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Resumo: O presente ensaio propõe-se como uma introdução à reflexão sobre literatura
do medo no Brasil. Na ausência de uma tradição de estudos literários voltados às
manifestações das estéticas do horror em nossa literatura, pretendemos avaliar as
condições necessárias para a elaboração de uma teoria do medo artístico, voltada
especificamente para a literatura brasileira. Para tanto, é fundamental demonstrar que
Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, não é o único exemplo do gênero em nossa
literatura, e que há diversas outras narrativas que poderiam ser chamadas de “literatura
do medo” − narrativas ficcionais que produzem a emoção estética do “medo artístico”.
Nosso objetivo é demonstrar que alguns dos mais importantes autores brasileiros do
XIX e do começo do XX escreveram histórias em que o medo exerce um papel
preponderante, mas a crítica tradicional, por uma série de razões, jamais as descreveu
sob a perspectiva do medo. Assim, uma teoria do medo artístico na literatura brasileira
precisa, antes de tudo, identificar as características básicas do medo em nossa ficção,
seja através da identificação dos medos representados, seja pelo modo de produção
desse efeito estético sobre seus leitores.
Palavras-chave: Horror; Terror: Literatura do Medo; Literatura Brasileira; Medo
Artístico.
Abstract: There is no tradition in the studies of horror in Brazilian literature. Álvares de
Azevedo´s tales of Noite na Taverna are generally the only example of gothic, terror or
horror narrative quoted by the literary history. This article aims at demonstrating that
there are several works in Brazilian literature which could be called “fear literature” – a
fictional narrative that produces “artistic fear”. Some of the most important Brazilian
authors in the 19th and in the first decades of the 20th century wrote macabre stories.
However, the critics were either unable to identify them as horror fiction or paid no
attention to a kind of fiction that did not represent social problems in a realistic way.
Therefore, a research in this field needs, first of all, to identify the basic characteristics
of fictional horror in our country. We are interested in (i) the real fears represented in
Brazilian fiction, be them originated by either natural or supernatural causes, and in (ii)
the narrative features which produce the “artistic fear” effect upon the reader.
Keyword: Horror literature; Terror; Fear literature; Brazilian Literature; Artistic fear.
1. Introdução
O homem contemporâneo entende o mundo em que vive como extremamente
perigoso. Apesar das conquistas das ciências proporcionarem um nível de segurança
jamais visto contra as ameaças à vida humana, o medo permanece como uma das
emoções mais constantes e intensas experimentadas pelo homem.
Inerente à natureza humana, o medo está intimamente ligado aos mecanismos de
proteção contra o perigo. Sendo uma emoção relacionada aos nossos instintos de
sobrevivência, a experiência do medo vem quase sempre acompanhada da consciência
de nossa finitude. O mistério da morte – seu caráter tão inexorável quanto insondável –
é a mola mestra de narrativas que tematizam essa região da experiência humana sobre a
qual a ciência, o discurso da verdade demonstrada, pouco tem a dizer. Nos desvãos
entre a fé religiosa e o conhecimento científico, as chamadas narrativas de horror
encontram seu hábitat ideal. O medo atávico em relação ao nosso derradeiro destino é a
própria garantia da atração e da universalidade do medo.
As emoções relativas à autopreservação são dolorosas quando estamos expostos
às suas causas, porém, quando experimentamos sensações de perigo sem que estejamos
realmente sujeitos aos riscos, isto é, quando a fonte do medo não representa um risco
real a quem o experimenta, entramos no campo dos prazeres estéticos. É sobre eles que
nossa pesquisa atual, “O medo como prazer estético; uma proposta de estudo das
relações entre os conceitos de Horror e de Sublime na Literatura”, tem refletido.
Interessa-nos investigar tanto os modos históricos de representação literária dos “medos
reais” quanto os processos de criação dos “medos artísticos”, bem como tentar entender
os motivos que levam os indivíduos a procurar por “horrores ficcionais” em um mundo
que reconhecem como repleto de “horrores reais”.
