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A presença do patrimônio histórico campo-grandense na poética de Raquel

Naveira

Lemuel de Faria Diniz 1

Na minha carreira literária, tenho sido porta-voz da cidade de Campo Grande,


Mato Grosso do Sul. Muitos são os exemplos de poemas meus que geraram,
juntamente com o apoio da comunidade [...], apelos e ações políticas.
Raquel Naveira

A vida intelectual e artística da poetisa Raquel Naveira tem sido dedicada a promover o
debate sobre a importância da preservação dos monumentos históricos que são marcos de
fundação da cidade de Campo Grande. Tentando explicar sua predileção por esse tópico,
comenta a poetisa: “Na minha carreira literária, tenho sido porta-voz da cidade de Campo
Grande. [...] Muitos são os exemplos de poemas meus que geraram, juntamente com o apoio
da comunidade e de outros artistas e intelectuais, apelos e ações políticas.” 2 De acordo com a
escritora, esses poemas não são somente resultados de uma apurada pesquisa histórica, por
serem, primeiramente, frutos das suas lembranças. “Por isso”, ela diz, “minha poesia é muito
3
verdadeira: tudo isso é a arqueologia, a arquitetura da minha infância.” A transcrição de
fragmentos da primeira e da terceira estrofes do poema Pensão Pimentel ilustram muito bem a
fala da poetisa:
Que vento arrancou teu telhado
Como se fosse um chapéu?
Que fogo lambeu tuas paredes
Como se fosse uma língua negra?
Que destino,
Que sorte madrasta
Encheu tuas frinchas de percevejos e baratas?
[...]

Foste pensão,
Ficavas debruçada
À beira dos trilhos
Vendo os forasteiros chegarem
No trem recheado de esperança.
[...] 4

_________________
1
Mestrando em Letras (Estudos Literários)/UFMS
2
NAVEIRA. Turismo e literatura, p. 6.
3
NAVEIRA. Campo Grande, 03 nov. 2004. Entrevista concedida a Lemuel de Faria Diniz.
4
NAVEIRA. Via sacra, p. 41-42.

1
O primeiro sobrado de alvenaria da capital sul-mato-grossense teve sua construção
iniciada em 1912 e finalizada em 1918 para servir de moradia a Bernardo Franco Baís,
pioneiro do comércio da região, bem como de sua família. Em 1938, por ocasião do
falecimento do patriarca Bernardo, sua família decidiu alugar o prédio ao Sr. Normando
Pimentel, que hospedou muitas figuras ilustres do interior do estado e do país nas suas
acomodações. 5

Depois de servir como pensão de 1938 a 1954 6, o imóvel tornou-se um casarão


abandonado, esquecido.7 Conta-nos o historiador Paulo Coelho Machado que, após esse
abandono, a “Pensão Pimentel” sofreu dois incêndios, tornou-se albergue clandestino de
bêbados e mendigos, além de estar sujeita a desabamento. 8
Nesse contexto, em 1989, a poetisa Raquel Naveira publica o poema Pensão Pimentel em
sua segunda obra, Via sacra, cuja edição foi feita de maneira independente pela escritora. 9
_________________
5
Cf. Lista telefônica: encontre & compre. Passeios e atrações turísticas, p. 9.
6
Cf. MACHADO. Pelas ruas de Campo Grande: a grande avenida, p. 24.
7
Cf. DORSA. As marcas do regionalismo na poesia de Raquel Naveira, p. 71.
8
Cf. MACHADO. Pelas ruas de Campo Grande: a grande avenida, p. 24-25.
9
Cf. CHISINI. A difusão do trabalho literário de Raquel Naveira, p. 26.

