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DEPOIMENTO 227
vezes bem-humoradas). A Companhia das Letras garantiu-me que o
autor estava disposto a retomar a correspondência comigo a fim de
esclarecer todas as dúvidas que surgissem no decorrer do trabalho, o
que de fato ele fez com a mesma boa vontade e presteza de antes. Mas
a linguagem de Mason & Dixon era uma dificuldade que eu teria de
resolver sem a ajuda do autor.
A questão não era tanto compreender o falso inglês setecentista
de Pynchon (eivado de anacronismos propositais, porém mantendo
um sabor que eu conhecia de Sterne e Fielding), até porque não há
problema de vocabulário que não seja resolvido pelo New Oxford
Dictionary. O problema estava na língua-meta, meu idioma nativo: o
português. Para recriar a prosa portuguesa do século XVIII, era neces-
sário ter um mínimo de familiaridade com ela. Ora, minha formação
literária em português é um tanto assimétrica: embora meu
conhecimento de poesia brasileira e portuguesa das diferentes épocas
seja razoável, em matéria de prosa meu forte sempre foi a literatura
brasileira dos séculos XIX e XX; e nem mesmo fazendo um esforço de
memória me ocorria ter lido uma única obra em prosa em português
setecentista. Recorri à maior autoridade brasileira em literatura por-
tuguesa, a professora Cleonice Berardinelli, minha colega de trabalho
na PUC-Rio, e confessei-lhe minha absoluta ignorância nessa área.
Da Cleonice indicou-me alguns textos que eu poderia encontrar na
biblioteca da universidade, mas advertiu-me que o século XVIII não era
dos períodos mais férteis para a prosa portuguesa. De fato, encontrei
na biblioteca um alentado tratado de filosofia, algumas obras sobre
navegação e pouca coisa mais; passei algumas tardes sonolentas
folheando essas páginas nada apaixonantes, anotando num caderno
palavras, expressões, peculiaridades sintáticas e outras marcas que eu
poderia utilizar em minha tradução.
A questão mais importante levantada pela linguagem era preci-
samente a da escolha das marcas arcaizantes. Elas não deveriam ser de
tal grau de complexidade que tornassem penosa a leitura do livro para
um leitor medianamente culto, pois o original está longe de ser inaces-
sível ao leitor médio, porém deveriam ser abundantes e conspícuas o
bastante para causar um certo estranhamento e manter a ficção de que
se trata de um texto de época. Naturalmente, o uso das convenções
ortográficas setecentistas nem sequer foi cogitado. Isso porque ao
contrário do inglês, que jamais sofreu uma reforma ortográfica radical,
a escrita do português passou por tantas mudanças profundas que um
texto em ortografia antiga — o que, de resto, estaria acima da minha
competência produzir — afastaria de saída os leitores (nunca muito
numerosos) que se sentiriam atraídos pelo novo calhamaço de
Pynchon. Assim, limitei-me a copiar do original o recurso de utilizar
iniciais maiúsculas de modo mais ou menos errático, restringindo a
prática, porém, apenas aos substantivos, embora o autor por vezes
colocasse maiúsculas em adjetivos e verbos. Também adotei uma pon-
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tuação caprichosa, como era comum na época, com uma abundância
de travessões.
Naturalmente, as marcas lexicais — termos de época — de-
sempenharam um papel importante no meu trabalho. Usei e abusei
de palavras de sabor arcaizante e sentido transparente, como
“cousa”, “mui” e “bodega”, mas não raro empreguei palavras que hão
de levar o leitor de minha tradução ao dicionário — tal como o leitor
anglófono de Pynchon é obrigado a recorrer ao Webster ou ao Oxford
de vez em quando. Resolvi também evitar usar palavras e expressões
que ainda não tivessem curso no idioma no século XVIII. Mas como
fazer isso? Os dicionários de que eu dispunha, o Aurélio e o Michaelis,
não traziam nenhuma informação quanto à época em que cada pala-
vra surgira no português. Para isso, eu precisaria recorrer a dicio-
nários etimológicos, que estavam todos esgotados. Havia alguns na
biblioteca da PUC, mas seria impraticável realizar o trabalho de
tradução lá. Assim, achei melhor adiar a solução do problema para a
fase de revisão e começar logo a traduzir o romance. A pedido da
editora, porém, interrompi o trabalho quando já havia rascunhado
cento e poucas laudas, para assumir outras tarefas, mais urgentes; e
foi durante esse interregno que o Houaiss foi lançado. Imediatamente
comprei o novo dicionário, e constatei, com uma satisfação imensa,
que na maioria dos verbetes era assinalado o ano ou século em que o
item lexical em questão fora documentado no idioma pela primeira
vez. Antes mesmo que a editora me mandasse retomar a tradução do
livro de Pynchon, fiz uma primeira revisão no que já conseguira
produzir até então para verificar a idade de todas as palavras que me
despertaram desconfiança. Dei-me conta, então, do quanto minha
intuição era enganosa. Para traduzir macaroni, por exemplo, eu
evitara “dândi”, cônscio de que a palavra fora importada do inglês
em tempos muito recentes, e optara por “janota”. Consultando o
Houaiss, porém, fiquei sabendo que “janota” só entrou no português
em 1851. Recorri à sinonímia do termo, surpreendentemente
abundante (“bonecado”, “ajanotado”, “almofadinha”, “aperaltado”,
“casquilho”, “chibante”, “dândi”, “embonecado”, “embonecrado”,
“empetecado”, “espanéfico”, “estarola”, “estouradinho”, “faceiro”,
“frajola”, “fresco”, “gamenho”, “garrido”, “papo-seco”, “peralta”,
“peralvilho”, “pintalegrete”, “pintão”, “sécio”, “taful”), e me pus a
verificar a datação de cada um. Terminei optando por “casquilho”,
termo documentado já em 1740. Esse procedimento foi repetido
inúmeras vezes ao longo do livro.
