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Camila Fernandes
Fátima Lima
(Orgs.)
(Des)Prazer da norma
(Des)Prazer da norma
As tensões que se en- A categoria de dissidência,
trelaçam nas fronteiras entre que atravessa parte das contribui-
o público e o privado nestas ções, certamente permite apontar
nossas sociedades modernas para esse impulso ambivalente, tra-
ensejam inúmeras teorias e balho contínuo da experiência vital,
modelos interpretativos. Mui- em que a autoafirmação enfrenta o
tos deles se entrecruzam nesta desafio inquietante da Esfinge. Ali
coletânea, votada a perseguir, onde mais viva reponta a des-ordem
com base em pesquisa empíri- ou a anti-ordem, também se dese-
ca sistemática, as vozes, ecos, nha uma ordem, mais reveladora do
ressonâncias, que instituem, que a aparente, que se expressa no
desafiam, soerguem e abatem senso comum cotidiano.
os sujeitos, na prática desse A coletânea é ainda teste-
“paradoxo da subjetivação” e munho da eficiência desse coletivo
dessas “artes da existência” a dinâmico que é o NuSEX – Núcleo
que se referiu Foucault – e que de Estudos em Corpos, Gênero e
perpassam a filigrana dos arti- Sexualidade, lócus universitário
gos aqui reunidos. de enfrentamento das adversida-
A ambiguidade do título des que nunca cessam de crescer
remete justamente aos jogos neste país, instado a avançar na
complexos em que a norma e produção de um conhecimento so-
o desejo se engatam – redivivo bre as dimensões mais invisíveis,
Jano – pelas vias fascinantes sutis – subterrâneas tantas vezes –
das experimentações com a da vida social; essencial para argu-
vida e suas pulsões multifor- mentar com propriedade e autori-
mes. Não à toa têm preeminên- dade na defesa de uma “sociedade
cia na obra os temas da sexua- livre de discriminações de raça,
lidade e do gênero, cada vez gênero, classe, sexualidade, entre
mais aguçados numa cosmolo- outras formas de injustiça social”
gia que, por um lado, pro-cura – como dizem os organizadores, de
petrifica-los em fórmulas nor- forma mais que oportuna.
mativas naturalizadas e, por
outro, exalça as virtudes da Luiz Fernando Dias Duarte
liberdade, da criatividade, da Museu Nacional/UFRJ
singularidade – da transgres-
são, no limite.
Everton Rangel
Camila Fernandes
Fátima Lima
(Orgs.)
(Des)Prazer da norma
© Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima, 2018
© Papéis Selvagens, 2018
Arte de capa
Aline Besouro, Bendita Gambiarra, 2017
Edição de imagem
Nathalia Ferreira Gonçales
Revisão
Brena O’Dwyer e Carolina Maia
Conselho editorial
Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP)
Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)
Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá)
Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)
Bibliografia: p. 387-410
ISBN 978-85-85349-06-6
[2018]
Papéis Selvagens
papeisselvagens@gmail.com
papeisselvagens.com
Sumário
Prefácio
Governo, Desejo, Afeto
Maria Elvira Díaz-Benítez, Everton Rangel, Camila Fernandes 11
Governo
Desejo
Afeto
1
María Elvira Díaz-Benítez é professora do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional (MN), Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), Everton Rangel é doutorando e Camila Fernandes é doutora pelo
mesmo Programa.
12 | (Des)Prazer da norma
Percursos e questões
2
No original: “Only actions contributing towards what the analyst sees as
structurally significant count as instances of agency. Put most crudely, we only mark
them down as agency when people’s choices seem to us to be the right ones”.
Prefácio | 21
***
Barbara Pires1
1
Barbara Pires é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
46 | (Des)Prazer da norma
2
Para manter a confidencialidade e o anonimato, todos os nomes foram ficcionalizados.
Governo | 47
3
O bebê era chamado de Ana Luisa pela família. A mãe e a prima levavam a criança
ao ambulatório com vestidinhos, saias, sempre em tons rosas e roxos. Com a
continuidade do atendimento e os procedimentos feitos, a família passou a chamar
Ana Luisa de “bebê”. Começaram a vestir a criança de outras cores mais “neutras” –
uma das vezes, o bebê estava com um vestidinho amarelo. No final do atendimento,
após os testes de virilização feitos pela equipe médica, a família se convenceu de
que a criança era mesmo um menino e modificou o nome para Wagner Luis. Foi
registrado com o mesmo nome do pai.
4
“Um endocrinologista disponibilizou uma caixinha de Deposteron através da
farmácia do serviço de atenção especializada para pacientes transexuais do
hospital, contendo três ampolas de 2 ml com 200 mg de cipionato de testosterona
cada, exatamente para os três meses do teste de virilização. A aplicação foi custosa
para a médica responsável. O líquido da testosterona era oleoso, de tal forma que
essa viscosidade dificultou a aplicação imediata. O bebê chorava muito. Parecia
doer bastante. Na bula do remédio, aponta-se os efeitos colaterais: possibilidade
de ginecomastia; alterações cutâneas, como alopecia, seborreia e acne; aumento da
retenção de água, sódio, potássio, cálcio e fosfatos inorgânicos; náusea, dor de cabeça,
ansiedade e depressão; inflamação e dor no local da administração intramuscular.
Por fim, um aviso que alerta para o contrassenso desse manejo médico frente ao
guideline científico, cuja prioridade é a preservação da funcionalidade gonadal
– o tratamento com altas doses de testosterona pode reduzir ou interromper a
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espermatogênese, como também pode agir na redução dos testículos. Afinal, qual
seria a dose “correta” para um recém-nascido?” (Pires, 2015, pp. 85-86).
5
No exame físico de cada consulta, a genitália do bebê também é examinada. No
primeiro exame físico, media 2,1 centímetros, abaixo da média definida pela
literatura médica, na qual a medida infantil para um norte americano do sexo
masculino seria de 3,4 centímetros com desvio padrão de 0,3 centímetros, ou seja,
abrangendo um intervalo de normalidade entre 3,1 a 3,7 centímetros (Lee et all.,
2006, p. 490). No segundo exame físico, a genitália diminuiu ainda mais, a medida
foi de 1,5 centímetros. As gônadas estavam palpáveis bilateralmente, com cerca de
1 milímetro, mas as saliências labioescrotais apareciam como pouco pragueadas
e pigmentadas. Na escala médica, considera-se tal genitália um Prader III. No
prontuário, entre as opções “pênis”, “clitóris” ou “falus”, assinalaram a última opção
na definição da genitália. Nas discussões clínicas do caso, referiam-se ao bebê como
um DDS 46, XY com falus indeterminado/ambíguo. Para os médicos, se tratava de
um menino pouquíssimo virilizado (Pires, 2015, p. 81).
Governo | 51
6
Além da discussão sobre autodeterminação, o livro de Butler é fundamental para
entender a complexidade da categoria “agência” e o uso da “performatividade” para
descrever a contestação e a produção de outras modalidades de poder. Ver também
Mahmood, 2005.
7
A mutação mais clássica, que altera a função da enzima 21-hidroxilase, gera uma
desregulação na produção de hormônios esteróides como a aldosterona e o cortisol,
responsáveis (entre outras funções) pela homeostase de sódio e potássio no corpo,
o prejuízo dessa produção desregulada que leva aos sintomas de desidratação e
vômitos.
8
Hormônios androgênios, ditos masculinos, são tipos de hormônios esteróides.
Funcionalmente, eles são agrupados em certas classes, como os corticosteroides
(glicocorticoides e mineralocorticoides), os esteróides sexuais (progestogênios,
androgênios e estrogênios), hormônios derivados da vitamina D, entre outros.
Todos derivam do metabolismo do colesterol. Com a desregulação enzimática
da síntese desses hormônios, alguns ficam com taxas mais ou menos elevadas.
É o caso da 17-hidroxiprogesterona, esteróide intermediário na biossíntese do
cortisol, usado para a avaliação da “HAC” em teste laboratorial, que se converte
alternativamente em di-hidrotestosterona e contribui para o excesso de andrógenos
da condição (Witchel, 2017).
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9
“Segundo os relatos em prontuários, a aparência da genitália dele não era ambígua.
Ao contrário, o pênis estava no tamanho padrão para uma criança do sexo masculino
e daquela idade, com o meato urinário na ponta e fusão lábio escrotal completa. Sua
bolsa escrotal era pigmentada e pregueada. Ainda assim, sua genitália não podia
ser inteiramente masculina, já que não possuía os testículos. A bolsa escrotal estava
vazia” (Pires, 2016, grifo original).
10
Várias publicações médicas discutem esses impactos a longo prazo. Alguns
consensos se delineiam na medida em que meninas ou mulheres 46, XX com “HAC”
que vivenciaram uma grande virilização durante a gestação e a infância (Prader IV ou
V) parecem ter comportamentos menos tradicionalmente femininos e/ou orientação
sexual não-heterossexual. Por exemplo, um artigo de pediatras sul-coreanas diz:
“Exposição excessiva aos andrógenos durante o período pré-natal influencia o
desenvolvimento cerebral de mulheres com HAC clássica; elas podem apresentar mais
preocupações sexuais e comportamento masculino do que mulheres não afetadas”
(Choi & Yoo, 2017). Outro artigo de urologistas pediátricos alemães também reitera
que “aquelas com maior grau de exposição aos andrógenos durante o período pré-
natal (Prader IV e V) criadas como mulheres passam a se identificar como mulheres,
mas experimentam um comportamento mais masculino na infância, também possuem
uma taxa maior de homossexualidade e sentem mais dificuldade com a penetração
vaginal e a manutenção da gravidez” (González & Ludwikowski, 2016). Para uma
abordagem crítica sobre essas análises e consensos, ver Jordan-Young, 2010.
Governo | 53
11
Para uma discussão mais detalhada sobre as relações entre consentimento,
vulnerabilidade, sofrimento e bem-estar neste atendimento hospitalar de Marcos/
Marta, ver Pires, 2016.
12
A virilização pode afetar de algum modo a funcionalidade das gônadas,
por exemplo, mulheres com HAC clássica possuem ciclos de menstruação
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irregulares e em alguns casos podem ser inférteis. Ainda assim, dentre muitos
fatores e desconsiderando a forte alteração anatômica que a variação produz,
principalmente na genitália do bebê, as gônadas femininas existirão e serão
completamente formadas (Witchel, 2017).
13
No original: “In psychoanalytic terms, the relation between gender and sexuality
is in part negotiated through the question of the relationship between identification
and desire”. Tradução da autora.
14
Um conjunto de cirurgias feminizantes que englobam reconstruções clitorianas
Governo | 55
16
Importa notar que a literatura médica atual ainda utiliza a terminologia “distúrbios
do desenvolvimento sexual” para se referir às variações de intersexualidade. Para
saber melhor sobre as controvérsias desta terminologia e os impactos de etiologias
cada vez mais descritivas e específicas, ver Machado, 2008b.
17
No original: “Peer support (PS) is a key component of the 2013–2020 WHO
Mental Health Action Plan. (…) Rather than the monolithic approach to treatment,
community members now call for evidence-based interventions, the consistent
inclusion of evidence and of controversies in informed consent processes and the
creative identification of alternative strategies, including psychosocial support and
PS as primary interventions (...) The collaboration with existing PSGs is crucial for
developing more support for specific conditions, for integrating PS into the model
of healthcare and for encouraging patient-centered research”. Tradução da autora.
Governo | 57
18
Além dos 17 autores principais, o artigo teve revisão e colaboração de mais de 60
especialistas que trabalham com o tema, da área médica, da bioética, dos direitos
humanos e alguns ativistas intersexo, compondo o que chamaram de “Global
DSD Update Consortium”. O único especialista brasileiro que contribuiu para o
documento foi o Dr. Gil Guerra-Junior do Departamento de Pediatria da UNICAMP.
19
Os princípios não foram assinados como um tratado, isto é, não tem caráter
vinculante como lei internacional. Contudo, os 29 juristas e especialistas signatários
que representaram estados-nações, organizações internacionais, sociedade civil e
escritórios da ONU consideram o documento como uma normativa universal para
guiar legislações e tratados específicos. Os princípios inspiraram, por exemplo,
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21
Alguns escritórios das Nações Unidas, como o Escritório do Alto Comissário das
Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR), já produzem documentos mais
explícitos sobre os manejos, os direitos e as violências envolvidas nos atendimentos
de variações intersexuais. Ver, por exemplo, a campanha UN Free & Equal lançada
pelo OHCHR – https://www.unfe.org/.
22
A revisão do Consenso finaliza o artigo com a indicação de que “os médicos que
trabalham com essas famílias devem estar cientes de que a tendência, nos últimos
anos, tem sido para que os órgãos legais e de direitos humanos enfatizem cada vez
mais a preservação da autonomia dos pacientes” (Lee et all, 2016, p. 20, tradução e
grifo da autora).
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23
No original: “necessary condition for the enactment of the ethics of freedom”.
Tradução da autora.
Governo | 61
24
No original: “our very sense of personhood is linked to the desire for recognition,
and that desire places us outside ourselves, in a realm of social norms that we do not
fully choose, but that provides the horizon and the resource for any sense of choice
that we have”. Tradução da autora.
62 | (Des)Prazer da norma
25
No original: “In many States, children born with atypical sex characteristics are
often subject to irreversible sex assignment, involuntary sterilization and genital
normalizing surgery, which are performed without their informed consent or that of
their parents, leaving them with permanent, irreversible infertility, causing severe
mental suffering and contributing to stigmatization. In some cases, taboo and stigma
lead to the killing of intersex infants”. Tradução da autora.
Governo | 63
26
No original: “consists in society’s capacity for self-creation through recourse to
institutions inspired by specific social and imaginary significations”. Tradução da
autora.
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Introdução
1
Lucas Freire é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ).
2
Para uma cronologia mais detalhada do desenvolvimento das múltiplas teorias
sobre a transexualidade consultar Castel (2001), Arán (2006), Leite Jr. (2011) e
Lima (2011).
3
Cabe destacar que o DSM é adotado como guia para os profissionais de saúde
mental em diferentes lugares do mundo, inclusive no Brasil. Junto com a Classificação
Internacional de Doenças (CID), estes dois documentos fornecem uma espécie de
padronização da categorização de problemas de saúde no âmbito global utilizada
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4
O NUDIVERSIS é classificado na estrutura de instituições que compõem a
Defensoria Pública como um “núcleo especializado de primeiro atendimento”.
O termo “especializado” indica que as atividades do núcleo são direcionadas às
questões e demandas apresentadas por uma determinada “população” ou grupo,
Governo | 71
A história de Raissa5
6
“Assistida/o” é a categoria utilizada para fazer referência às/aos usuárias/os
do serviço da Defensoria Pública no Rio de Janeiro. O termo permite uma dupla
apreensão: por um lado, uma/um assistida/o é alguém que recebe algum tipo de
assistência ou ajuda; por outro, ser assistido remete ao ato de ser observado por
terceiros.
Governo | 73
7
A recepcionista não era uma funcionária do quadro oficial do NUDIVERSIS.
Entretanto, ela adquiriu uma posição singular no caso da Raissa, pois era também
uma mulher transexual.
