Sei sulla pagina 1di 347

5 otlieca livros, folhetos, im pressos ou m auuscriptos.

^ Art. 15') Na bibliotheca propriam ente flita so <


J facultado o ingresso aos m em bros do corpo docente ?
seus auxiliares e aps em pregados da Faculdade; *
J para os estudantes e pessoas que queiram consultar *
Jo b ra s haverá um a sala contígua, onde se aeharào J
j apenas em logar apropriado os catalogos necessários J
\ e as mezas e cadeiras para acom m odaçào dos leitores. "
Art. 159 Ao b ü d iothecario compete: *
“I 10 fazer observar o m aior silencio na sala de leitu- J
J que pevtuharem a ordem , e recorrendo ao director, *
? quando nâo for attendido.
f()[
ACDUIR
IUEAI)O
I.
IT
Digitalizado pelo Projeto M eniónaAcadétnicaclaFDR UFPE

x1

^ DE

DIREITO NATURAL

6
Obras editadas pela Livraria Industrial de J. Walfredo
de Medeiros, â rua do Barão da Victoria n. 7

Conselheiro Francisco de Paula Baplista, com­


pendio de theoria e pratica do processo civil
comparado com o commercial, para uso das
Faculdades de Direito do Império, seguido
do Compendio de Hermeiieulica Jurídica,
3.8 ed. muito melhorada — I v. in 8.° enc. lOfJOOÒ
I)r. José Soriano de Souza, Ensaio Medico legal
sobre os ferimentos e outras offensas phy-
sicas com applicação a Legislação Criminal
Palria, seguida de algumas considerações
sohre o inlanlicidio: obra especialmenle
destinada ás autoridades criminaes, magis­
trados. advogados e aos estudantes do 3.“
ar.no das Faculdades de Direilo, 2.a ed. ac-
crescentada com o formulário para a con­
fecção das causas de delicio, exames de sa­
nidade, exhumações e autopsias judiciaes:
— il v. iri 8." çnc............................................ TftOOO
— sLicçõés desPhilosophia — elementar —
.racional e moral, — 1 v. de cerca de GOO
pag. e n c ........................................................... 7p00
Prelecções de J. Gollieb Heinéccio aos ele­
mentos de Direito Civil, segundo a ordem
das instituías, versão porlugueza por II.
Duperran, obra indispensável aos estudan­
tes do l.° anuo da Faculdade de Direito, 2 .’
ed. correcta — 1 v. in 8 0 en c.................... 8p00
Conselheiro Silveira de Souza, Licções de Di­
reito Natural, obra adoptada nas Faculda­
des de Dileilo '(1 0 anuo) — 1 v. in 8.° enc. lo p o o
Dr. J. Montenegro, Crime de injurias, estudo
analylieo lheorico, comparativo e pratico
dos arts. 23(5 — 239 do Codigo Criminal —
1 v. iu 8." b r ........................ .......................... 3POO
Dr. CarticiriflMiranda, Estudo elementar de di­
reito de uso fiuclo — 1 v. in 8.° enc......... 5$00í)

i
DF.

DIREITO NATURAL
SOBItE

0 COMPÊNDIO DO SR. CONSELHEIRO A L T O S


PELO

Conselheiro João Silveira do Souza, I.onlo Cathedralieo da 1'oculdade


de Direito do Itccilu.

R E C IF E

DF
J. WALFREUO de MEDEIROS
RUA 1)0 BARÃO DA VICTORIA N. 7

18S«>
PROLOGO
Publicando o presente livro repeliremos o que dissemos no
principio do Prologo de nossas Preleceòes de Direito Publico
Universal dadas á luz no anno de 1871.- .<não leni elle a pre-
tençiSo de ser um tratado de Direito Natural, nem tão pouco
a de ensinar alguma cousa aos sábios ou simplesmente aos ho­
mens já formados n’esta sciencia.»
Na verdadç nada tem esta nossa obra, de transcendental,
nem se aprofunda ella nas altas e muitas vezes abstrusas regiões
da metaphysica da sciencia jurídica; é nada mais. nem menos
do que uma exposição resumida, c tanto quanto nos IVi pos­
sível clara e metliodica das noções mais elementares do Direito
Natural ou pliilosophico, acompanhada da discussão e soluções
do mesmo modo caracterisadas das questões mais importantes
que esta sciencia encerra, e que mais se costuma suscitar na
escola.
Çntre ellas, si a algumas liga-se apenas um interesse pu­
ramente lheorico, ainda assim não menos digno de toda a at-
tenção, outras são de utilidade iinminenlemente pratica e da-
quellas que tem frequente e importantíssima applitnçào aos
problemas que a jurisprudência social é chamada lodos os dias
a resolver. Taes sejam de uma c outra ordem : as da reali­
dade de um principio superior do juslo, fundamento de toda
a sciencia do Direito; a da dislineção entre o Direito Natural
e a Moral-, a da imprescriptibilidade c inalienabilidade dos di­
reitos innatos; a do fundamento jurídico da propriedade irn-
mediata, e da desigualdade do dominió entre os homens; a do
uso innoxio da cousa alheia, e a do direito de necessidade;
a da origem da força obrigatória dos pactos ; a da legitimidade,
por Direito Natural, dos direitos de testar, e de sucecssfio legi­
tima ; a da indissolubilidade do matrimonio, e da legitimidade
do divorcio ante aquellc Direito, além de outras independentes
dVstas, ou que lhes são mais ou menos connexas.
fCstas nossas l.irçfíes são a reprodiiceão apenas mais ri su-
VI

mida e melhor ordenada das mesmas doulrinas que lemos jrro •


fessado na cadeira que regemos na Faculdade de Direito (Testa
Cidade. Mas nem por isso, cremos que vilas sejam menos ne­
cessárias ou uleis soh a sua nova forma ; ao contrario pensa­
mos que só assim póde o ensino de qualquer.seiencia ou dou­
trina aproveitar efikazmento áquelles que as aprendem. F’ dif-
ficilimo e poqeo proflcuo a discípulo?, moços que apenas come­
ram o estudo de qualquer ramo da vastíssima seiencia do Di­
reito, fixar bem na memória explicações meramenle verbaes,
e além d’isso, de ordinário pouco correctas, deOicicntes em
uns pontos, prolixas em outros; consultar para cada lieção os
tratados e expositores das respectivas matérias, extensos, di­
vergentes de opinião e de systema sobre, muitas das prineipaes
questões; e por íim, fazer de tudo isso, da noite para o dia se­
guinte, uma digestão conveniente.
as Licções escriptas obviam a todos esses inconvenientes.
Sobre ellas o discípulo póde com grande facilidade, c a neces­
sária meditação pòr-se a par das matérias que tem de ser ob­
jecto de sua licçào de cada dia. e conhecer pela simples indica­
ção do mestre os autores que lhe convém consultar, assim como
o resultado do exame e discussão das doutrinas e System as dos
mesmos, e quaes lhe cumpre regeitar, ou adoptar, apreciar ou
esclarecer pelo esforço próprio. Dor tal forma o mestre poupa
ao discípulo um dispêndio de trabalho enfadonho e inútil, qne
melhor será empregado na confecção de sua licçào.
Serve de texto a estas nossas Licções o Compendio do Exm.
Sr. Conselheiro Autran. Compendio, de. certo, excellénte, em
geral, como era de esperar-se da reconhecida illustraçho de seu
xersadissinio au to r; mas. além de não dispensar clle, por isso,
mais amplas explanações oraes ou escriptas, aecrosce que em
outras contém mesmo doutrinas ou opiniões que não nos pare­
cem as mais adoptav.eis, ou que são imperfcilamonte estábele-
eidas. Esses defeitos procuramos nós corrigir pelo modo qne
verão os nossos leitores. _
Contém o referido Compendio uma — fntroducção, ofres
Partes. Nas presentes Licções sómente tratamos d’aquella in -
troduccào, e das duas primeiras Partes, não nos tendo sido
possível até agora tratar da ultima d estas, em consequência de
havermos sido, quando publicavamos a nossa obra, distrain­
do« de nossa cadeira, da Faculdade, para occupãrrnos na Ca-
'm ara Temporária, na aclual legislatura, o lugar com que se,
dignaram honrar-nos os nossos comprovinciãnos, os Cathãri-
nenscs. Brevemcntc, porem, o faremos, completando assim
o nosso trabalho.
VI I

Diremos, entretanto, que a falta d’essa ultima Parte do


Compendio em nada prejudica as presentes Lirvões; não só
porque ella é, relativamente, pouco extensa, como porque
n’ella não se faz, propriamente, mais do que repetir embora
com mais desenvolvimento, e com relação a um Estado na tu ­
ral apmas hypolhetico em que se figura o homem, os mesmos
princípios já na Introãucçao, e nas duas Parles anteriores ex­
postos e demonstrados com relação ao homem no Estado social,
no que toca aos meios de defender os seus direitos.
Não desconhecemos, finalmente, que a obra que hoje pu­
blicamos, terá muitos e grandes defeitos, que só com o tempo
e em edicções posteriores poderemos, e promuttemos, rever
e corrigir. Mas esperamos, ainda assim, que em altenção ao
unico fim despretencioso, que tivemos em vista, qual o de aju­
dar a mocidade acadêmica nos seus primeiros passos de tão
ardua tarefa, como é a do curso geral de Direito que lhes in­
cumbe vencer, honrem-nos cila c todos mais leitores com a sua
benevolepcia.
Hecife,— 1879.

O Autuou.

/
SECÇÍO PRIMEIRA

NOÇÃO 1)0 DIREITO; IMIINCIPIO 1'lilJIABIO DA SCIESCIA DO DIREITO

3
§§ I _ :t

1 Definição th Direito Na/iiraf; realidade do principio do justo.


• e seus caracteres; objecto da seieneia do Direito

O Direito Natural, de cujo estudo nos vamos oceupar,


consiste no complexo de preceitos impostos pela natureza aos
homens para servirem de regras á sua conducta nas variadas
e reciprocas relações da vida social, a que eIJos são destinados.
Esses preceitos presuppOeni a existência de um principio ante­
rior e superiora qualquer lei arbitraria, ou simplesmente íilhn
da vontade humana: urn principio, do qual a razão os deduza,
e que seja o fundamento de sua legitimidade; presuppõem, em
summa, a realidade do principio ou lei do insto ou da justiça
absoluta. .
, Mas existirá, com edeito, ou será real esse principio ou lei ’
Não hesitamos um só momento em responder pela atUrmativa.
He outra sorte não se comprehende a existência do homem,
nem se explica a sua especial organisaçào.
Sc todos os entes creados, inclusive a matéria bruta, são
submettidos a leis adequadas a sua especic, que regem a sua
existência e movimentos, preservando-os da desordem c total
destruição, fôra absurdo crèr-se que o homem, exactamente
a mais perfeita de todas as creaturas, fosse o único abandonado
a si mesmo ou á cegueira do accaso.
Deve, pois, haver necessariamente alguma lei natural para
os seus desenvolvimentos; lei que seja conforme á sua organi- .
sação e faculdades. São estas que assignalílm o destino de cada
o

cnle, e na consecução d’elle consiste, cm geral, o liem para


cada um; assim como consiste o mal em tudo quanto do mesmo
possa desvial-o. A matéria segue o seu fatalmente, porque em
consequência da organisação e qualidades que lhe são proprias,
não pódem deixar de ter esse cunho as leis a que ella obedeça.
O homem, porem, não está nas mesmas condições. Desde que
a natureza o dotou com a razão e a liberdade, para que lhe terá
dado a primeira seuão para conhecer o que é ou não conforme
ao seu, e a segunda senão para obrar no sentido de alcaneal-o?
Para pensar-se doutro modu fõra preciso suppòr-sc, ou que
realmente o homem não tem destino algum, ou que Deus o crèou
exaetamente para não cumpril-o: hypothèses cada qual mais
absurda.
Mas, si por um lado a liberdade humana, como simples fa­
culdade natural, não pode deixar dc ser ampla, pois que o ho­
mem não seria realmcnle livre si de facto não podesse optar
entre o bem c o mal ; c si, por outro lado, a não ter cila um li­
mite qualquer, seria o mesmo homem o ludibrio constante das
fraquezas c paixões que lhe são inherenles, segue-se que algum
deve haver, que,sem deslrutl-a, a com eria de pura faculdade de
facto em faculdade jurídica ; sem o que a lei que devèra regel-a
não seria uma lei. Ora, esse limite não material nem fatal, que
para ella deve existir, não pódc ser outro senão o que lhe venha
d’aquelle principio de justiça absoluta, que presidindo ás suas
deliberações, a sujeite ã necessidade moral do decidir-se sem­
pre pelo que fòr conforme, c deregeitar o que fôr incompatível
com a sua natureza e commum deslino.
Se esse principio ou lei do justo nao existisse a distincçfio
do bem o do mal seria para o homem uma vã palavra, e toda
a ordem moral na qual o pava a qual elle vive, seria impossível
e a liberdade um dom funesto ao mesmo. Km vez de ser esta
o instrumento de toda a dignidade e desenvolvimento humano
scl-o-hia da completa degradação e perdição *da humanidade’
seria antes um gênio maléfico lançado no meio de sim

* UU OVUDpiauuCfl 11113.
0 homem sem o freio snlntnr indUn __ . .

Prova-se, portanto, já pelo absurdo de taes consequências


consci
já pela analyse directa do mesmo liornem, «pie esle não pódc
viver, ou conccbcr-se que viva, a mercê de seus caprichos ou
combinações arbitrarias,origem de antagonismos eperlurbáçiíes
infalliveis no mundo moral cm que a sua orgunisação necessa­
riamente o colloca, e onde a ordem c a harmonia são tão indis­
pensáveis como no mundo physieoy onde as vemos tão maravi-
lliosamente estabelecidas.
Mas não é ainda sóinente a razão que por tacs meios nos
demonstra a necessidade d'aquella lei ou principio ; a simples
consciência de cada homem dá-lhe, além d’isso, e a todos os
momentos, soleinne testemunho de soa realidade c tio seu vigor.
Kssa lei faz-se sentir em lodos os corações; ninguém cni
qualquer sentido que se mova, é isento de sua superintendên­
cia, ainda quando não se curva a seus dictames, ou menospreza
as relações que elia crêa para com os mais. .No intimo d’alina,
ao menos, ninguém púde eximir-se de sua autoridade ou des­
conhecei-a.
Escriptorcs e phiiosophos tem havido c ha, que prclcn-
dendo submctlcr a noção do justo á subtileza de suas analyses,
ou a moldes preconcebidos, a tem mais ou menos desfigurado.
Kntre os antigos especialmente os sopliislas gregos, e entre
os modernos llobbes, líentham c suas escolas, ipiizçraiu con­
tundir a justiça, uns com a força, outros com as simples dispo­
sições civis lilhas do interesse ou da utilidade. Mas no fundo
ue suas doutrinas transparece sempre alguma idea com o ca­
racter tlp principio obrigatorio, alguma norma mais ou menos
geral e fóra do arbítrio de cada um, deslinada a reger a con-
dueta de todos na sociedade.
Chama-se a isso interesse liem entendido, utilidade social;
mas salvos os nomes, c as applicações falsas a que os systemas
conduzem, liaalli mais ou menos encoberta, e desnaturada cm-
oora, uma idea de justiça. Para nos convencermos d'isso basta
vermos que esses escriptores ou phiiosophos explicam por
aquelles mesmos moveis até o desinteresse e a virtude.
... llim ® cerlrj é que o interesse uuico, indéxivel, c a pura
utilidade, sem essas composições mais ou menos disfarçadas
com que se os procura aproximar do ideal da justiça, ou depu­
rai-os de modo que com esta coineindam, são incapazes reat-
mentecle reger um só instante os homens ou os povos.
cVssim,é sorte de todosaquelles que atacam a idea fundamen­
tal dojusto, serem forçados a admiltil-a, adnal, máo grado seu,
soli outros nomes ou fôrmas. Nota-se mesmo que muitos dVisses
apregoaclores da lei do interesse on da pura utilidade, tem sido
lomens desinteressados e alé virtuosos: iiiccmséqueilciu de
condueta que os li6nra, que devemos applaudir, mas que prova
ao mesmo tempo que a verdade c a natureza triumpham e pro­
testam, sem elles se aperceberem, no intimo de suas almas,
contra a falsidade de taes doutrinas.
A maior parte d’esses aulliores de taes systemas tem cabido
n ’aquelles desvarios por se haverem deixado impressionar de­
masiadamente pelos-fados, isto é, pelas applièaçOes extrava­
gantes ou monstruosas da justiça, que infellzmenle abundam na
historia da humanidade. .Mas uma melhor critica d’essas aber­
rações doa povos lhes deveria fazer notar quanto ellus foram,
em geral, fatnes a estes para serem propostas como modelos’
ou apenas substituidas por outras derivadas das mesmas ori­
gens; e um estudo mais acurado da natureza e do destino huma­
no ainda melhor lhes faria coniprcln-mler o real valor d'aquellas.
Desde que a lei do justo é uma lei de ordem puramente
moral, que tem por orgfto a razão, c que se impõe a seres livres,
deve necessariamente estar sujeita a ser desfigurada ou trans­
gredida, sem que isto prove contra ella cousa alguma. Em
todos os tempos c paizes tem havido, e mais ou menos haverão
perversos ; e os codigos das nações tem muilas vezes consagrado
bon oi ta ; mas nem o pei verso deixa de reconhecer o crime que
pratica, ou sc julga poi elle credor de elogio ou recompensa *
e nem codigo algum jàmaie ousou dispõr em nome da injustiça’
A iniquidade filha da ignorância ou da rnalicia teve sempre
necessidade dc cubi ir-se com o manto de lliemis para impôr-se
aos homens. Actos ha que Ihram, são, e serão sempre eondem-
nados. Si em Esparla eram louvados os que furtavam com des­
treza, e votados á morte, os velhos enfermos u as creançus de­
feituosas, por um falso juizo sobre as perfeições da intellVcncía
e do organismo social, com tudo matai- ou furtar sem aí-uma
justificação admittida, embora absurda, isto é. o furtu e o as­
sassinato em si, foram sempre ah! mesmo considerados crimes
e como taes punidos. Entretanto, é evidente, que actos abso-
lutamenle criminosos não poderiam haver, se não houvesse uma
lei absoluta de justiça; logo a simples realidade incontestável
d aquelles, e uma prova inconcussa d’csla. lia com efíeito
diz Jooffroy, um bem e um mal, um justo e um injusto abso­
lutos para a razão humana; assim não imagine ella a verdade
em vez de recebel-a. ••
Lina infinidade de circumstancias : os hábitos, os nrecoii-
eeitüs, as crenças, as condições, as epoebas, pódein intluir para
aquelles desvarios, com que se desnatura a idéa da iuslie.a em
suas manifestações na sociedade humana ; mas removidas ou
modificadas essas causas accídeulues, á luz da razão c da <cien-
;> .

cia, os eiTos uccci-ilos sol) o seu prcdomiuio ser;To irremissível­


mente condeinuados, e nc^uelta reivindicará os seus fóros ; por­
que si a justiça nem sempre é o cunho característico de todas
as legislações, é pelo menos a aspiração constante de todos os
legisladores. Mesmo debaixo da pressão d’àquellas influencias
conspiradas para ofluscarcin a lei natural, nunca o seu clarão
se extingue de todo, quér no coração de cada homem, quér
entre os povos liem ou mal compreliendida, brilho intenso ou
pallido reflexo cila governa a humanidade, e recebe em toda
parto as suas homenagens. A Divindade não é também menos
real, nem menos sublime, porque em todos os tempos e paizes
se lhe tem votado cultos e ceremouias barbaras ou ridículas,
inclusive os sacriücios regados com o sangue humano. „
Do que temos dito resulta clarameute que a noção do justo
é congênita com o homem ; que mio pudetnos-separal-o d’ella
um só instante em qualquer tempo, lugar, ou situação cm que
o concebamos como ser racional. Descubrimol-a em todas as
phases de sua existência, quer individual, quér social,e cm todas
as evoluções de sua aeli\idade. Kl la nasce, por assim dizer-se,
com cada indivíduo, e cresce c desenvolve-se co.m as suas fa ­
culdades. *
Confusa e obrando quasi como um puro iustinelo na sua
infancia, ulla se robustece com o correr da sua idade, c no Ifo-
nieni feito apresenta-se em toda sua clareza e força, não ac-
tuando já simplesmente sobre a sua sensibilidade, mas dirigin­
do-se c impondo-se a sua reflexão. Na verdade como nus diz
o Compendio cm uma de suas notas ao § 1." nem todos os ho­
mens mesmo n’este estado de seu completo desenvolvimento, che­
gam pelo raciocínio a todas as applicações praticas da justiça,
porque estas são variadíssimas, c tanto mais complicadas quanto
é mais complexo o meio social cm que os concebamos. Mas si
não pelo racioeinio, ao menos pelo senso intimo, pela luz in­
terna da propria consciência, todos chegam ao conhecimento
do seu principio absoluto e dos seus preceitos fundamrntaes.
E' pois com razão, que o mesmo Compendio altirma que tisse
conhecimento não llies é dado pela simples educação.
Esta rcalrnente não créa, apenas aperfeiçùa e fertiliza esse
germeu sublime lançado no coração de todo o homem paru
guiai-o no mundo. O justo, como principio absoluto e nas
suas applicações mais geracs e communs, póde se dizer até,
que é tão facilmente comprehendido pelo ignorante como pelo
subiu. A üifllculdade não está em alcançal-o nessa altura: mas
em lãzel-o baixar dabi para amoldar-se a todas as imnimeras
e cspeeiaês relações da vida humana, sem des\ituar-se ; e n'esta .
G
tarefa nem mesmo todos os )thiloso|»hos tem sido felizes, c nem
todos os legisladores seus fieis interpretes. .
A lei ou principio do justo cuja realidade temos demons­
trado, por isso mesmo que existe para os homens em razão de
sua natureza, c que lhes é congênita, deve,na sua mais elevada
expressão, ser como esla universal e invariável, independente
dos tempos ou climas, superior e anterior, como a principio
dissemos, á quaesquer regras arbitrarias ou convencionaes que
na sociedade com os seus semelhantes os mesmos possam im -
pór-se. .
Sem qualquer d’esses caracteres não seria aquella lei uma
lei da humanidade, nenhuma lei da natureza. Não e conce­
bível uma lei natural para o Europeu e outra para o Africano ;
uma para nós, outra para os nossos antípodas-, ou uma para
cada latitude ou epocha. Essa lei não póde, em summa, deixar
de impôr-sedo mesmo modo e com a mesma autoridade a todos
os homens, desde que elles são, em lodo o caso, em qualquer
tempo, lugar ou condição, idênticos em sua natureza, e em vir­
tude d’esta se acham sempre collocados entre a possibilidade
do bem e do mal moral.
A realidade e os caracteres da lei do justo tem,com efleito,
a sua natural explicação n ’essa alternativa em que se exercem os
dous grandes attributos constitutivos da personalidade humana.
1'ela razão ella se torna possivel, c pela liberdade, necessária;
a razão é como o seu instrumento, e a liberdade o seu objecto.
Também aquella lei, na sua maior generalidade, não consiste
realmente em outra cousa senão na necessidade du limitação
da liberdade natural de cada indivíduo, como condição indis­
pensável ú existência e desenvolvimento completo e harmonieo
de todos na sociedade.
Estabelecendo, porém, a realidade da distineção do bem
e do mal, e a possibilidade para o liomem de escolher entre um
e outro, como razão da necessidade da lei do justo, não indicá­
mos ainda de um modo preciso o objecto proprio e especial
dVssa lei -, cunsideramol-a assim, ainda em um terreno denía-
siadamente vago, onde a sua alçada se confunde com a da lei
simplesmente moial, e até com a da lei religiosa l*ois ciue
o bepi e o mal se pódem praticar em uma escala indefinida c tão
extensa como a do desenvolvimento possivel da faculdade nue
entre elles delibera e decide-se. Aquellcs pódem referir-se
a Iodas as íelações cm que concebamos o liomem, até ás mie
directa e exclusivamente entendem com o seu créador e com
a sua consciência.
Mas á b i -lo justo não é dado dirigí! -o nu chamai -o a contas
7
n ’essas regiúes por demais elevadas ou intimas, em que, como
teremos depois occasião de ver, só o devem reger princípios su­
periores e inaccessiveis á acção effectiva da sociedade humana
c de seus poderes.
Si, pois, a noção do bem e do mal moral, em sua genera­
lidade, é mais comprehensiva do que a simples idéa do justo
e do injusto, que consistem no bem e no mal que a sociedade
póde realmente impôr ou reprimir, é claro que asciencia do
Direito N atural, que sc occupa do estudo e ensino methodico
das regras que n’estc intuito se deduzem d’aquelia idéa, não
póde deixar de versar restrictamente sobre as acções boas ou
más d’esta ordem, com exclusão de todas as mais, que devem
ser subordinadas às prescripções mais amplas ou mais pecu­
liares da Moral ou da Religião.
O objecto proprio do Direito Natural é, por conseguinte,
apenas: — o conhecimento e applicação d’aquellas leis que
a razão esclarecida infere da natureza humana, destinadas a*ga*
rantirem a cada homem o que lhe deva realmente pertencer, já
por um titulo absoluto, em virtude de sua organisação racional,
e j á por um titulo hypothetico, mas proveniente dos legítimos
desenvolvimentos d’esta cm qualquer situação de sua coexistên­
cia com seus semelhantes.
Quer isto dizer, que o objecto proprio d’aqnclle Direito
é realizar na sociedade humana os direitos de cada homem c os
de lodos cm perfeito accôrdo •, pois que c, com effeito, n ’aquillo
que a cada um deve, pertencer por tacs títulos, que consistem os
direitos respectivos. .
Do direito colins predicado das acções ccomo aUrUntlo das pes­
soas ; suas formulas m primeiro caso, e seus conserdarios
e'garantias uo se.;/undo ; caracter dà dever jurídico,
^ e seus enunciados.

Temos considerado o Direito cm um sentido absoluto, como


um synonimo de lei, ou como um complexo de leis, ou como
a sciencia d'estas. Mas não são essas as únicas' accepções, que
sc attribue a essa palavra quér na linguagem commune, qnér na
da propria sciencia.
•’.orno bem observo o Compendio no seu § 4." cila se toma
ainda etn um sentido relativo, e n’este caso se considera o direito
já objectiva, e já subj< çtivamenle. como um predicado das ac­
ções ou como um atlr uto das pessoas (l). « Na primeira ac-
ccpção, accrescentn o mesmo Compendio, o direito denota
a qualidade das acções que as torna compatíveis com a coexis­
tência social dos homens, e por esse conceito se podem discer­
nir as acções justas c as injustas. »
E’ certo que se pódc considerar a justiça nas proprias ac­
ções ; mas entendamos esta proposição em termos babeis. Cuar-
demo-nos de pensar que semelhante critério nos possa ser dado

(1) Di-se ainda a denominação dc direitos aospropríos objectos


sobre qnc os direitos versam ; assim diz-se quo a vida, os bens que
possuímos etc., sào direitos nossos. Mas n'este sentido o direito é
ainda tomado de um modo objectivo. Taes maneiras dc fallar não
passam, em rigor, dc méras locuçOes com que se quer dizer, que o ho­
mem tem o direito de cònservar e manter a sua existência, de usar
c gozar das cousas que lhe pertencem etc., direitos que, nVinal, são
realmente subjectivos ou attributos pcssoacs.
í)
propriamente por aqticllas em si mesmas, uu que 11’ellas cxisla.
r,m todo o caso, c só pela sua confrontação com a lei do justo
verilieada pela razão ou na consciência, que reconhecemos
a sua qualidade do conlbrmes ou dcsconlbrmes á coexistência
social, ou aos fins racionaes do homem. Aid, pois, e não ifcllas
próprias, está verdadeiramente o seu contraste, o meio de dis­
cernir as justas das injustas. >< Kllas não trazem escripto em
si, diz Joulíroy, isto é hom, isto c máo. »>
Aflirmar que taes ou taes sentenças, que a razão e a con­
sciência approvam , hem comprchendidus e praticadas, farão
d’aqnelles (pie as pratiquem homens probos e respeitáveis,
e serão seguras garantias de paz e felicidade para todos, é, sem
duvida, aflirmar uma verdade •, e entre essas sentenças se deve
incontestavelmente contar a que o Compendio nos indica no
sen citado paragrapho, a sa b e r: que « são justas todas as ac­
ções (pie não repugnam ao estado social de entes igualmente
livres, e injustas todas as que lhe são oppostas. » Mas, por­
ventura, as próprias acções em si nos dizem o que é ou não re­
pugnante áquelle estado social, ou o (pio realmente lesa ou não
o direito alheio ? Não, de certo ; e por conseguinte erraria
quem pretendesse que se púde formular maximas em taes ler­
mos concebidas, que tenham essa virtude, ou dòem-nos cm si
mesmas um critério ohjectivo da justiça ou injustiça d’aquellas.
Nem pôde ser este o pensamento do Compendio.
Com offeito, as regras geracs da eunducta hum ana, em que
se resolve o principio absoluio do justo traduzoin-so »’essas
e outras semelhantes sentenças que tem todo o valor como taes
na seiencia do Direito, mas nenhum pódem ter como pedras
de toque para vcrilicar-se objcctivamcnlG o que com o mesmo
Direito é ou não é eífectivamonte consentâneo. Ao contrario
para que se as formule, para que se tenha certeza de sua ver­
dade, e so as acceite, é preciso ter-se já conhecimento anterior,
e independenteinenle d’ellas, de quacs sejam as acções cuja p ra­
tica pôde ser ju sta ou injusta.
Acceitenjos, pois, aquella maxima que o Compendio nos in ­
dica, equaesquer outras equivalentes; m asaeceilam ol-as na sua
real significação c valor; não como formulas capazes de forne­
cer-nos um meio de reconhecermos as acções justas, mas como
simples enunciados á posteriori da própria lei a que estas devem
conform ar-se para que a razão e a consciência as proclamem
como taes.
Assim considerada, e só assim, póde aquella maxima ser
deiiominadu como a denomina o Compendio: «um principio
primário do Direito ^ e dizcr-sc que toda a seiencia d ’cste eou-
2'r.
40
.w Jivcrsah rspeeic» dc«cçòes sobre que
sistc na Mia nppbeaç» <•»«•' nr,lUrio.
o liomem pmle cvcrc«* ■ M.nlido cm que se tome n dirnln.
Seja, ,»orem, nua» J \ ^^ ^ admilUr que N » <>'-
considerado o b j e c evteriorcs ao liomem; ou qne algum possa
reito algum nSo seja eâscntlalmriite um attriliuh»
c\iiUr ou concr\'cf:r . J a„ im considerado é uma consequência
das pessoas. O dire vantaccin que cita paratde aqucUe
da lei de onde dimana, m clllTe,anVo. scr concebido já
(i„c o deve ter. rm ,,(tc elle collocao seu uijeiln para
rcspeelivamente » relaç correlalivamenle se origi-
roin os mm», e ja as q i l primeiro raso o direito dc-
namd'ai>i para ^ ^ .^ rà r io nrnprU pbde o sujeito dn mesmo
nota 0 que por ainda com detrimento proprio;
praticar quanto ao " J „brigados a prcstar-lbe ou re­
e no segundo o que «» nm» « * ,sl0 , . n0 primeiro caso
coiitiecer-Uic, ainda c ^ cíli0J r^crctcio é tirito aqncllc que
elle importa um poi • i l(| ,mU necessidade á que os
o tem. renoMial-oi en » • - arbítrio seu. Da primeira
mais não ixxteui t\\ rnJ ÍUmma, que o direit» ts para seu
d’aqneUas relaçm. / ,„p’r „/ ,;r obrar ; a qual na linguagem da
sujeito uma ‘ f„rulihvlr jurhlira.
scien cia se dtrtOnun / , . - ao d im to considerado com o
Ta» é» C"m d e ie n ô s advertir que a palavra moral
atlribolo p e sso a » . » . to m ar com o antilbese. dc mmo-
n'clla empregada nau>. . . c sc dc «fcy iiru , q u eien d o -ie m ss-
ra l, C sim , a p en a s M »«» a " poder m aterial de farer-
trar com cUa q u « 0 alcan cc dc n ossas Torças corp oreas.
m os im lo quanto esteja a u p a la v ra em sen sentido res-
N em tam bém se deve to m a r » } * ^ ,,, fazer-se o que fosse
tricto ; porq ue, a b a s . •• • > irlu ,je, qu an do c certo que
moralwenU bom ou ' jortainciltc p rah ear ou e a iíir dc
m uitas co u sas lia ' 1'" > . 0I1 co n traria» a lei d a bene-
m itrem em b o ra ,uor“! . [c con stilu e o direito se com prc-
deen cia. 12 Na * * « “ * * £ J J . d e p raticar tal ou ta U c to em
lieitde para » se» *UJ^ ‘u l^ .o a . e a de abster-seidelle ; mas
relação a a l g u m » U i s pratiquem ou se abstenham dc
lambem a dc t.vi» i

i ■■ .ffifi-ls cm *«-u m »lido »ui» «ni-


mor<l\ r *»*1 * am iifU» o ; i m s « i»
w a p « u » ' Òh\
1,1rt, ««ra »igiuOe*r V,'
K " -• > ' r*"Ut *' *r -' u'™ do
V(uiut-do rm um*
l)oni,‘m
-Silo objectas du seu direito.
Comprcheiidescporéiii, que n ãobastaque cadn Itoinein le-
ulia de uni modo idéal os direilos ou faculdades que a sua na­
tureza llie confere.
O que seriam elles realmente sem a segurança da elíectivi-
dade de seu evcrcicio ! K desde (juc evuetaiiicutc |ior serein os
liomens eûtes livres, mas não anjos,os simples conselhos da razão
e da consciência de cada um são iusufllcii'nles para a Iranquili-
dade dos mais; e que não haveria para garant il-os, esgotados
uquelles, outro meio féru do emprego da força material, segue-
se que a coacção ou a legitimidade do seu emprego quando isso
se torue necessário, é um eonsec.tario inseparável, essencial <lo
direito, o seu complemento jurídico. .Não quer isto dizer que
todos os homens devam ser munidos de um cabedal d'aquella
lorça correspondente á somma de seus direitos, para (pie estes
se reputem reaes, e ainda menos, que cftéctivaincnlo d'ella
assim disponham ; mas sim, que si cada indivíduo (lispuzcsse
de facto de tal recurso, usaria d’elle com jusliça todas as vezes
que o seu emprego fosse indispensável para a realisaçào ou de­
fesa daquellcs, e até por si proprio si não existisse a sociedade
civil ou o seu poder publico instituído exnetamcnte para fazer
respeitar a igualdade natural du direito de todos ou n jusliça
absoluta (pie a cada um compete, mantendo o necessário equi­
líbrio entre, essas forças desiguai s de indivíduo a indivíduo,
unias iiisullieieiites para protegel-a e outras sempre mais ou
menos dispostas a violal-a.
Mas se cada indivíduo tem direitos e pode legiliinamente
cmnpellir Os mais, até pelo constrangimento physico, a respei-
tal-os ; e si isto é commun) a todos, porque é idêntica para todos
a foute de onde elles se. derivam, é evidente quu pelo mesmo
Ululo, e com a mesma legitimidade, é cada um obrigado a res-
jieilul-os nus mais. Aquclle que na sua ijqalidade de pessoa
invoca um principio que o ampara u llie assegura o livre e com­
pleto desenvolvimento de suas faculdades, não póde sem fla­
grante má fe, c sem aniquilar os fundamentos de sua propria
pretençào, desconhecei-o ou inenosprezal-u quando se iratc d«
sua applieação a outros que lhe são perfeitamente semelhantes
na natureza e nas vantagens que d’ella lhe resultam. Assim aos
direilos de cada um é necessarlameule correlativa uma obriga­
ção nos mais, como uma consequência necessária do dogma ju ­
rídico da igualdade de todos os homens perante a lei natural-
lículineutc é sob esta forma que a a«ça» dVsta |ej sg upplica
entre aquelles na vida social.
Fssa necessidade de respeitar cada um nos mais o que pre­
tende, com razão, que estes n’elle respeitem, sob pena de serem
a isso compellidos, é o que na sciencia do Direito se entende
por dever jurídico, obrigação jurídica ou oflicio de Direito, em
contraposição á faculdade jurídica ou de Direito, de que acima
falíamos.
Quaesqucr pretenções de alguém a que nüo corresponda nos
mais esse dever, não pódern ser consideradas como direitos.
Não, admittimos, pois, como tacs, o que alguns authorcs deno­
minam direitos imperfeitos, desde que, cllcs os fazem consistir
em meras cspectaliyns de cousas ou de actos de outros a simples
titulo de beneficencia, e a que estes só pódern ser obrigados pela
Moral. Esses suppostos direitos, que não tem garantia externa
e positiva na sociedade; que, são abandonados a simples con­
sciência de cada um -, que, em surnma, não são exigíveis por
aquellcs a quem se os attribue, não tem realidade nem caracter
algum jurídico.
Serão desejos ou esperanças mais ou menos razoaveis ou
attendiveis, mas que em todo o caso, não passam d'isso, nem
podem impôr-se áquelles a quem ou a cujas acções ou cousas
se referem.
Do que dissemos a respeito do dever jurídico doprclicndc-
se que elle é, em geral, puramente negativo. (3) Dara ser elle
preenchido basta, com eflcito, que cada indivíduo limitando-se
a cspbera de sua legitima actividade não perturbe a alheia.
u eito nao exige que se pratique eíTectivamente acção alguma
em tal ou tal sentido para ser-se justo com alguém: mas só­
mente que se deixe de praticar tal ou tal acto para não se lhe
fazer injustiça. O Sr. Ferrcr para mostrar-nos a generalidade
d esta proposição, diz-nos, com razão, que as próprias obrma-
çoes de dar-se ou razer-sc alguma cousa, proveniente dos con­
tractos se podem reduzirá obrigação de nãosubirahir-sc aauillo
que pelos mesmos contractos veio a ser de outro.
Comtudo, esta regra, exacta quando se applica ao dever
juiidico nas relações geraes de homem a homem, ou de cidadão
a cidadão, e ao direito antes de violado, não o é quanto a certas
relações especiacs impostas pela natureza ou pela lei social, como

cP J ? direito póde scr algumas vezes no mesmo tempo um dever


tal seja o de eonservarmos a nossa existência, etc. Mas rieoros-,'
dever morab CaS° ° Cm ° utr0S scmelhantes « s e dever d apenas um
15

nas do pao a iillio, <1« superior a inferior e vice versa, nom ans
rasos ern que se trata de um direito alheio já ollendido e da ne­
cessidade do reparar-so a lesao. O pae tem, por exemplo,
o dever juridico positivo de alimentar seu lillio, o cidadão o de
obedecer a autoridade constituída; e para ser-se justo com
aquelle cujo direito sc oITendeu nflo hasta a simples abstenção,
pois que esta seria a continuação da ofienta, c tanto mais ng-
gravada quanto mais prolongada fosse.
Kstas excepçôcs não prejudicam, entretanto, aquella regra,
porque a primeira vem propriamente de que nas relações a que
rlla se refere, o dever náo ó só juridico, mas ao mesmo tempo
moral ; e. a segunda de alguin modo confirma até a mesma regra,
desde que nos casos que a constituem, eila náo tem realmente
outro fim senão determinar o restabelecimento do oITendido no
estado em que lhe basta o simples dever negativo dos mais ;
sendo que demais, em todo o caso, os direitos se consideram
antes de tudo independontemenle de suas violações possíveis.
Dos princípios que acima expendemos, e que salvas aquellas
cxcepções, sán os mesmos que nos ensina o Compendio, ácerca
da negatividado do dever juridico, dcduifm-sc as diversas pro­
posições, que clic nos apresenta no seu § (>.", como enunciados
d’esse mesmo dever . « Omitte todas as acções que pódent of­
fender ajusta liberdade dos mais ;>• náo trates aos outros como
meios para teus fins arbitrários ;» deixa n cada um o que c seu ;*
« náo perturbes o direito alheio ; » náo leses n ninguém ; •>assim
como nquclla que nos propõe Kanl : » obra de modo que tua
vontade possa ser sempre considerada como um principio de
legislação universal ; » e ainda outras equivalentes, que se po­
deria formular. Proposições, que embora náo so enunciem
todas em termos negativos, contém, entretanto, implicitamente
a negatividado geral do dever juridico que consagram, ou que
não sendo todas negativas na expressão, o são vírlunlmrntc no
seu fundo, e a essa fôrma pódem ser reduzidas sem alteração do
seu contexto e valor. ,
Accrca d’essas diversas proposições ou maximas, e de quaes-
quer outras semelhantes, podemos, comtudn, repetir conside­
rações analogas ás que já fizemos em rclaçáo ás consignadas
no § 4.“ do C.ompcndio. Todas cilas rccominendam o respeito
ao dever juridico, mas não bastam para fazer conhecer-se em
que elle consista. Todas cilas sáo boas e produzirão salutares
cfieilos na sociedade humana, sob a condição porém,de nos ins­
truirmos ante a luz da razão esclarecida e de uma consciência
recla, sobre o que é que realmente oITende ajusta liberdade dos
mais, a sna personalidade, a sua sociabilidade, a sua proprie-
dade, ou quaesquer outros direitos se u s$ ou em que consistam
as suas lesões para as evitarmos.
Todas ellas, em summa, devem ser acceitas e proclamadas,
porque procuram estabelecer regras geraes da couducla hu­
mana destinadas a pòr limites racionaes a liberdade arbitraria
de cada indivíduo a bem de todos, e que u’isto consiste, em ul­
tima analyse, como já vimos, o objeelo proprio, o fim ultimo da
lei suprema do Direito ou da justiça.
K’ isto realmente uma necessidade tão imperiosa, tão uni­
versal e protundamenle sentida, qutí os proprios que muitas
vezes não hesitam em menosprezar aquella lei quando tratam
de satisfazer suas paixões ou interesses, são os primeiros a in-
vocal-a em favor de seus direitos reaes ou suppostos.
Aquelles mesmos que a infringem, ou que desprezam as
maximas em (pie se traduzem os seus preceitos, ou o dever que
ellas impõem, hem longe estão de aunuirem a que se as desco­
nheça ou postergue contra elles. Ninguém acceita como nor­
ma commuin da couducla humana os seus proprios actos ar­
bitrários, quando pretende estabelecer o modo de procedimento
que os mais devem observar a seu respeito. A idéa do justo,
que é um tormento paru o coração dos mãos, porque a todos os
momentos lhes exproba.o crime, e lhes aponta a punição que
elles merecem, ú no entretanto por elles mesmos ávidamente
abraçada como uma Divindade propicia e salvadora contra as
ameaças ou ataques alheios. O assassino não quer ser assassi­
nado, nem o ladrão quer ser roubado, e tanto um como outro
jámais verão actos de justiça ou legítimos nas tentativas ou ag-
gressões de alguém contra a sua existência, ou na subtraeçáo do
que reahnente lhes pertença ou deva ser seu.
Provam, na verdade, estas considerações, como nos diz
o Compendio no seu § não só que taes entes procedem ir­
racional e iujustamenle, mas ainda, accreseeutareinos nós, que
elles ICm a convicção intima da sua irracionalidade e injustiça,
embora os seus mãos instiuctos ou sentimentos pervertidos os
levem em sentido contrario.
linalmonte, o que já dissemos c repetiremos : que
u lealulade c a universalidade, a clareza e o vigor do principio
( o jxisto, não pódein ser abalados por maiores que sejam os
desvarios da ignorância ou da perversidade humana quanto
a sua concepção ou quanto á sua pratica.
L i a c3 i l o n i

§ § 8 -1 1

fíistincçào entre o Direito Natural c a Moral

O que nos diz o Compendio nos §§ 8.» cl).0 esta de accórdo


com os ideas que lemos expendido sobre o objecto proprio do
Direito c sobre as faculdades jurídicas que d’elle derivam e cons­
tituem os direitos individuaes. Os princípios estabelecidos no
primeiro d’esses paragraphes fazem, alem d’isso, presenlir já
de uma maneira suflicientemente clara que entre o Direito Na­
tural e a Moral ba uma linha divisória, que se pódc bem traçar,
c é o que o mesmo Compendio procura fazer no parngrapho se­
guinte.
A dislincçflo d’estas duas scicncias ou leis, que á primeira
vista parece uma questão puramente especulativa ou escolás­
tica, tem, entretanto, grande importância pratica. « K’ pela
sua separação devidamente feila, diz o Sr. Ahrens, que se póde
bem determinar os justos limites da intervenção dos poderes
sociacs nas diversas espheras da vida e da dignidade humana.»
A razão c o senso intimo de cada indivíduo lhe dizem, sem
duvida, que ha notável diflerença entre o que é cstrictamente
justo e o que é apenas moral ; entre o que se póde legitima­
mente exigir dos mais mediante até o constrangimento mate­
rial, c o que se deve, (piando muito, esperar de sua espontânea
generosidade ou beneficencia. Mas isto, que cm geral póde
bastar para o governo particular de cada homem bem inten­
cionado, não é sufRcientc para o governo da sociedade, onde
se reunem e convivem os bons c os mãos, e onde todos, inclu­
sive os que n’ella exercem a autoridade publica, poderão reco­
nhecer, mas nem sempre respeitam os términos que extremam
aqucllas duas ordens de ideas.
A sciéncia do Direito não póde, por tanto,abandonar a cada
indivíduo ou ao arbítrio do poder social a solução d’esse pro-
bleina. Ulla se préoccupa, com razão, da necessidade de bem
lixar até onde vai e onde acaba a sua legitima alçada sobre
a conducta humana na saciedade, e onde começa a da Moral.
Ella procura d’este modo tornar impossível, quér o, arbítrio do
cidadão, quér o do listado, que a pretexto de reclamarem ou
impòrem a pratica de um dever jurídico, pódem ser levados
a usarem da eoacção para estorquirem um acto de simples mo­
ralidade.
A Moral e o Direito Natural tem incontestavelmente muitos
pontos de allinidade e contacto. Uma e outro tem o seu fun­
damento na natureza do ser racional e livre. Ambas essas
leis procuram,encaminhar o homem para o seu proprio bem
e dos seus semelhantes. Mas si a razão eotno oráculo, e o bem
como objocto.são laços communs que as prendem, nem por isso
ellas se identificam -, porque a razão applica-se a fuucçòcs in-
numeras e variadas, deve ser a fonte de todas as nossas inspi­
rações, a guia de todos os nossos passos, o o bem como já vimos,
não c de uma só especie, não é o mesmo em todos os aspectos
sob os quaes podemos conceber as acções e os tins do homem.
0 Direito Natural, partindo do mesmo ponto superior e diri-
gmdo-se a um alvo final idêntico ao da Moral, comtudo prose­
gue na sua missão por vias, e com auxiliares differentes. As
suas orbitas com quanto se toquem, jamais se confundem -, ellas
tem o mesmo centro, mas diâmetros diversos em direcção e ex­
tensão.-v ‘
A Moral prescrevendo a cada homem a pratica do bem não
tem em vista senão o proprio bem em si, e na sua mais alta
concepção *, ella procura antes dc tudo purificar a vontade hu­
mana na sua essencia, porque quer o homem absolutamcnle
.111.\ , ll cada um, senão exclusiva ao menos
principalmente, em nome de seu unieo e proprio aperfeiçoa­
mento interno. () Direito Natural é menos ideal c monos exi­
gente nas suas vistas e regras. Impondo estas a cada indiví­
duo, as impõe apenas em nome de seu bem ser commuin ex­
terno •, procura simplesmente garantir a sociabilidade entre os
homens, e as condições tambern puramente externas de sua
manutenção e desenvolvimento harmônico. l£llc contenta-se
que cada um seja bom até onde deve e póde sel-o sem o míni­
mo sacrifício do que é seu, das cousas ou vantagens que lhe
pertençam ou devam pertencer-lhe •, e gradúu o valor de suas
acções segundo a sua simples conformidade ou desconformi­
dade com este principio.
D-este caracter particular do direito, e de sua missão ex­
clusivamente social, consisteute ein assegurar a harmonia ex-
17
toma da» liberdades iudividuaes de modo quo mio se prejudi­
quem mutuuincntu no sou exercício, som entrar na npredação
.da bondade especifica ou intrínseca das acções ern si mesmas,
resulta ainda, que escapam de lodo á sua jurisdicçAo as obriga­
ções de cada homem para comsigo proprio, (pie entram no do-
niiuio da Moral, e as que di/.em respeito á Divindade, que per­
tencem á alçada da Iteligi.lO. A pratica ou omissào dc taes de­
veres nada implicam, com elleilo, com a idéa de justiça, senão
(piando involvem em si quebra de obrigações jurídicas naturnes
mi legitimameulc cordrabidas para com outros. Na o se póde
chamar propriamente injusto o suicida ou o athèo, com quanto
a Moral o a lleligião os olhem com bom fundado horror.
'i':’ certo que tudo o que o Direito Natural ordena ou pro­
hibe é ordenado igualnicute ou probibido pela Moral. Isto
provém de que sendo esta mais ampla do que aquclle, compre-
iiende em sua alçada toda a especie de bem, inclusive aquclle
que é objecto dus prescripçôcs jurídicas, apropria-se d'estas,
presta-lhes a sua saneçüo, e addicioua-lbes a sua autoridade;
de modo que não se pode ser injusto sem ser-se ao mesmo tempo
immoral. Mas, mio sc confundem por isso o Moral e o Di­
reito Natural, desde que aqtiella proposição não pôde scr in­
vertida com igual verdade. Coin elfeito, nem tudo o que a Mo­
ral ordena ou prohibe, é ordenado ou probibido por aquelle Di­
reito ; e a razão d’isto é a inversa da que acabamos de exhibir :
é que o Direito Natural tem uma esphera mais rcstricla, não
eoinprchendc todo o bem que a Mora! abrange na sua ; pelo que
pódo-se ser immoral sem ser-se injusto. Itealmente não c ap-
plicavcl esta ultima qualificação ao credor rico c avarento quo
reduz á miséria o seu devedor pobre, embora perante a Moral
elle seja um monstro. Devem, sem duvida, votai-o á execra­
ção todos os homens d'alrna generosa ; nuis a sociedade ou suas
leis não tem coinpctepeia para impôrem-llie a virtude' sublime
• da caridade.
São, pois, da alçada da Moral unicamente as acções que.
tem ou pódem ter um valor proprio ou intrínseco, ou suscep­
tíveis de mérito e demerito propriamente tal, segundo a inten­
ção que as tenha determinado, ou independentemente dos seus
moveis ou resultados exteriores ; acções; por tanto, que, n’este
mundo só o proprio que as pratica, e. a Divindade no outro, pó­
dem apreciar ; ao passo que as acções que pertencem ao do­
mínio do Direito Natural não pódem deixar de ser reguladas
e apreciadas pela sociedade, c apenas segundo os seus efleitos
reaes na mesma, independentemente de seus motivos. Não lia
mérito ou demerito mx sua pratica ou omissão : lia sómente
:} F . •
18

cumprimento ile dever no primeiro caso, e olleusa nu crime nn


segundo. Aquelle que com a intenção perversa de matar al­
guém, ou de fazer-lhe algum ilanino, involuntariamente o sal­
vasse da morte, ou llie fizesse, um beneficio, estaria quite, com
a lei do Itireito, nada lhe deveria ; em quanto que ante a Moral
estaria incurso, apezar d’isso, em grave coudemunção.
Quer isto dizer (jue o fòro da moral é a consciência indi­
vidual onde reside a intenção, alvo immediato a que ella se di­
rige ; e o do hireilo Natural é o grêmio externo da sociedade,
sobre a qual directamente influem as acções que elle regula ;
que os preceitos moraes tem por garantia única de sua obser­
vância ua terra a moralidade do proprio agente, e por unica pu­
nição o remorso ; ao passo que os actos jurídicos são essencial­
mente exigíveise puníveis; dc modo quê aquelles que não re­
conhecem ou não respeitam os direitos alheios, devem ser a isso
forçados pelos trihunaes sociaes; isto é, que a possibilidade da
coacçao material é uma condição legitima e indispensável para
a realidade dos direitos, em quanto que Moral coagida, virtude
imposta pela força,são idéas que se contradizem, que se destróem.
U Itireito Natural só tem punição para os que infringem
as suas preseripçües ; não tem recompensa de especie alguma
l>ara os que as cumprem ; entretanto que a Moral não só pune,
pelo remorso proprio e animadversão dos mais, o menosprezo
ilos seus preceitos; mas lambfcm premia aquelles que os obser­
vam a risca pela satislação interna que dá a pratica da virtude,
e pela boa opinião e respeito que esta necessariamente Ihesgrun-
geia da parte de todos, j Quem cumpre lielmenle a lei moral
tem razão pura louvar-se em sua consciência; quem observa,
porém, a lei jurídica diante de cujas infracções se levanta mais
ou menos proximo -e certo o argumento da força que a impõe
e o espectro da pena com que a sociedade o ameaça, nenhum
motivo lem para applaudir-se, ou julgar-se merecedor de elo­
gios. Vem isto do caracter que já lemos‘attribuido aos deveres
jurídicos b moraes, de serem os primeiros, em geral, puramente
negativos, e os segundos positivos; de modo que para ser-se
justo basta que cada mu se abstenha de aelos perturbatorios da
legitima liberdade alheia ; e para ser-se moral não é suflicieutc
que cada um se.abstenha das acções moralmente mas, é preciso
que pratique efteclivamente as acções boas ; isto é, vem de que
pela observância do dever jurídico dá-se ou faz-se aos outros
apenas aquillo que realmeute llies pertence ou lhes é devido,
não se impõe a si proprio sacrifício algum ; ao passo que pela
acção moral aquelle que a pratica cede sempre alguma cousa
do seu. ou luz um sacrifício qualquer porum movimento espou-
I!)

taneh p livre <lc ioda a pressão externa. Na «acção simples­


mente justa entra sempre, mais ou menos uma idea de vanta­
gem própria, ao p.asso que acção verdadeiramente moral deve
ser isenta de todo o calculo, lillia da pura abnegação. Na or­
dem moral é preciso um esforço para a pratica da virtude ; na
ordem jurídica, se algum esforço é necessário não é para a ob­
servância, mas ao contrario para a violação d,a justiça.
Km surnma, a Moral é sempre a mesma em todas as situa­
ções e pliases da vida humana •, o seu preceito c um só, puro,
simples, inflexível, e, impõe-se aos homens na sua unica quali­
dade fundamental de homens. .0 que é de sua alçada basta ser
possível para ser devido; quem pôde fazer o hem a outrem
é pela Moral eslrictamenle obrigado a fazel-o ; nus seus domí­
nios não ha cousas ou acções simplesmente licitas ou pcrinit-
tidas, só as ha obrigatórias; não ha faculdades, só ba deveres.
No Direito Natural ha umas u outras; porque ha direitos de
uma parte e obrigações de outra: direitos e obrigações roei- •
procas, cuja realisnçíio e garantia tornam necessária a existên­
cia da sociedade e sen complicado mcehanismo ; n qual, aliás,
nada tem com a Moral nem a Moral com ellc, a tiSo ser como
um auxiliar poderosíssimo, sem duvida, mas estranho e de um
caracter, por assim dizer-se, officioso.
o Direito Natural é também absoluto em seu principio
geral, mas modifica-se em suas regras particulares applicaveis
ás diversas condições da existência social. A Moral não c assim ;
tal é a simplicidade de seu contexto, e o rigor de sen preceito,
que o que é moral ou immnral sob qualquer relação, o é em
todas. Klla é absoluta não só no seu principio como nas suas
appiicações peculiares, li esta é a razão porque, ella não é sus-
ceptivel jjc ui carece de ser reduzida a codigos. Klla não se
prestwdiv-ioodf» algum ás combinações ou ioducçòes mais ou
menos accertadas e legitimas que os legisladores da terra são
obrigados a tirar da noção geral do justo para prescreverem as
disposições adequadas a todas as relações hypothcticiis que re­
sultam do estado social. «Ama a teu proximo como a ti mesmo ;>•
eis toda a Moral, eis a sua lei unica ; e nenhum homem póde
ignorar em que consista a sua pratica; ella não precisa de ex­
plicações nem de interpretes. As maximas, porém, do Direito
Natural, ainda as mais simples — ■«sé justo,« — dá a cada um
o que é sen «— nem sempre tem sido bem comprehendidas em
todas ns suas appiicações possíveis ou em seus naturacs elTeitns,
e pódern sem injustiça ser diversamente realisnd&s H08 seus de­
talhes.
si. pois, o Direito Natural e a Moral se ligam por ãígum
lado, por nulros sc destacam ; sc não sc repello.m lambem não
se confundem. Elles prestíun-se um mutuo auxilio, dão-se as
mãos para conduzirem o homem aos grandes fins que lhe mar­
cou a natureza-, uma purificando a vontade humana em sua
própria essencia, e o outro nos seus desenvolvimentos exterio­
res ; uma impondo-lhe o hem pelo proprio bem. se.m altcnçào
aos seus reaes effeitos e o outro como condição da ordem, har­
monia c prosperidade externas da sociedade. A Moral pretende
fazer do homem um lypo superior ao commum de sua especie,
e o Direito Natural limita-se a impedir que elle desça abaixo
de uma linha mediana além da qual se degradaria, lima tem
uma cspliera mais ampla, falia mais ao homem de seu destino
final c divino ; o o outro em uma região menos sublime, pôe-se
em contacto immcdialo com a sua vida real; c falia-lhe mais dos
seus fins actuncs e. terrenos. I ma procura determinal-o pelo
proprio atlrativo da virtude, c o outro pela ameaça mais ou me­
nos immediata do castigo.

« Noluerunt pecçare maii fomidinc pauire,


« Oderunl peccare boni virtulis amore. »

« A Moral c o Direito Natural de todo clislinctos e. separados,


diz Ahrcns com muita razão, lançariam a desordem na .socie­
dade -. mas dislinctos e unidos são duas alavancas poderosas
de todo o progresso.» São duas grandes leis que se completam
c se corrigem muluamentc, c de cuja harmonia perfeita de­
pende em todo o sentido a felicidade humana mas de. harmonia
a confusão a distancia é, enorme. \ Moral sem o Direito Na­
tural seria uma legislação impossível para o homem como elle c ;
sõ seria própria para uma sociedade de anjos assim como a so­
ciedade humana que só se regesse pelas prescripçõo» estridas
do Direito Natural, seria uma sociedade de egoístas, que não
daria satisfação aos mais nobres impulsos e aspirações do co­
ração e do espirito humano.
líceeios d’esta especie ou quaesquer outras razões seme­
lhantes tem induzido alguns authores a desconhecerem a dis-
tineção entreo DireitoNatural ca Moral, c a identificarem aquelle
com esta, c até em grande parte com a Keligltto, deslembrados
de que assim como a ninguém é dado divorciar o que Deus unio
charmonisou, também a ninguém, nem a sociedade almima é
licito confundir de todo o que a natureza destinguio. S em e­
lhantes receios são vãusjealé, muilo maioresemais reaes seriam
os perigos que para a sociedade humana resultariam d’àauella
confusão. 1
A sociedade seria, com efieilo, impossível, seria um calios,
desde que entre o dever jnridico c o dever simplesmente moral
mio houvesse dilTercnça capaz dc efloitos práticos, ou que os
aclos de pura bcneílccncia podessem ser exigidos; ou fossem
deixados á mera consciência de cada um aquelles que consti­
tuem a matéria própria do Direito Natural; desde que, linal-
mente, o mendigo oiro proletário podessem obrigar o rico ou
o proprietário a fazer-lhe a esmola, ou a ceder-lhe uma parle
' qualquer de sua propriedade ; ou esles não podessem coagil-os
a absterem -se de semelhantes preterições, e a respeitarem
o que é seu. (4) *
Tal lheoria, porém, não passa de ijma manifestação para­
mente Platônica dc adltesão exagerada ao dever da beneficên­
cia. Isto é, por uma simples aífeclação de rigorismo no modo
de considerar a Moral, e de ligar o Direito a esta e á lieligião ;
ou por uma ostentação Ião falsa, quanto deslocada, de preito
á virtude p ú piedade, que todos devemos acatar e que aquclla
distineção, aliás, em nada prejudica, recusam os citados aiitlio-
res admitlir a expressão da cousa; mas no fundo a reconhecem.
Proclamam a Moral e o Direito Natural uma só lei; mas nas suas
applicações praticas dão renlmenle, maison menos,a cada uma
a parle e o valor que lhe compelem ; dislingucm-n’as de facto,
e tanto como nós, porque têm a consciência de que levada tal
doutrina ás suas ultimas e lógicas consequências cahiria no
communismo da peior cspecie—no da lyrauia ern nome da cari­
dade convertida em lei jurídica, ou no da anarcliia em nome da
impunidade dc todas as usurpações postas sob a protecção da
lei moral. (5)

(•») O Estado estabelece muitas vezes impostos em beneficio dn


pobreza, da fundação de hospitaes, de asylos, ete. Mas não o faz de
modo algum pela consideração dc tornar effecliva a moralidade dos
contribuintes, nem em nome da Moral. E’ puramente em nome da
ordem o utilidade social que esse simples dever moral dos cidadãos
e convertido em obrigação legal. O Estado póde e deve fazel-o;
mas poderá cada indivíduo n’ello exigir dc outrem a esmola ou qualé
quer d aquelles soecorros ou pretender com direito aos mesmos, índe-
pcndontemenle de lei positiva que os tenha determinado ? De certo
não.
(.">) A matéria dos §§ 10 ft 11 acha-se explicada a pagina 10.
SECÇÃO SEGUNDA

THS PARTS* F DUS LIMITF.S DO DIRF.ITO NATURAL F. PV UTILIDADE


b<» m p rro Na tu ra l privado

z~r
§§ 12 — 15

Dirisito do Direito Natural em geral; r sua distincção


da Política

Na sua segunda secção traia o Compendio,- primeiramente


da divisão do Direito Natural em seus diversos ramos especiaes ;
depois mostra-nos a differença i]ue existe entre elle, e outras
scieneias que igualmenle entendem com a vida social dos ho­
mens -, o flualmeute, a utilidade do Direito Natural privado, que
e tint d'aquelles ramos particulares em que se divide, o Direito
Natural tomado em sua mais lata accepção.
Assim considerado, com eíTeito, pôde o Direito Natural ser
dividido de diversos modos, segundo os pontos de vista, sob que
se encarem as relações que elle se destine a regular -, e tantas
sao realmente essas divisões a que elle, tem sido snbmeltido,
c sob tão vários aspectos, que teríamos de ser demasiadamente.
prolixos, h»*m grande proveito, se ws quizessemos en numerar
e analysai- todas, ümitar-nos-bemos, por tanto, a estabelecer
pouco mais ou menos as mesmas divisões que nos dá o Com­
pendio nos §§ 12 e 13, as quaes nos parecem, em geral, boas
e sumcientcs, e a faxer apenas a seu respeito as reflexões que
julgarmos convenientes para melhor as esclarecermos.
No Compendio do Sr. Terrer se poderá ver outras muitas,
ruja maior parle e, em nossa opinião, de utilidade pratica pelo
menos n.uito duvidosa.
Digitalizado pelo Projeto Memória Académie I FDR - UFPE

A primeira divisão do IMreito rSiitiir.il, que nos dá o Com­


pendio é — em Direito Natural extra-social e Direito Natural so­
cial. Delo primeiro entende elle o Direito Natural que se ap-
plica pro|iriainente ás relações de. indivíduo a indivíduo, de
cada familia considerada em sua unidade collective para com
cada outra, e de cada Estado tainbeni para com cada Estado.
K pelo segundo entende o Direito Natural que regula as relações
reciprocas dos membros de cada lamilia entre si, assim como as
que existem entre o Estado eseos cidadãos.
Aquclla primeira divisão não quer dizer, certamente, que
haja um Direito Natural para o homem fóra da sociedade e outro
para o mesmo no grêmio d’esta ; nem parte da bypothe.se gra­
tuita, pela qual se tem figurado real ou possivel a sua existência
em um estado de pura natureza. E assim explicado o seu verda­
deiro sentido não temos duvida cm admittil-a, com quanto seja
certo: t.°que cila ú no modo de enunciar-se jiouco conforme
a significação em que os seus lermos são empregados ordinaria­
mente, quer na linguauein comuuun, quér nada propria scien-
cia• e 2.° que as relações de lamilia n familia, ou as das famílias
para com o Estado, são de tal sorte absorvidas nas relações in-
dividuaes, e nas que lia entre o Estado e os cidadãos, e vice-
versa. que podem parecer impróprias para constituírem objcclo
especial de um ramo d'aquelle Direito, ou uma divisão princi­
pal d’elle.
A mais importante divisão, porém, do Direito Natural to­
mado na Sua maior generalidade, é, sem duvida, a que nos dá
o Compendio no § 13, feita sob o ponto de vista da independên­
cia ou sujeição em que so pode considerar os tinmens em rela­
ção a um poder social, isto é — em Direito Natural privado, e em
Direito Natural publico. No primeiro d'estes se com prebendem
todos os direitos originários ou adquiridos dos indivíduos, e os
dos membros da familia entre si, « para com seu chefe, o d’este
para com elles; e no segundo todos os direitos existentes entre
os poderes constituídos na sociedade politic«, e os seus cidadãos
e reciprocnmeutc, assim como os dos diversos Estados uns para
com os outros.
O Sr. Abreus julga demasiadamente vaga essa divisão
K pensa que alguns ramos do Direito Natural privado assim con­
cebido, se púdem encarar indifTereiitemeule n'ello ou no Direito
Dublico, Assim, diz elle, que por um lado o direito do indiví­
duo e o da familia pertencem igualmenlu a este, quando sao con­
siderados o indivíduo ou a familia em suas relações soriaes.
« que por outro lado o Direito privado suppôt', sempre o Estado,
c sua protecção, c c stijeilo ás reslricções que cale lbc impõe no
interesse commnm. Tudo isto é certo, mas ainda assim não
nos parece razão bastante para regeitar-se aquelta divisão.
Com quanto seja real e intima a relação que liga e enlaça
os direitos d’uqucllas duas cathegorias, nem por isso elles se
confundem, e podem ser bem reconhecidos c estremados até
nos codigose legislações positivas em que a sua afflnidude se
acha mais ou menos promiscuamcnte consagrada. Do mesmo
modo a circumstancia de presuppòrem um c outro a esislcncia
do listado e a sua protecção, de serein ambos sujeitos ás suas
prescripções, não é procedente objccção n'aquelle sentido. Se­
melhante argumento provaria de mais ; puis que á prevalecer
elle, nenhuma divisão seria possivel fazer-se no Direito em geral
sob tal relação, que é incontestavelmente uma d’aquellas em que
triais convém considerpl-o.
O mesmo Sr. Ahrens divide o Direito Natural, já em rela­
ção aos fins diversos a que se dirigem os homens, já ás diversas
entidades, a quem o direito compete-, divisões que o Sr. l'errer
tambem indica. No primeiro sentido, temos: l.° direito de re­
ligião-, -2.° direito dc sciencias e artes ; 3." direito de instruc-
ção; 4.® direito de industria -, ò.° direito de eommercio -, G 0 di­
reito de moral : ?.° direito do Estado -, o qual elle subdivido
ainda. No segundo sentido lemos: i.° direito individual -, 2.° di­
reito familiar; 3.“ direito municipal; 4." direito nacional;
f>.° direito das gentes ou internacional.
Vejamos, porém, se estas divisões do Direito Natural são
isentas de defeitos, (juér sob o ponto de vista do estudo me-
lliodieo da sciencia, quer sob o de suas applicaçòes praticas
mais importantes, não nos parecem ellas preferíveis ás do Com­
pendio. Demais, em si mesmas peccam ambas conlra as re­
gras da lógica, pois que seus diversos membros, prineipalmenlc
na primeira, entram uns pelos oulros ; e qualquer d’ellas, apezar
de sua extensa enumeração, nem por isso abrange lodo o quo
pretende ou devia abranger.
Na primeira poder-se-hia, já reduzir a menor numero os di­
versos grupos de direitos que eila consigna, ejá accreseentar-lbe
alguns novos, que se referem a cousas ou afins humanos que ahi
são omittidos; e na segunda poder-se-hia igualmenle consignar
outras cspecias de direitos da mesma ordem, tues como : o d i­
reito parochial, o direito cantonal, o direito departamental ou
provincial etc., etc. -, tantos, cm summa, quantas podem set­
as diversas cspecies de circumscripções terriloriaes civis, polí­
ticas ou administrativas, mais ou menos arbitrarias, do paiz ou
paizes que tornássemos por modelo.
Em ultima analyse, com quanto tacs divisões não se possam
considerar propriamente eoino falsas ou repugnantes, também
não pódem ser acceitas como as melhores divisões geraes do
Direito Natural, nem as mais apropriadas para substituírem
a que nus dá o Compendio, consagrada, com razão, pelo uso
• commum e pela maior parte dos jurisconsultos, como aquella
que, com elfeito, melhor corresponde ás duas importantes con­
siderações a que á pouco nos referimos.
O Direito Natural privado cspecialmcnte se divide, (e esta é
a sua divisão mais capital) em Direito Natural absoluto que 6
aquelle em que se deduzem de um principio supremo ou imme-
dialamente da própria natureza humana os direitos innatos do
homem ; c em Direito Natural hypothelico, que é aquelle que
tem por objecto examinar e estabelecer a possibilidade juridica
de adquirir-se outros, e abrange todos os que o mesmo homem
possa alcançar, ou alcance de facto, pelo maior ou melhor des­
envolvimento de suas faculdades, ou segundo as aptidões c re­
cursos proprios de cada um. Por sua vez, o Direito Publico se
divide lambem em Direito do Estado ou interno, ou Direito Pu­
blico propriamente dito, c em Direito das Gentes, externo, ou
internacional. E assim temos as diversas divisões que do Di­
reito Natural, considerado em sua maior compreliensáo, nos dá
o Compendio na ultima parte do seu citado § 13.
Indicadas as principaes divisões do Direito Natural em ge­
ral, cumpre-nos descriminal-o das outras scicncias que. com elle
tem relações de alTInidade: o havendo-o já feito quanto á Mo­
ral, fal-o-hemos quanto ás mais que o Compendio menciona no
§1-1, começando pela Política.
A linha divisória entre esta e o Direito Natural, que é sem
duvida bem real, nem sempre foi, entretanto suffleientemente
comprchendida, ou respeitada. Umas vezes confundindo-se, por
ignorância, o Direito Natural e a Política, tem-se deduzido d’estc
mixlo uma collecção de princípios pouco acceitavcis e apenas
accommodados aos cálculos dos governos ; outras vezes eom-
prehendendo-se embora sua dislincçáo, mas reconhecendo-se
que o Direito não podia prestar-se a esses cálculos, procurou-se
pôr a Política inteiramente fóra da sua superintendência, erean-
do-se para cila regras a parle, e reduzindo-se-a, como dizia
Dcmosthcncs no seu discurso da corda «á arte de ser-se injusto
impunemente.“ Mas os progressos da sciencia moderna, e o
estudo mais consciencioso das regras e princípios moraes que
devem presidir a conducta quer dos indivíduos, quer das Nações,
têm condemnado esta política que foi a da maior parte dos
povos antigos, a de Machiavelli no seu livro do Principc, e que
infelizmente ainda não deixou de ser dc todo a dos Estados po-
i F.
dcrosos, mesmo no nosso tempo, que abusam ordinariamente
de sua força para impôrem aos fracos não o que é justo, mas
o que lhes é conveniente.
Entretanto ê incontestável que a sciencia tem melhorado .
a política actual •, ella ensina, em todo o caso, embora suas lic-
eões nem sempre sejam seguidas, que não ba uma honestidade
para os indivíduos e outra contraria ou diversa para os povos
nas suas mutuas relações, eque a política não pôde obrar livre­
mente senão a respeito d’aqnelles actos ou expedientes que não
se opponhum a lei da justiça, que é urna e a mesma para estes
c aquelles; ou como nos diz o Compendio, que a política só deve
ser consultada quando não ba duvida sobre o direito, e jamais
em opposiçào a elle.
.Vesta mesma idéa abunda o Sr. Forrer. <■O tVireüo Na­
tural, diz elle, c a sciencia dos direitos, ao passo que a política é
a sciencia dos meios mais adaptados para o exercício e garantia
d’aquelles, segundo as circumslancias das Nações. Quando ha
direito a política decide se ha conveniência cm usar da liber­
dade jurídica, quando porém o não ha, por mais urgentes que
pareçam as reclamações da mesma, é forçoso fechar-sc os ou­
vidos e cumprir-se á risca os deveres jurídicos. » A posteri­
dade pela voz das gerações tem feito a devida honra à nobreza
da conducta dos Athenienses quando informados por Aristides
sobre a proposta secreta de Th chi is toei es que devia assegurar
a Athcnas a superioridade sobre todos os povos da Grécia, re-
gcitáram-n’a por injusta Cj •, assim como tem, com razão, ma­
culado a doutrina altarnente professada pelos l.acedemonios so­
bre a justiça de tudo o que era util a Sparta: política que mais
tarde os atirou vergonhosamente nos braços do Grande ttei,
e por fim os fez cahir para sempre em Louctres.
A política é, pois, simplesmente a sciencia do que convém
nos Estados dentro dos limites da lei do justo, entretanto que
o Uireito é a sciencia d’aquillo que se deve fazer quér entre indi­
víduos, quér entre as Nações, apezar das conveniências ern con­
trario já d’eslas, jã d’aquellcs. A política decide-se soh as in­
fluencias externas e variadas dos tempos, lugares e mais cir-
cumstancias dos povos, funda-se particularmentc na observação

(0) Essa proposta consistia om incendiarem os Athrniensea, no


porto do Pyreo, a frota da l.acedemonia e dos seus atliados com quem
os mesmos'estaiam entao em paz, é com quem acabavam de expulsar
es Tersas do terriforio Giogo.
dus fados o dos sens resultados em condições analogas, e o Di­
reito estabelece « priori princípios invariáveis na sua maior ge­
neralidade c conformes aos elementos constitutivos da natureza
do homem edas Nações, princípios permanentes, e <pie de ne­
nhuma sorte dependem do arbítrio individual ou social, antes
lhes sito superiores e devem dominal-os. Em política póde ser,
por tanto, ao mesmo tempo permittida aos Estados a adopção
de tal ou tal medida ou de outras opposlas cm relação a si mes­
mos, ou aos mais, segundo as occasiões ; o Direito, porém,
é sempre um e idêntico em seus princípios fundamentaes. O que
é conveniente em cortas circumstancias póde não sei-o, e ser
até fatal em outras ; mas o que é ahsolutaménte injusto não
póde deixar de sei-o em qualquer epoclia ou lugar. E’ assim que
a historia das Nações nos mostra realmente umas miseráveis
e dccahidas, muitas vezes sob o mesmo systema de governo,
instituições ou leis que llzeram ou fazem à grandeza e a pros­
peridade de outras ; e umas e outras iiidislinctainente felizes ou
infelizes sob regimens diversos, ou antes opposlos. O que
e certo, porém, é que nenhuma será jámais vcrdadeiramenle
grande e prospera, ou mesmo poderá subsistir longo tempo sob
° Predomínio mais ou menos permanente da injustiça, ou da
deshonestidade nas suas relações internas para com seOt mem­
bros, ou nas suas relações exteriores para com os mais.
Si o Estado, a titulo de política privada ou publica, nas re­
lações de seu proprio governo interno, ou nas que mantém com
os outros, fosse autorisado a sacrificar o que è justo ou honesto
ao que é ou lhe parece util, nenhuma razão haveria para que
cada homem deixasse dejulgar-se igualmente autorisado a pro­
ceder da mesma firma nas suas relações particulares com os
mais e com o proprio Estado ; e então em vez do principio eterno
c salvador da justiça como regra de conducta na sociedade,
ter-se-hia n’esta por unica lei o arbítrio individual, e o reinado
da desordem e da violência entre os homens.
A política seria assim, em vez do meio mais adequado para
manter-se e bem dirigir-se o Estado, o meio mais proprio para
aniquilal-o e tornal-o impossível. Esta scíéncia que tem exac-
tamente por objecto a sua conservação e aperfeiçoamento me­
diante o seu bom governo, cuja principal condição é a justiça,
nao póde, cm summa, ser de modo algum contraria a esta ou
ao Direito, com quanlo com elle se não confunda. Sem iden­
tificarmos, pois, a política com o Direito, segundo as ideas do
1'latão, c sem os extremarmos inteirarriento,segundo as de Aris­
tóteles, devemos deixar a cada uma d’essas scicncias a missão
nobre que lhe é especial o que se encontra em um ultimo fim
28 .
geral e commum, que é a maior felicidade possivel do lioinem
social, e o progresso indefinido da sociedade liumana. Elias
•levem marchar unidas, como dissemos em nossas 1'relecções
impressas de Direito Dublico, pois que o seu terreno é o mesmo
sempre que o justo e o util social coincindem. Ahi lhes são com­
muns todos os grandes poblemas relativos á organisação e go ­
verno dos povos. Dados pelo Direito os princípios geraes de que
não é licito ás Nações affastarem-se em sua constituição e re­
gímen, compete á política escolher entre elles, c applicar os que
fôrem mais convenientes segundo as condições d’aquellas.

,íéi
L IO C A C V

§§ 10 — 17

Necessidade do Direito positivo* c seu fundamento; especies


de leis que n'elle se comprehcndem ; distincçào do Direito
Natural em relação ao mesmo, e. a sua philosophiez.

A exislcncia e realidade das leis naturaes, por mais incon­


testáveis que sejam, não dispensam a decretaçfio de leis expres­
sas na sociedade, estas são o complemento imprescindível
d’aquellas. O principio do justo deve neeessari rmente ser o seu
oráculo ; mas por si só elle não poderia, jáoppòr uma barreira
efficaz aos cálculos da chicana c da má fé d’aquelles que quize-
zessem infringir os seus preceitos, ou « franquear, como diz
Ileliinc, o caminho da justiça aos que n’elle desejam marchar
com segurança, » e já, na sua generalidade, applicar-se a todas
as relações especiacs da vida social. Apenas poderiam as leis
positivas dispensar-sc, e isso mesmo sómente na parte cm que
declaram os direitos absolutos dos homens, se estes fossem
todos isentos de fraquezas c paixões, se reputassem sempre os
dictâmes de sua consciência hem esclarecida como obrigações
sagradas e superiores a todas as considerações e influencias.
Desde, porém que, assim não é, e que não é possível attingir-se
esse idéal de perfeição humana, são indispensáveis aquellas leis,
e sua intervenção na propria csphcra dos direitos absolutos do
homem ; porque se as que impõe a simples natureza com a sua
linguagem clara, porém muda, nem sempre convencem a todos
do dever de sua estricla observância, aquellas lhes vêm em
auxílio com a força publica que as faz elíectivas e com sua pena­
lidade bem definida e prompta ; e porque realmcntc só as leis
positivas pódem dar em seus detalhes aquellas regras particula­
res a cuja necessidade aeirna alludimos.
O Direito positivo acompanha o Direito Natural na divisão
que d’este dêmos em nossa precedente lieção : elle é também
30

privado ou publico. O publico, di/,-nos o Compendio, funda-se


em um pacto, c o privado na vontade do soberano. Vejamos,
porém, se estas asserções devem ser acceilas, ou com que res-
tricçòcs pódem sel-o.
A primeira parece presuppòr a doutrina d’aquelles que
pensam que a sociedade civil provém de uma convenção ex­
pressa ou tacita entre os homens, e por cila subsiste ; ou refe­
rir-se á falsa tlieoria do contracto social a que ttosseau prestou
todo o brilho e prestigio de seu tão grande quanto excêntrico
talento. Mas nem a historia dá noticia de semelhante conven­
ção no passado; ou de qualquer facto que induza a crèl-a re al;
nem a aualyse directa da natureza humana e da própria socie­
dade, autorisam a admittil-a ou a suppôl-a possível; c final­
mente quando em algum tempo tivesse sido feita, não poderia
obrigar as gerações posteriores e actuaes que n’ella não toma­
ram parte. L’ aliás certo, que a sociedade civil c um facto ne­
cessário, (pie ella é filha lorçada do instiuclo natural da própria
sociabilidade humana, e continuada, além d’isso, necessaria­
mente pela reflexão.
I>a mesma forma o Direito publico positivo pelo qual se
rege cada Estado é uma consequência imposta pela necessidado
, própria instituição e organisação d‘cste ; e tanto menos se
deve baseai-o em um pacto, quanto n’elle se comprelicndcm,
como adiante veremos, nao só as leis propriamente dependentes
ua vontade cio soberano social, mas lambem as leis naluraes,
rÜI--°ira ll>'l,oll,eticas; (1,IC o *'acto da associação suppõe e ne-
CCSSIlll,
Apenas, pois, quanto ás leis d’aquella primeira cspecie,
e simplesmente quanto ao modo da promulgação e meios pra-
ticos da execução das da segunda, se poderá altribuir ao Di­
reito publico positivo outro fundamento que não a propria na­
tureza do homem e da sociedade. Mas em todo o caso não se
pode dar como tal uma convenção ou pacto, c sim um simples
assentimento, e esse mesmo obrigado, dos cidadãos, como con­
dição para o serem c em quanto o fúrem, ao'que foi reconlic-
K h m T - ad° Pda W1 l0talidadlí' l)U « » i o í í où Io, seus
legiiimos orgaos sociaes. como necessário ou ulil á connnunhão.
nnr a„ ^,u â.ía q,ue " esse .accúrdo de 11m numero maior ou me­
nor de cidadãos ha ja exactamente uma convenção7 Não por-
X tíê ltl í ' ,» > entre lo ta , mes apenas Se
ílUo, Oftim nos m:ui' no eereeter o termos acinte
nos, como tombem porque o que d’abi resulta nnra os nro-
pnos que n elle intervieram não é urna obrigação L vcncional,
51
mas uma sujeição, a que não podem, assim como 08 mais, sub-
trahirem-se livremente depois de estabelecida.
Demais, o que acabamos de ponderar acerca do Direito
publico positivo, é igualmente e em todo ponto, applicavel ao
Direito privado, ao menos na parte em que elle se compõe tam­
bém de leis puramente dependentes do soberano da sociedade.
Assim, já por esta razão e já porque não sendo a soberania
social, segundo os princípios da sciencia, outra cousa senão
a vontade geral ou tal presumida dos proprios cidadãos, uma
convenção destinada a promulgar c fazer vigorar entre elles
qualquer direito não poderia ser senão um" resultado d’esta
vontade, segue-se que, em ultima analysc, o fundavmnto quér
do Direito publico, quér do Direito privado positivo, em a ser,
e é realmcntc o mesmo.
Conseguintemente aquella primeira asserção doCompendio:
que o Direito Publico funda-se cm um pacto, não nos parece
exaetn, pelo menos se se toma a palavra — paclo — dc que elle
abi usa, no seu sentido proprio e jurídico.
Quanto á segunda: que o Direito privado funda-se na von­
tade do soberano, é ella verdadeira unicamente se quer dizer,
que a decretação expressa das leis, e o emprego dos meios para
tazer-se enectiva a sua execução, pertencem ao supremo poder
social, ou áquellcs que no Estado exercem a soberania. Seria,
porém,'falsa se pretendesse estabelecer (pie todas as disposições
do Direito positivo são méros resultados do arbítrio d’quelles,
tomando-se mesmo esta palavra — arbítrio — no seu melhor
sentido. Mas não e este rcalmente o pensamento do Compen­
dio porque se elle diz, no principio do seu§ 1(3, que alei fundada
n esse arbítrio chama-se positiva, c que o complexo ilVIlas cons-
hlue aquelle Direito, couitudo é elle proprio que ruais adiante,
n esse mesmo paragrapho, abrange n’e.ste Direito não só essas
leis por elle denominadas arbitrarias, mas lambem outras de
diversas espécies e que tem um fundamento mas solido, mais
nivanavel do que a vontade de qualquer soberano social; leis
que este deve sanccionar dc um modo expresso e fazer effecti-
vamento observar, mas que, em caso algum lhe é dado suppri-
nnr ou alterar de modo essencial.
Quér estas, quér as leis propriamente dependentes da von­
lade soberana da sociêdade, se reduzem, com eíTeito, a leis es-
ciiptas para compòreni o Direito positivo privado ou publico
de qualquer Estado: e no complexo de umas e outras se d is -
litiguem diversas classes, que são quatro principaes, segundo
o compendio no paragrapho de que nos occunamos, e lambem
fegnndo o Sr. Fcrrer.
Assim comprehcnde-se 110 Direito positivo:■
1. ° As leis naturaes e absolutas da natureza humana, ap-
plicadas ás relações individuaes de homem a homem indepen­
dentemente de qualquer concepção do estado social-, leis que
a razão pura indica, que não são positivas pelo seu conteúdo,
mas só pelo modo de sua publicação, e que constituem o Direito
Natural privado absoluto.
2. » As leis que, supposla a sociedade, são igualmente da­
das pela razão, leis que são também naturaes, mas hypotheti-
cas pelo facto da existência social, dc que dimanam immediata-
mente, e só medialamente da natureza humana -, que nascem de
necessiüifles communs a toda a Nação constituída ; que mais ou
menos ste exprimem em termos equivalentes-, c que formam
o Direito civil universal dos povos.
3. “ As leisRlhasdas modificações, como se exprime o Sr. Fer­
rei-, que a política determina n’aquellas, conforme as relações
internas ou externas do Estado ; leis nascidas das necessidades
de cada Nação, e que com as «la classe seguinte, pela sua varie-
t ade e còr local, constituem o direito privado de cada uma e as
dmerenças características de suas legislações ; são ellas leis hy -
potheticas em razao dc circumstancias particulares, e só mais
remotamenle que as da classe precedente ligam-se á natureza
essencial do homem.
-i.0 As leis propriamente arbitrarias, possíveis nos casos
em que e também possível o arbítrio do soberano sem offensa
<a justiça absoluta, ou a sua opção entre os meios lícitos: leis
que se verificam cm todos os promenores da vida, quér, política,
qutr civil, quér administrativa dos Estados; onde são destina­
das a introduzir a ordem em suas mais particulares applicacões.
c a estabelecer direitos e obrigações que se não derivam tam­
bém dircctamenle da natureza humana, favorecem de uma rna-
jieiia indirecta, mas efficnz, os seus desenvolvimentos, contri­
buindo para uma exacta determinação de suas relações dc toda
a ospecie, e para a boa direcção social em todas as suas partes.
Aln tem os poderes soberanos de cada Estado um campo vas-
r.tn T ’ qu? 1)ódt‘P1 mover-se cm plena liberdade sem sahi-
lu n das raias da justiça.
te5“os.du° diferc-se as principaes differenças exis­
tente» entre o Direito Natural, e o Direito positivo ; ellas se re­
duzem propriamente as seguintes : 1 .» () Direito Natural tem as
suas leis como que gravadas no coração dos homens: o Direito
9 • n n J T vS,MiaiS escr'Plas nos Codigos das Nações ; —
0 Dn-eito Natuial emquanto legislação puramente idéal im-
pòe-sc apenas pela razão e consciência dc cada indivíduo • e o
oo
Direito positivo que pralicamcute o réalisa impõe-se pelos tribu-
naos e pela força social destinada a fazer effectiva a soa observân­
cia, e a reprimir ou punir as suas violações 3.° O Direito Na­
tural legislado um modo geral e invariável no sen principio para
as relações que são de sua alçada: o Direito positivo, porém,
tendo necessidade de estabelecer regras particulares, embora
sem offensa d’aquelle principio, [(Ara todas as hypothèses eut
que os homens se achem collocados no meio áocial, nito póde
deixar de compòr-se cm grande parle d’aquellas leis (Ilhas do
prudente nrbitrio do soberano essenciahhente variuvois.
Mas do mesmo modo qneo Direito Natural não se confun­
de, como acabamos de ver, com o Direito positivo, também mio
sc confundo a scieneia d’elle com a philosophia d’este, cotno nos
diz o Compendio no seu § 17, embora entre urna e outra exista
a relação que se origina da dcpendencia ern que está a «ciência
do Direito expresso para com os princípios üttiversaesé cons­
tantes do Direito absoluto. ^.
A scieneia do Direito Natural ocoupa-sé com o conheci­
mento da justiça em sua essencia e origem superior, e da np-
plicaçõo de suas regras, segundo o seu contexto natural -, nada
tem, por conseguinte, que ver nos factos exteriores ou na his­
toria da humanidade como ella é ou tem sido. Kntrctahlo que
s.lo estas as fontes onde a philosophia do Direito positivo ne­
cessariamente se alimenta.
Cila tem princi palme fite por ohjecto o exame d’esses faclox
c dados cslalislicos que a historia humana fornece á observa­
ção, a explicação d’elles por suas causas, e a apreciação dos
seus efíeitos na sociedade, [tara condemnal-os ou adinitlil-os,
com ou sem modificação, segundo são diversas ou analogas aí
clrcums'ancias da sociedade para a qual sc tenha de legislar.
Nada d’isso importa propriamente á scieneia do Direito Natural
absoluto, para o qual não lia, senão ainda dentro das raias do
.juslo, passado, presente, nem futuro, nacionalidades, climas on
circumstancias que o alíastem do seu lypo. A philosophia do
Dircilo positivo não pode deixar de consultar as epochas de
prcscrutar a historia, dc interrogar as gerações, de calcular
0 Sld0 (lo cultina dos povos, cos resultados de suas instituições
para d'ahi deduzir regras (pie propõe a sociedade, ou melhora­
mentos para as que já n’elln existem ; cila procede dos lados
da humanidade para a rcctificaç.ão dc suas leis; ao passo que
a scieneia do Direito Nahiral procede das proprias leis da na­
tureza humana para estabelecer a necessidade dos factos de
conformidade com cilas.
Si a politica, a historia, as disposições eseriplas,
c costumes das Nações nos diversos tempos c lugares, que for­
mam a principal matéria da philosophia do Direito positivo, nüo
sJo mesmo do todo indefferenles á scicncia do Direito Natural
absoluto, é nüo só, porque o Direito positivo que elle domina
ea que por tanto se prende, contém, como dissemos, uma
grande parle de disposições sujeitas ao arbitrio social, a que
a experiencia póde ser util, mas ainda porque a imperfeição da
razõo humana tem muitas vezes necessidade de recorrer ao
testemunho das gerações para confirmar ou corrigir os seus
juizos e sentimentos sobre as applicações praticas do justo. Mas
cm todo o caso n3o é isto, nem sáo os resultados d’esse appello
que nos dâo ou constituem as suas regras.
A philosophia do Direito positivo será, pois, quando muito,
um auxiliar para melhor reconhecer-se e applicar-se aquellas
regras*, e ainda assim, é preciso comprehcnder-se bem o seu
real valor, e mancjal-a com precauções ; visto quo da exagéra­
i t 0 do seu préstimo e do seu emprego mal dirigido pódem pro­
vir grandes aberrações; póde-se dar assim, como modélo da
justiça ou do bem ser social legitimo, o que muitas vezes nílo
passa de uma prolongada violência, ou de um abuso sanccio-
nado pelos séculos.
Nota-se, com eííelto, que os jurisconsultos que tem attri-
buido demasiada importância a historia ou a experiencia no
estudo e applicações da sciencia do Direito Natural, tem aca­
bado quasi sempre por consagrar o egoismo mais ou menos dis-
arçado como regra suprema da conducta humana, e o despo­
tismo lehz ou glorioso como o melhor e o mais natural dos go­
vernos. °
L ia ç A o y :

§§ 18 — 20

importância e utilidade do Direito Natural privado « do seu


estudo

_ Si do que dissemos em nossa precedente !«ção se deduz


n. importância do Direito positivo e de sua philosophia, no seio
da Sociedade liuniana ; ainda mais claramentc, não só d’isso
como das mais ideas que até agora temos expendido n'esta ma­
téria, se deve inferir a importância muito maior da sciencia do
Direito Natural e do seu estudo, a que se ligam aqucllas, e que
elle domina.
NSo é,com effeito,o conhecimento mais ou menos completo
e consciencioso do Direito positivo dos povos, que constitue
o verdadeiro jurisconsulto; isso poderá formar quando muito
o bom legislador, porque « d’alii poderá provir apenas, como diz
o Sr. Ahrens, uma certa habilidade para a applicaçáo mecha-
nica das leis aos factos occurrentes.»
Conhecer tacs ou taes disposées d’estes ou d'aquclles co-
digo8, saber a sua biographie mais ou menos a fundo, não é o
mesmo que conhecer a justiça absoluta e seus principios ; exac-
tamente porque sem o estudo preleminar e as inspirações d’esta,
não só não se poderá ter um critério seguro por onde na multi­
plicidade das legislações se distingua os seus acêrlos de suas
extravagancias ; mas ainda porque sem isso o Direito positivo
de qualquer povo jámais passará rcalmenle de uma accumula-
ção mais ou menos informe de preceitos incongruentes, ou de
uma nomenclatura material de disposições mais ou. menos arbi­
trarias ; jámais poderá formar um syatema rnzoavel c bem or­
denado do regras capazes de impõr-se cornu modélo a quacs-
quer outros povos.
V simples cultura da sciencia do. Direito Natural, pa solidão
do gabinete, como meio de instruir-se alguém sobre os verda»
50
deiros fundamentos e autoridade da lei absoluta do justo, é já
só por si uma satisfação immensa dada a uma aspiraçíio nobre
e elevada do ser moral que tem consciência de sua dignidade
e do sen destino, e quer dirigir-se a este pelo caminho mais es­
clarecido c seguro. O homem n’essa contemplação dos carac­
teres da justiça não só vè cm toda a sua grandeza e magestade
a mao da omnisciência Divina,mas até como quede algum modo
se identifica com a Divindade, da qual descobre um reflexo na
sua propria natureza, e n ’essa approximação se purifica e aper-
feiçôa.
.Mas é sobre tudo na vida pratica do homem, e nas suas pro­
prias variadíssimas applicnções sociaes que se revela bern a uti­
lidade do Direito Natural.
Cada indivíduo, na coexistência social em que vive com
seus semelhantes, tem uma esphera de acção que lhe é propria,
na qual estão traçados os seus direitos e obrigações reciprocas,
e cujos limites nenhum pódo ultrapassar sem offensa ou usur­
pação do alheio. K se é certo que muitas vezes o mal que se
taz a outrem com desprezo dos conselhos da razão e dos dictâ­
mes da consciência reverte mais ou menos intensamento contra
aquellc que o pratica-, outras muitas, e em maior numero d’ellas,
isto assim não acontece, e os caracteres egoístas ou pervertidos
de ordinário não resistem ás insinuações seduetoras do vicio
que llies promette vantagens, li’ mesmo possível que homens
razoáveis alguma vez não eomprehendum a extensão exacta do
que devem aos mais ou do que por estes lhes é devido segundo
a justiça, e cáiam do mesmo modo que os viciosos fervi abusos
ou excessos.
Assim é clavo que o proprio interesse bem entendido, ou as
simples boas disposições de cada um nem sempre são sufli-
cientes para cont.èl-o na linha de conducla que deve seguir
n ’aquella sua existência com os mais ; para o que faz-se poMtiii
indispensável, a intervenção da força sdçjal. Mas é também
claro que na suppressão ou pelo menos nu maior diminuirão
possivel da necessidade d’este triste recurso na associação Ini-

sumpto -, e que o meio mais consentâneo e eflicaz n’esse sen­


tido, e, sem duvida, a maior vulgarisaçâo possivel de idéas
claras e sãs sobre os direitos e obrigações juridieas de cada in­
divíduo, provenientes das leis que regem a sua conunum natu­
reza racional e moral. Só assim é realmente possivel regenc-
rar-se de um modo mais suave osm áose esclarecer-se osdgno-
57

railles bera intencionados, em beneficio proprio, dos mais, c da


sociedade em geral. Fóra d’isso reinará serapre mais ou me­
nos entre os homens o estado de hostilidade aberta ou latente;
e a maior somma do vigor social, que devia ser melhor empre­
gado em bem de sua felicidade e progresso, será despendida na
ardua tareia de domar a lodo o instante o impelo das paixões
pelo rigor-da repressão ou da pena, c de responder ás violên­
cias individuaes dos cidadãos com a violência legal do Estado.
Em summa, si nem lodos os homens pódem estudar, e nem
mesmo e necessário que estudem a sciencia do Direito Natural
nas suas mais altas regiões, é certo que todos devem procurar
coufirmar-se e esclarecer-se quanto lhes seja possivel nos seus
principias fundamentaes, e sobre as suas applicaçõea mais com­
muns ás diversas situações em que cada um se possa achar col-
locado para com os mais, e estes para com elles na sociedade.
Mas o homem não vive sómente n’esta, vive também por
ella e para cila, como claramente o indicamla sua organisação
moral, e todas as condições necessárias ao seu desenvolvimento;
e se já os ataques dirigidos no seio d’aquella de indivíduo a in­
divíduo, de cidadão a cidadão, mais ou menos a prejudicam,
outros são ainda possíveis que mais direetamente compromct-
tem a sua conservação e boa ordem, e contra os quaes também
a melhor das.garantias seria ainda a intima convicção de cada
um de seus membros sobre a legitimidade de sua formação,
e sobre a indeclinável necessidade de sua permanência e gover­
no ; convicção que indubitavelmente só lhes póde dar de uma
maneira plena, quasi palpavel, o contraste que o estudo da scien­
cia do Direito Natural, ou pelo menos a aequisição conscien­
ciosa e rofleclida de suas idéas capitaes, faz ver na comparação
do homem que vive pó grémio de uma associação política regu­
lar, com o homem concebido no estado de pura natureza, ou de
independência extra-social ; entre o homem civilisado e o sel­
vagem ou nômada.
Sem as luzes que partem d’aquella fonte para iIluminar a
intclligcncia dos povos, nada ó mais fau.il do que illudil-os e per-
vertel-os. Não sendo então possivel fazer-se-lhes comprehen-
der a differença entre os sonhos dos visionários, fascinadores
na apparencia, e as reformas e melhoramentos realmente ndop-
taveis na sociedade, esta correria perigo imminente de ver os
niveladores, os communistas, e lodos os mais pregoeiros de
doutrinas insensatas ou anarcbicas, impòrem lhe as suas lou­
curas ou visões como lypos de sua perfeita organisação, e tor­
nar-se-bia a cada passo um terreno fõfo, c preste a abysmar-se
abalado em suas bases.

