
vincular (que dissolve o vínculo matrimonial e possibilita uma nova
união legal) foi aprovada na Argentina em 1986. Como descrevem
as sociólogas argentinas Catalina Wainerman e Rosa Geldstein, a
lei de Matrimonio Civil vigente até 1968 estabelecia a possibilidade
de um divórcio limitado ou separação pessoal, sem dissolução
do vínculo matrimonial. O divórcio podia somente ser decretado
judicialmente em um processo contencioso, devendo se apresentar
provas indiscutíveis sobre a culpabilidade de um dos cônjuges. As
causas expressamente aceitadas para esse fim eram injúrias graves,
adultério, atentado contra a vida do cônjuge, incitação ao delito,
maus tratos, separação de fato por três anos sem vontade de se unir
ou abandono. Somente em 1968, com a introdução do artigo 67 bis,
admitiu-se como causa do divórcio o consentimento mútuo. Ainda
transcorreram quase duas décadas até que a lei 23.515 do divórcio
vincular fosse sancionada em 1986 (Wainerman et all, 1996, p. 190).
Susanita e Mafalda são duas personagens da popular história
em quadrinhos de Joaquín Lavado (Quino) que, embora sejam
grandes amigas, se opõem em termos de interesses, expectativas e
projetos de vida. Susanita vive pensando em “encontrar o homem
dos seus sonhos”, casar-se, comprar uma casa e ter muitos filhos.
Mafalda, por sua vez, está sempre preocupada com os “problemas
da humanidade”, cobra sua mãe pelo fato dela ter abandonado seus
estudos quando se casou, quer ter sucesso profissional e tentar
Afeto | 279

“mudar o mundo”. Com a popularização do quadrinho do Quino, o


termo “Susanita” foi apropriado por algumas gerações de argentinos
para fazer referência a um estereótipo de mulher e, como mostrarei,
é utilizado por minhas interlocutoras neste sentido. No trecho
seguinte, em relação ao modo de constituição de sua união, Sofia –
35 anos, arquiteta – se distancia do “ser Susanita” pelo fato de não
ter feito do casamento um objetivo primordial:

Pra mim tem a ver com uma questão de... da realidade familiar que a
gente tem. Porque se eu tivesse ido morar com ele, meu pai não teria
gostado, não teria sido a mesma coisa que se a gente se casasse. A
mesma coisa pros pais dele. A gente sente de alguma maneira que
tem uma expectativa colocada nesse lugar, entende? Pra eles não
é a mesma coisa. Mas também tem a ver com a gente, é como que
a gente já tem isso é... Sei lá, eu nunca fui muito Susanita e nunca
sonhei em me casar, não foi nunca pra mim um objetivo primordial.
Sempre estiveram colocados em outros lugares. Isso também tem a
ver com a família, ou seja, eles [nossos pais] sempre nos apoiaram
a estudar, pra que pudéssemos fazer tudo o que quiséssemos pra
nossa realização pessoal. Ou seja, sempre houve uma preocupação
pra que a gente se realizasse. Por isso eu acho que o que a gente tem
na família é bastante determinante nas decisões que a gente toma.6

Em todas as entrevistas que fiz, quando a imagem da


Susanita aparecia era sempre em contraposição à autodefinição da
pessoa falante. Ou seja, o “modelo Susanita”, comumente associado
a uma concepção “tradicional” de mulher cuja realização passa pelo
casamento e pela maternidade, é um modelo desvalorizado entre
mulheres jovens de camadas médias. No entanto, a necessidade
de se contrapor emergia da percepção de uma tensão entre essa
desvalorização e o reconhecimento da permanência de práticas que
eram vistas como próprias do “ser Susanita”: casar-se (por meio
do contrato civil e do ritual católico) e ter filhos. Não só as práticas

6
Os trechos de entrevistas utilizados no texto foram traduzidos por mim para o
português. Agradeço ao Lucas Freire e ao André Leal pela atenciosa correção. Deixo
aqui meus agradecimentos também ao meu orientador, o professor Luiz Fernando
Dias Duarte; e às professoras Adriana Vianna, Maria Elvira Diaz-Benítez e Laura
Lowekron, pelo curso Interfaces entre gênero, violência e erotismo, ministrado
no PPGAS/MN/UFRJ em 2014. As discussões propostas durante esse curso estão
presentes na releitura que faço neste texto.
280 | (Des)Prazer da norma

correspondiam a esse modelo, mas também as justificativas, que


sempre remetiam à “realidade familiar”, às “expectativas” dos
pais, eram vistas como afins ao “ser Susanita”, isto é, práticas
“tradicionais” ou “conservadoras”.
Como observa Isabella Cosse em relação aos discursos dos
meios de comunicação sobre a maternidade e a paternidade nos anos
1960 na Argentina, Mafalda cristalizou uma representação da família
de classe média atravessada pela modernização cultural. Quino, seu
criador, se dirigiu a um público crítico, a quem convocava com uma
denúncia do tradicionalismo que, simultaneamente, refletia sua
vigência (Cosse, 2010, p. 172). Assim, os protagonistas do quadrinho
incorporavam os traços comuns da classe média argentina: viviam
no mesmo bairro portenho, frequentavam a mesma escola, tinham
uma família nuclear e suas mães eram donas de casa com dedicação
full time. Concordo com Cosse quando observa que, apesar da
oposição entre as personagens da Mafalda e da Susanita (a “menina
intelectualizada” e a menina romântica),7 era evidente a valoração
de sentido do quadrinho, no qual as mães e donas de casa sentiam-
se agredidas com as perguntas dos seus filhos, que expunham
seu “delimitado horizonte vital” (Ibid., p. 173). Assim, esse drama
encenava, segundo a historiadora argentina, o fato da maternidade
com dedicação completa ter se convertido em um tema polêmico,
capaz de gerar uma cisão cultural que atravessou a classe média
urbana argentina nos anos 1960.
Se naquele período histórico começava a crescer o número
de mulheres das camadas médias que continuavam trabalhando
após o casamento e a chegada dos filhos, na atualidade a dupla
jornada é um fato, pelo menos no meu universo de pesquisa. Sete das
mulheres entrevistadas eram mães na época em que conversamos,
sendo que todas tinham começado a trabalhar logo depois de
terminados seus estudos. Já depois de casadas, a maioria tinha
uma ocupação cujo salário não representava um complemento do
salário do marido, mas sim a fonte de renda principal.
Antes de passar à descrição dos processos de ruptura, é
importante fazer uma pequena resenha dos estilos de vida conjugais

7
Enquanto a ideia de “niña intelectualizada” pertence à autora (Ibid., p. 173), a
designação “menina romântica”, justificada somente nessa relação de oposição, é
minha.
Afeto | 281

por elas narrados. Evitando cair em uma dicotomia mecânica e


superficial entre padrão tradicional e moderno, que supõe uma
coerência interna a cada termo da oposição, Gregori propõe
recuperar Geertz para entender os padrões como modelos, feixes
de símbolos, ou fontes de informação, construídas culturalmente e
que são fundamentais para a ordenação da vida social (1993, p. 138).
Por outro lado, a utilização dos termos “tradicional”, “conservador”
e “estruturado” por minhas interlocutoras para se referir as suas
famílias de origem e seus grupos de socialização expõe a reflexividade
dos sujeitos sociais para dar conta de suas práticas sociais. Que
esses termos estejam presentes no discurso nativo quer dizer que
eles fazem sentido para explicar costumes, condutas e expectativas,
sobretudo conjugais e familiares. Neste sentido, é interessante notar
que eles nunca são utilizados como autodefinição (nenhuma das
interlocutoras afirmou “ser moderna” ou “ser tradicional”), mas sim
para evocar o universo social de origem e de socialização primaria
(família, escola, etc.). Assim, uma das locuções mais acionadas para
falar das expectativas transmitidas geracionalmente pelo núcleo
familiar de origem foi a de “mandato” (Castellitti, 2014, p. 67).8
Dessa forma, com toda a cautela necessária para este
tipo de generalizações, identifiquei nesse trabalho dois tipos de
conjugalidade. O primeiro tipo, foi o das uniões realizadas por
matrimônio civil e cerimônia religiosa, sem convivência prévia, nas
quais o grupo familiar ampliado (principalmente o núcleo paterno,
mas não só) teve uma importante participação, tanto no significado
da união (pela sua função legitimadora), quanto na celebração. São
também casais que conceberam seu primeiro filho pouco tempo
depois do casamento. Em relação aos tipos de vínculo, as expectativas
de reciprocidade das mulheres foram descritas como pouco
satisfeitas na prática, o que derivava em uma queixa em relação à
falta de colaboração e ausência do marido no lar. Em outros casos,
as queixas pela falta de equidade só apareciam depois da separação.
Deixa-se entender assim que tal iniquidade era tolerada sempre
que outras condições estivessem dadas (por exemplo, a fidelidade).

8
De uso pouco frequente em português, o sentido utilizado em espanhol é
semelhante ao apontado pela Psicanálise transgeracional, como sendo “uma
configuração imaginária projetiva que é transmitida aos descendentes (ou a alguns
deles) de um modo não completamente explícito ou consciente” (Duarte, 2011, p.
16, nota 5).
282 | (Des)Prazer da norma

Por outro lado, nesses casamentos existiam conflitos em relação a


diferentes concepções sobre trabalho e dinheiro, agravados nos
casos em que as mulheres recebiam salários superiores aos dos
seus maridos. Em relação a tudo isso, essas mulheres reconheciam
também uma falta de diálogo e consenso nas decisões.
No segundo tipo agrupei as uniões formalizadas por meio do
contrato civil, em geral precedidas por um período de convivência,
e as uniões consensuais que nunca foram formalizadas. Em alguns
casos, esses casamentos foram celebrados com festas e rituais, mas
a rejeição da cerimônia católica foi explícita. Em relação às uniões,
as mulheres ensaiaram justificativas de tipo prático, material e
emocional, com pouca ou nenhuma referência ao grupo familiar mais
amplo. São relacionamentos que se definiram como “compartilhados”,
tanto nas responsabilidades domésticas quanto em relação aos
gostos, ao uso do tempo livre etc.; e, portanto, em geral as mulheres
não denunciaram uma falta de reciprocidade. A maioria dessas
uniões terminou sem que os casais tivessem filhos, mas isso não
implicou em uma rejeição da maternidade como opção. Na verdade,
a maternidade estava presente no horizonte de possibilidades do
casal, sendo altamente problematizada e planejada.
Esta breve descrição das uniões fornece uma base para
interpretar os discursos sobre as rupturas que constituem o objeto
principal desta análise. Seguindo a tese do sociólogo François de Sinlgy,
segundo a qual a separação faz parte de um determinado cenário
de vida conjugal (Singly, 2011, p. 17). O que me interessa frisar,
a partir desta limitada tipologização, é que em um círculo pequeno
de pessoas, semelhantes em relação a indicadores socioeconômicos
como idade, nível de instrução e bairros de residência, as formas de
conjugalidade (Torres, 1992, p. 56) anteriores à separação não eram
facilmente padronizáveis segundo um único critério. Neste sentido,
parece-me possível afirmar que, em contraste com os mecanismos
constitutivos da conjugalidade no universo social das camadas
médias da cidade do Rio de Janeiro estudados por Salem (2007)
e Heilborn (2004), no grupo de mulheres que entrevistei o ideal
normativo individualista estava presente, mas de forma intrincada
e superposta a outros valores que outorgam um importante
significado ao contexto familiar mais amplo.
Referências aos pertencimentos familiares, religiosos e de
outros tipos foram evocadas não somente para narrar as escolhas
Afeto | 283

ligadas ao casamento e à profissão, mas também assumiram um


papel importante durante a separação – como apoio e sustento,
mas igualmente pela sua participação mais ou menos direta na
ruptura. Talvez possamos procurar uma chave para interpretar
essa preeminência na articulação que se produziu na Argentina
desde começos do século XX entre o modelo de domesticidade e a
identidade de classe média em ascendência. Como bem desenvolve
Cosse (2010), na Argentina das décadas de 1930 e 1940 alcançou
seu ponto de cristalização um modelo familiar baseado na pauta
nuclear, na redução do número de filhos, na intensidade afetiva
e na divisão entre a mulher dona de casa e o homem provedor.
Esse modelo de domesticidade delineou uma normatividade
social e uma medida para definir o que supostamente era uma
família “natural”, “desejável” e “correta” a partir de um critério
homogêneo e excludente, que tirava sua eficácia da diversidade à
qual se contrapunha, em um país que estava e está atravessado por
profundas diferenças sociais, culturais e étnicas (Ibid., p. 13).

A separação em terceira pessoa e as concepções de “mulher”

Em sua pesquisa sobre a prática feminista no SOS-Mulher


de São Paulo, Maria Filomena Gregori percebeu uma clara distinção
entre as explicações sobre a crise conjugal e a descrição das cenas de
brigas. Segundo a autora,

No momento em que estão explicando a crise conjugal, elas operam


com categorias mais gerais e que permitem uma análise de suas
concepções genéricas sobre a vida familiar. Na descrição das
brigas – quando as cenas abrem uma possibilidade de um reexame
– há um movimento de singularização. O que é apontado como um
padrão geral de casamento, de família, de homem e de mulher, é
substituído por uma explanação da situação familiar e histórica de
cada uma delas (1993, p. 137).

Por um caminho diferente, cheguei a reconhecer um


movimento idêntico nas narrativas de minhas interlocutoras sobre
sua separação. Quando, a modo introdutório, eu lhes perguntava
sobre o aumento das separações na atualidade, obtinha uma
resposta que contrastava significativamente com os relatos de suas
284 | (Des)Prazer da norma

próprias experiências de ruptura. O roteiro foi mais ou menos o


mesmo: no inicio, elas afirmavam que hoje as pessoas se separam
mais porque “não se toleram”, porque não são capazes de enfrentar
o menor conflito; posteriormente, para falar da experiência pessoal,
relatavam longos processos de separação, com tentativas de
reconciliação, consultas a especialistas, etc. Isso sem mencionar
os motivos, de forma alguma insignificantes e, em alguns casos,
envolvendo situações de violência física e psicológica.
Araceli tinha 37 anos quando gravamos a entrevista, era
jornalista e tinha três filhos nascidos de um casamento de quase dez
anos de duração. Embora à época das entrevistas ela reclamasse muito
da ausência do seu ex-marido na vida dos seus filhos, essa mesma
ausência e falta de colaboração nas tarefas da casa e do cuidado não
eram um problema na sua vida de casada até que “a outra mulher”
apareceu. Ela sempre trabalhou muito dentro e fora de casa. Além de
tomar conta das crianças, trabalhava junto ao seu marido em uma
agência de publicidade, fazendo todo o trabalho invisível de produção
(pois “quem era visto e recebia todos os elogios era sempre ele”)
e sem receber salário. No entanto, tudo isso era suportável até que
os e-mails e as chamadas “dela” começaram a reaparecer (não era
a “primeira vez”). A partir desse conflito a narrativa do processo de
separação de Araceli é repleta de sofrimento, vivido por ela e por
seus três filhos. O auge do sofrimento é simbolizado por um jantar de
natal, em que todos estavam esperando o pai para a comemoração,
mas este não apareceu e sequer deu notícias. Araceli não conseguia
ser “determinada” e acabava sempre tentando refazer o casamento,
até o “ultimato” que recebeu da filha de sete anos: “mãe, se você
deixar ele entrar de novo, eu que vou embora”.
Quando gravamos a entrevista já tinham passado mais de
seis anos da separação, mas a narrativa de Araceli ainda carregava
muita angústia e frustração. Embora ela não tenha usado em
nenhum momento as palavras infidelidade ou traição, a reiterada
aparição dos rastros “daquela mulher” na vida do seu marido,
e o veredito da filha de sete anos, foram as provas irrefutáveis do
fracasso de suas tentativas por “salvar seu matrimonio”. Porque não
há dúvidas, ela lutou muito para manter unida sua família. Assim, a
narrativa de Araceli é ilustrativa de uma dinâmica que identifiquei
em vários discursos, que para mim se apresentava como uma
intrigante contradição: frente a esse cenário pessoal de persistência
Afeto | 285

e sofrimento, a questão das separações na atualidade (“dos outros”)


era explicada a partir da falta de paciência e da intolerância:

Sim, separam-se mais que antes porque não aguentam nada.


Primeiro porque há muita oferta, vamos dizer, as mulheres
procuram os homens como antes não acontecia. E segundo porque
ninguém aguenta nada, no primeiro conflito, não conseguem se
resolver e pronto, não vai mais. E não é assim, tem que lutar... Eu
não entendo essa postura, mas eu tenho uma forma de pensar mais
retrógrada, talvez pela formação da escola. Eu não me acho nem
machista, nem feminista, nem nada. Odeio essas discriminações.
Mas é verdade que o homem se compromete um pouco menos.
Sempre, na primeira mudança, pra ele é mais fácil.

Apontar uma aparente contradição argumentativa nos


discursos de nossos interlocutores é menos produtivo do ponto de
vista heurístico que procurar interpretar as possíveis razões sociais
e sentidos dessa ambiguidade. Sob esta perspectiva, podemos
refletir sobre o contraste entre a experiência pessoal e a “opinião”
como consequência da ambiguidade dos papéis de gênero, papéis
que em experiências como a de Araceli são colocados em conflito,
mas não totalmente questionados ou impugnados. Na mesma
direção, podemos interpretar o sentido do termo “tolerância”
utilizado em grande parte dos relatos. A maioria afirmou que na
atualidade existem mais rupturas conjugais porque as pessoas “são
menos tolerantes”. Mas quando observamos com mais atenção,
reconhecemos que para algumas delas essa menor tolerância
tinha a ver com mudanças no estilo de vida do casal, enquanto
para outras atingia mais especificamente à situação da “mulher”. O
diagnóstico é mais ou menos semelhante: hoje em dia vivemos um
momento de maior liberdade, principalmente para as mulheres, que
se materializa, sobretudo, em sua independência econômica. O que
muda é a valorização dessa mudança: enquanto para algumas o fato
das mulheres terem que “tolerar menos coisas” significa que elas não
são mais obrigadas a aceitar condições que as fazem infelizes, para
outras “tolerar menos” significa ser menos comprometido, fraco, e,
no caso das mulheres, serem “livres demais” (em um sentido sexual
com conotações negativas).
Então, o que nos revelam essas respostas são, sobretudo,
concepções acerca de papéis de gênero, do próprio de “ser mulher”
286 | (Des)Prazer da norma

e “ser homem” nesse universo social. Neste sentido, o “ser mulher”


revela uma concepção ancorada em uma “natureza” que vai além
da função reprodutiva e que tem a ver com um feminino ligado às
virtudes da paciência, da compreensão, do cuidado e da entrega.
Como expressa Florencia – 30 anos, engenheira, separada há pouco
mais de um ano, após dez de namoro e um de convivência – no
trecho seguinte, a luta pela igualdade, pela “liberação feminina”, teria
retirado a mulher desse lugar de “complemento”, e essa seria uma
das causas do aumento do conflito nas relações conjugais.

Essa tem que ser a temática da tua tese, é, como as mulheres, nisso
de serem fortes, ficamos atrás em nosso ponto mais forte, que é
nossa feminilidade e nosso lugar natural. Como pra gente, em
nossa vontade de ser iguais, perdemos o lugar de complemento,
entende? Eu mataria a idiota que lhe ocorreu aquilo da liberação
feminina! (...) O que acontece é que a igualdade gera concorrência.
E a gente nunca vai ser igual, ou seja, mulheres e homens, somos
coisas diferentes, então, tem que procurar a complementaridade,
isso é algo que me dou conta agora. Nós, ou seja, as mulheres,
sempre teremos um lugar de, não quero dizer superioridade, mas
mais abrangente. Porque a mãe continuará sendo você, isso não
dá pra passar pra ele, né? Ou seja, é por natureza. Então, quando
você percebe que você ocupa todo o lugar sozinha, pra que você
tem um cara do seu lado? O relacionamento se degenera, o casal.
Não porque tenha que ser uma coisa estruturada, tradicional, mas
porque a gente trabalha tanto pela igualdade que perde... Deixa de
gerar os espaços pra estar acompanhadas.

Alguns discursos expressam uma valoração mais negativa


dessas mudanças, e outros uma valoração positiva. Essas avaliações,
que são bastante ambíguas, respondem às concepções de mundo,
é claro, mas também variam – e não sempre na mesma direção
– segundo o fluxo da biografia, principalmente em relação ao
passar do tempo (particularmente o tempo transcorrido desde a
separação) e o momento de enunciação das falas. Vinculados a essas
duas dimensões – emoções e tempo –, podem ser identificados nas
narrativas elementos que dizem respeito ao tom do discurso e ao
sentido da fala. De forma geral, pode se dizer que enquanto algumas
falas se produzem a partir de uma posição de empoderamento,
sucesso e redescobrimento de si, outras assumem a forma de
Afeto | 287

denúncia ou lamento. Nesse sentido, o tempo e os sentimentos


atrelados a processos como o “balance”, o “redescobrimento”, o
“luto” e a “superação”, também levam a uma reavaliação dos papéis
de gênero e de si mesma em relação a esses papéis. O caso de
Florencia é paradigmático, pois ela, engenheira como o pai, afirmou
ter sido criada por um pai “moderno”, “feminista”, que sempre
incentivou a independência dela e de sua irmã, “desmerecendo” o
casamento. Na atualidade, ela percebia que guiada por esses valores
ela tinha terminado de uma forma muito fácil e rápida com um
relacionamento de mais de dez anos. Frente a essa experiência,
que hoje lhe provocava uma profunda tristeza (ela se emocionou
muito durante a entrevista, deixando cair algumas lágrimas), agora
apreciava o “resguardo jurídico” oferecido por um casamento e
estava passando também por uma revalorização da maternidade.
Neste ponto, a partir deste relato e outros sobre a
cotidianidade dos casais, concordo com Gregori (1993, p.
140) quando afirma que cada afastamento do padrão ideal de
complementaridade de papéis sexuais exige um árduo processo
de negociações e acordos entre os agentes sociais. A autora
propõe que o abandono das regras mais “tradicionais” não tem
sido acompanhado de novas regras complementares; os padrões
culturais que modelam o “moderno” ainda são muito frouxos. Nos
termos de Geertz, não conseguiram ser constituídos como modelos
de e para a realidade social (Geertz, apud Gregori, 1993, p. 140). Se
for verdade que o afastamento das regras “tradicionais” exige novos
processos de negociação, eu, no entanto, me perguntaria até que
ponto devemos confiar que os novos modelos irão se tornar mais
rígidos e, portanto, menos disruptivos, ou, ao contrário, se não está
em “sua natureza” serem frouxos, parciais e ambíguos. A noção de
desmapeamento aventada por Sérvulo Figueira (1987) em sua
análise sobre o “moderno” e o “arcaico” na nova família brasileira,
aponta precisamente nessa direção.9

9
Segundo Figueira (1987), com o avanço da ideologia do igualitarismo e a extensão
da psicanálise, as noções de “certo” e “errado” perdem definição, instaurando-se
o reino da pluralidade de escolhas; observa-se, assim, a coexistência de mapas
diferentes e contraditórios inscritos em níveis específicos e relativamente
dissociados no interior de cada um.
288 | (Des)Prazer da norma

O processo de desconjugalização

As narrações do processo de ruptura conjugal foram


surgindo espontaneamente ao longo das conversas, na descrição
dos relacionamentos, dos projetos e do cotidiano. Em relação
às justificativas, reconheci três cenários gerais: o primeiro
correspondeu às separações que foram explicadas a partir de
escolhas pessoais de cada cônjuge, que foram distanciando o
casal em dimensões simbólicas e identitárias;10 o segundo cenário
contemplou os casos daquelas mulheres que enfatizaram a falta
de comunicação e os conflitos relacionados à convivência, que em
alguns casos evidenciaram diferentes entendimentos (do dinheiro,
do consumo, do trabalho, etc.) difíceis de conciliar, e que em outros
conduziram diretamente ao distanciamento; por último, o terceiro
cenário foi constituído pelos casos de infidelidade, consumo
excessivo de álcool e drogas, e ações de violência física por parte
dos homens, condutas todas que, embora se adicionem a outros
problemas do relacionamento, foram consideradas como extremas
pelas próprias mulheres. Em todos os casos (exceto um) foram as
mulheres que tomaram a iniciativa da separação.
Milagros estava separada há um ano, depois de um
casamento de quase treze. Esse relacionamento começou à distância,
pois ele morava em Buenos Aires, mas um tempo depois, quando
formada, ela conseguiu ir morar na mesma cidade. Em Santa Fe, ela
estudava design gráfico, enquanto trabalhava no setor administrativo
de um hospital, gerenciado pelo avô. Nesse sentido, o deslocamento
para Buenos Aires também significou um desenraizamento (Duarte,
2008, p. 250) do ambiente social e familiar de origem, percebido pela
entrevistada como muito “conservador”. Eles moraram vários anos
em Buenos Aires, no começo separados e depois juntos. Depois
de passar por algumas dificuldades de emprego, decidiram migrar
juntos para Santa Fe, e após oito anos de relacionamento, diante da
expectativa do nascimento do filho, decidiram formalizar o vínculo.
Ela descreve o começo dos conflitos a partir de um período de “se

10
Em um dos casos essa decisão teve a ver com uma migração do casal para Israel,
decisão da qual Bruna participou no começo, mas que depois se tornou para ela
insustentável, devido principalmente ao constante conflito bélico desse país.
No outro caso, foi uma “escolha” místico-espiritual do marido de Virginia, que
provocou uma forte rejeição por parte dela e o consequente distanciamento.
Afeto | 289

deixar levar, acreditando que um dia estariam melhor”. Durante


todo esse tempo, Milagros sentiu muita dificuldade de conversar
com seu marido, a quem descreveu como uma pessoa “prática” e
“hermética”, que não procurava tanto quanto ela um vínculo mais
“compartilhado”, de “diálogo” e “consenso”. No trecho seguinte, ela se
refere a todas as “lutas” que enfrentaram juntos antes da separação:

Eu fiquei treze anos com ele, e a gente passou por tudo, desde
morar em Buenos Aires, porque ele é de lá, depois vir pra cá. A gente
passou por tudo, perdemos trabalhos, ele ficou sem emprego e meu
empreendimento salvou nossa vida, ajudou bastante. E depois,
bom, a mudança pra cá, a gente também perdeu uma gravidez.
- Antes de Tomas?, pergunto.
- Sim, morando em Buenos Aires. A gente lutou muito, remamos11
muito, os dois. Mas não soubemos, no pessoal, eu acho que a
gente não soube resolver a tempo questões que pra mim são
transcendentais, pra que o casal e o casamento evoluam.

Independentemente dos cenários de ruptura descritos acima,


as separações foram sempre narradas como processos lentos e
difíceis, que demandaram longos períodos de negociações, conflitos
e reconciliações. Em todos os casos, a ruptura final se deu depois de
muitas conversas e episódios de afastamento, depois dos quais se
fazia um esforço por mudar alguns aspectos do relacionamento ou de
cada cônjuge interpretados como problemáticos. Essas negociações
podiam envolver a consulta de familiares, amigos, especialistas –
como psicólogos ou padres, ou tentativas de outro tipo, como viagens.
Para falar desses processos elas comumente utilizavam termos
como “luta”, e aludiam à necessidade de “ceder”, “tolerar” e “remar”
(como expressa Milagros no trecho citado). Esses termos ilustram a
forte valorização da persistência do vínculo frente às dificuldades,
tentativas que, no entanto, se demonstravam insuficientes. Inclusive
em casos em que a separação teve que ser resolvida de forma mais
rápida, como no de Érica, que comentarei a seguir, esse desenlace se
deu depois de um prolongado período de conflitos e brigas.

11
Conservo o verbo “remar” do original em espanhol, pois embora em português
a palavra não se utilize nesse sentido, seu significado literal permite entender
a metáfora aludida no uso espanhol, trabalhar em algo com grande esforço e
contínua fadiga.
290 | (Des)Prazer da norma

Érica tinha 35 anos quando conversamos, e estava separada


há pouco mais de cinco. Esse relacionamento tinha durado dez anos
entre namoro e convivência, e eles não tinham se casado nem tido
filhos. Naquela época ela morava na cidade de Rosario, onde fazia
faculdade de odontologia. Durante os primeiros anos de faculdade
morava em um apartamento comprado pela família e não precisava
trabalhar. Quando lhe perguntei como decidiram morar juntos,
ela me respondeu que “foi tudo muito estranho”. Um dia ela estava
estudando com uma amiga e chamou-lhe a atenção que o namorado
não tivesse ligado nenhuma vez ao longo do dia. Em um determinado
momento, ele apareceu em sua casa com uma mala e simplesmente
perguntou se ela tinha feito espaço no armário. A amiga “fechou
os livros” e foi embora, e ela ficou ali, um pouco “chocada”.
Aparentemente ele tinha brigado com a mãe, mas Érica nunca pediu
explicações. Um tempo depois o pai de Érica ficou muito doente e
faleceu, e ela teve que vender o apartamento da família e começar
a trabalhar para pagar um aluguel. Seu namorado nunca trabalhou
alegando que “não queria chefes”. De vez em quando recebia
algum dinheiro de sua família, mas essa ajuda não era frequente.
Os conflitos foram crescendo na medida em que essa situação se
prolongava. Érica trabalhava e às vezes precisava pedir ajuda à sua
mãe, enquanto seu namorado ficava o dia inteiro em casa “jogando
no computador”. A separação finalmente ocorreu após um dramático
episódio de violência:

Então, aquilo foi desgastando o relacionamento. E eu cometi um


erro: eu sou da discussão. Posso discutir e sou muito forte com
minha língua, mas nunca sairia na mão, e ele saiu na mão. E foi com
isso que eu falei “chega”, primeira e última vez. Eu tive muito medo,
achei que ele fosse me matar. Imagina: 1,95 metros, jogador de
rugby, 115 quilos, me pegou como se fosse uma bola de rugby, me
jogou no chão e começou a me chutar nas costas. Se aquilo não foi
determinante num relacionamento, hoje eu estaria morta. Não sei,
eu nunca acreditei. Já passaram muitos anos desde que me separei
e eu continuo pensando que essa não era a pessoa pela qual eu me
apaixonei.

Esse dia ela acabou no hospital e sua mãe viajou de Santa Fe


para socorrê-la. Ela nunca fez uma denúncia formal, porque “não ia
adiantar em nada” e seu único desejo era não voltar a vê-lo. O caso de
Afeto | 291

Érica foi, sem dúvidas, o mais extremo das várias violências que me
foram narradas. Depois daquele evento ela voltou a morar na casa da
mãe, em Santa Fe. Já tinha abandonado a faculdade de odontologia
e começou a trabalhar como secretaria em uma clínica médica.
Trabalhava muito, mas gostava disso, porque não tinha tempo para
pensar e isso lhe ajudava a “se recuperar”. O trabalho aqui funciona
como um agente do tempo que “trabalha” nas relações, no sentido de
Veena Das, permitindo que sejam reinterpretadas, reenquadradas e
as vezes até reescritas (Das, 2007, p. 87).
Através do caso de Érica é possível pensar algumas
aproximações com as “cenas e queixas” analisadas por Gregori. O
principal contraste emerge, evidentemente, da classe social, pois as
entrevistas realizadas pela autora foram com mulheres de classes
populares em sua maioria, enquanto no universo que eu pesquisei
todas as mulheres dispunham de um salário próprio e eram das
camadas médias. Esse fato definitivamente contribui para que
minhas interlocutoras tenham finalmente conseguido enfrentar
a ruptura do vínculo, diferentemente das mulheres citadas por
Gregori. No entanto, para muitas delas também “se emancipar”
implicou rever toda sua formação, suas crenças mais arraigadas e
confrontar àqueles que partilhavam desse universo de valores. Para
algumas, a separação também foi por muito tempo o “mal maior”
que só foi finalmente enfrentado quando algum componente da
estrutura familiar se viu ameaçado: no caso, os filhos. Neste sentido,
Cecilia – 38 anos, duas filhas, separada há 7 meses após nove de
casamento – comenta:

Uma das questões pelas quais eu me separo é também por minhas


filhas, porque não faziam bem pra elas as discussões, nem as cenas
que elas tinham que presenciar. A maior, aos cinco anos... Eu estava
arrumando a cama e ela me disse “mãe, por que você e o papai, que
brigam um monte, por que não se separam?” [Risos]. Aquela cama
ficou perfeita [risos], nunca arrumei uma cama daquele jeito.