Governo | 75
8
O Estudo Social consiste basicamente em entrevistas realizadas com assistentes
sociais e psicólogos servidores da Defensoria Pública. Seu objetivo é avaliar a
procedência do pedido de requalificação civil da pessoa transexual.
9
Chumbinho é o nome dado a um produto químico clandestino popularmente
utilizado como raticida e que figura como um dos meios pelos quais as pessoas
tentam e/ou cometem suicídio no Brasil.
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CRIME
Travesti que mudou de nome é encontrada morta no Catete
A travesti Raíssa, que trabalhava no Espaço Itaú de Cinema, em
Botafogo, foi encontrada morta pelo seu namorado, ontem, no
apartamento dela no Catete. Há pouco tempo, Raissa ganhou na
Justiça o direito de ser chamada pelo nome.10
10
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/posts/2014/11/03/
travesti-que-mudou-de-nome-encontrada-morta-no-catete-553856.asp>. Último
acesso em fevereiro de 2016.
Governo | 79
11
O processo transexualizador foi instituído no SUS em 2008, com a publicação
da portaria nº 457/2008. Até meados de 2013, apenas quatro hospitais públicos
estavam habilitados a oferecer a cirurgia de transgenitalização, concentrados na
região centro-sul do Brasil: o Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); o Hospital de Clínicas de Porto Alegre da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); o Hospital de Clínicas Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo (USP); e o Hospital de Clínicas da
Universidade Federal de Goiás (UFG). Em novembro de 2013, o Ministério da Saúde
acatou uma ordem judicial e publicou uma nova portaria (Portaria nº 2.803/2013)
que criou o Serviço de Atenção Especializado no Processo Transexualizador, o que
Governo | 81
14
Butler apresenta duas críticas principais ao construtivismo: por um lado, ela
aponta um paradoxo inerente a esta abordagem, uma vez que o pré-discursivo
é delimitado justamente por um dado discurso; e por outro, argumenta que o
conceito de “natureza” é histórico e ligado à emergência dos meios tecnológicos de
dominação.
Governo | 85
15
O verbo “transicionar” tem a ver com fazer uma transição. Entre as pessoas
transexuais, o termo é utilizado para descrever o processo pelo qual os sujeitos
fazem a transição de um gênero para o outro.
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16
Da mesma forma que a “mudança de sexo” nunca poderá ocorrer efetivamente, as
Governo | 87
normas de gênero também nunca poderão ser plenamente satisfeitas por um sujeito
e, portanto, ambas serão sempre violentas, como já salientou Butler (2003 e 2004).
17
David/Brenda – ou caso John/Joan, como ficou mais conhecido – foi um rapaz que
teve seu pênis severamente lesionado durante um procedimento de circuncisão nos
anos 1960. Após terem contato com as teorias de John Money sobre o sexo/gênero
como algo que depende muito mais da socialização do que da fisiologia, os pais de
David resolveram criá-lo como uma menina, sob o constante acompanhamento
de Money. Contudo, David passou por uma série de conflitos identitários na
adolescência, pois não se via como uma menina. Quando seus pais lhe contaram que
ele havia nascido menino, David adotou uma identidade masculina e passou pelo
processo cirúrgico de reconstrução do pênis. Ele se suicidou aos 38 anos, período
em que estava enfrentando um quadro depressivo. Esse caso é até hoje polêmico
e alvo de disputas. O psicólogo John Money o utilizou exaustivamente para provar
suas teorias sobre a “socialização do sexo”, ao passo que o jornalista John Colapinto
(2000) escreveu um livro sobre a vida de David denunciando os abusos cometidos
por Money e sua equipe.
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(...) o que antecede aos conflitos com as genitálias são aqueles com
a própria construção das verdades para os gêneros, efetivadas nas
obrigações que os corpos paulatinamente devem assumir para
que possam desempenhar com sucesso os designíos do seu sexo
(Bento, 2006, p. 164).
Considerações finais
Este trabalho pretende analisar práticas corporais
dissidentes na elaboração de um projeto artístico-político sudaca. O
exercício performativo do termo sudaca, uma expressão depreciativa
de uso comum na Espanha e em outros países da Europa para se
referir a pessoas de origem latino-americana, ganha outra indicação
de sentido ao fazer da injúria uma proposta de enfrentamento
aos processos históricos de dominação colonial. A partir das
performances “Merci Beaucoup, Blanco!”, de Michelle Mattiuzzi, e “Cu
é lindo”, de Kleper Reis, traço quatro linhas de afetação para pensar
determinadas manifestações contemporâneas vinculadas ao corpo: a
heterossexualidade, a branquitude, a colonialidade e a tradição cristã.
Em seus trabalhos, Kleper e Michelle vão compondo um movimento
pessoal de cura diante das marcas de inúmeras experiências de
violência inscritas em seus corpos. É precisamente essa dimensão
devastadora dos processos históricos de assujeitamento que
permite a criação de uma narrativa na busca de instrumentos para
uma recomposição particular. O compromisso de identificar as
dores, recolher os danos e aprender com eles é propulsor da força
que possibilita outros modos de habitar as feridas desse corpo em
ruínas. Sendo assim, procuro mostrar como tais práticas artísticas
produzem e reinscrevem as políticas do corpo ao disparar uma
tomada de reconhecimento do caráter precário impresso sobre
algumas vidas.
1
Nathalia Ferreira Gonçales é doutoranda do Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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2
Texto do artista Paulo Nazareth.
Governo | 99
A escrita deste texto está povoada por memórias de encontros
e pequenas histórias. Abro essa passagem com a matéria de jornal
sobre o espancamento homofóbico sofrido por Kleper e seus amigos,
que eu talvez não pudesse recontar sem dissimular sentimentos
mistos de raiva e pavor. No mesmo movimento, ele me conta sobre
essas violências como algo disparador para a tessitura de seus
trabalhos acerca do corpo, ou “tecnologias de vida”, maneira como
Kleper delicadamente elabora suas imersões de criação cotidianas. O
temor da agressão covarde e as marcas rasgadas nesse corpo de bicha
mestiça do Nordeste vivendo na cidade do Rio de Janeiro convergem em
processos de isolamento, alimentação viva, jejum e zonas de silêncio.
Pouco a pouco, os aniquilamentos profundos de quem apanhou e tem
medo da rua cedem espaço para as composições de um corpo em cura.
3
Trecho da matéria do Jornal O Globo de 27/07/2013. http://oglobo.globo.com/rio/
homofobia-odio-que-cresce-sombra-da-impunidade-9224591#ixzz4JKNEOT6d.
Acesso em agos. 2018.
Governo | 101
4
A cantora Vanusa faz uma apresentação desastrosa ao cantar o hino nacional na
Assembleia Legislativa de São Paulo. https://www.youtube.com/watch?v=lOhJ-T-
IKTg. Acesso em agos. 2018.
102 | (Des)Prazer da norma
5
Proponho a categoria heterofuturo para me referir à retórica de família, reprodução
e heteronormatividade sob a qual a civilização ocidental está fundada. O problema
do futuro, que Lee Edelman (2004) evidencia claramente no livro No Future: Queer
Theory and the Death Drive, é que quando pensado como desenvolvimento linear e
coerente do passado e do presente, monopoliza a imaginação política, impedindo de
ressignificar de maneira criativa conceitos como comunidade ou parentesco.
Governo | 103
6
Para ler a matéria completa: http://www.jornalcruzeiro.com.br/materia/643558/
pornoterrorismo. Acesso em 20 jan. 2017.
Governo | 107
Oficina de Pornoterrorismo com Diana Torres. Intervenção realizada por Kleper Reis e
colaboradores durante o Seminário Internacional Desfazendo Gênero em Salvador, 2015.
108 | (Des)Prazer da norma
que seu casaco de pele a toque. Nenhuma palavra é dita. Lorde tem
medo de demonstrar qualquer coisa à sua mãe por não saber o
que havia feito. Olha secretamente para sua roupa de inverno. Será
que há algo nela? Alguma coisa acontece e ela não entende, mas
nunca esquecerá. Os olhos daquela mulher, as narinas abertas em
repulsa. O ódio. Para Lorde, falar sobre a intensidade da raiva das
mulheres negras é antes falar sobre o ódio venenoso que alimenta
essa raiva e sobre como suas vidas foram profundamente marcadas
por crueldades muito antes de saberem de onde procedia tamanha
ira. Ao defender o uso legítimo da raiva como resposta ao racismo,
Lorde retorna às pessoas brancas o horror da exclusão, do privilégio
inquestionável, dos silêncios e dos inúmeros maltratos sofridos.
Vejo as performances narradas não somente enquanto
possibilidade de representação artística, mas igualmente como
alternativa de partilha de modos de existência que se colocam
em risco quando anunciam sua própria visibilidade. As ações
performáticas tensionam, no limite, quais são os corpos que podem
ser visíveis sem que paire sobre eles a força da violência nas
relações sociais. A performance de Kleper notoriamente confronta
esta impetuosa dimensão do poder. A partir das marcas deixadas
por agressões homofóbicas sofridas na rua, é possível compreender
como determinadas dinâmicas da heteronormatividade são capazes
de produzir a precariedade de algumas vidas e a integridade
de outras. A violência homofóbica, dentre outras expressões de
hostilidade, é uma forma de inferiorizar e desumanizar os sujeitos
que vivem práticas sexuais e afetivas fora da heterossexualidade
e que manifestam performances de gênero distintas aos
padrões hegemônicos de masculinidade e feminilidade. Em uma
releitura de Monique Wittig, Butler (2003) propõe o conceito de
matriz heterossexual como uma formulação fundamentada no
suposto alinhamento entre sexo, gênero e desejo, e implicada
na pressuposição da heterossexualidade como princípio dado
da estrutura social. A homofobia seria então uma expressão de
desconforto moral causado pela ruptura desse alinhamento ou, dito
de outro modo, pela provocação da suposta naturalização da ordem
do desejo e das posições de gênero (Borrillo, 2010).
A violência não é tão somente uma punição justa aplicada
a alguns, tampouco uma vingança acertada pelo incômodo de uma
existência. Ela delineia uma vulnerabilidade física da qual, segundo
Governo | 111
Samara Freire1
1
Samara Freire é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Departamentos são as regiões político-administrativas nas quais a Colômbia está
dividida. A noção é equivalente a “estado”, relativa à divisão do Brasil.
116 | (Des)Prazer da norma
Embolando Alegrías
3
Um pedaço de África na Colômbia, é assim que tanto os moradores locais quanto os
meios de comunicação evocam e referenciam a comunidade.
4
Champeta é um ritmo musical presente desde a década de 1960 na região do Caribe
colombiano. Ganhou notoriedade nas áreas de concentração da população negra
no país, principalmente em Cartagena e Barranquilla, assim como em San Basílio
de Palenque. A champeta foi influenciada por meio de diversos gêneros musicais
do continente africano. Esse universo musical diaspórico foi ressaltado por Claudia
Mosquera e Marion Provenzal (2000) e também por Luis Gerardo Martinez (2011).
Governo | 117
5
Porcelana, palagana e ponchera são sinônimos para se referir às bacias de alumínio
usadas por essas mulheres negras palenqueras.
118 | (Des)Prazer da norma
Los dulces
6
Na Colômbia é muito comum a comercialização de minutos para ligações
telefônicas. As antigas cabines que se encontravam espalhadas especialmente pelo
centro das cidades foram substituídas por pessoas que possuem celulares de várias
operadoras e que por preços módicos vendem minutos de ligação. Assim, “vender
minutos” é uma expressão comum na Colômbia, entendida pelos colombianos, mas
que pode causar estranhamento nos forasteiros.
7
Em português: “a força da porcelana”. Tradução da autora.
8
Na história da Colômbia se fazem presentes os diversos casos de desplazamiento
forçado, decorrentes do conflito armado interno, de pessoas campesinas, sejam
elas de grupos indígenas ou negros, que por imposição tiveram que deixar seus
Governo | 123
13
Em português: “Meu amor, o que vai chupar?”. Tradução da autora.
14
Em português: “Lhe trago o redondo, o grande e o peludo, não ria, menina, eu falo
do coco”, tradução da autora.
1.000 pesos colombianos (COP) equivalem a R$1,40 (em reais, BRL). Cotação do
15
Doces caminhos
Cerca de vinte anos atrás se pode dizer que começou o auge dos
palenqueros e palenqueras a entrar na Universidade de uma forma
muito massiva. Então, obviamente os doces que se vendiam por
aqui simplesmente chegavam para a alimentação, mas não para
pagar os estudos dos filhos. Então, aí começaram a sair.
16
Nas sociedades que mereciam a atenção dos antropólogos, o dinheiro possuía
significados múltiplos que estavam atrelados às relações entre as pessoas, às
esferas ou aos circuitos singulares de troca (Dalton, 1967; Bohannan, 1967 apud
Neiburg, 2007).
Governo | 127
Não era como agora. Quando já estava prejudicando a venda por lá,
se tocava levar para longe, deixar a família, que é difícil. Deixar as
criancinhas com a avó, com o pai. Vir por um mês, por dois meses,
porque tudo ficou mais complicado. As vendas não eram as mesmas
e todo mundo tem açúcar [diabetes], não quer comer doce, e, como
as vendas caíram, foi necessário sair e expandir esses doces para
outras partes que não conhecíamos. Aí ficamos lá nômades. Hoje
estamos aqui, amanhã estamos em Palenque. Ou se eu não quero
vir aqui, vou para Montería [capital do departamento de Córdoba],
vou para Sincelejo e assim por diante.
por exemplo. Elas falam que com o comércio dos doces foi possível
comprar utensílios para suas residências, como: fogões, geladeiras,
televisões, roupas e sapatos para os filhos, produtos alimentícios, de
higiene pessoal; fazer reformas e construção de novos cômodos em
casa. O maior motivo de orgulho para elas é que, com esse trabalho,
foi possível sostener la familia y los hijos.17
Entretanto, as queixas sobre o trabalho vão se acumulando
aos poucos, para depois ser afirmado que o sofrimento vivenciado,
domesticado e disciplinado poderá trazer momentos de satisfação
pessoal. A partir de Mintz (Ibid.), podemos refletir sobre o que
é trabalhar no nível da exaustão humana e entender como elas
conseguem enxergar o que é um trabalho que mata, e, ainda assim,
recorrem a essa prática para sobreviver e trazer dignidade ao seu
feito.
17
“Sustentar a família e os filhos”, tradução minha.
132 | (Des)Prazer da norma
sociais, econômicos.
Catalina, ao comparar seu trabalho análogo ao de um escravo,
nos traz para a análise a ponderação de Angela Davis (2016), que
apontou questões fulcrais:
Como leiga, posso apenas propor algumas hipóteses que talvez sejam
capazes de orientar um reexame da história das mulheres negras
durante a escravidão (…) O enorme espaço que o trabalho ocupa
hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido
durante os primeiros anos da escravidão (…) Aparentemente,
portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das
mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel
como trabalhadoras (Ibid., p. 24).
18
Em português: “Caminhando como louca, levando sol como a terra”. Tradução da
autora.
19
Morro.
Governo | 135
20
Em português: “Ai, minha filha, tenho muita dor nas costas”. Tradução da autora.
