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Filosofia:

O Livro das Perguntas

Filosofia: O Livro das Perguntas


Filosofia:
O Livro das Perguntas
Ericson Falabretti
Jelson Oliveira
Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-1714-0

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Ericson Falabretti
Jelson Oliveira

Filosofia:
O Livro das Perguntas

IESDE Brasil S.A.


Curitiba
2011

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© 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e
do detentor dos direitos autorais.

F177f Falabretti, Ericson. Oliveira, Jelson. / Filosofia: O Livro das Perguntas. / Ericson
Falabretti; Jelson Oliveira. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2011.
320 p.

ISBN: 978-85-387-1714-0

1. Filosofia. 2. História da Filosofia. 3. Filósofos. 4. Mito e Ciência. 5. Corren-


tes Filosóficas. I. Título.

CDD 109

Capa: IESDE Brasil S.A.


Imagem da capa: Domínio público

Todos os direitos reservados.

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Ericson Falabretti

Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).


Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor e
coordenador do programa de pós-graduação (mestrado) em Filosofia da Pontifí-
cia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Autor de artigos e ensaios na área
de Filosofia.

Jelson Oliveira

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor


do programa de pós-graduação (mestrado) em Filosofia na Universidade Federal
do Paraná (PUCPR). Diretor do curso de licenciatura em Filosofia na PUCPR. Poeta
e escritor, tem artigos e livros publicados na área de Filosofia, dentre os quais A
solidão como virtude moral em Nietzsche (Curitiba: Champagnat, 2010).

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Sumário
O Livro das Perguntas.................................................................9

De onde viemos? (O mito)..................................................... 15


O mito no mundo grego.......................................................................................................... 18
Depois do mito, a Filosofia...................................................................................................... 23

Qual a origem do mundo? (Período naturalista)........... 37


O momento pré-socrático....................................................................................................... 37
Os filósofos originários............................................................................................................. 40

Quem somos? (Platão)............................................................. 59


O nascimento da Filosofia....................................................................................................... 59
O inteligível e o sensível.......................................................................................................... 62
A dialética e o conhecimento................................................................................................ 64
A alma e o conhecimento como reminiscência.............................................................. 67

O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles).... 83


A sistematização do conhecimento.................................................................................... 83
A metafísica.................................................................................................................................. 87
A física............................................................................................................................................ 91
A psicologia.................................................................................................................................. 94

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Como devemos viver? (Helenistas)...................................109
O estoicismo...............................................................................................................................113
Epicurismo..................................................................................................................................115
Ceticismo e cinismo.................................................................................................................120
Neoplatonismo.........................................................................................................................122

É possível conciliar fé e razão? (Patrística


e escolástica) . ..........................................................................135
Santo Agostinho: fé e razão como garantias da felicidade.......................................137
Fé e razão na escolástica........................................................................................................143
A sistematização de São Tomás de Aquino.....................................................................145

Como podemos conhecer? (Empirismo


e racionalismo).........................................................................159
Velhos e novos problemas....................................................................................................159
Bacon e o empirismo..............................................................................................................163
Descartes e o racionalismo moderno...............................................................................169
A dúvida metódica e a experiência estruturada...........................................................176

Somos livres? (Maquiavel e Rousseau)............................189


A força..........................................................................................................................................189
O direito político.......................................................................................................................191

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Até onde podemos conhecer? (Kant)..............................219
A era moderna e uma nova visão de mundo.................................................................221
O que posso saber?.................................................................................................................223
O que devo fazer?....................................................................................................................228

Qual o valor da vida? (Niilismo)..........................................243


O século da suspeita...............................................................................................................243
A crise niilista.............................................................................................................................245
A morte de Deus.......................................................................................................................247
A ambiguidade do niilismo..................................................................................................250

O que é estar no mundo? (Husserl e


Merleau-Ponty)........................................................................267
O esquecimento da experiência primeira.......................................................................267
Intencionalidade e redução: a redescoberta da experiência subjetiva................273
O ser no mundo: corpo e existência..................................................................................277

Para onde vamos? (Natureza e técnica)..........................295


A técnica como aumento do poder...................................................................................295
O poder de Prometeu.............................................................................................................297
De como a técnica pode se converter em uma ameaça............................................300
O princípio responsabilidade...............................................................................................302
O poder do homem sobre si mesmo................................................................................306

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O Livro das Perguntas

Quis o mito que Athena – aquela deusa parida da cabeça de Zeus a golpes de
machado, já senhora das reflexões, deusa do raio, da guerra e da inteligência –
adotasse uma ave como sua. Desde então, a coruja de olhar vigilante aninhou-se
nas colônias gregas até as periferias da Hélade e as colunas monumentais do areó-
pago central do mundo helênico, seus jardins e perípatos, sobrevoando homens
e mares como poucas vezes se viu. Faz tempo que é assim. Desde que o entusias-
mo do voo dessa ave sagrada entusiasmou um velho obscuro como Heráclito e/
ou um desastrado como Tales. E fez profundas as marcas de suas garras na alma
grega de um Sócrates ou de um Platão, ainda atônitos com a grande descoberta
da razão e seus encantos, até os píncaros de um sistema tão intangível quanto o
de Aristóteles e tão encantador quanto o de Epicuro e seus colegas helenistas. Tal
como a fênix renascida para novo zênite depois da autocombustão, também a
coruja de Athena arremeteu com força divinal ainda sob a pena de um Agostinho
e um Tomás de Aquino, retraçando a metáfora do voo com um tão grande esforço
de interrogação e mil olhos de lince em direção ao infinito, batizado agora com o
maiúsculo codinome de Deus. Ave metafórica, com que olhos se olhou no espe-
lho engendrado por um Descartes ou por um Bacon, e se debateu nas redes de
um Kant ou de um Hegel, e com que espírito enfrentou o perigo de uma obra tão
corrosiva como a de um Nietzsche, aquele que escreveu com sangue não para ser
lido, mas para ser cantado.

Ah... Quantas viagens e quantas ressurreições foram necessárias para que essa
ave rupestre, em seu hierogâmico exercício de rotas em torno do absoluto, fizes-
se seu ninho ainda no coração de nossa cultura, arrebatando novos adeptos, re-
presentantes de uma humanidade reflorescida em sempre outros rostos e outras
interrogações. Jovens no tempo, nas alianças e nas indagações.

Pois! Que força tem o poder encantador universal dessa ave: a sombra de suas
asas e o encanto de seus rodopios continuam arrebatando gente como nós. Faz
muito tempo que é assim. Energia fundamental e suprema, força cega e incon-
trolada? Talvez. Não existimos sem ela. Com ela, dançamos um balé de opostos
complementares – alguma coisa que, parafraseando José Saramago, por mais
voltas que pudéssemos dar às palavras, não conseguiríamos achar um nome
para isso. Com ela, a vida ganha uma conotação ritual obediente a um princípio
maior, chamado pela pomposa palavra Verdade – assunto de tantas aulas, tema
de tantos discursos, mote de tantas leituras. No eclipse de uma sala de aula ou
sobre o mofo de um velho livro, o filósofo coteja a verdade como quem reencena
a invenção do universo. Ou como quem decifra o pensamento de um deus. A ver-
dade é sua frequentação mais assídua. A coreografia de uma vida. Às vezes, sua
fuga. Sua caça. Sua tontura! Seu enigmático ritual de silêncios e arrebatamentos.
Dessa matéria, há tempos se diz, faz-se a vida enlevada pela filosofia. O tal filóso-
fo, amante da sabedoria, enfim, como pretendemos mostrar neste livro, encarna-

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-se em todo aquele que for capaz de se deixar levar pelo encanto do voo filosófico.
A filosofia não é assunto de livros empoeirados. Trata-se de uma atitude. Por isso,
realiza-se pela capacidade de formular perguntas, muitas das quais, pelo exagero
ou pela obviedade da aporia, tornam os seus formuladores algo estranhos, au-
sentes, arrebatados. Como toda amante, a filosofia também exige exclusividade.
Quase sempre ensimesmado (e por vezes também abobalhado), esse novo tipo
de ser humano, mais completo, mais vivaz e plenamente realizado, apenas realiza
a grandiosa tarefa que lhe foi reservada: filosofar.