Creio que valha a pena detalhar o percurso de nossa pesquisa até aqui, para
esclarecer alguns caminhos metodológicos e conceituais que temos trilhado. Antes de
mais nada, vale explicitar a razão pela qual temos utilizado o termo “literatura do
medo”, ainda sem maior precisão conceitual, ao invés de empregar nomenclaturas mais
convencionais como “de horror”, “de terror” ou “gótica”. Há cerca de três anos, quando
começamos a pensar na possibilidade de estudar as manifestações do horror na ficção
literária brasileira, deparamo-nos com a exasperadora ausência de uma tradição crítica
nacional sobre o tema. À época, entendemos que, para realizar tal pesquisa,
precisaríamos buscar seus fundamentos teóricos nos estudos literários dedicados a esse
gênero em literaturas estrangeiras.
A penúria de estudos críticos dedicados à literatura de horror no Brasil é
compensada, porém, com a pletora de reflexões críticas, teóricas e historiográficas,
especialmente em língua inglesa, sobre a ficção de horror. Em meio a esse vasto
material, estabelecemos um método para nossa pesquisa: concentrarmo-nos na
elaboração de um corpus teórico que abrangesse reflexões críticas produzidas por
ficcionistas do gênero. Tal escolha metodológica visava obter uma perspectiva que
levasse em consideração também o ponto de vista dos criadores, o que nos parecia
importante, levando-se em conta a particularidade do gênero − isto é, tratávamos de
obras cuja característica principal era a produção de efeitos de recepção desagradáveis
quando experimentados fora do campo da estética, tais como o medo, o terror, o horror
e a repulsa. Essa singularidade do gênero justificava nosso interesse pelo autores, uma
vez que a pergunta “por que produzir horrores imaginários em um mundo tão cheio de
horrores reais?” é, sem sombra de dúvidas, um dos paradoxos da literatura do medo (cf.
CARROLL, 1990).
Foi assim que chegamos a autores como Horace Walpole, Mary Shelley, Edgar
Allan Poe, Howard Phillips Lovecraft e Stephen King, todos ficcionistas reconhecidos
pela tradição, que haviam legado importantes reflexões sobre o gênero. O estudo desse
corpus crítico inicial levou-nos a perceber a importância, para esses autores, da
exploração da sensação de medo do leitor, e revelou-nos duas filiações filosóficas
comuns: (i) à tradição aristotélica, que compreende e valoriza a arte não apenas em seus
aspectos cognitivos, mas também e principalmente, em seus aspectos sensoriais, e (ii) à
tradição estética burkeana, que valoriza sensações como o medo e o horror como
principais fontes de uma experiência estética singular e de intensidade inigualável – o
sublime.
O medo produzido pela imaginação do sujeito, que projeta e sofre com seu “eu
morto” assemelha-se aos mecanismos ficcionais de identificação entre leitor e
personagem. Em outras palavras, o processo que nos conduz a experimentar nosso
medo mais primitivo, universal e intenso – o medo da morte – poderia ser encarado
como similar ao que nos leva, no ambiente ficcional, a sentirmos medo sem
efetivamente corrermos risco. A esse tipo de experiência chamamos de medo artístico.
1
Ver as antologias citadas nas referências bibliográficas.
2
Entre os exemplos, poderíamos citar “Flor, telefone, moça” (Carlos Drummond de
Andrade); “A causa secreta” (Machado de Assis); “Demônios” (Aluísio Azevedo); “Os
olhos que comiam carne” (Humberto de Campos); “Valsa fantástica” (Afonso Celso);
“Esfinge” (Coelho Neto); “A cobra preta” (Viriato Correa); “O Espelho” (Gastão
Cruls); “Confirmação” (Gonzaga Duque); “Feliz ano novo” (Rubem Fonseca);
“Assombramento” (Afonso Arinos de Melo Franco); “A dança dos ossos” (Bernardo
Guimarães); “A gargalhada” (Orígenes Lessa); “Bugio Moqueado” (Monteiro Lobato);
“O defunto” (Thomaz Lopes); “Um prego, mais outro prego!” (Adelino Magalhães); “O
satanás de Iglawaburg” (Adelpho Monjardim); “A menina morta” (Cornélio Pena); “No
hospício” (Rocha Pombo); “Paulo” (Graciliano Ramos); “Dentro da noite” (João do
Rio); “A podridão viva” (Amândio Sobral); “Acauã” (Inglês de Souza); “Venha ver o
pôr do sol” (Lygia Fagundes Telles), entre outros.
pelo modernismo, foi encampada pelo projeto de construção da identidade nacional,
sufocando poéticas que não versassem nessa cartilha.