136 | (Des)Prazer da norma
À guisa de conclusão
Fátima Lima1
1
Antropóloga e Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro/IMS/UERJ. Pós Doutora em Antropologia
Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/PPGAS do Museu
Nacional/UFRJ. Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro/
Macaé. Professora do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada- PIPGLA da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico - Raciais/ CEFET/RJ. É autora do
livro “Corpos, Gêneros, Sexualidades - políticas de Subjetivação” publicado pela
Editora Rede Unida.
142 | (Des)Prazer da norma
Interseccionalidades
2
Uso o termo racializadas para destacar mulheres de cor ou não-brancas que aliadas
a outros marcadores sociais da diferença como classe, territórios, entre outros, por
exemplo, as colocam em relações assimétricas de poder.
144 | (Des)Prazer da norma
3
Sobre a noção de branquitude ver Carone, Iray & Bento, Maria Aparecida da Silva
(orgs.). 2014. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes.
Governo | 145
Bio-Necropolíticas
Achille Mbembe (2017; 2018) no ensaio Necropolítica cuja
primeira publicação data de 2006 bem como as recentes reflexões
na obra Políticas da Inimizade na qual consta um capítulo chamado
“Necropolítica” uma questão salta e nos provoca. Nos pergunta o
autor:
4
“Cuando el poder brutaliza el cuerpo, la resistencia asume una forma visceral”.
Entrevista. Disponível em: https://www.eldiario.es/interferencias/Achille-
Mbembe-brutaliza-resistencia-visceral_6_527807255.html.
Governo | 157
Um momento de efervescência
É o segundo domingo do mês e novamente chego à “Festa do
Vale Tudo” para mais um dia de trabalho de campo em minha pesquisa
sobre as festas de orgia entre homens no Rio de Janeiro. Fico de sunga (o
vestuário permitido nessas festas é sunga, cueca ou nada) e vou andar
pelos ambientes da casa procurando acompanhar os encontros dos
em torno de cento e cinquenta homens ali presentes. Dentre as várias
interações eróticas observadas durante as sete horas de festa, trago
a descrição de um dos “picos de intensidade” ou um dos momentos
efervescentes em que estava presente.
Nesse dia conheci um dos participantes que vou chamar de Léo.
Ele é alto, se destacava pela altura diante dos outros homens presentes,
moreno,2 cabelo raspado, parecia estar na faixa dos 30 anos, morador
de Caxias, tinha um corpo magro normal, ainda que tivesse dito que
trabalhava como professor de educação física em uma academia; e
também possuía uma perna um pouco mais curta do que a outra o
que fazia com que tivesse um andar um pouco arrastado. Vi Léo pela
primeira vez em uma interação à três em uma das suítes coletivas da
casa. Quando me viu, abandonou os outros dois homens com quem
estava e veio conversar comigo. Me fazia perguntas aleatórias enquanto
me levava para um sofá um pouco afastado das atividades eróticas
que aconteciam ao nosso redor. Aproveitei para perguntar coisas
referentes à pesquisa, mas Léo era muito insistente, ficava pegando
em meu corpo a todo momento, me beijando o pescoço e a nuca e
1
Victor Hugo de Souza Barreto é doutor em Antropologia pela Universidade Federal
Fluminense. Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional/UFRJ.
2
Assinalo desde já que os termos de classificação que utilizo nas descrições dos
corpos dos participantes, incluídos aí os modos de classificação racial marcados
ou não com aspas, foram aqueles verbalizados pelos meus interlocutores (ainda
que não tenham sido pronunciados naquele exato momento ou só tenham sido
informados posteriormente).
162 | (Des)Prazer da norma
***
É meu objetivo neste trabalho apresentar uma reflexão sobre
determinadas práticas sexuais realizadas entre homens na cidade do
Rio de Janeiro em reuniões de orgia. O que a experiência, ou melhor
dizendo a experimentação, da sexualidade nessas festas parece
colocar em jogo são outros modos de subjetivação e corporalização,
maneiras propriamente intensivas, nas quais a intensidade do
instante de vida (ou de gozo) se impõe sobre a duração da vida
em extensão, ou sobre os outros aspectos da vida dessa pessoa.
Com base em dados de campo de uma pesquisa que desenvolvi
para o Doutorado em Antropologia,3 meu interesse neste trabalho
é refletir melhor sobre a ideia de “putaria” como modo singular de
engajamento no mundo.
3
Tese que deu origem à publicação Barreto (2017a).
164 | (Des)Prazer da norma
A química da orgia
É preciso saber fazer os encontros que lhe convêm
(Deleuze, 1978)
Pouco antes de iniciar o trabalho de campo e as idas às
festas de orgia, tive uma conversa com um amigo que de vez em
quando participava delas. Nessa conversa ele disse que ao observar
os homens andando pelo dark room da casa procurando interações
sexuais uns com os outros, lembrava-se de cenas dos filmes de
terror de zumbi, em moda atualmente. Assim como os zumbis, ele
via aqueles homens na orgia como seres sem vontade própria e
sem personalidade, com um andar constante na penumbra local,
apenas respondendo a um instinto e se alimentando com a carne e
a vida alheia.
Em pouco tempo percebi que a imagem dos zumbis não era
a mais adequada para dar conta do que acontecia naquele espaço
durante as festas. Aquelas pessoas estavam longe de serem seres
apáticos ou sem consciência que se consumiam. Uma imagem
mais adequada para a deriva das pessoas e suas interações nesses
eventos são as ligações e reações químicas entre os elementos.
Aqueles homens parecem muito mais átomos que procuram se ligar
(e, de acordo com a química, existem diferentes tipos de ligação),
de forma a trocar, doar ou compartilhar elétrons, formando assim
moléculas. Não há consumo unilateral da “vida” do outro, o que há
são composições, ligações, afecção dos corpos e encontros.
Em uma de suas aulas sobre Espinosa, Deleuze explica que
para esse pensador o mundo é uma construção ou um movimento
permanente feito a partir dos encontros dos corpos, tudo o que
existe se constituiria a partir do encontro. Na filosofia espinosista,
esses encontros nos constituem na medida em que tem a potência
de, a cada vez, transformar os corpos, compor ou decompor, e até
mesmo produzir um novo corpo. Aqui, como na analogia que trouxe
das ligações e reações químicas, “no encontro não existe aquele que
afeta e o que é afetado: alguma coisa acontece em ambos (ou nos
vários) elementos envolvidos” (Silva, 2004, p. 9).
Assim, para Espinosa, um bom encontro seria aquele no
qual os homens se sentem alegres, quando potencializam seu agir e
existir, quando compõem com outro corpo, aumentando sua vontade
Desejo | 165
Intensidade e experimentação
4
Sem contar que os espaços da festa também não são os locais mais apropriados
para emitir “explicações”.
166 | (Des)Prazer da norma
5
Ou, como afirma Favret-Saada, em seu já clássico texto sobre a afetação no trabalho
de campo: “Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica
identificar-se com o ponto de vista do nativo, nem aproveitar-se da experiência
do campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se
assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de
conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa
Desejo | 167
O corpo orgiástico
Uma pesquisa que se faça entre pessoas interagindo em
atividades de sexo coletivo não pode se furtar a uma discussão
sobre corporalidade. Não apenas porque seja uma “problemática
obrigatória”, mas porque, de fato, é a linguagem principal que
pude encontrar nesse campo. Essa característica apresenta uma
forma de produção da subjetividade que foge, pela corporalidade,
ao debate dicotômico muito presente nas ciências sociais entre
“pessoa” x “indivíduo”. Nem pessoa nem indivíduo; os atores aqui
se reconhecem e se constroem pela apresentação e uso de seus
corpos.6 A especificidade é tanta que esse corpo chega ao nível da
fragmentação: partes do corpo que se separam, ganham agência e
vão de encontro ao desejo do Outro. Torna-se inevitável, portanto,
que a discussão das orgias aponte para a discussão do que Mauss
(2003, p. 401) chamou de técnicas corporais, isto é, “as maneiras
como os homens, sociedade por sociedade e de uma maneira
tradicional, sabem servir-se de seus corpos”. O contexto dessas festas
obriga a um relacionamento diferenciado com o próprio corpo. E
se queremos nos aproximar de um entendimento do que se passa
nesses encontros teremos que levar isso em consideração.
É por conta disso que, se o evento das festas de orgia é tema
de interesse deste trabalho, ele o é na medida em que oferece um
terreno privilegiado para a investigação da produção social, tanto
material quanto simbólica, dos sujeitos e dos corpos humanos,
“bem como das concepções e das experiências de vida e de morte
implicadas nessa produção” (Ibid.). Nesse sentido, tal como ressalta
Vargas, é importante considerar que nem sempre os humanos se
definem como sujeitos e servem-se de seus corpos de uma maneira
extensiva, ou segundo critérios extensivos (Vargas, 2001, pp. 214-
215); o que pretendo demonstrar neste trabalho é que a experiência
A repetição na orgia
Venho mostrando nesse texto como a ida às orgias é, ela
própria, uma forma, uma maneira e uma busca de singularização,
de criar diferença, de saltar do fundo indistinto do cotidiano para
um acontecimento de pura intensidade, pela própria vontade de
potência dos participantes. Não caberia aqui uma moral onde as
7
Ao contrário do que possa ter dado a entender aqui, não quero dizer que os
homens que frequentam essas festas trabalhem em uma lógica disjuntiva (ou...ou...).
A maneira como eles parecem lidar com os diferentes “mundos” e “categorias” em
que vivem assemelha-se muito mais a uma lógica da conjunção (e...e...). Aproxima-se
daquilo que Eugenio (2006) chama de “hedonismo competente”, uma competência
em saber articular os compromissos da vida cotidiana com as práticas de “perdição”,
de “êxtase”, do que eles chamam aqui de “putaria”.
Desejo | 169
8
A questão do uso da camisinha e a exposição a situações de risco relacionadas,
como a prática do sexo bareback (sem camisinha), mereceria uma atenção maior
para qual me falta espaço aqui.
9
Sobre substâncias utilizadas, o que pude encontrar explicitamente é o uso de
Viagra ou Pramil e poppers (substância que tem efeito semelhante a lança-perfume
Desejo | 171
Portanto, como todo evento, esse também tem de ser feito, vale dizer,
minuciosamente fabricado e realizado (uma preparação do espaço,
da iluminação, da música, do corpo que se lava, se depila, se prepara
etc.), ainda que, como todo evento, seus resultados sejam imprevistos
e, de um modo ou de outro, escapem àquilo que os condicionam e
introduzem alguma surpresa, diferença ou alteração.
A putaria
e loló) que funcionam mais como aditivos sexuais para melhorar a performance do
que para “dar onda”. É claro que existe o uso de outras drogas e álcool nas festas. Os
organizadores me disseram ser normal encontrar papelotes e saquinhos de cocaína
nos banheiros e também já tiveram que expulsar pessoas alcoolizadas que estavam
incomodando e atrapalhando as outras. O que quero dizer é que há como um acordo
implícito de controle dos corpos nesse sentido.
172 | (Des)Prazer da norma
uma putaria!”.
A putaria é o elemento organizador das práticas nesses
espaços. Pela fala dos “nativos” percebe-se que, ali na orgia, não basta
ser safado, tem que ser puto. Por isso um corpo bonito, um “cara de
elite”, uma “gracinha” ou “para casar” não se torna necessariamente
o centro das atenções. O que vale ali é a disposição para a putaria. Daí
que corpos que em outros ambientes talvez não tivessem atenção ou
talvez fossem considerados como abjetos (como deficientes, velhos,
gordos etc.), nessas festas podem tornar-se desejáveis, até mesmo
dando sentido ao próprio nome de uma das festas: “Vale Tudo”.
Interessante comparar com outro local onde fiz pesquisa de
campo, também localizado no Centro do Rio, no qual apresenta-se
uma proposta diferente: uma festa de orgia onde só podem entrar/
participar pessoas que correspondam a um perfil pré-determinado,
que seria: “homens magros, sarados, boa pinta, em boa forma física
e dotados”. Como se identificam como um “club privé” (não aberto
ao público) é necessário ser convidado por algum frequentador ou
mandar foto antes para avaliação ou ser avaliado na recepção da
festa (como aconteceu comigo em minha primeira ida).10 Aqui, já
se poderia observar uma tentativa de estratificação do desejo, pela
forma de exclusão através da hierarquia dos corpos, ou mesmo de
outros marcadores sociais de diferença. Voltarei a isso mais adiante.
A meu ver, a putaria, além de pautar e qualificar as práticas,
os participantes e o ambiente, é uma potência oriunda das vontades
e impulsos dos participantes das festas, como uma disposição.
Guardadas as especificidades de cada contexto, estou usando
disposição aqui no sentido que os presos estudados por Biondi dão
a esse termo:
10
A mesma busca por “seleção”, por exemplo, encontrado em muitos perfis no
Grindr (aplicativo de celular de encontros masculinos que exibe uma grade de
imagens dos homens dispostos a partir do mais próximo ao mais distante). Os perfis
normalmente trazem fotos de partes do corpo que o usuário acha mais atraente,
dificilmente fotos de rostos são colocadas. Uma frase que pode ser lida em muitos
perfis é: “Tenha bom senso. Não me cuido para pegar bagulho”, ou então: “Não sou e
nem curto afeminados. Se for bichinha, nem chama”.
Desejo | 173
Novo mergulho
11
A ideia da “putaria” enquanto um conceito elaborado por meus interlocutores é
apresentada com mais detalhes em Barreto (2017b).
174 | (Des)Prazer da norma
Marcos foi em uma das festas Vale Tudo foi presenciada por mim.
Ele passou toda a primeira hora da festa do meu lado conversando
e se dizendo muito “injuriado” com a situação, porque as pessoas
que estavam ali não despertavam interesse nele. Reclamou
bastante e pelo fato de eu estar ali “fazendo pesquisa” se sentia à
vontade para “falar mal dos outros” só comigo. Marcos tem 35
anos, é branco, trabalha com Desenho Industrial, recém-divorciado,
morador da Zona Sul do Rio de Janeiro e foi ali, porque imaginava
que seria uma oportunidade de colocar o fetiche de “fazer uma
orgia” em prática aqui no Brasil, já que só tinha participado de
algumas no tempo em que morou na Europa, em Londres. Só que
o que ele chamava de “perfil baixa renda” das pessoas presentes o
“desanimou”. Apesar das reclamações e comentários irônicos sobre
os outros participantes, Marcos não foi embora. Não demorou muito,
diminuiu as reclamações e piadas e se deixava ser tocado e não se
afastava nem repelia as tentativas de aproximação dos outros. Pelo
restante da festa, a cada vez que o reencontrava, o via em alguma
interação sexual, com duas ou mais pessoas. Em uma específica (que
concentrava uma grande quantidade de gente) ele percebeu a minha
presença e me chamou com um sorriso. Estava nu, agachado em uma
cama das suítes, segurando a sunga na mão, enquanto três rapazes
se revezavam para penetrá-lo (dois deles inclusive já tinha sido alvo
das piadas de Marcos). Essa ação era o centro das atenções naquele
momento na suíte atraindo muitas pessoas que também buscavam
participar. Quando me aproximei, Marcos fez questão de me dar um
abraço, mesmo não saindo da posição para ser penetrado. Estava
bastante suado, com muitas marcas de mordida e arranhões pela
pele. “Tô aproveitando”, me falou. Conversando antes do final da
festa me disse que ainda achava a “putaria” na Europa muito melhor
(não sendo exato se melhor nas práticas ou no público), porém disse
ter “curtido bastante a tarde”. Marcos continuou a ir a várias edições
da festa, como pude acompanhar, apesar de eventualmente ainda
criticar alguns participantes.