Ver pelo olho da ave de hábitos crepusculares é também amar o crepúsculo,


rapinando por sobre a cultura com uma desenvoltura de 360 graus. O filósofo
sabe que precisa levar muitos ídolos ao crepúsculo. Foi Hegel quem disse que a
coruja de Athena (ou de Minerva, entre os romanos) só levanta voo ao entardecer.
E o faz para caçar. A caça, lembrem, é símbolo da sobrevivência, pelo abatimen-
to da presa. Depois da refeição, dizem os biólogos, a coruja lança fora restos de
ossos e pelos dos animais abatidos. Em uma época, a nossa, de tantas ignorâncias
e mediocridades, tantos tecnicismos ordinários e esvaziadas comédias midiáti-
cas espetacularizadas como mercadoria falsificada, é preciso manter-se prudente
para completar os ciclos e derrubar falsos ídolos. Alimentar-se de seu tempo para
jogar fora seus dejetos.

O homem pergunta: “É esta a minha hora?” Então, o estranho em pele de fi-


lósofo lhe ensina como tocar a flauta do espírito para desencantar os habitantes
dessa nova aldeia global, comovida pelo dote de malditas melodias. O percurso
do som envolve uma descida ao centro desconhecido de nós mesmos, entre res-
sonâncias ancestrais de um trajeto iniciático, tal como o de Orfeu em busca de
sua Eurídice, aquela que habita o carvalho e fornece a matéria para o som. Ali,
no mundo desconhecido das sombras, exige-se agora, mais uma vez, vigilância
absoluta e um novo tipo de saúde. Aquela que não apenas se tem, mas se perde
e se reconquista, para citar de novo Nietzsche, o filósofo de Sils Maria. É o drama
animal de uma fênix, batizado pelos gregos de mistérios órficos. É disso que se
fazem, desde muito tempo, as inúmeras ressurreições que nós temos de fabricar.

Com a filosofia, o universo se faz de novo a cada instante e nós subimos à


vida novamente, em nossa anábase de mil retornos. E atrás do filósofo talvez siga
ainda a cultura, como Eurídice caminhou atrás de seu amado. Mas, como Orfeu,
também não corremos nós o risco de olhar para trás, contrariando as ordens dos
senhores do mundo, e perdê-la para sempre? Nenhuma dor é maior que o vazio
ontológico dessa perda. Porque, com ela, perdemos as joias de nossa arca, nada
mais do que um alaúde de instantes que arrastamos desde o nascimento. Somos
gente da reversão, da recondução, do retorno e, por isso mesmo, da resistência, da
religação. Fazer vibrar a lira da filosofia pela teimosia de sempre novas perguntas,

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é fazer vibrar de novo a música do mundo, a harpa da cultura inventada naqueles
primórdios, por Hermes, e emprestada a Orfeu e a tantos outros daqueles poetas
originários. Nossa tarefa agora? Descer ao oco de nós mesmos para aí reanimar-
-se dessa mesma ancestralidade, em horas e horas de leituras e devaneios, des-
bravamentos hesitantes e dolorosos. Essa jornada interpretativa é o arroubo,
ainda, da coruja de Athena. E, como jornada, o que interessa não é a chegada,
mas a viagem mesma, suas errâncias e a beleza da paisagem. Solidão haverá, e
talvez inúmeros daqueles sustos, dos quais falara Sócrates. Mas é esse, também, o
eixo central de todos os amores.

A tarefa da pergunta, como tarefa fundamental da humanidade, torna-nos a


todos herdeiros dessa tradição. E também de suas rupturas e da necessidade de
suas reinaugurações. É por isso que, nesta obra didática, dirigimos nosso convite
para que você, caro leitor ou leitora, reflita sobre esses valores ancestrais e sobre
a necessidade de sua atualização, em um tempo em que a razão, malgrado seus
benefícios, ainda pode ser responsabilizada pela tortura de corpos até envelhecer
as almas, pelas milhões de crianças que sucumbem no purgatório diário da fome,
ou pela destruição diária de inúmeras formas de vida sobre o planeta. Em nosso
tempo, como escreveu o poeta uruguaio Mario Benedetti, “já é bastante grave
que um só homem ou uma só mulher contemplem distraídos o horizonte neutro”,
o que dizer quando toda a humanidade dá de ombros e vira as costas para si
mesma. É preciso lembrar-se também do esquecimento.

Neste Livro das Perguntas, toda a humanidade está. E sua forma de estar pode
ser a da indiferença ou do compromisso. Mas de sua leitura deve partir a tarefa viva
da Filosofia. É preciso usar essa poderosa ferramenta para a educação. E educar é
recorrer à memória e engendrá-la com o presente, em forma de projeto. Sonhar
é o nome poético dessa atividade. Filosofia não é excentricidade, não é adorno,
não é luxo, não é privilégio. Filosofia é a arte de refundar mundos. Faz tempo que
é assim. Do jeito como sonhamos. Não somos sábios. Somos amantes. Não somos
juízes, somos intérpretes. Não somos viajantes, mas andarilhos. Sentido último,
se há? Verdade decisiva, quem poderá afirmar? A beleza está na busca. Disposto
para a vertigem, como a coruja, noturno é nosso voo e estendido sobre abismos.
Vale a beleza da vista. Em um tempo de misósofos (os que odeiam a sabedoria),
pela força das perguntas convidamos a todos para que sejam filósofos (os que a
amam). Mas essa não é uma atividade puramente intelectual, exige envolvimento
absoluto e capacidade de se deixar contaminar e emocionar por ideias e ideais.
Na filosofia, assim como na vida, é preciso perder o prumo. Porque todo amor é
carência e falta, e todo objeto amado é completude e descontrole. Velho, doente,
frágil, louco o filósofo? O homem sem ação, calado, triste, misógino, misantropo?
Nada disso! Desde Nietzsche, a filosofia aprendeu a dançar e exige força aeróbica.
Tarefa inútil e alienada? Não: coragem de enfrentar a suspeita, de questionar o

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útil, de engajar-se com o principal, isso sim. Em um tempo de resultados imedia-
tos, os nossos nunca são alcançados. De projeções desastrosas, as nossas ainda
respiram utopias. E se alguém ainda perguntar para que servem as utopias, tería-
mos apenas de responder: para caminhar, ora bolas!

E, nesse caminho, o presente livro pode servir de mapa. Na sua grafia, muitos
nomes, muitos lugares, muitas experiências. O livro é uma carta-convite para
uma grande aventura. Tentamos marcar no mapa, perseguindo as pistas dos que
nos precederam, as principais perguntas que envolvem a condição humana. Dos
poetas e filósofos originários gregos aos pensadores cristãos, dos modernos até
os contemporâneos. Passamos por várias áreas: política, estética, ética, epistemo-
logia, linguagem etc. Encontramos fundamentos, desvelamentos, encobrimentos,
construções e desconstruções. No caminho, haverá atalhos, picadas, passagens
estreitas, mares abertos, momentos sem rumo, encruzilhadas. De todos esses mo-
mentos comoventes se faz a arte de caminhar – e de filosofar!

O que dizemos? O que perguntamos? Qual o rumo da estrada? O que dese-


jamos? Que a ave de Athena também pouse nos seus ombros, caro leitor, e, com
você, a filosofia continue sendo essa tarefa do “por quê?” E não esqueçam: quanto
mais a resposta pareça óbvia, mais vocês devem evitar o conforto das evidências.
Que a paciência e a admiração sejam o exercício diário da Filosofia. Fujamos da
pressa, prefiramos a contemplação, exijamos alegria. Não colecionemos banali-
dades, não afugentemos as diferenças, não banalizemos as indiferenças. Sejamos
lentos no olhar e leves na avaliação. Imparciais no trato, mas corajosos nas es-
colhas. Deixemo-nos mobilizar pelas infinitas perspectivas, amemos o complexo,
prefiramos o mar ao porto e as viagens longas e perigosas à permanência e ao
comodismo. Pedra que rola não cria limo. Faz tempo que é assim. Com vocês,
também será.

Boa aventura!

Os Autores

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De onde viemos? (O mito)

A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano.

Albert Camus

A pergunta fundamental do mito é uma indagação sobre a origem de


todas as coisas – homens, mundo e deuses incluídos. Como uma narrativa
alegórica e/ou simbólica, o mito é uma tentativa de dizer e explicar a reali-
dade, em um tempo em que a linguagem racional ainda não tinha o status
que apresenta em nossos dias. Por isso, as explicações míticas não são ló-
gicas, mostrando-se, ao contrário, carregadas de ambiguidade (algo que,
no limite, está presente em qualquer texto poético). Um exemplo disso
pode ser encontrado no prólogo escrito pelo poeta grego Hesíodo, ao seu
livro Teogonia: a origem dos deuses, no qual as musas afirmam que sabem
dizer a Alétheia (“verdade”) e também a Apáte (“engano”).

Domínio público.

Hesíodo.