O
38

Não basta mesmo que haja na sociedade humana legislado­


res que inspirados nos verdadeiros prinepios da justiça, pro­
mulguem n ’ella leis sábias ou razoaveis, ou magistrados dis­
postos sempre a desempenhar a sua missão como um sacerdócio
sublime. De que servirão taes leis, e taes applicadores, ou pelo
menos, no meio de que repugnâncias não serão aquellas execu­
tadas, e com que difficuldades não lutarão elles quando cada ci­
dadão, ou pelo menos a maioria ou grande parte d’elles, além
de mais ou menos esclarecidos também sobre nquellcs mesmos
princípios, não estiverem ainda intimamente convencidos da
legitimidade e necessidade dos poderes constituídos no Estado,
ed a competência com que os delegados da soberania nacional
e todos os mais funccionarios públicos exercem n’elle a sua au­
toridade e attribuições ? Mas é claro que esta convicção tam­
bém só lhes póde dar de uma maneira consciente e satisfactoria
a scienciado Direito Natural em sua applicação especial ã orga-
msaçSo c regimensocial dos povos.
(.orno olharia, finalmente, cada Estado para os mais que
compõem a familia humana, si imbuidos cada um na consciên­
cia de seus poderes pbysicos, ou de sua liberdade de facto, des­
conhecessem ou njio se dispozessem a respeitar os limites que
lhes impõem a razão e o seu commum destino ?
A historia nos attesta a maneira pela qual, sobre tudo nos
séculos passados de ignorância ou atraso no estudo da sciencia
do Direito Natural, se resolviam todas as questões c interesses
entre as Nações, ou os caprichos de seus governos ; ecomo in-
eiixmente ainda hoje, c mesmo entre povos civilisados, se dc-
• idem muitas contestações de igual valor -, porque não existindo
um poder superior entre elles capaz de impòr-lhes o que é justo,
sem atteuder ao calibre de seus canhões, falta-lhes sobre tudo
o amor e o respeito á justiça, que só a cultura assidua c cons­
cienciosa do Direito Natural inspira.
O estudo, pois, d’esta sciencia como meio de reconhecer-se
aquella, de compenetrar-se do sincero desejo de pratical-a ou
, ” ef u,lar\ s e e garantir-se a sua fiel observância, quér nas rc-
S m dU0S,quér..desles Para co,n » sociedade em que
' / ? , para C0,ï \ e’Ie8>e tluér’ finalmente, nas de Estado
' ,1 uma «ecessidade ímprescendivel para aquellesquc
d e S S ? s u a s Te1sdn,fa° ,-’nca.rrep dosi ° » sc Proponham a sel-o,
s p n V L v ? de al',P1|oal-as, ou de tratar e resolver os
' ”as1neD° c’0? .ex/.lur{losi assim como para todos os homens cm
S is r ^ ?eTaCS' ScnSo nos Cursos tllCO-
10 re.ul.ires da mesma sciencia, ao menos na praticada
59

vida, e no exaimi da propria consciência educada no amor do


bem c do honesto.
A prosperidade c progresso interno do cada Estado jámais
virão, rjuér da compressão governativa, quér dos desmandos
da multidão ; assim como a diplomacia orgão das relações in-
ternacionae8 e do Direito que as deve regular, não pode consis­
tir na triste alternativa entre as manobras da duplicidade c da
corrupção, o a ameaça ou o emprego da metralha, argumentos
que só dão razão á perfídia contra a boa fé, e ao forte contra
o fraco.
Só da pratica coustante da justiça, cujos fundamentos, ca­
racteres e applicações o Direito Natural ensina, póde provir
a verdadeira e perenue felicidade, quér dos indivíduos, quér de
cada um dos povos, tanto quanto isso é possivel. Só perante
elle são iguaes todos os homens, e todas as Nações grandes ou
pequenas, poderosas ou debeis. Só elle póde fazer que todos se
respeitem pelo que são e pelo que valem ante os leis da natureza
humana, que são também as suas,c não pelos meios de destrui­
ção de que cada uma disponha em apoio de suas pretenções
desarrazoadas.
Fazer leis, já tendentes a regularem aB relações de seus
proprios membros, já as que se possam estabelecer de um modo
positivo d’estes para com o Estado, e vice-versa, e já de um Es­
tado para com outro; applicar essas leis, modifical-as, interpre-
tal-as, supprir suas lacunas ; são cousas que cm toda sociedade
bem constituída são indispensáveis, sob pena de graves damnos
para si própria e para todos que d’ella fazem parte. Quaesquer
especies de leis positivas, mesmo as naturaes que os codigos
consagram, senão em seu contexto ao menos quanto á sua fôr­
ma e meios exteriores de effectividadc, não pódem deixar de
variar no decurso dos tempos, ainda quando hajam Lycurgos
que se sacrifiquem á sua immutabilidade. Todas tôm de sof-
frer a cada passo substituições ou reformas, rcstricções quando
vagas, c ampliações quando omissas ou deflícienlcs, para pode­
rem responder satisfactoriamente a todas as situações ou nèces-
sidades sociacs que as dilferenças das circumstancias determi­
nam. Nada d’islo, porém, ó possivel conseguir-se quando a luz
da sciencia do Direito Natural não esclarece os seus legisladores,
os seus magistrados, ou quaesquer seus funccionarios publico«,
a quem tacs missões competem.
O estado dc moralisação que, apezar de tudo, tem attingido
as legislações dos povos modernos mais civilisados, é certa­
mente dovido ao estudo mais completo c mais bem dirigido d'estn
sciencia, eás nobres inspirações que ella ministra áqucllys que
a cultivam ; e « é principalmente, diz o Sr. Ahrcns, no Direito
penal eno Direito publico que se faz sentir toda a sua influen­
cia ; é alii que se póde bem avaliar os seus benéficos resulta­
dos.» Com effeito, se comparamos os codigos criminaes c as
instituições políticas actuacs dos paizes mais adiantados, com
os codigos e instituições antigas, e até pouco remotas, não pó-
demos deixar de notar o grande contraste que ba p.ntte uns
e outros, e de darmos graças á sciencia d’aquelle Direito que
tem feito dosapparecer, quer da penalidade, quér da polilica de
taes Nações no século presente, as monstruosidades que as ca-
racterisavam nas idades passadas de obscurantismo, e do domí­
nio da força bruta, c aberto vias novas ít perfeetibilidade hu­
mana fornecendo aos homens idéas mais justas sobro os fins
da vida social, e garantindo aos cidadãos os seus mais sagrados
direitos até então desconhecidos e espezinhados
O Direito Natural, em suinma, é a razão, c por assim dizer-
se a alma de todos os ramos da jurisprudência. Só elie póde
conduzir-nos á concepção pura e ao culto racional da justiça
como cila é um sua origem suprema, assim como fazei-a descer,
sem desvirtuar-se, (Vestas regiões sublimes para assegurar no
mundo a paz e;a ventura aos homens e ás Nações.
Do mesmo modo que sem o Direito positivo não se conce­
bem as relações sociaes de cidadão a cidadão-, sem o Direito
Natural, sem o conhecimento e a pratica da justiça absoluta,
não se comprehenüe a humanidade cm suas relações geraes.
; enhum estudo, por tanto, póde ser mais ulil aos mesmos ho­
mens, do que este que lhes serve de pharol e guia nas escabro-
sititules ‘te caminho que deve lcval-os aos seus últimos destino5.
PARTE PRIMEIRA
M lrelto p r i v a d o e x t r a - s o r ImI

SECÇÃO PRIMEIRA

DOS DI R EITOS INS.UOS

LIGKa3ÃO VTI
§§ 21 - 22

Origem e caracteres dos direitos huuilos ; sua áisiinceâo dus


direitos derivados ; litulos de uns e outros ; do direito
primi gênio. .

Tendo concluído o exame dos diversos paragrapbos que for­


mam a Introducçào do Compendio, vamos entrar agora na ma­
téria da sua Parte primeira, cm cuja primeira secção elle trata
de demonstrar-nos a existência dos direitos innatos do homem,
sua origem, caracteres que lhes são próprios,o seu titulo, e como
se distinguem dos direitos derivados; distineção que corresponde
á divisão do Direito Natural que já precedentemente indicamos,
em Direito Natural privado absoluto e bypothetico.
Rcalmente quando se analysa a natureza humana ou a pos­
sibilidade de todos os legitimos desenvolvimentos do ser racio­
nal e moral, não sepóde deixar de reconhecer n’estc duas ordens
de faculdades jurídicas perfeilamente distinclas ; umas de ca­
racter geral e constante que formam como que o fundo essen­
cial da personalidade do homem, inseparáveis d’elle, c sem as
quaes, por tanto, não se póde jamais concebcl-o ; c outras de ca­
racter particular consistentes em attribulos mais ou menos in­
teressantes c ligados ás necessidades de sua vicia real, mas, sem
os quaes póde elle em algum caso ser concebido; ordens de fa­
culdades que por isso constituem duas cathegorias de direitos
humanos da mesma sorto caractèrjsados e bem distinguíveis: —
6 F.
os primeiros são denominados direitos innatos, immédiates, o ri­
ginários, absolutos, ou primitivos, e os segundos derivados,
mediatos, adquiridos, Injpotheticos ou secundários.
Os direitos innatos, assim chamados porque são congênitos
com a natureza humana, são por isso mesmo, em geral, ou na
sua essencia, iguaes e idênticos para todos os homens em qual­
quer estado ou condição. Estes podem fazel-ms valerem todos
os tempos, lugares, ou circumstancias. e em relação a todos,
sem carecerem para adquiril-os ou proval-os, de qualquer acto
seu ou de outrem ; são direitos que por si mesmos subsistem e se
demonstram não só sem dependencia de qualquer intervenção
da vontade própria ou alheia, mas até apezar d'ella. Para tel os
basta ser-se homem.
Os direitos derivados não dimanam como aquclles dirccta-
rnente da simples natureza humana, na qual tu n apenas um
fundamento menos proximo. Não basta ser-se homem para
tel-os : a sua fonte immediata d dc ordem secundaria ; elles só
podem apparecer mediante um emprego qualquer da aclividadc
ou industria do seu sujeito. Ui vergem cm cada indivíduo não
fó nu qualidade, mas também na quantidade, segundo as apti­
dões e os reacs desenvolvimentos das faculdades do, cada um.
.Não é bastante a'iegal-os para que elles sejam reconhecidos
c respeitados : a sua realidade carece dc verificação ou prova.
A contingência ou eventualidade é, ao inverso dos direitos in­
natos, o seu dislinctivo inseparável, a sua condição natural.
Aos direitos derivados pertencem,pois, os que para cxisli-
rem, dependem de algum aelo individual, e especialmente os
que provêm de pactos ou contractos -, e aos innatos aquclles quo
para cada homem resultam dc sua simples qualidade de. pessoa.
Os primeiros são muitas vezes postos em duvida ou litígio, e de­
monstra-se a sua não existência para este ou aquelle-, ao passo
que contra os direitos innalos não lia exccpçflo de nalurezaml-
guma que possa ser valiosa em prejuízo de qualquer.
Não obstante, porém, a evidencia d’esta verdade c os pro­
testos da consciência dc cada homem em seu apoio, tem sido
estes direitos sujeitos a contestações, e aló mesmo negados, já
por aquclles que se tem deixado impressionar demasiadamente
pelos abusos e desvarios a que tem dado lugar as doutrinas fal­
seadas sobre os direitos do homem, já por aquelles que tam­
bém preoccupados de mais com o facto e necessidades da exis­
tência social, tem querido absorver os indivíduos na sociedade,
drspojando-os d’esses direitos, que muitas vezes não lhes con­
vêm reconhecer senão com n slrieçòcs que a razão c a natureza
litimgia rcpellein.
E’ claro, porém, que lia excesso de Ambas as parles, quér
nos que exageram o principio da individualidade propria de
cada homem cm damno do principio da sociabilidade commum,
quér nos que immolam esta áqnella, c que erram uns c outros
gravemente ; pois é incontestável que toda a boa política ou d i­
recção social depende da perfeita harmonia que deve reinar
entre os desenvolvimentos livres e naturaes do cidadão, eos do
Estado, s ndo tão irracionaes e condcmnaveis as pretenções
exorbitantes ou usurpações de uns como as de outro.
_ Si a soberania -desordenada da praça publica, ou as m a-
chinações e horrores da demagogia em nome de igualdades ou
liberdades pliantaslicassão tristes aberrações do espirito huma­
no na concepção da vida social, não o são menos em sentido
inverso, o direito divino dos reis, o monopolio dos olygnrehas
de todo o tempo, a tyrannia das castas nas llieocracias do an­
figo Oriente, ou de qualquer especie de despotismo.
Mas si por este lado se repellem os ataques dirigidos contra
os direitos innatos do hom em ; si elles se salvam mediante as
luzes dascicncia das exagerações que de facto os aniquilariam ,
quér pela anarchia popular, quér pela prepotência dos gover­
nos, outras objecções lhes tem sido feitas; mas estas não pas­
sam de puras argúcias escolásticas.
Diz-se que esses denominados direitos innatos não são real­
mente direitos cm si mesmos; que não pódeni ser como taes
considerados, mas apenas como titulos de outros, dos direitos
derivados ; pois que desde que se põem cm exercício se resol­
vem ii estes ; que deixam de ser absolutos, que se tornam Ii\ po-
Iheticos, desde que so applicam a objectes determ inados; que
atiles d ’iaso não passam de meras capacidades de direitos.
Semelhante objecção não procede. E' certo que os direito«
«inatosou absolutos tôm uma forma geral,em que naturalmciile
se enquadram ós direitos liypothelicos, c que elles são, com elfei-
lo, os títulos superiores d ’estes. Mas nem por isso se segue que
deixem de ser elles direitos em si mesmos, ou que não tenham
e em grao imminente os caracteres necessários para sel-os*
desde que embora sob uma fórma geral são elles verdadeiramento
laculdadesjurulicas do Iiomem, cada uma das quaes é corno que
um direito geral que tem cada individuo de exercer todos os di­
reitos liypulhelicos particulares que n’ella se pódem conter, ou
cm que a sua applicação se póde traduzir pratlcameiite ; direi­
tos que, por conseguinte, ainda mesmo quando só consistissem
• m simples potências d’alma sem realisaçào directa e propria
na ordem dos laelos exteriores, não seriam menos reaes: ao
'■onirario, seriam cm todo o caso os mais im portante^ puis
que seriam a razão primordial da exislencia e. legitimidade
d’aquelles. Elles não perdem os caracteres que tacs os consti­
tuem pela interposição dos objectes sobre que possam recahir
as suas applicaçôes hypotheticas. .
Mas será rcalmcnlc exacto que. lodo o direito em seu exer­
cício ou applicado a uni objecto determinado seja sempre um
direito de caracter hypotbetieo, ou por outra que um direito ab­
soluto não possa directamenle traduzir-se por essa fórma? Não
haverão actos ou exercidos das faculdades humanas, que sejam
realisações immcdiatas, privativas de direitos d’csla especie ?
De certo os ba.
Esses direitos não sc reduzem, na verdade, á méras potên­
cias d’alma, am éros títulos destinados a dar apenas occa^ião ou
legitimidade a outros que d’elles se derivem. Elles obram tam­
bém muitas vezes por sua propria conta, applicam-sc directa-
mente como direitos, sem necessidade de actos ou factos da
vontade de. seu sujeito, como condição para se.l-os. Não esta­
rão n’estc caso, por exemplo, a defesa da exislencia própria
contra o aggressor injusto, ou o direito que tem cada homem
de p ir a sua nctividade ao serviço alheio, mediante um con­
tracto, e assim muitos outros ? Eonfundir-sc-hão estes direitos
ou o seu exercício com o d’aquelle que defende um objecto que
comprou, ou com o que tem o localario de exigir do locador
o serviço ajustado ? Não.
Os movimentos iniciaes, partidos espontaneamente tia li -
berdade humana para estabelecerem externamente quaesquer
relações jurídicas, são exercícios puros, simples e immédiates
dos direitos absolutos de cada homem. Aquellas relações crca-
das por esse modo, ou o que cm razão d’ellas se póde elïeeliva-
inente pretender é que constituem os direitos bypotheticos ou
derivados ; mas nada d'isto se confunde com os actos primários-
que os produziram, nem com as faculdades de que esses actos
nasceram.
Em sumrna, os direitos bypotheticos são todos derivações
de direitos innatos ou absolutos de especie analoga, os quacs
corno faculdades superiores os abrangem na sua fórma geral ;
estes, porém, nem sempre na sua realisaçào exterior se redu­
zem áquelles ^ corresponde aos mesnjos em sua manifestação
mais geral uma applicação directa, um objecto immediato,mn
exercício que não rccahe sobre facto ou cousa proveniente da
vontade d’aquelle que o exerce.
Assim estas duas classes de direitos distinguem-se por sua
origem, por seus caracteres, por suas condições e desenvolvi­
mentos práticos. Sem os direitos absolutos não seria possível
direito algum liypothelico, porque estes são sempre evoluções
mais ou menos mediatas d’aqucllcs, determinadas c definidas
pelas circumstancias e situações particulares em que os homens
se pódcm achar no mundo, são suas applicações de detalhe, su­
jeitas á variedade de sua vida real e exterior. Para ter-se o di­
reito, por exemplo, de comprar-se e vender-se, trocar-se ou
dar-se as cousas, é necessário ler-se antes o direito geral de ad-
quiril-as, de usar e dispôr d’ellas -, ao passo que este direito ge­
ral o os mais da mesma cathegoria não suppõem outro qualquer
antes de si, a não ser algum ainda mais geral da mesma classe,
ou superior c unico, que por assim dizer-se os contenha ou re­
suma todos, como abaixo veremos.
Todo o direito quér absoluto, quér hypothelico deve ter,
como diz o Compendio, uma razão ou titulo, sem o qual não
o será ; e a razão ou titulo do direito *<consiste, diz o Sr. Abreus,
na união dos dons termos da relação condicional pela qual
o mesmo direito é constituído, c esses dous lermos são, o fim
a que elle se propõe, c o meio de sua consecução;» o que quer
dizer, que não lia direito quando o facto ou acção que se quer
considerar como tal não contêm esses dons elementos; sp não
tende a encaminhar o homem a algum dos seus lins racionaes,
ou sociaes, ou não é uma condição apropriada n’essc sentido.
D’onde se conclue que provar um direito é provara existência
d'esses dous elementos seus, ou produzir a sua razão e o seu
Ululo. O titido dos direitos absolutos é geral como elles, par­
ticipa dc seus caracteres, ou antes Ih'os communica, c é um só
e o mesmo para toda a humanidade; assim como os dos direi-
reitos hypothelicos são especiaes e caracterisados pela eventua­
lidade o contingência que lhes são proprias. Ü dos primeiros
é a relação existente entre a natureza do homem e o seu destino
comminn ; e o dos segundos a que existe entre os desenvolvi­
mentos externo* da actividade de cada um e os lins particulares
a que póde cada um legitimarnenlc aspirar segundo os seus re­
cursos e aptidões especiaes.
Si os direitos innatos do homem são diversos segundo os
objectos a que se applicam, pódem comtudo ser reduzidos todos
a um só e mais geral que os abrange c autorisa ; esse direito
supremo, que em si resume todos os mais. como dissemos, c o que
o Compendio no §22 denomina primigenio dc. liberdade.
Consiste elle na possibilidade de todas as applicações legi­
timas d’aquella nobre faculdade, c sendo assim não pódem dei­
xar, com efleito, de ser abrangidos na sua generalidade todos
equaesquer outros direitos que se possam altribuir ao homem,
os quaes realmente não são senão tacs ou tacs modos de exer-
cicio de sua liberdade. Entram na comprehcnsão d'esse di­
reito não só os absolutos de qualquer especio, mas também todos
os hypothelicos que d’elles se derivam-, em todos elles a liber­
dade humana se revela. Com razão o denomina o Compendio
na nota a este paragraphe, um direito formal, em contraposição
aos mais que se pótíem denominar materia.es, (7) porque se ap-
plieam a uma matéria especial que a cada um é propria c que
os distingue uns dos outros; ao passo que aquelle recalic sobre
todas as especies possíveis de relações jurídicas, sobre todas as
acções ou prelenções licitas do homem, caracterisando-as todas
sem consistir propriamente em qualquer d’ellas.
Na verdade lodos os direitos absolutos do homem, taes
como o de empregar osmeios necessários paraa sua conservação,
para a manutenção de sua independencia, paraa manifestação
de seus pensamentos e crenças, para adquirir as cousas exter­
nas, com quanto versem sobre objeclos especiacs que determi­
nam a sua extensão e os extremam uns dos outros, e por isso se
chamam materiaes, todavia entram na fórma geral do direito
primigenio, porque lodos são actes ou desenvolvimentos da li­
berdade humana embora sob relações particulares.
Quanto aos direitos hypothelicos, isto é tanto mais evi­
dente quanto os seus objeclos são ainda mais especiacs e subal­
ternos, de modo que não só os contém medialamentc aquelle
direito em sua forma commum ; mas até os proprios direitos
absolutos materiaes que os dominam tornam-se cm uma esphera
menos lata formaes a seu respeito.
O direito primigenio, em surnma, ó a personalidade inteira
do homem concebida ou posta em actividade nas suas relações
externas na maior amplidão possível, e segundo as leis naturaes
que a devem dirigir. Todos os mais ou sejam absolutos ou de­
rivados, por maior que seja a sua extensão ou importância, não
passam de direcções subordinadas ãquelle motor geral ; dc ra ­
mificações d’aquelle grande tronco.

(7) Ite t a a t e r i a corno anlilliese de f ô r m a e sómeute n’este sentido.


LICCÍAO V III
§§ 23 — 25 — 33 — (8)

Divisão dos direitos cm direitos das pessoas, e das cousas; cn-


numeração e classificação dos direitos innalos ; — / ° Do
direito de conservação.

O Compendio depois de ter dividido os direitos do homem


em duas grandes cathegorias, em direitos innatos que elle de­
nomina maleriaes, e em direitos derivados, diz-nos no seu § 23
que o objecto immediato de todos os direitos sendo sempre as
acções legalmente.possíveis, e eslas referindo-se directamenle
ou á própria pessoa, ou ás pessoas dos mais, ou ás cousas, pó-
de-se dizer que todos os direitos maleriaes do homem são di­
reitos das pessoas ou direitos das cousas.
Já anteriormente mostrámos que todo o direito considera­
do em si mesmo, ou na sua essenefi», e subjectivamente, é sem­
pre um attributo peSsoal. Mas aqui o Compendio, como se vê
do citado paragrapho, o considera ainda em um sentido objee-
tivo, não já como no seu § d.0 em relação ás acções, mas aos
objectos d’estas. Admittida esta divisão, ti, com tudo, con­
veniente ter-se sempre presente aquelle principio, para não ser-
se induzido a dar-se ao direito das cousas uma significação im-

(8) Em consequência da nova classificação dos direitos innatos


que damos n’esta licção, c da ordem em que d’elles tratamos, dilíC-
rente da do Compendio, fica alterada a seqnencia dos paragraphes
d este de. 25 a 33, cm que elle os expóe ; razão pela qual, e para não
indicarmos estes paragraphes sultoadamente n'esta e nas liceOes
que seguem-se, indicamol-os aqui todos englobadamente ; e assim
o faremos nas mais sobre esta matéria, ale aquelle ultimo S 33 inclu­
sive.
própria ou anti-juridica; assim como não se deve atlribuir ao
das pessoas maior lalitude do que elle realmeule comporta.
Na verdade os homens pódem em muitos casos servir e ser­
vem aos mais de meios para realisarem seus üns racionaes,
e suas legitimas aspirações •, mas isso somente em razão de
obrigação imposta pela natureza, ou por deliberação livre de
sua vontade dentro dos limites que aquella prescreve, e jámais
por facto ou arbítrio de outrem; ou, como diz o Sr. Ahrens,
« sómentc por seus actos ou prestações e nunca por sua perso­
nalidade inteira que é inviolável. » Si na primeira hypothesc
elles procedem de conformidade com a sua natureza, e não
fazem senão obedecer ãs suas instantes solicitações, na segunda
commetteriam um crime contra ella, c fariam grave injuria a si
proprios.
A regra que acabamos de estabelecer é sem e\cepção. Ne­
nhum homem em si mesmo, ou em sua personalidade póde sêr
jámais objecto do direito alheio, pois que jámais pôde deixar de
ser pessoa. Não deixam de sel-o, como nos diz o Compendio no
seu § 24, aquclles mesmos que se achem irrivados momentanea­
mente, e nos diremos privados de qualquer modo, do uso de
suas faculdades-, por quanto, por mais completa ou irremediá­
vel que pareça ou realmente seja aquella privação, deve ser sem­
pre considerada como um simples accidente incapaz de fazer-
lhes perder aquelle caracter de seres essencialmente racionaes.
Nota, por conseguinte, com razão, o Sr. Ahrens, que c errônea
a opinião d’aquelles que derivando o direito, não da natureza
humana, mas do concurso da vontade geral ou dos contractos,
recusam a capacidade jurídica aos que menosprezam ou não
podem cumprir as suas obrigações; e mostra-nos que o direito
não resulta, com efleito, da vontade dos homens, nem se funda
na reciprocidade de suas obrigações contrahidas; e que ba uma
justiça absoluta que se deve fazer a lodos, seja qual fòr o esta­
do de fraqueza ou degradação cm que os sopponbamos.
laes são, o unieo sentido, e a verdadeira extensão, em que
se deve tomar o direito das pessoas, como o entende o Compen­
dio no pavagrapho de que nos occupamos.
Quanto ao das cousas, si estas por si não pódem ter direi­
tos, ou antes, por issp mesmo que não pódem tel-os, e porque
ao mesmo tempo existem em contacto immediato, constante,
e necessário com as pessoas, únicas que os pódem ter, e são
próprias e absolutamente indispensáveis á existência e realisa-
çao dos uns d estas, segue-se infallivelmenle que devem ser ellas
objectos dos direitos do homem. Nem lia razão para distinguir-se
as cousas animadas das inanimadas; a ausência de razão e li-
49

berdadü, islo ti, do caracter pessoal em ambas essas espeeies, as


nivela Iodas sob aquella relação, e as reduz á condição subalterna
de íneiós para o único ser dotado d’aquellas nobres faculdades
e caracter, e único por tanto capaz de direitos.
Si os phiUjsopiios índios e os discípulos de Pythagoras, sem
prescindirem,"ainda assim, do uso c goso de qualquer d’aquellas
espeeies de cousas, abslinliam-se com tudo de matar ou maltra­
tar os animaes, é porque criam na métempsycose, e recetavam
n ’um boi ou n’um carneiro attentai- contra a alma de algum
seu semelhante, amigo ou parente. (9)
São, em summa, as cousas matéria propria e necessária dos
direitos do homem, ou para o exercício e desenvolvimento dos
mesmos ; pelo que quando estes direitos a ellas se referem ou
sobre ellas recaliem, podem-se, denominar direitos dus cousus ;
mas são mais propriamente direitos sobre ellas. (10)
Explicada e justilieada assim aquella divisão dos sobreditos
direitos, vejamos quacs são individualmente os direitos innatos
do homem, que se comprebendem,como dissemos, uo seu direito
primigenio.
A emuimeração e classificação que d’elles nos dá o Com­
pendio nos parecem defeituosas por mais de um lado.
Em primeiro lugar, uo seu § 25, em vez de considerar o di- .
reilo dc independência individual cm um sentido reslricto se ­
gundo a sua matéria peculiar, o Compendio o considera em um
sentido demasiadamente amplo, c deriva d’elle edo primigenio,
com a mesma razão com que poderia derivar do de irjunldadc
os diversos direitos que aponta no seu § 2(5, os quaes com aquel-
les dons, formam exactamente a maior parte dos que se devem
reputar derivados do primigenio. (t I) Cm segundo lugar a or­
dem cm que elle nos aponta aquelles diversos direitos não c

(9) As luzes da philosophia fazendo a divida justiça á cjftravn-


Kancia da transmigração das almas, nem per isso reprovam menos a
dureza c crueldade escusadas para comentes dotados, om Indo o caso
ue sensibilidado. «J)eve-sc acostumar, diz IMutarctio, a ser-sc doce
com os animaes, ainda que não seja senão para nprender-sc a'ser-se
humano para com os homens.»
(10) ICsta divisão dos direitos om d i r e i t o s d o s p e s s o a s n d i r e i t o s
d a s c o u s a s , apezar da analogia do seus termos, não se confunde com
d i r e i t o p e s s o a l o d i r e i t o r e a l . de que mais adiante trataremos
j o m o Compendio, e q n e ,e m tão importantes opplicaç.rtés uo Direito
(11) Vide a nota 'seguinte,
7 i\
muito conforme nem á importância relativa de cada um, nem
á successfto lógica dos mesmos. 1? finnlmente, na sequência de
seus paragraphes cm que os demonstra e desenvolve, além do
defeito geral resultante d’aquella má classificação, lia ainda o de
tratar elle no meio dos mesmos, no seu § 32, da questão de sa­
ber si elles são imprescreptiveis c inalienáveis, tratando depois
d’isso no §33, de. demonstrar e desenvolver o direito de inuul-
da d e! *
Daremos, por tanto, uma nova classificação d’esses direitos,
que nos parece mais racional e mais lógica ; segundo ella pro­
curaremos tratal-os ; e sómeute depois discutiremos aquolla
questão que se applica a todos.
São esses direitos innatos do homem : — 1 .° o de conser­
vação da sua existência -,—2.° o direito de igualdade -,—3.° o di­
reito dc independência-, — 4.° o direito de aperfeiçoamento do
seu corpo e espirito e suas faculdades-, — 5.« o direito de livre
manifestação e exercício dc lodos os aclos legítimos d’estas -, —
G." o direito á boa reputação ; — 7.» o direito dc aequisição e uso
das cousas-, — 8.° o direito de beneficencia-, — 9.° o direito de
segurança. (12)
1.u — O direito dc conservação de sua existence é, incon -
teslavelmcntc, aquelle, á que cabe o primeiro lugar entre todos
os direitos do homem-, pois que é elle não só a base de todos,
mas também de todos os seus deveres, c a condição essencial da
prosecução e consecução de seus fins.
Uia o ser humano consta dc corpo e alma, substancias de
natureza diversa, sem duvida, e até opposta, mas que por um
myslerio indecifrável, de que só Deus tem o segredo, ligam-se
cm uma união intima, em uma harmonia maravilhosa para
constituírem a unidade do homem, e em que consiste a sua vida
A razão e a consciência de cada-um que attestam altamente a su­
blimidade do espirito, attestam do mesmo modo e ao mesmo
Tempo a importância do corpo, c a sua mutua c essencial de­
pendência : e prescrevem regras que devem ser observadas já
em .relação a um, já a outro, como condições indispensáveis

(tá) O direito de consqrvaçfto da existência, e os de imialdade


e independencia contem-se immediataincntc no direito nrimiaenio
e todos os mais de um modo mediato, porque presuppõem estès 8Fsses
trez direitos para terem realidade externa basta que os n a i s e o seu
propno sujeito os respeitem, todos os outros carecera narâ isso rme
este os exerça activamentc. l’ar9 lSs0 (Iue
. ;il
para a conservação de ambos, e de suas respectivas faculdades
naturaes.
Si lia mesmo direito humano de cuja realidade se lenha
mostrado zelosa a natureza é esse que diz respeito a conserva­
ção da existência pessoal, pois não contente de estabelecer pela
razão c pelo senso intimo a importância e necessidade de man-
te.l-o cada homem, ella propria se encarrega de advertil-o d’isso
a todos os instantes pela dôr ou soiTrimento que mais ou menos
acompanham o seu menosprezo ; assim como o Estado não se
limita ou deve limitar-se a garantil-o ao cidadão, elle procura
« é de sua rigorosa obrigação promover o seu uso e gozo quanto
lhe é isso possível, pelas suas leis adequadas á remoção d -,
causas que possam prejudicar as condições physicas de sua país -
teneia, pelas suas medidas a bem da alimentação, da salubri­
dade publica, etc.
A parte physica do ser humano por isso mesmo que por
sua nãftireza póde facilmente enfraquecer-se, ^ “ ,/ccer por falin
de cuidados, exige o emprego constante u’caÆs
não requer menus os que especbdmcnte lhe são propnos, ou
indispensáveis para que cada um evite tudo, ou sc abstenha de
todas as omissões ou actos que possam deslruil-o ou obliteral-o
de qualquer modo. .
Ora tudo isto que ó para cada homem um dever rigoroso
para comsigo mesmo, perante seu Creador, e perante a Moral,
não póde deixar de ser ao mesmo tempo, c por essa mesma
razão, perante a lei jurídica, um seu direito sagrado. Esta lei
não póde, de certo, attingir aquelle que vlolentamenlc se priva
a si proprio da vida, ou lentamenle a damnillca pelo desprezo
dos meios de conservar a integridade e saúde quór de seu corpo,
quér de seu espirito, ou por acções que tupialquer d’elles pre­
judiquem , porque tal negligencia ou abusos cm relação á quem
os commette são transgressões de deveres seus, dc (pie só tem
a dar contas ã sua consciência e ã Divindade; mas aquella Içi
é evidentemente competente para garantir a todos, como o mais
im portante de seus direitos, a livre pratica das acções contor-
mes aquelles lins louváveis, e para constranger os mais pela coa­
ção material, se fór necessário, a respcital-o, e a não lhe oppô-
rem quaesquer embaraços.
. Si, afinal, no complexo de todos os actos destinados á con­
servação do corpo e do espirito e de sua integridade e saúde,
consiste a conservação da existência individual, é claro que tudo
quanto fòr meio proprio para isso entra na esphera dos direitos
innatos de cada homem, uma vez que não offenda igual ou qual­
quer direito de oulros, nem os princípios eternos da Moral. • i P01
um lado e-«e »lireilo resulta para cada homem da própria 1«i na­
tural: por outro resulta para o Kstadp.de sua propria razão « Uns,
o dever de reconhecei o c dc tornai-o dTeclivo.
Nenhum homem pódc thspòr arbitrariamente da sua exis­
tência que não deve a st proprio, c quo tem um destino que lhe
deu o t .reador ; e menos ainda pôdeto os mais dispor do mesmo
modo da de qualquer d’elles. Netn pelo Tacto de secoinmeUerein
rm todo o tempo e em toda parte suicídios e assassinatos, é me­
nos evidente que cila impõe se a cada um como um dever im­
perioso. p a todo? como nin direito incontestável. Si reinou
sempre e continuará a reinar entre os homens e os povos, muitas
'I.Tíes por meras difTerenças de ideas,<1° crenças tm de interesses,
qtr de nenhum modo n autorisant, e mais ou menos constante
ou intermittente, latente ou declarada, essa discórdia ou hostili- .
dado, que indiuio Hobbes c sua eschola a concluir (jue a puerrd
è o estado nato-M do liotnem, isso prova apenas qoe aliumani-
em nenf^Ni tempo ou lugar pódc scr perfeita on isenta
H!IÇtfétíso].lW8ia que a conduzem ao erro » a<rciime.
Nada provam contra a realidade do dever ou do direito de
conservação da existência humana, a Tacilidade ou o furor com
que muitas ven s os homens barateiam a propria ou a dos mais,
e cs K.-tados a dos seus cidadãos cm questões ou guerras muitas
vexe* injustas e até frívolas, filhas da ambição, da intolerância,
ou da vaidade : pois que, ern lodo caso, a consciência universal,
a razão esclarecida, a lei do justo, a Moral e a lleligido os con-
deinnam, e indignam-se contra essas horríveis hecatombes de
bomeiu pelo proprio homem, quando não são justificadas ao
menos por uma indeclinável necessidade da defesa c conserva-
rdo social.
O direito de conservação da vida de cada homem é, em ul­
tima analyse, inseparável da sua essência, elle existe, pelo sim­
ples facto da propria existência d'aquflle. lia uma única hypo­
thèse em que o abandona, e cessa de amparal-o, é quando elle
tnesmo põe em perigo certo e imminente, ou em collisão extre­
ma com a sua, a existência de outro, por uma aggressSo injusla ;
mas isto <■ainda a mais clara manifestação da realidade ü’esse
mesmo direito, que. em taes circumstancias sc verifica cm todo
o seu visor e certeza na pessoa do aggredido.
Digitalizado pelo Profeto Memória Acadêmica da FDR -UFPE

L I C 3oà 0 I X

§§ 25 — 33

2.° Do direito dc igualdade; 5 .“ do direito de independência

2.° — Ao direito de conservação da existência, primeiro de


todos os direitos do homem, como condição primordial da pro-
secução e consecução do seu destino, segue-se, nascido natu-
ralmenlc da identidade d’estc, o seu direito dc igualdade, ou
a sua ir/ualdade dc direito.
Diz-nos o (lompendio no seu § 33, que todos os direitos
absolutos do homem são iguaes, mas sómente na semelhança,
e desiguaes na quantidade ; pelo que a igualdade humana é sim­
plesmente uma igualdade especifica, o não individuada ou uma
igualdade de direito e não de direitos.
Com cffeito, os homens não pódem deixar de ser iguaes
íVaqucllc primeiro sentido, pois que todos tem e conservam sem­
pre c em toda a parte os attributos naluracs que formam o fundo
essencial de seu ser, o seu caracter de pessoa, a sua geral c a ­
pacidade jurídica ; cm virtude do que essa igualdade subsiste
e mantém-se mesmo alravéz das innumcras circnmstanciasquo
em todos os mais sentidos os desigualam. Mas não pódem cl los
também deixar dc ser desiguaes de facto e na somma de seus di­
reitos •, desde que nem todos pódem realmente dar a esses seus
attributos o mesmo emprego e desenvolvimento, enom pódem
ler quér no mundo exterior os mesmos meios materiaes, quér
em si propriosos mesmos recursos particulares para traduzirem
aquella sua geral c cominum capacidade jurídica em direitos ef-
feetivamente creados c adquiridos.
Todos os homens, em surnma, são iguaes quér em sua e s­
sencial organisação physicã, quér na moral, c faculdades fun-
damenlaes que a constituem, c são todos ligados pelos laços de
seu final destino ; são, porém, desiguaes cm razão da variedade
de suas condições e aptidões, dos accidenles de toda a especie,
(juo os diversificam, e dos fins particulares a que cada um póde
legitimamente applicar-se; é como diz o Sr. Ahrcns, * uma
igualdade absoluta, a par de uma desigualdade hypolhetica ou
relativa, uma igualdade como homens, a par de uma desigual­
dade como indivíduos. »
Nem póde ser d’outro modo concebida a igualdade entre os
homens. Querel-a estabelecer como principio e como facto,
seria anniquilar-se o indivíduo e a sociedade, se Tosse realisuvel
semelhante empreza. Na variedade dos estados, das occupa-
eões, das necessidades, dos meios de cada um, e no seu con­
traste, equilíbrio e harmonia, consiste a vida quer individual,
quer social. A unidade ou identidade em tudo isso seria a m i­
séria e a mina dos homens e dos povos, porque aquellas são
incompatíveis com a inlelligencia e com a liberdade, cujos ca­
racteres são o progresso indefinido, c a variedade sem outros
limites senão o justo c o honesto. A igualdade humana não
póde ter outro alcance legitimo; e tanto perigo ba em exageral-a
a favor dos indivíduos, como cm cerceal-a a favor do F.stado.
A historia da humanidade nos mostra, com eITeito, a que
deploráveis absurdos, e a quantas revoluções atrozes tem dado
lugar na sociedade os abusos ou as falsas lheorias, quér dos
governantes, quér dos governados a semelhante respeito. De
taes aberrações em qualquer d’aquclles sentidos não pódem pro­
vir senão cataslrophes ; reduzida porém aos seus devidos ter»
mos, a sua legitima realidade, é aquella afoute para os homens
<ie toda a felicidade e gozos, assim como para os Uslados o mais
seguro meio de paz e engrandecimento.
.„M0 .,:st,iul0 .l,raí1.U7'*se Pralicamentc aquella igualdade pela
igualdade dos cidadãos perante a lei, a qual consiste em terem
todos do mesmo modo garantida plena liberdade para tudo
quanto nao otfenda direitos alheios ou da sociedade ; em pode­
rem lodos, ricos ou pobres, poderosos ou fracos gozar com
a mesma certeza e segurança dos fruclos de seu trabalho ou in­
dustria ; em concorrerem todos para os omis ou encargos so-
na •i"sla P' °t»orÇão de suas posses; em poderem lodos as-
pu.ii a quacsquer honras ou posições sociacs segundo o seu mc­
i im pessoa ; em serem lodos admiltidos ás mesmas recompcn-
sas e sujeitos as mesmas penas, segundo as suas virtudes ou vi -
..-wfJ.i,?1 “ SerT ' íinalnit!l'te, quaesquer legitimas preten-
ots dc uns pospostas ou immoladas ás de outros, nem conce-
i n as a estes vantagens ou isenções que se recusem áqucllcs em
r t t 50» U C|nn-ÜS’ P°r .U"' siml,les PrivUegio pessoal ou de,
— i S V Í S T » “ “ '» » • 'l ê
Na possibilidade e applicação de lodos os desenvolvimentos
da personalidade individual a todos os objectos susceptíveis
destes, consistem, segundo a justiça absoluta, os direitos do
homem, e si a justiça social deve conformar-se áquella, salvas
as modificações que a sociedade exige, e que, ainda assim, de­
vem influir por igual sobre todos os que a formam, segue-se que
lambem perante a lei civil, devem ser iguaes todos os cidadàos,
quanto a possibilidade de adquirir todos os direitos, e quanto
ao exercício de quacspuer que tenham eflectivamenle adquirido.
Não consiste, nem póde consistir a sua igualdade em tornal-os
de todo segregados uns dos outros, ou do poder publico. Esta
independência completa de uns para com outros, ou para com
este, é inconcebível.
Mas si é certo que sem a subordinação social não lia ordem
publica possível, e nem, portanto, eITectividadc regular e plena
de quacsquer direitos individuacs, não é lambem menos evi­
dente que o Estado não deve,levado por tendências absorventes
ou vãmente meticulosas, pôr peias inúteis ou illcaitimasá liber­
dade do cidadão, a qual por via de regra, como diz o Sr. Ahrens,
" lcm sobre as suas faculdades reslrictas, um direito de primasiaj
que a razão e a natureza estabelecem em seu favor.»
Em summa, a verdadeira igualdade humana que se traduz
na sociedade pela igualdade dos cidadãos perante a lei, consiste
como diz aquelle autlior, «cm tratar-se desigualmente a seres
desiguacs,» uma vez que isto se pratique segundo ajusta me­
dida de sua real desigualdade de facto e bypotlietiea, e não de
um modo arbitrário. Isto é, para que a igualdade dos cidadãos
perante a lei não seja uma simples fórma illusoria, para que
seJ® Hma realidade, é preciso antes de tudo que a lei seja justa,
quer na sua applicação absoluta, quér relativa; aliás a igual­
dade por ella estabelecida será, no primeiro caso a igualdade
!hdesPICSSá0, C 110 Stígimtl° a rnais óisupportavel das desigual­
Eis, repetimos, a unica igualdade possível e util entre os
homens. Uma igualdade consistente em uma igual repartição
de bens ou de gozos por todos, ou destinada a nivelar de facto
todas as condições sociaes, como meio de fazel-os felizes, c uma
perfeita cljiméra, mas cujas tentativas do realisação tem já sido
fataes aos iiovos. Ella não póde sor o que sonharam Platão na
sua Republica, ISousscau no seu brilhante paradoxo sobre a des­
igualdade humana, certos espíritos visionários nas suas doutri-
»asou instituições arlificiaes, c muito menos os llaboeufs, os
Eabets e seus predecessores ou continuadores.
A igualdade natural dos homens, se foi entrevista cm todos
os tempos pelos philosophes, não peneirou nas leis, instituições
e relações ioternacionaes dos povos antigos. Alhenas e ltoinn,
os mais cultos d’elles, conheceram apenas c ainda assim defei­
tuosa, a igualdade de.seus cidadãos ; os estrangeiros eram em
geral considerados em todos como inimigos, e os vencidos es-
cravisados. Na cidade de l.ycurgo, apenas por algum tempo se
manteve um arremedo d’esta em beneficio de 30,000 Sparcialus
dc pura raça, a custa do suòr, do sangue e da mais terrível es­
cravidão de 400,000 Ilotas.
Hoje entre os povos civilisados, se não é mais desconhecida
nem contestada a igualdade natural dos homens, todavia a sua
igualdade perante a lei, que é a sua fórma pratica, uno tom ainda
attingido, e quem sabe quando poderá attingir, a sua completa
ou mais perfeita realisação E’ este um problema, sern duvida,
de difficilima solução.
3.° De serem todos os homens iguaes juridicamente cm
razao da identidade de sua natureza e destino, nasce o seu di­
reito de independencia individual reciproca. Mas esla uão é
também senão uma independcncia dentro dos limites do justo
e do honesto, ou antes dentro dos limites das proprias necessi­
dades da natureza humana.
• ,k li0i S,li seria iri t:alisavc' enll-c os homens uma indepemlen-
cia absoluta ; mas a sei-o seria a sua miséria communi A sua
£ n « l n r e,t f S S . 0,a,. " aqi.,ÍI10 Cm qUÜ ('lh's ^almei.te devem
d is n S v P l l f • rt>S’ f a CündiÇil° niais importante o in-
l o s e ^ i m , I , , i . Vllil ° (J,'senvo'vimento, em razão dos auxi-
a liT e l?(1? a esPecie fiue d’alii lhes vem.
mente individual n’estes termos é ineontestavel-
é mm rnnspniio° '-nnat° u ^'soluto de todo o homem : pois que
r r tn ímmediata de sua qualidade de ser racio-
èlh J'rh m 3 r dlC“ ° ossencial ‘>o sua personalidade. Sem
ou de è!»n?piin0 ®en e convert‘dos 0R mais fracos de corpo
tes on .n- ii ’ ? ? muraS co,?sas 011 instrumentos dos maisfor-
direü s m a . V Setn clla seriam tü(los incapazes quér dos
Mas anàtín.eln O 0S dever.es tJue, P^uPPOe O caracter pessoal,
semelhante hvnnticonscie?cia de cada ' l0mcm protestam contra
caracter mie "•f? !ese.’ c í cnK)nsli ani fine em razão d’este sen
pliera de activiUnU or?ani?n<í;‘° »Hesta, tem cada um uma es-
violência que se thu faz 1 superioridade de outro, e uma

autoS^^
eai também, e com igual procedência, para o mesmo fim a seu
respeito ? Os meros accidentes, a diversidade de aptidões par­
ticulares que de facto os desigualam ou as suas condições exte­
riores, não alteram a sua essencia commum ; sâo para issu in-
suflicientes ; não dão a qualquer por mais favorecido que seja
sob aquella relação, pela natureza ou pela fortuna, mais ou me­
lhores direitos absolutos do que a qualquer outro.
Salvas, por tanto, as subordinações individuaes estabeleci­
das pela propria natureza humana, como a de filho a pae, e as
sociaes de súbdito ao poder publico, que também mais ou me­
nos directamente d’ellase derivam, ou da necessidade da exis­
tência e progresso da sociedade, nenhum homem por acto de
autoridade propria, e mesmo em nome dc quaesquer conside­
rações por mais attendiveis que pareçam, póde legitimamente
collocar-se para com outro na posição de superior, ou assumir
sobre elle tal império que a sua pessoa lhe fique presa ou avas­
salada. A escravisação de qualquer homem ou raça de homens
ainda a titulo de melhorar a sua sorte, ou de civilisal-os, é,cumo
já vimos, um crime contra a natureza. '
O império do homem sobre o homem não é mesmo juridi­
camente possível mediante utn pacto. K' certo que cada indi­
víduo póde contractai’ com outro os seus serviços, e sujeitar-se
a prestar-lh’os de um modo mais ou menos extenso e duradouro,
duque son seu proprio interesse póde ser ò juiz : mas isto. como
já dissemos com o Sr. Ahrens, por meio de suas acções que não
comprometiam a sua personalidade inteira. Por esse meio póde
qualquer pòr-se cm uma tal ou qual dependencia de outro •
e até a vida social não ó senão uma sujeição continua e em todos
os sentidos do homem ao homem ; mas sujeição cm ambos os
casos razoavel c nuo arbitraria, filha da propria natureza do
homem e da sociedade, e não do capricho ou da prepotência
individual ; sujeição que em vez de anniquiiar a legitima inde­
pendência de cada um ,ao contrario a suppOe, a confirma, a con­
solida, e torna urna realidade.
Paclúa-sc, e é indispensável d consecução dos fins rneio-
naes e moraes do homem, que este pactue a prestação de seus
serviços, c que cada um lire d’elles as grandes vantagens que
d’isso lhe podem provir. Mas ninguém póde vnlidamente pac­
tuar a sua propria escravidão, c menos ainda póde alguém im-
pôr-lh’a por esse ou por qualquer outro titulo. Aquelle que tal
cousa pactuasse, ainda quando não estipulasse expressamente
a clausula de" poder rehaver cm qualquer tempo a sua indepen­
dência, nem por isso ficaria inliibido de fazel-o. Não nos pa­
rece, pois, acccilavel a idéa do Compendio admitlindo como pos­
sível o império do homem sobre o homem em virtude de pactos
r*8
de reiiuucia da própria independencia, si por esta se entendo
o direito absoluto de que tratamos ; ao passo que tomado o im pé­
rio no sentido em que elle o toma na nota ao § 25 de que nos oc­
cupâmes, não só é o mesmo legitimo quando estabelecido por pac­
tos, mas ainda em muitos casos sem a intervenção d’estes, como
acontece a respeito d’aquelles indivíduos que não estão no uso
e gozo perfeito de suas faculdades -, ou quando elle nasce das
subordinações naturaes dos homens entre si, ou para com a so­
ciedade em que vivem, á que já á pouco nos referimos.
Em ultima analyse, o império do homem sobre o homem
exerce-se muitas vezes sem necessidade de contractos, e sem
prejuizo ou quebra de seu direito absoluto de independência;
c este em nenhum caso, nem mesmo por meio de contractos,
pódeser renunciado ou perdido, mas apenas modificado no sen
exercício, e dirigido em suas applicações.
l : o co a o ü:

§§ 25 — 33

Do dircilo dc. aperfeiçoamento do corpo e do espirito, e dc


suas faculdades ; — 3.* do direito de livre manifestação
c exercido d'estas.

4 « — Como vimos nas precedentes licções, o direito de


conservação da existência é o primeiro e o mais importante de
todos os direitos do homem ; e seguem-se-lhe os de igualdade
e independência, aquelle nascido directamente da necessidade,
e este da identidade do destino do mesmo liomeni.
Mas se a existência humana não é uma existência pura-
murtte material ou vegetaliva, regida pelo accaso ou peia fata­
lidade, se cila e susceptível de mais ou menos perfeição segundo
as condições cm que se possam achar os dous elementos, corpo
c espirito, que essencialmente a constituem ; si cila pódc ser
mais ou menos conforme a seu destino, segundo o bom ou mão
estado de suas faculdades, quer physicas quér m oraes; se até
o maior ou melhor desenvolvimento de umas ou outras contri­
bue poderosamente para que a sua existência seja mais segura
e prolongada; segue-se que é um dever para todo o homem,
e quasi tão importante como o da propria conservação de seu
corpo c do seu espirito, procurar quanto lhe fòr possível melho­
rar as condições d’estes pelo aperfeiçoamento continuo de suas
respectivas faculdades.
Ura, se isto é um dever de tal ordem de cada homem para
comsigo, não pódc deixar de ser ao mesmo tempo e por essa
mesma razão, um seu direito igualmente im portante em relação
aos mais. Se aquelle que não cumpre por si esse dever é res­
ponsável perante a lei moral e perante Deus, aquelle que arbitra­
riamente impeça ou embarace a sua pratica a outrem não póde
deixar de sel-o perante a lei jurídica.
CO
Por conseguinte praticar tudo quanto fòr meio licito e apro­
priado n’aquelle sentido será um direito innato ou absoluto do
homem -, pelo que todos devem ter e tem, com effeito, como nos
diz o Compendio no seu § 26, quanto ao seu corpo — o direito
de tornal-o mais robusto ou mais agil pelos exercícios a isso
adequados, de corrigir os seus defeitos, de o empregar onde
e corno lhe approuver em qualquer espccic de trabalho licito
ou honesto ; e quanto ao seu espirito, o de cultival-o, de escla­
recer a sua razão, de dirigir a sua vontade para o bem, de pro­
curar, em summa, cada um a sua educação e instrucção, quér
intellectuel, quér moral.
Desde que n’este louvável intento, já quanto ao seu corpo,
já quanto ao sen espirito, não oftenda cada um direitos alheios
ou da sociedade em que vive, porque titulo poderia qualquer
outro impedil-o ou eslorval-o, sendo todos iguucs e indepen­
dentes por natureza c destino ? Com que razão poderia qual­
quer proceder d’este modo se cada um tem uma legitima cs-
phera de acção dentro da qual o seu desenvolvimento no sentido
de melhorar as condições de sua existência, quér pelo seu lado
physico quér pelo seu lado moral, é perfeilameiite compatível
com o dos mais e até favoravel a todos ?
A pratica de laes direitos tende a fazer de cada •indivíduo
na sociedade a que pertença, pelo menos, um cidadão inoffen-
«•vo aos outros e util a si, quando não consiga fuzel-o sábio ou
virtuoso. O seu exercício bem dirigido é, portanto, não só
o maior beneficio que cada um pode fazer a si proprio, mas tam-
,)em íl melhor garantia da ordem e do progresso social.
Assim, deve ser livre a todos os homens tratarem de sua
propriainstrucçSo e educação edn d’aquellesporquem lliescum­
pre velar ; e tanto mais que n'esta matéria nem tudo so póde
exigir ou esperar do Estado, « consistindo a obrigação d’este
a tal respeito, como diz o Sr. Abreus, principalmente cm libe—
rahsar aos seus cidadãos a educação geral, isto é, aquella que
se refere as taculdades fundamentacs do homem.»
O Estado é, sem duvida, altamente interessado em que. não
lane a nenhum de seus membros esse fundo de sentimentos ra-
(l,e ',lleus sás que constituem am ais segura base da
80ciabilii ade liuniana, e subministrar-lhes é um dos seus mais
sérios encargos. Tudo o mais, porém, salva a crcaçüo das insti­
tuições de instrucção especial que mais direclamente interessem
ao proprio Estado, ou superiores aos esforços e recursos indi-
Vld.l' ae2; duve sei’ deixado a estes ; pois que, em geral, em so-
memante assumpto, a iniciativa individual é mais capaz de
grandes resultados, do que todos os meios, aliás poderosos, de
01

t|ue o Estado dispõe. Si este deve, pois, promover quanto possa


a educação e a instrucção de seus membros na parte que lhe
compete," deve ao mesmo tempo deixar plena liberdade a uus de
daj-a e a outros de recebel-a, limitando-se a inspeccional a nos
devidos termos, e a garantil-a elTectivamcrite em toda a sua le­
gitima amplitude contra as tentativas ou ataques que preten­
dam oppôr-se-llie.
Si por um lado nenhum homem, como já dissemos, póde
ter motivo legitimo para proceder d’este modo contra esse d i­
reito sagrado dos m ais; por outro, só pódem ter interesse ern
desconhecer ou coarctar o seu exercicio com restricções odiosas
ou inconvenientes, os Estados onde domine o obscurantismo,
ou cujos governos pretendam a mercê da ignorância e compres­
são dos povos perpetuar-se no poder que usurparam ou de que
que abusam. Contra estes cumpre aos mesmos povos, e a cada
um dos cidadãos, precaverem-se e tirarem da sua propria ener­
gia os meios mais adequados, segundo as circumstancias, para
defenderem ou rehaverem os seus fóros.
5.° — Mas não é bastante fornecer-se ao espirito de todos
os homens ou cidadãos, e ao seu coração essas doutrinas sas
e aflectos puros, ou deixar-se-lhes inteiramente livre a sua ac-
quisição. De que-lhes serviria o direito, e como suppôr-se-lhes
o dever de instruirem -sc,de cultivarem a sua vazão, e de aperfei­
çoarem a sua sensibilidade, si não lhes fosse ao mesmo tempo
garantida a liberdade de manifestar as suas convicções, e toda
a expansão a seus sentimentos, consistindo n’isso especialmente
a sua vida moral, tão respeitável e muito mais cara que a sua
vida corporea ?
E’ portanto, evidente que o homem deve ter não só o direito
de adquirir ideas e de pensar, mas também o de dizer o que
pensa; nao só o de crôr o que lhe parecer crivei e sómente isto,
mas ainda o de manifestar suas crenças e de viver na conformi­
dade d’ellas, uma vez que assim não cause d am nom t/ (13) a ou­
trem ou a certos deveres de Moral Social, ou de Iteligião, com que
de facto se póde prejudicar ao Estado ou aos mais.
Manifesta-se o pensamento, sobretudo, pela palavra, pela

(13) Empregamos aqui a palavra r e a l muito calcidadamente, pois


que não consideramos como taes as razões de que ordinariamente, go­
vernos ou seitas, tem-se servido para comprimir as liberdades de que
tratamos.
62
escripta ou pela imprensa, c as crenças pelo cnllo externo;
e a todos esses modos de sua manifestação ou a lodos os actos
em que ellas consistem, deve ser garantida n ’aquella ampla li­
berdade, salvo ao poder social o direito de punir os seus verda­
deiros abusos. A devassidão publica, a prédica de idéas anar-
cbicas, os excessos do fanatismo ou quaesquer outros do arbítrio
ou paixões de quem quer que seja, não pódem, de certo, invocar
a seu favor a salvaguarda, das liberdades de pensamento c de
crenças. Contidas, porém cm seus limites jurídicos, são estas
não só o que constitue a vida intima, e o mais precioso thesouro
de cada lioinem, mas também a condição mais indispensável de
toda a ordem, c progresso commuai ; são as vias de commuai-
cação e depuração de todas as verdades que mais interessam
á sociedade e ao genero humano.
Os falsos receios da liberdade de pensamento ede crenças
c de sua manifestação tem dado origem aos maiores horrores
dos governos e das seitas ; ás mais terríveis scenas de luto e san­
gue que mancham os annacs da humanidade-, c ainda assim,
inutilmente para os fins a que sc tem proposto os seus authores.
F.stá com eileito, demonstrado não só pela mais dilatada e an ­
gustiosa das experiencias, como também pelo estudo da intelli-
gencia c do coração humano, que a tyrannia n’este terreno,
além de ser uma atroz violência contra o que tia de mais sagrado
no homem, é um recurso de todo impotente. Faz-nos ver a his­
toria, como a ominosa prepotência que oulr’ora exerceram,
quér o poder civil, quér sobretudo o poder ecclesiastico nos
listados Catholicos contra as Uberdades de pensamento c de
crenças, sem impedir, por fim, as grandes conquistas da verdade
e da civilisação, apenas servie para arrastar aquellas mesmas
liberdades e todas as m ais,a explosões estrondosas em que muitas
vezes ultrapassaram os limites da razão e da justiça. A iutol-
lerancia e arbitrariedade de um e outro poder em taes assump­
tos, tem sido, com eífeito, a causa principal d’csSas reacções dos
sectários contra as suas igrejas,ou dos povos contra seus gover­
nos, que se revelam nas inuumcraveis heresias ou scismàs que
tem retalhado a religião dc Chrislo desde os seus primeiros sé­
culos, e nas grandes revoluções que nos últimos tem tão violen­
tamente abalado e transformado a orsianisução política dos lis­
tados.
Nota, com razão, o Sr. Abreus que « é cxactamcutc nos
paizes em que mais se pratica a liberdade das opiniões que me­
nos opiniões ptravagautes apparecem » e o mesmo se deve dizer
particulavmeute das crenças. Nem pode ser de outro modo,
desde que coniprimimlo-se aquellas liberdades para evitar-se os
seus erros, comprime-se ao mesmo leinpu a de demonstrai-os
impedindo-se o seu livre exame. Além de que é evidente que
religiões impostas pelo alfange, ou pelas fogueiras são os maio­
res insultos que se possa fazer a Divindade, a não esta um Mo­
loch ou um Teulaíés.
Ila mesmo no fundo da compressão de taes liberdades
a mais flagrante das contradições, desde que os proprios com­
pressores não contestam, nem pódem contestar, quer o direito,
quer o dever, quff tem lodo o homem de esclarecer o seu espi­
rito e purificar o seu coração. 1’ara serem consequentes deve­
riam elles, antes de tudo, proclamar a santidade da ignorância
e o dever da degradação pessoal.
Em Burnma, contra as extravngancias do pensamento, ou
contra os erros em matéria de fé, efnquanto inoffensivcs aos
direitos ou deveres a que acima alludimos, não lia outro remé­
dio legitimo nem mais eflicaz do que aquellas mesmas liberda­
des de inslrucçâo e educação de todas as classes sociacs por um
lado, e por outro a persuasão e caridade; é o proprio Evangelho
que o ensina. Com quaesquer outros meios pOr-se-ha a huma­
nidade em torturas unicamente para fazer-sc mais alguns hypo-
critas quando, aliás, sem isso, já os lia em tanta demasia.
Onde não existe a liberdade de crenças o senlimento reli­
gioso necessariamente se corrompe, e a superstição com lodos
os horrores do fanatismo substitue a verdadeira piedade ; e onde
não exista a liberdade de pensamento reinará o despotismo no
meio da estupidez e da miséria.
As liberdades de ensino, de locomoção dentro do Estado ou
para tora d’elle, de reunião, de associação para quaesquer fins
licites, ade todas as industrias ou da applicaçáode todas as fa­
culdades do espirito humano a qualquer trabalho ou profissão
util ou innocente, são ainda direitos contidos na cathegoria de
que nos estamos occupando, c tão incontestáveis como os mais
que ternos indicado ; os seus fundamentos, quér em relação aos
indivíduos entre si, quér em relação ao Estado, são os mesmos.
A intervenção social a seu respeito não póde ter outro alcance
senão o de regular o seu excrcicio externo dc modo que não se
torne elle ineompative! com igual ou com qualquer outro direito
dos mais, ou com a propria manutenção, boa ordem e progresso
do Estado, c o de garantil-o em toda a sua juridica extensão para
qué em todos se desenvolva e pratique de perfeita harmonia.
As suas restricçòcs que não tiverem essa razão por assento, se­
rão verdadeiras violências, cujos perniciosos effeitos cêdo o u^-
Carde se farão sentir contra a propria sociedade.
11 Atliehas onde as leis du Solon protegiam c animavimj^Rs
04

as industrias e onde eram tidos como cidadííos todos os homens


de talento, « innundou, diz Michelet, o mundo com sua luz,
e morta ainda o esclarece,« e foi ounico povo humano nos tem­
pos em que o direito do mais forte cra a lei universal, ao passo
que Sparta, onde a legislação de Lycurgo proscrevia todas as
artes e ofiicios e o commercio, como proprios de escravos, só
fez de seps cidadãos machinas, guerreiros astutos, rapáces
e duros,que mereceram de Volney a denominação de ..Iroqucscs
do mundo an tig o .» E’ que a expansão industrial é realmente
própria para produzir esses maravilhosos resultados que fazem
da cidade de Minerva o unico povo que se possa chamar civili-
sado no meio da barbaria da antiguidade, e da sua historia a his­
toria do espirito humano, lilla contém em si e nos seus des­
envolvimentos essa virtude de sociabilidade e de cosmopolitismo
capazes de fazerem do gencro humano uma só familia, ou pelo
menos de approximal-o, quanto possível, deste ideal sublime-
L ld y3A O X I

§§ 25 — 33

6.° Do direito á boa reputação ; — 7.° do direito de aeçuisi-


ção e uso das cousas

ii.° — -Si lodos os homens tem o direito de cultivar o seu


espirito e de purificar o seu coração,, ou como nos diz o Com­
pendio no seu § 26, o do adquirir todas as perfeições moraes,
devem ter necessariamente o dc praticar todos os actos a que
estas perfeições os habilitem, e que possam grangear-lhes honra,
louvor, ou gloria. Se todos lern direito dc procurar distinguir-
se entre os seus semelhantes esforçando-se por melhor compre-
hender e cumprir os seus deveres para oomsigo c para com elles,
e é isto até uma aspiração cheia de nobreza, ó claro que deve
sei- igualmente um direito seu não menos real c importante,
manter cada um a boa reputação que por tal procedimento te­
nha alcançado.
A ninguém pode ser real mente contestado esse direito, desde
que segundo a lei jurídica, ó licita a todos os homens a pratica
de quaesquer acções que lhes possam ser úteis sem ofíensa aos
mais, e que pela lei moral é um seu rigoroso dever porlar-se dc
modo que se tornem dignos da geral estima. Ora, é evidente
que qualquer perfeição moral ou proceder louvável,de que possa
provir bom nome, honra, ou verdadeira gloria a alguém, não só
jamais causará damno a outrem, como até, ao contrario, mais
ou menos directa ou ihdirectamenle aproveitará a todos.
dom efíeito, a boa reputação de alguém, por mais que se
expanda c se alargue, nunca invadirá a legitima esphera alheia -x
deixará sempre terreno do sobra para o desenvolvimento de
iguaes aspirações da parle dos outros. Si verdadeira gloria
u grandeza resultam dos feitos notáveis militares ou políticos
com que se faz a pátria iIlustro ou poderosa, Tliemistocles que
perdia o somuo todas as vezes que pensava nó? Irophéos dc Slcl*
9 F.
ciades, uào toi incutis célebre nem menos grande cidadão do
t|ue elle : e Alexandre loi ainda maior do que seu pau Philippe,
l'01' cujos triumplios receiava llcar sem louros a recolher mais
larde. L’ que n’este campo, se a vil inveja é l'erlil em crimes
ou baixezas, uma nobre emulação póilc ser fecunda cm virtudes
c acções brilhantes.
A boa repi.itaçao c um bem inapreciável que se adquire me­
diante estorço e ás vezes á custa de grandes sacrilicios. Ella c
a primeira, e a mais natural recompensa da virtude; e se esta
nao e um mero nome, como a qualificou Bruto em desespero,
deve aquella ser respeitada e honrada ao menos, quando não
possa ser imitada a couducta que a mereceu, (’.onseguin temeu te
'juein a ataca eominelte uma verdadeira lesão de direito digna
de severa punição na sociedade.
Mas quando mesmo se não deteste a maledicência pelo sim­
ples 'Uiioi da justiça ou da caridade, bastam, para fazei-a evitar,
os conselhos de um egoísmo intelligente e mais ou menos co-
í r i C in,eresse hem entendido ; pois que é certo que
hmo ií! m:us 'e/es,prejudica ao seu autbor do que á sua vic-
i a. h sempre perigoso tentar-se. e dillicilimo senão impôs*
f ' f ’ Ç8tabelecer-se de um modo real c duradouro uma boa re­
putação própria sobre a ruina da alheia bem ou mal havida.
Í K . qr d0Se' " “ ,nlt;1n';fl0,le fu7tír '»»1* esómente com o in-
«nlbpí Z«™ e*P'nJ ° ulla ac,e.ra 03 seus dardos além de certos

nifèstà sob ;\cof'.llece °.llt1'? ‘anto, n’àquelles em'quVclle se ina-


ffltoíítíríSr íl n,JUm°1'dacahimnia ^ *“
1
temos i.i..iiMnnl,m? lhreiLos '»natos do homem que até aqm
1

S S n d SU^ ^ ' n para 0 scu completo exercício e des­


° C: a :V h m üd(: ac(lui^ » o e usi das cousas exter*
io, nnr i ^ 'll,',n 0 ,e,n ^ T 10 considerados e.n scu princi-
St n dnv l-? ,]al.Ural (luc„tl cs,l.e »"“ enios depois d’elles,
fectiva r è î l M Î ’n -s aqu,eUes (1"'eUus P m terem plena e ef-
paveis não *a, mn*cci3ain de tornar-se sensíveis, como que pal­

f"“«50«*»
nas esnccialin.'Mio
mas v• ,
esnccialineiiicnos otdüí. os s,aclos «o '^uido
1“®10.8. (l° mundo exterior.
exterior,
sdadep“iminensa
s * de õnn
"atn tt ’rComs r *0 homem *?.
uma varie—

m s ã Ê Ê s m
07
necessidades dc sua natureza, que lhe seria impossível encon­
trar em outra parte.
Pretendcr-se-hu que não tenha os verdadeiros caractere«
dc um direito essa contribuição em que para seus com modos
e benefícios o homem põe a natureza m aterial'! I)ir-se-ha que
Isso não passa de um facto sem fundamento nos princípios da
justiça absoluta, o que só subsiste porque todos são interessados
ern reconhecel-o ? V isto, porém, responde-se cabalmente, já
com as razões que, havemos de produzir mais adiante, e já com
as observações que lizemos sabre o § 24 do tlompendio, e que
agora procuraremos completar.
Dissemos então, que se cie um lado as cousas exteriores
e physicassáo elementos indispensáveis á vida e, a lodos os des­
envolvimentos do homem, e de outro, só este tem o poder de
extrahir cfellas os variadíssimos e importantes resultados para
que cilas são próprias ■,si eltas não tem préstimo para si mesmo,
c tem -n’o immcnso e imprescindível para aquelle-, si tudo, em
surnma, as denuncias como meros instrumentos ou meios, e não
pódem sel-o senão do homem ; é claro que devem legllimamente
serv irá satisfação das justas e naturaes necessidades d 'c ste ;
que foram postas pelo C.reador ao alcance de sua mão, senão
unicamente para serem convertidas em seu uso, ao menos ne­
cessariamente também para isso. De outra sorte, nem a exis­
tência das cousas teria explicação plausível, nem a do homem
possibilidade de manter-se, ou este a de desempenhar as exigên­
cias de seu destino. A natureza d'nquella3 não teria »’esse caso
razão de ser tal, nem a haveria para terem as pessoas os fins que
sua organisação atlesla.
Si o homem, (lnalmente, não tivesse o direito tle apropriar-se
das cousas do mundo externo, que o cercam, c que pódem ser
dc facto por elle possuídas e desfruetadas, seria escravo cVelIas :
si não podesse dominar a matéria.seria seu ludibrio e sua victima.
Não obstante, porém, a evidencia d'esta verdade, não tem
cila escapado inteira ao máo humor do alguns philosophos ou
á furia de certos reformadores. A propriedade territorial, so­
bretudo, tem sido alvo de seus ataques ou declamações. Itous-
seau pretende que c o primeiro hcfmem que ousou fechar um
terreno e cultival-o,e disse—isto é »icu.lbi um inimigo do ge-
upro humano, que se devia exterminal-o, e que a terra não c dc
^ n in g u é m , n seus fruetos são de todos. » 1‘rudhon mais calhe -
gorica e modernamente proclamou que «a propriedade e um
roubo.»
Mas poder-sc-ha, com razão, pôr cm duvida a legitima pro­
priedade da terra, ou pensar que ella podia e devèra permane*
cor indelhndamente na posse commum de todos os homens?
Não; a terra, ao contrario, é e deve ser o principal objeclo da
apropriação (los homens, e da sua legitima posse exclusiva -, pois
que é ella a fonte primeira de todas as producçõos mais neces­
sárias á sua vida, e da maior parte das matérias sobre que se
exerce a sua legitima actividade. A superficie do globo não po­
deria pertencer em commum a todos os seus habitantes, já por­
que de facto c isso impraticável, já porque realmente ella se
presta a ser possuída exclusivamente por partes que cada um
póde guardar e ulilisar sem damno ou perda dos mais ; e já final­
mente porque quando mesmo tal communliào não fosse uma
chiméra, Importaria a cslerilisnção geral da terra, e a miséria
humana. Só dividida entre muitos cm propriedade exclusiva,
póde esta abrir o seu seio fecundo ás explorações da intelligen-
cia e do trabalho dos homens, prestar-se a Iodas as evoluções,
que lhe dão valor e desenvolvimento, e derramar entre estes com
profusão os seus magníficos tbesouros.
A formação dos primeiros núcleos de população, e pelo
progresso (l’estes a orgauisaçno dos Estados, da sociedade civil,
suppõem necessariamente a morada fixa do homem, a sua sub­
sistência segura, e estímulos e garantias reaes para as produc­
ções du sua actividade; r. nada d’islo seria possível sem a pro­
priedade do sólo. Sem esta seria a humanidade reduzida a pouco
mais que o bruto ; e o exemplo lemos,de algum modo, nas tri­
bus selvagens que possuem em commum as brenhas onde erram,
e cuja industria consiste em pouco mais do que erguer ou abaixar
a mão para colher os fruetos ou as raizes agrestes de que ali­
mentam a misera existência.
Mas os que pensam que a terra não póde ser propriedade
exclusiva de ninguém, deveriam para serem consequentes con­
cluir, que também os seus fruetos a ninguém pódem pertencer
de modo algum, em vez de declararem que elles são de todos.
Com effeito, negada a propriedade da terra, por que titulo aquel-
les selvagens ou qualquer homem se apropriaria já d’esses fruc-
tos espontâneos da natureza, já de quaesqner outros objectos
d ella ? 1‘orquc razão em tal caso esses fruetos e só elles, de­
vem ser de quem primeiro os colha ? O titulo pelo qual alguém
legitnnamente os faz seus é o mesmo que o autorisa a apro­
priar-se exclusivamente de tal ou tal porção do sólo.
Si e illegitima a propriedade da terra deve sel-o, por iguaes o
motivos, a de quaesqner de seus produetos. Si não me ó licito
fazer meu um pedaço de terreno que posso eíTecÜvamentB guardar
e cultivar sem damno real de alguém, e por estricta necessidade
da minha propria existência, como e porque poderia excluir os
09
'»ais da apropriação (3 uso de seus fnielos ? A popriedadc exclu­
siva da te m só póile, pois, serrepellida siippouclo-.se a idea da
propriedade em si mesma absolutarnente inadmissível perante
o Direito ; de modo que aquelles que a atacam reduzem o genero
humano á sorte miseranda dc Tanlalo no meio dos maravilhosos
dons da natureza som poder tocal-os. Póde-sc por ventura con-
eeber o homem absolutarnente sem a propriedadu dc cousa al­
gum a1 c sobre ijue rccabiria ella, excluída a torra e seus fructos,
quando as próprias producçües da inteljigencia e da actividade
humana as suppõem como maleria?
Si todas as planícies, valles, e montes do gloho estivessem
sempre cobertos de fructos nutrientes e deliciosos; ou antes si
por toda a sua superfície os homens achassem a comida feita,
promplo o vestuário, construídas commodas habitações ao seu
dispôr; ou emfnnao alcance de sua mão e da melhor espeeie, tudo
quanto tosse necessário para satisfazer ás suas necessidades e le­
gitimas aspirações ; de certo seria escusado atlribuir-se-lho um
<Jiieito de propriedade ou dominio exclusivo, sobre qualquer
cousa. Com razão diz \ oltaire, •>si ha alguma ilha onde a na­
tureza prodigalise todos os alimentos e todo o necessário, sem
trabalho, vamos viver ahi longe do montão informe de nossas
leis : mas desde que a tivermos povoado, será preciso vollarmos
ao meu e ao leu, e a estas leis que são muitas vezes péssimas,
mas que não se podem dispensar.»
Desde, porém, que as cousas não são assim, nem podem
sel-o, e claro que o direito de aequisição e uso exclusivos de
quaesquer objeetos da natureza inclusive a terra, e principal­
mente ella, não pode deixar de ser reconhecido como um dos
mais incontestáveis do homem.
iodo o genero humano tem aliás, c sempre teve esta inli­
ma convicção e na conformidade d’ella procede c procedeu em
todos os tempos, sem a menor duvida ou variação. « FJIe re­
conhece-se, diz p Sr. Ahrens, senhor e proprietário da superfície
do globo; a relação em que clle está para com os objeetos irn-
pessoaes da creação é a tio possuidor para cousa possuída.» Do
que entretanto «si não se devo, segundo o pensamento do mes­
mo aulhor, concluir para a idéa pantheisla que absorve o ho­
mem e todos os seus direitos na humanidade e acaba n’aquella
communbão dos bens que combatemos, lambem não se deve
concluir para a theoria individualista, que fazendo cada homem
proprietário de tudo aquillo de que póde apropriar-se, destróu
os laços que o prendem á humanidade, e o torna um ente isolado
o egoísta.»
Na verdade nenhuma d'estas conclusões seria legitima ou ac-
TO
ccUavel; pois que pretender-se regular a acquisiçüo das cousas
entre os homens, já pela sua simples qualidade de homens, já
pelo arbítrio ou torças de cada um. seria anniquilnr-se, tornan­
do-o impossível,ou abandonar-se ádesordem, esse importantís­
simo direito.
Mais adiante trataremos do titulo e modo porque a ac.qui-
siçS-o das çousas nullius realmente se effeelua, segundo o Di­
reito, das condições de seu reconhecimento o permanência,
isto é, da sua occupaçâo, apprchensào, aposse de que falia o Com­
pendio no § 29, e dos seus limites racionaes; assim como, por
conncxão, do modo e titulo, das condições e limites reaes da
- acquisiçiio das cousas já a outros pertencentes.

u tJllíl * 1M / U I I J W ».l « '•'


L io g lo x ii

§§ 21 - 22.

8.» Du direito Xk benelicencia ; — 9 ° do direito de segurança

Si as regras do Direito Natural destinam-se, antes de tudo,


a assegurar a cada homem o seu bem ser individual, não é to­
davia para sanccionarem o seu egoísmo, e ainda menos para
lh'o impòrem. A lei jurídica quando se refere, não a pratica
dos deveres que prescreve, mas ao respeito necessário aos di­
reitos que outorga, alarga a sua esphera, e então verdadeira­
mente se confunde a sua missão com a da lei moral, abran­
gendo na sua protecção todo o genero humano e tudo quanto
lhe possa ser devido por qualquer titulo legitimo, ainda que d'ella
propria não proceda direelamente. Por outra, o Direito Natu­
ral que dirige os homens para o seu bem ser social reciproco
embora relativo, não só não póde contrarial-os. mas deve vir até
em seu auxilio na pratica do bem absoluto, de que em grande
parte depende a consecução d’aqnellc. Si elle pretende fazer
o homem justo, sem impòr-lhe a virtude, não póde entretanto
impedil-o de ser virtuoso, antes lhe deve garantir todos os meios
n’este sentido. ’
Todo o homem, pois, além do direito de procurar o seu pro­
prio bem estar pelo exercício d’aquelles que importem gozos
u vantagens suas, deve ter lambem o de concorrer quanto possa
pela pratica dos preceitos da Moral e da beneficencia para o dos
seus semelhantes ; isto é, deve ter todos esses que lhe attribue
o Compendio no seu § 27, a saber: de promover a conservação
dos mais, de os ajudar em seus tins licitos, de os instruir, de
lhes facilitar, íinalmentc, todos os seus legítimos desenvolvi­
mentos, a perfeição de seu corpo, de seu espirito, c de seu co­
ração. « A sociedade, diz o Sr. Ahrens, é um organismo em
que o desenvolvimento de cada indivíduo depende do concurso
de. todos os mais ; todos os homens devem, por tanto ajudar-se
72
reciprocamente, subminislrare garaulir aos mais aquelles meios
que pódem contribuir para o seu bem ser.» Si como obrigarão
mio passa isto ile um dever puramente moral, a cuja pratica
ninguém póde ser coagido, entretanto, como faculdade é um
direito inauferivel de cada um. Si é uma simples regra de hu­
manidade aquella que nos recommeuda fazermos aos outros
o que lhes é ulil e não nos prejudica, é uma regra cstrietamenle
jurídica, que não se faz injuria a quem quer que seja pelo bene­
ficio que se presta a outrem, uma vez que não seja elle feito
a custa da pessoa, bens, ou quaesquer outros direitos de ter­
ceiro, que devam ser respeitados segundo a lei natural ou social.
Salvas estas únicas hypolhescs em que o beneficio é ju ri­
dicamente impossível, ninguém póde ter razão legitima para op-
pòr-se á sua pratica. E si até nenhum acto lunfiano se concebe
que mais do que o exercício da beneUeenciu ennobroça e eleve
o homem, é consequente concluirmos que nenhum tem melho­
res titulos a ser considerado como um direito incontestável, ou
que mais digno seja de ampla e cflieaz protecção na sociedade.
I)’ahi não pódem provir senão bens quér acj|ta,quéráqueUe que
a pratica, quér áquelles sobre quem ella derrama as suas con­
solações ou soccorros. lmpedil-a, ou embaraçai-a de qualquer
modo será, por conseguinte, além de um attentado contra uma
das mais bellas prerogativas da especie humana, um procedi­
mento que jám aisse explicará por motivos que não sejam ignó­
beis. Só uma baixa invejo, sórdida cttbiça, ou mesquinha vin­
gança, pódem fazer, com effeito, que alguém se encommodc
a tal ponto com o benetlcio que se pretenda fazer a outrem, que
lhe saia ao encontro para tornal-o impossível ou eslotvul-o,
quér pela violência, quér pelo artificio.
'"as 0 beneficio que pôr sua natureza e caracter impõe-se
d’este modo ao respeito de todos, poderá ser tão bem legitima­
mente imposto ao proprio a quem se pretende fazel-ol 0 Com­
pendio na nota ao seu § 28, salva a limitação declarada no final
do mesmo, respoutie negativamente, e nós o acompanhamos
n este ponto. Lí' exacla a maxima que elle alii cila : invilo non
daiiir beneficium. Si ha mesmo para o homem certos bens ou
vantagens próprias de sua natureza, a que elle não póde legithna-
morite renunciar ; si cada um tem para eomsigo dflvercs sagra­
dos a cujo cumprimento não póde subtrahir-sc sem crime pe­
rante a Moral ou Deus, c até sem damno seu mais ou menos
real, proximò, ou remoto ^ nem por isso qualquer outro póde
constituir-se em relação a alguém orgão de sua consciência ou
delegado da Divindade para forçai-o á sua observaucia, a titulo
de depender d "isso qualquer cspecie de vantagem ou felicidade
sua. A propria sociedade uenlmnia competência tem n’este
sentido a não ser em nome de algum direito real seu ou de al­
gum de seus membros sacrificado por tal omissão ou menos­
prezo. Cada homem é o juiz unico competente para conhecer
as circumstaucias em que sua pessoa, bens, ou direitos precisam
dos benefícios alheios, e si elle os recusa ou como taes os não
considera, ninguém póde sem tyrannia forçal-o a recebel-os.
Para reconhecel-os e abraçal-os ou não, sob sua responsabili­
dade, e sujeito ao soffrimento no caso dc regeição caprichosa,
deu-lhe a natureza a razão e a liberdade-
Por conseguinte somente aos que sc achem privados do
uso d’essas faculdades póde o beneficio ser feito independentc-
mente dc sua vontade e até contra cila ; c são esses, com effeito,
os que o Compendio na citada parle final do seu § 28 exceplúa
da regra que estabeleceu o que lemos acceitado. Impondo-se
o beneficio ás pessoas que n'estas condições se achem não sc
oííonde realmente a sua independencia, nem qualquer outro di­
reito seu, ao contrario confere-se-lhes mais um que até então
não tinham. Além de que, si é certo que não se faz beneficio
a quem o não quer, não o é menos que o beneficio se suppõe
acceito sempre que não é ou não póde ser positiva e conscien­
ciosamente regei lado. III le tem em seu favor esta presumpção
desde que não faz injuria a outrem quem faz em bem seu, o que
se deve suppôr que elle proprio por si faria si o pudesse, ou
o que é conforme á sua natureza e dignidade de pessoa.
Em prejuízo ou menosprezo d’estas é que o beneficio im­
posto sc não póde admittir em caso algum, ou a respeito dc
quaesquer indivíduos, sejam aliás quaes forem as condições em
que os concebamos, e as intenções ou lins que para isso se al­
légué. Assim como já vimos que era um crime contra a natu­
reza e contra a humanidade a escravisação de quaesquer raças
de homens a titulo de melhorara sua sorteou de civilisai os, da
mesma fórma o era nos antigos tempos a dos vencidos, á pre­
texto dc que assim se os beneficiava, desde que se tinha o di­
reito de matai os. Este supposto direito era pura e simples­
mente o do mais forte, o da força bruta. ...r-
9.° — No seu § 30 trata o Compendio do direito de segu­
rança, o qual sendo a garantia de todos os mais, deviamos na-
luralmente contemplar depois dc todos estes. Occupa-se ahi
igualmente o mesmo Compendio com o direito de pedir repara­
ção dos damnos que sc nos cause, o qual, aliás, não é, como ve­
remos, senão um dos modos de manifestação ou do exercício
d’aquelle.
O direito dc segurança não pode ser contestado ao homem ;
10 r.
pois que, como bem observa o Compendio, >• sem elle todos os
mais direitos quer absolutos, quér hypotheticos seriam inúteis.»
Ora c claro que não foram estes dados ao homem, e uma orga-
nisação que necessariamente os suppõe, para que ficassem eilés
mutilados ou reduzidos a impotência. Desde que esses direitos
são rcaes e ao mesmo tempo susceptíveis de ollensa alheia, não
póde deixar cada homem de ser aulorisado a assegurar o seu ef-
lectivo exercício, uso, e gozo, ou a empregar os meios necessá­
rios c adequados para prevenir ou repellir os ataques possíveis
ou reaes de que elles possam ser alvo; assim como para re­
compor qualquer detrinn nto que de facto lhes tenha sido cau­
sado apezar dc suas precauções ou repulsa.
Mas por estas mesmas razões não nos parece exacta a dou­
trina do Compendio, quando nos diz que os direitos de segu­
rança e de pedir reparação são destituídos de coacção. Todo
o direito, pelo simples facto de. sel-o. ij essencialmente acompa­
nhado da faculdade de empregal-a (piando se o suppõe exposto
a uma violência ou em presença de um obstáculo qualquer pro­
veniente do arbítrio de alguém.
Si o Compendio quer dizer-nos apenas que não ha coacção
nas méras precauções de certa especie que podemos tomar e ge­
ralmente tomamos para prevenir alguma aggressão possível, ou
na simples intimação que façamos ao ofiensor de nosso direito
para que repare o dainuo qne nos causou, diz uma verdade ;
mas uma verdade que não é applicavel sómenlc ao direito de
prevenção, no qual, segundo elle, consiste o de segurança ; no
mesmo caso está o exercício de quacsquer outros direitos‘hu­
manos em quanto considerados livres de lodo o ataque ou per­
turbação. As cautelas que tomamos de aferrolhar liem as nossas
portas, para nos precavermos contra o ladrão ou o assassino
que tememos, ou a simples exigência que lhes dirijamos depois
de roubados ou ofiendidos para movei-os a restituir-nos a nossa
propriedade ou a compensarem o mal que nos fizeram, não são,
de certo, meios coactivos. Mas a isso não se limita o nosso di­
reito de segurança, e quando mesmo este só consistisse na fa­
culdade do nos acautelarmos contra as oiíonsas possíveis, c claro
que aquellas mesmas precauções e outras semelhantes, e o di­
reito que temos, sem duvida, de chamar o ladrão e o assassino
aos trihunaes para os sobreditos fins, pódem ser por elles ou por
qualquer outrem impedidas ou embaraçadas, e que, por tanto,
se não formos legitimameule autorisados a empregar a coacção
para tornarmos effectivos ate mesmo este e aquellas em taes cir-
cumstancias, serão ainda vãs e inúteis taes faculdades.
Si podendo andar armados para nossa segurança não po-
«lemos coiriludo por amor «1'ella vedar aos mais o transito da es­
trada publica, d’onde o (lompeniiio cm uma de suas notas quer
inferir argumento em apoio de sua doutrina, nàoé porque aquelle
direito deixe de ser coactivo, é porque realmcnle não temos este
outro, desde que a titulo de nossa segurança não podemos legi-
tiinamente impedir um direito alheio (pie em nada a oiïende.
A inexaclidão da doutrina do Compendio provém cm grande
parte da idéa drffectiva que elle nos dá du direito de segurança,
que faz consistir apenas na faculdade de prevenirmos as lesões
ou offensas possíveis de nossos direitos, quando esse direito
verdadeiraineute consiste na trijilice faeutdadc, já de prevenir­
mos, já de repellirmos taes ottensas futuras ou acluaes. já de
exigirmos e fazermos cffecliva a reparação dos damnos que ellas
ntrs causem.
Ora, si os simples meios preventivos, ou antes alguns d elles,
como já vimos, pódem ser destituídos da coaeçao, o que ainda
assim não lira ao direito de prevefição em si mesmo o caracter
da coaetividade, que é proprio a todo o direito, é claro, entre­
tanto, que em todo o caso a defesa contra o ataque aetiial, e a
reparação, todas as vezes que o proprio olïonsor a não preste
por sua vontade, são necessariamente caracterisadas pela pos­
sibilidade juridiea do emprego d’aquella.
Não só pois, os direitos de segurança e reparação não são
destituídos da coacçáo, mas até cm algum sentido se póde dizer
que é aquelle o unico em que esta realmente se verifica ; por­
que em relação a quaesquer é exactamente quando se trata de
assegurar a sua effeclividade que a coaeçao apparece, e é só
quando legitimamente póde appareccr.
li’ também por este motivo, ou por que lhe anda necessa­
riamente annexo o emprego da força, que ao passo que todos os
direitos-ffínnanos sob qualquer outra fórma, são exercidos di-
rcclaméOte por cada indivíduo na sociedade, o seu direito de
seguraifça no seio d’esta, e especialmente o de defesa propria,
que é a sua mais caracleristica e importante manifestação, por
via de regra só póde ser exercido por meio da autoridade pu­
blica, salvo quando a intervenção d’esta não póde scr effectiva-
mente invocada cm razão da immincncia do perigo, (t 4)

( I ',) Da maúria do § "1 do Compendio trataremos depois da< do


que tratam os seus §$ 34 —Mj por nos parecer isto mais loglco.
L i c ao l o Tizi:
§§ 32 - :m — 36

/ia imprescreptibilidade e iiiaiienabilidade dos direitos tana­


tos ou absolutos. Das lesões de que elles pódem ser ob­
jecta — da mentira ante o Direito.

Expostos e demonstrados os direitos absolutos do homem,


tratemos de saber si elles pódem em algum caso ser perdidos ou
renunciados. 0 Compendio no seu § 32 decide-se pela affir-
mativa ; e pensa que todos »quelles direitos se pódem renunciar
ou perder, ã excepção do direito primigenio. Esta doutrina,
entretanto, não nos parece admissível.
» O direito primigenio, diz-nos aquelle, é o unico que não
se póde perder nem renunciar porque tem o seu fundamento no
caracter essencial do homem, que é ser pessoa, c porque sem
elle não haveria direito algum. » Mas primeiratnenle, si o di­
reito primigenio tem o seu fundamento no caracter pessoal do
homem, no mesmo caso estão todos os mais direitos absolutos
d’este ; é isso uma qualidade commum a todos, pois que, con­
forme já precedentemente mostramos, c o proprio Compendio
nos tem ensinado, todos elles dimanam directamente da sua na­
tureza, são attributos essenciaes d’esta ; e em segundo íugar, si
é innegavel que sem o direito primigenio nenhum outro póde
haver, não é menos evidente que perdidos ou renunciados os di­
reitos absolutos que o Compendio denomina materiaes, aquelle
desappavece, desde que não passade um direito puramante for-
fítal, que não tem matéria própria, que só se manifesta ou ve­
rifica no exercício d’aquelles, cujo conjunclo o constitue.
Dizer-se por tanto, que estes direitos absolutos materiaes
sc pódem todos perder ou renunciar, é dizer-se implicitamente
que o proprio primigenio é susceptível de perda e renuncia.
Antes de tudo pecca, pois, aquelle argumento do Compendio por
demasia de prova. •
Demais para reconhecer-se a falsidade de tal doutrina basta
considerar-se o que são esses direitos absolutos, e as consequên­
cias a que daria lugar a sua renuncia ou p e rd a ; por este lado
cita dá no absurdo.
Esses direitos são, além de outros, como já vimos: — a con­
servarão da existência do homem, a sua igualdade, c a sua in­
dependência, nos termos em que os definimos, a cultura c aper­
feiçoamento de seu corpo e espirito, a sua dignidade pessoal,
o seu direito de propriedade, de praticar a beueficencia, etc.
De modo que a prevalecer aquella doutrina poderia o homem em
algum caso destituir-áeou ser por outrem despojado d'esses di­
versos direitos. Poderia, por exemplo, cseravisar-sc ou ser es-
cravisado por outrem legUimamenle, comdemnar-se ou ser con-
demnado para sem pre á condição de proletário ; jazer por von­
tade própria ou extranha, de uma maneira irrevogável, na m i­
séria eno em brutecim ento; c até ser, sem crime, assassinado por
alguém em cujo favor ou proveito tivesse renunciado ou perdido
o direito de conservar a vida !
A opinião do Compendio assenta sobre um manifesto equi­
voco. Ella confunde os ubjcctos dos direitos absolutos, ou os
modos accidentnes de seu exercido com as faculdades congêni­
tas da natureza moral do homem em que ellcs verdadeiramente
consistem. Esses objectos ou modos accidentaes segundo os
quaes estas faculdades se exercem, taes ou taes de suas applica-
ções externas relativas, isto é, os direitos hypolheticos que em
virtude das mesmas se adquiram, ou possam adquirir, é o que se
póde perder ou renunciar ; mas nunca aquellas mesmas facul­
dades, ou dc uma maneira absoluta toda a possibilidade jurídica
de sua applicação. Póde-se perder ou renunciar taes ou taes
cousas, taes ou taes actos, que tenhamos a faculdade absoluta
de adquirir ou de praticar, porém por mais que se o laça, jam ais
se poderá renunciar ou perder a capacidade moral de possuir
aquellas e de realisar estes. Seria isto perder ou renunciar o ho­
mem a sua dignidade c caracter de pessoa, c a tanto não chega
a acção da legitima liberdade dc cada um, e ainda menos da dc
qualquer outro a seu respeito.
Procura o Compendio na nota a este paragrapho aulorisar
a sua these com exemplos : — « temos, diz clle, um direito in-
nato a cada uma das partes do nosso corpo, mas nenhuma ha
que não se possa perder, e perdida ella, perde-se também o di­
reito.» Semelhante argumentação presuppõe que os direitos
do homem são cousas que se juxtapõem ás diversas partes do
seu corpo, dc modo que o mutilado ou defeituoso em algum dc
7S *
sous membros ú, mesmo moralmcnte, menos homem do que
»quelle que os temcompletos e perfeitos, o (jue é um absurdo.
Sabe-se bem o que é que perde realmente o indivíduo que
perde qualquer das parles de seu corpo -, que elle perde um»
cousa, um objeclo material, c apenas com ella a possibilidade
physien dos factos ou acções a que a mesma poderia servir de .
instrumento, mas nrio faculdade moral alguma, nem mesmo
a d’esses factos ou acções pbysicamenle impossíveis, pois que
scdesapparecco meio de executai-as, todavia o direito eomo po­
tência subsiste intacto. '
Semelhante argumento equivale a dizer-se que todos os di­
reitos du homem pódem ser perdidas, porque este põde morrer ,
mas isto que na linguagem dus factos tem o valor da mais in ­
contestável das verdades, é uma phrase que não tem sentido ern
relação a questão de que sc trata, pois que o que se quer saber
é si os direitos absolutos do homem são por sua propria natu­
reza ou por algum modo ou razão apreciável em Direito, per­
, iliveis ou alienáveis em qualquer homem ; e não si o defunto ou
o (pie perde qualquer de seus membros perde o poder material
de exercer tal ou tal d’esses direitos, ou lodos inclusive o pri-
migenio, que o Compendio aliás declara imperdivel.
Da mesma forma aquellequc por negligencia ou por prefe­
rir alguma profissão grosseira abandona a cultura do seu espi­
rito, num por isso perde ou renuncia o direito de procurai- a e de
alcançal-a si para isso fòr apto prenuncia ao exercício d’essa
faculdade em tal ou tal epoclia ou cireumstancia, mas não fica
inhibido de mudar de resolução, (piando assim queira, e contra
este seu proposito não haverá excepção fmuladada em renuncia
ou perda de tal direito que lhe possa scr validamente opposta.
O malvado ou devasso não tem, de certo, direito a gozar
actualmenle de uma boa reputação-, elles a perderam pelos seus
crimes e devassidão. Mas perder se a boa reputação não é per­
der-se o direito absoluto á mesma, lissa perda em nada faz
diminuir este como faculdade, como um titulo que a todo o tempo
póde ser invocado por lac-s indivíduos. O direito ao gozo de um
hom conceito não fica, pela sua aclual coiulucta, riscado deflni-
tivamente de sua vida, filles não pódem perder por tal modo
esse direito desde que não ó absoiutamente impossível a sua re­
generação. Conservam laes indivíduos apezur dc tudo a sua
qualidade de seres raeionaes e livres, c onde estão a razão e a
liberdade está sempre a possibilidade da virtude c da pratica da
justiça.
Podemos abandonar a nossa casa, a nossa fazenda, dal-as,
esbanjai-as ou sermos por outrem espoliados d’ellas ou dos di-
79
rcitos que sobre allas linhainos. Mas o impossível juridica­
mente deinittir-se de lodo, ou ser absolutamente despojado al­
guém da faculdade que tem e terá sempre todo o homem de
ãprupriar-sc das cousas realmente susceptiveis de apropriação,
e dc usar e gozar d’ellas como lhe convenha, respeitados os di­
reitos alheios, e as legitimas reslricções que lhe imponham as
leis sociaes. 1‘ódc-se não possuir, e mesmo não querer possuir
tacs ou tacs cousas, ou ser-se perturbado no seu uso e gozo;
mas ninguém póde eondcmnar-se ou ser por outrem condeni-
nado á incapacidade ahsohila de adquiril-as e gozai-as. O voto
perpetuo de pobreza de certas ordens religiosas, que aliás nunca
se pratica de modo absoluto, prova tanto contra este principio
como a escravidão do homem ao homem ainda hoje admittida
em alguns paizes, prova a sua desigualdade perante a natureza.
Demonstra-se com estes mesmos argumentos a falsidade
dos mais exemplos de snpposla perda ou renuncia dc direitos
absolutos que o Compendio aponta na sua cilada nota, pelo que
não os reproduziremos em relação a cada um ; é lar.il fazer-lhes
a applicação. ^ .
Não se póile adm iltir, como pretende o Compendio *« que
a imprescriptihilidade e inalienabilidade dos direitos absolutos
consista apenas em dever-se consideral-os existentes emquanto
se não mostrar por outras razões, (pie elles estão cxtinctos. »
Não lia exlincção possivel para elles ; o proprio Compendio no
§ 21 já o reconheceu,declarando que náo carecem elles de prova,
porque resultam imtnedialamenle da natureza do homem. Quem
seria, com cffeilo, recebido a provar que alguém perdeu a sua
independência ou igualdade natural e jurídica porque veiideu-
se-lhe, c fez-se seu escravo ou instrumento ? que tal ou tal in­
divíduo póde ou deve ser compellido a deixar-se m atar cm seu
proveito, porque a isso se obrigou por um contracto solemnc
que alguém não tem o direito dc fazer a esmola ou o beneficio,
de instruir-se, ou de adquirir as cousas, porque fez para com
outro voto perpetuo dc iiidifferença ás desgraças alheias, de igno-
raucia ou de proletarismo ? que outro, (Inalmente, está sujeito
para sempre a ser dillamndo, iionpie comprometteu-se a nunca
pretender o conceito de homem de hem ?
I)ir-se-ha quo«tanto se póde renunciar a qualquer direito
innato, que de factn renunciam até ao mais importante d’elles,
ao de conservação da vida, o suicida, e lodos os que se sacrifi­
cam pela palria, pela religião, etc. ? Mas n ’esse argumento lia
ainda equivoco ou sopliisma. O lieróc dc qualquer d estas cs-
pecies, assim como aquelle (|ue sc suicida, ou o ladrão de es­
trada, que deixa-se m atar lutando em desespero com a lorça pu-
8 0

bliea, ao que renunciam não é, cerlainente, ao direito de viver


ou de conservar a vida, mas, apenas, ao facto, á realidade da
existência. Henunciar a um direito é já exercer um direito ;
e é evidente que muito mal se exprimiria quem dissesse que al­
guém exerce, em laes conjecturas, qualquer d’aquelles, dando-se
ou expondo-se á morte. O que então ha é só, quanto aos pri­
meiros, o exercício reprovado ou criminoso de um poder ou fa­
culdade simplesmente natural cm real •, e quanto aos segundos,
também só a pratica d’essa mesma faculdade ou poder, embora
meritória ou sublime, imposta pelo que elles consideram o pri­
meiro e mais bello de todos os seus deveres. Nem uns, nem
outros procedem d’aquelle modo com a intenção ou consciên­
cia cie exercer uma faculdade jurídica ou um direito.
Cobrem-se, sem duvida, de gloria e dos npplausos das ge­
rações presentes c futuras, os Codros, os Leonidas, os Catões,
e os Hegulos ; e ainda mais do que elles deveram cubrir-se innu­
meros martyres da virtude e da verdade, cujos nomes a historia
humana apenas registra, ou jazem modestos e ignorados sob
o seu pesado silencio ; mas perguntarem os: poderá alguém mo­
ral ou juridicamente sacrificar por qualquer motivo ou sem mo­
tivo algum a sua vida ou algum outro de seus direitos innalos,
como lhe é licito fazel-o a respeito de quaesquer outros de que
póde dispòr segundo a sua phantasia? Si o não póde, o que
aliás é liquido, tal direito de renuncia d’aqnclles não existe.
O suicida, o faccinoroso, o lieróe, e o m arlyr, que sacrifi­
cam a sua vida perdem com ella, sem duvida, lodos e quaes­
quer direitos; mas como isto acontece a todos os que morrem
de qualquer modo, cifra-se, finalmente, tal argumento n ’uma
reproducção sob diverso aspecto, do mesmo que ba pouco refu­
tamos, pelo qual pretendeu provar-nos o Compendio, que o ho­
mem perde taesou tacs direitos innatos pela perda dc taes ou
taes membros de seu corpo, physicamente necessários para
excrcel-os, e todos, como nós dissemos, pela morte.
A verdadeira doutrina, pois, sobre esta matéria, é a que
declara imprcscriptiveis e inalienáveis os direitos absolutos do
homem. •
Mas si estes direitos jámais prescrevem ou pódem ser per­
didos ou renunciados por cada um, pódem, entretanto, ser c são
mudas vezes olTendjdos ou lesados pelos mais. Não daremos
uma mnumeraçao individuada de todas as lesões possiveis de
taes direitos, pois que, como bem nos diz o Compendio no seu
§ 34, é facil conhecel-as, conhecidos os direitos innatos e obri­
gações originarias correspondentes. Com effeito, a cada um
d’aquelles diversos direitos que anteriormente indicamos, cor-
81
responde uma certa espeeie de violência capaz de impedir ou
perturbar o seu livre exercido, c todas as vezes que isto so ve­
rifica dá-se em relação ao direito ofíeiidido uma lesão juridica.
Assim, attenta contra o direito de conservação da existên­
cia de alguém aquelle que priva-o da vida, ou de qualquer ma­
neira a torna impossível ou arriscada. Contra o seu direito de
igualdade attenta aquelle que o exclue arbitrariamente do gozo
de vantagens ou bens que devem ser communs ou garantidos
a Iodos os homens, já pela natureza, na sua simples qualidade
de pessoas, já pela lei social, na sua qualidade de cidadãos. At­
tenta contra o seu direito de independência aquelle que o escra-
visn, que se arroga sobre elle um império indevido, que o retém
em prisão arbitraria.
Os direitos que parlicularmente se referem á integridade
c perfeição do corpo pódern igualmente ser objecto de lesões es-
peciaes. Além de outras estão n’este caso, a mutilação, os feri­
mentos, o estupro, as torturas, como nos diz o Compendio, e em
gorai qnaesqncr offensas pbysieas, que se faça aos mais. Sobre
isto não póde suscitar-se duvida. Diremos, comludo, em re­
lação especial ás torturas, que cilas são ainda mais odiosas, si
e possível, quando empregadas como meio de prova já contra
o proprio torturado, já contra outrem. Não lia, de certo, re­
curso mais atroz, nem mais estúpido, l’or elle os algozes ar­
rancarão ássuns victimas tudoquanto queiram ou lhes insinuem,
sem adiantar cousa alguma sobre a verdade, e d’islo devem 1er
consciência ; porque ainda quando aquellas rcalmenie a decla­
rem nos nculeos da dòr, íica sempre por provar que sua decla­
ração não é um puro effeito dos tormentos. Usar de tal expe-
dienle é por conseguinte condemnar antecipada e irremissivel-
nieule o accusado criminoso ou innocente, lí no entretanto,
tal foi a mais commurn e reputada a melhor das provas judicia­
rias cm tempos que não vão longeI e o que é mais, o foi sobre­
tudo, o levada aos últimos requintes da brutalidade, cm nome de
uma religião e de um Deus de amor e mansidão !
Conlra os direitos que respeitam ás 1'acnldfldes do espirito
e ao seu legitimo exercício, attenta-se por todos os meios que
possam impedir ou dillicultara sua cultura e aperfeiçoamento
intellectual ou moral,a expansão das ideas, crenças ou sentimen­
tos de alguém, a livre pratica de suas industrias licitas, quér isso
provenha do arbítrio de qualquer outro indivíduo, quér do lis­
tado pelas suas restricções excessivas.
Lesa-se ainda esses direitos, como nos diz o Lompeudio no
seu § 35, quando se deprava o entendimento de outrem com
doutrinas falsas ou erros que devem influir nas determinações
II F.
82
de sua vontade, ou quando sc move esta para asções que o pre­
judicam ou são injustas, já por meios physicos como a embria­
guez, a eoacção, etc., já por meios moraes como o engano, a se-
ducção, etc.
Uealmente a depravação do entendimento ou da vontade
alheia por taes meios é uma verdadeira violência, um grave de­
trimento que se faz ao seu estado, e a lodos os direitos que o con­
stituem. O seduetor é, sem duvida, a causa efficiente dos ac­
tos determinados pela sua seducção, ou engano; juslamente res­
ponsável pelas suas consequências, quér para com o seduzido,
quér para com a sua victima ; e por tanto, sujeito não só á pena
do crime a que tenha dado causa, como á reparação de seus
damnos, uma vez que se possa bem averiguar que foram origi­
nados de sua influencia.
Mas não só isto é difficil em muitos casos, segundo nos diz
o Compendio, como cumpre ainda notar-se quequando mesmo sc
o consiga, ainda assim mão fica o seduzido livre da imputação
criminal do facto de que foi instrumento, e até de reparar soli­
dariamente com o seduetor o prejuízo causado a terceiros, salvos
apenas, quanto á criminalidade, os casos de coacção invencível
e conjuncturas taes que o justifiquem. Em quaesquer outras
circumstancias, e por via de regra, tão punivel é o seduetor
como o seduzido; pois que ninguém póde demiltir-se de sua
qualidade de pessoa, e allegar validameule semelhante escusa
para justificar seus crimes ou excessos. Atém de que, se é dif­
ícil muitas vezes, como dissemos, o verificar-se a realidade
e a ctncacia da seducção, não é menos o verificar-se cm taes
casos a pura passividade do seduzido e >. que este não tenha pro-
cuiado ou pelo menos admittido espontaneamente aquella no­
civa influencia do seduetor no seu animo.» O que antes de tudo
apparece em semelhantes casos é reaímente elle, é o acto lesivo
como seu ; o mais que possa modificar ou extinguir estas im­
pressões cumpre-lhe provar de modo cabal para que lhe apro­
veite até onde fòr isso possível.
. . S' loda a depravação de qualquer faculdade de outrem lhe
r mno’ p <’orisso’ além ,leumaimmoralidade,póde
lffn.f!'ac'ilao da lei j ui i,hca, a mentira que póde ter esse
mesmo t ffeito, deve estar em idênticas condições.
„ „ „ Fa eUlCi ass,Ím ’ ,nas ‘’uluudemos que tambem só »’esse
caso ; so quando offendc de lacto, ou põe em perigo um direito
alhem, pode ser cila considerada uma lesão jurídica, e ser su­
jeita a repressão externa e social; sncinl ■ ou,
r», #»nm
comorv nos
nn« diz
#1:.. o~ Compen-
ii_
r. - , " ' 8®4 § 36’ ^ uai?d.° e1atvo, 'uterrogante e o respondenle
ha uma relação especial e legal dc superior a inferior, que po-

4
[>P O IRl II
Hl ililr 85
Digitalizado pelo Projeto Memória Académica da FDR UFPE

nha este na obrigação de dizer-lhe a verdade d ’aquillo sobre que


fôr perguntado, nos casos e dentro dos limites em que isto póde
ser permitlido •, ou, accrescenlaremos nós, quando por qualquer
modo valido em Direito c sobre m atéria licita se tenha contra­
indo o dever de não occultar aquella.
Salvos estes casos o mentiroso póde sem incorrer em que­
bra alguma da lei jurídica m entir á sua vontade e gosto. Elle
ficará sujeito ás consequências naturaes de sua falta de circum-
specção ; mas os tribunaes sociaes nada pódem ter que ver n’esses
abusos da palavra, que só á Moral compete condemnar em uma
escala mais ampla c até nos domínios da consciência de cada um.
O direito que cada homem tem á verdade da parte dos
mais limita-se a poder exigir-lhes que por meio da m entira náo
prejudiquem ou obstem a quaesquer de suas legitimas aspira­
ções ou acções.
Continuação : — i/<t mea lira em certos casos a » te a Moral— da
cal mania e injuria ;— dc outras tesões jurídicas ; — D‘i
reparação das lesões.

