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Ricardo Vieira
Professor de Bioquímica – Universidade Federal do Pará
E‐mail: jrvieira@ufpa.br
ma das questões mais antigas da responsáveis por uma lógica longe de ser incerta,
ciência é como as células funcio‐ a vida.
U nam?; como, dentre tantas alterna‐
tivas metabólicas, elas “escolhem”
uma como principal?; por que a
Metabolismo
célula “prefere” sintetizar uma molécula em de‐
trimento de outra?; por que células de um único O termo tem origem do grego metabolé
organismo possuem metabolismo tão distinto? (mudança, troca) + ismos (ação) e indica o conjunto
Questões como essas são fundamentais de transformações químicas de um organismo
para orientar os estudos destinados a desvendar para a formação, desenvolvimento e produção da
os mistérios do metabolismo celular, apesar de energia necessária para manter a vida.
demonstrar um antropocentrismo típico em “hu‐ As reações metabólicas podem ser de
manizar” as “preferências” por esta ou aquela via duas categorias: síntese e degradação. Quando
por ser a “melhor”, a que trás “mais vantagens”. moléculas simples se organizam em moléculas
É lógico que a célula não tem como “esco‐ mais complexas, há o fenômeno de síntese ou
lher” o que vai fazer baseada em “preferências” anabolismo, termo que deriva do grego anabolé
ou em “desejos”. Ao contrário, a célula não tem (demora) o que lembra o caráter de retardar a
escolhas! As leis básicas da química e termodinâ‐ morte das células. De fato, em reações anabólicas
mica dão o ritmo às suas atividades metabólicas e são sintetizadas as moléculas que garantem o
a vida passa a ser um equilíbrio dinâmico das armazenamento de energia para as reações celula‐
reações metabólicas que garantem sua persistência res futuras.
em um ambiente geralmente hostil e que permite No entanto, para que ocorram reações
a vida desde que sejam cumpridas regras quími‐ anabólicas, é necessária a existência de energia
cas universais. disponível para a síntese que é garantida pelas
Após séculos de desenvolvimento científi‐ reações do catabolismo celular, termo que deriva
co, pode‐se concluir com segurança que os fenô‐ do grego katabolé (ação de atirar de cima para
menos bioquímicos são regidos pelas mesmas baixo) e sugere a propriedade de decréscimo e‐
regras que regem todas as reações químicas. Não nergético típico das reações de degradação de
há evidências de uma força externa ao ambiente moléculas complexas.
celular que “conduza” a vida em um sentido es‐ Moléculas que são degradadas liberam a
pecífico que não àquele que rege qualquer outra energia existente em suas ligações químicas e essa
molécula e isto é válido para todos os seres vivos, energia é usada para sintetizar outras moléculas.
sem “privilégios” para nenhum em especial. Assim, as reações catabólicas e anabólicas se aco‐
Paradoxalmente, a “persistência” da vida plam, uma fornecendo a energia que será utiliza‐
em ir contra as leis da termodinâmica que de‐ da pela outra.
monstram que o caos rege o espontâneo, as células Dentro do ponto de vista energético, a
“insistem” em sintetizar moléculas complexas manutenção da energia celular é essencial para
contra as correntes caudalosas da termodinâmica, que haja sempre uma quantidade de energia dis‐
conservando energia ao invés de dispersá‐la para ponível para a síntese de biomoléculas.
o meio. Enquanto que as leis do universo indicam A energia liberada por uma reação quími‐
que é “mais fácil” ser aniquilada, a célula “insiste” ca não é criada, mas já existia antes e estava arma‐
em “viver”. O que é a vida, então, se não uma zenada nos substratos sob outra forma; essa ener‐
“tentativa desesperada de não morrer”? gia também não se perde, mas permanece no sis‐
Dentro desse contexto, esse artigo almeja tema armazenada nos produtos, sob outra forma.
apresentar os mecanismos básicos de manutenção As moléculas complexas sintetizadas na célula
desse equilíbrio dinâmico dos processos celulares são, portanto, verdadeiras “baterias” que armaze‐
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nam energia vital que é liberada para as reações Como todas as atividades biológicas de‐
de síntese no momento de sua degradação. pendem de gasto de energia, as reações anabólicas
Essa “cumplicidade” entre reações catabó‐ garantem as moléculas a serem catabolizadas de
licas e anabólicas é a essência da regulação dos acordo com as necessidades da célula.
complexos processos que mantém a vida (Figura
1)
No interior das molé‐
culas complexas, existe um
emaranhado de ligações
químicas que se mantém com
a manutenção de um estado
energético alto em virtude do
complicado arranjo entre os
átomos no que diz respeito à
ordenação dos elétrons nas
ligações químicas. No entan‐
to, para que haja a desorga‐
nização da estrutura molecu‐
lar é necessário que seja irra‐
diada energia sobre a molé‐
cula (energia de ativação).