Como inspiradoras dos poetas, as musas tanto podem dizer verdades


quanto enganar, já que seu discurso é fantasioso e tem caráter de sacra-
lidade, sendo articulado por meio de uma linguagem que não segue os
padrões da lógica ou da semântica, efetivando-se pelas imprecisões, as
fantasias e rupturas, nas quais a verdade pode ser desvelada.

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De onde viemos? (O mito)

O mito é uma forma de conhecer o mundo e, nas suas lacunas, muitos autores
têm tentado encontrar a veracidade de seus conteúdos, já que ele se apresenta
com uma riqueza imensa que não cabe na lógica linguística e, por isso mesmo,
só pode ser dito em forma de narrativa mítica. O mito é algo vivo e nele a imagi-
nação se apresenta de forma exuberante, possibilitando que de seu tecido cheio
de cores possamos extrair o sentido da vida. Assim, em seu conteúdo, lingua-
gem, função e estrutura, todo mito se apresenta como antecipação da própria
filosofia.

Como uma história sagrada, todo mito fala da criação do mundo, do apareci-
mento dos homens e dos deuses, das façanhas de criaturas extraordinárias, ten-
tando explicar atitudes e sentimentos que expressam uma relação entre todos
os seres naturais. Cada cultura tem seus próprios modos de explicar esses “acon-
tecimentos” e, muitas vezes, essas narrativas são transmitidas oralmente de ge-
ração para geração. Assim, o mito tem uma base oral extremamente relevante:
quanto menos letrada é uma sociedade, mais afeita às explicações míticas ela é.
Em torno do mito, criam-se cerimônias, rituais, gestos, ornamentos, vestuários
etc., que dão concretude à expressão mítica.

Domínio público.
Não por outro motivo, o mito também
está marcado pelo mistério, que é cons-
tituinte da essência humana. O verbo
miéin, donde ele deriva etimologica-
mente, remete à ideia de que é preciso
“manter a boca e os olhos fechados” para
se deixar iniciar nos mistérios. De miéin
também derivam mystérion e mýstes,
que estão ligados àqueles que se deixam
iniciar nos rituais com quais o homem
tenta explicar (por essa língua enigmáti-
ca) os grandes segredos interiores e ex-
teriores. Por isso, Carl Gustav Jung – que
usou os mitos de forma decisiva em sua
psicologia – escreveu que “Para a razão,
o fato de ‘mitologizar’ (mythologein) é
uma especulação estéril, enquanto que
para o coração e a sensibilidade é vital
e salutar: confere à existência um brilho
Carl Gustav Jung (aqui em uma fotografia de 1909)
ao qual não se queria renunciar” (JUNG, demonstrou o vínculo dos mitos com a estrutura psí-
1978, p. 261). quica do indivíduo.

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De onde viemos? (O mito)

O mito devolve brilho à vida, e isso o torna tão encantador. Entre os pensado-
res contemporâneos, talvez Joseph Campbell deva ser citado como um dos que
mais se interessaram pela vitalidade dos mitos, tentando classificar essa impor-
tância em quatro questões:

 cosmológica;

 metafísica;

 sociológica;

 psicológica.

Em outras palavras, o mito tenta ordenar o mundo, dar explicações sobre as


coisas que nos cercam, estruturar a sociedade humana e ajudar cada indivíduo
a entender a si mesmo como parte do mundo. Segundo Campbell, “o alegre
espanto diante da maravilha das coisas é, por fim, o presente imortal do mito”
(CAMPBELL, 2001, p. 134).

Domínio público.

Joseph Campbell (aqui com sua esposa, a bailarina


Jean Erdman) demonstrou a onipresença do mito
nas narrativas, e logrou influenciar artistas da cultu-
ra pop, como o diretor George Lucas, da saga Guerra
nas Estrelas.

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De onde viemos? (O mito)

Como história sagrada, todo mito revisita as origens primordiais para perscru-
tar como as coisas vieram a ser o que são. Mas não só isso: ele oferece a chance
de que os homens de todas as épocas possam se deixar orientar por ele, por sua
fecundidade e sua vivacidade:
O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade
científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeira, que satisfaz a profundas
necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e
mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função
indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; [...] garante a eficácia do ritual e
oferece as regras práticas para a orientação do homem. O mito, portanto, é um ingrediente
vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário uma realidade
viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma
fantasia artística [...]. (MALINOWSKI apud ELIADE, 2000, p. 23)

É essa riqueza simbólica que continua fazendo com que pensadores de dis-
tintas épocas continuem recorrendo ao mito, como maneira de explicar a reali-
dade e forma de compreensão dos mistérios que envolvem o espírito humano,
em todos os tempos.

O mito no mundo grego


No mundo grego, o mito se revelou como forma de expressão metafórica e
sagrada das verdades que davam sentido à vida dos homens dóricos. Sutis e fle-
xíveis, essas narrativas encaixam fatos que transmitem ensinamentos estéticos,
religiosos e práticos, expressando uma íntima relação do homem com a natureza.
Arranjados nos poemas épicos de Homero e Hesíodo (que foram os dois principais
poetas gregos, tendo vivido entre os séculos VIII e VII a.C.), os mitos são o conteúdo
principal das primeiras formas literárias do Ocidente, logo após a invenção do alfa-
beto grego. Como histórias que visam a dar sentido à vida e à morte dos homens,
esses poemas revelam a estrutura social, a forma de compreensão de mundo, os
dilemas e os valores que fundam a sociedade antiga. Questões humanas e cotidia-
nas se dissolvem nas narrativas épicas, que contam a história na forma versificada
dos primeiros textos poéticos. A importância do mito para a Grécia é tão forte que
podemos afirmar, com certeza, que por ele passam as grandes contribuições dóri-
cas em termos de arquitetura, religião e estética: templos, teatros, tesouros, textos
literários, esculturas – tudo vem da visão mítica alimentada pelos gregos, tendo
uma influência duradoura sobre a nossa cultura.

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De onde viemos? (O mito)

Domínio público.
Sísifo, 1920. Franz von Stuck. O mito de Sísifo representa a condi-
ção humana, a condenação a existir.

Assim, para os gregos, o mito representa o primeiro discurso que, entre


outras funções, procura responder sobre a origem da natureza, dos deuses, dos
homens e de todas as formas de vida.

Etimologicamente, mythos deriva de dois verbos, que têm grafias e significa-


dos semelhantes:

 mytheyo (“contar, narrar, falar alguma coisa para os outros”);

 mytheo (“conversar, contar, anunciar, nomear, designar”).

O mito é um discurso pronunciado para pessoas que o recebem como verda-


deiro, na medida em que confiam na própria história narrada, seja para explicar
o presente ou para anunciar um futuro não determinado, conforme sugere o uso
do verbo mytheo.

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De onde viemos? (O mito)

Diferentemente da religião cristã, e de quase todas as crenças monoteístas,


o mito grego não está assentado em uma fonte transcendente1, isto é, distinta
da realidade. Ao contrário, ele estava integrado à vida como a fala ao cotidiano,
como os hábitos de comer à mesa e a moral às regras de sociabilidade. Praticar
o culto e honrar os deuses eram tradições que não demandavam qualquer jus-
tificação ou persuasão. E assim como não havia revelação de origem completa-
mente transcendente, não havia casta sacerdotal, igreja, livro sagrado e tampou-
co dogmas. Para cumprir suas obrigações religiosas, bastava ao homem grego
dar crédito, ter fé perante o conjunto de narrativas, as quais, em suas inúmeras
variações, sempre repetidas e reafirmadas de geração em geração. E ainda que
permanecessem abertas a interpretações pessoais, pois não contavam com um
corpo doutrinal fixo, essas narrativas guardavam o lugar e a função dos deuses,
mantinham a memória dos antepassados e da própria pólis (a cidade-Estado
grega). Além disso, elas marcavam, junto à prática dos cultos e dos ritos, o sen-
tido de uma religião que permanecia viva somente enquanto contava com
a adesão dos homens, pois: “Rejeitar esse fundo de crenças comuns seria, da
mesma forma que já não falar grego, já não viver de modo grego, deixar de ser si
mesmo” (VERNANT, p. 22, 1992).

