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DEPOIMENTO

TRADUZIR THOMAS PYNCHON

Paulo Henriques Britto

Quando, em 2000, a Companhia das Letras me incumbiu de tra-


duzir o novo romance de Thomas Pynchon, Mason & Dixon, minha
reação foi um misto de entusiasmo e trepidação. Até então, o maior
desafio em toda a minha carreira profissional fora a tradução da obra-
prima de Pynchon, Gravity’s rainbow, romance experimental que apre-
sentava (pensava eu na época) todos os tipos de dificuldade que um
tradutor literário poderia imaginar. Após a perplexidade dos primeiros
capítulos, eu me deixara envolver pelo fascínio verbal dessa obra única,
e finda a empreitada, onze meses depois do início, já havia me
transformado num admirador de Pynchon. Assim, a idéia de voltar a
mergulhar no universo fantástico desse autor era estimulante. Ao mes-
mo tempo, porém, sentia-me um tanto apreensivo com relação a Mason
& Dixon.
O livro conta a história de Charles Mason e Jeremiah Dixon,
dois cientistas ingleses, versados em astronomia e agrimensura, que
na década de 1760 traçaram a chamada “linha Mason-Dixon”, a
divisa entre os futuros estados de Maryland e Pensilvânia. Muitos
anos depois, a linha seria usada metaforicamente para designar a
separação entre o Norte industrial e o Sul agrícola e escravista, que
terminaram por entrar em choque na Guerra de Secessão. Como em
todos os seus romances, Pynchon mobiliza um número imenso de
personagens, uns baseados em figuras históricas, outros puramente
fictícios, e entremeia à narrativa central histórias secundárias, mui-
tas delas fabulosas, com animais falantes e mecanismos que ganham
vida, além de inúmeras canções e poemetos. Porém há um problema
adicional: toda a longuíssima narrativa é redigida num pastiche de
inglês do século XVIII. Assim, além de todas as referências obscuras,
trocadilhos infames, termos técnicos, sotaques e coloquialismos en-
contrados no Arco-íris da gravidade, seria necessário agora enfrentar
um novo obstáculo. Na tradução do livro anterior, eu recebera ajuda
do próprio Pynchon, que respondia regularmente minhas longas lis-
tas de perguntas com explicações extremamente detalhadas (e muitas

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vezes bem-humoradas). A Companhia das Letras garantiu-me que o
autor estava disposto a retomar a correspondência comigo a fim de
esclarecer todas as dúvidas que surgissem no decorrer do trabalho, o
que de fato ele fez com a mesma boa vontade e presteza de antes. Mas
a linguagem de Mason & Dixon era uma dificuldade que eu teria de
resolver sem a ajuda do autor.
A questão não era tanto compreender o falso inglês setecentista
de Pynchon (eivado de anacronismos propositais, porém mantendo
um sabor que eu conhecia de Sterne e Fielding), até porque não há
problema de vocabulário que não seja resolvido pelo New Oxford
Dictionary. O problema estava na língua-meta, meu idioma nativo: o
português. Para recriar a prosa portuguesa do século XVIII, era neces-
sário ter um mínimo de familiaridade com ela. Ora, minha formação
literária em português é um tanto assimétrica: embora meu
conhecimento de poesia brasileira e portuguesa das diferentes épocas
seja razoável, em matéria de prosa meu forte sempre foi a literatura
brasileira dos séculos XIX e XX; e nem mesmo fazendo um esforço de
memória me ocorria ter lido uma única obra em prosa em português
setecentista. Recorri à maior autoridade brasileira em literatura por-
tuguesa, a professora Cleonice Berardinelli, minha colega de trabalho
na PUC-Rio, e confessei-lhe minha absoluta ignorância nessa área.
Da Cleonice indicou-me alguns textos que eu poderia encontrar na
biblioteca da universidade, mas advertiu-me que o século XVIII não era
dos períodos mais férteis para a prosa portuguesa. De fato, encontrei
na biblioteca um alentado tratado de filosofia, algumas obras sobre
navegação e pouca coisa mais; passei algumas tardes sonolentas
folheando essas páginas nada apaixonantes, anotando num caderno
palavras, expressões, peculiaridades sintáticas e outras marcas que eu
poderia utilizar em minha tradução.
A questão mais importante levantada pela linguagem era preci-
samente a da escolha das marcas arcaizantes. Elas não deveriam ser de
tal grau de complexidade que tornassem penosa a leitura do livro para
um leitor medianamente culto, pois o original está longe de ser inaces-
sível ao leitor médio, porém deveriam ser abundantes e conspícuas o
bastante para causar um certo estranhamento e manter a ficção de que
se trata de um texto de época. Naturalmente, o uso das convenções
ortográficas setecentistas nem sequer foi cogitado. Isso porque ao
contrário do inglês, que jamais sofreu uma reforma ortográfica radical,
a escrita do português passou por tantas mudanças profundas que um
texto em ortografia antiga — o que, de resto, estaria acima da minha
competência produzir — afastaria de saída os leitores (nunca muito
numerosos) que se sentiriam atraídos pelo novo calhamaço de
Pynchon. Assim, limitei-me a copiar do original o recurso de utilizar
iniciais maiúsculas de modo mais ou menos errático, restringindo a
prática, porém, apenas aos substantivos, embora o autor por vezes
colocasse maiúsculas em adjetivos e verbos. Também adotei uma pon-