Com relação à sintaxe, tentei me aproximar da norma lusa: fa-
voreci a ênclise (“dou-te”) e a mesóclise (“dar-te-ei”) em detrimento da
próclise (“te dei”), e usei mais as formas verbais sintéticas (“farei”) do
que as analíticas (“vou fazer”). Não abusei, porém, de formas demasia-
damente associadas à fala de Portugal na consciência dos brasileiros, já
que o efeito buscado era mais o de arcaísmo que o de lusitanismo.
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Assim, para substituir “estava dormindo”, por exemplo, no mais das
vezes utilizei “dormia” em vez de “estava a dormir”.
Problema particularmente interessante foi o das formas de tra-
tamento. No decorrer do romance, vemos os dois personagens centrais
serem apresentados, tornarem-se colegas de trabalho e por fim amigos
cada vez mais íntimos. Em inglês, temos a passagem do tratamento
formal “Mr. Mason” e “Mr. Dixon” para “Mason” e “Dixon” e por fim
“Charles” e “Jeremiah”. Mas não é tão comum no diálogo a utilização
de vocativos, enquanto a ocorrência do polivalente you é onipresente.
Que forma deveria ser usada para traduzir you? Decidi recorrer ao tradi-
cional sistema triádico de formas de tratamento, que ainda vigora em
Portugal e em algumas regiões do Brasil: nele, “o senhor” é a forma
deferencial, “você” o tratamento utilizado entre iguais e “tu” a forma
íntima, empregada também ao dirigir-se a crianças e animais. Assim,
fiz com que Mason e Dixon, ao se conhecer, tratem-se por “o senhor”.
Como achar o momento exato de mudar de forma de tratamento? A
passagem de “o senhor” para “você” foi feita tão logo os personagens
pareciam íntimos o suficiente para dispensar o uso de “Mr.” Para a
passagem de “você” para “tu”, escolhi o trecho em que os protagonistas
se reúnem para redigir uma carta oficial e, no calor da discussão, tro-
cam palavrões pela primeira vez.
Para um dos problemas apresentados para o livro, porém, não
encontrei uma solução razoável. Há um velho ditado na indústria
cinematográfica, atribuído a um dos grandes tycoons dos tempos
áureos de Hollywood — talvez Sam Goldwyn — segundo o qual é
impossível ambientar um filme na idade das cavernas ou no Egito dos
faraós sem cair no ridículo. A meu ver, coisa semelhante acontece no
âmbito da tradução literária: pelo menos na grande maioria dos casos,
é impossível transplantar um dialeto, regional ou étnico, do inglês para
o português sem produzir efeitos involuntários de comicidade. Em
Mason & Dixon, um dos personagens centrais, Jeremiah Dixon, é um
Geordie — isto é, um nativo do nordeste da Inglaterra. Tendo optado
por traduzir Geordie por “nordestino”, cheguei a cogitar a hipótese de
levar a brincadeira adiante e fazer com que Dixon na minha tradução
falasse com um carregado sotaque pernambucano; porém recuei a tem-
po. (Pensei até em consultar Pynchon a esse respeito, mas desisti,
temendo que o autor aprovasse a idéia com entusiasmo — trata-se de
uma idéia essencialmente pynchonesca — e que depois meus revisores
e leitores não reagissem bem.) Assim, tudo que fiz foi assinalar a en-
toação interrogativa da fala de Dixon, tal como no original, marcando
suas falas com reticências seguidas de um ponto de interrogação (“Eu
decerto que não...?”), e deixar o sotaque do personagem por conta da
imaginação de cada leitor.
No decorrer da tarefa — que, com as interrupções, prolongou-
se por cerca de três anos — constatei que pouco a pouco ia me acos-
tumando com a linguagem altamente artificial que havia adotado; por
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volta da lauda de número 200 o texto já fluía com absoluta natu-
ralidade. Essa naturalidade, é claro, não passa de um efeito de estilo;
nenhum leitor deve imaginar que estou de fato recriando o português
setecentista: afinal, trata-se de uma imitação do que, no original, não é
mais que um pastiche. O efeito de minha imitação sem dúvida estará
aquém do que Pynchon conseguiu realizar em seu texto; assim mesmo,
tenho esperança de haver conseguido passar para o leitor brasileiro
alguma coisa do espírito dessa obra originalíssima.
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ENSAIO
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