2
Num tom de lamento e de revolta ao mesmo tempo, ela denuncia ao público e às autoridades
o incêndio ocorrido e o descaso a que está submetida a antiga moradia da família Baís: Que
fogo lambeu tuas paredes / Como se fosse uma língua negra?/ Que sorte madrasta / Encheu
tuas frinchas de percevejos e baratas?/ Como pôdes ficar assim? 10
Atentemos para a transposição de fragmentos da segunda e da quarta estrofes:
Foste palacete
Com lustres,
Cadeiras de balanço,
Retratos da Europa
[...]

Guardas ainda requintes,


Capitéis,
Arcos,
Um ar aristocrático
[...] 11
Nestas estrofes, Naveira expõe, respectivamente, o luxo da mobília e os requintes
arquitetônicos outrora presentes no majestoso casarão. Um pouco desses tempos saudosos é
relembrado por Nelly Martins, neta de Bernardo Baís, quando descreve que na sala de visitas
a mobília era austríaca, inclusive as cadeiras de balanço, mencionadas por Naveira no poema.
Na entrada havia um porta-chapéu e no lugar nobre, um piano. 12 Na sala de jantar havia
um aparador, dois armários muito altos com a parte superior em prateleiras e
portinholas de vidro. Neles, as xícaras eram dependuradas em pequenos ganchos
parafusados. Na cristaleira, estavam as peças mais finas [...]. Num canto, o filtro
bojudo de cerâmica com armação de ferro como suporte. No centro, larga mesa e
cadeiras e na parede o relógio, que batia quartos e horas.13
Assegura também Nelly Martins que o imóvel foi construído com telhas de ardósia em
forma de ladrilhos, vindas da Itália e que a parte térrea do casarão era constituída de portas e
janelas uniformes, todas em arcos e bandeirolas de ferro trabalhado. Entre os dois andares e
na testada do mesmo viam-se as ponteiras em forma de abacaxis com aparência de porcelana
do pavimento superior. As salas e os quartos da residência tinham o pé direito bastante alto, o
piso em tábua corrida, muito lavada e branca e as escadas internas em madeira. 14
Cabe ressaltar que, mantendo correspondência assídua com grandes nomes das literaturas
_________________
10
NAVEIRA. Via sacra, p. 41.
11
NAVEIRA. Via sacra, p. 41-42.
12
Cf. MARTINS. Duas vidas, p. 38.
13
MARTINS. Duas vidas, p. 38.
14
Cf. MARTINS. Duas vidas, p. 37-38.