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tuação caprichosa, como era comum na época, com uma abundância
de travessões.
Naturalmente, as marcas lexicais — termos de época — de-
sempenharam um papel importante no meu trabalho. Usei e abusei
de palavras de sabor arcaizante e sentido transparente, como
“cousa”, “mui” e “bodega”, mas não raro empreguei palavras que hão
de levar o leitor de minha tradução ao dicionário — tal como o leitor
anglófono de Pynchon é obrigado a recorrer ao Webster ou ao Oxford
de vez em quando. Resolvi também evitar usar palavras e expressões
que ainda não tivessem curso no idioma no século XVIII. Mas como
fazer isso? Os dicionários de que eu dispunha, o Aurélio e o Michaelis,
não traziam nenhuma informação quanto à época em que cada pala-
vra surgira no português. Para isso, eu precisaria recorrer a dicio-
nários etimológicos, que estavam todos esgotados. Havia alguns na
biblioteca da PUC, mas seria impraticável realizar o trabalho de
tradução lá. Assim, achei melhor adiar a solução do problema para a
fase de revisão e começar logo a traduzir o romance. A pedido da
editora, porém, interrompi o trabalho quando já havia rascunhado
cento e poucas laudas, para assumir outras tarefas, mais urgentes; e
foi durante esse interregno que o Houaiss foi lançado. Imediatamente
comprei o novo dicionário, e constatei, com uma satisfação imensa,
que na maioria dos verbetes era assinalado o ano ou século em que o
item lexical em questão fora documentado no idioma pela primeira
vez. Antes mesmo que a editora me mandasse retomar a tradução do
livro de Pynchon, fiz uma primeira revisão no que já conseguira
produzir até então para verificar a idade de todas as palavras que me
despertaram desconfiança. Dei-me conta, então, do quanto minha
intuição era enganosa. Para traduzir macaroni, por exemplo, eu
evitara “dândi”, cônscio de que a palavra fora importada do inglês
em tempos muito recentes, e optara por “janota”. Consultando o
Houaiss, porém, fiquei sabendo que “janota” só entrou no português
em 1851. Recorri à sinonímia do termo, surpreendentemente
abundante (“bonecado”, “ajanotado”, “almofadinha”, “aperaltado”,
“casquilho”, “chibante”, “dândi”, “embonecado”, “embonecrado”,
“empetecado”, “espanéfico”, “estarola”, “estouradinho”, “faceiro”,
“frajola”, “fresco”, “gamenho”, “garrido”, “papo-seco”, “peralta”,
“peralvilho”, “pintalegrete”, “pintão”, “sécio”, “taful”), e me pus a
verificar a datação de cada um. Terminei optando por “casquilho”,
termo documentado já em 1740. Esse procedimento foi repetido
inúmeras vezes ao longo do livro.
Com relação à sintaxe, tentei me aproximar da norma lusa: fa-
voreci a ênclise (“dou-te”) e a mesóclise (“dar-te-ei”) em detrimento da
próclise (“te dei”), e usei mais as formas verbais sintéticas (“farei”) do
que as analíticas (“vou fazer”). Não abusei, porém, de formas demasia-
damente associadas à fala de Portugal na consciência dos brasileiros, já
que o efeito buscado era mais o de arcaísmo que o de lusitanismo.