A quantidade de e‐
Figura 1 – Síntese e degradação de moléculas absorvem ou geram e‐
nergia necessária para levar a
nergia. Essa energia é compartilhada nas reações anabólicas
molécula a uma situação de
e catabólicas do metabolismo celular.
máxima instabilidade (estado
de ativação) varia em cada
tipo de molécula.
De uma maneira geral, quanto maior a Os dilemas biológicos
presença de elementos que confiram instabilidade
à molécula (p.ex.: presença de átomos de alta ele‐ da termodinâmica
tronegatividade), menos energia de ativação será
necessário para induzir o estado de ativação. Entropia e entalpia
Uma vez atingido o estado de ativação, a
O estudo da termodinâmica (do grego
molécula complexa se desorganiza, ligações quí‐
therme, calor + dynamis, energia) aborda os efeitos
micas se desfazem e moléculas mais simples pas‐
da energia sobre a matéria.
sam a ser formadas utilizando menos energia que
Nos sistemas biológicos, a energia de ati‐
antes e o excesso de energia passa a ser liberada
vação das reações geralmente é o calor, com e‐
para o meio externo. Assim, o nível energético
xemplares exceções como a fotossíntese onde a
das novas moléculas se mantém mais baixo do
energia luminosa desencadeia o processo de sín‐
que a molécula original. Como o meio passa a ter
tese da glicose nos vegetais.
um nível energético maior, esse tipo de reação é
A energia armazenada nas moléculas é
tipicamente descrito como exotérmica.
denominada de conteúdo de calor ou entalpia
De maneira inversa, nas reações endotér‐
(H) (do grego enthalpein, aquecer) . Dessa forma,
micas as moléculas dos substratos absorvem e‐
em reações exotérmicas (catabólicas) há a queda
nergia do meio externo até atingirem um estado
da entalpia das moléculas com produtos menos
de ativação e se organizarem em um novo arranjo
energéticos que os substratos e, de maneira inver‐
mais complexo do que o anterior. A diferença
sa, nas reações endotérmicas a entalpia aumenta.
básica está no fato que parte da energia de ativa‐
Como o calor é espontaneamente trans‐
ção fica acumulada nas moléculas que passam,
mitido de um corpo mais quente para outro mais
portanto, a serem mais energéticas e menos está‐
frio e o aumento da temperatura leva a um estado
veis do que as originais.
mais desorganizado das moléculas, pode‐se con‐
cluir que as reações onde há o aumento da ental‐
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A lógica da vida 3
pia das moléculas (reações exotérmicas, catabóli‐ entrópica pois somente assim haverá desorgani‐
cas) são favoráveis àquelas que os produtos são zação expressiva.
mais energéticos (reações endotérmicas, anabóli‐ De maneira inversa, se a reação não for
cas). favorável entalpicamente (endotérmica), mas sim
O grau de desordem de um sistema é de‐ entropicamente (a temperatura do meio é alta a
nominado entropia (S) (do grego em, dentro de + ponto de garantir um certo grau de desordem), a
trope, curva) e, portanto, varia de maneira inversa reação poderá ser espontânea em temperaturas
a entalpia. acima da variação entrópica pois assegura que a
Portanto, uma reação espontânea é aquela absorção de energia não diminuirá o grau de de‐
que possui uma variação entálpica e entrópica sorganização de maneira significativa.
favorável (os produtos são menos energéticos e a Essas condições de variação de energia
desordem do meio aumenta). De maneira inversa, livre (∆G) são as que caracterizam a espontanei‐
se as condições de entalpia e entropia forem des‐ dade de uma reação biológica (Figura 2).
favoráveis, a reação é não‐espontânea.
O conceito de ener‐
gia livre
No entanto, resta o
problema da energia da ati‐
vação que precisa estar dis‐
ponível antes do início de
qualquer reação seja exo ou
endotérmica. É essa energia
que se torna fundamental
para os organismos vivos
pois depende não das molé‐
culas, mas do meio ambiente.