Assim, em todos os casos, inclusive naqueles em que


a separação foi decidida em comum acordo, sua reconstrução
narrativa traçou processos extensos, aludidos por sentimentos
negativos, vinculados à decepção e à tristeza. Inclusive para aqueles
casais referidos como “muito compartilhados” e igualitários, a
separação foi uma decisão extremamente difícil de tomar, “uma das
292 | (Des)Prazer da norma

maiores dores da vida”, uma “grande frustração”. Como Bruna disse,


“imaginar outra vida é difícil”. Se há algo do ideal romântico nesses
discursos (a decepção pela perda do primeiro grande amor), não
acredito que esse seja o caminho da interpretação mais plausível.
De fato, o “amor” foi poucas vezes acionado por si só para explicar
uma união ou uma separação. Pelo contrário, tive a sensação de que
neste universo, se remeter exclusivamente aos sentimentos para
explicar uma separação poderia ser facilmente julgado como egoísta
e “descomprometido”.
Alguma pista é dada pelo cenário descrito por Cosse (2010)
em relação à discussão da primeira lei de divórcio vincular na
Argentina, há mais de cinquenta anos atrás: o divórcio, sem ser
alheio às dinâmicas familiares, era concebido como um desvio das
condutas normais e desejáveis. Uma solução extrema que significava
o fracasso do modelo familiar assentado na condição de mãe, esposa
e dona de casa, e homem provedor. Nesta direção, as transformações
dos anos 1960 não impugnaram a validade do matrimônio senão de
um modelo conjugal: o doméstico. Isto é, o casamento para toda a
vida como estado que completa a identidade feminina e a masculina,
baseado em uma relação de complementaridade com iniquidade
(Ibid., p. 131). Junto a estas continuidades, as crises conjugais que me
foram narradas incorporam elementos do que viria a ser o modelo
seguinte, em resposta às expectativas depositadas no casal e aos
desafios da igualdade. É nessa transição entre um modelo doméstico
em crise e as novas exigências de um modelo igualitário que a dor
deva ser aqui pensada. Expressada como “frustração”, “fracasso”,
“queda de um ideal”, essa dor é produto das expectativas depositadas
na relação, expectativas que embora se contraponham ao estereótipo
da Susanita, conservam muitos dos valores da “mulher sacrificada”
e paciente. Em outras palavras, apesar da domesticidade não mais
constituir uma norma nem um valor, pois o emprego próprio é
altamente valorizado, em um sistema generificado de distribuição
de virtudes o lugar do feminino continua sendo o do sacrifício. Nesse
sentido, é o mesmo sistema que rege a “economia generificada do
tempo ‘ganho’ e do tempo ‘perdido’” sobre a qual se debruça Camila
Fernandes em capítulo que compõe este livro.
Em relação à vida posterior ao divórcio, algumas mulheres (a
minoria) tinham constituído um novo casal estável, dentre as quais
Virginia e Bruna manifestaram estar considerando a possibilidade
Afeto | 293

de planejar uma maternidade junto aos seus parceiros atuais.


Todas essas novas uniões deram-se no marco da consensualidade,
e nenhuma delas expressou vontade de se casar novamente. Com
exceção de Luciana, que estabeleceu uma nova união rapidamente
e inclusive tinha dois filhos com seu novo parceiro, para as
demais, a dificuldade em conhecer alguém e construir um novo
relacionamento estava diretamente ligada à complexidade do
processo posterior à separação. De modo geral, elas não rejeitavam
a possibilidade de “alguma vez” ter de novo um relacionamento,
mas o enxergavam como um futuro distante. Enquanto algumas,
como Cecilia, expressavam uma estranheza frente à situação de sair,
se arrumar, dançar, outras questionavam a modalidade desse novo
relacionamento, manifestando a vontade de ter uma união estável,
escolher um parceiro, mas sem chegar à convivência. Pamela, por
exemplo, atribuiu essa condição ao fato de ser mãe, pois no momento
não se sentia confortável com a ideia de que alguém interviesse na
educação de suas filhas, além do próprio pai. A centralidade dos
filhos na vida dos divorciados e divorciadas tem sido apresentada
por outros estudos (Solsona, 2009), que observam o adiamento
ou a renúncia da reconstrução da vida conjugal justificada na
priorização dos filhos. Em minha pesquisa, essa priorização foi por
vezes descrita como mais um empecilho para construir um novo
relacionamento a partir de uma leitura das expectativas masculinas
que reforçava padrões hierárquicos das relações de gênero. Nesse
sentido, projetando sua própria visão da conjugalidade, Araceli se
sentia duplamente prejudicada, pois por um lado “o cara separado
prefere uma mulher solteira e o cara ‘familieiro’ prefere começar de
zero”; por outro lado, em lugar de valorar a autonomia feminina, os
homens, segundo ela, “se sentem ameaçados”.

Considerações finais

O processo de ruptura e a reconstrução da vida posterior


não podem ser fáceis porque isso contraria a concepção de mulher
“lutadora”, persistente e compreensiva à que estas mulheres aderem.
Nesse sentido, nenhuma delas se separou por “não sentir mais
amor”; assim como nenhuma delas se apaixonou rapidamente por
outra pessoa (exceto Luciana talvez, apesar dela não salientar isso
294 | (Des)Prazer da norma

no seu discurso). Acredito que a “tristeza” e a “frustração” devem


ser pensadas nessa direção: há um afastamento da normativa da
domesticidade, mas não há um afastamento equivalente das virtudes
da “mulher sacrificada”. Por essa razão, gostaria de fechar este texto
fazendo algumas considerações em torno do chamado processo de
individuação. Se for verdade que as mudanças nos padrões culturais
que governam as relações de casal em direção a uma maior equidade
entre gêneros implicam a ampliação dos graus de liberdade (Jelin,
1996, p. 38), o estudo de contextos sociais específicos nos obriga a
reparar algumas ambiguidades e sutilezas.
Em primeiro lugar, não é possível falar de um processo
de individuação sem gênero, pois a situação não é a mesma para
todo o mundo. Como observa Camila Fernandes, no artigo que
forma parte desta publicação, os homens parecem ter o tempo
para si dado de antemão, enquanto as mulheres devem praticar
cotidiana e paulatinamente o afastamento do tempo dedicado ao
cuidado de pessoas e relações. Neste quadro, o acesso ao emprego
não constitui unicamente um recurso mínimo de independência
econômica; ele produz um afastamento da sociabilidade doméstica,
até mesmo quando se constitui em um meio para “correr atrás”
dos desejos pessoais, e não um desejo pessoal em si mesmo. Entre
minhas interlocutoras, e não podemos esquecer aqui os marcadores
de classe que conformam este universo, a dedicação à profissão
escolhida constitui uma fonte de satisfação, distração e realização
pessoal. Neste sentido, quando a separação produz uma ruptura
com o universo de valores familiares, o emprego proporciona um
possível espaço de acesso a um cotidiano diverso. De todo modo, se o
âmbito profissional foi acionado a partir do apoio moral propiciado,
e neste sentido talvez seja possível falar de uma “ampliação de
horizontes” (Gregori, 1993, p. 138), esse espaço não se traduziu em
qualquer ajuda de fato, no que diz respeito às redes de solidariedade
necessárias às atividades de cuidado. Seguindo Fernandes (neste
volume), é possível afirmar que o emprego proporciona um “tempo
pra si”, mas se as exigências do “tempo dedicado” continuam sendo
as mesmas, uma pessoa pode não conseguir dar conta de tudo e se
sentir muito sozinha.
Na minha pesquisa, essa era a situação de Araceli, quem além
de ter que tomar as decisões, organizar e agenciar todas as atividades
das crianças (pois o pai delas morava em outra cidade), não contava
Afeto | 295

com a ajuda de ninguém. Ela dizia se sentir muito cansada, por


não poder “descansar em ninguém”;12 e sentia também “muita
solidão”. O caso de Araceli é o mais ilustrativo, mas não o único em
que o divórcio suscitou uma acentuação da autonomia, enxergada
como uma tendência irreversível e pouco valorizada, que pode ser
interpretada como uma individualidade forçada (Castellitti, 2013,
p. 41). É o mesmo significado da narrativa de Florencia. Ambos os
relatos tratam de reajustes da trama relacional como consequência
da separação, mudanças na autoimagem, percepção de si e projetos
que, embora simbolizem a reconquista de margens de autonomia,
possuem o fardo de uma individualidade forçada e difícil de reverter
(Castellitti, 2014, p. 120). Além disso, é irreversível porque, mesmo
considerando a possibilidade de construir um novo relacionamento,
elas duvidam de se seriam capazes de compartilhar as decisões que
tem a ver com seus filhos. Claro que essa situação não é geral, pois
para algumas a separação implicou em um ganho, materializado
na reconquista do tempo livre ou da própria imagem de mulher –
bonita, capaz de se ver e ser vista.
Isso nos leva a pensar em condições específicas da
autonomização, e a questionar uma correlação muito imediata entre
individuação e divórcio. A separação pode realmente ser resultado de
uma ruptura com vínculos conflituosos e de submissão. Ainda assim,
esta pode produzir solidão. E se o processo de ruptura for vivido
com muito sofrimento e dificuldade, as possibilidades de construir
um novo relacionamento de “compartilhamento” diminuem ou, no
mínimo, são postergadas. Em tudo isso, são fundamentais os papéis
de gênero adotados, questionados e negociados. E aqui o processo
também não é linear: uma prática dita “moderna” pode conduzir
a uma experiência dolorosa, e produzir assim uma revalorização
da prática “tradicional”. Padrões distintos de comportamentos
instituídos para homens e mulheres são atualizados em relações
interpessoais que são vividas como únicas (Gregori, 1993, p. 130).
Finalmente, para interpretar essas ambiguidades se
faz necessário reparar na interseção entre modelos familiares
e classe social, e as especificidades que esta adota em cada
contexto nacional. A família de classe média argentina ainda hoje

12 “Descansar en” é uma expressão que em espanhol tem um significado semelhante


a relegar.
296 | (Des)Prazer da norma

constitui uma dimensão central das formas de diferenciação social,


conseguindo apelar a uma associação rápida entre moralidade
e posição social. Neste aspecto encontra-se uma especificidade
da noção de “individualismo” no contexto argentino. Segundo
apresenta o historiador Ezequiel Adamovsky (2012, p. 279), o
caráter individualista da classe média argentina se baseia tanto no
valor atribuído à mobilidade ascendente, quanto nas tendências
contrárias às identificações coletivas ou à formação de identidades
grupais, principalmente dos que se identificam como “classe média”
em oposição aos setores mais baixos ou populares. Neste sentido,
acredito que refletir sobre as ambiguidades dos papéis de gênero
em seu entrecruzamento com práticas de diferenciação social
seja uma via produtiva para continuar analisando os “custos” da
ruptura conjugal em contextos sociais específicos. Na corrida para
a ascensão social – econômica e moral – o divórcio ainda representa
um empecilho para as classes médias argentinas.
O tempo do cuidado: batalhas femininas por
autonomia e mobilidade

Camila Fernandes1

A partir da trajetória de vida de uma mulher, pretendo


mostrar como a batalha empreendida em busca de sua autonomia,
por melhores condições financeiras e mais qualidade de vida, se
faz a partir de lutas pela apropriação de tempos, subjetividades,
pertencimentos e mobilidades. Nesta batalha, emergem dois tempos
em conflito, o tempo de “ficar com” a criança concorre com o tempo
de “correr atrás”. Estas duas experiências com o tempo, uma vez
reunidas, evidenciam uma das profundas assimetrias do gênero nos
cuidados, a saber, a fruição do tempo e a produção de mobilidades.2
O tempo, assim como outras categorias e experiências
humanas, não é unívoco tampouco auto evidente. A noção particular
e hegemônica do tempo no Ocidente está estreitamente vinculada
ao desenvolvimento dos colonialismos, do imperialismo e do
capitalismo financeiro, em sentenças célebres tais como “tempo é
dinheiro”, bordão de campanhas pelo “progresso” e a urbanização em
larga escala. Forças desenvolvimentistas são ancoradas e motivadas
a partir de um melhor aproveitamento e maximização do tempo
(Borges, 2004, pp. 15-31). Nestas perspectivas, ter tempo significa
ter poder.
Entretanto, tal enquadramento sobre a experiência temporal,

1
Camila Fernandes é Doutora do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este artigo
é fruto da dissertação de mestrado intitulada: “Ficar com. Parentesco, Criança e
Gênero no cotidiano”. O trabalho foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF) e orientado
pelo Prof. Dout. Jair de Souza Ramos. Para esta versão do artigo, agradeço a minha
orientadora de tese, Adriana Vianna, pelas interlocuções ao longo do doutorado e as
indicações cruciais que me permitiram escrever este trabalho. Agradeço também os
comentários e críticas preciosas de María Elvira Díaz-Benítez e de Everton Rangel.
2
“Ficar com” é o termo utilizado para falar das relações e necessidades de cuidados,
neste caso, das crianças. Relações nas quais é preciso cuidar e se importar, bem
como, habitar situações de controle e vigilância. Diz respeito aos atos e gestos que
misturam o amor e o conflito, a obrigação e o prazer, o compulsório e o voluntário,
este termo foi elaborado na dissertação de mestrado (Fernandes, 2013).
298 | (Des)Prazer da norma

apesar de dominante, é particular, assim sendo, cabe deslocar esta


noção de um tempo acumulativo e produtivista, para dar lugar a
outras noções de tempo existentes. Neste artigo, procuro discutir
como a noção de tempo se articula ao gênero no contexto das classes
populares. Na vida de pessoas que precisam dispor desse elemento
fundamental para garantia da sobrevivência e do “correr atrás”.
“Correr atrás” compreende um conjunto de ações necessárias
na tentativa de conseguir “uma vida melhor”. Diz respeito as formas
de viração, os arranjos e as composições feitas por pessoas de classe
popular na luta pela conquista de um emprego, no desenvolvimento
de um “negócio próprio”, em “fazer dinheiro”, em “estudar”, em
cultivar projetos de lazer ou de construção e melhoria das moradias.
A categoria envolve também a peregrinação por algum direito
ou serviço público para um familiar que precise, bem como pode
propiciar a constituição de casamentos, namoros e relações sexuais
e afetivas.
Na necessidade desta “correria”, veremos que diferentes
temporalidades modulam significativamente condições de
mobilidade, que por sua vez, determinam acesso a bens, afetos e
vivências. Nesses circuitos, as atividades de cuidado com os outros,
em particular, com as crianças, têm especial inflexão nas disputas
sobre o tempo, uma vez que “ter tempo para mim” significa poder
desenvolver capacidades e habilidades que podem gerar “uma vida
melhor”. Neste quadro, encontramos o tempo do cuidado, em seu
ritmo cíclico, intermitente, constante e percebido como tal, diferente
do tempo cronológico, organizado a partir de estruturas arbitrárias
nas quais a ação social dependeria da simples ou heroica irrupção da
vontade dos homens.
Nas teorias do tempo de inspiração feminista, Carolina Pombo
(2013) evoca duas imagens presentes na metafísica universalista,
correlatas a uma perspectiva ontológica atribuída as identidades
e sobretudo a experiência das maternidades. A “mãe universal”
corresponde a mística de um tempo ilimitado, transcendental, livre
de contingências e feminino. E a “mãe eterna”, um manancial do
tempo, fonte de um elemento vital sempre disponível aos outros.
Entretanto, ao lado das imagens míticas de um tempo feminino
invariavelmente disponível aos outros, a autora lembra que para
sujeitos localizados em relações concretas, o tempo “é um elemento
definidor da maternidade” (Pombo, 2013, p. 13).
Afeto | 299

Nesta chave, procuro desenvolver como a noção de um tempo


abstrato e linear, não é suficiente para dar conta das batalhas nas
quais pessoas de classe popular estão comprometidas em suas
lutas cotidianas. Proponho que levemos em conta uma noção de
tempo que considere as relações de cuidados, na disputa incessante
entre o “tempo pra mim” e o “tempo de correr atrás”. Como aponta
o sociólogo Marc Bessin: “Este tempo dominante do relógio não
está adaptado para descrever o trabalho na sua complexidade
generificada” (Bessin, 2013, p. 107).3
Para Bessin (2014), a temporalidade atua como princípio
estruturante de gênero. Ao considerar a trajetória das pessoas
na relação com políticas de Estado, Bessin desenvolve o conceito
de “presença social”, para analisar situações nas quais os sujeitos
vivem uma relativa autonomia, graças ao suporte dado por outros
através de dialéticas de presenças e ausências que possibilitam
tanto a provisão de bens e acesso a mercadorias sociais, bem como
a superação de contextos de vulnerabilidade. Ao longo de trajetórias
de vida, sujeitos participam de circuitos de cuidados, sejam como
provedores, receptores ou ambos. Esses fluxos de interdependência
são também mediados por diferenças articuladas a gênero, idade,
classe e raça. Estas dialéticas de presenças e ausências, não se
resumem apenas aos aspectos materiais da vida, mas envolvem
arquiteturas morais e subjetivas de controle e poder.
Desta maneira, a descrição que se segue não diz respeito a
produção de sujeitos “independentes”. Meu objetivo é demonstrar
como as assimetrias de engajamento de tempo nas relações entre
homens e mulheres, exprimem a colonização de possibilidades
de existência, fazendo com que alguns sujeitos se encontrem
territorializados em roteiros culturais difíceis de serem contornados.
Para acompanhar essas disputas, evoco itinerários de vida nos quais,
rupturas conjugais descortinam ordens de privilégios, poderes e
prejuízos.

3
No original: “Ce temps dominant de l’horloge n’est pas adapte pour décrire le
travail dans sa complexité genrée” Tradução da autora.
300 | (Des)Prazer da norma

Rupturas conjugais, tempos e vínculos em transformação

Oriundo de uma Cidade do Norte-Fluminense, Marcio


chegou à Cidade de Niterói para fazer o curso de Geografia em
uma grande universidade local. Como habitual entre os estudantes
que migram com esta finalidade, Marcio alugou um quarto em um
pensionato universitário. O rapaz logo se incorporou ao circuito
de bares e festas noturnas presentes no entorno da universidade.
Entre o lazer e as aulas no campus, ele conheceu a mulher com
quem mais tarde teria um filho.
Débora e Marcio viveram uma “paixão avassaladora”, como os
amigos recordam. Reconhecidos como um casal “diferente”, a união
do par representava uma ruptura com fronteiras diversas. A narrativa
da “diferença” existente entre os dois era esboçada em diversos
momentos, seja pelos amigos, ou pelo próprio casal. Para os amigos,
tal “diferença” estava concretizada na reunião de inúmeros aspectos,
na alteridade de classe, de moradia e de acesso ao capital cultural.
Marcio, seguia com sua formação universitária através do auxílio
familiar. Débora, morava em uma favela, não havia completado o
ensino fundamental e estava distante das ajudas oriundas da sua rede
de parentesco.4 Entretanto, em meio às “diferenças” recorrentemente
explicitadas, ambos viviam uma relação apaixonada e estável.
Tornaram-se mais próximos com o decorrer do tempo e a partir de
inúmeras manifestações sentimentais.
A decisão de morar juntos no pequeno apartamento
comprado por Marcio se consolidou meses depois. Marcio havia
reservado uma quantia em dinheiro (fruto de um antigo emprego).
Com a ajuda dos parentes paternos conseguiu financiar a compra de
um imóvel próximo à universidade. Tudo corria bem até o momento
em que Débora suspeita de uma gravidez. A partir de então, o rumo

4
Em sua trajetória de vida, cabe descrever que Débora nunca contou com redes
de parentesco “de sangue”. Ela foi criada em um “orfanato”, como se chamavam os
antigos abrigos para crianças. Com poucas lembranças de sua família biológica,
Débora cresceu em instituições de abrigo na Cidade do Rio de Janeiro e saiu do
“orfanato” com dezoito anos de idade, após atingir a maioridade. Após sair da
instituição, ela morou em diversas favelas da Cidade até se fixar no morro do Palácio.
Quando fez 21 anos, Débora descobriu o endereço de sua mãe biológica e buscou
conhecê-la, mas os encontros não foram suficientes para estabelecer uma relação
mais próxima, de modo que Débora preferiu manter a distância.
Afeto | 301

dos amores e dos estados afetivos começam a se alterar.


Marcio conta que a relação passou a “degringolar” diante
da “gravidez não planejada”. Os atritos e discussões tornaram-
se constantes na rotina do casal e tudo que anteriormente não
se configurava como problema passou a se apresentar enquanto
tal; a alteridade de classe, a relutância acerca da continuidade
da gravidez e as críticas a gravidez “inesperada” oriundas dos
familiares de Marcio. A problemática gira em torno do impacto
que um filho representa na vida de ambos, “Eu não pensava em ter
filho tão nova, sabia que criança daria trabalho pra mim e eu não
estava acreditando”, conta Débora. Marcio lembra que: “a gravidez
caiu como uma bomba, estava na faculdade, começando a vida e
simplesmente não estava pronto”.5
Fazia alguns meses que estavam namorando e juntos
sob o mesmo teto, tudo parecia se desmoronar com a notícia da
contracepção. A relação marcada pelo romantismo e alegria passou
a exprimir um conflito cada vez mais avultante. Porém, ao mesmo
tempo, gestos de convencimento em torno da gravidez se reforçavam.
Débora recorda do dia em que fez o exame de ultrassonografia e
que, ao ouvir o coração da criança bater, não teve dúvidas quanto
à continuidade da gestação. Ela que não pensava em ter filhos,
conta que naquele momento sentiu-se encorajada e motivada para
“encarar a aventura”, dizia a si mesma, “fácil não vai ser”, mas em
sua opinião, preferia ter um filho a fazer um aborto, uma vez que

5
Descrevo de que forma tive acesso as diferentes fases da vida de Débora, bem
como, das impressões e pontos de vista de amigos e familiares. Eu e Débora nos
conhecemos por volta do ano de 2005. Nossa relação de amizade se iniciou a partir da
convivência na creche universitária da UFF, uma vez que nossos filhos frequentavam
a mesma instituição. Pedro teve acesso a creche universitária devido a vinculação de
seu pai como aluno e minha filha tinha acesso a creche através de minha vinculação
como estudante de graduação no curso de Serviço Social. Anos depois, eu ingresso
no mestrado em Antropologia na UFF e inicio uma pesquisa sobre cuidados de
crianças. Não por acaso, pensei que a trajetória de Débora poderia fazer parte da
dissertação, fato discutido e estimulado por ela, que me apoiou sobre a importância
de contar esta história. Mais tarde, Débora foi viver em Búzios e Pedro passa a “ficar
com” o pai. Somente neste período, tive a oportunidade de conhecer Marcio e ouvir
suas narrativas sobre os cuidados com Pedro. Desta forma, o material apresentado
aqui trata de um período de sete anos, idade que a criança tinha no momento que
passou a viver com o pai. Este tempo longo de interlocução foi fundamental para
acompanhar as disputas narradas aqui, bem como ter contato com as impressões
de amigos e familiares relacionados.
302 | (Des)Prazer da norma

tanto o procedimento, quanto a ideia da interrupção da gravidez lhe


amedrontavam.
Da parte de Marcio, a decisão pelo aborto prometia resolver
a situação, uma vez que ele dizia constantemente, “não me sinto
preparado para ser pai”. Além do sentimento de não se sentir
“preparado”, Marcio também não desejava um filho. Porém, ele conta
que não quis contestar e nem impor uma resolução, que em sua
opinião, caberia à mulher:

Nunca insistiria pra ela abortar, apesar de achar melhor, não queria
ter filhos, mas também não seria o fim do mundo levar adiante, e
no final das contas a decisão acaba sendo dela, porque ela que teria
que fazer o aborto e carregar este trauma.

Assim, motivados por diferentes ideias feitas de hesitações,


dúvidas e certezas, a decisão pela gravidez acabou sendo acordada por
ambos que concluíram que, “o que está feito, solucionado está”. Com
essa frase Marcio relembra a decisão quanto ao futuro da gravidez.
Entretanto, ainda assim o casal decide se separar, avaliam juntos que
um filho não é motivo para manter duas pessoas unidas e que não
possuíam “amor suficiente” para permanecerem casados. Para fins
pragmáticos, ambos pactuam o seguinte combinado; Débora ficaria
morando na casa comprada por Marcio e ele iria se mudar. Ela ficaria
com a criança, seria, portanto, a mãe quem se ocuparia dos cuidados
diários com o filho. Marcio sairia de casa e deixaria, como sua parte
no assunto, a casa para o seu filho viver com sua ex-namorada. Neste
combinado, visitas ao filho e pensão alimentícia foram discutidos,
tudo feito através de conversas e divergências calorosas relativas
aos valores e as exigências de alguns “bens de cuidado” para o bebê
(Vianna, 2002, pp, 85-160).6 No entanto, dada à vontade de se verem

6
Em seu trabalho sobre a gestão de “menoridades”, através de processos de guarda
de crianças na Justiça, Adriana Vianna analisa as situações de disputa e negociação
de responsabilidades em torno dos cuidados. Vianna percebe o lugar especial dos
chamados “bens de cuidado”, um conjunto de objetos e mercadorias que encarnam e
materializam as virtualidades dos sentimentos e intenções. A provisão e doação dos
“bens de cuidado” são indicadores de legitimidade dos “responsáveis”, ao mesmo
tempo em que exemplificam o amor e o compromisso para com o zelo de crianças,
como demonstra a autora: “todos os bens de cuidado exaustivamente listados
– berços, brinquedos, planos de saúde, pediatras particulares etc. – representam
sinais do investimento que pode ser calculado e, ao mesmo tempo, que nunca pode
Afeto | 303

logo “livres um do outro”, como recorda Débora, o arranjo encontrado


caiu como a melhor saída. A mulher ficou com o filho e o homem
saiu de sua casa recém comprada. O acordo não deixa de transmitir
a ideia de uma compensação por uma espécie de “acidente”. De um
lado, mulher, casa e criança. Do outro, homem e rua.
O menino Pedro nasce. Antes de completar seu primeiro ano
de idade, a criança é diagnosticada com “sopro no coração” e precisa
realizar uma cirurgia. Todo o processo de cuidados, incluindo
a busca por médicos, o diagnóstico, o tratamento, a cirurgia e o
pós-operatório foram viabilizados por Débora e suas redes de
conhecimentos pessoais; a amiga que conhece um médico que pode
ajudar, a dona da padaria sensibilizada com o estado da criança doa
os remédios, os vizinhos levam a criança de carro para as consultas
em hospital distante na Cidade do Rio de Janeiro. Nesta temporada,
Marcio está “distante” e pouco aparece devido ao trabalho como
professor recém-formado. Ele acabara de conseguir um emprego
como professor em dois colégios privados.
Apesar da casa deixada pelo “ex”,7 Débora vive em condições
de pobreza, durante os primeiros quatro anos após o nascimento
do filho, ela não consegue emprego e de vez em quando faz “bicos”
para “se virar”. Os únicos trabalhos que surgem são de faxineira ou
empregada doméstica, contudo ela conta que nunca se adaptou a
realidade do trabalho doméstico, “trabalhar em casa de família é um
saco, não gosto, não sei cozinhar e também das vezes que tentei fui
maltratada, porque acham que você é qualquer um”. As lembranças
de maus tratos em “casas de família” deixaram uma marca perversa
na vivência de Débora, realidade a qual ela resistia em se sujeitar
novamente. Como mulher negra, criada em instituições de Estado
e com uma escolarização precária, as únicas propostas de emprego

ser expresso claramente em termos materiais, já que serve de indicativo da ação


desinteressada que não espera pagamento imediato ou não o espera na mesma
moeda” (Vianna, 2002, p. 31).
7
“Ex-mulher”, “ex-marido” e “ex” são termos utilizados pelos interlocutores para
se referir à pessoa com quem terminaram a conjugalidade, o namoro ou um “caso”.
Também é comum que estes se refiram ao “ex” como “o pai dele” ou “a mãe dela”
demarcando a sobrevivência da relacionalidade para com os filhos e não mais à
afetividade-sexual entre os ex-pares. É interessante notar que não existe o antípoda
do termo “ex-mulher”, excluindo, por imaginação, um “ex-homem”, significando que
homens não pertencem as mulheres a ponto de se tornar um ex.
304 | (Des)Prazer da norma

doméstico não surgem aleatoriamente, mas se constituem como


parte de um conjunto de diferenças raciais, de classe e gênero que
se interseccionam e expõem um campo de expectativas e lugares
sociais que orbitam entorno das trajetórias de determinados sujeitos
(Crenshaw, 2002).
Em um dia qualquer, Pedro, uma criança muito carismática,
é identificado na rua por um agente de comerciais infantis, que
propõe a Débora uma visita a uma agência de publicidade. Este
agente rapidamente insere o menino no mercado das propagandas
com crianças e assim ele grava comerciais para grandes empresas
como, “TIM”, “VIVO”, anúncios de TV com o jogador de futebol
Ronaldo, “o fenômeno”, aparecendo em diversos catálogos de
grifes infantis. O encantamento vivenciado nesta experiência foi
suficiente para o menino ser reconhecido como “uma estrela” na
creche que frequentava, de modo que ele e sua mãe gozaram deste
reconhecimento frente a rede de amigos que participavam.
Durante esta temporada, Débora e Pedro vivem do dinheiro
fruto deste trabalho. O pagamento recebido com as aparições do
menino não é mensal e varia em quantia e regularidade. Por isto,
mesmo com o recebimento de uma soma que podia chegar ao valor
de até R$ 5.000,00 reais, com o passar dos meses, o dinheiro se esvaía
com as contas da casa, remédios, transportes, comida e roupas. Com
esta renda, Débora e Pedro ainda precisavam das ajudas de amigos
para sobreviver, que sempre davam comidas, roupas para a criança,
brinquedos entre outras. Como lembra uma amiga da família, “o
menino é muito querido”. Aqui, é importante salientar que “o trabalho
da criança”, eclipsa o “trabalho da mãe”. Manter a criança viva e digna
de atenções é resultado de um esforço contínuo e compulsório feito
por Débora ao longo dos anos. Ademais, os deslocamentos da criança
entre testes, gravações e filmagens só eram possíveis graças ao seu
engajamento de tempo, dinheiro e planejamento. Logo, ao dizer que
ela vivia do trabalho do filho, podemos entender que o trabalho do
filho só era possível mediante o trabalho da mãe no investimento de
tempo feminino dedicado a vida da criança. Um tempo quase nunca
reconhecido socialmente.
Mais tarde, Pedro atravessava seu quinto ano de vida. A
relação entre Débora e Marcio passou a se tornar cada vez mais
conflituosa. Confrontos sobre dinheiro não dado a criança eram o
mote das confusões, quase sempre perpassadas por xingamentos
Afeto | 305

e acusações. Trocas de ofensas e recordações do passado eram


acionadas como bombas durante as discussões. O clima espinhoso,
as palavras ferinas e a raiva sentida por ambos não deixavam dúvidas
aos olhos do entorno que acompanhavam o desenrolar destes
momentos, tratava-se de “uma guerra”. Como professor do ensino
médio, Marcio dizia viver chafurdado em dívidas, por isto nunca
conseguia dar o dinheiro combinado na data certa e quando pagava,
faltava sempre uma parte considerável.
O valor da pensão era de R$ 300 reais e foi acordado após
debates fervorosos, que explicitavam a dificuldade em negociar e
qualificar o trabalho e a contribuição de cada um, o tempo dedicado
ao cuidado, bem como, estabelecer o preço do cuidado de uma
criança (Zelizer, 2011). Débora, se via extremamente cansada com
as ausências financeiras e afetivas do pai do menino, “se fosse só o
dinheiro que ele não comparece, mas você vê, nem pra ficar com o
menino ele presta. Não dá atenção pro filho. O Pedro infelizmente
não tem um bom pai”. A narrativa reúne, a um só tempo, a demanda
por afeto, presença e dinheiro, que a cada temporada se acumulam
em um repositório profundo de dívidas e mágoas.
Por outro lado, Marcio não consegue conciliar o pagamento
das contas do menino com o aluguel no bairro de Santa Tereza, junto
de suas despesas pessoais. Soma-se a isto o sentimento de prejuízo
em ter deixado o apartamento para “ex”. Na intenção de reduzir
gastos, Marcio decide retomar seu apartamento, pois de acordo com
seu cálculo, sem o gasto com o valor do aluguel ele teria dinheiro para
transferir ao seu filho, como ele explicou. Assim, Marcio comunica a
Débora que ela deveria arrumar um lugar para morar uma vez que o
apartamento não era seu.
A notícia da exigência da mudança deixa Débora
completamente perplexa com a “falta de sensibilidade” do “ex”,
contudo, nada impediu que o rapaz voltasse para o seu apartamento,
ainda que Débora tenha apelado diversas vezes para o “bem-estar da
criança”, “eu disse a ele que não teria onde morar com o filho dele,
mas ele quis a casa e não se importou”. Sem ter onde morar, Débora
consegue um pequeno quarto em uma ocupação na rua Passo da
Pátria. O quarto tem espaço suficiente para acomodar o tamanho
de uma cama de solteiro e mais algumas roupas e objetos pessoais.
Porém, mesmo com a mudança de casas, Marcio continua “distante”,
em relação a pensão e ao “contato”.
306 | (Des)Prazer da norma