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Assim, para substituir “estava dormindo”, por exemplo, no mais das
vezes utilizei “dormia” em vez de “estava a dormir”.
Problema particularmente interessante foi o das formas de tra-
tamento. No decorrer do romance, vemos os dois personagens centrais
serem apresentados, tornarem-se colegas de trabalho e por fim amigos
cada vez mais íntimos. Em inglês, temos a passagem do tratamento
formal “Mr. Mason” e “Mr. Dixon” para “Mason” e “Dixon” e por fim
“Charles” e “Jeremiah”. Mas não é tão comum no diálogo a utilização
de vocativos, enquanto a ocorrência do polivalente you é onipresente.
Que forma deveria ser usada para traduzir you? Decidi recorrer ao tradi-
cional sistema triádico de formas de tratamento, que ainda vigora em
Portugal e em algumas regiões do Brasil: nele, “o senhor” é a forma
deferencial, “você” o tratamento utilizado entre iguais e “tu” a forma
íntima, empregada também ao dirigir-se a crianças e animais. Assim,
fiz com que Mason e Dixon, ao se conhecer, tratem-se por “o senhor”.
Como achar o momento exato de mudar de forma de tratamento? A
passagem de “o senhor” para “você” foi feita tão logo os personagens
pareciam íntimos o suficiente para dispensar o uso de “Mr.” Para a
passagem de “você” para “tu”, escolhi o trecho em que os protagonistas
se reúnem para redigir uma carta oficial e, no calor da discussão, tro-
cam palavrões pela primeira vez.
Para um dos problemas apresentados para o livro, porém, não
encontrei uma solução razoável. Há um velho ditado na indústria
cinematográfica, atribuído a um dos grandes tycoons dos tempos
áureos de Hollywood — talvez Sam Goldwyn — segundo o qual é
impossível ambientar um filme na idade das cavernas ou no Egito dos
faraós sem cair no ridículo. A meu ver, coisa semelhante acontece no
âmbito da tradução literária: pelo menos na grande maioria dos casos,
é impossível transplantar um dialeto, regional ou étnico, do inglês para
o português sem produzir efeitos involuntários de comicidade. Em
Mason & Dixon, um dos personagens centrais, Jeremiah Dixon, é um
Geordie — isto é, um nativo do nordeste da Inglaterra. Tendo optado
por traduzir Geordie por “nordestino”, cheguei a cogitar a hipótese de
levar a brincadeira adiante e fazer com que Dixon na minha tradução
falasse com um carregado sotaque pernambucano; porém recuei a tem-
po. (Pensei até em consultar Pynchon a esse respeito, mas desisti,
temendo que o autor aprovasse a idéia com entusiasmo — trata-se de
uma idéia essencialmente pynchonesca — e que depois meus revisores
e leitores não reagissem bem.) Assim, tudo que fiz foi assinalar a en-
toação interrogativa da fala de Dixon, tal como no original, marcando
suas falas com reticências seguidas de um ponto de interrogação (“Eu
decerto que não...?”), e deixar o sotaque do personagem por conta da
imaginação de cada leitor.
No decorrer da tarefa — que, com as interrupções, prolongou-
se por cerca de três anos — constatei que pouco a pouco ia me acos-
tumando com a linguagem altamente artificial que havia adotado; por

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volta da lauda de número 200 o texto já fluía com absoluta natu-
ralidade. Essa naturalidade, é claro, não passa de um efeito de estilo;
nenhum leitor deve imaginar que estou de fato recriando o português
setecentista: afinal, trata-se de uma imitação do que, no original, não é
mais que um pastiche. O efeito de minha imitação sem dúvida estará
aquém do que Pynchon conseguiu realizar em seu texto; assim mesmo,
tenho esperança de haver conseguido passar para o leitor brasileiro
alguma coisa do espírito dessa obra originalíssima.

Paulo Henriques Britto, poeta e tradutor, é professor na PUC-RJ.

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