Si a mentira, como vimos na parle final cie nossa prece­


dente licçâo, só é punível, segundo o Direito, nos casos que alli
indicamos, será mesmo ante a Moral condemnavel ou proliibida
em todas e quaesquer circumstancias?
Os casuistas c alguns philosophos tem feito d’isto objcclo
dc questões mais próprias para exercerem a subtileza da dia­
lética do que para esclarecerem a consciência hum ana, para
a qual nenhuma difficnldade existe, realmenle n’esta matéria.
Para alguns d’aquellcs, todos os meios são legitimados pelos fins,
purificados pela intenção ■,para outros,entro os quaes até Kant,
não é pe.rmitlido mesmo salvar-se a existência própria ou a de
seus semelhantes á custa da piais leve discrepância da verdade !
E certo, em geral,que a ninguém é licito fazer um mal, ou
pór-se cm risco de fazel-o com vistas em um bem q u alq u er;
mas isto não é o mesmo que entre dous deveres dc execução si­
multânea incompatível preferir-se a pratica d’aquelk\ cuia pre­
terição seria mais desastiosa, ou entre dous males alternativa­
mente infalliveis decidir-se pelo menor em vantagem própria
ou de outrem e sem real prejuízo de que.in quer que seja.
Si alguém perseguido por assassinos se occultasse ern nossa
casa, e fossemos sobre isto interrogados por aquelles, respon­
deriamos, sem duvida, negando a presença de sua victimn, e, em
vez de lermos de que censurar-nos em nossa consciência, não
leriamos senão motivos paru louvarmo-nos por tal acção.
Quem ousará condenmar ou não cobrir de applausos a mag­
nanimidade heroica de Desanlt, durante o horrivel massacre dos
Suissos da Guarda Real no dia 10 de Agosto dc 1792 em Pari/.,
•1 não ser algum discípulo do Kseobarou Turquemrula, d’esses
que sanctiíicam a denuncia do pae pelo proprio filho, oú do ma­
i ido pria mulher, e vice-versa, interrogados nos confissionarios
ou nas masmorras da inquisição? (15)
Tomos, sem duvida, o dever moral de dizer a verdade, mas
lemos também e muito mais imperidsamentoo de salvarmos a vida
do proximo sempre que podermos, e ainda mais o de não sacri­
fical-a por nossa culpa. A Moral que nos ordena a pratica do
hem para com todos os homens, que procura cnnohrecer os
nossos sentimentos, e não abafal-os ou degradal-os, não póde
impòr-nos uma infamia, um tão flagrante abuso da confiança
d’aquelle que em Ião apuradas conjoncluras se julgou seguro em
nossas mãos, a pretexto de não darmos occasiào a uma simples
dissonância entre o nosso pensamento e o som de nossos lábios.
Não sc vende por tão vil preço a vida humana, e a Moral que
tal prescrevesse só poderia servir para anlropophagos ou brutos.
1'azer-se alguém a si proprio martyr de um amor á verdade, que
muitas vezes iria até ao ponto do ridículo pela insignificância
’ d ’esta, poderá ser uma virtude para certos caracteres excên­
tricos -, mas fazer-se a qualquer outro victima d’essa caricatura
de virtude será sempre, quér perante Deus, quér perante os ho­
mens, um acto de requintada baixeza e perversidade. Seria, com
efleito, essa uma virtude que muito se pareceria com o pfeiordos
vidos.
Si a Moral nos impozesse nas circumslancias figuradas,
o dever de denunciar o perseguido aos seus perseguidores, im-
pôr-nos-hia ao mesmo tempo e ainda mais o de empregarmos
todos os meios ao nosso alcance para, apezar d’isso, o salvar­
mos ; obrigar-nos-hia, por conseguinte, a entrar em lula com os
malvados, a cxpòr-nos nós mesmos a sermos lambem viclimas,
a nos sacrificarmos inutilmente na maior partcdps casos, e a ma-

(15) De$nult célebre cirurgião do Hotel-Dien ( lios pilai) recebeu


nas salas d'este não só um grandt: numero de feridos, mus ainda muitos
fugitivos sãos, que elle fez iinmediatamentè despire metter-senos lei­
tos vasios. Os seus perseguidores alli entraram furiosos reclamando
as suas viotimas, mas Desault veio-lhes ao encontro dizendo : « Meus
amigos, acreditai que sou muito bom patriota, para darasvlo a taes
ladrões ; apresentou-se aqui, é verdade, uma meia duzia d'elles, mas
eu fil-os atirar pelas jancllas » Os assassinos ouvindo isto retiraram-
se batendo palmas, o chegada a noute Desault. fez sahir disfarçada­
mente aquelles infelizes, salvos da fviria popular. Alex. Dum. Histoire
de Louiz XVI — ton). 2.° pag. 354.
80
larmos ou morrermos, em summn, para não mentirmos siquer
de leve ou não enganarmos os assassiuos.
Ora, é uma completa aberração da intelligencia pensar do.
semelhante modo -, a Moral com quanto rigorosa cm seus prin­
cípios, existe entretanto para o homem como elle é, e segundo
a sua natureza, e não segundo umlypo que nenhuma realidade
tem, ou pódc 1er. Si assim não fosso deveriamos então ir mais
longe, deveriamos cruzar até os braços ante quaesquer attenta-
dos que nos fossem dirigidos, visto que incontestavelmente
quando matamos aquelle que nos quer matar ou á outrem, ou
quando repellimos com a força a violência feita a qualquer dos
nossos direitos, offendemos direitos do assassino ou do aggres­
sor de um modo muito mais grave do que quando pela simples
mentira os impedimos de consummar seus crimes, e nos livra­
mos á nós ou á outros de sermos ou de serem estes suas victimas.
Uir-se-ha que o aggressor injusto não tem taes direitos, por­
que a sua aggressão os faz desapparecer perante a necessidade
da justa delesa do aggredido ? F,' uma verdade : mas si a justa
defesa tem essa virtude de fazer desapparecer para o aggressor '
injusto o mais importante de todos os direitos bumanos, o di-
íeito de viver, por que razão não fará do mesmo modo desap­
parecer o direito que elle possa ter a verdade, ou para o airtrre-
dido o dever de llie’a dizer? 1
Quem seria competente,pergunta Beliine,para imputar-nos
a mentira que proferíssemos para salvarmos a um nosso seme­
lhante Os mais homens ? mas si nós não lhes causamos pre­
juízo algum ! Seria Deus? mas contra este não há mentira, nem
nos o enganamos, c nem mentimos com a intenção de oíTen-
aei-o, ou de menosprezar os seus preceitos. Seria emíim o pro­
? 1'òra hem singular que tivéssemos o direito de
nalal-o se elle nos atacasse, e que não tenhamos o de illudil-o
paiu snlval-o a elle proprio de um crime, e a um innocente de
ser por elle sacrificado !
®erloi co,no Pretende Kant, que mentindo nem sempre
inettel n MeSlC’ 6 3ue ale |lüdcnlos alguma vez mais compro-
muitos lumhcm Pela verdade mais provavelmente em
m n is ! h ! COm ccrrleza 1,0 flue .flguramos, o compromette-
n ('omopiutin')0 0 <iaii ra/,-er-sc t (.alarmo-nos, como nos diz
nrio s lene a? ISl" " T sc"1Prc d possivel. e demais o pro-
n nr 'm í „ l r a<luclle resultado : elle equivale id e-
” '\“c .. m to '° 0 caso quando compromeltemos o innocente
d,i mentira, salvamos a nossa boa intenção, fazemos toda a di­
ligencia no bom sentido, ao passo que quando o sacrificamos por
dizer mna verdade, que só para isso serve, praUcaríios scienle-
incute um aclo máo, i|uc pudêramos evitar, e cujas consequên­
cias nos são imputáveis. ; .
Em s um in a, a mentira quér perante o Direito, quer perante
á Moral só é uni mal, quando prejudica, ou é dita com o pro-
posito de prejudicar algum direito ou bem alheio ; da mesma
maneira que o é a propria verdade quando tem este effeito, caso
em que pódc ató ser punida, como vamos ver na analyse do § 37
do Compendio. ,
Trata-se n’este paragrapho das lesões que se póde fazer no
direito que tem todo o homem ao gozo de uma boa reputação,
lesões que se verificam por meio da calumnia e da injuria.
Calumnia-se quando se imputa falsamente a alguém aclo>
injustos ou criminosos, e injuria-se quando se lhe attribue de­
feitos de qualquer natureza, ou quando por qualquer maneira
se o expõe ao odio, ou menosprezo dos mais, ou ao ridículo.
A injuria póde dar-se por meio de factos, de escriptos, gravu­
ras, pinturas, etc., ou de palavras e gestos ; a calumnia, porém,
geralmente, por escriptos ou palavras.
Diz-nos o Compendio que não lia calumnia quando sc at­
tribue a outrem factos injustos ou criminosos, mas realmentc
por elle praticados. A calumnia suppõe, com etleito, o dólo ;
ella consiste, como dissemos, cm uma imputação falsa : diírc-
renlemente da injuria, que póde consistir em uma imputaçao
quér falsa, quér verdadeira. Aquelle que denuncia crimes reacs
poderá quando muito, dadas certas circumstancias, scr consi­
derado como pouco generoso ou caritativo, nunca como diíla-
mador. Mus aquelle que propala defeitos occultos, reaes ou
suppostosde alguém, ou chama a altençâo eo escarneo dos mais
mesmo sobre os que são notorios, abusa de sua liberdade, of-
fende-o e póde prejudieal-o gravemente.
Esta difTerença entre a calumnia o a injuria c tão caracte­
rística, que de facto todas as legislações criminnes, ao passo que
admittem aquelles que imputam crimes a outrem n provarem as
suas imputações,e provadas os absolvem, jámais admittem o in­
juriante a provar a verdade das suas, e com razão ; porque os
factos criminosos são realmente imputáveis a quem os commette,
e como tacs puníveis, e os simples defeitos de qualquer cspecic
não o são aquelles que os tem.
Acerca, porém, d’aquelle que imputa a outrem tactos cri­
minosos mas verdadeiros, devemos fazer alguma limitação ao
que acima dissemos. .
Si é certo que o crime não tem o direito de impór silencio,
comludo, si aquelle a quem a imputação o feita, já pela pena
expiou a sua culpa, ninguém é mais autorisado a abur de novo
suas chagas e a expòl-o á animadversão permanente dos mais.
A sociedade, poder competente para conhecer de seu lacto, já
sc deu por satisfeita absolvendo-o ou condemnando-o, e pela
declaração de sua innocencia bem ou mal fundada, ou pelo cum­
primento da pena que lhe foi imposta, elle é restabelecido no seu
estado primitivo. Se isto, rigorosamente fadando, não passa de
uma ficção legal, todavia ós seus eífeitos são e devem ser rears,
ao menos nas relações exteriores da sociedade.
M’eslcs casos, com quanto a imputação seja realmcnte de
crimes não ha calumnia, ha sómente injuria, assim como na
imputação vaga dos mesmos sem especificação de factos deter­
minados. O que, porém, não nos parece exacto, é que se deva,
como pretende o Compendio, comprehemler na injuria a impu­
tação de factos criminosos feita sem dólo. Ou o imputante con­
segue provar a boa fé de sua imputação, o que é aliás difikil de
couceber-se, c então devera ser considerado innocente, ou não
o.consegue, e então, salva a hypothèse a qoe acabamos de relo-
IIi -nos, deve ser tido cffeclivamenlo por calumniudor.
§ 3b trata o Compendio das lesões que podem sofírer os
dneitos de beneficiarmos aos mais, de nos apropriarmos das
cousas sem douo, de gozal-as, de procurarmos a nossa segu­
rança e a reparação dos damnos que se nos faça.
Quanto ao direito do beneficiarmos aos nossos semelhantes,
sera uma lesão contra elle impedir a alguém o seu livre exerei-
cio. -Nem bavera então somente offensa áquelle que pretenda
* n.®' 0 ‘»enelicio, mas lambem áquelle que tenha de recebei o ;
u sa üupla, por conseguinte, e tanto mais injustificável,
do go/.o
e-,,/,, r,”,la.
,88W
tie taes direitos.ra um 0 uso:em ãis importante para o outro
,lV lh Vsut ndolf i«
i as i,f Pr0?ri?*U
i-ualmente um«direito
!.d“ C0USa5 nnliÍUSdeCcada
incontestável (le l,Sar
bo-
cimrtn Ü r U-St jai11. as mesmas adquiridas c desfruetadas se-
ridiri min?ni" l ULK*51 1 0 ‘ os pvcscriplos pela lei ju-
li’cstV , n qu"1 °,bs acu,° (l-ie se "><>, opponba sem rundamento
cs a, qualquer ataque que se lhe dirija, será uma lesão que se
lar o sen „ 5 . 1 " 'a ro° 4 :u' ()ccupação de taes cousas, difiicul-
Í u dono l h . ^ m , 0aUtîhS.a î:î?' rtílel-as contra a vontade de
Iiuor dc «ü-is n n-in" 6-' ,leslnul-,as ou dcterioral-as em qual-
& J 'i»o p ó - i -
ordeno imp «»iam «m Vá 1 U1 tltos, c não so a justiça absoluta
n £ “, S n n S “ i r f « “ ° rc"“ , t e ’ “ u™ bcm
jvstcs princípios não só seupplicám a propriedade das cousas
a<li|uiriilas „„to nrojo originário „„
89
palmente, no estado actual das sociedades humanas, á proprie, •
dade constituída pelo modo secundário, á qual é uquella aliás
perfeitamenle equiparável na sua continuidade, pois que de seus
caracteres e consectarios se reveste desde que a oceupação a con-
summa e lhe dá nascimento perante o Direito.
I.esa-se o direito de segurança individual quando por parte
do listado se recusa ou não presta ao cidadão as garantias e pro­
tecção que são devidas aos seus direitos; quando por parte de
outros indivíduos se é collocado em condições de não poder
exercei-os com toiTa a liberdade, ou se o impossibilita de tomai
as precauções legitimas e necessárias para evitar-lhes qualquei
damuo, ou elleetivamente se o ataca na sua pessoa ou bens ;
e finalmente quando se nega, impede, ou dilficulta a reparação,
que lhe é devida. _ . .
lista deve necessariamente seguir-se a toda lesão jurídica,
a qual consiste, como nos diz o Compendio no § 3 l, (lti) no de­
trimento que sollVemos pela oITcnsa feitaao nosso direito; edeve
ella ser sempre tão completa quanto seja possível. Nem por­
que desappareça por qualquer motivo o objecto sobre que^i le­
são reeabio (e muito menos quando em razão d’el!a), desappa-
rece o direito do lesado. liste subsiste cm quanto subsistem
o lacto lesivo ou suas consequências.
Quando a lesão-tenha consistido na subtração de alguma
cousa, e a sua restituição que é o modo mais perfeito de repa­
rai-a em taes casos, não possa ter lugar em razão do desappa-
recimento ou perecimento da mesma, póde-se c deve-se lazel-a.
por meio da entrega de outra uualoga, ou de um valor equiva­
lente, o que na linguagem jurídica se denomina propriamente
satisfação. Esta se não é o meio mais completo de reparar-se
taes lesões, é pelo menos o mais praticável na generalidade dos
casos, eo que melhor pódc ser applicado á immensa variedade
das mesmas. Mas se por consistir ella na entrega de uma certa
quantia de d inheiro,« euclie pela sua flexibilidade lodos os vá­
cuos, » como nos diz o Sr. Fcrrer, não pódc todavia encher
o que provém do insulto ou injuria feitaao homem de brio, ou
compensar as lesões causadas á sua boa reputação, honra ou
gloria, ou outros direitos ou bens de igual natureza; e n esles
easos diz-nos ainda o citado autlior, que só ó cabivel em vez da
satisfação pecuniária a satisfação por allestação consistente cm

llt») Vide a nota I i.


12 F.
90

uma retractação solemne por meio da qual se desfaça as im­


pressões a que semelhantes offensas possam ter dado íugar.
Devemos, comtudo observar que se ha, com elleito, offensas
d’esta espccic que por semelhante modo mais ou menos se po­
dem reparar, taes sejam principalmenleas consistentes em pa­
lavras, outras muitas ha consistentes, sobretudo, cm factos para
as quaes esse mesmo modo de reparação é de ordinário insuf-
liciente.
O mesmo Sr. Ferrer tratando dos damnos que se póde fazer
aos direitos ou cousas alheias distingue o q\ie é llllio da culpa
e proposito, do que é filho da simples negligencia, c diz-nos que
um não deve ser equiparado ao outro quanto ás suas consequen-
. cias em relação ao lésante, embora nasça em ambos os casos
para este a obrigação de indemnisal-o. Doutrina razoavel,
pois que, rcalmenle o dólo jamais póde ser posto nas mesmas
condições que a boa^ fé. lista é levada em conta ao lesante
quando se trata da criminalidade do facto lesivo, e lhe vale mes­
mo, segundo o Direito civil, algumas moderações no rigor da
procria indemnisaçáo.
Com quanto, segundo os princípios que temos expendido,
seja regra geral de Direito Natural que todo o lesante tem obri­
gação de indemnisai* a n.são teita a outrem ^ e apezar de dizer-
nos o Sr. Ferrer, que « o direito que é esscucialmcnte exterior
não admitte distineção alguma a semelhante respeito,» pensa­
mos que essa regra não é absoluta, e que deve ter excepções
que ao Du cito positivo compete definir e regular segundo as cir-
curnstancias, c cm vista de gravíssimas considerações de equi­
dade, senão de rigorosa justiça.
. . *oder-se-ha, por ventura, mesmo ante esta reputar em
lodo o caso responsável por tal indemnisaçáo aquelle que causou
um damno sem consciência, por força maior, por mero acaso,
ou sem a mais leve culpa de sua parte ? Sel-o-ha ainda, em taes
opulento3? ° Pr0pn° 1CSante miseravel a respeito de um lesado
ri„nr0 Natural não póde certamentc autorisai’semelhante
rionaòs o ®od‘S0s eivls das nações cultas seriam mais ra-
dos homen , f i USt0sfd? (1",; a lei suprema da natureza, a obra
dos homens mais perfeita que a do seu Creador.
SECÇÃO SEG U N D A

DOS D I R E I T O S A D Q U I R I D O S

ARTIGO PRIMEIRO

D a a c q u is iç à o i m m e d ia ta

CAPITULO I

DA OCCUPAÇÃO E SEUS EFFEITOS

L IC K a3 A O Z 7

§§ 39 — 43

Da acquisiçào cm geral, suas cspecies e matéria do direito


pessoal e do direito real ; — distincçâo da propriedade
e do domínio ; — do titulo c modo, ou do fundamento da
acquisição im m ediata.

Na sua secção anterior occupou-se o Compendio, como vi­


mos, dos direitos innatos ou absolutos c das questões que lhes
são relativas ; n ’esta trata dos direitos adquiridos ou bypothe-
tieos; e no seu artigo primeiro, da acquisiçào dos mesmos pelo
modo immediato ou originário.
A acquisiçào com elíeito, considerada quanto ao aclo do
seu estabelecimento é immediata ou m ediata; é da primeira es-
Pecie quando se applica a objectos que não tem dono, porque
então passam elles ao dominio do acquircnle sem o intermédio
de acto algum de outrem ; e é da segunda especie quando recalie
sobre e.ouîas (pie já a algucm pertenciam, porque, n’este caso,
só mediante o consentimento ou intervenção d’este pódem as
mesmas passar a ser d’aquelle.
Convém, entretanto, sabermos, antes de tudo, que cousas
ou que especies d’ellas pódem ser adquiridas pelo homem, quer
immediatn, quér medialamente.
Segundo o Compendio, no seu § 39 e nota respectiva, só pó­
dem ser objectos de aequisição para alguém as cousas externas,
entre as quaes não se comprehende, diz elle, o nosso corpo, os
nossos membros, e as nossas faculdades. Devemos, porém, ob­
servar que se estas cousas são realmente internas em relação ao
seu proprio sujeito, são com tudo externas em relação aos mais,
c como tacs susceptíveis de ser adquiridas por estes, sinão em
si mesmas, ao menos cm lacs ou tacs de suas apidicaeõcs ou
actos.
O Sr. b errer pensa até que a aequisição em um sentido
mais amplo abrange mesmo objectes propriamente internos, taes
como as perfeições inleUectuaes que alguém alcança mediante
a cultura do seu espirito. Mas nós não podemos acceitar esta
sua idéa, si a tal aequisição elle pretende ligar alguma signili*
cação jurídica. Obtemos, sem duvida, aquellas perfeições', mas
não as adquirimos no sentido em que esta palavra se emprega
em Direito. Obtendo-as tornamo-nos mais aptos para preten­
der e conseguir vantagens ou mesmo cousas, a que antes não
poderiamos talvez aspirar legitima ou eflicazmenle : será isso
vim desenvolvimento dado ao direito geral e absoluto que temos
<e ai qui rir as cousas, alargando o circulo de nossos meios de
exercel-o, mas não é realmente a aequisição d’estas : é uma ac-
quisição ern sentido lato de certas qualidades pessoaes, e não de
quaesquer direitos. 1 ’
Devemos ponderar ainda, que a expressão cousas externas
0 c1olnP(ín<lio na citada nota. não é por elle lo­
' “í “’ 1!™ llcvc Sül-d, como estricto equivalente de cousas cor-
não «fnhpn0rqn-c S,e a ac(illisição immediala não póde recahir sc­
; mnnin ã ljhj rC,°& D'cvpriamume d’esta classe, o mesmo não
1>c a (lual se l'ó,le ãdquirir não só estes, mas
, lla especie a que acima alludimos, ou referentes
ás obrigações que os mais contráiam para comnosco.
111 . Im.a analyse, se o direito que resulta da aequisição
!)0de lcr P°v °djecto, já acções ou prestações de pes-
w n im n “ C0USllS f orP'3reassobre que estas tenham algum titulo
kgvtimo para pactúar : aquclle que resulta da aequisição imnie-
05
diata é sempre relativo a cousas propriamente externas e mate-
riaes. Nasce cTahi a distincção do direito, em geral, quanto ao
seu objecto, cm direito a uma acção ou prestação de outro, ou
o jus ui rem, o em direito sobre uma cousa externa e physica-
rnente existente, ou o jus in re, de que nos falia o Compendio
no seu § 40, ou linalmenle,em direito pessoal,?, direito real. (17)
Estas duas classes de direitos distinguem-se já em seus mo­
dos de manifestação, já nos seus consectarios. 0 direito pes­
soal não se póde exercer contra outro que não seja o proprio
que contraído a obrigação sobre que clle versa, e destina-se,
segundo o pensamento do Compendio, á realisação de um facto
não existente ainda, que constituo o seu objecto. O direito real
acompanha a cousa sobre que recalie, persegue-a onde quer
que ella se ache, c autorisa a sua reivindicação contra quem
quer que esteja, e por qualquer titulo, na sua posse ; clle lixa-se
em um objecto determinado, e que material eaclualmente existe.
Da acquisiçâo quer immediata, quer mediata sobre alguma
cousa corporea externa, resulta para o aequirente a propriedade
ou domínio, o qual consiste, como nos diz o Compendio no seu
§ 4 l ,n o direito de dispormos exclusivamente de nina cousa
(d’aquella espécie) como nos approuver. Dissemos propriedade
ou doniiniò, porque realmente estas duas palavras são equiva­
lerdes, já na linguagem commum. já na da sciencia, embora se
possa fazer o se façan certos respeitos alguma distincção, quanto
ao seu sentido; distineções que são mais subtis do que rcafis,
pois que, com effeito, qualquer d’aquellas expressões seapplica
umas vezes ao direito de propriedade em si mesmo, c outras
á cousa sobre que elle versa; distineções, cm Summa, que são
mais destinadas a servirem a certas conveniências propriamente
escolásticas, do que a regularem praticamente as relações jurí­
dicas em que os proprietários ou donos das cousas possam achar-
se para com as que constiluem a sua propriedade ou domínio,
ou as relações de quaesquer outros concernentes a estes seus
direitos ou a seus objectos.
Os direitos pessoaes e entre os reaes, aquelles que provém
de pactos, por isso mesmo que resultam do aceòrdo reciproco
-c livre dos pactuantes sobre cousas que suppõe-se pertencer-
lhes por algum titulo legitimo, apresentam-se como líquidos
e incontestáveis quanto ao fundamento e modo de sua acquisi-

(17) Vide a nota 10.


ção ; isto é, quanto á razão que os justifica ante a lei juridica,
c quanto ao tacto que realmente determina a sua existência.
Outro tanto, porém, não acontece a respeito do direito real re ­
lativo ás cousas obtidas pela acquisiçáo immediata, a qual tem
sido assumpto de questões c systemas diversos realmcntc áquel-
les pontos.
Essas questões são as que o Compendio suscita no seu § 42,
e de que trata nos seguintes, e consistem em saber-se, prim eira­
mente, qual seja o justo Ululo dYssa acquisiçáo, ou como é que
tendo todos os homens igual direito ao uso das cousas sem dono,
póde cada um apropriar-se de algumas exclusivamente; e em
segundo lugar, qual seja o acto ou facto pelo qual se adquire le­
gitimamente laes cousas com exclusão dos mais, ou o modo ju­
rídico de sua acquisiçáo.
E* o que nos cumpre averiguar.
Si o homem, como já precedenlemente demonstramos, tem
o direito de apropriar-se ousar das cousas externas, é claro que
sua acquisiçáo será legitima todas as vezes que, effecluada sobre
objectos realmente susceptíveis d’ella, não offenda igual ou qual­
quer outro direito alheio; c si isto dá-se sempre que essa ac­
quisiçáo recahe sobre cousas que sejam de facto nullius, apro­
priadas á satisfação das necessidades legitimas do occupantc,
c na justa medida d’estas, segue-se que verificada a mesma por
alguém n'essas condições, devem tacs cousas ser repuladas desde
então fóra da possibilidade juridica dc apropriação por qualquer
outro, que as pretenda, isto é,que devem ser privativas d’aquelle.
Que imporia que todos os homens tenham,em geral, um di­
reito iaual a tacs cousas, ou de que póde isso valer contra a le­
gitimidade e exclusivismo de sua acquisiçáo por cada um ? Si
é certo que todos tem a mesma natureza, e por isso um titulo
geral idêntico para adquiril-as, não c menos certo tambem que
cada um te m a sua individualidade própria que não póde ser
absorvida ou annullada pela dos m ais; que cadaum tem o direito
de exercer a sua actividade livre de todo o concurso ou influen­
cia extranha dentro de um circulo que lhe é peculiar, éiio qual
sc comprehendcm necessariamente os meios, que para a reali-
sação de seus legítimos fins, elle póde tirar da acquisiçáo das
cousas externas, e que até só ellas lhe fornecem.
Faz-se, portanto necessário que algum modo haja de tor­
nar-se esse direito de cada um praticamcnle possível c re a l;
c si nenhum outro seria capaz de semelhante efieito, á proceder
contra o exclusivismo da aequisição immediata de alguém
aquella ohjecção deduzida da identidade do titulo geral e com-
mum de todos cm relação as cousas nullius. conclue-se que
exaclamenle por Lerem Iodos os homens igual ilireilo de apro-
priar-sc destas, aquelleque primeiro o faz. a respeito de alguma
deve ser seu dono legitimo e único.
O titulo consistente n’aquella identidade de natureza não
póde realmente por si só ter tal virtude, pois que não passa de
uma simples capacidade moral de adquirir taes cousas, a qual
para resolver-se no direito hypottaetico do dominio, carece de
coudições que nem lodos preenchem ou podem preencher, isto é,
•de algum Tacto pessoal de alguém, pelo qual este elíeetivamcnte
adquira sobre tal ou tal d’aquellas um direito determinado, de-
tlnido, e que só assim se póde tornar exclusivamente seu ; e esse
aeto não póde ser outro, com effeilo, senão a occnpação ante­
rior da cousa, realisada segundo as condições ou regras jurídicas.
Si só em ra/iio da identidade da natureza humana fosse li­
cito a alguém estabelecer-se no campo de que nos apropriamos
acliaudo-o vago, substituir a nossa plantação pela sua, ou uti-
tilisar-se dos fruetos do nosso trabalho, qualquer outro terceiro
não seria, pelo mesmo titulo autorisado a despojal-o por sua vez
e assim por diante, todos os concurrentes posteriores a respeito
do precedente? Si a apropriação do primeiro, apezar de sua
anterioridade c da vaccaneia da cousa quando teve lugar, mio
ó sulliciento para fazel-o senhor exclusivo da mesma, muito
menos o será a simples qualidade de homem, conimurn a todos,
desacompanhada d’esses legítimos motivos de preferencia e alé
por elles contrariada. Invocar-se, pois, tal titulo para este lim,
seria annulal-o em todos os homens, e autorisai- a geral e reci­
proca espoliação entre elles.
Entretanto, fóra d’aquella simples capacidade de adquirir
as cousas, que é commum a lodos os homens, mas que por isso
mesmo e por si só a nenhum faz dono de qualquer, nenhum
outro titulo realmente se concebe que, a não ser aquella sua an­
terior occnpação, possa scr o fundamento jurídico do dominio
sobre as mesmas.
A aequisição immediata d’estas depende necessariamente
de um facto humano; mas seja qual fôr aqnelle sobre que se
pretenda fundar a propriedade de taes ou taes, será sempre a sua
Prioridade a respeito de factos semelhantes dos mais, o que as­
segure juridicamente a quem primeiro o tenha realisado, a pre­
ferencia sobre os objeclos em que este recahio, ou o seu dominio
exclusivo n'estes. E que outro facto se póde imaginar, com efleito,
para pôr-se em lugar da occnpação e que opere pela sua priori­
dade aquelle dominio ? Que oulro se póde reputar mais legitimo
o mais adequado do que ella para ligar inlimumente á persona­
lidade de alguém unia cousa externa que é d'ella susceptível ?
06
Emsumma, para que procurar-se qualquer outro facto para fun­
damento do domínio, si qualquer que como tal se lhe assigne,
presuppõe sempre a occupação primeira, sem a qual e antes da
qual ninguém póde exercer sobre qualquer cousa acto algum
legitimo ? E é por esta razão que todos os systemas que altri-
buem qualquer outro fundamento á propriedade immediata, são
por fim, como depois veremos, obrigados a recuar implicita­
mente até aquella occupação, que é, na verdade, o unico re-
dueto em que a lógica os não póde atacar com vantagem.
Em apoio d’esta doutrina apresenta o Sr. Ferrer as se­
guintes considerações: — l.° que a occupação anterior poupa
ao primeiro occupante a pena de ser privado d’aquillo que pri­
meiro occupou ; — 2.° que eila evita contestações entre este e os
concurrcntes posteriores-, — 3.» que cila é uip aguilhão ã in­
dustria dos mais homens para procurarem iguacs bens —
e 4.° que não sendo a cousa de quem primeiro a occupou, seria
do mais forte. Todas estas razões são boas n’aquelle sentido,
e são no fundo as mesmas que temos produzido -, mas a ultima
e capital e decisiva, pois que realmente, como se depreheiule
do que já temos também dito, si a occupação anterior de uns
não devesse ser respeitada pelos mais como* um direito, a pro­
priedade das cous.as seria de quem de mais força dispuzesse para
enectivamente havei-as e retel-as em seu poder.
Assim aquelles que pretendem purificar a propriedade em
sua origem, recusando á occupação anterior das cousas nullius
aquelle elleito, não fazem senão fundal-a no arbítrio ou na vio-
encia, ou antes anniquilam lodae qualquer espeeie de dominio.
,. m yunna analyse, si se póde dizer que a propriedade im-
T euiala tem o seu titulo ou fundamento geral e remoto na na­
tureza humana, não é menos certo que o seu fundamento es­
pecial e proximo é a occupação anterior, a qual constitue ao
mesmo tempo o modo jurídico de sua acquisiçâo.
L I 0 03 A O Z 7 1

§§ 44 — lí)

Das condições da occitpuçào ; da appnhensáo du posse, c do


assiynalamcnto das cousas

A oecupação, que c, como vimos cm nossa licção prece­


dente, ao mesmo tempo o titulo ou fundamento proximo, c o
modo jurídico da aequisição das cousas nul/ius, começa pelo
aclo da npprehensão physica (l’estas ; mas carece dc outros re-
(piisitos para completar-se. K’ isto, em resumo, o que nos diz
o Compendio nos seus §§ 4-i e 45, e o que mais desenvolvida-
inente nos mostra nos seguintes. -
Depende, com elleito, a oecupação para produzir em lavor
do occupante o domínio das cousas occaipadas, de certas con­
dições que o mesmo Compendio indica de um modo gerai no
seu § 46, a saber: — I.» que o objccto sobre que a òccupação
tenha de recahir seja tal que se possa adquirir sem lesão de di­
reito de outrem -, — 2." que se tome posse material do mesmo,
l>or meio da qual se comece a declarar a vontade de usar d’ella
com exclusão dos mais ; — e 3.a que se o assignale, afim de que
mediante os signaes n’elle impressos se manifeste o animo cons­
tante de havei-o como proprio.
* A in imeira (l’estas condições, como sc vô, c por conseguinte
as mais particulares em que ellase decompõe, e que o Compen­
dio menciona no § 47, sao antes requisitos que se exige na cousa
«ccupavel, do que condições do acto em que a oecupação pro­
priamente consiste, líspecialmente constitutivas d’este são as
outras duas condições a que acabamos dò expôr com o mesmo
Compendio, relativas á apprchcnsão da pusse e ao assignala-
niento da cousa.
Analysemos cada uma d’essas Irez condições, principiando
|)õr aquellas cm que se resolve particnlaríneute a primeira, ou
que são necessárias para que as cousa« que se pretenda adqui-
13 F.
1)8
nr pelo modo immcdiató .sejam juridicamente susceptíveis disso,
begundo o Compendio no citado § 47 essas condições são : —
1•■l que tacs cousas sejam nullius ; — 2.» que sejam realinento
cousas, o não pessoas; — 3.“ que sejam capazes de uso e gozo
exclusivos do occupante; — e 4.“ que possam receber a posse
e assignalamento d’este.
. , il necessidade de serem nullius aquellas cousas,
e lacil inlerir se do que jã temos anteriormente dito sobre a ma­
téria e modo da aequisição immediala. Si esta se verifica pela
occupação primeira, a qual créa um direito em favor d’aquelle
que a tenha eífectuado cm relação ao objeclò da mesma, c claro
que estabelecida ella de facto, e conslituida, por tanto, a cousa
como propria d’esse, não poderia qualquer Outro apropriar-se
d ella sem lesar um direito alheio já sobro a mesma existente.
A simples idéa da occupação anterior, desde que se admitlc que
toiilia a virtude de dar nascimento a um direito de preferencia
aque le que a eliectuou sobre tal cousa, implica forçosamente
aquella necessidade fie aehar-se vago o objocto occupavel, como
tuna condição imprescindível para a possibilidade jurídica de
sua acquisição immediala. Pois é evidente que aquillo que por
outrem fui já legitimamente adquirido, não póde mais ser oh-
jccto (te acquisiçáo iguaimente legitima de alguém. Haveria
1 agi aiite cont.adicção em admittir-se semelhante idéa,ou esses
nous direitos nppostos de indivíduos diversos sobre uma mesma

Quanto á segunda condição, consistente em deverem ser,os


jeeios da occupação vealmente cousas e não pessoas, tí taín-
un unquesliouavel. iv isto uma proposição que nàò carece
f n gilá dcmon.slra«0es, desde que já prccedenlemente
u mos leito ver, que so as cousas por não lerem tins proprios,
e,n Ul.na personalidade ou direitos sujeitos a serem lesados pela
apropriaçao, podem ser juridicamente adquiridos, equeus pes­
c a s ou qualidades que esseneialmenle lhes pertencem ou as ca­
em caso "enluim sa«> susceptíveis de transaeções oft
i ações , n r l’IQS de scu lV'°|,rio 9UÍoi,,h e ainda menus iTas usür-
ou soh í nú P0SlSÕef arbllrai‘ias clos '»ais, l>or qualquer titulo,
fa n o õ i 1UU1' |in: i'xt° 1ue fteJa- Apenas, coíno então mos­
tomar seÓinnT„ ?er IcgiUmamenle adquiridas por outrem, ou

obrionln \f,. - L paia La. m elle s ’ obrigue ou a que s^eja


eK i r m v , , "’ f 1’10 sómunlu (l<’ntnj de certos limites,
e .|nn consentimento voluntário ou pacto, ou nor ahmm urinei-
M í l i - l " •alura!-0!1 socia' ^ a9im m n í m í £ lor
11,610 ,ÍL ucquisu áo íintnediala. ou de occupação de qualquer cs-
pecie, de que tacs cousas não são susceptíveis quer por Direito,
quér mesmo de facto.
Pela terceira condição mencionada pelo Compendio, o ob­
jecto da occupaçãn deve ser cousa de tal natureza, que não se
preste ao uso e gozo comrmirn e simultâneo de lodos os homens
ou de muitos ; que não seja, erníini, unia cousa de uso e gozo
inexhaurivel, c em si mesma tora de toda a possibilidade de
apropriação exclusivade alguém, corno sejam : o ar, a luz, o calor,
o alto occeano, os grandes rios ou lagos, as vastas íloreslas, etc.
Pretendendo assenhorear-nos de objectos d’esla especic. com
elleito, não só cmprchetnlcriamos urna extivivagancia, uma lou­
cura, tentaríamos um aclo que não poderiamos réalisai’ nem
m anter; mas ainda, quando de facto o podessemos, eominette-
riamos a maior e mais manifesta das usurpações contra o ge-
nero humano ou uma parte d’elle, convertendo em nosso único
proveito uma ordem e quantidade de meios fóra de toda pro­
porção com quaesqiuT legitimas necessidades ou aspirações in-
divhluaes, por maior expansão que se lhes attribua, e limitando,
por conseguinte, arbitrariamente ajusta esphera da liberdade
e capacidade jurídica de todos os mais. K’ aliás, evidente, que
tudo quanto não sendo resultado peculiar du actividade ou iii-
rlustria de alguém, póde por sua natureza e fins, servir a (mios
os homens, ou a grande numero d’elles sem diminuição ou dam­
no para cada um, deve por essa simples razão ser commutn
entre elles. C’ isto uma consequência necessária não só da
igualdade humana perante a lei natural, mas até dos mesmos
princípios que justificam a propriedade como um direito indi­
vidual c exclusivo sobre tudo o mais que não está n’essas con­
dições.
Finalmcntc, em quarto lugar, como vimos, as cousas para
poderem ser juridicamente occupadns, e susceptíveis de aequi-
sição immédiate, devem ser capazes de posse e de assignala-
mento por parle d’aquelie que as occupe ; de onde se segue, antes
de tudo,que cilas devem ser objcelos curporcos e externos ; pois
que realmenle só sobre os d’esia classe podem tacs actes vcrill-
ear-se. São estes, conforme já vimos, os mesmos que o Com­
pendio no seu § -f(3 menciona cm segundo e terceiro lugar, como
condições da occupação, e que nós dissemos serem dentre estas
as que verdadeiramente a constituem. Vejamos em que consis­
tem dias, como se realisam, e clíeitos que operam entre o oc­
cupante e a cousa occupada. .
Posse ú a relação que para alguém résulta a respeito de uma
cousa, do facto de a 1er elle rcalmento em seu poder, de modo
qur lhe é possível servir-se ifelbj, e impedir o seu uso aos mais.
100
I'.'lii o a posse natural, tie que aqui tratamos unicamente com
applicant) ás cousas nullius, a respeito tlas quaes é a mesma
por si só um titulo de legitima acqiiisição. Por quanto, desde
que clla recall« sobre objectos que nan pertencem a alguém,
c que são juridicamente susceptíveis de occupação, excluitla é da
mesma, toda a idea de má fé ou violência da parte do possui­
dor; e por isso o facto tpie a constituo assume desde logo, ao
mesmo tempo, a eathegoria de um direito.
.Na legislação positiva conbece-sc ainda a posse dcnoini-
nada civil, que é a que se funda em um titulo legal ou capaz,
segundo a mesma legislação, de transferir a cousa ao possuidor,
ou pelo menos ta! que possa fazer presumir a boa fé com que
elle a possue.
Em todo o caso a importância jurídica da posse é tal, que
embora perante o Direito civil, ou em relação ás cousas que não
sao nullius ella não valha por si só como titulo de propriedade
ou de uequisição, como vale a respeito das d’esla especic se­
gundo o Direito Natural, comtudo, mesmo pela lei civil, lhe são
com razão attribuidos importantes favores c garantias. Ella
tem por si todas as presumpções jurídicas emquanlo senão
prova a sua iUegilimidade ou os seus vícios.
‘ Como se estabelece, porém, a posse de modo a produzir
taes elJeitos, ou a merecer aquella protecção do Direito? Ella
11110 l")Je operar-se pelo simples c isolado faclo material de cita-
nun alguém para o seu poder tal ou lai cousa externa c nulling'
Esse o, sem duvida, o primeiro-acto pelo qual ella se revela,
e. que o t.ompcndio no § 48, como já o foz no 5 4i, denomina
apprehensão da posse. E’ esse o passo inicial para a aequisi-
çüo de qualquer objeclo d’aquella especie ; e sem o qual não so
poderia conceber a sua rffectiva cccupaçào. Ninguém, em ma­
téria ue acquisição de tacs cousas poderá, eom elíeilo, dizer-se
jamais com tundamento, ou inculcar-se senhor de alguma sobre
que em nenhum tempo lenha exercido aquella primeiro aclo,
que necessariamente deve preceder a lodos os mais que são in-
mspensaveis para altestarem externamente a sua intensfto <Ie
tazei-a sua. Somente cíVeetuada a detenção material d’aquella,
! T f „ f niin"tlllf ,k'Sllfl '’nlà0' a v°ntade do detentor de ha-
6 l!ro'1na' f:f! lcm 'l.e algum modo manifestado.
, e aüo por si só colloca já esta a respeito d’anctclle em
uma relaçao particular em que não se acham, nem nódem con­
siderar se quuesquer outros indivíduos. Comprehendc-se, po-
iem, quanto esta relação e ainda vaga e instável, desde que se
prende apenas a um iaclo de caraçtdr contingente - que só se
deu e c visivil em um momento, e não pode por si mesmo sub-
101

sislir e sor reconhecido a lodo o lempo, c cm Iodas as circums-


lancias. I)c modo (|iio si a simples detenção ou appreliensfio ac-
lual da cousa limitar-se áquellc <|ue pretende adquiril-a ; si não
empregar, ou não tiver outros meios de lazer, que essa primeira
manifestação de sua vontade em tal sentido, perdure ou se pro­
rogue por virtude própria a todos os momentos futuros, e em
todas as situações da cousa, independentemente da uma appli-
cação directa o incessante de sua actividadc sobre esta, isto é,
dc sua occupação corporal e eflectiva e continua, impossível
será toda e qualquer propriedade adquirida pelo modo imme-
diato. O dominio de quabpier cspccie de cousas, nâo teria
realidade, nem poderia manter-se si a presença constante e real
do occupanto sobre as cóusas occupadas, fosse uma condição
indispensável para a sua aequisição ou prova.
Mas si não é isso necessário, nem praticável para a aequi-
siçào c subsistência d’nquelle, é eomtudo certo que também não
basta para isso a simples e mera detenção material e passageira
das cousas, ('omquanlo seja cila o facto primordial da occu-
pação, o que a inaugura, o elemento mais essencial da posse,
a sua base, todavia não conslitue a occupação ou a posse com ­
pletas ; o, por conseguinte, embora crêe já para o detentor mu
certo direito rrlativamcute á cousa delida, não pode por si só
produzir em favor do mesmo a sua acqnisiçfio formal e defini­
tiva ou o seu dominio.
Para que a posse se consume, e receba o cunbo de perma­
nência e de exclusivismo que essoncialmcnle caraeterisam o do­
mínio, é preciso que se realise a terceira condição mencionada
pelo Compendio no seu cilado § 40, e que elle expõe no § 49,
isto <i, o assfgnalamenlo ou especificação da cousa delida, me­
diante algum acfowJo detentor, pelo qual este una áquelle sim ­
ples aclo de detenção, que cm rigor não passa dc um prepara­
tório para o dominio, algum outro que applicadoá mesma cousa,
e incorporado, por assim dizer-se, com cila, represente ahi cm
lodo o lempo o em Ioda a parle a presença senão real, ao me­
nos virtual, de. sua individualidade, c a torne assim jurídica—
menle inseparável d’esta.
Só a impressão dc signaes fixos da actividadc do occupante
c da permanência da sua vontade „sobre o ohjecto occupado
póde ter realmente a virtude du ligai-o de um modo claro, com­
pleto, e duradouro á sua personalidade. Só depois d’isso feito
ê que elle póde atíeslar o seu animo de fazei-o exclusivamento
proprio, e julgar-se, com razão, lesado em um direito real seu,
quando lai objeelo lhe seja .subtraindo, ou impedido o seu nso
ou disposição, por buírem ; porque lambem só então será im-
102
possível para este a prova de que elle se adiava vago e como tal
sujeito á sua appreliensào.
Si em summa, no acto inicial da detenção da cousa consiste
a appreliensào da posse da mesma, no seu assignalamento con­
siste a fixação, o elemenlo'de continuidade d’esta ; e no con­
curso de ambos esses aclos. a sua constituição definitiva, e como
consequência d isso a acquisição jurídica das cousas uttlliiis
susceptíveis de oceupação.
Wa seguinte licçào veremos por que diversos modos se pode
ettecluar, já a appreliensào, e já sobretudo o assignalamento da
posse, segundo as diversas especies de cousas sobre que a oc-
cupaçao recaia. 1
• L ia aaà O 2 7 1 1

§§ -Í9 — ;>0 '

Continuação : — do assignalamento; — dos modos diversos de


appreken&ão e assignalamento das cousas

Diz-nos o Compendio no § 41), c nós já o dissemos também,


que a vontade de possuir-sc alguma cousa nullius, que se oc­
cupa ou approhende, póde ser momentânea e para um uso tran­
seunte da mesma; e que para essa vontade poder produzir a res­
peito (1’esta um direito perpetuo, constante, é indispensável
que seja declarada ou se torne sensível por algum signal per­
durável ; e n’isto consiste o assignalamento. Aquella vontade
z|ue tem de servir de fundamento a um direito exclusivo do de­
tentor sobre a cousa, ainda que elle corporalmente a não oc­
cupe, só d’esse modo ou com essa condiçAu, póde inqiôr-se aos
m ais; sómente quando e emquanto a conhecerem podem estes
ser obrigados a respeitat-a.
I)’ahi se conclue, antes de tudo, (pie o assignalamento mio
póde ser como tal considerado ou ter a necessária efdcaeia
quando é feito simplesmente por palavras ; pois que, como ainda
nos di/,, com razão, o mesmo Compendio no citado paragrapho,
« estas não imprimem nas cousas signal permanente, são sig-
naes arbitrários, que não pódein servir de meios de declaração
para todos. >*
Com efleito, as palavras não se íixão nos objectos a que
possam referir-se; não os acompanham para fazel-os reconhe­
cer como proprios de alguém, ou d’aquelle que as proferio ; não
os assignalam, em stimma, cm todo o tempo, cm todo a parle,
a todos os homens, e muito menos aos que não as tenham real­
mente ouvido, ou não as comprehendam, ou não queiram reco­
nhecer a sua applicação ao objecto de que se trate, quando o seu
possuidoras invoque. Só uma especificação'consistente em
factos ou actos do possuidor da cousa, que n’clla se gravem, que
se' llie tornem adlierentes, que as sigam em lodos us lugares
e occasiòes, e lhe accrescentein alguma qualidade ou disliudivo
que não sejam os mesmos e tmieos que cila [tossa ler pelo ae-
casu ou pela natureza, ou eovmmms a ella o a outras tia mesma
especie, serão eapaz.es do produzir aquellc oITeilo.
O trabalho ou industria do homem, mais ou menos desen­
volvidos, sobro as cousas por ellc occupadas ou exisle.nlos na
sua posse, é, cm geral, e. incontestavelmente, o modo mais na­
tural, mais eftlcaz, o mais legitimo de operar-se aquella especi­
ficação das mesmas. O Sr. Abreus diz, a este respeito « que ne­
nhuma soaiedade bem organisada póde admiltir a ociosidade no
seu seio-,» proposição cxacta, mas que todavia não ilevemos en­
tender. com relação á questão vertente, de modo a concluir-se
que a propriedade adquirida pela occupaeão ou qualquer outra
só seja ou se deva considerar legitima u subsistente einquaiito
de lacto se manifeste pelo trabalho ou industria mais ou ineuos
continuado seu proprietário.
Si a lei jurídica recusa á simples e núa appreliensâo da
cousa a virtude de produ/.ir c manter aquella propriedade, não
pode, comtudo, deixar de reconhecer esta como legitima eui si
mesma e na sua continuidade, desde que sobre um objcclo dado
cila se eonstiluio tal por um primeiro assignalamento de sua
posso sulVicientemente claro e duradouro, que n’aquulle se im-
primio, e que neilese proroga por seus proprios caracteres«
bxigir-so para tal (im mais do que isto, ou um assignalamento
, todos os instantes, uma applicação quotidiana e desenvolvida
uo trabalho ou industria do possuidor sobre a cousa possuída,
sena exigir-se uma condição tão impraticável, como já mostra­
mos que o semi a da detenção corporal incessante dàs cousas,
e <ta mesma forma que com esta, seria com aquella condição,
impossível toda a propriedade ou domínio A uuica ociosidade
queo Direito verdadeiramente não purmitte a tal respeito é aquella
que se rclere a esse ussignalametito primitivo e aos requisitos
teve.m l'esi'hãr a sua duração c efficacia. Quanto ao
2 m ! S ra<l e, a(luella lei, ó inteiramente licito ao proprietário
ãs de^vínin» ,r° a sua Propriedade, sujeito por sua conta c visco
siri incni'i-i”ÜI1'S ou l)ei('as de qualquer especie que em razão de
t i ' ! £ er?ia |)?áS? m |,or Vl'ntura suceedor-llie.
sas n m m à iL us m da P"sa<f c 0 ^'Snalainento das cou-
í-"r indicados, são os meios de mauifes-
c‘ '"f'_ <l *' Jetubcameule por parte do occupante o ani-
•nm ía/u101 1,10I,1IJS as imjsmas, e pelos quaes estas entram,
?>» ?■u mll0' |)IU ° seu exdusivo domínio, e n'elle se mantém ;
ent.etaiito,como as cousas susceptíveis de oecupaçâo variam de
especie, deve esla circumstancia influir sobre a maneira pratica
segundo a qual aquellas condições de aequisição immcdiata se
verifiquem em relação a cada uma. 1’elo que com prebende-se
que possam não ser, e que de facto não sejam idênticos os meios
de apprehensão. e sobretudo de assignalamento para lodos os
objeclus que por aqnelle modo se adquira ; que esses meios di­
versifiquem conforme forem taes objectos immoveis, moveis, ou
semoventes, inanimados ou animados.
Quanto ás cousas immoveis ou bens denominados dc raiz,
consistentes cm terrenos, edificios, ou quaesquer outros adhé­
rentes ao sólo pela natureza ou pela arte humana,,ou insepará­
veis d’este sem destruição, por isso mesmo que elles cm laes
condições se aeliatn, que são lixos, que sobre elles c sobre cada
uma de suas partes não é possível a presença real ou constante
do possuidor ou a sua guarda immediota, e porque tudo isso
se póde dispensar sem risco de desconhecimento do direito de
seu dono, a lei jurídica é menos exigente a respeito do modo de
detel-os c de assignalal-os. Acerca de tacs cousas a própria
natureza d’ellas,cm grande parte, como que se encarrega de
supprir a providencia e o esforço humano n’aquelle sentido.
Na verdade, para conservarmos n propriedade de um campo
de que nos tenhamos legitimamenle apropriado por occupação,
e para que os mais se devam reputar c sejam realmcntc obriga­
dos a rcspeital-o como nosso, basta o facto de o havermos cha­
mado á nossa posse cm primeiro lugar do que estes, e de o ter­
mos por qualquer modo amanhado, cultivado, ou simplesmente
cercado ou demarcado -, pois que estas circumslancias fazem já
constar de um modo assaz visível c persistente, a quantos por
tal campo passem ou para si o pretendam, a nossa intenção de
sermos seu dono exclusivo c permanente. Não é necessário
certamenttí, para aquelle lim ou para firmarmos aqnelle nosso
direito que nos conservemos sem interrupção sobre o mesmo
campo a pé quèdo e de arma constantemenle em punho [»ara
a sua defesa.
As cousas moveis, porém, por isso mesmo que são taes, ou
que por sua natureza são, por um lado, fáceis de subtrabir-se
ou separar-se por qualquer modo do patrimônio ou da pessoa
de seu possuidor, e por outro, fuceis dc guardar-se de uma ma­
neira mais particular, de reter-se corporal e mais ou menos
conslantementc, de transformar-se ou caracterisar-se mais po­
sitivamente com quaesquer signaes da personalidade d’aquellu
de quem são, requer a lei jurídica, <la parte d’este, á respeito das
mesmas uma detenção mais immcdiata, c urna manifestação
mais explicita de seu animo dc possuil-as, ou do sua cITectiva
l i i\
posse, como condição do reconhecimento do sou legitimo domí­
nio sobre etlas. Aquelle que em vez de guardar realmente com-
sigo, ou proximo a si, objectos d’esla classe, os deixa em luga­
res em que ellcs fiquem ao facil alcance dos mais, e sem assig-
nalamento de lai fórma claro, que os faça reconhecer logo como
seus, corre com eífcilo o risco de perdel-os não só de faclo,
como até de Direito, em razão da impossibilidade ou difficul-
dade das provas de sua posse e dominio, além da presumpção
de abandono que contra si autorisa com tal procedimento.
A vontade de adquirir-se as cousas d’esla classe, diz-nos
o Compendio no seu § 50, « mostra-se pelo facto de terem sido
cilas colhidas, guardadas, ajuntadas, ou transformadas por al­
guém. *• D’estes diversos actos,de que sao susceptíveis as cousas
moveis, os das truz primeiras especies são relativos á sua ap-
prehensão, e somente os da ultima dizem respeito ao seu assig-
nalamento, que é, como temos visto, o meio de garantir a sua
recuperação quando dias venham por qualquer causa a saliir
das mãos do seu possuidor, ou lhe sejam subtrahidas.
h realmente, sobre tudo na sua transformação que este
pode achar c lem innumeros modos de assignalar claramento
como suas as cousas de tal especie, com quanto mesmo fóra
do quacsquer mudanças verdadeiramente taes da sua fórma,
mudos outros, consistentes em aetos de simples especificação,
possa elle empregar para o mesmo fim com suQieiente cBlcacia.
As cousas semoventes ou animadas, que participam do ca­
racter das moveis, e que de faclo ainda mais do que estas o são,
acham-sc, sob a relação de que tratamos, nas mesmas condi-
çues que etlas. itequer igualmente o Direito mais cuidado em
sua guarda, e mais clareza no seu assignalamentu ; e até pela
sua especialidade, exigem ellas,quér para este. quer paraaquella,
aetos ou signaes que lhes são peculiares.
Diz-nos o Compendio que a vontade de adquirir-se o do­
mínio dos objectos desta classe se manifesta « si elles foram
mortos, (cridos, presos em laços ou rédes, inclusos em terreno
piopno, domesticados, ou ensinados em alguma cousa •, » sobre
u.onlnc .V1C11’0S lazer observação aiialoga á que á pouco
nzemos lelativamente aos aetos demonstrativos da appreliensao
0U,J ’L c ^ '! r amenl0 tl:is C0u3as simplesmente moveis, a saber:
que esses diversos aetos aqui inuumerados pelo Compendio, são
tamliui), na maior parte, meios ou signaes da apprebensão da
jioase das cousas da especie de que tratamos : não o são de seu
assignalamento, ou de tazel-as reconhecer como próprias de al­
guém paia uar-se a sua reivindicação ou restituição, nos casos
em que eslas devam ter lugar. Apenas dentre aquelles aetos
poderá o ensino de alguma cotisa ou luíbilldadc aos animaes,
servir para este ílrn, e ainda assim não será isso sempre suf-
ficiente.
Mas, é certamente escusado demonstrarmos que os assíg-
nalamentos particulares, applieaveis aos mesmos animaes são
possíveis por outros muitos modos mais fáceis c mais elïlcazes
do que este, e mediante <s qunesr pode o seu dono garantir a sua
posse sobre elles contra as usurpações ou tentativas da má fé dos
que pretendam cliamal-os a si a pretexto de ignorância de já
serem elles propriedade soa. Cada dono de laes cousas devo
saber pelo simples bom senso, c independentemenle de quaes-
quer regras da sciencia, em qnc consistam esses meios de res­
guardar e manter o seu legitimo domínio sobre ellas; e cum ef-
IV.Ho os factos da vida eommum provam de sobra, que nenlmm
• indivíduo, por mais simples que seja,os desconhece, ou deixa de
põl-os em pratica com mais ou menos acCrlo.
Não tem grande importância, quer sol) o ponto de vista
Hieorico, quér sob o pratico, a questão suscitada pelo Compen­
dio na sua primeira nota ao paragrapho de que nos occupamos.
Trata-se alii de saber si o animal (nvllhn) por alguém ferido,
pertenço, em lodo o caso, áquelle que o ferio ; ou si nos casos
em que elle, foi rahir uo terreno ou propriedade de outreoi, deve
antes pertencer ao dono d’esta, como alguns pensam.
Diremos, entretanto, que nos parece fóra de toda a duvida
que esse animal deve, mesmo n’estes casos, pertencer ao caçador
que o ferio. O Direito não pódc reconhecer no simples possui­
dor do terreno ou propriedade onde cahio ou foi morrer a caça
de outro, titulo algum legitimo pelo qual possa elle fazei-asna ;
do mesmo modo que não reconheceria tal direito em relação
a qualquer outra cousa alheia que alli ou ás suas mãos fosso ter,
por qualquer outro molivo semelhnnle ou analogo.
Nem a questão muda de termos quando mesmo a caça te­
nha sido ferida dentro do proprio terreno alheio ; o que não
quer dizer, eomtodo, que seja perrnillido ao caçador peneirar
•Telle sem o consentimento de seu dono, quér para feril-a, quér
para apanhal-a depois de ferida ou morta.
’ A distiucção a que o Compendio se refere na citada nota,
pela qual, como nos diz, alguns nttribucm ao caçador o direito
sobre o animal ferido, somente quando este não púde mais fugir,
e não quando elle apezar de ferido vai fugindo, c por demais
casuística, e não tem mesmo valor algum na questão vertente.
Esta reduz-se afinal, a saber-se, si o caçador de animaes
sem dono, que os mata ou fere de modo que. elles possam ser
'■ sejam npprohcndidos. os faz realmente seus : ou si lacs actos
U )H

s;to suffi cientes como meios de adquiril-os : c não hesitamos em


responder aflirmativarncnte. Si, porém, o animal ferido não é
perseguido, si é abandonado ou perdido por qualquer circum-
stancia ou motivo, ou si apezar do ferimento não pódeser apa­
nhado ou foge, tollitur questio, porque em taes casos ou não
chegou a vcritlcar-sc direito algum de, quem quer que seja sobre
esse animal, ou o d’aquelle que poderia tel-o ou o teve, fói abati-
clonauo ou perdido dentro do cercado alheio, na espessura da
matta, ou na vastidão da atmosphera.
ISa sua segunda nota ao citado paragrapho diz-nos o mesmo
Compendio, que áccrca de muitos dos indicados signacs da ac-
quisiçao das cousas, e nós accrescenturemos, que mesmo sobre
os diversos modos possíveis de seu assignalamento a que nos
íefeiimos, pódem suscitar-se duvidas, que certumeute só pódem
e devem ser resolvidas pelo Direito positivo, sem que sc deva,
entretanto, inferir d’isto que não hajam modos naturaes de ad-
lf” l.rir._1sc10 domínio, ou que todos dependam ou tirem a sua le­
gitimidade ou eCflcacia das disposições das leis civis. Com cf-
leiio, naturaes são, sem duvida alguma, quer esses signaes da
apprehensão da posse, quér essas diversas especies de meios de
assignalar as cousasapprehendidas ou possuídas, que, foram pelo
i-oinpeudio e por nós mencionados ; naturaes e independentes
as prescnpções legislativas da sociedade, são os seus effeitos
n i 'mnPni a P° r Cü.n ?e? uinte como taes devem ser considerados
eiles í vf.,-iner,aCqillS‘ÇU0 V cinonstl'aÇao 1,0 dominio, que por
lí cam 011 se confirmam. A lei civil o que faz, apenas,
vidado le C,l ' ° S’ a}îton®al'OS, régularisai-, e garantir a effecti-
n a í e s í f l m 1 PP ,CaÇíl0’ dar-'hes ''ealmente o vigor, de que
« !ia sociedade todos os princípios ou regras
rã7-lo si, niSmP ? abSOlu,t0' as flua,;s impondo-se n’elle pela
S a « - 0 ,aes’ na° >)ótlem comtudo sem o au-
tuiles îiê s'i , S i “ Cm a" °!’ ™
LIC G A O X V I I I

§ 51 .

Dos limites jurídicos du occuparâo ou da acquisiçâo


immedinta

Depois de liaverniòs mostrado quaes sejam as condições


jurídicas da occupaçâo das cousas, cumpro-nos fazer ver qual
a sua légitima extençáo, ou os limetes dentro dos quaes póde
o homem exercer ó direito que tem de apropriar-se immediala-
mente das mesmas -, pois é evidente que semelhante direito mio
póde ser illimitado.
Nenhum indivíduo poderia, com cffeito, como aliás já pre-
cedentementc o dissemos, pretender ser legitimo occupante de
todos e quaesquer objeetos, ou de uma quantidade indefinida
d’elles, embora sem dono e susceptíveis de apropriação, que en­
contrasse ao seu alcance, e impOr aos mais o dever de os res­
peitar como seus. A medida do direito em que tal pretenç.ão
poderia fundar-se não é no arbitrio ou capricho do cada um que
deve ser procurada, mas em algum principio racional que o m o­
dere e torne o seu exercício compatível e harmouico com igual
e com quaesquer outros direitos dos mais.
Si cada homem pelo simples facto de ser homem, ou por
ter a capacidade jurídica geral de occupai- as cousas realmente
susceptíveis da acquisiçâo immediata, se julgasse com o direito
de assenhorear-se por este meio de todas que, estando n ’estas
condições, lhe agradassem, mesmo em proporçõçs excessivas,
tal direito e capacidade, como também já tivemos occasião de
demonstrar, seriam anniquilados em todos. Além de que a dou­
trina que tal direito admittisso, levada ás suas ultimas conse­
quências, si não fosse antes de tudo uma verdadeira extrava­
gância, uma concepção vã, justificaria até a posse exclusiva de
toda, da maior, ou de grande parte da superficie da terra por
um só indivíduo, ou por poucos.
Mas si o homem é aulorisado pela lei naluval a constituir-se
dono das eousas externas em razão da necessidade que tem d’ellas
como meios indispensáveis á sua existência e consecução de seus
destinos, si esse é o titulo geral, o fundamento superior do seu
direito de aequisição iminediata, é claro que é também ahi
e não na simples vontade de cada um que se deve achar a me­
dida da justa extenção d’esta, e por tanto da occupação, que
a determina -, que 6 d’ahi que se deve deduzir os seus limites ju­
rídicos. ,
Com effeito, além d’aquello que já lhe provém da propria
natureza das eousas, as quaes seudo sufíicientes para a satisfação
das legitimas necessidades du lodos os homens não poderiam
com justiça ser convertidas todas, pela maior, ou em grande
parte, em proveito exclusivo de algum ou de alguns, limita-o
também a mesma natureza humana ; pois que aquellns necessi- -
dades nflb podem deixar de ser limitadas em cada indivíduo, já
cm si proprias, já pelas dos mais, desde que perante a lei na­
tural absoluta nenhum tem mais privilegio do que outro, e que
em nenhuma de suas relações com os seus semelhantes póde
qualquer d’elles reger-se pelo accaso ou por sen méro bel-
prazer.
I udo isto c até consequência lógica das idéas que já prece-
dcntemeuli! temos emittido sobre as condições jurídicas da oc­
cupação. Si não é bastante para que alguém se torne legitimo
senhor de alguma cousa, embora nullius, o simples desejo ou
mesmo a mia apprehensào d’esta •, si c Indispensável para isso
que a sua vontade de possuil-a como tal, se manifeste externa­
mente com clareza, c se grave de um modo mais ou menos per­
manente no objccto apprehendido; si, cm suirima, além da sua
posse real, requer-se para isso oseúassignalamcnto por meio de
signaes visíveis e perduráveis,que demonstrem a sua intenção de
tiavel-a e mantel-u como propria ; e si n adad’islo é possível
para cada indivíduo ou para alguns d’elles a respeito de todas
as cousasou de immensas porções d’estas, a não ser de um modo
piuntaslico -, segue-se evidentemente, que u dominio procedente
<a occupação, ou autes esta, não póde deixar de ser limitada,
quer ua qualidade, quér na quantidade das cousas, e não só
pela propria natureza d’estas, mus também pela do proprio
homem. 1
São vagos, sem duvida, os limites, que assim assignamos
a occupação ; mas nem por isso são menos incontestáveis.
Aquella como meio de aequisição é um facto justo segundo
a razão ■.esta, porém nos faz ver ao mesmo tempo, que elln sé
pode ser tal einquanlo circurnscripta dentro de certas raias além
'las quaesserialoueura ou usurpação. A razão não nosdizquacs
Hujatn precisamente esses limites, uu a quantidade determinada
de objectos n u lliu s, que cada homem pôde juridicamente oc-
cup ar; nem nol-os póde dar tambern, d’este modo, o Direito
I Natural absoluto, o qual, todavia, pelo orgão d'aquella e da con-
sciencia universal dos homens põe fora de toda a contestação
1 a Sllíl •L’alidade, desde que demonstra a sua justiça c iudcciina-
vel necessidade.
Desta maneira indefinida pela qual a razão pura e o Di­
reito absoluto indicam o quantum de legitima occupação, que
a cada indivíduo póde compelir, tem-se originado duvidas c sys­
tèmes a respeito da legitima extenção da mesma.
Tem pretendido alguns, como nos diz o Compendio, que
as necessidades da sustentação da vida, ou as simples necessi­
dades corporeas, como entendia o philosopho lípicteto, segundo
nos affirma Belime, devem ser consideradas como a justa m e­
dida da riqueza ou da propriedade de cada homem, sendo tudo
o mais em que estas as excedam, uma obra do arbitrio dos le­
gisladores civis, ou das usurpações individuaes.
Mas. primeiramente, esta doutrina, que tem a preteução de
cortar todo o arbitrio na distribuição da propriedade, ou de op-
pôr uma barreira ao desejo immoderado do domínio, igualan­
do-o mais ou menos entre os homens, <; de todo inflcaz n’estc
sentido. Por quanto, mesmo acceitas as méras necessidades
corporeas, ou da simples subsistência humana como bilóla para
áqueila, seria sempre necessário fixar-se o seu quantum para
cada imlividuo, sob pena de deixar-se ainda um vasto campo
aberto á pretenções excessivas. Kssc quantum seria demais,
em todo o caso, desigual, desde que essas mesmas necessidades
não são sempre idênticas e não tem a mesma intensidade para
todos, ou em todas as condições em que cada um se aclie,
a menos que não se as reduza ás que são estriclameiile com­
muns aos homens e aos brutos. Km segundo lugar, m atéria-
lisa-se d’esse modo o homem, mutila-se, rebaixa-se á pura con­
dição de animal, desconhecendo-se a importância, u nobreza
e a legitimidade de suas necessidades inteilectuaes c moraes,'
que tanto como as suas necessidades physleas, senão m ais’
pódem e devem ser satisfeitas pelo uso e gozo dos obieclots do
mundo exterior convertidos ao seu dominio. r
Incontestavelmente, quér perante o Direito Natural, quer
perante a Moral, não póde ser vedado a indivíduo algum tratar
de obter seus cornmodos ou vantagens licitas do qualquer espe­
oie, de realisar as suas naturaes aspirações, dentro de limites
. muito mais largos do que os d’aquelle circulo acanhado, já no
sentido de conservar c melhorar a sua existência e condições
physicas, ja no de desenvolver e aperfeiçoar os dotes do seu espi­
rito e coração ■,bens que para serem alcançados do mesmo modo
que muitos outros em que consiste a sua vidae dignidade como
pessoa, dependem mais ou menos d’aquelles meios, ou do seu
uso e gozo em uma escala indefinida. Ninguém seria, pois, au-
torisado a cortar pela propriedade que mediante a occupaçào
houvéssemos adquirido, sob o méro pretexto de ser ella dema­
siada para a satisfação de nossas necessidades corporeas ou m a-
teriacs, ou de ser qualquer parte da mesma indispensável para
satisfazer as suas d’essa ou d’outra especie.
Esta theoria, flnalmente,sob qualquer relação que se a con­
sidere, é por demais rudimentaria e grosseira, para no estado
actual da humanidade, c dos progressos da sciencia, gastarmos
mais tempo em refutal-a. A acquisiçào immediata das cousas, \
modelada por tal craveira seria, quando muito, suflicicnte para
alguma horda de selvagens.
Mas si não é aquella a medida jurídica da occupaçào ou da
propriedade que por ella se adquire, sel-o-ha o simples poder
physico que tenha cada indivíduo para tffeclual-a, como outros
poderão pensar ?
Também não é possível, perante o Direito, estabelecer-se
por ahi os verdadeiros limites d’aquella. Esta doutrina não é
mesmo mais admissível ou menos grosseira do que a precedente,
desde que ella faz originar-se e subsistir o direito em questão
pela simples força ou meios materiaes de que disponha aquellc
que pretende adquiril-o, sem os subordinar a principio algum
racional que os autorise. Além dc que, si taes fossem os limites
jurídicos da occupaçào, o domínio das cousas deveria veridcar-
sc pela posse effectiva c continua d’cstas, e só assim ; a pro­
priedade por meio d’aquella adquirida só deveria repular-se le­
gitimamente existente emquanto a demonstrasse o facto de sua
real detenção, defesa, e aproveitamento-, o que daria em resul­
tado fmal uma propriedade inteiramcnle prccaria, ou antes
n ruina, ou total impossibilidade do verdadeiro dominio.
E’ certo que o trabalho que exigem a posse c o assignala-
mento regular das cousas occupadns, limitam de alguma sorte
ou até certo ponto, aquella propriedade no circulo dos poderes
pbysicos individuaes -, ó certo ainda que não se póde occupar,
segundo o Direito, senão cousas que por sua natureza ou con­
dições estejam ao alcance dc taes poderes. Mas estes limites
da occupaçào, além de serem puramente materiaes, e não os
jurídicos que procuramos, são ainda, por um lado demasiada­
mente latos, c por outro excessivamente restrictos porque si
Digitalizado pelo Proieto Memória Acadêmica da FDR UFPE » * ó
I

a razão nos diz que. nem tudo de que cada homem pódé eíFecti-
vamente apropriar-se, ou cuja posse e assignalamenlo póde
realisar, será legilimamenle conversível ao seu privativo domí­
nio ; diz-nos lambem que uma vez adquiridas as cousas, com
os requisitos que o Direito exige, não c mais necessário para
manter-se legitimamente o domitiio das mesmas, que o possui­
dor exerça sobre ellas a sua posse de um modo real e constante,
ou que de facto e immediatamente as tenha sob o seu poder ou
acção material. Não póde. por tauto, repetimol-o, ser este
poder o unico e verdadeiro limite da occupação das cousas.
Devemos, por conseguinte, fazer consistir a justa medida
d’esta, a regra que a modere em sua realisação, no conjuncto
de todas as necessidades legitimas do homem, quér ellas sejam
corporeas. quér intellectnaes, e quér moraes, ou de qualquer
cspecie, próprias de sua essencial organisaçâo, e uma vez que
sejam reaes, não ilcticias, ou consistentes em pretenções i n ­
admissíveis em Direilo ; necessidades que possam ser satisfeitas
sem o (Tensa de igual dircitq de outrem, ou de sua natural ca­
pacidade de adquiril-o ; isto é, sem frustar-se os effeitos ju rí­
dicos d'esta capacidade dos mais invocando-se em favor da pre­
ferencia própria, sobre tal ou tal cousa, um titulo diverso como
principio, ou semelhante como facto, aos que poderão estes al-
legnr igualmenle em relação á mesma.
Tal é, cmfim, o justo limite da occupação das cousas, se­
gundo o Direito Natural absoluto, e apenas n'esses termos é pos­
sível indical-o, sendo que só a lei civil, conforme os casos oc-
enrrentes ou hypotlieticamenlo concebidos, póde (ixal-os com
precisão, no sentido de reduzir a proporções racionaes ou con­
venientes, quaesquer pretenções exageradas de aequisição por
aquelle meio.
Compreliende-se entretanto que aquelle limite da aequisi­
ção immcdiata das cousas nullius, que se deriva, em geral, de
um titulo que é camimim a todos os homens, que como princi­
pio só póde ser desigualado até certo ponto, e como facto sbb
certas condições, que a sua realidade presuppõe, não póde ser
applicado á propriedade depois de constituída a cousa definiti­
vamente no dominio pleno e exclusivo de alguém, que na qua­
lidade de seu dono póde usar, gozar e dispôr d'ella, transmit-
tindo-a a outros a titulo oneroso ou gratuito, de onde necessa­
riamente resultará que a mesma propriedade mais ou menos se
accumulu nas mãos de uns, retirando-se das de, outros.
E’ com elFoito, evidente quanto a esta especie de aequisi­
ção e propriedade, que ella ba de ir sempre por sua natureza
e condições, muito além d’aqnelle limite sem sahir do terreno
I.V F.
I 14
(ia justiça ; que cada homem sem ultrapassar os seus direitos ;
e antes no exercício natural d’elles, póde ser legitimo dono de ,
muitas cousas adquiridas por tal modo, em bora se as repute, ou
realm enle sejam demasiadas ou supérfluas para a satisfação
de quaesquer necessidades ou mesmo phantasias d’aquelle que
as adquire.
1’óde-se pois dizer, que figurando-se os homens, por hypo­
thèse, em um estado primitivo ou anterior ao facto,da occupa-
çâo das cousas n u lliu s, ou á transform ação da propriedade ori­
ginaria em propriedade m ediata, aquella occupação seria legi­
tima emquanlo recahisse cm objectos susceptíveis d’ella, real- | ‘
mente adequados á satisfação de quaesquer necessidades verda­
deiras e proprias da dupla natureza hum ana -, até onde fosse
possivel a cada indivíduo guardal-os e defendel-os pela forma
e meios que a lei juridica prescreve ; e sómenle n ’isso e até ahi.
Ao passo que em relação á propriedade adquirida pelos modos
secundários, ainda quando em sua origem proceda ella de um a
occupação, cuja regularidade é impossível verificar-se, o Oi- •■
reilo, quér Natural, quér civil, não póde deixar de acceital-a em
seu actual estado e dc gnrantil-a em toda a sua real latitude. Os
seus limites são indefiníveis ; elles são determ inados pelas pro­
prias evoluções em que consistem o seu uso, gozo, c disposição
■entre os homens.
LIG Í3A
9 Ò ZIZ
§§ 52 — 53

Da desigualdade da propriedade ou do domínio entre


•, os homens

As matérias dos dous paragraphes acima indicados acham-


se mais ou menos implicitamente contidas em alguns anterio­
res. e já d’cllas nos occupamos na explicação d’estes, o sobre
tudo da de que trata a primeira parte do primeiro.
Já mostrámos, com efTeilo, que a anterioridade da occupa­
i t ) das cousas nullius, effectuada com os requisitos que o Di­
reito prescreve, conferia ao respectivo occupante um titulo de
legitima preferencia sobre as mesmas, em relação a quaesquer
outros seus pretendentes posteriores -, e que o dominio resul­
tante d’essa occupaçâo era essencialmente exclusivo e pessoal
d’aquelle ; e mostrámos lambem que a desigualdade de facto
entre os homens, e nos seus direitos hypotheticos, era necessária
e infallivel, não obstante ser igual e idêntica em todos a capa­
cidade geral de adquiril-os, que provém de sua commurn n a­
tureza. *
Com relação áo dominio das cousas, isso resulta ainda do
que também já dissemos sobre o titulo e condições da propria
occupaçâo d’estas.
Entretanto cumpre-nos tratar mais particularmenle d’este
assumpto, que por sua importância nos deve merecer especial
attenção.
Com razão nos diz o Compendio no seu § 52, que seria não
só injusto, mas lambem vão, querer-se estabelecer entre os ho­
mens a igualdade no domínio das cousas.
Seria isso injusto e vão quanto a propriedade adquirida pelo
modo immédiate, porque essa supposta igualdade seria real­
mente uma grande desigualdade relativa,uma vez que nem todos
os homens tèm a mesma necessidade das cousas, e sobre tudo,
não pódem 1er as mesmas disposições e meio3 de haver e de
manter a sua posse, e de utilisai as -, e porque d’alii se seguiria,
necessariamente, ou que taes cousas ou grande porção d’ellas
llcariam perpetuamente esterais nas mãos de muitos, e imiteis
quér para estes, quér para os mais, contra todas as razões ju ­
rídicas que justificam o dominio -, ou teriam de passar ás mãos
de outros que melhor as possnissem, defendessem, e aprovei­
tassem fem vantagem propria e de todos-, e assim desappareceria,
em todo o caso, c em tempo mais ou menos breve, qualquer
igualdade artifieialmente estabelecida na sua primitiva distri­
buição.
Seria isso ainda injusto e vão quanto á propriedade adquiri­
da pelos modos secundários, por aquellus mesmas razões e conse­
quências, que semelhantemente se dariam a seu respeito, a me­
nos que não se recusasse de todo aos donos das cousas, embora
reconhecidos como taes, o direito de usarem e dispômn d’ellas
como lhes aprouvesse, caso em que não só se anniquilaria toda
a especie de dominio quen’aquelle direito consiste, impedindo-
se as applicações e IransacçÓes que lhe dão vida e valor, des­
igualando-o ; mas tornar-se-hia até impossível aquelle mesmo
modo de sua acquisiçào.
Si d’estas simples considerações já sc infere que não seria
realmente possível levar-se a effeito a'igual divisão da proprie­
dade entre os homens, e ainda menos mántel-n por muito tempo,
outras razões tornam ainda mais evidente essa impossibilidade!
Feita de qualquer modo uma tal divisão seria indispensável
refazel-a.nãosegundo o Jubileu Hebraico, pelo qual a propriedade
voltava de 50 em 50 annos aos seus primitivos possuidores, mas
á curtos intervallos, como no Império dos locas, em que ella era
renovada todos os annos. Sem isto, com effeito, no lim de cada
um d’elles aquella cederia á ordem natural, e se acharia de facto
desigualada entre os habitantes de um mesmo bairro, cidade,
ou hstado, sendo aliás de todo inconcebível, mesmo por’mo­
mentos. de naçao a nação, e ainda menos na humanidade in­
teira. Mas entre os proprios Hebreus reinava, ainda assim, no
periodo jubilario a propriedade desigual, desde que ella se trans-
mittia dividida entre os filhos, e era alienave! durante o mesmo ;
e no antigo Perú si tal estado de cousas não produzia todas as
u i
suas consequências funestas, ê provavelmente porque, segundo
1’rescolt, (18) sob a influencia do amor ú ordem, e d a aversão
pelas mudanças que caracterisavarn as instituições 1‘eruvianas,
cada nova partilha do sólo confirmava ordinariamente o occu­
pante na sua posse, e o locatario annual tornava-se proprietá­
rio perpetuo.
Em todo o caso o domínio assim constituído perderia todos
os seus caracteres principaes, e todo o seu préstimo ; e quer
a Judéa, quér o Perú dos Incas não pódern ser-nos inculcados
como modelos de organisação da propriedade ou, de civilisação.
Debalde alguns visionários tem pretendido estabelecer, ou
antes arremedar uma tal igualdade do dominio, ou, em geral,
de condições entre os homens, em instituições inventadas por
suas imaginações cscandecidas ou por demais ingênuas. Além
de serem cilas, por suas proporções acanhadas, insufiicicntes
para provarem pelo seu bom exito a possibilidade de sua feliz
applicaçfio a toda a humanidade, ou mesmo a qualquer associa­
ção política, accresce que n ’ellas próprias penetra e impõe-se
mais ou menos a desigualdade por todos os lados áquelles quC as
formam Mesmo nas communhòes de Owen, de Saint-Simon,
e nos originaes phalansterios de Fourrier a natureza humana
e a das próprias cousas, mas poderosas do que ossyslemas que
pretendem torcel-as, fazem sentir as suas exigências, e a des­
igualdade de facto que essencialmente caracterisa, e deve earac-
terisar todos os desenvolvimentos da actividade e da liberdade
do homem, todas as relações praticas da vida individual, e prin-
cipalmenle as que respeitam á aequisição, uso, gozo e disposi­
ção da propriedade. E’ certo, demais, que nenhuma d’aquellas
instituições, ou quacsquer outras semelhantes, embora nas so­
breditas proporções restrictas, tem podido ou poderão medrar:
o nem mesmo o simples intento de impòr-so, de um modo di­
recto c por disposição positiva, um limite máximo á concentra­
ção da propriedade cm poucas mãos. Si, por exemplo, em
Sparta o decurso do tempo encarregou-se dc demonstrar a ina-
nidade da famosa obra de Eycurgo : cm lioma a própria lei l,i-

(18) llislaire de la < onquete du Perou — lom. l.° pag- M.


U 8
cinia, aliás meuos prctenciosa, nunca Une execução, e os esfor­
ços dos Grachos, em tal sentido jamais passaram de tentativas
tão ephemeras, quanto desastradas.
Prudhon, o mais exaltado representante da escola em que
figuram os Morelly, os Louis Blanc, e todos os socialistas e com-
munistas modernos, entende que a accumulação da propriedade
nas màosde uns,c a sua escassez ou falta absoluta nas de outros,
é um facto contra a natureza; e que a existência de ricos e de po­
bres, de proprietários e de proletários é um attentado contra
a igualdade humana, Diz elle que ■<Deus não crèou a terra para
gozo de uns, e tormento de outros.»
Mas já em outra parte mostrámos, que esta declamação,
que se dirige principalmente á propriedade territorial, si fosse
procedente, anniquilaria não só esta, mas toda a cspecie de do­
mínio sobre qualquer ordem de cousas ; e que por tanto, é for­
çoso admiltir-se a desigualdade de facto n’esta, ou regeilar-se
absoliitamcnte toda a idéa d’elle, o que seria absurdo.
Os apregoadores de tal doutrina, são, além d’isso inconse­
quentes; a serem logicos deveriam elles ir muito mais longe;
deveriam passar um nivel sobre todas as condições humanas,
proclamar a igualdade dos hom ep em tudo e por tudo, quer
nos seus direitos absolutps, quér nós hypotheticos, e pôr-se assim
em contradicçào flagrante com o que nos dizem a mostram a na­
tureza, a razão, e os proprios factos: absurdo ainda maior do
que aqnelle,corn quanto seja certo, que Deus.deu também a todos
os homens igual capacidade organica para adquirirem lodos
esses direitos.
Não se comprehende até como os homens possam ser todos
igual, ou mesmo desigualmente proprietários, ricos ou abastados.
A desigualdade das condições por este lado, e por outro a as­
piração constante de melhorar de estado e de fortuna, são es-
seneiaes á vida e progressos sociaes ; a existência de ricos e de
pobres é uma lei fatal, mas ao mesmo tempo salutar ao genero
humano. Supponha-se, por momentos, possível c realisado
aquelle sonho enganoso, (pie para mantèr-se suppóc a total pro-
Intnçao do livre uso, gozo e disposição do dominio, origem in-
alhvcl de sua desigualdade.e supprime todas as razões e estímu­
los daactividade e industria do homem, e veja-se a mie estado
ficaria reduzida a humanidade !
Somos, pois, forçados a reconhecer que é justa a proprie­
dade desigual, sob pena de a destruirmos de todo.
A igualdade humana perante Deus ou perante a natureza
argumento Hercules, com que todos os sonhadores de iaes ab­
surdos procuram autorisai-os, apenas significa, como também
1 19
já tivemos occasião de mostrar (19), que todos os liomens, perante
a lei natural, são moral e juridicamente aptos para pretenderem
ou fazerem tudo o que não é injusto, si para isso, e tanto quanto
para isso, tiverem os meios ou condições necessárias, as quaes
não pódem deixar de ser diversas e desiguacs de uns a outros •
e perante a sociedade, que todos os cidadãos, lambem segundo
osmeios e condições desiguaes e diversas de que cada um dis­
ponha ou ern que se ache, tem igual direito de aspirar ou de pra­
ticar tudo para quanto fòr hábil na communhão política de que
é membro, sem distineção de nascimento, classe, posição, ou
quaesquer outras circumstancias que não influem sobre a sua
capacidade organica, e uma vez que não lese direito de outrem
ou do listado. Parlicularmente quanto á propriedade das cousas,
quér essa igualdade dizer apenas, que todos os liomens tem o di­
reito de adquiril-a, e toda a especie de bens ou riquezas, me­
diante os requisitos que a razão e a justiça impõem, e que assftn
adquiridas devem ser cilas respeitadas por todos os mais ; e que
todos, Pinalmenlc, depois que legitimamente as adquirem tem
plena faculdade de usar, gozar, e dispòr d’ellas como lhes con­
venha. Mas uma cousa é a simples possibilidade jurídica de
tudo isso, e outra a sua eflectiva realidade.
Emfim a desigualdade nadistribuição dodominiodascousas,
que nasce da própria natureza (Testas e da do homem, é um
facto natural, e sem o qual a propriedade se não concebe. Em
vão se tentaria fazel-a desapparecer, ou se a lançará cm culpa
aos proprietários ou ricos, ou á sociedade e suas leis, excitan­
do-se contra aquelles as paixões dos pobres e proletários de or­
dinário ignorantes c fáceis dc illudir-se, em prejuízo proprio
e da paz publica. A intelligcncia superior, a industria e eco­
nomia de uns, a ociosidade, a imprevidência ou a ineptidão de
outros, c mil circumstancias mais fortes que a vontade individual,
e filhas do accaso, felizes para uns, e adversas para outros, são
em geral as causas determinantes ÍTessa desigualdade de posses
e fortunas; causas mais ou menos permanentes, e que unidas
ás evoluções próprias do duminio necessariamente lião de pro-
duzil-a, ou fazel-a renascer em breve, ainda quando por meios
forçados se tenha conseguido tornar a propriedade igual por al­
gum tempo, n’nm espaço, e entre um numero de indivíduos mais
ou menos limitado. .

(19) Vido I.icçAo IX, ps','. õ3 — v>.


120
Si a propriedade, que l'oi e será sempre o que aclualmente
é, quanto aos seus caracteres essenciaes, contém vicio cm al­
guma par(e de sua constituição ou regi meu, cumpre corrigil-o
até onde e como for isso possível e da competência do poder
social, sem que se a auniquile sob o pretexto de fazei-a mais ra­
cional ou mais perfeita ; pois que sem ella, ou com cila privada
de seus attriliutos fundamentiics,são absolutamente impossíveis,
quér a existência e bera ser individual, quér a manutenção e pro­
gresso da sociedade humana A concentração excessiva da pro­
priedade territorial nas mãos de um numero relativamente limi­
tado de indivíduos, é sem duvida, um facto de graves conse­
quências para qualquer Cstado ; mas iiucrel-o evitar por méio
da propriedade igual imposta a todos, si não fosse isto uma chi-
inera, seria cabir-se no extremo opposto e de consequências
ainda mais funestas.
Pretendem ainda Prudhon o outros de sua escola, que a pro­
priedade como existe, é a exploração do homem pelo homem ;
que o trabalho'humano acha-se escravisado ao capital dos gran­
des proprietários, e enchergam n’isso uma violência, uma flti-
çrante injustiça mantida pelo Kslado. Mas se isto é lambem certo
em algum ponto ; si lia por esse lado abusos ou excessos da parte
dos possuidores das grandes fortunas em damno daselasses ope-
i auas ou menos favorecidas da sociedade, ou defeito nas leis
^ esta que taes relações devem regular, o remedio para extin-
fcuir-se ou minorar-se esse mal, não é certamente o que pro­
, c^orin.adores. Cotn esse si o enfermo se salvaria da
moléstia, morreria da cura. .
, ^ s°cicdade civil não foi instituída até ou não existe para
1 io ura senão exaelamente para garantir, regulando, com jus-
iça, essa desigualdade de facto entre os homens, já em relação
u pioprieüade, ja a todos os mais seus direitos hypotheticos,
'•nu- e-**116 , a d ,uma consequência infallivel da diversidade de
ede me‘os legítimos que lem cada um para adquiril-os,
tamhpm°fn p maQtel-os 5 desigualdade em que consiste, como
mens ver’ a Ullica e verdadeira igualdade dos ho-
™8 1 d°s cidadãos perante a lei natural em social.
d-is rnimns nl’ P° IS.1 £uslenla,u'° essa desigualdade no dominio
lenci i indi’vh‘h?ifUSlenta uma ül,ra do in,ro arbilrio ou da vio-
rerJ0 é?sto m íntn6? t8anCC,ona uma h'j us,i(;a 5 o tanto mais
^„.e s ?' (Iuanl0 antes mesmo de concebermos a existência
de °ciedade.e dt! seu* l'0(lcrcs,e .le experimentarmos os elTeilos
Í S 2 autoridade e torça em garantia d’aquella, a razão nos
uttesta, e a eonsc.encia nos conürma a sua incontestável legiti-
12 \
A propriedade não é filha da lei civil; não é esta que a crôa
ou a faz justa $ c por tanto, não póde ella lambem desnatural-à
ã sua vontade, ou sujeital-a a condições com que ella repugne
ou que a auniquilem. O legislador social não póde deixar dè
acceital-a c de garantil-a como a quer a natureza, ou como ella
necessariamente se constitue em sua origem pelos elementos de
que juridicamente resulta a sua aequisição, c na sua continui­
dade, pelas evoluções que são próprias de sua constituição e des­
tino, embora d alii provenham incommodo ou penúria para
uns, gozos ou superabundância para outros. E’ isto inherente
ã sua essencia ; não ha para 0 dominio das cousas entre os ho­
mens meio termo possível entre a desigualdade e a morte.
Assim, no fundo, essas doutrinas, que professam a possi­
bilidade e reclamam a realisaçâo da propriedade igual entre
aquelles, não só são irracionaes, e contra a natureza, mas são
ainda contradictorias cm si mesmas ; si não fosse isso, antes do
tudo, uma perfeita chiméra, comprehende-se quanto seria se­
melhante idéa fatal á humanidade, que ella reduziria á miséria
e ao embrutecimento, a titulo de fazcl-a mais feliz.

16 r.
L I 0 C J5 A 0 Z .Z .

§§ 54 — 55

/>05 diversos sijslemus sobre o fundamento j uridico da proprie­


dade ; — syslema du convenção; — du lei civil.