Portanto, é preciso dizer que o mito grego, diferentemente do cristianismo,


não é uma religião de revelação: ao contrário, é uma religião sempre aberta à
interpretação dos fatos narrados. Se para o homem grego era preciso aceitar a
veracidade da narrativa, escutar a fala com a confiança de uma confissão íntima
e praticar os ritos com a obediência de quem recebe uma ordem severa, por
outro lado, sempre permanecia aberta para os gregos a leitura das intenções e
das armadilhas dos deuses. Diante da materialidade do discurso, abria-se a liber-
dade da interpretação. Aqui, certamente encontramos um ponto fundamental,
que parece aproximar rito mitológico e exercício filosófico. Assim como a religião
mitológica, a filosofia nasceu, antes de tudo, como um pensamento que não se
reduziu à assimilação ou a conformação dos fenômenos e dos sinais da natureza.
1
De modo geral, transcendente é o que se eleva para além de um limite ou de nível qualquer. De modo particular, é aquilo que resulta da interven-
ção certa de classe de seres ou de ações exteriores. Nesse aspecto, o transcendente se opõe ao imanente, aquilo que resulta do arranjo natural das
coisas. No sentido kantiano, transcendente é aquilo que está além de toda experiência possível e todo juízo – por exemplo, Deus e as essências. De
modo vulgar, transcendente é o que não participa de uma determinada realidade, está além dela; já imanente é o que está entre as coisas.

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De onde viemos? (O mito)

Do mesmo modo que era preciso interpretar as mensagens do oráculo, já que os


deuses falam por sinais, na filosofia foi fundamental procurar as razões, as causas
dos fenômenos, interrogando a realidade e buscando o sentido último, que ex-
plica o aparecer de todas as coisas.

Na prática diária da religião, que apresentava as aventuras divinas e discorria


sobre os motivos para a ordem das estações do ano, por exemplo, esses mythoi
– as narrativas – encontravam seu primeiro abrigo na vida privada e na educa-
ção, patrocinada pelas mulheres. Todo grego era iniciado no culto aos mitos no
interior do próprio lar, sempre por meio de colóquios privados. Mas a voz das
mães não era a única que cantava os feitos dos deuses, pois a ela se somavam os
cânticos dos poetas. Na tradição da oralidade, os poetas cantavam as aventuras
e dádivas divinas em festas religiosas, em grandes banquetes, em concursos e
jogos. A essa tradição oral dos poetas se uniu a literatura, com a invenção e o
desenvolvimento da escrita. Principalmente com as obras de Homero e Hesíodo,
a expressão verbal dos feitos divinos, que era fácil de memorizar e de reinventar
sobretudo pela condição etérea da oralidade, adquiriu uma rigidez quase canô-
nica. Desse modo, finalmente o mito grego ganhou a coesão e a duração que
só a escrita podia conferir. Recolher um mito, construir uma narrativa definitiva,
reconhecer a ordem no conjunto aparentemente caótico das aventuras, fixar o
lugar dos deuses no panteão, e ainda transcrever em fábulas as razões da vida
e da morte, foi a tarefa dos primeiros poetas. Hesíodo e Homero legaram para
a filosofia uma técnica que, paradoxalmente, liberta as ideias da domesticidade
para aprisioná-las na publicidade. Portanto, por meio da literatura mitológica, os
poetas anteciparam as condições do pensamento filosófico: estendido na dura-
ção do tempo, debatido nos espaços públicos e ordenado pela lógica da letra.

No contexto da cultura grega, a religião mitológica representa a unidade do


homem com a natureza, com a família e com a pólis. A mitologia grega é politeís-
ta e os diferentes deuses fazem parte de uma sociedade hierarquizada, cada um
deles possuindo dons e poderes específicos. Mas os deuses não criaram o mundo:
diferentemente do que ensina o cristianismo, as potências divinas gregas nasce-
ram no mundo. Assim, na religião grega, não há transcendência, pois os deuses

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De onde viemos? (O mito)

estão no mundo, interagem com a natureza e com os homens. Portanto, a partir


da mitologia, o homem grego forjou a ideia da unidade ontológica do cosmo,
contribuição central para o nascimento da filosofia como pensamento da tota-
lidade. Na medida em que os mitos gregos não separam em campos opostos a
natureza e o sobrenatural, o humano e o divino, esse comércio mundano dos
deuses significa, entre outras coisas, que não há outro mundo a ser conhecido
além deste que experimentamos, não há mundo proibido ou fechado e a reali-
dade sobre a qual devemos indagar é a do cosmo, que se apresenta, ao mesmo
tempo, como profana e sagrada.

Desse modo, a diferença entre o mito e a religião cristã, por exemplo, deve
ser procurada na análise da estrutura complexa que separa as duas crenças. Não
há entre as duas formas de religião uma relação de linearidade ou evolução. O
cristianismo não suplantou o mito porque não evolui em relação a ele. Mas é
preciso dizer que a estrutura complexa do mito – que, entre coisas, explica a
existência humana e a existência natural, além de organizar a vida em torno de
códigos sagrados – mantém, com a filosofia, um pensamento posterior, uma re-
lação paradoxal. Se a filosofia superou o mito na medida em que apresentou
novos problemas, constitui um novo pensamento sobre o mundo e forjou uma
nova estrutura de saber, ela conserva no horizonte do seu discurso todas as in-
quietações que fizeram os homens falarem por mitos. Sobre isso, vejamos o que
nos diz Aristóteles: “Ora, quem duvida e se admira julga ignorar: por isso quem
ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito resulta do maravilhoso”
(ARISTÓTELES, 1978, p. 214).

O papel do poeta rapsodo


A narrativa mítica é sempre contada pelo poeta, que tem a função de dizer
publicamente as verdades recebidas em revelação, pela via das musas (filhas da
deusa Mnemosyne, ou seja, Memória). Assim, ao dizer o que deve ser dito, o
poeta transmite a palavra dos deuses e sua fala se torna sagrada, ganha con-
tornos de verdade. Ele é o porta-voz das musas e sua mensagem serve de mote
educativo, revestindo-se de um ambiente pedagógico: cantando publicamente
suas poesias (é bom lembrar que a poesia não é apenas a linguagem escrita,
mas também – como se lê na Poética, de Aristóteles – a arte geral, que envolve
melodia e ritmo), o poeta torna-se um pedagogo, já que os ouvintes decoram os
seus textos e os repetem, como forma de aprendizado.

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De onde viemos? (O mito)

Domínio público.
Homero, o poeta cego a quem são atribuídas as
epopeias Ilíada e Odisseia.

Mas se o primeiro contato dos gregos com os mitos era doméstico, pois era
função das mulheres habituar as crianças à autoridade do sagrado, os poetas
davam às narrativas o seu gosto público. Escolhidos pelos deuses (segundo a
crença), eles eram pessoas especiais, a quem os deuses deram a conhecer os
eventos passados que explicam a existência, a origem e o significado de todas
as coisas. O discurso do poeta rapsodo (o mito) torna-se, assim, algo sagrado e,
por isso mesmo, incontestável, pois é um discurso de origem divina, portador de
uma verdade inalienável.

Depois do mito, a Filosofia


Aos poucos, a palavra poética foi deixando escapar de sua influência vários âm-
bitos da vida humana, nos quais um novo tipo de palavra começa a despertar, a pa-
lavra dialógica. A Grécia viveu, por volta do século VI a.C., um processo de seculariza-
ção da palavra, na qual os deuses deixam de ser conteúdos essenciais e, no seu lugar,
o próprio homem faz nascer aos poucos uma nova relação com o real: a palavra

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De onde viemos? (O mito)

sagrada já não satisfazia o ser humano, assolado por novas perguntas, dúvidas e in-
terrogações. Ao novo tecido, logo se deu o nome de Filosofia, um discurso que, por
ser costurado em retalhos míticos, encontra-se alinhavado em fios lógicos, cuja na-
tureza é uma séria e provocadora especulação a respeito das coisas existentes.

Domínio público.

O pensador, Auguste Rodin. Estátua em bronze. Atualmente no


Museu Rodin, em Paris.

Mas o que é filosofia? Qual o sentido desse saber que, ao mesmo tempo, ama
mitos e procura superá-los?

A filosofia que estamos estudando nasceu na Grécia, por volta do século VII
a.C. No entanto, a palavra filosofia, inventada pelo filósofo Pitágoras de Samos,
apareceu apenas no século V a.C., para designar um saber que havia se estrutu-
rado em função de princípios racionais. A palavra Philosophia é composta por
duas palavras: Phília (“amor, amizade”) + Sophia (“sabedoria”). Portanto, etimo-
logicamente, filosofia significa “amor, amizade pela sabedoria”. O filósofo, nesse
caso, seria aquele que vive pelo saber e busca o saber como um fim.