3
brasileira e universal,15 Naveira mostra-se consciente de seu papel intelectual na pós-
modernidade, o que a levou a afirmar, enfaticamente:
Não quero ser tachada como “poetisa que só escreve sobre Campo Grande”, não
quero nenhum rótulo, o meu desejo é ser uma pensadora livre, criar uma poesia
universal, mas tenho consciência de que essa universalidade começa aqui, no meu
quintal, onde tenho enterrados o meu coração e as minhas raízes. 16
Diante dessas considerações da poetisa, é imprescindível lembrar que, no período
histórico em que vivemos, é totalmente inaceitável se acreditar na existência de um
regionalismo ou de um universalismo puros, pois como bem assinala Eneida Maria de Souza,
com a difusão da Internet e dos demais meios de comunicação em todo o mundo, não se pode
mais crer que exista um espaço e um tempo exclusivos dos ingleses ou dos americanos, por
exemplo, já que as avançadas tecnologias de comunicação nos propiciam a suspensão das
distâncias, atualizando todas as pessoas e, por extensão, todos os países no mesmo plano de
ação e interação. 17
Dentro desse contexto vigente, ao analisarmos a presença do patrimônio histórico campo-
grandense na poética de Raquel Naveira, observamos que, apesar de afirmar que seu desejo é
criar uma poesia universal, a poetisa só alcança esse objetivo no poema Alhambra. No poema
Pensão Pimentel Naveira não atinge essa meta, pois sua composição poética não transcende o
espaço regional, ou, mais especificamente, o espaço local, a cidade de Campo Grande. No
entanto, pode-se afirmar que, junto ao incessante apelo da população e de outros intelectuais,
essa iniciativa da poetisa contribuiu para que, após intensa restauração, o estabelecimento
fosse reinaugurado em 1995. Desde então, a “Morada dos Baís” destaca-se por abrigar o
museu das obras da artista plástica Lydia Baís, o Centro Cultural de Informações Turísticas, o
escritório do Campo Grande Pantanal Convention & Bureau, além de reservar espaço para
_________________
15
“Nas correspondências estão inumeráveis matérias, cartas e bilhetes de: Fábio Lucas, Moacyr Scliar, Ecléia
Bosi, Ana Miranda, José Paulo Paes, [...] Leyla Perrone-Moisés, Lygia Fagundes Telles, Bernardo Aizemberg,
José Nêumanne Pinto, Nélida Piñon, [...] Arthur Nestrovski, Evanildo Bechara”. CHISINI. Raquel Naveira: a
fiandeira de textos poéticos, p. 186. “Endossando o elenco, estão os seguintes intelectuais, escritores, artistas e
instituições: [...] Josué Montello, Ives Gandra da Silva Martins, Silvia Boyunga, Antônio Guedes Campos
(Lisboa), Judith Grosman, Plínio Doyle (Biblioteca Fundação Casa Rui Barbosa), Luciana Stegagno Pícchio
(Roma), José Arthur Rios (PEN Clube, Rio de Janeiro), [...] Elvo Clemente, Danilo Gomes (Academia Mineira
de Letras), Nora Ronderos (Santafé de Bogotá – Colômbia – Embaixada do Brasil – Setor de Imprensa e
Divulgação), Enilda Pires, [...] Olga Savary, Nelly Novaes Coelho [...] e Arnaldo Niskier”. CHISINI. A difusão
do trabalho literário de Raquel Naveira, p. 38.
16
NAVEIRA. Fiandeira, p. 41.
17
SOUZA. Seminário da linha de pesquisa literatura e estudos regionais, culturais e interculturais, UFMS, Três
Lagoas, 22 set. 2004.

4
shows e manifestações culturais variadas.18
Agradecida às autoridades pela recuperação da “Pensão Pimentel”, atualmente
denominada “Morada dos Baís”, a poetisa publicou, recentemente, o texto poético Casarão
dos Baís:
No meu livro Stella Maia e outros poemas, os poemas Morada dos Baís e A volta do
relógio são poemas mais recentes nos quais eu mostro que vi o resultado da minha
militância cultural. Não seria justo eu não dar o meu retorno à sociedade campo-
grandense, já que houve uma resposta político-administrativa a um clamor
poético.19
No poema Morada dos Baís Naveira procura mostrar que a recuperação desse
monumento contribuiu para eternizar a memória da família Baís, preservando a lembrança de
Lydia, conforme se constata nesses versos:
Vejo Lydia no centro da sala,
Lydia moça,
De cabelos cacheados
Sob a boina,
Saia plissada,
Pele rosada,
Indiferente,
(Sou eu o fantasma)
Continua pintando
A imagem de uma mulher guerreira,
Joana D’ Arc em seu cavalo;
[...]20
Essa referência à Lydia Baís na poética naveiriana não se deve somente ao fato de que a
artista plástica era filha de Bernardo Franco Baís e que, por também residir no casarão,
“merecia” ser retratada no poema. Na verdade, a presença de Lydia neste poema pode ser lida
e entendida como uma metáfora da vida da poetisa inscrita na sua obra. Raquel e Lydia foram
vizinhas por muitos anos, mas apesar de estarem próximas, se viram poucas vezes, ocasiões
nas quais a aparência da menina Lydia despertou na poetisa um terror e um encantamento
próprios dos contos fantásticos. Essa imagem de Lydia na mente da escritora se consolidou
também por causa dos comentários tecidos pelos vizinhos que reputavam aquela como “meio
louca”. 21
Por crescer ouvindo esses comentários sobre sua vizinha e presenciar todo o seu talento
artístico sendo abafado na marginalidade, Lydia tem sido lembrada com ternura na sua
poética. Em Fiandeira, obra ensaística na qual analisa o seu próprio fazer poético, Naveira
_________________
18
Cf. Lista telefônica: encontre & compre. Passeios e atrações turísticas, p. 9.
19
NAVEIRA. Campo Grande, 03 nov. 2004. Entrevista concedida a Lemuel de Faria Diniz.
20
NAVEIRA. Stella Maia e outros poemas, p. 99-100.
21
Cf. NAVEIRA. Fiandeira, p. 47.
realiza esse comentário:

5
Lydia tem sido presença constante na minha poesia. Vários de meus poemas, direta
e indiretamente, falam de Lydia. [...] Ah! Como a compreendo! Como me
compadeço dela! Como a amo na sua lucidez e na sua demência.
Quando nossa história for contada, quando nosso universo for mostrado longe
daqui, a vida de Lydia Baïs será tema de peça teatral, de filme, de documentário,
será o resgate de raízes profundas de nosso inconsciente coletivo. 22
O presente estudo está embasado na teoria da crítica biográfica que, por sua natureza
compósita, articula a complexa relação entre obra e autor, possibilitando a “interpretação da
literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes
23
metafóricas entre o fato e a ficção.” No exercício da crítica biográfica, a vida é considerada
como texto e as suas personagens como figurantes deste cenário de representação. 24
Reconhecida pela imprensa local como a escritora que mais tem retratado os costumes, as
25
tradições e a memória de Campo Grande em sua obra, no poema Fonte Luminosa Naveira
também segue esse percurso temático:
No meio da praça,
A fonte de pastilhas verdes,
Erguida em dois andares,
Parecia uma taça de sorvete pistache,
Embora ache na minha lembrança
Que era um carrossel de vidro,
Girando e escorrendo açúcar,
Neves batidas e claras.
[...]

Ela secou,
Eu sei,
Diferente de árvore,
Sem raízes,
Sem veias,
Secou no azulejo,
No aço,
No fungo,
Nos fios,
Nas lâmpadas.
[...]26
Os aspectos conteudísticos dessas estrofes remontam à localização e às características da
fonte no período em que, esquecida pela negligência dos governantes e pelo descaso da
_________________
22
NAVEIRA. Fiandeira, p. 49.
23
SOUZA. Crítica cult, p. 111.
24
Cf. SOUZA. Crítica cult, p. 119.
25
Essa informação foi obtida no artigo jornalístico “Escritora participa de projeto da Academia Sul-Mato-
Grossense de Letras”, p. 4.
26
NAVEIRA. Fonte luminosa, p. 13.