Um segundo exemplo foi uma discussão presenciada por mim
na recepção de uma das festas. Quando cheguei havia um tumulto
na entrada, porque dois homens que chegaram juntos pediram para
conhecer o evento e após o passeio pela casa, desistiram da entrada
alegando que só tinha gente feia. Um dos organizadores discursava
irritado aos presentes, após a saída dos dois:
Desejo | 179
Quero deixar uma coisa bem clara aqui: suruba, orgia, não é lugar
para encontrar príncipe encantado, nem ver corpo, quem gosta
de corpo é IML. Suruba é para ver pirocas e bundas, foder, chupar,
dar e comer, sacou? Tem que vir disposto à putaria. Quem quiser
ver cara que vá para boate gay, tem várias por aí (vendo o sinal
de consentimento dos presentes continuou) gente, quem vai para
suruba para ver cara? Por isso que adoro homens feios. Eles quando
pegam...nossa! Fodem gostoso! ‘As bonitas’ só fodem com espelho,
se pudessem se comiam! (com as risadas dos presentes concluiu)
porque em uma orgia não tem que rolar isso. Tem sim, que ver
picas e rabos gostosos. A festa é pra foder e rolar uma amizade sem
cobranças sentimentais e sexuais. Entendem, né?
12
Como explica Gregori: “Os tensores libidinais, expressão que empregou
[Perlongher], são resultantes da noção de que o desejo é feito daquilo que desafia,
que arrisca e que assinala a diferença. O que essa sugestão implica é que os
marcadores sociais de diferença – e entre eles o gênero, a idade, classe e status, cor/
raça – que operam como eixos na configuração das posições desiguais, em relações
de abuso, também atuam na configuração daquilo que proporciona prazer. As
hierarquias, as normas e proibições formam o repertório para o erotismo, a partir
de todo um esforço de transgressão” (Gregori, 2010, p. 5).
180 | (Des)Prazer da norma
À fim de concluir
Lorena Mochel1
1
Lorena Mochel é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Para preservar a identidade das(os) interlocutoras(es) e estabelecimentos
comerciais em questão, os nomes divulgados são fictícios.
184 | (Des)Prazer da norma
3
A ocupação militar do Complexo do Alemão ocorreu em novembro de 2010 pelas
forças armadas do Estado do Rio de Janeiro e ficou caracterizada como uma das
mais violentas da história em favelas cariocas. Além da ostensiva presença policial
nos territórios ocupados, o controle estatal também possui como proposta atingir
objetivos baseados no programa “polícia de proximidade”, sugerindo a “promoção
de cidadania, desenvolvimento urbano, social e econômico, além da integração
plena dessas áreas ao conjunto da cidade” (Fonte: Programa Rio+Social. Disponível
em: http://www.riomaissocial.org/programa/ Acesso em 22 set. 2013).
4
Meio de transporte inaugurado no ano de 2011, pouco antes da instalação das
UPPs.
5
Fonte: http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20130121.
html. Acesso em 23 fev. 2014.
6
Dados do Censo, 2010.
Desejo | 187
7
No período que precede o recorte analítico da pesquisa até a escrita deste artigo,
o Complexo do Alemão passou por diversas mudanças. Os confrontos policiais
aumentaram e a visibilidade midiática de prosperidade econômica que encontrei
entre 2013 e 2014 foi substituída por um cenário cada vez mais agudo de violência,
com altos índices de mortalidade entre moradores, culminando em denúncias sobre
as políticas de Estado que partiram, principalmente, de veículos midiáticos locais.
Entre as mortes que alcançaram maior visibilidade, está a do menino Eduardo de
Jesus Ferreira, em abril de 2015, que foi atingido por um tiro de fuzil disparado por
policiais enquanto brincava na porta de casa.
188 | (Des)Prazer da norma
8
Cápsulas em formato redondo ou oval que contêm óleos de consistência
gelatinosa, na maioria perfumados e indicados para inserção na vagina ou ânus
antes da penetração. Inicialmente concebido para uso sobre a pele após o banho,
elas acabaram sendo incorporadas pelo mercado erótico com a sugestão de
proporcionar um efeito lubrificante na região genital.
9
Filme nacional exibido em duas edições (2010 e 2012), protagonizado por Ingrid
Guimarães. Para uma análise mais aprofundada das representações da mulher
“moderna” como alvo das estratégias do mercado erótico contemporâneo, ver: Reis,
Lorena Mochel (2014).
10
Estimuladores em formato cônico com base mais larga. Podem ser encontrados
em silicone ou látex.
Desejo | 189
11
Este termo é utilizado pelo mercado de vestuário feminino para se referir a
modelos que vestem tamanhos a partir do 46, mas não há consenso sobre quais
seriam os números limites que agrupariam este nicho de consumidoras.
190 | (Des)Prazer da norma
12
A autora sistematiza os modelos de lojas que encontrou em sua pesquisa no eixo
Rio e São Paulo entre: lojas do “centrão”, organizadas para um público popular e por
empreendedores, em sua maioria homens, de estratos mais baixos de classe média;
sex shops de bairro, voltados ao público familiar e feminino, majoritariamente
organizados por mulheres; e, finalmente, boutiques eróticas, localizadas em
shoppings e áreas mais valorizadas da cidade, voltadas ao público feminino com
maior poder aquisitivo (Gregori, 2010).
Desejo | 191
13
Ver Gregori, 2010.
Desejo | 193
14
A dimensão sobre a frequência de consumidoras evangélicas à loja também
pôde contar com o auxílio de um questionário individual, fechado e anônimo,
aplicado entre as consumidoras da loja durante o período de outubro e novembro
de 2013. Seguindo a sugestão de Cíntia, formulamos a pergunta sobre religião com
as seguintes opções: “católica”, “evangélica”, “sem religião” e “outras”, esta última
com espaço adicional para possíveis definições. As fichas foram preenchidas após
cada atendimento e depositadas em uma urna, contabilizando que metade das
consumidoras se declarou evangélica.
194 | (Des)Prazer da norma
15
Herdeiros dos estudos divulgados pelo Relatório Kinsey, suas pesquisas realizadas
nos anos 1960 migram os interesses científicos do prazer de sexualidades
periféricas – preponderantes na primeira sexologia do início do século XX e também
nos estudos de Alfred Kinsey – para o prazer do casal heterossexual.
196 | (Des)Prazer da norma
16
Feitos em material de borracha, são reguláveis para ser acoplados ao pênis e
acompanhavam minúsculos estimuladores vibratórios para o clitóris, recomendados
para a penetração pênis-vagina.
Desejo | 197
bloqueia, ou não volta mais ou vai falar daquela maneira que você
tá conversando, sabe? (Treinamento de uma vendedora. Diário de
campo, julho de 2013).
17
A temática do sexo anal também esteve presente nas narrativas de vendedoras
de lojas de produtos eróticos entrevistadas em Curitiba para a pesquisa de Anelise
Alcântara (2013), indicando que este possa fazer parte do repertório de códigos
compartilhados pelo mercado erótico mais amplo. A autora indica que discursos
semelhantes aos significados sobre a barganha, recompensa e merecimento dos
companheiros se destacam para reafirmar a apropriação desta prática no repertório
de consumo feminino.
198 | (Des)Prazer da norma
18
Também conhecidas como revendedoras de produtos eróticos, este é o mesmo
filão explorado pela venda por catálogos, a exemplo de empresas nacionais como
Avon e Natura. 38 consultoras atuavam na Sensualidade Carioca e recebiam 25%
de comissão do total de produtos que revendiam. Grande parte era heterossexual,
casada e residia no próprio Complexo do Alemão.
19
O modelo original é do ECC, sigla para o Encontro de Casais com Cristo, um
dos serviços mais antigos da Igreja Católica e que funciona em mais de 200
arquidioceses brasileiras desde a década de 1970, segundo dados do Conselho
Nacional dos Encontros de Casais com Cristo. Uma das referências mais citadas
pelos fiéis evangélicos foi o curso “Casados para sempre”. Tal serviço é oferecido
em 18 estados brasileiros por uma Associação que apoia igrejas nos trabalhos de
edificação familiar e também oferece cursos para pais e mães, sexo na gravidez e
ensinamentos sobre as performances de gênero (masculinidades e feminilidades),
todos com o objetivo de proporcionar a fidelidade matrimonial entre os casais
evangélicos.
200 | (Des)Prazer da norma
é falado dentro da igreja, de que ‘você não pode isso, você não pode
aquilo, você não pode aquilo outro’.
Considerações finais
Michel Carvalho1
1
Michel Carvalho, doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós Graduação
em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ.
2
No original: “And where the words of women are crying to be heard, we must each
of us recognize our responsibility to seek those words out, to read them and share
them and examine them in their pertinence to our lives” (Lorde,1984, p. 43).
208 | (Des)Prazer da norma
3
Cada categoria era apresentada por uma “subcelebridade” diferente que subia ao
palco e entregava o troféu ao vencedor. O critério para a escolha de tais ciccerones
ainda me é obscuro – ex-assistente de palco de programa de auditório, um rapper,
um cantor de pagode, um blogueiro famoso entre adolescentes, um ator de
pornochanchada, ex-participante de reality show.
4
Indicado na categoria “Melhor Diretor” pelo filme Sonhos Eróticos Profissões – O
Motoboy, da produtora Mastro Produções.
5
Indicada na categoria “Melhor cena de orgia/gang-bang” pelo filme Cobiça: Taras
de um Fotógrafo, dirigido por Helaine Muzy, da produtora Redfire.
6
Vencedora na categoria “Melhor cena de orgia/gang-bang” pelo filme Orgia na
Piscina, da produtora BM Video.
Desejo | 209
Eu acho que vou ganhar porque quem tá bombando sou eu. Acho
que a Elisa não ganha, não. Pra entrar na Hard ela teve que tirar a
roupa pra fazer strip-tease e desfilar pra eles. Eu não quis fazer isso.
Eles podem mexer e mudar tudo. Só sei que o Sexy Hot gosta de
mim, me chamaram pro estande deles na Feira Erótica.
7
O streaming da premiação conta com mais de 64 mil visualizações (em oito de
outubro de 2018).
Desejo | 211
8
De acordo com Maurício Paletta, um dos organizadores do evento: “esse ano
recebemos 200 inscrições nas 17 categorias, que é um número ainda maior do que
ano passado. Isso mostra que cada vez mais as pessoas envolvidas na produção dos
filmes querem fazer um bom trabalho e ver seu esforço reconhecido” (“Prêmio Sexy
Hot”, 2017).
9
Este ano composto pelo roteirista Paulo Cursino, a doutora em Comunicação
Mariana Baltar, o diretor pornô Stanley Miranda e o humorista Rafinha Bastos.
10
Ver no site da produtora, disponível em: https://www.safada.tv/canal/black-
brothers/. Acesso em 08 out. 2018.
212 | (Des)Prazer da norma
per se, mas em relação a outra coisa, neste caso visões de mundo e
convenções sociais de caráter dominante.
Devido à transgressão a uma das normas mais propagadas
socialmente – aquela que prescreve a não-publicização dos atos se-
xuais –, somos compelidos a imaginar a vida e a carreira dos porns-
tars como trajetórias compostas por trabalho fácil, altos rendimen-
tos e alguma glória. Uma vez que como explicitei que tal carreira é
repleta de estigmas sociais, qual seria o “lado bom” de tal empreen-
dimento profissional?
Giovanna Bombom
1h e 30 min
Atendo em hotel ou motel
R$ 300,00 (sexo oral depende da sua higiene)
Com anal R$ 400,00
Atendo somente na Zona Sul ou Centro
Prazer garantido
(Anúncio de Giovanna Bombom replicado via
WhatsApp a possíveis clientes)
Foi uma categoria muito boa pra não divulgar nada. Uma categoria
muito importante. E eu não fiz. Fiquei desligada. Não fiz campanha,
fiquei desligada, não fiz. E elas [as atrizes vencedoras] fizeram em
rádio, fizeram vídeos, fizeram várias coisas, prometeram várias
coisas pros fãs, de ficar pelada, sei lá. E eu fiquei dormindo nisso
tudo (…) E eu também eu não entendo, amigo, porque quando o
André Garcia ganhou lá na festa, ele veio logo diretamente a mim
lá na festa, né? Olha, esse aqui é pra vingar a nossa raça, nossa cor.
Ele veio falar isso. Então quer dizer que isso rola, tá rolando lá.
Entendeu? Porque se o produtor veio com esse papo, né? Então é
porque rola racismo sim. Eu é que tô por fora na verdade.
11
No original: “As Sandage narrates in his compelling study, losers leave no records,
while winners cannot stop talking about it, and so the record of failure is ‘a hidden
history of pessimism in a culture of optimism’. This hidden history of pessimism,
a history moreover that lies quietly behind every story of success, can be told in a
number of different ways; while Sandage tells it as a shadow history of U.S. capitalism,
I tell it here as a tale of anticapitalist, queer struggle. I tell it also as a narrative about
anticolonial struggle, the refusal of legibility, and an art of unbecoming. This is a
story of art without markets, drama without a script, narrative without progress.
The queer art of failure turns on the impossible, the improbable, the unlikely, and
the unremarkable. It quietly loses, and in losing it imagines other goals for life, for
love, for art, and for being”. Tradução do autor.
Desejo | 217
12
Conforme indica Gilberto Velho (1994, p. 32): “conduta organizada para atingir
finalidades específicas”.
Embora tal análise não seja o escopo deste artigo, a astrologia aparece a todo
13
Não fica assim, não. Eu te falei o quanto a gente acha você boa, o
quanto a gente do Sexy Hot acha você boa. A programação do canal
que analisa sempre os filmes… a gente sempre fala de você. Tanto
é que a gente te chamou pra Feira Erótica. Nada do que a gente faz
é à toa. Se a gente chama você é porque a gente acha que você vai
atrair público e de fato atraiu. E a gente já falou aqui no canal: não
vamo deixar a Bombom parar de gravar porque ela é muito boa. A
gente precisa de atrizes assim como você. A gente conta com você,
com a sua dedicação. De verdade. A gente que bota os filmes na
final. A gente recebe material e coloca os filmes na final. A gente fez
questão de colocar seus filmes porque a gente realmente acha bom,
muito bom. Foca pra caramba na campanha ano que vem. A Patty
foca muito na campanha. E pela gente do canal, com certeza você
tem que ficar. Por favor, não faz isso com a gente, que você é ótima.
Não fica triste. Isso acontece. Fica tranquila, você é a cara do Sexy
Hot. Você é a cara do pornô brasileiro (Nicole, produtora do Canal
Sexy Hot).
1
Lucas Bilate é doutor do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro..