A categoria “contato” não se trata de mera comodidade


descritiva, mas exprime as ideias de conexão e “relacionalidade”
desenvolvidas nos trabalhos de Janet Carsten (2004). Ter “contato” é
ter relação, quem realiza o cuidado mantém-se “em contato”. Através
do “contato” relações se legitimam ou se desqualificam. A “falta de
contato” produz o descrédito da distância. Nem todos os “contatos”
têm o mesmo peso no âmbito de um grupo, o “contato” também não
necessariamente implica a proximidade física, tampouco o “estar
junto”. É possível se fazer “presente” através do “contato a distância”,
a partir da provisão de alguns “bens de cuidado” e da coexistência
de um fluxo de coisas e dinheiro (Vianna, 2002; Weber, 2005). Tanto
a proximidade quanto a distância são correlatas à relacionalidade,
pois expressam com quem se pode contar, com quem as pessoas
ficam e, também, com quem se renova os sentimentos de parentesco.
Assim, “distância” e “proximidade” são as marcas de quem está fora
ou dentro da rede de cuidados, a exemplo de fluxos de dinheiros
que podem exprimir “contato”. Contudo, a natureza das ajudas e
colaborações possui diferentes sentidos para os agentes, sentidos
estes que aparecem no decorrer da descrição.
Por conta das constantes perturbações sofridas, Débora
decide “entrar na Justiça” contra Marcio. Após três audiências
e muitas discussões, “a Justiça” define o valor de 20% do salário
do homem, o que resulta na quantia mensal de R$ 290 reais,
menos do que Débora recebia quando longe da “Justiça”. Além
do processo por pensão alimentícia, Débora aciona um processo
relativo ao apartamento do “ex”, porque segundo ela, agora só lhe
resta uma alternativa: “cair pra dentro”. Ela ainda tinha esperanças
de garantir sua antiga moradia. Assim, seu advogado, com base no
reconhecimento da lei de “união estável” requer direitos sobre parte
do apartamento que Débora viveu. Entretanto, o Juiz não reconhece
a causa e Marcio, que já havia recuperado seu apartamento, agora
goza de total legitimidade da lei. Débora perde duas vezes, na vida
cotidiana e na “Justiça”.
Após esta sucessão de acontecimentos, Débora continua
vivendo de “bicos” sazonais, com as propagandas infantis feitas pelo
filho e um emprego como garçonete duas vezes por semana em um
bar noturno do bairro. Contudo, os trabalhos do menino são cada
vez mais raros. Conforme o seu crescimento, a criança se mostra
menos disponível e receptível nas gravações e sessões de fotos, o que
Afeto | 307

leva, tanto as agências, como Débora, a desistir do empreendimento


paulatinamente. Débora segue cuidando do menino diariamente, é
ela quem o leva de ônibus para a escola pública no bairro de Icaraí e
nas consultas médicas, ela é a responsável pela feitura da comida e
pela orientação nos deveres de casa. É ela que “passa tempo” com a
criança todos os dias.
Para trabalhar a noite, Débora sai de casa e enrola uma
corrente com cadeado no portão, bem como, orienta seu filho para
que não abra a porta para ninguém. Neste momento da trajetória,
Pedro tem sete anos, está habituado a ficar sozinho em casa e diz que
não se sente só, pois adora ver televisão. A televisão a cabo é uma
companheira do menino que assiste sem piscar, como em hipnose,
os programas da Disney e Cartoon Network.8
O tempo passa e Débora recebe uma proposta para trabalhar
em Búzios em uma grande creperia da cidade, além do emprego
noturno, existe a possibilidade de trabalhar como caseira na
residência de dois estrangeiros, fato que pode lhe proporcionar mais
um salário e moradia gratuita. A luta por emprego sempre estivera
presente na narrativa de Débora. Cansada de toda esta trajetória, de
não ter dinheiro e das condições precárias de moradia na ocupação
ela resolve deixar Pedro com os parentes do “ex”:
Estou cansada, esgotada, não tenho tempo pra mim, cuidar de
Pedro me toma toda, vai ser difícil, mas não vejo outra solução,
preciso trabalhar, fico muito presa por causa dele, porque fazer as
coisas pra ele me toma todo o tempo.

Após refletir durante meses acerca de sua decisão, em


reunião com Marcio e sua família, ela anuncia aos presentes que não
ficaria mais com Pedro. Débora expôs suas dificuldades ao longo de
todos aqueles anos, de conseguir alimentação, de moradia, da falta
de tempo para si, das dificuldades em conciliar sua temporalidade
com a rotina da criança, questões de “dignidade”, como ela pontuou.
Débora expôs a necessidade de pensar sobre a sua vida e que, pela
primeira vez, seria preciso “correr atrás” de seus desejos pessoais,

8
A televisão acaba operando o cuidado da criança, uma vez que é em sua companhia
que o menino se afasta da solidão e se mantém entretido, ao mesmo tempo em que
Débora se sente menos angustiada. A ocupação onde Débora vive possui “gato de TV
a cabo” e por este motivo a criança tem acesso à rede de canais da televisão fechada.
308 | (Des)Prazer da norma

como fazer o curso de costura e customização que tanto almejava.


Enquanto os parentes se veem chocados com a decisão, a irmã de
Marcio faz uma espécie de defesa em meio ao julgamento coletivo
de todos e recorda das inúmeras vezes que Débora dedicou seu
tempo à criação do menino. Talvez por uma identificação de gênero,
esta mesma tia decide assumir os cuidados do menino “durante um
tempo”. Depois de mais algumas conversas, foi acordado que toda a
família paterna ajudaria na criação, através da compra de roupas,
da doação de dinheiro, das despesas com o colégio e do pagamento
de assistência médica mensal. O circuito de circulação da criança
se altera (Fonseca, 1995b; 2000). Pedro sai de Niterói e vai morar
com sua tia paterna e seu marido no bairro do Méier, na cidade do
Rio de Janeiro, mudando de escola pela quarta vez. Os avós paternos
passam a ajudar financeiramente nas despesas do menino e o pai de
Pedro também se integra ao fluxo de cuidados através das visitas ao
filho na casa da irmã. O marido da tia de Pedro também se incorpora
no circuito e passa a fazer parte do cotidiano do menino como uma
das referências nos cuidados.
Cabe salientar para a forma socialmente estruturada na qual
a responsabilidade pela criança foi atribuída a mulher. A partir do
gesto de Débora, vemos que toda uma rede de parentes é incluída no
suporte a responsabilidade paterna. Anteriormente a esta decisão,
os parentes pouco ajudavam, entretanto, é somente a partir do
esgotamento da posição de mãe que a família paterna entra no circuito
dos cuidados. Marcio ainda realiza um papel apagado, amparado por
inúmeros familiares que se disponibilizam. Cabe perguntar, porque
motivos somente em condições de esgotamento do papel materno é
que outros atores sociais se agitam e entram em cena?
Cerca de quatro meses após essa resolução, a tia de Pedro
engravida e delega ao seu irmão, pai do menino, que fique com a
criança, uma vez que ela estaria ocupada com o seu próprio filho.
Logo, após sete anos do nascimento de seu filho, Marcio passa a
“ficar com” a criança diariamente. Mais uma mudança ocorre, Pedro
volta a viver em Niterói agora com seu pai, trocando novamente de
residência e colégio.
Na última vez que conversamos, Marcio não cessou de
reiterar seu amor e consideração pelo menino e diz que “graças a
Deus, agora tudo vai ficar bem”. Marcio criticou as decisões da “ex”
em relação à educação dada ao garoto (o excesso de televisão, a
Afeto | 309

moradia na ocupação, a escola pública) e lamenta “o tempo perdido”,


“nunca quis ficar todo este tempo sem estar próximo dele, é que eu
não tinha condições sabe? Mas fazer o que, né? Ela cansou de ser
mãe, agora ele está comigo”.
Marcio segue conciliando o trabalho de professor com os
cuidados do filho e diz que por conta deste encargo teve de abrir
mão do emprego de educador nos finais de semana que tanto
lhe beneficiava. Ele também lembra que seus gastos mensais
aumentaram, uma vez que agora, ele precisa pagar uma empregada
doméstica para ficar com seu filho em casa enquanto está no trabalho.
Porém, segundo ele, a cada novo dia “as coisas vão melhorando”.
Pedro sente saudades de sua mãe e entende a decisão tomada por
ela: “minha mãe fez muito por mim, ela precisa de um tempo pra
trabalhar e conquistar as coisas dela”.
Estes distintos acontecimentos distribuídos ao longo do
tempo, nos fazem pensar nos deveres de cuidados relacionados a
idade das crianças. Para Débora ficaram os piores anos do cuidado,
aqueles nos quais a criança é completamente dependente do ponto
de vista corporal e afetivo. Márcio se encarrega de cuidar em um
momento no qual a criança “já é grande” e possui características
de indivíduo. Podemos pensar que o tempo de “correr atrás”
conquistado por Debora só foi possível de ser pleiteado após a
realização da presença compulsória nos primeiros sete anos de vida
do filho. Talvez por isto, ela tenha encontrado alguma compreensão
de sua rede, o que não veio sem críticas fortes quanto a sua agência. O
que esse caso nos mostra é que gênero e cuidados se entrelaçam em
relação ao tempo que é permitido “correr atrás”, situacionalmente
posicionado em relação a idade dos filhos.

Cadências de poder que se espalham no tempo

A separação de um casal desvela os constrangimentos


em torno do compartilhamento do cuidado de uma criança,
associado as batalhas acerca do tempo e as respectivas mobilidades
engendradas. Situações de separação podem oferecer noções a
este respeito, pois, apesar do fim do conteúdo sexual-afetivo entre
os pares, outras relações emergem. A conjugalidade se finda, mas,
por vezes, a parentalidade permanece e as relações anteriormente
310 | (Des)Prazer da norma

experienciadas tendem a se reelaborar sobre outras regras, normas


e moralidades (Grzybowski & Wagner, 2010, p. 77).
O desenrolar da trama fala do modo como uma mulher
mobiliza forças para não se reduzir ao lugar natural atribuído ao
universo feminino dos cuidados. De modo relacional, acompanhamos
como um homem é chamado constantemente ao campo das suas
obrigações de parentesco. Após sete anos de vida de seu filho,
Marcio passa a realizar ações geralmente narradas no senso comum
como incompatíveis com um determinado padrão de masculinidade,
buscando conciliar sua mobilidade, emprego e cuidados da criança.9
Vemos de que modo as moralidades relativas à mulher mãe que
se afasta dos cuidados se atualiza nos julgamentos das redes
expectadoras e participantes da trama: “até hoje não acredito que
ela teve esta coragem”, diz a melhor amiga de Débora. “Ela sempre foi
maluca”, diz a avó de Pedro. “Não se faz isto, como se consegue viver
assim?”, diz outra colega. “Ela cansou de ser mãe”, comenta Marcio.
Certamente, Marcio também esteve sujeito às críticas coletivas.
Ao longo do crescer de Pedro a “ausência do pai” é frequentemente
marcada por amigos e conhecidos, contudo, todas as menções são
finalizadas com o tom da conformidade. Nestes assuntos, parece que
a “distância” dos homens é percebida com maior tolerância, o que
faz com que o fenômeno da “ausência paterna” seja lugar comum de
muitas masculinidades, um fato cultural aceito e sedimentado no
imaginário social.10
Desta maneira, ainda que homens e mulheres estejam

9
Sandra Unbehaun (1998) examina discursos que ressaltam a emergência de um
“novo homem” ou do sentimento de paternidade característicos da modernidade.
Neste arcabouço, supostas novidades de comportamento corroboram para um
maior engajamento de homens e cuidados, mudanças nas relações de trabalho entre
homens e mulheres seriam uma das reconfigurações mais influentes nesse sentido.
Contudo, a autora ressalta que é preciso reter o contexto no qual estas pretensas
mudanças ocorrem. Estes contextos são, em especial, o das camadas altas e médias,
no qual a escolaridade, o compartilhamento de tarefas domésticas, as teorias acerca
da pedagogia e os valores individualistas obram para uma perspectiva igualitária.
Ainda assim é possível ver engajamentos masculinos nos cuidados com as crianças
nas classes subalternas. Na dissertação de mestrado pude acompanhar homens
pobres que por diferentes razões vivenciaram proximidades cotidianas com seus
filhos (Fernandes, 2011).
10
Sobre paternidade, ausência e reconhecimento dos filhos ver o trabalho precioso
de Sabrina Finamori (2018).
Afeto | 311

sujeitos a expectativas e moralidades distintas, podemos afirmar que


a ressonância mais impactante em relação ao estigma recai sobre
mulheres, demonstrando como feminino e maternidade atualizam
deveres e obrigações no campo dos cuidados com as crianças.11
Em sua batalha para “ter tempo”, as ações de Débora fissuram este
cânone cultural fortíssimo e as assimetrias de gênero evidenciam-se
de forma gritante.
Quando mulheres se afastam dos cuidados, um campo de
ideias, ora tendenciosas, ora especulativas se aglomera. “Pesadelos”,
“culpa”, “julgamentos”, necessidade de terapias e diversas
“perturbações” são alguns dos termos enunciados por mulheres que
deixaram seus filhos aos cuidados de outros. Outra interlocutora da
pesquisa em situação similar comenta:

Não que eu quisesse cuidar deles, eu não queria mesmo, porque


não me vejo com a vida que tinha antes, eu não me dava bem com
o pai deles, brigávamos muito, mas a culpa de ter deixado eles com
o pai me persegue até hoje, tem dias que não consigo levantar da
cama, fico o dia todo chorando, me sinto errada, me sinto devendo
(Natasha, 27 anos).

Durante toda a pesquisa de mestrado, não encontrei


nenhuma narrativa de sofrimento masculino associada aos não
cuidados de crianças com tamanha carga de intensidade. Ao
contrário, recordo, por exemplo, da ocasião na qual um homem
comentou que havia acabado de conhecer um filho “perdido no
mundo” e que o rapaz, hoje com 22 anos, morava em outro Estado.
Este homem conversava sobre o ocorrido durante uma feijoada entre
amigos e parentes. Em escuta, os dois amigos presentes na conversa
continuam a discorrer sobre o assunto e contam sobre os filhos
que tiveram com “ex-mulheres”. Os dois homens também possuem
quatro filhos, com quatro mulheres diferentes. Os homens falam

11
Dilemas acerca do gênero da distância podem ser vistos também no trabalho de
Everton Rangel, que trata dos deslocamentos entre pessoas e familiares em um
plano internacional e multi-situado. Rangel problematiza, por exemplo, como a
saída da sua mãe para trabalhar em uma grande empresa de entretenimento, em um
circo estadunidense, mobiliza diferentes justificativas morais nas redes de cuidado
e trabalho. Sua pesquisa mostra como se dá o cuidado dos homens a “distância”, e os
rebatimentos sociais desses deslocamentos na rede familiar (Rangel, 2016).
312 | (Des)Prazer da norma

acerca da prole numerosa às gargalhadas e salientam o quanto tem


maior “contato” apenas com os filhos das últimas relações afetivas.
Nas três situações, todas as crianças nascidas ficaram com as mães.
Um dos homens registrou todos os seus filhos nascidos, porém, como
o mesmo definiu: “nunca fui de cuidar”. Outro disse ainda que, “por
causa dos quatro filhos espalhados pelo mundo” vive sem dinheiro,
pois “é muita gente pra dar pensão”. O homem que conheceu o filho
perdido lamenta que agora está “fodido” por causa da exigência de
mais uma pensão alimentícia e conclui em alto e bom som no meio
da festa: “filho é igual as casas Bahia, você faz de graça, mas paga
prestação a vida toda!”.
É inegável a existência de um peso maior do trabalho do
cuidado sobre as mulheres, contudo, as narrativas acima atualizam
a relação existente entre homens, dinheiro, cuidados e distância.
Não se trata de reificar a figura do provedor, tampouco, a do “chefe
de família”, mas antes de compreender de que forma o cuidado
masculino compósito ao dinheiro atualiza duas perspectivas;
“trabalhar fora” e, portanto, “produzir” e “dar dinheiro” para o
sustento da criança na forma da pensão, e, portanto, “cuidar”. Esta
arquitetura permite que mesmo diante do conjunto de necessidades
que uma criança demanda, o gesto masculino de “pagar pensão”
seja percebido como suficiente e valorizado socialmente, mesmo
que tal gesto não envolva presença nem investimento de tempo
cotidiano, como bem indicado na metáfora das prestações das casas
Bahia. Vale ressaltar que, nas classes populares, na maioria dos
casos de contribuição material a vida dos filhos, o “dinheiro” pago
pelos homens em pensões alimentícias não consegue prover sequer
a metade dos custos financeiros de uma criança.12 Nem tampouco
conseguem compensar as desigualdades que decorrem de um
investimento desigual de tempo.
De volta à cena descrita, todos os comentários são feitos as
gargalhadas, com descontração e na forma da “zoação”. Em suma,
as narrativas não carregam remorso, nem culpa, mas sim, humor e

12
Os valores pleiteados e pagos através das batalhas por pensões alimentícias
fazem parte de um segredo de justiça das nossas administrações de Estado, tais
disputas revelam um grande desequilíbrio de poder na partilha dos cuidados,
sobre este assunto ver o artigo de Camila Salmazio: https://www.brasildefato.com.
br/2018/05/16/pensoes-alimenticias-refletem-machismo-e-nao-consideram-
necessidades-reais-dos-filhos/
Afeto | 313

virilidade. Para as mulheres que deixaram seus filhos com outros, a


única narrativa plausível e aceitável pela coletividade parece ser a do
sofrimento. Enunciadas como “loucas” ou “insensíveis”, as mulheres
que deixam seus filhos aos cuidados de outros impactam fortemente
o imaginário coletivo.13 Estes atos, contudo, tratam-se de gestos
dissidentes de ruptura com os padrões de cuidados hegemônicos que
associam o feminino às obrigações com crianças. No caso de Débora,
deixar Pedro aos cuidados da família paterna significa também uma
luta pela plena co-temporalidade. O que está sendo negado a ela é a
possibilidade de usufruir, assim como o pai de seu filho, do acesso ao
tempo presente.
Vemos a partir desta trajetória, a maneira pela qual os usos
diferenciados do tempo produzem possibilidades e impossibilidades
de existir e ser no mundo, de criar “territórios de existência”. Por
este termo, podemos entender um conjunto de forças moduladoras
da qualidade de vida, que permitem possibilidades de criação,
mobilidade, bem como a gestão dos conflitos, dos prazeres e a
conquista de oportunidades para conduzir a vida da melhor forma
possível. A partir de então, podemos nos perguntar: quais sujeitos
devem produzir esforços para romper as barreiras culturais que
pesam sobre eles?
Finalmente, sabemos que o gênero deve ser apreendido em
um incessante compartilhar de sentidos. Não se trata de atitudes
isoladas, mas se refere a dinâmica relacional vivida entre os agentes,
as performances, enquadramentos e discursos que são acionados e
reiterados em nossas sociabilidades (Butler, 2003). Como demonstra
Gayle Rubin (1986), o gênero se observa na alteridade e isto implica
assumir que as relações humanas são generificadas.14 Demonstrar

13
Sobre o imaginário do “abandono” materno ver os trabalhos de Lima (2011),
Fonseca (2012) e Fernandes (2017).
14
Em artigo influente, a autora sustenta que a formulação de Claude Lévi-
Strauss referente à troca de mulheres é problemática porque obscurece relações
subjacentes aos sistemas de parentesco. Na proposição de Rubin, a troca ultrapassa
o aspecto do parentesco (tomado como expressão simbólica de interditos,
convenções e obrigações) e contém relações entre homens e mulheres traçadas
por um inexorável aspecto generificado. Para Rubin, a troca de mulheres engendra
um conjunto de relações relativas às sexualidades, nomes, linhagens, direitos e
sujeitos que dizem respeito a homens, mulheres e crianças em suas relações de
poder. Sendo assim, a troca de mulheres não diz “somente” sobre o parentesco, mas
implica na generificação de relações. Sobre este derivado se justapõe as convenções
314 | (Des)Prazer da norma

como mulheres e crianças vivem desigualmente engajados com


determinadas tarefas e hierarquias de gênero é importante, contudo,
devemos evitar sua dimensão tautológica e evidenciar como
esses tempos se deslocam e formam outras instâncias de poder e
enfraquecimento pessoal.

Batalhas para ter tempo: uma disputa entre o “tempo pra mim”
e o tempo de “correr atrás”

Não creio que eles jamais tenham a mesma sensação de lutar


contra o tempo ou de terem de coordenar as atividades com uma
passagem abstrata do tempo, porque seus pontos de referência são
principalmente as próprias atividades, que, em geral, têm o caráter
de lazer. Os acontecimentos seguem uma ordem lógica, mas não
são controlados por um sistema abstrato, não havendo pontos de
referência autônomos aos quais as atividades devem se conformar
com precisão. Os Nuer têm sorte (Evans-Pritchard, 1978, p. 116).

Quando Evans-Pritchard (1978) discorre sobre o tempo


entre os Nuer, ele oferece outra noção do tempo até então ignorada
na literatura antropológica. O tempo adquire sentido a partir das
relações interpessoais, com o entorno, nos acontecimentos e nas
atividades cotidianas, de modo que o autor declara em um tom
quase libertário: “Os Nuer têm sorte”. Decorre daí que, já em Evans-
Pritchard, o tempo é concreto, imanente e processual, ao invés
de um contínuo linear, homogêneo e arbitrário (Gell, 2014). Com
este deslocamento, vemos que o tempo – essa política imanente do
poder – envolve negociações mútuas e disposições diferenciadas
de habitar o mundo.
Em outra perspectiva, Adriana Vianna analisa o “trabalho
exercido sobre e no tempo” (Vianna, 2015, p. 411). Vianna
demonstra como o “tempo familiar”, aquele que diz respeito a luta
de mulheres e familiares que tiveram seus filhos assassinados por
agentes de Estado, é diferenciado do tempo “da luta”, aquele relativo

de matrimônio e os cânones em torno da sexualidade, a rigor, a exegese feita por


Rubin, quer refletir em torno da opressão das mulheres e sobre a centralidade da
heterossexualidade objetivada na formulação das teorias de Lévi-Strauss e Freud
(Rubin, 1986).
Afeto | 315

a burocracia, as audiências, aos julgamentos e outros elementos


marcadores de um tempo institucional, engessado e constituído por
uma ordem de poder dotada de um ritmo distinto (Vianna, 2015).
É justamente no dia a dia da luta destes familiares que ambas as
temporalidades colidem e exprimem conflitos diversos, uma vez que
o tempo familiar não corresponde ao tempo “da Justiça”.
Estas distintas considerações e experiências sobre o
tempo, nos ajudam a pensar nos enunciados ouvidos durante a
pesquisa, falas cruciais para pensar nas batalhas entre distintas
temporalidades. Na primeira sentença, “criança toma tempo”, a
criança aparece como um gargalo do tempo. Este tempo “tomado”,
cheio de materialidade e substância, por sua vez, parece ser invisível
e difícil de ser mensurado. Vemos que o tempo do cuidado é
obscurecido de diversas maneiras, sobretudo, quando é contrastado
com outras atividades consideradas como trabalho “de verdade”.
A segunda sentença, “criança prende”, marca a relação do
tempo com o território de existência, indicando que as obrigações
com as crianças demandam atenções reiteradas semelhantes a
uma “prisão”, caso não sejam partilhadas com uma rede de ajudas
significativa. Finalmente, “ter que cuidar”, é outra fala que remete
não apenas ao plano pragmático do fazer, mas implica na produção
de subjetividades, no fato dos sujeitos se pensarem enquanto “mães”
ou “pais”, nos constrangimentos específicos e nos desdobramentos
diferenciados que cada uma destas posições implica. A trajetória de
Débora e Marcio evidenciam, portanto que estas categorias não são
neutras e circunscrevem os sujeitos em cartografias de mobilidade
social completamente diferenciadas. Diante do exposto, podemos
compreender porque ao longo de sete anos, Marcio consegue
finalizar uma faculdade e se estruturar em dois empregos, enquanto
Débora permanece sem qualificação profissional vivendo de forma
precária e se vê compelida a ter que abrir mão da presença cotidiana
com seu filho.
Nesta linha, outros tempos surgem como alvo de disputa
e apropriação. Assim, o “tempo pra mim” significa a possibilidade
de tornar-se outros, mas não os outros implicados integralmente
nas relações de cuidado, em laços fortes de dependência ou
assujeitamento. Trata-se de tentar garantir uma autonomia não
individualista, em coexistência com a interdependência necessária
para se manter no mundo, dando conta dos outros e de si.
316 | (Des)Prazer da norma

A luz destas considerações, vemos que o tempo é um


dos marcadores fundamentais para avaliar as situações de
desigualdade de gênero. Nas trajetórias narradas aqui, estamos
diante de tempos generificados, uma batalha intensa entre o tempo
processual e cíclico, contra o tempo linear da lógica formal. Este
fato revela um dos maiores prejuízos femininos; que diz respeito a
forma assimétrica na qual mulheres se engajam nos cuidados das
crianças em relação aos homens.
Para ressaltar o caráter laboral dos cuidados, boa parte da
economia neoclássica formulou que estes se tratam de trabalho
“reprodutivo”. Porém, como explica Florence Weber, o binômio
produção\reprodução classifica o trabalho doméstico – domínio
englobante dos cuidados – como aquele que não gera “valor de
mercado” (Weber, 2005). Não gerar “valor de mercado” é uma
das características para denominar aquilo que tem (e do que não
tem) caráter mercantil, em um raciocínio próprio da premissa
utilitarista nas ciências econômicas (Caillé, 1998). Assim,
Florence Weber enfatiza que o binômio produtivo\reprodutivo
é insuficiente para capturar a dimensão dos cuidados no contexto
das relações contemporâneas. A mesma lógica se aplica ao universo
de importâncias de certas zonas de trabalho, trabalhar “fora”
de casa possui maior valor social e econômico do que cuidar,
atividade que muitas vezes se passa “dentro”. Apesar do relativo
reconhecimento em relação a carga mental, emocional e laboral do
trabalho de “dentro”, são as atividades de “fora” que adquirem maior
visibilidade. Portanto, as atividades de “fora” sem dúvida alguma,
são consideradas como “trabalho”, porém as atividades de cuidados
lutam para ser reconhecidas e se legitimar enquanto tal.15
Assim sendo, ao olhar para os tempos dos homens e os tempos
das mulheres no lidar com o tempo da criança, rejeito o binômio
trabalho reprodutivo/produtivo, utilizado comumente nas Ciências
Humanas, no sentido de que é o cuidado da criança que rouba tempo
do trabalho “fora”, aquele que conforme a premissa capitalista,
“agrega valor”. É por este aspecto que o tempo de “ficar com” a criança
é considerado como um tempo “gasto”. De maneira similar, o tempo
que a criança “toma” não é facilmente quantificado pelas múltiplas

15
Sobre trabalho feminino e cuidado de crianças ver os trabalhos de Bila Sorj (2013,
2014).
Afeto | 317

formas de enquadramento social, a exemplo das batalhas na justiça


nas quais nosso ordenamento jurídico, ancorados em valores
masculinistas, ignora este elemento como digno de valoração e
contabilidade nas disputas por pensão alimentícia.
Entretanto, se este tempo não é calculado, nem levado em
conta nos principais mecanismos legais e institucionais de disputa,
podemos dizer que o tempo “gasto” é quase sempre qualificado,
basta olhar com a devida atenção para as narrativas em torno
do “sacrifício” feminino e da “moral”, categoria esta que exprime
os ganhos de autoridade e reconhecimento derivados do tempo
dispensado nos cuidados.
Assim, considerando que existem diferentes perspectivas
sobre o tempo em disputa, podemos entender que a experiência do
cuidado das crianças aponta para a criação de três tempos distintos.
O tempo de “correr atrás”, expresso na realização do trabalho fora
de casa, que também pode ser realizado dentro, conforme cada
situação. O “tempo pra mim” que consiste na diversão, no cuidado
de si e no investimento pessoal. E o “tempo para os outros” que diz
respeito aos cuidados das crianças, doentes e velhos.16 É, portanto,
na perspectiva da realização dos cuidados que se estabelece um
divisor: “tempo para o outro” e “tempo para mim”, quando de fato se
trata de um trinômio de fundo.
A luta das mulheres ocorre na tentativa de garantir
mobilidade para “correr atrás”, na balança entre o “tempo pra mim”
e o “tempo para o outro”. Em outros relatos desta pesquisa, observei
como no campo do lazer e dos estudos noturnos, as mulheres
têm mais dificuldade em se afastar das crianças, em estabelecer
legitimidade para deixar seus filhos com outras pessoas e se
distanciar do “tempo para os outros”. Nesse aspecto, as redes de
ajudas parecem ser mais aprazíveis com os homens, até porque
estes possuem os seus circuitos de lazer estabilizados, a exemplo
da cerveja no bar, do futebol nos finais de semana ou mesmo dos
trabalhos noturnos. Os homens parecem ter o “tempo pra mim”
dado de antemão e definido a priori. Portanto, são as mulheres que

16
Atividade que mistura trabalho e amor, embora não seja feito somente de lazer e
prazer, uma vez que o campo dos cuidados é um território feito de ambivalências,
que conjuga doação e obrigação, vontade e repulsa, afeto e hesitações. Sobre tais
ambivalências ver também a coletânea: “Cuidado e cuidadoras: as várias faces do
trabalho do care”, organizada por Helena Hirata e Nadya Araujo Guimarães (2012).
318 | (Des)Prazer da norma

devem lutar através de inúmeros gestos o afastamento do “tempo


para os outros” afim de garantir alguma autonomia.
Portanto, batalhas sobre o cuidado dizem muito sobre forças
de apropriação do tempo. De acordo com Marcio, o “escândalo” e
a consequente reconfiguração dos cuidados de Pedro ocorrem
quando uma mulher “cansa de ser mãe”. Toda a trajetória de Débora
reivindica o compartilhamento dos cuidados e busca em diversos
momentos um padrão mais colaborativo e mutualizado. A decisão
de Débora em deixar seu filho com os parentes foi tomada após um
longo processo de muito esforço, reflexão e sacrifício. Esta decisão é
produzida em meio a angústias e hesitações, mas também como um
gesto de força que visa garantir usos do tempo menos assimétricos,
que possam por sua vez lhe proporcionar outros territórios de
existência. Não se trata de uma chamada ao igualitarismo moderno,
mas de uma batalha pela sobrevivência na tentativa de expandir
habilidades que vão além da carga cultural compulsória dos cuidados
maternos.17
Gestos como estes nos convidam a refletir sobre a
desconstrução do cânone da maternidade que se atualizam a todo
momento a partir de diversos discursos que apelam a presença
ostensiva de Debora no cuidado de seu filho. Ainda que na maioria
das vezes mulheres deixem seus filhos com outras mulheres,
o que reifica a permanência do feminino no cuidado, ao lado de
configurações familiares onde crianças (meninas e meninos),
avós (homens e mulheres) e padrastos podem se acoplar na tarefa
do “ficar com”. Contudo, essa cessão não deixa de questionar
radicalmente uma premissa na qual, cuidados estão associados
essencialmente ao feminino e de onde a maternidade figura como
potente apanágio destes cuidados. Gestos de partilha são fortes
porque abalam a um só tempo a obrigação que vincula mulheres
mães aos cuidados de crianças.
Ao pesquisar homens operários, Oliver Schwartz (1990)
sugere que o desejo masculino de retirada e fuga das obrigações
familiares se dá mediante a busca de uma vida mais leve, sem o peso