■là precedentemenle mostrámos que a anterioridade da oc-


cupaçâo devia ser considerada como o verdadeiro fundamento
jurídico da propriedade adquirida pelo modo originário ou im-
mediato. Alguns escriptores, porém, regeilando esta doutrina,
tem pretendido explicar por outros princípios a legitima aequi-
siçáo d’essa propriedade-, e d’ahi os diversos systemas, sobre
este assumpto, que o Compendio menciona nos seus §§ 54—56.
U primeiro d’estes é o que faz derivar a justiça d’aqueila
prOpTiedade de um pado ou convenção feita ou subentendida
entre os homens, c pela qual estão os mesmos obrigados a respei­
tarem a posse de cada um sobre as cousas por elles occupadas,
em vista da paz geral, e para que cada um tenhacerteza de gozar
tranquillamentc dos fructos do seu trabalho.
^ _ Mas esta doutrina inventada para supprir á supposta insuf-
ficiencia da occupação anterior como hase jurídica da proprie­
dade, cm vçz de conseguil-a, mostra-se ao contrario em si mes­
ma inteiramente deffeciiva n’aquelle sentido, além de outros de­
feitos que a tornam inacceilavel.
1'rimeiramcnte, como já em outra occasião dissemos, não
consta que tal convenção'fosse realmente feita em algum tempo,
nem ha razão alguma para a subentendermos, e cila é até im­
possível ; e em segundo lugar, ainda quando real ou possível
tosse, mio poderia provir d’clla a justiça da propriedade, nem
mesmo a sua existência, como facto, de um modo permanente
e definitivo.
K claro que a obrigação resultante de tal convenção des-
appareceria com odesapparecimentod’aquelles que pessoalmente
a tivessem celebrado expressa ou tacitamente qucella não po-
(luria ligar as gerações seguintes o futuras. «Seria dilliçil, diz
Itelinie, provar aos proletários de nossos dias, que elles devem
respeitar a propriedade dos ricos, em virtude de um contracto,
que remonta á epoclia do diluvio, c se o proprietário de terras
não tivesse otilros titulos senão esse em favor da legitimidade
de seu direito, não leria de certo muita razão para dormir Iran-
quillo sobre a posse de suas herdades. >. Para manter-se aquella
obrigação, por lai modo constituída, fôra preciso renovar-se
a mesma convenção todos os dias entre todos ns homens; o que
reahnente ainda menos se tem feito, uein é cousa praticável.
li quando mesmo essa convenção elleetivamcnte se li/.esse
e renovasse daquullc modo, dizer-se que cila era o fundamento
da propriedade, on que era cila que a justificava, seria dizer-se
que antes d’olla não temos direito algum sobre as cousas. Si,
porém, sem este direito não podemos transigir legitimamente
em relação ás mesmas, ou fazer ajustes, crôar obrigações reci­
procas, celebrar, em smnma, quacsquer convenções que as te­
nham por objecto, segue-se que semelhante doutrina é contra-
dictoria, e por si mesiíiã se destróe.
li’ evidente, que a convenção suppõe, em todo caso, antes
de si aquelle direito sobre as cousas, e esse direito não é outro
senão o de propriedade já constituída por algum outro meio ju­
rídico ; e que eonseguintomonte, em vez de ser a convenção
o fundamento d’csta, é preciso primeirameute ndmitlir-se a mes­
ma propriedade para que aquella seja juridicamente possível
a seu respeito.
De mais uma convenção é aclo voluntário dos que a cele­
bram, eassim póde dar-se ou não ; e fazel-a fundamento da pro­
priedade, importa fazer repousar esta sobre uma base falsa, de­
pendente do arbítrio individual; importa dizer-se que a proprie­
dade poderia deixar de existir entre os homens, ou existir sob
condições arbitrarias ; e nada d’isto é admissível, já por que
a humanidade, e sobretudo a sociedade civil, não podem ser
concebidas sem ella, já porque cila mesma em si não póde ser
concebidas cm os seus caracteres essenciaes, superiues a todo
e qualquer ajuste ou pacto.
liutre os partidários d’esta doutrina alguns pretendem que
a convenção de que resulta a existeucia legitima da propriedade,
é o mesmo pacto pelo qual oshomens se reuniram e vivem em so-
riedadu para fazerem elTectivos todos os seus direitos, liosseau
pertence a esta escola.
Mas isto só póde significar que o direito de propriedade,
como todos os mais direitos humanos, encontra a sua garantia
na associação civil; aliág, tal modo de explicar a sua justiça
ó Ião falso como a doutrina dos primeiros, e pccca exaclamenfe
pelos mesmos lados •, — 1,° isso que se denomina pacto social,
não é propriamente um pacto, faltam-lhe os requisitos que a este
essencialmente caracterisam, e dá-se-lhe esse nome apenas por
analogia, ou em um sentido lato ; a sociedade civil é mesmo um
facto mais necessário do que voluntário ; — 2.° ainda quando
esse pacto tivesse sido feito, não o fui, nem o podia ter sido pro­
priamente para crêar direitos, ou para legitimar espceialmeute
o de propriedade, mas apenas para rcconhecel-os, garantil-os,
e tornar possível o seu mais amplo e ellicaz desenvolvimento —
3.° quando mesmo tivesse elle sido feito expressamente para este
lhn, só seria ohrigalorio, como já dissemos, para os que de facto
o tivessem celebrado, não obrigaria as gerações posteriores; —
d.° como bem observa Belime, segundo esta doutrina náo h a ­
veria direito do, propriedade entre os membros de sociedades
políticas diversas -, para aquelles que pertencessem á nacionali­
dades differentes, não haveria razão que os impedisse de des­
pojarem-se mutuamente ; — o ft> emflm, é evidente que aquellc
pacto ou convenção suppõe a propriedade já reconhecida como
legitima, do mesmo mudo que a primeira de que tratamos, para
ser sobre ella validamente feita.
Depois de Rosseau vieram lvant e Fichtc, que symphatisando
com a propriedade fundada em tal base, pretenderam dar a esta
doutrina uma face nova, dizendo que a occupaçào c a especifi­
cação das cousas, só por si não pódeni constituir o direito de
propriedade das mesmas, por que este importa da parte dc lodos
os homens, ou de todos os membros da sociedade, a obrigação
negativa de não violal-o, e que as obrigações pessoaes devem
ser resultado do consentimento mutuo, o qual se chama con-
vençào ; e esta faz-se, segundo esses authores, entre a liberdade
e a consciência de cada um.
Mas eis aqui o lado fraco d’esta doutrina. O que significa
essa convenção, como a concebem Kant e Ficiite,'entre a liber­
dade e a consciência de cada indivíduo no sentido de respeitarem
a propriedade alheia? Será isso uma verdadeira convenção?
ou antes sera verdadeiramente um facto do caracter convencio­
nal esse respeito que se tributa e deve-se tributar áquillo que
pertence aos mais? De certo qua não. W esse um aeto que
nada tem da arbitrário •, não é uma manifestação de livre assen­
timento pessoal, ou da vontade década um ; é ao contrario uma
annuencia a que todo o homem em sua consciência se sento
obugado, índependenlemenle de qualquer idéa de pacto ou con­
venção ; obrigação que lhe vem de um principio de lodo estra­
nho á sua arção ou participação, isto c, da própria legitimidade
já estabelecida do domínio, e que elle tem a convicção, que não
póde ficar a mercê de seus ajustes ou estipulações.
Julgam aquelles authores necessário estabelecer a couven-
ção como fundamento da propriedade, pela razão de que só
<l’alii póde provir-lhe o respeito dos mais, a obrigação negativa
de não perturbal-a. Mas si este argumento procedesse todos
os mais direitos do homem estariam nas mesmas condições;
todos elles teriam por fundamento uma convenção, porque Iodos
carecem para sua efiectividade de serem respeitados, ou que os
mais sob a pressão do poder social se abstenham de ofiender os
de cada um.
lista doutrina labora, pois, ainda em uma confusão do que
constituo o direito de propriedade em si, com o que eonslilue
a garantia c.\lerna de sua effcctividade, e além d’estns razões
são lhe applieaveis todas as mais, que já produzimos contra
a theoria precedente de que cila não é mais que uma simples
variante.
Km ultima analysô, como bem diz o Sr. Ahrens, <<o direito
em geral ó independente c superior á vontade e arbítrio de um
numero qualquer de pessoas, quer a sua vontade seja manifes­
tada por meio de um contracto, quér não;» e o do propriedade,
eomo lodos os mais direitos absolutos do homem, não póde nascer
de tal origem.
O segundo systema proposto para explicar o fundamento
jurídico (Ta propriedade, é o que a faz derivar da lei civil. Esta
doutrina tem sido adoptada por diversos pliilosophos ou publi­
cistas, entre osquaes nomeadamente, Montesquleu e lientbam.
Diz o primeiro na sua importante obra Espiritadas leis —
«que as leis civis adquiriram a propriedade para os homens,assim
como as leis políticas lhes adquiriram a liberdade.» O segundo,
no seu Tratado de Legislação— é ainda mais explicito ; elle diz
que » a propriedade e a lei nasceram juntas, e juntas m orrerão;
que antes da lei não ba propriedade; e que, tirada aquella, esta
ílesappnreccrã.»
Não distinguindo estes authores o facto do direito, a garan­
tia externa da propriedade da sua legitimidade intrínseca, o seu
principio applicado em toda a sua extensão lógica dá ainda em
resultado que fóra da lei civil não ba direito algum, pois que
todos elles se pódem rcalmenle subordinar, com a mesma razão,
áquellas suas asserções.
Assim esta doutrina, como a precedente, nnniqiiila todos
os direitos naturaes e absolutos do homem c arvóra a vontade dos
legisladores civis em regra unica da conducta dos homens nas
suas relações sociaes e reciprocas.
líspecialmente quanto a propriedade, ó claro que si é.a lei
civil que a faz nascer c ser legitima, si antes d’isso não tem cila
cm si mesma uma legitimidade natural c absoluta proveniente
d’outro principio, segue-se (pie ella será legitima por mais ab­
surda ou monstruosa que seja a sua organização, uma vez que
seja legal ou estatuída por uma lei do pai/, em que a considere­
mos ; e então .<não haveria, como diz o Sr. Abreus, dilíurcnça,
alguma entre a maneira pela qual ella é regulada no Codigo Na-
poleão, ou pelos decretos do Sultão.» Mas, acerescenta, com
ra p o , o mesmo nutlior, « assim como a consciência vulgar des-
tingue cnlrc o direito c a lei, assim também reconheço a dif-
ferença entre uma justa e uma injusta propriedade.»
O que ha de verdadeiro n'esla doutrina, é que a lei civil
proporciona, com eITeito, aos homens os meios de gozarem e dis-
pòrcm,com mais ou menos segurança e vantagem, (1’aquillo que
lhes pertence •, que ella faz cffecliva a obrigação que tem os mais
dc respeitarem a propriedade alheia, obrigação que comquanto
nem todos cumpram espontaneamente, comtudo, todos sentem
na sua consciência. O que é verdade, dnalmente, ú que a lei
civil ó a garantia indispensável da propriedade no meio dos
abusos ou excessos possíveis da liberdade individual, como é de
de todos os mais direitos do cidadão.
Mas é claro que a garantia de uma cousa para ser insta pre-
suppõe já antes de si a justiça da cousa garantida. A proprie­
dade, pois, para ser legitimamente garantida pela lei civil, deve
ser ja, antes e índependentcmeiUe d’ella, legitima em s i : pelo que
nao pode ser a mesma lei fundamento da propriedade como um
(In eito. O respeito que lhe é devido nao póde ser considerado
como simples resultado da lei civil que o impõe, deve sel-o ao
contrario como uma consequência neeessaria do principio que
autorisa tal preceito d’csta. e que seria sempre obrigalorio ainda
quando a lei civil, por uma aberração do que ba exemplos, o não
sanccionasse. ’
;,iM iÍ nV 01U.rinasubvcreiva’ cotno temos 'isto, da noção da
n a « n ^ l o Uia '''V?. Çaracterisa a propriedade, não tem ao me-
InLnH H 1 da ul.,lllladc pratica com que a apadrinham os seus
i f ' 5 - 'T ,qiU' «ageramlo-se a garantia que a lei civil
inesla <i piopriedado, em vez de augmimtar-se, diminue-se
o lespeito que a mesma lei deve inspirar, líelimc faz bem sobre-
i)ícs'ohrif ,liíb m k h !and0tl-ÍZ’ quc " «Prasenlar a lei como sim­
ples obra dos legisladores, e ensinar que antes d’ella não have­
i ia principio obrigalorio para o homem ; e compromctter-se
o lespeito que lhe o devido , e que a propriedade, primeiro ali-
coicc do ulihcio social,fieanu senipre ein peririgo th*
* ruina,
* si•' não
-
tivesse fundamento mais sólido do que a.vontade dos primeiros
legisladores.** ,
Si a justiça da propriedade não se derivasse senão d’essa
fonte arbitraria e mudável; si outra poderia ou póde ser a von­
tade dos legisladores sociaes quanto á sua organisação e carac­
teres que lhe reputamos essenciaes, porquê motivo aquelles
a quem essa organisação c caracteres prejudicam ou desagra­
dam, não haveriam ou não hão de tentar suhstituil-a por outra,
ou attribuir-lhe outros caracteres que mais lhes convenham ?
Não se poderia com justiça arredal-os do empregar lodos os
meios para determinarem n’esse sentido a vontade do legislador.
O que lhe pederiam elles? apenas uma propriedade dillê-
rente da existcnle, mas que seria igualmente justa, embora cf-
fecluada pela expoliaçáo dos acltiaes proprietários, uma vez que
o legislador nmiuisse aos seus votos, unica condição dc sua le­
gitimidade segundo este systema.
Ora, uinguein dirá que a sociedade liumanu ganharia com
semelhantes ideas difundidas nas massas populares, ou que tal
doutrina se rccommendc como verdadeirnineulc util ás associa­
ções políticas compostas de proprietários c proletários, de ricos
e pobres, e que assim o serão sempre pela própria necessidade
das cousas, c da liberdade do homem.
A prevalecer semelhante doutrina, é claro que a proprie­
dade seria legitima ainda quando a lei civil que a estabelecesse
fosse uma monstruosidade imposta ao legislador pela violência
popular, ou (ilha de seu proprio arbítrio. File poderia demais
impòr-lhe em qualquer lempo as condições que bem lhe approu-
vesse, sem pécha de injustiça; c então em ycz de ser a lei a mais
sólida garantia da mesma propriedade, seria uma macliina ter­
rível contra cila constantemente.asseslada.
Finalmente, onde não houvesse lei civil, ou onde cila fosse
a vontade e a força de cada indivíduo, não haveria quer o lacto,
quer o direito dc propriedade, pois que^ seria legitimo tudo
quanto se adquirisse esc pudesse guardar ainda mesmo pela vio­
lência c pelo latrocinio, assim como poderiam justa e conscicn-
ciosamenle despojar-se uns aos outros todos aquelles que não
vivessem sob uma lei civil commum. « Segundo estes princí­
pios, observa ltelime, os Árabes que saqueiam as caravanas no
deserto, exercem a mais honesta das profissões.» '
Diremos ainda, que si a propriedade só c legitima em razao
da lei civil que a garante; si essa lei não ó o reconhecimento
c a realisação dc um direito anterior e natural, de mna justiça
absoluta, em que a mesma propriedade assenta, todo aquelle
que poder illudir os effeitos materiats, a saneção penal da lei,
ra/ao uiuea pela qual esta se impõe, e a propriedade existe, «ada
mais terá de que accusar-se na sua consciência usurpando ou
oflendendo o allieio. Assim toda a conducta de catla um em
relação á propriedade dos mais consistirá em saber violal-a com
geito para que os executores da lei o não presinlam, e não pos­
sam os tribunaes sociaes punil-o. O roubo, o furto não serão
mais crimes senão quando os seus autliurcs se deixarem pegar
pela policia.
Um ultima analjsc, si a propriedade não fosso justa cm si
mesma, si não tivesse outro fundamento jurídico anterior á con­
sagração da lei civil, esta por mais rodeada que fosse dos meios
de vigilância e coerção, seria incapaz de mantel-a de um modo
clllcaz c permanente. São, com efleito, violadas a cada instante
e caducam cm breve todas as leis humanas ou codigos sociaes,
cujas disposições não encontram um apoio na convicção, no
sentimento da sua justiça, senão em todus, ao menos cm grande
parte dos membros do fcstado para que são feitas.
. Sobre a matéria dos direitos absolutos do homem, onde não
e permittido arbítrio ao legislador social, nenhuma lei que te ­
nha outro fim a não scr o de rcconheccl-os c garaiitil-os, taes
quaes elles são pela natureza, pode sustentar-se ou resistir por
muito tempo á acçao da consciência publica, ou ás luzes da scien-
cia, que dá o conhecimento da organisaçáo moral do homem.
L IC 3 A C X X I

§ 50

Continuarão: — dos diversos systèm es sobra o fundamento da


propriedade ; - syslevui da especificação ou do trabalho

Hcsla-iios tratar tio systema tl’aqueUes que dão por funda­


mento ao direito de propriedade a especificação ou transforma­
ção das cousas pelo trabalho ; m atéria de que se occupa o Com­
pendio no § 50. r
Este systema tem sido abraçado pela maior parte dos eco­
nomistas modernos, e tem mesmo obtido dos próprios escrip-
tores de Direito Natural uma especial benevolência aliás recu­
sada aos mais. Ahrens diz : « que elle desembaraça ao inenos
a propriedade das hypothèses gratuitas de um estado natural
primitivo, ou de uma convenção subsequente, e que cm vez de
tornar a propriedade dependente do acaso, a lundu em uni lacto
constante, que subsiste em todo o tempo, e em Ioda a parte,
isto é, na actividade hum ana.;> Assim é, com eíTeito, e ainda
mais, este systema póde até considerar-se verdadeiro applicado
na conveniente medida, e ao objecto que lhe é proprio, como
afinal veremos. Elle pccca, porém, pela extensão que lhe que­
rem dar os seus authores, u pela matéria a que o applicam ;
e n’estes termos a sua falsidade é tão manifesta e tão completa
como a dos mais que temos precedentemenle refutado. Pois que
da mesma forma que estes, elle não faz mais do que deduzir de
um facto, embora muito importante e intimamente ligado á pro­
priedade. um direito que de nenhum modo póde nascer d’elle ;
de um facto que em vez de puder ser proposto como base jurídi­
ca d’aquella, não é senão já a fórma geral de seu uso ; ou que em
vez de puder legitimal-a, ao contrario já a presuppõe legitima.
0 trabalho humano applicado ás cousas accrescenta muito,
si assim nos podemos exprimir, á legitimidade do seu dominio;
será até certo ponto uma condição indispensável de sua perma-
J7 F.
130

nenchi e certeza ; será liulo em relação ao mesmo, menos o seu


principio,ou ofundaraento de suajusla acquisiçãoe conservação.
I-’ uma verdade iuluitiva, <iuc não podemos conscienciosainente
applicar a nossa aetividade individual sobre objeclos que não
nos pertençam ; e por conseguinte que para ser legitima a as-
peciflcnção ou transformação d’estes por alguém, é preciso que
essa especificação ou transformação tenham já antes de si nlgnni
titulo que as aulliorise a respeito dos mesmos, isto é, que ellas
sejam posteriores a propriedade das cousas sobre que se veri­
fiquem. '
liste systema subordina-se até necessariamente ao da occu-
paçao anterior, é obrigado a invocal-a como urn facto sem o qual
nao póde suster-se, desde que nenhum trabalho poderia ser, -
não diremqs já legitimo, mas simplesmente possível, si,a occli-
pação nao o precedesse. De maneira que tal doutrina por si
propria se disvirtua, e revela-se não ser outra no fundo, senão
a mesma da occupaçao auleribr que adoptainos como a unica
c,verdadeira n’este assumpto.
D’ isto mesmo que nos quer fazer sentir o Sr. Alirens quando
nos diz, que essa doutrina « apoia-se na occupaçào, eorn a dif-
1crença unicamente de considerar esta como primeiro facto tia-
mal da posse, o qnat precisa do traballio para assumir a cathe-
gorja de direito. 1*. ainda o mesmo pensamento de Kant <>que
tval)alb° « a posse, » como a especificação da cousa, e que
por conseguinte, tanta razão lia para fundar-se a propriedade
i„i , '1CCI icat a° oo transformação das cousas como na posse,
Cp . ia °oeupação -, sendo aliás certo que esta deve ter a prê­
ter iu,*ai-1'° l(1UC Cum fa':to antei ‘or sem o qual aqueila não pode
bem Ivnmfnndi basêa-se, pois, em um mauifesto qui pro quo ;
s l f ! ? • 0 ®envol'i®uina Puni questão de palavras,
p " “ Cûm na essencia o mesmo da occupação anterior,
ris do 0mea “.ien Udlversod cste ; para Poder pretenderas lion-
vfro ou Syst*ma '“ ovo sol)re 0 fundamento da propriedade de-
d e s i i Û ^ f f 1' mteiramente da occupaçào e ir até ao ponto
ílollm dò todas as usurpações do nllieio, uma vez que o tra-
, usurpador as viesse legitimar. Então esse systema
en sás n v ii °,8'C0’ "'us uiuda applicavel quér á aequisição das
nin > o ‘ tef naa mãos dos primeiros occupantes, quér á de
i f f i objeclos adquiridos em qualquer tempo, ou por qual-
modol hi ’ C,P?’ que,n qu(ir ‘lue fusse. A distineção entre os
.Pes o f.""led'a,° l raetliat0 dti adquirir as cousas não teria,
nullhiK i' miJaz8r c .e sf l 5 todas estas sc poderiam considerar
• • sfeeptiveis de adquirir-se por um unicò modo que
seria sempre legitimo, ainda mesmo consistindo na rapina e na
violência.
Na verdade, si o trabalho sobre as cousas é o meio jurídico
de sua apropriação, que importa para a legitimidade dá ac-
quisiçáo das mesmas que ninguém se tenha ainda apropriado
d’ellas, ou que já pertençam a ulguern, si este fòr negligente,
si sobre os objeetos existentes na sua posse não apjdicar o tra­
balho ou a quantidade dVste necessária para justifical-a? Aquelle
que melhor puder trabalhar sobre algtur.a cousa, ou melhor es-
peciíical-a ou lransformal-a pela sua industria, deve, segundo
este systema, ser preferido no domínio da mesma, si lhe ap­
prouver fazei-a sua-, e de Direito a terá realmente adquirido,
desde que de facto a tiver melhor especificado ou transformado.
O sen actual possuidor nenhum direito terá de repellir áquella
prclençào, nem de reivindicar a sua propriedade, Mas o que
se diz d’este, pode-se dizer a respeito de todos os mais que se
lhe sigam na posse de alguma cousa ; e assim a própria especi­
ficação não seria jamais,um titulo seguro e definitivo para o do­
mínio de qualquer d’ellas, e a propriedade deixaria Ue ser um
direito.
Tal doutrina, em summa, assenta no principio de que ailles
da transformação pelo trabalho ou sem cila, não existe o direito
de propriedade; mas si assim é, o prnprio transformador não
adquire lcgitimãinente o uhjecto transformado, pois que de facto
a sua aequisição precede ao seu trabalho.
Por qualquer lado, pois, que se analyse esle systema, desde
que elle deixe de ser o mesmo da oceupação anterior, ou de apa­
drinhar-se com cila ; deSde que deixe de entender por trabalho,
especificação, ou transformação sufflçiente das cousas o propriu
acto da primeira oceupação d’estas, envolve a anniquilação de
toda a idéa de legitimo dominio ; e dá ern resultado a sua pro­
pria conderrmação. E laulo é isto certo, que os seus sustou—
tadores resignam-sc a passar antes por inconsequentes, do que
a applical-o ás cousas já existentes no poder de alguém por um
simples acto de oceupação anterior, embora desaproveitadas ou
não exploradas pela industria especificuute ou transformadora
de seu possuidor.
Estas mesmas considerações expostas prestam-se ainda
a novos desenvolvimentos em sentido desfavorável ao systema
em questão.
Si a applicação do trabalho sobre as cotisas fosse, o funda­
mento jurídico de sua apropriação ; si este trabalho tivesse
a virtude* de converlcl-as em legitima propriedade do seu nppli-
eador, imlepemlcmeute de qualquer outro titulo ou condição;
.1 acquisiifiio das cousas não teria outros limites senão a activi-
d ade de cada indivíduo em antagonismo constante com a dos
mais : tudo quanto cada homem pudesse transformar pela soa
industria, por qualquer meio. ou cm quaesquer condições, seria
legilimamente seu. Mas. além de envolver este principio, como
acabamos (le ver. a mina de toda a propriedade quér imrne-
diata, quér mediata,' toda a idea de legitimo dominio, accresee
que por outros lados e directainente sc reconhece a sua falsi­
dade. Pois que. é realmente incontestável, não só que lia cousas
que púdem ser de facto especificadas ou transformadas pelo tra­
balho de alguém, e que este, entretanto, não póde fazer legiti­
mamente suas; mas também, que outras cousas ha que seus
possuidores não possam efiectivamentc submetter ás transfor­
mações espoejaes do seu trabalho, sem que por isso deixem de
ter sobre cilas um justo dominio. Suppondo-se. por um lado,
como diz o Sr Ahrens, uni terreno nullius, que um só homem
pudesse cultivar, rnaS que fosse capaz de produzir fructos bas­
tantes para trez, e que a população do lugar estava em relação
aos occupantes de terras, como trez para um. não seria justo
desapropriar-se os dous terços d’aqdella. somente porque uni
terço podia aproveitar aquetle terreno ; e por outro lado que
importa que alguém não possa realmente lavrar tal ou tal ex­
tensão de terreno, ou imo queira desfmctal-o d’este modo, si
o póde fazer por outros muitos sem dam no ou offensa a alguém ?
f.lfin'f ',Cll,rle ' 0’ a,-rcn(la>-o, trocal-o, ou fazel-o objeclo de uma
nl n.dade de transaeções de onde llic pódem provir tantos e tão
MTnPr l^ f , g0l-0S/ ,., .Víinía8eT,s>nuantas de seu real cultivo, ou
nW i Sl .a i; inc,lsPensavel que assim seja, desde que
vadbr« ni t qUÍ> l0< °f °f ll0rrtens sejam proprietários e culti-
de,.te'.ras’ tenliam mesmo a aptidão industrial ne­
. . . aua paraa transformação das cousas existentesna sua posse,
•1 resonUn a eriS 1Ca’ 1>aia llies conleril% segundo este systema,
tesíavel! à ? m(ismas 011 dc sua Propriedade, um titulo incon-

s e r e i S i d Sn mSle'U,a dorf d,o»te systenm, que elle não deve


oar*0 0l], - 1n'oco P?'° *l»al o temos considerado? Allega-
macãoqdasrnnRnel''U5am a ProprWade adquirida pela transfor-
mos limites? S destas pelo trabalho, os mes-
na anterior occm ivin) se !!Ur,1)l1e !i 1»ropiitídade fundada
e o « K i 7 ! % S mZ ^ m u \ ° C.eUr t £
especificação ou transformação para .outrem,' oVmiMepois de
occupadas taes cousas, não é ,mais preciso para manUtr-sea sua
propriedade uma transformação ou trabalho e s p S 0u assi-
<luo ? Pretenderão que dada a occupação, oí açtosque a consti •
toem, ou aquelles que acima Indicamos, as diversas transacções
possíveis do possuidor em relação ã cousa possuída, equivalem
a essa transformação ou trabalho justificativo da propriedade,
e que a supprem ou a constituem ?
Mas se assim é ; si a propriedade fundada no. trabalho sup-
põe os mesmos limites jurídicos da que se funda na occupação
anterior; si uma vez occupadas as cousas, não é preciso para
ter-se e manter-se sobre cilas legitima propriedade, uma espe­
cificação ou transformação particular, consistente em um tra­
balho mais ou menos continuo, c considerável; si essa especi­
ficação ou transformação verifica-se pela simples posse e factos
que a constituem juridicamente, ou por quaesquer d’aquelles
actos acima indicados ou outros semelhantes do possuidor sobre
a cousa ou em relação a cila; então razão temos para insistir,
que nenhuma differença ha realmente entre este syslema co da
occupação anterior, senão que este dispensa o principio ou facto
que aquclle invoca, e que aquelle não póde dispensar a base em
que este assenta.
Concluiremos, pois, que, ou esse syslema é, com eífeito,
o mesmo que deriva a justiça da propriedade da prioridade da
occupação das cousas, apenas, disfarçada sob uma denominação
diversa, ou então c tão inacceitavel como os mais que já regei -
tamos.
O trabalho nobilita certainenle o homem u sobretudo, vi­
vifica a propriedade extraliindo «Telia todos os benéficos c ma­
ravilhosos resultados de que ella é susceptível, e a que sc des­
tina; mas não póde fazer nascer, um direito que elle proprio
presuppõe, nem dar a aquelle uma legitimidade que ao con­
trario, só póde receber (Telia. Não c "admissível, em caso al­
gum. sem flagrante transgressão da lógica, considerar-se como
fundamento dc alguma cousa nquillo que é (Telia consequência,
ou como origem de um direilo, o que é evidentemente já o seu
exercício/
Entretanto, como dissemos no começo d'esla nossa licção,
este syslema se póde admittir como verdadeiro, applicado nos
limites e no terreno que lhe são proprios. Si elle é insustentá­
vel, absurdo mesmo, applicado á aequisição das cousas propria­
mente ditas, ãs cousas susceptíveis de real occupação e dominio,
ou á propriedade tomada em sua verdadeira evestricta accep-
ção, deve comtudo ser acceilo com applicação limitada á outra
ordem de cousas, ou a outra especie de propriedade.
Não se póde realmcnte contestar que o trabalho seja n fun­
damento jurídico da propriedade das cousas quo cada indivíduo
créa ou produz pela sua aelividade ou industria pessoal. Mas
n’estes casos trata-se antes de uma propriedade immaterial,em
que se não dá o dominio propriamente dito, como seja o direito
dos aulhores de uma obra scientific», littéraria ou artística, ou
de uma descoberta, sobre a sua produeçáo ou invento, e quaes-
quer outros analogos ou da mesma natureza, Então o que se
tratade justificar é apenas um direito d’aquelles sobro quali­
dades ou proveitos da cousa produzida ou inventada. Embora
estas qualidades ou proveitos sejam intimamente ligadas a al­
guma cousa material, e o seu gozo supponha a necessidade da
posse d’est'a, comtudo não é a propriedade de tal cousa em m
mesma, o qu'e então sc affirma. Essa ou a do objccto material
a que se applicou a activUlade ou industria de alguém, isto o,
a legitimidade do seu dominio sobre ella, sò vem á questão,
n'esses casos, de urn modo accidentai ou secundário.
O trabalho sobre as cousas ou a sua transformação P01’
meio d’elle, longe de nos darem a propriedade d’aquellas sobre
que elle recáe, não nos dá. mesmo nos casos a que alludhnos,
senão um direito, ou se o quizerem, senão a propriedade dos
seus proprios produetoa, ou das vantagens que d’elles possam
ser auferidas peto author do trabalho ou da transformação ; p í°'
priedade que póde ser ligada, sem duvida, á d’aquellcs objeetos
materiaes a que se appliquera ou em que se verificam, mas que
não se confunde com ella, e muito menos pótlc ser o que justi­
fique a sua aequísição nos casos eut que a determina.
Assim o esculptor que faz uma estatua primorosa com
o mármore bruto alheio, ou o pintor que traça um quadro su­
blime cm insignificante téla de outrem, fsi adquirem um o már­
more e o outro a téla, não é certamente pelo seu trabalho, ou
não è este o rundamento do direito que se lhe attribue sobro
»quelles objeetos alheios. O que o seu trabalho verdadeira­
mente lhes adquirio foi aquella forma primorosa, e uquelle de­
senho sublimo -, a aequísição do mármore e da téla, a que essa
turma e desenho se ligam, por parte do esculptor c do pintor,
explica-se por outro principio, lem outro fundamento jurídico,
que mais adiante leremos occasion de expòr. >_ .
I' :ll.nda por este mesmo principio que se explica a legiti­
ma piopriedade material dos fruclos d’aquillo que já era nosso.
N este mesmo caso não é propriamente o nosso trabalho sobre
estes, mas sobre a Cousa que os produzio, e o direito já sobre
ella adquirido, seja pela occupação, seja por qualquer modo me­
diato. o que nos dá o seu justo dominio.
1'óra de taes easos e de outros analogos, nos quaes ainda
pelo principio a que alludimos, a cousa alheia passa ao dominio
V ' • • .

455
d’aquelle que a transforma, c ainda assim mediante as necessá­
rias indemnisações, em .todos os mais essa transformação do
que não éseu„do que pertencia a outrem, embora a simples ti­
tulo de occupação anterior, não só não dá direito algum ao trans­
formador, mas até o constitue um usurpador, um criminoso.
E’ o que nos dizem os sãos princípios do Direito, e o pro­
prio bom senso, contra o qual não valem os systemas, por mais
engenhosos ou seduetores que pareçam.
C U ’lTljCO U

EOS DIREITOS EEKMEN LAKES t>0 ÜOMISIO ; — E 1)1VICKSAS l.Sl'EOIi>


O’ESTE • — DOS CONSECTAIUOS JURÍDICOS DU. MESMO

, L IC Ga îiO -JL7LZZ

§§ 57 — tv2 , -

Dos direitos que se contém no domínio ; — e dus diversus cS


pecies d’este

N’este capitulo o Compendio, depois de e\pòr-nos nos p '1'


rneiros paragraphes os direitos quo constituem a noção com '
plexa do dominio, e as diversas especics d’este admittidas n
Direito, trata, nos mais, dos variados e importantes consecta-
rios jurídicos do mesmo, e das questões que em relação a algUns
d’elles se suscita, ou são contraverlidas na sciencia. .•
Diz-nos elle no § 57, que consistindo o dominio, corno ja
vimos (§ -il), no direito de dispôr-se de alguma cousa com ex­
clusão dos mais, deve ser elle para quem o tenha, uma faculdade
moral de praticar na mesma, ou por meio d’ella, todos os actos
que não offeudam direitos de outrem -, e que por tanto, dev
o dominio encerrar em si tantos direitos particulares, quantas
sejam as diversas especies de acções, que o dono possa legititf>a'
mente exercer em relação ás cousas que lhe pertençam.
Esses diversos direitos contidos no dominio, se reduzem
principalmcnte a trez, a saber : o direito de possuir, o direito de
gozar, e .o direito de dispòr d’aquillo que constitue o seu objecto-
0 dono de uma cousa tem, com elíeito, e deve ter, antes
de tudo, o direito de possuil-a. \ posse, porém, que acompa*
nha o dominio, ou que é um elemento constitutivo d’este, coroo
, ‘ I
, . *

«
hem observa o Compendio, não se confunde propriamente com
o direito natural que tem o homem de apossar-se das cousas,
o qual precede.ao mesmo dominio, nem se confunde lambem
com o simples aclo da apprclicnsão inicial das mesmas, isto é,
com o acto material por onde aqucllc direito começa a realisar-
se externamente. Consiste essa posse no direito que tem, e deve
ter o dono de um objecto de retel-o cm seu poder de um modo
exclusivo c permanente, de conseíval-o sob a sua acção, quer
material, quér. virtualmente, de maneira ã poder dar-lhe em
qualquer tempo ou quando hem lhe convenha qualquer applica-
ção ou destino.
L)a posse assim considerada nascem, como nos diz ainda
o Compendio, para o dono da cousa, os Irez seguintes direitos
1.“ o de excluir a qualquer outrem de igual posse da mesma
cousa, ou de qualquer de suas parles ; o que . realmente assim
deve ser. visto'que a posse não exclusiva c de todo incompatível
com a idea, e çom os direitos qiA onstitucm o verdadeiro domí­
nio. Não seria verdadeiramente nosso aquillo sobre quo outros
pudessem exercer, embora em concorrência com noseo, actos
de senhorio ou de proprietário ; — 2.° o direito de preservar
a cousa de toda a acção dos mais, e por conseguinte, de guai-
dul-á,escondei-a, rodeal-a de quaesquer outras precauções para
que só elle a lenha em seu poder, e impeça os mais de ter n ella
, ou no seu uso qualquer participação. Sem isto seria lambem
incompleto ou impossível o exclusivismo que ú proprio do do­
mínio. Para ter-se o direito pleno de rcler-sc alguma cousa em
seu poder, é indispensável, sem duvida, 1er-se a iaeiildade de
empregar esses ou quaesquer outros meios ou actos adequados
a prevenir que ella veuluv a cahir no poder de outrem ; c .1.“ cm
ílm', o direito de recobrar o dono a’cousa quando outrem a rete­
nha sem o seu consentimento. Sem istu c evidente ainda que
o dominio. como o lemos dclinido, não teria realidade alguma ;
elle seria vão depile que só subsistisse em quanto o seu«,objecto
se achasse realmeole rias mão de seu dono. F.m vez de um di­
reito, tal supposto dominio n’essas condições, seria antes uma
provocação constante aos ataques e arbítrio dos mais.
Em summa; reter a cousa de um modo permanente, ex­
cluir os mais do direito de relel-a,c rcliavel-a o seu dono quando
subtraliida ou separada de sua pessoa ou patrimônio, tacs são
os diversos direitos particulares que constituem a posse, pri­
meiro elemento do dominio.
0 segundo dos direitos contidos u’este, consistente na tacui-
dade de usar da cousa, que d’elle é objecto, decompõe-se, por
sua vez, nos seguintes : — l.° o dc servir-se d’ella aqucllc que
18 F , ■
I
158
a tem para quaesquer fuis, que llie convenha e forno lhe con­
venha , e 2.° o de usufruil-a propriamente, mi de perceber os seus
Iructos ; direitos estes que comprehendem ode desfrüctara cousa
por si mesmo, o de alugal-a, de emprestal-a, de hypothécable
ou de ohrigal-a de qualquer outro modo ; c o mesmo a respeito
de seus productos.
O dono da cousa póde, com effeito, e deve 1er a faculdade
de praticar env relação a mesma todos esses aetos, a de abster-
se de qualquer d'elles, e com maioria de razão, a de vedal-os
aos mais.
Como bem observa o Compendio na primeira de suas notas
a este paragrapho o uso da cousa por seu dono é justo, ainda
quando elle possa ser incommodo a outrem. K’ possivel em al­
guns casos, que o uso natural e legitimo d’aqnilto que é nosso
traga a outrem alguma desvantagem : mas isto não póde ser
razão panique este uso nos seiaimpedido. Não póde sel-o com
justiça em quanto não offenda»rectamenle direitos d'este pre­
existentes, incontestáveis, ou que por algum principio jurídico
devam ser por nquellc respeitados, ou ao d’elle, preferidos.
A estes diversos direitos constitutivos do uso e gozo da cousa
accrescenla o Compendio no § 59, a faculdade de alineal-a ;
»nas esta entra mais propriamente na ordem dos direitas de que
trata o mesmo Compendio no paragraplio seguinte.
Occupa-se elle n’este paragraphe* do direito que tem o dono
da cousa dc‘ dispor d’ella, ou de sua substancia ; direito que
constitue a terceira cspccie d’elles contida no dominio. Decoin-
poe-se esse direito nos seguintes : — 1.»o de transformar aquelle
as cousas.que lhe pertençam do modo que lhe parecer conve­
niente aos usosou vantngensque d’ellas possa tirar,transformação
n <i qual também não ha oulro limite fora da sua vontade livre,
senão aquelles a que ba pouco alludimos; pelo que póde cila ir
ale ao ponto d’elle alteral-as de modo que se tornem inteira—
incote diversas do que eram antes ; — 2.» o direito de alienar
a cousa propria a titulo oiieroso ou gratuito, com ou sem cou-
1 1toes dando-a, li ocando-a, venderido-á, etc. l>e outra sorte
‘í 1 C0,1Síl na° Scria 0 ''»minio, mas uma simples
• n, nen iU uso 1uet.° i — 3 a o direito de consumir ou destruir
6 ,,ue se '' donoi e deve ®6r isto, com etleito, um di­
reito d este, uma vez que consumir ou destruir aquellas não õ,
cm ul ima analyse, senão o mesmo facto de usar d’ellus. embora
jazendo desapparecer a sua substancia, ou antes, senão trans­
tormal-as, embora d'e um modo mais radical.
, Quanto á ju i.meira das sobreditas faculdades nenhuma duvi-
ca se ollcrcce, puis que trata-se de cousas que se suppoe destina-
Jas por natureza a ser consumidas, o que só assim pódcm ser
usadas ; quanto, poYém, á segunda, ha qtiem pretenda limita-a
de modo inadmissível. Ò proprio Compendio na sua nota a este
paragraphe diz-nos que « destruir as cousas por mero capricho,
com quanto não seja uma. acção injusta, é com tudo immoral,
porque Deus creou as' cousas para usarmos d’eltas e não para
as destruirmos; e porque destruindo-as ofVeiidemos a Dcus,e nos
privamos dos meios de cumprir nossos deveres para cumnosco,
e os de beneficeneia para com os mais.» São, porém, inaceei-
taveis estas idéas. 1’rimeiramente, destruir as cousas que po­
dem ser para nós ohjecto de dominio, não é propriamente aii-
niquilal-as ; c em segundo lugar o que então destruímos não é
propriamente o que foi creado por Deus, mas pelo nosso traba­
lho, ou pelo de outrem que legilimamente adquirimos ; é apenas
a forma sob que existia actuaímoiilc a -cousa, e que passou a ser
outra. D’esta asserção 'se poderá quando muito exceptuar as
çousas ou seres dotados de. vida, que nos pertençam ; pois que
destruindo-as fazemos, com eífoito, desapparccer alguma cousa
creada não pelos homens, mas pelo aiithor da Natureza ; e sere­
mos então immoraes, si o fizermos .sem a justificação da neces­
sidade.
Fora d’estes casos a destruição de quaesquer outras cousas
por seu dono não póde de modo algum ulfcnder a Divindade.
Não se comprchendc como esta possa realmenle ser ofiemiida
pela destruição mesmo caprichosa de um prédio ou lavoura
nossa. O que. não nos é pmnitlklo é destruir o que é nosso en­
volvendo n’essa destruição damno ou lesão a algum direito
alheio. Despeitado este, é licito a cada um destruir o que lhe
pertença, sem (pie se possa objectai1 a isso com a impossibili­
dade em que o seu dono venha a aehar-sc de cumprir os deveres
que tem para comsigo ou de beneficiar aos mais, l’ois que,
mesmo segundo a Moral, os deveres de cada um para comsigo
não suppõem necessariamente a condição de proprietário ; e nem
por ella é alguém obrigado a fazer-se ou a conservar-se proprie­
tário para melhor cumprir esses deveres ou os de benelleencia.
Cada indivíduo os tem, e deve cumprir, apenas segundo as con­
dições em que se ache collocado, quér seja pelo acaso, ou for­
tuna, qnér seja por aclos dependentes de sua vontade que não
contrariem a justiça. A doutrina do Compendio, na citada
nota, levada ás suas ultimas e lógicas consequências dá em re­
sultados de lodo inadmissíveis. Por quanto, si ti immoral aqyelle
qué destróe uma cousa sua, que poderia converter (imbeneficio
dos necessitados, immoral deve ser todo o rico ou proprietário,
ou miles immoral deve ser toda a riqueza, desde qucaquelle que
MO
a possue, tendo meios demasiados para a satisfação de, suas ne­
cessidades communs, não a distribue com os pobres ; desde, em-
fim, que cada um não procure nivelar as soas' posscs com as
de todos os mais por acto espontâneo. Seria isto a subversão
social pelo communismo.
Aquelle, pois, que entende dever destruir tal ou tal cotisa
sua, ou porque encliergue n’issu alguma utilidade que escape
aos mais e de que só elle é juiz, ou rnesmo por méro capricho,
nenhuma offensa faz, quer ;i lei do justo, quer á lei moral.
Quapdo muito, si o seu acto é de tal naturesta ou revestido de
tacs circunstancias, que de nenhum modo possa ser explicado,
poderá o seu author ser considerado um predigo, um maniaco,
nu um louco, c p’este caso cumpre á lei social, ou a quem pôr
hircilo fôr para isso competente, providenciar como convenha.
Em quarto lugar, finalmentc. contém-se no dominio, o di­
reito de abandonar a cousa de que se é dono, direito que não
solfre cnntestaçao desde que, como temos mostrado, o dono de
uma cousa pôde^ dispor d'ella, como lhe apraza, póde alienal-a,
consumil-a e até destruil-a. Eóra absurdo impedir-se ao pro­
prietário a faculdade de abandonar alguma cousa, que não lhe
conviesse mais conservar na sua posse o dominio. Ninguém
póde ser obrigado a usar de uru dircilo, o qual c essencialmentc
uma Iacuidade que a lei lhe garante em sua \ aniagem, mas que
mio lhe póde ser imposta em seu detrimento. Salvos apenas
os casos em que esse abandono ollende directamcntc direito
alheio que deva ser respeitado ou preferido, em todos os mais
e licito ao dono dc uma cousa abandonal-a quando queira no
todo pu envparfe.
Àccrescenta o Compendio qué o dono de,uma cousa, alem
de podel-a abandonar absolutamente, póde também cedel-a
a outrent no lodo ou algum dos seus direitos principaes ou deri­
vados do seu dominio sobre a mesma, o que é ainda incontésiavel
desde que isso não é senão o mesmo direito de alienal-a no todo
ou em parte, de que acabapios de tratar, e que alli tinha o seu
lugar mais proprio. *
, dominio de. que ternos fallado ó o dominio pleno a que se
re eieo .ompendio no principio do §61, dominio no qual os di-
veisos direitos que o constituem competem todos c em toda
a sua extensão a uma uuica pessoa physica ou moral, não tendo
ern qualquer d elles outra pessoa parte alguma. Mas segundo
nos diz o mesmo Compendio na continuação do citado para­
graphe, o dominio póde ser lambem menos pleno, e limitado.
Elle e menos pleno quando os principaes direitos que o consti­
tuem estão divididos, compelindo o direito á substancia da

\
cousa a uma pessoa, c a outra o direito á posse e uso da mesma,
o .que se verilica nos casos de emphyteusis, afdrnmenlo perpe­
tuo, etc. O dominio do primeiro chama-se dominio directo, e o
do segundo dominio u lll; e,como se vò, nenhum d’elles é com­
pleto em relação á cousa. O senhorio directo póde dispòr do
seu direito sobre esta, aljcnal-o de qualquer modo a outrem ;
mas o senhorio util conserva sempre o seu cm relação á sua
posse e uso da mesma, mediante o encargo do pagamento do
litro estabelecido. Este póde igualmente alienar o seu direito
a outrem, com a obrigação, porém, de dar a preferencia ao se­
nhorio directo, se elle o quizer. Quando o dominio directo
e o util, por qualquer motivo, se reunem na mão de qualquer
d’aquelles, ou na de um terceiro, o dominio se consolida, e tor­
na-se pleno.
O dominio é simplesmente limitado, como nos diz o Com­
pendio, quando alguém tem sobre uma cousa algum direito que
restringe a liberdade do senhor da mesma, como seja um di­
reito de penhor, de hypothecate servidão ; ou como cm rela­
ção ao uso das aguas de um rio que atravessa differenles pro­
priedades agricolas, o direito dos donos das propriedades supe­
riores á respeito dos inferiores. Aquelles não podem desvial-as
para seu unico uso, ou utilisal-as exclusiva men te, si cilas são
necessárias aos mais, epódrm servir-lhes sem seu damno.
Ainda de outro modo póde ser limitado o dominio, tal
seja nos casos em que, em vez de ser elle singular ou de uma só
pessoa, competa a diversos; o que constitue a co-propricdade,
ou corulomino de que traia o Compendio no § (5-2. Este dá-se
quando dilTerenlcs indivíduos tem parte em uma só cousa indi­
vidual, ou indivisa •, estabelece-se, como nos diz o mesmo Com­
pendio, ou pela oceupação simultânea de uma cousa nnllius, ou
por consentimento ^ivre,,gratuito ou oneroso de seu primeiro
dono unico ; ou, accrescenlaremos nós, por outros meios inde­
pendentes de tal consentimento, em virtude, de alguma razão
jurídica que a isso o obrigue.
K’ claro que o condomino não póde ser cm tudo regulado
pelas mesmas regras do dominio singular. Quando a cousa
é de um só, póde esto usar c dispòr d’e)la com toda a plenitude
dos direitos que constituem o dominio; desde, porém, que
outros tem os mesmos nu quaesquer outros direitos sobre a mes­
ma cousa, cada um d'elles, por maior que seja a sua parle n’ella,
não póde legitimamenle exercer a respeito do todo, sem an­
il uen cia dos mais, todos aquelles direitos.
O direito exclusivo á posse e uso cie lai cousa não reside
então em cada um dos condoininos tomados separadamente?
mas no seu conjuncto ; pois, como nos diz ainda o Compendio,
« do dominio assim estabelecido resulta uma communhão çm
que o direito década um é restringido pelo dos mais.»
O que em consequência d’este direito póde cada um justa­
mente pretender, é apenas uma parte proporcional nos seus
productos; e quanto á substancia da cousa cm si, a faculdade
de dispor indeterminadamenle da sua quota parte da mesma.
Communs e proporcionaes devem ser igualmente quaesquer
omis ou despezas de conservação ou utilisação da cousa; e sua
administração, quanto possível, de accórdo entre os interes­
sados - •
. O condomino, como se vê, é um grande omis para a pro­
priedade, é contra a sua essência, é um entrave que só por in­
declinável necessidade se póde Supportai- n’ella ; deve, pois
cada um dos consenhores ter o direito de pedir a divisão do
objecto commum ; e quando essa divisão seja impossível, o de
pedir que tal objecto seja consignado todo a um só d’elles, que
reponha aos mais o valor das partes respectivas; ou que seja
o mesmo vendido e repartido o seu preço na proporção d’estas.
Com quanto o Direito Natural forneça tle um, modo geral
as regras que acabamos dc indicar ralativas a esta matéria com-
prehende-se facilmente que ella só póde ser bem regulada cm
seus detalhes pela lei civil. •
FACULDADE
DE DIREITO

Digitalizado pelo Projeto Memória Acadêmica da FDR -UFPE

LICOAO
9 Z Z III

% §§ G3 — 65

Direitos e obrigações entre o dono, c o detentor ou possuidor

Do dever geral negativo que tem lodos os mais de não li­


mitar ç justo exercício do direito de propriedade ou de dominio
de cada um, faz o Compendio no seu § 63, derivar a obrigação
de nos abstermos de usar d’aquelles objeclos que pertencendo
a outrem vem a cahir em nosso poder por qualquer circdtnstan*
cia, e de os não retermos, ou occultai os ao seu dono. Assim,
não podemos licitamente proceder d’esse modo a respeito
d’aquiilô que adiamos perdido por alguém, ou abandonado tem­
porariamente ou por necessidade da occasião.
Com effeito, o objeclo pertencente a alguém que por qual­
quer d’esses motivos ou outros de Igual natureza, sálie do poder
de seu dono, não deixa de ser tão seu, como o era antes ; o seu
dominio sobre elle conserva-se intacto. Áquelle, pois, que
achando-o, ou caliindo elle por qualquer modo em suas mãos,
o sabendo que pertence a outrem, o occulta a este, pratica um
acto de má fé, senão um furto, pelo qual pódeser sujeito a uma
repressão legal, além de ser em todo caso obrigado á restituição
da cousa, e á reparação dos damnos que cause a seu dono. Mas
o dever d’aquelle que acha alguma cousa alheia, ou em cujo
poder ella veio parar de qualquer maneira, limitar-se-ha a não
escondel-a,a não dilficullar o seu recobramento por seu dono;
ou, segundo a lei natural,será obrigado a procurar este, e a cn-
tregar-lh’a, ou pelo menos a fazer constar pelos meios adequa­
dos .a seu alcance que ella existe e póde ser procurada cm seu
poder?
Sobre esta questão o Compendio distingue duas hypothè­
ses: — l .» quando a cousa foi parar ás mãos d’aquellc (jue a re­
tém, por culpa d’este ; — c 2.;1 quando o foi por mera casuali­
dade. Na primeira hypothèse pensa o mesmo Compendio, que
o detentor é por Direito obrigado a indagar quem seja o seu
dono c a levar-lh’a, ou a repôl-a no lugar onde a achou, pelo
menos ; e na segunda que a obrigação d’aq'ueUa que tem a cousa
alheia, limita-se a não lh a occultai' quando elle a procure,
sendo apenas moral o,seu dever de proceder áquella indagação
e entrega.
Quanto á primeira hypothèse, com elTeilo, si a cousa alheia
sc acha em nosso poder por culpa nossa, é justo que sejamos
obrigados a fazer toda a possível diligencia para saber quem é
seu dono, si o ignoramos, e a restituir-lh’a ; assim corno a iii-
demnisal-o de quaesquçr dainnos que elle com isso tenha sof-
frido. •
Supportamos, com razão, n’este caso, as consequências de
uma lesão juridica que scicntemcntc fizemos a outrem.
Na segunda hypothèse, porém, não nos parece tão liquida
a doutrina do Compendio. ,
Se podermos provar que a<Jue|le que detém em seu poder
um objecto nosso, embora fosse elle ter ás suas mãos por acaso,
sabe que somos o seu dono, c que tendo meios fáceis de entre-
gal-o, ou de fazer constar a sua existência em suas mãos, nada
d’isso pratica, esse deve, pelo menos, ser em todo caso, respon­
sável pelas deteriorações que a cousa soffra em seu poder, e por
quaesquçr outros prejuízos que d’ahi resultem a seu dono ; a me­
nos que tal detentor não prove, o que lhe será dimcil, que assim
procedeu sem má fé.
Quanto ao direito a uma recompensa pelo açhado c entrega
da cousa a seu dono, de que falia o Cpmpendio na primeira nota
de seu § G5, e que aqui vem mais a propósito, tal direito não
existe, com cHeito, a não ser como elle diz, fundado em um
pacto, ou estabelecido por alguma lei civil. Segundo o' Direito
Natural a entrega da cousa achada por aquelle que a achou é,
nos termos e condições que acabamos de expòr, o simples cum­
primento de um dever que a nada mais obriga o dono da mes­
m a, do que a indemnisação das despezas que tenha feito aquelle
com o achado, guarda, conservação c restituição ü’ella ; uein
outro direito confere a esle senão o de retel-a até que taes des­
pezas lhe sejam satisfeitas. Em summa, ou houve a/tal res­
peito formal promessa do dono da cousa, ou ha alguma dispo­
sição positiva que nos casos occurrentes imponha essa obriga­
ção, e então alii está a solução da questão ; ou nada d isso houve,
ou ha, e então fica ella puramente a mereô da livre vontade
d’aquclle.
De modo que, embora esla questão, assim como as prece­
dentes a que ella se prende, possam segundo as eircumstancias
que .nos mencionados casos se verifiquem, entrar no domínio
do Direito, e caliir sob a acção dos tribunaes sociaes, todavia,
cm geral, e míiis competentemente se resolvem pelos únicos sen­
timentos de liberalidade voluntária,ou de honestidade pessoal da3
proprias partes n’ellas interessadas. Em todo o caso não tem
cilas grande importância na sciencia.
Em seguida, nos §§ Gí e G5 trata o Compendio dos direitos
e obrigações que resultam da posse dc uma cousa alheia, se­
gundo ella é de boa ou má fé, já para o possuidor, já para o se­
nhor da cousa. Essá posse é de boa fé quando o possuidor tem
motivos plausíveis para persuadir-se que é legitimo dono da
cousa, ainda que rcalmente o não seja, ou para suppõrqueo ti­
tulo em virtude do qual se acha n’ella é sufliciente para isso,
conforme o Direito. Delo contrario, é dc má fé a posse quando
o possuidor retém a cousa, ou n’ella se conserva sabendo ou
tendo ra/.ões para saber que o titulo em que a funda é vicioso,
ou quando nenhum titulo tem para isso. Entretanto o pos­
suidor do uma cousa sempre se presume de boa fé cmquanto
não se prova o contrario. Segundo estes princípios competem por
Direito no possuidor acções especiaes para mantòr-sè na sua
posse, mesmo contra aquelle que se diz, e que hem póde ser o ver­
dadeiro senhor da cousa. Aquelle que tira a outrem por vio­
lência o (pie elle pogsuia, embora viciosamente, não deve ser
ouvido em Juízo cinquante o não restituir, e o possuidor em tal
caso, usando do seu direito de natural defesa, póde até poraclo
proprio desforçar-sc contra o esbulhador, repellindo inconli-
ncnli a sua invasão. ■
Mas este favor á posse não é senão uma garantia provisó­
ria, que de modo nenhum põilc prejudicar o direito do verda­
deiro dono da cousa ; pelo que provada a realidade do dominio
(1’este, lhe deve ser cila entregue, e mais todas as indemnisa-
ções que juslamente lhe serão devidas. _
Hcsultam ainda da posse de boa ou má fé outros direitos
e obrigações para o possuidor e para o dono da cousa possuida, ;
e o (pie melhor pndçmos fazer pára expòl-os, é indicar em ge­
ral, o que a tal respeito dispõem os Codigos C.ivis das Nações
mais cultas, os quacs n’este ponto, como devem sel-o em lodos
os mais, sàó interpretes dos preceitos da lei natural, ou da razão
esclarecida.
0 possuidor de má fé não só é obrigado a restituir a cousa
a seu dono, ou a repôl-a a sua custa no lugar d’onde a subtrahio,
ou a pagar o seu valor sc cila houver desapparccido ; mas ainda
á indemnisai’ aquelle as deteriorações que ella tenha soffrido,
qnér por aeto ou culpa sua. quér mesmo pelo acaso. D'cstas
10 F.
são exceptuadas apenas as que o possuidor, embora de rná fé,
possa provar que teriam do mesmo modo acontecido á cousa
em poder de seu dono. Favor que não aproveita,.porém, em
caso algum, áqucllc que da cousa alheia se apossou pela violên­
cia, ou pelo furto. Demais o possuidor de má fé não só resti­
tuo, além dos existentes, os fruclos ou rendas por cllc de facto
colhidos ou percebidas, mas também, os que por culpa ou ne­
gligencia sua deixou de auferir da cousa, pela legitima pre-
sumpção de que si elia estivesse em poder dc seu dono, este os
teria sabido aproveitar.
Mas, como bem observa o Compendio na ultima de suas
notas do citado § Gd, esses fruclos restituíveis, mesmo pelo pos­
suidor de má lé, são unicamente os nnluraes, e não aquelles que
a cousa tenha produzido pelo trabalho ou industria propria­
mente pessoaes d este. Dizemos propriamente pessoaes, pará
fazermos sentir que não será, com effeito, todo e qualquer acto
de trabalho ou industria de tal possuidor, que tenha determi­
nado de qualquer modo esses fruetos, titulo sufficiente para que
elle possa retel-os. Por industriaes, para este fim, não se devem
considerar os fruclos que a cousa produza por si mesma, em­
bora provocados por uma tal ou qual intervenção da actividade
do possuidor, necessária para fazel-osapparecer. Assim, o juro
do dinheiro alheio posto por elle a render, o aluguel d’um pré­
dio dc outro para o qual elle procurou c obteve localario. c ou­
tros fruetos ou rendas semelhantes, ou semelhantemenle pro­
movidas, não poderiam juridicamente ser reputadas resultados
do trabalho ou industria do possuidor que as promoveu, ou como
Iructos verdadeiramente industriaes seus, ou que elle possa
fazer taes. Se elles não são, com effeito, espontaneamente nas­
cidos, ou, no rigor da expressão, naturs.es da cousa, são-lhe,
comtudo, proprios e naturalmente inherentes.
Km relação ás despezas feitas com a cousa possuída, ape­
nas se leva em conta ao possuidor dc má fé as que sc conside­
rem necessárias á sua conservação, ou á satisfação de seus en­
cargos forçados, visto que do mesmo modo as teria de fazer, ou
era a ellas obrigado o seu proprio dono, e que, afinal, revertem
em seu beneficio. Quanto ao possuidor de boa fé, que, como
nos diz o Compendio, não se póde reputar violador do direito
alheio, e nem, portanto, ser juslamentc responsabilisado para
com o dono da cousa, por suas acções ou omissões em relação
a esta, as obrigações e direitos que de sua posse resultam, quer
para um, quer para outro-, são naturalmente cm sentido inverso
ao que acabamos de indicar c favoravel ao primeiro.
Assim, o possuidor dc boa fé, si restituo os fruetos ou reu-
das da cousa, aclualinoiitc existentes ou nãorecebidas, faz, en­
tretanto, seus os ÍVuctos c rendas colhidos ou cobrados até
a epoclia da reclamação de seu dono. Só depois d’estu, si elle
não restitue a cousa, é constituído em má fé, e como tal sujeito
ás consequências d’esta d’ahi em diante. Além d’isso o pos­
suidor de boa fé não é responsável pelas deteriorações que te­
nha soffrido a cousa em seu poder, ou pela sua perda ; nem cor­
rem por sua conta as despezas que com cila tenha feito, ou as
que tenha de fazer com a sua entrega.
Acerca das bemfeitorias propriamente ditas, feitas na cousa
alheia por aquelle que a possuia, matéria de que trata o Com­
pendio no § (55, o Direito não estabelece dislineção notável entre
o possuidor de boa fé, e o de má fé. Quér um, quér outro
têm apenas o direito de pedir indemnisação d’aquellas que se
reputam necessárias para a conservação da mesma cousa, ainda
pela razão de que estas revertem em todo caso em beneficio do
seu dono,c presume-se que este do mesmo modo as faria ; isto é,
pelo principio de que ninguém se deve locupletar com a jac-
tura alheia.
Quanto ás mais que se deve considerar somente como uteis,
ou apenas, como aprazíveis,que se destinaram unicamente á dar
mais algum préstimo, ou embellesamento á cousa, o possuidor
de qualquer especie não tem direito de pedir por cilas indemni­
sação alguma. E' porém, permettido, quér ao de boa fé, quér
ao de má fé, retel-asou levnl-as comsigo quando se possam
separar da cousa sem destruição ou deterioração d’esta ; aliás
as perderão.
N’este ponto, como se vè,‘ affaslamo-nos da opinião do
Compendio, que em vez de equiparar as bemfeitorias uteis ás
simplesmente aprazíveis, as equipara ás necessárias, e entende
que taes bemfeitorias devem ser levadas em conla ao possuidor,
sem exccptuar mesmo o de má fé, a respeito do qnnl, pelo me­
nos, é tal doulrina insustentável.
Com justa razão, a nosso ver, as legislações civis dos pai-
zes mais cultos, inclusive a nossa, não dispõem d’esse modo :
em geral, ellas fazem as bemfeitorias méramente uteis seguir
a condição das simplesmente aprazíveis. 1"’ com efléilo, claro
que não se póde, com justiça, obrigar o dono de uma cousa
a pagar vantagens que não procurou, que não eram indispen­
sáveis á sua propriedade, e que elle póde até considerar, e se­
rem-lhe realmente inúteis ou incommodas. K’ já um favor
conceder-se ao possuidor a faculdade de separar da cousa e levar
comsigo taes bemfeitorias, que n’ella fez em vista única de sua
propria utilidade, e sobretudo ao possuidor de má fé, que as
448
fez com consciência da noticia ou fraude dc sua posse. Se tal
separação não é possível, a si o impute o possuidor : não devem
as desvantagens ou onus, que d’ahi. resultem, correr por conta
do dono da cousa, que além de privado do seu uso e gozo, em
nada,concorrcu para tal facto. E’ certo que o dono de uma
cousa não, deve ter o direito de haver do possuidor, mesmo de
má fé, senão o que é ou deve ser realmente seu. Mas também,
não é menos evidente, que o dono de tal cousa não pode ser
justamente obrigado, contra a sua vontade, e quiçá legítimos
interesses, a supporlar encargos que lhe tenha imposto o pos­
suidor de qualquer espccie, com o unico lim de augmenlar os
seus proprios gozos, e confortos. Se tal doutrina prevalecesse,
poderia urn possuidor dq má fé apossar-se, afinal, da proprie­
dade alheia, accumulando-lbe propositalmcnte bemfeilorias
a ponto de tornar impossível a sua indemnisação peto proprie­
tário : o que, aliás, já até certo ponto, como nos mostra a ex­
periência, a chicana consegue fazer com as próprias bemfeilo­
rias necessárias, embora á respeito d’ellas seja muito mais dif-
licil o emprego de semelhante fraude, porque silo mais difficeis
o arbítrio e a incerteza em sua classificação e avaliação.
Estes princípios que regulam as questões relativas a bem-
feitorias nos casos a que temos alludiilo dc posse por outrem da
cousa alheia, são os mesmos que as regulam, em geral, nos mais
casos ern que ellas são feitas por alguém, não na qualidade de
, possuidor, mas cm qualquer outra. Somente, então, taes regras
pódein sèr modificadas por convenção, ou pactos expressos ou
tácitos. Por este modo não só as bemfeilorias apenas ulois,
mas ainda as simplesmente aprazíveis, poderão ser justamente
, repetidas, ou o seu preço 5 e até bastará para isto que cilas te­
nham sido préviamente avaliadas, ou consentidas de uma ma­
neira explicita pelo dono da cousa.' As próprias bernfeitorias
necessárias pódein, por esse meio, ser postas a cargo de miem
as faz. , 1
Em taes casos, como nos mais. 0 pacto é lei entre os pac-
tíiantes. -
I

LIOOÃO
' o Z Z IT
§§.06 — 72'

Da acquisíção das cousas pela accessão ; — regras iVesta ; —


das lesões do domínio ; — r. cspecialmente da contra [ac-
• çào da propriedade lideraria.

Nos §§ G6 a 70 irata o Compendio da accessão, das suas


diversas especies, do seu fundamento juridico, e das regras que
a devem regular.
A accessão ó o direito que assiste ao dono de uma cousa
de fazer também seu aquillo que á mesma accresce ou por di­
versos modos se lhe pôde ajuntar. Ella se denomina natural,
si esse accresdiriQ se opera pelas forças únicas da natureza;
artificial ou industrial, si é obra da actividadc ou industria hu­
mana ; e nnxta, si para isso concorrem ambas essas causas ou
agentes. ■ •
Applica-se a accessão ás alluviões e aterros, aos produetos
das cscavaçòCs do sólo e minas, aos fruetos das plantações e dos
animaes, ás construcções e trabalhos d’arte sobre terreno ou
objecto all>eio com máteriaes ou elementos proprios o vice-
versa, etc. ; tem lugar qnér quanto aos immoveis, qtiér quanto
aos moveis ; e verifica-se, por simples adjuneção, por especifi­
cação, ou por confusão. . ■
E’ justa sem duvida a aequisição das cousas por este meio ;
e é isso um direito que naturalmcnte decorre do mesmo direito
de propriedade ou dodom inio d’aquellc que assim as adquire.
Tem toda a procedência o argumento com que o Compendio no
§ 67 sustenta que o legitimo senhor de um objeejo deve std-o
também de suas qualidades naturaes e intrínsecas e dc seus re­
sultados, e por maioria de razão, d’estes ou aquellas que lhe fo­
rem accrescentadas pelo concurso do seu trabalho.
Na verdade, si o dono de uma cousa não fizesse seus esses
resultados, ou accrescimos da mesma ; si estes não devessem
150

seguir, em geral, a sorte d’esta, e entrar i»ara o mesmo.se­


nhorio, perderia a propriedade todo o seu préstimo e valor.
O dono de um terreno não leria então o direito de collier os
fruetos da arvore que n’elle nasceu e cresceu sob o impulso das
forças naturaes, ou mesmo sob a protecção de seus cuidados
e vigilância. « Com que titulo, pergunta Belime, poderia fazer
seus o leite e a lã de suas ovelhas, o proprietário (Festas ? »
O fundamento jurídico do direito de accessão é, pois, real­
mente o mesmo direito de propriedade, ou o dominio do acce-
dente sobre a cousa em que a accessão se verifica. Este prin­
cipio evidente quando nos referirmos á accessão de accresci-
mos consistentes em'novidades que não pertenciam a outrem
antes de sua adherencia áquella, póde ainda com exactidão ser
upplicado aos mais casos em que a accessão lem lugar. Si no
primeiro a aequisição do direito sobre o accrescimo se opera
por uma simples e directa prorogação do dominio da cousa
ã este, nos mais é ainda, senão directamente o dominio sobre
esta, ao menos o dominio derivado do trabalho e n’ella encra­
vado, que determina a sua aequisição.
Tem pretendido alguns escriptòres insinuar a idéa, de que
o direito de accessão se póde explicar por uma primeira occu-
pação do dono da cousa sobre aquillo que lhe advóm ; occu-
pação que só a elle compete em virtude do direito que tem de
excluir a qualquer outro da sua propriedade. Mas os proprios
lermos em que esta doutrina se exprime denunciam a sua com­
pleta improcedência, a menos que ella não se applique apenas
ao caso a que allude o Compendio no final de seu § 68, em que
o accrescimo é objccto nullhts e simplesmente adjunto á cousa
sem confundir-se com cila où n’ella. 1” claro porém que tal
caso nãoé de accessão propriamente dila.
Com effeito, si a occupaçào do accrescimo só compete
ao dono da cousa a que elle se une, e si essa occupaçào sup-
l>õe-se sempre virlualmente èftectuada por este, ainda quando
o não seja de facto, é necessariamente por que já antes d’clla
se lhe reconhece sobre tal accrescimo um direito exclusivo fun­
dado cm outro titulo, o qual não póde ser senão o .seu dominio
sobre a causa prorogando-se áquelle. Si abslrahirmos d’este
dominio nenhuma razão mais existe para preferir-se a occupa-
ção do dono da cousa ã occupaçào de qualquer outro ; um cx -
tranho qualquer que primeiro a effectuasse devèra ser reconhe­
cido por legitimo senhor de tal accrescimo. Finalmente, si
o dominio da cousa é o que exclue qualquer outro que não seja
o dono d’esta da occupação do seu accrescimo. segue-se logi-
151 '

camente que é esse domínio o verdadeiro titulo jurídico d’esta


occupação por este ou do seu direito de accessão.
Improcedente a respeito da accessão considerada em seu
modo mais simples e mais natural de que aqui temos tratado,
isto é, da que se refere aos accrescimos que advêm á cousa,
consistentes em objeclos que não pertencem a outros, adqutnna
que acabamos de indicar é ainda mais inapplicavel ao caso, de
que passamos a occupar-nos; caso mais complexo em que a ac­
cessão versa sobre accrescimos consistentes em objectos já
pertencentes a alguém, e que se unem a urna cousa do dominio
de outro, de maneira a não poderem-se distinguir ou separar
d’ella, ao menos sem destruição ou deterioramepte da mesma.
Não se verillea cila, rcalmenle, não só na hypothese indicada
pelo Compendio no tinal do citado § 68, como já vimos ; mas
nem ainda na que elle figura no seu § 69, no qual trata-se ape­
nas de um objeclo ou parte de objecto nosso que separado d elle
veio de novo reunir-se-lhe.
Da accessão no caso.de que nos vamosoccupar trata o Com­
pendio no seu § 70.
Pelas ideas que até a qui temos expendido, vè-se que o prin­
cipio dominante em matéria de accessão é que—-o accèssorio se­
gue o principal, — regra aliás realmente admiltida por todos os
escriptores. quer do Direito Natural, quér do Civil. Km abs­
traem, ou como principio geral applicavel ás relações comnnins,
o sentido d’aquclla proposição é, com efieilo, claro c simples;
a dificuldade está, porém, cm saber-se como deve ser ella en­
tendida com relação especial ás questões que a aicessào suscita,
de modo a não sermos levados a consequências alguma vez ab­
surdas, ou manifestamente iniquas. _
Segundo a natural e commum inlelligcncia d’aquella regra,
principal è sempre a cousa que preexistia c a que algum accres-
cimo veio posteriormente ajuntar-se ; mas na sua applicação ao
vegimen da accessão jurídica outros elementos ha que não se
liódtí justamente deixar de levar em conta n/essa classificação.
Si a cousa que preexistia é ao mesmo tempo a de maior
valor, ó cila ainda a que se devo considerar principal, e o ac-
crescimo posterior deverá ceder-lhe como accèssorio. Mas nos
- casos em que este tem valor superior ao da cousa a que se unio
ou de que proveio, cumpre fazer-se alguma distineçuo. ^
Quando se trata do sólo ou de cousas cujos accrescimos ou
novidades lhes provêm das forças únicas da natureza, são sem­
pre o mesmo sólo e taes cousas consideradas como prinopaes,
ainda que os valores d’aquelles seus accrescimos lhes sejam su­
periores ; e o mesmo acontece a respeito das cousas adhcrentcs
152
ao sólo, e por sua natureza ou destino participantes da sua iin-
mobilidade. Nos mais casos, porém, isto é, por via du regra
nos de accessão artificial ou industrial, — o principal é c deve
ser aquillo que tem maior valor, embora sejam méras qualida­
des ou partes menores ajuntadas á cousa preexistente.
‘ Assim : a alluviào, ainda quando seja mais considerável do
que o terreno primitivo, as lavouras ainda quando valham mais
que o campo, os lYuctos das arvores ou dos animaes n’estas
mesmas condições, assim como o edifício construído epi terreno
alheio, são cm geral considerados sempre como acoessorios,
cm relação ao sólo ou ás cousus a que se unem ou de que pro­
cedem. Ao passo que o csculptor e o pintor que modela uma es­
tatua primorosa ou desenha um quadro sublime, no mármore
bruto ou na grosseira téla alheia, fa/.em suas estas matérias,
que ante o grande valor da nova forma e qualidades que lhe
foram juntas, descem ã simples classe de acccssoi tos.-
Entretanto, como aliás já temos dado a entender, estas
mesmas regras, não podem ser consideradas absolutas. Si
a razão as indica, em geral, como justas, o Direito Civil as póde
modificar em certos casos ou a certos respeitos, segundo as le­
gitimas aspirações e necessidades sociaes, ou segundo as exi­
gências da equidade.
_ Seja porém, como fòr, em lodos os casos em que a acces­
são se opera, aquelle em tavor de quem cila se resolve, é obri­
gado a compensar a outra parte a importância do direito de que
c pnvada; e a má té com que qualquer d’cllas lenha procedido
em relação a outra ou á cousa, no sentido de determinar a sua
aeccssao forçada, a sujeita, além d’isso, á indcmnisaçào de per­
das e damnos. , *
. Inesm° modo que não ha accessão de uma cousa pró­
pria a outra que igualmente o é ; nem d’aquillo que se distingué
e pude ser separado da cousa a que se unio, sem destruição ou
ueterioramcnto (l’esta, como já dissemos; não a póde haver
n°s casos ultimamente figurados, para qualquer dos
iinnrwi 1e diversas partes que se reuniram em uma só cousa,
, . 0 e , u mdivisivel, c aquellassão mais oií menos equiva-
e cs, ou uc tal espccie que no todo se confundem, ou mistu-
lam. Então etorçoso que tal cousa se torne commun), salvas,
ainda u esta hypothèse, us indemnisações reciprocas ou espe­
cialmente devidas por qualquer d’elles ao outro, si por culpa ou
iraude sua teve lugar aqnella confusão; ésalva também para
cada um dos condominos, a faculdade de desfazer tal comnni-
nlião pelos meios proprios segundo o Direito.
No § ~I traia o Compendio dns lesões do dominio, e diz-
nos que cilas consiélein no furto, no roubo, no esbulho ou in­
vasão da posse, ou em qualquer dólo ou fraude corn que se pro­
cure privar o dono de uma cousa de qualquer direito que sobre
cila lhe compila em razão do seu dominio. Depois do que dis­
semos na explicação do § 31 cm que o Compendio tratou, em
peral. das lesões que podem ser feitas a quaesquer direitos de
alguém, e sobretudo na do § 38 em que elle tratou cspecialmento
daquellas de que púde ser objecto o direito de propriedade, es­
cusado é oceuparmo-nos ainda d’este assumpto.
Mas por occasião d’elle agita o Compendio c discute nos
paragraphes seguintes de 72 a 76 uma questão dc real impor­
tância pratica, que, demais, envolve outra'de correspondente
importância, ao menos em tbeoria, e muito controvertida entre
os escriptores quer do Direito Natural, quer do Direito Publico,
a saber : si a coutrafacçào dos livros, ou a sua reimpressão
por outrem, depois dc publicados por seus authores, se deve re­
putar unia lesão da propriedade alheia -, o que equivale a per­
guntar-se; si existe, com effeito, uma propriedade lilteraria ;
questão prejudicial em relação áquçjla, e cuja solução impor­
tara necessariamente a sua. Discutamol-a, pois, por nossa vez,
e o que cm apoio d’essa propriedade dissermos será applicavel,
inuíntis mutandis á propriedade artística, e á dos inventos uleis.
K’ incontestável que o autlior de uma obra scientitica ou
lilteraria deve ter sobre cila um direito privativamente seu ;
e para nós, digamol-a desde logo, ó também incontestável que
a esse direito convem perfeilamente a denominação de direito
de propriedade porque embora esse direito se distingua do de
propriedade material, por differenças que lhe são peculiares,
tem comtddo os caracteres essenciaes d esta.
Aqnelles mesmos qoc não professam esta opinião fornecem
implicitamente, uo desenvolvimento de sua doutrina, argumen­
tos em seu apoio. Kant, que pensa ser aqiielle um direito pu-
ramenle pessoal, diz, entretanto «que o pensamento do autlior
é sempre sua propriedade, mesmo quando se reconheça que
esta propriedade c consequência de direitos exteriores.» íleliinc
que pertence á mesma escola reconhece, com tudo, a necessi­
dade de garantir-se ao.autlior dc um livro o direito de auferir
os seus lucros cxclusivamentc. Até os mais intransigentes n’eslu
matéria, aquellcs qne pretendem fazer entrar o livro para o uso
e gozo geral <; illimitado do publico desde o seu apparecimento,
declaram que o sen autlior deve ser indemnisado pelo F.stado
da privação dos respectivos lucros. Uns c outros, portanto,
reconhecem, a final, cm uma produeção lilteraria alguma cousa
(jiui unicamente, a seus autliores pertence, que póde ter qual­
quer outra denominação, mas que incontestavelmente tem os
mesmos efféitos capitaes, e privilégios que só á propriedade
competem.
Pódern haver, e ha, com effeito, como depois veremos, boas
razões sociaes e políticas, e ate procedentes mesmo da natureza
peculiar d’esta especic do propriedade, pelas quaes ella tenha
limites que não tem a outra, ou seja necessariamente sujeita em
certo tempo a uma desapropriação legal em favor do publico.
.Mas isto não c argumento concludente contra ella, como o não
são contra a propriedade material, os impostos, a desapropria­
ção, a prescripção, á que lambem a sujeita o Estado cm vista do
bem commum.
() direito principal do aulhor de uma producção liltêraria
refere-se propriamente a uma cousa sobre que se póde fazer
toda a cspecie de transacções licitas, grandemente proveitosas, .
n cujos lucros ou vantagens reaes não se concebe que possam
•jiistamente pertencera outrem ou a lodos. Só o aulhor, em
summa, pode ter em relação á sua obra - o domínio imrnate-
rial, com os respectivos proveitos rnateriaes ao passo que os
mais, depois dVlla publicada, só pódem ter ■> « o dominio ma­
terial com os proveitos immateriaés» de cada exemplar daqueila,
que houverem obtido por algum titulo jurídico.
Esta distineção fixa clarafheutc as posições c direitos rela­
tivos quer do aulhor de uma obra litteraria, quer dos mais que
d’e!!a se utilisem depois de sua publicação; ella determina bem
qual seja o verdadeiro objécto da propriedade d’aqUelle que
comprou ou adquiriò por qualquer outro modo um livro, e de
que espécie é, ou sobre que versa verdadeiramente, a proprie­
dade do seu aulhor.
As objecções qoe contra a propriedade lideraria produzem
os srus adversários, ou não são procedentes, ou a procederem
anuiquilariam toda a especic de propriedade.
Dizem, por exemplo, que essa propriedade não póde ser
admittida, por que um livro compõe-se do idéas communs com­
binadas c transformadas de tal ou tal modo, de pensamentos
geraes, que não são do dominio exclusivo de ninguém ; e que
por tanto o author não póde apropriar-sed’elles exclusivamente.
Mas, além de não ser tal proposição rigorosamente exacta,
por que muitas das idéas que contént um livro pódern ser ver­
dadeiras inspirações, brilhantes achados do gênio, que o com-
pòz, c quanto ás mais, si não são creações suas, são incontes­
tavelmente seus o arranjo, a exposição, o desenvolvimento das
mesmas, e sobretudo os reflexos de sua inteljigencia superior
que as illuminam p fecundam, accresce que não é n ’isso que
consiste verdadeiramente a propriedade do au llio r; é sim no
uso, gozo e disposição dos proveitos materiaes, que ilie pódcm
vir d’aquella produção que, como (illia de seu talento e do seu
trabalho, deve ser exclusivamente sua, no que fòr possível e util
sel-o.
Não ha certam enlc lógica no mundo que seja capaz de con­
vencer a alguém que a Jerusalém libertada, o Espirito das
leis, ou a Merkanica celeste, tanto devam pertencer em si, ou
nos seus resultados a Tasso, a Montesquieu, e a La Mace. como
ao primeiro aventureiro que as queira imprimir ou reimprimir,
ou que seu arranjo maravilhoso, seus pensamentos, verdades,
ou bellezas sublimes devam ser consideradas cousas communs,
e communs os lucros renes de sua publicação, porque póde sel-o
ou é, a sua apreciação ou gozo mental depois que foram as
mesmas produzidas e publicadas. Si as longas vigilias c me­
ditações dos gênios não são sulficientes para tornal-os ver­
dadeiros e únicos senhores de suas obras scientificas ou libera­
rias, ou de seus produetos, que fundamento póde haver para
que a occupação primeira ou a cultura de um campo vago, sim­
ples filhas do acaso ou dc medíocre diligencia, o façam proprio
do occupante ou do cultivador ? Os elementos e forças da na­
tureza sobre que recalic o seu trabalho, ou que este uliiisa ou
fertilisa, também não são do seu domínio, e sim do de todos ou
de ninguém.

/
L ia Coà C Z Z T

§§ 72 - 76

Continuação: — da contra facção da propriedade litteraria

Pretendem ainda os adversários da propriedade litteraria,


qúe os pensamentos do author uma vez publicados e entregues
ao dominio publico nãd podem ser mais d’elle retirados -, que
o proprio author por essa publicação associa o publico na sua
propriedade ou lh’a transmitte ; e que assim, o direito exclusivo
que póde existir sobre cada exemplar de um livro, não póde ve­
rificar-se em relação á obra considerada como produeto da in-
telligéricia. Mas é falsa ainda esta argumentação.
Sem duvida o pensamento publicado não é susceptível de
um direito exclusivo de quem o concebeu ; logo que elle é com-
municado ao publico torna-se commuai a lodos quanto possam
comprehcndel-o e applical-o no trafego da vida em vantagem
propria.
Mas já mostrámos que o verdadeiro objeclo da propriedade
do author de um livro não é n’isso que consiste, ,e nem na
posse ou no direito de dispôr de qualquer de seus exemplares.
Si em relação a estes a sua propriedade cessa desde que elle os
lança na circulação pela venda, troca, doação, etc., é porque
de lacto por qualquer d’estes modos de alienação jurídica, elle
cedeu o seu direito indvidualmente inherènte aos mesmos, como
se vende, troca, dòa, etc., o todo ou parle de um terreno ou
prédio. Lntretanto que a sua propriedade, consistente no di­
reito de impressão ou reimpressão de sua obra, e no gozo ex­
clusivo dos respectivos lucros, subsiste intacta. Isto, certa -
rhente, elle não vendeu ou cedeu de qualquer modo, com aquel-
les exemplares vendidos ou cedidos, nem são cousas essas es­
sencialmente inseparáveis para suppôr-se que uma importa
a outra, ou é sua consequência necessária.
Como negar-se a propriedade litteraria consistente n’aquelle
direito para o sou aullior de auferir exçlusivamente os lucros
da reprodueção de seu livro, si é incontestável o seu direito ub-
soluto ern relação ao respectivo manuscriplo ? Comoé queoau-
tlior que tem n respeito do seu livro antes de publical-u um di­
reito pleuo e illimitado, o perde exactamente pelo facto de dar-
lhe, publicando-o, a sua natural c utilíssima applicaçáo, e perde
só elle ganhando todos os mais ?
Dirá alguém que seria prejudicial á sociedade e á civilisa-
ção humana, attrilniir-se ao author de um livro um direito cie
propriedade exclusiva sobre sua obra de modo que só elle possa
reimpriiuil-a? já porque esse author por capricho, já porque
sens herdeiros por ignorância, ou qualquer d’elles, por algum
outro motivo, poderão privar o publico e a humanidade da
posse e gozo de verdades importantes? Mas primeiramonte,
pódc lambem o author por capricho hão publicar o-seu livro
depois defeito; e mais razão terá para isso ou para não fazel-o,
negando-se-llie o direito exclusivo aos lucros de sua publica­
ção ou reimpressão; cem segundo lugar, por esta mesma razão,
em vez de advogar-se com tal doutrina a causa da civilisação
e do.progresso do género humano, advoga-se antes a do seu
regresso e barbaria. .
dom efleito, desconhecer-se a propriedade do author sobre
a sua obra, nos termos em que a temos definido, seria condem-
nar o gênio na maior parle dos casos ao silencio e á inacção,
imitando-lbe os estímulos; seria a titulo de querer-sc fornecer
livros á humanidade a bom mercado, prival-a da maxima parte
d’elles e dos mais uleis. Poucos homens estariam realmente
dispostos a sacrificar o seu tempo, os seus comrnodos, a sua
saúde e até a sua vida, só para lerem a satisfação de mimosear
o publico com os produetos das locuhrações da sua intelligen-
cia. A gloria é. sem duvida, cousa bellissima, mas não quando
comprada ã custa da miséria-
Dizem outros adversários da propriedade litleraria, que
ella não tem razão de ser, porque a leitura do livro pelo publi­
co, é que lhe attribue o valor, c que não pôde ser exclusivo de
alguém, aquillo que para valer alguma cousa depende do con­
curso de todos os mais. Argumentação igualmenle futil, c que
além d’isso provaria de mais.
Uma casa, um campo, ou um artefacto qualquer nada va­
leriam também sem o concurso dos apreciadores de suas utili­
dades, ou dos consumidores dos seus produetos ; e nem por isso
deixam tacs ob jectos de ser realmente propriedade de seus donos
ou nianufactores. fisse concurso ou procura dos mais não é
o que lhes dá o valor, ao contrario são por este déterminados ;
apenas o certificam^ não o crèam ; são a sua medida e não a sua
origem. Com razão diz (íarnicr •<si objectaes a um author que
a vossa admiração constitue o preço do seu livro, e que por
isso tendes o direito de copial-o e de vulgarisar as suas copias,
podeis lambem oppôr ao agricultor, que o vosso consumo faz
o valor de seu campo, e que por isso tendes o direito de utili-
sal-o de parceria com elle.»
A propriedade material, dizem outros, justifica-se perfei­
tamente, porque não só é possível, mas ate necessária \ possí­
vel porque recáhe sobre um objeclo externo c realmente exis­
tente e apprehensive!; e necessária porque as cousas rnateriaes
não pódern ser usadas em commutn sem damno de todos ; mas
a propriedade intellectual está ern condições inteiramente dif-
ferenles •, dá-sc-lhe por objeclo uma cousã que não tem existên­
cia real, e cuja posse c gozo em commum não só é possível,
como até é o que ha de mais natural e mais «til. Esta ohjec-
ção, porem, é mais especiosa, do que fundada; primeiramente,
lambem o simples dorninio util da propriedade material, em ­
bora recália sobre um objeclo inapprehensivel, não deixa por
isso, de ser dorninio; e em segundo lugar, n ’essa objecç.âo des-
conliece-se ainda, ou propositalmente se desvirtua, o' verda­
deiro objecto da propriedade intellectual, que segundo já dis­
semos, não consiste no direito ao valor inethaphysico de suas
ideas e pensamentos, mas sim no direito ao valor pecuniário da
sua publicação. Este, de certo, não ó uma cousa inappfehen-
si\el, ao menos virtualmente : nem é um objecto cuja posse ou
gozo exclusivo seja impossível para o author ou convenha en­
tregar-se ao dorninio commum. Ao contrario já demonstrámos
.is consequências desastrosas, além de injustas, que leria a com-
munhão a tal respeito.
Mas si o direito dos authores é um direito dc propriedade,
insistem ^aquelles que a contestam, devêra esta ser perpetua
e transmissível por herança iudeilnidamente, como a proprie­
dade material, entretanto que isto ó inadmissível, pois que de­
corrido certo lapso de tempo, mais ou menos longo, perderia
ella todo o seu valor pela divisão e subdivisão, e leria por co­
i ollauo udallivcl a impossibilidade de ser utilisada, quér pelos
seus pretensos innumeraveis donos, quér pela sociedade. Este
argumento, além de poder ser, até corto ponto, igualmente ap-
plicado a propriedade material, ou a algum objecto d’ella em
certas circuinstancias, é ainda improcedente,1 porque a proprie­
dade mesmo temperaria não deixa desel-o ao menos omquanto
subsiste. Elle não ataca mesmo a propriedade intellectual cm
sua essência: não se concluc d’ahi que ella deixe dc ser real em
si 5 apenas por essa objeeção, como pela precedente, se denuncia
entre tal propriedade ea material, diflerenças sensíveis u certas
consequências nocivas á sociedade que teria a primeira, si em
tudo fosse equiparada á segumla ; e n’este ponto estamos do ne-
còrdo. •
Sómente não acceitamos como uma das razões justificati­
vas da tèmporariedade estabelecida em relação á propriedade
intellectuel, a que nos dá o Compendio na nota ao seu § 76, di­
zendo-nos que o direito de successão não é um direito natural,
mas simplesmente uma instituição do Estado, c que por lauto
este póde supprimil-o a respeito d'aquella propriedade. Ainda
mesmo concedido que o direito de successão não é um direito
natural, o que aliás negámos, tal razão é insufíiciente -, porque
por ella não se explica como a propriedade lideraria não é ou
não póde ser perpétua quando a sua acquisiçüo e transmissão
se faz por outro titulo, que não o de herança.
Aquellas dilferenças a que acima alludimos e outras que
podiamos indicar entre a propriedade intellectuel e a material,
e as consequências prejudiciaes que traria á sociedade a sua
completa assimilação no tempo de sua duração, são razões mais
que bastantes e plausíveis para que o poder publico recuse
'á primeira a perpetuidade, e sobretudo a hereditariedade inde­
finida que garante á segunda. Reconhecendo-a, em geral, aos
nuthores, as legilações de todos os paizes mais adiantados limi­
tam-se, com effeito, á assegurar-lhes durante a vida ou por um
prazo mais ou menos longo, c quando muito a seus iminediatos
successores, dentro do mesmo, um privilegio exclusivo para uli-
lisarem os lucros que possam auferir das publicações de suas
obras, ou de quácsquer transacções que sobre ellas possam fazer.
A concessão d’este privilegio, porém, de nenhum modo
importa o desconhecimento d’aque[la propriedade, antes asup-
põe ; não é uma simples remuneração filha da liberalidade do
Estado aos authorcs ; é antes a consagração formal, embora
eonvenienlementc restricta, do direito exclusivo d’estes adqui­
rido pela sua intelligcncia e trabalho. Razões analogas autori-
sam o poder publico a írnpòrá propriedade material omis e res-
tricções importantes e de Ioda a especie, taes como os tribu­
tos, as servidões forçadas, a prescripçào, a desapropriação,
e mais regras e limites á sua acquisiçáo, posse, uso, gozo e trans­
missão quór causa mor tis quer inter vivos, sem que pôr isso
essa propriedade seja anuiquilad/i.
Si, pois, o direito do aullior de uma obra litteraria e uni
verdadeiro direito ; esi este direito consiste, como temos mos­
trado, na faculdade exclusiva para seu aullior de imprimil-a
\ GO
c reimprimil-a fruindo os respectivos lucros pecuniários : é claro
que a sua çontrafacção, ou reimpressão por outro sem o seu
consentimento, e em.seu prejuízo, é uma lesão da sua proprie­
dade. Que elía é, em todo o caso, urna lesão jurídica, uma
usurpação incontestável de um direito do aullior, é cousa sobre
que não resia a menor duvida ; convém n’isso os proprios que
negam a csSe direito a denominação e o caracter de proprie­
dade -, Itclimc c Kant explicitamente o declaram. Diz este que
o autlior de uma obra lilteraria « commette unicamente ao seu
editor o direito de fallar por elle cm publico pela imprensa,
e que por tanto o repetidor da edição que se intrometí« n’este
negocio contra a vontade de ambos, procede injustamente.»
K isto é tão verdade a respeito de quem quer que seja cm rela­
ção ao autlior e ao editor, corno a respeito d’este em relação
ao autlior por qualquer excesso de impressão e publicação além
daautorisada ou contractada.
Pretendem aquelles que contestam a criminalidade da con-
trafucção, que si o editor com quem o autlior contracta a pu­
blicação de uma obra, ou a quem a vçndeu até certo numero
limitado de exemplares, não póde imprimir maior numero
d’elles em razão do seu contracto, não estão no mesmo caso os
compradores de cada um dos exemplares da mesma, que ne­
nhum contracto fizeram com o autlior ou com o editor obrigan­
do-se a não reimprimil-o ; e que estes compradores adquirem
uma copia do livro do qual são legítimos donos, e de que por
conseguinte podem usar como iíies aprouver, até reimpri-
nundo-o.
Mas semelhantes argumentos são de uma fraqueza mani-
lesta.
Primeiramente, si o editor que comprou o direito de im­
primir ou reimprimir até rryl exemplares, ou obrigou-se a pu­
blicar por conta do autlior até esse numero d’elles, não póde
imprimir, reimprimir, ou publicar outros além d’esse numero
em seu própria proveito, sob que fundamento aquelie que ape­
nas comprou ura exemplar, ou de qualquer modo o houve, no­
uera reimprimir quantos lhe convenha ? Si assim fosse, para
adquirir este mesmo direito bastaria ao editor obter por igual
meio qualquer exemplar da obra. Tal argumentação pois, além
dc absurda, e fnlil. v ' ’
■*'. segundo lugar, si não existe, como realmente não
existe, contracto algum, no sentido acima dito, entre o com-
piador de cada exemplar e o autlior ou o editor, nem por isso
u leimpressão de sua obra por qualquer comprador d’cstesT
deixa de ser uma usurpação do alheio, desde que as vantagens
161

ou lucros de tal reimpressão são um direito exclusivo c incon­


testável d’aquelle. O que adquire o comprador de um exemplar
de uma obra é unicamente a propriedade d’esse exemplar e o di­
reito aos usos c gozos, a que elle natural e individualmente se
presta; não adquire o valor lilterurio da obra, nem o direito
ás vantagens materiaes em que esta se traduz. Si esse exem­
plar é uma copia, isso não tira que a sua reproducção seja
a mesma reproducção do original; ao contrario por isso mes­
mo o é. Quer a sua impressão se faça, por tanto, pelo manus-
eripto primitivo, quér por um de seus exemplares já publicados,
o facto é o mesmo, os resultados são idênticos, e iguaesa usur­
pação do alheio, e o crime.
O autlior ou editor que vende aquella copia não carece de
impòr ao compradora condição de não reiinprimil-a ; ella sub­
entende-se, porque é imposta pela propria natureza e objecto
do contracto. .Nem se póde dizer que o comprador de um livro
reimprirnindo-o em seu proveito usa d’elle do mesmo modo que
o comprador de um produeto ou artefacto material qualquer,
que por este fabrica outros iguaes e tem o direito de vcndel-os
e de utilisar-âe de seu preço.
Aquelie que compra um par de sapatos e por elle faz outros
semelhantes ou melhores, produz em todo o caso, mediaute
o emprego do sua iutclligencia e trabalho, uma cousa que real­
mente e em todos os sentidos póde chamar, c é sua, c que até
não é verdadeiramente a mesma que lhe servio de modelo, por
mais perfeita que seja a imitação ; ao passo que aquelie que re­
imprime uma obra litteraria alheia sobre um exemplar que.
comprou, nada accresçenta de sua industria ou engenho á obra
litteraria de outro, ou áquillo cm que propriamente consiste
o objecto de sua propriedade ; e o que mais é,por mais que elle
varie as sui^ fôrmas ou qualidades exteriores e materiaes,
a obra é a mesma e nada tem de seu, a não ser o papel, a tinta,
e outros ingredientes de valor insignificante em relação ao da
obra em si, c que por direito dc accessão devem reverter em
beneficio do author.
Concluiremos, pois, que a eoutrufaeção é uma verdadeira
lesão da propriedade alheia, e da mais respeitável de todas,
d’aquella que se adquire pela mais nobre das faculdades hu­
manas. '

2t F.
LÏCK3A0 Z Z T I

§§ 77 — 78 ,

Dos usos du cousa alheia sem o consentimento de seu dono ; —


do uso innoxio ; — do direito de necessidade
' • >
Nos §§ 77 a 70 traia o Compendio das diversas exccpções,
quo muitos escriptores admittem, á lei jurídica que prohibe
usar-se das cousas dp doininio alheio, sem o consentimento de
seu dono ; e no primeiro d’esses paragraphes indaga se excep-
tuado d’essa lei deve ser, com efieito, ou antes si se deve con­
siderar como uma lesão do direito de propriedade alheia, o uso
que da mesma faça outro a titulo de ser elle innoxio.
Com razão se pronuncia o mesmo Compendio a tal res­
peito regeitando a doutrina d’aquelles que sustentam que se tem
este direito -, pois que, em verdade, são pouco sólidos os funda­
mentos em que ella assenta.
j'ara autorisal-a reccorrem uns ainda A idéa de uma con­
venção expressa ou tacita pela qual os homens concordando no
estabelecimento da propriedade, obrigaram-se também a não
excluir-se uns aos outros da participação innocent^ do que fosse
de cada um. Outros deduzem esse supposto direito do simples
lacto de não se causar pelo uso innoxio da propriedade alheia
dam no algum ao seu proprietário. Mas, quanto á convenção
expressa ou tacita n’aquelle sentido, que não é outra senão
a mesma que se pretende ter sido feita para a formação da so­
ciedade civil', já tivemos occasião de ver, por mais de uma
vez, que não passa de uma ficção, c que mesmo quando fosse
real ou possível, não teria a virtude de produzir a propriedade,
nem poderia também, por conseguinte, justificar quaesquer li­
mitações ou regras a sen respeito. E quanto á razão, de que
pelo uso innoxio da cousa alheia não se causa damno a seu
dono, coucedendo-se mesmo, que assim seja, não é isto sufli-
ciente para que alguém se arrogue esse pretenso direito.
Attribuir-se o uso do que é cie outrem a alguém, sob tal
fundamento seria, com elleito. restringir o uso que a seu dono
compete, ou estabelecer um principio de coinmunhão a respeito
de objectes susceptíveis de posse e gozo exclusivo de cada um,
e que por já se acharem de facto legitiniamente sujeitos a al­
guém, devem ser privativarnente seus, quer na sua substancia,
quér nas suas applicaçôes. Seria, finalmeute, tirar-se á proprie­
dade o cunho de exclusivismo que essencialmente a caracté­
risa e anniquilar o dqmiuio em um dos seus mais importantes
elementos. Com razão observa, além d isso, o Compendio,
que aquillo que pareça a algucm uso jnnoxio do alheio pôde não
sel-o realmente, segundo as applicaçôes que lhe queira dar o seu
dono, ou as vistas que elle póde legitimamente ter a respeito da
mesma, c de que só elle proprio é juiz competente. I) ahi a ne­
cessidade de se consultai-o préviamente, ou do se obter a sua
annuencia antes de usar-se da sua propriedade, ou pelo menos
de suppòr-se o seu consentimento. Mas então em vez de um
direito ter-se-ha uma simples concessão, uni méro lavor volun­
tário, expresso ou presumido do dono da cousa, prestado áquelle
que usa d’ella. . , .
Com effeito, que direito é esse que, si o dono de tal cousa
o quizer, tornará nenhum desviando-a do uso alheio, ou dan­
do-lhe qualquer destino ou emprego incompatível com elle.
Para que este supposto direito verdadeiramente o lusse, mister
seria que o não fosse o dominio, ou que o senhor de um objecto
não tivesse ampla faculdade de usar d’elle, e de recusar ou per-
mittir o seu uso a outros como lhe apraza. Púde-se, sem du­
vida, usar ou te.r usado innoccntemcnte do alheio ; haverá então
n’isso um facto rcalmente iuuoxio, mas uimca um diieito,
desde que não se póde á priori allegar a sua innocuidadc para
pratical-o contra a vontade do seu dono. ,
Dizem os susteutadores do direito de uso mnoxio, que.
aquelle, por exemplo, que tem um terreno aberto no meio de
unia cidade ou povoação, ou um campo nas mesmas condições,
não póde legitimamente impedir que os mais transitem pelo
primeiro, c soltem o seu gado no segundo. K' isto incontes­
tável de "facto, ao menos cm quanto tal terreno ou campo se
conservaram n aquelle estado : mas lambem não é menos certo
oue nóde seu dono feclial-os quando queira, e assim vedar o seu
uso aos mais -, pelo que é claro que si antes d’isso tal uso se
fazia da sua propriedade, 6 porque elle tacitamente o consentia,
e não por um direito ou titulo algum jurídico d aquelics que da
mesma se utilizavam. .. . .
Diz-se ainda : — quem contestará que exerce um direito de
uso innoxio do alheio, o viajante que se abriga á sombra do
uma arvore que dc dentro da propriedade de alguém estende
sua ramagem sobre a estrada publica ; ou aquelle que se aquece
á fogueira arranjada e accósa por outrem, ou lê uma carta, ou
faz qualquer outro serviço, á luz do lampeão que da casa alheia
se projecla na rua? Taes argumentos, que á primeira vista
pódem iltudir, não têm entretanto o minimo valor. Quando
o viajante se refresca á sombra d’aquella arvore, ou alguém se
aquece ao calor d’aquella fogueira, ou de qualquer modo se uti­
lisa da luz d’aquelle lampeão. usa de cousas inapprehensiveis,
e que não pódem ser do dominio de ningürm.
O dono da arvore póde covtal-a, sem duvida, o da fogueira
extinguil-a, e o do lampeão apngal-o -, mas emqiumto o não fi­
zerem, o uso d’quellas suas qualidades naturaes e de, gozo in­
esgotável, tanto é d’elle como de qualquer que as possa e queira
aproveitar, uma vez que para isso não lhe seja preciso invadir
a propriedade d’aquelle onde se achem, ou do onde partam taes
cousas. Si pois, o uso d’estns é permittido a quem quer que
seja; si é um direito d’aquelle que as utilisa ; não é por ser uso
innoxio, e sim por não ser uso de cousa alheia, ou pertencente
ao dominio de alguém.
Pretender-se-ha que esse direito dá-se necessariamente cm
certos usos que somos autorisados a fazer da cousa alheia, que
temos em nosso poder a titulo de empréstimo, de deposito, de
penhor ? Mas ainda n’estes e outros casos semelhantes, si te­
mos o direito a taes usos, irão resulta isso do facto de serem
estes innoxios, mas do acto pelo qual o seu dono consentiu
a titulo gratuito ou oneroso que o seu objecto se conservasse
em nossas mãos, ou foi a isso obrigado por alguma razão jurí­
dica; caso em que o seu dominio se torna um dominio limitado.
Os usos das cousas alheias, em taes circumstaneias, são antes
factos ou consequências naturaes e inevitáveis do estado ou
condição excepcional em que ellas se acham, do que propria­
mente direitos d'aquelles que as utilisam, e ainda menos pódem
ser como taes considerados, pela simples razão de serem actos
innoxios.
Em ultima analyse, si o uso da cousa alheia, unicamente
por innoxio, fosse um direito, ou aulorisado pelo Direito eniâo
deveria elle ter muito maior extensão do que lhe dão aquclles
que o defendem. Então devèra ser-nos permittido invadir
a propriedade alheia contra a vontade de seu dono em todos os
casos em que este por qualquer motivo a não utilisasse ou cm nue
pudéssemos tirar d’ella alguma vantagem sem lhe causarmos
prejuizo ; e com mais razão, si cm vez d’isso, tivéssemos cm
'isla obrigul-o a prestar-nos o uso de sua propriedade com
proveito d'elle proprio. Assim, aquellc que tivesse uma casa
fechada ou um terreno que não cultivasse, poderia ser por nós
compellido a entregar-nos essa casa ou terreno, sequizessemos
habital-a ou cultival-o pagando-lhe uma renda-, c então a pro­
priedade seria anniquilada ; o dominio seria uma vã palavra.
Evidentemente não póde ser aceeita uma doutrina que conduz
a semelhantes consequências.
Mas si o uso da propriedade alheia a titulo de ser elle in-
noxio não póde ser considerado um direito nas circitmstancias
ordinárias, resta-nos indagar si esse uso innoxio, ou mesmo
nocivo ao dono de uma cousa, será permittido nos casos excep-
cionaes cm que seja isso absolutamente indispensável para sal­
var-se a propria vida ou a d e outrem ; isto é, si se deve admiltir
ou regeitar o direito chamado de. necessidade, sobre que tanto
tem disputado os philosophos e moralistas.
Nos §§ 78 e 79, em que trata d’esta questão, o Compendio
a resolve em sentido negativo, contestando a realidade de tal
direito, e essa mesma doutrina é ensinada, além de outros mui­
tos escriplores, por Kant e. Ferrer. Kxamincmos os diversos
argumentos com que se costuma sustental-a, para mostrarmos
que elles não são procedentes, e que outros muito mais sólidos
ha para sermos de opinião contraria.
Diz-se que com quanto pela Moral o homem tenha o dever
dc salvar a vida a seu semelhante mesmo á custa dc algum bem
seu ; segundo o Direito não tem elle essa obrigação. Mas este
principio, em geral verdadeiro, não tem exacta applicaçáo
á questão vertente -. pois que pelo direito de necessidade não se
impõe propriamente ao dono da cousa a obrigação de salvar
o necessitado, e sim unicamente a de não obstar que elle se salve
mediante o seu uso. O Direito não póde, cerlamente, obrigar-
nos a lançarmo-nos ao mar para acudirmos ao naufrago eom
risco dc nossa propria vida ; mas não seremos pela lei jurídica
obrigados, ao rneuos, a consentir que elle se apegue á nossa
canôa ou tabon para salvar-se de uma morte que sem isso é im­
minente e certa ? eis a questão. ~
A irracionalidade da doutrina que combatemos, revela-se
na propria inconsequência manifesta em que cabem aquelles
que a defendem ; uma vez que, contestando o direito de neces­
sidade elles declaram, com tudo,que si o necessitado não póde,
quando aquella urge, pedir ao dono da cousa o consentimento
prévio para o seu uso, presume-se, em todo o caso, que esto
° dá, e reconhecem que o necessitado que obra sobre o influxo
da necessidade extrema, não é, pelo seu acto, passivcl dc pena
alguma. Ora. perguntaremos nós, porque é ou como é. que
nos casos de tal necessidade se presume sempre aquello consen­
timento do dono da cousa ao seu uso por outro, quando o mes­
mo se não presume em caso algum, fóra d’isso, em que alguém
se serve do alheio, e em seu prejuízo ? Não será porque em
tacs casos o direito de propriedade de um eéde, subordina-se
ao direito mais forte, mais sagrado do outro, que então se acha
em collisào, e é incompatível com aquelle ? Não póde ser isso,
cm attenção ao fim a que o uso da cousa alheia n’essas cou-
j (incluras se destina, nem simplesmente por causa da boa in­
tuição d’aquelle que então da mesma lança mão. Fols que
aquelle que furtasse ou roubasse,em circumstancias ordinárias,
para fazer esmolas, teria igualmente em vista um fim muito
moral em si, e as melhores intenções do mundo, e nem por isso
a favor d’elle se presume o consentimento do dono da cousa
furtada ou roubada, e nem o aulhor de tal furto ou roubo dei»
de ser criminoso e sujeito á punição. •
Demais, toda a presumpçãodeve ceder á verdade, c por con­
seguinte, na doutrina dos adversários do direito da necessidade
devõra ser punido aquelle que na imminenciado perigo de um
naufrágio salvou-se na prancha de outro, si este viesse decla­
rar ante os tribunaes competentes que esse desgraçado apos-;
sou-se da sua propriedade sefn o seu consentimento, e a[L‘
á torça. Si o naufrago não tinha o direito de se agarrar áq»el!a
prancha, si o fez violentamente, e si o seu dono o podia ju»'1"
1 icumente repellir d’esse intento armado do seu dominiu ; *e'
cue-se que deu-se por parte d’aquelle contra este uma verda-
ueira lesão de um seu direito, um crime, e sobretudo si a co»sa
se perdeu ou deteriorou, e a toda a lesão de direito, a lodo o crime
deve necessariamente corresponder um asaneção penal *', a"
a lógica dos_ adversários do direito de necessidade não vai ab­
am ; elles não se atrevem a tirar, essa consequência ncccssaria
< e seus princípios ; absolvem o naufrago e condemnam o Pr0'
P«nO, n 0 ’ q,llc por sua recusa ou opposiçào ao uso de alg°ma
rM«;ioSua’ 10llver oceasionado a morte d’aquelle. F.m q ° e se
lunüam para isto ? —
A maneira pela qual Kant procura sahir-se d’esta difficul'
cade nao satisfaz, nem convence a ninguém. « Derme servil0’
diz elle, punisse mesmo com a morte aquelle que procura»»
salvar-se de um perigo imminente de vida, si a morte qu° C"L
evita e certa e proxima,ao passo que aquella com que se oameaÇa
e remota e contingente ? » R’ isto uma verdade • mas que pr°va
""ria T f-,10. q-Ue rqua,que,‘ Ppma que se applicasse em tal ca »
»m a de facto ineficaz : sem que se possa inferir d’ahi argument0
IG7
algum uü sentido Je fazer desapparecer ou diminuir de qual­
quer modo a criminalidade do aclo, si elle lusse com eITeito um
crime, ou a justiça da sua punição ; do mesmo modo que a res­
peito do assassino ou do ladrão que morrem antes de punidos.
Mas contra semelhante assimilação protestam altamente o bom
senso ea consciência geral da humanidade. Além de que nquella
maneira de discorrer de Kant não explica, como, por outro lado,
será realmenle punível o proprietário de coração endurecido
que houver sacrificado a existência do necessitado á inlangibi-
lidade do seu domínio.
Aonde, pois, os adversários do direito de necessidade des­
cobrem um crime, que apenas dillere dos mais em não poder
ser de lacto punido, a razão esclarecida \ò a pratica de um aeto
legitimo ; e aponta, ao coutrario, o crime aonde aquelles en-
chergam o direito. E’ exactamente por ser esse acto impuni-
vel por sua natureza, ou em razão de exigências proprias da
natureza das relações humanas, em taes casos, que elle consti­
tue um direito natural do homem. O que se não póde admitlir
é que se lhe recuse este caracter, e que ao mesmo tempo se
o justifique como facto.
Em summa, se a faculdade que temos de servir-nos das
cousas alheias para salvarmos a nossa vida sem incorrermos
cm pena, devendo ao'contrario incorrer n’esta o dono d’ellas,
que privando-nos do seu uso nos sacrifica, não é um verdadeiro
direito, o que será ? Será, como dizem alguns, um mero favor
filho da equidade ? Mas esta, que é apenas uma moderação ao
rigorismo da justiça, jamais póde ser invocada para tornar le­
gitimo aquillo que em si é propriamente injusto, ou para inno­
centai' um crime. Demais, como cunciliar-se ainda essa equi­
dade em favor do necessitado lesante, ou crimiuoso, com o hor­
ror ou a pena a que é justamente votado o proprietário que
o sacrifica em defesa de seu direito, se ainda nas circumstan-
cias criticas d'aquellc o direito d’este subsiste o mesmo ?
Pretende o Sr. Ferrer que os proprios que sustentam o di­
reito de necessidade professam tacitamente a lheoria opposta,
desde que impõem áquellc que lançou mão da propriedade alheia
para salvar-se, a obrigação de indemnisar o seu o douo logo
que isso seja possível. Mas semelhante objecção não resiste
à analyse. Primeiramente, porque ella parece presuppôr que
a indemnisaçáo só póde ser devida em razão de actos crimi­
nosos, o que é falso. Em segundo lugar, porque nem sempre
tal indemnisaçáo é realmente devida em tacs circuraataucias,
como adiante veremos, ao dono da cousa embora prejudicado.
E finalrpente. porque em todo caso, esse dever dc indemnisaçáo
não é de modo algum incompatível com a realidade do direito
que defendemos ; pois que sendo este um direito originado de
circumstancias extremas, sendo um remedio do momento e só
n’elle e para elle aulorisado, também só pôde ir alé onde vai
a necessidade que o determina, e emquantp ella dura. Per-
mitte-se ao necessitado em perigo immincntc de vida, e na oc-
casião instante do mesmo, usar da propriedade alheia para o fim
unico de salvar-se, e não para fazer seus incondicional e defi­
nitivamente esse uso ou proveito d’aquella em damno do seu
dono. Satisfeito, pois, este fim, passada a necessidade e o pe­
rigo que a impòz, a cousa alheia ou o seu equivalente, devem ser
a este restituídos, ou quaesquer indemnisações de seus prejuízos,
si isso fúr possível, por um principio de rigorosa justiça.
Itcconhcéer-se o dever d’esta restituição ou indemnisação,
importa apenas reconhecer-se que o dono da cousa de que o ne­
cessitado lançou mão é realmente seu dono, e tinha sobre ella
o direito de dominio, o que, aliás, jámais se pôz em duvida.
.Nao é, porém, desautorar de modo algum o direito, não menos
real, que^ por outro lado, tinha o necessitado de usar d’el!a,
apezar d aquelle. Não é, desconhecer, quér o direito.de um,
quer o de outro ; é ao contrario reconhecel-os ambos, decla-
ial-os em colisão, e dar a preferencia áquelle que em razão de
syi objecto e de seu fim, se deve reputar, e é mais forte.
Diz-se que não pode haver colisão de deveres; nem direito
contra direito. .Mas no primeiro caso nega-se um facto incon­
testável, porque essa colisão dá-se realmente em muitas cir-
cinnstnncias, e nas que temos (igurado é ella fóra de duvida
entre o dever de conservação própria e o de respeitar o alheio ;
e no segundo resolve-se a questão pela mesma questão, por­
que quando se affirma em relação á mesma que não ha direito
contra direito suppõe-se já provado que o de necessidade o náo é.
L I3 C A Û Z Z T I I

§§ 7 8 - 7 ! )

Continuação : — do direito de necessidade

Contestando o direito de necessidade, pretende ainda o Sr.