2
Barbieri (2009) explora as mudanças ensejadas pela ocupação da Cidade do
Samba. Tensões e hierarquias entre as agremiações foram reelaboradas no processo
de transferência dos antigos galpões da zona portuária do Rio de Janeiro para o
novo espaço dedicado à produção do carnaval.
3
Para Howard Becker (1977), a ideia de mundo é útil para pensar os universos que
se constituem em torno de produções artísticas. O mundo do samba, deste ponto de
224 | (Des)Prazer da norma
vista, seria nada mais do que as pessoas, organizações e grupos que produzem os
acontecimentos e objetos entendidos como produtos “do samba”. Isso implica em
dizer que há contextos vividos como singulares que envolvem a produção em que
estão engajados. Fazer carnaval é estabelecer redes de relações nas quais tanto a
produção quanto as realidades à volta ganham conotações particulares.
4
O carnaval é uma maneira de estar na história, um conhecimento de tempo. O ciclo
anual do desfile (Cavalcanti, 1994), regimento temporal próprio ao carnaval que se
organiza em torno da produção do espetáculo, é experimentado como independente
do (apesar de relacionado ao) tempo secular. Um calendário próprio, por assim
dizer. Mais do que isto, ele é um tempo diferente, progressivo e sentido em termos
de pressão ou possessão. Ver Bilate (2017) e Cavalcanti (2015).
Desejo | 225
Um barracão
O trabalho manual
Quem chega a um barracão não passa incólume. A entrada
num espaço de tamanha proporção, ocupado esfuziantemente
por um número espantoso das mais variadas pessoas realizando
diversas e simultâneas atividades, é capaz de desafiar os sentidos
e atordoar o olhar diante da complexidade da experiência. A ação
do tempo promove uma familiarização paulatina com o universo,
e as regularidades começam a aparecer. Essas regularidades que
se impõem aos olhos do observador são, antes de tudo, ilusões,
criadas por uma tentativa de ordenação que está primordial e
literalmente nos olhos de quem a vê. No entanto, é possível levá-las
ao escrutínio alheio e ao crivo da interação para então verificar se
essas organizações fazem sentido.
A ordenação ou convenção assim organizada guarda sempre
uma armadilha: a confusão entre os olhares de quem observa e de
quem é observado. Procurar explicitar as convenções que acreditamos
dar sentido a experiências em quaisquer contextos é, assim, uma
tarefa complexa. A dificuldade é agravada por outra característica.
A ideia de convenção supõe um compartilhamento de sentidos; é,
por assim dizer, simbólica. Considerando a argumentação de autores
como Strathern (2006) e Sahlins (2008), é preciso lembrar que todo
compartilhamento é inevitavelmente contextual e contingencial. Isto
significa que determinada compreensão pode fazer sentido entre
Desejo | 229
5
Esta divisão é claramente insuficiente e reducionista, já que a proposta a ser
defendida aqui caminha para uma diluição dessa oposição. Optei por esses termos
aqui apenas por exprimirem uma alusão às dimensões “simbólica” (social e
compartilhada) e “psicológica”.
230 | (Des)Prazer da norma
O fazer e a subjetividade
6
Meu contato com essa bibliografia decorreu de conversas com Raphael Bispo, a
quem agradeço.
Desejo | 233
7
Um apresentador de quadra ou mestre de cerimônias é um dos personagens das
escolas de samba. Nas quadras eles desempenham a função de anunciar sambas, a
presença de convidados e fazer comunicados aos presentes. Alguns desenvolvem
uma maneira particular de realizar essas atividades, com “cacos” e frases de efeito.
8
Incluo-me porque sou ritmista de baterias de escolas de samba. Minha inserção
nesses universos foi alvo de reflexões (Bilate, 2017).
9
Esta perspectiva tem como foco uma investigação integradora e concatenada das
experiências. Neste sentido, pensar o trabalho manual seria também compreender
as maneiras pelas quais os sujeitos se conformam através destas vivências.
234 | (Des)Prazer da norma
10
Falar em consciência e inconsciência não é propriamente adequado. Desejo
exprimir apenas que esta relação entre pessoa e material é construída de maneira
específica no trabalho manual. Passa-se por um processo de elaboração dessa
fronteira que envolve um borramento.
11
Este aparente paradoxo está pulsante nos escritos de Merleau-Ponty a respeito
da sua proposta para entendimento do corpo. O enigma, diz ele, “(…) consiste em
meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível (…) ele se vê vidente, ele se toca
tocante” (Merleau-Ponty, 2004, p. 19). O toque nos conscientiza da tatibilidade e ao
mesmo tempo a naturaliza, tornando-a inconsciente.
Desejo | 235
mais útil. Até mesmo as técnicas vistas como mais aprendidas que
naturais devem ser analisadas sob o ponto de vista “total”: modos
de cortar tecidos, colar paetês, soldar vigas de ferro ou serrar
placas de madeira têm assim dimensões psicológicas. Atos técnicos
falam dos corpos, das sociedades e das noções de pessoa que se
constroem neles.
É possível dizer, portanto, que os trabalhos manuais em um
barracão de escola de samba estão construindo pessoas. Ou ainda
que noções de pessoa estão em processos de construção em relação
com as atividades desempenhadas. Esta coordenação passa pelo
uso dos materiais e ferramentas. O material contamina a pessoa,
assim como a pessoa contamina seu material de trabalho. Temos, a
princípio, uma maior elaboração consciente em relação ao segundo
processo. A ideia de autoria, por exemplo, se baseia na noção de que
imprimimos algo nosso, com nosso trabalho, a uma matéria. Já o
primeiro vínculo não parece tão enfatizado, de modo que tendemos
a obliterar o quanto os materiais nos contagiam com o trabalho.
Consequentemente, somos levados a pensar a respeito
do papel que os diversos materiais utilizados nos trabalhos
desempenhados num barracão exercem sobre as subjetividades dos
trabalhadores. É neste sentido que é possível falar em processos
de construção de gêneros em relação com madeiras, ferros, gesso,
plumas e espelhos. Na fabricação de vidros (exemplo usado por
Sennett), o trabalho passa por uma continuidade entre carne e
vidro. O artífice se deixaria absorver pelo material como um fim
em si mesmo, experiência que, para Merleau-Ponty (2004), é “o
ser como coisa”. A matéria-prima do trabalho não é, no entanto,
neutra. Convencionadas e simbolizadas, podendo ser carregadas de
potencial generificante, elas conformam subjetividades. Não apenas
os materiais que servem ao uso do trabalhador se relacionam com
ele mais substancialmente, também as ferramentas utilizadas se
incluem nesses processos.
Aqui a relação entre forma e conteúdo parece mais relevante.
É preciso compreender as ferramentas a partir desta relação; cada
instrumento não é apenas “o que ele faz”, mas também “o corpo que o
desempenha”. A utilização de instrumentos de trabalho num barracão
não ocorre de forma menos plural. Serralheiros empunham suas
ferramentas de corte mecânicas ou automáticas, ferreiros estalam
suas soldas, escultores cortam e desgastam placas de isopor com os
236 | (Des)Prazer da norma
12
Em minha dissertação de mestrado, explorei conexões entre pessoas e objetos.
Tratando das construções de gênero entre ritmistas de baterias de escolas de
samba, procurei ressaltar a proposta de que noções de gêneros e classe social, por
exemplo, eram produzidas em relação com os instrumentos musicais.
Desejo | 237
Portal Mágico
Deve-se compreender a construção do espaço do barracão
como complexo agente e componente nos processos de formação
das subjetividades dos trabalhadores. Como seria possível abordar
processos de construção de gêneros e sexualidades sem atentar
para as relações com o espaço? Afinal de contas, se o trabalho de
adereçamento relaciona pessoas a materiais, técnicas e ferramentas,
é preciso considerar também as conexões entre trabalho e “ambiente”.
Para isso usaremos uma ideia sugerida por um dos carnavalescos, a
238 | (Des)Prazer da norma
13
Isto também está relacionado ao perfil desses trabalhadores (em geral, rapazes
de 17 a 30 anos). São geralmente pessoas que precisam se deslocar por muitas
horas até chegar à cidade do samba e, como o trabalho pode começar muito cedo e
terminar tarde, acabam preferindo dormir nos locais de trabalho. Os horários não
são muito fixos porque dependem da produtividade e de uma série de imprevistos
aos quais eles estão sujeitos (como a falta de material, mudanças em fantasias e
alegorias, entre outros); dependem também, em última instância, da liberação ou
não pelo “chefe da bancada” que pode solicitar que eles façam “serões” para adiantar
o trabalho.
Desejo | 239
aguento mais você” e “quero que este inferno acabe”, ouvidos mais de
uma vez nos meses que antecedem a festa. Esta rotina avassaladora
de deslocamentos espaciais e temporais imprime modos particulares
de experiências.
Essa atmosfera inebriante possibilita a construção de vínculos
específicos. A comparação entre essas relações e a constituição de
uma família é recorrente, como podemos constatar nas observações
de Cavalcanti (1994, p. 179): “sua equipe era como uma ‘família que
come, dorme, almoça junto’”. Sabemos que a comensalidade pode
ser encarada como um rito de agregação. Van Gennep (2011, p.
43) sugere que o ato de comer e beber em conjunto seja “de união
propriamente material”, o que não só nos leva a pensar essa atividade
como possibilidade simbólica de produção de uma coletividade, mas
alarga essa perspectiva. Desse ponto de vista não é arriscado dizer
que a comensalidade elabora fortemente um dualismo intensamente
presente entre material e imaterial. Ela conecta esses âmbitos fazendo
com que a agregação no sentido imaterial seja realizada junto, com e
por meio da experiência material, sendo, ao fim, impossível dissociar
essas esferas na experiência. Como modo de produção desse coletivo,
que ganha às vezes tons de “família”, a atividade de comer e beber em
conjunto se mostra presente e eficaz no ambiente dos barracões.
Este regime de atividades diárias que vai desde o momento
em que se levantam até a hora em que vão dormir (ou ficar acordados)
é uma força rítmica avassaladora capaz de produzir laços intensos.
Essa pujança do cotidiano de trabalho em um barracão, aliada à
potência que atividades diárias como comer e dormir exercem
quando praticadas em conjunto, leva não só às relações intensas.
A própria perspectiva da experiência se torna marcada por essas
dinâmicas. Trabalhar em um barracão leva a tamanha contaminação
pelos ritmos, cheiros, formas, cores, materiais, pessoas, horários,
palavras, músicas, e por uma infinidade de outras informações, que
faz com que aquela vivência seja percebida como totalizante. Talvez
por isso esse trabalho “vicie”. Tanto mais isso acontece quanto o
próprio barracão for regido mais ou menos uniformemente.14
Um colorido que tinge a ideia de magia é a percepção
14
Essa diferença ficou evidente para mim na medida em que frequentei dois espaços
com regimes de trabalho diferentes. Em Bilate (2017) exploro consequências que
essas diferenças podem ensejar.
240 | (Des)Prazer da norma
15
É fundamental ressaltar que a agremiação na qual Mayara trabalhava enfatiza
o caráter “familiar”. Certamente esse caráter agrega tons especiais às vivências
relacionadas ao trabalho nesse ambiente. Um dos principais “slogans” ou
“gritos” (como costumam se chamar em escolas de samba essas frases de efeito
que caracterizam a identidade da agremiação) da escola em questão exalta
essa característica: “a família Beija-Flor te ama”. Outro “slogan” derivado deste
homenageia o presidente de honra e patrono da Escola: “alô papai, a família Beija-
Flor te ama”.
16
A relação desses rapazes com as religiões e cultos afro-brasileiros é intensa.
Muitos deles são “do santo” e os assuntos sobre oferendas, rituais, orixás e
entidades eram frequentes. Samir certa vez pediu que eu assistisse a um vídeo em
seu celular, no qual ele fazia uma apresentação pública no Dia da Consciência Negra
dançando “para Oxossi”, seu orixá. Ele mesmo, além de trabalhar, dançava como
passista em duas agremiações. Em um dos barracões, por exemplo, havia santos
e estátuas espalhados por quase todo o lugar. Muitas delas tinham oferendas aos
seus pés e a maior delas, a de São Jorge (padroeiro da escola), media mais de três
metros de altura.
17
Creio ser importante salientar que estes termos eram utilizados largamente nos
ambientes dos barracões sem, entretanto, deixar explícita alguma conotação de
violência verbal – até porque estas palavras eram majoritariamente empregadas de
242 | (Des)Prazer da norma
18
Creio ser importante dizer que Xanda era a única mulher naquela equipe em que
trabalhavam sete pessoas. Esse padrão tende a se repetir, havendo poucas mulheres
como aderecistas.
Desejo | 245
19
Em outra ocasião (Bilate, 2017), elaborei as construções de convenções em torno
das categorias de “homens” e “viados” nesses contextos. Sugiro que as fronteiras
entre homens e viados sejam produzidas não apenas para diferenciá-los, mas
principalmente para aproximá-los.
246 | (Des)Prazer da norma
Nathanael Araujo1
Introdução
1
Mestre em Ciências Sociais pelo PPGCS da UFRRJ. Atualmente é doutorando em
Antropologia Social pelo PPGAS da UNICAMP. Pesquisador do Núcleo de Estudos
de Gênero PAGU e do Ateliê de Produção Simbólica e Antropologia. Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
2
Para manter o texto mais fluído, adoto a grafia da palavra “Editora” com inicial em
letra maiúscula para me referir a uma empresa cultural e “editora” com letra inicial
em minúsculo para me referir à profissão.
248 | (Des)Prazer da norma
Noite de lançamento
3
Localizado na Rua Visconde de Ouro Preto, número 62, Zona Sul do Rio de Janeiro.
4
Em geral, após a exibição dos filmes, é frequente a ocorrência de debates com
atores e diretores envolvidos nas produções fílmicas, o que lhes permitia apresentar
seus processos criativos e suscitar discussões sobre temas presentes na dinâmica
social.
5
Em minha dissertação, me detive na percepção da existência de um discurso
promovido por editores e autores que se afirmavam LGBTs (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais) e produtores específicos de “livros de literatura
LGBT”. A investigação tratou-se de uma etnografia da produção e circulação de obras
sob esta rubrica difundidas particularmente por Editoras criadas especificamente
para tanto, mas não apenas (Silva, 2016).
6
Embora outros termos apareçam, utilizo “literatura LGBT” por se tratar da grafia
mais adotada e difundida atualmente pelo conjunto de interlocutores abarcados
em minha pesquisa de mestrado, na qual busquei refletir também acerca dos usos
estratégicos feito destes termos seja no que se referem as suas aproximações e
englobamentos ou diferenciações por parte dos pesquisados. Ver Silva, 2016.
250 | (Des)Prazer da norma
7
Sobre a conformação dessas Editoras, ver Silva, 2016.
Desejo | 253
Escavando escrituras
cada qual para seu Estado de origem e a sua para o Rio de Janeiro a fim
de iniciar residência médica se dão sem grandes elucubrações. Era o
ponto final de uma fase repleta de desejos e fantasias imaginadas
em um momento pessoal, encerradas bruscamente pela perda de
laços sanguíneos e reflexões afetivas decorrentes, sobrepostas as de
cunho sexuais até então evidenciadas.