17
Ressalto que neste artigo me detive sobre o aspecto da generificação do tempo do
cuidado, entretanto na tese de doutorado (Fernandes, 2017), analiso o “abandono”
materno sobre outras perspectivas, a exemplo da discussão sobre maternidade
negada e condições de exercício da parentalidade em contextos e sujeitos
racializados.
Afeto | 319

de ter que corresponder às expectativas de parentesco. Em nosso


caso, a “distância” de Marcio, pode ser lida como uma das formas
de alívio das exigências impostas pelas obrigações dos cuidados.
Desta maneira, podemos entender que a “ausência” permite uma
face menos cruel do cotidiano das normas domésticas. Assim, é
possível se conectar a outras temporalidades, tomar os “tempos
pra mim”, se desprender das “prisões” instauradas pelas crianças,
habitar territórios de existência menos árduos e mais próximos das
exigências de manutenção das casas, do pagamento de dívidas e das
rotinas de trabalho e lazer. É possível se distanciar do “tempo para
os outros” e se engajar de forma menos compulsória no cuidado de
outrem. Desta forma, um lugar mais confortável é possível, tendo em
vista à densa territorialização que a existência da criança instaura e
na qual as mulheres são aquelas que mais encontram dificuldades
para encontrar mobilidade e autonomia.
Portanto, distância é desterritorialização, ainda que para isto
seja preciso conviver com o estigma da “ausência”, algo ruim para os
homens, mas no fundo, tolerado socialmente. Quando consideramos
o estado de consumo destas energias, podemos entender a lógica
da “distância” e os gestos de partilha dos cuidados. Por outro lado,
é necessário considerar o campo dos afetos, alegrias e sentimentos
que as crianças emulam, bem como o pragmatismo da “necessidade”,
o fato de que “a criança precisa”, pois, é a partir desses sentidos que
a chamada às proximidades se realiza, e as expectativas em torno
destas podem ser compreendidas, tanto no dinheiro, na atenção
ou na provisão de coisas, pois em se tratando de cuidados é quase
impossível dissociar aquilo que importa menos ou mais.
Ao tratar das relações dos antropólogos com seus
interlocutores, Johannes Fabian (2013) forja a ideia de uma “negação
da coetanidade”, relativa a forma como a produção do conhecimento
antropológico teria se estabelecido sob uma condição assimétrica
na relação dos pesquisadores e seus “nativos”. A partir de diversas
estratégias discursivas e métodos de pesquisa, os antropólogos
teriam congelado seus sujeitos de pesquisa em uma temporalidade
remota e passada. Deste procedimento, derivaram termos tais como,
“primitivos”, “selvagens” ou “arcaicos”, categorias que neutralizam a
dimensão cultural política e histórica da experiência dos outros. Ao
negar aos seus “outros” a “coetanidade” – a participação plena do
tempo presente – nega-se que o tipo de conhecimento estabelecido
320 | (Des)Prazer da norma

entre o antropólogo e seus interlocutores só foi possível de ser


arquitetado mediante a total participação dos interlocutores no
processo de construção deste conhecimento.
Nestes termos, podemos pensar um deslocamento para a
questão desenvolvida aqui, na qual um tipo de maternidade foi
influenciada e marcada pela “ausência” e “distância” dos outros.
A negação da “coetanidade” das experiências do cuidado só é
possível de ser realizada por meio de uma representação congelada
do trabalho feminino, preso ao mito da mãe sacrificial, sempre
paciente e presente, aquela que tudo deve dar e nada receber, em
uma profunda negação do espírito da dádiva, “rocha” das relações
humanas (Mauss, 2003).
Histórias como a de Débora permitem afirmar que a partilha
do cuidado dos filhos com os outros se trata de um mecanismo
contraditório e conflituoso de acesso à mobilidade. Tal forma
de usurpação do tempo alheio é legitimadora de injustiças e
reprodutora de profundas desigualdades. Se o gênero se constitui
nas relacionalidades, podemos compreender que a maternidade
também é relacional ao exercício da paternidade que é empreendido.
Tal maternidade está portanto, mediada pela força desta “ausência”,
impelida pela “distância” e atrelada aos encargos compulsórios do
cuidado. A prática masculina da “distância” repousa, portanto,
na ideia de que o tempo feminino é um bem ilimitado, uma fonte
de recursos disponível ao extrativismo predatório. Um território
corporal e temporal a ser explorado, tal qual no mapa de Haggard
analisado por Anne MacClintock (2010). Assim sendo, podemos
afirmar que a prática da “distância” extrai o tempo dos outros,
usurpando um recurso não quantificado nos mecanismos
institucionais de reconhecimento do trabalho. O tempo feminino do
cuidado é um elemento barateado e usurpado, fato que constrange
mulheres a um tipo de maternidade ostensiva atravessada pelas
inúmeras tensões deixadas pela “ausência” masculina.
Escritas lésbicas, construções afetivas: uma
análise do boletim Um Outro Olhar

Carolina Maia1

A questão do dizer é crucial na experiência de gays e lésbicas. É


preciso revelar que se é homossexual? Quando fazê-lo? O problema
reside sempre em saber para quais pessoas é aconselhável falar.
Esta possibilidade de falar oferece, em primeiro lugar, o encontro
com outros homossexuais. Trata-se de poder ser o que se é sem
escondê-lo, ainda que seja apenas por algumas horas por semana e
com um número seleto de pessoas. Esta é a função que cumpriram
sempre os bares, os clubes e as associações [de homossexuais]
(Eribon, 2008, pp. 79-80).

Se inicio este artigo com palavras alheias, em vez de minhas,


em parte é porque o tom de cuidado com o que – e para quem – se
revela esteve sempre implícito no campo que pretendo discutir. Neste
caso, é mais prudente falar com (ou a partir de) quem, de alguma
maneira, já disse. Trato aqui de palavras que foram provocadas,
habilitadas, por outras: as escritas de mulheres que, tendo tido
contato com as publicações impressas de um grupo lésbico de São
Paulo na virada da década de 1990, encontraram na circulação
destes materiais um espaço seguro para compartilhar suas próprias
reflexões sobre seus interesses sexuais e afetivos (e, é importante
notar, também políticos) por outras mulheres.
Parto de um conjunto de textos publicados no boletim Um
Outro Olhar, publicação periódica lésbica que circulou entre os anos
de 1987 e 1994, distribuída por correio para leitoras, em diferentes
cidades e estados brasileiros, e também remetida para grupos de
ativistas lésbicas, feministas e homossexuais no exterior. Tomo tais
materiais como parte de um “arquivo de sentimentos”, proposta
de Ann Cvetkovitch (2008) em seu livro An archive of feelings,
em que a autora sustenta que produções culturais (tais como
periódicos impressos, músicas, filmes, performances e registros
pessoais depositados em arquivos LGBT, como os existentes nos

1
Carolina Maia é doutora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
322 | (Des)Prazer da norma

Estados Unidos) realizadas por gays e lésbicas são o repositório de


muitas experiências de dor e violência, além de documentarem as
respostas, criativas e públicas, a elas. Deste arquivo, seleciono um
tipo especial de documento, as narrativas pessoais, para refletir
sobre as formas com que as participantes do grupo elaboravam
naquelas páginas suas próprias experiências sexuais e afetivas com
outras mulheres. Estas narrativas, acredito, ajudavam a inserir no
campo de possibilidades (Velho, 1994) das demais leitoras este tipo
de vínculo homoerótico; mais do que isso, é possível dizer que estes
textos participam da construção coletiva de modelos e ideais para
estes relacionamentos – ou, dito de outra forma, há aí uma espécie
de “pedagogia sentimental”.
Antes de passar à discussão propriamente dita, cabe
caracterizar brevemente o periódico e situar o grupo que o produzia.2
O Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF) surgiu em São Paulo em
1981, como uma espécie de sucessor do grupo Lésbico-Feminista ou
apenas LF, apontado na historiografia do movimento LGBT brasileiro
como o primeiro grupo organizado unicamente por lésbicas no
país (Cf., por exemplo, MacRae, 1990; Simões & Facchini, 2009).
Uma das principais atividades do GALF foi a produção do boletim
ChanaComChana, uma espécie de fanzine (composto com máquina
de escrever e colagem, reproduzido em offset) que circulou entre
1982 e 1986 e que constitui o veículo mais estudado da imprensa
lésbica brasileira (Maia, 2017). Em 1987, a linguagem escrachada do
Chana, característica da imprensa alternativa surgida nos anos finais
da ditadura militar, é deixada de lado e o GALF substitui seu carro-
chefe por um novo título, o boletim Um Outro Olhar, esteticamente
semelhante ao seu antecessor (em especial em seus primeiros
números, posteriormente adotando composição em computador),
fotocopiado em tamanho A4. Em sua terceira edição, um espécie de
editorial descreve as expectativas que as ativistas responsáveis por
sua publicação depositavam na circulação do material:

Queremos que esta nova publicação transpareça nossa visão cada


vez mais límpida de que as vivências lésbicas extrapolam em muito
as relações sexuais, determinando, por um lado, uma postura de
resistência ao papel limitante que nos é imposto pela sociedade

2
Em minha dissertação (Maia, 2017), abordo a história do grupo mais alongadamente,
descrevendo em maior detalhe suas publicações impressas e sua circulação.
Afeto | 323

machista e, por outro lado, possibilitando alternativas de vida mais


gratificantes, em vários aspectos, para todas as mulheres. Queremos
também que nossa publicação espelhe o jeito muito especial
que as lésbicas têm de se olhar, numa mistura de cumplicidade
e desejo, onde os papéis de sujeito e objeto são perfeitamente
intercambiáveis. Finalmente, queremos que UM OUTRO OLHAR
possa trazer de fato novas maneiras de ver não só as relações entre
mulheres, em todos os níveis, como também, mais precisamente,
o próprio “ser mulher” nesta nossa patriarcalíssima sociedade
brasileira, buscando auto-imagens mais positivas e perspectivas
mais amplas em todas as direções (Um Outro Olhar, n. 3, 1987, p. 3).

Ao longo de sete anos de publicação com periodicidade


irregular (reflexo da atuação voluntária de praticamente todas as
participantes do grupo), os 21 números de Um Outro Olhar eram
produzidos a partir das colaborações de suas leitoras e da contribuição
de ativistas de grupos lésbicos, feministas e homossexuais de
diferentes países. O boletim, assim, é também uma forma de
apresentação do grupo que o produzia, seus posicionamentos
e atividades, para outros grupos, bem como de trazer para suas
leitoras o conteúdo das publicações e ações que outras ativistas
produziam; os conteúdos de Um Outro Olhar frequentemente se
destinam também a registrar, manter e construir a memória do
movimento lésbico no Brasil – ou, mais especificamente, do GALF
e da Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar, nome adotado
pelo coletivo em 1990. A mudança de nome é acompanhada por
alterações na forma de financiamento do grupo e, também, na forma
de oferecimento do periódico, inicialmente comercializado através
de assinatura. A Rede funcionava através do formato de associação,
sustentada através do pagamento de uma taxa fixa, que dava acesso
a um conjunto de serviços (tais como cópias dos livros e periódicos
da biblioteca do grupo e à sua agenda de eventos), que incluía o
próprio recebimento do boletim – uma forma de informar às cerca
de cem associadas, por exemplo, quais eram as novas publicações
recebidas pelo grupo ou a lista de interessadas em correspondências
para “transa, amizade ou namoro” e seus endereços postais. Assim,
para além das informações mais diretamente ligadas ao ativismo
organizado, as seções de cartas das leitoras e de anúncios para troca
de cartas fomentavam o estabelecimento de contatos entre mulheres
interessadas em conversar com outras cujo interesse erótico,
324 | (Des)Prazer da norma

afetivo e político voltava-se também para mulheres. O boletim


também servia de espaço para que estas mulheres compartilhassem
reflexões suas (ou sua criatividade artística, na forma de poemas e
desenhos) em um diálogo simultaneamente íntimo e relativamente
público – íntimo pelos tópicos e formas de narrar, público porque
exposto a um número desconhecido de leitoras, das quais tudo que
se podia presumir é que teriam no mínimo algum interesse em, e
idealmente uma identificação com, as experiências divididas através
da escrita. Chamados para que as associadas participassem da
elaboração de conteúdos para o boletim foram frequentes ao longo
de seu período de circulação. “Vivências” foi o nome dado a uma das
seções do periódico, espaço para o exercício e compartilhamento de
escritas de si (Foucault, 1992), seja através de narrativas elaboradas
intencionalmente para serem publicadas com este fim, seja através
da seleção (e eventual ficcionalização) de relatos presentes em cartas
destinadas às ativistas do GALF e da Rede.
Esta exortação à reflexão e à escrita por parte das associadas
também se traduz na diversidade de gêneros textuais e registros de
escrita presente ao longo das edições. Conviviam, nas páginas de Um
Outro Olhar, desde pequenos poemas a longos ensaios informados
por leituras de diversos livros vindos do exterior, de cartas coloquiais
e afetuosas a secas reproduções de matérias de jornais e revistas de
grande circulação comercial. O periódico se afigura, então, como
um grande conjunto de colagens (inclusive literalmente, dadas as
características artesanais de sua produção, em especial das edições
realizadas nos anos 1980), um pout-pourri polifônico, para usar a
expressão de James Clifford (2017) em sua discussão sobre a escrita
etnográfica pós-moderna. Nos boletins que analisei, estão presentes
transcrições diretas (mantendo sua estrutura original e inclusive
erros de grafia, segundo as organizadoras do material) de relatos
enviados por correio, publicação de missivas aparentemente na
íntegra (mantendo trechos destinados diretamente a uma ou outra
das integrantes do GALF e da Rede, envolvidas com a produção do
boletim), reprodução de notícias e reportagens de outros veículos
não necessariamente acompanhadas de alguma reflexão por escrito
do grupo, opiniões discordantes (também como incitação ao
debate). Desta forma, mesmo que as responsáveis pela definição do
que seria publicado (ou não) em cada edição exercessem um papel
determinante sobre o conteúdo através dessa atividade de seleção,
Afeto | 325

diferentes vozes emergem – reconhecíveis, pessoais, diferentes entre


si – da leitura desses periódicos.
A citação de Didier Eribon que abre este artigo permite
pensar em algumas razões para o engajamento em diálogos tecidos
através da circulação deste boletim. Como é possível ver a partir
de alguns trechos de cartas que reproduzo a seguir, a revelação
da homossexualidade carrega consigo a ameaça de possíveis
consequências negativas. Mason (2002, p. 81) argumenta que o
autogerenciamento da visibilidade enquanto homossexual atravessa
todas as negociações que gays e lésbicas realizam de forma a
minimizar os potenciais riscos de agressão e ameaça homofóbica,
de maneira que “a decisão de sair do armário para outras pessoas
frequentemente envolve uma avaliação cuidadosa (ainda que algumas
vezes espontânea) das prováveis recompensas e repercussões
possíveis”. Tal avaliação pode envolver buscar ser reconhecível como
lésbica apenas por mulheres com quem uma ligação sexual e afetiva
é compreendida como possível; fazer confidências a uma amiga e
não a outra; enfrentar a família mas ocultar a homossexualidade
no ambiente de trabalho; ou mesmo buscar ser assumida em todos
estes âmbitos e, ainda assim, gerenciar a própria visibilidade (ou,
dito de outra forma, policiar os próprios gestos, posturas e ações que
possam ter um efeito de visibilização) em contextos em que há uma
percepção de possível ameaça de violência. Ainda de acordo com
Mason, portanto,

Em resumo, o armário é um lugar contraditório e instável. Não


somente é necessário repetir continuamente o ato de “sair do
armário” para realmente “ser assumido(a)”, mas, como Butler
(1991)3 anota, o que significa ser assumido em qualquer
dado momento inevitavelmente depende do que significa ser
enrustido. Assim, ninguém pode estar completamente dentro ou
completamente fora do armário (Mason, 2002, pp. 82-83, tradução
minha).

A circulação restrita de Um Outro Olhar (fora ativistas


ligadas aos movimentos feminista e homossexual, o periódico era

3
A autora faz referência ao seguinte trabalho da filósofa: Butler, Judith. 1991.
“Imitation and gender insubordination”. In: Diana Fuss (ed.), Inside/Out: Lesbian
Theories, Gay Theories, New York: Routledge.
326 | (Des)Prazer da norma

enviado apenas para as cerca de cem associadas ao grupo), aliada à


possibilidade de colaboração anônima, diminuía os possíveis riscos
associados à visibilização da própria homossexualidade. Desta
maneira, a comunicação com o grupo responsável pela produção do
boletim (através da correspondência exclusiva com estas ativistas) ou
com as demais associadas a este (por exemplo, através da publicação
de um artigo no periódico) oferecia a possibilidade de discussão e
troca de reflexões acerca de desejos e experiências homoeróticas
entre mulheres (e mesmo para pedir ajuda para compreender o que
tais desejos e experiências seriam), um espaço para compartilhar
suas histórias e construir relações nas quais seria possível conversar
sem maiores preocupações sobre envolvimentos sexuais e afetivos
com outras mulheres.

Experimentei a dor que corroía a alma. Uso palavras fortes não


por exagero, mas para tentar dizer da dor que experimentei. Além
da dor da perda de alguém tão caro, sofri na pele todo estrago e
danos que o preconceito é capaz. Eu era ainda uma menina. Passei
vergonha. Me fizeram sentir um ser inferior e miserável. Não tive
apoio. Só o tempo me ajudou […] Nunca mais me permiti qualquer
relacionamento com pessoas do meu sexo. Por receio. Porque me
tranquei tornando-me tímida, inibida. Minha vida afetiva é um zero.

Trago o relato acima para refletir sobre os impactos da


discriminação às parcerias homoeróticas na afetividade destas
mulheres, tema abordado também nas páginas do boletim Um Outro
Olhar. A partir do acervo de cartas da Rede, a ativista Luisa Granado
escreve e publica no periódico o artigo Solidão e Solidariedade, que
discute os efeitos da solidão e do isolamento sobre as mulheres
lésbicas, apontando-os como decorrências das práticas que
Mason (2002) chamaria de autogerenciamento da visibilidade da
homossexualidade. Segundo Luisa, quando tantas buscavam manter
sua sexualidade como segredo, e diante da carência de espaços fora
do “gueto” em que fosse possível baixar a guarda do “controle estrito
de palavras e gestos”, como diria Eribon (2008), afora a percebida
impossibilidade de fazê-lo nos lugares de frequência mais cotidiana,
a sensação de isolamento se tornava a realidade de muitas.

Temos diferenças óbvias em relação às mulheres não-lésbicas, já que


todos os lugares de socialização como o local de trabalho, a escola,
Afeto | 327

os lugares religiosos, festas, etc, são de estrutura heterossexual.


Nesses lugares, a maioria das lésbicas é invisível enquanto tal, e as
chances de encontrar uma companheira tornam-se mínimas. É o
peso da discriminação […]
Nesses anos, recebemos perto de 4000 cartas de mulheres de todo
Brasil, das quais muitas, mas muitas mesmo, nos falam da solidão,
não só de amores, mas também de amizades.
Há uma unanimidade num ponto: todas as mulheres que nos
escrevem contando da sua solidão se acham as únicas a padecer
dessa dor. Cria-se um círculo vicioso, perverso (Um Outro Olhar, n.
17, 1992, p. 9).

Segundo Luisa, uma das consequências desta solidão no


plano afetivo seria justamente a dificuldade de encontrar parceiras
e de, neste cenário, envolver-se (e manter-se em relacionamentos)
com outras mulheres que talvez não atendessem necessariamente
às expectativas daquela que procurasse por um novo envolvimento:

A solidão e o isolamento também levam as lésbicas a se apaixonarem


pela primeira mulher que lhe dirija uma palavra de solidariedade
ou lhe seja mais afável. Existem poucas chances para possibilitar a
escolha num processo de amizade, paquera, namoro, até chegar a
hora de decidir uma vida em comum (Um Outro Olhar, n. 17, 1992,
p. 10).

A alternativa proposta para sair desse círculo vicioso,


na aposta da Rede, é a construção de uma “rede de solidariedade
lésbica”, com a construção de vínculos não apenas de casais de
mulheres, mas entre mulheres lésbicas de maneira geral, como
forma de possibilitar diálogos e o fortalecimento da luta por direitos
e, em especial, por uma maior aceitação social da homossexualidade
feminina. Uma das alternativas propostas para estabelecer outros
canais de comunicação que vazassem os limites do próprio boletim
foi a seção Troca-Cartas, onde as associadas ao grupo podiam postar
anúncios pessoais à busca de “namoro, amizade ou transa”.
Ressalto o fato de que Luisa Granado também menciona a
queixa de carência de amizades por parte das missivistas da Rede
– outra consequência da impossibilidade de falar de maneira mais
aberta sobre a própria sexualidade e afetividade. Considero que,
se a assim percebida necessidade de manter a visibilidade da
328 | (Des)Prazer da norma

homossexualidade a um nível mínimo constituía um impeditivo para


que mulheres lésbicas se reconhecessem e estabelecessem contatos
entre si, as discussões tecidas nas e através das páginas do boletim
Um Outro Olhar (assim como poderia o ser a frequência a bares ou
outros pontos de encontro de “entendidas”) podem, acredito, ser
tomadas como manifestações de estratégica porosidade das portas
do armário, abrindo entre elas “vasos comunicantes”, expressão
cunhada por Rafael Godoi e que tomo de Natália Padovani (2015),
em sua tese sobre as penitenciárias femininas. Se, como sustenta
a autora, a cadeia produz relações, o “armário” também produz: é
pela impossibilidade, ou mesmo dificuldade, de tecer novos vínculos
com outras mulheres lésbicas em suas relações cotidianas que as
associadas ao GALF/Rede faziam recurso a esta forma de contato.
Para os objetivos deste artigo, interessa pensar como
alguns conteúdos veiculados pelo periódico – em especial,
aqueles em que suas autoras tecem reflexões sobre suas próprias
experiências amorosas –, como parte deste diálogo sobre o
que dificilmente se falaria em outros contextos e com outras
interlocutoras, ajudam a construir um imaginário e um certo
conjunto de ideais para os relacionamentos sexuais e afetivos entre
mulheres. Dada a orientação política de Um Outro Olhar de buscar
promover representações mais “positivas” da homossexualidade
feminina, é interessante notar como a compilação de depoimentos
que mencionei anteriormente, depois de treze mensagens em
sua maioria “pessimistas”, se encerra com dois relatos mais
alvissareiros. A penúltima carta, de Sônia, de Salvador, conta que
sua família “convive bem com minha [sua] homossexualidade”.
Ao contar para sua mãe, ela disse preocupar-se apenas com sua
felicidade: “a minha maior surpresa foi que ela reagiu como se já
convivesse com o homossexualismo há muito tempo. Meus irmãos
me deram e dão muito apoio”. A última recebe o título “Final
feliz”: Telma, 24 anos, conta que encontrou “a porta da liberdade
começando a se romper” aos 18 anos, quando entrou na faculdade,
onde conheceu Bell, por quem se apaixonou. Depois de um ano de
relacionamento, compraram um apartamento e foram viver juntas;
Bell acabou por romper com sua família por “não suportar mais
as incoerências” e a “vontade gritante que eles tinham de nos
separar”. Vida conjunta, carta conjunta: embora a narrativa toda
seja escrita sob o ponto de vista de Telma, a assinatura é de ambas:
Afeto | 329

“em 12/04/1987, fizemos 6 anos que estamos juntas, muito bem


casadas e nos amando muito”.
Acredito que encerrar a compilação de relatos “pessimistas”
com dois relatos “bem-sucedidos” no que diz respeito à revelação
da homossexualidade diga algo sobre as intenções das ativistas do
GALF/Rede ao produzir o boletim. As treze primeiras cartas, em
suas diversas tonalidades da tristeza ao desamparo, expõem as
dificuldades vividas por algumas mulheres lésbicas e que poderiam
ser também as de outras, conclamando à identificação; as duas
últimas, por sua vez, dão um alento e indicam que cenários menos
prejudiciais eram possíveis – como, por exemplo, através do apoio
familiar, no caso de Sônia, ou mesmo através do rompimento com a
família no caso de esta manter-se intolerante e intrometida, como no
caso de Bell. As narrativas pessoais compartilhadas entre associadas
do grupo através da circulação do boletim permitem pensar que
não apenas as relações com familiares podem melhorar: a partir da
reflexão sobre si, da construção da própria lesbianidade enquanto
sexualidade legítima e do desenvolvimento de alguns parâmetros
para a formação de parcerias, a relação com outras mulheres (e
consigo mesma) também pode tornar-se mais positiva.
Em suas produções textuais publicadas no boletim, as
associadas ao GALF e à Rede refletem também acerca dos tipos
de vinculação afetiva e sexual que vivenciam em relação a outras
mulheres (ou, ao menos, as condições em que isso se dá). Para
citar alguns exemplos, Mara, da Bahia, publicou um pequeno
texto dedicado a uma colega de trabalho, por quem desenvolvera
uma paixão platônica, chamado “A despedida”. Nele, ela conta de
sua transferência para outra agência do banco em que trabalha, e
sonha que, em seu último dia no posto que abandonaria, a colega
se despediria dela com um beijo às escondidas (Um Outro Olhar, n.
4, 1988, p. 5). Na edição de número 5, a brasileira Ana manda uma
correspondência dos Estados Unidos, lamentando seu cansaço
pelo fato de envolver-se muitas vezes com mulheres que se dizem
heterossexuais – o que, invariavelmente, terminava em tristeza
e frustração para ela, quando suas parceiras deixavam a relação
e apareciam tempos depois em algum relacionamento com um
homem. A associada do GALF Cice, por sua vez, envia para publicação
no boletim uma carta que começa com sua apresentação enquanto
“lésbica enrustida”, dizendo que acredita que sua irmã também o seja
330 | (Des)Prazer da norma

– e que ambas se entendem “razoavelmente”. Na correspondência,


ela narra uma experiência de insulto – em que uma cunhada acusara
sua companheira de “bulacheira”, gíria pejorativa para “mulher que
transa com outra” no Nordeste – que desencadeou um processo de
rupturas: a amiga-amante, como Cice a denomina, queixou-se da
injúria a seu marido, sargento da polícia, e este terminou por proibir
o relacionamento das duas. A alagoana reflete que somente aceitou
esta situação

(...) pois eu não tinha o pensamento que tenho hoje. Se tivesse, não
teria me deixado envolver por essa “minha amiga”. Com minha
inexperiência me deixei envolver facilmente, e esse foi meu erro.
Na época, ela era bem mais experiente, me conquistou e eu me
apaixonei. Hoje, tenho certeza que ela não gostava de mim, pelo
menos não do jeito que eu era louca por ela (Um Outro Olhar, n. 6,
1989, p. 3).

É interessante notar, aqui, a afirmação de que “se tivesse o


pensamento que tem hoje, não teria se deixado envolver” por esta
mulher. Dito de outra forma, a formulação de Cice parece ser a de
que um certo tipo de “pensamento”, experiência ou discernimento
acerca de como se dão relações entre mulheres permitiria aceder
a uma forma menos danosa de relação. A insistência no par
experiência/inexperiência, bem como a recapitulação de que ela
própria era “inexperiente” na época, também remete a um processo
de aquisição deste “pensamento” ou conhecimento acerca das
relações. Na mesma edição do boletim, uma entrevista de Nani Tobi
(que discuto a seguir) relata como esta, por desconhecer como se
davam os relacionamentos sexuais e afetivos entre mulheres, acabou
vivendo um relacionamento pautado pela “dominação”. Tanto para
Cice como para Nani, a “mudança de pensamento” através do tempo
e de processos reflexivos sobre a própria condição aparecem como
chaves para sair de situações de desprezo, manipulação, abuso ou
mesmo violência.
A primeira aparição de Nani Tobi em Um Outro Olhar
acontece na edição de número 3, de fevereiro/março de 1988, na
seção “Troca-Cartas”. Em seu anúncio, ela se descreve como “mulata”,
de 22 anos, auxiliar administrativa, cujos passatempos preferidos
Afeto | 331

(parte da redação “padrão” dos anúncios veiculados pelo boletim4


e presente na maioria destes) são tocar violão, acampar e dançar. A
redação do anúncio indica uma boa dose de reflexão sobre como seria
a companheira ideal para Nani: ela diz que “quer se corresponder
para transa com mulheres de 20/25 anos que já saibam exatamente
o que querem da vida e saibam viver e amar, dentro dessa escolha
com toda a plenitude”. Sem querer analisar excessivamente um
anúncio tão curto, chamam atenção tanto o eufemismo de “dentro
dessa escolha” (amar outras mulheres?) quanto o “já”, que parece
pedir também um certo grau de reflexão e assertividade da própria
futura correspondente. Além de ter atuado como diagramadora
do periódico, Nani também publica poesias e outros textos no
boletim, e participa de uma entrevista, abordando sua trajetória,
suas experiências sexuais e afetivas, sua sexualidade mesmo e sua
negritude. Nesses textos, ela tanto demarca suas diferenças quanto
postula a uma igualdade humana a partir da qual poderia reivindicar
direitos. Mais do que isso, ao narrar essas histórias e dar-lhes sentido,
demonstra como saber exatamente o que se quer e também saber
viver e amar em sua plenitude não são algo dado – são construções
feitas a partir de experiências e “tomadas de consciência”.
A Edição 6 de Um Outro Olhar, do início de 1989, trouxe dois
textos na seção “Vivências”. Um deles traz a assinatura de Nani Tobi,
que expõe como foi o seu processo de reconhecer desejos por outras
mulheres: “há 5 anos, assumi uma opção sexual, independente de
ser a melhor ou não”. No momento da escrita e publicação do texto,
ela dizia enxergar seu caminho “claro” em relação a isso. “Mas”, ela
continua, “este não foi o quadro que pintou quando me descobria”:

Era um quadro de angústia, medo e repulsa. Não podia crer nos fatos
que meu próprio desejo natural criava […]
Quando estava junto das mulheres […] ligava-me a elas com uma
intensidade muito maior, e era isso que, a priori, me levava à angústia.
Como podia sentir tanta atração por algo tão desconhecido (até
então nunca tinha visto ou ouvido falar deste tipo de relacionamento)
e que não se enquadrava, em hipótese alguma, no molde “papai-
mamãe” que havia em minha cabeça?

4
Este formato já estava presente no boletim ChanaComChana, também editado pelo
GALF. A seção Troca-Cartas passa a receber este nome a partir da edição nº 7 deste
boletim, datada de abril de 1985.
332 | (Des)Prazer da norma

Tremenda angústia. Acabava mascarando esse desejo, por alguém


tão semelhante a mim, em uma total “assexualidade”. Era melhor
confundir do que assumir qualquer postura que pudesse resultar
em arrependimento posterior […]
Progressivamente, fui mostrando que minha escolha não significaria
que tudo seria o caos, a falta de consciência das regras do bom
convívio social. Seria um ser humano comum, com todos os deveres
inerentes a uma cidadã e reivindicando sua parcela de privilégios,
aliás, direitos mais do que merecidos […]
De qualquer maneira, se teria que ser atirada “à fogueira”, então
que fosse por algo que realmente protagonizei: a minha liberdade,
a perda do medo de amar (Um Outro Olhar, nº 6, 1989, p. 11, grifos
meus).