6
sociedade, esta secou-se completamente. Os versos No meio da praça / A fonte de pastilhas
verdes indicam que a história da “Fonte luminosa” está atrelada à história da Praça “Ary
Coelho”, situada na confluência de duas das principais avenidas campo-grandenses: a 14 de
Julho e a Afonso Pena, espaço em que se construiu a fonte em 1957.
A Praça “Ary Coelho”, como está oficialmente nomeada hoje, recebeu, inicialmente, o
nome de “Dois de Novembro”, por ocasião da primeira eleição realizada em Campo Grande,
sendo depois conhecida por “Passeio Público”, “Jardim”, “Praça Municipal”, “Praça da
Liberdade”, sendo intitulada com o nome atual em 1953, em homenagem ao prefeito campo-
grandense Dr. Ary Coelho, assassinado em Cuiabá. Em 1922, o administrador de Campo
Grande, Arlindo de Andrade, desenhou os canteiros da praça recobertos com grama verde e
amarela, locou as árvores do jardim e cercou toda a praça com tela de arame grosso e portões
em cada ângulo, estabelecendo, ao centro, um coreto com base de alvenaria e cúpula de
madeira. Nesse coreto, as bandas de música do Exército tocavam dobrados e valsas nas noites
domingueiras, trazendo alegria aos freqüentadores do ambiente, destinado, também, à
realização de comícios políticos.
Em 1957, o prefeito Marcílio de Oliveira Lima demoliu o coreto e determinou, em seu
lugar, a construção da “Fonte luminosa”, atividade delegada ao engenheiro Anees Salim Saad,
que também executou a revitalização da Praça “Ary Coelho”, na gestão do prefeito Juvêncio
César da Fonseca, em 1996. 27
Relembra a poetisa que quando houve o abandono da “Fonte luminosa” a facção dos
inconformados com a destruição do coreto propuseram ao prefeito o aniquilamento da fonte
para a reconstrução daquele, como havia sido outrora. Foi nesse conturbado contexto que,
aliada a dois de seus companheiros de militância cultural, Américo Calheiros e Maria da
Glória Sá Rosa, Naveira organizou uma manifestação na Praça “Ary Coelho” e, junto à
“Fonte luminosa”, declamou o poema que leva esse mesmo título. Seu empenho na defesa
desse importante monumento histórico lhe rendeu o título de “Poetisa da Fonte”, conferido
por um jornal campo-grandense. Conta a escritora que, pouco tempo após a sua ação, houve a
restauração da fonte que passou por uma reforma geral e voltou a funcionar como
antigamente, apesar de que, na época, a fonte era muito iluminada e, com a restauração, ela
não ficou tão luminosa. É interessante observar, ainda, que o poema Fonte Luminosa intitula
_________________
27
Essas informações foram recolhidas de sete placas metálicas afixadas na Praça “Ary Coelho”, datadas de sua
revitalização, 26 de agosto de 1996, empreendida na gestão do prefeito Juvêncio César da Fonseca.

7
a obra, salientando, assim, sua uniformidade temática, já que os demais poemas
circunscrevem, em sua quase totalidade, temas regionais, conforme se verifica nas
composições líricas Boiadeiro-Pantaneiro, Jaburu, Garça e Sucuri.
Logo após a fundação do Estado do Mato Grosso do Sul, em 1977, o primeiro
governador, Harry Amorim Costa, criou a Secretaria de Desenvolvimento Social, incumbida,
dentre outras atribuições, de incentivar, na arte, discussões sobre a identidade do novo estado
da federação. Nesse período, inicia-se a participação de Naveira na militância cultural.
Reunindo-se com Maria da Glória Sá Rosa e Idara Negreiros Duncan Rodrigues, Raquel
passa a enfocar, artisticamente, a preservação do patrimônio histórico campo-grandense. Seus
amigos de militância cultural, na época, também foram os professores Américo Calheiros,
Hildebrando Campestrini, Hélio de Lima (também ator), Neusa Narico Arashiro e Necy
Yonamine. Nas artes cênicas e cinematográficas, destacam-se Cristina Matogrosso e Cândido
Fonseca, atualmente, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Na música,
seus amigos de vida intelectual foram Almir Sater, os integrantes do Grupo Acaba, as irmãs
Lenilde e Lenilce Ramos, além de Tetê Espíndola. 28 Todavia, ao relembrar as origens da sua
militância cultural, Naveira observa que foi o artista plástico Humberto Espíndola o primeiro
que a influenciou para exercer esta atividade.29
Para prosseguirmos analisando outros aspectos da vida e da obra naveiriana,
transcreveremos estes excertos do poema Alhambra:
Alhambra fica em Granada
É fortaleza dourada e azul
Cuja torre até hoje recorda
A rainha aprisionada;
Sem mouros

E sem colinas,
Campo Grande tinha sua Alhambra,
O cine Alhambra,
[...]30

Como a vida se apodera da ficção, e esta daquela, a composição desses versos recebeu as
influências biográficas da escritora. Raquel visitou os países ibéricos e, “mais tarde, vários
poemas surgiram a partir de quadros, de objetos, de passeios feitos na Espanha”, conforme ela
_________________
28
NAVEIRA. Campo Grande, 03 nov. 2004. Entrevista concedida a Lemuel de Faria Diniz.
29
Explica Eneida Maria de Souza que a reconstituição de ambientes literários e da vida intelectual do escritor,
sua linhagem e a sua inserção na poética e no pensamento cultural da época constitui-se numa das tendências da
crítica biográfica, defendida por autores nacionais e estrangeiros. (Cf. SOUZA, Crítica cult, p. 112).
30
NAVEIRA. Abadia, p. 26.