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Segundo afirma Aristóteles, no livro Metafísica, a filosofia nasceu quando os


gregos, descontentes com as respostas da tradição, e ao mesmo tempo admira-
dos com a ordem da realidade, formularam novas questões e descobriram um
estilo próprio para responder aos problemas e às dúvidas:
Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados
a filosofar, sendo primeiramente abalados por dificuldades mais óbvias, e pouco a pouco até
resolverem problemas maiores: por exemplo as mudanças da Lua, as do Sol e dos Astros e a
gênese do Universo. (ARISTÓTELES, 1978, p. 214)

Mas a inquietação – uma parte desse grandioso sentimento de admiração


– não nasceu apenas da dúvida e da crítica à tradição. Os homens, os primeiros
filósofos, admiraram-se também com o reconhecimento da possibilidade intrín-
seca de conhecer e elaborar um novo discurso sobre a realidade, cujo sentido
podia ser entendido por todos, porque a realidade não é sagrada, porque não
é fabulosa, e está estruturado racionalmente. Portanto, a filosofia nasceu com a
descoberta do poder e da presença universal da razão.

A palavra razão se origina da palavra grega logos que, por sua vez, vem do
verbo grego legein, que pode ser traduzido como “contar, reunir, juntar, calcu-
lar”. Desse modo, é fácil compreender que a razão designa o nosso poder de
pensar ordenadamente (contar), de entender as diferenças (reunir) e de desco-
brir, a partir de operações mentais, como calcular o segredo da ordem racional
que está no mundo. Pois a filosofia nasceu quando os gregos entenderam que
o logos que organiza as nossas ideias, e permite a expressão do pensamento,
também está presente como força ordenadora do próprio cosmo. Podemos
fazer uma filosofia sobre o mundo somente na medida em que consideramos
que os eventos do mundo seguem regras e leis necessárias e universais. Com
o nascimento da filosofia, os poderes divinos, na explicação do real, cederam o
lugar para a força necessária das leis.

Mas se as palavras de Aristóteles dão os primeiros motivos da admiração de


um filósofo, também indicam, em um segundo momento, as questões iniciais
da filosofia:

 Qual a origem do cosmo e de todas as coisas?

 Quais as causas de transformações dos seres?

Portanto, a filosofia nasceu quando o homem reaprendeu a ver o mundo e,


por meio da razão, encontrou uma nova maneira de formular problemas e narrar
a verdade. Por isso, a razão, diferentemente do mito, explica tudo em função
de causas naturais, procurando demonstrar como e por que, no passado, no

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presente e no futuro, as coisas são como são. Em seu início, a razão tentou expli-
car o surgimento da natureza por forças e relações entre os elementos naturais
– água, terra, fogo e ar.

Se o mito se caracteriza pelo fabuloso e aceita o incompreensível e o discurso


contraditório como verdadeiro, a razão, por seu turno, não aceita contradições,
exige coerência e lógica na explicação. Enquanto o mito se fundamenta na au-
toridade sagrada do poeta, o discurso racional encontra a sua legitimidade nos
princípios racionais, no debate público e na possibilidade da dúvida.

Texto complementar
O texto a seguir foi escrito pelo filósofo e literato franco-argelino Albert
Camus, e nele podemos encontrar um exemplo da riqueza interpretativa da lin-
guagem mítica. Ao se apropriar da narrativa mítica, o autor evidencia a condi-
ção humana na perspectiva da filosofia existencialista: o homem, como Sísifo,
está condenado a existir. Nessa bela passagem, o mito e a filosofia se encontram
como discurso que dá sentido ao existir – na verdade, uma afirmação da vida
que não oculta a sua “absurdidade.”

O Mito de Sísifo (fragmento)


(CAMUS, 2004, p. 135-144)

Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessantemente


até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu pró-
prio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição
mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Se acreditarmos em
Homero, Sísifo era o mais sábio e mais prudente dos mortais. Segundo uma
outra tradição, porém, ele tinha queda para o ofício de salteador. Não vejo
aí contradição. Diferem as opiniões sobre os motivos que lhe valeram ser o
trabalhador inútil dos infernos. Reprovam-lhe, antes de tudo, certa levianda-
de para com os deuses. Espalhou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi
raptada por Júpiter. O pai, abalado por esse desaparecimento, se queixou a
Sísifo. Este, que tomara conhecimento do rapto, ofereceu a Asopo orientá-lo
a respeito, com a condição de que fornecesse água à cidadela de Corinto.
Às cóleras celestes ele preferiu a bênção da água. Foi punido por isso nos
infernos. Homero nos conta ainda que Sísifo acorrentara a Morte. Plutão não

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pôde tolerar o espetáculo de seu império deserto e silencioso. Despachou o


deus da guerra, que libertou a Morte das mãos de seu vencedor.

Diz-se também que Sísifo, estando prestes a morrer, imprudentemente


quis por à prova o amor de sua mulher. Ele lhe ordenou jogar o seu corpo in-
sepulto em plena praça pública. Sísifo se recobrou nos infernos. Ali, exaspe-
rado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão
o consentimento para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando ele de
novo pôde rever a face deste mundo, provar a água e o sol, as pedras aque-
cidas e o mar, não quis mais retornar à escuridão infernal. Os chamamentos,
as iras, as advertências de nada adiantaram. Ainda por muitos anos ele viveu
diante da curva do golfo, do mar arrebentando e dos sorrisos da terra. Foi
necessária uma sentença dos deuses. Mercúrio veio apanhar o atrevido pelo
pescoço e, arrancando-o de suas alegrias, reconduziu-o à força aos infernos,
onde seu rochedo estava preparado. Já deu para compreender que Sísifo é
o herói absurdo. Ele o é tanto por suas paixões como por seu tormento. O
desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse
suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. É
o preço a pagar pelas paixões deste mundo. Nada nos foi dito sobre Sísifo
nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste caso,
vê-se apenas todo o esforço de um corpo estirado para levantar a pedra
enorme, rolá-la e fazê-la subir uma encosta, tarefa cem vezes recomeçada.
Vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de uma espádua que
recebe a massa recoberta de barro, e de um pé que a escora, a repetição
na base do braço, a segurança toda humana de duas mãos cheias de terra.
Ao final desse esforço imenso, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo
sem profundidade, o objetivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desabar em
alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la
até os cimos. E desce de novo para a planície.
É durante esse retorno, essa pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que
pena, assim tão perto das pedras, é já ele próprio pedra! Vejo esse homem
redescer, com o passo pesado mas igual, para o tormento cujo fim não co-
nhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que ressurge tão certamen-
te quanto sua infelicidade, essa hora é aquela da consciência. A cada um
desses momentos, em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no
covil dos deuses, ele é superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo.
Se esse mito é trágico, é que seu herói é consciente. Onde estaria, de fato, a
sua pena, se a cada passo o sustentasse a esperança de ser bem-sucedido?

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O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e
esse destino não é menos absurdo. Mas ele só é trágico nos raros momen-
tos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e
revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que
ele pensa enquanto desce. A lucidez que devia produzir o seu tormento con-
some, com a mesma força, sua vitória. Não existe destino que não se supere
pelo desprezo.

Se a descida, assim, em certos dias se faz para a dor, ela também pode se
fazer para a alegria. Esta palavra não está demais. Imagino ainda Sísifo indo
outra vez para seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens
da terra se mantêm muito intensas na lembrança, quando o apelo da felici-
dade se faz demasiadamente pesado, acontece que a tristeza se impõe ao
coração humano: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O enorme des-
gosto é pesado demais para carregar. São nossas noites de Getsêmani. Mas
as verdades esmagadoras perecem ao serem reconhecidas. Assim, Édipo de
início obedece ao destino sem o saber. A partir do momento em que ele
sabe, sua tragédia principia. Mas no mesmo instante, cego e desesperado,
reconhece que o único laço que o prende ao mundo é o frescor da mão de
uma garota. Uma fala descomedida ressoa então: “Apesar de tantas experiên-
cias, minha idade avançada e a grandeza da minha alma me fazem achar que
tudo está bem.” O Édipo de Sófocles, como o Kirílov de Dostoiévski, dá assim
a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga torna a se encontrar com o
heroísmo moderno. Não se descobre o absurdo sem ser tentado a escrever
algum manual de felicidade. “Mas como, com umas trilhas tão estreitas?” No
entanto, só existe um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da
mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce for-
çosamente da descoberta absurda. Ocorre do mesmo modo o sentimento
do absurdo nascer da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo, e essa
fala é sagrada. Ela ressoa no universo feroz e limitado do homem. Ensina que
tudo não é e não foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele havia
entrado com a insatisfação e o gosto pelas dores inúteis. Faz do destino um
assunto do homem e que deve ser acertado entre os homens.

Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Seu
rochedo é sua questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando con-
templa o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente
restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas vozes maravilhadas da

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terra. Apelos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o re-


verso necessário e o preço da vitória. Não existe sol sem sombra, e é preciso
conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu esforço não acaba mais. Se
há um destino pessoal, não há nenhuma destinação superior ou, pelo menos,
só existe uma, que ele julga fatal e desprezível. No mais, ele se tem como
senhor de seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre
sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu rochedo, contempla essa sequência
de atos sem nexo que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o
olhar de sua memória e em breve selado por sua morte. Assim, convencido
da origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que
sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo con-
tinua a rolar. Deixo Sísifo no sopé da montanha! Sempre se reencontra seu
fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta
os rochedos. Ele também acha que tudo está bem. Esse universo doravante
sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada um dos grãos dessa
pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só para ele forma
um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher
um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz.

Dicas de estudo
HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2006.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus,


1992.

Atividades
1. Considerando o mito grego como expressão de uma religião, explique, de
modo geral, a distinção entre o mito e o cristianismo, a partir da perspectiva
da revelação.

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2. Explique, de modo geral, a diferença entre mito e filosofia.

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3. Qual é a função do poeta rapsodo no mito?

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Gabarito
1. A distinção mais evidente entre a religião mítica grega e o cristianismo é
que a primeira é politeísta, e a segunda, monoteísta. Mas a diferença fun-
damental do mito em relação à religião cristã, e quase todas as crenças
monoteístas, é que o mito grego não está assentado em uma revelação
que deve ser aceita como um dogma. Ao contrário, o mito estava integra-
do à vida como a fala ao cotidiano, como os hábitos de comer à mesa e a
moral às regras de sociabilidade. Praticar o culto e honrar os deuses eram
tradições que não demandavam qualquer justificação ou persuasão. As-
sim, no mito, não encontramos casta sacerdotal, igreja, livro sagrado e,
tampouco, dogmas. Para cumprir suas obrigações religiosas, bastava ao
grego dar crédito, ter fé perante o conjunto de narrativas que eram, ape-
sar das inúmeras variações, sempre repetidas e afirmadas de geração em
geração. Portanto, é preciso dizer que o mito grego, diferentemente do
cristianismo, não é uma religião de revelação: ao contrário, é uma religião
sempre aberta à interpretação dos fatos narrados. Mesmo considerando
que os poetas recebiam os mitos das musas por meio de revelações, es-
ses mitos não permaneciam como dogmas porque, diferentemente do
cristianismo, no mito a história revelada ganha o seu sentido na inter-
pretação e na leitura sempre aberta das experiências contingentes da
vida privada, e no exercício da imaginação. Enquanto no cristianismo a
revelação é sobre uma verdade que deve ser obedecida, no mito, sobre
toda e qualquer revelação, temos que construir a verdade: enquanto o
cristianismo aceita a palavra, o mito constrói.

2. O mito representa o primeiro discurso que, entre outras funções, procura


responder sobre a origem da natureza, dos deuses, dos homens e de to-
das as formas de vida. Etimologicamente, mythos deriva de dois verbos,
que têm grafias e significados semelhantes: mytheyo (“contar, narrar, falar
alguma coisa para outros”) e mytheo (“conversar, contar, anunciar, nome-
ar, designar”). O mito é um discurso pronunciado para pessoas que o re-
cebem como verdadeiro, na medida em que confiam na própria história
narrada, seja para explicar o presente ou, ainda, para anunciar um futuro
não determinado, conforme sugere o uso do verbo mytheo. Portanto, o
mito se caracteriza pelo fabuloso e aceita o incompreensível e o discur-
so contraditório como verdadeiro. Diferentemente dessa perspectiva, a
filosofia, por seu turno, não aceita contradições, exige coerência e lógica

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na explicação. Enquanto o mito se fundamenta na autoridade sagrada


do poeta, o discurso racional encontra a sua legitimidade nos princípios
racionais, no debate público e na possibilidade da dúvida.

3. A narrativa mítica é sempre contada pelo poeta, que tem a função de


dizer publicamente as verdades recebidas em revelação, pela via das
musas (filhas da deusa Mnemosyne, ou Memória). Assim, ao dizer o que
deve ser dito, o poeta transmite a palavra dos deuses e sua palavra se tor-
na sagrada, ganha contornos de verdade. Ele é o porta-voz das musas e
sua mensagem serve de mote educativo, revestindo-se de um ambiente
pedagógico: cantando publicamente suas poesias (é bom lembrar que
a poesia não é apenas a linguagem escrita, mas também – como se lê
na Poética, de Aristóteles – a arte geral, que envolve melodia e ritmo), o
poeta se torna um pedagogo, já que os ouvintes decoram os seus textos
e os repetem, como forma de aprendizado.

Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

CAMPBELL, Joseph. Mitos, Sonhos e Religião. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2003.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2000.

HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2006.

JUNG, C. G. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


1978.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus,


1992.

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Qual a origem do mundo?
(Período naturalista)

E é próprio do filósofo admirar-se, e o filosofar não tem outra origem senão o estar
pleno de admiração.

Platão

O momento pré-socrático
Iniciada com os poetas, a aventura do pensamento grego adquiriu, por
volta do século VI a.C., um renovado impulso com os chamados filósofos
pré-socráticos. É óbvio que essa designação, já tradicional na historiografia
da filosofia, é permeada de bastantes equívocos e negligências, pois situa
esses pensadores originários dentro de um paradigma interpretativo que
se limita com alguma supervalorização da importância de Sócrates, não
poucas vezes anunciado como o verdadeiro “pai da filosofia”. Há muito
que se dizer sobre isso, a começar pelos limites das leituras a respeito dos
primeiros filósofos: quem de fato foram e o que de fato escreveram, já que
da maioria deles o que nos resta foi filtrado na doxografia (opiniões de ter-
ceiros) ou na interpretação de poucos fragmentos. Não é de se estranhar,
entretanto, que isso aconteça, já que estamos separados desses homens
e de seus feitos por mais de 25 séculos de história, nos quais muita poeira
se assentou e muitas arestas foram salientadas, quando se trata de acessar
o seu pensamento.

Essas dificuldades são ampliadas quando nos damos conta de que, ao


lado dessas dúvidas e limites, aparecem outras obras, cuja transmissão se
deu quase na sua totalidade, como é o exemplo dos escritos de Platão
(o mais famoso dos discípulos de Sócrates) e mesmo de Aristóteles. Qual
seria o destino de um punhado de fragmentos dos chamados pré-socráti-
cos frente às milhares de páginas deixadas por Platão ou por Aristóteles?

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Qual a origem do mundo? (Período naturalista)

Domínio público.
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9
4 6 11
10
3

Escola de Atenas, 1509-1510. Rafael Sanzio.

1 - Zeno 7 - Platão
2 - Epicuro 8 - Aristóteles
3 - Anaximandro 9 - Diógenes
4 - Pitágoras 10 - Euclides
5 - Sócrates 11 - Ptolomeu
6 - Heráclito

Essa advertência inicial nos parece importante para que entendamos o mo-
mento pré-socrático, com toda a grandiosidade e importância aí contidas, para
além das interpretações e depreciações a que muitas vezes os historiados da
filosofia o relegaram. Estamos lidando com personalidades e pensamentos ori-
ginários, a quem devemos as bases de nossa cultura e, principalmente, do nosso
jeito de compreender o mundo que nos cerca, e de fazer ciência. Aqui, a habili-
dade da interpretação dos fragmentos e testemunhos de terceiros é tão impor-
tante quanto a pergunta sobre a veracidade histórica desses dados.

Ao contrário de desmerecer esse momento histórico do pensamento oci-


dental, essas dificuldades favorecem a compreensão do momento pré-socrá-
tico como um dos mais fecundos da história ocidental: em poucos momentos
da nossa história, em um tempo tão estreito e pelas mãos de um tão pequeno
número de homens, a aventura do pensamento alçou voos tão ousados e alcan-
çou picos tão elevados como nesse período. A luminosidade desse pensamento
nos abre a senda da filosofia com a mais fundamental das perguntas:

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Qual a origem do mundo? (Período naturalista)

O que é o mundo?

Só depois disso é que será possível perguntar:

O que é o homem no mundo?