A narrativa de Nani neste texto traz uma sequência de


experiências comum a outras escritas de tom semelhante ao longo
do boletim. Como ela, outras mulheres utilizaram o periódico para
narrar seus próprios processos de descoberta da homossexualidade,
frequentemente atravessados por sentimentos de incompreensão
(então explicados por ser algo desconhecido, fora do esperado ou
comum) e negação, expressa por ela (e outras) tanto através de
tentativas de apaixonar-se por homens quanto de um esforço em
“mascarar” o desejo por outras mulheres sob a forma de algo mais
aceitável – confusão, assexualidade. Esse desejo – como apontam
Portinari (1989) e Muniz (1992), percebido como irrefreável e
inescapável –, por fim, passa a ser concebido como natural, o que
abre possibilidades para que Nani passe a reivindicar-se (antes disso,
a compreender-se) como um “ser humano comum”, merecedora
de direitos, liberdade e amor. Simões e Facchini (2009) comentam
como a própria categoria de “orientação sexual”, embora indique
uma concepção um tanto essencialista de sexualidade e desejo,
também foi e tem sido politicamente estratégica para o movimento
LGBT brasileiro, como parte da construção da legitimidade de
suas pautas. Se para o movimento esta estratégia é especialmente
importante na relação com o Estado e a reivindicação de direitos
sociais, na narrativa de Nani a concepção do desejo homoerótico
como natural – portanto, para além da intenção ou do controle
do sujeito – habilita-a a reconstituir sua imagem de si mesma, de
maneira a mostrar para si e para os outros que a homossexualidade
não geraria o caos. Ao trazer uma certa linearidade, passando da
Afeto | 333

descoberta à negação, à elaboração do desejo (muitas vezes através


de uma paixão vivenciada com uma mulher) e por fim à defesa deste,
histórias deste tipo constroem junto às leitoras a ideia de que viver
a homossexualidade é possível e vale a pena, mesmo que o risco de
viver a liberdade seja a ameaça de ser “mandada para a fogueira”.
De maneira geral, os textos de caráter mais “pessoal”, de
elaboração narrativa de experiências, têm seu centro na discussão
da sexualidade, de experiências de preconceito e de uma construção
de si enquanto mulher que ama outras mulheres. Salvo algumas
informações biográficas consideradas necessárias como parte da
apresentação da narradora e/ou para situar os contextos em que as
experiências relatadas tiveram lugar, a intersecção da sexualidade
com outros marcadores sociais da diferença (com exceção das
implicações das hierarquias de gênero) é raramente explicitada.
Discussões sobre classe são virtualmente ausentes do material
analisado, e desigualdades ligadas a questões raciais aparecem
geralmente ou como analogia (equiparando a discriminação sofrida
por homossexuais ao racismo),5 na evocação de alianças entre grupos
minoritários ou através da ideia de “tripla discriminação” sofrida
por mulheres lésbicas negras, imagem que remete mais a uma noção
de “adição” de marcadores sociais do que a uma constituição mútua
entre gênero (e sexualidade), raça e classe, como preconiza a noção de
interseccionalidade como sustentada, por exemplo, por McClintock
(2010) e Viveros Vigoya (2010). A entrevista concedida por Sueli
Aparecida Horácio e Nani Tobi, autoidentificadas respectivamente
como negra e mulata, à edição de número 6 do boletim (1989)
constitui o único momento em que questões raciais foram tomadas
como centro de alguma produção textual ao longo das 21 edições
de Um Outro Olhar. O recurso à realização de entrevistas – em geral
envolvendo várias pessoas, e não raro conduzidas como uma conversa
em que as perguntas eram quase tão longas quanto as respostas
– como forma de estimular o debate sobre temas específicos que

5
Na dissertação (Maia, 2017), menciono dois exemplos disso que chamo aqui de
uso analógico do racismo. Em síntese, acredito que o recurso à analogia indica uma
concepção de que o racismo já se configuraria como um tipo de preconceito mais
reconhecido como tal (cabe lembrar que a Constituição Federal de 1988 veda a
discriminação por cor, e que a tipificação do racismo enquanto crime ocorreu em
1990) e que, portanto, poderia ser utilizado para demonstrar como outras formas
de discriminação seriam igualmente condenáveis.
334 | (Des)Prazer da norma

atravessavam as experiências de mulheres lésbicas já era uma prática


do GALF desde a primeira edição do ChanaComChana. Esta forma
de construção coletiva de textos aparece como mais uma forma de
provocar a narração e interpretação de eventos ocorridos na vida
das próprias entrevistadas, como uma forma de facilitar e fazer falar
a partir da experiência.
À pergunta “como você sente sua realidade enquanto
negra, ou mulata, e lésbica?”, Sueli organiza sua resposta a partir
de experiências de racismo e conta que sente que existe um
estranhamento em relação ao fato de sua companheira ser branca
e que o preconceito, “embora encoberto” e eventualmente vindo
de pessoas que dizem não ser racistas, é perceptível. Nani explica
que decidiu dizer-se “mulata”, que “não passa de uma nuance da cor
negra”, por “ainda não saber como definir-se” após rejeitar a palavra
que, em seu registro de nascimento, define sua cor – “um nome que,
para mim, só serve para determinar cor de papel de embrulho: parda”.
Apresento aqui um trecho, em que ela reflete sobre as concepções de
outras pessoas acerca da homossexualidade e da negritude e de seu
esforço em combater visões estereotipadas:

[…] quem passou por minha vida sofreu grandes modificações.


Consegue, agora, olhar para uma mulher negra sem vê-la como
objeto sexual. Consegue pensar em uma lésbica sem imaginar a
“fancha que fecha” […] Luto, junto às pessoas que conheço e que
vou conhecendo, para mostrar que sou um ser humano como outro
qualquer, com todos os sentimentos inerentes a qualquer um (Um
Outro Olhar, n. 6, p. 6).

A construção da identidade narrativa (Ricoeur apud Meccia,


2016) de Nani enquanto mulher, lésbica e negra é marcada pela
necessidade de demarcar-se enquanto humana, habilitando-a a
reivindicar direitos. Nani alinha-se ao ideário da Rede em que,
dentro das possibilidades de cada uma, é importante combater
“visões distorcidas” da homossexualidade, o que ela diz fazer em
suas relações, questionando estereótipos como os da “fancha que
fecha” – ou, dito de outra forma, a associação entre lesbianidade
e apresentação de gênero “masculina” – e da mulher negra
hipersexualizada. Almeida (2005) e Almeida e Heilborn (2012, p.
244), a partir de Laura Moutinho, ressaltam que a “objetificação
exótica racial” enfrentada pelas lésbicas negras tem uma “dupla
Afeto | 335

face. Ela pode estar na ‘mulata lésbica’ e, portanto, constituída nos


moldes dos atributos de gênero feminino, comumente associados à
mulher negra, e pode estar na ‘fancha negra’, comumente constituída
nos moldes do homem negro.” Cabe notar que, ao atribuir seu
próprio papel como desencadeadora desses processos de “grandes
modificações” nas concepções sobre negritude e homossexualidade
por parte das “pessoas que passaram em sua vida”, Nani explicita
também que sua vida foi atravessada pela passagem de pessoas que,
antes, tinham a “fancha que fecha” como imagem automática das
lésbicas e que olhavam para mulheres negras como objetos sexuais
– e a própria ideia de “objeto sexual” joga luz sobre a necessidade de
Nani demarcar-se enquanto humana.
Tomando tais páginas como parte de um arquivo de
sentimentos, como sugere Cvetkovitch (2008), a reflexão tecida
por Nani permite pensar nos efeitos da racialização do sexo e da
sexualização da raça sobre a subjetividade das lésbicas negras. Nani
conta ter se relacionado com uma mulher que esperava que ela,
por ser negra, “agisse como a descendente de um reprodutor das
senzalas do tempo do cativeiro” e “saciasse todos seus desejos de
qualquer maneira”. Sua narrativa desta história conjuga tanto uma
reação a esta expectativa de hipersexualização quanto o processo
de construção de sua identidade sexual e a rejeição de modelos
pautados pela dominação:

Naquela época, ainda estava me descobrindo lésbica e me assustava


essa cobrança. Ficava, a todo minuto, imaginando se todas as
mulheres seriam aquela “fonte inesgotável de desejo” […] para
saciar-se, ela precisava estar com uma negra e, para manter um
namoro, tipo papai-mamãe, só as mulheres brancas é que serviam.
Para mim, isso tem muito a ver com dominação. Ela se sentia a toda
poderosa quando da companhia de negros. Quando fui me dando
conta do papel ridículo que fazia ao entregar-me a seus mandos e
desmandos, afastei-me, já que não sentia qualquer prazer em tê-la
ao meu lado (Um Outro Olhar, n.6, 1989, p. 7).

O relato de Nani parece explicar por que aparecera, no trecho


destacado anteriormente, a rejeição à hipersexualização da mulher
negra e o estereótipo da “fancha que fecha”. Cabe notar, também, a
percepção de uma hierarquia de poder, de uma assimetria no interior
do par, que Nani elabora a partir da ideia de “dominação”. Em um
336 | (Des)Prazer da norma

trecho anterior da entrevista, ela comenta uma visão existente da


homossexualidade como um “arremedo da heterossexualidade” e
rejeita sua reprodução “por não me identificar com essa situação
de dominação bem papai-mamãe que me fora apresentada. Jamais
reproduziria, de livre e espontânea vontade, um relacionamento
tão falho. Não seria representante de uma instituição falida” (grifos
meus). Suas reflexões podem ser relacionadas aos argumentos
de Viveros Vigoya (2010), autora que comenta as imbricações de
regulações raciais e de gênero na América Latina, que destaca o
fato de tanto o racismo quanto o sexismo operarem a partir de
naturalizações de diferenças sociais, estabelecendo certos corpos
como passíveis de controle. Nani rejeita simultaneamente as duas
formas de “dominação”, a do modelo heterossexual e a racial.
Com a afirmação de que a tal parceira via mulheres negras como
inelegíveis para “manter um namoro”, papel para o qual apenas
mulheres brancas serviriam, sua narrativa faz lembrar o paradoxo
apontado por Laura Moutinho (2004, p. 344), no qual, “em um nível,
o desejo e o sexo heterocrômico são desejáveis e, em outro nível, ao
menos quanto ao casamento (e por que não dizer também o sexo e
o desejo?) aparece como indesejável” na sociedade brasileira. Por
fim, vale notar que Nani explicita que tal relacionamento ocorrera
quando ela “ainda estava se descobrindo lésbica”, sem saber se “todas
aquelas mulheres seriam 'aquela fonte inesgotável de desejo'”. Seu
desconforto com as expectativas de desempenho sexual por parte
da parceira ficava, então, mascarado pelo desconhecimento de
como se davam as relações entre mulheres. A partir da percepção
da postura “dominadora” da parceira que lhe demandava excessiva
“potência sexual” e de, nessa situação, ver-se em um “papel ridículo”
de ceder a seus “mandos e desmandos”, Nani finalmente se afasta.
Posteriormente, ela pôde explicitar em seu anúncio que busca
mulheres que “saibam viver e amar dentro dessa escolha com toda
a plenitude” – a narrativa acima mostra como “saber viver e amar”,
para ela, não passava pelas vias da dominação e da hierarquia.
As diferentes formas de colaboração de Nani Tobi ao boletim
Um Outro Olhar foram melhor descritas em minha dissertação
(Maia, 2017), da qual também retiro a história de Naná Mendonça,
outra associada do GALF/Rede, para pensar o compartilhamento
de reflexões pessoais e a colaboração para a construção de ideais
de relacionamento nas páginas do periódico. No caso desta ativista,
Afeto | 337

uma médica pernambucana na casa dos 40 anos, é a participação


constante no boletim – e a forma com que, nele, descreve passagens
de sua vida – que faz com que ela ofereça, narrando, a própria
trajetória amorosa como exemplo e construção de um ideal possível.
A primeira aparição de Naná nas páginas de Um Outro Olhar se dá
através de um anúncio pessoal na seção “Troca-Cartas”, onde se lê:

Naná Mendonça
Cx. Postal 483 – Recife – PE – CEP 50000
Coloca-se à disposição para trocar correspondências com mulheres
lésbicas que estejam necessitando de uma “força”, do apoio moral e
do afeto de uma amiga.

O mesmo anúncio se repetiria ao longo de seis edições


consecutivas, mantendo seu texto inalterado. Cabe notar como a
redação desta mensagem apresenta como quase inequívoca a oferta
de uma amiga – como outras ali que também manifestavam a mesma
intenção de amizade, ela se diferencia daquelas que procuram,
por exemplo, “uma verdadeira amizade ou talvez um futuro
compromisso”, “amizade e transa”, “transa e/ou compromisso”,
“compromisso […] para juntas encontrarem o amor” ou mesmo as
três possibilidades. Nas edições seguintes, a participação de Naná
no boletim permite acompanhar, quase como em um folhetim, sua
mudança para a cidade de Ariquemes (Rondônia), onde a médica de
Recife coordenaria um centro de saúde local. Na edição nº 3 de Um
Outro Olhar (pp. 6-8), ela publicou o texto “Ariquemes, Rondônia –
uma visão lésbica sobre um lugar distante”, em que descreveu, com
seu olhar de quem vinha de fora, o estado, a cidade, seus habitantes
e como a homossexualidade era encarada (e ocultada) por eles. Ela
destaca como a cidade, fundada há pouco mais de uma década, vinha
crescendo “incrivelmente rápido devido [à] afluência de pessoas
de outros estados”, motivadas pela possibilidade de “melhora
financeira para si e sua família”. Os habitantes do município são
então diferenciados em seu texto a partir de sua origem, cor e
educação. Por fim, o artigo acaba por estabelecer uma aproximação
entre os nativos e os de fora a partir de sua baixa escolaridade e (o
que ela vê como) sua consequente incompreensão de sexualidades
que escapam à heteronormatividade:
338 | (Des)Prazer da norma

A população nativa é quase toda analfabeta e os de fora, na sua quase


totalidade, são pessoas vindas de cidades do interior de outros
estados e, portanto, semialfabetizadas ou com grau de instrução
precário. E trazendo consigo aquela visão limitada das coisas,
aquele espírito tacanho, que caracterizam as pessoas nascidas e
criadas em cidades do interior. Portanto, a homossexualidade é
olhada, tanto pelos habitantes nativos quanto pelos que vieram
de fora, como algo distante de suas vidas (Um Outro Olhar, nº 3,
1998, p. 7).

A aventura de Naná em Ariquemes, no entanto, dura pouco – e


os acontecimentos de sua vida desenrolam-se aos olhos da leitora de
Um Outro Olhar quase como num folhetim. Em junho/julho de 1988,
data que identifica o exemplar de número 4 do boletim, seu anúncio
traz novamente um endereço do Recife. No texto “Uma experiência
de vida”, escrito ainda em Ariquemes, ela faz um balanço público
– dentro da intimidade possível propiciada pela circulação destes
textos em um grupo relativamente conhecido – dos acontecimentos
mais recentes em sua vida amorosa e explica a decisão que a levaria
de volta à sua terra natal. Naná inicia sua narrativa rememorando
uma conversa com uma amiga, em que contara sobre sua “perspectiva
ao lado de uma companheira”, e comenta como então “não sabia que
isto estava muito perto de se tornar realidade”:

Tudo começou quando, ainda em Recife, recebi uma cartinha


lacônica, um bilhete, um apelo: “Preciso de uma amiga. Escreva-
me”. Escrevi. Respondeu-me. E daí a troca de correspondências, a
troca de ideias, de experiências, de apoio mútuo, palavras amigas,
força recíproca, afeto nascendo, amizade crescendo. E a pergunta:
por que não nos conhecemos pessoalmente? E a resposta: sim, por
que não? […]
Os encontros se sucederam até que a minha realidade interior não
pôde mais ser segurada e transpareceu no rosto e no olhar. Meus
olhos diziam: eu te amo! E a mensagem foi compreendida (Um
Outro Olhar, nº 4, p. 3).

O encontro, entretanto, foi breve. Naná logo precisou


comunicar à sua amada que iria “embora, para muito longe, para
o extremo norte”. Pouco tempo depois, fariam novos planos: a
companheira de Naná (cujo nome não é revelado) terminaria
um curso que estava fazendo e abandonaria seu cargo público
Afeto | 339

recém conquistado, enfrentando assim o que a associada da Rede


descreveria como uma “‘prova de fogo’. Seria, sim, uma prova de amor
muito significativa, deixar um emprego fixo e promissor para vir
fazer uma tentativa incerta e insegura ao meu lado”. Naná prossegue
seu balanço, contando sobre a chegada e adaptação em Ariquemes,
a satisfação com seu trabalho enquanto médica e os “acenos
sedutores” de novas oportunidades em sua carreira. “Mas o aceno
mais sedutor foi o chamado da terra, o apelo do amor, a saudade que
se fez dobrada”, ela continua, comentando a “reviravolta do destino”
que lhe ocorrera “por determinação das deusas”: seu nome constava
na lista dos classificados em um concurso público que ela realizara
anos antes.

Agora a prova de fogo sou eu quem tenho que dar […] Vou trocar
a medicina por um trabalho burocrático e, em compensação, vou
anular a distância que nos separa. Espero que ela saiba compreender
e valorizar a extensão e a profundidade dessa minha renúncia […]
Dando um balanço da minha vida não encontro grandes realizações,
feitos brilhantes, apenas encontros feitos e ações movidas por
amor. Sim, apesar da minha pobreza e mediocridade, reconheço
que sempre me esforcei para que o amor lésbico, em minha vida,
fosse realmente maravilhoso (Um Outro Olhar, nº 4, pp. 4-5).

Deste seu “balanço”, podemos apreender a centralidade


conferida ao amor, concebido e idealizado como capaz de suportar
certas “provas”, as quais podem incluir renúncias e sacrifícios.6 O
tema do sacrifício pessoal como prova de amor volta a ser abordado
por Naná em um conto intitulado “Coincidência??!!”, publicado na
edição de número 7 do boletim:7 prestes a completar um ano de

6
Uma versão reeditada e resumida desta história seria publicada na edição nº 34
da revista acadêmica Feminist Review (1990), em seu dossiê sobre “lesbianismo
internacional”. Em sua colaboração, vertida para o inglês por Marlene Rodrigues,
Naná Mendonça descreve sua passagem por Ariquemes, o retorno a Pernambuco
e a mudança motivada pela possibilidade de estar mais perto da mulher amada:
“troquei meus instrumentos médicos por uma máquina calculadora. Em Rondônia
eu era a chefe de um centro de saúde, aqui sou chefe de um centro de coleta de
impostos. É um emprego sem aventuras ou poesia, mas paga bem”. A “prova de
fogo”, aqui, implica um conjunto de renúncias e perdas ligadas à vida profissional,
justificadas por uma concepção idealizada de parceria afetivo-sexual.
7
Cabe notar que o próprio periódico figura neste conto, na cena em que Nina
340 | (Des)Prazer da norma

relacionamento com Ziza, Nina deixa de adquirir o volumoso – e


bastante caro – tratado científico que lhe interessava, investindo os
poucos recursos obtidos com a venda de seu relógio, seu toca-fitas e
a coleção de obras de seu escritor preferido na compra do delicado
anel de ouro que sua namorada há muito desejava. A protagonista
apressa-se para chegar em casa antes da companheira, pois desejava
preparar-lhe o jantar – e encontra a luz do apartamento acesa,
o aroma da refeição já preenchendo o ambiente. Coincidência?
As duas trocam presentes: Nina recebe o livro vermelho, com sua
“capa majestosa, com as letras douradas, proclamando a natureza
científica de seu conteúdo”, que Ziza havia conseguido comprar após
fazer economias e vender algumas coisas suas. Não foi coincidência,
avalia Nina: “quando fazemos algo por amor, principalmente se há
uma certa dose de sacrifício, o amor retornará para nós de alguma
forma. Acho que foi isso que aconteceu” (Um Outro Olhar, nº 7,
1989, p. 9). Além do sacrifício, o que é valorizado é a reciprocidade:
enquanto a leitora acompanha as personagens adiando o contato
com o jantar já pronto e, em vez disso, dirigindo-se ao quarto e
apagando a luz, as letras contidas na página ajudam a construir um
ideal de relação entre mulheres.
É interessante notar como esta história, embora fictícia,
articula questões também presentes nas reflexões de Naná sobre
sua própria vida. Heilborn (2004) comenta como a afetividade é
valorizada no interior de parcerias homocorporais femininas, para
usar sua expressão; aspecto também comentado por Meinerz (2011).
Muniz (1992, p. 146), em sua dissertação sobre a indizibilidade
das relações entre mulheres, comenta como os discursos acerca
da homossexualidade feminina – incluindo aqueles formulados
por suas interlocutoras – frequentemente coloca o amor entre
mulheres como “excessivo, mais do que profundo, transbordante,
irresistível e delirante […] como uma espécie de paixão que não
reconhece limites”. Esquivando-se da associação entre afetividade
e feminilidade, e da “aura romântica” que “universo feminino
empresta” ao amor (p. 147), esta autora comenta como o excesso
pode agir como forma de tornar inteligível um tipo de ligação –

vai à casa de Ziza pela primeira vez. A visão do “boletim do grupo” desencadeia
a compreensão de que ambas se interessavam por mulheres, tornando o romance
possível.
Afeto | 341

afetiva, sexual –, que de outra forma seria tido como inviável, por
desviar-se das gramáticas sexuais e afetivas da heterossexualidade.
A intensidade do sentimento legitima-o, torna-o real, maior do que
a paixão, em contextos em que este desejo, combatido e negado
pelas pressões e violências da heteronormatividade, pode parecer
estar aquém ou além de configurar-se enquanto amor – “um tipo de
amor que captura, convence, vicia e do qual não se pode fugir mas, ao
contrário, deve-se assumi-lo contra tudo e contra todos” (p. 160). É a
chave do amor que explica as decisões tomadas por Naná: nas frases
que encerram seu balanço pessoal, as “ações movidas por amor”
estão acima das “grandes realizações e feitos brilhantes”.
Discutindo a construção de narrativas em e a partir de
entrevistas, Gialdino (2016, p. 17, tradução minha) comenta como
a narração é uma “atividade social e um meio fundamental de
dar sentido e forma à experiência”. Ao narrar, os sujeitos têm a
“oportunidade de ordenar acontecimentos antes desconexos, e criar
continuidades entre os distintos momentos biográficos”. A autora, no
prólogo a uma pesquisa de Ernesto Meccia, refere-se especificamente
a narrativas e narrações elaboradas em relação a momentos mais
distantes no passado, mas acredito que tal passagem sirva para
pensar o relato de Naná: na narrativa, o novo relacionamento
estabelece uma conexão entre Ariquemes e Recife, justificando o
retorno. Meccia ressalta como as narrativas sempre envolvem uma
dimensão valorativa, atrelada às interpretações que permitem
compreender o mundo, as relações com as outras pessoas e a própria
experiência: “sem valor não há narração, contamos para dar nossa
posição acerca de algo, estejamos ou não conscientes disso” (2016,
p. 41). O narrador também se constrói no narrado: narra e acredita
no que narra como se assim houvesse sido; dá provas de ser o que
narra e espera ser compreendido como tal. Naná narra a si mesma
e se constrói nesta narrativa, nela construindo as interpretações
que ordenam a elaboração que ela faz de sua própria história. Seu
“balanço” é, ao mesmo tempo, uma despedida de Rondônia, um
pequeno memorial da satisfação que ela teve ao desempenhar a
função de médica e coordenadora em uma região “carente”, e um
posicionamento valorativo que coloca como positiva a decisão de
renunciar a algo em nome do amor por outra mulher.
Em um texto na seção “Vivências” da 6ª edição do periódico
(1989), o amor correspondido e realizado com outra mulher torna
342 | (Des)Prazer da norma

possível dispensar mesmo os grandes investimentos reflexivos na


compreensão da própria sexualidade:

[…] comecei a compreender meus sentimentos e a me descobrir


como lésbica. Comecei também a tentar explicar, a mim mesma,
o porquê dessa diferença, as razões de eu não ser como as
demais mulheres. Li muito, estudei muito, quebrei a cabeça,
queimei as pestanas. Atualmente, teorias jogadas por terra, livros
esquecidos nas prateleiras, cabeça consertada, pestanas dedicadas
exclusivamente a dar beijos de borboleta na namorada, sinto-me
livre e leve, caminhando […] o caminho de quem descobre que
seu amor, sua ternura, seu carinho são sempre por uma pessoa do
sexo feminino, não importando o porquê, mas apenas o fato. Um
caminho onde a mulher pode realizar-se integralmente, em todos
os aspectos da vida, não só profissional, econômico e cultural, mas
também emocional e sexual, sem girar sua vida em torno de uma
figura masculina. Um caminho onde a mulher anda lado a lado com
outra mulher, tentando construir, com ela, um mundo mais humano,
um mundo de amor. sem ódios e sem guerras. Presentemente, vou
andando por esse caminho, livre e leve, com minha namorada e a
proteção da Deusa (Um Outro Olhar, nº6, 1989, pp. 14-15).

A “diferença” que Naná sente em relação às “demais


mulheres” aparece no texto apenas depois ela introduz a descoberta
do “lesbianismo”. Interessantemente, essa “diferença”, depois de
elaborada como subjetividade e como identidade, como aponta Brah
(2006), deixa de requerer um intenso esforço de explicação, abrindo
as portas para um caminho “livre e leve” que será idealmente
trilhado com uma companheira ao lado. Ao elaborar (e apresentar)
sua própria experiência nesta narrativa, textos como os discutidos
neste artigo ajudam a colocar os relacionamentos entre mulheres
como algo realizável – ou, como já indicado, a inserir a realização
deste desejo de conjugalidade, de amor correspondido (e passível de
ser vivido) entre mulheres, no campo de possibilidades (Velho, 1994)
das leitoras do periódico.
Meccia (2016) destaca que a dimensão valorativa do relato,
a avaliação do vivido, é uma parte indissociável da produção de
narrativas – é o que faz com que o sujeito dê sentido às experiências
que o constituem. No caso dos textos de Cice, Nani Tobi e Naná
Mendonça, o compartilhar das reflexões tecidas na narração
Afeto | 343

acerca dos próprios envolvimentos sexuais e afetivos com outras


mulheres, atuais e os passados, faz circular visões sobre afetividades
entre mulheres. Cabe resgatar uma última vez parte da entrevista
de Nani Tobi, na qual a ativista relata a confusão que vivenciara ao
começar a perceber suas inclinações em relação a outras mulheres,
por não conseguir enquadrar tais desejos no “modelo papai-mamãe”
que conhecia até então; em sua circulação através da reprodução
do periódico, a elaboração que Nani faz de suas experiências
posteriores, sua manifestação de rejeição à “dominação” constitutiva
dos “modelos falhos” da heteronormatividade e do racismo, podem
ser vistos não só como reflexão pessoal, mas também como parte da
construção de ideais de relacionamento calcados em modelos mais
igualitários. Se, como dito no início deste artigo, uma das propostas
do boletim Um Outro Olhar era “trazer de fato novas maneiras de
ver as relações entre mulheres”, acredito ser possível dizer que
estas “novas maneiras” iam sendo construídas coletivamente entre
as escritoras e leitoras do grupo, a cada nova publicação. Para
encerrar, retomo o argumento de Cvetkovitch (2008): nem só de
dor e discriminação são feitos os “arquivos de sentimentos” que
documentam as vidas de gays e lésbicas ao longo do século XX. Eles
também guardam memórias de resistência e criatividade – como
na construção de novas afetividades possíveis frente à recusa (ou
mesmo impossibilidade) de participação nos modelos ditados pelos
ideais heteronormativos, recolocando os valores do amor romântico
em novos, talvez imprevistos termos.
Em meio a sonhos e normas: amor, família e futuro
entre três mulheres trans/travestis

Oswaldo Zampiroli1

Introdução

Quando comecei a fazer a etnografia de mestrado, no início do


meu trabalho de campo, “amor” não era uma categoria que imaginei
que pesquisaria. Meu olhar, que a princípio buscava compreender
a prostituição, acabou se dedicando a entender a centralidade
que amor e conjugalidade tinham entre minhas interlocutoras.
Neste artigo, apresento um pouco a maneira como “amor” foi
aparecendo durante a pesquisa de campo e como este sentimento
persegue determinadas normatividades, enseja modos de vida e
cria papéis sociais. Desse modo, poderemos compreender como a
categoria “sonho” passa a se relacionar com “amor” e como ambas
se entrelaçam numa perspectiva de futuro. Para tal, é necessário
apresentar algumas das personagens que dão vida a esta pesquisa.
Alice, Donatela e Ana2 têm em comum a experiência de terem
se prostituído por um tempo em suas vidas. Alice “batalhou” durante
três anos, entre 2005 e 2008. Hoje, com 36 anos de idade, consegue
manter sua vida trabalhando como atriz. Já Donatela e Ana seguem
trabalhando como garotas de programa, pois não acreditam que há
espaço para elas no mercado formal e, ademais, conseguiram rápida
ascensão social (do ponto de vista do poder de consumo) como
prostitutas. Já no que diz respeito às suas identificações, há uma
diferença fortemente marcada pela faixa etária. Donatela, com 32
anos, e Alice, 36 anos, se identificam como travestis. Ana, 22 anos,
como mulher transexual.
Outro ponto que faz convergir as experiências das três
mulheres num espectro parecido de vivências e afetos, mesmo
face à diferença etária, é o fato de que todas elas percebem e vivem
seus relacionamentos amorosos de maneira muito análoga. Isto é,
colocam-se como românticas e buscam relações monogâmicas com

1
Oswaldo Zampiroli é doutorando do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Todos os nomes são fictícios, a fim de preservar a identidade de cada uma delas.
346 | (Des)Prazer da norma

homens “cisgêneros”.3 Nas conversas que tive com elas, sempre me


eram narradas as histórias dos “grandes amores” que viveram, dos
homens que as decepcionaram e das dificuldades em encontrar um
homem que aceitasse completamente se relacionar com uma mulher
trans-travesti e prostituta. O relacionamento de maior duração
dentre elas foi de Donatela, com um homem italiano, durante quatro
anos. Todos os outros relacionamentos que me foram confiados
duraram muito menos e, com exceção deste, nenhum se tornou
público para a família do amado. Assim, além da dificuldade de
construir amores que permaneçam, há a qualidade subterrânea para
onde estes amores são alocados.
O percurso que trouxe neste artigo para que possamos
discutir “sonhos” e “futuro” caminha em território acidentado.
Julguei necessário fazer digressões – indiscretamente extensas
– sobre dimensões das vidas conjugais de minhas interlocutoras
para ratificar a importância e o peso que sonhar apresenta nas
trajetórias de vida que destacarei ao longo deste texto. Digo isso
pois passaremos boa parte da extensão deste artigo debatendo
assuntos que, se num primeiro momento podem parecer não
se conectar intimamente com as categorias do título, no final,
darão viço à proposta central. Para tal, começaremos discutindo a
impressão fantasmagórica de ameaça que assola os relacionamentos
afetivos de minhas interlocutoras – encarnadas na ideia de Parcas.
Em segundo lugar, discutiremos as dinâmicas conjugais de Ana e
Donatela com aqueles que elas consideram o “grande amor” de suas
vidas. O terceiro ponto que iremos debater é sobre a dimensão da
“solidão” que pode aparecer nos discursos amorosos. Em seguida,
finalmente, discutiremos como a categoria “sonho” aparece e por
que ela é central para falar de futuro neste contexto etnográfico.