Ao retornar para o seu apartamento depois das obrigações
com a morte do pai e a faculdade, o jovem médico decide tomar
um longo banho quente. Crendo estar sozinho, e imerso em seus
pensamentos, o rapaz não percebe quando seu amigo mineiro
invade o banheiro e, nu, o imobiliza se utilizando de agressões
físicas e ameaças de morte. Sobre a alegação de que receberia,
enfim, o que sempre havia desejado e o que gostava, Gabriel tem sua
primeira relação sexual, aos trinta anos de idade, com outro homem.
Materializada na forma de um estupro, a cena é descrita seguida
por um desmaio, ficando submerso sobre águas “tão quente quanto
aquela em que sua mãe enfiava os frangos mortos para depená-los”
(Caldeira, 2014, pp. 25-26).
Pode-se entender a violência acometida como um mecanismo
mimético de educação moral. Este último evento soma-se aos
anteriores para reforçar processos repressivos quanto à sexualidade.
Ao extremo, a falha na imposição de um rearranjo entre desejo,
sexualidade e gênero parece desembocar no processo de sofrimento
que permitirá ao escritor do romance propor o que considera como
“processo de humanização da personagem”.
Nos dois anos subsequentes ao ocorrido, Gabriel muda-se
para o Rio de Janeiro onde consegue fazer um curso de inglês para
ir morar nos Estados Unidos a fim de esquecer o passado que o
assombrava (Caldeira, 2014, p. 27). Desembarcar no aeroporto de
Boston marca a esperança de construir novos rumos, explícitas na
“sensação daquele que acaba de nascer” (Caldeira, 2014, pp. 26-
27) e se encontra prestes a conhecer coisas novas. Balizado pela
ideia do tempo como elemento que impõe aos seres a “liberdade e
responsabilidade de sermos nós mesmos e tomarmos nossas próprias
decisões” (Caldeira, 2014, p. 19), a constituição do protagonista
enquanto pessoa parecerá vinculada a esse deslocamento territorial,
saindo do Brasil e indo morar e estudar nos Estados Unidos.8
8
Os sucessivos descolamentos territoriais do personagem de cidades pequenas
258 | (Des)Prazer da norma
para cidades cada vez maiores representam um novo contexto e situação onde a
identidade deste pode ser construída, reconstruída ou apagada em uma tentativa
de fuga à estigmatização (Guimarães, 2004, p. 63). Semelhante às análises de Eribon
(2008, p. 31), parece haver, nesta ocasião, ainda a prerrogativa de que “um dos
princípios estruturantes das subjetividades gays e lésbicas consiste em procurar os
meios de fugir da injúria e da violência, que isso costuma passar pela dissimulação
de si mesmo ou pela emigração para lugares mais clementes”.
9
Como narra Matthew, Sybille possuía uma empresa de produção de chocolates que
faliu após sucessivas crises econômicas, o que os fizeram migrar da Bélgica para os
EUA em busca do pai biológico do menino que desconhecia sua existência.
Desejo | 259
10
“Muito além da relação estabelecida pelo destino, havia uma força inexplicável que
unia Gabriel e Matthew. Na maioria das vezes, os laços que unem verdadeiramente
duas pessoas não precisam estar expostos a causas ou esclarecimentos. Eles
simplesmente existem. Ou passam a existir. Também não são necessários grandes
movimentos ou feitos para que essas relações se descortinem entre as pessoas. Às
vezes, basta um olhar, um aperto de mão, uma expectativa. Trata-se de uma energia
silenciosa e harmônica, em que qualquer explicação estaria aquém de sua real
dimensão” (Caldeira, 2014, p. 146).
11
Como na seguinte passagem: “Hoje estou prestes a completar quinze anos e vivo
bem com essa nova família, que há três anos está se desenhando à minha volta. Ainda
acordo todas as manhãs e sinto o cheiro do chocolate da minha mãe, num anuncio
de que essa saudade é uma daquelas lacunas que jamais conseguirei preencher
(...) Por outro lado, descobri um pai incrível, carinhoso, inteligente, companheiro
e leal. Um homem de sinceridade rascante e generosidade espontânea. Corajoso e
determinado naquilo que lhe parece correto e impiedoso com o que julga errado.
É uma daquelas pessoas raras que consegue, com maestria, mesclar ousadia com
um comedimento polido. Sobretudo, meu melhor amigo” (Caldeira, 2014, pp. 14-15,
grifos do autor).
260 | (Des)Prazer da norma
12
Os conflitos se darão no desejo de Christian em manter o relacionamento às
escondidas.
Desejo | 261
13
Tendo perdido subitamente seu único filho, o que os teria abalado profundamente,
se autodeclaram como “verdadeiros republicanos”, muito embora falidos e
dependentes dos negócios de Edward. Serão estes últimos os personagens
simbolicamente construídos para trazer a narrativa os “aspectos morais
conservadores”. Como no fragmento onde a tia sexagenária estigmatiza a toda a
família: “– Agora eu quero só ver... – espalmou as mãos aos céus. – Que fim terá
essa família, meu Deus? Um casal jovem que não consegue colocar filhos no mundo,
um filho marica e uma pequena vadia loira. Onde pensam que vão chegar assim?”
(Caldeira, 2014, p. 53).
14
A naturalidade com que esta lhe pergunta sobre se haveria surgido um possível
pretendente ao coração do jovem, e a assertiva deste de que sim, os faz ficar “na
cozinha por longo tempo (...) Justin relatou a Cathy todos os detalhes daquela
história que nascera sob a égide do destino, várias vezes foram às gargalhadas com
os encontros e desencontros dos dois rapazes” (Caldeira, 2014, pp. 115-116).
262 | (Des)Prazer da norma
15
Também localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.
266 | (Des)Prazer da norma
16
Venho dedicando atenção para o que denomino como o estabelecimento de
uma insígnia do primeiro, elemento que visa inaugurar um campo discursivo,
uma realidade, de modo que ser “a primeira obra”, a despeito da qualidade e das
condições históricas de sua produção, visa envolvê-la de valores mais autênticos
apenas por esta condição. Ver Silva, 2016.
17
Tal definição aparenta ter mais relação com certa instrumentação política
do termo “cultura” do que com a ideia de cultura na Antropologia, tratando-se,
portanto, menos de um conceito e mais de um instrumento de reivindicação política
e, neste sentido, volátil.
Desejo | 267
18
Informações atualizadas em maio de 2018.
270 | (Des)Prazer da norma
Carolina Castellitti1
Introdução
1
Carolina Castelliti é Doutora do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
O trabalho de campo para a dissertação foi realizado principalmente entre os meses
de fevereiro e março de 2013, na cidade de Santa Fe, Argentina. Durante esse período
realizei sete entrevistas, às quais adicionei outras quatro que tinha realizado em
2011, para minha pesquisa de graduação em Sociologia, na Universidad Nacional
del Litoral. Para obter esses contatos, comentei sobre minha pesquisa com amigos
e familiares, e expliquei que precisava entrevistar mulheres de entre 30 e 40 anos,
divorciadas ou separadas. Essas pessoas em geral contatavam amigas ou parentes,
lhes perguntavam se estariam dispostas a conversar comigo, e se elas autorizavam
me davam seu e-mail ou telefone.
3
Uma de minhas interlocutoras que via na falta de diálogo com seu marido uma das
principais causas de sua separação, referiu-se à situação da entrevista como algo
que “nunca pode ter” com ele.
276 | (Des)Prazer da norma
Susanitas e Mafaldas
4
Fonte: Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC). Disponível em: http://
www.indec.gov.ar/index.asp. Acesso em 30 mai. 2017.
5
Ao longo do texto, utilizarei aspas para indicar termos ou frases extraídas das falas
de minhas interlocutoras, ou para citações literais da bibliografia indicada.
278 | (Des)Prazer da norma
Pra mim tem a ver com uma questão de... da realidade familiar que a
gente tem. Porque se eu tivesse ido morar com ele, meu pai não teria
gostado, não teria sido a mesma coisa que se a gente se casasse. A
mesma coisa pros pais dele. A gente sente de alguma maneira que
tem uma expectativa colocada nesse lugar, entende? Pra eles não
é a mesma coisa. Mas também tem a ver com a gente, é como que
a gente já tem isso é... Sei lá, eu nunca fui muito Susanita e nunca
sonhei em me casar, não foi nunca pra mim um objetivo primordial.
Sempre estiveram colocados em outros lugares. Isso também tem a
ver com a família, ou seja, eles [nossos pais] sempre nos apoiaram
a estudar, pra que pudéssemos fazer tudo o que quiséssemos pra
nossa realização pessoal. Ou seja, sempre houve uma preocupação
pra que a gente se realizasse. Por isso eu acho que o que a gente tem
na família é bastante determinante nas decisões que a gente toma.6
6
Os trechos de entrevistas utilizados no texto foram traduzidos por mim para o
português. Agradeço ao Lucas Freire e ao André Leal pela atenciosa correção. Deixo
aqui meus agradecimentos também ao meu orientador, o professor Luiz Fernando
Dias Duarte; e às professoras Adriana Vianna, Maria Elvira Diaz-Benítez e Laura
Lowekron, pelo curso Interfaces entre gênero, violência e erotismo, ministrado
no PPGAS/MN/UFRJ em 2014. As discussões propostas durante esse curso estão
presentes na releitura que faço neste texto.
280 | (Des)Prazer da norma
7
Enquanto a ideia de “niña intelectualizada” pertence à autora (Ibid., p. 173), a
designação “menina romântica”, justificada somente nessa relação de oposição, é
minha.
Afeto | 281
8
De uso pouco frequente em português, o sentido utilizado em espanhol é
semelhante ao apontado pela Psicanálise transgeracional, como sendo “uma
configuração imaginária projetiva que é transmitida aos descendentes (ou a alguns
deles) de um modo não completamente explícito ou consciente” (Duarte, 2011, p.
16, nota 5).
282 | (Des)Prazer da norma
Essa tem que ser a temática da tua tese, é, como as mulheres, nisso
de serem fortes, ficamos atrás em nosso ponto mais forte, que é
nossa feminilidade e nosso lugar natural. Como pra gente, em
nossa vontade de ser iguais, perdemos o lugar de complemento,
entende? Eu mataria a idiota que lhe ocorreu aquilo da liberação
feminina! (...) O que acontece é que a igualdade gera concorrência.
E a gente nunca vai ser igual, ou seja, mulheres e homens, somos
coisas diferentes, então, tem que procurar a complementaridade,
isso é algo que me dou conta agora. Nós, ou seja, as mulheres,
sempre teremos um lugar de, não quero dizer superioridade, mas
mais abrangente. Porque a mãe continuará sendo você, isso não
dá pra passar pra ele, né? Ou seja, é por natureza. Então, quando
você percebe que você ocupa todo o lugar sozinha, pra que você
tem um cara do seu lado? O relacionamento se degenera, o casal.
Não porque tenha que ser uma coisa estruturada, tradicional, mas
porque a gente trabalha tanto pela igualdade que perde... Deixa de
gerar os espaços pra estar acompanhadas.
9
Segundo Figueira (1987), com o avanço da ideologia do igualitarismo e a extensão
da psicanálise, as noções de “certo” e “errado” perdem definição, instaurando-se
o reino da pluralidade de escolhas; observa-se, assim, a coexistência de mapas
diferentes e contraditórios inscritos em níveis específicos e relativamente
dissociados no interior de cada um.
288 | (Des)Prazer da norma
O processo de desconjugalização
10
Em um dos casos essa decisão teve a ver com uma migração do casal para Israel,
decisão da qual Bruna participou no começo, mas que depois se tornou para ela
insustentável, devido principalmente ao constante conflito bélico desse país.
No outro caso, foi uma “escolha” místico-espiritual do marido de Virginia, que
provocou uma forte rejeição por parte dela e o consequente distanciamento.
Afeto | 289
Eu fiquei treze anos com ele, e a gente passou por tudo, desde
morar em Buenos Aires, porque ele é de lá, depois vir pra cá. A gente
passou por tudo, perdemos trabalhos, ele ficou sem emprego e meu
empreendimento salvou nossa vida, ajudou bastante. E depois,
bom, a mudança pra cá, a gente também perdeu uma gravidez.
- Antes de Tomas?, pergunto.
- Sim, morando em Buenos Aires. A gente lutou muito, remamos11
muito, os dois. Mas não soubemos, no pessoal, eu acho que a
gente não soube resolver a tempo questões que pra mim são
transcendentais, pra que o casal e o casamento evoluam.
11
Conservo o verbo “remar” do original em espanhol, pois embora em português
a palavra não se utilize nesse sentido, seu significado literal permite entender
a metáfora aludida no uso espanhol, trabalhar em algo com grande esforço e
contínua fadiga.
290 | (Des)Prazer da norma
Érica foi, sem dúvidas, o mais extremo das várias violências que me
foram narradas. Depois daquele evento ela voltou a morar na casa da
mãe, em Santa Fe. Já tinha abandonado a faculdade de odontologia
e começou a trabalhar como secretaria em uma clínica médica.
Trabalhava muito, mas gostava disso, porque não tinha tempo para
pensar e isso lhe ajudava a “se recuperar”. O trabalho aqui funciona
como um agente do tempo que “trabalha” nas relações, no sentido de
Veena Das, permitindo que sejam reinterpretadas, reenquadradas e
as vezes até reescritas (Das, 2007, p. 87).
Através do caso de Érica é possível pensar algumas
aproximações com as “cenas e queixas” analisadas por Gregori. O
principal contraste emerge, evidentemente, da classe social, pois as
entrevistas realizadas pela autora foram com mulheres de classes
populares em sua maioria, enquanto no universo que eu pesquisei
todas as mulheres dispunham de um salário próprio e eram das
camadas médias. Esse fato definitivamente contribui para que
minhas interlocutoras tenham finalmente conseguido enfrentar
a ruptura do vínculo, diferentemente das mulheres citadas por
Gregori. No entanto, para muitas delas também “se emancipar”
implicou rever toda sua formação, suas crenças mais arraigadas e
confrontar àqueles que partilhavam desse universo de valores. Para
algumas, a separação também foi por muito tempo o “mal maior”
que só foi finalmente enfrentado quando algum componente da
estrutura familiar se viu ameaçado: no caso, os filhos. Neste sentido,
Cecilia – 38 anos, duas filhas, separada há 7 meses após nove de
casamento – comenta:
Considerações finais
Camila Fernandes1
1
Camila Fernandes é Doutora do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este artigo
é fruto da dissertação de mestrado intitulada: “Ficar com. Parentesco, Criança e
Gênero no cotidiano”. O trabalho foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF) e orientado
pelo Prof. Dout. Jair de Souza Ramos. Para esta versão do artigo, agradeço a minha
orientadora de tese, Adriana Vianna, pelas interlocuções ao longo do doutorado e as
indicações cruciais que me permitiram escrever este trabalho. Agradeço também os
comentários e críticas preciosas de María Elvira Díaz-Benítez e de Everton Rangel.