Ferrer, que a theoria que o defende daria occasiâo a muitos abu­
sos, c que até a necessidade extrema que se figura póde ser um
estado preparado dolosamente, ou pelo menos filho;da negligen­
cia ou culpa do proprio a respeito de quem ella se dá. Mas
que importa, afinal, semelhante reflexão ? Seja ou não seja esse
estado procedente de incúria ou dólo do necessitado, si a sua
exislencia c real, e si a necessidade figurada é verdadeiramente
extrema, o seu direito deve ser o mcirao -, porque esta circums-
tancia sobrepuja os efféitos de todas as mais, faz cessar a força
de quaesquer outras considerações no momento critico. Aquelie
que por negligencia ou malicia deu causa ao estado de necessi­
dade extrema em que se vio forçado a lançar mão do que é dc
outrem, ou a olfender um direito d’este para salvar-se, será
responsável ou criminoso não por este facto, mas pelo que lhe
deu origem, c pelas suas consequências, si elle tiver realmente
consistido em uma acção culposa ou cm um crime.
Masfóra d’esses casos, sendo certo que effectivamente ou­
tros se pódem dar de tal necessidade que não sejam nascidos
d'aquella negligencia ou crime, e que são esses até os mais na-
luraes e mais communs, o que poderia responder- nos o Sr. Fer­
rer, si lhe disséssemos que estes bastam para inulilisar asuaob-
jccção, e autorisai' a doutrina que elle regeila ?
Quanto aos abusos a que póde dar occasiâo a doutrina que
sustentamos, c tora de toda a duvida, que muito mais graves são
agnelles que pódem originar-se da opposta. Si a que defende
o direito de necessidade póde alguma vez autorisar o uso mo­
mentâneo da propriedade alheia sob o pretexto de salvar-se al­
guém de um perigo dc vida que realmente não exista, a que re-
22 r.
170
guita esse direito auto risa o proprietário avarento ou deshumano
a sacrificar a vida de seu semelhante em occasiões em que esta
vrrdadeiramenlo se ache em perigo certo e immiuente. Si esla
tlieoria é mais social do que aquella, como quer fazer crèr
o Sr. 1'errer, diga-o o bom senso de. cada mn, e a consciência
de seus proprios sustenladores ; diga-o, cm lim, a razão univer­
sal pelo orgào dos codigos das Nações mais cultas, os quaes
não só permiltem, mas expressamente ordenam que em risco
immincnte de naufragio se lance ao mar a carga do navio, pro­
priedade importante de seus carregadores, si assim fõr preciso
para salvar-se a sua tripolaçào e passageiros, sem que por isso
iiquern estes, ou o respectivo commandaute, sujeitos mesmo
a qualquer simples indenmisação. Será este ou não um dos
muitos casos em que se mostra com toda a evidencia a reali­
dade do direito em questão ?
Procura-se com aquelle e com outros semelhantes argu­
mentos fazer crèr que a doutrina do direito de necessidade fa-
vonèa a idea anarchica da cnnnnunhâo geral dos bens entre
os homens, e é capaz de fazer surdir de todos os ângulos da so­
ciedade uma multidão de necessitados extremos suppostos,
e reaes, ou taes constituídos por culpa ou fraude própria, dis­
postos a attentarem contra a propriedade alheia em damuo dos
cidadãos laboriosos e da paz publica: como si a extrema neces­
sidade fosse uma cousa conimum ou Pmgivel, ou si não houves­
sem em qualquer sociedade regularmente policiada meios elli-
cazes de verificai a e de reprimiras rapinas ou violências com-
mettidas sob a sua capa. Tal receio si não ó adrede calculado,
ou um rnéro recurso para a defesa a todo o transe da doutrina
contraria, c em lodo o caso, completamente vão.
17 certo ainda, como diz o autlior citado, que não se deve
afrouxar os principies do Direito, nem olTender a justiça ex­
terna; mas a questão consiste exactamenle em saber-se, si re-
coühecendo-seo direito de necessidade afrouxa-se esses princi-
p. , oITende-se essa justiça; ou si ao contrario, esses princí­
pios,^ o dever de respeitar a justiça é que exigem o seu reco­
nhecimento. Admittindo-se mesmo todo o rigorismo em qoc
o Sr. l''errer concebe a noção do direito, o que se deve pensar
é que este deve ser respeitado e mantido até onde e emquanto
o fò r; mas não que um direito o seja sempre, e o mesmo em
todas as condições imagináveis; que tenha sempre e de um
modo absoluto a mesma extensão ; ou que não possa soffrer, se­
gundo aquellas, alguma moderação legitima. Os proprios ad­
versários do direito de necessidade, que o negam para mio li­
mitarem de modo algum e jamais o de propriedade alheia, ac-
ceilam soin a mininia repugnância, na sociedade civil, innume-
ras reslricçùes, aliás menos urgentes e menos autorisadas, à
todos os direitos imlividuaes, mesmo a alguns mais importan­
tes do que aquelle; e aie si alg'um lia que em maior numero
e mais profnndtfmente as supporte, é exactamente o de pro­
priedade, sujeito a uma infinidade de imposições, ás servidões
forçadas, ás desapropriações, etc. l'ois este direito tão explo­
rado em beneficio das necessidades e até dos simples com mo­
dos da entidade collectiva Estado, não poderá ser justamente
limitado, uma vez ao menos, em favor da mais respeitável e im­
portante de todas as necessidades do homem, como si o des­
tino d’este fosse unica ou principalmente ser proprietário?
Si o homem tem até o direito, que ninguém lhe contesta
de sacrificar a vida de seu semelhante para resguardar a pró­
pria quando por este é posta em perigo, como não hade ter
para o mesmo fim, e em circumsiuncias idênticas, o de usar
apenas, ou mesmo de sacrificar a propriedade de outrem, ou
qualquer parte d’esta, por mais insignificante ou inútil que seja ao
seu dono? Diz-se que na primeira hypothèse só se autorisa
o legitimo exercício do direito de defesa natural contra um ng-
gressor, que pelo ataque injusto que dirige a alguém, sujeita-se
necessariamente á sua repulsa,c tão intensa quanto o fôr aquelle.
Mas será o facto da aggressáo em si mesmo que justifica a morte
do aggressor? Si para justificai-u prescindímos da necessidade
extrema em que se acha o nggretlido de empregar esse meio
violento ; si é a aggressáo por si só que a autorisa ; então o mais
legitimo e melhor dos expedientes para aquelle que se defendo
contra qualquer ataque de outrem, e matal-o em todo o caso,
e em contiucnti ; escusado será indagar-se se isso é necessário.
Ainda mais: si por um lado, ó a aggressáo injusta que em si
mesma autorisa a morte do aggressor, e não a necessidade ex­
trema d’este triste recurso, para a salvação do aggredido; c si,
por outro lado, fosse verdadeiro o principio de que em nenhum
caso, nem mesmo para salvar-se a propria existência, tem-se
n direito de lançar mão da propriedade alheia, e ainda menos
de saerifical-a, segne-seque aquelle contra quem investisse um
touro furioso ou um cão hydrophobo pertencentes a alguém,
não poderia matal-os para livrar-se d’elles, sem prévio consen­
timento de seu dono, desde que esse touro ou cão não estão no
caso de serem reputados injustos ággressores. Itespondaitt os
adversários do direito de necessidade, sem tergiversação, si
tarnbem n’este caso é ou não incontestável a realidade do tal
direito Haverá quem ouse negal-o sert caliir no ridículo?
Ponhamos pois as cousas nos seus devidos lugares -, o que
172
a aggrcssão autorisa é a defesa do aggredido ; a morte do ag •
gressor, porém, só é justificada pela sua extrema necessidade.
Não equiparamos, de certo, o proprietário innocente, que
nenhuma parle tenha no risco de vida que corre o necessitado,
com aquelle que criminosamente attenta contra a existência
alheia-, o que queremos unicamente dizer, e é evidente, é que
o fundamento jurídico com que o injustamente aggredido re­
pelle a aggressào matando o aggressor, é na sua essencia, o mes­
mo com que nos mais casos de necessidade extrema o necessi­
tado usa da propriedade de outrem, ou mesmo a sacrifica á sua
salvação. . 1
I)ir-se-ha: si a necessidade extrema autorisa a violar-se
a propriedade alheia para salvar-se a vida própria em perigo
certo eimminenle, deve tambern autorisar essa violação quando
ella fôi igualincnte necessária para a salvação de qualquer
outro direito humano ; e, entretanto, porque razão não se dá
ao direito de necessidade toda essa extensão? A razão é ob­
via, e é que a respeito de quaesquer outros direitos que não
o da conservação da existência, jámais se verifica propria­
mente aquelle estado dc extrema necessidade do uso ou sacrifí­
cio da propriedade de outrem como meio de salval-os: As ol-
fensas de que elles são susceptíveis, desde que não envolvam
perigo de vida do oflendido. não são cases d’quclles em que se
figura o necessitado extremo, que só possam ser remediados no
momento unico e preciso, passado o qual sem repulsa, sejam
taes direitos irremissível e totalmente perdidos. Diffieijmente
se conceberá mesmo, como o uso ou sacrifício da propriedade
de outro seja também, em taes conjuncluras, o meio unieo ou
o mais adequado para a sua defesa. Entretanto si os adversa-
rios do direito de necessidade quizesseni provar-nos que outros
direitos humanos ha que deveriam, tanto ou mais que o da pró­
pria conservação da vida, gozar em sua garantia d’aquelie pri­
vilegio que a necessidade extrema aulhorga a esta, a ser ellc
r®al; si nos dissessem, que a conservação da nossa honra, esta
n este caso, pois que os mesmos codigos das Nações cultas já
por nós invocados, autorisam até a morte dos que contra cila
attentam em certas condições, a do adultero, por exemplo, apa­
nhado em flagrante; não teríamos duvida em acceilar dc suas
próprias mãos mais este argumento ern apoio do direito que
elles combatem.
Diz ainda o Sr. Ferrer que o direito de necessidade é in­
admissível, além do mais, porque o dono da cousa póde igual­
mente achar-se no mesmo estado em que se ache um extranho
que d’ella careça para salvar-sc. Mas si é possível que o dono
d i uma cousa indispensável á salvação tia existência de alguém,
vtlja-se em algum caso, em igual necessidade, d'ella para o mes-
-'o fim, mais fácil é suppúr-se que assim não seja na maior, parle
>s vezes; e. a estes casos não teria apiilicação aquelle argu-
niento. Poderiamos, pois, responder ao Sr. Ferrer, que o di­
reito de necessidade dá-se unicamente n estes. Entretanto ad-
mittindo-se mesmo, o que aliás não é admissível, que cm todos
casos cm que alguém se adiasse na necessidade extrema de usar
de uma cousa alheia para livrar-se de uma morte imminente,
tinha o máo fado de encontrar o seu dono nas mesmas circums-
tancias, nem por isso seria menos real o direito que sustenta­
mos. Si o dono da cousa, como allega aquelle author,éo unico
juiz, competente da sua necessidade extrema, da mesma fórma
o 6 da propria o exlranho que da sua propriedade necessita;
e si a necessidade extrema do dono dVsia ó o que deve garan-
til-o contra a pretensão d’aquellc; si para amparai-o neste
caso se invoca a necessidade extrema em que elle também se
acha, então o titulo em que se faz. assentar o seu direito de pre­
ferencia, vem a ser exactamentc esse mesmo direito de neces­
sidade que se contesta; o que lhe vale em tacs conjupcturas,
mio é mais o seu direito dc domiuio sobre axousa, o qual d esse
modo se declara insufli,ciente para a repulsa do necessitado cx-
tranho. Mas esse titulo é igual em ambos ; e por tanto não ha
razão juridica para scr um preferido ao outro.
A verdade d’esta consequência é, aliás, clara. A necessi­
dade extrema nivela as condições d'aquelles que se acham sob
o seu terrível influxo ; cila passa a rasoura inexorável sobre,
todos os direitos ou preferencias ordinárias, dando nascimento
a um só que lhe c especial Nas circumstancias figuradas alla
faz desapparecer o proprietário e o proletário, vendo n’elles so­
mente dous homens ipte tem o mesmo direito de viver, em pre­
sença de um meio dc escapar ú morte, unico c insuliicicntc
para ambos. Essas primasias das necessidades do dono da coüsa
a respeito das de qualquer oulrp, nâp podem, com efteito, ser
convenientcmenle applicadas senão nas suas relações normaes,
porque então, se póde pesar c comparar as prevenções, direi­
tos ou títulos diversos de uns e outros sobre um objecto cm li­
tígio ; çssa balança porém, fal-a em pedaços a necessidade, filha
inflexível da Fortuna, com a máo dc bronze que lhe dava a my-
thologia. Não emittiria, realmente, o mais repugnante dos pa­
radoxos, quem affirmasse que ern um uaufragio o douo de qual­
quer objecto existente no navio tem mais direito de agarrar-
se a algum d’elles para salvar-sc do que qualquer passageiro ou
homem da Iripolaçáo? Não seria ainda mais enprme o absurdo
d'aquelle que sustentasse que esse mostno dono de tal navio
e de todos os objectos existentes a seu bordo poderia muito le-
güimamente, si tal caprielio Itie viesse á mente, salvando-se a si,
prohibir a todos os mais seus companheiros de infortúnio apos­
sarem-se de quaesquër d’aquelles objectos seus para salvaram -
se igualmente? Taes seriam, no entanto, as ultimas conse­
quências lógicas da doutrina que contesta o direito de neces­
sidade ! _
Póde-se conceder quando muito, que hajam casosde neces­
sidade tão extrema e violenta, que os que n ’ella se achem obrem
como puras machinas, moviaas pelo méro instincto animal da
conservação ; casos em que nada têm que ver o Direito ou a Mo­
ral. Mas tora d’estes, outros casos se concebem, em que apezar
da extrema necessidade, não se anniquila de todo a reflexão do
necessitado. Imagine-se ainda naufragos lançados em uma
ilha distante do continente; que esta ilha pertence a alguém ;
que abunda em fructos ; e que aquelles naufragos terão infalli-
velmente de perecer dentro de alguns dias, si d’estes não se ali­
mentaram, até serem d’ahi retirados. Conservam elles por ora
toda a sua reflexão ; estão cm perfeito estado de deliberar ; mas
o soecorro necessário só lhes poderá vir fóra de tempo. I‘er-
gunta-se, serão elles inliibidos de ulilísar-se desde logo d'esses
fructos, ainda que o dono de tal ilha tenha afixado n’ella algu­
ma prohibição expressa d’isso aos que n’ella aportassem? pre­
cisarão de implorar antes para esse fim uma licença especial
d’aquelle, aliás ausente, e com o qual é impossível qualquer
communicaeão ? ou deverão esperar que a fome em seus últi­
mos assaltos os reduza ao estado de pura animalidade, para
então podel-os comer sem crime? Veja-se a que conlrasensos
conduz a doutrina que combatemos ! A propria reflexão dos
necessitados que em tal circumstancias se acham é a primeira
a nutorisal-os a lançarem mão do alheio, e a dar-lhes a intima
convicção da legitimidade, e do direito com que o fazem ; a sua
consciência fica e deve ficar cm laes casos perfeitamente tran-
cjtiilla.
Não lia mesmo adversário por mais exagerado que seja do
direito de necessidade ; por mais fanalico que possa ser da ab­
soluta inviolabilidade do alheio, que não votasse á execração,
á infamia, e a mais séria punição mesmo, o monstro que a pre­
texto de ser dono da miserável taboa de salvação, aliás sem
valor nem préstimo pára elle, a que se agarrou o naufrago, ou
da ilha que figuramos, fizesse arrancar aquella de suas mãos,
ou lhe vedasse os fructos d’esta, e fosse assim causa de perecer
qualquer d’elles victima das ondas ou da forne. R’ isso uma
inconsequência que faz lionra aos nossos antagonistas, que abona
a nobreza de seus sentimentos ; mas mio é menos uma nova
e poderosa prova da falsidade da sua doutrina. Serão, com ef-
feilo, unicamente a Moral e a lieligião que devam castigar um
tal perverso, apenas pelo remorso de uma consciência nulla, ou
com as penas da vida d’além tumulo ? Os tribunaes da socie­
dade, á qual factos de tal ordem intima e direclamcnte interes­
sam, serão incompetentes para condemnar tão vil assassino ?
Emtão graves casos não póde ser muda c impotente a justiça
absoluta ; o Direito Nálural não póde ser adstricto a sanccionar
o egoísmo ou o crime no que elles púdem ter de mais repug­
nante e selvagem. E tal é realmente, como já dissemos, a con­
vicção geral dos povos civillsados, traduzida n’essas previdentes
e sábias disposições de suas leis a que já alludimos, e que se re­
ferem a casos que entram na questão vertente.
A’quelles que depois de tudo o que temos expendido na de­
monstração do direito de necessidade, ainda vacilem em admit-
til-o, observaremos, afinal, que tanto menos motivo ba para
isto, quanto, em rigor, não ba um só direito humano que não
tenha por superior e ultimo fundamento alguma necessidade ;
a diflerença eslâ unicamente na especie e na intensidade d’esta.
Ora, si assim é ; si é sempre uma necessidade de qualquer or­
dem ou importância a razão .fundamental de lodo o direito, por­
que se liade ser Ião dilïlcil cm reconhecer que a necessidade
extrema, a mais instante e poderosa de quantas se imaginem,
tenha a virtude de produzir algum ?
Em summa, crémos haver poslo fóra de toda a contesta­
ção a realidade d’esse direito ; e si os seus proprios adversários
explicita ou implicitamente reconhecem que o aeto do necessi­
tado é impunivel em si mesmo, e que ao contrario o d’aquelle
que sacrifica a sua existência a uma migalha insignificante e até
inútil de sua propriedade, é uma monstruosidade, um attenlado
horrendo que a lei civil deve punir, e effeclivamcnte pune com
o maior rigor, isso basta para de uma vez nos convencermos
de que a doutrina contraria por si mesma se condemna. Ee-
lumenle não ha risco, em todo o caso, de que elia possa fazer
prosélytes.
• L I 0 3OA 0 Z 2 T T Ï Ï S

§§ 80 — 85

Da prescripção, sua legitimidade e u tilid a d e ;— seu (anda­


mento no Direito N atural, ou no Direito Civil

N’estes diversos paragraphes trata o Compendio da pres-


cfipçao,a qual constitue, conforme elle já nos disse no seu § 77,
uma das excepções que se admitte á lei que prohibe aos mais dc
usarem ou apossarem-se da propriedade alheia.
A prescripção c extinctiva ou acquisitiva, e n'este ultimo
caso toma especialmente o nome dc usucapião. Consiste a pri­
meira na perda de um direito por aquellè que o tem, em conse­
quência dc prolongada interrupção de seu uso ; e a segunda na
aequisição de uma cousa alheia por aquelle que realmeutc a pos-
suio durante essa interrupção.
Contestam alguns authores a legitimidade da prescripção
em geral, considerando-a como um meio que favorece a rapina
c a má fé; ao passo que outros, em maior munero. e com mais
razão, sustentam ser ella uma instituição ijtllissimn, e.uma im­
portante garantia da propriedade. Accrescentam os primeiros,
que, si o fundamento em que a prescripção assenta, é o aban­
dono presumido da cousa por seu dono, deve tal presumpção
ceder á verdade, e que, por conseguinte, em qualquer tempo
que o dono d’aquella se apresente, reclamando a sua entrega,
deve-lhe ser ella restituída por quem esteja na sua posse ; demais,
que, se o abandono dá-se rcalmente, o possuidor adquire a pro­
priedade do objecto abandonado, não por prescripção, mas por
occupação de urna cousa que se terá tornado nullius; e que,
linahnente, um prazo de tempo qualquer que seja, jamais póde
tirar o direito a quem o tinha, e dal-o a quem o não tem.
Mas estes argumentos são capciosos. O abandono é um
facto que se torna real em muitos casos dentro de tal ou tal
lapso de tempo, e então não deve mais ser licito ao dono que
177

era da cousa abandonada, allegar que elle não se deu, ou pre­


tender que a sua reclamação tardia o laça cessar depois d’elle
consumado. E’ inadmissível perante o Direito que o senhor
de uma cousa lenha a faculdade arbitraria e illimitada de de-
mittir-se de toda a manifestação do seu doininio sobre ella cm
quanto o queira, conservando-a, entretanto, sempre e apezar
d’isso, como propria para rehavel-a quando bem lhe apraza das
mãos de quem por longo tempo a teve unida a si e de tal sorte
« relacionou com todos os mais direitos seus, que d’elles não
pode ser a mesma separada sem detrimento sou. Para os que
sustentam a prescripção, não é em verdade no prazo decorrido
que propriamente consiste a causa eflicientc da perda do direito
do dono da cousa, e de sua aequisição pelo possuidor. Esse
prazo não é senão o facto externo demonstrativo do abandono
real ou com razão presumido d’aquella. _
Nem se diga, que a posse que não produz por si tal elleito
até a vesperu da terminação d’aquelle prazo, não púde produ-
zil-osú porque durou mais um dia. Ante o Direito Natural ab­
soluto um ou alguns dias de mais ou de menos contados n’esse
lapso de tempo, não decidem da legitima ou illegitima passagem
do direito do que era dono da cousa para o seu possuidor ; mas
ante o Direito positivo que o marcou para determinal-a, é in­
dispensável que elle se esgote para «pie a mesma legilimainentc se
verifique. Por outra; aquelle prazo é necessário para tal lira,
e prazo sem termo, ou operando elfeito antes d’este, é cousa que
se não concebe. A objecção a qim nos referimos não passa,
pois, de uma argumentação banal ; c que além d'isso provaria
de mais, pois que se applicariado mesmo modo a outros muitos
direitos, aliás incontestáveis, que também de prazo dependem.
Kinalmenlc, pretender- que cm taes casos o possuidor ad­
quire a cousa como res nullius, por oeeupaçúo, é fazer um
inéro jogo de palavras, visto que ó cxactamente esse modo ex­
cepcional de tornar-se nullius o que pertencia a alguém para ia-
zel-o passar ao domínio de outro que de tacto a possuia, nas
condições figuradas, o que-se chama prescripção. Além de que
fôra preciso áquelles que emitlem esta idéa, mostrar como é
que pelo lapso de tempo maior ou menor essa propriedade de
alguém se torna nullius, depois de estabelecido por elles mes­
mos, o principio du que o tempo qualquer que seja não tira, nem
dã direitos.
A prescripção é pois legitima ; c tanto menos sc póde dizer
que seja uni meio de favorecer a rapina e a usurpação do alheio,
quanto para que elja se dê, exigem-se condições destinadas a tor­
narem impossível a fraude n’esse sentido. Eom effeito, para
■2'i F,
que a prescrip<j.ão se verifique é indispensável,'segundo o Di­
reito, que o possuidor da cousa o seja de boa fé, e cora justo
titulo, ou pelo menos com titulo que razoavelmente elle podesse
crèr tal.
Uma posse estabelecida ou continuada pelo dólo ou pela
violência, ou com a sciencia de sua illcgilimidade, não pôde,
com effeito, em tempo algum transferir o dominio d’aquella ao
seu possuidor.
Mas a prescripção nâo é só justa em um sentido absolulo ;
é, demais, realmente uma garantia indispensável da proprie­
dade, e interessa no mais alto ponto á ordem social. Desco­
nhecida ella, nenhum possuidor poderia julgar-se com direito
seguro e definitivo sobre as cousas existentes na sua posse, e já
na sua propriedade de lia muito confundidas. Em qualquer
tempo se poderia mover duvidas e contestações a semelhante
respeito, e com tanta mais facilidade perturbar o seu dominio,
quanto com o longo decurso dos annos as suas provas ou do­
cumentos de sua legitimidade poderiam desapparecer. O en­
cargo que se impuzesse aos possuidores dc guardar perpetua­
mente os seus titulos e os dc seus mais longiquos avós ou ante­
cessores, e de velarem sobre elles dc geração em geração, seria
urna tarefa ingrata, um onus insçpportavel, e que ainda assim,
não os poderia tranquillisar ou garantir de lodo contra a fraude
e a chicana, ás quaes dariam antes novo e mais terrível ali­
mento. Já ferieis em recursos, estas se achariam então arma­
das com mais esse meio poderoso de levar as suas escavações
sobre os vicios reaes ou suppostos do dominio, ou posse alheia,
até á cpoclia de Nóe.
Além dos escriptores que contestam de um modo absoluto
a legitimidade da prescripção, outros ba que se limitam á pen­
sar que ella não ó uma derivação immediata do Direito Natu­
ral, mas uma simples creação da lei civil. A esta opinião, po­
rém, que é a do Compendio, do Sr. Ferrer, de Abrens, de líe-
hnie, c ainda de outros muitos autliores, preferimos a doutrina
opposta de C.rocio, de Dulfendorfio e tambern de outros muitos,
embora não a sustentemos com os mesmos argumentos, que
estes produzem em seu apoio, baseando a prescripção em uma
supposta convenção ou alienação taeita, pela qual o dono da
cousa a transfere ao possuidor.
Todos esses escriptores que excluem do Direito Natural
a prescripção, acceitando entretanto a sua legitimidade como
instituição positiva, dão pára demonstrar que ella é realmente
legitima, excellcntes razões, que aliás não são outras senão as
mesmas que acabamos dc expender. Mas essas razões, a nosso
170
ver, nào são boas unicamente para fazer-nos considerar a près*
cripção como uma creação iililissima do Direito Civil ; sâo-n’o
da mesma forma para convencer-nos de que cabc-llic incontes­
tavelmente um lugar entre as disposições dircclamente funda­
das no Direito Natural.
A justiça absoluta, anterior e independente da lei posi­
tiva, que caractérisa a prescripçào nos parece, com effeito,
incontestável ; pois que (piando mesmo os codigos das Nações
cultas não a estabelecessem, nem por isso deixaríamos de con­
cebei-a como uma instituição indispensável segundo o Direito,
e por lauto legitima.
Poderiam esses Codigos sem injustiça, sem uma subversão
completa de todas as importantes relações sociaes que se pren­
dem á propriedade, declarar esta imprescrcptive! cm todas
c quaesquer circumstancias ? Não ; porque n prescripçào fun­
da-se, como dissemos, no abandono real ou justamente presu­
mido da cousa, c abandonada esta deve «lia passar necessaria­
mente a alguém ; e a quem com melhor razão passará do que ao
seu possuidor figurado nas condições que o Direito para isso
exige ?
Entretanto, c claro que aquelln imprescreptibilidade ab­
soluta poderia ser decretada com justiça, si a prescripçào di­
manasse apenas do mais ou menos bom arbítrio do legislador
civil, embora a cousa abandonada tivesse de ficar perpetua­
mente nullius.
Ainda mais; si aquellas mesmas razões, com que se quer
autorisar a prescripçào pelo simples Direito Civil, não são suf-
ficientes para a considerarmos de absoluta justiça, independen­
temente d’elle, acceitando-a como legitima, não faríamos outra
cousa senão justificarmos uma usurpação do alheio por meras
razões de utilidade social, as quaes, por mais attendiveis que
sejam, nunca pódem legitimar a injustiça.
A prescripçào, por tanto, ou é inadmissível, quér por
Direito Civil, quér por Direito Natural, ou para ser recebida
ifaquelle deve antes passar por este, purificar-se nas suas fon­
tes. E, assim, não é o Direito Civil que créa esse meio juridico
de adquirir o que era de outrem ; elle o acha já, antes de suas
disposições, aulorisarlo e impondo-se como uma instituição ne­
cessária resultante da mesma natureza cia propriedade, c dos
principios absolutos que devem reger as relações que cila de­
termina.
Pretende-se. sobretudo, que a prescripçào não pode sev
uma instituição fundada direclamente no Direito Natural, por­
que este não marca, nem póile marcar o prazo, sem o qual cila
•180
não e de faclo possível ; mas si tal argumento fosso procedente,
quantos outros direitos, que, aliás, ninguém, jamais, contestou
on contesta serem immediatamente derivados d’este Direito,
deveriam ser d elle eliminados ! A acquisição originaria das
cousas nu/lius, deixa de ser directamente fundada no Direito
.Natural, porque só a lei positiva pódo lixar os limites precisos
,íl ° ^ U" ^ 0 ' , '*‘l alguém pò7, em duvida que a emancipação
dos lilhosem relação ao poder paterno seja desse Direito, por­
que também so o Civil pode marcar a epoclia da sua maiori-
rii *V• . ,.es*e n:i° fixasse tal epoclia licariam. por ventura, os
limos juridicamente ad perpetuum so b a tutella e administra­
ção de seus paes ?
E por esta occasião poderiamos perguntar ainda áquellos
que íegeitando do Direito Natural a prescripção, admiltem, en­
tretanto, n’elle o direito de emancipação dos filhos, como é tam­
bém que na vespera de completar-se o prazo legal d’aquella
inano idade, não tinha o filho esse direito e no dia seguinte o ad-
quirio. Como é que, n’este caso. o lapso de tempo dá real­
mente um direito a quem o não linha? K’ por eonscguinle,
evidente, que pelo simples facto de não ser o Direito Natural
que marque o prazo para dar-se a prescripção, não deixa esta
de originar-se directamente d’elle, do mesmo modo que em
condição idêntica, não o deixa a maioridade juridica dos filhos.
Si esse Direito não marca o prazo cm nenhum d’estes casos,
nem em outros analogos, que poderiamos mencionar, indica,
embora de um modo indeterminado, pelo orgíio da razão, um
lapso de tempo mais ou menos longo, que, dadas certas con­
dições, se deve reputar suftlciente, em um caso para estabele­
cer a capacidade dos filhos para regerem a sua pessoa e bens ;
e no outro para julgar-se verificado o abandono da cousa, e ter
lugar a sua prescripção. ,
Em summa, é de justiça absoluta que quem quer que deixa
inteiramente de cuidar de sua propriedade, e consente que outro
a possua e trate como sua, envolvendo, em todos os seus actos
e relações, com cila, direitos realmente seus. por um longo es­
paço de tempo, a perca em proveito d’este, prescindindo-se
mesmo da idéa de um prazo para este fim positivamente deter­
minado. Como principio absoluto é isto incontestável ; e é n’isto
que juridicamente consiste a prescripção em sua essência.
A propriedade é, sem duvida, um direito muito respeita-
ve‘ ; roas, como todos os direitos humanos, carece de requisitos
para constituir-se, e c sujeita a condições para manter-se, se­
gundo 0 proprio Direito Natural. Ella adquire-se quanto ás
cousas numus pela occupaçãó anterior ; quanto ás mais pelos
pactos, ou pela applicação do trabalho ou imlusiria do cada uni,
sobre as mesmas, e deve cessar sobre qualqtior especie de
cousas pela desistencia formai ou legitimamente presumida
d’estas que faz desapparecer todas as suas razões naturaes e ju­
rídicas.
O principal argumento dos que excluem do Direito Natu­
ral a preseripçào consiste, como temos visto, em declarar que
é inadmissível fundal-a immediatamente no mesmo, desde que
cila depende de um prazo <pie, só o Direito Civil póde marcar.
-Mas além das razões que jd a esta objccção oppuzemos, aecresce
que elles preprios vècm-se obrigados a reconhecer, e alé a lei
civil expressamsnte consagra; uma espccie ao menos de près*
cripção sem prazo determinado ; lai é a denominada immémo­
rial, que se verifica pelo decurso de um tempo longuissimo,
mas indefinido, dentro do qual nfio haja memória da posse de
seu dono anterior.
Isto de tal sorte embaraça o Sr. Ferrer, que o induz a con­
ceder que essa especie de preseripçào se póde, com eiléito, con­
siderar como directamente instituída por Direito Natural.
Mas reconhecer isto, é reconhecer, em geral, o principio
da legitimidade da preseripçào, independentemente do prazo ;
ou por outra, o que já acima demonstrámos, que não é o prazo
que a constitue ou propriamente legitima ; é reconhecer, final­
mente, a sua justiça nhsolúta, segundo aquelle Direito. Pois
que a razão que a justilica n’esse caso, é, no fundo, a mesma
que nos mais; é o abandono da cousa verificado de facto ou
juridicamente presumido pela ausência da posse do seu dono
por nin longo espaço de tempo indeterminado como então, ou
determinado, quando a sua fixação é necessária.
Conscio da difficuldade cm que se, colloea, ou da incohc-
rcnçia que resulta de admitlir no Direito Natural a preseripçào
immémorial, excluindo as mais, o Sr. Ferrer quér explicar por
fim a acqnisição da cousa n’este caso ainda pela oerupaçào da
mesma constituída objeclo nullius peio abandono de seu pro­
prietário. Mas jà vimos o que se deve pensar d’esta explicação.
Concluiremos, pois, que a preseripçào além dc ser uma
instituição iinmipentemente util à sociedade, é demais justa cm
si mesma e directamente.'fundada no Direito Natural.
0 que é do Direito Civil em relação a cila, são unicamenle
os meios práticos, as condições externas necessárias para que
se opere de facto a passagem do direito do que era dono para
o possuidor da cousa; pelo que ao legislador civil, reconhecida
a legitimidade absoluta daquella, compelirá, a par do dever de
consagral-a expressamente nos seus codigns, o direito dc esta-
182
belecer os seus prazos, os factos que a interrompam, e outros
requisitos e regras particulares que são indispensáveis para a sua
rêalisaçao de modo racional e conveniente.
Comprehende-se, com effeito, que o tempo para a prescrip­
ção não póde ser o mesmo para a propriedade irnmovel e para
a movei, e nem ácerca de qualquer d’estas para objectes de im­
portância e condições diversas, mais ou menos susceptíveis de
posse ou dominio descontinuado, de mais ou menos facil reten­
ção indébita, e de mais ou menos frequente giro nas transacções
da vida commum ou do cornmercio ; que a presença do dono
no lugar da situação da cousa, ou a sua ausência, c outras cir-
curnstancias relativas áquelle ou ao possuidor, devem também
influir na maior ou menor extensão de taes prazos -, e que ao
primeiro devem ser facilitados os meios de interromper a pres-
cripção, de modo que tudo quanto da parte do possuidor faça
presumir o conhecimento do seu dominio, ou da parte do dono
a intenção de o conservar e rnanlèr, antes de lindo o prazo,
deve importar o espaçamento d’este por todo o tempo lixado
para que aquella se opere.
Eis o que é propriamente do Direito Civil em matéria de
prescripção ; assim como será também sua a justiça ou injus­
tiça que caracterisem as suas disposições relativas áquelles pon­
tos ou analogos igualmente de sua alçada.
Quanto, porém, a justiça da prescripção em si mesma, re-
petimol-o, essa incontestavelmente se deriva do Direito [Natu­
ral ; pois^ que a determinam a propria natureza, caracteres,
e condições da propriedade, que sem ella seria incompleta, con­
tingente, e em grande numero de casos uma ameaça, um tor­
mento constante para o possuidor, por mais bem estabelecida
e de melhor fé que fosse a sua posse.
Não se concebe mesmo que seja de Direito Natural a pro­
priedade, e que o não seja a prescripção, que é nina garanlia
indispensável, um corollario necessário, um complemento na­
tural d’ella.

I
|t

AUT1C0 SEGUKDO

Da acquisiçâo mediata

CAPITULO I
' • ir. |.
DOS PACTOS EM fíERAC

LiaOAO
o ZZXZ
§§ SG — 87

Necessidade e fundamento dos pactos; — seus elementos cons­


titutivos ; — origçm cie sua forra obrigatória

No artigo precedente, tratando da acquisiçâo inimediata,


vimos que para ella etlectuar-se era bastante que cada indiví­
duo, antes rie qualquer outro, otícúpasse alguma cousa nullius,
com a intenção bem manifestada de fazel-a sua; e que os limi­
tes d’essa especie de acquisiçâo, embora de um modo geral,
eram determinados, segundo o Direito Natural, pelas justas ne­
cessidades humanas, cuja satisfação depende do uso e disposi­
ção das cousas materiaes da creaçâo.
Mas si as necessidades fundamentaes da natureza humana,
assim como a sua capacidade jurídica, são as mesmas em todos
os indivíduos, entretanto, em virtude dos desenvolvimentos
proprios da personalidade do homem, e das situações particu­
lares em que cada um pôde legitimamente achar-se, ou collo-
car-sc, e de suas reaes aptidões individuaes, tornam-se as mes­
mas nas suas applicaçóes, e de facto, completamente varias
e desiguaes entre elles,, c o Direito Natural não póde deixar de
sanccioiial-as n’essa sua desigualdade, e de garantir esta nos
seus naturaes elfeitos.
Assim, pois, tanto serão da justa propriedade de alguém as
cousas que elle, adquira pelo modo immédiate dentro dos limi­
tes a que acima alludimos, como todas as mais que, sem outro
limite a não serem as suas proprias aptidões ou recursos pes-'
soaes e o dirpito dos outros, elle possa haver para a satisfação
das necessidades que lhe Idreni peculiares, ou ás situações re­
sultantes das legitimas evoluções de suas actividade.
Mas não sendo mais cousas nullius e sim de alguém aquel-
las que assim tenham de ser adquiridas, é claro que para pode­
rem ellas passar juridicamente do dominio d'este para outrem,
é indispensável o consentimento de seu dono \ aliás dar-se-hia
uma violência ao direito d’este, uma usurpação do alheio. Por
conseguinte, só mediante o eôncnrso das vontades d'aquelle
a quem a cousa pertence, e d’aquelle que a quér fazer sua, ou
só mediante um parto, ou contracto entre ambos, é possível
para este a sua legitima aequisição.
K si a legitimidade d’este meio de aequisição é assim
manifesta, não o é menos a indeclinável necessidade de sua ap-
plicação frequente na pratica da vida humana, como o mais
poderoso elemento, ou a mais vital condição quér do hem ser
do homem, quér do progresso social.
Com effeito, só pelos pactos é possível a propriedade em
toda a sua plenitude ; só por elles se opera a harmonia de todas
as aptidões e legitimas aspirações individuaes, a multiplicação,
equilíbrio e eiljcáz aproveitamento de suas forças, que isoladas
ou privadas de tal recurso seriam iusuQieicntes para a consecu­
ção de seus destinos pessoaes ou communs.
O pacto é assim o laço moral que eongraça os homens cm
uma troca reciproca de auxílios ou prestações pelas quacs se
eompletam a sua natureza e faculdades limitadas ; e nem se
concebe realmente estado ou circfiipstancia alguma, em que
o direito de fazel-os por si ou por outrem, lhes possa ser ve­
dado. li’isso uma necessidade permanente do seu caracter dc
pessoa, e a fórum mais geral, e mais ulil dos legítimos desenvol­
vimentos externos dc sua liberdade.
O pacto tem, pois, por fundamento superior a propria na­
tureza do homem, e a da mesma propriedade, que sem ella seria
um direito morto, lille entra assim immediatamente no domi­
nio e alçada do Direito Natural absoluto, máo grado a opinião
de alguns escriptores que pensam de diverso modo.
A aequisição que se opera por meio dos pactos, e que tem
por objccto as cousas já pertencentes a outrem, é a que, como
já precedenteraente vimos, se denomina aequisição mediata;
assumpto de que se occupa o Compendio n’este artigo.
Pacto ou contracto, segundo o Sr. Ahrens, « é o consenti­
mento declarado de duas ou mais pessoas de quererem entrar
a respeito de um objeeto qualquer em uma relação obrigatória;»
ou. segundo Helime, «o concurso de duas ou mais pessoas para
produzirem uma obrigação entre si ; » definições que se equiva­
lem. Elle tem por elementos essenciaes a promessa de uma
cousa, acto ou serviço de uma parle, e a acceitação dos mesmos
por outra, pelo que a simples promessa de um, ou a simples pre-
tenção de outro, por mais solemne que seja aquella ou bem
fundada esta, não pódem dar origem a obrigação ou a direito
algum para qualquer d’elles sobre talou tal objeeto. De modoque
aquelle que se obrigou a alguma cousa, ou prestação, póde
a todo tempo, emquanto não conste a sua acceitação por outrem
a respeito de quem essa obrigação toi contrahida, eximir-se ao
seu cumprimento. (20)
O pacto consiste, cm summa; como nos diz o Compendio
no § 86, na promessa acccita, e com razão accreseenta o mesmo
no § 87, que a promessa vem a ser, por tanto, o titulo, e a ac­
ceitação o modo da aequisição mediata. ,
ív da promessa que realmeiile se origina para o prormssa-
rio a possibilidade jurídica de adquirir o objeeto do pacto, e pela
acceitação que'essa possibilidade se converte efiectivamenle em
um direito seu Dado o concurso d'esses dous elementos,
o pacto á perfeito, c deve produzir os seus resultados jurídicos,
sejam quaes forem posteriormente acerca do direito ou da obri­
gação d’alu procedente, as idéas ou pretenções de qualquer dos
pactisantes.
Aquelle que, depois de feita e acccita a promessa, pretende
furtar-se á obrigação contrahida, pelo simples lacto de não ter
ella tido ainda execução, ou por qualquer outro motivo igual,
falta, com cffeito, a fé do contracto, e quebra arbitrariamente
o laço a que já, segundo o Direito, se achava preso.
Nem basta, em tal caso, fazer-se o pactuante remisso res­
ponsável pelos prejuízos que assim cause ao outro, pois que
a sua obrigação de indemnisal-os suppõejá a realidade e a con­
sumação do pacto, a cujo cumprimento elle faltou.

(3(1) I" o enso de que trata o Compendio na noia ao § JO, e que aqui
vem mais nproposito.
21 F.
180
Si feita e acceita a promessa fosse licito a qualquer dos pac-
triantes retirar a sua declaração, sol> tacs pretextos, ou altri-
buir-lhe significação diversa da que foi realmente manifestada,
nenhum pacto jamais se póderia considerar feito ; pois que a sua
execução ficaria dependente do bel-prazer ou má fé d’aquelles
que, depois de lcl-o celebrado, quizessem eximir-se ás suas pro­
prias estipulações.
Como bem observa o Compendio no §88,si aquella decla­
ração concorde das vontades dos pactuantes não bastasse para
firmar a sua obrigação e direito recíprocos, não bastaria até
o eííectivo cumprimento do pacto pela propria tradicção do seu
objeeto ; isto é, ainda mesmo depois de executados ou começa­
dos a executar-se, deveriam os pactos reputar-se sujeitos a ser
suspensos ou revogados. (21)
E’ possivel,sem duvida, que em algum caso o promittente
ou o acceitante tenha legitima exccpção para não cumprir
o pacto feito, ou para recobrar a cousa já entregue ; mas então
sera o caso de pacto nullo ou rescindivel, por Direito ; o que em
vxz de atacar o principio estabelecido, ao contrario, o confirma.
E si, ante o Direito positivo, pactos embora perfeitos e acaba­
dos pelo simples mutuo consenso dos pactuantes, ficam alguma
vez sem elTeito, por haver-se algum d’estes arrependido da pro­
messa antes dc sua execução, não é de certo porque perante
o Direito Natural absoluto não tenham elles tod*o o vigor; mas
sómente porque nem sempre são os mesmos feitos de modo que
se possa bem provar, na conformidade d’aquelle, contra a parte
remissa, a realidade de sua celebração, e o theor e força de suas
estipulações.
_ A regra de que da promessa se origina a possibilidade ju­
rídica para o promissario dc adquirir o objebto do pacto, ó,
pois, invariável; pelo que parcce-nos que sem razão pretende
o Compendio fazer-lhe excepção na segunda de suas notas ao
paragrapho de que traiamos ; e o que elle ahi indica como tal,
não o é realmente, e sim méra excepção á regra volenti non
ln)u>'ia a que elle ahi allude, e (pie não tem conveniente ap-
plicação á questão vertente.
Mesmo nos casos por elle figurados na primeira parte d’essa

(-1) Da necessidade ou não necessidade da t r a d i c ç ã o do objeeto


do pacto, para a validade d’este, trataremos particulannciite mais
adiante.
187
nota prevalece aquella primeira regra : acontece apenas, que
então a promessa não parle (los proprios donos das cousas,
mas sim de outros que legilimamente os representam, e, por
isto, n seu effeito jurólico é o mesmo. A promessa feita em
nome dos menores, ou dos dementes, etc., por sens legitimes
tutores ou administradores, tanto é, com effeito, justo titulo da
aequisição das cousas sobre que cila versa para aquellcs que
a acceitam, como o c nos mais casos. '
Quanto á parte da mesma nota em que o Compendio in­
daga si quando alguém pede a outro que o mate, este o pôde
prnmetter, ou o deve cumprir, é questão que também não tem
relação com aquella regra, nem com a sua supposta excepção,
e de que trataremos mais adiante quando tivermos de occupar-
nos da possibilidade dos pactos, Entretanto. desde já diremos
que a regra volenti non fit injurio, só é verdadeira quando
o que se faz a outrem por vontade d’este não é uma cousa ou
acção criminosa, immoral ou illicita.
’ Na terceira nota ao citado paragraphe trata o Compendio
dc indagar qual seja a origem da força obrigatória dos pactos ;
asssumpto que tem sido grandemenlc controvertido entre os nu-
thores de Direito Natural, « não, como diz o Sr. Ahrens, por­
que hajam muitos que sustentem o direito tle faltar-se ao cum­
primento das promessas que se tenha feita ou ncceito, mas por­
que não se tem sabido indicar razões sufficicntes para demons­
trar-se a origem da obrigação que d’ahi resulta, quer para o pro-
miltenle. quér para o promissario. »
Fazem uns derivar a força obrigatória dos pactos d’essa
tão explorada convenção expressa ou tacila, que suppGcm cele­
brada entre os homens, de que nasceu, ou pela qual se mantêm
a sociedade civil, pretendendo que por cila se obrigaram áquel-
les ou obrigam-se a ser fieis ao cumprimento dos mesmos. Mas
essa convenção, como já cm outras occasiòes o temos mostrado,
não passa dc uma pura ficção d’aquelles que no lacto social
procuram a razão de lodos os direitos humanos, em vez de li­
mitar-se a ver n’elle o que elle na realidade é, a garantia dos
que pela propria natureza, ou por quaesquer outros títulos legí­
timos. pertencem ao homem.
Os que pretendem explicar aquella força obrigatória dos
pactos dizendo, que pela promessa transforma-se um simples
dever moral em dever juridico exigivcl, em consequência da de­
cisão voluntária do proprio que se obrigou ; também nada
adiantam.
Primeiramente, porque não lia matéria para tal transforma­
ção, desde que, antes de feita e accéda a promessa, não ha de-
-188
ver algum moral da parle de qualquer dos pacluanles para com
o outro em relação ao objecto do pacto; e em segundo lugar,
porque si é simplesmente a decisão volunlaria do pactuante que
crèa para elle a obrigação que do pacto resulta, porque razão
não pódc elle por uma decisão contraria á primeira eximir-se
áquella ? Os partidários d’esta doutrina entendem que se pó de
constrangel-o áquillo a que elle voluntariamente se obrigou,
pelo já citado principio volenti non fil injuria; mas a questão
consiste exactamente cm saber-se como e porque, não obstante
aquella mudança de vontade, póde ser elle compellido ainda
a executar o pacto. D’ondé lhe vem essa prisão á sua promessa ?
Porque é que não se lhe faz injuria impòndo-se-lhe uma obri­
gação que não é mais de sua vontade, a>pretexto de que fazen­
do-se a sua vontade não se o injuria? Finahnento, porque é
que elle não póde mais revogar a sua primeira decisão ?
, A razão d’isto será a verdadeira razão da força obrigatória
dos pactos; mas a doutrina a que nos referimos não a dá,
e nem a maxima que ella invoca, e que só tem real applicação
aos casos em que effectivamente subsiste a vontade a que se ap-
plica.
A espectativa do promissario, a que outros recorrem como
explicação d’aquella força obrigatória dos pactos, é, sem duvi­
da, um facto muito legitimo; mas não póde também ser acceita
como principio da obrigação que cEaquelles nasce; visto que
ella já suppòe antes a validade dos mesmos. Essa espectativa
é um direito, exactamente, porque o pacto tem a força de obri­
gar o promittenle a realisar a sua promessa.
As vantagens sociaes que resultam do fiel cumprimento
d’aquelles, não póde igualmente ser a verdadeira explicação de
sua força obrigatória; desde que é certo que nem tudo o que
é util ó justo, que alguma cousa póde realmente não ser con­
veniente á sociedade, e ser devida a qualquer de seus membros
por justiça rigorosa.
Em vez, pois. de indagar-se si a sociedade julga util cons­
tranger os pactuantes a serem exactos cumpridores de suas
convenções, deve-se antes indagar si ella poderia deixar de fa-
zel-o si tal lhe conviesse, e n’essc terreno seria impossível sus­
tentar-se tal doutrina.
Ilentham, escriptor proeminente d’essa escola ainda mais
a exagera explicando a necessidade da observância dos pactos
por um principio de interesse pessoal. Diz elle que cada indiví­
duo deve cumprir íielmentc os seus ajustes, para que não perca
a confiança publica, e não fique assim inhibido dc fazer con­
tractos.
-189
Mas ou isto quar dizer que, 11’este ponto, 0 interesse bem
entendido de cada urn coincinde exactamentc cora 0 seu dever
procedente de outra origem superior, e é legitimo emquanto
com ellc se conforma, ou equivale a dizer-se que 0 interesse pes­
soal deve ser a sua regra ; e por tanto que si alguém julgar mais
vantajoso faltar á fé promettida, em tal ou tal caso, póde legi­
timamente faz.el-o, sujeitando-se ás consequências que d’ahi lhe
provenham ; que não é obrigado a cumprir 0 pacto em razão
do proprio pacto em s i; que isso deve ficar ao arbítrio e cál­
culos interesseiros de cada um.
Mas isto, posto em pratica, seria a subversão social; e tanto
mais quanto nem sempre a falta de fé e exacção nos contractos
e prejudicial aos seus authorcs, ou acompanhada da perda ef-
fecliva da confiança dos mais, (pie por muitos modos póde ser
illudida. * .
Assim Bentham querendo explicar a origem da força obri­
gatória daquelles, de todo a anniquila perante 0 Direito.
L i c a i o Z2CZ
§§ 88 — 94 (22)

Continuarão: — da origem da força obrigatória dos pactos;—


condições da validade d'estes ; — do erro e dólo nos mesmos

Km relação ;i questão ele que tratavamos por ultimo, na pre­


cedente licção, diz Kapt, que a obrigação proveniente dos pac­
tos é « innata, evidente, um postulado da razão, que para jus-
tifiear-sc não tem necessidade de alguma cousa que lhe seja ex-
tranha ou anterior; que é, em sumina, uma verdade, que por si
mesma se demonstra.»
Kslas diversas asserções luminosas e incontestáveis como
argumentos em abono da realidade e certeza (1’aquella obriga­
ção, e da sua força, nada explicam, entretanto, relativamente
á questão vertente; pois que reabnente do que se trata não é
da realidade, nem da evidencia d’essa obrigação, que ninguém
contesta; mas sim de mostrar qual seja o seu fundamento ju rí­
dico, o qual deve-se, com eITcito, procurar fóra d’ella própria,
em algum principio superior e anterior ao seu apparecimento.
E’ por esta razão, que Belimé, pensando embora que seria
melhor não passar-se d’aquelle postulado da razão do grande
pbilosopbo Allemão, para evitar-se os systemas, entende, com-
tudo, que o vinculo obrigalorio dos pactos se póde deduzir do
dever de verdade que, segundo elle, pesa sobre todos os homens.

(22) Menos o $ 91, de ctija matéria nos occuparemos no lugar apro­


priado, segundei a ordem que julgámos conveniente adoptar na expli­
cação de alguns dos paragraplios d’esta e da seguinte licção.
Mas csla explicação não é lambem acceitavel ; pois que
a razão que ella invoca, ou não tem relação com a questão, ou
a envolve cm si, niesma. ;
Com eiréito,si'o dever de verdade a que alludc üelime é o
dever simplesmerUe moral de não sc faltar á palavra dada, ad-
mittindo-se mesmo «jnc, segundo a Moral, toda a palavra dada,
e só porque o foi, deve ser cumprida, o que aliás se contesta,
a que vem a simples Moral para a justificação de uma obriga­
ção jurídica ? K" evidente que d’este deverem quanto pura­
mente elbico não se póde derivar a força obrigatória dos pactos
como objecto de Direito, desde que aquelle dever não é exigível.
Por outro lado, si o dever de verdade a que üelime se re­
fere não é aquelle dever considerado em geral c applicavel
a toda e qualquer especie de palavra dada ; mas sim um dever
de não faltar-se a esta já com relação restricla ou especial aos
pados, equivale isso a dizer-se, que u força obrigatória d’estes
provém do dever jurídico de cumpril-os, o que c um verdadeiro
qui pro quo.
Lm ultima analyse, invocando-se para explicar a origem
d’essa força obrigatória o dever simplesmente etbieo de cuni-
prir-se a palavra dada, invoca-se um principio de todo extra-
nbo á questão; e ínvocando-se um dever jurídico n’este sen­
tido, das duas uma : ou eslabelece-se esse dever como um prin­
cipio geral relativo á toda e qualquer palavra dada, e esse prin­
cipio é falso, ou já se o applica rcstricta e especialmente á pa­
lavra dada sob a forma de contracto, c resolve-se a questão pela
mesina questão.
O proprio Üelime o denuncia quando áquclles que lhe ob-
jeclam que o devi r de verdade é um mero dever moral, vii-se
na necessidade de responder que a falta da verdade em relação
aos pactos importa unta lesão do direito alheio, c que. portanto,
a mentira em taes casos entra na alçada da lei jurídica ; prin­
cipio incontestável, mas que deixa a questão no mesmo pé, pois
que restaria explicar-se, porque razão nos pactos a falta de ver­
dade importa uma lesão do direito alheio, ou antes porque ra­
zão nos pactos e só nos pactos a palavra dada tem a força de
obrigar juridicamente aquelle que a dá. .
Nâo só regeitamos, por conseguinte, a explicação d’este
aulhor, como um circulo vicioso ; mas até não pensamos com
elle’, que seja melhor contentarmo-nos com o simples postulado
da razão de kant; seria esse o partido mais commodo, mas não
o mais digno da scieneia. 1‘ensamos, ao contrario, que não só
£e deve procurar a explicação da força obrigatória dos pactos
192

lóra dos rtíesmos e em algum principio anterior, mas ainda


que não lia verdadeira diCQculdade em achal-a.
A nosso ver, a força obrigatória dos pactos, digamol-o sem
mais preâmbulos, procede da validade e inviolabilidade de
lodos os uclos humanos praticados livremente sobre objeclo
possível segundo o Direito, e com as condições que este pres­
creve. ,
N’estas circumstancias estão sem duvida os pactos regu­
larmente feitos, e por isso devem elles produzir a sua conse­
quência jurídica, o seu natural clfeitò, que é a obrigação de seu
' cumprimento pelos pactuantes ; sem o que seria inIVigido
o principio de justiça absoluta que nos véda lesarmos aos mais
contrariando os desenvolvimentos de sua legitima liberdade.
A propria doutrina de Belime, afinal, dá^rdisto mesmo,
desde que, como vimos, segundo elle, a lesão do direito alheio
resultante da falta de verdade em relação aos pactos, é o que
determina a obrigação de cumpril-os. De modo, que estaría­
mos enueordes com a explicação d’este aulhor, si elle franca
e directamente a cmitlisse nos termos em que a temos exposto,
em ve/, de introduzir n’ella aquelle dever de verdade, que em si
e por si, nada explica, nem tem relação com a questão.
Esta nossa theoria, aliás, nada tem de propriamente espe­
cial; pois que, em verdade, aquella origem da força obrigató­
ria dos pactos que estabelecemos, não é outra senão a mesma,
de onde, em geral, se deriva a de todos os mais deveres jurídi­
cos relativos aos direitos adquiridos por outrem.
D’onde vem, realmente, a obrigação que temos de respei­
tar a propriedade alheia, senão da legitimidade e inviolabili­
dade do acto pelo qual cila foi adquirida e permanece na posse
e dominio de seu dono ?
Dir-se-ha que a nossa explicação também nada explica ;
que igualinente, resolve a questão pela propria questão, porque
já suppõe legitimo o pacto ou a legitimidade de todos os actos
humanos praticados nas condições a que acima alludimos, c a de
seus elleitos ?
Mas a legitimidade dos pactos resulta, dissemos nós, da le­
gitimidade geral d’aquelles actos, e quér esta e quér a d’nquelles
fundados n’ella, ou a de suas consequências jurídicas não são,
nem podem ser _realmente contestadas por alguém. Nenhum
author pôz jámais em duvida que o pacto seja um acto legitimo,
ou que legitima seja a obrigação que por elle se créa, tem -se
pretendido apenas dar ou regeitar tacs ou taes explicações do
corno ou do porque o são.
Si pois são incontestáveis os princípios que invocamos na
nossa ; si elles silo ovidentemente anteriores á obrigação expli­
cada, e intima é a filiação (Testa com os mesmos, devemos con­
cluir (jue ella é a verdadeira n’este assumpto, e que não pro­
cedo a objecção que contra a mesma figurámos. Si tal expli­
cação não basta ; si é preciso para dal-a completa, recorrer-so
a algum principio ainda mais geral c mais anterior áquelle que
indicámos, dever-se- ha seT cada vez mais exigente, c ir de ex­
plicação em explicação até á razão absoluta e primordial d’aquella
força obrigatória ; mas então, antes mesmo de esbarrar contra
a porta de bronze do inconhecivel, a explicação se tornará im­
prestável pela sua demasiada generalidade, caliirá no vago das
puras abstraeções ; e submettidos á igual exigência, todos os
deveres e direitos humanos serão inexplicáveis nacsphcrada
sciencia jurídica ; assim como na ordem pliysica, pelas sciencins
respectivas, todos os phenoinenos da natureza e suas leis.
Nos paragraphos seguintes expõe-nos o Compendio as con­
dições necessárias para n validade dos pactos ; e diz-nos no
§ 88, que essas condições são : — I .-1 a declaração concorde das
vontades dos pactuantcs áecrca d’uma prestação ; — 2.a a pos­
sibilidade (Testa ; no § 89, que aquella declaração de vontades
deve ser séria c clara ; e no § 90 que deve ser reciproca, e re­
ferir-se a um mesmo objecto.
Observaremos, porém, que a declaração concorde de lacs
vontades, assim como a necessidade de ser cila reciproca e de.
versar sobre um mesmo objecto, cousas que, aliás, se suppõem
umas as outras, são antes elementos que entram na propria es­
sência do pacto, que o constituem, segundo resulta de sua
mesma definição, do que simplesmente condições d’elle.
Yô-se, démais que tudo qunnlo o Compendio adduziTcsses
diversos paragraphes no sentido de justificar essas asserções,
teria mais cabimento em referencia aos §§ 80 e 87 ; pois que
realmente tudo isso não passa de uma repetição, por palavras
differentes, do que n estes foi dito, e já por nós devidamente
considerado na explicação dos mesmos.
Por conseguinte, não só deixaremos de parle o que abi nos
expende 0 mesmo Compendio acerca d’aquelles liez pontos:
declaração concorde da vontade dos pactuantcs, reciprocidade
d’esta, e identidade do objecto do pacto ; mas ainda substitui­
remos a sua innumcração das condições da validade d’estes,
dizendo que cilas são : — 1.:| quanto á declaração das vontades
das partes que pactuam, que esla seja séria, clara, consciente
e livre ; — 2.'1 quanto ás pessoas dos pactuantcs. que sejam estes
competentes ou babeis para contractât' ; — o 3." quanto ao ob­
jecto do pacto, que seja elle possível. Si o Compendio não dá
25 F.
194

esta mesma classificação, resulta ella,cm todo o caso, dasidéas


que elle proprio emilte nos seus paragraphes seguintes -, ella
está ahi implicitamente contida. (23)
E’ necessário, com cITeito, que aquella declaração de von*
tades seja clara e séria ; pois que, não se poderia considerar
corno real manifestação da vontade de alguém para impòr-se-
Ihe uma obrigação, ou para attribuir-se-lhe um direito, uma
promessa ou urna acceitação feitas ern lermos jocosos ou extra­
vagantes em si ou pelo seu assumpto, ou por expressões vagas,
ambíguas ou intelligiveis. Comtudo para ser reputada sériai ou
clara não é indispensável que essa declaração seja feita por es-
ci ipto ou mesmo positivamente expressa. São estes, sem du­
vida os modos mais seguros de manifeslal-a ; mas çircumstan-
cias, pactos, e pactuantes lia de tal natureza ou e,m tacs condi­
ções, nas quaes, ou a respeito de quem, a promeSsa ou a aeceila-
ção com razão se deve presumir ; e esta presumpção produz,
n esses casos, todos os efleitos de urna declaração formal c ex­
plicita. Tal seja na hypothèse que o Compendio nos indica da
iudemnisação devida ao gestor de negoeios alheios, que obrou
de boa fé em beneficio de terceiro, embora sem aulorisaçãosua;
e lambem quanto á acceitação dos pactos purainenle bénéfices.
Deve, além d’isso, ser aquella declaração de vontades,
consciente, isto é, feita com conhecimento de causa, ou do ob­
jecto sobre que o pacto versa, e sobre suas qualidades essen-
ciaes ou determinantes d’este. Tudo quanto faça desappa-
recer ou affecte esta condição cm qualquer pacto, importa vicio
nos seus elementos constitutivos; e n ’este sentido influem o erro
e o dúlo. Mas era que casos, e em que medida, é o que nos
cumpre indagar.
O erro, como nos diz o Compendio no seu § 02, póde pro­
vir ou de culpa propria de qualquer dos pactuantes, ou do acaso,
ou de um terceiro. Si procede de culpa hem averiguada do
proprio que errou, deve este soffrer as suas consequências,
e o pacto, por via de regra, não se annulla. Si procede do
acaso e por maioria de razão, si do outro pactuantc, o pacto é
em gerai, annullavel. E si procedo de terceiro, deve elle pelo

(á3) Em consequência d'esla nova classificação que damos das


condições da validade dos pactos, somos ohrigados na explicação do
Compendio«! alterar a senueneia de seus paragraphes sobre eslâ ma­
téria ; fazemol-o pelo modo que se t é n’esta liceão e na seguinte. Vide
a nota precedente. * •
menos indemnisai- o prejudicado, quér o paelo subsista, quer
se amnille, segundo as circumstancias que occorram.
Entretanto, para que um pacto seja nnnullavel cm razão de
erro, ba necessidade de attender-se á natureza e intensidade
d’este. Si não é facil, como observa Beliirie, determinar-se, por
uma regra geral fixa, quaes sejam os erros siiflicientes para
aquelle efleito ; comtudo, os escriptores de Direito Natural, tem
procurado achar alguma adoptavel n’esse sentido, e tem recor­
rido n’esse intuito a dislinCÇÒes das diversas especies de erro,
capazes, segundo elles, de viciarem realmente os pactos de uma
maneira fundamental.
Assim, consideram elles os erros possíveis nos pactos, uns
como essenciaes, e outros como simplesmente accidentaes ou
secundários; e pensam que só os de primeira classe pódem dar
lugar á nullidade d’aquelles. O que se deve, porém, entender
por erro essencial ou não cm tal assumpto?
Diz-nos o Compendio no final do § 93, que o erro sobre
a causa ou fim do pacto não é razão para a süa nullidade, se­
não quando essa causa ou fim se declarou corno condição sine
qua non de. sua celebração e validade ; mas nós acerescentare-
mos, ou quando isso razoavelmente se infira do contexto do pro­
prio pacto, ou da sua natureza ; o que importa quasi o mesmo
que estabelecer aquella nullidade, como regra para todos os
casos em que o erro eíTectivamente affecte a causa ou o fim do
pacto.
Por outra, dá-se esta nullidade, ou considera-se essencial
o erro no pacto, quando o mesmo rccalie sobre a substancia da
cousa, ou sobre qualidade da mesma, ou sobre alguma clausula
fio pacto, que substanciaes se devam reputar, ou como tacs fo­
ram declaradas por mutuo consenso dos pactuautes.
Esta regra, comquanlo não seja de todo isenta de. difii-
culdades praticas, comtudo será, em geral, applieavel aos casos
que se destina a regular ; tanto mais quanto sobre cila lança
grande luz a consideração de que a importância do erro ou
a gravidade do damno que d’elle resulte para o pacluantc não
culpado, é o que sobretudo se deve 1er cm vista quando se trate
de reconhecer si o pacto cm que elle se, verificou devo, com ef-
feito, ser ou não anmillado. N’este ponto são concordes a dou­
trina das escolas, com as disposições dos codigos das Naçfles
cultas.
Mas, ainda a respeito d'aquella regra devemos fazer algu­
ma observação para melhor garantil-a contra a possibilidade de
applicações i niquas.
Seria, certamente, nullo o pacto pelo qual alguém cedesse
uma pedra de brilhante de grande valor pelo preço do vidro,
suppondo ser ella realmente d’esla matéria ; ou aquelle pelo
qual alguém tivesse comprado enganadamente por cem, um
objecto que se verificasse não valer mais do. dez ou vinte. Mas
aquelle que houvesse feito doação a outro de uma propriedade
declarando-lhe um certo valor, não poderia annullar essa doa­
ção adegando haver reconhecido depois que aquella valia me­
nos ; assim como também não o poderia quem vendesse como
de ouro e de patente, e convencido d’isso, um relogio apenas
de prata dourada e de qualidade inferior.
Considerações, na verdade, comesinhas, mas das quacs,
entretanto, se deduz a seguinte conclusão : que não basta
que em um pacto se verifique um erro, embora essencial, para
que elle seja annutlavel,. ou que o seja indisliuciamente por
qualquer dos pactuantcs ; isto ó, que a regra da annullnção/los
pactos por erro, mesmo essencial, é subordinada ás seguintes
vestricções : — 1,;i que ella não é applicavel senão aos casos em
que o erro produz realmenle damno a algum dos pactuantes ;—
2.'1que ella só aproveita aquelle dos dous que efiectivamente
o sofTreu. E’ claro, aliás, que ella deve aproveitar a este em
todos os casos de gravo detrimento, exceptuados aquelles cm
que haja razões muito ponderosas para suppòr-sc que elle vo­
luntária c scientemente quiz sujeitar-sc ao mesmo, cm vista de
qualquer outra vantagem que de tal pacto esperava.
Em ultima analyse, reputa-se essencial e sufficiente, em
todo o caso, para a nulliüade dos pactos, o erro n’elles verifi­
cado de que resulte para qualquer dos pactuantes a lesão que
em Direito Civil se classifica de enorme, a qual dá-se, segundo
o mesmo Direito, quando o prejuízo sofiVido é de mais de me­
tade do valor çonimurn da cousa sobre que o pacto versa.
Ao dólo diz-nos o Compendio no § 94, são facilmente ap-
plicaveis os mesmos princípios estabelecidos em relação ao erro ;
e na verdade, como bem pondera Belime, ><si se considera
aquelle separado d’este, 6 porque o dólo dá ao erro um caracter
particular de gravidade, que faz muitas vezes, que um erro em
si mesmo insufficiente para tornar nullo um pacto, será causa
bastante para isso si fôr resultado de uma inachinação fraudu­
lenta ; » o.quc quer dizer, que não é necessário que o dólo ou
o damno, que elle produza em um pacto, tome as proporções
de enorme para viciai-o tão radicalmente, como o faria o mais
essencial ou o mais grave dos erros.
Com efiéito, c ainda e sómente como origem d’estes, e de
damno aggfavado pela má fé, que o dólo influe, e influe mais
197
decididamente no sentido da invalidade dos compromissos me­
diante elle extorquidos.
Da mesma fôrma, pois, que o erro procedente de qualquer
outra causa ou origem, o que resulta do deilo, ou o proprio dólo,
quer seja sobre a substancia, ou qualidade, ou clausula essen­
cial da cousa ou do pacto, é, em geral, e mais sevéramento,
subordinado áquellas regras já acima estabelecidas, dominadas
sobretudo pelo principio de que a ninguém eleve aproveitar, em
caso algum, apropria fraude; c com a differença ainda, que
o seu author, além do mais, lica ou deve ficar sujeito á uma
pena como criminoso.
LXOCAO
O
ZZZI '

§§ 95 — 100 (23)

Continuação : — das condições da validade dos pactos ;—coac-


çuo e ameaças; — pactos dmpossiveis

Dissemos na lícção precedente que para ser valido o paclo,


devia a declaração das vontades dos pactuantes ser séria, clara,
consciente e livre; e tendo então tratado das trez primeiras
d essas condicções, vamos agora occupar-nos com a ultima.
A’ liberdade d’essa declaração oppõein-se a coacção e as
ameaças de que nos falia o Compendio nos seus §§ 99 e 100. (2d)
A coacção, quer physica, consistente no emprego da força
material, quer moral, consistente nas ameaças ou no emprego
do terror para extorquir-se o consentimento de alguém sobre
alguma cousa, ou seja como promillente, ou como acccitante,
nao póde deixar de viciar fundamentalmente ou de tornar nullo
o pacto em que se verifiquem.
A coacção de qualquer d’aquellas especies tira, com elTeito,
aos pactuantes a liberdade, sem a qual não ha verdadeira ma-
nitestação de sua vontade. Deve-se isto entender, porém, da
coacção ou ameaças reaes ou capazes de constranger ou ame­
drontar etTectivamenle a uma pessoa de animo ordinário,’e não
de quaesquer coacções ou ameaças suppostas, ou exageradas
pela simples imaginação ou excessiva fraqueza d’aquelle que se
pretenda coacto ou ameaçado.
Çomquanto seja incontestável o principio que temos esta­
belecido, póde, com tudo, ser elle mal entendido quanto ás suas

(23) E também o §91. Vide nota precedente.


(2i) Dos §§ 95 e 98 trataremos dépôts d’estes, mais adiante.
199

applicações. E’ assim que o Compendio discutindo a questão


de saber, si será legitimo o emprego da eoacção, quer physica
quér moral como meio de tornar se cITectivo um direito pro-
l>rio contra alguém que, devendo cumpril-o, a isso se recusa,
decide-se pelauflirmutiva, qualifica esse procedimento de justo,
e o que mais é, declara que em tal caso ba um contracto va­
lioso. Mas é elle tambern o primeiro a reconhecer que o di­
reito de quem o tem, e por tal meio o réalisa, nao resulta de
tal pacto, que lhe é preexistente, e que o consentimento da
outra parte nao é necessário para fundal-o; e sendo assim é
claro, que o emprego da eoacção ou ameaças, c o consenti­
mento prestado em razão delias, nada acerescentam de novo,
quér aquelle direito, quér àscondiçôe's desug execução ; e que,
por tanto tal pacto, propriamente como pacto, seria peio menos
de todo ocioso. Em todo caso, não comprehendemos como um
pacto filho da violência physjca ou moral, sejam quaes forem
as suas causas, possa ser, reputado cm Direito como tal, quando
aquelle essencialmenle se funda na declaração da verdadeira
vontade dos pactuautes.
O emprego da violência, na hypothèse figurada, ou quando
d’ella usamos para Inzer effective um direito nosso desconhe­
cido ou desrespeitado por outrem, púdeser legitimo, e o é sem­
pre que se exerce como defesa propria; pódc mesmo ter por
clfeito a realisação d’aquelle direito ; mas que isso constitua, ou
d’ahi se origine um pacto, ou que lenha os característicos essen-
ciaes d’este a promessa por tal meio alcançada, é, o que não
nos parece admissível.
Si. de facto, a eoacção ou ameaças empregadas, não tor­
nam eiíeclivo o direito d’aquelle que as emprega, a simples pro­
messa por meio d’ellas extorquida não constitue o promitlento
em outra obrigação que não seja a guejá tinha antes da mesma.
Quanto á matéria do § 100, sendo verdadeiro o principio
que acabamos de expender, que a eoacção physica ou moral
como meio de extorquir a alguém a promessa ou acceitaçào de
uma alguma cousa não produz obrigação para o coagido, nem
direito para o coador; claro é que aquelle que sob o influxo da
pressão material ou do terror fosse levado a prometler ou aac-
ceilar alguma cousa, seria justamente autorisado a recusal-a
em lodo o tempo ; pelo que não admiltimos ainda a opinião que
o Compendio enuncia na ulliina parte d’este paragrapho, e que
procura confirmar pelos exemplos que apresenta na nota res­
pectiva.
A eoacção physica ou moral, com elíeito, porque venha de
uni terceiro ou dc uma circumstancia ou successo extranboaos

V
20 0

pactuantes, não vicia menos a sua promessa ou acceitação Que


razão jurídica póde haver, pela qual constrangido ou ameaçado
por Antonio para fazer doação do que é meu a João, deva ser
eu obrigado a cumprir essa promessa? Snppoudo-se mesmo
que João era de todo alheio a essa coacçào, desde que d’ella in ­
formado insista na execução de tal promessa, ou d’ella se apro­
veite, torna-se co-réo ou cúmplice de Antonio, solidário no dólo
d’este, e como tal inhabililado para exigir ou reter aquillo que
por tal meio obteve.
No mesmo caso está ainda a promessa, de que trata o Com­
pendio na citada nota, feita por aquclle que atacado por saltea­
dores ou em qualquer perigo imminente de vida, promeltesse
uma paga a sen salvador. Não ha ahi, propriamente, c nem
póde haver um pacto, nem verdadeira obrigação jurídica de
cumprir tal promessa : e sim sómente uma obrigação de honra,
ou dignidade pessoal, aliás muito poderosa. E ainda assim no
modo de apreciar-se esta obrigação tem-se de levar em conta
já a natureza da promesea, e a do perigo que correu o promit­
e n te , já o d'aquelle a que se expôz o'seu salvador, e outras
circumstancias, quer de um e quér de outro, e do caso em si.
■Si alguém, por exemplo, em um perigo de vida, que aliás po­
deria não ser certo e extremo, prometlessc á quem o salvasse
toda a sua fortuna, seria demasiado e injusto rigor, mesmo ante
as leis da honra e da honestidade, consideral-o obrigado a re­
duzir-se á miséria e a sua família, tendo-a, para desempenhar
sua palavra ; e sobreludo sc figuramos ó seu salvador salvan­
do-o sem grande exforço, c em melhores condições de fortuna
do que elle.
Não c possivel. em taes casos, deixar-se de. attender á si­
tuação critica do promiltenle, em que lhe faltava o uso pleno
da sua liberdade. Na sua promessa haverá tudo quanto se
queira ; haverá, em surnma, uma obrigação de qualquer espe-
cie, mas nunca a resultante de um pacto ; este não existe onde
aquella liberdade falta.
Tralemos agora da segunda especic de condições da vali­
dade do pacto, conforme a classificação que das mesmas fize­
mos na lieção anterior, isto é, da que se refere ás pessoas dos
pactuantes, e de que nos falia o Compendio no seu § 9 i.
Com razão, nos diz elle ahi, que para haver consentimento
valido é mister que os pactuantes tenham faculdade physica,
e jurídica para consentir -, isto é, que elles sejam capazes dc
exprimir suas vontades de modo a produzir aquélle eITeito, ou
capazes de conlractar, segundo o Direito.
Assim não pactuariam validamente os menores, osdemeu-
2 0 !

tcs, e lodosos mais que por dependerem dc outrem ou por se­


rem sujeitos á sua lutella ou administração, não pódcm ter
n ’aquelíe sentido vontade própria; laes sejam os filhos fnmilias,
a mulher casada cm certos casos, etc. Indica igualmente o Com -,
pemlio entre esses inhabeis os ébrios habituaes, ç os surdos-
mudos, acerca dosqua^s, entretanto, se pódem dar excepçõcs;
porque os primeiros pódem realmente ter inLervallos de razão
e de bom senso, e os segundos ser de facto capazes de mani­
festar com clareza e acerto, por algum meio, a sua vontade.
Isto quanto á promessa.
Quanto á acceitação, porém, si se trata de um beneficio
a laes pessoas; sendo certo que para acceital-o não são neces­
sárias a mesma madureza e lucidez de espirito indispensáveis
para contraclar-se um ouus, os pactos em que tal beneficio seja
estipe’ado em seu favor sem condições, são validos, apezar
d’aquellas suas circurnstancias. Provem isto do principio, que
já anteriormente estabelecemos, de que o beneficio puro tem
sempre por si u presumpção jurídica de. ser aceeito.
A terceira c ultima classe de condiçOes de que depende
a validade dos pactos, e de que nos resta tratar, é a d’aquellas
que se referem á possibilidade do seu objecto ou prestação ; as­
sumpto dos §§ 95 — 9S do Compendio.
O simples senso commum nos diz que ninguém pode ser
obrigado u cousas impossíveis. Mas a impossibilidade do cum­
primento de uma obrigação contrahida, não é sempre da mes­
ma espcr.ie, e nem sempre opera os mesmos etleilos cm relação
aos pactuaiites.
A impossibilidade da prestação pódc ser physica, jurídica
ou moral. Ella é physica quando a promessa ou a acceitação
excedem em geral as forças naturaes do homem, ou os recursos
de sua industria, e então é absoluta; si, porém, eslas excedem
unicamente as forças naturaes ou recursos individuaes.do pro­
mittente ou do acceitantc, então a impossibilidade do pacto res­
pectivo é apenas uma impossibilidade physica relativa.
No primeiro caso a declaração da vontade dos pactuantes
não se pude considerar séria, e a millidade do pacto resulta dos
seus proprios termos. No segundo, porém, si a impossibilidade
é d'aquellas que pódem ser desconhecidas ao acccitante, não
será propriamente nullo o pacto ; o promitlente póde ser então
compellido a cumprir por meio de terceiro a obrigação contra-
hida ; e si fôr ainda isto impossivel, será obrigado a indemnisar
o damuo que tenha causado á outra parte com a sua promessa
inexequível. '
O primeiro exemplo que nos apresenta o Compendio no
26 F,
§ 95 serve exactement.« para este caso. O artifice inepto ou
desprovido dos meios necessários, que prometteu mais do que
podia fazer, está nas condições que figuramos ; e isto procede
ainda quando a sua impossibilidade lenha surgido depois do
pacto, salvos os casos em que as circumstancias sobrevindas
sejam de tal natureza, Ião imprevistas e extranbas á sua von­
tade, que em razão d’isso se deva considerar a sua obrigação
extincta. Assim si aquelle mesmo artifice por ter adoecido gra­
vemente, ou por outra qualquer causa analnga. se tornasse inha­
lai para cumprir o seu contracto, não poderia com justiça ser
compellido a fazei-o executar por outro, ou a qualquer indem-
nisação, pois que o seu contracto se suppõu feito sob a condi­
ção de sua saúde, e forças, ou da perfeição de suas faculdades.
.Só não aproveita esta excepção áquelle a que allude o Com­
pendio no seu terceiro exemplo, cuja inhabilitação tiver pro­
vindo d’elle proprio, com o proposito de furtar-se ao cumpri­
mento do promettido.
Os exemplos segundo e quarto do Compendio não são
adequados á matéria em questão. O primeiro d’elles refere-se
a um caso de impossibilidode jurídica, co segundo aos clleitos,
que em relação a um pacto pódem ter o errò e o dólo.
Da impossibilidade jurídica trata o mesmo Compendio 110
§ 96 Cila é também como a pliysica, absoluta ou relativa,
o objecto do pacto é em si mesmo impossível juridicamente,
quando este recalie sobre cousas que são por sua natureza in ­
alienáveis ou não susceptíveis de transacção como a renuncia ao
uso ou cxercicio dos direitos absolutos do homem ; ou quando
recalie sobre cousas que embora alienáveis ou susceptíveis de
transacção, não o são para aquelle que sobre cilas paclúa.
Assim seria nullo por impossibilidade jurídica absoluta
de seu objecto o pacto pelo qual alguém se constituísse es­
cravo de outro ; e por impossibilidade jurídica relativa, aquelle
pelo qual alguém désse <ui vendesse a outrem uma cousa alheia,
ou que embora propria não pudesse ser doada ou vendida em
consequência de alguma disposição legal prohibitiva a tal res­
peito -, pelo que não se poderia vender validamente uma succes-
são futura, ou objectes legalrnentc excluidos do commercio.
Por outro lado é também e ao mesmo tempo juridicamente
impossível o pacto nos casos de que já falíamos do incapacidade
jurídica dos pactuanles, quér esta proceda de um principio ab­
soluto do Direito Natural, quér de qualquer outro impedimento
ou iuterdicção jurídica. Assim nullos seriam os pactos feitos
com os menores, com os mentecaptos, etc., salvos também,
como já vimos, os que importam para estes puro beueficio.
[Il i l i l r .
Digitalizado pelo Projeto Memória Académica da FDR -UFPE **

Refere-se em Ioda a sua extensão o que tcmos'dito, á im­


possibilidade juridica absoluta ; pois que si cila é apenas rela­
tiva ou (1’aqiiellas que pódem ser ignoradas pelo acceitanle,
quando os pactos se não cumpram, em razão da mesma-, nos
termos estipulados, tem este pelo menos o direito do exigir in-
demnisaçào dos prejuízos soflridos |>or culpa do promitlunte.
Temos (inalmenle como motivo da invalidade dos pactos
a impossibilidade moral da sna prestação ou objeeto, o que ó
incontestável, sobretudo, acerca dc pactos que »(Tendam nquel-
les deveres moraes que tem o caracter de absolutos e qqe não
admittem cxcepção.
Deve-se, pois, entender em termos babeis a maneira péla'
qual se exprime o Compendio quando diz que se tem o direito
de praticar aclos que a moral reprova.
O que se lem propriamente, como cm outra occasião disse­
mos, é a faculdade ou poder natural e de facto |»ara jiroceder
assim : pois que sem isso não haveria aclo moral ou immoral,
virtude ou crime Mas quando sc transgride, a Moral lien-so
necessária e pessoalmentc sujeito á saneção de uma pena. em ­
bora também simplesmente moral, lissa transgressão dá-se
sob a responsabilidade própria e jamais se póde desvial-a de si
para descarregai-a em outro.
A responsabilidade d’este outro não jiódc, pois, sera unica
que o Direito reconheça em relação ao |iaclo cm que tal vieio
se verifique. A obrigação moral não se altera por qualquer con­
tracto em que se a viole, nem póde ser illudida por tal meio.
Podemos sem duvida, por nós mesmos e sob nossa propria res­
ponsabilidade moral, deixar por exemplo, de fazer a esmola ou
qualquer outro aeto de beneliceneia : mas deixar de iazel-o sob
o fundamento de nos termos obrigado a isso por um contracto,
e reconhecermos em outrem o direito de conqiellir-nos á execu­
ção de semelhante compromisso, é o que não se póde admillir
nem o Direito admitte. Abster-se do mal e dos netos illicites,
qiuir em relação a si, quér aos mais é um dever de lodo o ho­
mem ; mas a faculdade de fazer o bem ou de praticara virtude,
não é menos um direito que a cada um essenoialriiente compete
em razão de sua propria natureza, o de que ninguém póde vaii-
(lamente despojar-se ; é um direito innalo, e conto tal absoluto,
inalienável e Tmprescreplivcl.
Si, pois, por um lado a Moral condemna quaesquer jiactos
n’este sentido, por outro o Direito não póde deixar dc os consi­
derar irritos e, vãos. _
A vista d’estes princípios é facil resolver-se as questões que
o Compendio propõe no § 97.
A promessa que alguém íl/.esse de embriagar-se, de com-
melter um eslupro, um furto, um assassinato, não poderia pro­
duzir obrigação ou direito algum entre os suppostos pactuantes.
Nem admittimos a mínima hesitação, quanto a saber-se si
aquellc que prometteu malar alguém tem o direito de exigir por
isso a paga estipulada.
Si o contracto é em si cssencialmente nullo por immoral,
como poderia autorisar semelhante exigencia? Haveria fla­
grante contradicção e absurdo em impedir-se a execução de tal
pacto por aquelle motivo, punil-a como criminosa, e reconhe­
cer-se, entretanto, valida aquejla condição, aliás, si é possível,
mais immoral ainda que o proprio crime ajustado, por ser a sua
animação e recompensa.
Nos casos de que lemos tratado a impossibilidade moral
é absoluta ; outros ha. porém, em que cila pôde ser apenas re­
lativa ; c então modificam-se os seus cffeitos ern relação aos
pactuantes, ou ao pacto.
Sobre este ponto o Compendio é claro no seu § 98.
Essa impossibilidade affeclará ou não o mesmo pacto, se­
gundo fòr mais fortd ou mais altendivel a obrigação moral, com
que por elle pò/.-sc o pactuantc em collisão. Km regra ella não
é motivo para a uullidade d’aquelle, e sómente no caso de ser
elle dc facto inexequível, deve a obrigação eontrahida substi­
tuir-se por indemnisação correspondente ; c a razão d’isso é,
que só o promitlente podia saber d’essa impossibilidade que lhe
dizia respeito, e só elle por tanto deve ser responsável pelo facto
de ler pactuado, apezar d’isso, em damno allieio. O exemplo
que o Compendio nos dá d’este casó, na nota ao citado para­
grapho, esclarece sufílcientemente a questão. Si alguém contra­
bisse, com elfeito, para com outro a obrigação de prestar-lhe
urna livraria ou livro, e lh’o vendesse, não poderia depois ser
admittido a rescindir tal venda, allegando que sem tal livraria
ou livro não poderia instruir-se, ou educar seus filhos.
Na ultima parte d’essa mesma nota o Compendio admitte
ainda tal vendedor á prova d’essa sua allegaçào, mas ditlicil-
mente se concebe, como n’essc caso ou em outros atialogos,
essa allegaçao, ou algutna da mesma natureza, possa c deva
realmeiite aproveitar-lhe.
/

LXCOio
a
2 1 Z Z I1

§§ 101 — 110
'
Do direito pessoal, c do direito real resultantes dos pactos,
e si este depende da tradicção do objcclo. — Da inter­
pretação dos pactos.

Nos seus §§ 101 a 104 train o Compendio da natureza do


direito que nasce dos pactos, segundo a natureza do objeclo
a que file se refere ; e diz-nos, no primeiro dos mesmos, que
esse direito é pessoal ou real; como aliás, sol) aquclla relação
o e todo e qualquer direito, seja qual fòr a sua origem, confor­
me já vimos cm uma de nossas anteriores licções. (2-4.)
O direito é simplesmente pessoal (jus in rem) para 0 ac-
ceitante, quando o promittente apenas se obrigou a prestar-lhe
uma acção ou serviço, ou alguma cousa indeterminada ou só
designada ém genero, como aquelle que prometteu um cavalio
sem indicar um certo; é, porém, real o direito (ju sin rc)
quando alguém se comprometteu a ceder ou entregar a outrem
um objecto materialmente existente, c designado em cspecie,
como o seu relogio tal, indicado por seu numero, fabricante,
ou outros signaesque individualmente o determinem.
A questão que o Compendio suscita, e sobre a qual já dis­
semos alguma cousa na explicação do § 87, de saber, si o direito
real deriva-se do pacto em si mesmo ou da tradicção da cousa,
não tem para nós grande dilliculdade, depois de estabelecidos
os princípios que prccedentemcnte expuzemos acerca da for­
mação do pacto.
Desde que, como vimos, este consiste cssencialmente na

(21) Vide I.icrAo XV, pag.93.