3
No que diz respeito a termos como “cisgênero” ou apenas “cis”, todas as minhas
interlocutoras sabem, reconhecem e usam de vez em quando o termo (umas mais e
outras menos). Já as “mulheres cisgêneros” são chamadas de “mulher”, “mulher de
verdade”, “mulher biológica”, “mulher não-trans”, “amapô” ou “amapoa”, “racha” ou
“rachada”. De modo geral, quando elas falavam sobre seus relacionamentos afetivos,
usavam apenas “homem”. Em algumas ocasiões, mais comumente quando falavam de
política e militância, usavam a expressão “homem cis”. Como neste artigo a dimensão
que queremos pôr em relevo da vida dessas mulheres é a da conjugalidade, utilizarei
apenas “homem” para me referir a seus interesses amorosos e namorados. Sendo
assim, quando eu for me referir à “mulher cisgênero”, utilizarei o termo “mulher
não-trans” pela mesma razão.
Afeto | 347

Outro ponto chave aqui é o debate sobre “normas”. Lanço mão,


de imediato, da perspectiva de que estamos falando de três mulheres
trans/travestis que fazem parte da chamada “classe popular”. Isto
implica, em alguma medida, a recuperação de um debate acalorado
na antropologia de como DaMatta (1979) pensa as “camadas
populares” no Brasil como mais afeitas ao holismo, enquanto as
“camadas médias” são mais afeitas à ideologia individualista.4
Digo afeitas pois no momento de construção da pesquisa eu
observava o que Duarte (2009; 2008) chama de “ethos privado” nas
“classes populares”. Isto é, contradições latentes que começaram a
aparecer nos contextos etnográficos que o autor pesquisava e que
indicavam mudanças substanciais na direção de individuação, em
concomitância ao reforço de éticas mais tradicionais (hierárquicas).5
Tais contradições apareciam pela convivência entre novas formas
de conjugalidades, ou de reprodução, e o reforço da centralidade da
família, por exemplo (Duarte, 2009; 2008). Todos esses reforços de
uma ética mais vinculante, digamos assim, passam por determinadas
normatividades que darão forma aos “sonhos” e aos “amores” de
Ana, Donatela e Alice. Ademais, essa tendência à individuação será
central para entendermos como são dados os processos de “cura”
depois de um fim de uma relação amorosa. Desse modo, o uso de
termos como “hierarquia”, “livre-escolha”, “autonomia” ou “ideologia
individualista” trazem como pano de fundo esta perspectiva.

As Parcas: os desafios que rondam os “amores subterrâneos”

“Amores subterrâneos” é como intitulo minha pesquisa de


mestrado (Zampiroli, 2017). A ideia deste nome apareceu numa
tentativa de dar uma qualidade específica às maneiras em que
mulheres trans e travestis, de um modo geral, se relacionam com

4
O uso da expressão “ideologia individualista” em detrimento de “individualismo”
foi escolhido tendo em vista a constatação cuidadosa de Dumont de que não há
sociedades plenamente individualistas, uma vez que ele não entende como possível
que a humanidade se desvencilhe totalmente de suas tendências a hierarquizar
(Dumont, 1992; 1985).
5
A ideia de tradicional aqui também caminha pelo sentido dado por Dumont por
pensar o tradicional vinculado à hierarquia. Assim, se a tendência a hierarquizar é
perene, o tradicional é tão moderno quanto o individualismo. (Dumont, 1992).
348 | (Des)Prazer da norma

seus interesses amorosos. Isto é, há uma enorme dificuldade dos


parceiros de assumi-las para seus ciclos mais próximos de amigos e
familiares. O que fui percebendo ao longo da escrita da dissertação
foi que “subterrâneo” não é apenas uma qualidade, um adjetivo da
relação, mas também uma substância, um advérbio, um modo de
estar e de se relacionar. A qualidade substancial constrói papéis
sociais específicos que, mesmo atuando na sombra, versam sempre
sobre uma vida conjunta.
Quando revelei para Ana que estava pensando em adotar
este título em minha dissertação, “Amores Subterrâneos”, ela
respondeu prontamente:

Miga, tipo assim, não é só amores subterrâneos, sabe? Tudo é


subterrâneo. A convivência é subterrânea. Um hétero não faz
amizade com uma trans, não pode, é proibido. Ou o homem tá
comendo a trans ou tá dando pra trans. Tem todo esse peso. A
minha classe é a que mais sofre […] Você vê um gay trabalhando no
shopping, você vê um gay trabalhando em restaurante, você vê um
gay tendo filhos, família. Você vê um gay em todos os lugares. Uma
travesti você não vê. Quando você vê é só pra fazer média, porque
na primeira oportunidade vão chutar ela dali. Por isso que minha
classe são as pessoas que mais admiro, sabe? São as que eu mais
admiro na vida. É minha classe. Por passar por tudo o que passa e
mesmo assim não desistir, botando a cara no sol, matando um leão
por hora. Não é nem por dia, é por hora. E está ali sorrindo, de bom
humor, forte e linda [grifos meus].

A leitora ou o leitor poderia argumentar que a resposta


de Ana foi dada nos termos em que eu a provoquei, com a ideia
de “subterrâneo”. Sim, mas embora o adjetivo não seja aquele
que possivelmente ela usaria, a informação que Ana nos revela é
central no tocante ao habitar um corpo entendido como desviante
em relação à sexualidade e ao gênero. Ademais, é possível notar
que tudo aquilo que ameaça a manutenção de relacionamentos é
atribuído a uma espécie de entidade difícil de identificar, imprecisa,
mas eficaz, o que fica evidente na indeterminação do sujeito do
verbo “vão” em seu depoimento. A qualidade subterrânea dos
relacionamentos nos permite identificar, assim, certa “fixidez na
imprecisão” da construção de ameaças, além de nos impossibilitar
de enxergar medidas mais tangíveis para combatê-las – o que pode
Afeto | 349

resultar na sensação de isolamento.


Digo isto pois, durante minha pesquisa de campo, notei que
minhas interlocutoras tratavam a “sociedade” como uma entidade
altamente repressora. Isto é, todas elas usam a expressão “sociedade”
para falar de um inimigo em comum. Por exemplo, “a sociedade é
preconceituosa”, “a sociedade é intolerante”, “a sociedade é careta”.
Seus corpos, vítimas de censura, desde os olhares em espaço
público à luz do dia, violências simbólicas, agressões, até a maneira
como circulam na “boca do povo” em espaços privados geram
a compreensão daquilo que as marginaliza, cristalizada grande
parte das vezes na ideia de “sociedade”. Há também o sinal sobre
a qualidade desta sociedade. Assim, “cristianismo” ou “sociedade
cristã”, “sociedade brasileira”, “o povo da noite”, “a família”, etc.,
também são marcas com caráter de entidade que aparecem como
instrumentos de repressão. Logo, para pensar a qualidade daquilo
que é interpretado como inimigo, encontrei na figura mitológica das
Parcas a marca igualmente etérea da ameaça.
As Parcas são figuras romanas mitológicas (“moiras” na
mitologia grega), que detêm em mãos os fios da vida de todos os
mortais. Nona, Décima e Morta cuidam dos fios do nascimento,
da continuidade e do fim da vida, respectivamente. O uso da ideia
das Parcas se justifica por um lado pelo caráter fantasmagórico
que as ameaças impõem, dando, ao mesmo tempo, certa agência
a estas para quem tramam dar fim. Há de fato um “destino”
pouco duradouro para os relacionamentos amorosos que minhas
interlocutoras narraram. Toda relação foi contada, nas entrevistas,
entre uma cadeia de impossibilidades de sucesso. As parcas, como
entidades responsáveis em cuidar da expectativa de vida das coisas
mundanas parecem encerrar as relações amorosas entre mulheres
trans-travestis e homens com mais afinco e velocidade. Assim,
manter o relacionamento no subterrâneo é de alguma forma tentar
fazer sobreviver uma relação que, no primeiro vislumbre de uma
vida pública, pode ser interrompida pelas Parcas.
A experiência de amar e se apaixonar deve ser tomada
pela grande intensidade e centralidade que são trazidas à baila
entre minhas interlocutoras. Se somarmos essa intensidade à
compressão de inimigos como entidades – a partir das quais evoco
a figura das Parcas –, é possível compreender a especificidade do
sentimento de solidão que as acomete em muitos momentos. Se as
350 | (Des)Prazer da norma

Parcas espreitam para cortar o fio de todas as relações que podem


ter, elas o fazem através da família, através do estigma e através da
sociedade. Desse modo, criar projetos e pensar no futuro passa a
ser uma tarefa difícil, pois está posta o tempo todo a ameaça das
Parcas de impossibilitar a construção e a manutenção sistemática
de pertencimento a um lugar hegemônico.

O papel de esposa e as negociações de intimidade: dinâmicas


conjugais em busca de sobrevivência

Se há a necessidade de viver relações de forma subterrânea


buscando impossibilitar a atuação das Parcas, há, portanto, uma
tentativa de prolongar a vida das relações. Logo, uma dinâmica
idiossincrática de negociação de intimidade se instala na vida da
díade. Numa outra oportunidade,6 escrevi mais detalhadamente
sobre as dinâmicas conjugais ímpares que minhas interlocutoras
experienciaram pelo fato de terem corpos estigmatizados pelas
Parcas. Meu ponto no dado artigo foi de entender como o papel
de “esposa” é olhado de modo desejado ao mesmo tempo que
enseja um significado e uma dinâmica diferente do que o título
comumente evoca.
A complexidade que reside na compreensão do papel de
“esposa” se dá pela dinâmica completamente hierárquica que os
relacionamentos afetivos apresentam, ao mesmo tempo que são
narrados para mim como dinâmica de equidade e de “livre escolha”.
Foi possível notar tal fato pela maneira com que cotidianamente
eram negociadas as intimidades da díade, tendo em vista que se por
um lado os homens insistiam (ou “enrolavam”) que não deveriam
revelar a “esposa” trans/travesti para a família, por outro elas não
abriam mão, num primeiro momento, da prostituição como fonte de
renda e autonomia. Assim, o poder na relação passa a ser disputado
nos diferentes significados atribuídos ao amor, ao sexo e ao prazer
no ir e vir das discussões (ou “DRs).
Por um lado, a monogamia deixa de ser uma disposição
moral prévia e passa a ser uma negociação interna de cada casal,

6
Chamo os tensionadores de negociação de “dobra do cuidado e controle” (para
mais informações, ver Zampiroli, 2018).
Afeto | 351

tal como pregado pelo modelo de “casal igualitário” das camadas


médias (Salem, 1989; Heilborn, 1995). Há também a “paixão” que
se torna “grude” (Velho, 2006; Salem, 1989), em que os pares são
ligados por um elo subjetivo; ligados pelo desejo; entendem a díade
pelos próprios termos do casal; se veem como núcleo forte que
pode ter identidade mais intensa que dos núcleos consanguíneos; e,
finalmente, percebem a díade de maneira “natural”, “pré-social” ou
até mesmo “antissocial” (Salem, 1989). O elo subjetivo, o desejo, etc.,
podem ser percebidos como imunes aos imperativos sociológicos,
ou seja, esses laços da díade são forças que podem superar laços
consanguíneos em detrimento das relações de escolha – fato este
que é repetido em diversos momento nas entrevistas.
Mas, por outro lado, os termos dos casais tendem a se
afastar destes que a clássica literatura dos anos 1980 sobre família
e conjugalidades costuma abordar (Velho, 2009; Fonseca, 1995;
Heilborn, 1995; Duarte, 1999; Salem 1989). Acredito que estamos
diante de um outro modelo de conjugalidade no qual, embora
concebido e idealizado pelo típico imaginário de relacionamentos
de camadas médias – o “casal igualitário”, seguindo essa literatura
mencionada –, ele é praticado de forma diferente. Há diferença de
poder entre o homem e a mulher trans/travesti, há ocultação dessa
mulher na rede relacional do parceiro e há uma dinâmica ímpar nas
negociações de intimidade, ocasionada pelos ciúmes do homem em
relação a sua companheira prostituta. Tudo isso distancia, na prática
cotidiana, esse modelo de sua idealização “igualitária”. É mister
salientar também que eles construíram suas éticas do viver junto
como casamento e, mais importante, como família, e que o faziam
mesmo fora da formalidade do contrato de casamento, embora essa
afirmação vá de encontro à maneira com que minhas interlocutoras
intitulavam seus parceiros. Isto é, elas se referiam aos até então
namorados como “namoridos” ou “quase-esposos” com certa
regularidade, mas estes eram raramente institucionalizados no título
de “esposos” ou “maridos” – o que demonstra uma certa timidez
em se apossar da relação como uma relação “oficial”. Neste sentido,
entendiam-na como uma relação oficiosa. Outro ponto central sobre
a intitulação dos papéis na díade é a separação cartesiana de como
a relação é pensada e como ela é exercida: se em uma mão temos a
relação contada de maneira ideal – chamando atenção à escolha de
ficar juntos –, em outra mão temos o fato de que essas relações são
352 | (Des)Prazer da norma

subterrâneas. Por assim dizer, a alma da relação é igualitária, mas o


corpo é profundamente hierárquico.
Num determinado dia, tomada de intenso saudosismo,
Donatela me contou que ainda amava Alexandre, o namorado
italiano: “foi um amor que me machucou. Às vezes eu lembro dele
e ainda me acho apaixonada. Às vezes. Eu fui feliz com ele, não tem
como negar. Ele me apresentou pra família dele”. O término se deu
pois, após alguns anos de namoro, Alexandre acabou se viciando
em cocaína. Enquanto esperava Donatela terminar o trabalho nos
bares ao redor do ponto onde se prostituía em Roma, Alexandre
começou a fazer amizade com “gente errada”, com “o povo da noite”,
e acabou “estragando” a relação com o uso excessivo de “padê”
(cocaína). Já o fim do “grande amor” de Ana com seu ex-namorado
Romário aconteceu por fofoca. O pai de Romário ficou sabendo que
seu filho foi visto com “um traveco” no sítio da família e ameaçou
expulsá-lo de casa caso o rumor fosse verdade. Romário optou por
mentir e se afastar de Ana. Em ambos os casos a família aparece
por cima daquilo que qualifica positivamente ou negativamente
uma relação. A possibilidade do namoro se tornar público e ser
revelado para a família do amado é esperada com ansiedade pelas
minhas interlocutoras. Entendo o fato de Alexandre, um professor
de literatura e apresentador de televisão, ter apresentado Donatela
para a sua família como causa-consequência da atualização desse
amor oito anos depois de seu término. Donatela foi feliz com ele.
Com Alexandre, Donatela “conquistou” um espaço em que poucas
mulheres trans-travestis adentram: a família. Em tempos em que
se observa em diversos circuitos um profundo desinvestimento do
conceito de família, aqui esta instituição é reduto último e idílico
de conquista. Fazer parte de família, algo muitas vezes negado para
essas mulheres desde a tenra infância,7 é a cristalização de seu
pertencimento a uma rede maior e hegemônica de afetos positivos.
Parafraseando Larissa Pelúcio, a prostituição, vista como oposta
à família, é, muitas vezes, na verdade, a ponte que possibilita sua
construção (Pelúcio, 2011). Coloco a palavra “conquista” entre
aspas por entender que a aceitação de Donatela no núcleo de
Alexandre foi precária – uma vez que os pais de Alexandre pediram
que ele não revelasse sua namorada para o restante da família.

7
Ver também Kullick (2008), Silva (2007), Bento (2006) e Zampiroli (2017).
Afeto | 353

De modo semelhante, a família também é central para o


feminismo negro. Davis (2016) nos mostra que a valorização do
trabalho doméstico, por exemplo, residia na sua utilidade na vida
de mulheres negras escravas, pois a sua contrapartida, o trabalho
no campo, era realizado para os senhores e, portanto, inútil. Dessa
forma, tendo em vista as marcas da escravidão e a dificuldade de
estabelecimento de família, ser esposa era um lugar que valia a
pena lutar para conquistar (Davis, 2016).
bell hooks pensa na mesma perspectiva a partir de sua
experiência em seu bairro de infância, um gueto negro. Quando ia
visitar seus avós, que viviam num bairro branco pobre, sentia-se
fortemente insegura, tendo em vista os olhares de desconfiança da
população branca que envolvia a residência. Quando finalmente
chegava, sentia-se aliviada e dali poderia restaurar suas energias
(hooks, 1990). O espaço privado da casa funciona para a autora
como um espaço catártico, como um refúgio, onde não há nenhuma
forma de segregação racial e configura-se, portanto, num espaço de
resistência. Pensar o espaço doméstico como opressão, segundo a
perspectiva das duas autoras, é aliar a ideia de casa a uma perspectiva
da burguesia branca, o que impossibilitaria uma compressão desse
espaço como uma plataforma política e, simultaneamente, como um
espaço para o fortalecimento das emoções.
Quando tomamos a dimensão da conquista da família como
uma possibilidade política de confrontamento das disposições
morais vigentes, temos que ter em vista um embate travado no dia
a dia. Isto é, no tecido do cotidiano é que são moldados os afetos
e as catarses que desenham resiliências aos processos de opressão
– mesmo que numa dimensão aparentemente normativa8 da casa e
dos afazeres domésticos.
Diferentemente de Ana, Donatela namorou um homem que
a assumiu. Pelúcio (2011) nos mostra como há grandes dificuldades
para os homens brasileiros em “encarar” a sociedade “mente
fechada” e apresentar suas namoradas trans-travestis para amigos
e família. A impressão geral de Donatela sobre homens brasileiros
em contraposição aos homens europeus é muito similar à adotada
pelas interlocutoras da autora. “Mente aberta”, “evoluídos”, “têm
cultura” são expressões que ouvi comumente tanto por Ana quanto

8
Ver o conceito “habitar a norma” em Mahmood (2005).
354 | (Des)Prazer da norma

por Donatela acerca de suas impressões dos homens europeus.


Pensando no contexto de “classes populares”, Luiz
Fernando Dias Duarte (2009) apresenta como a possibilidade
de entranhamento, desentranhamento ou re-entranhamento dos
indivíduos destacados de contextos locais religiosos não parte
de um suposto confronto entre o moderno e o tradicional, mas
da moralidade do “ethos privado” nos encontros com o campo da
sexualidade. A aposta em pensar a possibilidade de entranhamento
e re-entranhamento das mulheres trans-travestis em suas famílias
e nas casas de seus parceiros se deita na centralidade das pequenas
escolhas que ecoam na potência de relação. Se pensarmos no
“ethos privado” como um local de sujeitos sexualmente dissidentes
à moralidade em vigência e como um espaço propício para a
individualização, teremos, justamente, a escolha como uma ação
maior daquilo que gera mudanças (Duarte, 2009). Desse modo,
alcançamos, na composição da análise, a riqueza da complexidade
de como tendências aparentemente contraditórias aparecem em
situações de intimidade. No que diz respeito a Ana e Donatela, é
interessante observar como o estabelecimento de normas para a
compreensão da experiência sensível dos afetos está presente nas
duas trajetórias. O “povo da noite” ou a “gente errada”, que Donatela
aponta como os responsáveis pelo modo de vida que Alexandre
passou a levar, poderiam ser as mesmas expressões que os pais do
italiano usariam para se referir à namorada de seu filho. Isto não diz
necessariamente que Donatela se vê como não integrante do “povo
da noite”. As normas morais que utiliza são ambíguas: ao passo que
conhece os mitos e verdades da vida noturna, sofre com o fim da
relação pensando-se culpada por levar até Alexandre o universo
que a acompanha. Já Ana decide definitivamente se desafeiçoar de
Romário quando o vê numa foto no Facebook batizando-se “nas águas
de Cristo”. Mesmo que afirme até hoje que o ama profundamente,
sua aversão à moralidade cristã gera uma contramoralidade e uma
indisposição. Temos a confecção de duplas morais sempre relativas
às experiências subjetivas das duas mulheres.
O impacto que uma informação revelada tem em pequenos
contextos sociais e o quão disposta, em lidar com a relação, está a
família moldam a frequência e intensidade de transformações morais.
A minha aposta, como não analisei nenhum caso empiricamente, é
que sair do subterrâneo, em certo grau, conforma a mulher trans/
Afeto | 355

travesti na sociedade, gera um papel social desejado e se torna uma


plataforma nas redes de relações do casal para impor o papel de
esposa e mulher trans-travesti na sociedade. O papel de esposa tem
potencial de torná-las mulheres. Trata-se do gênero sendo construído
não apenas através das mudanças de seus corpos, mas, especialmente,
pelo lugar social que o casamento introduz. O caráter público dessas
relações é subversivo pelo simples fato de incorporar corpos que
podem ser vistos como abjetos numa instituição hegemônica que é
a família, deslocando o paradigma do casamento ao obrigar as redes
do casal a se rearranjarem segundo sua prerrogativa de escolha,
que passa estreitamente pela autonomização dos sujeitos que o
compõem: a mulher travesti puta é autônoma, o homem da relação
também. Esse é o quadro favorável para vocacionar para a família do
último a existência e a identidade de gênero de sua parceira. A relação
do casamento, como disse Gilberto Velho (2006), é propulsora de
encontros e afastamentos de grupos como a família e amigos de
cada um dos cônjuges. Neste caso, teríamos então, mais uma vez, o
provocar de deslocamentos necessários para reavaliações morais
pessoais e, assim, transformações de sujeitos morais. Infelizmente,
nem a relação de Ana ou Donatela sobreviveram tempo o suficiente
para gerar um impacto grandioso nas redes de seus até então
parceiros. No caso de Ana, apenas a fofoca de sua presença no sítio
dos pais de Romário foi o suficiente para o ocaso da relação.

Carência vs. suficiência: o caráter descontínuo do discurso


amoroso

Alice, que possui um blog onde narra alguns episódios não-


ficcionais de sua vida,9 confessa em um post de abril de 2015 sua
angústia acerca das efemeridades das relações no contemporâneo e
seu grande desejo de “viver uma história de amor”:

Aí você sai para curtir a balada, disposta a viver o que vier e ser
feliz, com responsabilidade. E você reúne bons amigos, bebe,
dança, e quando pinta aquele gatinho, dá uma fugidinha para
curtir, até rola uma boa química, mas vocês não ficam a noite toda,
acaba rolando outro, e outro... A verdade, que na balada é isso

9
Os textos de Blog e Facebook estão reproduzidos sem alterações em gramática.
356 | (Des)Prazer da norma

que a grande maioria quer: curtição e quantidade. E confesso que


ficar com alguns meninos é gostoso, dá uma sensação gostosa de
liberdade, levanta seu ego, e não vou ser hipócrita em negar que
variar é bom. Porém, ao mesmo tempo bate um vazio. Tudo isso
divide as emoções. Parando agora, friamente, posso dizer que
me fez bem e me fez mal. Sensação estranha de que peguei os
sentimentos e bati tudo no liquidificador. Eu vivo o momento sim,
sou inconsequente e impulsiva, acredito que não posso me anular
na vida, já que o “amor” ainda não veio, ao menos preciso curtir.
Confesso que sou uma eterna inimiga do jeito dos homens, porém
refém da necessidade deles. E nessa noite, eu sorri para depois
chorar, e só confirmou a certeza de que largaria tudo para viver
uma história de amor!

A visão pessimista de minha interlocutora, que aparece em


relação aos “relacionamentos de bolso”, configura fonte de grande
angústia. Alice expressa ao dizer “peguei os sentimentos e bati
tudo no liquidificador” um sentimento paradoxal onde ela percebe
as fortuidades nas relações (e as entende como superficiais), ao
mesmo tempo que reconhece algo imanente que demanda duração.
A angustia expressa na análise de Alice aparece já há algum tempo
na tônica de alguns sociólogos e antropólogos sobre coqueteria,
“pegação”, “zoar” e “ficar” (Almeida, 2006; Almeida & Tracy, 2003;
Bispo, 2016; Bauman, 2004; Coelho, 2006b; Eugênio, 2006;). Ela não
é a única. Na verdade, a interpretação dos relacionamentos efêmeros
ou táticos pela ideia de mercado e consumo já é o tom de uma
“impressão geral”, por assim dizer, da juventude contemporânea
sobre relacionamentos (Zampiroli & Bispo, 2016). Isto gera um
inverso paradoxal no qual, ao passo que é “gostoso” ficar com
“alguns meninos”, pois “levanta o ego”, no fim da noite prevalece o
“vazio”. Como ela diz, “me fez bem e me fez mal”. Dessa maneira, a
forma de se relacionar que não findaria em alguma angústia seria
pela manutenção do amor romântico, ou “amor [que] ainda não
veio”, monogâmico, nos revelando, portanto, o cerne da relação ideal
para ela.
Em outro texto, mais antigo (de dezembro de 2014), Alice já
dizia a frase “largaria tudo para viver uma história de amor”.

Eu entendo que nem tudo é amor, mas queria que o sexo viesse
com uma amizade, e não apenas um descarregar de necessidade.
Afeto | 357

Atualmente estou há mais de um ano sem namorar, e confesso que


quando eu era jovem, eu tinha muito mais facilidade, era raro eu
não estar namorando. Hoje em dia a realidade é outra. De duas uma:
ou eu estou velha e gorda e não desperto desejo nos homens, ou
por eu ser uma mulher poderosa isso acaba assustando e afastando
os homens. Eu de verdade não sou de amargar fossa, mas é bem
verdade que tenho sentimento. E por muitas vezes eu me sinto
sozinha, por mais que a cada dia eu tenha um homem diferente
em minha cama. Eu amo fazer sexo, mas isso não me completa
como realmente eu gosto. Eu não vou deixar de curtir a vida, mas
confesso que largaria tudo para viver uma verdadeira história de
amor. Estou escrevendo isso com a solidão e uma garrafa de tequila
como companheiras!

Este segundo texto de Alice nos é ainda mais revelador.


Aqui, ela expressa cinco pontos chaves para entendermos sua visão
sobre o assunto: 1. A marcação da diferença entre o sexo com afeto
(amizade), sexo instintivo (um descarregar da necessidade) e o sexo
comercial que aparece nas entrelinhas de “homem diferente em
minha cama”; 2. A passagem de tempo pelos anos que já não namora,
“estou há mais de um ano sem namorar”; 3. Juventude e magreza
como marcadores importantes para a conquista; 4. O “ser poderosa”
como afugentador de pretendentes; 5. O gregarismo como oposto ao
sexo por prazer, ou seja, só existe com afeto.
Podemos perceber no primeiro ponto como Alice entende
diferentes sentidos para o sexo. Haveria o sexo instintivo, o sexo
afetivo e o sexo comercial. Este último teria em si mesmo a capacidade
de borrar as fronteiras entre o sexo instintivo e o sexo afetivo, uma
vez que o sexo comercial funcionaria como um ponto de encontro
de relações que são em sua maioria fortuitas, mas também são
devir-amor. Este fato se relaciona estreitamente com o ponto cinco,
no qual o sexo instintivo passa a funcionar como alavanca reflexiva
da superficialidade das relações efêmeras. Isso se deve ao fato de
que a extensa maioria das relações sexuais, para Alice, é pontual e
raramente ganha o nome de amor. Diferentemente de Ana e Donatela,
que “fazem um vício”, isto é, sentem prazer em relações sem afeto,
Alice afirma que ama fazer sexo, mas que “isso não me completa como
realmente gosto”. Portanto, o devir-amor do sexo comercial ou das
fortuidades do “ficar” nas boates são percebidas como possibilidade
remota, alimentando assim a impressão de “vazio” que este tipo de
358 | (Des)Prazer da norma

relação proporciona para ela. Para Alice, o amor é um sentimento


intenso e imanente, “é bem verdade que tenho sentimento”. Alice
quer ser conhecida por dentro, quer mostrar para o parceiro que seu
corpo é muito mais do que um corpo de travesti. Assim, o amor para
ela é tanto uma necessidade existencial quanto uma espera.
O ponto quatro insurge na urgência. Alice, que já atravessou
os 30 e poucos anos, vê como o marcador etário tem atingido sua
circulação por entre os homens, somado à sua experiência como
mulher “poderosa” Ao passo que há em seu espírito a vontade de
viver “uma grande história de amor”, o tempo passa e afugenta os
pretendentes com as marcas que vincam o seu corpo, seja por ser
“velho” e “gordo”, seja por estar mais indisposto ao efêmero, ao sexo
fácil. Neste caso, os enlaces da solidão vão se revelando na qualidade
transcendente do que ela entende como amor ao se fazer em espera.
Pergunto-me, por conseguinte: o que revela essa espera para se
relacionar? Espera essa explicitada no ponto dois, na maneira com
que Alice marca a passagem de tempo através dos anos de não-
namoro, ou seja, por aquilo que não se tem em detrimento daquilo
que se tem.
O fim do namoro de Ana com Romário foi revelado a mim
logo nos primeiros dez minutos da primeira entrevista. Chegando
em casa depois da entrevista, vi uma postagem de Ana no Facebook
que fora publicada algumas horas antes do nosso encontro.

A gente pensa em solidão e logo vem na cabeça a imagem de uma


pessoa isolada, que não sai do quarto e não faz questão de qualquer
contato social. Que besteira! A solidão está em qualquer lugar,
escondida nos maiores sorrisos, nos abraços mais apertados. O
irônico é que ela se esconde nas multidões, quem se sente sozinho
nunca está, de fato, só. Cada um é dono do seu próprio vazio. As
pessoas preferem a putaria porque é mais fácil, dá menos problema,
cansa menos e não dá dor de cabeça. O amor, além de complicado,
geralmente perde uma das bases. A verdade é que não preferem
o amor por ter medo, a zona não dá dor de cabeça, mas traz um
vazio gigante. No fundo as pessoas sabem que não existe nada
melhor do que amar e ser amado, dividir sorrisos, compartilhar a
mesma cama, o mesmo coração. O amor é lindo, as pessoas que se
corrompem.

A lamentação final de Ana, quando afirma que “as pessoas


Afeto | 359

que se corrompem”, acredito ser uma resposta a Romário, que, poucas


semanas antes da gravação do depoimento, tinha rompido com ela.
Romário não era, nas palavras de Ana, “um qualquer”. Ele cursava
engenharia, carreira de bastante prestígio no Brasil, e participa de
uma família de “classe média tradicional”. Assim que Romário e Ana
terminaram, ele voltou para sua ex-namorada evangélica e conhecida
da família.
De forma muito semelhante a Alice, Ana entende a pessoa
solitária não como aquela que está socialmente isolada, mas pelo
contrário. Os solitários estão aos montes perambulando entre
as multidões. Outra similaridade entre as duas é a experiência
retroativa negativa das relações fortuitas. Ela diz: “as pessoas
preferem a putaria porque é mais fácil, dá menos problema, cansa
menos e não dá dor de cabeça”. Curiosamente, Ana é a mais nova
das minhas interlocutoras e Alice, a mais velha. A visão de amor
de Ana e Alice é bastante semelhante. Ambas esperam “um grande
amor”, demonstrando acreditar em sua potência transcendente. Ana
me deu uma resposta muito elucidativa sobre isso, que nos ajuda a
pensar a relação entre a negativação da experiência da prostituição e
a do viver na espera de ter um namoro sério e duradouro:

Meu plano pra daqui a… meu futuro é estar morando na Europa,


sabe? Na Itália. Se Deus quiser, casar, ter uma vida normal e
estabilizada. Se Deus quiser, estar formada em algum curso, uma
faculdade. Eu penso em casar, em ter uma vida normal. Sou muito
sonhadora. Eu sonho muito em poder adotar uma criança, ter uma
casa, um marido. Poder cuidar de um marido, de um filho. Muito
muito. Sendo que também sou pé no chão, sabe? Eu não me iludo
mais, já me iludi. Porque homem, hoje em dia, para levar travesti a
sério a esse ponto, é raridade [grifos meus].