2
“Ficar com” é o termo utilizado para falar das relações e necessidades de cuidados,
neste caso, das crianças. Relações nas quais é preciso cuidar e se importar, bem
como, habitar situações de controle e vigilância. Diz respeito aos atos e gestos que
misturam o amor e o conflito, a obrigação e o prazer, o compulsório e o voluntário,
este termo foi elaborado na dissertação de mestrado (Fernandes, 2013).
298 | (Des)Prazer da norma
3
No original: “Ce temps dominant de l’horloge n’est pas adapte pour décrire le
travail dans sa complexité genrée” Tradução da autora.
300 | (Des)Prazer da norma
4
Em sua trajetória de vida, cabe descrever que Débora nunca contou com redes
de parentesco “de sangue”. Ela foi criada em um “orfanato”, como se chamavam os
antigos abrigos para crianças. Com poucas lembranças de sua família biológica,
Débora cresceu em instituições de abrigo na Cidade do Rio de Janeiro e saiu do
“orfanato” com dezoito anos de idade, após atingir a maioridade. Após sair da
instituição, ela morou em diversas favelas da Cidade até se fixar no morro do Palácio.
Quando fez 21 anos, Débora descobriu o endereço de sua mãe biológica e buscou
conhecê-la, mas os encontros não foram suficientes para estabelecer uma relação
mais próxima, de modo que Débora preferiu manter a distância.
Afeto | 301
5
Descrevo de que forma tive acesso as diferentes fases da vida de Débora, bem
como, das impressões e pontos de vista de amigos e familiares. Eu e Débora nos
conhecemos por volta do ano de 2005. Nossa relação de amizade se iniciou a partir da
convivência na creche universitária da UFF, uma vez que nossos filhos frequentavam
a mesma instituição. Pedro teve acesso a creche universitária devido a vinculação de
seu pai como aluno e minha filha tinha acesso a creche através de minha vinculação
como estudante de graduação no curso de Serviço Social. Anos depois, eu ingresso
no mestrado em Antropologia na UFF e inicio uma pesquisa sobre cuidados de
crianças. Não por acaso, pensei que a trajetória de Débora poderia fazer parte da
dissertação, fato discutido e estimulado por ela, que me apoiou sobre a importância
de contar esta história. Mais tarde, Débora foi viver em Búzios e Pedro passa a “ficar
com” o pai. Somente neste período, tive a oportunidade de conhecer Marcio e ouvir
suas narrativas sobre os cuidados com Pedro. Desta forma, o material apresentado
aqui trata de um período de sete anos, idade que a criança tinha no momento que
passou a viver com o pai. Este tempo longo de interlocução foi fundamental para
acompanhar as disputas narradas aqui, bem como ter contato com as impressões
de amigos e familiares relacionados.
302 | (Des)Prazer da norma
Nunca insistiria pra ela abortar, apesar de achar melhor, não queria
ter filhos, mas também não seria o fim do mundo levar adiante, e
no final das contas a decisão acaba sendo dela, porque ela que teria
que fazer o aborto e carregar este trauma.
6
Em seu trabalho sobre a gestão de “menoridades”, através de processos de guarda
de crianças na Justiça, Adriana Vianna analisa as situações de disputa e negociação
de responsabilidades em torno dos cuidados. Vianna percebe o lugar especial dos
chamados “bens de cuidado”, um conjunto de objetos e mercadorias que encarnam e
materializam as virtualidades dos sentimentos e intenções. A provisão e doação dos
“bens de cuidado” são indicadores de legitimidade dos “responsáveis”, ao mesmo
tempo em que exemplificam o amor e o compromisso para com o zelo de crianças,
como demonstra a autora: “todos os bens de cuidado exaustivamente listados
– berços, brinquedos, planos de saúde, pediatras particulares etc. – representam
sinais do investimento que pode ser calculado e, ao mesmo tempo, que nunca pode
Afeto | 303
8
A televisão acaba operando o cuidado da criança, uma vez que é em sua companhia
que o menino se afasta da solidão e se mantém entretido, ao mesmo tempo em que
Débora se sente menos angustiada. A ocupação onde Débora vive possui “gato de TV
a cabo” e por este motivo a criança tem acesso à rede de canais da televisão fechada.
308 | (Des)Prazer da norma
9
Sandra Unbehaun (1998) examina discursos que ressaltam a emergência de um
“novo homem” ou do sentimento de paternidade característicos da modernidade.
Neste arcabouço, supostas novidades de comportamento corroboram para um
maior engajamento de homens e cuidados, mudanças nas relações de trabalho entre
homens e mulheres seriam uma das reconfigurações mais influentes nesse sentido.
Contudo, a autora ressalta que é preciso reter o contexto no qual estas pretensas
mudanças ocorrem. Estes contextos são, em especial, o das camadas altas e médias,
no qual a escolaridade, o compartilhamento de tarefas domésticas, as teorias acerca
da pedagogia e os valores individualistas obram para uma perspectiva igualitária.
Ainda assim é possível ver engajamentos masculinos nos cuidados com as crianças
nas classes subalternas. Na dissertação de mestrado pude acompanhar homens
pobres que por diferentes razões vivenciaram proximidades cotidianas com seus
filhos (Fernandes, 2011).
10
Sobre paternidade, ausência e reconhecimento dos filhos ver o trabalho precioso
de Sabrina Finamori (2018).
Afeto | 311
11
Dilemas acerca do gênero da distância podem ser vistos também no trabalho de
Everton Rangel, que trata dos deslocamentos entre pessoas e familiares em um
plano internacional e multi-situado. Rangel problematiza, por exemplo, como a
saída da sua mãe para trabalhar em uma grande empresa de entretenimento, em um
circo estadunidense, mobiliza diferentes justificativas morais nas redes de cuidado
e trabalho. Sua pesquisa mostra como se dá o cuidado dos homens a “distância”, e os
rebatimentos sociais desses deslocamentos na rede familiar (Rangel, 2016).
312 | (Des)Prazer da norma
12
Os valores pleiteados e pagos através das batalhas por pensões alimentícias
fazem parte de um segredo de justiça das nossas administrações de Estado, tais
disputas revelam um grande desequilíbrio de poder na partilha dos cuidados,
sobre este assunto ver o artigo de Camila Salmazio: https://www.brasildefato.com.
br/2018/05/16/pensoes-alimenticias-refletem-machismo-e-nao-consideram-
necessidades-reais-dos-filhos/
Afeto | 313
13
Sobre o imaginário do “abandono” materno ver os trabalhos de Lima (2011),
Fonseca (2012) e Fernandes (2017).
14
Em artigo influente, a autora sustenta que a formulação de Claude Lévi-
Strauss referente à troca de mulheres é problemática porque obscurece relações
subjacentes aos sistemas de parentesco. Na proposição de Rubin, a troca ultrapassa
o aspecto do parentesco (tomado como expressão simbólica de interditos,
convenções e obrigações) e contém relações entre homens e mulheres traçadas
por um inexorável aspecto generificado. Para Rubin, a troca de mulheres engendra
um conjunto de relações relativas às sexualidades, nomes, linhagens, direitos e
sujeitos que dizem respeito a homens, mulheres e crianças em suas relações de
poder. Sendo assim, a troca de mulheres não diz “somente” sobre o parentesco, mas
implica na generificação de relações. Sobre este derivado se justapõe as convenções
314 | (Des)Prazer da norma
Batalhas para ter tempo: uma disputa entre o “tempo pra mim”
e o tempo de “correr atrás”
15
Sobre trabalho feminino e cuidado de crianças ver os trabalhos de Bila Sorj (2013,
2014).
Afeto | 317
16
Atividade que mistura trabalho e amor, embora não seja feito somente de lazer e
prazer, uma vez que o campo dos cuidados é um território feito de ambivalências,
que conjuga doação e obrigação, vontade e repulsa, afeto e hesitações. Sobre tais
ambivalências ver também a coletânea: “Cuidado e cuidadoras: as várias faces do
trabalho do care”, organizada por Helena Hirata e Nadya Araujo Guimarães (2012).
318 | (Des)Prazer da norma
17
Ressalto que neste artigo me detive sobre o aspecto da generificação do tempo do
cuidado, entretanto na tese de doutorado (Fernandes, 2017), analiso o “abandono”
materno sobre outras perspectivas, a exemplo da discussão sobre maternidade
negada e condições de exercício da parentalidade em contextos e sujeitos
racializados.
Afeto | 319
Carolina Maia1
1
Carolina Maia é doutora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
322 | (Des)Prazer da norma
2
Em minha dissertação (Maia, 2017), abordo a história do grupo mais alongadamente,
descrevendo em maior detalhe suas publicações impressas e sua circulação.
Afeto | 323
3
A autora faz referência ao seguinte trabalho da filósofa: Butler, Judith. 1991.
“Imitation and gender insubordination”. In: Diana Fuss (ed.), Inside/Out: Lesbian
Theories, Gay Theories, New York: Routledge.
326 | (Des)Prazer da norma
(...) pois eu não tinha o pensamento que tenho hoje. Se tivesse, não
teria me deixado envolver por essa “minha amiga”. Com minha
inexperiência me deixei envolver facilmente, e esse foi meu erro.
Na época, ela era bem mais experiente, me conquistou e eu me
apaixonei. Hoje, tenho certeza que ela não gostava de mim, pelo
menos não do jeito que eu era louca por ela (Um Outro Olhar, n. 6,
1989, p. 3).
Era um quadro de angústia, medo e repulsa. Não podia crer nos fatos
que meu próprio desejo natural criava […]
Quando estava junto das mulheres […] ligava-me a elas com uma
intensidade muito maior, e era isso que, a priori, me levava à angústia.
Como podia sentir tanta atração por algo tão desconhecido (até
então nunca tinha visto ou ouvido falar deste tipo de relacionamento)
e que não se enquadrava, em hipótese alguma, no molde “papai-
mamãe” que havia em minha cabeça?
4
Este formato já estava presente no boletim ChanaComChana, também editado pelo
GALF. A seção Troca-Cartas passa a receber este nome a partir da edição nº 7 deste
boletim, datada de abril de 1985.
332 | (Des)Prazer da norma
5
Na dissertação (Maia, 2017), menciono dois exemplos disso que chamo aqui de
uso analógico do racismo. Em síntese, acredito que o recurso à analogia indica uma
concepção de que o racismo já se configuraria como um tipo de preconceito mais
reconhecido como tal (cabe lembrar que a Constituição Federal de 1988 veda a
discriminação por cor, e que a tipificação do racismo enquanto crime ocorreu em
1990) e que, portanto, poderia ser utilizado para demonstrar como outras formas
de discriminação seriam igualmente condenáveis.
334 | (Des)Prazer da norma
Naná Mendonça
Cx. Postal 483 – Recife – PE – CEP 50000
Coloca-se à disposição para trocar correspondências com mulheres
lésbicas que estejam necessitando de uma “força”, do apoio moral e
do afeto de uma amiga.
Agora a prova de fogo sou eu quem tenho que dar […] Vou trocar
a medicina por um trabalho burocrático e, em compensação, vou
anular a distância que nos separa. Espero que ela saiba compreender
e valorizar a extensão e a profundidade dessa minha renúncia […]
Dando um balanço da minha vida não encontro grandes realizações,
feitos brilhantes, apenas encontros feitos e ações movidas por
amor. Sim, apesar da minha pobreza e mediocridade, reconheço
que sempre me esforcei para que o amor lésbico, em minha vida,
fosse realmente maravilhoso (Um Outro Olhar, nº 4, pp. 4-5).
6
Uma versão reeditada e resumida desta história seria publicada na edição nº 34
da revista acadêmica Feminist Review (1990), em seu dossiê sobre “lesbianismo
internacional”. Em sua colaboração, vertida para o inglês por Marlene Rodrigues,
Naná Mendonça descreve sua passagem por Ariquemes, o retorno a Pernambuco
e a mudança motivada pela possibilidade de estar mais perto da mulher amada:
“troquei meus instrumentos médicos por uma máquina calculadora. Em Rondônia
eu era a chefe de um centro de saúde, aqui sou chefe de um centro de coleta de
impostos. É um emprego sem aventuras ou poesia, mas paga bem”. A “prova de
fogo”, aqui, implica um conjunto de renúncias e perdas ligadas à vida profissional,
justificadas por uma concepção idealizada de parceria afetivo-sexual.
7
Cabe notar que o próprio periódico figura neste conto, na cena em que Nina
340 | (Des)Prazer da norma
vai à casa de Ziza pela primeira vez. A visão do “boletim do grupo” desencadeia
a compreensão de que ambas se interessavam por mulheres, tornando o romance
possível.
Afeto | 341
afetiva, sexual –, que de outra forma seria tido como inviável, por
desviar-se das gramáticas sexuais e afetivas da heterossexualidade.
A intensidade do sentimento legitima-o, torna-o real, maior do que
a paixão, em contextos em que este desejo, combatido e negado
pelas pressões e violências da heteronormatividade, pode parecer
estar aquém ou além de configurar-se enquanto amor – “um tipo de
amor que captura, convence, vicia e do qual não se pode fugir mas, ao
contrário, deve-se assumi-lo contra tudo e contra todos” (p. 160). É a
chave do amor que explica as decisões tomadas por Naná: nas frases
que encerram seu balanço pessoal, as “ações movidas por amor”
estão acima das “grandes realizações e feitos brilhantes”.
Discutindo a construção de narrativas em e a partir de
entrevistas, Gialdino (2016, p. 17, tradução minha) comenta como
a narração é uma “atividade social e um meio fundamental de
dar sentido e forma à experiência”. Ao narrar, os sujeitos têm a
“oportunidade de ordenar acontecimentos antes desconexos, e criar
continuidades entre os distintos momentos biográficos”. A autora, no
prólogo a uma pesquisa de Ernesto Meccia, refere-se especificamente
a narrativas e narrações elaboradas em relação a momentos mais
distantes no passado, mas acredito que tal passagem sirva para
pensar o relato de Naná: na narrativa, o novo relacionamento
estabelece uma conexão entre Ariquemes e Recife, justificando o
retorno. Meccia ressalta como as narrativas sempre envolvem uma
dimensão valorativa, atrelada às interpretações que permitem
compreender o mundo, as relações com as outras pessoas e a própria
experiência: “sem valor não há narração, contamos para dar nossa
posição acerca de algo, estejamos ou não conscientes disso” (2016,
p. 41). O narrador também se constrói no narrado: narra e acredita
no que narra como se assim houvesse sido; dá provas de ser o que
narra e espera ser compreendido como tal. Naná narra a si mesma
e se constrói nesta narrativa, nela construindo as interpretações
que ordenam a elaboração que ela faz de sua própria história. Seu
“balanço” é, ao mesmo tempo, uma despedida de Rondônia, um
pequeno memorial da satisfação que ela teve ao desempenhar a
função de médica e coordenadora em uma região “carente”, e um
posicionamento valorativo que coloca como positiva a decisão de
renunciar a algo em nome do amor por outra mulher.
Em um texto na seção “Vivências” da 6ª edição do periódico
(1989), o amor correspondido e realizado com outra mulher torna
342 | (Des)Prazer da norma
Oswaldo Zampiroli1
Introdução
1
Oswaldo Zampiroli é doutorando do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Todos os nomes são fictícios, a fim de preservar a identidade de cada uma delas.