20G
declaração das vontades dos pactisantes, o d’nlii lira a sua vali­
dade, os actos posteriores que são já ou devem ser suas conse­
quências nada influem sobre a obrigação que o constitue. Tanto
fundamento haveria para considerar-se o direito real derivado
da tradicção da cousa, como para considerar-se o direito pes­
soal derivado da pratica do acto ou serviço promettido. Mas
semelhante idéa envolveria uma completa e formal inversão tia
noção dos pactos e de'seus efleitos jurídicos, e os annullaria de
todo. Ella converteria em causa o que não é senão o elTeito,
e vice versa, c daria em resultado que todos os pactos são an-
nullaveis emquanto não são executados. Mas então que obri­
gação haveria de execulal-os ?
Contra as razões que o Compendio indica no § 102, com
que se sustenta a doutrina que defendemos, não procedem as
que elle apresenta no paragrapho seguinte (103), nas quaes al­
guns escriptorcs se fundam para pensar que antes da tradicção
da cousa, o promittente só tem em relação ao acceitante uma
obrigação pessoal.
Certamente lodo o pacto se refere á pratica de uma acção,
quér esta seja concernente a uma cousa determinada cm -gspe-
cie, quér não, c o direito do acceitante cm relação ao promit­
tente, assim como a obrigação d’aquelle para com este, ern al­
gum sentido são pessoaes ; ou antes, em geral, toda a obriga­
ção ou direito é uma relaçãp de pessoa a pessoa. Mas não c
d’este sentido geral da expressão direito real ou pessoal que se
trata ; e aquella doutrina é inadmissível desde que por ella se
queira dizer que essa obrigação pessoal do promittente importa
não ter o acceitante o direito de exigir-lhe o seu effeclivo cum ­
primento pelo simples facto de se não 1er dado a tradicção do
objecto do pacto, ou que esse direito não tenha todos os carac­
teres e consequências que reahncnle se lhe attribue.
Todo o pacto consiste na obrigação dc um acto contrahido
pelo promittente ; mas desde que esse acto rcferc-se á uma
cousa malerialmento existente e determinada, c desde que
aquellc, pelo mesmo pacto, renunciou-ao seu dominio sobre ella,
tem também por elle renunciado a todos os direitos que n’este
dominio se contém, assim como o acceitante os tem adquirido.
Conseguiutemente o direito il’esle, que no caso da simples pro­
messa de uma acção sem referencia a cousa de lai especie, não
se póde exercer senão a respeito da propria actividade do pro­
mittente, n’aquelle outro caso encarna-se no seu objecto, deixa
de ser simplesmente pessoal, torna-se um direito cffèctivamentc
inherente á cousa, ou real.
Como bem observa o Compendio na sua extensa nota se-
207
gunda a este paragrapho, alradicção nilo é senão o moilo, pelo
qual em taes pactos se effectua a aequisição da cousa, ou pelo
qual esta aequisição se estabelece de faclo ; o seu litulo de legi­
timidade, porém, é o direito que a precede, e que não pôde, por
tanto, depender d’ella.
Ainda nessa mesma nota o Compendio responde vantajo­
samente áquelles que pensam ser apenas pessoal o direito do
acceilante antes da tradicção sob o fuudamento de que em
quanto a cousa não é por este assignalada não púde elle consi-
deral-a sua. Com elleilo, si antes d’essc assignalamento pelo
acceitante não lia direito por elle adquirido sobre o objecto do
contracto, devera-se concluir que nenhum contracto é possível,
pois que o assignalamento só póde vir real c legitimamente de­
pois da aequisição. A semelhante doutrina, conlradictoria em
seus proprios termos, e demais inapplicavel aos pactos de pres­
tação puramenlc pessoal, responde-se, linalmente, em grande
parte, com os argumentos que já no lugar competente produza­
mos contra o systema que explica a justiça da propriedade pelo
trabalho ou pela especificação das cousas.
Em ultima analyse, é incontestável o principio de que
para a consumação definitiva dos pactos reaes não é necessária
a tradicção da cousa. E si muitas legislações positivas dc Na­
ções cultas a exigem com elléito, para a real aequisição daquella
pelo acceitante, não é porque desconheçam a verdade <i’essc
principio ; mas porque dependendo a sua applieação da certeza
da vontade «los pactuanles, entendem os respectivos legislado­
res, que a tradicção é o meio mais seguro de ser ella demons­
trada ; do mesmo modo que em todos os eodigos civis se exige
para a \ alidade de certos pactos, «pie elles sejam escriptos,
quando, aliás,«: liquido no Direito Natural, que a sua validade
não depende iVisso, mas da simples declaração das vontades
dus pactuanles, feita com os requisitos que o mesmo Direito
prescreve.
No § 101 diz-nos o Compendio, o que lambem já por nós
ficou dito, e resulta da própria noção do que sejam o direito
real e o pessoal, que este só pode ser exigido dircclamenteáquem
se obrigou á prestação estipulada, ao passo que aquelle se pôde
exigir a qualquer em poder de quern a cousa venha a achar-so,
e que esta dislineção iunda-se em que ao direito real correspon­
de nos mais urna obrigação universal de não oppòrem embara­
ço ao seu exercício cm relação á cousa a que o mesmo direito
se refere, e que essa obrigação não corresponde ao direito pes­
soal, .
Esta explicação^ porém, não satisfaz; visto que a todo o di-
208
reito de alguém ú correlativa aquella obrigação negativa dos
mais -, nenhum ha que não tenha por eonsectario a faculdade
para seu sujeito de coagir os mais a não estorvarem a sua pra­
tica. Não è, pois, d'ahi que vera aquella distineção entre essas
duas especies de direitos. Vem ella de que versando o direito
real sobre, um objecto material externo, determinado, c real­
mente apprehensivel, póde o mesmo ser de facto transferido
a terceiro em prejuízo d’aquelle a quem juridicamente pertence
em razão do pacto ; ao passo que o direito pessoal versando ape­
nas sobre tal ou tal acto ou serviço do promiltente, ou sobre
cousa indeterminada, e que não tem realidade externa indivi­
dual não pódem de facto laes cousas, c nem com cilas a respec­
tiva obrigação, passar a outrem.
Assim, o direito real, sob pena de não ser um direito, deve
como já dissemos seguir a cousa onde quer que ella exista, ou
seja qual fòr a mão em que se ache, e a razão d’isso ; e o direito
pessoal deve necessariamente referir-se apenas á pessoa que sc
obrigou. O que quer dizer, atinai, que,a distineção entre essas
duas especies de direitos, e seus effeitos, vem da propria natu­
reza dos objectos de um e de outro. '
i\o§ 105 limita-se o Compendio a estabelecer certos corol-
laríos que dimanam dos pactos, ou princípios que são communs
a toda especie de direitos, quer procedentes d’aquelles, quer de
outra origem ; corollarios c princípios que já temos, e tem o pro­
prio Compendio expendido antecedentemente, e não carecem
de novos desenvolvimentos ou demonstrações. i\’o mesmo caso
estão as proposições contidas no § 106.
O que ha ahi de novo e que precise de ser desenvolvido é o
principio que elle emitte e sobre que insiste no § 107 de que as
obrigações e direitos provenientes dos pactos se devem deduzir
por meio dc interpretação d’estes, quando a tal respeito o seu
tlieor não seja claro.
A interpretação tem, com cffeito, por Hm verificar a ver­
dadeira vontade dos pactuanles quando esta foi mal expressa
ou omissa em algum ponto ou circumstancia de que depende
a sua justa execução, e ella é de diversas especies.
Quando a vontade dos pactuantes se deduz da simples intel-
ligencia ou sentido que devem ter os termos do pacto, segundo
a linguagem commum (§ 108) chama-se grammatical ; e usual
quando se attende principalmente á significação d’aquellas se-
guudo o uso do lugar, do tempo, ou das pessoas em que, ou
entre quem o pacto foi feito. E chama-se lógica ou doutrinal
quando se procura reconhecer aquella vontade pelas causas ou
209
fins do pacto, pelas circuinstancias e relações dos pactisantes,
ou por outros meios analogos.
Ila ainda uma especio de interpretação que se denomina
authentica, mas que não tem verdadeira applicação aos pac­
tos ; ella tem especialmente por objecto as disposições legisla­
tivas ou semelhantes ; ó dada com autoridade por aquelle que
as (fecretou ; e é claro que nos pactos não púdem os pactuautus
ser ao mesmo tempo parles e interpretes cl’esla especie. I’óde-
sc conceber, sem duvida, uma interpretação dada á um pacto
por accôrdo dos proprios pactuantes ; mas então a sua força
vem, não de ser ella uma interpretação, mas d’esse novo ac­
côrdo.
No § 109 expende o Compendio as regras que se deve ter
em vista na interpretação dos pactos ; ellas se referem ou á pro­
pria lettra d’estes, ou a sen objecto, razão, e fim; ou consis­
tem em certos princípios superiores, aos quaes a vontade dos
pactuantes deve-se considerar subordinada, em falta de decla­
ração expressa ou clara cm sentido contrario.
Assim tornando em consideração o que nos diz o mesmo
Compendio no § 108, c dando sob’ uma forma positiva, como
nos parece mais conveniente, as regras que elle sob a forma ne­
gativa indica no citado § 109, teremos como priucipaes regras
da interpretação dos pactos as seguintes :
1. " — Que se procure entender a verdadeira vontade dos
pactuantes prelo senlido natural das suas palavras, ou pela sig­
nificação em que ellas realmentc devam 1er sido empregadas
conforme o costume do lugar ou do tempo, em que o foram, ou
das pessoas que no pacto intervieram.
2. » — Que quando isto não baste, se recorra ás circums-
lancias em que o pacto se fez, c aos actos referentes ao mesmo,
que os pactuantes praticaram immcdialamente depois ou antes
de sua celebração, com o fim de réalisai' esta ou a sua execução.
3. “ — Que se dô, em todo o caso, ao pacto ou á parte d’elle
que se interpreta, o senlido mais acotnmodado ao objecto ou
fim do mesmo, ou d condição dos pactuantes.
4. '* — Quo os lugares ou pontos mais obscuros se eluci­
dem pelos mais claros, que com elle tenham relação.
5. a — Que entre clous ou mais sentidos jgualtnenle admis­
síveis, se adopte o que fôr mais favoravol á parte a quem foi im­
posta obrigação que sc deva considerar niais onerosa.
6. a — Que se prefira sempre a intelligencia que não torne
o pacto absurdo, inexequível, ou oneroso sómente a uma das
partes, quando por sua natureza ou objecto elle deva sel-o mais
ou menos igualmente a ambos.
27 F.
7.'1 — Finalmcnle, que se parla sempre do principio que
os pactuantes não podiam deixar de conformar-sc ao Direito
ou á lei, u que foi por tanto sua vontade não transgredil-os nas
suas estipulações.
Observadas estas regras se poderá, com eITeilo, chegar ao
conhecimento da verdadeira intenção dos pactuantes, e a de­
terminar o modo mais justo da sua execução, a menos que se
não trate de um pacto realmente extravagante ou impossível.
E \ por tanlo, evidente que no processo da investigação
e determinação do fim certo dos pactos mediante aquelles prin­
cípios, serão ipso fado eliminados todos os meios de interpre-
tal-os que pretendam fundar-se em qualquer das supposições
que o Compendio figura no citado § 109.
Conclue, finalmente, o Compendio no § 110, dos princí­
pios estabelecidos, que tudo quanto não foi expressaraente es­
tipulado nos pactos ou não se deduz d’estes, segundo aquelles
mesmos princípios, não deve ser considerado como uma deter­
minação d’elles; e aponta-nos diversas preterições que estariam
n'esse caso, e deveriam ser repellidas quando fossem aliegadas
por algum dos pactuantes como meios de estabelecer a supposta
significação da obrigação entre elles contrahida.
Com elfeito, não deveria ser attendido aquelle que a pre­
texto de não ter conhecido bem a natureza ou circmnstaucias
da cousa ou do pacto na occasião cm que o fez, ou de não as
ter _o outro pactuante manifestado, quizesse attribuir á sua
obrigação ou direito, ou ao pacto um sentido differente d’aquelle
que os seus termos positiva e claramente lhe dão.
Essas e outras allegações semelhantes seriam inadmissí­
veis, e devem ser postas de lado quando se trate de verificar
o que verdadeiramente quizeram os pactuantes cm um pacto
ou em ponto obscuro d’elle; pois que si elle é expresso e claro,
laz lei entre as partes, não carece de interpretação, e nem con­
tra seu contexto podem valer taes excepções ; salvo quando os
fundamentos de taes allegações ou os vicios de que as circums-
tancias aliegadas afleclem o pacto sejam taes que realrncnte se
deva reputal-o insubsistente.
O Direito Civil pódc, com etleito. como nos diz o Compen­
dio admittir para tal elfeito algumas d’essas excepções ; e si pro­
cedendo assim praticará algumas vezes um acto dc simples
equidade, muitas outras será isso um acto dc rigorosa justiça.
Mas então trata-se, não de interpretação, e sim de aiiuullaçào
de um pacto essencialmente defeituoso, segundo o Direito.
Na nota a este paragraplio faz o Compendio a distineção
entre o que sejam a equidade e a justiça, ponto sobre o qual nos
211

limitaremos a referir-nos ao que elle ahi diz e ao que nós mes­


mos já ternos tido prcccdentemente oceasião de dizer. E’ certo
que a iei civil póde, e deve até, ser equitativa em todos os as­
sumptos, e sobretudo ern matéria de contractos: mas si o prin­
cipio do sununum jus. summii injuria, que nos cila o Compen­
dio, é verdadeiro não quer isso dizer comtudo que um direito
deva em algum caso ser desattendido por injusto ; mas apenas
moderado o seu rigor em certas circumstancias.
Km caso nenhum a equidade póde ser feita propriamente
á custa do direito alheio.
L ic at» io z z z ii:
§ § 1 1 1 — 115

Dos pactos absolutos e condicionaes ; — dos diversos modos por


que se extinguem as Obrigaçõei dos pactos

No principio de seu § 111 trata o Compendio dadistincçâo


dos pactos em absolutos e condicionaes. São absolutos os
pactos em que a obrigação contrahida não é suspensa até que
se verifique uma circumstancia futura, nem cessa pela sua
superveniencia ; e condicionaes são aquelles em que isto se dá,
ou em que a obrigação respectiva é assim subordinada a tal eir-
cumstancia, que constilue a sua condição.
As condições a que podem ser sujeitos os pactos, são dc
diversas especies e effeitos: e o Compendio ainda n ’aquelle seu
citado paragrapho nos indica algumas d’ellas, classificando-as :
l.° — de suspensivas ou resolutivas •, 2.° — de positivas e nega­
tivas; 3.° — de possíveis ou impossíveis. Mas as que formam
a segunda d’estas classes não tem importância pratica ; é indif­
ferente ao Direilo a fórma sob que se enunciem quaesquer clau­
sulas em um pacto; e as da terceira reduzem-se em ultima atlá-
lyseás consistentes na possibilidade ou impossibilidade do pro­
prio pacto cm si, ou de sua celebração, das quaes já precedente­
mente nos occupámos. Trataremos, portanto, unicamente das
primeiras.
Pelo pacto em que se consigna uma condição suspensiva,
o promittente obriga-se a dar ou a fazer alguma cousa depois
que tal circumstancia ou facto sc realise ; e por aquelle em que
se consigna uma condição resolutiva obriga-se o promittente
a dar ou a fazer alguma cousa em quanto tal circumstancia ou
facto não se verifiquem. No primeiro caso estaria a obrigação
de quem promettesse dar-nos urn relogio no dia do nosso casa­
mento ; e no segundo a de quem nos emprestasse uma casa para
morarmos até áquclle dia. No primeiro caso o nosso casa-
215

mento é uma condição que suspende a exigibilidade da pro­


messa ; e no segundo uma condição que acaba ou resolve a obri­
gação, aliás effectiva desde a celebração do pacto, e até então
executada.
Iteferem-se estas condições, como se vè á effectividadc da
obrigação contrabida ; ellas, porém, classificam-so ainda se­
gundo as causas que podem determinar a sua propria realisa-
ção, c n’este sentido são : potestativas, casuacs, ou mixtas.
Poteslaliva c a condição quando a sua rcalisação depende
só da vontade ou poder d’aquellc em favor de quem é feita
a promessa, como a de seguir este tal ou tal profissão, ou pres­
tar tal ou tal serviço de que elle é realmente capaz. E’ casual,
quando só depende do acaso ou de acontecimento natural sobre
que não possa influir o promissario, como a dc clicgar tal na­
vio a salvamento ao porto de seu destino, a do ter-se uma colheita
abundante, etc. E’ mixta, quando depende do concurso da von­
tade do aceeitanle, e da de outrem, como a de casar elle com tal
mulher, ou a de conseguir tal cousa dc terceiro.
As condições chamadas alternativas, que se dão em um
pacto, quando 11’elle alguém se sujeita a uma obrigação tal, no
caso de não cumprir lai outra, não são, a nosso ver, propria­
mente condições. Salva a inserção de outras propriamente taes,
no pacto pelo qual alguém se obrigasse a dar a outro um ca-
vallo, ou na falia d’elle, uma cerla quantia, nada teria este, com
efieito, de condicional. A obrigação do promiltente de entre­
gar, embora á sua escolha, ao promissario uma d’essas duas
cousas, seria uma obrigação pura ou absoluta. Em tacs pactos
a alternntividadc não está em alguma condição sua, mas na
propria obrigação que os constitue.
Conforme nos disse o Compendio no principio do paragra­
phe de que nos occupamos, e facilmente sc deprchendc da pro­
pria cousa cm si. Ioda a condição, propriamente tal, deve con­
sistir cm uma circumstancia ou acontecimento futuro \ c com
razão nos faz clic ver ainda, nos seus §§ 112 e 113, que além de
futuro deve ser este incerto, ou pelo menos ignorada pelos pae-
luantes a epocha de sua realisação ; aliás não seria isso uma
verdadeira condição. .Não o são realmente aquellas que sc dão
nos casos que o mesmo Compendio alii indica, em que alguém
promette dar ou fazer a outrem alguma cousa no dia de seu ca­
samento, si este já está marcado e c certo, ou no da primeira
lua cheia, etc. N’estes casos ba antes verdadeiros pactos ab ­
solutos, embora a prazo mais ou menos breve, do que pactos
propriamente condicionaes. ,
As diversas condições que acabamos de mencionar tem to-
214

das importância no Direito, porque influem direclamente no


modo ou tempo da eíTectividade dos pactos ; e sobre tal as­
sumpto tem realmente cscripto volumes os cscriptores do Di­
reito Positivo. Seria, porém, improprio d’esta cadeira entrar­
mos a semelhante respeito em mais longos desenvolvimentos.
A matéria do § 114 está contida e sullicientemcnte expli­
cada no que fica exposto sobre os precedentes, de que elle é
apenas um corollario.
No § 115 trata-se dos diversos modos pelos quaes se extin­
guem, em geral, as obrigações provenientes dos pactos. São
esses diversos modos, segundo nos diz. o Compendio, os seguin­
tes : — a satisfação, a compensação, a renuncia, a confusão,
o consentimento das partes, e finalmente, o curso natural das
cousas, que faça desapparecer ou o obrigado ou objecto da
obéigação,ou as condições de que dependa a eíTectividade d'esta.
Satisfação n’este caso não é, como em outros, que temos
visto, sinonymo de reparação ; mas sim de cumprimento ou
desempenho d’aquillo que se promelteu ou estipulou.
Certamenle, entregar-se a cousa promettida, ou prostar-se
o acto ou serviço sobre que versou o pacto, ou pagar-se n di­
vida contrahida, é o modo mais completo e mais natural de
pòr-se (lm a taes obrigações, mas n'isso mesmo ba regras a ob­
servar-se, lacs sejam, cm geral : que a satisfação ou pagamento
não póde ser recusado em qualquer tempo por aquelle a quem é
devido, a menos que a obrigação de eITectual-o não seja a prazo
flxo ; que elle póde ser feito por consignação ou deposito da
cousa ou quantia devida, quando esta é recusada ; que se póde
realisal-o por meio de terceiro, uma vez que este o laça em
nome do obrigado ou devedor ; que deve veriflear-se no lugar
onde está a cousa si eslaé um objccto determinado, aliás, onde
ella fòr exigida, salva condição expressa em outro sentido ; que
nas dividas de dinheiro não se imputa no capital qualquer
pagamento em quanto ha juros apagar -, e quedeve ser integral
o pagamento ou satisfação, pois que do contrario só cm parle
será extincta a obrigação ou divida. Entretanto por uma ex-
cepção de bem entenlida equidade, o Direito Positivo considera
quite o devedor insolvavel de boa fé, que faz entrega ou cessão
ao credor de todos os seus bens acluaes.
Compensação é o que vulgarmente se denomina encontro
de divida; ella dá-se como observa o Compendio, entre aquel-
les que são reciprocamente devedor c credor um do outro.
A compensação é de manifesta justiça, c funda-se até em
considerações que o simples bom senso autorisa. Ella é do in-1
teresse commun) das partes, c evita o circuito inútil de deseu-
!
bolçar cada uma d’cstas aquillo mesmo que da outra tem á re­
ceber, ou o seu equivalente. Tem, entretanto, também a com­
pensação suas regras especiaes, já em relação as obrigações
a que se applica, já ao modo pelo qual deve operar-se, ejd aos
elTeitos que deve produzir.
Nem todas as obrigações ou dividas podem ser extinctas
por esse meio; mas em geral, todas as que forem'realmente
susceptíveis de compensação, devem ser compensadas, ainda
que procedam de cousa diversa. Compensáveis são, por exem­
plo, todas as dividas reciprocas de dinheiro ou quantidade certa
de cousa fungivcl ; c podem sel-o também as de cousas indeter­
minadas de um certo genero. Não podem sel-o, porém, as que
versem sobre um objecto particular em si proprio ; nem as que
por alguma razão especial de,vam ser d’isso excluions. Assim,
não é compensarei qualquer divida activa nossa com um objecto
ou quantia de nosso devedor que em nosso poder exista a titulo
de deposito, ou obtida pela violência.
Como bem nota o Compendio quaesquer dividas ou obri­
gações para serem admitlidas á compensação devem ser homo­
gêneas, exigíveis na occasião, e liquidas ; pelo que não se póde
compensar a obrigação de pagar certa somma determinada,
com o direito a algum objecto indeterminado ; urna obrigação
já vencida com outra ainda por vencer ; ou uma divida certa
e apurada no seu quanlim , com uma eventual, ou duvidosa cm
relação a este.
Entre obrigações ou dividas dc desigual importância a com­
pensação pode-se fazer até ao concurrente valor ou quantia.
Extingue-se a obrigação ou divida contrahida, pela renun­
cia, quando aquelle a quem a mesma c devida, desiste d’ella,
exonera o obrigado ou devedor de seu cumprimento, ou lha
perdóa. I’óde a renuncia ser expressa ou lacita ; e esta resulta
juridicamente de certos factos- que a fazem presumir, como,
por exemplo, o de entregar o credor ao devedor os títulos de
sua divida. Póde sor ella também total ou parcial ; referir-so
a toda a divida ou a uma parte d’ella, mas n’este caso só a ex­
tingue n’essa parte Póde (inalmentc ser pura e simples ou con­
dicional ; no primeiro caso não é necessário para n sua vali­
dade, que o devedor lhe preste expressamente a sua acceitação,
pelo principio de que tudo o beneficio se presumeacceilo quando
não é posilivamente regeitado ; no caso, porém, em que se lhe
impõe qualquer condição, não póde cila produzir eíleito sem
o consentimento declarado d’este. _
A confusão pela qual se extingue uma obrigação ou divida
contrahida, consiste na juneção da qualidade de credor e dc de-
vedor em uma só pessoa sobre a mesma cousa ou quantia. Ella
dá-se, por exemplo, quando o devedor vem a ser herdeiro do
credor ou vice-versa, ou quando um terceiro o vem a ser de
ambos, ou mesmo simplesmente legatario da divida e credito
correlativos. Essas duas qualidades contrarias reunindo-se em
um só indivíduo, destróem-se reciprocamenle, desde que nin­
guém pode ser devedor ou credor de si proprio.
A confusão será total quando o direito que sc adquire fôr
tão extenso como a obrigação com que elle tem de confundir-se;
aliás, será ella apenas parcial, e só parcial lambem a exlincçào
(l’esta.
Diz-nos o Compendio que uma obrigação resultante de
pacto extingue-se ainda pelo consentimento mutuo das partes
contractantes ; o que é realmentc liquido á respeito de todo
e qualquer pacto, á excepção d’aquclles que, por Direito, se con­
sideram indissolúveis. Mas esse consentimento mutuo que em
geral póde pôr fim aos pactos de uma maneira absoluta ou com­
pleta, póde em alguns casos extinguir a sua obrigação sómente
em relação a uma das partes, ou sómente em tal ou tal sentido,
por um novo ajuste entre aquellas ; tal seja esse de que trata
o Compendio na sua primeira nota a este paragrapho, e que no
Direito Civil se denomina novação de contracto.
Consiste esta na substituição por accôrdo commum dos
pactuantes de uma obrigação ou divida antiga por outra nova,
ou na modificação d’aquelia de maneira que se torne differente.
Entretanto não ha novação na simples reforma do titulo, ou do
prazo de uma divida ou obrigação, ou no simples abate, ou ad-
diccionamento dè juros, ou de fiador, áquella que os não tinha.
Quando em tal ajuste intervém úm terceiro, que se consti­
tue devedor ou credor em lugar do primitivo, basta esta cir-
eumstancia para considerar-se extiucta para este a obrigação
ou o direito anteriores estipulados no primeiro pacto; e n’este
caso a novação toma particularmente o nome de delegação.
Ma generalidade do modo ultimo de extinguir-se as obri­
gações procedentes de pactos, que o Compendio nos indica,
coinprehendem-se diversos que se poderiam classificar distinc-
tamente, taes como, a morte do obrigado, o perecimento da
cousa devida, a superveniencia de condições resolutivas, ou
de quaesquer circumstancias que tornem de facto ou de direito
impossível o cumprimento do estipulado; c, finalmente a todos
os que elle menciona devemos accrescentar a prcscripçào, em­
bora esta seja mais difficil de explicar-se, por Direito Natural,
em relação a obrigações ou direitos puramente pessoaes.
Entretanto cumpre-nos observar, que as obrigações que
217

realmente cessam pela morte do obrigado, são apenas aquellas


que versem sobre cousas ou Cactos pessoaes a este ; as mais,
por via de regra, passam aos seus herdeiros ou successores, si
acceitam a sua herança, e até ás Corças d’esta -, e as que acabam
[»elo perecimento da cousa devida são também sómente as que
recabem sobre algum objecto certo e determinado em espccie,
e não as que consistam em divida de dinheiro ou cousa deter­
minada em genero ; c mesmo para que se exlinguam as pri­
meiras, é preciso que não tenham as cousas a que ellas se reCe-
rem perecido por culpa ou Craude do obrigado, e que no res­
pectivo pacto não se tenha este sujeitado aos proprios casos
fortuitos que as fizessem perecer, aliás, terá elle de responder
ao menos pelo seu valor.
A supervenieneia de condição resolutiva extingue a obri­
gação du pacto condicional respectivo, porque tal Coi a vontade
expressamente n’ellc declarada pelos pactuantes.
Do mesmo modo extinguem tal obrigação quacsquer cir-
cumstancias que a todo o tempo tornem realmente impossível
o seu cumprimento, porque ao impossível ninguém é ou póde
ser obrigado ; tal seria, por exemplo, a obrigação a que se ti­
vesse sujeitado alguém de casar-se com tal ou tal pessoa que
o não quiz por marido ou mulher, ou que casou-se depois com
outrem.
Com tudo a regra que sobre este ponto temos estabelecido
não é absoluta ; isto é, nem sempre a titulo de se ter tornado
inexequível uma obrigação fundada cm contracto, fica o pro­
miltente isento de toda a responsabilidade para com o prorais-
sario. As modificações ou limitações com que essa regra deve
ser entendida e applicada, pódem-se ben\ deduzir do que já
preccdentemenle dissemos sobre a impossibilidade physica, mo­
ral, ou jurídica dos pactos.
Quanto á extincç.ão de taes obrigações por via de prescrip—
ção, pode-se também applicar-lhe convenientemente o que já
em outra parte expendemos a respeito d’esta, e das suas condi­
ções variáveis segundo a natureza, valor, e mais circumstancias
da cousa, direito ou pessoas sobre que tem a mesma dc recahir.
A perfídia ou transgressão do pacto por um dos pactuantes,
como nos diz o Compendio no final d’este paragrnpho, não des­
obriga, com effeito, a quem a praticou ; pelo contrario á sua
obrigação primitiva o pérfido accumula mais outra nova, qual
a de indemnisai' ao outro pactuante as perdas c damnos que lhe
cause, e que elle póde exigir-lhe com o cumprimento d’aquella.
E’ certo que não querendo o pactuante fiel compcllir
áquelle á execução do pacto, muito menos póde o perlido ou
28 F j •
2]S
transgressor exigir d’elle o cumprimento da obrigação na parte
que lhe respeite, e então, como nos diz ainda o Compendio,
o pacto íica extincto. Mas a verdadeira causa ou razão juridica
de sua extincçào em tal caso, vê-se claramentc que não é aquclla
perlidia ou transgressão de uma das partes, e sim a desistência
ou renuncia da outra ao seu direito adquirido pelo pacto. Este
caso entra, pois, naturalmenle nos da extincçào das obrigações
contractuaes, por aquelle modo, de que já acima tratamos.
Em suirnna a perfídia de uma parte dá a outra o direito de
considerar o pacto extincto, mas não é em si mesma um meio
de extinguil-o.
Temos exposto, em geral, os princípios de Direito Natural
relativos aos diversos modos pelos quaes podem acabar os pac­
tos; devemos, porém, ponderar que todos os casos em que, ou
todos os requisitos corn os quaes elles tem de ser applicados,
e devem produzir os seus effeitos, dependem para isto de outras
regras mais particulares, que só o Direito Civil póde estabele­
cer, e que aos juizes e tribunaes sociaes cumpre fazer eífectivas
segundo as formulas que lhes sejam prescriptas nas respectivas
legislações.
Todos aquelles princípios são n’este Direito, e nas suas ap-
plicações praticas susceptíveis de longos desenvolvimentos e de
importantes modificações, conforme as justas exigências da so­
ciedade em geral, ou da equidade nos casos em que esta deve
ter lugar.

r
CAPITULO II

IHS DIFFERENTES ESPECIES DF. l’XCTOS

■LICClO
9 Z ZZIV
§§ 116— 12Ó

Dos paclos principaes ; —pactos beneficos : doação, commodato,


mutuo, deposito

Trata o Compendio n’estc capitulo das diversas espccies de


pactos.
Estes quanto a sua independência ou dependencia de ou­
tros são principaes ou acccssorios ; e quanto á correlatividade
das obrigações ou direitos que crèam entre os pactuantes são
unilateraes ou beneficos, e bilateraes ou commutalivos, como
nos diz o Compendio no seu § 117. Estes chamam-se também
onerosos, e aquellcs gratuitos.
Ampliando a definição que nos dá o mesmo Compendio no
seu § 117, diremos que paclos beneficos em sua mais geral ac-
cepção são aquellcs em que uma das partes promette a outra ou
pratica cm seu proveito alguma cousa ou acção sem estipular
ou exigir d’elle retribuição alguma. As diversas especies dos
mesmos vem indicadas no citado paragrapho, mas nós as ex­
poremos em uma ordem dilTerente, que nos parece mais lógica.
Cabe o primeiro lugar, incontestavelmente, á doaçao, que
é o pacto pelo qual alguém transfere a outrem gratuitamente al­
guma cousa sua, seja immovel ou movei, domínio, uso ou sim­
ples posse, olijecto real ou apenas um direito pessoal, e d’elle
trata o Compendio em seu § 121. Este é, com effeito, o pacto
220
benefico por excellencia, ou segumlo a expressão do Sr. Ferrer
o typo dos pactos d’esta especie.
A legitimidade da doação deriva-se immediatamente do Di­
reito Natural absoluto; e por isso, com vazão, combate Belirne
o pensamento de Kant que pretende que este Direito é insufli-
cientepara pôr o promiltente na obrigação de effectuar a doa­
ção promettida. Como todos os pactos esta tira a sua força da
vontade livre c.legitima dos pactuantcs, a qual desde que é ma-
• nifeslada segundo as condições que o Direito exige, si não tor­
nasse a promessa obrigatória n’este caso, nenhuma razão ha­
veria para admittir-sc a validade de qualquer contracto. Essa
força não lhe vem da lei positiva, que apenas intervem para ro-
deal-a de garantias, ou para conter nos seus justos limites a li­
berdade de fazel-a, que na sua plenitude illimitada seria em
certos casos nociva já a sociedade em geral, já aos prupriosque
a fizessem, ou aos direitos de outrem. Kant confunde o facto
com o direito. Desde que a promessa da doação é juridica­
mente feita, tem por si a justiça absoluta, independentemente
da acção dostribunaes sociacs que a façam cumprir.
Seria ocioso, porque é de primeira intuição, querermos de­
monstrar que só o dono de uma cousa pódevalidamente dual-a.
E’ regra comrnum a todos os pactos, que não se póde fazel-os
sobre o alheio. Assim como é também claro, que doada al­
guma cousa por alguém que em boa fé a julgava sua, e depois
se reconheceu ser de outrem, e foi restituída pelo donatario,
não tem este direito de pedir áquelle indemnisação alguma pela
perda da mesma ; deve-se-lhe, porém, em taes casos reconhe­
cer o direito a uma indemnisação dos damnos òu despezas
que lhe tenham d’ahi resultado, e igualmente das que lenha
feito para a conservação da cousa c das bemfeitorias que. lhe
haja addiccionado, c que segundo as regras anteriormenle esta­
belecidas lhe devam ser levadas em conla.
A doação póde ser de difTerentes especies; é pura ou sim­
ples quando é feita sem condição alguma, por parte «lo donata­
rio: remuneratoria, quando feita em recompensa ou attenção
á algum serviço recebido ; e condicional quando para tornar-se
effécliva depende de alguma circumstancia ou facto, uma vez
que não seja prestação dc cousa ou serviço equivalente, porque,
aliás, no primeiro caso será uma troca ou permuta, e no se­
gundo uma locação, ou qualquer outro pacto oneroso.
Quanto ao tempo da sua effectividade com relação á vida
do doador, a doação é intervivos ou causa mortis; esta depen­
de do falleoimento d’aquelle, e é por sua natureza revogável em
qualquer occasiâo durante a sua vida, ainda quando feita com
a clausula expressa de irrevogabilidade, que cm I»ireito se con­
sidera nulla em taes casos.
Finalmente quanto á sua extensão dividem-se as doações
. em universaes e parciacs; e quanto ao seu destino ou causa,
tornam os nomes particulares de dote, doação propter núpcias,
c/c., eic.
Como já, por mais de uma vez temos dito, é da natureza
da doação quando pura, suppôr-se acceita, sempre que nao ha
declaração expressa em contrario d’aquelloaquem é feita; mas
igualmente se considera acceita a condicional, desde que a con­
dição é cumprida.
IVos §§ 117 e 120 occupa-sc o Compendio com o commo­
dato e regras que lhe são applicaveis.
Commodato é o empréstimo gratuito de uma cousa com
a obrigação de ser restituída ella propria depois do uso para
que foi emprestada, ou no tempo convencionado, si o houve.
Este contracto applica-sc propriamente a cousas imfungiveis,
ou não susceptíveis de consumir-se pelo seu uso natural ; mas
póde também recahir sobre alguma cousa fungivel, uma vez que
esta seja emprestada com a condição expressa de não ser con­
sumida em tal uso, e de ser ella em si mesma restituída no íim
do empréstimo.
Consistindo o commodato na cessão do uso da cousa, é
claro que elle deve importar igual cessão de todos os meios de
fruil-a que estejam ao alcance do commodatario, e não depen­
dam da vontade do commodante. Assim como, que deve aquelle
supportar as despezas (pie forem necessárias para tirar d’aquella
o uso e utilidades a que ella se preste ; pela razão de que quem
tem os commodos de alguma cousa deve ter os incommodos
que lhe forem inhérentes.
Mas as despezas propriamente de conservação da cousa
emprestada, devem, em todo o caso, correr por conta de seu
dono, assim como os prejuízos que ao commodatario resultem
dos vícios d’aquella, que lhe tenham sido occultados, visto que
são circumstancias essas referentes á substanciada mesma, que
é objecto do dominio, e que não se transmittio ao commodatario.
Este deve ter o direito de por sua vez emprestar a outrem
a cousa que lhe foi emprestada, respondendo ao dono da mes­
ma pelos damnos que lhe resultem d’esse sub-empréstimo ; sal­
vos os casos de clausula expressa prohibitiva a tal respeito no
contracto, ou quando isto claramenlc se deduza das cirtíumslan-
cias ou modo em que este foi leito, ou da natureza do objecto
emprestado, ou quando haja razão para cròr-sc que elle só foi
feito em attenção pessoal ao commodatario. '
Si a cousa emprestada solfre deteriorações ou perece em
poder d’este, não por negligencia, culpa ou fraude sua, mas
por casos fortuitos, taes deteriorações ou perecimento correm
por conta de seu dono, como ensina o Compendio rio § 120.
Esta regra, porém, não é sem cxcepções, c o Sr. Ferrer, excep-
túa, com effeito, d’ella os casos cm que o commodatario tenha-
se expressamente sujeitado a todos os successos fortuitos, ou
em que a cousa antes de emprestada tenha sido avaliada, ou
quando o mesmo commodatario a retém além do prazo. 0 mes­
mo author accrescenta também, quando este podendo usar da
cousa propria usou da alheia, ou podendo salvar esta salvou
a sua. Mas não nos parece ter elle razão n'este ponto; por­
que usar da cousa emprestada mesmo poupando a propria é um
direito incontestável do commodatario ; e não ha razão plausí­
vel para impôr-se-lhe a salvação da cousa alheia de preferen­
cia á da que é sua, quando não podem ser ambas salvas. 0 seu
acto poderá não revelar sentimentos delicados de sua parte,
mas, de certo, não imporia uma lesão do direito alheio.
Entretanto da própria regra que sujeita o commodatario
aos casos fortuitos expressamente acceitos, deve-se excepluar
aquelles que fariam do mesmo modo perecer a cousa no poder
de seu dono.
Feita pois aquella excepção indicada pelo Sr. Ferrer, e re­
duzida ella ao seu real e legitimo alcance, é verdadeiro o prin­
cipio que o commodatario não responde pelo perecimento da
cousa emprestada, e é de todo concludente a argumentação
com que o Compendio combate a doutrina contraria ; porque,
si como pretendem alguns, a mente do commodante empres­
tando a cousa não foi privar-se da sua propriedede, é também
certo que, na hypothèse figurada, nãó é o commodatario que
lh’a fez perder, eque a sua propriedade em caso nenhum deve
ter mais privilégios e garantias nas mãos d’este, do que nas
suas onde igualmente se leria perdido. Assim como se ella pe­
receu em consequência do seu uso natural, nenhuma razão
plausível ha também para que se converta em darnno do mes­
mo commodatario um acto seu praticado dentro dos justos li­
mites do seu direito, e do seu contracto.
Do mutuo trata o Compendio nos §§ 122 — 125.
Consiste este no pacto pelo qual se transfere a outro uma
cousa fungivel com a condição de em certo tempo ou á vontade
do mutuante ser-lhe entregue outra do mesmo gencro e em
igual quantidade.
Entretanto cousas infungiveis ha que pódem ser objecto
d’este pacto ; taes sejam aquellas que pódem ser perfeitamente
representadas por ouïra da mesma especio, c.omo um exemplar
de uma obra litteraria que o póde ser por qualquer outro da
mesma.
Em razão da propria natureza do objecto do mutuo, dá-se
n’este pacto não só a transferencia do uso, mas também a do
proprio domiuio da cousa mutuada ; por elle se constitue, pois,
o mutuário senhor d’esta. Correm por conseguinte por sua
conta os riscos que lhe possam succéder desde que ella passa
ao seu poder, antes mesmo de tirada qualquer vantagem d’ella,
ou seja qual fór a origem de laes riscos. Si ella se deteriora ou
perece, ^oífre o mesmo mutuário o prejui/.o ou perda. lies-
ponde, porém, o mutuante, do mesmo modo que o comnio-
dante, por esses ou quaesquer outros damnos que áquelle re­
sultem dos vícios da cousa que lhe não foram patenteados.
Pela mesma razão já dita, pertencem ao mutuário todos os
fruetos ou proveitos da cousa mutuada ainda os menos previs­
tos, quér por elle quér pelo mutuante ; assim como compele-lhe
fazer todas as despezas de qualquer espccie que sejam necessá­
rias já para a utilisaçno, já para a conservação d’aquella.
Em relação á entrega da cousa equivalente devida pelo
mutuário, nenhuma excepção póde o mutuante allegar para
exigil-a antes de (indo o prazo, si, com effeito, elle foi marcado
para essa entrega; não tanto pela razão que nos dá o Sr. l'er­
rer, de que a cousa dada pelo mutuante pode já ter sido con­
sumida e soffrer o mutuário grave prejuizo, sendo obrigado
a apromptar immediatamente outra semelhante para entregar-
lhe, como porque si o tempo para effectuai' essa entrega foi
expressamente ajustado, constitue isto uma condição que não
póde a arbítrio do mutuante ser supprimida ; essa estipulação
faz lei entre elle e o mutuário ; do mesmo modo que si ajustado
fosse que o mutuário entregaria a cousa logo que ella lhe fosse
pedida, estava na rigorosa obrigação dc entregai-a desde que
isto se verificasse, embora lhe viesse d'ahi qualquer prejuizo,.
porque também o mutuário nenhuma excepção legitima póde
allegar para pretender espaçar para além d’essa occasião ou do
termo fixado, o cumprimento da obrigação que acceilou.
Quando no mutuo não se convenciona um prazo para a en­
trega da cousa devida pelo mutuário, deve-se considerar corno
tal um lapso de tempo razoavel conforme as circumstancias
e natureza do negocio; visto como si é justo que o mutuário
não seja atropellado na execução de sua obrigação, também não
póde ella ser indefinida.
O mutuo c o commodato, como se vè do que temos dito
a respeito de um c outro, são especies do mesmo genero em-
I
224
préstimo; e lambem do que lemos dito vê-se no que elles se a s­
semelham, e no que differem, e o que tem de commuai ou de
especial em relação a qualquer outro pacto.
Do deposilo occupa-se o Compendio no § 118, no qual nos
define o que seja este pacto, e nos indica os princípios que re­
gulam as relações jurídicas dos respectivos pactuantes entre si,
e a respeito da cousa depositada.
Deposilo é o pacto ou contracto pelo qual alguém dá a ou­
trem, alguma cousa, c este se obriga a guardal-a, ou seja para
lh’a restituir depois, ou para entregai- a a alguém em seu nome.
Como pelo deposito não se transfere o domiuio da cousa
depositada, enem mesmo o seu uso, é claro que não pode o de­
positário licitamente exercer acerca do mesmo estes direitos -,
e que assiifí não lhe ó permittido alienal-a nem fazer com cila
quaesquer transacções ou negocios, ficando quando os faça,
não só responsável para com o depositante pelas perdas e dam­
nos que d’alii lhe resultem, mas também obrigado a entregar-
lhe todos os lucros ou vantagens que de taes actos tenha aufe­
rido. Entretanto certos usos ha da cousa depositada, tão na-
turaes que não podem ser impedidos ao depositário, porque ou
se devem suppòr tacitamente consentidos pelo depositante desde
o deposito, ou são resultados necessários e inevitáveis da pro­
pria situação em que aquella se acha. Assim o depositário de
um relogio não poderia juridicamente ser impedido de servir-
se d’elle para regular suas horas, pela simples razão de não
podel-o ser de facto.
O depositário deve restituir a cousa depositada, e com ella
todos os seus accessorios e fructos, logo que ella lbc seja pedida
pelo depositante, salvo si o deposilo foi constituído como garan­
tia de alguma obrigação d’este, caso cm que toma o caracter de
penhor, ou quando tem de ser levantado por terceiro sob algu­
ma condição.
. A entrega da cousa depositada deve ser feita no lugar con­
vencionado, ou no do contracto, ou n’aquelle em que ella real-
mento estiver na occasião.
Escusado é fazermos as limitações que faz o Compendio
ácerca d’essa entrega nos casos em que o depositante que a pede
não está em condições de poder exercer os seus direitos, ou
quando o depositário saiba que elle a pede para um (im crimi­
noso ■,essas limitações se subentendem, assim como quaesquer
outras semelhantes.
Salvos, em summa, taes casos a entrega da cousa deposi­
tada desde que é exigida, ou no devido tempo, é uma obrigaçáo
tão restricla, que em geral, pelo Direito Civil é sujeito, além do
mais, á prisão e pena, o depositário que não a eííectúa imme-
diatamente.
O deposito basca-se na confiança do depositante para com
o depositário ; este não póde, por-tanto, lransferil-o a outrem;
e deve empregar toda a diligencia e cuidado na guarda e con­
servação da cousa depositada, sub pena do responder aquelle
pela sua perda ou deteriorações. Como, porém, a sua obriga­
ção, em um pacto d’esta natureza, puramente officioso, não
póde iraté ao ponto dedever elle sacrificar o que c seu ao alheio,
é o depositante, por sua vez, obrigado a indemriisar-llie as des-,
pezas que elle faça ou lenha feito com aquella guarda e conser­
vação. Mas como bem observa o Compendio também esta obri­
gação do depositante não póde ir além do valor da cousa depo­
sitada ; pois que sujeilal-o a mais seria impôr-se-llic um sacri­
fício, que não se póde razoavelmente presumir que elle proprio
fizesse para aquelle fim. Si o depositário excedeu-sc cm taes
despezas a ponto de fazel-as em major importância do que
o valor d’aquillo que recebeu em deposito, a si impute esse ex ­
cesso, que se deve considerar uma pura liberalidade de sua
parle.
E’ claro que o que temos aqui estabelecido acerca do de­
posito, só se refere propriamente ao deposito voluntário, otli-
cioso e particular, e não ao deposito quando é necessário, j u ­
dicial ou publico, que não constituem verdadeiros pactos,
c menos ainda pactos gratuitos. Embora estes se rejam pelas
mesmas regras expostas em tudo o que ellas lhes são realmente
applicavcis, com tudo são subordinados a outras especiacs deri­
vadas do modo, causas, e fins de sua constituição.
LMOÃO
3 ZZZT

§§ 126 — i36

Mandato, gestão de ncgocios. — Pactos commulalivos ou one­


rosos: — permutação ; — compra e venda

Mos §§ 126 a 128 trata o Compendio do mandato, que ú o


pacto pelo qual alguém encarrega a outro de realisar ou dirigir
algum negocio seu, e este se compromette a fazel-o.
Do mandato resultam obrigações e direitos já para o man­
datário, já para o mandante ou comrnitlenle, e essas obriga­
ções e direitos são ou de um para com o outro, ou de qualquer
d’elles para com terceiros, com quem tenha tratado o manda­
tário e vice-versa. Assim este é obrigado a empregar toda a di­
ligencia para o bom desempenho de sua commissão, c a con­
sultar o mandante em todas as/cireurnstancias ditTiceis ou du­
vidosas que occorram, sempre que isso fòr possivel ; a dar-
lhe conta, em tempo competente, do estado de seus negocios ;
e a cingir-se na direcção d’elles aos termos de seu mandato, si
por este lhe não foram dados poderes geraes e amplos. Sempre
que se alï'asle (l’esta regra torna-se elle responsável para com
o mandante pelos prejuízos que lhe cause; mas não assim,
quando se contém nos limites d’aquelles seus poderes, e não se
tenha elle proprio obrigado como fiador pelos petos de sua ge­
rencia, ou quando seja conhecido o simples caracter de procu­
rador em que obra.' Cotão os seus actos ou compromissos se
reputam praticados pelo proprio mandante, «pie é obrigado
a curnpril-os, e por elles responde para com os terceiros ; bem
como ao mandalario pelas despezas por elle feitas na realisação
dos mesmos.
O mandante, também sob sua responsabilidade, deve dar
ao mandatario todas as inslrucções que forem necessárias, ou
por este pedidas para aquelle fim. Mas observa o Compendio
no § 127, que qiiaesquer condições secretas que existam entre
007

elles, não podem prejudicar os direitos dc terceiros rjuc os te­


nham adquirido tratando em boa fü com o mandatário. Km
taes casos faz-nos elle ver, com razão, qne o mandante só tem
acção de indemnisação contra este por não ter observado essas
inslrucçõcs.
l*<Pi diversos modos ou causas póde findar o mandato.
Primeiramente, como elle se fonda na confiança do man­
dante para com o mandatário, e esta ó pessoal, acaba tal pacto
pela morte ou inhabilitaçSo d'este ; de maneira que os seus
successorcs, ou qualquer outro não pódem prorogal-o em si.
A morte do mandante, porém, nem sempre, ou a lodos os res­
peitos, importa a sua cessação ; elle póde continuar valida-
menle, ao menos, em relação aos netos ou transacçOcs já co­
meçadas antes da noticia d'aqnella morte, e aluda pendentes,
e quanlo seja necessário para concluil-as.
Acaba ainda o mandato pela revogação do mandante,
e pela renuncia ou recusa do mandatario ; mas em lai caso cada
um d’elles é responsável ao outro pelos prejuízos que lhe occa­
sion« por uma revogação ou renuncia sem justa causa, o sem
dar-lhe o tempo necessário para contra os mesmos precaver-se.
A geslão de negocios coin que se occupa o C.ompendio no
§ 129, consiste nn incumbência que alguém por si mesmo toma
de realisur ou dirigir algum negocio de outro, sem 1er recebido
d’este enmmissão alguma em tal sentido.
Ella distinguc-se, como se vê, do mandato, em que a com-
missão do mandatario se constitue por aulorisação expressa do
mandante; ao passo que n’ella não se dã o consentimento ex­
presso du pessoa a quem o negocio respeita. Esse consenti­
mento é supprido, entretanto, pela hem fundada presumpção
do mesmo, que resulta da natureza da gestão, corno a da accei-
taçào dc todo o beneficio, em quanto não é cxplicilameiite re­
cusado. Não, obstante, pois. não baver n ’ella aquelle consen­
timento declarado, é a mesma juslamente considerada como um
verdadeiro pacto, do qual se originam obrigações e direitos aná­
logos aos do mandato.
E’ assim que o gestor dc negocios alheios é obrigado a em­
pregar a mesma ou ainda maior diligencia por bem desempe­
nhai- o negocio que toma a si ; a dar conla d'elle, c dos seus re­
sultados ãquelle a quem elle interessa, logo que. o possa ; e res­
ponde a este pelos prejuízos que lhe provenham de. incuria ou
má ró na sua ofllciosa intervenção. Mas por outro lado, as suas
estipulações c aclos necessários ao bom exito craquelle, obri­
gam, da mesma forma e rom as mesmas condições que uo man­
dato, para com terceiros, aquelle em nome e ein vantagem dc
228
quem elle obra ; c torna este responsável para com o mesmo
geslor pelas despezas que elle fez para aquelle fim.
Da propria noção que temos dado do que seja a gestão de
negocios. infere-se. que «lia não póde legitimamentc ter lugar
cm relação a negocios de pessoas que estejam presentes no lu­
gar dos mesmos, c que possam por si tratai os ou ciftillal-os
a alguém ; salvos, comtudo. os casos urgentes, em que apezar
dc sua presença, não possam taes pessoas ser consultadas, ou
providenciar a tempo sobre a sua rcalisação ou gerencia.
1'oru d'eslas cireumslancias aquelle que se inlromette em
negocios de outro, nau obriga este a cousa alguma, quér para
com elle proprio, quér para com terreiros, a não ser á indem-
nisação d’aqucllas despezas, que a propria má fé não faz perder.
Taes são os pactos considerados beneileos nu gratuitos;
devemos, porém, ponderar que nem todos elles são taes essen­
cialmente. t:\ceptuada a doação, a qual não perde esse ca­
racter ainda mesmo quando é condicional, pois nunca se póde
siippór o onus da condição superior ou mesmo equivalente á van­
tagem da ncceitação da cousa doada, todos os mais púdem em
algum caso tornar-se commutatives : o commodato e o mutuo
quando a cousa é emprestada com a clausula de ser restituída
com alguma retribuição, ou ern maior quantidade ou em quali­
dade superior: o deposito, e sobretudo o mandato ncceilbs me­
diante paga ou interesse : e a gestão quando os serviços do ges­
tor são realmcntc retribuídos. Mas em lodo o caso a gratuidade
é o caracter natural de todos esses pactos ; a fórma puramente
ofliciosa é a sua forma mais commuai, e mais propria; c ella
se lhes attribue, sempre que não lia entre os pactisantes decla­
ração expressa em contrario, ou alguma circumstaneia ou razão
especial pela qual se lhe deva attribuir caracter diverso ; pelo
que são todos esses pactos jiislamcnle classillcados d’aquella
especie.
Passemos aos pactos propriamente commulativos ou one­
rosos île que trata o Compendio no § 1.30 e segniiftes.
Os principaes d’estes são: a permutação ou permuta,a com­
pra e venda, o empréstimo a juros, c a locação dc cousas ou
serviços. Já fizemos ver antecedeotemente a differença exis­
tente entre os pactos commutatives e os bcnelicos, e as suas
proprias denominações assáz a indicam.
Comqiianto em uns e em outros se déctn obrigações de
parte a parte, todavia as que dos pactos beneileos resultam para
uma d’ellas não são destinadas a compensar as que contrabc
a outra ; n’esses pactos ha sempre uma vantagem visível e irn-
mediata para o acceitante, sem outra igual ou correspondente
229
para o promillente ; no passo (pic os paclos commutativos ou
onerosos são essendalmenle rondados na espectali.va dos pac­
tuantes de proveitos on vantagens que cada um considera iguaes
ou superiores ás que cedo ou promette ao outro. N’clles, como
diz Bfclitno, « uma parte não promette uma cousa senão porque
já recebeu ou espera receber do outro uma equivalente.»
N’esta especie de pactos não se púde, pois, prescindir da
utilidade e preço das cousas sobre que elles versam, quando se
Irale de verificar as causas e efleitos de sua celebração, ou de
resolver quacsquer questões que sua execução suscite. Essauti-
lidade e preço são asna base e ponto capilaes, porque elles não
saç no fundo senão trocas de valores, os quaes é indispensá­
vel n’aquelles casos comparar e apreciar.
Mas é claro que esta mesma comparação e apreciação para
o fim de realisar-se o pacto não pódc ser feita senão pelos pró­
prios pactuantes cada ninem relação aquillo que cede ou tem
de receber ; e tanto mais quanto nn composição do valor de
taes cousas entra não só a sua utilidade coinmum, mas ainda
a que cada um d’elles possa particulnrmenlo attribuir-jhe em
vista dos préstimos n’ellas reconhecidos ou dos fins a que as
destine. D’onde se seguo que por justo preço das cousas, ao
menos para a effectividade da execução dos pactos que sobre
clins se fazem, se deve reputar aquelle*em que as .partes inte­
ressadas livremente houverem concordado. Não póde haver
outro meio de estabelecer tal justiça, sem anniquilar-se toda
a idea de dominio sobre taes cousas, e o fundamento essencial
de todo o paclo da especie aque nos referimos ; pois, rcalmente,
a legitimidade d’aqnelle preço dado por cada um ao que é seu,
é uma consequência necessária do seu direito de propriedade
sobre as mesmas, assim como o é a sua aeceitação pelo outro
pactuante que pelo pacto as adquire.
Os §§ 130 e 13 1 não carecem, por tanto, de maior desen­
volvimento, a não querermos quanto ao primeiro entrar em
longas considerações sobre a utilidade e valor das cousas, só
proprias da Economia Política ; e quanto ao segundo, repetir
princípios geraes relativos a lodo o pacto, já por nós expostos
mais de uma vez.
A matéria do § 132 está quasi nas mesmas condições:
consta elle apenas de curollnrios dos anlccedentes, e também
de regras communs a toda especie de paclos.
Diz-nos ahi o Compendio, em primeiro lugar, que s_e devo
suppíir nos pactos commutativos, que os pactuantes quizeram
observar a regra jurídica da igualdade do valor da cousa sobre
que o pacto versou ; o que é uma verdade, pois que, com ef-
250
feilo, nos paclos d'essa especie nunca se póde razoavelmente
presumir que os mesmos pactuantes quizessern renunciar ás
vantagens, cuja espectativa é a sua principal razão.
Mas esla regra só é applicavel aos casos cm que não lia
sobre tal ponto declaração expressa d’aquelles ; porque, desde
que a haja em relação aos objeetos que se tem d«í commutar,
ainda que de facto exista desigualdade nos seus valores, dá-se
sempre a seu respeito a igualdade jurídica que provém do ac-
eôrdo livre dos pac.tuanles, o qual faz Ici entre elles -, accôrdo,
pelo qual se entende que um d’estes quiz realmente abrir mão
da dilíerença do preço da cousa que lhe pertence, por assim
o julgar de seu interesse. Essa renuncia sendo também um di­
reito seu, fundado no seu domínio d’aquillo que cede, e sobre
o seu real valor, ninguém a póde legilimamente impedir. O que
em taes casos parecerá aos mais um prejuizo seu, ou um acto
de loucura, será talvez para elle um calculo bem formado, uma
transacçno lucrativa ; e quando o não seja ninguém póde cons­
tituir-se por isso seu curador oflicioso para tomar-lhe contas
a tal respeüo.
E’. porém,indispensável que cm relação áquello preço haja
realmenle accôrdo livre, e tal não se poderia reputar o (pie fosse
obtido por erro, dóló ou violência segundo a hypothèse figura­
da pelo Compendio no paragraphecitado sob o n. 3. Mas
ainda assim não ba inteira exactidão no modo pelo qual o mes­
mo Compendio sé exprime a este respeito. Nem sempre um
pacto se póde reputar propriamente desigual quanto no seu preço
mi sob outro qualquer ponto do vista, por ser n’elte obtido
o respectivo consentimento por qualquer d’aquelles meios.
Aquelle, que com uma pistola apontada ao peito de outrem,
o obrigasse a vender-lhe por tal ou tal preço um objecto seu
que de facto não valesse mais, ou que valesse menos, não of-
fenderia de certo, a igualdade contraclual ; e quando mesmo
a violência fosse para extorquir-lhe um contracto desigual,
o vicio d’este, não viria d’essa desigualdade, mas da falia de
consentimento livre do vendedor ou promittenle, dado o qual
elle seria valido apezar d’aquella. •
A obrigação de cumprir-se o pacto commutatiyo, por uma
parto, diz-nos ainda o Compendio, suppõe da outra a faculdade
e o animo de retribuir ; seria, porém, mais exacto dizer-se que
a obrigação de ujn dos pactuardes n’aquelle sentido suppõe
a obrigação correlativa do outro.
E’ verdadeira a regra que o mesmo Conqrcndio nos indica
na ultima parte d’este pnragrapho : mas é cornmum a todas as
especies de pacto. Si n’este não se determinou que um dos
pacluantes só cumpriria a sua obrigação depois de cumprida
a do oulro, ou uão resulta isso da propria natureza ou objeclo
do pacto, é claro que ambos são do mesmo modo obrigados
a dar-lhe simultaneamente execução immediata, ou em tempo
razoavel, ou logo que isso seja possível, quando não houve um
prazo marcado para esse fim ou condição que a suspenda. Ne­
nhum d’elles póde, pois julgar-se autorisado a addiar iudefini-
damente essa execução a espera que o outro lhe dê principio.
Todos os pactos commututivos ou onerosos (§ 133) pódem
ser capitulados em alguma das especies indicadas na seguinte
formula latina : do u t des, do ut facius, fucio ut des, facto ut
fucias; porque realmente elles consistem sempre ou em uma
prestação de cousa por cousa, ou de cousa por deniço, ou vice-
versa, ou de serviço por serviço. De cada um d’esses pactos
trata o Compendio nos §§ 133 e seguintes.
No primeiro d’estes occupa-sc elle com a permutação ou
troca, e com razão cabe-lhe o primeiro lugar entre os pactos
comrnutativos, pois que segundo se exprime o Sr. Ferrer, é ella
o typo dos pactos d’essa especie, como já vimos que a doação
o era dos beneficos. Todo o pacto commutativo c, com eifeito,
na sua essencia uma troca ou permutação ; mas este nome dá-
se particularmonte á troca quando ella c de uma cousa por ou­
tra em especie, e não em valor representativo ou dinheiro.
Pela permutação cede-se o dominio da cousa permutada,
c todos os direitos que. o constituem ; pelo que as consequên­
cias d’este pacto em relação áquella são analogas ás que resul­
tam do mutuo, em que lambem o dominio da cousa muluada
passa ao mutuário ; com a dilïerença que n’este a restituição da
cousa sc faz por outra equivalente e depois de usada a que sc
recebeu, e na permutação se faz a entrega de uma cousa por
outra qualquer e no mesmo acto.
Cada um dos permutantes adquire aquclle dominio sobre
a cousa permutada, e também por conta de cada um correm
os riscos, deteriorações ou perda d’aquella que acceitam, antes
mesmo de seu real recebimento. Cada um tem o direito de
haver do outro o objeclo que entregou ou o seu valor, si aquclle
que lhe foi dado em troca se verifica pertencer a terceiro. Cada
um, Onalmenlc, responde ao outro pelos vícios da cousa que
deu', si os occullou conhecendo-os ou devendo conheccl-os. Si
elles diminuem sómente o seu valorem relação ao que recebeu,
deve ser composta a dilïerença ; mas taes sejam elles que po­
dem mesmo dar lugar a nullidade do contracto.
A permutação póde-sc dar não só a respeito de cousas
propriamente susceptíveis de dominio, mas também a respeito
de simples direitos pessoaes, e até de simples esperanças de
direitos; mas ainda n’estes casos as obrigações que do pacto
se derivam são as mesmas, salvas as que só possam ter appb-
cação ás cousas materiaes e determinadas em especie.
O pacto de compra e venda é de todos os commutalivos
ou onerosos o mais frequente, quér na vida commercial, quer
na commum, e por tanto, também o mais importante.
Consiste elle na alheiação de alguma cousa a outrem por
dinheiro, como nos diz o Compendio no § 135, ou por um certo
preço. 1’ódem ser objecto d’elle todas as cousas capazes de
produzirem alguma utilidade, c cuja alheiação não seja íegal-
mente prohibida ; quér ellas existam actualmenle, quér sejam
futuras ou incertas, uma vez que tenham de verificar-se, ou
ainda méros direitos pessoaes.
Este pacto, como qualquer outro, póde ser puro ou con­
dicional •, a condição, quando existe, regula o modo especial ou
o tempo de sua execução ; e quando é puro o pacto, a obriga­
ção dos pactuantes é completa desde o momento em que a con­
trabern independentemeiite da tradicção da cousa ou do seu
preço ; somente o direito do comprador é desde logo um direito
real, ao passo que o do vendedor (ica sendo simplesmente um
direito pessoal, por ser relativo a um objecto que não é susceptível
de dominio, como seja a obrigação do comprador de pagar-lhe
o preço ajustado ; e n’este sentido se deve entender o que a tal
respeito nos diz o Compendio.
A compra e venda, como nos diz este ainda, póde ser tam­
bém limitada, c isto se verifica quando o vendedor impõe ao
comprador alguma restrieção pela qual lhe fique salvo algum
direito relativamente a cousa vendida, como por exemplo, o de
lhe dar este a preferencia, tanto por tanto, no caso cie ter de
vendcl-a em qualquer tempo a outrem ; o que afinal se resolve
em uma compra e venda condicional.
As obrigações do vendedor consistem principalmente, em
entregar a cousa vendida, e garantir ao comprador a etTcctivi-
dade da venda. Na obrigação de entregar a cousa comprehen-
de-se: a de entregar lodos os seus aecessorios c fruetos pro­
duzidos depois do contracto, assim como os títulos do seu do­
mínio quando elles existem e são necessários ou exigidos ; a de
cntregal-a no lugar convencionado, ou na falta d’este, n’aquelle
em que a cousa se achava na occasião da venda, ou onde ac-
tuahnentc está ; e por fim a de tcl-a até então em boa guarda,
e sob sua responsabilidade.
Na obrigação de garantir a vencia contém-se para vende­
dor ; — l.° u de prestar a evicção, isto é, de indemnisar o com-
Digitalizado pelo Projeto Memória Acadêmica da FDR -UFPE

prador da perda ipie venha a soffrer em consequência de ser


a cousa reivindicada por outrem como soa— 2.“ a de indein-
nisal-o igu.aimente dos prejuízos que lhe provenham de. defeitos
occultos (1’aquella, os quaes no Direito Civil, se denominam ví­
cios redhibilorios e pódcrn até, como já dissemos, dar lugar
á completa nullidade do contracto.
Pela evicção o vendedor restitne o preço da cousa vendida,
e bem assim os juros do mesmo que forem legalmente devidos,
correspondentes ao tempo durante o qual em si o leve.
Entendem alguns escriptores, que estes juros não são de­
vidos senão quando a cousa comprada é realmcnte própria para
produzir alguma renda; lielime, porém, e outros, a nosso ver
com mais razão, pensam que elles o são em todos os casos; pois
quê na verdade susceptível de produzir renda é sempre o preço
da cousa vendida retido na mão do vendedor.
Desfaz-se este pacto, como quaesquer outros; e, sobre­
tudo, pelos vicios que o auuullom, pelo mutuo consenso das
partes, pela superveniencia de condições resolutivas, e final­
mente em consequência de lesão enorme que n’elle se tenha
dado.
Esta ultima regra, diz-nos Belimc, que não deriva do Di­
reito Natural absoluto, e sim de uma simples consideração de
equidade. Mas as razões que este author apresenta para de­
monstrar a sua lliese, nos parecem mais que suíficientes para
nos fazerem reputar a rescisão da compra e venda, ou de quaes­
quer outros contractos em taes condições, uma real e imrne-
diata derivação d’aquelle Direito ; porquanto, si elles se annul-
lam então é por uma bem fundada presumpção de erro da parte
do comprador, ou de dólo do vendedor, eircumstaucias que es-
seuciahnente o invalidam segundo o Direito Natural absoluto.
Já alguma cousa dissemos aliás a este respeito quando tra­
támos do erro ou dólo, como origem de nullidade dos pactos,
e na mesma occasião fizemos ver o que se entende por lesão
enorme.

30 f.
ligçúLo zrzrzrrz
§§ 136 — 139

Empréstimo a juro; usura; — locação c conducção de cousas


ou de serviços

No § 136 trata o Compendio, do empréstimo oneroso ou


a juro, contracto pelo qual alguém transfere a outro uma cousa
destinada a consumir-se ou a alienar-se, sob a condição d’este
lli’a pagar com outra da mesma especie e quantidade, e mais
uma retribuição equivalente ás vantagens que poderia tirar de
outro emprego que por sua propria conta lhe desse.
Com razão nota o mesmo Compendio que esta cspecie de
contracto versa ordinariamente sobre uma certa quantia de di­
nheiro, e o Sr. Ferrer faz igualmente a respeito d'elle uma ob­
servação justa, que perfeitamente o caractérisa, e indica os
princípios pelos quaes elle deve reger-se. Diz-nos este author
que o empréstimo a juro participa ao mesmo tempo do mutuo
e da locação e conducção -, do mutuo quanto á cousa empres­
tada que deve ser fungível, c cuja restituição deve ter lugar por
outra equivalente ; e da locação c conducção, porque o juro
que paga o tomador é equiparável ao preço que dá o eonduetor
pelo uso da cousa alugada.
Por conseguinte as regras que já vimos regularem o mu­
tuo, e as que veremos applicaveis á locação e conducção, cada
qual na parte respectiva, tem applicação a esta especie de em­
préstimo.
Mas por isso mesmo que, como também já dissemos, o em­
préstimo em geral é um contracto de sua natureza benelico ou
gratuito, para que no empréstimo de qualquer objecto, inclu­
sive no de dinheiro, o prêmio ou juro seja devido, é indispen­
sável que lenha sido expressamente estipulado ; elle não se pre­
sume. salvo no caso de móra na entrega da cousa1em prestada
ou da équivalente no lim do prazo, ou depois de pedida, quando
este não existe ; porque enlilo esse premio ou jüro équivale
a uma indeiníSísação dos prejuízos causados pelo tomador, cons­
tituído desde então em má fé, áquellcque lhe fez o empréstimo.
Na continuação d’este paragrapho diz-nos o Compendio
o que se entende por usura e contracto usurário, e entra na
questão dc saber si aquelle c válido, e esta legitima por Direito.
Pensa elle que urna vez que o Direito Natural não lixa
o preço das cousus, nem quanto se deve dar pelo uso das que
são alheias, o juro, embora excessivo, não póde ser illegitimo
ou inadmissível, segundo esse Direito, senão quando fôr pro­
priamente injusto, isto é, que o seu excesso por si, que é no que
consiste a usura, não constitue injustiça, desde que »’elle con­
vieram livremente as partes interessadas.
Concordamos com esta doutrina, não só por estas razões,
mas ainda por outras que nos parecem mui valiosas.
Que a usura ou juro excessivo póde muitas vezes ser im­
moral, não lia duvida : mas que o seja só por esta circumstan-
cia, e sobretudo que seja por isso contraria ao Direito Natural,
é o que não admittimos, exceptuados os casos em que se prove
ou em que fundadamentose deva presumir erro, dólo ou violência
no contracto, c que por laes meios tenha sido n’elle extorquido
o consentimento do tomador. N’estes casos, porém, virão
d’isto, e não do excesso do juro cm si. a injustiça e millidade
da obrigação estipulada.
A prevalecer a opinião dos que sustentam a doutrina con­
traria, dir-sc-liia.com igual razão que é também índia por Di­
reito Natural toda a venda ou locação de alguma cousa por alto
preço, ou a troca de um objerto por outro de valor superior ;
mas, certamciilc, tacs contractos não são por essas simples cir-
cumstancias, annullavcis ; só o são quando n’elles lia lesão ma­
nifesta e enorme, isto é, tal que não se possa razoavelmente ^
suppôr que a parte quizesse seiente e voluntariamente sujeitar-
se a ella em um contracto destinado por sua natureza a pro­
duzir-lhe alguma vantagem.
Pensar-se d’oulro modo seria coarctar-sc os direitos cons­
titutivos do domínio, pór-sea propriedade de cada um sob uma
curatella permanente, e privar-se as partes contralientes da li­
berdade necessária para contractarern.
Demais o que teria em vista o Direito Natural condomiinn-
do os contractos denominados usurários ou a usura ? Proteger
os que pedem dinheiro emprestado? Mas isso os pária em
peiores condições, si não houvessem mil meios do illudjr-sei tal
eondemnação : pois que então ninguém mais lhes emprestaria
dinheiro ou cousa equivalente.
256
Além d’isso, o que é que realmentc se entende ou se deve
entender por juro exagerado, excesso dc juro ou usuía ? K quan­
do esta se dá ha sempre prejuízo para aquelle que o acceita? Não
de certo •, tudo isso é relativo. O millionario que recebe do
pobre o conto de réis unico que clle possue obrigando-se a pa­
gar-lhe o juro de 50 por cento ao armo, por exemplo, e que do
seu emprego no giro de seus negocios póde'tirar lucros muito
superiores a isso, não se póde dizer prejudicado por tal con­
tracto.
0 valor do que se empresta, inclusive o do dinheiro, varia
segundo as necessidades de quem o dá, e de quem o tom a; e no
mesmo sentido influem a occasião e o fim, em que se o dá,
e para que se o recebe. Só os pactuanles são hábeis por tanto,
para dizerem si á vista d’cssas circunstancias lhes convém ou
não tal ou tal juro pelo seu empréstimo, e o que entre ellcs foi
livremente ajustado deve ser lei para ambos.
ISelime pronuncia-se contra a usura; mas para regeitar-
mos a doutrina que a considera inadmissível segundo o Direito
Natural, basta a seguinte reflexão: si podemos dar, alheiar de
qualquer modo e até estragar e destruir o que é nosso, corno não
poderemos sujeitar-nos ad pagamento de um juro qualquer que
elle seja pelo dinheiro que tornamos, quando entendermos que
elle nos convém, embora aos inais pareça exagerado ? e corno
acceitando-o por esta razão, e pelo direito que nos assiste de
dispôrrnos livremente d’aquillo que nos pertence, poderemos
vir depois reclamar a nullidade do contracto, a menos que não
provemos termos sido, rle facto, victima de erro, dólo ou coac-
çào da parte d’aquelle que nos fez o em préstimo ?
«ieralmente se reputa a usura uma cousa odiosa c repro­
vada, e como tal a tem condenmado os cânones da Igreja, e os
papas excommungado até como uma heresia digna da fogueira
(27)1 Mas a razão d’isso é que se suppõe sempre a usura da
parte do rico avarento em relação ao pobre em apuros ; entre­
tanto que o inverso se póde lambem conceber, c acima ligura-

(27) Nem é só a u s u r a propriamente que a Igreja e os papas lem


fulminado com os seus anathemas, mas até o simples facto de dar-se
dinheiro a juros I E’ claro, porém, que isto não devia-se entender,
nem jámais se entendeu, a respeito dos escandalosos negociantes
c banqueiros papaes e cardinalícios de Roma e AvinhSo, nem das fei­
torias commerciaes nSo menos escandalosas da Companhia do Jesus.
257
mos, com effeito, o caso ile um millionario tomando dinheiro
ao pobre por um juro elevado.
Mas prescindindo-se mesmo d’esla hypothèse, diremos :
é também odioso o procedimento do rico avarento que executa
o devedor pobre para pagar-lhe a divida, e no entretanto não
deixa elle por isso de 1er o direito de fazel-o. A Moral o eon-
demna, sèm duvida, mas o Direito Natural reconhece a legiti­
midade externa do seu acto.
Si, pois, veriíicar-se hem que um contracto, embora usu­
rário, foi feito com perfeito conhecimento de causa e inteira li­
berdade por parte do acceitante, não pódc o mesmo deixar de
ser valido segundo aquelle Direito. Quando muito, e conforme
as circumstancias, poderão dar-se cm taes casos razões de equi­
dade pelas quaes o Direito Civil deva modificar ou atenuar as
suas disposições em relação á parte a quem o contracto possa
ter-se tornado demasiadamente oneroso.
Os trez paragraphos seguintes do Compendio (137 — 139)
tem por assumpto o pacto ou contracto de locação e conducçio,
o qual tem por objecto cousas ou serviços, e consiste na con­
cessão do uso d’aquella, ou na prestação d’estes mediante paga.
Accrescenta o Compendio que esta deve ser em dinheiro ; mas
adoptando antes a doutrina de Bclime, diremos que é indílte-
rente á natureza e etíeitos d’este contracto, que essa paga seja
pecuniária ou feita em genero, ou cm qualquer outro equiva­
lente ; assiin como que o seja de uma só vez ou cm prestações
successivas.
Chama-se locador aquelle que prosia o uso da cousa ou
o seu trabalho, e conductor ou locatario aquelle que os toma
ou utilisa e paga-, cada um d’elles por aquelle contracto adquire
direitos e contrahe obrigações correlativas.
Primeiramente, como nos diz o Oompendio, o locador de
urna cousa tem direito á paga ou pensão ainda quede lacto cila
não seja desfructada pelo locatario, por motivo pessoal a este ;
e pensa Líelime que mesmo quando o não seja por motivo tor-
tuito e independente da sua vontade ; e na verdade se isto não
é uma regra absoluta, comtudo, deve ter applicaçào em muitos
casos, conforme a natureza do objecto alugado, dos seus usos,
c dos acontecimentos fortuitos que os tenham impedido. ,Si al­
guém tomasse em aluguel uma casa de campo paia passar o ve­
rão não seria isento de pagar o preço da loeaçao pelo facto
de não ter podido utilfear-se d’ella durante o tempo do contrac­
to em razão de moléstia. Si a cousa alugada não e alterada
em si mesmo ou nas suas qualidades dc que o locatario teve em
vista ulilisar-se alugando-a, si o caso, embora fortuito, allocla
apenas os seus proiluctos ou novidades promovidas por este,
não é o mesmo autorisado por isso a rescindir o contracto, ou
isento da pensão.
Kóra, porém, de lacs casos, não prevalece a regra de Bc-
lime ; assim si uma casa que nos foi alugada incendèa-se sem
culpa nossa cmquanlo está no nosso uso, não podemos ser por
isso obrigados n pagar o respectivo aluguel depois do incêndio
ou por todo o tempo estipulado no contracto para a sua du­
ração.
Km segundo lugar tem o locador o direito de receber no
fim da locação a mesma cousa c no mesmo eslado ern que a en­
tregou ao locatario; mas csta ultima condição se deve, entre­
tanto, entender cm termos babeis ; pois que tio simples uso na­
tural e proprio da cousa alugada pódem e devem mesmo, na
generalidade dos casos, provir-lhe certas diminuições e dete­
riorações-, e sendo estas consequências, necessárias do exerci­
do do direito que pelo contracto adquirio o locatario, não póde
este ser por ellas responsável, do mesmo modo que não póde
sei-o por quaesquer que resultem de casos de força maior.
Em terceiro lugar, por isso mesmo que o locador não trans­
fere ao locatario senão o uso tia cousa alugada, póde não obs­
tante a subsistência da locação, vendei a, doal-a, ou de qual­
quer modo alienal-a a um terceiro ; mas n’esses casos o direito
do locatario lhe deve ficar salvo por todo o tempo do seu con­
tracto, sendo o dominio então adquirido por aquelle a quem
a cousa foi vendida, doada, etc., um dominio limitado n’aquelle
sentido, e por todo este lapso de tempo.
Quanto ás regras relativas ao direito do conductor, ou lo­
catario são principalmente as que o Compendio nos indica na
continuação d’este paragrapho ; a saber :
Primeira, que a necessidade que o locador venha a ter pos­
teriormente da cousa alugada, quando no contracto foi estabe­
lecido um prazo, não é razão sufllcionte para que o mesmo seja
rescindido, e o locatario obrigado a entregar-lhe, antes d’este
vencido, a cousa alugada.
-'»'ao ha, com effeito, motivo juridico para preferir-sc tal
necessidade do locador á do locatario, desde que no respectivo
contracto foi livre e explicitamente declarada a vontade de am­
bos, um cedendo e outro acceitando o uso da cousa alugada
por aquelle tempo prefixo. Com igual razão dir-su-hia que
o locatario, não obstante este, poderia dar o seu contracto por
acabado, desde que allegassc não ter mais necessidade d’nquella ;
« então o prazo nos contractos de locação seria uma estipula-
Çátb vã, c eilcs ficariam dependentes do puro arbítrio dos pac-
tuantes.
Segunda; como nos diz o Compendio, que o locatario deve
ser mantido no uso da cousa alugada, quando mesmo o locador
a venda ou aliene durante a locação ; regra que não é outra se­
não a reciproca, e o complemento da que clle mais acima men­
cionou em terceiro lugar relativa ao direito do locador, e de
que já tratamos.
Entretanto, estas diversas regras não devem ser conside­
radas de tal modo absolutas que o Direito Positivo não possa
justamente modificai-as em suas applicaçõesa algum dos casos
figurados, segundo a natureza da necessidade superveniente do
locador ou a especialidade da cousa alugada.
Terceira ; não pode igualmente ser acceita em termos ab­
solutos a regra que o mesmo Compendio estabelece nó final do
citado paragraplio, de que o locatario não tem o direito de su-
biocar ou alugar a outro a cousa que recebeu em aluguel.
Si isso é certo em relação aos contractos de locação que
não tenham prazo fixo de duração, porque o locador ou dono
da cousa pôde dal-os por acabados logo que o queira, e inutili-
sar assim qualquer sublocação feita ou intentada pelo locata­
rio, o mesmo não acontece em taes contractos feitos por tempo
determinado. Sendo a locação uma alheiação do uso da cousa
alugada, aquelle a quem clle c cedido deve ter plena faculdade •
de dispôr do mesmo como cousa sua, sempre que de facto
o possa fazer. Nos casos a que nos referimos deve, pois, o lo­
catario ter aquelle direito que o Compendio lhe contesta a me­
nos que no respectivo contracto não Ijaja clausula expressa que
d’isso O inliiba.
Em todo caso, porem, corno nos diz o Sr. Ferrer, o loca­
tario subloeando a cousa alugada responde directameute ao
dono da mesma pelas deteriorações ou perdas que ella venha
a solTrer em consequência de tal sublocação, c pelo respectivo
aluguel. Aquella não altera de modo algum as suas obrigações
para com este.
O locatario ou comluclor tem fiualfnentc direito a indem-
'nisaçflo das bemfeitorias necessárias que houver feito na cousa,
ou para a sua conservação ; assim como de relCr as mais que
puder separar da mesma sem destruição ou deterioração d’clla,
segundo os princípios já a este respeito expostos em outra
parte.
Finda o coutracto dc locação c conducção de cousas espe­
cialmente pelos seguintes modos: — l.° quando a cousa alu­
gada perece, ou perde, por facto estranho ao locatario, as qua-
lidades em razão das quaes foi tomada em aluguel ; —2.° quando
linda o tempo convencionado para a sua duração ; — 3.“ quan­
do alguma das parles o dá por terminado, não havendo esse
prazo ; — 4.° quando o locador não pôde prestar a cousa alu­
gada, ou o locatario a pensão ou aluguel a que se sujeitou.
Quanto á locação e conducção de serviços, si lhe são em
grande parte applicaveis us regras que acabamos de expòr, to­
davia tem ella certas especialidades que lhe são proprias cm
consequência da natureza do objecto sobre que versa.
Póde ella recahir sobre toda a especie de acções ou traba­
lhos, uma vez que não sejam taes que sobre elles não se possa
validamente contractar segundo o Direito. K’ claro que seria
radicalmente nulla a locação de serviços para urn fim criminoso
ou immoral, assim como o contracto pelo qual alguém se cons­
tituísse escravo de outrem, pois que isto importaria renuncia
a um direito a que nenhum indivíduo póde validamente renun­
ciar ; e si não o seria propriamente aquelle pelo qual alguern se
obrigasse a prestar serviços por toda a sua vida, seria comtudo
revogável essa clausula a todo o tempo, ainda quando ella fosse
expressa, salvo o direito á indemnisação que a parte prejudi­
cada podesse ter por isso. Pela validade do pacto n’estas con­
dições opina também Beliihe. Aquelle que o fez não vende com
eíTeito. a sua pessoa, não se constitue em estado de escravidão ;
• e si se póde fazel-o por alguns annos não ha razão lógica ou
jurídica para ser-se impedido de fazel-o por muitos. Ha mes­
mo contractos d’esta especie que em razão de seu objecto, e em
vantagem de ambas as partes devem ser feitos a longos prazos.
No primeiro numerq do paragrapho seguinte diz o Com­
pendio que a prestação a que se obrigou o locador de serviços
tem um caracter pessoal, e por isso não póde ser preenchida
pelo ministério de outro ; não devemos, comtudo, tomar esta
asserção em um sentido absoluto. Serviços ha que pódem ser
indiíTerentemenle ou do mesmo modo prestados quér por aquelle
que pessoalmente a elles se comprometteu, quér por meio de
outrem ; e dada esta hypothèse não haveria motivo justo para
ser aquelle compellido a prestal-os por si mesmo. Nenhum pre­
juízo viria d’ahi ao locatario, ao passo que para o locador po­
deria ser isso um gravame, e alguma vez mesmo «urn impossí­
vel, até por motivos extranhosá sua voutade, ou dc força maior.
Em segundo lugar é certo que o locatario dc serviços deve
1er o direito de coagir o locador a prestal-os ou seja por si ou
por outro, e de empregar os meios conservatórios d’esse di­
reito ; assim póde elle vedar ao mesmo locador de applicar-se
a outros serviços incompatíveis com aquelles que se compro-
I

241
tbeüeu a prestar-lhe ; e 11’esse direito se comprebende igual­
mente o de prevenir a sua ausência, e de ir procural-o quando
se cvada, para forçal-o já ao trabalho promettido, já d îndem-
nisaçdo que lhe deva pela sua falta de exacçào no cumprimento
do seu contracto.
1 Que estes direitos do locatario sejam tambem pessoaes con-
cebc-se perfeitamente ; pelo que não pódem elles ser transferi­
dos a outrem, ou ser o locador obrigado ap re sta ra terceiro
com quem ndo conlractou, os serviços que prometleu aquelle.
Entretanto um mestre de obras que se comprometlesse com al­
guém a construir-lhe um prédio, e lhe désse principio, não fica­
ria exonerado da obrigação dc concluil-o pela morte d'aquelle
com quem pessoalmente a contraclou ; do mesmo modo que os
successores d’este não o seriam da obrigação de fazer effeclivo
o seu contracto ou d e indemuisar seus prejuízos dando-o por
findo. N’estes casos, pois, e n’outros semelhantes, deve solTror
exceiição aquella regra, o que quer dizer, em ultima analyse,
que ella não é applicavel aos casos em que o serviço estipulado
refere-se a uma obra ou trahalho, que já concluído ou come­
çado não pôde ser abandonado ao locador nem por elle retido,
sem pnejuízo d’elle ou do locatario.
Os direitos e obrigações do locador e do locatario de ser­
viços são reeiprocos como os dos pacluantes em qualquer espe-
cie de pacto.
Sem fallarmos, portanto, do direito que tem o primeiro de
praticar todas as acções, e de applicar-so a todos os misteres
que não prejudiquem o cumprimento das obrigações que Con-
trahio, é claro que tem o de exigir a retribuição ajustada pelo
seu trabalho, quér este tenha já sido rcalmentc executado, quér
esteja o mesmo prompto e seja apto para preslal-o, ainda que
, o locatario por qualquer motivo não queira mais ulilisar-so
d’elle. Quando por esta ou por qualquer outra razão imputá­
vel ao locatario o contracto deva ficar sem efieito, c o mesmo
pelo menos obrigado a responder ao locador pelos prejuízos que
assim lhe cause.
Finalmcnte o contracto de locação c conducção de servi­
ços acaba pelos mesmos modos ou nos mesmos casos em que
linda o de locação e conducção de cousas, que já expendemos,
e especialmente nos casos seguintes: — l.° quando se acha
concluído o trabalho estipulado; — 2.“ pela morte do locador
ou do locatario, salvo aos successores d’aquelle o direito á re­
tribuição dos serviços já por elle prestados, e aos d’este a ex-
oepçàô relativa aos casos que acima indicámos.

31 F.
l i o 3a lc z z z v ii
§§ HO — H 3

Dos pados accessorios: — penhor, hypolheca, e fiança.— ÍV(C-


Zos succcssorios, doações moyiis causa, testamento,
(Zos, e suceessão ab inlestalu.

Nos §§ HO a H 2 traia o Compendio dos pactos ou con­


tractos que em Direito se denominam accessorios, taes sejam:
os de penhor, de hypolheca, e de fiança ; e chamam-se accesso­
rios estes pactos, porque realmente elles não pódem subsistir
por si sós, ou independenlemente de outros anteriores ou simul­
tâneos a que são annexos, e a cuja efleclividadè servem de ga­
rantias.
O penhor e a hypolheca comprehende-se sob a denomina­
ção geral de empenhamento, que o Compendio define: « o pac­
to pelo qual alguém concede ao seu credor uma cousa sua para
haver por ellao seu pagamento, si este não se realtsar no tempo
convencionado.»
O penhor distingue-se, porém, da hypotheca; porque na-
quelle o devedor entrega logo ao credor a cousa sobre que o
mesmo sc constitue, e esta é sempre um objecto movei; ao passo
que na hypotheca não se dá essa entrega, consistindo a mesma
apenas na concessão pelo devedor ao credor, de um direito es­
pecial c privativo sobre a cousa hypothecada para seu paga­
mento, c este, em geral, é um objecto immovel, um bem dc
raiz, ou tal que por sua condição ou destino sc lhe assemelhe.
Como se ve, no caso de penhor o credor fica bem garan­
tido pelo simples facto de se lhe transferir o objecto de valor
pelo menos igual ao de sua divida, o que dispensa outras cau­
telas no sentido da segurança de seu pagamento. Na hypothe­
ca, porém, como o objecto hypothecado continua a ficar em
poder do devedor, carece ella dc ser rodeada de outras condi­
ções ou providencias para poder ser uma garantia efiectiva ao
pagamento d’aquelle ; assim é, (pic segundo o Direito Civil, deve
o respectivo contracto ser feito com certa solmnnidadc, e por
escripto publico.
Vejamos agora, quaes são òspecialmcnte os direitos e obri­
gações que adquire ou contrahe o credor a respeito da cousa
penhorada, e depois os que adquire ou contralie em relação
ú cousa hypothecada ; e as que sobre as mesma conserva aquelle
que as empenha ou liypotheca.
Km primeiro lugar, com quanto passe para a mão do cre­
dor o objecto empenhado, como essa transferencia não é uma
cessão do domínio, e nem mesmo do uso d’este, c claro que o
direito que sobre elle adquiro o credor é, simplesmente o de ser
pago pelo seu valor de preferencia a qualquer outro, ou de reter
o olijecto que lho foi entregue, até seu real embolso. Não pôde
elle, por tanto, dispòr do mesmo, nem usar d’elle como pro­
prio, salvo si na constituição do penhor lhe houveésido expres­
samente concedido este uso, ou o direito de fazer seus os fruc-
tos da cousa empenhada, em conta de seu pagamento, caso em
que o penhor toma o nome de anlichrése, ou penhor antichrè-
tico. Ksta regra, porém, deve ser entendida nos lermos que já
dissemos em nossa licção XXXIV. quando falíamos dos usos da
cousa depositada pcrraitlidos ao depositário.
Km segundo lugar, é também claro que sendo o penhor
constituído para garantia do pagamento do credor cm certo
tempo, lindo este, e não sendo elfe pago, e sóinenle então, tem
o mesmo credor o direito de cffectuar a sua venda para embol­
sar-se do que lhe é devido, ou de ficar com aquelle para este
fim, observadas as condições legaes estabelecidas á tal respeito.
Vendido o objecto empenhado, o excesso do preço do mes­
mo sobre a importância da divida e de seus juros lmvendo-os,
deve ser entregue ao devedor a quem de Direito pertence; as­
sim como si esse preço fòr inferior áquella não fira por isso
o devedor exonerado da obrigação de compôr a dilferença ao
seu credor ; salva a prova de ter havido fraude, culpa ou negli­
gencia da parte d’este vendendo o objecto empenhado por me­
nos do que elle realmente valia, c salvo lambem o caso que in­
dicamos em nossa licção XXXII relativo á satisfação ou paga­
mento pela cessão de bens que faz o devedor de boa fé insol-
vavel. ,
O que temos dito applica-se igualmentc inalai is mutanilis
quando o credor fica com a cousa empenhada em pagamento
da sua divida.
Km terceiro lugar o credor que tem em seu poder a cousa
dada em penhor responde pela sua perda,ou pelas deteriora-
çües que ella sofiïa, si ilie provierem de fraude, culpa ou negli­
gencia de sua parte ; si procederem, porém, de casos fortuitos,
ou motivos independentes de sua vontade, prevalece a seu res­
peito a regra jurídica de que a cousa onde quer que esteja perece
por conta de seti dono. Então perde o credor a garantia que
linha no objeclo empenhado, cessa o pacto de penhor entre elle
e o devedor, irias não se extingue por isso o direito que lhe pro­
veio do pacto principal, origem da divida, nem esta acaba para
aquclle.
Finalmente, si o credor faz despezas para a conservação
da cousa empenhada, deve a sua importância ser-lhe satisfeita,
e a isso fica igualmente obrigada aquclla ; não assim quaesquer
despezas de outra especie, as quaes correm por sua conta.
Quanto á hypotheca, como n’ella o devedor conserva o do­
mínio sobro a cousa hypothecada, e fica esta eui seu poder ;
como cila é apenas um encargo imposto á mesma para garan­
tia da divida do credor hypothecario, ó claro que compete
áquelle o uso de tal cousa, e que elle pódc fazer a sen respeito
quaesquer Iransacções, dál-a, trocal-a, vcndel-n, etc., ma»
n’estes casos passa cila para as mãos d’aquelle a quem é trans­
ferida com o onus a que estava sujeita. Ahi póde ir buscal-a
o credor chegada a occasião em que o pagamento é devido, e não
tenha sido cffectuado.
O qne não é licito ao devedor é fazer tacs alienações ou
sujeitar a cousa hypothecada a dividas de outros occultando
a cireumstancia de já se achar a mesma com aquclle omis para
com alguém. Tal procedimento o constitue cm fraude, e é ge­
ralmente considerado nos codigos como nm crime.
Comprelicnde-se, porém, qne si o valor da cousa bypollie-
cada é superior ao da divida d’aquelle cm segurança de quem
foi feita a hypotheca, póde ser ella ainda hypothecada a outros
até a real importância do seu valor, dadas as convenientes mar­
gens para que não seja afinal prejudicado qualquer dos liypo-
Iheearios. Feita assim a hypotheca a diversos sobre uma mes­
ma cousa, si esta é insuflieiente para o pagamento de todos,
(em preferencia na execução para seu integral embolso pela
mesma aquclle credor cuja hypotheca é mais antiga, salvas as
dividas que por Direito forem ou devam ser consideradas privi­
legiadas.
E’ além d’isso, applicavel á hypotheca a maior parte das
regras que já estabelecemos relativas ao penhor.
Assim o credor hypothecario só adquire o direito de ser
pago pela cousa hypothecada de preferencia a qualquer outro
erejjor que não tenha n’esta igual garantia ; só na falta de paga­
mento de sua divida no tempo convencionado pódc o rnesmo
executar o devedor para lh’a entregar ; si a cousa hypothecada
perece, nem por isso se extingue a divida que ella garantia ; hem
como si o preço da mesma, por mal avaliada, ou por ter solfri-
do ella deteriorações, sem culpa do credor, não hasta para o in­
tegral pagamento d’este, não fica elle privado do direito de in-
teiral-o por qualquer outro hem do devedor, e si aquelle preço
é superior ao valor da divida, é obrigado o credor á restituir
o excesso ao devedor hypolhecante.
Acerca do pacto de liança pouco temos que aecresccntar
ao que nos diz o Compendio no seu § ldl.
Fiança, como elle nos define, é o contracto pelo qual al­
guém se obriga a pagar o que outro deve, não o pagando este.
Esta obrigação, porém, que contrahe o fiador, por isso
mesmo que é uma simples garantia do pagamento do credor
pelo devedor, é uma obrigação subsidiaria por sua natureza,
salvo nos casos cm que o fiador se obriga também expressa-
mente como principal pagador.
Por conseguinte, cm regra, o fiador só pode ser compellido
a réalisai' o pagamento pelo seu afiançado depois de exeutidos,
como nos diz o Compendio, os bens d’este, isto é, depois de
applicados todos os que elle possuir para por elles se effectuai'
o pagamento, respondendo então o fiador unicamente pelo ex­
cesso da divida, si esses bens não chegarem para pagal-o. Este
direito que tem o fiador de não ser obrigado antes cl'isso nem
a mais do que isso, ü o que no Direito Civil se denomina bene­
ficio ilc ordem.
O fiador que paga a divida do seu afiançado fica subrogado
para com este em todo o direito do credor originário até á con-
eurrencia da quantia realmcnte paga. Nem de outra sorte po­
deria ser, desde que o fiador prestando a fiança não levo a in­
tenção de fazer ao afiançado uma doação, ou celebrar com elle,
ou em favor d’elle com o seu credor, um pacto benefico.
Mas não c só cm relação ao devedor principal que sc ve­
rifica este direito do fiador que por elle paga, quando ba outros
fiadores e o afiançado não possue bens suíficientes para reem-
bolsal-o. Dá-se então o que nos diz em terceiro lugar o Com­
pendio, isto é, n’este caso tem o fiador que pagou a divida o di­
reito de exigir dos mais fiadores a sua quota parle, a menos
que no contracto haja clausula expressa pela qual fos.se estipu­
lado que os mais ficariam desonerados quando qualquer d’elles
pagasse aquella ; ou por outra, a menos que algum ou alguns
d’elles só se obrigassem a pagal-a na l'alla de outro ou dos pre­
cedentes.
24 G
_ No § 142 expõe-nos o Compeiulio algumas regras applica-
veis, em geral, aos pactos ou contractos accessorios. Essas
regras, collocada cm primeiro lugar aquella que elle menciona
em segundo, e reduzidas, á uma só a primeira e a terceira, vem
a ser :
l . a — Que a obrigação dos pactuautes cm tal cspecie de
pactos não pode ser estendida além da obrigação do pacto prin­
cipal que aquella garante. O que é evidente desde que aquella
não é exactamenle, senão uma garantia d’este, n não se con­
cebe como a garantia possa ser mais ampla do que a cousa ga­
rantida. Si o penhor, a hypotheca, e a fiança tem por lim
unico assegurar a divida ou a effectividade da obrigação sobre
uma cousa de tal especie ou valor, ou sobre tal quantia, e n’esta
conformidade foram constituídas aquellas seguranças, não póde
aquelle em vantagem de quem o foram pretender cobrar me­
diante cilas cousa diversa ou quantia superior. Esse limite da
obrigação accessoria resulta da propria natureza do contracto
respectivo, ou dos termos em que aquella é estipulada.
2-* — Que sendo nullo o contracto principal ou cessando
por qualquer motivo os seus cffeitos, nulla é ou cessa a obriga­
ção accessoria respectiva. O que é igualmente claro, desde que
não se comprehende o aeeessorio sem o principal, ou a garan­
tia sem a cousa garantida. Mas como bem observa o Compen­
dio, e já anteriormente o lemos dito, ainda quando seja nullo
ou cessem os efieitos do pacto aeeessorio, nem por isso deixa p
de subsistir do mesmo modo a obrigação principal a que aquelle
servia de segurança ; esta não depende em si mesma d’aquelle.
3.a — Que além dos diversos modos pelos quaes, ou casos
em tpie acaba a obrigação accessoria, que ternos indicado, finda
também a mesma por algumas d’aquellus causas que como já
em outra occasião vimos, põem termo aos pactos em geral,
e lhe são applicaveis. Quaes estas sejam é fac.il conhecer-se,
em vista da propria natureza e fins de tal obrigação, e do que
n'aquella occasião dissemos. (28) ' ,
No § 143 trata o Compendio dos pactos snecessorios, tes­
tamento, doações mortis causa, legados e successão ab in-
lestatu.
Ahi nos define elle cada uma d’essas especies, c do que nos
diz das mesmas deduz-se quaes sejam as difiérenças que iia en­
tre umas e outras, c o que especialmente as distingue.

(28) Sabre n matéria da nota a este paragrapho vide png. 220.


247
Os pados successorios referem-se ás heranças dos pac-
tuantes que tenham de ficar depois de sua morte. Elles pódcm
ser recíprocos, isto é, feitos entre duas ou mais pessoas que es­
tipulem succeder-se umas ás outras que primeiro morram ; ou
feitos em troca de qualquer outra vantagem ou promessa por
parte de uma a quem c deixada a herança de outra. Os da
primeira especiesào mais communs entre marido e mulher sem
iilhos.
Não se confunde este modo de succcssão com o que pro­
vém de testamento ; porque n ’ella ha um contracto expresso
e perfeitamente caracterisado pelo consenso mutuo e simultâ­
neo das partes, e por obrigações equivalentes ; ao passo que na
instituição por testamento, ha apenas a declaração actual ex­
plicita de uma parte, a do testait or; e só posteriormente á sua
morte se verifica a acceitação do instituído ; c não ha alu equi­
valência de obrigações reciprocas; mas não deixa por isso de
haver então, ao menos virluahncntc, um pacto entre aquellas.
As doações inorlis causa com quanto participem, em geral,
da natureza dos pactos successorios, e da instituição testamen-
taria, em serem como estas, disposições feitas em vida de quem
as faz para só lerem execução depois de sua morfe, cornludo
dislinguem-se d’aquellas. , Não se confundem com os pri­
meiros porque são actos puramente gratuitos ; e nem com o se­
gundo, porque tem por objecto cousas singulares, não abran­
gem o todo da herança, e pódein mesmo ser feitas fóra de tes­
tamento propriamente tal ou solcmne.
Os legados são essas mesmas doações feitas n’este.,
Todos estes pactos podem ser puros ou condicionaes ; mas
um característico lia que lhes é fundamental e commum, e é que
nenhum d’elles jámais se reputa definitivo durante a vida do
promittente ; pódein todos ser revogados em qualquer tempo
até á sua morte, ainda inesmo depois de conhecidas ou accei-
tas as suas disposições, e que haja no instrumento da promessa
clausula expressa de sua irrevpgabilidáde. E’ clara a razão
d’isto ; e é que não sendo lacs pactos exequíveis senão depois
da morte de quem os faz, e por causa d’ella, cm quanto esta não
acontece, conserva aquclle o seu pleno domínio sobre os seus
bens e o direito de dispor d'elles como lhe apraza. I*e outra
sorte a condição de só terem elles execução depois d’aquella não
teria realidade ; elles se tornariam de facto, alé certo ponto,
effectivos desde o momento de sua facção. O testador, o doa­
dor morlis causa, etc., ficariam desde logo inhibidos da livre
administração e disposição dos bens testados ou doados.
Quanto á succcssão legitima da família ou dos parentes
mais proximos do morto ah intest ata, com (juanto não liaja
entre este e áquelles um consenso expresso e simultâneo n'esse
sentido, é ella comtudo considerada em Direito como urn pacto,
e attribue-se-llie os effeitos juridicos d’este, em virtude da na­
tural presumpção da vontade do defunto a tal respeito, cm
concurso com o de taes parentes ou familia, que de facto se ve •
rifica embora posteriormente pela acceitaçao da herança.
Que todos estes diversos modos de transmittir-se a outrem
os bens de alguém por occasiâo de sua morte são validos se­
gundo o Direito como consequências legitimas do domínio dos
mesmos de uma parte, e do direito de adquiril-o de outra­
e especialmente quanto á successão ab intestatu da familia où
parentes mais proximos, pela vontade presumida do morto,
e por considerações não menos ponderosas de outra ordem
é o que se não póde contestar, e o que veremos nas licções se­
guintes, nas quaes temos de indagar si esta especie de succes­
são, assim como a instituição testamentaria são de Direito Na­
tural ou méras creações do Direito Civil'.
Demonstrada a legitimidade de uma e outra, demonstrada
ficará a de qualquer das mais especies acima indicadas, cujo
fundamento jurídico é da mesma natureza.
LIOGSAO Z Z Z 7 " :
§§ 144 — MS •

Dos direitos de testar, e ãesucemãó legitima; — e do funda­


mento dos mesmos no Direito Natural ou no Civil ; —
7.® do direito de testar.