A capacidade transcendente do amor reside também na


possibilidade de transbordar-se para além da prostituição. Os
namorados seriam aqueles que as auxiliaram a largar a prostituição e
que possibilitariam, também, mudar toda a conjuntura na qual vivem.
Ana revela: “penso […] em ter uma vida normal”. O paradigma da
normalidade que Ana evoca aqui não é uma oposição à anormalidade.
Tanto Ana quanto Alice acreditam que a prostituição é uma profissão
digna e que deve ser respeitada. Entretanto, elas não conseguem se
ver trabalhando como prostitutas por toda a vida. Alice já pensa na
360 | (Des)Prazer da norma

experiência da prostituição como passado: “eu não fui prostituta, eu


estava prostituta. Hoje sou atriz”. Ana, embora goste da profissão (e
consiga ter prazer nela pelos “vícios”), credita na vida “normal” de
casamento monogâmico-tradicional um ideal de vida para si. Assim
“normal”, na verdade, se opõe a “marginal”. Nem Ana e nem Alice
querem viver na beirada. Elas querem ser protagonistas das relações
que travam com as pessoas e isto começaria com o fim da vida como
prostituta. Isso se dá pelo outro ponto central que Ana traz em sua
fala: como o fato de ser trans/travesti cria uma outra relação com a
espera. É uma espera, em alguma medida desacreditada, mas, ainda
assim, espera.
Dessa maneira, podemos pensar na face oblíqua do amor
na experiência dessas duas mulheres como espera. O sentimento
de solidão seria uma consequência do esperar. A possibilidade de
confrontar a espera com escolha dá contornos ainda mais perversos.
Ana afirma que “homem, hoje em dia, para levar travesti a sério
a esse ponto, é raridade”. Isto é, mesmo que se apaixonem e se
envolvam com os homens, a duração da relação dependeria muito de
como estes irão se conduzir no namoro, sendo que não são muitos
os que estão realmente dispostos. Ademais, caso entrassem numa
relação no modelo com o qual sonham, seria complicado levá-la
adiante, pois a família do homem poderia funcionar como Parca –
isto é ameaçar/gerir a relação. A facilidade com que se apaixonam
pode ser evocada pelo sentimento de “carência” e a resistência delas
a isso, pelo esforço de “suficiência”. Podemos perceber, portanto, é
construído um sentimento de autoestima amarrado ao passo dos
homens amados. Numa postagem de agosto de 2016 no Facebook,
Ana constata:

Eu juro que achei que isso fosse demorar meses para acontecer, mas
aprendi a ser o SUFICIENTE pra mim mesma e não preciso de mais
nada. Não preciso de ninguém pra dizer que me ama. Não preciso
de ninguém pra dizer que sente saudades. Não preciso de ninguém
pra dizer que sou linda. Só preciso de um espelho, para que assim
eu possa me olhar todos os dias e dizer essas coisas olhando nos
meus próprios olhos.

Já Alice percebe, em maio de 2016, a manutenção da sua


forma intensa de amar, agora com mais maturidade, mesmo em vista
de tantas desilusões amorosas:
Afeto | 361

Muitas vezes essas situações da vida nos fragilizam e nos fazem


aceitar migalhas. Posso estar exagerando, mas hoje em dia, em
matéria de rejeição, preconceito, ninguém sente a dor que uma trans
sente. No dia que eu descobri que travesti é ser um fetiche, amada
e idolatrada sim, desde que ninguém saiba, tudo tem que ser bem
escondido entre 4 paredes, me doeu muito. Mas hoje posso dizer
que tenho amantes, pois não me anulei, e aprendi a jogar, às vezes
perdendo, confesso, e chamo a brincadeira de “idem”. Eu poderia
estar “casada” com algum deles, mas a forma deles de “casar”
está longe de ser a que quero, e olha que nem espero a perfeição
hein… Mas confesso que ainda acredito no amor, acredito que um
dos sentidos da vida é amar, mas não acredito naquele amor puro
que eu criava todas as noites antes de dormir. Mas acredito que em
algum momento vai acontecer, de forma calma, verdadeira e sem
estar apegada a uma carência. E mesmo o meu acreditar hoje em
dia ser mais consciente, ainda assim a maioria das minhas amigas
trans me chamam de Alice no país das maravilhas… [grifos meus]

A “carência” (versada da solidão) e a “suficiência” aparecem
como paradigmas femininos de como pensar suas experiências
amorosas com os homens. O processo de superação da espera acaba
escoando pelos caminhos da ideologia individualista. Ana constata
que “só precisa de um espelho” para saber que é linda e digna de
ser amada. Alice “não se anulou”. Mesmo face à grande quantidade
de amores não correspondidos, tendo em vista sua intensidade
ao se relacionar, ela aprendeu a jogar. Conseguiu distanciar-se
de suas experiências amorosas e perceber que não estava sendo
correspondida como merece. Dixou de aceitar migalhas, como ela
mesma afirma. Ainda assim, mesmo diante de toda maturidade
que a experiência de seus amores lhe deu, Alice ainda é vista como
inocente por suas amigas. A relação entre carência e suficiência é
complexa e descontínua. Ambas intercalam suas postagens de “sou
mais eu”, “aprendi a me amar”, com textos de solidão.
A paixão percebida por Velho (2006) ganhou sentido neste
texto por estar igualmente investida de irracionalidade: emoção
como algo “sem intenção”. Percebi também, assim como Lutz (1998)
atesta, que muitas emoções são adjudicadas ao corpo. Expressões
como “um só coração”, “pé no chão” ou “vazio por dentro” nos
direcionam para experimentações corporais das emoções. Mas
no que toca ao amor, temos na construção do amor-romântico seu
362 | (Des)Prazer da norma

ideal sublime. Dessa maneira o amor, além de generificado, aciona


sempre um duplo caráter e dupla moral: tem algo de fisicalidade
(ao ser percebido no corpo) e de transcendental (quando pensado
como sonho ou como irracional), tem algo de natureza (“amor não
se define, se sente”) e algo de cultura (“acredito no amor…”), tem
algo de feminino (“mulher ama de verdade”) e algo de masculino
(“homem gosta de variar”), etc. Essas categorias de forma alguma
são estáticas, sendo forças cinéticas revestidas de sentido e que
estabelecem percepções sinestésicas de mundo.
Nos fragmentos de discursos amorosos que privilegiei
citar até aqui, temos o sentimento “amor” preso na sentença, mas
estourado de significados. As constatações dos relacionamentos
que Ana e Alice fizeram em suas redes sociais nos mostram como
este amor está investido concomitantemente de contemplação e
sentido prático em suas vidas amorosas. Tanto as ações dadas para
as superações dos amores fortuitos quanto as carências situadas
em contexto de falta de escolha no “mercado dos afetos” pautam o
caleidoscópio de sentidos de amar como possibilidade de reflexão e
compreensão destes mesmos contextos. “Eu fui fiel com ele”, “fui fiel
com o meu coração” são os mantras da superação, e “sou mais eu”, o
mantra da suficiência. Assim, para elas, ser romântica é entender a
natureza profunda e sensível dos seres. É pescar afeto num mar de
desamores.

Costurando Sonhos

Alice, perseguindo sua carreira de atriz, revelou-me a
felicidade de ver sua mãe um dia sentada na plateia para prestigiá-
la. Ela anda fazendo circuito de peças pelo Rio de Janeiro. Mas a
presença de sua mãe (que a havia expulsado de casa no início de
sua transição) veio como uma possibilidade de reestabelecimento de
vínculo. “Realizei meu sonho em ver minha mãe na plateia […] Agora
meu sonho é fazer uma novela”.
Ana, no dia do seu aniversário em junho de 2016, escreveu:

Que todos os meus sonhos continuem se realizando, e que todas as


transexuais e travestis tenham o mesmo direito que eu. O direito de
viver. Eu sei que é difícil aceitar as diferenças do próximo, porém
Afeto | 363

é louvável respeitá-las sempre. Desejo muito amor no coração da


humanidade e que meu sonho de viver em um mundo melhor se
realize. PARABÉNS PRA MIM!!

Mesmo com a grande quantidade de frustrações em


relacionamentos, Ana, Donatela e Alice permanecem sempre
“acreditando” “sonhando”. Sobretudo Ana e Alice, que nunca
perdem a oportunidade de divagar sobre quando terão casa própria,
marido e filhos. Ana faz uma aproximação fundamental entre sonhos
e projetos. Ela diz – em trecho já citado –, “meu plano pra daqui a…
meu futuro é estar morando na Europa”, “casada”, “com filhos”, “sou
muito sonhadora”. A possibilidade de se pensar os investimentos
futuros a partir dos sonhos é uma tentativa de levar a sério essa
experiência como projeto.
Maria Cláudia Coelho e João Trajano Sento-Sé (2014),
num artigo em que apresentam trajetórias de jovens cariocas em
interface com práticas criminais, também trazem essa aparente
indistinção entre sonho e projetos. Para os autores, quando
perguntavam para os jovens em questão sobre seus planos para
o futuro, respondiam com a palavra “sonho” ou mesmo “se Deus
quiser vou abrir um restaurantezinho” (Coelho & Sento-Sé, 2014,
p. 339). Assim, para os autores, “plano” segue evocando uma
certa vinculação entre presente e futuro e “sonho” está mais
alocado a uma virtualidade que parece possível. Entre minhas
interlocutoras, acredito que a palavra “sonho”, embora parta
sim de uma virtualidade do que parece possível, adquire caráter
de planejamento quando, na medida em que é possível, tem em
perspectiva uma agência em busca de realizá-los. O projeto,
segundo Gilberto Velho (1994), encontra linguagem própria para
ser expressado em diferentes tipos de contexto. O uso da palavra
“sonho”, e não “projeto”, é a constatação da distância entre minhas
interlocutoras e a possibilidade de realizá-los. Como afirma Audre
Lorde, “reconhecer o meu sonho é reconhecer o quão distante
ele está de mim” (Lorde, 1984, p. 100, tradução minha).10 Mas,
sobretudo, reconhecer um sonho é estabelecer um ponto de fixidez
por entre as incertezas e medos. É a vontade de construir outras
realidades mais bem-sucedidas e amenas. É atravessar a fronteira

10
No original: “to acknowledge our dreams is to sometimes acknowledge the
distance between those dreams and our present situation”. Tradução do autor.
364 | (Des)Prazer da norma

da marginalidade para o palco das relações visíveis, das existências


visíveis.
Estabelece-se então, através dos sonhos, uma outra forma
de se falar sobre futuridade quando tratamos de vidas transexuais.
A aproximação com escritos do feminismo negro é, novamente,
inevitável. Em seus ensaios, Lorde (1984) dá atenção especial à
poesia e aos sonhos: “são os nossos sonhos que indicam o caminho
para a liberdade”;11 “reconhecidos, nossos sonhos podem definir as
realidades do nosso futuro, se os equiparmos com o trabalho duro
e o escrutínio do agora”.12 Sonhar, portanto, ao mesmo tempo que é
o reconhecimento das distâncias entre o presente e aquilo que deve
ser mudado para haver algum futuro, não implica uma passividade,
mas um movimento de trabalho e de pequenas conquistas que
vão travando uma possibilidade de futuridade. Dessa maneira,
sonhar presentifica um futuro possível mais ameno, recarregando
resiliências no presente para seguir vivendo num mundo em que as
Parcas seguem vencendo.
Se o desejo pela norma pode gerar normalidades, é preciso
ter em mente que esta normalidade é posta de maneira ideal,
quase platônica e jogada para uma futuridade imprevisível. Tendo
a pensar que a possibilidade de normalidade posta pelas minhas
interlocutoras é, com efeito, estática, e pressupõe pouco do impacto
que seus corpos têm em transformar as configurações relacionais das
famílias dos namorados. Desse modo, o desejo por normatividade
pelo sonho pressupõe algo de transgressor necessariamente, mesmo
que encapsulado pelo impulso de viver uma vida “monogâmica”,
“heterossexual”, “normal”. Há algo de normativo na transgressão.
É como se houvesse um “duplo vínculo” não só na vida dupla das
mulheres transgressoras, mas nas transgressões em si: isto é, todo
desejo normativo tem algo de transgressor, toda transgressão
tem algo de normativo. O projeto normativo que o sonho
incorpora pressupõe mudanças e reelaborações nos processos de
entranhamentos e re-entranhamentos no exercício conflituoso da
vida cotidiana, mas não intenta de nenhuma maneira pluralizar a
monogamia, a heterossexualidade e as afetividades – mantendo a

11
No original: “it is our dreams that point the way to freedom”. Tradução do autor.
12
No original: “Acknowledged, our dreams can shape the realities of our future, if we
arm them with the hard work and scrutiny of now”. Tradução do autor.
Afeto | 365

qualidade monolítica destas categorias, mesmo que estas mulheres


as exerçam de maneira muito diversa de sua concepção ideal.
Desse modo, só se vive a “monogamia”, a “heterossexualidade” e a
afetividade da maneira em que é possível vive-las e não da maneira
que se quer viver. O querer aparece, justamente, como sonho.

Conclusão

Como vimos na leitura deste artigo, há grandes aparentes


ambiguidades em vários aspectos da experiência trans/travesti.
Desde o modelo conjugal que, por um lado, é pensado pelo ideário
igualitário, mas por outro possui fortes traços de hierarquia até
os sonhos normativos. A resposta a essa contradição pode ser
justificada tendo em vista o “ethos privado” que emana de sujeitos
cujas trajetórias estão marcadas pela distinção através de seus corpos
marginalizados. São linhas de caráter assintótico e parecem nunca
se encontrar: a rejeição familiar, a criação de vínculos amorosos,
a rejeição da família do parceiro, a vontade de criar família, etc.
Ademais, os discursos amorosos apresentados também caminham
na mesma direção: são fortemente ligados ao self-care – pela ideia de
suficiência, mas com forte desejo de uma vida conjugal vinculativa –
e ao sentimento de carência.
A aproximação de sonho e projeto parte da crença de que
não é apenas por vias de uma sistematização (meios e fins que os
projetos podem ser possíveis. A palavra sonho evoca o caráter
do incontrolável, do insistematizável da vida dessas mulheres.
Não depende delas a aceitação ou a possibilidade de inserções na
sociedade mais geral. Pelo menos não depende diretamente. De todo
modo, é, com efeito, uma postura ativa a que adotam para tentar
transformar seus sonhos em realidades.
Tudo isso nos mostra o quanto a dissidência é relativa: Alice,
Ana, Donatela são dissidentes em suas práticas, suas carreiras e
estilo de vida, mas a norma aparece como horizonte, de modo que
simultaneamente há anseios, sonhos ou projetos normativos. Assim,
elas nos mostram que é possível ser um dissidente sexual e, em
concomitância, seguir as normas de gênero, conjugalidade e família.
A experiência da transexualidade é absoluta, pois toma toda as
esferas da vida do sujeito. Logo, a manutenção dos relacionamentos é
366 | (Des)Prazer da norma

diferente entre mulheres trans e mulheres não-trans, de modo que o


corpo trans-travesti está mais fadado à solidão. Afinal, ser prostituta
é uma carreira que se pode abandonar (vide Alice), mas ser trans/
travesti é uma marca perene e irremovível no corpo, no passado e
nas memórias.
Os sonhos têm potência grandiosa em forçar novos limites
na malha do cotidiano ao fazer projeções de melhores futuros.
Assim, sonhar funciona quase como campo político espiritual que
projeta erguer-se do subterrâneo através dos (aparentemente)
mesmos códigos relacionais de família, gênero e conjugalidade. A
compreensão de sociedade como forma etérea de discriminação, isto
é, como Parcas, confrontando a vontade de viver um relacionamento
como qualquer outro, mostra-nos que a capacidade de deslocamento
dos paradigmas heteronormativos não é pelo questionamento de
seu status nas macro configurações, mas na sua conquista pela (re)
existência do cotidiano de suas relações tidas como heterossexuais.
Ou seja, mais do que agirem por forças combativas maiores do que
os pequenos passos da unidade do casal, elas querem apenas exercer
amores nas microconfigurações de suas vidas relacionais. O desafio
de lograr na mesma norma aquilo que se pretende exercer como casal
não exclui a possibilidade que esta mesma norma sofra pequenos
deslocamentos. Dessa maneira, o engajamento político se configura
como segundo plano. O amor pode não ser tão acidental assim
no seu surgimento, mas o é como possibilidade política e, assim,
amar é o primeiro plano do discurso de embate às configurações
hegemônicas de família e conjugalidade. Já sonhar aparece como
aquilo que pode atravessar a presença absoluta das Parcas e, nesse
sentido, vislumbrar alguma normalidade em algum lugar no futuro.
Amores Censurados: sobre gritos, olhares,
tapas e fissuras

Everton Rangel1

Os meus relatos, neste artigo, dizem sobre o encontro


entre pessoas de diferentes origens sócio-culturais em um mesmo
ambiente de trabalho e moradia. Quase todos os funcionários de um
dos maiores e mais tradicionais circos dos Estados Unidos residiam
em um enorme trem que se movia em direção às mais variadas arenas
nas quais os shows eram realizados.2 Discorro especificamente
sobre relações afetivo-sexuais estabelecidas por duas bailarinas
brasileiras, Diana e Rafaela, com homens de outras nacionalidades:
Ian, acrobata nascido na Rússia, e Chris, performer norte-americano.
Reflito sobre a perduração de laços afetivo-sexuais, bem como sobre
a própria noção de amor, levando em consideração acontecimentos
que envolvem acusações, brigas, gritos, tapas e/ou socos. Longe de
afirmar qualquer neutralidade, busco incorporar à análise os atos
de fala, os gestos corporais, as fofocas e outras formas discursivas
empreendidas pelos mais diversos atores com intuito de censurar
comportamentos, pessoas e relações. Do mesmo modo, demarco
práticas “contra-censura” e outras não facilmente classificáveis.

1
Everton Rangel é doutorando do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Quando iniciei essa pesquisa estava em jogo a possibilidade de compreender o
que tornou os corpos de brasileiras e brasileiros, profissionais em dança, rentável
em termos simbólicos e econômicos nesse segmento do showbiz. Por que o
Brasil?, indagava. Somente pude desdobrar esta pergunta preliminar em outras
porque os meus canais de acesso a essa empresa derivavam de um vínculo afetivo
fundamental. Minha mãe trabalhou como bailarina durante quase sete anos nesse
circo, sigo convivendo com diversas pessoas que fizeram parte desse universo social.
Neste artigo, no entanto, privilegio os dados relativos ao período em que estive no
circo em 2014 – não mais que vinte dias corridos. Para mais informações sobre a
realização de etnografia a partir da posição de filho, ver Rangel (2016); e, para a
discussão sobre a celebração e a comercialização de corpos e identidades nacionais,
ver Rangel (2018).
368 | (Des)Prazer da norma

De Romeu e Julieta a Diana e Chris

Se podemos tratar o drama Romeu e Julieta como um mito


– comprometido, portanto, com categorias de pensamento e com
a articulação de oposições cosmológicas (Castro & Benzaquen,
1977) –, devemos também indagar sobre o modo como os nossos
pressupostos idealísticos são feitos presentes ou mesmo deslocados
em termos mais ordinários. De fato, não me interessa aqui opor
mito e rito, modelo e prática, e sim fazer breves considerações
sobre a experiência de viver e pensar o amor frente aos outros. Ao
longo deste artigo, buscarei responder etnograficamente a seguinte
pergunta: como a noção de amor romântico possibilita, inspira ou
mesmo limita as vivências?
O que está em questão, para os autores citados, é o fato da
narrativa shakespeariana se processar através da oposição entre
o direito familiar e o amor entre indivíduos. Definir essa tragédia
como mito de origem seria então deflagrar como uma “psicologia
do amor” substitui uma “sociologia da aliança”. O amor emerge
como um sentimento entranhado ao ocidente e, principalmente,
devoto da noção de indivíduo, afinal é o afastamento da ordem
familiar que garante a possibilidade da existência de um casal que
põe em xeque o jogo das alianças, das clivagens e das linhagens.
Em contrapartida, surge não apenas o modelo de família baseado
no afeto, mas há um deslocamento fundamental: o poder passa das
famílias ao Estado. Romeu e Julieta nos diriam sobre um processo
de autonomização dos domínios, demarcariam uma distinção entre
afeto e direito que encontraria correspondência na distinção entre
privado e público. Desse ângulo, o político não é o afetivo.3 O que

3
“O casal Romeu e Julieta surgiria assim como a primeira manifestação das ‘novas
formas de família’, que, pelo menos em termos de modelo consciente, iriam pouco
a pouco constituir-se no Ocidente. Esta nova família passa a ter como ponto focal
as relações internas, e não mais as relações que uniam diferentes famílias entre si
(seja por aliança, seja pela continuidade da descendência). Por relações ‘internas’,
entendemos relações afetivas e de substância que unem os membros da família
conjugal. Assim, com Julieta, as filhas deixam de ser peões no jogo das alianças, e,
como Romeu, os filhos não mais asseguram a continuidade das linhagens. Convém
recordar que Romeu e Julieta são filhos únicos. A família conjugal moderna, formada
a partir de laços afetivos, individuais, retira-se da esfera ‘política’ voltando-se para si
mesma e constituindo um domínio próprio – o domínio do ‘privado’, do ‘íntimo’, do
‘psicológico’” (Viveiros de Castro & Benzaquen, 1977, p. 152).
Afeto | 369

perdemos ao reafirmarmos isso?


Desafiando a existência de “mundos hostis”, como se a vida se
realizasse unicamente em esferas separadas, Zelizer (2005) defende
a importância de uma análise minuciosa dos “mundos conexos”: do
modo como o público requer e se infiltra a todo instante no privado,
as transações econômicas se fazem transações afetivas e o impessoal
se deita no terreno da intimidade. Interessa à autora, mas também a
uma análise do amor, perceber o como das relações, das transações
e das vivências. Chamando atenção ao trabalho que os sujeitos
realizam ao se engajarem uns com os outros, podemos analisar o
amor como atos afetivo-morais direcionados não somente a quem
se ama, mas também aos olhos frentes os quais o amor é vivido. Isso
quer dizer não somente que o laço afetivo é parte do processo de
regulação coletiva, mas também que, a meu ver, a partir da atenção
aos engajamentos sucessivos podemos perceber o modo como se dá
a gestão ordinária do que se quer como íntimo e político, bem como
a confusão produtiva entre os ditos domínios sociais.
Sigo esta linha de raciocínio pensando em proposições de
Venna Das (2010). A autora demonstra como um hindu chamado
Kuldip e uma muçulmana de nome Saba tornam possível um
relacionamento amoroso inscrito em um contexto de profundo
antagonismo de pertencimento. Das insiste que a suspeição das
famílias dos amantes é, pouco a pouco, deslocada não simplesmente
em nome de um amor-romântico, como o de Romeu e Julieta, mas
sobretudo devido à plêiade de engajamentos ordinários. Somos
levados a entender que não há, nesse caso, uma única conversão
de sentido estável e determinável (muçulmano hindu, ou vice-
versa), e sim o florescimento lento do descobrimento de modos de
vida possíveis através de viagens, ajudas, esperas e dores. Não é
difícil entrever que a perspectiva de Das sobre o amor articula-se
substancialmente à ideia de cotidiano como cerne dos engajamentos
interpessoais. Ou seja, é no suceder ou realizar do dia a dia que nos
tornamos abertos ou não à responder aos mais variados chamados do
outro, o que, por sua vez, revela-se como um trabalho de formação de
um determinado self em relação aos self(s) adjacentes. Proximidade
é aqui chave pois possibilita, de maneira particular, a reconfiguração
contínua das relações amorosas.
Se o que perdemos é o cotidiano ao afirmar que o afetivo
não é político, precisamos qualificar as cores do dia a dia para
370 | (Des)Prazer da norma

vislumbrar ao menos parcialmente o que é e implica amar, e,


ademais, o que demanda a relação entre aqueles cujo pertencimento
sócio-cultural diverge. As histórias afetivas que qualifiquei até aqui
estão inscritas em bases conflituosas, mas diferem no modo como
são narradas: enquanto Romeu e Julieta existem como personagens
de uma tragédia, Kuldip e Saba apontam para uma poética dos feitos
não extraordinários. Seguirei, neste texto, o segundo caminho com
uma única ressalva: o conflito de pertencimento descrito por Das e,
pouco a pouco, ultrapassado por seus interlocutores dará lugar à
gritos, choros e brigas que eram administrados minuciosamente por
Diana, Chris, Rafaela e Ian. Embora discorra sobre o relacionamento
amoroso entre pessoas de diferentes origens nacionais, devo
desde já demarcar que a minha interlocutora mais próxima, Diana,
privilegiava no fluxo do dia a dia o que ela enxergava que tinha em
comum com o seu namorado. As diferenças de pertencimento eram
costumeiramente atenuadas, como se a partir do apontamento de
experiências racialmente marcadas, por exemplo, o que havia em
comum se sobrepusesse.
Diana classificava a si mesma como “preta lá de Nilópolis”4
e ao seu namorado, Chris, como “negro da periferia de Las Vegas”.
Ela usava essas categorias para enfatizar que sabia “lidar” com
Chris, especialmente para forjar uma identificação importante na
condução das discussões e brigas recorrentes entre ambos. Raça,
classe e territórios periféricos distintos mesclavam-se, constituíam-
se conjuntamente em uma narrativa pessoal forjada para perdurar
a relação afetiva. Diana dizia que por ser “favelada” podia resolver
impasses com seu namorado, mas também afirmava que ele não
podia agir com ela do modo como supostamente agia com “as negas
dele” – as de Las Vegas. Ou seja, se há um ponto comum entre o casal
(raça/territórios periféricos), há também certa diferenciação entre
mulheres, apenas feita evidente na forma como Chris deveria se
comportar frente a cada uma delas. A acusação do comportamento
masculino aparece de forma indireta porque a necessidade de
solucionar os impasses era posta em primeiro plano. Diana amava
o seu namorado. Ao lutar pela conciliação, ela refletia e declarava
durante conversas casuais o atravessamento contínuo entre raça,
classe e territórios como produtor de uma experiência que facultava

4
Bairro localizado no Rio de Janeiro, precisamente na baixada fluminense.
Afeto | 371

a ela a possibilidade de equacionar as querelas da vida conjugal. A


narrativa de Diana expunha que os conflitos estavam sob controle.

Olhares enviesados

Certa vez, antes de irmos para uma boate, vi Chris enfurecido.


Ele tinha desaprovado a roupa que sua namorada havia decidido
usar. De longe, notei que Diana tentava amenizar a situação. Quando
ela se aproximou de mim, chorando e com maquiagem borrada, disse
que ele tinha que “se fuder” porque se fosse outra “colocava chifre
e pronto”. Ela, ao contrário dessas, era “babaca” porque assim não
fazia. “Escroto, escroto! Fuck you!” [Vai se fuder!], berrava. Diana,
antes de ir atrás do seu namorado, afirmou que apareceria depois na
boate. Ela chegou sozinha usando o mesmo vestido. Tal como ouvi
dizerem que aconteceria, Chris e Diana, na manhã seguinte, fizeram
as pazes. Parecia de bom tom não perguntar sobre o ocorrido. Até
certo ponto, pode-se dizer que todos assim procediam, isto é, não
debatiam sobre a briga que presenciaram na noite anterior. Eram
os suspiros de incômodo que garantiam que fosse possível, a um só
tempo, a veiculação da desaprovação coletiva do acontecimento e
a produção continuada do conflito como relativo à intimidade. Nas
entrelinhas, via burburinhos pontuais, Diana era acusada por seguir
namorando alguém percebido como “ciumento” e “exagerado” no
controle que buscava exercer. As(os) brasileiras(os) faziam dela uma
cúmplice de seu “perpetrador” e também a responsabilizavam pelo
silêncio que se viam induzidas(os) a produzir. Se Diana podia deixar
Chris, mas optava por não fazê-lo, cabia a todas(os), ainda que a
contragosto, respeitar a decisão. À princípio tudo o que Diana me
disse foi: “Liga não! Circus life!” [Vida no circo!].
Dias depois fomos a outra boate para comemorar o aniversário
de um brasileiro. O local estava completamente vazio. Como o grupo
era grande, cerca de trinta pessoas – brasileiras(os), russas(os),
ucranianas(os) e estadunidenses –, o gerente do estabelecimento
nos ofertou garrafas de vodka de graça, fez outras promoções e abriu
todas as portas que possibilitavam algum acesso à rua e permitiam
a quem caminhava do lado de fora saber o que acontecia dentro.
O público cresceu. Conforme a noite avançava, mais bailarinos e
bailarinas se juntavam no centro da boate para dançar em conjunto.
372 | (Des)Prazer da norma

Se nos primeiros instantes isso atraiu parte do público que havia


chegado, depois passou a repelir – exceto um homem e sua amiga,
ambos norte-americanos. Ele, diferente dela, podia performar passos
de dança semelhantes aos que os brasileiros dançavam. Pouco depois
do momento em que alguns bailarinos executaram coreografias
energeticamente, esse desconhecido caminhou até o centro da boate
e dançou uma sequência de passos de hip-hop. O convite à batalha
performática estava feito. Nesse momento, os não devidamente
socializados nessa arte se transformaram em espectadores. Cada
brasileiro foi ao centro e executou passos que se complicavam na
medida em que o desconhecido respondia em nível semelhante de
precisão e entusiasmo.
Pouco depois, Diana e Rafaela se juntaram à batalha.
Elas dançaram sequências passíveis de serem classificadas como
stiletto – estilo exacerbado pela indústria pop norte-americana.
O ponto alto da performance se deu no momento em que um dos
acrobatas russos, incentivado por um bailarino, realizou “saltos
mortais” sucessivos. Cada cambalhota no ar foi acompanhada por
uma comoção efervescente. Dado instante, ele não conseguiu se
equilibrar. A queda causou o fim do entusiasmo, que, mais tarde,
foi retomado. Quando alguém conseguiu que músicas em ritmo
de samba fossem tocadas, diversas bailarinas performaram como
passistas de escola de samba: acelerando e desacelerando os passos,
rebolando, movimentando os braços sensualmente e fazendo
truques como saltos e giros ritmados. Quando duas mulheres que
não estavam conosco tentaram acompanhá-las, a exuberância
performativa decaiu novamente. Embora Diana tivesse sido uma das
bailarinas que dançou por mais tempo, ela seguiu sendo vista como
mais contida do que costumava ser. Continuaram esperando dela
um comportamento mais “animado”. A crítica era basicamente a de
que Diana, por priorizar o seu namorado, estava se tornando outra
pessoa. Fiquei durante toda a noite tentando buscar informações
mais substanciais, algo que pudesse servir como evidência daquilo
que as fofocas construíam. Encontrei unicamente condutas afetivas
repetidas; digo, no decorrer daquela noite, Diana sistematicamente
beijou e acariciou o seu namorado. Se dançava, em seguida voltava e
se envolvia ativamente nos braços de Chris. Por vezes, foi ele quem
requisitou o retorno da namorada.
Se em alguns momentos era Diana quem reivindicava de
Afeto | 373

suas amigas posicionamentos menos “conservadores”, como, por


exemplo, ao acusar algumas de suas amigas de retardar o jogo da
sedução “fazendo a mocinha”, em outros era ela que se posicionava
dessa forma. Não estou me referindo a uma simples oposição entre
o que se espera que outros façam e o que o próprio agente faz. O
que está em questão é um posicionamento não congelado do sujeito
porque, se Diana resistia aos controles que Chris tentava exercer
sobre seu corpo e vestuário, ela também cedia propositadamente
aos mesmos. Nitidamente, a dançarina transitava entre práticas e
retóricas de cunho liberatório e de cunho tradicional no âmbito do
gênero. Se os exemplos da primeira são as acusações relativas ao
retardo do jogo sexual e os esforços manifestos para seguir usando
vestidos curtos, os da segunda podem ser encontrados nas práticas
rotineiras de demonstração pública de afeto – especialmente no ir
e vir, na exibição de si dançando e, em seguida, no retorno para
beijar Chris exibindo desta vez a relação, o namorado. Qualifico
esse trânsito de duas maneiras: (1) seguindo a lógica das fofocas,
como produtor de uma imagem moral de Diana ou, para ser mais
exato, de um incômodo coletivo; (2) do ponto de vista dela mesma,
como um modo afetivo/político de amenizar, controlar e/ou afastar
conflitos conjugais.
Essas estratégias se repetiam tal como os conflitos. Ainda
que não tenha acompanhado a briga que descrevo na sequência,
estou certo de que a mesma ocorreu na arena onde os shows do circo
aconteciam porque de longe ouvi um estrondo, que, conforme soube
depois, foi fruto de um soco que Chris dirigiu contra uma estrutura
de metal que despencou, tamanha a força empregada. Como outros,
apenas flagrei Diana passando chorando em direção ao seu camarim.
As reações coletivas foram faciais: sobrancelhas envergadas e olhos
revirados. A meu ver, a repetição desses olhares reclamava de Diana
modos particulares de ação. A performance afetiva cotidiana, para
além de ser estratégia anticonflito nos meandros da relação entre
dois, qualificava um posicionamento em relação às criticas sutis que
o casal sofria. Enquanto os olhos revirados podem ser pensados
como uma estratégia de persuasão, um modo de dizer “assim não
dá para continuar”, a dramatização de paixões em público pelo casal
pode ser interpretada enquanto uma resposta de não assentimento
dada, sobretudo, pela namorada de Chris aos críticos. É factível
374 | (Des)Prazer da norma

inclusive qualificar a publicação frequente da “felicidade do casal”5


nas plataformas online como uma paródia da resposta ordinária.
Era como se Diana repetisse, em múltiplos planos, que ia sim
continuar com Chris. A exibição da intimidade no âmbito público
tendia a favorecer os atos empreendidos pelos amantes. O amor se
engrandecia reclamando silêncio. As sobrancelhas se contorciam
não à toa: eram vozes que sobreviviam como rumores.