8
31
mesma recorda. Na cidade de Granada, situada às margens do rio Darro,na região da
Andaluzia, sul do país, a poetisa conheceu o “Alhambra”, palácio e fortaleza pertencente aos
últimos soberanos árabes do reino de Granada, no século XIII.

Antigo município romano, com a conquista árabe, Granada foi sede do reinado dos
zíridas. No século XI passou para o domínio dos almorávidas, sendo tomada depois pelos
almóadas. Em seguida, iniciou-se a dinastia dos násridas, cujo reino constituiu o derradeiro
Estado muçulmano na Espanha. Em 1492, após longas lutas, Granada passa para o domínio
espanhol. Atualmente, é um importante centro comercial e ferroviário, ligando-se a Madrid e
Barcelona. Destaca-se, também, como centro turístico, graças ao palácio mourisco de
“Alhambra” e à catedral. 32
Acreditamos que no poema Alhambra Naveira consegue produzir uma poesia que beira
ao universal, pois se utiliza de um monumento de domínio universal, o “Alhambra” de
Granada, localizado na Espanha, para estabelecer “pontos de contato” com o “Alhambra”
campo-grandense. Trabalhando por meio de comparações, a poetisa destaca os requintes
_________________

31
NAVEIRA. Fiandeira, p. 80.
32
Cf. Enciclopédia Mirador Internacional, livro 10, p. 5417.

9
arquitetônicos dos dois monumentos.
No “Alhambra” granadino, palácio de tradição arquitetônica hispano-árabe, os elementos
determinantes são os pátios em volta dos quais se distribuem os edifícios. O primeiro conjunto
de construções, o cuarto de Comares, foi erigido ao redor do Arrayanes (mirtos). O segundo,
o cuarto de los Leones, adota o modelo do jardim rodeado de um conjunto arquitetônico,
abrigando, no centro de seu pátio, a fonte dos leões. No reinado muçulmano, a cidade de
Granada, cuja principal atração era o “Alhambra”, se notabilizou por um grande
desenvolvimento cultural, principalmente na produção literária. No entanto, apesar de ser um
grandioso monumento arquitetônico, o “Alhambra” quase foi explodido pelas tropas francesas
que invadiram Granada em meados de 1820. Naquela ocasião, a intervenção de um único
habitante da cidade conseguiu evitar a demolição do palácio. 33
O “Alhambra” campo-grandense também se destacou como uma obra arquitetônica
notável. Em 1936, o comerciante Karim Bacha contratou a empresa “Thomé & Irmãos” e o
arquiteto Frederico João Urlass, respectivamente, para a construção e a elaboraçãodo projeto
arquitetônico do mais moderno cinema de Campo Grande. O estilo Art Déco da arquitetura do
edifício preponderava em sua alta fachada, com frisos verticais e marcação de volumes com
um elegante jogo de reentrâncias. 34

_________________
33
Cf. Enciclopédia Mirador Internacional, livro 10, p. 5418-5419.
34
ARRUDA. Campo Grande: arquitetura e urbanismo da década de 30, p. 27-28.

[...]