Tal expectativa de arte, que exige de nossa literatura uma explícita e contínua
reflexão direta sobre as questões da “realidade” brasileira, é tão poderosa que, ainda
hoje, converte-se em juízo estético. Como exemplo, citamos parte do comentário de
Roberto de Souza Causo sobre Noite na Taverna e Macário:
3
João Adolfo Hansen (in Causo, 2003, p. 23) já chamou atenção para como a literatura
de horror estrangeira sempre inundou nosso mercado, tornando mais barata a edição de
obras estrangeiras do que o incentivo a uma produção nacional.
permitido um sistema explícito de produção e de consumo desse gênero 4, a ponto de
estimular uma recepção crítica formal. Além disso, não percebemos uma tradição da
literatura do medo no Brasil porque muitas das obras que se encaixariam em tal
categoria “podem não ter sido produzidas dentro dessa chave” (Causo, 2003:34). Talvez
o modo de se perceber uma tradição de literatura do medo em nossa literatura seja
exatamente partir do princípio de que ela nunca se articulou como um gênero.
Deveríamos, portanto, buscar, através de um procedimento quase arqueológico, a
presença de temáticas, motivos, enredos, personagens, construções de espaços
narrativos e afins, uma tradição oculta em nossa literatura.
Por fim, uma terceira causa poderia estar relacionada ao pouco interesse da
crítica por obras de gosto popular – que é o caso da chamada “literatura de horror”. O
questionamento da qualidade estética é um argumento recorrente para justificar a
indiferença que as narrativas populares receberam dos Estudos Literários por décadas.
De um ponto de vista metacrítico, poderíamos objetar que os sempre instáveis e
problemáticos juízos de gosto não deveriam jamais fundamentar a delimitação do
campo de observação de uma área de pesquisa. O ato de valoração da obra deveria ser o
movimento final de um processo complexo – que envolve, entre outros procedimentos,
descrição e interpretação –, jamais um pressuposto apriorístico que determina o que
deve ou não ser estudado.
Nesse sentido, pesquisas como a de Alessandra El Far (2004), sobre os
chamados “romances de sensação”, relembram-nos como a literatura de uma época é
muito mais do que o conjunto de livros e autores que a crítica e a historiografia elegem
como significativas daquele momento:
A história da literatura descartou tais livros e elegeu para o seu campo
de estudo um conjunto de obras e autores, que nos dias de hoje passam
a impressão de ter atuado de maneira isolada, seqüencial e triunfante.
Porém, ao lidarmos com o universo das letras é preciso perceber que
esse quadro era muito mais complexo e difuso. Além dos romancistas
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Trabalhos como o de Sandra Guardini Vasconcelos (2002) demonstram como o
romance gótico inglês, ao contrário do que se pensou durante muito tempo, circulou em
grande número pelo país já na primeira metade do século XIX. Essas pesquisas revelam
a disseminação de uma forma tradicional da literatura do medo em nosso país,
revelando tanto o interesse do público leitor por essas narrativas, como tendo
influenciado nossos autores. Daniel Serravalle de Sá (2010), por exemplo, chama
atenção para a influência do gótico sobre José de Alencar.
selecionados pela crítica, inúmeros outros atuavam ao mesmo tempo,
conseguindo, em muitos casos, difundir seus textos e tendências
narrativas com significativo sucesso. Queria sublinhar, com isso, que a
experiência da leitura, no Rio de Janeiro daquele período, em nenhum
momento se reduziu aos cânones literários e aos escritores adeptos das
belas-letras que atualmente fazem parte dos compêndios literários.
Naqueles anos, lia-se Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Raul
Pompéia, mas lia-se também uma variedade de outros escritores que
buscavam o sucesso por meio de histórias “arrebatadoras”: “cheias de
mistério”, de “sangue”, em certos casos, ousadas em seus beijos e
cópulas apaixonadas. (EL FAR, 2004, p. 24-5)
Referências bibliográficas