Fissura: Rafaela e Ian

Já fazia algum tempo que as performances tinham atingido


o ponto alto. Refiro-me novamente à noite em que comemoramos
o aniversário de um brasileiro em uma boate. Dado momento,
percebi que Rafaela e Ian estavam discutindo no canto de uma
das portas/janelas que garantiam acesso à rua. Somente podiam
vê-los ali aqueles que estivessem dentro do camarote, e não no
centro da boate dançando. Havia certa exigência implícita de
descrição, que buscava compor os limites tênues entre o privado
e o público. Evitando fixar o olhar, vi Rafaela empurrar o seu
namorado e depois estapear o peito dele. Ian segurava os braços
dela impedindo não apenas a repetição das agressões, mas também
dificultando a movimentação da bailarina para fora daquela região.
Ela estava encurralada. Isso se repetiu por algum tempo. De longe,
não podia ouvir bem o que eles diziam em inglês. Ainda que o
casal percebesse o controle que os olhares exerciam, eles pouco se
sentiam afetados. A qualidade persuasiva da noção de intimidade
impediu que eu me aproximasse, tal como outros rapidamente
fizeram, mas também não foi competente a ponto de me levar a não
reagir posteriormente à sequência de atos que exasperava a todos.
De onde eu estava observava Diana e Chris ao fundo e lembrava do
esforço despendido por ambos para tornarem as suas discussões
um assunto controlado, isto é, passível de existir sobretudo ou
somente nas expressões faciais.
Quando vi Rafaela ultrapassar Ian e ele abaixar, tocar e girar
o corpo da brasileira no ar de modo a posicioná-lo sobre os seus

5
Fotografias do casal sorrindo em pontos turísticos em um sem número de lugares;
jogando vídeo game; se beijando no trem, nos camarins, nas arenas; etc.
Afeto | 375

ombros, ouvi uma bailarina gritar que ela tinha dado um “tapa na cara
dele”. Praticamente no mesmo instante, Rafaela começou a berrar e a
estapear freneticamente as costas do seu namorado. Bastaram dois
passos de Ian para que eles chegassem ao meu lado. E foi ali que ela
caiu ou foi jogada – precisamente em cima de um sofá localizado em
frente a uma mesa de vidro cheia de copos e garrafas de vodka. Em
um rompante, ela se ergueu e projetou o seu corpo contra o acrobata
e em direção à mesa. A raiva e a força dela por pouco não derrubaram
a mim no exato momento em que a segurei no ar pela cintura. Eu
tive a impressão de que, se Rafaela conseguisse chegar até Ian, o
conflito poderia tomar proporções ainda maiores. O que eu via, mas
não tinha acontecido e nem aconteceu, era Ian revidando os socos,
os tapas e os pontapés que sua namorada pretendia lhe dar. De fato,
ele ficou parado com as mãos postas atrás de seu próprio corpo. Eu a
soltei rapidamente. Muitos ocuparam em milésimos o espaço ínfimo
que separava o casal. Rafaela enfurecida jogava o seu corpo contra os
demais e acertava socos naqueles que não eram o seu alvo. As pessoas
gritavam em inglês e em português. Queriam que Ian saísse da boate.
Ele continuava na mesma posição. Não consegui ouvir palavras em
russo e/ou ucraniano. Todos os que estavam em meu campo de visão
pareciam desesperados. Limites haviam sido ultrapassados. Daquele
ponto em diante não era possível se ausentar.
Se como escreve Díaz-Benítez (2015), as fissuras6 não devem
ser entendidas enquanto elemento presente e possível unicamente

6
Referindo-se aos filmes de fetiche, especificamente às filmagens de práticas de
humilhação extrema – asfixiar; cagar e comer; socar; causar vômito; provocar
flatulência; e assim por diante –, Díaz-Benítez argumenta que o observador precisar
ter fé naquilo que vê, ele precisa acreditar que é real em algum nível, embora conheça
o caráter teatral do que assiste. Nos momentos em que a encenação da humilhação
atinge a sua eficácia, ponto máximo de convencimento, poderiam ocorrer as
fissuras: “a fissura seria então o estado, dentro da encenação da crueldade, em que
os roteiros são extrapolados e são ativados os perigos subjacentes a uma estética do
sofrimento. O ‘choro em tempo real’ do qual falei algumas páginas atrás revela um
período em que são excedidos os limites da encenação fazendo com que o hiper-
real [exagero dramático que visa se aproximar ao real] decaia e se emaranhe com
o real. Dito de outro modo, a fissura seria aquele instante e espaço que nas práticas
de humilhação se passa do consentimento ao abuso (...) A fissura é evidência de que
a prática ultrapassou a expectativa da dor, é uma pequena fenda onde o ato (ou a
representação do ato se torna violência, embora logo a fissura se refaça por meio
da sociabilidade que envolve as dinâmicas de grupo nos sets de filmagem” (Díaz-
Benítez, 2015, p. 78).
376 | (Des)Prazer da norma

no decorrer de práticas sexuais extremas, então parece possível


argumentar que o caso descrito revela uma fissura no seio de relações
afetivas tomadas frequentemente como pertencentes ao território
da intimidade. Esse deslocamento conceitual não coloca dúvidas7 a
respeito da fissura como um momento de transformação do drama
e nem mesmo como uma extrapolação de limites individuais e
coletivos. O que precisa ser melhor analisado nesse deslocamento
é a passagem do consentimento ao abuso justamente porque a
fissura, nesse caso, acontece em uma cena pública na qual os agentes
não apenas atingem picos de tolerância em pontos distintos, como
também a própria fissura tensiona o que se quer como público e o
que se quer como privado. Os limites são rompidos sucessivamente:
o de Ian, ao levar um tapa na cara; o de Rafaela, ao ser carregada;
o meu, ao vê-la enfurecida sobre o ombro de seu namorado; o dos
demais, ao me verem interceder. Isso cria, portanto, a dificuldade de
definir de modo demarcado o que é e onde está o abuso. Ele existiu
em todos esses momentos, mas nunca em referência ao mesmo ato.
Talvez devamos pensar aqui o abuso como algo que se constrói em
uma cadeia de ações e reações, aquilo cujo significado é angariado
em processo. Em outras palavras, as fissuras acontecem uma após
a outra e, nesse movimento, se constrói uma percepção coletiva do
abusivo, daquilo que demanda intervenção.
No primeiro instante, eu me senti comprometido com o que
via como violência ao não intervir imediatamente. Logo, me dei conta
que o caso era mais complicado porque não era esperado que eu
assim fizesse, afinal até certo ponto a discussão deveria permanecer
sendo relativa ao casal e, portanto, referente à intimidade. Mas a
dramatização desses atos na boate fazia dos mesmos um assunto
coletivo paulatinamente. Se desde o início o privado colidia com o

7
Acredito que é menos operante no caso das relações amorosas seguir com a
interpretação da fissura como um momento de passagem do hiper-real ao real
porque, nesse âmbito, não se trata de uma performance e nem se intenta adentrar
no terreno do excesso. Em outras palavras, no caso descrito não estou falando
sobre uma encenação que se quer realística, e sim sobre o próprio real ou, como me
parece mais adequado, sobre uma fissura ordinária no seio de relações amorosas.
O problema que emerge é distinto porque, se durante as gravações comerciais das
práticas de humilhação o excesso é continuamente buscado, pois qualifica o hiper-
real; na situação descrita, o excesso é justamente aquilo com o que não se deveria
brincar, embora os conflitos conjugais carreguem consigo possibilidades de cunho
erótico (Gregori, 1993).
Afeto | 377

público, eram os olhos gerenciadores e afastados que distinguiam


esses domínios ao se furtarem a fazer algo mais. A fissura é aqui o
ponto ou conjunto de pontos onde o moralmente suportável beira o
insuportável, onde o público invade o privado e onde o consentimento
que se supõe existir em relações íntimas entre sujeitos racionais cede
lugar ao abuso dos corpos e à extrapolação dos limites individuais e
coletivos. Estou insistindo no uso da ideia de fissura porque se, no
caso das práticas de fetiche extremo, ela acontece em ambientes
controlados e é a evidência da ultrapassagem da expectativa da
dor infligida por golpes, saltos e outras práticas; aqui a considero
como um ou vários momentos em que a expectativa da resolução
do conflito se descaracteriza ou ao menos se revela frágil aos olhos
observadores. A expectativa já não pode ser cumprida pelo casal.
Diaz-Benítez (2015) sugere ainda que as fissuras pouco
duram, pois logo se busca saná-las. Levando esse argumento em
consideração, gostaria agora de dirigir a atenção às práticas de
intervenção demarcando, desde já, o não emprego da palavra
violência por todos os presentes. Se eu pensava nesses termos e
não dizia, talvez outros assim procedessem. Por que não? E por
que não verbalizar tal palavra? Essas foram as duas questões que
me motivaram segundos após o episódio dramático e dias depois
do mesmo. O que vi, pouco antes dos ânimos se acalmarem, foi o
segurança caminhando em nossa direção e, em seguida, segurando
Ian pelo braço. Ele estava expulsando o acrobata. Alguns, homens
e mulheres, tentaram impedir que isso acontecesse. Supus que
Rafaela não corria risco semelhante devido ao repertório de gênero
normativo; de modo grosseiro, acreditava que os chutes e tapas
dados pela bailarina estavam sendo tomados como menos abusivos
que as ações de um homem estrangeiro:8 reter e suspender o corpo
de sua namorada. Entretanto, prontamente se formou um grupo
de homens liderado por aqueles que melhor falavam inglês. Eles
conversavam com o segurança, tentavam convencê-lo a deixar que
Ian voltasse para a boate. A resposta foi a de que era melhor mantê-
lo do lado de fora. Apenas meses depois considerei a possibilidade
de ter existido certa confraria masculina que expulsa menos para

8
Uso essa classificação porque não sei até que ponto o segurança percebeu Ian
como russo. No entanto, ele estava certo de que o grupo não era norte-americano –
não em sua maioria.
378 | (Des)Prazer da norma

condenar e mais para salvaguardar o sujeito e o espaço dos efeitos


maiores do conflito: escândalo, intervenção policial e depredação
do patrimônio. Certo é que Rafaela permaneceu na boate chorando
enraivecida.
Como as portas/janelas continuavam abertas, Ian saiu
pela porta principal, mas se reuniu com as bailarinas e com os
bailarinos que estavam do lado de dentro da boate. A grade que os
separava era diminuta, mal passava de suas cinturas. O segurança
mencionado posicionou-se na calçada e ali permaneceu cercado
por homens brasileiros e estadunidenses. Eu estava apoiado nessa
grade antes mesmo de Rafaela aparecer ali. Ouvi algumas pessoas
pedirem novamente que o acrobata fosse embora. Quando essa
demanda foi reforçada, Ian, estressado e engolindo o choro, disse
que sua namorada estava bêbada. Muitos já tinham afirmado isso. Na
sequência, ele sentenciou: “I just wanna take care of her” [Eu apenas
quero cuidar/tomar conta dela]. O acrobata repetiu inúmeras vezes
essa frase. Somente Rafaela pôde interromper a força performativa
do dito. Mesmo classificada como alguém incapaz de guiar a si mesma
porque bêbada, ela afirmou que também Ian não podia ofertar
cuidado porque era tarde demais, isto é, ele deveria ter cuidado dela
em um momento anterior. Perguntei a alguém ao meu lado o que
a bailarina queria dizer. Foi aí que me explicaram rapidamente a
origem da confusão. Rafaela queria que Ian tivesse se posicionado
contra o rapaz russo com quem ela havia brigado minutos antes da
confusão ter iniciado. O cuidado tinha sido anteriormente buscado.
A bailarina em questão teria pego pedras de gelo e colocado
dentro da blusa do amigo do seu namorado. Ele fez o mesmo. Ela
revidou. Dado instante, o rapaz russo colocou gelo não mais nas
costas e sim na altura dos seios da brasileira. Rafaela entendeu o ato
como abusivo. Então, ela brigou com o jovem e foi reclamar com Ian.
Era sobre isso que o casal discutia. Rafaela teria acusado o acrobata
de ficar do lado de seu amigo, e não do seu. Por isso, finalmente, Ian
não poderia ofertar cuidado. Ela respondia que ele não mais estava
autorizado a tomar conta, a vigiar ou controlar a situação e/ou o seu
corpo enfurecido e alcoolizado. Ian perdera tempo decidindo a quem
apoiar. O que sua namorada não aceitava era a lealdade dividida. Isso
ficou bastante claro quando ela começou a repetir: “You can’t take
care of me! Go with your friend!” [Você não pode cuidar/tomar conta
de mim. Vai com o seu amigo!]. O poder reiterativo dessas palavras
Afeto | 379

produziu não mais respostas verbais, mas um gesto de Ian. Ele parou
um táxi. Em russo, falou com seu amigo, que, em seguida, entrou no
carro e partiu. Talvez este ato pareça insignificante, mas devo lembrar
que estou falando sobre pessoas que moravam em um trem situado,
por vezes, em locais de difícil acesso. É preciso dizer também que o
russo, transformado em pivô do conflito, não falava inglês. Ao colocá-
lo em um táxi, Ian se (re)posicionou. Entretanto, agindo em favor de
sua namorada, ele causou o descontentamento do seu amigo e de
outros a ele ligados. Soube, dias depois, que aconteceram discussões
entre russos a esse respeito, mas não sei o suficiente para contá-las.
A ausência de proximidade e a linguagem foram barreiras nesse caso.
Assim que o rapaz foi embora, Ian e Rafaela iniciaram uma
conversa em tom de voz ameno. Eu e outros nos distanciamos.
Entendíamos que o diálogo que agora se iniciava dizia respeito à
intimidade. Em outras palavras, atuávamos na reconstrução da
intimidade fissurada fazendo do conflito novamente um assunto
doméstico. O que significava que os atos abusivos seriam debatidos
não em alto e bom som, mas sim via fofoca. Distinguíamos, portanto,
entre o público e o privado buscando um modo de forjar uma ou
várias versões sobre o ocorrido. Eram também as fofocas que, ao não
incluírem Ian e Rafaela como falantes, atualizavam a distinção entre
domínios. Quando nos afastamos do casal, ouvi comentarem: “eu tô
dizendo que essa garota é maluca, mas ninguém acredita”; “sempre
que bebe fica assim”; “ela não está bem”; “histérica”. Ao passo que
estranhei o fato de Ian não ser mencionado, me dei conta de que
estava sendo construída ali uma noção de culpa ou, mais do que isso,
a ré já existia. A bailarina brasileira era a responsável. Percebendo
o acionamento de um repertório de gênero normativo, voltei para
o trem no mesmo carro que Ian e sua namorada. Falávamos sobre
tudo e nunca sobre o ocorrido. O casal trocava beijos, se abraçava e
usava expressões em russo em tom de voz abobalhado. Finalmente
no trem, não me espantei quando comentaram que “eles não tinham
vergonha na cara”, especialmente Rafaela.
Talvez seja importante não reunir em demasia os gestos de
intervenção e os de reparação. Isso porque esses últimos fluem no
sentido da restauração das relações (ação duradoura) e os primeiros
dirigem-se contra a extrapolação dos limites morais (ação efêmera).
Dito de outro modo, a intervenção inaugurou no caso descrito a
reparação, sendo a frase “I just wanna take care of her” [Eu apenas
380 | (Des)Prazer da norma

quero cuidar/tomar conta dela] o estopim de uma série de práticas/


ditos que silenciam o conflito de modo precário, porém suficiente
para restaurar lentamente a intimidade fissurada. Se a fissura é
aquilo que a intervenção busca sanar, a memória desse momento
dramático é persistente. Não seria possível interpretar as práticas
afetivas pós-conflito como algo que emerge contra esse tipo de
memória, algo que é senão reparação? Anteriormente, fiz sugestão
semelhante ao argumentar sobre a relação entre Diana e Chris;
entretanto, não estava em questão qualquer fissura – ao menos
não a ponto de se tornarem enunciáveis ou evidentes. O fato é que
nos dois casos a demonstração de afeto foi lida pela audiência com
desconfiança. Isso instaurava também a necessidade de silenciar ou
trafegar pelos cantos acontecimentos que incomodavam.
Através das fofocas debatia-se o fato de Rafaela ter tirado
do dedo a aliança que usava e, dias depois, tê-la recolocado e
assim selado uma vez mais o seu compromisso com Ian. Também
via fofocas forjava-se uma versão comum sobre o ocorrido: se fora
mesmo “histeria” da dançarina que levara ao conflito, como explicá-
lo? Resposta: Rafaela não amava o seu namorado como ele a amava.
E era por isso que o acrobata não era acusável. Certamente, os
braços posicionados atrás do próprio corpo, a enunciação do tapa
na cara dado por Rafaela e o próprio discurso do cuidado frente ao
corpo embriagado auxiliavam na construção da remissão dos atos
dele. A encenação ativa da passividade não chegava a fazer de Ian
uma vítima, mas fazia dele um cúmplice do desamor. Episódios
anteriores passaram a ser comentados. Falava-se, principalmente,
sobre o dia em que Rafaela expulsou o seu namorado da festa que
ele havia organizado em comemoração ao aniversário dela. Esse
acontecimento operava como evidência da culpa da bailarina e como
confirmação da paixão cega do acrobata.

Na dobra do cuidado e do controle

Não vi Rafaela expulsar Ian do seu próprio aniversário


porque estava em outro lugar da boate dançando com Diana. Esse
fora o dia em que ela brigou com Chris por causa do vestido curto
que usava. É possível aproximar esses momentos reunidos pela
fofoca em mais um quesito. Quando eu disse à Diana que tinha ficado
Afeto | 381

intrigado com o uso da expressão “take care” [cuidar; ter cuidado;


tomar conta], ela prontamente respondeu que Chris tinha dito o
mesmo quando reivindicou o controle sobre o seu corpo. “Take care
é o caralho!”, bradou a bailarina não apenas repudiando as atitudes
de seu namorado, mas também se aproximando da forma como ela
julgava que eu entendia a sequência de discussões descrita. Até certo
ponto ela estava certa porque, imerso nessa teia de acontecimentos
e significados, eu sorri ao ouvir o que me parecia politicamente
relevante. O meu esforço seguinte foi o de não requerer de Diana um
posicionamento não ambíguo no fluxo da vida cotidiana. Tal como
sugere Zampiroli (2018) é na dobra do cuidado e do controle que os
atores sociais disputam o espaço e o papel de cada um na relação.
Seguindo as pistas do autor, parece possível dizer que cuidado
e controle são menos antíteses do que um território existencial
contínuo e eivado de tensão. Isto é, um território constituído pela
intensidade própria das disputas, pelos sentidos dos atos de fala, das
experiências e das relações atravessadas pelos marcadores sociais
da diferença. A dobra do cuidado e do controle é uma composição
de força que, no caso de Rafaela e Ian, perpassa a todo instante
gramáticas de gênero em constante (re)atualização e que, como
visto nas inúmeras cenas descritas, pode pender mais para um lado
do que para o outro.
Terminei manifestando a minha preocupação à Diana. Pedi
que ela tomasse cuidado caso fosse mesmo viver, longe de conhecidos,
com Chris em um futuro próximo. A dançarina me questionou se eu
achava que ela ia “apanhar” e me deu a entender que seu namorado
não faria isso. O assunto tinha que ser encerrado ali, pois eu havia
aberto a possibilidade de, em retrospecto, atos já geridos serem
ressignificados como violência. Usar essa palavra, em qualquer uma
das situações descritas, era colocar em risco os amores porque fazia
de quem se ama, sobretudo daquele que se ama, uma figura acusável
para além dos momentos de raiva ou extrapolação dos dramas. O
problema que se criava ao falar em violência era o de como geri-la.
Para Diana, o meu pedido de cuidado parecia ir contra a ficção de
controle que ela buscava produzir. A minha interlocutora agia como
se dissesse que a aproximação entre os relacionamentos amorosos
mencionados deveria ser feita de modo cauteloso, embora fosse
rotineira e bastante evidente nos cochichos pelos bastidores, já que
continha implícita a possibilidade dos conflitos entre diferentes
382 | (Des)Prazer da norma

casais serem tomados como suscetíveis a uma gradação: como


se passássemos inevitavelmente do menos dramático ao pouco
tolerável ou intolerável. O possível não é o necessário, sabemos. Diana
me repreendeu devido à acusação que, a seus olhos, eu proferia em
meias palavras.
As intensidades crescentes e decrescentes no modo como
as relações são vividas não devem ser descartadas, portanto, e sim
descritas etnograficamente. Afinal, não é a intensidade crescente que
caracteriza o drama que envolve Rafaela e Ian? Se sim, é fundamental
fazer uma segunda pergunta: como pensar o que sucedeu após
a fissura? O que se buscou foi exatamente conter a participação/
intervenção de figuras não familiares no drama. Nesse sentido,
conversar com o segurança da boate não é uma ação que deva ser
banalizada porque se não houve violência declarável no ápice do
conflito, se a classificação de atos como violentos não correu em bocas
alheias, então não havia o que ser reclamado às instâncias outras. Ou
seja, mesmo que tenham existido diversos atos representados como
abusivos, não existiu ou não podia existir a enunciação desses mesmos
atos como violência porque aparentemente se pensava que o uso
dessa palavra legitimaria não apenas a incriminação daquele que se
ama, mas também uma intervenção de figuras distantes: a empresa,
a polícia, o Estado. Modulando-se o que dizer resolvia-se a fissura
e permitia-se que o conflito retornasse ao domínio da intimidade e
passasse a circular apenas de forma abafada. Deste ângulo, enunciar
o cuidado seria borrar a violência e iniciar práticas de reparação que
agentes externos não podiam ofertar. No limite, sequer era esperada
qualquer reparação advinda de instâncias outras. O caminho da
denúncia era continuamente refutado. Tudo tinha que ser resolvido
entre conhecidos para que a dobra do cuidado e do controle não se
curvasse a ponto de poder quebrar.
Não se trata, portanto, de qualificar tais relacionamentos
como espécies de bomba relógio, nem mesmo da tentativa de
estabelecer parâmetros inequívocos para uma análise sensorial
do processo social. Trata-se da deflagração das sinuosidades do
cotidiano e da busca por conceitos que permitam entender por que
parece tão importante para os atores não categorizar atos como
violência no seio de relações declaradas como amorosas. Falar
em fissura na dobra do controle e do cuidado é recorrer a uma
palavra que parece menos comprometida, já que chama atenção a
Afeto | 383

um momento preciso classificado como excessivo no decorrer de


dramas que irrompem e se esgotam. A ideia de fissura nos permite
não operar através da remota e insuficiente possibilidade de definir
de uma vez por todas o que é ou não violência. Se perguntassem se
acredito que essa ideia naturaliza as relações ao não moralizá-las,
diria que a fissura permite, na verdade, deflagrar o trabalho afetivo
a que se devotam os atores sociais e que é preciso considerar outra
pergunta central: como a noção de amor romântico acaba por definir
maneiras adequadas de se viver um relacionamento?
A tarefa a que me devoto está longe de ser a de descaracterizar
o romantismo associado às relações afetivas. As pessoas com
as quais convivi o buscavam e o pensavam como manifesto nas
relações que elas mesmas viviam. Se não fosse assim, talvez elas
sequer insistissem tanto em rememorar viagens paradisíacas ou
em declarar paixões durante conversas ou nas postagens veiculadas
nas plataformas online. Estou apenas chamando atenção para o fato
de que as censuras que Diana e Chris sofriam, mas também Ian e
Rafaela, forjavam como contrapartida a veiculação de uma noção de
amor digno – aquele no qual o romantismo deveria prevalecer. Dito
de outro modo, a noção de amor romântico criava a possibilidade
dos casais citados serem julgados em termos morais negativos e,
se quisermos ser mais extremistas, quiçá verem as suas relações
conjugais ejetadas para fora do próprio domínio afetivo porque
vistas como inadequadamente vivenciadas.
A esse risco, Diana, Chris, Rafaela e Ian não podiam se
sujeitar. No contexto da migração, precisamente no contexto
circense, os relacionamentos operam como recursos sociais
importantes na produção da capacidade de sustentar-se longe dos
familiares e manter uma rotina de trabalho demasiada. Os amores
propiciam alívios e, por vezes, a possibilidade de se manter nos
Estados Unidos de forma independente à empresa contratante. As
durezas da condição de imigrante apareciam com frequência na fala
das minhas interlocutoras como passíveis de serem contornadas a
partir de investimentos afetivo-sexuais que, como visto, também não
eram fáceis de serem postos em ação no curso dos conflitos, frente
a olhares enviesados e na dobra do cuidado e do controle. Os meus
interlocutores, quando decorrida cada uma das situações descritas,
sabiam que em cinco ou seis meses as suas vidas poderiam ser
outras, caso contratos não fossem ofertados a eles para a próxima
384 | (Des)Prazer da norma

temporada de shows ou mesmo fossem deslocados de unidade


de trabalho. Estando a proximidade que permitia, dia após dia, a
construção de amores possíveis ameaçada por contratos hábeis em
fabricar distâncias, fazer as relações perdurarem era uma iniciativa
árdua, urgente e capaz de exibir o amor como um conjunto de atos
afetivo-morais concatenados, sucessivos ou simplesmente alinhados
uns aos outros. Cada um desses atos solidificava as relações, desde
o princípio submetidas a uma temporalidade definida por contratos,
temporalidade que para se estender para além do circo demandaria
outros e novos esforços – como temido por Rafaela e Diana.

Desejo e Conflito

Diana e Rafaela agem através da linguagem de gênero e/


ou da raça e da classe, ora buscando solucionar conflitos, ora
censurando pontualmente o comportamento de seus respectivos
namorados. Acredito que seria redutivo afirmar que elas
simplesmente reclamam modalidades mais igualitárias de relação.
Como boa parte da energia despendida pelas brasileiras tinha por
intuito conter a interferência alheia, seria preciso considerar se
o que estava em questão não era principalmente o alargamento
das possibilidades de vivência dos amores na cena pública. Nesse
sentido, parece possível argumentar que os conflitos e os picos
dos dramas conjugais, as fissuras, permitem que os limites morais
sejam contorcidos e/ou esticados através da própria exibição
continuada, repetida, de choros, acusações, gritos e mesmo chutes,
socos ou pontapés. Nada disso poderia acontecer sem que os
olhares enviesados buscassem o silêncio prezando a intimidade
e respondendo aos gestos de demonstração de afeto. Para viver o
amor do modo como vivia, Diana precisou fazer com que os seus
amigos, o que inclui a mim, passassem a se comportar de modo a
não “dificultar” a suas negociações com Chris.
Trata-se da afirmação da agência feminina na demarcação do
domínio da intimidade e na lida com os homens amados. Lida cujo
sucesso era justificado como garantido, no caso de Diana ao menos,
a partir de identificações de classe e raça/cor com seu namorado
e em demérito das distinções de pertencimento sócio-cultural. No
entanto, para além de uma experiência comum que fornecia os meios
Afeto | 385

para a bailarina em questão controlar e rearranjar os termos do seu


relacionamento, a raça e a classe eram veículo da erotização de Chris.
Diana dizia que seu namorado era um “preto gostoso”, “nigger”, e
frequentemente mencionava em tom triunfal o tamanho do “pau”
dele. Ela o comparava aos brasileiros e declarava tanto na frente de
suas colegas de trabalho quanto na dos bailarinos que não saberia
mais transar com os homens de seu país natal. Diana debochava dos
bailarinos criando analogias e vangloriava a si mesma nas conversas
com as dançarinas. O sexo, o corpo e o prazer eram apresentados
como potencialidades relativas à Chris, bens simbólicos e sensoriais
que a dançarina “tinha”, dispunha e usufruía. Fabricando autoelogios,
Diana exibia publicamente as virtudes da masculinidade que ela
criticava e desejava. A contrapartida desse componente erótico
da masculinidade era, neste caso, justamente aquilo com que a
bailarina lidava no dia a dia: o controle de seu corpo, a demarcação
do comportamento feminino adequado – o uso de tal ou qual vestido
– e os múltiplos conflitos.
Diana parece sugerir a importância de pensarmos o conflito
conjugal não apenas na chave daquilo que os gestos sutis implicam
– controle, intervenção e reparação –, mas também como momentos
de erotização de seu parceiro. Desse ângulo, conflitos, dramas e
fissuras fornecem também elementos para a articulação do desejo.
Não estou afirmando que as brigas eram simplesmente buscadas
por Diana ou qualquer outro(a), e sim sugerindo, na esteira de
Gregori (1992), que é preciso entender os múltiplos significados
que as práticas classificadas como abusivas, porventura violentas,
assumem em contextos específicos. Não há resolução analítica
fácil para nenhuma das situações descritas, o que faz da aposta
na sinuosidade do cotidiano senão uma tentativa de incorporar
uma vez mais à etnografia as ambiguidades do processo social,
especificamente do engajamento continuado com o outro. Tomar o
amor como um conjunto de atos afetivo-morais foi o caminho que
encontrei para dar conta, de modo parcial notavelmente, do tanto
que Diana dividiu comigo sobre Chris, mas também do que Rafaela
e Ian viviam. Todos, a despeito de tudo o que acontecia, talvez em
razão de tudo o que acontecia, corriam para reafirmar o amor que
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Coleção Stoner

O trabalho universitário talvez poucas vezes tenha sido tão bem retra-
tado quanto no “campus novel” Stoner, de John Williams; nele, somos
apresentados à trajetória de vida do protagonista que dá título à obra,
desde suas origens humildes até o final de sua jornada de muitos anos
como um acadêmico de literatura, passando pelas vicissitudes do coti-
diano institucional, da docência e da pesquisa. Buscamos homenagear
esse personagem no título de nossa coleção devotada a contemplar o
trabalho acadêmico realizado com integridade e excelência - a tese,
a dissertação, a coletânea de ensaios - em suas variadas dimensões.

Títulos publicados

O samba é fogo. O povo e a força do Samba de Véio da Ilha do Massangano


Márcia Nóbrega

Meninas más, mulheres nuas. As máquinas literárias de Adelaide Carraro e


Cassandra Rios
Pedro Amaral

Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-


1932)
Miriam V. Gárate

A vida em cenas de uso de crack


Erick Araujo

A perversão domesticada. BDSM e consentimento sexual


Bruno Zilli

Não leve flores. Crônicas etnográficas junto ao Movimento Passe Livre -DF
Leila Saraiva

Batalha de confete. Envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de vi-


sibilidade no Pantanal - MS
Guilherme R. Passamani

(Des)Prazer da norma
Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima (Orgs.)
Formato 16 x 23
Tipologia: Cambria
Papel: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)
Supremo 250 g/m2 (capa)
As relações de gênero, sexualidade, afeto e família estão no
epicentro dos debates político-morais que atravessam nossa realida-
de contemporânea. Seus limites, formas e dinâmicas apresentam-se
como matéria de governos e violências. E, às vezes, como parte do
desejo por governos violentos que vemos circular e ganhar espaço
crescente em nossa sociedade. A chegada da coletânea (Des)prazer
da norma deve ser saudada, assim, não apenas com admiração inte-
lectual pelo rigor teórico e apuro etnográfico presentes em cada tex-
to, mas também com o reconhecimento da coragem politica e episte-
mológica que nela pulsam.
A marca do trabalho coletivo cultivado nos cinco anos do NuSEX
– Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade, do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ,
pode ser percebida no modo como as diferentes pesquisas dialogam
entre si, embaralhando fecundamente domínios que poderiam apre-
sentar-se como distintos a um olhar mais apressado. Com isso, faz jus
ao que melhor podemos, como produtores de conhecimento acadêmi-
co qualificado, oferecer de volta à sociedade: a chance de compreender
de outro modo nossa realidade, adensando perspectivas e desafiando
as amarras do senso comum e das moralidades de ocasião.

Adriana Vianna
Museu Nacional/UFRJ

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