10
Campo Grande tinha sua Alhambra,
O cine Alhambra,
Com cortinas de veludo verde,
Palco coroado de cactos,
Camarotes
Para que damas usassem leques e decotes.
[...]35

Neste poema, a voz poética naveiriana nos remete à década de 30, descrevendo o Cine
“Alhambra” como uma fortaleza dourada e azul com cortinas de veludo verde. No último
verso da primeira estrofe Naveira resgata um pouco da sociedade da época. Relata-nos Celso
da Costa que era próprio da sociedade campo-grandense da década de 30 vestir-se
elegantemente com tecidos importados, desfilando a sua pompa, em nível de grandes centros
nos locais considerados chiques36, tais como o Cine “Alhambra”, que é emblematizado
poeticamente por Raquel Naveira como um Palco coroado de cactos, / Camarotes / Para que
damas usassem leques e decotes.
Inaugurado em 1937 37, o Cine-Teatro “Alhambra” marcou as décadas de 30 e de 40, pois,
com capacidade para 2.500 pessoas, se configurou como o maior espaço cultural e de lazer da
cidade, já que no seu auditório também eram realizados eventos teatrais e sociais. Na década
de 80 o edifício foi demolido para a construção de um Hotel 5 estrelas, ainda inacabado. 38
O eu poético de Naveira ainda diz:
Demoliram o Alhambra ...
Terá sido terremoto
Derrubando colunas,
Pátios,
[...]
Abóbadas? 39
Ao trazer para sua poética as reminiscências do Cine “Alhambra”, o eu-poético
naveiriano desvela uma ironia mordaz, conforme constatamos nos versos: Demoliram o
Alhambra... / Terá sido terremoto[...]? Essa ironia se instaura de uma maneira pungente não
_________________
35
NAVEIRA. Abadia, p. 26.
36
COSTA. Evolução Urbana, p. 76.
37
MACHADO. Pelas ruas de Campo Grande: a avenida Afonso Pena, p. 05.
38
ARRUDA. Pioneiros da arquitetura e da construção em Campo Grande, p. 308.
39
NAVEIRA. Abadia, p. 27.

só na memória da poetisa, mas também continua presente na memória de um número


expressivo de campo- grandenses e moradores da cidade que se recordam saudosamente do

11
“Alhambra” que ficava na Avenida Afonso Pena, perto do Relógio da 14 e era o programa
dominical das famílias que tinham em seu local uma das poucas atividades de lazer.40
Voltemos à análise do poema:
Lá no Alhambra
Não havia mirtos,
Nem fonte de alabastro
Sustentada por leões,
Mas na tela desfilavam
Romeu e Julieta,
A Moreninha,
O Conde de Monte Cristo
Em tardes quentes
Em que éramos adolescentes
Com curiosidades latentes
E peitos palpitantes. 41
Dentro desse contexto vigente, para Naveira a demolição do “Alhambra” representou não
só a destruição de um patrimônio histórico como também a destruição de um patrimônio
cultural já que, apesar de que no Cine “Alhambra” Não havia mirtos, / Nem fonte de
alabastro / Sustentada por leões, [...] na tela desfilavam / Romeu e Julieta, / A Moreninha, / O
Conde de Monte Cristo. Por se constituir um ponto de encontro dos jovens campo-grandenses
42
, o Cine Alhambra era um espaço físico freqüentado por adolescentes Com curiosidades
latentes / E peitos palpitantes, constituindo-se, assim, numa página histórica da sociedade
campo-grandense dos anos 30. E nunca se pode esquecer que é o povo, com sua participação,
que faz a História. 43
Outro poema em que a escrita biográfica de Naveira se manifesta é Relógio da 14. Neste,
a ficção vai produzindo a vida da escritora ou, ao menos, possibilita ao estudioso que esta seja
relida na ficção. 44
A sensibilidade de Raquel, desenvolvida no sentido de aproveitar tudo que se passa ao
seu redor para transformar em matéria de poesia, 45 utilizou como mote a demolição do
_________________