Dessa forma, surge
um terceiro conceito de ener‐
gia que é o mais importante Figura 2 – Variação de energia livre (∆G) em uma reação exergônica. Como os
em bioquímica tendo em menos energéticos (energia livre menor) que os subs‐
produtos são
vista que as células não su‐ tratos, ∆G assume valores negativos. A energia gasta na ativação das
portam uma variação de moléculas (∆GAt) é devolvida ao meio que recebe energia adicional
temperatura muito alta em
da reação (aumento da entropia).
virtude de sua composição
frágil. As reações espontâneas possuem valores
De uma maneira geral, acima de 50oC, a de ∆G negativos indicando que as condições pro‐
maioria das proteínas é desnaturada a ponto de pícias de entropia e entalpia estão adequadas a
comprometer a sobrevivência da célula, apesar temperatura do meio que fornece a energia neces‐
das inevitáveis exceções como, por exemplo, a sária para que a reação se inicie (∆GAt). Ao final
bactéria Thermus aquaticus cujas proteínas resistem do processo, a energia gasta na ativação dos subs‐
a mais de 90oC. tratos é devolvida ao meio a energia própria da
Essa energia que precisa estar disponível molécula (entalpia) é adicionada ao meio que
para que as reações tenham início é denominada aumenta, portanto, a entropia.
de energia livre (G) e foi postulada por J. Willard As reações não espontâneas são possíveis
Gibbs, em 1878, e revela o verdadeiro critério para desde que haja energia livre no meio suficiente
que as reações sejam espontâneas ou não. para garantir o estado de alta entropia ao final da
De uma maneira geral, se a reação for fa‐ reação, mesmo que a molécula absorva parte de
vor favorável entalpicamente (exotérmica), mas dessa energia (Figura 3).
não entropicamente ela só será espontânea se o O ∆G dessas reações é positivo indicando
meio estiver em temperaturas abaixo da variação que os produtos possuem um nível energético
maior (entalpia) que os substratos. A entropia ao
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final da reação continua alta em virtude da ener‐ Os seres vivos conso‐
gia livre disponível no meio no início da reação. mem nutrientes, degradam
moléculas, sintetizam outras
novas, geram calor e trabalho.
Usualmente, considera‐
se como a primeira lei da ter‐
modinâmica a observação u‐
niversal de que a energia é
conservada nos processos
químicos de qualquer nature‐
za. Isso também é observado
nas reações bioquímicas pois a
energia liberada nas reações
catabólicas é absorvida nas re‐
ações anabólicas.
Paradoxalmente, esse
intricado processo de reações
acoplado produz um certo
Figura 3 –
Variação de energia livre (∆G) em uma reação endergônica. Como os grau de organização momen‐
produtos são mais energéticos (energia livre maior) que os substratos,
tânea que garante a vida. Se as
∆G assume valores positivos. A reação só ocorre se houver energia de
condições que garantem essa
ativação (∆GAt) disponível para os substratos atingirem o estado de
transição que garantam um certo grau de desordem (entropia). Essas malha de reações é alterada de
reações, aparentemente contra as leis da termodinâmica, são possíveis maneira significativa o sistema
graças à energia livre do sistema celular e produzem moléculas instá‐ tenderá ao equilíbrio tal qual
veis que serão espontaneamente degradadas, posteriormente. nos sistemas fechados, o que
significa a perda das condições
Os termos reação exergônica e endergô‐ típicas do sistema celular, ou
nica (do grego ergon, trabalho) são preferenciais a seja, a morte.
exotérmica e endotérmica pois indicam a variação A segunda lei da termodinâmica indica
de energia livre e sugerem que a energia envolvi‐ que os processos espontâneos induzem a desor‐
da nas reações catabólicas e anabólicas são desti‐ dem (aumento da entalpia). Isso é possível em
nadas a um trabalho celular e não somente a vari‐ organismos vivos desde que o grau de a ordena‐
ações de temperatura no interior da célula. ção típico da vida (anabolismo) é garantido graças
a uma desordem maior devido às reações catabó‐
A vida, então, vai contra as leis da licas associadas. Uma conclusão típica é de que
deve haver uma preponderância de reações cata‐
termodinâmica? bólicas o que, para as células, representaria a
O fato de as reações de síntese não serem morte. Resta à vida manter‐se dentro de condições
espontâneas termodinamicamente não significa favoráveis de variações de energia livre para man‐
que não ocorram. Havendo condições adequadas ter‐se a favor da segunda lei.
de energia livre, a reação ocorrerá apesar de os Na verdade, esse fenômeno chamado vida
produtos serem de maior entalpia, aparentemente não é perceptível somente nas reações celulares,
contra as leis da termodinâmica. mas em toda a biosfera onde se percebe que há
Os estudos da termodinâmica são feitos uma interação entre os diversos processos bioló‐
em sistemas fechados que atingem o equilíbrio gicos favorecendo um estado de equilíbrio carac‐
após as reações permitindo uma determinação terizado por uma variação constante no fluxo
precisa dos fatores energéticos envolvidos. energético.