A originalidade dessa pergunta se deve à grandiosidade do gênio helênico,


menos por sua superioridade em relação a outros povos e mais pela qualidade de
sua pergunta, cujo resultado deu à história ocidental um rumo diverso daquele se-
guido pela cultura oriental. É verdade que caldeus, babilônicos e egípcios haviam
instaurado inúmeros modos de responder “cientificamente” às necessidades de sua
realidade geográfica e social. Esses povos antigos acumularam conhecimentos de
matemática, arquitetura e astronomia, que tentavam dar uma resposta racional às
suas necessidades práticas. A partir do contato com essas teses, os gregos as rein-
terpretaram sob outro patamar: sua originalidade foi ter cultivado uma visão teo-
rética (ou seja, contemplativa), que desvinculou o conhecimento das necessidades
práticas, dando-lhe um caminho amoroso que fez nascer a filosofia como “amor
ao saber”. Portanto, esse amor não se deixa guiar meramente pelas necessidades
práticas, mas a ele foram associadas asas poderosas, capazes de fazê-lo alçar voo
para além do mundo cotidiano e prático. Foram essas asas que levaram a filosofia
tão longe e tão alto, possibilitando ao pensamento racional um estatuto próprio,
e também que ele se desenvolvesse como reflexão teórica sobre os fundamentos
da vida prática. Segundo o filósofo Gerd Bornheim,
[...] se compreendermos a Filosofia em seu sentido amplo – como concepção da vida e do
mundo –, podemos dizer que sempre houve Filosofia. De fato, ela responde a uma exigência
da própria natureza; o homem, imerso no mistério do real, vive a necessidade de encontrar
uma razão de ser para o mundo que o cerca e para os enigmas de sua existência. Neste sentido,
todo povo, por primitivo que seja, possui uma concepção de mundo. Mas, se compreendermos
a Filosofia em um sentido próprio, isto é, como o resultado de uma atividade da razão humana
que se defronta com a totalidade do real, torna-se impossível pretender que a Filosofia tenha
estado presente em qualquer tipo de cultura. O que a História nos mostra é exatamente o
contrário: a Filosofia é um produto da cultura grega, devendo-se reconhecer que se trata
de uma das mais importantes contribuições daquele povo antigo ao mundo ocidental.
(BORNHEIM, 1967, p. 7)

O momento político, econômico e social dos primeiros filósofos em muito fa-


voreceu essa aventura. É sabido que nos séculos VII e VI a.C. a Grécia sofreu várias
transformações, deixando de ser um país agrícola e desenvolvendo uma impor-
tante indústria artesanal, o que possibilitou a criação de centros comerciais, nos
quais logo se verificou um considerável crescimento demográfico, que conduziu
ao surgimento das primeiras cidades. Nesse cenário, instalou-se o regime mone-
tário, já que as moedas facilitam as trocas econômicas, impulsionando o artesana-
to e a navegação, promovendo expansão das técnicas. Esse crescimento fez com

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Qual a origem do mundo? (Período naturalista)

que os novos atores (os artesãos e os comerciantes) pleiteassem novas formas de


governo, mais livres, que já não fossem guiadas pelo centralismo do regime aristo-
crático anterior. O resultado disso foi o florescimento das artes e das ciências, im-
pulsionadas pelo sentimento de liberdade que se estabeleceu nas terras gregas.

Deixando as imagens divinas antes usadas para explicar toda a realidade, pas-
sou-se a usar a racionalidade como critério de explicação do mundo, o que condu-
ziu ao uso de novas técnicas de compreensão e domínio da natureza, e deu início
à aventura da racionalidade filosófica. Como escreveu Werner Jaeger, na clássi-
ca obra Paideia: a formação do homem grego, “o que logo se evidencia na figura
humana [dos] primeiros filósofos – que, naturalmente, não deram a si próprios
este nome platônico – é a sua típica atitude espiritual: devotamento incondicional
ao conhecimento, estado profundo do ser, em si mesmo” (JAEGER, 1995, p. 194).

Os filósofos originários
É nesse cenário que a filosofia ganha impulso. Não à toa, em uma dessas cida-
des nascidas como centro comercial podemos situar o primeiro filósofo: Tales de
Mileto, que teria vivido nas últimas décadas do século VII a.C., aproximadamente
entre os anos de 624-545. Nessa época, Mileto (hoje uma cidade da Turquia) era
uma colônia grega, na Ásia Menor, mais especificamente na Jônia. Ali, foi procla-
mada aquela que a maior parte dos historiadores considera a primeira frase da
filosofia ocidental – “Tudo é água” –, inaugurando o período conhecido como
cosmológico ou naturalista da filosofia, o qual durou até o século V a.C.

Tudo é água, tudo é um


Em seu texto A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (§3), no qual aparecem
intuições pouco ortodoxas sobre esse período, Friedrich Nietzsche afirma que
“A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição:
a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-
-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque
essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar,
porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela,
embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: ‘Tudo é
um’ [...] Assim contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis
comunicar-se, falou da água!” (NIETZSCHE, 1987, p. 12).

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De Tales, o que sabemos é pelo relato advindo da tradição oral e do testemu-


nho de filósofos, como Aristóteles, que nas primeiras páginas de sua obra Meta-
física reconhece o pensador de Mileto como o primeiro filósofo. Ao que parece,
ele não teria escrito nada.

Domínio público.

Tales de Mileto.

Entretanto, dos textos de seus discípulos Anaximandro e Anaxímenes, res-


taram dois fragmentos, que ajudam a entender o pensamento do pensador de
Mileto. Trata-se de uma tentativa, ainda que limitada por sua rigidez histórica,
de localizar um ponto no qual se possa compreender o início da aventura filo-
sófica, caracterizada como uma busca cuja efetivação parte da pergunta sobre
a origem do mundo, e para cujas respostas já não servem as tradicionais expli-
cações míticas e sagradas oferecidas pela cultura grega popular e pelos poetas.
Na sua tentativa de estabelecer uma resposta racional para a origem da physis
(antes, o mundo era resultado da ação dos deuses), ele procurou um princípio
originário (uma arché). Desse primeiro princípio ou elemento, teria surgido todo
o mundo e, para Tales, esse princípio era a água, ou seja, a sua frase remete às
noções que tentam conectar a origem de todas as coisas a um princípio que
poderia ser pensado racionalmente. A grandiosidade desse gesto é mostrar a
possibilidade de que todas as coisas sejam explicadas (e, por isso mesmo, conhe-
cidas) pela razão humana de forma organizada: ao afirmar que “tudo é água”, ele

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prova que a razão humana tem um potencial organizador e explicativo nunca


antes detectado. “Tudo” agora (ou seja, o mundo) cabe na razão humana, pode
ser conhecido pelo humano porque foi reunido e remetido a um único princípio
– que, no caso do filósofo de Mileto, era a água. E mais: dela não só tudo vem
como tudo nela se sustenta, por ela tudo se move e para ela tudo conflui. Isso
porque a água seria uma realidade que permanece imutável, enquanto todas
as coisas que dela surgiram ocorrem como mudança. Em outras palavras, tudo
muda porque há um princípio que nunca muda: a água continua sendo água
sempre, ainda que os seres que dela dependem estejam nascendo, crescendo e
morrendo. A cada uma dessas etapas, é a água que sustenta os seres do mundo
e nela cada um deles se organiza. Portanto, esse princípio originário encontrado
racionalmente por Tales tem três definições:

 dele tudo provém;

 nele tudo se sustenta;

 para ele tudo conflui.

Nascimento, crescimento e morte de todos os seres se dão, portanto, pelo


princípio água.

Trata-se da primeira explicação científica para a realidade esboçada pela


mente humana, e dela derivam todas as demais tentativas de explicação. Essa
“cientificidade inicial” presente em seu pensamento pode ser deduzida do fato
de sua resposta – ainda que hoje nos pareça insatisfatória e precária – estar er-
guida sobre uma arguta observação da realidade, e um raciocínio articulado de
tal forma que suas argumentações remetem primeiramente ao necessário uso
da razão. Assim, sua solução para a pergunta sobre a origem se articula a partir
de um ponto estritamente material. Na verdade, Tales apresenta uma resposta
que marca a perspectiva filosófica desses primórdios: uma tentativa de explicar
de modo naturalista os acontecimentos do mundo físico e, principalmente, os
fenômenos naturais.