346 | (Des)Prazer da norma
3
No que diz respeito a termos como “cisgênero” ou apenas “cis”, todas as minhas
interlocutoras sabem, reconhecem e usam de vez em quando o termo (umas mais e
outras menos). Já as “mulheres cisgêneros” são chamadas de “mulher”, “mulher de
verdade”, “mulher biológica”, “mulher não-trans”, “amapô” ou “amapoa”, “racha” ou
“rachada”. De modo geral, quando elas falavam sobre seus relacionamentos afetivos,
usavam apenas “homem”. Em algumas ocasiões, mais comumente quando falavam de
política e militância, usavam a expressão “homem cis”. Como neste artigo a dimensão
que queremos pôr em relevo da vida dessas mulheres é a da conjugalidade, utilizarei
apenas “homem” para me referir a seus interesses amorosos e namorados. Sendo
assim, quando eu for me referir à “mulher cisgênero”, utilizarei o termo “mulher
não-trans” pela mesma razão.
Afeto | 347
4
O uso da expressão “ideologia individualista” em detrimento de “individualismo”
foi escolhido tendo em vista a constatação cuidadosa de Dumont de que não há
sociedades plenamente individualistas, uma vez que ele não entende como possível
que a humanidade se desvencilhe totalmente de suas tendências a hierarquizar
(Dumont, 1992; 1985).
5
A ideia de tradicional aqui também caminha pelo sentido dado por Dumont por
pensar o tradicional vinculado à hierarquia. Assim, se a tendência a hierarquizar é
perene, o tradicional é tão moderno quanto o individualismo. (Dumont, 1992).
348 | (Des)Prazer da norma
6
Chamo os tensionadores de negociação de “dobra do cuidado e controle” (para
mais informações, ver Zampiroli, 2018).
Afeto | 351
7
Ver também Kullick (2008), Silva (2007), Bento (2006) e Zampiroli (2017).
Afeto | 353
8
Ver o conceito “habitar a norma” em Mahmood (2005).
354 | (Des)Prazer da norma
Aí você sai para curtir a balada, disposta a viver o que vier e ser
feliz, com responsabilidade. E você reúne bons amigos, bebe,
dança, e quando pinta aquele gatinho, dá uma fugidinha para
curtir, até rola uma boa química, mas vocês não ficam a noite toda,
acaba rolando outro, e outro... A verdade, que na balada é isso
9
Os textos de Blog e Facebook estão reproduzidos sem alterações em gramática.
356 | (Des)Prazer da norma
Eu entendo que nem tudo é amor, mas queria que o sexo viesse
com uma amizade, e não apenas um descarregar de necessidade.
Afeto | 357
Eu juro que achei que isso fosse demorar meses para acontecer, mas
aprendi a ser o SUFICIENTE pra mim mesma e não preciso de mais
nada. Não preciso de ninguém pra dizer que me ama. Não preciso
de ninguém pra dizer que sente saudades. Não preciso de ninguém
pra dizer que sou linda. Só preciso de um espelho, para que assim
eu possa me olhar todos os dias e dizer essas coisas olhando nos
meus próprios olhos.
Costurando Sonhos
Alice, perseguindo sua carreira de atriz, revelou-me a
felicidade de ver sua mãe um dia sentada na plateia para prestigiá-
la. Ela anda fazendo circuito de peças pelo Rio de Janeiro. Mas a
presença de sua mãe (que a havia expulsado de casa no início de
sua transição) veio como uma possibilidade de reestabelecimento de
vínculo. “Realizei meu sonho em ver minha mãe na plateia […] Agora
meu sonho é fazer uma novela”.
Ana, no dia do seu aniversário em junho de 2016, escreveu:
10
No original: “to acknowledge our dreams is to sometimes acknowledge the
distance between those dreams and our present situation”. Tradução do autor.
364 | (Des)Prazer da norma
11
No original: “it is our dreams that point the way to freedom”. Tradução do autor.
12
No original: “Acknowledged, our dreams can shape the realities of our future, if we
arm them with the hard work and scrutiny of now”. Tradução do autor.
Afeto | 365
Conclusão
Everton Rangel1
1
Everton Rangel é doutorando do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Quando iniciei essa pesquisa estava em jogo a possibilidade de compreender o
que tornou os corpos de brasileiras e brasileiros, profissionais em dança, rentável
em termos simbólicos e econômicos nesse segmento do showbiz. Por que o
Brasil?, indagava. Somente pude desdobrar esta pergunta preliminar em outras
porque os meus canais de acesso a essa empresa derivavam de um vínculo afetivo
fundamental. Minha mãe trabalhou como bailarina durante quase sete anos nesse
circo, sigo convivendo com diversas pessoas que fizeram parte desse universo social.
Neste artigo, no entanto, privilegio os dados relativos ao período em que estive no
circo em 2014 – não mais que vinte dias corridos. Para mais informações sobre a
realização de etnografia a partir da posição de filho, ver Rangel (2016); e, para a
discussão sobre a celebração e a comercialização de corpos e identidades nacionais,
ver Rangel (2018).
368 | (Des)Prazer da norma
3
“O casal Romeu e Julieta surgiria assim como a primeira manifestação das ‘novas
formas de família’, que, pelo menos em termos de modelo consciente, iriam pouco
a pouco constituir-se no Ocidente. Esta nova família passa a ter como ponto focal
as relações internas, e não mais as relações que uniam diferentes famílias entre si
(seja por aliança, seja pela continuidade da descendência). Por relações ‘internas’,
entendemos relações afetivas e de substância que unem os membros da família
conjugal. Assim, com Julieta, as filhas deixam de ser peões no jogo das alianças, e,
como Romeu, os filhos não mais asseguram a continuidade das linhagens. Convém
recordar que Romeu e Julieta são filhos únicos. A família conjugal moderna, formada
a partir de laços afetivos, individuais, retira-se da esfera ‘política’ voltando-se para si
mesma e constituindo um domínio próprio – o domínio do ‘privado’, do ‘íntimo’, do
‘psicológico’” (Viveiros de Castro & Benzaquen, 1977, p. 152).
Afeto | 369
4
Bairro localizado no Rio de Janeiro, precisamente na baixada fluminense.
Afeto | 371
Olhares enviesados
5
Fotografias do casal sorrindo em pontos turísticos em um sem número de lugares;
jogando vídeo game; se beijando no trem, nos camarins, nas arenas; etc.
Afeto | 375
ombros, ouvi uma bailarina gritar que ela tinha dado um “tapa na cara
dele”. Praticamente no mesmo instante, Rafaela começou a berrar e a
estapear freneticamente as costas do seu namorado. Bastaram dois
passos de Ian para que eles chegassem ao meu lado. E foi ali que ela
caiu ou foi jogada – precisamente em cima de um sofá localizado em
frente a uma mesa de vidro cheia de copos e garrafas de vodka. Em
um rompante, ela se ergueu e projetou o seu corpo contra o acrobata
e em direção à mesa. A raiva e a força dela por pouco não derrubaram
a mim no exato momento em que a segurei no ar pela cintura. Eu
tive a impressão de que, se Rafaela conseguisse chegar até Ian, o
conflito poderia tomar proporções ainda maiores. O que eu via, mas
não tinha acontecido e nem aconteceu, era Ian revidando os socos,
os tapas e os pontapés que sua namorada pretendia lhe dar. De fato,
ele ficou parado com as mãos postas atrás de seu próprio corpo. Eu a
soltei rapidamente. Muitos ocuparam em milésimos o espaço ínfimo
que separava o casal. Rafaela enfurecida jogava o seu corpo contra os
demais e acertava socos naqueles que não eram o seu alvo. As pessoas
gritavam em inglês e em português. Queriam que Ian saísse da boate.
Ele continuava na mesma posição. Não consegui ouvir palavras em
russo e/ou ucraniano. Todos os que estavam em meu campo de visão
pareciam desesperados. Limites haviam sido ultrapassados. Daquele
ponto em diante não era possível se ausentar.
Se como escreve Díaz-Benítez (2015), as fissuras6 não devem
ser entendidas enquanto elemento presente e possível unicamente
6
Referindo-se aos filmes de fetiche, especificamente às filmagens de práticas de
humilhação extrema – asfixiar; cagar e comer; socar; causar vômito; provocar
flatulência; e assim por diante –, Díaz-Benítez argumenta que o observador precisar
ter fé naquilo que vê, ele precisa acreditar que é real em algum nível, embora conheça
o caráter teatral do que assiste. Nos momentos em que a encenação da humilhação
atinge a sua eficácia, ponto máximo de convencimento, poderiam ocorrer as
fissuras: “a fissura seria então o estado, dentro da encenação da crueldade, em que
os roteiros são extrapolados e são ativados os perigos subjacentes a uma estética do
sofrimento. O ‘choro em tempo real’ do qual falei algumas páginas atrás revela um
período em que são excedidos os limites da encenação fazendo com que o hiper-
real [exagero dramático que visa se aproximar ao real] decaia e se emaranhe com
o real. Dito de outro modo, a fissura seria aquele instante e espaço que nas práticas
de humilhação se passa do consentimento ao abuso (...) A fissura é evidência de que
a prática ultrapassou a expectativa da dor, é uma pequena fenda onde o ato (ou a
representação do ato se torna violência, embora logo a fissura se refaça por meio
da sociabilidade que envolve as dinâmicas de grupo nos sets de filmagem” (Díaz-
Benítez, 2015, p. 78).
376 | (Des)Prazer da norma
7
Acredito que é menos operante no caso das relações amorosas seguir com a
interpretação da fissura como um momento de passagem do hiper-real ao real
porque, nesse âmbito, não se trata de uma performance e nem se intenta adentrar
no terreno do excesso. Em outras palavras, no caso descrito não estou falando
sobre uma encenação que se quer realística, e sim sobre o próprio real ou, como me
parece mais adequado, sobre uma fissura ordinária no seio de relações amorosas.
O problema que emerge é distinto porque, se durante as gravações comerciais das
práticas de humilhação o excesso é continuamente buscado, pois qualifica o hiper-
real; na situação descrita, o excesso é justamente aquilo com o que não se deveria
brincar, embora os conflitos conjugais carreguem consigo possibilidades de cunho
erótico (Gregori, 1993).
Afeto | 377
8
Uso essa classificação porque não sei até que ponto o segurança percebeu Ian
como russo. No entanto, ele estava certo de que o grupo não era norte-americano –
não em sua maioria.
378 | (Des)Prazer da norma
produziu não mais respostas verbais, mas um gesto de Ian. Ele parou
um táxi. Em russo, falou com seu amigo, que, em seguida, entrou no
carro e partiu. Talvez este ato pareça insignificante, mas devo lembrar
que estou falando sobre pessoas que moravam em um trem situado,
por vezes, em locais de difícil acesso. É preciso dizer também que o
russo, transformado em pivô do conflito, não falava inglês. Ao colocá-
lo em um táxi, Ian se (re)posicionou. Entretanto, agindo em favor de
sua namorada, ele causou o descontentamento do seu amigo e de
outros a ele ligados. Soube, dias depois, que aconteceram discussões
entre russos a esse respeito, mas não sei o suficiente para contá-las.
A ausência de proximidade e a linguagem foram barreiras nesse caso.
Assim que o rapaz foi embora, Ian e Rafaela iniciaram uma
conversa em tom de voz ameno. Eu e outros nos distanciamos.
Entendíamos que o diálogo que agora se iniciava dizia respeito à
intimidade. Em outras palavras, atuávamos na reconstrução da
intimidade fissurada fazendo do conflito novamente um assunto
doméstico. O que significava que os atos abusivos seriam debatidos
não em alto e bom som, mas sim via fofoca. Distinguíamos, portanto,
entre o público e o privado buscando um modo de forjar uma ou
várias versões sobre o ocorrido. Eram também as fofocas que, ao não
incluírem Ian e Rafaela como falantes, atualizavam a distinção entre
domínios. Quando nos afastamos do casal, ouvi comentarem: “eu tô
dizendo que essa garota é maluca, mas ninguém acredita”; “sempre
que bebe fica assim”; “ela não está bem”; “histérica”. Ao passo que
estranhei o fato de Ian não ser mencionado, me dei conta de que
estava sendo construída ali uma noção de culpa ou, mais do que isso,
a ré já existia. A bailarina brasileira era a responsável. Percebendo
o acionamento de um repertório de gênero normativo, voltei para
o trem no mesmo carro que Ian e sua namorada. Falávamos sobre
tudo e nunca sobre o ocorrido. O casal trocava beijos, se abraçava e
usava expressões em russo em tom de voz abobalhado. Finalmente
no trem, não me espantei quando comentaram que “eles não tinham
vergonha na cara”, especialmente Rafaela.
Talvez seja importante não reunir em demasia os gestos de
intervenção e os de reparação. Isso porque esses últimos fluem no
sentido da restauração das relações (ação duradoura) e os primeiros
dirigem-se contra a extrapolação dos limites morais (ação efêmera).
Dito de outro modo, a intervenção inaugurou no caso descrito a
reparação, sendo a frase “I just wanna take care of her” [Eu apenas
380 | (Des)Prazer da norma
Desejo e Conflito
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O trabalho universitário talvez poucas vezes tenha sido tão bem retra-
tado quanto no “campus novel” Stoner, de John Williams; nele, somos
apresentados à trajetória de vida do protagonista que dá título à obra,
desde suas origens humildes até o final de sua jornada de muitos anos
como um acadêmico de literatura, passando pelas vicissitudes do coti-
diano institucional, da docência e da pesquisa. Buscamos homenagear
esse personagem no título de nossa coleção devotada a contemplar o
trabalho acadêmico realizado com integridade e excelência - a tese,
a dissertação, a coletânea de ensaios - em suas variadas dimensões.
Títulos publicados
Não leve flores. Crônicas etnográficas junto ao Movimento Passe Livre -DF
Leila Saraiva
(Des)Prazer da norma
Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima (Orgs.)
Formato 16 x 23
Tipologia: Cambria
Papel: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)
Supremo 250 g/m2 (capa)
As relações de gênero, sexualidade, afeto e família estão no
epicentro dos debates político-morais que atravessam nossa realida-
de contemporânea. Seus limites, formas e dinâmicas apresentam-se
como matéria de governos e violências. E, às vezes, como parte do
desejo por governos violentos que vemos circular e ganhar espaço
crescente em nossa sociedade. A chegada da coletânea (Des)prazer
da norma deve ser saudada, assim, não apenas com admiração inte-
lectual pelo rigor teórico e apuro etnográfico presentes em cada tex-
to, mas também com o reconhecimento da coragem politica e episte-
mológica que nela pulsam.
A marca do trabalho coletivo cultivado nos cinco anos do NuSEX
– Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade, do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ,
pode ser percebida no modo como as diferentes pesquisas dialogam
entre si, embaralhando fecundamente domínios que poderiam apre-
sentar-se como distintos a um olhar mais apressado. Com isso, faz jus
ao que melhor podemos, como produtores de conhecimento acadêmi-
co qualificado, oferecer de volta à sociedade: a chance de compreender
de outro modo nossa realidade, adensando perspectivas e desafiando
as amarras do senso comum e das moralidades de ocasião.
Adriana Vianna
Museu Nacional/UFRJ