A vida, no entanto, ocorre em um sistema TM Lenton em 1998 chega a concluir que
aberto (a célula) e, portanto, nunca atinge o equi‐ a Terra é um organismo em virtude das comple‐
líbrio. xas interações entre os seres vivos. Segundo esse
pensamento, denominada hipótese Gaia (em
alusão à entidade mítica grega representante da
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Terra), nosso planeta sobrevive graças ao equilí‐ dos limites suportáveis pela célula além de ser
brio entre as reações metabólicas de todos os seres uma ação extremamente “econômica” para a célu‐
vivos diretamente ligado ao mundo inorgânico la, já que poupa a necessidade da célula de de‐
que fornece substratos básicos impossíveis de gradar uma quantidade grande de substratos para
serem sintetizados nos seres vivos. Dessa forma, a obter a energia necessária para iniciar as reações.
morte de Gaia é somente uma questão de tempo, A diminuição da energia de ativação é
assim como para todo ser vivo. obtida sobre a ação de catalisadores. Os catalisa‐
Sobreviver, portanto, é a essência da vida. dores químicos (p.ex.: íons metálicos) geralmente
Lutar contra as correntes da termodinâmica e, requerem altas temperaturas e pressão e pH ex‐
eventualmente, perder, é a lógica das moléculas. tremos, condições inviáveis para a célula.
Mas ainda persiste a questão: como a célu‐ Na Terra primitiva, provavelmente a ca‐
la “sabe” que “precisa” sobreviver? Como saber o tálise química providenciada pelos elementos
que é “bom” ou o que é “ruim” para a vida? Al‐ químicos disponíveis na argila daquele ambiente
gumas perguntas podem ser respondidas enten‐ a as condições extremas de temperatura e pressão
dendo a regulação das reações biológicas devem ter sido essenciais para as primeiras rea‐
ções químicas. Hoje em dia, entretanto, são as
enzimas que proporcionam esse estado de baixa
A toda poderosa regula‐ energia de ativação necessário para que a célula
tenha a “chance” de sobreviver (Figura 4).
ção enzimática
A compreensão de que a energia livre é
um regulador da espontaneidade de uma reação
bioquímica, leva a um problema prático essencial
para a manutenção da vida: qual é a variação má‐
xima de energia que uma célula pode suportar?
Sabe‐se que temperatura acima de 50oC destrói a
maioria dos seres vivos pelo simples fato de as
proteínas serem desnaturadas e perderem suas
funções de maneira irreversível.
Temperaturas mais amenas (entre 35 e
37oC) são propícias às reações químicas da maio‐
ria dos seres vivos. De maneira contrária, baixas
temperaturas ambientes podem não ser um impe‐
Figura 4 – A reação catalisada requer baixos níveis de ener‐
dimento à vida quando houver formas de manter gia livre porém o ∆G permanece o mesmo.
o ambiente intracelular dentro dos limites aceitá‐
veis de temperatura. De fato, observa‐se um nú‐ As enzimas proporcionam essa baixa e‐
mero muito maior de organismos vivendo em nergia pois possuem em seu sítio ativo compo‐
condições térmicas baixas do que em altas tempe‐ nentes que reagem com os substratos converten‐
raturas. do‐os nas moléculas do estado de transição por
No entanto, quase todas as reações bioló‐ desestabilizar sua estrutura molecular graças a
gicas possuem um nível de energia livre compatí‐ ações químicas (p.ex.: oxidação, redução, hidróli‐
vel com a fisiologia celular, porém, paradoxal‐ se, conjugação) que necessitam de menos energia
mente altos níveis de energia ativação livre são de ativação do que a reação não catalisada.
necessários para que as reações ocorram. Isto a Desta forma, a reação enzimática é fun‐
maioria das células não suporta. damental para a célula, pois aumenta a velocida‐
Como a energia de ativação não implica de da reação e permite que ela aconteça sem uma
na energia total envolvida pela molécula após sua quantidade de energia proibitiva para a fisiologia
síntese ou degradação (ver Figuras 3 e 4) resta celular.
como opção o desenvolvimento de mecanismos Um fato interessante é que as reações que
que diminuam essa energia de ativação como uma precisam de uma variação muito grande de ener‐
maneira de possibilitar as reações químicas dentro gia de ativação, freqüentemente acontecem com a
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