Nos paragráphos acima indicados cm que o Compendio


continua a occupar-se dos pactos successorios, doações mor tis
causa, legados, testamento, o successão legitima da família ou
proximos parentes do morto, está involvida, e elle discute a ques­
tão de saber, si taes iuslituições têm o seu fundamento imrne-
diato no Direito Natural, ou são meras creações da lei civil.
Trataremos de resolver essa questão com reférencia unica­
mente ás duas ultimas espccies, pois-que a solução a que chg-
garmos a tal respeito, será applicavel ás mais, que n’este ponto
são subordinadas aos mesmos princípios.
Em geral, salvas certas opiniões extravagantes, ninguém
contesta que a facção testamentaria deve ser reconhecida e de­
cretada como um direito na sociedade ; quanto, porém,aquella
questão divergem os escriptorcs. Muitos de grande nota e mo­
dernos, e com elles o Compendio, pensam que esse direito não
é uma derivação directa do Direito Natural, e, que só existe le­
gitimamente porque a lei civil o consagra.
Não acceitamos esta doutrina ; e demonstrado que o direito
de testar c realmente um direito natural, demonstrado (içará
que nenhuma sociedade civil póde àem injustiça deixar de reco-
nliccel-o e decretai-o.
Contra o direito de testar por Direito Natural, a argumen­
tação do Compendio, e em geral dos que seguem a mesma dou­
trina, consiste cm dizer; — l.°que a morte extingue todos os
direitos do homem, e que, portanto, não é admissível a facul­
dade que a este se attribue de estipular o que quer que seja
acerca de seus bens para depois d’aqnella ; — 2.° que o testa-
32 v.
250
mento para ser valido, segundo os princípios do Direito Nalti-
ral devera ser feito com a intervenção da vontade não só do
testador. mas também do instituído, c que desde <jue ellc não
opera os effeitos de um pacto senão porque a lei civil como tal
o reconhece, vem a ser realmente d’esta que elle tira a sua rea­
lidade.
Mas primeiramente aquelles ijue excluem do Direito iSalu-
J , :i lãculdade de testar sob o fundamento de que a morte
(uno acaba, ou fazem um jogo de palavras pueril, porque sabem
pei lei lamente que no testamento não é um morto que dispõe,
e que ninguém jamais deu direitos a um defunto ; ou usam de
mn argumento, que tomado na sua unica significação possível,
provaria, se fosse procedente, muito mais do que elles preten­
dem, iria até ao absurdo, e á subversão social.
Dm geral todos os contractos translatorios do domiuio de
alguma cousa leitos inler vivos prorogam-se c mantém os seus
elleitos indefinidamente além dá morte d’aquelles que os fa­
zem : e si a circurnstancia de terem elles desde logo execução,
de nenhum modo modifica aquella regra de que tudo cessa pela
morte, porque razão hão de ser esses mesmos contractos con­
siderados como directamente fundados no Direito Natural, e não
o ba de ser o direito que tem cada um de transmiltir o que
é seu a outrem por testamento? Si este direito não pódc ser
uma derivação immediata do Direito Natural por não se poder
validamente estipular para depois d’aqiu:lla, no mesmo caso
estão quaesquer doações, trocas, compras e vendas feitas inler
vivos, cuja elfectividade passa além da vida dos que praticam
tues aetos. ,\ ser consequente a theoria que combatemos de­
veria ella declarar caducos lodos esses contractos desde que
qualquer das partes contractantes fallecesse. Tanto vale, com
efleilo, dizer-se que não se pode em vida dispor validamenle
para depois da morte, como dizer-se que nada do que se dis-
põz durante aquella pode subsistir depois d’esta. Daria isto no
absurdo de tornar-se impossíveis todos os contractos ou trans-
iteções entre os iminens sobre as cousas, ou a inanidade de
todos elles, c do domiuio, sem a intervenção da lei positiva social.
_ Dn -se-ba que se não deve realmente equiparar as disposi­
ções lestaraentarias aos contractos inler viros que indicámos,
porque estes eram já aetos consumados na occasião da morte
dos que os fizeram ? Mas si a doação, a troca, a compra e venda
se consumaram em vida dos pactuantes, só porque estes assim
o quizeram c determinaram, porque niolivonão hão de consu-
niar-se do mesmo modo aquellas disposições, embora depois da
2»I
morte de (luein as fez. si também lai é a sua vontade sobre uma
cousa de que elle emquanto vivo dispõe lugilimamenle?
lia evidentemente cQntradicçáo flagrante cin negar-se o di­
reito de testar por Direito Natural, e reeoiiliceer-.se ao mesmo
tempo, como directamente n’elle fundado, o direito de proprie­
dade ou o domínio, tjitu é essenr.ialmente a faculdade <pie tem
o proprietário de dispõe do que é seu durante a vida, de qual­
quer modo e com quaesquer condições que lhe apraza.
Na verdade, si por Direito ’Natural eu ppsso doar o que
é meu a outrem sem condição suspensiva alguma, e para ser
(l'este não só durante a minha vida, mas lambem depois de mi­
nha morte, si posso desistir para sempre de qualquer objeclo
do meu domínio, abandonal-o, e até deslruil-o, como é qué não
poderei dal-o com a condição suspensiva de ser d’aquelle a quem
<» dou sómente pur meu fallccimoiilo, islo«é, com a clausula de
conservar eu o seu iisolYucto emquanto fôrvivo? Pois posso
dal-o de um modo absolutoe definitivo, c não posso dal-o com
aquella clausula, aliás tão natural e razoável? Posso pelo Di­
reito Natural o maisxe não posso o menos, si esta faculdade me
não fôr concedida por uma lei civil expressa ?
Kôra um manifesto conlrasenso admittir-se que por Di­
reito Natural alguém, momentos antes d,e uma morte certa, tem
o direito do reunir todos os títulos de sua fortuna e lançai-os
ao mar ou ao fogo, o que aliás é incontestável, e que não tem
por esse mesmo Direito a faculdade de dal-os 11'essa mesma oc-
casião a um seu amigo. K’ dillieil conceber-se como aquella
primeira resolução de tal indivíduo seria conforme á lei (In jus­
tiça absoluta, e que a segunda para ser valida careça de uma
disposição expressa da lei social.
Bejime denuncia perfeitamente a futilidade dè fal argu­
mento, quando diz : « si en posso confiar um objeclo a um ami­
go, pedindo-lhe que o transmitia depois de minha morte a uma
pessoa que lhe indico, porque não poderei transferii-u directa -
mente a esta por testamento ? De uma doação com reserva de
usolYueto durante a vida, a uma disposição testamenlaria, vai
realmente diderença muito pouco sensivel aos olhos da razão
pura.» K nós diremos que não vai diflerença alguma sob
o ponto de vista em que as consideramos na questilo'vertente.
Entretanto, depois de uma Ião concludente reflexão no sentido
de nossa lhese, declara aquelle aulhor, que o direito de testar
não é uma derivação directa quer do Direito Natural, quer
(Io Civil, mas de um Direito da razão, que a não ser aquelle
não sabemos qual seja.
Nas ideas que temos expendido abunda Ahrens : elle diz
com Ioda a razão, que o direito de testar é, como o direito de
doar ou de vender, uma emanação immediata do direito de per­
sonalidade: e que si, por Direito Natural o homem tem a fa­
culdade de dispòr cinquante vivo de todas as cousas do seu do­
mínio, implica isso necessariamente para elle o direito de usar
d'cllas mesmo para depois da morte, uma vez que suas dispo­
sições não sejam contrarias á justiça, a Moral, a direitos de ou­
trem, ou á boa ordem e harmonia social.
Quanto ao segundo argumento de que se servem, como
dissemos, os adversários do direito de testar por Direito Natu­
ral, consistente em dizerem, que as disposições testamentarias
não podem 1er tal fundamento por não constituírem um pacto,
desde que na instituição de herdeiro não se dá a declaração da
vontade d’este, tombem não resiste à analyse. Porquanto si
o herdeiro instituid« realrnente acceita a licrança que lhe foi
deixada, essa declaração de facto se réalisa, e a cimunstancia
de vir posteriormente á do instituidor, de não coincidir com
el!a no mesmo acto da instituição, não é razão jurídica para en­
tender-se que não houve accôrdo das vontades de um e outro,
ou que não se operou elle de modo sufliciente.
.Si tal argumentação fosse procedente contra a validade do
testamento por Direito Natural, também não se devõra admitlir
por este a validade de qualquer doação pura inter vivos ; nem
dos contractos feitos por correspondência entre pessoas ausen­
tes. Entretanto já precedentemente vimos que n’aquellas doa­
ções a acceitnção se presume sempre por Direito Natural, desde
que não sao elles ou não pódem ser positivamente recusadas;
e que n’estes contractos a acceilação por vir depois da pro­
messa, não deixa de conferir ao aeceilante um direito á cousa
prornetüda. ''~
Demais, invocar esta falia de ucceitação do herdeiro simul­
tânea ao acto da instituição, para prova de que esta não póde
ter validade pelo Direito Natural depois da morte do instituidor,
o de algum modo não só prejudicar este mesmo argumento,
mas sobretudo dar dc mão ao primeiro e principal fundamento
da doutrina que exclue a faculdade de testar d’esse Direito,
consistente como vimos, cm que a vontade d'aquelle não póde
produzir eITeitq depois que elle morre. Com effeito, ou esta
vontade não póde realrnente produzir então tal elfeito, e n’este
caso a nada vem a acceilação ou não acceilação do herdeiro em
qualquer tempo; ou si póde produzll-o hasta para isso que
a acceilação d’este venha na oceasião cm que elle tenha de rea-
lisar-se. 0 que responderíam demais os authores de tal objec-
ção, si figurássemos o testamento acceito pelo herdeiro em vida
255

do lestador. o que si não é proprio ou commuai, comtiido não


6 impossível no níesmo ? ou antes como contestarão por esse
lado a validade por Direito Natural, dos pactos successorios, em
que essa acceitação reciproca dos pactuanles de facto se veri­
fica sobre disposições que tem a mesma natureza das disposi­
ções testumentarias e são do mesmo modo destinadas a terem
vigor' sómente depois da morte de um d’elles ?
A instituição e acceitação da herança constituem, pois, por
si mesmas um verdadeiro pacto, no qual se verificam todas as
condições jurídicas essenciaes para a sua perfeita validade se­
gundo o Direito Natural -, e conseguintemente o direito do testar
não deponde, para sel-o, da disposição expressa de uma lei civil
que o consagre, embora seja cila necessária como garantia de
sua rcaüsaç.ão.
Vejamos, porém, a que novos absurdos conduz ainda
a doutrina contraria ao Direito Natural de testar, considerada
sob outros pontos de vista.
Dissemos que cila anniquila o dominio perante o Direito
Natural, desde que tira o caracter de legitimidade absoluto a Ioda
o qualquer especie de contractos ou transaeções sobre as cousas
aliás reconhecidas como proprias dos contractantes. Mas, não
é só por este lado que semelhante doutrina subverte toda a idea
e etTeitos jurídicos da propriedade.
Figure-se supprimida a lei civil, e supprimido por tanto
o direito de testar, e veja-se qual é a sorte reservada .áquella
e ao proprietário, ou antes ao homem. Kstnbulreer-se que este
não póde deixar a ouLrem depois de sua morte aquillo que é seu.
que adquire pelo seu trabalho e economia, e de ordinário, ou
muitas vezes ao menos, exactnmentc no louvável intuito de be­
neficiar a alguém que lhe é caro. c garantir a sua sorte futura,
é não só estcHlisar no coração humano uma fonte abundante
de nobres sentimentos, mas ainda proclamar como principio re­
gulador da humanidade a desídia e a dissipação. K' com elTeito
evidente, que sem aquelje direito de traiisinitlir seus bens a ou­
trem. á sua familia, parentes, ou amigos, ninguém mais teria es­
timulo efíicaz para procurar adquiril-os, e quê aquellesque ape-
zar d’isso os alcançassem teriam toda a razão para esbanjal-os
antes de morrerem.
1’óde-se. por ventara, admittir que tacs desordens se coa­
dunem com a natureza e destino do homem, c que só não subsis­
tam eomn regras efiectivas de sua conductn, porque a lei civil,
mais sábia e previdente que a lei natural, intervém em seu soc-
eorro ? Sem a lei civil, e. sem a força social que n torna eíTcc-
tiva, não é possível, dc certo, a ordem publica, nem a segu-
rança de quacsquer direitos jndividunes -, mas não v menos li­
quido que, independentemente d’aquclla o dos seus meios do
execução, não pode a humanidade na relação de que (ratamos
ser sujeita áquelle regimen monstruoso.
Si o direito de testar, ou o seu exercício depende da lei
civil, depende como lodos os mais direitos naluraes do homem,
sem que por isso se considerem todos estes puras crcaijões
d’aque|la. F.sta é a sua commuai garantia, mas não a sua ori­
gem ou fundamento superior.
Demais a lei civil que impedisse o exercício d’aqnclle di­
reito seria vã, ou o seu mais certo e único resultado seria pro­
vocar a fraude. e a desmoralisação publica, porque então todo
o proprietário póriascus bens em nome de terceiros; veuderi-
a estes com clausula de íidèicomisso ; leria o cuidado, envelhe­
cendo, de converter a sua fortuna em especies para transmit-
til-a de mão a mão a quem o quizesse. Si pois semelhante dis­
posição de lei teria taes consequências, c claro que em nenhu­
ma hypothèse se pôde concebcl-a, e que a lei dc onde tal di­
reito se deriva não pode deixar de ser uma lei de caracter abso­
luto, uma lei natural.
Ainda por outros lados claramenle se manifesta inacceita-
vel a doutrina, que faz do direito de testar uma simples institui­
ção convencional da sociedade.
Si elle não existisse por Direito Natural, que destino teriam
ou deveriam ter os bens dos que. morressem sem herdeiros ne­
cessários, admiltida a sncr.essão legitima, ou em qualquer caso,
não sendo esta reconhecida? Pretendem alguns dos aulhores
dc tal doutrina, que esses bens íicam então vagos ou nullius,
c que por isso, comqnanlo o herdeiro instituído não tenha di­
reito aos mesmos pelo testamento, comtudo. por uma occupa :
ção especial d'elles póde tornar-se seu legitimo dono, e tal se
torna, com efieilo, pela disposição da lei civil, que o reconhece
»’essa qualidade.
-Mas, primeiramente ha n’essa argumentação uma verda­
deira petição dc principio, pois que a questão está exactamonte
em saber-se si os bens de quem morre instituindo herdeiro se
podem considerar vagos ; e em segundo lugar, mesmo prcscin-
(Jindo-se d'isto, é claro que si taes bens se tornam então vagos
ou nullius, tanto pódem occupal-os, segundo o Direito Natural,
o herdeiro instituído, como os fâmulos da casa do morto, ou
quem quer que primeiro d’elles sc aposse ; e tanta razão teria
a lei civil para attribuir esse direito ou a propriedade de taes
bens a quacsquer d’estes como áquelle. línlretanto ninguém
ainda ousou ou ousará dizer que o herdeiro instituído não lenha
realmente niais algum Ululo jurídico para ser considerado
o único a quem legitimarnente sejam attribuidos aquelles. Fòra
monstruoso pensar-se que cm tacs casos, e segundo os princí­
pios do Direito Natural, possam ficar á mercê do primeiro es­
peculador que cliegue, ou do mais esperto, a sorte ou o patri­
mônio de uma família, ou a d’aquelle a quem o dono dos bens
em questão expressamente os qui/, deixar.
Si uma tal occupação 1'osse legitima, si por Direito Natural
aquelles bens por morte de seu dono ficassem vagos, mesmo
apezar da sua vontade do transmittil-osa outrem, com que fun­
damento a lei civil viria despojar o primeiro occupante de facto,
e manter contra elle a disposição do testador como fazem de
facto todos os codigos das Nações cultas? Si a vontade d’este
não é valida pòr aquelle Direito, e por elle a occupação ante­
rior das cousas millius é um meio legitimo de adquiril-as, a lei
civil atlribuindò ao herdeiro instituído a herança do morlo,
mesmo quando outro o tenha primeiramente occupado é uma
violação da justiça, uma flagrante espoliação.
bir-Se-lia que o legitimo herdeiro de taes bens, segundo
o Direito Natural, não é qualquer que primeiro os occupe, ê nem
também o herdeiro instituído, mas que é o Estado, o qual re­
nuncia a esse direito em favor d’este pela lei que como tal o re­
conhece ?
Mas estaríamos no mesmo caso, nem o Estado póde 1er
melhor direito do que aquelle a quem a herança foi expressa­
mente deixada por seu legitimo dono ; nem urna primeira sup-
posta occupação de taes bens pelo mesmo Estado, estaria em
condições diversas d’aquellas a que acabamos de alludir -, e nem
haveria para este razão juridica ou obrigação de preferir o ins­
tituído a qualquer outro. Qualquer primeiro aventureiro que
de facto occupasse estaria no caso de ser pela lei civil reconhe­
cido por herdeiro, e deveria 1er n’esse sentido a preferencia.
O absurdo de taes consequências é patente.
Ern sumnia, não é debalde, ou por uma simples conve­
niência social, que todos os povos antigos e, modernos têm es­
tabelecido em suas legislações o direito de testar, e, até rodeado
de uma especie de respeito religioso as disposições de ultima
vontade. Elias são, com cffeito, as mais respeitáveis, as menos
influenciadas pelas razões mesquinhas e pequeninos interesses
queacluam muitas vezes sobre, r.s actos inter vivos, e as mais
refleclidas, porque podendo ser revogadas alé á occasião da
morte e não o sendo, têm a conrfimaçâo de toda a vida de quem
as fez. _
Comprchciide-sc bem u necessidade da intervenção da lei
civil em matéria de testamento ; mas também se compreliendc
em que sentido, para que fins, e dentro de que limites cila póde
e deve ter lugar. Tudo se poderá conceder ao legislador social
em tal assumpto, menos o poder de inhibir a facção tcstam en-
taria a quem nao tenha realmente algum impedimento natural
e justo que para isso o inhabilile, ou de oppòr-se á fiel execução
de um testamento feito segundo as condições jurídicas.
Isto basta para concluirmos que a faculdade de testar de­
riva essencial e directamente de uma origem superior ás leis
convencionaes da sociedade, do Direito que Relirne denomina
cia razão, c que não é outro senão o da N atureza.

L i c aa l o z z z i z
§§ 149 — 150 •

Continuação : — 2.“ Do direito de successão legitima

Mostramos em nossa precedente licção que o direito de tes­


tar não pode deixar de ser considerado como uma instituição
directamente derivada do Direito Natural. Indaguemos, agora,
si o é lambem d’este,ou simplesmente do Civil,o direito de suc­
cessão legitima da" família c dos mais proximos parentes do
morto.
Ainda n’este ponto o Compendio opina no ultimo sentido,
mas esta sua opinião não nos parece menos insustentável do
que a primeira, embora tenha também cm seu apoio notáveis
authorcs. Ao contrario pensamos que não só aquella succes­
são é um direito natural da familia e de laes parentes dos que
morrem sem testamento ; mas ainda que é um direito de tal
ordem, ao menos para os conjuges, os filhos, e os descendentes
c ascendentes na linha directa, quenquelle que os deixa por sua
morle não podetransmitlir os seus bens a estranhos.
Quer isto di/.er, que em nossa opinião não só é ligitima e
necessária aquella successão ab inlestalo, mas ainda que a lei
civil não pode deixar deimpol-a, ou dcdccrctal-a como uma
disposição positiva, sem desconhecer os justos reclamos da
natureza humana, e os proprios interesses bem entendidos da
sociedade. .
Seja qual for a relação jurídica cm que concebamos o do­
no de alguma cousa a respeito do seu destino depois de sua
morte,o resultado a que chegamos quanto á questão vertente ó o
mesmo. Si lhe negamos o direito detestar, é claro, que não
podendo os seus bens ficar perpetuamente vagos, nem ser pre­
sa do primeiro aventureiro que os occupe, como já demostra­
mos, que devendo passar a alguem por um titulo mais legitimo,
c ninguém o tendo melhor do que a sua familia, deve esta na-
33 F.
turalmente suceder-lhe nos mesmos. Si ao contrario admitli-
mos o direito de testar por qualquer lei, natural ou civil, sendo
lambem muito natural que o pae de familia revestido d’esse
direito d’elle use em favor d’csta ; sendo isto, incontestavel­
mente, o que lhe ordena a natureza, segue-se ainda que essa
successão tem seu directo fundamento no Direito Natural, c que
o Civil, estabelecendo-a expressamente,,não faz mais- do que
confirmar o que este dispõe.
Os proprios que não admiltem essa successão co'mo um di­
reito natural, reconhecem que desconhecida elia pela lei civil
mas consagrado o direito de testar, o uso que d’este voluntaria­
mente fariam os paes de familia em favor d’esla, é cousa com
que se deve contar, e que é esse o remédio necessário e efticaz
ás desordens ou escândalos que viriam de sua transmissão a
estranhos praticada como regra.
Mas, si isto é incontestável, como de lacto o é, a reflexão
que antes de tudo nos acode ao espirito não é, de certo, que
essa successão deva ser eliminada d’entre os direitos naturaes,
e considerada tal somente pela lei civil. Ao. contrario, desde
que convertida a mesma em lei positiva é um remédio indis­
pensável e o uuico efticaz aos males e escândalos da desherda-
ção da familia, resultado possível da idéa de não ser aquelia
reputada um direito absoluto e natural, é claro que a conse­
quência que devemos tirar é, cxaclamente, que se lhe deve
allribuir este caracter.
.\ão é possive! admittir-se que a providencia a taes males
e escândalos contra a natureza, tique perante esta entregue ao
arbítrio de paes desnaturados, ou ãs eventualidades, aliás fáceis
de realisarem-se, que impeçam a facção do testamento. E’ um
perfeito conlrasenso, em todo o caso, crcar-se a possibilidade
de taes males e escândalos segundo o Direito Natural, naespee-
tativa de sua cura por um movei que cxaclamente, a respeito
d’aquellesa quem deve applicable o remedio não tem a mini­
rim influencia. >
Ha manifesta inconsequência n’esta doutrina, que para li­
vrar-se dos eífeitos desastrosos a que conduz, invoca por lim o
proprio principio fundamental d’aquellaque combate.
Outras razões porém ainda mais directas e positivas, rcpel-
lem igualmente tal doutrina. Si aquelia que não acceita a fa­
culdade de testar como um direito natural anniquila o domí­
nio, como vimos : a que regeita d’esstf Direito a successão legi­
tima, que a não reconhece em falta de testamento, ou em pre­
juízo d’ella o admitte, anniquila a unidade da familia. perturba
de todo as mais importantes relações que esta naturalmenle
créa, e pelos quans subsiste e deve prosperar.
Desde que a familia é uma instituição Fundada, niais que
nenbuma.no Direito Natural,c debaixo da immédiat» protecção
d’este se deve reputar tudo quanto seja de seu vital interesse,
não-pode ser d'ahi excluída a succcssão necessária c reciproca
entre os seus membros. A idéa de hereditariedade é tão estrei­
tamento ligado á sua constituição, como a propria noção da
propriedade ; e desde que tal succcssão deriva desses prin­
cipies ou n’elles assenta, não pode ser considerada corno uma
simples creação do Direito convencional do Estado.
Si ella não se fundasse directamenle no Direito Natural,
poderiam os Codigoí civis dos povos decretar, sem injustiça, a
probibição rormal para os paes de instiluirem os .seus lillios por
herdeiros. Mas ninguém ainda ousou ou ousará sustentar tão
monstruoso paradoxo ; nem legislação de pair, algum pode de­
clarar os íillios inhabeis para succedereni a seus paes, embora
alguns ba iam que attribuent a estes, como depois veremos, a fa­
culdade absoluta de testar em seu prejuízo, disposição aliás
igualmcnté injustificável, não só avistado que já temos dito,
mas também do que ainda temos de dizer sobre esta matéria.
Arltens demonstra perfeilainenle a verdade da doutrina
que defendemos, c para isso considera a succcssão legitima
sob dous pontos de vista: primeiramente, cqmó uma conse­
quência dos laços de alTeição que iiaturalmeute existem entre
o chefe da familia e os diversos membros d’esta ; e em segun­
do lugar como uma consequência da propriedade familiar, c
dos deveres não só de Moral, mas também jurídicos que o de­
funto tinha a desempenhar para com pessoas determinadas.
« Com razão, diz este aulhor, desconhecem a natureza
humana aquellcs que pensam que nãoó necessária a transmis­
são de bens matcriacs entre paes e filhos, como meio de con­
servação, aperfeiçoamento, e berri estar da familia, ou para a
manifestação no seu seio do amor que a deve unir, e para, o
cumprimento das obrigações que ella impõe reciprocamente
aquellcs que a formam. » « A natureza humana, accrcssenta
elle, não é exclusivamente intellectuel assim como o espirito
se manifesta pelo corpo, o homem quer exprimir os seus senti­
mentos por alguma cousa sensível; » Nem e isto, na verdade,
um simples desejo, ótima necessidade indeclinável da natureza
do homem e até da ordem natural das cousas em cujo meio elle
vive. Tire-se-lhe a possibilidade de manifestar os seus allec-
tos polas eousas exter.uas, ou pelo uso tia propriedade, e veja-
se ao que ficará elle reduzido ! Especiahnente no seio da num-
2G0
lia, o que serfio sem isso o amor reciproco e a união intima que
a devem caractérisai’ !
Allegam os adversários do direito natural de successào lé­
gitima qne o amor de lamilia ern que se a assenta,é uma simples
presumpçao, uma regra qne solt're excepçõcs, porque lia paes
que rcalmente nio amam seus (ilhós e vice-versa, ou, pelo me­
nos, que não os amam tanto que não prefiram muitas vezes
deixar por sua morte os seus bens a estranhos a quem tenham
amisade, ou a quem devam gratidão.
De facto assim pode ser em alguns casos ; mas d’ahi nada
se pode legitimamenle concluir contra aquelle direito ou contra
o seu caracter de justo, independentemenlc da lei civil que o
consagra. Porque mais certo é ainda, que as leis da natureza
humana não se devem reputar modeladas pelas aberrações ou
indole excepcional de um ou outro indivíduo. Si tal argumento
procedesse para excluir do Direito Natural a successão legitima
dafamilia, dever-se-hia excluir também d’elle o pátrio poder,
c todos os mais direitos ou deveres paternos e filiaes que incon­
testavelmente se derivam de relações familiares, que embora
naturaes podem alguma vez não existir de facto.
Para corrigirem-se essas anomalias contrarias ã natureza,o
portanto ao Direito que d’ella se deduz, e forçal-as a submette-
rem-se á sua regra, é que o Direito Civil deve intervir c inter­
vém corn a disposição positiva que a sancciona. Mas isto não
importa de modo algum que essa regra seja uma pura ereação
d’este.
Si casos póde haver cm que. o pae dc familia tenha razão
forte e justa para realmente excluir esta, ou algum membro
d’ella da successão, ou para cm parte contemplar coma mesma
algum estranho, concebe-se perfeitamente, que ante o proprio
Direito Natural possa 1er lugar a desherdação d’aquella e a ins­
tituição d'este, em tal ou tal porção dc seus bens. São casos
estes, porém, muito exccpcionacs ; que não prejudicam o prin­
cipio estabelecido : que o Direito Civil deve definir c regular
com toda a circumspecçâo, tendo em vista o que a tal respeito
preceitua a natureza ; mas não pode fazel-o com o arbilrio pro­
prio das disposições de mera conveniência social, ou política,
ou que caractérisa as leis dc simples ereação sua.
Costuma-se a objectar contra o direito natural dc sueccs-
são legitima, que o pae, depois creados c educados os filhos, na­
da mais lhes deve $ que a ereação e educação são os únicos de­
veres naturaes d’aquelle para com estes, como consequências
do acto pelo qual os gerou, e os collocou u’essas indeclináveis
necessidades : que cm relação á herança dc seus bens nenhum
2GI
aclo seu podem allegar os filhos, d’ondc lho venha a obrigação
delh’os transmittir por sua morte ; e ijue atécreado e educado
o filho,quando o pae morre, si algum d’elles deve alguma cousa
ao outro, é aquclle a este.
Mas esta argumentação antes de tudo é defectiva, porque
não se applica propriamente á successâo legitima nos casos em
que não ha disposição testamentaria do pae em sentido contra­
rio, e nem cm caso algum aos filhos menores ; quand oaliás é
certo que os fundamentos dc tal successâo ab inteslato são os
mesmos que a impõem apezar do testamento, e que essa exccp-
ção a respeito dos filhos menores não tem também justificação
possível á vista dos mesmos fundamentos de tal successâo.
tndependenlemente, porém, d’este defeito, essa argumen­
tação é de todo falsa. Aquelles que a fazem desconhecem a
verdadeira natureza do homem e da família, c degradatn-n’a
assimilando as relações provenientes d’ella ás que resultam da
simples união sexual dos brutos.
Para a ave desde que suas azas lhe pcrmitle voar, e para o
cão desde, que por si pode mover-se c viver, cessam, sem duvi­
da, todas as relações de união ou communidade de existência,
com aquelles que lhes deram nascimento. Haverá, porem,
quem ouse affirmur que o mesmo acontece ou deve acontecer
entre os homens, ou a respeito das relações de pae e filho c vi­
ce-versa entre as pessoas? Essas não se limitam, certamen­
te, á simples creação e educação d'csles; os laços da fumilia
são muito mais complexos, profundos e. duradouros. Ninguém
há que não tenha d’isso consciência intima e inabalável. Além
«ias obrigações que os paes contrahem para corn os filhos pelo
acto da geração, consistentes em creal-ose educal-os, contra­
hem pela propria constituição e caracter, unidade e solidarieda­
de dafamiiia, e por necessidade da afieição que n’ella deve du­
rar indefinidamente, a de lhes serem uteis, de ajudal-os em tu­
do quanto possam, de prover ás suas naturaes e legitimas aspi­
rações na medida dc suas forças e a todo o tempo. Obrigação
reciproca. que não só a natureza impõe imperiosamente a todos
os membros da familia, mas até, cujo cumprimento constituo o
mais nobre e o mais puro dos gozos para a mesma, concebida
segundo o seu ideal.
Os que invocam contra a successâo legitima semelhante
simile com os irracionacs deveriam, para ser consequentes»
concluir lambem que seriam muito naturaes ou muito licitas
entre os homens, pelo Direito da natureza, npromiscuidade d o s ^
sexos, e as uniões fortuitas c incestuosas entre os paes> -•
filhas, os filhos e as mães í ^ N
262
Si quando os paes morrem, os filhos já creados e educados,
são mais seus devedores do que credores, a objecção que n’esta
razão se funda não se applica contra a successão legitima
daquelles cm relação aos bens destes, antes a justifica e exige ;
mas evidentemenle seria contra a natureza, contra todas as re­
lações da familia, contra a'equidade, contra a lógica, e até
contra o simples bom senso, proclamar-se a legitima successibi-
lidade dos paes aos filhos, e negar a d’estes áqueücs ; quando tal
direito para uns e outros assenta em razões que lhes são com­
muns, e não se concebe de modo algum que sendo elle real deixe
de ser reciproco.
1’retende-se ainda, que a successão legitima reconhecida
como um direito, abafa os nobres e úteis estímulos que deve
ter o liomem para adquirir bens pelo sen esforço pessoal ; que
as fortunas havidas sem trabalho são mal usadas, m ile parta,
•malè dilabuntur ; que supprime a gratidão que os Pdhos leriam
de tributar a seus paes que voluntariamente os instituiriam por
herdeiros ; e até que pode ser causa para que estes nutram abo­
mináveis pensamentos, ou secretos votos criminosos sobre a
vida d’aqueiles, ou pelo menos para não terem a sua morte no
devido horror.
1’ode haver em tudo isto alguma verdade. Mas si aquclle
direito reconhecido pode anniquilar aqlielles nobres e uteis es­
tímulos cm filhos já propensos á oecíosidade ou indolentes por
caracter, mais os favorecerá nos que por itulole ou reflexão fo­
rem activos ou amantes dó trabalho, o que aliás em grande
parte depende da educação que lhes derem seus proprios paes.
Si faz desapparecer a occasião que teriam (ilhos interesseiros
de mostrarem-se gratos aos paes pela sua instituição, não tira
realmente aos bons Olhos um cento de razões que tõjn para nu­
trirem e demonstrár-lhes essa gratidão ; além de que nos pri­
meiros o que aquella especlativa faria verdadeiramente nascer
seria a hypocri&ia, no intuito de prejudicar aos mais. Si pode
inspirara alguns filhos desnaturadosidéas sinistras ou torpes
impaciências contra a prolongação dos diasdc seus paes; mais
razão ninda-terão elles para isso depois de captarem por aquel-
lemeio indigno a preferencia ou predilecção d’csles.
i aes razões allegadas contra a successão legitima só servi­
riam, pois, realmente para favorecer os rnáos filhos contra os
lions; e para plantar no lar sagrado da famillia, e entre os
seus membros a intriga, a competência ignóbil de alfeições fin­
gidas, o odio c a degradação. Ao passo que reconhecida a suc­
cessão legitima e imposta como um direito natural, tudo isso se
evita, manlcm-se a dignidade, a igualdade, e a paz da familia,
OE DIRE
[ I l <4i!
ZO O

c podem osfillios como devem, am ara seus paes e reciproca­


mente, livres de semelhante influxo pernicioso, e independente­
mente da acção deleteria de cálculos infames cimmoraes.
Estas objecçõesa que temos respondido, demais,não Se di­
rigem, como se ve, unicamente á successão legitima por Direi­
to Natural, attacam-n’á de um modo absoluto ; si ellas prevale­
cessem, tal especie de successão não deveria ser admittida mes­
mo no Direito Civil 5 e esta é, com elfeito, a opinião dos sectá­
rios da faculdade absoluta de testar. Mas os argumentos com
que acabamos de responder-lhes, provando que ellas não pro­
cedem contra a mesma segundo este Direito, muito menos 0
provam considerada segundo aquelle. Ou antes provando que
ella deve necessariamente ser consagrada pela lei civil, provam
ao mesmo tempo que deve sèl 0 exactanienlc porque a lei na­
tural a impõe.
E' inacceitavcl a proposição do Compendio de que a suc­
cessão legitima ab inlestato é uma simples creação da autoridade
publica que tem por fim fazer reconhecer aos chefes de familia as
pessoas a que depois de sua morte têm de passar os seus bens.
Si assim fosse a lei civil poderia attribuil-os a quem bem qui-
zesse,ficaria a seu arbítrio designar os herdeiros d'aquellcs ; mas
a razão, a justiça absoluta e os proprios interesses legítimos e
mais vitaes da sociedade humana e particularmente'da familia
repelem semelhante idéa,o‘que aliás não só já ficou demonstra­
do pelo que até aqui temos expendido, mas continuará a , sel-o
também pelo que temos ainda a dizer sobre este assumpto.
A vontade real mi presumida dos que morrem, de que nos
falia 0 mesmo Compendio, ou antes essa vontade que mesmo
quando não seja real se deve necessariamente suppôt-, porque
devéra sôl-o, porque é 0 reclamo natural do sangue, da afiei-
ção c união intima da familia, e todas as mais consequências
que d’ahi decorrem, são afinal, sem duvida, os fundamentos
d’aquella successão em falta de testamento, assim como da
que a lei civil expressamente imponha, apezar d’este ; c por con­
seguinte fundamentos naturaes, e de Direito Natural.
LICCSÃO
O ZL .
§§ 149 — 150

Continuação : — do direito de successão légitima ; — concilia­


ção do mesmo com o de testar.

Dissemos na licção precedente que Ahrens para demonstrar


a verdade da doutrina da successão legitima por Direito Natu­
ral, o considerava, primeiramente como uma consequência dos
laços de afieição e obrigações que existem entre o chefe da fa­
mília eos seus membros-, e em segundo lugar, como uma con­
sequência da propriedade n’esta. r
Já tratámos da questão sob aquelle primeiro ponto de vista ;
examinemo-la agora sob o segundo.
Diz o citado author que sendo a familia uma personali-
cade moral, que abraça cm uma unidade superior os seus mem­
bros, nasce desta a necessidade de uma communhão pu da pro­
priedade na mesma quanto aos bens respectivos.
Com effeito, si essa communhão não existe ; si a familia
não forma um todo em que cada um de seus membros tenha
uma participação natural e legitima nos bens que devem cons­
tituir o seu patrimônio, não pode a sua unidade ter a necessá­
ria cohesão ; torna-se inexplicável a sua solidariedade a todos
os mais respeitos.' Esta é aliás incontestável, e especialmente
inherente á familia, concebida no seu idéal, como já em outra
parte o fizemos ver ; e sendo assim porque razão só a proprie­
dade dos bens n’ella existentes, e que é exactamente o que mais
se presta a essa communhão e lhe é mais util, deve ser da mesma
excluida?
Não se comprchende como o direito do pae de familia em
relação aquclles seja o de um senhor absoluto, ou que deixe
de ser limitado juridicamente pela sua obrigação de zelal-os,
de promover o seu augmenta, e de applical-os sempre na maior
vantagem possível d’uquella. Attribuir-se-lhe como aquclles
265
que não tem farnilia, uma faculdade ampla de dispôr de taes bens
de esbanjal-os pela dissipação, ou por caprichos, em prejuízo de
seusfdhosou era favor de estranhos, seria na verdade estabelc-
cer-se um singular Direito de Natureza, contra o qual, aliás tudo
protesta no coração humano, e antes de tudo no dos proprios
paes.
De onde vem, pois, tal limite áquelle direito do pae de fa­
mília? De onde procede essa restricção á sua faculdade abso­
luta de dispôr de seus bens, durante a vida, que são obrigados
a reconhecer os proprios partidários da successão legitima por
simples Direito Civil ? Sinão dessa propriedade ou condo-
ínino mais ou menos extenso e indispensável, que a respeito
dos mesmos deve pertencer á farnilia considerada cm sua per­
sonalidade moral ?
Si o pae de farnilia adquire multiplicar tacs bens por seus
cuidados e esforços, não é em geral, e segundo a ordem natural
das cousas, sinão exactamente no louvável intuito de os tornar
communs naquella, de constituil-os sen patrimônio,c sobre tudo
de lh’os transmiltir por sua morte. l)’isso depende com elfeito,
essencialinente,o bem estar da mesma no presente,e sua sorte no
futuro, que devem ser, e são segundo a natureza, as inais sérias
preocupações d’aquelle. Supprirair-se essa eommunbão, seria
portanto anníquilar-su todos estes princípios cm que repousa
a união, c a solidariedade da farnilia.
Pretendo o Compendio que si fosse real esta eommunbão,
em que sc faz consistir urna das rázõesda successão legitimapor
Direito Natural, não deveriam ter os paes o direito de dispôr
por qualquer modo de seus bens durante a vida, o qual, entre­
tanto não lhes é, nem póde ser contestado. _
Com clléito o pae de farnilia tem esse direito, e poderes
assás amplos sobro taes bens n’aquelle sentido, e deve real­
mente tél-os mesmo no seio d’aquella eommunbão, jã exacta­
mente na qualidade de principal eo-proprietario d clles e já
sobre tudo no de chefe o administrador ifaquella. Mas esses
poderes com serem amplos, muito mais amplos mesmo do que os
de qualquer administrador ordinário de alguma cousa ou bem
commum, porque tem por si a presumpção natural c bem fun­
dada de seu bom uso, nem por isso, como aliás acabamos de
mostrai-o, são absolutos ou taes que por clles seja liclo aos
mesmos prejudicar a legitima successão da farnilia. Alei ci­
vil, ainda neste ponto, simples interprete da natural, eüectiva-
rnente lhes impõe limites; e até relativameute a alguma especie
daquelles bens recusa de todo ao marido a faculdade dc dispôr
dellessem outorga expressa da mulher.
34 f .
26B
Ha até conlradicção c absurdo naquelles que com scmelhan-
te objecção pretendem contestar aco-propriedade familiar. He-
almente, desde que é innegavd que o pae de familia representa
e só elle póde representar esta cm sua acção e desenvolvimen­
tos exteriores, inculcar-se que só seria possível a communbão
de bens na mesma, si aqufiíle não tivesse a faculdade de dispòr
d’elles, equivalei conceber-se a propriedade sem o direito de
dispòr-se delia.
O que é evidente, em summa, ó que não existiria de facto
propriedade na familia sem aquelle direito de seu chefe, uma
vez que ninguém mais na mesma poderia têl-o ; de modo que
com tal argumento, para contestar-se a communbão de bens
naquella, reduzir-se-hia o seu patrimônio a uma mão morta. a
um simples mo-fruclo, não só imprestáveis, mas até realmente
impraticáveis na mesma.
Poderão insistir os autbores de tal objecção que, cm todo
ocaso, com aquelle direito embora limitado, e apezar de natu­
ral prèsumpçào de seu bom uso, pódem ellcctivamente os paes
alguma vez prejudicar a herança de seus (ilhós jú proposital­
mente e em favor de estranhos, já por incúria ou má adminis­
tração de seus bens.
Mas primeiramente, si isto é possível, o ó apenas por ex-
ccpçâo enão é por estas que se deve estabelecer a regra n’este
ou em qualquer assumpto ; e ern segundo lugar, para aquelles
que pela faculdade absoluta de testar conferida aos paes,
por não reputarem de Direito Natural a successão legitima, col-
locam os tillios na contingência permanente de serem de Direito
pelos mesmos desherdados, asma desherdação possível apenas
em casos excepcionaes no regimen da successão legitima, se­
gundo aquelle Direito, não deve merecer alionra dc ser conside­
rada um mal -, o que quer dizer, afinal que ainda por este lado são
inconsequentes os que atacam a eommunlião dos bens na fanii­
lia por tal razão.
Dirãoainda os mesmos autbores, que afinal não lia real dif-
ferença entre as duas doutrinas; porque nós reputamos ex-
cepcionaes e difiiceis de darem-se aquelles casos de desborda­
rão dos filhos no regimen que defendemos cxactamentc fun­
dados no mesmo principio em que elles se baseam para sus­
tentarem a desnecessidade da successão legitima por Direito
Natural dos paes, que fará tainbem com que, em regra elles
zelem os bens da familia, c voluntariamente a instituam por
sua herdeira ? Mas além de ser esta argumentação inapplicavel
aos caso em que os paes morram sem testamento ; accrcsec,
que, em todo o caso. a successão legitima dos filhos aquelles ê
o mais natural, ou o que a Natureza geralmenle prescreve,
como não o contestam os proprios que o não acceilam como
um direito imiriodiatamenle derivado d’esta. l ogo quo nizáo
plausível pó,de haver para dar-se lugar por uma lei positiva
que a desconheça, u que o que <; regra possa ser convertido em
execução, ou para que assim se as provo que contra a mesma.
Seja, porém, como l'Or haverá sempre entre a nossa dou­
trina e a daquelles authores, a seguinte profunda différence
perante a lógica: que-elles estabelecem como regra possível
aquillo mesmo que reconhecem ser o abuso, o mal, c para evi­
tarem as funestas consequências de sua real observância invo­
cam o proprio principio cuja justiça negam ; .ao passo que nós
proclamamos esse mesmo e único principio, quer para deduzir,
d'elle a regra, quér para gnrnntil-a contra as suas transgressões
possíveis. Nós somos consequentes contando n'este sentido
com as inspirações da Natureza, depois de lermos proclamado
o direito que ella preceitua : elles, porém, declarando que os
paes segundo o Direito Natural podem excluir ós filhos de sua
herança, confiados entre tanto, que o não farão, porque não
devem fazei-o segundo aquelle, desfazem, permitla-se-nos a
expressão vulgar, com os pés o que fazem com as mãos.
Na nossa doutrina, finalmenlc, ainda quando o abuso ou mal.
a que acima alludimos, fiquem alguma vez sem remedio, porque
realmente a propria natureza não púde, remediar a todos os des­
varios possíveis da liberdade humana, e quando mesmo n’esse
sentido não concorra a lei positiva, serão elles sempre menos
praticáveis, e de effeito menos desastrosos ; porque é evidente
que será muito mais dilficil a um pae esbanjar intencionalmen­
te durante a vida os seus bens para prejudicar asuccessão de
seus filhos, e persistir n’essc desnaturado proposito ate a sua
morte, do que por um simples acto de ultima vontade dispor
d’elles em favor de estranhos. No primeiro caso, além da vio­
lência constante que lhe será preciso fazer os seus sentimentos
terá elle ainda de attender a seus proprios interesses e eoinmo-
dos compromettidos em tal couducta : ao passo que no segun­
do tudo é possivcl em um só momento de paixão ou máo hu­
mor. ,
Contestando aindaacommunhão da propriedade familiar
pretende-se. que esta não existe, desde que os filhos, ou pdo
menos os maiores, não tem participação alguma nas delibera­
ções dos paes acerca dos bens da familia. Mas além de núo
ser também esta observação cxacta cm absoluto, porque si aos
filhos não compele com eífeito, directamcntc, qualquer ingerên ­
cia á tal respeito, com tudo a lei civil vêla por elles sobre o
268
seu direito áquelles bens ; accresce que exclusiva a competên­
cia dos paes naquelle sentido tem a mais natural das cxpliça-
çOes, já na sua qualidade de chefe, representante, c adminis­
trador único possível e adequado da fainilia -, e já na incompa­
tibilidade de tal participação dos filhos com todos os mais di­
reitos que sobre elles cabem a seus paes, ou com a submissão e
reverencia que por elles são devidos a estes segundo a Natu­
reza.
Quanto a dizer-se,que adimitlida aquella comnnmhão de­
veriam os herdeiros legítimos ser obrigados a todas as dividas
d’aquclle a que succedessem, ainda quando clins fossem supe­
riores ás forças da herança,é um argumento sem valor. Abreus
observa, com razão, que o principio da comnnmhão familiar
não póde, em lodo o caso, apagar a personalidade de cada um
dos seus membros, tanto mais quanto os bens d'ella não estive­
ram sob a administração effectiva d’estes, pelo que dfevem as
consequências da mesma ser pessoaes a quem os administrou,
e pesar unicamente sobre os que por estes foram deixados,
Outras considerações inutilisam ainda aquella objeeção.
Ella applica-se do mesmo modo á successão legitima de Direi­
to Natural, e á de simples Direito Civil, e entretanto este mesmo
não acceita, nem poderia acceit,ar semelhante regra, por mani­
festamente injusta. E’ claro que aquella sucessão que se funda
na necessidade de manlér-se. desenvolver-se, e felicitar-se a
familia, não póde em caso algum, segundo o Direito, importar-
lhe mais omis do que vantagem, ou ser causado sua total mi­
na ,• que ella é um direito seu, e não uma imposição, um bene­
ficio e não um encargo, e conseguintemente, desde que ella á
mesma renuncie, livra-se de todas as obrigações que lhe sejam
inherenles.
E’ pois real na familia a communhão dos bens, e d’ella se
deduz evidentemente a successão legitima de Direito Natural,
aliás resultante ainda dos mais princípios ou razões que em
sua sustentação temos até aqui expendido. E não é debalde
que em geral, ella tem sido realmente decretada em todas as
legislações dos povos mais adiantados.
i Na antiga Roma o direito absoluto de testar, em prejuízo
d’aquella, teve de ceder mais tarde ao influxo da philosophio, e
moral christs. : e si ainda hoje prevalece um resto desse abso­
lutismo das ultimas vontades, em Inglaterra enos Estados-Uni-
dos, illudeni-se, ou querem illudir, aquelles que a isso de qual­
quer modo referem a prosperidade destas duas grandes nações.
Outras e muito complexas são as verdadeiras causas de seu pro­
digioso engrandecimento.
2Q9
Quanto á primeira ha antes 'mais razão para crèr-se que
semelhante instituição, acompanhada do direito de primogeni-
tura, e da preferencia á linha masculina, em falta de testamen ­
to paterno, não é estranha ao medonho ahysmo ahi cavado
entre a opulência da aristrocacia e a miséria das classes infe­
riores ; e quanto á segunda avultam sobre tudo entre aquellas
causas, o proprio caracter da sua população, os favores e ga­
rantias que alli encontra a emigração, a plena liberdade de in­
dustrias, e dc religião, as condições naturaes de seu território,
etc.
Para concluir-se com visos de razão que aquélla lei ano-
mala entra etfectivainente por alguma cousa no seu immenso
progresso, fòra preciso demonstrar- sc antes de tudo que a des-
herdação da familia é de judo a regra ahi praticada ; c que a
natureza não corrijo alli como cm ioda a parle,no maior nume­
ro dos casos, o erro dos homens, ou os defeitos dc suas insti­
tuições sociaes.
Demonstrado que são de Direito Natural quér a faculdade
de testar, quér a successfiolcgitima, vejamos si estes douSdirei-
tos ainda mesmo referidos a uma só origem são entre si in­
compatíveis. E’ claro que realmente o serão fiara aquelles
que proclamam o primeiro como uma faculdade absoluta e. illi-
rnilada ; assim entendido, elle exclue, com elTeito, necessaria­
mente o segundo. Não o são, porem, para nós que si demons­
tramos a realidade (laquelle por Direito Natural, temos em se­
guida, demonstrado a deste também dellc derivado.
O homem, tem em geral, de um modo incontestável, c pela
Natureza, a faculdade de dispôr de seus bens para depois de
sua morte, porque c isso o legitimo exercício de seu direito de
dominio sobre elles, e por todas as mais razões que já na sua
demonstração produzimos ; aquelles, porem, a que prendem os
laços especiaes da familia, c que esta envolve na sua persona­
lidade. em relação aos biíns desta não podem tel-o senão de ntn
modo limitado, pelas justas exigências da mesma.
Não ha, em sumiria, incompatibilidade alguma na admissão
simultânea daquelles dous direitos, desde que, embora reaes o
incontestáveis ambos, o do testar e. sujeito ã rcstricçõcs que a
razão e os proprios princípios dc lei natural lhe impõem, do
mesmo modo que a outras muitas são subordinados quaesquer
direitos também naturaes do homem, segundo os elementos ou
condições circumstanciaes em cujo meio tem dc ser exercidos.
Todos elles sãolimitados particularmente pelas obngaçuesjuri-
dicas contrahidas para com outros 5 e 0 pae de família contra-
lie, sem duvida, para com esta o dever de não dispòr de seus
bens em damr.o da mesma, por qualquer titulo.
Concluiremos, por tanto, que asuccessão legitima ab in~
íeatato ou apczar de testamento em contrario, ê um direito n a ­
tural do mesmo modo que o é o de testar, e que a l.ei civil que
os não créa, nem póde justam ente supprim ir qualquer d’elles,
deve em todo o caso expressamente consagral-os.
Dizem-nos isto a razão e o Direito da Natureza. O que este
não póde dizer-nos quanto a successão legitima, é unicam en­
te até que gráo de parentesco com o morto elle deve ser impos­
to, nem determ inar positivamente outras condições praticas
que sfto indispensáveis para a sua effecUva e justa realisação.
É’ isto unicamente o que deve com petir e compete ao Direito
Civil em tal m atéria.
PARTE SEGUNDA
U 1r c i 1u p r i v a d o s o r I a I

CAPITULO I

DO DIREITO SOCIAL EM GERAL

• L ic c3ílo z l :
§§ 151 — 159

Sociedade ; — diversas espades d'esta ; — princípios geraes que


a regulam direitos e obrigações fundamcnlaes inter­
nas sociaes; — direito da sociedade de estabelecer suas
leis ou regras.

O Compendio, tendo dividido o Direito Natural cm Direito


Positivo extra-social -e social, c tratado d’aquelle na sua pri­
meira parte, trata d’este na segunda, em cuja analyse vamos
agora entrar.
Já vimos (licçíio IVj, que o Direito Privado social c o que
regula as relações dos membros de qualquer sociedade entre si,
o para com os poderes n’ella constituídos, c encarregados da sua
direcção, e vice-versa. _
Sociedade, como nos define o Compendio no seu § 151,
é uma reunião de pessoas que se obrigam á promover um fim
commurn, não transitório. Comprehende-se entre as socie­
dades o Estado e a família, que são, na verdade, as mais impor­
tantes dc todas que podem formar os homens.
Entretanto, temos de expôr e de desenvolver aqui propria­
mente os princípios que são applicaveis em geral a toda c qual­
quer especie de sociedade, notando apenas, quando vier isso
a proposito, as modificações que sofiYein alguns dos mesmos, ou
a sua inapplicabilidade eríi relação áquelias duas, cm conse­
quência de certos caracteres que lhos são, peculiares ; pois que
da primeira occupa-se especialmente o Direito Publico, e da
segunda leremos de tratar de um modo particular nas explica­
ções do capitulo seguinte, que também cspecialmente lhe con­
sagra o Compendio.
a s sociedades classificam-se principalmente pelos fins a que
se propõem, e como estes pódem ser innumeros, do mesmo
modo varias são as especies d’aquellas. Consideradas sob esse
ponto de vista ellas são : scientificas, litterarias, artísticas, com-
merciaes, agrícolas, induslriaes, religiosas, beneficentes, etc.,
em outros sentidos recebem outras muitas denominações ; e an­
tes de tudo pódem ser simples ou compostas, iguaes ou des-
iguaes, etc.
Cm geral são applicaveis a toda e qualquer sociedade os
mesmos princípios que regulamos pactos, e que já anterior-
mento expuzemos; pois que, corno nos diz o Compendio, no seu
§ 152, toda a sociedade funda-se, com èfieito, immcdiatnniente
em nm pacto, ou antes é em si mesmo um pacto. Idênticas
são as razões que a legitimam perante o Direito, e lambem a ori­
gem de onde provém o vinculo ou força obrigatória que liga os
seus membros. As uniens difterenças que entre sociedade
e o pacto existem, e que não influem sobre a applicabilidade da­
quelles princípios á mesma, consistem, primeiramente em que
toda a sociedade suppõe sempre um fim mais ou menos dura­
douro, a cuja consecução fica lambem mais ou menos conti­
nuamente presa a liberdade dos socios, emquanto que a obri­
gação coutrahida pelo simples pactò consuma-se no proprio
acto île sua celebração, e o fim respectivo realisa-se de uma vez
e desde logo;e em segundo lugar, que em toda a sociedade
o fim é commum, consiste em um objcctn que interessa do mes­
mo modo a tótloá os socios, c para elle convergem todos os seus
esforços ; ao passo que no simples pacto o fim ou intéressé de
cada pactnanle é divergente do outro, cada um por si e para si
procura tirar d’elle vantagens que não tem relação com as
d’aquelle, antes as exclue.
Procedem estas diffcrepças da propria natureza e razão de
ser da sociedade, que se dirige sempre a algutn fim, cuja con­
secução c ou suppõe-se ser superior ás forças ou recursos iso­
lados dc cada indivíduo, ou que, pelo menos, não poderia ser
por estes desunidos facilmente alcançados ; o que não se veri­
fica ern relação ao objecto de qualquer simples paclo.
Dissemos que uma sociedade pócle scr simples ou compos­
ta ; e na verdade, assim como se associam indivíduos para a rea-
lisação de algum fim, pódem lambem no mesmo intuito re ­
unir-se umas á outras quaesquer sociedades, como nos diz
275

o Compendio no seu citado paragrapho, c isso pela mesma ra­


zão que determina a formação d’cstas entre indivíduos, desde
que concebe-se que haja íins (pie possam ser objecto dos es­
forços comnmns de uma sociedade composta, e que por esta
lambem mais facilmente e melhor possam ser conseguidos do
que por qualquer sociedade simples.
E’ claro, entretanto, que a esta especie de sociedades, desde
que ellas se consideram cm sua unidade, são do mesmo modo
applicaveis os princípios que regulam qualquer outra.
Como dissemos ainda tom o Compendio, uma sociedade,
quanto ii condição interna de seus membros, uns em relação
• aos outros, póde ser igual ou desigual. E’ cila desigual, accres-
Centa o mesmo Compendio, quando pela sua ordenação ou cons­
tituição foi deixada a determinação dos meios para obter-se
o seu fim, ao alvedrio de algum ou alguns dentre os socios;
e quando não, é igual;mas estas palavras do Compendio não
nos dão uma idéa completa da desigualdade social.
Na sociedade desigual os diversos membros que a com»
põem, não gozam dos mesmos poderes on represenlaç.ão relati­
vamente ao seu governo, ba real superioridade em uns e subor­
dinação em outros, ou mais ou menos arbítrio havido por al­
gum ou alguns, ou conferido aos mesmos sobre os mais e sobre
a repartição dos onus e vantagens sociaes entre lodos. _
Embora em uma sociedade a desigualdade proceda na maior
parte dos casos do consenso expresso dos soeios por interesse
de todos, póde comtudo provir em alguma já de sua própria
natureza, já de uma necessidade indeclinável de sua mais con­
veniente organisação e direcção. Vcrifica-se isto por esla ul­
tima razão, sobretudo na sociedade civil, c pela primeira na
sociedade familiar, onde a desigualdade social, c por isso mes­
mo mais bem caracterisada. Na família, com cflcito, e neces­
sariamente inferior a condição dos filhos cm relação aos pacs;
e no Estado a subordinação dos cidadãos aos que n’elle repre­
sentam e exercem a autoridade publica, c uma condição dc que
se não póde prescindir', e que Vigora independentemente dc
qualquer convenção expressa d’aquelles.
Os direitos e obrigações que sc pódem deduzir da noção da
sociedade, diz-nos o Compendio ainda no mesmo paragrapho,
constituem o Direito social geral, e os direitos e obrigações que
se derivam do conceito e do fim determinado das sociedades
particulares, formam o Direito social particular. O primeiro
compõe-se do complexo de princípios que regem lodo o pacto,
e conseguinteinenle toda a sociedade em razão de sua própria
natureza e destino cm geral; e o segundo das regras ou dispo-
35 f.
siçõcs especiaes, que os socios em qualquer d’ellas, como os
pactuáutes em qualquer pacto, pódem e elevem estabelecer por
convenção em vista do fim também especial a que se propõem,
ou segundo as circumstancins que occorram no decurso de sua
existência e de seu andamento. E’ claro, porem, que em ne-
nlimn caso estas regras ou disposições pódem contrariar «quel­
les princípios, ou os da justiça absoluta.
Si toda a sociedade funda-se em um pacto, ou o é na sua
esscncia, com razão nos diz o Compendio uo seu § 153, que
para ser valida a sua formação, devem dar-se na mesma os re­
quisitos que, segundo o Direito, se, exige para a validade d’aquel-
ie e assim como n’este são os paetuantes obrigados a tudo
oque promcllernm ou acceitaram, também o são os socios de
qualquer sociedade a tudo aquillo a que se sujeitaram expressa­
mente, ou é condição indispensável á realisação do fim social,
c por isso sc deve reputar implicitamente estipulado ou con­
sentido.
Assim para a celebração valida de qualquer sociedade deve
antes de tudo, corno na dos pactos em geral, intervir a vontade
claramente enunciada, séria, consciente, e livre d’aquelles que
a formem ; c a respeito do seu objeclo ou fim deve dar-se
a mesma possibilidade quer phjsica, quer jurídica, quér moral,
sob pena de ser tal sociedade essencialmente viciada e uulla
desde sua origem.
A obrigação contrabida. cm geral, por todos os socios no
sentido dc promoverem a consecução cio fim social commum,
corresponde em cada um direito de exigir dos mais o seu con­
curso para isso necessário, nos termos convencionados, ou até
onde o mesmo fim suciai o imponha ; e nenhum d’elles póde
recusar essa sua cooperação pessoal sem faltar á fé do pacto
celebrado, c sem oflénder os direitos d’aquelles e da sociedade.
N’este sentido são, pois, os mais socios aulorisados a em.-
pregar os meios adequados, inclusive os coaclivos contra osso-
eios remissos ou de má fé, os quaes com semelhante procedi­
mento abusam de sua liberdadõ, que cumo nos diz o Compendio
no seu § 15(5, fica pelo pacto de união, restrieta quanto baste
ou quanto é necessário para que o fim social não seja perturbado.
Mas lambem não vai além d’este limite aquelle direito de
cada socio a respeito de qualquer outro, ou o da propria socie­
dade em relação a cada um (l’estes, « áfóra aquella restricção,
como nos diz ainda « mesmo Compêndio, cada socio tem o di­
reito de procurar e promover o seu bem particular.» Uma so­
ciedade qualquer, não pude reahnento absorver de tal fôrma
em si, ou nus legitimas exigências dc seu fini, a personalidade
do seus membros, que os inliabililc para todos os mais desen­
volvimentos em (|ni) a sua liberdade pôde e deve expandir-se,
sem prejuízo da mesma, ou sem relação immcdiata com as obri­
gações á qVe cada um ligou-se entrando para ella, ou que o seu
fim suppõe.
listes princípios reguladores de toda a sociedade, com-
quanto se subentendam ainda mesmo não sendo declarados no
respectivo pacto de união, porque resultam de sua própria na­
tureza, podem ser comtudo e convém mesmo que sejam dc al­
gum modo c até certo ponto n’elle expressos, para que sejam
& mais precisamente conhecidos; e cm todo o caso devem sel-o
as regras mais particulares ou méramente circumslanciaes que
se destinem a estabelecer de uma maneira mais clara e positiva
os direitos e obrigações da mesma especie entre os socios, e
destes para com os encarregados da direcção social, c \icc-
versa, ou a determinar os meios cspcciaes com que se tcnba de
promover o fim da sociedade, e o modo e mais condições do seu
emprego.
Na sociedade civil ou Estado a lei cm que estas regras po-
silivamentc se estabelecem, formam a sua lei fundamental, ou
constituição, e nas mais constituem o instrumento, ou eurip-
lura du respectivo contracto. Na familia nada existe que lhe
corresponda; ah! dominam unicamente a loi natiiral que de­
creta as suas regras, e a lei civil que as confirma, desenvolve,
e impõe efiéctivamente a sua observância.
Na Constituição Política se consigna, em geral, as'bases da
organisaçào do Estado, as attribuiçõcs, limites, e condições do
cxereicio dos seus poderes, a sua divisão, e composição de seus
orgãos, c certos direitos mais importantes dos cidadãos quér
entre si, quér nas suas relações com o mesmo Estado e seus
poderes; c o mais é regulado em seus detalhes, pelas suas leis
ordinárias e de occasião. No pacto de união dc qiinesquer ou­
tras sociedades, além de disposições annlogas áquellas, consig­
nam-se todas as mais relativas aos direitos e obrigações, van­
tagens ou ónus que devam caber aos socios ou pesar.sobre elles,
modo de repartil-os, casos em ipie a sociedade termine, etc.,
e essas disposições completam-se do mesmo modo no decurso
de sua existência, pelas deliberações ou medidas que á socie­
dade compete tomar segundo as occurrencins, e no interesse
commum. . . . ,
E'pois com razão que o Compendio, no principio uo seu
§ 157, mis diz que quando se lorma uma sociedade são logo
determinados como absoliilamcnte necessários, ou convencio­
nados exprcssapieiito, certos meios evidentes por si mesmos;
porém que as circumstancias supervenientes., isto é, as neces­
sidades de occasiiio, que a todo o momento surgem na prose-
cução do fim social, podem exigir outros, e n’este caso pertence
a todos os memtiros da sociedade determinai os, si a um ou
a alguns d’elles não se concedeu o império por um paclo, ou,
accresccntarcrnos nós, si elle não compete áquelles por direito
proprio.
O direito social a que nos lemos referido constitue na so­
ciedade civil ou política o poder legislativo, e nas mais um po­
der que lhe é semelhante, e no qual se comprehende do mesmo
modo a faculdade de alterar e revogar as regras já pelos mes­
mos estabelecidas e acceilas, de que nos falia o Compendio no
seu § 10 1, e que vem aqui mais a proposito. lista faculdade,
é com effeilo, o complemento indispensável e natural do direito
de formular aquellas; c cila applica-sedo mesmo modo que este
não só ás disposições 011 regras ordinárias ou occasionnes da
sociedade, mas ainda ás suas proprias regras ou disposições
primitivas e fundamentaes.
A’s leis ou regras assim estabelecidas cm uma sociedade,
são sujeitos não só áquelles que primitivamente a formaram,
e expressa ou tacitamente conlribuiram para a sua adopção,
mas também e do mesmo modo quaesquer membros que de
novo entrem para alguma em que, como nos diz o Compendio
no § 159, não se determinou desde o principio o numero dos
que deviam compol-a, c onde podem ser recebidos outros a lodo
o tempo. ,
Isto acontece, sobre tudo, na sociedade civil, que, com cf-
feito, admit te indefinidamente quaesquer novos membros, sem
sôffrnr com isso a minima alteração quér na sua constituição
ou fórrna, quér nas relações d’aquelles que a compõem. Os que
assim entram de novo para cila, ou no seu seio se achem por
qualquer motivo e em qualquer occasião, por este simples facto
e independentemente de qualquer promessa ou daclaração ex­
plicita, ficam com effeito presos no laço social respectivo. Si para
os que nascem na sua circumscripção territorial e n ’ella se con­
servam, esse laço é mais estreito e importa-lhes certos direitos
e obrigações especiaes, para os mais de qualquer procedência,
a sujeição resulta do simples facto de residirem no seu territó­
rio, e de participarem das vantagens e protecção que alii en ­
contram.
Como, em summa, aquella sociedade ou o Estado, por sua
natureza e (ins abrange a personalidade inteira do homem, todo
aquelle que n’ella se ache, por qualquer razão, ou em qualquer
tempo, é por algum lado necessariamente compreliendido na
2*7
sua superintendência e regimeu. 0 proprio estrangeiro, pois,
embora pertença e continue a pertencer a outros respeitos a uma
sociedade política diversa, nem por isso é isento da jurisdicção
d’aquella cm que reside actualmente, e cmquanto ahi residir.
Si elle lhe escapa como cidadão, fica-lhe em todo o caso ligado
como homem, e pelos direitos e obrigações que n’este caracter
lhe competem ou competem aos mais em relação a elle.
Oque a tal respeito acontece na sociedade civil, acontece
de modo analogo, embora a respeito de relações mais particu­
lares e menos importantes, em qualquer outra sociedade nas
^ condições d’aquellas a que o Compendio se refere no seu citado
parngrapho 159.

I i
L ia Od o z l i:

§§ 159— 1GG

Continuação: — do atreito da sociedade de estabelecer suas


leis ou regras; — do modo da sua deliberação'; — direi­
to de as fazer observar ; — do império e seus caracteres.

Oparagrapho 160 do Compendio contém apenas corolla-


rios dos princípios já expostos, a saber: — qne nenhuma socie­
dade pôde subsisttir sem leis ou regras pelas quaes se dirija,
nem conseguir os seus fins si estas não forem observadas ; que
todas as leis ou regras das sociedades iguacs são convencio­
naes: e que cilas obrigam do mesmo modo quér os membros
que de tacto ou originariamente n’ellas consentiram ; quér os
que depois para a mesma sociedade entraram ; o que tudo já
vimos com effeito, na precedente licção.
Entretanto cumpre-nos fazer algumas reflexões sobre al­
gumas d’essas proposições,
São convencionaes, sem duvida, as leis de toda a sociedade
igual; exccpluadas, porém, as que procedam da própria es­
sência desta, ou se derivem de algum principio absoluto de
justiça; essas lhe são por Direito necessariamente inherentes.
Elias podem e devem até certo ponto ser positivamente consa­
gradas noaclo ou instrumento da sua formação ; mas quando
mesmo o não sejam, não tem nella menos vigor. As próprias
leis ou regras procedentes apenas do bom arbítrio social, si são
convencionaes pela sua decretação, não pódem sel-o quanto á
sua observância. Estabellecidas ellas, não é mais licito a qual­
quer dos socios ou membros da sociedade eximir-se ao seu
cumprimento a titulo de provirem as mesmas de um accòrdo
para o qual contribuio a sua vontade, c que lhe convém actual-
rnenle retirar-lhe a sua adhesão.
Quanto aos socios ou membros posteriormente entrados
em qualquer sociedade que assim os admitte, é claro que as leis
ou regras desta só os obrigam ü’abi cm diante ; não pódem
s.ujeital-os a quasquer actos anteriores da mesma, ou ás suas
consequências, salvo si nesse .sentido elles expressamente se
comprometteram no acto de sua entrada, o que é possivel cm
alguma especie de sociedade particular : ou quando em razão
da propria natureza desta o simples, facto de sua entrada im­
porta essa obrigação, como acontece naquellas em que o titulo
social é transferível á outros, ou passado ao portador.
Taes são, em summa o direito da sociedade de estabelecer
suas leis ou regras, e o caractere extensão destas.
Quanto ao modo da sua deliberação, a que se refere o Com­
pendio no seu § 157 e nota respectiva, pensa elle que em urna
sociedade igual é indispensável para aquella a participação da
vontade de lodos os socios ou membros, c nós acceitamos a sua
doutrina, porém com mais algumas restricções.
Com cfléito, á não scr em uma sociedade igual, sem prazo
determinado, ou sem obrigação expressamcnle contrahida pelos
socios de nella persistirem em quanto a mesma dure, c além
disso puuco numerosa, ou de pessoal limitado, não pódeaquel-
Ja doutrina ser aeceila. Assim ella c inapplicavel, quér á socie­
dade familiar, quér á sociedade civil. Não o póde quanto a
primeira por uma razão obvia de Direito, que consiste na su­
perioridade natural e necessária dos paes; e quanto á segunda,
por uma razão não menos poderosa, embora de facto, consis­
tente em que no Estado, assim como cm qualquer sociedade de
numero indefinido ou muito considerável de membros, o con­
curso expresso da vontade destes nas deliberações sociaes é
realmente impossível de obter-se; incompatível com a sua ma­
nutenção e governo ; e, portanto, não póde deixar de sersubs-
lituido pelo voto daquelles que a constituição ou pacto respec­
tivo ienhaíu investido ou devem invislir do Direito de tomal-as
em nome e uo interesse commurn.
Nas sociedades, que estejam, porém, verdadeiramente nas
condições figuradas, e em relação á áctos ou disposições so­
ciaes que não consistam em simples medidas de administração,
gerencia ou execução de decisões já .autorisadas aos respecti­
vos chefes, administradores, dircctores ou gerentes, sempre
que a totalidade dos mesmos socios puder de facto ser prévia­
mente consultada, é indispensável que o seja, eque unanime­
mente si pronuncie para que todos llic fiquem sujeitos.
E’ isto necessário em taes sociedades, porque, comelTeito,
tendo nella todos os membros posição e direitos ignaes^ não
havendo uo seu seio superiores nem subdilos no rigor d’estes
termos, não ba razão juridica, salvo compromisso expresso a
280
tal respeito, paca que a vontade de alguns, mesmo em maioria,
prevaleça sobre a dos mais e contra estes. Tal imposição seria
uma violência, ainda quando não fosso sinão contra um só
destes. .,
Dir-se-lia que o voto unico deste ou de alguns poucos po­
de ser caprichoso, desarrazoado, c prejudicial d sociedade?
Mas do seu numero total fazem parto quasquer divergentes da
maioria, tão bom é o seu direito como o de qualquer desta, e
tão interessados são ou devem suppòr-se esses como quasquer
dos mais no regular andamento dos negocios sociaes, e na con- .
sccução de seu fim commuai. Ora desde que assim é, e que a
opinião dos poucos cuja legitimidade e competência funda-se
no mesmo titulo que a dos mais, acha-se com esta em desaccôr-
do, sob que fundamento ou principio poderá ser ella forçada d
subordinar-se á destes ? Asimples superioridade material nu­
mérica não é de certo suffieiente para isso.
li tanto mais isto procede, quanto é liquido que o voto de
qualquer maioria nem sempre é realrnenle a expressão, da ju s­
tiça, da verdade, ou do bom senso ; pelo que si elle é acceito
por estipulação expressa ou nos casos em que é possivel em
certas especies de sociedade, não se segue que deva ser impos­
to em todos os casos e até n’aquellus sociedades em que se pô­
de de facto ou se deve, de Direito, resolver os negocios sociaes
por aecórdo unanime de seus membros.
Mas, em ultima analyse, a doutrina que temos sustentado
não significa propriamente que nos casos figurados fique a so­
ciedade iuhibida de deliberar, e sim apenas que se deve enhão
reconhecer ao menos á mihoria vencida a faculdade de retirar-
se delia com o seu direito salvo a todas as vantagens que justa-
meute lhe serão devidas.
Entretanto, como nas sociedades de prazo fixo aacceilação
deste equivale á uma renuncia expressa daquella faculdade du­
rante o mesmo, comprehende-se que este direito não póde ca­
ber senão aos membros de uma sociedade cujo tempo de dura­
ção seja indeterminado, como dissemos.
.Alérn do poder de estabelecer suas leis ou regras, deve to­
da »sociedade ter o de dar-lhes execução ou de fazel-as obser­
var ; em qualquer d’ellas é indispensável a instituição d’esse
poder, que na sociedade civil ou Estado correspondente ao po­
der excculivo, e que não póde deixar de ser em qualquer, como
n’esla, confiado a algum ou alguns de seus membros, com quan­
to na sua origem esse poder compita á totalidade d’elles, como
a soberania política pertence, de Direito, ao povo ou a nação.
Nas sociedades particulares esse poder é comeüido, com

I
281
effeilo, á uma Direção ou Gerencia individual ou collectiva,
que as representa, obra em seu nome, c as dirige. •
O simples facto de confiar-se tal poderá um ou mais mem­
bros de uma sociedade, diz-nos com razão o Compendio no seu
158, não torna a mesma desigual: porque por essa concessão,
c nos termos em que deve ella ser feita, não se confere áquelles
o que se pode chamar propriamente império■ Assim é real­
mente desde que esse poder deve ser por áquelles exercido como
uma simples delegação em vista do interesse eomrnum, do mo­
do e dentro dos limites que lhe devem ter sido assignados por
accôrdo de todos, e sob a suaimmediata inspecção.
A própria sociedade civil ou listado onde isto em grande
parle não passa de uma ficção legal, não é na sua essencia urna
sociedade desigual, quando os seus poderes públicos são expres­
samente declarados delegações da Nação, c pelo meebanismo de
sua organisação e funeções, ao menos cm algum sentido e até
certo ponto, se imprime de facto esse caracter no seu exercido.
Nesta sociedade é certamente muito mais difficil, do que
em qualquer outra pouco numerosa e do fim particular, fazer-
se eiíecliva a igualdade legal dc seus membros, ou dos direitos
sociaes, quando os encarregados daquellc poder abusam d elle
ou quando algum ou alguns de seus membros o usurpam, alas
não é menos certo que ern taes casos, e sobre tudo nelles, os
membros de qualquer sociedade em que isso aconteça, tem o di­
reito decbamal-osa estrictascontas; nas sociedades particula­
res pelos meios que o Direito e o Estado por seus tribunaes lhes
fornecem : e neste, na insufficiencia de outros menos desastro­
sos, até pela revolução, ultima ralio dos povos opprimidos con­
tra os seus tyrannos. , , .
Entendem alinrns autbores (29), que do mesmo modo que a
toda sociedade competem poderes que tem seus símiles nos
poderes legilativo c executivo do Estado ou sociedade civil, tem
lambem qualquer sociedade um poder semelhante ao judiciai m;
c fazem-no consistir em uma faculdade ou competência da mes-
nia para lixar os direitos e obrigações dos respectivos soeios
nas suas relações privadas, que si não inimediata ao menos rne-
diatamente interessem ao lim social. Mas esta idea nos pare­
ce demasiadamente subtil, e o simile que ella estabelece muito
forçado para podermos aeceilal-o, e alé para com elle nos oo-
cuparinos mais detidamente.

Hemi Joullroi: Crttcnhimr de Df"U V i i mel, pafi. áO j* 170.


36 F# «.
282
Oconjuncto d’esses diversos poderes sociacs de que temos
tratado, e entre osquaes no Estado sobrcsahe o executivo pela
sua unidade, e continuidade, variedade e extensão de sua com­
petência, constituem nelle o império, e seu símile em qualquer
optrasociedade ; e desse império falta-nos o Compendio nos
seus paragraphes 102 e seguintes, accrescentando neste, que se
chama imperante a pessoa physicaou mofai a quem o mesmo
compele. v
Ao Estado é o império a expressão da soberania nacional,
e encarna-se, por assim dizer-se,na entidade individual ou eol-
Icctiva aquem o seu exercício é condado pela respectiva consti­
tuição; e nas niais sociedades é um attributo de seus respectivos
chefes, directores, ou gerentes, também individuaesou collec­
tives, constituídos taes lambem por modo analogo, quando o
não são pela propria natureza como na familia. Maso nome
de impernnte se applica propriamente ao chefe do Estado, eso­
mente quando elle é unico. e investido de certas prérogatives
especiaes, como os imperadores, reis, ou principes reinantes
nos Estados que se regem pela forma monarehica. Salva, po­
rém, a propriedade de tal denominação, é incontestável que não
ha império mais bem caracterisado, riem mais legitimo do que
esse a que alliulc o Compendio no final do seu citado paragra­
dho, isto é, o dos paeS sobre os filhos na sociedade familiar.
Diz-nos ainda ahi o mesmo Compendio, que a sociedade
onde ba imperante é desigual, porque não póde haver impe-
ranle sem súbditos. Mas já acima lizemos ver, que o império
no rigor do termo, c portanto a desigualdade social que elle
determina, dá-se unicamente quando a autoridade daquelle ou
duquel les que governam a sociedade, llics é propria por um ti­
tulo pessoal, de facto por usurpação, ou de Direito pela nature­
za da mesma sociedade. Pois que si tal autoridade se deriva
de um accòrdo voluntário expresso ou presumido dos prnprios
soei os, tal império não basta para desigualar na sua essencia a
' condicção dos mesmos nu sociedade e a respeito daquellcs, em­
bora não lhes quadre menos, por isso, nem rçalmente se lhes
recuse nu sociedade civil ou Estado o titulo de imperatiles. Is­
to mesmo resulta até do proprio modo porque se exprimio o
Compendio no final de seu puragrúpho 158, como a pouco vi­
mos.
Por conseguinte não só será, em rigor, igual a sociedade
civil ou Estado que se reja pela forma representativa, mas tam­
bém toda c qualquer outra dirigida ou administrada, mesmo
com amplos poderes, por um ou mais de seus membros por ac­
corde e cm nome de todos. Abhsubsiste, em lodo o easó, a
285
igualdade de Direito, si não sc dá a de facto cm lodos os senti­
dos ; ao passo ijne o Estado quando governado por uni déspo­
ta. e a familia em todo o caso, sáo verdadeiras sociedades desi­
guacs, com a dilferença. ipie no primeiro o império é iilegilimo
e a desigualdade social uma violência, porque fundani-sc no
abusa « na fòrça ; eque na segunda quer a desigualdade, quer
o império são justos, porque tal é pela natureza a lei suprema
da sociedade familiar.
A familia é, com eifeito, o lypo das sociedades desiguacs
por natureza, como o Estado legitimamente constituído, o ú das
desiguacs por convenção. .
O que nos diz o Compendio nos seus paragraplios 163 a
165, não passa ainda de repetição das mesmas ideas já por elle
c por nós precedentumciUe expendidas. Reduzem-se esses di­
versos paragraphe», a demonstrar-nos que o imperanle, isto ó,
aquelle ou aquellcs a quem em qualquer sociedade compele o
poder de derigil-a, tem o direito de estabelecer as leis ou re­
, gras para isso necessárias, c tanto as do caracter permameute,
como as de occasião, ou que as circumslancias occurrentes exi­
jam ; o de as fazer cumprir ou executar ; o de administrar, cm
geral, os seus ncgocíos, e velar sobre elles para que a sociedade
ultinja o seu fim, e não se desvie dos meios adopbidos.
A esta ultima attribuição dá o Compendio especial mente n
nome de direito de inspecçào do imperante, querendo talvez,
sem muita razão, fazer delia um ramo aparte do poder execu­
tivo na sociedade política; segundo as ideas de seu aullior em
um de seus Compêndios de Ifireilo Publico.
O mais queo mesmo Compendio accrescenta no seu para­
graphe 166 acerca do império, não tem lambem grande im­
portância, qüér pratica, quer théories. 1’oueo interessa real­
mente a demonstração de ser elle um direito social, affim ali-
vo e exclusivo, depois do que temos exposto sobre o seu tunda—
mento e caracteres nas diversas especies dc sociedade em que
elle se conceba. • . ,
Pode se mesmo pôr em duvida a propriedade de algumas
d’essas qualificações que o Compendio attribue áquelle.
Assim, O império será um direito social, si por social se
entender qualquer poder que se exerça em uma sociedade ; não
o será, porém, si por social se entender mais restrictamenh o
poder que se derive da vontade d’esla, c segundo ella se,-)ar -a.
N’este sentido não é realmente um direito social o im po. >s
paes sobre os filhos na familia. nem o do déspota no Estado,
isto é, não o serão exactamente os impérios mais bem caracte-
risados, um de Direito, e o outro de facto.
284
Quanto a ser o mesmo império um direito nflirmalivo «por­
que é o poder de dirigir a sociedade aseu tini.» diremos que com
quanto esta razão seja verdadeira, não vemos relação intima
entre ella e aquella qualificação attribuida ao império, nem a
utilidade d’esta.
E finalmente quanto a ser aquelle um direito exclusivo,
" porque dous impérios cm uma mesma sociedade se destrui­
ram, » diremos também que só é verdadeira esta proposição, si
por império se entende o poder social cm abstracto, ou á sua
totalidade concreta em cada uma de diversas entidades; si po­
rém quer-se dar a entender por eile, que em qualquer socieda­
de o império não póde ser dividido entre entidades sociaes dif­
ferentes, cada urna d’ellas de algum modo independentes, e im-
perantes no sentido mais geral d’esta palavra, então não c aquel­
la proposição exacta. Protestam em contrario a organisaçào
política dos Estados modernos : na familia ta autoridade com-
murn dos dous conjuges; e nas mais especies, de sociedade,
ao menos a possibilidade de uma organisação é regimen até
certo ponto analogos.

/
LIGÇJÃO Z L I I I
l ‘ i ■

§§ 1G7 — 1G9

• Dos limites do império.— Direitos sociaes externos. — Modos


porque acabam as sociedades

Todo o império em qualquer sociedade deve ter limites,


corno nos diz o Compendio no seu § IG7. lillo não póde, com
effeilo, deixar de ser limitado, já c antes de tudo pelos proprios
limites das faculdades humanas, e esses em caso nenhum pú-
dem ser transpostos, já pela natureza e fins da sociedade res­
pectiva. os quaes ainda quando não sejam expressamente de­
terminados no pacto social, nem por isso são menos reaes nem
têm menos vigor ; e já fmalmente por outros mais particulares
que iTaquellc pacto devem ser positivamente declarados.
São estes limites convencionaes os que-pela soa precisão
mais claramente determinam a legitima extensão do poder so­
cial supremo ou director de qualquer sociedade ; são esses os
que mais importa á esta fazer respeitar, e para cujas violações
deve o pacto respectivo ler estabelecido meios cflicazes de pie-
venir oo reprimir; são esses, em sumiria, os que cm prejuízo da
dignidade e do bem ser commum social ultrapassam de facto
ou menosprezam os déspotas na sociedade civil, e nas mais os
directores, administradores ou gerentes de má lé. Os de pri­
meira espeeieque indicamos,escapam, com effeilo,a toda apre­
ciação jurídica, porque as suas transgressões são realmente
impossíveis; e os da segunda, por demasiadamente vagos c fá­
ceis de illudir-se quando deixados nas regiões da pura ideali­
dade, devem ser efféctivamente convertidos nos da , ultima
classe, reduzidos a limites positivos, c stí assim participam de
de sua efficacia e garantia. ...........................
Tratando d’esta espeeie dc limites do imperto ou do pouei
social, com relação a sociedade civil e ás mais, não os appltca-
inos particidarmcnte á sociedade familiar; e a razão e que. com
28G
cfteilo, ainda por este lado, a Parnitia destaca-se dc todas as
mais sociedades. O império nu poder dos paes sobre os filhos
não tem realmente limites d'esta ordem ; elle é absoluto dentro
dos que lhe impõe directbmente a natureza ; não lia ahi outro
acima d’elle ; e nem o conjunclo de seus diversos membros tem
competência, fluér para .reslringil-os, quer para ampliai bs.
O pae de familia no lar domestico faz c desfaz a lei sem a mi-
nimainterferencia de quaesquer interessados no manejo ou di­
recção dos negocios sociaes. Os únicos limites do seu poder
são os que impostos pela natureza, como acabamos de dizer,
a lei positiva do Estado obriga os paes a respeitar, quando para
persuadil-os a isso não bastem a ternura e o amor paternos.
Os direitos e obrigações sociaes, de que ate aqui temos tra­
tado, são direitos c obrigações infernas de toda sociedade, ou
especialmente d’aquellas a que também de um modo especial
nos temos referido ; direitos e obrigações, que vigoram ou ac-
tuam unicamente entre os proprios socios de cada uma d’ellas.
Mas nenhuma sociedade existe isolada ou vive por si só ;
qualquer d’ellas existe e funcciona em contacto immédiate
c necessário, jd com os indivíduos que de toda parte a rodeiam,
já com outras sociedades da mesma ou diversa especie que a seu
lado prosigam o seu fim, e já finalmento com Ioda a sociedade
particular no seio da sociedade civil ou Estado ; e d’ahi urna
dependenciae relações jurídicas reciprocas mais ou menos es­
treitas ou importantes entre essas differentes entidades.
Os meios ou condições que essas relações criam ou cuja
necessidade cilas suppõem, constituem a somma dos direitos
que a cada urna pertencem, e que quaesquer indivíduos ou nutras
sociedades fóra d’ella existentes são obrigados a reconhecer,
a respeitar, e cujo caracter, extensão, e e.líeitos são mais ou
menos ariaíogos aos dos direitos individuues .correspondentes.
Isto é, Ioda sociedade considerada em sua unidade e respecti-
vamente a quaesquer outras entidades exteriores, constitue uma
pessoa moral, á qual como nos diz o Compendio no § 108, de­
vem compelir os mesmos direitos, quér absolutos quér liypo-
theticos do homem, desde que, como diz o Sr. Abreus, « em­
bora as sociedades pela sua formação sejam aetos da vontade
d’este, todavia os fins a que ellas se destinant estão longe de
ser meras creações d’essa vontade, pois que se fundam nas
proprias exigências da natureza humana.» >
Em ultima analyse em relação áquelles, que-não são seus
membros, e considerada d’aquclle modo a que acabamos de al-
ludir, urna sociedade qualquer tem a mesma capacidade juri-
287
dica, ou pode 1er os mesmos direitos do indivíduo, ao menos
tanto quanto, e do modo pelo qual, estes lhe forem applicaveis.
Entre as relações exteriores das sociedades, e os direitos
e obrigações que d’elles se derivam, sobresabem as quo se dão
de Estado a Estado, c que formam o objccto do Direito Inter­
nacional ; mas não são menos reaes os que de uma maneira
anologa existem ou dão-se entre as mais sociedades de qual­
quer especie para com outras ou para com quaesquer indiví­
duos, nem menos líquidos os direitos e obrigações reciprocas
que das mesmas Ibe resultam.
Vejamos, pois, quaes são ou cm que consistem, em geral,
para qualquer sociedade cs principaes d’esses seus direitos ex­
ternos.
Antes de tudo, qualquer sociedade tem o direito do existir,
e de ser reconhecida n tratada corno tal, c protestar a sua eco­
nomia ou embaraçar a sua acção por meios arbitrários, e com­
moner uma violência não só contra sua personalidade moral
collecliva, mas também contra cada um de seus membros, cujos
interesses legítimos serão oflendidos.
Em taos casos compete incontestavelmente áquella, como
a qualquer indivíduo atacado em sua pessoa ou direitos, defen-
■der-se até por meio do emprego da força, si isto fòr necessá­
rio, e aIé onde o uso d’esse meio fòr apto para tal lint, segundo
a lei jurídica.
Énbe-lhc do mesmo modo exigir a sen ofiensor as satisfa­
ções ou reparações, que justamente lho serão devidas pelos dam­
nos ou prejuízos, que lhe tenha feito soffrer.
A npplicação d’estes princípios é ainda princlpalmentc
evidente nas relações de Estado a Estado ; nas quaes, por des­
graça do grnero humano, é do mesmo modo conhecido o meio,
que estes de ordinário reputam o único ellicaz, ou que ns na­
ções fortes preferem quasi sempre empregar contra as fracas,
cm vez rln outros ruais racinnaes c menos desastrosos, para
conseguirem aquelles fins ou exigências,ern quem tiilas vezes não
tèrn de seu lado a razão nem a justiça.
O que acabamos de dizer acerca do direito de existência
ou conservação social, e da sua defesa, applica-.se da mesma
maneira ao direito de independência de qualquer sociedade, ao
de manter cada uma a sua dignidade, de promover por todos
os meios leailimos o seu bem sere progresso, de praticar livre­
mente todas as acções licitas a isso conducentes, ou á consecu­
ção de seu ílin ; e compelem-lhe especialmente os diretos mais
práticos, c de mais facil e frequente uso para qualquer d cilas,
e sobre tudo para algumas, de-adquirir a propriedade do qual-
288
quer cspecie, de dispôr d’ella, c.de contractai’ coin outros ou
com quaesqiier indivíduos, assim como todos os mais, que
(l’estes particularmente decorram, ou n'elles se contém.
A sua propriedade legitimamente adquirida é tão inviolá­
vel como a individual ;e as suas transacções ou aclos sobre
a mesma, assim como em relação a quacsquer outros direitos
seus, praticados segundo as regras de Direito, obrigam a qual­
quer pessoa individual, ou entidade collective para com ella,
e reciprocamente do mesmo modo e com o mesmo vigor que
qualquer pacto entre os respectivos pacluanles.
Sociedades póde haver, que se excluam umas as outras,
ou cujos fins, direitos e obrigações, sejam simultaneamente in­
compatíveis para os mesmos socios. N’estes casos é claro que
um indivíduo não pode ser membro de ambas. Si, porém, em­
bora não se excluindo d’essas sociedades de que alguém é ao
mesmo tempo socio, vierem a achar-se em antagonismo em al­
gum ponto ou sobre tal ou tal interesse, cumpre áquelle na
qualidade de membro de uma e de outra sujeitar-se ás conse­
quências ou condições que respeclivamente a cada uma possam
d’ahi resultar para aquelles que a compõem.
Assim si urna sociedade, de que fizéssemos parte, fosse con-
demnada a pagar á outra a que também pcrtencessemos, uma
divida ou indemnisação qualquer, em uma leriamos de contri­
buir para esta, e na outra de receber a quota da mesma que
houvesse de caber-nos.
Qualquer sociedade nas suas relações exteriores é repre­
sentada por aquelle ou aquelles a quem é confiada a sua direc­
ção ; a elles incumbe a tarefa de cumprir ou fazer cumprir as
obrigações que as mesmas tenham contraindo, ou effectives ns
direitos que a respeito de outros lhes compilam. Na sociedade
politica é encarregado d’clla o seu governo, na,sociedade fami­
liar o pae ; e nas mais os respectivos direclorcs ou gerentes.
Qualquer sociedade no seu todo não poderia de certo figurar
convenientemente cm tal mister ou funeção. Fallar-lhes-hia
a unidade de pensamento e a promptidão e energia de acção
para isso indispensáveis, além da impossibilidade de facto de
uma tal representação cm muitos casos, e especialmentc a res­
peito dc certas sociedades.
Resta-nos ver, porque modos podem acabar as sociedades.
Acceitamos em geral como taes os que o Compendio nos
indica no seu § ÍGÍ), ultimo d’esta sua segunda parte, e sobre os
quaes nos dá alguns desenvolvimentos na nota respectiva -, mas
temos também algumas observações a fazer acerca dos mes­
mo»', e de algumas de suas idéas contidas n’esta.
289
Em primeiro lugar diz-nos o Compendio que a sociedade
acaba pelo consentimento commurn. E' claro, porém, que este
modo de terminar uma sociedade não c applicavol indhstincta-
inenle a todas. Não pódern com effeilo acabar d’esse modo
aquellas sociedades, cuja formação ou cuja subsistência, depois
delias formadas, não c de lodo livre ou dependente, corno
sejam entre os de primeira especie, a sociedade civil, e entre
os de segunda a familiar. IVaquella é dilïleil, si não impossí­
vel, conceber-se o consentimento commurn para sua dissolução;
c n’esta é elle de todo inadmissível no mesmo sentido.
Em segundo lugar, si acabam as sociedades, como nos diz
ainda o Compendio, pela consecução plena do fim para o qual
se formaram, devemos com tudo ponderar que isto só se veri­
fica a respeito d’aquellas cujo fim social é de tal natureza que
de uma vez, ou um um tempo dado, se pódc ou deve conseguir
de um modo completo.e definitivo. Taes sociedades n'aquelle
caso íicatn de facto sem razão dc ser, o devem-se reputar findas.
Mas, nem toda sociedade está n’estas condições ; algumas
lia cm que o fim social se obtem por uma série do resultados
successivos o indefinidos, que nunca se, podem considerar esgo­
tados por mais que Se os consiga a cada momento da existên­
cia il’aqueUas, taes como sejam a sociedade lamiliar, c sobre­
tudo a sociedade, civil. ,
Haveria antinomia cm dizer-se a respeito d estas que cilas
se acabam pela consecução plena de seus lins, quando o princi­
pal d’estes em cada unia, como condição dc conseguir-se os
mais. c cxae.tamenlc durar sempre, ou emquanto existam uquel-
les que os formam. .
Devem, sem duvida, acabar pelo lapso do tempo as socie­
dades a cuja duração foi no pacto social marcado uni prazo,
como tambein nos diz o Compendio, lí esta porem saber-se, si
cada membro de uma sociedade n’aqucllas condições tem o di­
reito, quando no pacto respectivo não foi isto declarado expres­
samente. de retirar-se d’ella em qualquer tempo, se não lho
convier continuar na mesma, questão dc que tiata lambem
o Compendio na nota ao parngrapho, que analysamos.
Km geral, em taes sociedades cada socio mio tem esse di­
reito e nquelle que se arrogue o arbítrio de proceder d'cste
modo, se deve em todo caso reputar preso ãs obrigações sociaes
respectivas por todo tempo da duração da sociedade, que aban­
dona. A simples circmnslaneia de ter esse soem satisfeito ate
então aquellas obrigações, não o isenta de tal responsai», idade ;
aliás, qualquer por sua deliberação ..nica poder » W J “ r
a todos os mais, e scr causa por si só da dissolução da „ocied j te.
37 r.
290
A acceilação do prazo equivale, como já vimos, a urna renuncia
expressa da faculdade de rclirar-se d’aquella antes d'elle cou-
cluido.
Nas sociedades, porém, em que tal prazo não foi determi­
nado, ou cujo fim consiste em resultados successives e indefi­
nidos, uma vez que não seja d’aquellas em que o vinculo social,
depois d’ellas celebradas, é necessariamente imposto pela natu­
reza, não tem applicaçào a regra, que acabamos de estabelecer.
D’ellas é licito a qualquer socio retirar-se quando queira,
satisfeitos até então os seus compromissos, e respeitados os di­
reitos dos niais.
O Sr. Alli ons applica ainda especialmente a regra acima
estabelecida ás sociedades, cujos tins sejam paramente intollec-
Utaes ou moraes, porque diz elle, com razão, » ninguém póde
ser constrangido a concorrer com actos d’essa especie para um
fim que não julgue mais ntil ou efficaz, » ou antes é isso, por­
que reaimente é impossível fazer etlectivas obrigações de tal
natureza.
Pela morte de todos os membros de uma sociedade, esta
naturalmente acabará ; mas concebe-se, que por convenção ex­
pressa, e tal seja o sen fim, possa a mesma continuar entre cs
seus legítimos successorcs, sobre todo si, como é também na­
tural, à morte de todos não fòr simultânea, e si pela de cada
um forem entrando successivamentc em seu lugar algum da­
quelles. Em taes casos, embora o pessoal d’essa sociedade se
altere, cila continuará a ser a mesma.
Em todo caso a morte isolada de qualquer socio, e em
qualquer especie de sociedade, não é uma razão para que cila
acabe entre os mais -, essa circmnstancia é até indifférente para
a sua continuação. Não só dá-se isto em relação á sociedade
civil e á familiar, mas ainda cm geral nas sociedades embora
particulares que se compõem de numero considerável de mem­
bros, ou que os admitlern indefinidamente, ç com especialidade
em algumas commcrciacs ou industries, cm que os socio? fi­
guram mais pelos titiilos representativos de seus capilaes de.
que são portadores nas mesmas, do que pelas suas pessoas ou
individualidades.
Seja porém, como fòr, o certo c que, si nos casos que te­
mos figurado de retirada ou morte de algum socio a sociedade
acaba, acaba unicamente para os que morrem, ou retiram-se
da mesma.
CAPITULO li

Do imu-iTO soctvr, particular

L I G Gs à C Z L T T

§§ 1~0 — 173 (30)

Da família e de seu fundamento, o matrimonio; — definição


d'este; — swt caracter dc unidade ; — da pohjf/amia e
fiolyandria ; — condições da formação do matrimonio.

iVeste capitulo do sua segunda parle trata o Compendie


especialinr-nlo do Direito de família, o qual, como elle nos diz
no seu § 170, não# senfio o mesmo Direito geral da Sociedade
applícado áquetla : e consiste no complexo de regras pelas quaes
devem ser reguladas as relações jurídicas, que do matrimonio,
fundamento da sociedade matrimonial, resultam entre os diver-.
sus membros que a compõem, e são priueipaloiente os conju-'
ges uos lillios, quando os ha.
E’ certo, como nos diz ainda o mesmo Compendio no seu
§ 171, que, para conhecer-se os direitos e obrigações que se
originatn de qualquer sociedade particular, é mister determi­
nar-se bem o seu fim. Pelo que cumpre-nos verificar qual seja
o da sociedade matrimonial, u para isso devemos antes de tudo
definir o matrimonio, pelo qual cila sc constituo, e assignar
a sua verdadeira natureza c fim.

(ao) E lambem o S I7s.