40
DORSA. As marcas do regionalismo na poesia de Raquel Naveira, p. 81-83.
41
NAVEIRA. Abadia, p. 27.
42
DORSA. As marcas do regionalismo na poesia de Raquel Naveira, p. 81.
43
MOCELLIN. História do povo brasileiro: Brasil colônia, p. 10.
44
Cf. NOLASCO. A carta roubada de Clarice Lispector, p. 89.
45
Cf. CAMPESTRINI. Entrevistando Raquel Naveira (I), p. 4.
relógio da Rua 14 de Julho para oferecer, voluntariamente, sua parcela de colaboração para
com o turismo campo-grandense. Para Naveira, além de significar a perda de um importante

12
patrimônio histórico, a remoção do “Relógio da 14” se constituiu numa perda para o turismo
local. Na perspectiva naveiriana, a necessidade de tornar proveitosa e agradável a
permanência do turista deve conduzir a população campo-grandense a construir hotéis,
agilizar centros de informação e orientação, mas também conhecer, valorizar e explorar o seu
potencial econômico, artístico, histórico, arquitetônico e cultural. 46
Visando ampliar nossas discussões, transcrevemos, abaixo, trechos do poema Relógio da
14:
Na rua 14 havia um relógio.
Um relógio alto como uma torre,
Amarelo como uma fotografia antiga;
Era um relógio de grande utilidade:
As pessoas sabiam se estavam atrasadas
E sentiam o escorrer dos minutos;
[...]

Quem tirou o relógio da 14?


Parece que foi sonho...
A gente era criança,
Veio um ser de outro planeta
E com mãos gigantescas
Arrancou o relógio,
A cidade amanheceu sem relógio,
O tempo galopando nas esquinas;
Crescemos de repente,
Sem marcas de ferro nas lembranças,
Sem o apoio dos ponteiros,
Soltos no espaço.
[...]47
Explica a própria Raquel Naveira como se instaura a preservação do patrimônio histórico
de Campo Grande no seu poema Relógio da 14:
Há quase vinte anos atrás, escrevi o poema “Relógio da 14”, publicado no jornal
“Correio do Estado”. [...] O povo a partir de então exigiu, indignado e
melancólico, o relógio de volta. Não se pode arrancar de uma hora para outra um
marco arquitetônico da cidade. [...] As pessoas foram conscientizadas, via poesia,
da importância daquilo que estava impregnado em nossa memória. [...] A
construção de uma réplica do relógio da 14, na avenida Afonso Pena, quase
esquina com a avenida Calógeras, foi a culminância desse processo de
amadurecimento e prova de amor às coisas da terra. É um novo marco de que os
cidadãos não permitirão mais a demolição e destruição do que consideram pontos
históricos [...] de sua cidade. Um marco de que cultivamos nossa memória, poética
e objetivamente. 48

_________________

46
NAVEIRA. Turismo e literatura, p. 6.
47
NAVEIRA. Via sacra, p. 33-34.
48
NAVEIRA. Turismo e literatura, p. 6.
Indagada se as suas intenções ao publicar os poemas Relógio da 14 e Alhambra foram
igualmente alcançadas, já que, embora noutro local, o Relógio da 14 foi reconstruído pelo

13
governo, mas o Cine “Alhambra” não, a poetisa Raquel Naveira respondeu serenamente que
poeta é o indivíduo que traz a essência das coisas e que luta pelo retorno da memória,
independente da reação que seus poemas vão desencadear, pois “toda poesia traz a essência, o
resto é conseqüência.” Para ela, o Relógio da 14 e o Cine Alhambra estão presentes nos
pedaços da memória que vão ficando ou se perdendo: palavras. 49
Dessa forma, concluímos que, ao enfocar a preservação do patrimônio histórico de
Campo Grande na sua poética, a vida da escritora Raquel Naveira se inscreve em sua obra,
nos interstícios criados pelo jogo ambivalente da arte e do referente biográfico.

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NAVEIRA. Campo Grande, 03 nov. 2004. Entrevista concedida a Lemuel de Faria Diniz.

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