292
No seu citado parngrapho define-nos o Compendio o ma­
trimonio >>uma união perpetua de duas pessoas de sexo diffe­
rente para a procreação e educação da próle.» Mas esta defi­
nição nos parece insufficiente. Ella não corresponde a toda
a realidade do destino da união conjugal, nem contempla todos
os caracteres que lhe attribucm a razão e a natureza humana.
Em qualquer sociedade o fim respectivo, para ser como tal
verdadeiramente considerado, deve entrar de um modo positivo
na intervenção d’aquelles que o formam ; mas, por via de regra,
não se contrahe o matrimonio com a intenção formal de ter fi­
lhos, decreal-os e educal-os. O amor e ternura dos paes para
estes só apparece quando elles sobrevém, e como consequên­
cias d’isso o interesse e solicitude paterna na sua criação e edu­
cação. Considerada « priori é esta uma tarefa que nada tem
de commoda ou que convide ao matrimonio, e para muitos será
até um motivo poderoso para evitai-o.
Comquanto, pois, a procreaçáo e educação da próle sejam
consequências naturaes, e encargos muito importantes do ma­
trimonio em que aquella realmente sobrevém, não pódem toda­
via ser consideradas como a sua razão ou fim, ou pelo menos
como o seu fim nnieo, ou mesmo principal. Isto é tanto mais
certo, quanto não deixa de ser tão completa como qualquer outra
a união matrimonial de que não nasçam filhos, ou mesmo
quando conlrahidaem condições de não os poder 1er. Si a pro-
creação e educação de uma próle fosse um fim essencial do ma­
trimonio, deveria o vinculo conjugal cessar quando os conjuges
a não tivessem, ou não pudessem mais tel-a, ou cila se achasse
de todo creada e educada.
Ahrens nos mostra de. um modo luminoso, que a sociedade
matrimonial não se limita com efléito a esses fins parciaes
e apoucados, que se lhe tem attribui lo, o que apenas por algum
lado incompleto abraçam as relações da família. O fim do ma­
trimonio, segundo elle, é múltiplo e variado ; destina-se a união
conjungál á satisfação moral de todas as necessidades quér
physicas, quér racionaes do homem, é um centro de vida e con­
dições para todas as aspirações e reclamos de sua intelligencia
e do seu coração; um sanctuario onde se cultivam todas as
relações já para com Deus, já para cóinsigo, e já para com
a humanidade. Não é uma simples approximaçâo corporal dos
conjuges e filhos, ou uma coramunhão de simples interesses
resultantes de sua convivência material ; é tuna união espiri­
tual, uma fusão, que por virtude do amor mutuo e natural dos
dous sexo3se deve operar entre os esposos, e d'estes communi-
Digitalizado pelo Projeto Memória Acadêmica da FDR UFPE
cnr-seá prole, pelo amor não menos intenso que a paternidade
engendra.
O fim, pois, do matrimonio não é propriamente esse cal­
culo ou desejo que llie assigna o Compendio na sua definição,
o com que se o amesquinlia desconhecendo-se o seu verdadeiro
e sublime principio o amor, e o seu mais importante caracter
que é o dc constituir entre os conjuges e a familia uma coin-
munlião em todos os sentidos.
O author acima citado accrescenlu, com razão, que o ma­
trimonio não se dirigo realmente, a nenhum objeclo particular
exclusivo; que elle abraça o corpo e o espirito, e comprcliende
na sua plenitude todas as faces da personalidade do hoínein.
O seu fim, é por assim dizer-se, ao mesmo tempo divino e hu­
mano, pessoal e social, sensual e espiritual, racional o moral.
Todas as relações de qualquer d’cslas especies tôm na fumilia
o seu altar c o seu culto.
Conseguintemente, em vez da definição e fim do matrimo­
nio que nos dá o Compendio, adoptarernus de preferencia a de
Ahrens, que o Sr. l’errer resume nos seguintes lermos, c. na
qual é assignalado o seu verdadeiro fim : a matrimonio ó a so­
ciedade, pela qual duas pessoas de sexo differente unem-se, não
só para procrearem e. eduevarem uma proie (si a houver), mas
ainda e principalmenle para estabelecerem entre si uma com-
munhào perpetua, physica c moral.
Não nos parece procedente a reflexão que faz o Compendio
na nota ao paragrapho de que tratamos, quando diz «que
a perfeição reciproca, o adjutorio mutuo, e a participação dos
commodos e incommodos da vida, não caracterisam bem o ma­
trimonio, porque púdem-se dar igualmente entre pessoas do
mesmo sexo.» Porquanto, si isto póde dar-se realmento lóra
da sociedade matrimonial, ú comludo sob outro principio ; e si
póde dar-se cm qualquer união social, n’aquella deec dar-se,
é da sua essencia, c com caracteres profimdamenle diversos.
Desde que á sociedade matrimonial ou á família falia qualquer
d’aquellas condições, perdem ellas Ioda asna importância e dig­
nidade, e tornam-se incapazes de conseguir fim algum racional
ou moral, seja qual fõr o que so lhe attribua. 0 proprio Di­
reito liomano, como sc vc de sua definição de matrimonio que
o mesmo Compendio ahi cita, assim o comprehendeu. Essa
definição approxima-se realm entcm aisquea sua,da do Abrens,
pela idea que exprime nas palavras individuam vila’ cousue-
tudinem continent, que applica á união conjugal.
As doutrinas do Compendio no seu § 17:!, não só são con­
formes ao que acabamos de expender acercada natureza c fins
do matrimonio, como até o são mais do que a própria noção
d’este que dc sua definição resulta, e ao fim que elle lhe attribue.
•Segundo o que temos dito a este respeito, é com eífeito,
evidente que a sociedade conjugal não póde deixar de ser entre
duas únicas pessoas. Ella não poderia realmente ter os carac­
teres, nem preencher os fins que lhes são proprios, sem essa
qualidade exclusiva que é o seu typo. Só mediante esta póde,
antes de tudo, nascer e conservar-se vivaz e intimo, perenne e.
tranquillo entre os conjuges, o amor que os deve unir, unico
capaz de fundil-os morahmmte em uma só entidade, e produ­
zir e fecundar todas essas relações que constituem a perfeição o
a sanclidade da família.
A polygumia e a polyandrie, ou a pluralidade dc mulhe­
res ou de maridos, cuja irracionalidade e perniciosos elfeilos o
Compendio nos demonstra, seriam realmente a perversão e a
ruina da sociedade conjugal : qualquer d’ellas prejudica a fa­
mília cm todos os sentidos, já pelo lado das relações que devem
existir entre os conjuges, já pelo das que devem haver e ser
cultivadas entre elles e os iilhos, ejá (inalmcnte, a outros mui­
tos e importantes respeitos.
Na polygamiaa rivalidade, natural e iníallivel entre esposas
diversas, proveniente das preferencias materiaes, a desigualda­
de da a (feição entre os paese os filhos de maternidade differen­
te, e d’estes entre si. converteriam o lar domestico em um ver­
dadeiro campo de discórdia e odios permanentes, e para os fi­
lhos sobre tudo, em um loco incessante do escândalos e mãos
exemplos ; quando a familia, o seu typo idéal, deve ser para
todos os seus membros um remanso de paz, de união, de amor
reciproco e de ventura
Além d’isso, e mais do que qualquer argumento que portes-
semos ainda produzir no sentido de mostrar a irracionalidade
e tristes resultados de semelhante instituição, o simples senso
intimo, eu dignidade natural ao homem, forrnálmenle a repel-
lem. > '
A propria historiados povos polygamílas nos confirma n’cs-
sa justa repugnância ; ella nos mostra a degradação e o alrazo
a que em lodosos tempos têm sido condemnados aquelles cm
que a mesmaé ndmittida. Com ella ainda nenhum conscguio
ultrapassar os acanhados limites da barbaria mais ou menos
caractcrisáda.
Onde a familia é convertida cm um meio de satisfazer ao
sensualismo de qualquer dos sexos, ou de ambos, òu cujo ca­
racter mais saliente é esse, tudo o mais reveste esse cunho de
brutalidade. A sociedade política que é sempre, mais ou me-
295
nos, o reflexo da sociedade domestica, participa lambem sem­
pre mais ou menos, das virtudes ou vieios d’csta. Onde a famí­
lia se fôrma sob o influxo predominante dos apetites carnaes, o
listado não póde deixar de ser tuna sociedade escrava dc pai­
xões ignóbeis. A Turquia onde, aliás, a polygamia é uma ins­
tituição religiosa, e moderada pela crença, é um exemplo elo­
quente do máximo da civilisaçáo ede moralidade, que póde ut-
tingir um povo sob tal regimen conjugal.
Quanto á polyandria, diremos que ella nem merece as
honras de uma discussão na scieneia. Tudo na natureza hu­
mana revolta sce protesta contra semelhante depravação. Iilla
não é só desnecessária para a procreaçüo, como nos diz o
Compendio na sua citada nota, mas até lhe é de todo contraria;
c nem é só opposla á boa educação dos filhos pela incerteza da
paternidade e por outras razões, mas ainda, e sobre tudo, o ol-
fensiva ao pudor c dignidade quc.r da mulher quér do homem.
A própria natureza mostra repelil-a pelo facto que a estatísti­
ca verifica do. numero pouco mais ou menos igual dos itulivi-
duos do uni o outro soxo <]uc luiscnn o morrein,c cin (juc in&is
ou menos permanen tumente sc mantém ;i populaç.io do globo
e de cada paiz Também a polyandria só se encontra entre os
povos que de todo desconhecem o caracter e a sublimidade do
matrimonio, e jazem no ultimo grdo de embrutecimento, laes
como os da Nova-Zelandia, ou da Catraria.
Demonstrado o fim da sociedade matrimonial, e alguns dos
seus principaes caracteres, vejamos quucs são as condições ju-
ridicas de sua formação. Como taes nos indica o Compendio
no seu § 173, as seguintes: — 1.»o consentimento valido dos
contraheiiks; — 2.” a possibilidade pbysiea da prestação;
e 3.“ que não haja impedimento entre aquelles. _
E’ certo, como nos diz o Compendio, que as comtirçues cs-
senciaes para a celebração valida do matrimonio são, em geral,
as mesmas que, se requerem para a de qualquer tacto. Mas na,
entretanto, algumas considerações a fazer-se sobre o modo pelo
qual o Compendio entende aqucllas que nos menciona, e espe-
ciaJmenle a segunda. .
() consentimento livre e reciproco dos pactuardes que e. in­
dispensável em lodos os pactos, para que estes sejam validos, o
é de uma maneira ainda mais particular para a formação oa
união conjugal, em razão de sua especial importânciao «ota«
tudo ao seu caracter de perpetuidade, de quef etio s t ata n ^ .
Ema união malrimoniãl forçada por qualquer rneio n.io so
é «ma gravíssima violência áqnellc (los conjuges que a ufosina
2%
seja obrigado, mas ainda, por via de regra, será a desgraça
de ambos e da respectiva família.
A não ser isso, pois, como uma reparação absolutamente
imprescindível, em certos casos excepcionaes, tal união jamais
se pódc considerar valida, segundo os princípios do Direito Na­
tural ainda quando as leis civis por quaesquer considerações
sociaes julguem conveniente mantel-a.
Em summa, e considerada ú priori a formação da socieda ­
de matrimonial, deve ser esta essencialmente livre; e em falta
do consentimento espontâneo, consciente e bem declarado dos
contrahentes, não deve ser a mesma celebrada. Esta é por
conseguinte, realmente a sua primeira e mais importante con­
dição.
Entretanto a necessidade d'esse consentimento expresso e
claro dos contrahentes, para a formação do matrimonio, não
importa a de uma promessa anterior solemne e em lórma de
contracto entre aquelles, cornpromettendo-se emtal sentido,
isto c, não importa a necessidade dos esponsaes propriamente
ditos, de que trata o Compendio no sen paragraphe 178, e que
aqui vem mais a proposito. Muito communs entre lodosos po­
vos nos passados tempos, e mesmo em alguns modernos até a
pouco, não estão elles mais nos costumes do presente século, e
dos povos mais adiantados, ondea frequentação facil dos se­
xos c as idéas de liberdade e franqueza que dominam Iodas as
relações e instituições sociaes, tem feito considerar taes com­
promissos como anaclmmicos, supérfluos c incommodos.
Mas não vemos, em todo o caso, nos esponsaes, esses
grandes perigos que lhe attribue o Compendio, em razão das
penas que n’elles podem ser estipuladas contra o noivo que falta
a promessa. Primeiramente, porque uma promessa reciproca
e solemue de casamento se pôde conceber sem aquellas, e por
mais formal e solemne que elle seja, não deve em caso algum
importar necessariamente para qualquer dos promitlentes a
obrigação de realisal-a ; e em segundo lugar, porque mesmo
quando entre aquelles se tenha convencionado qualquer pena,
como a perda das arrhas dadas, ou outras semelhantes, não é
tão grande o mal para aquelle que a isso se sujeitou podendo-o,
c nem é muito diliicil á lei civil regular segundo a equidade o
modo, as condições e os casos, em que seja moderada n até
dispensada a execução de taes compromissos.
Seja, porem, como fòr, tenham ou não os esponsaes o in­
conveniente ou perigo de prejudicar a liberdade do matrimonio,
ou quaesquer outros, não acccitamos ainda assim a proposição
do Compendio na parte final da nota do seu citado paragraphe,
.297

de que os mesmos esponsacs serão mais admissíveis quando se


admitta o divorcio, do que no caso contrario.
Seria sempre de pessimás consequências, c irracional, for­
çar-se a união conjugal, unicamente pela razão de ser possível
rompel-a posteriormente. O divorcio, segundo os que o sus­
tentam, como veremos, é uma triste necessidade superveniente,
um remedio aos casamentos infelizes, mas nunca póde ser um
motivo legitimo para celebral-os em considerações de facil rom­
pimento.

38 f.
LIO O A C Z L V

. § § 1 7 3 — 174

Continuação: — condições da formação do matrimonio; — í/ í-


rcitos c obrigações reciprocas principaes dos conjuc/cs:—
I." quanto ás suas pessoas.

Como vimos na licção precedente o Compendio, no seu


§ 173, indica em segundo lugar entre as condições para a for­
mação do matrimonio, a possibilidade pliysica da prestação do
iim, o qual conforme a sua doutrina a tal respeito, consiste na
procreação e educação da próle.
Mas quando mesmo assim fosse, c principalmente não
o sendo, como já o demonstrámos, aquella possibilidade, não é
realmente uma condição indispensável para a celebração, e me­
nos ainda para a validade da união conjugal depois de cele-
• brada. '
Com effeito, não só é permiltido, quér pelo Direito Natu­
ral, quer pelo Ci\ il, o casamento entre pessoas cie idade em que
a procreação seja impossível, mas alé entre pessoas que embora
em idade própria para isso, sejam por qualquer motivo reco­
nhecidamente estéreis, ou mesmo incapazes de consumar o ma­
trimonio. O que se requer apenas em ta es casos, é que laes
circumstancias dando-se em um dos contractantes não sejam
ignoradas do outro. Si este conhecendo- as livre e positivamenle
as acceita, o casamento se celebra, e tem o mesmo vigor que
qualquer oulro.
Si quando aquella impossibilidade pliysicadcum foi occulla
a outro, ou este a ignorava, é ou deve ser nullo o casamento con-
290 '
trahiilo, é claro que esta mdlidade não llio vem então propria­
mente da impoRsibiliduda pliysica da prestação d'aquelle fim
matrimonial, mas vem, aibda em tal caso, da t'alla de consen­
timento livre do contrahente illudido, pois que não ha liberdade
onde não ba consciência do acto quo se pratica, ou das razões
que o determinam,
A possibilidade, pois, que verdadeiramente se requer para
a celebração do matrimonio, não é d’aquella espccie, c sim
a jurídica ou moral d’aquelle consentimento, o qual falta, por
exemplo no casamento ajustado por menores, ou por outros,
que segundo o Direito são considerados, cm igual condição, on
incapazes de prestal-o vfilidamentc em qualquer contracto.
Mas ainda assim, cumpre-nos observar, que si esta impos­
sibilidade rcaliiiente impede a celebração de taes casamentos, ■
comíiido não tem em relação nos mesmos depois de rcalisados
apezard’olla, o mesmo effeito que por Direito si lhe attribue em
qualquer outro pacto. O casamento eíTectivameute celebrado
por um menor não deixa por isso de ser valido. A lei civil
•proliihindo-o em geral, cm termos explícitos, comtiido quando
elle, não obstante a sua prohibição, se réalisa, não o fulmina
de nullidade, limila-sc a suspender os seus elTeitos jurídicos so­
bretudo em relação aos bens do menor, alé a epoeha dc sua
maioridade legal.
A razão desta dilTercnça no regimeu do paclo matrimo­
nial em relação aos mais, é obvia, c vem a ser que no matri­
monio de facto consumado ou feito de qualquer modo, lia sem­
pre alguma cousa que não é mais possivel restabelecer no ante­
. rior estado, e que elle não pode portanto* desfazer-se sem
grande e irremediável prejuízo de algum dos contractantes, si-
não de ambos, e da sociedade em geral.
iVa classe das impossibilidades jurídicas ou moraes da for­
mação do matrimonio, entram ainda os impedimentos que em
terceiro lugar menciona o Compendio no seu já citado paragra­
phe, e esses não só impedem, mas lambem annullnm «quelle ;
taes são : — I o facto de já ser casado algum dos eontralien-
tes; — 2.° o de serem elles parentes consanguíneos dentro,de
certo gráo ; não fallando em um cento de outros dirimentes ou
apenas jmpedientes conhecidos no Direito Canonico, ou antes
' por elle adrede creados, como uma fonte abundante de renda
Eedesiastica, pelas respectivas dispensas. _
A primeira d’âquollas duas espeeies de impedimentos indi­
cados pelo Compendio, resultada propria natureza do matri­
monio, segundo o.temos deiinido, ou do seu caracter do intlis- .
solubilidade, sinflo no sentido rigoroso em que a tomam us

II . , ‘
500

antagonistas do divorcio crh todo e qualquer caso, ao menos


n’aquelle que depois lhe attribuiremos. D’ahi se inferirá lam­
bem naturalmentc a justificação de tàl impedimento. Os da se­
gunda classe fundam-se igualmente em razões muito pondero­
sas, que passamos a expõr. •
E’ com effeito, e deve ser considerada jurídica e moral­
mente impossível a união matrimonial entre ascendentes c des­
cendentes em qualquer grão. e na linha collaleral, ao menos
entre os mais proximos parentes, como sejam os irmãos.
O pae ama, sem duvida, e mais do que quem quer que
seja, a sua filha, a mãe o seu filho, c vice-versa; mas não com
esse amor especial que dimana da diíTerença dos sexos, base
essencial c primeira da familia. Fundar-se, pois, o matrimo­
nio n’essc aílecto paternal ou materno, o que ha de mais puro
e de mais venerando nas relações d ep aesa (ilhos,mas também,
e por isso mesmo, o que ha de mais incompatível com o amor
conjugal e com as suas consequências, seria não comprehender
tal união, profanai-a, e desvirtuar de todo as relações naturaes
dos conjuges e da familia. •
E tão verdade é isto, que realmente ninguém ha, homem
ou mulher, a não ser um ente depravado, de indole equipará­
vel á dos brutos, e destituído de todo o senso moral, a quem tal
especie de uniões deixe de inspirar invencível repugnância.
Povo nenhum medianamente culto, ou que lenha tido uma no­
ção mais ou menos sã do. matrimonio e das relações naturaes
da familia, jámais as consagrou nas suas leis, ou as admitlio nos
seus costumes.
Pouco mais-ou menos o mesmo se póde dizer do casamento
entre irmãos •, e si alguns povos nos tempos primitivos realmente
o praticaram, por considerações que não devemos agora apre­
ciar, é certo que tiveram de ceder por dm aos dictames da razão
esclarecida, e a sentimentos mais conformes á natureza quér
do homem, quér da familia.
Nem pódem ser invocadas em prol da legitimidade quér
d esta, quér sobretudo d’aquella prim.cira especie de consorcius
monstruosos, a promiscuidade dos sexos e as uniões fortuitas
incestuosas que caracterisam os costumes de algumas tribus ou
povos selvagens de certas partes da África central ou cia Poly­
nesia. Causa ou effeito de seu estado ele embrutecimento, o que
é certo é que este e aquelles hábitos repugnantes ligam-sc e ex­
plicam-se intima e reciprocamente, e só pódem inspirar horror
ou commiseração.
Contra semelhantes uniões consanguíneas, em geral, ac-
crescem as razões que o Compendio deduz da própria physio-
501

logia, a qnal por uma cxperiencia longa c até vulgar, não dis­
tante a opinião ullimamcnte emittida por um aulhor- de nola
(31) mostra-nos que ellas dão ordinariamente em resultado uma
próle bastarda, e o progressivo enfesamento da cspecie. .
l)c tudo o que até aqui temos expendido acerca da forma­
ção da sociedade matrimonial, vè-se que realmente são, em
geral, applicaveis á esta as regras fundamentacs de todo o pacto,
salvo, quanto á algumas, certas modificações proprias da espe­
, cialidade d’aque.Uà união ; e serve isto para confirmar o que nos
‘ diz o Compendio na nota segunda ao paragrapbo do que nos
occupamos, isto é, que o'matrimonio é, com effeito, um con­
tracto. Ahrens diz que elle reveste realmente a fôrma de uma
convenção, porque funda-se no amor reciproco dos esposos,
que só estes pódem declarar, e com elle a sua vontade de uni­
rem-se, e que só mediante esta declaração mutua c espontânea,
e em virtude d'ella, póde a sua união real e validamenlc elfec-
tuar-se.
A especialidade ou differença d’este contracto cm relação
aos mais, está em que, como já lemos dito, em qualquer outro
tanto depende do mutuo consenso dos contractantes a sua for­
mação corno o seu acabamento, ao passo que a subsistência
(l aquelle depois de formado é uma consequência neccssaria de
sua propria celebração, e independente da liberdade dos que
o pontrabem ; e d’alii também as dillérenças que temos notado
em algumas de suas regras.
Nascem do matrimonio certas obrigações e direitos corre­
lativos e fundamentaes entre os conjuges, já concernentes ás
suas pessoas, já aos seus bens, c já finalmente á sua autoridade
na familiu. ,1
Entre essas obrigações dos conjuges relativas as suas pes­
soas. sobresalicm as que o Compendio indica no seu § 174
a saber: a de sua mutua fidelidade, o a de sua cohabitaçao.
Sendo o amor essencialmente exclusivo, sendo o fundamento
do matrimonio, e da ramifia, o laço que liga intimamenU os
dous conjuges n’essa unidade sublime, que segundo a expressão

n i l Tnniniard. A n l r o p o l o g i e . pag. 379. Mas ninda assim a opi­


nião i'este nithor e (1’oquelles que cllo cila, não se refere as umoes n
linha directa, nem entre os irmnos.
502
vulgar, mas bellissima c exacte, l'a/, d’elles melado um do outro,
é claro qns não póde ser o mesmo repartido com um estranho,
sem injuria á união conjugal, e sem aimiquilação da harmonia
e da ventura domestica.
A mutua fidelidade conjugal não póde, por tanto, deixar
de ser o primeiro c mais sagrado dos deveres que o matrimo­
nio impõe aos esposos. A falia d’ella por parte de qualquer
d’estes é uma olfensa cruel feita ao outro, c que pelo adultério
attinge ao ultimo grão de gravidade. Ilompem-se então de um
modo formal os lagos que prendem a. familia para nunca mais ’
se reatarem de uma maneira sólida e eflieaz, quando o conjuge
offendido ó realrneute capaz de sentir toda a magnitude da of­
fensa. ' -
Tanto é isto applicavel á esposa corno ao esposo ; não ha,
diz Ahrens, distineção alguma á fazer-se entre elles a semelhante
respeito, sendo (pie a diiíerença que de facto se nota n’este as­
sumpto ante a opinião social, que condemna sevóramente aquel-
las e é complacente para com este, não tem fundamento real
na Moral, nem na justiça absoluta.
Si no coração do homem eslá gravada, em caracteres in­
deléveis, a lei suprema do amor, que infama o adultério da es­
posa que o anniquila perante a sociedade, no da mulher mais
delicada o mais sensível não está do certo eseripta em caracte­
res menos vivazes essa mesma lei, cuja violação ronha-lhe
o maior e muitas vezes o imico bem que ihe ó dado gozar, a paz
o a felicidade do lar domestico, para o qual quasi e^clusivamenlo
vive. Essa lei é igual entre ambos perante a natureza, e por
necessidade da propria subsistência, dignidade, e hem ser da
familia. •
Quanto á cohabitação dos mesmos conjuges, é cila igual-
rnente outro dever seu imperioso, porque é ainda uma còndiçiTo
do mesmo modo indispensável para a realidade c permanençia
da união conjugal, e para a c.omp'leta consecução dos lins da
sociedade familiar. •
_ l’®r conseguinte, comquanto só o amor seja proprio e suf*
fici.cnte para tornar verdudeiramenle effectivá e profícua essa
obrigação, e não possam os conjuges, em geral, usar do cons­
trangimento n’esso sentido, todavia ó permitlido ao innocente
prejudicado empregar todos os meios licites e capazes de pro­
duzirem esse effeilo ; pois que se a lei civil não póde imprimir
o sentimento do amor o suas naturaes conséquenciaS na vida
privada dos esposos, póde ao menos impòr-lhes aquelles aclos
da viila publica que deveriam d’elle emanar, que pelo pacto ma­
trimonial os mesmos esposos reciprocameule se prometleram,
505
o cuja omissão ou recusa prejudica, alcní do mais, o direilo na­
tural de terceiros, dos filhos.
Assim o conjugo fugitivo da familia, ou da convivência
conjugal, póde, como nos diz o Cortipendio,ser pelo outro com
pclíido á voltar para esla, ou para a casa conimum : e si nprzar
do tudo clle nega-se á coliabilação, e de facto e directamente
não pode ser a isso forçado, lica, segundo o Direito Civil com’-
inum, sujeito á privação dos direitos conjugues c paternos, ofu
' ao menos de alguns importantes, já em relação ás pessoas, já
aos bens da familia.
Embora, pois, não nos pareça apropriada a maneira pela
qual o Compendio se exprime na nota á esse paragrapho quando
nos diz, que « cm virtude rio matrimonio o marido adquire so­
bre a mulher e esta sobre o marido um direito de posse, » não
nos parece lambem admissível a idéa de Abreus, de « que não
ba propriamente um direilo de cohabitaçilo para os esposos.»
O que inuilns vezes realmente não ha é vantagem para qualquer
d‘elies em usar d’esso direito, ou meio efllcaz de o tornar ellee-
tivo cm relação ao outro, quando este de todo pervertido, ou
por qualquer razão, entende dever affrontar aqueilas privações
legaes. • *.
■ E’ triste, sem duvida, a condição da sociedade conjugal
cm que se verifique.a necessidade de semelhante recurso de um
conjuge contra outro; mas nem por isso e cilc menos legitimo,
e alguma vez poderá produzir, au monos exteriormente, os ef-
fcilos a que a coliabitação se destina.
Quanto a serem puramenle pessoacs esses direitos de cada
conjuge relativos á lidolidado c çoliabitação reciproca, é isso
incontestável, não só, como nos diz o Compendio, porque tacs
direitos c obrigações correlativos fundam-se em alleiçòes e qua­
lidades pessoacs áquelles, mas ainda por outras razões que ul-
tamente interessam á familia c ã sociedade cm geral.
Não pódem, por tanto, áquelles direitos ser exercidos ou
olTendidos senão pelo proprio conjuge offendido ou abandonado.
Conceder-se á terceiros qualquer ingerência ou iniciativa legal
a semelhante respeito, e sobretudo nos casos ric infidelidade
coniumil seria, além de outras consequências funestas, negra­
° 1 /.n ...............I M v n lln e CA «llll/l-l m fllC fl / 1 í »V l 11*4 I 1*111

-U h 1J U v iu « « » ’ « ü iiu ............1 ................ i .................. . , I •


rlyrio da dôr ao conjuge offendido o martyrio do opprobrio

^lYeslc 'sentido, são, com efieito, as disposições consagra-


)
504
das nos codigos das nações mais cultas. Com quanto alii se
considere um crime, c o abandono da familia ou da convivên­
cia conjugal seja sujeito ás consequências ou privações a que
acima alludimos, com tudo o direito de queixa quanto áqueltes
e o de intentar cm juizo qualquer acção relativa á este, é recu­
sado a qualquer que não seja o proprio conjuge innocente. Aos
mesmos paes não é elle concedido em favor de seus filhos.

i
LIOOAO XLVI
§§ 175 — 177

Continuação:— dos direitos o, obrigações reciprocas princi-


paes dos conjuges ; — 2." quanto aos bens ; — 3.° quanto
• á autoridade na família.— Da indissolubilidade do ma­
trimonio. *------

Vimos na licção precedente quaeíj as obrigações c direitos


principaes dos conjuges relativamente ás suas pessoas, e que
consistiam na sua mutua fidelidade, e coliabilaçao conjugal.
Quanto aos bens que áquelles pertençam ou com que te-
‘ nham de entrar na sociedade matrimonial, acceitamos a dou­
trina do Compendio no"seu § 175 e nota respectiva, sómente.na
parte em que elle sustenta a sua conimunhao entre os mesmos
ou na familia, e não admiltimos a latitude que elle attribue
ã liberdade das convenções anlenupciaes em sentido contrario
ú esta. Seguiremos antes a este respeito a opinião de Ahrens,
que o mesmo Compendio parece querer confundir com a sua,
mas que realmeute différé d’ella. •
Este nutlior adopta, com eITeito, uma opinião intermedia
entre a que estabelece aquella communbào em tudo e em todos
os casos, e a que exagera o arbitrio dos pactos dotaes exclusi­
vos da mesma. Sem anniquilar a individualidade de cada con­
juge em relação aos bens que lhe sejam ou lhe possam ser pró­
prios, elle respeita a unidade colleeliva da sociedade conjugal,
e concilia entre si esses dons princípios. 1>îz elle explicitamente:
« a nossa doutrina exige primeiramente que liaia communidadc,
e depois, que se fixe uma parte conveniente de bens para ser­
vir á mulher como fundo inalienável de reserva c conservação.»
D isto á doutrina do Compendio vai, sem duvida, alguma
differença ; c nem aqucllc author, ao menos na parte cm que
trata parlicularmentc d’este assumpto se exprime a tal respeito
39 h . »
500

do modo indicado pelo mesmo Compendio nas ultimas palavras


de sua nota ao citado paragrapho.
Alirens salva, em todo o caso,'o principio da commu*
tdião acerca dos bens adquiridos na conslancia do matrimonio,
ejquanto aos mais, somente nina parle tVêlles deixa sujeita
á possibilidade das convpnções antenupciaes; ao passo cpie
a doutrina do Compendio náo só póde-se applicar á totalidade
dos adquiridos depois do casamento, mas ainda cm alguma cir- •
cumstancia sacrificar até a própria communhSo dos adquiridos
antes. * •
O Direito Civil de algumas Nações cultas mais se approxi-
ma, certamente, da opinião do Compendio, mas os princípios
racionaes e absolutos do Direito Natural, ou a própria natureza
do contracto matrimonial eas necessidades c fins da família, an-
torisam mais a de Alircns. E tanto é isto certo, que o mesmo
Direito Civil que admitlo os pactos de incoinnnmicabilidadu
quér de uns, qaér de outros d'aquelles bens, não ousa levar ás
suas ultimas consequências o principio em que tal disposição
se funda, desde que considera insubsistentes, ipso facto, Iodas
as convenções em tal sentido celebradas entre os esposos, logo
que lhes sobrevém lillios. Si essas convenções fossem cm si
mesmas conformes á natureza c flm da sociedade conjugal ou
da famitia, ou com ellas compatíveis, a superveniencia dos II-
llios não devèra inlinual-as. Km todo o caso, e por maior am ­
plidão que se attribua á possibilidade jdridiea das mesmas, ellas
não prevalecem, caducam ifcstas circumstancias.
Si, pois, a sociedade conjugal cm sua inais racional c mais
perfeita concepção, suppõe necessariamente a communhão dos
bens entre os conjuges c na famitia, devemos concluir que esta
lhe é essencial, e de Direito Natural.
E' incontestável, com efleito, como nos diz o Compendio
no paragrapho dc que tratamos, que a distineção e separação
de bens entre nquelles, tende a afrouxar a sua união, e traz
grandes inconvenientes c embaraços á economia, governo,
e educação da família; ou como elle accrescenta na respectiva
nota « que essa separaçõo mal sc casa com o amor que os deve
tinir em uma só entidade pessoal.»
Deve. em sum m a,dar-sc a communhão na sociedade con­
jugal quanto aos bens, desde que ella existe "on deve existir,
como jã precedentcmeiito o demonstrámos, '32) cm tudo o mais:

( ti) l ide Lieçào XI., p*;j. i*>t.


r>07
-no amor, na vòntura c no infortúnio, nos prazeres n nas afllic-
ções, nas ideas e nós sentimentos ; cm todo, llnalmente, quanto
constitue, ou póde constituir os seus legítimos interesses, e a sua
viila inteira : tal é ao menos o idéal da iamilia.
Demonstrados os direitos c obrigações correlativas dos
conjuges acerca de suas pessoas e bens, vejamos qoal éo direito
e obrigação correlativa de cada um á respeito do outro quanto
á sua autoridade na família. Pára o que, lemos de analysai- as
ideas do Compendio sobre este assumpto no seu § 17C.
Ahi procura elle primeiramente justificar a diversidade (las
funcçôes que a cada urn d’aquelles especialmente competem no
manejo e direcção dos'.negocies da sociedade, conjugal ; e cm
segundo lugar estabelecer que esta é uma sociedade desigual
entre os conjuges, e que o marido tem naluralmente império
sobre a mulher.
■ Quanto ao primeiro ponto, nada lemos a objeclar-lbe ;
subscrevemos inteiramente a lodos os argumentos e, observa­
ções judiciosas, com que elle, no seu citado paragraphe, nos.
mostra, que á mulher pertence parlicularmente o governo das
cotisas internas do lar domestico, c ao marido o das relações
exteriores da familia. Embora essa distineção não seja radical
ou absoluta, é comludo certo, que os papeis dos duus esposos
estão, ern geral, assim distribuídos pela natureza -, isto é, já pela
propria organisaçáo physica e caracter moral dos sexos, já
pela propria condição social de cada um, e já llnalmente pelas
proprias exigências do bom regimen, e da prosperidade da
■familia. * •
Quanto ao segundo ponto, porém, não podemos admlilir
as ideas' do mesmo Compendio, nos termos ont que elle as
enuncia. ,
Aquellas circurnstancias ou o seu conjunclo, não podem,
cm todo o caso produzir entre os conjuges uma desigualdade
juridica, nem croar um real império do marido sobre a mulher.
Essa desigualdiyle que existe, sem duvida, na sociedade pro­
priamente familiar, como em outra parte já fizemos ver, não
existe, nem póde existir, segundo o Direito, na sociedade for­
mada especialmentc entre os dous esposos. Pela natureza
d’esta e pelos princípios absolutos do Direito Natural, o marido
não tem nem póde ter sobra a mulher uma verdadeira supe­
rioridade de poderes. Ha apenas entre elles desigualdade nos
modos de manifestação de sua commun) autoridade na familia;
mas, de serein diversas n’esta as suas respectivas funcçôes, não
sc segue que aquclla o seja. A esposa não é, coin elTcilo, quer
inoraî, quér juridicamente submissa ao marido, não lhe é infe-
50K
rior ou subordinada no verdadeiro sentido de la es expressões •
Si o marido se pódc considerar superior á esposa, porque certas
tüncções lhe cabem quasi cxclusivamenth, ou lhe são mais pró­
prias, do mesmo modo esla pôde ser considerada superior
áquelle por outras, que lambem quasi exdusivamente lhe per­
tencem. •
Comquanto as funeções da mulher sejam mais circums-
c ri pias e menos notáveis, não são com tudo as menus impor­
tantes na fam ilia; e nem são rigorosamente aquellas a que
acima alludimos, as únicas a que se reduza ioda a possibilidade
de sua participação na economia c governo da mesma ; pois
que na suã essencia ella é dotada das mesmas faculdades do
homem ; e muitas vezes é tão capaz, e algumas até mais do que
este, de exercer-sc e desenvolver-se ua própria vida social ex­
terna da familia, ou nos seus mais sérios e importantes n e ­
gócios.
A qualquer dos dous conjuges, são bem.cabidos a deno­
minação e os direitos de chefe da familia, que aliás, ninguém
lhes recusa ; c por tanto si nesta ha império reside elle cm am­
bos considerados na sua unidade conjugal. Si, llnalmente,
a sociedade entre os esposos não é uma sociedade’ igual pela
razão allegada, nenhuma sociedade lia sem diversidade nas
fbneções de seus respectivos poderes.
Ü proprio Direito Civ il dos povos que comprehendem o ver­
dadeiro caracter e efleitos da união matrimonial, sanccionando
embora, em geral, uma certa superioridade marital, não reco­
nheci- ainda assim um império propriamente dito d elle sobre
a mulher, desde que exige até a participação ou consentimento
d’esla para certos netos importantes da administração do casal,
como seja para a alienação de bens immoveis do mesmo, 011
para quaesquer Iransacçúcs cm que clles possam scr cornpro-
mettidos.
Do dever que incumbe ao marido de proteger a sua mulher
não sc póde, de certo, inferir essa desigualdade de poder ou
esse império que o Compendio atlribue áquelle ; primeiramente
por ser isso um dever c não um direito em relação á mesma;
u em segundo lugar porque esse dever é reciproco ; e si é mais
facil ou mais natural conceber-se que a protecção do esposo em
pról da esposa tenha mais occasião de veritlear-sc, ou com
mais efllcacia; com tudo comprehende-se também perfeita­
mente, que possa haver circumstancios em que os papeis se
troquem, e tm que o auxilio da esposa sendo o mais doce, seja
ao mesmo tempo o inais profícuo.
Que o voto do marido deve, ena geral, prevalecer sobre
509
o da mulher, nos casos em que liaja collisão cnlre os dous na
decisão dos negdcios da familia, é ainda uma proposição do
Compendio, que não devo ser tomada em um sentido absoluto,
quer ante os princípios puramente racionaes do Direito, quer
mesmo em vista da legislação positiva dos. povos, que melhor
tem regulado esta matéria. Porquanto nem sempre é o marido
realraente o mais sensato ou o mais bem avisado na apreciação
e manejo de todos aquelles negocios, ou o mais capaz ou mais
digno de resolvel-os, e delerminal-os; e casos pódem dar-se
c eflectivamente dão-se em que, não sc sujeitando elle ao volo
da mulher,-a isso o compilla a justiça social, pelos seus magis­
trados c tribmiaes; taes sejam, por exemplo, aquelles a que
a pouco alludimos, cm que elle pretenda alienar bens iminoveis
do casal-sem outorga (Taquclla..
Mas quando mesmo assim não fosse, e devesse prevalecer
ern todo e por tudo ou ern qualquer caso a vontade do marido
sobre a da mulher nas questões do governo da lamilia, ainda
assim entendemos que não seria isso bastante para fconcluir-so
que aquelle tinha sobre esta um império propriamente dito,
porque este suppõe superioridade e inferioridade real, autori­
dade suprema de urn lado, e sujeição real do outro, e nada
d’isso se póde admitlir cnlre os coujuges sem rebaixar-sc a su­
blimidade do matrimonio, a dignidade da familia, c a própria
natureza humana. ,
Esse império marital estabelecido no antigo Direito ito-
inano e n’elle tão monstruosamente exagerado, só se póde en­
contrar tios tempos modernos entre os povos rnais atrasados uo
globo, onde a mulher é mais considerada como escrava do que
como esposa. . . . . . • . „„ ,1;
Expostas as condições-da formaçao do matrimonio, e os di­
reitos e obrigações reciprocas principaes que d elle ies iam
entre os conjuges, vejamos de que natureza e o vincu o j os
prende, ou si aquelle se deve considerar perpetuo c ind s.o u el.
O Compendio já o declarou tal na definição que do atii-
inonio nos deu no seu § 171, já igualmente lhc a ti.bu.o esse
caracter no final de seu § 172, c por uUlmô, « °
mais especial e positivo, procurou deftionstrttl-o no seu §177.
Nós mesmo já como tal o temos qualificado, e ju ao que
mos do caracter c fins da sociedade conjugal, e da definição
que lambem demos do matrimonio, isso mesmo se
1 Reputamos, pois, realmente indissolúvel oi mat .mon o;
mas não no seulido absoluto em que assim o conud ,ram o tom
pendio e aquelles que em nenhum caso, e por ncnl.um motivo,
admittem a possibilidade do ser o mesmo dcsftiio.
510

Atlribuindo aquelle caracter d unido matrimonial, quere­


mos dizer unicamente, que a perpetuidade c de sua natureza,
que ella é destinada a durar por toda a vida dos conjuges, que
não é admissível daparte d’estes, quando a celebram, aMntençáo
de poder rompel-a cm qualquer tempo, que não lhes é permet-
tido pactuar a sua temporariedade, e que formada ella, como
nos diz o Compendio, nem a impossibilidade subsequente da
prôcreação, nem o consentimento de uma das partes, e nem
mesmo de ambas, pódc dar lugar á rotura de,seu vinculo.
Quer isso dizer, em summa, que o idéal do matrimonio
é a união perpetua dos conjuges, e que é elle um pacto de na­
tureza especial que não se pôde desfazer como quaesquer outros
nem pelos molivosque, segundo o Direito, põem termo a estes.
Gravíssimos seriam, sem duvida, os inconvenientes e pe­
rigos que resultariam, já para os conjuges, ou particularmente
para algum d’elles, já para a familia, e já para a sociedade em
geral, de permittir-se aos contrahenles do matrimonio tornal-o
temporário' por convenção prévia ou desfazel-o por aquelles
meios ou pela simples ausência do amor reciproco, incompati­
bilidade de gênios, ou outros semelhantes, com a faculdade de
contrahir novo. Entào não só seriam rotos os casamentos, com
facilidade seriam elles celebrados com o calculo antecipado de
serem logo desfeitos ; e não só não faltariam para isto os moti­
vos d’aquella especie, mas até seriam elles adrede provocados.
O matrimonio perderia n’esse caso toda a sua nobreza e solidez,
tornar-se-hia um méro ajuntamento passageiro do homem e da
• mulher, urn concubinato mais ou menos transitório, disfarçado
sob um nome menos repugnante, e um privilegio quasi exclu­
sivo dos devassos, e das mulheres defacil accommodação. O ho­
mem de brio, c a mulher r]e sentimentos delicados, seriam de
algum modo condemnados* ao celibato como o unico refugio
contra lacs perigos e desordens ; e o que seria a familia sob um
tal regimen, é facil conceber-se.
\ necessidade de ser indissolúvel o matrimonio, mas de
sel-o unicamente no sentido a que nos temos referido, e não dc
um modo absoluto, ainda melhor se deduzirá do que temos de
expender na seguinte licÇão relativamente ao divorcio.
LIOOÀO
9 ZLVTI
§ 177

Continuação : — da indissolubilidade do matrimonio ; — da


' separação corporal dos conjuges, e do divorcio por Direi­
to Natural.

Do que dissemos na parle final da nossa procedente licção


sobre os perigos ou funestas consequencias de permittir-sc fa­
cilmente, ou pelos simples motivos a que alii alludimos, a disso­
lução do vinculo matrimonial, seguir-se-lia que por Direito Na­
tural, esta nunca deve ter lugar, nem mesmo nos casos do adul­
tério de algum dos conjuges, como nos affirma o Compendio
na continuação do seu § 177, nem em outros de igual gravi­
dade ? E’ o que vamos examinar. •
Antes de tudo é incontestável, c os proprios que combatem
o divorcio reconhecem, e não pódem deixar de reconhecer, que
ha circumstancias em que, pelo menos, a separação corporal dos
esposos é absolutamente indispensável ; e todas as legislações
civis, com effeito, a admitlem e regulam.
Seria, na verdade, não só praticamente impossível, como
ainda a mais horrível das tyrannies, forçar-se, por exemplo,
a convivenciVde um homem de brio’com uma mulher surpre-
.hendida em’adultério, ou a de uma esposa virtuosa e tímida
com um marido monstro que tentasse contra a sua vida. ou fi-
nahucnte, a de qualquer d’elles com o outro que abandonando
o lar da família e os filhos vivesse publicamente nos braços de
uma concubina ou de um amante.
Mas acceita em taes casos, ou por taes motivos aquella se­
paração, que razão plausível póde haver para esse horror com
que muitos cscriplores rcpellem o divorcio, com que o fulmi­
nam os Cânones da Igreja Uornana, e com que o regeilam al­
guns codigos dos paizes d’esla communhão religiosa, si aquella
separação que apenas diffère rcalmcntc do divorcio em não per-
5 Í2
mittir aos conjuges separados um novo matrimonio, não deixa
por isso de ter de facto todos os mais eifeitos lastimáveis (la­
quelle, e tem domais outros não menos desastrosos que llie são
peculiares e que por elle se evitam ?
Allega-se que na simples separação corporal é possível em
todo o caso reconciliarem-se ainda, e unirem-se outra vez os
esposos. Mas primeiramente é claro que rôta a união conjugal
pela separação e pelos motivos que devem determinal-a, rarís­
simos serão os casos em qne ella se reate, e sobretudo de um
modo perfeito e sólido, Em segundo lugar essa reconciliação
não é também de lodo impossível, mesmo permittido o divorcio,
principalmente si entre este c o novo matrimonio a lei puzer
um espaço de tempo sulBciente. Em terceiro lugar, emfim, si
o divorcio póde em um ou outro caso impedir uma tal reconci­
liação possível, cm compensação previne em muitos outros ns
terríveis consequências da simples separação entre esposos, que
não possam e não devam real meu Le mais unir-se.
São as leis da Igreja liomana as inimigas mais accerrimas
do divorcio, mas o seu proprio procedimento á respeito d’este
mostra bem claramente que a sua doutrina não assenta em
bases sólidas.. A sua legislação acerca do divorcio foi, com ef-
feito, durante muitos séculos caracterisada pela vacilação e in­
certeza, ora admiltindo-o, ora regeilando-o; e quando afinal
lixou-se no seu seio o dogma da indissolubilidade do matrimonio,
multiplicou ella por tal forma as causas de nullidade d’este, que
pareceu querer reproduzir sob outro nome aquella instituição
proscripta, e aggravou o mal que pretendia prevenir.
Os partidários do divorcio concordam que a separação sim­
ples deve ter na lei um lugar ao lado d’nquelle, d.eixando-se aos
esposos segundo o seu caracter e as circumstancias a livre es­
colha entre esses dous recursos ; os partidários da simples se­
paração, porém, são intransigentes, não ndmitlem que o legis­
lador civil deixe ao conjuge ultrajado ou-vietima*, outro refugio
sinão ella. E’ que o exclusivismo c a intolerância são os cu­
nhos inseparáveis de toda a doutrina em que se intrornette
o espirito de seita.
Será, porém, o divorcio, realmenle alguma cousa impia,
impolitica, ou immoral ? Estará incursa em todas essas péchas
ou em qualquer d’ellas a maior parte da Europa moderna e ci-
vilisada que o admilte ? Serão nos Estados protestantes ou dis­
sidentes do catbolicismo, n’aquella c nas mais partes do mundo,
menos respeitáveis a união conjugal eafam illa, ou menos mo-
rigerada a sociedade em geral ? Mais adiante alguma cousa di­
remos com relação a este ponto -, mas desde já mettam a mão
n a sua consciência os povos cia cornmuulião latina. Tambcni
a objecção contra o divorcio,, fundada na sua incompatibilidade
com o dogma catliolico que nunca teve valor auto a sciencia,
não o tem actualmente, sob qualquer ponto de vista, e está do
todo abandonado, a não ser para uquelles que entendem que os
fieis do catholieismo formam uma raça á parle na humanidade.
Hoje a questão á respeito do divorcio só pódo ser tratada sória-
rneiite em vista do interesso dos costumes em geral, e particu­
lar men tç-d o interesse e direitos dos proprios conjuges c dos li-
lhos ; e é por estes lados que a discutiremos.
|)i/.-se que o divorcio, pelo simples facto de oflerecer aos
esposos a eventualidade de uma dissolução do matrimonio com
a faculdade de. contrahir novo, é uma verdadeira animação ás
desordens internas na familia ; que ninguém se dobra tie boa
mente ás exigências de um estado que se lhe torne ineomniodo,
.quando por si póde imidál-o; e que a lei faz-se cúmplice da in—
conslaucia humana quando despoja a união conjugal do carac­
ter da perpetuidade.
Taos considerações, porém, não procedém. Primeira­
mente, si por um lado o esposo soffrc menos pacienlemeute.
o mal a que póde sublraliir-se, por outro nada ba que mais cor­
rompa do que o poder de fazer o mal impunemente, 'lai con­
juge, que certo de conservar sempre a sua vietima sob a sua
mão zombará de todos os seus compromissos o deveres, respoi-
tal-os-lia melhor sabendo que nquclla póde invocar o soecorro
da lei. e pedir a outrem a felicidade legitima que clle Ibc pro-
metlera, c lhe recusa. Si, pois, o divorcio póde em algum caso
(ornar o esposo mais rebelde na perseguição domestica, cm
oulrns póde até cvitnl-a de todo. Demais ao lado d’aquelle in­
conveniente do mesmo, deve-se attendee aos perigos do sua
intcrdicção, e lembrar que a natureza humana sabe sempre
vingar-se do despotismo das leis, quér pelo crime, quer por
uma reaer.ào violenta, e quér pela corrupção, que ó um protesto
surdo. — .
Note-se ainda quaes seriam aquelles que a perspectiva do
um novo matrimonio levaria a lançar a perturbação no seio da
familia. Não seriam, de certo, os caracteres religiosos, resig­
nados ou Inmeslos. Só a paixão céga, ou a immoralidade, se
prcoccupariam com esse futuro dt libertação ; mas para os ho­
mens ou mulheres de paixões impetuosas, ou para os inimo-
raes não só a probibiçáo do divorcio não seria, e rcalmentc
não ó uma barreira, porque a simples separação e o concubi­
nato lhes bastam, o até lhes são mais c o mm o d e s ; mas ainda
a permissão d’elle náoHies seria uma animação desde que a lei
dO F.
social impedisse o novo matrimonio ao culpado, e sobretudo
com seu cúmplice.
Diz-se ainda que o regimen do divorcio é desigual para os
dous esposos, que o marido sahedo matrimonio com toda a sua
autoridade e força, ao passo que a mulher não salie com toda
a sua dignidade, porque' perde abi a sua pureza virginal, a sua
mocidade, e os seus melhores encantos. Mas si é a míillier
qué está, com elïeito, exposta ás maiores perdas pelo divorcio,
é também a que em maior numero de casos póde ter mais ne­
cessidade do mesmo, porque si elle não lho restitue a virgim
dade, a juventude e os attractivos perdidos, é cornludo o unico
rneio pelo qual cila pode sahir dignatfléiile da posição mesqui­
nha em que a atira a simples separação, d’esse estado anoinalo
e triste que não é o da solteira, nem o da casada, nem o da viuva.
Na separação simples é que está a terrível desigualdade para
a esposa si o marido é o culpado, porque este póde continuar
impune e commodamente nos braços de uma concubina, e aie
de sua cúmplice, ao passo que aquelia ti eondemnnda ao celi­
bato perpetuo ou á prostituição. E llnalmente si é certo que
a mulher é que tem mais á perder pelo divorcio, sendo certo
igualmenle que também d’ella com mais facilidade póde vir
o motivo mais grave e mais frequente do mesmo, será isso uma
garantia, já para que cila o não provoque por aquelie, já para
que uão seja faeil em usar contra o marido d’esse recurso ex­
tremo.
Não é, demais, evidente em relação a qualquer dos dous
esposos a injustiça de envolver-se na mesma pena a viclima
e o algoz ? Não é clamorosa a crueldade com qm* se condemna
um d’elles innocente, no vigor da juventude, capaz ainda de
amar e de ser amado, de procrear e educar uma próle legitima,
de ser feliz, em sunirna, em um novo matrimonio, a jazer per-
pcluamcnte na condição de um ente mutilado, perdido para
todas as doces e santas aflVições da família, e tanto mais irre­
missível e atrozmenle quanto maior c mais pura fôr a sua
virtude ? .
1’ermiltidoo divorcio, deixa-Se a cada um dos conjuges
a livre escolha entre elle e a simples separação ; então o celi­
bato d aquelie que opta pelo primeiro é uni celibato voluntário
e meritorio, que será naljiraiincnte carncterisado pela piedade
c pela virtude ; desde, porém, que se faz dã separação a lei
unica c inflexível, qnér para as naturezas que acceitem o sacri-
íleiq, quér para os que contra elle se revoltem, em vez de celi­
bato, deere^u-se na maior parte dos'casos o adultério publico
e permanente. Tal lei uão só inflige uma pena perpeiua ao
innocmiteye legaliza a Ui certo pnnlo, pela desculpa da necessi­
dade, ;i inconducla do criminoso que de faclo lhe escapa: mas
ainda, pretendendo evitar a mtroducçào de uma madrasta na
lainilia, abre as portas d’esta á uma Concubina, querendo pre­
venir a desordem nnt lar domestico, planta nVlle o espectáculo
da depravação.'
Por uma illusâo inexplicável, si não de má fé, os adver­
sários do divorcio, quando o combatem, figuram de um lado
u matrimonio segundo n seu typo mais perieito, as delicias ine­
fáveis da familia indissolúvel, e a felicidade dos filhos, só pos­
sível sob a protecção do amor perpetuo de seus paes; e de
outroo espèctro do divorcio vindo com asna aza negra cons­
purcar tudo isso; esquecidos de que quando a este se recorro já
nada existe dV.sse hello ideal, que reina já profnmlamenlc entre
os esposos em vez da ternura o odio. c na família a discórdia
em vez da paz; e que tudo isso e causa e não elleilo d’aquelle.
Os legítimos interesses dos filhos já estão de todo alli coin-
promettidos, desde que entre aquelles existe do facto a rotura:
o seu interesse moral pelos máos exemplos que recebem, e o seu
interesse de fortuna pelo abandono ou pela dissipação que
a desharmonia e-o desregramento dc ordinário acarretam após
si. No divorcio dá-se, sem duvida, a cisão da lamilia, elle se­
para os filhos do pae ou da mãe, ou reparte-os em torno de dous
fócosonde se alimenta o ressentimento reciproco entre aquelles
que deveram amar-se e respeitar-se, e onde recebem uma edu­
cação contaminada dos máos sentimentos que aquelle inspira.
Mas estes males, que infelizmente são reaes c immensos, não e
também o divorcio que os crèa, e nem a simples separação lhes
dá remedio, si é que os não aggrava pelas uniões adulteras.
Emfim, é claro que n divorcio estabelecido para os casos
excepcionaes em que realmente deve ter lugar, jamais seiu re­
clamado senão nos paizes onde o matrimonio fôr devidamente
respeitado ; e 11’aquelles em que domine a corrupção dos costu­
mes, por mais que elle se prohiba as paixões achai,io sempre
meios de saltar por cima das leis. e de romper com escândalo
os laços conjugaes que as prendam. O proprio Compendio na
sua nota ao paragrapbo de que nos occupamos, mostra-nos que
em Roma durante 520 annos apenas deu-se 0 caso de divorcio
de Carvilio Ituga; e si depois. segundo 0 dito de Sencca, havia
mulher que contava os annos de idade pelo numero de seus
maridos é que não se estava mais nos liellos tempos da Repu­
blica c «im na enoeha de decadência c desmoralisação que pre­
cedeu ao império Não é, com elleilo. 0 divorcio que pode cor­
romper a sociedade, é ao contrario a corrupção, social qHtí
o póde perverter. Nos paizcs era que o dogma cnlholico é a lei
n’esta matéria, o casamento por uma reacção forçada da natu­
reza contra o despotismo d’aquella, tcm-se tornado quasi no­
minal, e as.,uniões illegilimas tèm-se apoderado em grande
parle do que o matrimonio tem de real e sério ; é o concubinato
que sc tem tornado ahi de algum modo o verdadeiro casamento,
ou a união das affeiçõcs ou das existências Ahi permanece-se
nos laços indissolúveis do casamento porque não se observa
mais a sua santidade. Si a lei menos absoluta oiíerecesse aos
esposos a possibilidade de escapar pelo divorcio e por urn novo
casamento ás consequências terríveis de uma' união verdadei­
ramente infeliz, o matrimonio recobraria, talvez, a nobreza e o
respeito que lhe são devidos. Itecebendo um pouco de liber­
dade elle se salvaria d’esse lotai inenoSpreso.
Pretende-se fazer crér que permitlir o divorcio é abrir as
portas á libertinagem, como si aquellesqueo defendem, o qui-
zessem sem condições, nem regras, ou o puzessem á disposição
dos caprichos da sensualidade ou da devassidão. Desde que
elle não seja admitlido sinão em casos gravíssimos, e hem ave­
riguados, e que a faculdade de contrahir novo matrimonio só
se conceda ao conjuge innocente, e ainda assim passado tempo
suHieicnle para dar-se lugar á possibilidade da reconciliação
dos esposos, ou verificar-se que sua desunião é definitiva, des-
apparecem todos esses perigos que se lhes attribue, todos esses
horrores com que se procura tornal-o odioso.
Eslão de accòrdo as idéas que temos emittido com as de
Bentham no seu Tratado da Legislação, quando diz : «Erèr-se
na perpetuidade da affeição do objecto amado, na eternidade
da paixão, são illusões qúe se podem perdoar a duas creanças na
cegueira do amor, mas velhosjurisconsultos, legisladores enca­
necidos não pódem deixar-se cahir em taes chiméras. No casa­
mento, no serviço militar, etc , pmhibição de sabir é prohibi-
ção de entrar, e quando a morte é o único termo do liberta-
mento, que tentação terrível ! Beceia-se que extinguindo-se
a affeição reciproca, a possibilidade do divorcio faça protíürar
uma nova esposa ou um novo marido, mas ern falta dc novo
marido ou de nova esposa procurar-se-ha um amante ou uma
concubina ; haverá menos separações apparentes, mas ha-
vel-as-lia reaes em maior numero. Si o casamento póde ser
rôlo procurar-se-ha fazer para conservar o amor, o que se fez
para ganhai-o, sentir-sc-ha a necessidade de algum sacrifício
de jnáo humor ou de vaidade ; e para formal-o consultar-se-hào
mais os gostos e os caracteres com o receio de uma desunião ;
não se farão os casamentos mais entre as fortunas do que entre
as pessoas. Teme-se <]uc o mais forlc maltrate o mais fraco
para obter o seu consentimento ao divorcio, mas póde-se esta­
belecer em laes casos, que a faculdade de conlrahir novo casa­
mento não seja concedida ao culpado. Quanto aosfdlms, tor-
nar-se-hão eiles depois da dissolução legal «lo casamento o que
se tornam quando a morte o rompe. A separação dos corpos
que substituo ao divorcio tem o inconveniente de condemuaros
esposos separados ao celibato ou ãs uniões illicitas. A mulher
ultrajada soffre 11’ella a mesma sorte que 0 author do ultraje,
ou antes uma sorte ainda mais rigorosa, porque a opinião deixa
uma grande liberdade ao sexo dominante, e impõe ao mais
fraco unia privação severa. . . .
Km summa, si para os |«-oprios que no matrimonio consi­
deram sobretudo 0 vinculo religioso, 0 sacramento, e por isso
0 julgam indissolúvel, deve ser isso um negocio de pura cons­
ciência, cni nu o a lei social n^da. tenha (juc \er, e a abstenção
do divorcio só como tal, e só aos fieis da respectiva religião pode
ser imposta; para aque.llcs que no matrimonio só võcrn 0 mais
respeitável dos contractos, 0 que mais protecção e garantias
deve merecer por parte da lei civil, a sua indissolubilidade não
póde ser absoluta. . ___
Por Direito Natural, pois, o divorcio nos casos e com as
condições a que já alludimos, não só deve ser permittido, mas
ainda é de indeclinável necessidade, quer em vista dos legíti­
mos interesses e direitos dos proprios conjuges, quer dos da
família e filhos, e quer dos da sociedade cm geral. K elle uma
instituição da mais alia conveniência em todos os sentidos, e ao
mesmo tempo 0 que ha de mais conforme a justiça e a Morai,
aos reclamos da natureza, c á dignidade do matrimonio.
. ' ' L ic ç À - o Z L - r : s :

§§ 179 — 182 — 185

Direitas e obrUjações cios paes para corn os jiihos ; — poclèr


' parental, e sens limites
I
O Compendio tendo tratado nos paragraplios precedentes,
como vimos, dos direitos e obrigações reciprocas dos conjuges
cm relação ás suas pessoas, bens, e commuai autoridade na
família, e do vinculo matrimonial que os prende, trata espe-
cialinenle no § 179 e seguintes dos direitos dos mesmos a res­
peito dos filhos quando esles sobrevêm.
Com eiléilo, pelo nascimento d’estes novas relações se es­
tabelecem na familia, novos sentimentos até então.desconheci­
dos surgem nos corações dos pars ; relações « sentimentos, qoo
mais tarde se tornam recíprocos entre uns e outros.
A p ri fileira obrigação que de taes relações se origina para
os paes a respeito de seus Olhos, é incontestavelmente aquella
de que nos falia o Compendio no sen § 179, e que se refere
á creaçâo e educação d’estes : obrigação, como elle diz: «não
só moral, mas lambem jurídica, e da qual derivam-se princi­
palmente todas as mais c todos os direitos, correllativos entre
estes c aquelles.
No mesmo paragraplio e na segunda de suas notas procura
o mesmo Compendio explicar-nos a origem d’essa obrigação
paterna, e por conseguinte do direito correspondente dos filhos.
Mas assim como não são necessárias, conforme nos diz o Se-
nbor I1errer, longas demonstrações para convencer-se a estes
e aos paes das obrigações que os ligam, também para nos con­
vencer-mos a nós mesmos da realidade de seus direitos, e de
que estes é áquellas procedem irninediatamento da propria na­
tureza da familia e da do homem, basta consultarmos a nossa
propria sensibilidade, e nossa razão, e os caracteres e fins da
sociedade conjugal. •
- São, por isso, realmente inaceeitaveis as diversas doutri­
nas que o Compendio meneiolia no final do citado paragrapho
e respectiva nota, com que alguns authores pretendem assienar
519
a origem de tal obrigação. Mas também não nos parecem isen­
tas de defeitos as que Ahrens e Ferrer propõem em lugar d’ellas,
e nem mesmo a que nos ensina o proprio Compendio.
Fundam uns essa obrigação no pacto matrimonial ; outros
na lei positiva; outros nos simples impulsos da sensibilidade
paterna; e outros ílnalmente, c d’este numero o Compendio, no
facto da geração.
Mas todas estas diversas doutrinas, cada uma de per si,
exprimem mal a origem d’aquella obrigação.
Si quando se diz que ella deriva-se do pacto matrimonial,
pretende-se deixar crèr que a mesma existe, porque os conjuges
se compromelteram a reconliecel-a e a cumpril-a por uma de­
liberação que poderiam não tomar, estabelece-se um principio
evidentemente falso ; si se entende, porém, que elles não ti­
nham liberdade para eximir-se a essa obrigação por aquelle
meio, é claro que não póde ser ella originada d aquelle pacto.
A loi positiva não póde lambem ser o fundamento d'aquella
obrigação. A razão e a consciência clararnente nos dizem que
elle é anterior e superior a quaesquer leis sociaes, que apenas
a consagram e sanccionam de um modo expresso e solemne ;
e que si o não fizessem, ou a contrariassem, commetteriam uma
monstruosidade, disporiam uma cousa inexequível. <
Os impulsos da sensibilidade paterna não pódem igual­
mente ser coudemnados como origem d’aquella obrigação ;
elles são a sua manifestação, mas não o seu principio. Pódem
estes até dc facto não existir em algum caso, sem que seja por
isso menos real a existência d’aquella, a <|óal ante o Direito tem
para os propriué paés degenerados tanta força corno para os mais.
Finalmente, dar-se por origem a essa obrigação o facto da
geração, é altribuir-se um fundamento por demais estreito, pu-
rnmenle. material, c contingente çomo o precedente, no mais
importante dos deveres paternes, e que menos póde licar
á mercê de sua boa ou má índole pessoal.
A maneira pela íjnal o (lompeinlíu pretende justilicíii esta
sua doutrina, dando"« entender que o direito dos filhos correl-
litivos a essa Obrigação dos paci», é uma especie dc çompensa-
cão nele facto dc haverem estes pela geração d’aquellcs sido
causa do estado de fraqueza c ignorância cm que estes nascem,
não lios parece admissível.
Primeiramente porque essa condição em que os filhos vem
ao inundo não 6 propriamente cousa imputável
nues mas á propria natureza; c em sogundoMugai, potquc se­
melhante explicação não justifica satisIVtoriamenlo quaesquer
outros direitos dos mesmos filhos e obrigações correspondentes
520
dos seus progenitores, que não tenham relação intima ou itn-
mediata com aquella sua fraqueza e„ ignorância originarias.
Fm summa, devendo o fundamento dos direitos e obriga­
ções dos filhos em relação aos paes ser em geral o mesmo dos
direilos e obrigações d’estes para com aquelles, qualquer das
razões com que as diversas doutrinas indicadas pretendem ex-
plieal-os, tornam-se insuflicientes para isso, visto que nenhuma
d’ellas lhes póde ser commun), salvo o da lei positiva, aliás in-
acceitavel tamhem pelas considerações que já expendemos. _
Diremos, por conseguinte que aquella obrigação nasce d i-
rectamente da natureza da sociedade conjugal, e de seus fins,
e até em geral da propria natureza, humana.
Os filhos, como diz o Sr. Ferrer, são entes sensíveis, ra-
cionaes e livres por natureza, e por tanto, pessoas dotadas do
todos os direitos absolutos inhérentes á personalidade do ho­
mem; direitos exigíveis, pelo simples facto da sua existência,
e não só em um sentido geral respectivamente a todos os indi­
víduos em virtude de seu titulo fundamental e superior, mas
de uma maneira particular a seus paes, em virtude das relações
especiaes e mais intimas que reciprocamente os unem, durante
todo o periodo de sua vida em que ellas carecem de sua imme-
diata assistência, e assíduos cuidados.
Mas, é claro que para poderem os.pacs conveniente e elu-
cazrnénte cumprir essa obrigação, e todas aquellas mais parti­
culares em que ella se resolve nas suas applicações de detalhe,
é mister que se lhes attribua urn complexo do direitos ou facul­
dades que para esse fim são necessárias : e é isso o que consti­
tue, como nos diz o Compendio no seu § 180, o poder paren­
tal, ou pátrio. .
F’ com effeito aquella obrigação o fundamento proximo
d’este poder, e com razão regeita o mesmo .Compendio as dou­
trinas de Hobbes, de Grocio, e de outros authores, que preten­
dem dar por fundamento ao mesmo, uma especiò de occupa-
ção dos paes a,respeito dos filhos, ou o consentimento d estes.
A argumentação com que elle refuta semelhantes doutrinas
é cathegorica, e não precisa de mais commentarios, salvo a sua
idéa de fundar tal poder no simples facto da geração dos filhos,
que já á pouco contestamos.
No § 181 enumera o mesmo Compendio os diversos modos
pelos quaes o poder parental se manifesta, as suas diversas ap-
plieações, ou os deveres e direitos particulares que n’elle se
contém. .
Feio que temos dito sobre as relações que da familia resul­
tam entre os paes e os filhos, assim como pelos direitos conti-
521
dos no poder parental que o Compendio aponta no seu tilado
paragraplio, vê-se que os mesmos, assim como ns obrigações
que lhes são correlativas, referem-se com efleilo, principal-
mente a uma ou a outra das duas necessidades fundameutaes
dos filhos considerados como jiessoas, ou em geral, do homem :
á sua conservação, ou ao seu desenvolvimento physico c moral,
ou a ambas simultaneamente.
Assim o seu direito e a obrigação correlativa dos pacs
quanto á sua creação e alimentação respeitam cspeeialmente
ã primeira ; a sua educação c iiislrucçào á segunda ; e a admi­
nistração, zelo, e augmeulo dos bens da família, lauto se des­
tina á satisfação de uma como de outra. 0 mesmo poderiamos
verificar ácerca dos mais direitos ou deveres paternos que
o Compendio íCaqiiclle paragraplio menciona, mas para corn-
prehendel-o, basta consideral-os, independcnlemente dc qual-
quer demonstração.
Km summa, o que elle alii nos expõe é liquido ; esses di­
reitos ou obrigações derivam-se todos mais ou menos directa
e claramente, como já temos dito,sla propria natureza e fins
da sociedade matrimonial, da familia, c do liomciu,e cada um
em si proprio sente a sua realidade como paeou como lilho.
Nos dons paragraplios seguintes, 182 e 183, trata o Com­
pendio dos limites do poder parental, os quacs, como elle bem
observa, se deduzem de seu proprio fundamento -, e no primeiro
d’aquelles occupa-se elle especialmente com o limite d'esse po­
der quanto an tempo de sua duração. Este e, sem duvida, de­
terminado pelo proprio termo natural da creação, educação,
e protecção devida pelos paes a seus filhos, e de que estes têm
indeclinável necessidade dentro dc um certo periodo de sua
existência. Quando esta necessidade começa ou finda, começa
c linda também pára. nquelles o poder que d’ajii lhes provém.
Aquelle periodo decorre desde o nascimento dos limos, ale
a cooclia do desenvolvimento integral de seu corpo e de suas
faculdades intellectuaes. Si só o Direito Positivo pode propria­
mente ílxal-0 de um modo preciso, comtudo o Direito ixatural
assás claramente o indica iadependentementa d elle.
A nossa legislação civil marca a maioridade legal dos filhos
aos 21 annos; mas pôde ella variar mais ou menos segundo as
condições especiaes de cada paiz. , . ..
Além d'esse
AltiUl 1.1 CJWü termo
ICI UIU as relações
I que continuam subsistir
T" . 1
„nirn ,Vies c lilíios, segundo se exprime Ahrens, « tern ames ao
l u t um
nino K ncaiareiü * «lo A o..o,........
r d . , 1 . .........
moral, ,,„e a m m m j m
pódc nem deve mudar em caracter de » Os
segue cl Io. devem sempre delerencja o respeito a seus pacçO
dl r.
%
^ V ,
522

mas d'ulii imo resulta para estes uni poder, que leria de excr-
cer-se arbitrariamente solire tîllios já em idade de completo
desenvolvimento de razão, e no uso pleno de suas faculdades
moraes e intellectuaes. »
iNão é preciso, cerlamenle, grande esforço para compre-
bender se, quér a extincçào do poder parental pela maioridade
dos (lllios, mua vcz ipie esta faz cessar a sua vazão de ser, quér
a continuação do dever de amor e veneração filial além do mes­
mo, uma vez que cila não rompe, nem pôde romper os laços
íiaturaes que em todo o sentido e em todo tempo ligam os paes
e os filhos. São cousas essas perfoilameute compatíveis, e qual­
quer d’ellas indispensável, e imposta pela natureza. Tão in­
concebível é essa rotura completa das relações liliaes e pater­
nas ainda depois da emancipação dos filhos, como a continua­
ção indefinida ou perpetua da sujeição d’este’ áquelles. Qual­
quer d’eslas idéas é uma concepção irracional, e absurda.
Mas si da maioridade dos filhos resulta legitimnmente, em
regra, a emancipação d estes, não quer isto comtudo dizer, que
a simples idade, em que naturalmente se presume a sua capaci­
dade de reger-se por si, importe ipso faclo, serem os mesmos
desligados do poder parental. A sua emancipação é, em todo
o caso, subordinada á sua real capacidade ; um idiota jamais
Sc emancipa, e o proprio filho que embora ern idade e condi­
ções para isso, de facto continua sob o teclo e economia pa­
terna, com razão é, ao menos pelo Direito Civil, considerado
sujeito áquelle poder.
O periodo da minoridade dos filhos divide-se commummente
e.m duas partes, o da impuberdade, e o da puberdade d’estes, as
quaes também só pelo Direito Positivo pódem ser precisamente
determinadas,; n’elle se conta, ordinariamente, o primeiro até
a idade dc 12 annos para o sexo femenino, cate aos l ! para
o masculino, e o segundo d’abi em diante.
Mas a tlifferença característica d’estas duas secções na idade
dos filhos será tal que. motorise a doutrina, que nos expende
o Compendio no seu citado § 182 e nota respectiva, de que não
lia sociedade entre os paes e os filhos cotnprehendidos na-pri-
meira, nias sómente com os que tenham entrado na segunda,
sob o lundamento de que os lilhôs durante a impuberdade não
pódem prestar o seu consentimento á mesma?
Não pensamos assim : e o proprio Compendio na parte
final d’aquella sua nota como que deslróe aquella razão, pois
declara, que sendo a sociedade parental urna sociedade neces­
sária dispensa o.consenso dos púberes, quando estes não o pres­
tam ou o recusam. Ora, si isto acontece até nos casos em que
Digitalizado pelo Projeto Memória Acadêmica da FDR - UFPE

su iigura esla recusa, não deve com mais razão dar-se quando
esta não se vcrilica jior impossível da parte dos impúberes ?
Mas n que é liquido é que o lillio menor, quer púbere quer
impúbere, não pôde prestar ou recusar o seu consentimento no
grêmio da família ã cousa alguma, e si para haver sociedade
parental fosse elle preciso, ou si não fosse esta tuna socie­
dade independente d'elle, não existiria a mesma entre os paes
o, qualquer d’essas duas classes de lillios, desde que os proprios
púberes não lém capacidade jurídica para dal-o ou negal-o.
A sociedade parental existe, pois, quer com os lillios pú­
beres, quer com os impúberes, os quaes de Direito são em tudo
iguaes; e existe com uns c outros, porque é cila tão necessária
a respeito de uns como de outros, e assenta respectivamente
a quaesqiier d’elles sobre os mesmos fundamentos. í?i os-im­
púberes não lhe prestam a sua annueucia, porque o não púdciu
de facto, a natureza o snpprc ; e si os púberes rcalmçntn o re­
cusam, lambem sem pmlel-o juridicamente, a mçsma natureza
os força. Voluntária ou não, livre ou obrigada, ha entre os paes
e os filhos, seja qual fôr a idade d’estes, a troca reciproca de
zelo e protecção dc uma parte, de respeito c obediência de
outra, de amor e oíílcios de toda a espeeie de ambas, en eom-
munhão.cm tudo o que constitue o laço e a vida da familin.
Si tudo isto assim disposto pela lei natural eque a própria
sensibilidade e a razão filial confirmam e adoptant, ou antes
exigem imperiosamente, não dá á união entre os paes e os filhos
um caracter perfeitamente social:'si para isto é necessário
o consentimento deliberado e expresso d’estes, então também
não é uma verdadeira sociedade o listado, a humanidade ainda
menos, e a propria união conjugal deixa de sel-o : pois que de­
pois de formada não depende mais a sua existência «lo consen­
timento dos conjuges. ,
Si o consentimento é, em geral, necessário para a mrinn-
ção e subsistência du uma sociedade; algumas lia, emntudo,
que por sua natureza e caracter o dispensam para esla ou para
aquella, porque são uma e outra consequências dc princípios
ou de instituições anteriores e superiores ã vontade dos que as
formam ; e a sociedade parental está n’esse caso, como uinco-
rollario natural da familia.
Esses authorcs; pois, que o Compendio cila na referida
nota e em cuja autoridade elle apoia a sua opinião, sustentam
uma’doutrina que não nos parece acceitavel, e isso por não le­
rem na devida conta a natureza e cffeitos espeeines d aquella
sociedade, ou os da união conjugal.
-L IC 3 Ã C Z L - Z

§§ 183 — 187 (31)

Continuação : — doí limites du poder parental; — participa­


ção no mesmo dos dous conjuges; — direitos dos filhos,
c sua igualdade na fam ília. — Dos filho? naturacs.

0 poder parental, já em relação ao lernpo de sua d tíração,


já á sua intensidade, diminuc, como nos faz ver o Compendio
no seu § 185, á proporção que se desenvolvem as faculdades
dos filhos, quér physicas, quér moraes, quér inlellectuaes; ou
« cxlingue-se gradualme.ntc.»
Nem pôde deixar de ser assim desde que, segundo já vimos,
esse poder funda-se no direito e obrigação.que lèin os paes de
crear c educar os filhos, de protegel-os e dirigil-os, de supprir
á sua ignorância e fraqueza, em quanto e até onde ellas care­
çam d'istn, e que essas necessidades não são as mesmas nas
diversas phases pelas quaes elles passam durante a sua mino-
ridade.
Essas phases principaes, já o dissemos lambem, são a da
impuberdade, e a da puberdade, e cornprehende-se hem qúe
não póde ser em tudo idêntico o poder dos paes sobre os filhos
nos primeiros annos d’aquella, ou nos últimos dV.sla, em que já
ós mesmos filhos têm em grande parte completado a sua crea-
ção e educação, e adquirido sufliciente discernimento e aptidão
para por si dirigirem-se em muitas circumstancias ou actos da
vida. -
Mas não diminuc ou se exlirfcjue sómente por aquelle
modo ou razão o poder parental, como ainda póde succeder

i# >
(31) Por necessidade da melhor dedu cçáo de nossas explicações
invertemos ainda a ordem dos paragraph os db Compendio n’esta licção.
que por oiilros molivos venham os pacs, conforme o figura
o Compendio no § 180, a achar-se em circuinstanciaa de não
poder,em exercel-o por si mesmos; casos em que, incontesta­
velmente, devem elles 1er o direito de encarregar de seu exer­
cício a outrem, que para isso julguem idonco, e em que con­
fiem, a menos que o seu impedimento não seja de tal natureza
que para isso os inhabilité, segundo o Direito.
Cumpre, porém, imdagarmos si aquclla, faculdade dos
pacs deve ainda, ou do mesmo modo, caber-lhes por occasião
de sua morte, ou para fazer-se elfecliva depois d’esta, caso
a que o Compendio allude no seu citado paragrapho ; mas sem
discutir esta questão, que consiste em saber-se si por Direito
Natural são admissíveis a tutela e curatel a dos filhos instituídos
pelos paes por.acto de ulliina vontade, ou em icslamenlo.
Para nós que temos sustentado a faculdade de testar, e de
successáo legitima por aquelle Direito, a questão é simples e esta
implicitamente resolvida no sentido allirmatiyo ; para o Com­
pendio, porém, que áquelle respeito pensa de outro modo, dr-
vèra ser a solução da mesma em sentido contrario ; e islo de
certo, o embaraçaria grandemente.
Com effeito, é difiicil negar-se a competência dos pacs
para aquelle fim, ou repellir-se do Direito Natural aquellas es­
pécies de tutela e curatela, que são, sem duvida, as mais na-
turaes, as mais respeitáveis, e que antes de quuesqucr faclus
em contrario, se devem reputar as mais profícuas aos filhos ;
razões pelas quaes realínenle todas as legislações dos povos
mais adiantados não só as consagram, mas até dão-lhes deci­
dida preferencia sobre as de qualquer outra origem.
Ü Compendio alludindo á morte do pae escapa á discussão
d’aquella questão figurando a sobrevivência da mão, á qual fã/,
passar o poder parental, o que na verdade, é justo ; assim como
que esse poder deve em todo ocaso compelira esta, quando
o pae é incerto.
.São, com efieilo, incontestáveis estes principies, e não só
os acceitamoB plenamenle, irms até niais adiante deduziremos
d’elles argumento contra a doutrina do mesmo Compêndio re­
lativa á primasia, qúe elle attribue aos paes sobre as mães no
poder parenlal.
Depois dos limites d’este quanto ao tempo de sua duração,
temos de expôr os que sc referem á sua legitima extensão.
D'elles trata o Compendio no seu § 1811.
Estes limites derivam-se ainda, já em geral da propria na­
tureza humana, origem primaria de todas as relações existentes
8 2 0

entre os paes co s íillios, e já cspecialincma da natureza e lins


ila sociedade conjugal, e da l'amilia.
Por desconhecerem estes princípios em sua genuina ver­
dade, é que os povos antigos consagraram nas suas legislações
os maiores horrores como Direitos derivrídos da paternidade.
E’ assim que entre os Romanos, de que nos falia o Com­
pendio na nota ao seu citado paragrapho, foram os filhos con­
vertidos em simples cousas, incorporados ao patrimônio pa­
terno como uma accessào do mesmo, c attribuidos aos paes
sobre elles, em toda a sua plenitude, os direitos do proprietário
em relação aos objectes uiateriues do seu duminio, e até o de
vendel-os e matal-os I
Com os princípios, porém que temos estabelecido, e geral-
mentç proclamados nos paiz.es modernos, mesmo de mediana
civilisação, não são mais possíveis semelhantes monstruosida­
des, ou esse despotismo estúpido no seio da familia, de rjue nos
«tão ainda alguns especimens certos povos selvagens ou bár­
baros.
Os filhos, como rios diz o Compendio, são pessoas, e tértr
n ’essa qualidade direitos absolutos contra os quaes nadaé per-
mittido aos paes. Qudr pela lei jurídica, quér pela'lei moral,
uma violência d’estes contra os filhos, não só é um altentado
corno ainda o é mais grave, e mais sevéramente punivel do
que si fôra commeltido contra um estranho. Ningiiern contes­
tará, de certo, que o simples homicídio ou a escravidão dc um
homem por outro que não é seu pae, sejam crimefe rneuos he­
diondos do que o assassinato de um filho, ou a sua venda como
escravo.
O engeitamento, de Ipre nos falia ainda o Compendio, não
póde ser tambern urn direito dos paes a respeito dos filhos, ou
uma faculdade compreliendidano poder parental. Si esse facto,
infelizmente tão commuai nas sociedades humanas, não produz
ahi toda a indignação que devêra merecer, não ó porque se re­
conheça aos paes o direito de pratical o, ou que se o approve1;
ó porque de ordinário elle denuncia mais.fraqunza do que per­
versidade, é mais urn sacrifício á opinião inexorável dos ho­
mens, ao pudor ou honra hem ou mal entendida, do que uma
affronta á natureza. E’ isso, sem duvida, e em todo o caso al-
lamente reprovável ; mas só Deus póde saber quanto custará
muitas vezes semelhante passo, sobretudo ao coraçáò materno !
As mais restricções que o Compendio põe, n’este para­
grapho, ao poder parental, são igualmente incontestáveis.
Esse poder é essencialmente destinado ao hem estar, c des­
envolvimento dos filhos-, tudo, pois, quanto a titulo de exercel-o
rôr praticado pelos paes cm seu detrimento, será antes abuso
do mesmo do que suu .applicaçilo regular e legitima ; será um
crime, em vez do desempenho do mais sagrado dos deveres
impostos pela natureza, o consagrados pela lei social.
Assim, forçar as tendências ou vocações razoaveis dos íl-
lhos, desvirtuar os seus sentimentos ou vontades com exigên­
cias contrarias ás leis ou á moral, frívolas ou imiteis, ou qtiaes-
quer outros procedimentos semelhantes a seu respeito, seria,
em vez de cducal-os, pervertei-os, em vez de promover a sua
felicidade presente e futura, lançal-os nd caminho da perdição
e da miséria. /
Com quanto, pois, não se possa precisar d priori os limites
que deve ler por este lado o poder parental, todavia a razão
e a justiça, a natureza humana e a moral, os fazem conhecer
períeitumente na consciência dos proprios paes, que na verdade,
de ordinário mais vezes peceam por condeseelidencia demasiada,
do que por excesso d’aqnelle.
Ao § 184 diz-nos o Compendio que o poder parental per­
tence a ambos os conjuges ; o que, aliás, hem se comprehende
depois dos princípios quiv sobre esla matéria temos expendido.
O dever e o direito de crear e educar os lillios, e todos os
mais relativos a estes que tem os paes, são, com e(feito, e não
podem deixar de ser communs a um’ e outro conjuge, e por
conseguinte deve sêl-o também o poder parental. O modo dc
sua manifestação nas relações familiares, ü, sem duvida, diverso
da parte de cada um destes, desde que, segundo já vimos, lia
foneções que no seio da familia são mais próprias da esposa,
e outras que n são mais do marido; mas isto não póde ter o ef-
teito de annullar a autoridade de um ante a de outro.
Kntretanlo o Compendio depois de emillir aquella idea,
entrando no seu desenvolvimento, influenciado pelá doutrina
miir estabeleceu no seu § 17o, (juanto no wípeno «lo mando
sobre a mulher, atlribue ainda áquelle em relação a esta uma
decididanrimasin no poder parental.
Quando análysamos aquelle paragrnpho acceitamos, sem
duvida, o principio de que em casos de cullisáo entre os volos
do esposo e da esposa na deliberação dos negocios familiares,
devia em geral, prevalecer o d’aquell« : maVj dissemos lambem
porque c em que sentido devia-se adniitlir essa regra ; não era
isso em razão de desigualdade ppopriamonle dita dos seus po­
deres • e demais que tal regra não era absoluta.
Para contestar-se, portanto, essa primasia t\o poder pa­
rental do marido, ou ao menos para comprahonder-sc .1 verda-
ileira significação em que elia deve ser tomada, basta apphcai-

I
528
se-llie os argumentos e considerações com que já refutamos,
ou reduzimos ás suas reaes proporções jurídicas, o supposto
império marital.
Foi também por uma idea errônea sobre as relações mu­
tuas dos esposos e sobre os seus respectivos direitos na familia,
que as leis primitivas de lioma despojaram a mulher do poder
parental, c. não só a puzeram sob a tutela permanente do ma­
rido, mas até sob o sou direito absoluto de vida e morte -, e que
ainda hoje na maior parte dos paizes do Oriente jaz a esposa
na inferioridade e na escravidão.
Nos codigos dos povos modernos mais adiantados, com
quanto ainda se attribua uma parte mais importante do poder
parental ao marido, com tudo é isso dentro de limites racio-
naes, e convenientes ficando sempre salva á esposa sobre os
filhos uma grande somma de autoridade que a natureza lhe
confere, que suas proprias funeções na familia exigem, e que
nenhuma legislação civil lhe pode recusar.
Segundo o Direito Natural, si dilïereuça existe no poder
parental entre o pae e a mãe, vem ella mais da desigualdade
(1’aquellas funeções dos mesmos, do quede desigualdade de sua
condição jurídica. .
Deve, por conseguinte a primasia cm tal poder. (|úe o Com­
pendio confere ao marido ser entendida n’estes lermos -, o isto
tanto mais quanto elle proprio com razão estabeleceu, como
já vimos, no seu § 186, que morto o pae aquelle passa integral­
mente á mãe, e que compele até exclusivamente a esta, quando
o pae é incerto ; o que importa reconhecer a natural capaci-
Vlade da mulher ou da esposa para o exercício do mesmo.
Si dos princípios que acabamos de expòr resulta a igual­
dade jurídica dos conjuges na familia ; cdos mais que anteriòr-
mçnte temos exposto, deduz-se a cojnmunhãó familiar entre
elles e os filhos -, deduz-se ainda para estes, de uns e outros,
não só o direito de successão legitima, e todos os mais corre­
lativos ás obrigações paternas, que já precedentemenle temos
demonstrado, mas também a igualdade jurídica dos mesmos
filhos em todos os sentidos, e especialmente em relação á par­
tilha dos bens de seus paes por morte d’estes, salvos os efTeitos
da faculdade de testar livremente sobre alguma parto limitada
d’aquelles qne a lei social julgue justo conceder-lhes.
Não ba, de certo, razão para admittir-se, e são evidente­
mente contrarias á natureza e á igualdade da familia, certas
instituições anômalas, que caracterisam as legislaçães da maior
parte dos povos antigos, que são ainda as dc alguns semi-har-
baros, e de que notam-se até vestígios nos codigos ou costumes
529

de alguns ilos qud marcham á frente xla civilisaçãp moderna !


como sejam1: a exclusão das filhas, ou a preferenciados filhos
na succcssüo palerua, e o direito de prtmogcnitura na linha mas­
culina, lei coinmum na idade média, que ainda hoje, como já
dissemos, em falta de testamento dos paca em sentido diverso,
prevalece na Inglaterra e nos Estados-Unidos, e que até á pouco
exislio mesmo entre nós pelos morgados recebidos da nossa
métropole.
èomprehende-se que as razões em que assentaram ou as­
sentam taes disposições, ou quaesquer outras semelhantes, não
pódem mais ser acceitas no estado actiial dasciencia, c da civili­
sa ç,1o humana, para desigualar-se a condição natural dos filhos.
Segundo a natureza são todos elles em geral iguaes ante os
seus paes. tem lodos o mesmo direito ásua ternura e protec­
ção. e devem ter, por tanto, a mesma parte na fortuna que elles
deixem por sua morte; c quando entre elles algum haja real­
mente mais digno a este respeito de algum favor paterno espe­
cial, por anuelía liberdade de testar quanto a uma certa porção
de seus tiens, que, como á pouco vimos, póde a lei social julgar
necessário conceder aos paes, ficam estes habilitados a satisfazer
aos justos reclamos de seu coração» relativamente a qualquer
d’elles, sem prejuizo dos mais.
A igualdade dos filhos na família é para nós, em summa,
um dogma de Direito Natural. .
Mas a respeito dos nascidos fóra d’ellaoquc devemos pen­
sar? ou por outra, segundo aquclle Direito, bavera dilfereuça
entre a condiçãojuridica dos filhos naturaes e a dos lilhos legí­
timos, e espeeialmenle quanto á successílo paterna ?
Diremos muito suminariainente a nossa opinião sobre esta
questão, embora seja cila assumpto para largas dissertações es­
colares, c de variadíssimas regras no Direito Civil.
lielére-se essa questão unicamente aos filhos havidos tora
do matrimonio, mas entre pessoas não impedidas, na occasião,
de contrahil-o : porque sendo o adultério o o incesto graves,
iufraccões, quér da Moral, quér do Direito Natural, e claro qiip
os filheis procedentes dos mesmos não podem ser como taes re­
conhecidos por este Direito, ou pelo menos não pódem ser ante
elle equiparados aos primeiros sob a relação de que tratamos.
Não lia com elfeiln. razão plausível para que os filhos da-
(luella primeira classe deixem de ter a respeito de Seus paes as
mesmas obriaacôes e direitos correlativos existentes entre os
paes e os filhas, iegilimos. tanto quanto isso lhes seja apphcavcl
e sem prejuizo d estes últimos ..
Assim, o llllio natural deve ter, além de outros, o dneito
Û - .

I
550

de succéder a seu pa& ou mâe nos bons (|uo a estes forem pro-
prios; mas não o de concorrer coin os llllios legítimos nascidos
do matrimonio posterior de qualquer d’aquelles, na successào
dos bens que devem constituir o património da familia por elle
formada.
■Outra questão não menos importante nasce d’acjuella, tal
é a de saber-se, si a qualidade de Gllio da espeeic a que nos re­
ferimos depende do reconhecimenlo voluntário de seu pae ou
ináe, ou si lhe compele igualmente o direito de proval-u ém
falta d’isso ou contra a vAntade de qualquer d’estes.
Si o direito que atlribuimos a taes filhos é real e lhes vòm
da nalnreza, como pensamos, parece--nos indubitável que lhes
devo pertencer também, como condição de sua realidade, o de
demonslralrO mesmo n’estes últimos casos, e quér se trate de
patéhiidade, quér de maternidade. Si quanto a esta não se of-
ferece grande duvida á applicaçáò de tal direito, quanto úquella
não nos parece sufiicientc a razão que de ordinário se lhe op-
põe, das inconveniências ou escândalos a que podem dar lugar
as pesquizas e revelações que isso importe. Por mais atlendi-
vel que tal nllegação seja, não pódc, em todo o caso, justificar
o sacrjficiu de um direito nutural.
Km somma, perante a natureza, e por conseguinte perante
o Direito Natural, os filhos a que «Iludimos tanto o são como
os legítimos; e si não se póde dizer que a sua condição juridica
c a mesma d’estes quando em concurso com elles, ou quanto
a certas relações que só pódem nascer da familia constituída
pelo matrimonio, com tudo incontestavelmente o é quanto
a todas ns.mais a que, e até onde pódem ser applicaveis os di­
reitos e obrigações naluracs entre paes e filhos, e particular­
mente a respeito da suecessão «Postes nos bens d’aquelles, com
a restricção que acima indicámos.
Quanto á matéria ao § 187, diremos apenas, que não con­
sideramos os criados ou fâmulos como membros da familia;
que são elles ahi figuras muito secundarias, e nem se póde dizer
fine haja entre elíes e esta um fini còmrmun, mesmo esse lim
remoto de que nos falia o Compendio. Não é, de certo, o bem
da tumilia que o criado tem em vista quando lhe aluga os seus
serviços ; nem é esse o interesse que ahi o leva ou retém, mas
o percebimento de seu salarie. Nenhuma parte, em summa,
tem elle, propriamente, na sociedade familiar onde existe ; outro
e de diversa natureza é o pacto que o liga a familia.
/
N

71
REATA
PAG. LINH AS KlltlOS KMRJfUAS
/
0 nenhuma
12 nem uma
11 3 porém (siippriwa-ffí)
11 12 moral: moral, ou politipo ;
J1 42 ante a luz antes á luz
19 3 qíie acçào que a acção
25 5 e S. cada familia cada sociedade ou famí­
lia ' ■
35 15 legislador legista
55 20 restrictas reslrictivas
92 3 naquella 11’aquglle
93 18 caridade, caridade, (c accrcsccn•
le.-sc) I'ara 0 cliristão
deve ser isto tanto
mais evidente quanto
70 10 no § 29 nos §§ 42 0 seguintes
71 2 §§2 1 —22 §§ 25 — 33
80 5 conjecturas eonjuncturas
84 2 § § 39—83 §§ 39 — 38
94 1 5 realmenle relativamente
97 27 condicções a'que condições que
102 7 ullius nullius
117 22 mas mais
122 20 conseguil-a conseguil-o ,
123 35 em os seus sem os seus *
141 23
142
e j condomino condomínio
174 39 séria severa,
184 9 suas sua
215 8 cousa causa

\
p a í ;. l in iu s KIII)os EMENDAS

221 12 117 119


224 22 o deposito 1 que. a deposita
22« '2 § § 126— 136 §§ 120 — 135
242 .24 este esta
261 18 pcrmiltc permittem
265 11 e 12 condomino condominio
265 15 adquire multiplicar adquire, e procura mul­
tiplicar
266 40 Natural dos paes Natural,isto é, no amor
dos paes
267 27 eíTeito eITeitos '
267 33 fazer os seus fazer Sos seus
268 1 exclusiva a a exclusiva
270 11 elle ella
(270 12 imposto imposta
283 18 e 19 não o será nem sempre o será
284 7 e 8 destruiram destruiriam
284 11 por elle por ella
286 22 com (mpprima-se)
287 15 protestar perturbar
287 16 e 17 e cornmetter é commelter
288 1 outros outras
288 • 15 d’essas duas
289 6 dependente, corno dependente da vontade
de seus membros, co­
mo clc,
289 28 os formam as formam
291 10 da sociedade de sociedade
292 9 intervenção intenção
294 1 a própria á própria
294 22 materiaes maritaes
294 27 o seu typo segundo o seu typo
294 33 ao homem do homem-
295 33 facto pacto
295v 41 ao seu caracter do seu caracter
296 32 elle ella
296 34 fealisal-a realisal-o
297 8 considerações condições
302 17 e 18 aquellas ’ aqutílla
303 34 ofTendirfos defendidos
3Ò3 i 42 dòr ao conjuge
dôr do conjuge

/,
PAG. LINHAS EIÎHOS EMENDA?

304 2 considere lira cr îe considere o adultério uni


crime
304 A àquelles àquellu
308 22 sociedade ha sociedade ha que o seja,
porque nenhuma ha etc.
310 21 seriam seriam frequentemente
310 21 os casamentos, os casamentos ; mas até
313 5 abandonado abandonada
315 10 c causa é causa
317 7 que substitue que se'substitue
319 19 elle ella
319 21 cqndemnados considerados
/
N. lî. — Alem d’estes erros outros ha menos importantes,
e faceis de conhecer-se.

4
DAS

MATÉRIAS CONTIDAS NESTAS LIE

PACS.

frologo............................................................................. v

SECÇÃO I. — A'orno do Direito ; principio primário da aden­


d a do Direito

1 icçÂo i. — §§ 1 — 3. — Definição do Direito Natural:


realidade do principio do justo, e seus caracteres ;
objeclo da sciencia do Direito............................••.. 1
I k:çAo li. — §§ 4 — 7. — Do direito como predicado
das acções, e como attribute das pessoas: suas for­
mulas no primeiro caso ; seus corollaries e garantia
no segundo ; caracter do dever jurídico, c seus en-
nunciados ................................................................. 8
I.ieçÃO ui. — §§ 8 — II. —Distineção do Direito Natu­
ral e da Moral........................................................... 1•'>

SECÇÃO II. .— Das parles e limites do Direito N atural; c da


utilidade do Direito Natural Privado

l.icçÀo iv. — §§12 — 15. — Divisão do Direito Natural


em geral, e sua distineção da 1’olitica...................... 22
I.icçAO v. — §§ 1(5— 17. Necessidade do Direito posi­
tivo. e seu fundamento; espccies de leis que nellc
se comprehcndcm ; distineção do Direito Natural
em relação ao mesmo, c a sua philospphia............ 20
I rcçAo vi. - §§ IS — 20. — Importância e utilidade do
Direito Nalural 1’rivado, e do sou esludo................ 85
PARTE I
EHrcilo p r iv a d o c x ira -.so c ia l
SECÇÃO I. — Dos direitos innatos

I.icçÃo v i i . — § § 21 — 22. — Origem e caracteres dos


direitos innatos; sua distincção dos derivados; tí­
tulos de uns e de outros; do direito prirnigenio__
I.icçÃo viu. — §§ 23 — 25 — 33. — Divisão dos direi­
tos em direitos das pessoas, e direitos das cousas ;
enumeração e classificação dos direitos innatos; —
l.° do direito de conservação ......................... ........
I.icçÃo ix. — §§ 25 — 33. — 2 ° do direito de igualda­
d e ; — 3 ° do direito de independência................'..
I.icçÃo x. — §§ 25 — 33. — '4.° do direito de aperfei­
çoamento do corpo e do espirito, e de suas faculda­
des ; — 5.“ do direito de livre manifestação e exer­
cido d’estas...............................................................
I.icçÃo xi. — §§ 25 — 33. — G.° do direito de bòa repu­
tação ; — 7.° do direito de aequisição, e uso das
cousas .......................................................................
l.icçXo xii. — §§ 25 — 33. — 8.° do direito de benefi­
cência ; — 9.° do direito de segurança...................
I.icçÃo xiii. — §§32 — 34. — Da imprescreptibilidade
einalienabilidade dos direitos innatos. Das lesões
de que clles pódem ser objccto ; da maneira ante o
Direito................................................... • .................
I.icçÃo xiv. — §§ 36 — 38. — Continuação : da mentira
em certos casos ante a Moral; da caluinnia e inju­
ria ; de outras lesões jurídicas. Da reparação das
lesões ...............................................................

. SECÇÃO II. Dos direitos adquiridos

AtllIGO PRIMEIRO. — m a c q u isiç ã o 1MMEUUT

CAPITULO I. — I>A OCCUCAÇÃO li SEUS EFFE1TOS

I.icçÃo xv. §§ 39 — 43. — Da aequisição em geral,


suns espccies, e matéria; distincção da proprieda-
PACS.

do t: do dominio: do titulo e modo, ou do funda­


mento da acquisição immedia^n............................... til
I.ICÇÃO xvi. — §§ dl — dt). — Das condições da occupa-
çfio; da apprehensão da posse, e do assignalamentó
das cousas................................................. ’.............. 07
I.ICÇÃO xvii. — §§ dO — 50. — Continuação: do assig-
nalamento ; dos modos diversos de apprehensão
e assignalamentó das cousas.................................. 103
l.icçÃo xviii. — § 51. — Dos limites jurídicos da oecu-
pação, ou da acquisição immcdiata............. ........... 100
l.icçÃo xix. — §§ 52 — 53. — Da desigualdade da pro­
priedade ou do dominio entre os homens................ 115
l.icçÃo xx. — §§ 5d — 55. — Dos diversos systcmas so-
hro o fundamento jurídico da propriedade : systema
da convenção ; da lei civil.......... v ........................... 122 1
l.icçÃo xxi. — § 5(5. — Conlinuação : dos diversos sys­
tcmas sobre o fundamento da propriedade ; syste­
ma da especificação ou do trabalho......................... 12!> .

CAPITULO II. — DOS DIREITOS EEEMF.MTAUES DO DOMINIO ; I.


DIVERSAS ESPECIES DESTE ; DOS CONSECTAIUOS JITIIDICOS DO
MESMO.

I.ICÇÃO XXII. — §§ 57 — 02. — Dos dircilos que se con­


* liim no dominio, c das diversas espeeios deste........ 13C
l.icçÃo xxiii. — §§ (53 — 65. — Direitos e obrigações
entro o dono e o detentor ou possuidor.................. DÍ3
LicçÃO xxiv. — §§ 66 — 72. — Da acquisição das cou­
sas peia aecessão; regras d’esta. Das lesões do
dominio, c espccialmente da contrafacçüo da pro­
priedade lideraria.................................................... 149
l.icçÃo xxv.— §§ 72 — 70. — Continuação: da contra-
faeção da propriedade lideraria.......... . ................... 150
l.icçÃo xxvi.— §§ 77 — 78. — Dos usos da cousa alheia
*sem n consentimento de seu dono; do uso innoxio;
do direito de necessidade..................................... . 102
l.icçÃo xxvn. — §§ 78 — 79. — Coptinuação : do direito
de necessidade.......................................................... l (l{)
l.icçÃo xxvni. — §§ 80 — 85. — Da presciipção, sua
‘ legitimidade c utilidade : seu fundtmienlo no Di­
reito Natural, ou no Direito Civil......... ............... 170
540
PAGS.

ARTIGO SÉGIJNIK). — in acqdisiçáo mediata

CAPITULO I . — DOS PACTOS ESI GEUAL

L ic ç io Axix. — §§ 86 — 8 7. — Necessidade, e funda­


m ento dos pactos -, seus elem entos constitutivos ;
origem de sua força o b rig a tó ria................................... 183
L icç io XXX. — § § 8 8 — 9 4. — Continuação : da ori­
gem da força obrigatória dos pactos ; condições da
validade d’estes v do erro e dólo nos m esm o s........... 19 0
L ic ç io xx x i. — § § 9 5 — tOO. — Continuação : das con ­
dições da validade dos pactos ; coação << ameaças ;
pactos im p o ssív eis. .......................................................... jg #
L ic ç io xxxii. — §§ 101 — 110. — Do direito pessoal
e do direito real, resultantes dos pactos, c si este
depende da tradicçào do objecto. Da interpreta­
ção dos p actos................................................................. . 205
LicÁIo XXXIII. — §§ H l — 1 1 5 . — Dos pactos absolu­
tos, e condicionaes: dos diversos modos p orque
acabam as obrigações dos p a c to s................................. 212

CAPITULO II. — DAS DIFFERENTES ESI'KCIES DE PACTOS

L icç io xxxiv. — §§ 116 — 125. — Dos pactos prinei-


paes ; pactos benéficos: doação, cominodato, m u ­
tuo, d e p o sito .......................... .............................. o Jrj
L icç io xx x v . — §§ 12G — 135. — Mandato, gestão dê
negoeios. Pactos commututivos ou on erosos: per­
m utação, compra e v e n d a .............................................. 226
L icçio x x x v i. — §§ 136 — 139. — Empréstimo a juro ;
usura ; locação, e conducção de cousas ou de ser-
' i ç o s ............................................ ........................................... á34
L icç io xxxvn. — §§ 140 — 143. — Dos pactos a cces-
so n o s ; penhor, bypotheca e fiança. Pactos su c-
cessorios : doação m o r t i s c a u s a , testam ento, leg a ­
dos, e suecessão a b i n t e s t u l u .............................. oft »
L icç io xxxviii. — §§ 144 — 148. —tDos direitos de tes- ' “
tar, e de suecessão legitim a, e do fundamento dos
mesmos no Direito Natural ou no Civil : 1 .“ do di­
reito de testar....................................................................... 249
541

PAUS.
I.icçÃo xxxix. — §§ 1 49 i 50. — Continuação: 2." do
direito de successãn legitima............ ................... 257
I icção xo. — §§ 149 150. — Continuação: do direito
de successão legitima ; conciliarão do mesmo corn
o direito de testar............................................................. 264

P A R R T E II

d ir e ito p r iv a d o s o c ia l

CAPITULO I. — do miiEiro social km gkkai.

• ■ . '
I.icçÃo xli. — §§ 151 — 159. — Sociedade; diversas
especies d’esla : princípios grraes que as regulam ;
direitos e obrigações fundnmentaes internas so-
c ia e s ; direito da sociedade de estabelecer suas leis
ou regras..................................... .......................... 271
I.icçÃo xi.ii. — §§ 159 — i6G. — Çontinuação : do di­
reito da sociedade de estabelecer suas leis ou re­
- gras; do modo de sua deliberação ; direito de as
fazer observar; do império, e seus caracteres........ 278
Cicção xi.tii.— §§ 167 — 169. - Dos limiteà do impé­
rio. — Direitos sociaes externos. — Modo porque
acabam as sociedades...................................................... 285

CAPITULO II. — no in tim o sqcui . paiiticulau

I.ICÇÃO xliv . — §§ 170 — 179 e 17S. — Da familia, e


' seu fundamento, o matrimonio ; definição iTeste ;
seu caracter de unidade; da polygamia c polyun-
dria ; condições da formação do matrimonio......... 291
I.icçÃo XLV. — §§ 173 — 174. — Continuação: condi­
ções da formação do m atrim onio: direitos e obriga­
ções reciprocas principaes dos conjuges: t.° quan­
to ás suas p esso a s........................................................ .. • 298
I.icçÃo xLVi. — §§ 175 — 177. —Continuação : dosdi-
reitos e obrigações reciprocas principaes dos con-
j,,.rCs : 2." quanto aos bens; 3." quanto á autori­
dade na familia. — Da indissolubilidade do matri­
3 05
monio ......................................................................
5 42
PAGS.

f fcçÃo xí.yii. — § 177. — Continuação : da indissolubi­


lidade do matrimonio ; da separação corporal dos
conjuges; e do divorcio por Direito Natural........... 311
LlCÇSo \ lvih — §§ 179 — 182 e 185.— Direitos e
obrigações dos pais para com os filhos ; poder pa­
rental e seus limites............................... ................. 318
LicçAo XLix* — §§ 183 — 187. — Continuação : dos li­
mites do poder parental; participação no mesmo
dosdous conjuges ; direitos dos filhos, e sua igual-
■ dade na familia.—Dos filhos naturaes..................... 324

Typ. U niversal. —1880.

Potrebbero piacerti anche