Sobre essa “cientificidade” da filosofia originária, na obra O Despertar da Filo-


sofia Grega, John Burnet comentou que
[...] não há justificativa para a ideia de que a ciência grega se construiu através de pressupostos
mais ou menos bem-sucedidos, e não através da observação e da experimentação [...]. Vamos
verificar que Anaximandro fez algumas descobertas extraordinárias em biologia marinha,
que as pesquisas do século XIX confirmaram, e que Xenófanes fundamentou uma de suas
teorias referindo-se aos fósseis e petrificações de lugares largamente separados como Malta,
Paros e Siracusa. Isso é suficiente para mostrar que a teoria, tão trivialmente sustentada pelos
primeiros filósofos, de que a Terra originalmente estivera em um estado aquoso, era puramente

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de origem mitológica, mas baseada em observações biológicas e paleontológicas. [...] Na


verdade, a ideia de que os gregos não eram observadores é ridiculamente errônea, como se
prova pela acuidade anatômica de sua escultura, que presta testemunho de bem-treinados
hábitos de observação, ao mesmo tempo em que o corpus hipocrático contém modelos da
melhor observação científica. (BURNET, 1994, p. 33)

Como se não bastasse, há mesmo certo empirismo na experimentação que


remete às escolas médicas daquele tempo, sustenta o autor, que não é o único a
afirmar que as pesquisas dos pré-socráticos evidenciam a primeira pergunta
científica, ao anteciparem explanações cosmológicas a partir de observações e
experimentações, ainda que lhes falte o conhecimento da ciência em seu rigor e
método. Mesmo assim, os pré-socráticos podem ser considerados os precurso-
res e os criadores da ciência.

Domínio público.
A resposta de Tales foi apenas o início
de um grande movimento, que fez surgir
várias e diferentes respostas para a pergun-
ta sobre a origem de todas as coisas. Por-
tanto, essas divergências promoveram um
rápido e notável avanço intelectual.

E pelas mãos de Anaximandro, a filo-


sofia deu mais um passo rumo ao conhe-
cimento da arché: esse discípulo de Tales
teria escrito o primeiro tratado filosófico
propriamente dito, do qual nos chegou
apenas um fragmento, intitulado “Sobre a
natureza”. Esse texto abandonou a antiga
forma métrica da poesia épica, inauguran-
do uma fórmula de escrita mais livre, na
qual a razão humana pudesse se sobressair
e se expressar de maneira clara. Como logo
se percebe, esse foi mais um importante
passo para a consolidação da filosofia em
sua independência em relação à antiga re-
ligião sacro-poética. Anaximandro.

Discordando de seu mestre, Anaximandro afirma que o princípio (vale lem-


brar que ele teria sido o criador do termo arché) de todas as coisas é o apeíron, “o
que é privado de peras”, que em grego significa “limite”, e poderia ser traduzido
como “ilimitado”, ou mesmo “infinito”. Para Anaximandro, o princípio originário
é o infinito quantitativo (infinito espacial e pleno de grandeza) e também o in-

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finito qualitativo (o que é indeterminado em termos de qualidade). Segundo o


filósofo, o apeíron envolveria e circundaria tudo, regendo e governando todas as
coisas – as quais, sendo finitas, teriam se originado desse infinito. Anaximandro
não aceita que a origem do real seja um elemento particular (como a água de
Tales, por exemplo): o particular é limitado e não pode ser origem das “coisas”.
Desse modo, Anaximandro pensa em outro elemento que permita compreen-
der todo o limitado, algo que seria gerador de todas as coisas, mas ele mesmo,
esse elemento, não seria gerado, seria algo imortal e indissolúvel, algo eterno. A
esse algo, Anaximandro dá o estranho nome de apeíron.

Mas como pensar que todas as coisas advenham de algo que não pode ser
determinado?

Esse é o problema enfrentado por Anaxímenes: esse discípulo de Anaximan-


dro queria corrigir a teoria do seu mestre. Para Anaxímenes, o princípio é infi-
nito em grandeza, mas não pode ser indeterminado e, por isso, ele afirma que
é o ar (ou, em língua grega, o pneuma, o vento quente e rarefeito que dá vida
aos seres). O ar se presta a variações e pode criar todas as coisas: “Assim como a
nossa alma que é ar, nos sustenta e nos governa, assim o sopro e o ar abraçam o
cosmo” (OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 68), afirma o filósofo no único fragmento
que nos chegou, pelas mãos dos doxógrafos. Sendo incorpóreo e invisível, o ar
seria quantitativamente ilimitado, mas qualitativamente limitado, e é esta se-
gunda condição que o torna um princípio originário: pelo processo de rarefação,
o ar faria nascer o fogo, e por sua condensação, a água e a terra.

Pela atividade filosófica desses primeiros três pensadores, podemos enten-


der facilmente que se trata de um grupo que explica a origem de todas as coisas,
a partir de um único princípio natural, e isso faz deles pensadores monistas.

Mas esse naturalismo monista logo será substituído por outros pensadores,
cujo pensamento vai, aos poucos, trazendo novidades no que tange ao conheci-
mento da origem das coisas.

Heráclito de Éfeso (cerca de 540-480 a.C.) e Pitágoras de Samos (570-500 a.C.)


conseguiram respostas mais ousadas para a pergunta da origem, ao formularem
a ideia do devir de todas as coisas (vinculado ao princípio do fogo), no caso do
primeiro; e à força simbólica do número, no que diz respeito ao segundo.

Heráclito acentuou a primeira intuição dos milésios quanto ao dinamismo de


todas as coisas e do mundo como um todo, marcados pelo movimento constan-
te e ininterrupto. Para esse filósofo, filho de uma família aristocrática de Éfeso,

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“tudo se move” ou “tudo flui” (pánta rheî), fazendo com que nada permaneça
como fixo, imóvel ou eterno. Autor de muitas máximas célebres da filosofia, ele
tinha fama de obscuro e solitário por se recusar à vida pública, e preferir se ex-
pressar para poucos, em frases curtas e oraculares.

Por trás desse movimento inconstante de todas as coisas, Heráclito vislum-


brou o logos (termo de difícil tradução: “palavra”, “verbo”, “razão”, “discurso” estão
entre os termos mais usados), um princípio unitário que governa o mundo a
partir de pares de opostos, que se apresentam como interdependência de con-
trários: o mundo é uma harmonia de opostos que a maioria dos seres humanos
não consegue entender ou ouvir. Segundo Heráclito, ainda que todos os homens
pensem, só os “despertos” conseguem captar o logos, e isso explica a solidão do
filósofo, que preferia brincar com as crianças a participar da elaboração de leis
para a cidade grega. Afirmar o logos como a lei que governa o mundo significa
dizer não apenas que ele está na mente humana, mas também que a racionali-
dade é uma substância que anima e se funde com toda a realidade.

A melhor metáfora encontrada por Heráclito para o seu pensamento foi o


fogo. Como tem a força de transformar uma substância material em outra (der-
reter o que é sólido, fazer evaporar o que é líquido etc.), o fogo troca as coisas
por outras e dá vazão ao mundo, em opostos constantemente tensionados. O
antagonismo das forças representadas pela figura do fogo simboliza o princí-
pio harmônico do logos. As coisas, umas em guerra contra as outras, manteriam
essa harmonia: o escuro é necessário para que haja a luz; o frio, para que haja o
quente, e assim por diante.

Já o filósofo Pitágoras iniciou um movimento cuja expressão serviu de base


para a organização de uma espécie de seita, que se espalhou por muitos lugares
da Grécia, demonstrando como sua figura permaneceu ligada à tradição grega
pré-filosófica. Para esse pensador, todas as coisas teriam surgido do número, como
um elemento essencial da realidade que se apresenta em uma dimensão espacial,
pois o número seria o princípio ordenador da realidade natural derivada dos polos
par e ímpar, com o segundo sendo mais perfeito que o primeiro por ser finito. Iden-
tificados com a harmonia musical, os pitagóricos concebiam os números como a
essência primordial de todas as coisas. Todo o mundo e todo o céu seriam regidos
por essa música harmônica dos números. Os corpos todos não passariam de uma
unidade finita, na qual se apresentam os elementos básicos que são os números.
Assim, além de tudo ser número, para esses pensadores toda a realidade poderia
ser quantificada em números, como realidades também espaciais, que poderiam
ser representadas em quadrados, triângulos e outras figuras geométricas.

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Outro grupo de pensadores, chamados de Eleatas, traz uma resposta ainda


mais espinhosa e perturbadora para a pergunta sobre a origem de todas as
coisas – o problema ontológico, ou simplesmente o problema do ser. Para enten-
dermos essa posição, precisamos recorrer ao principal pensador desse grupo,
Parmênides (515-450 a.C.), a quem Platão se refere como venerando e terrível no
seu diálogo homônimo, e isso não se dá à toa, já que podemos perceber facil-
mente que a filosofia platônica é bastante devedora das teses parmenidianas.

Essa aproximação tem um sentido bastante preciso: ao afirmar que o ser é o


princípio originário de todas as coisas, Parmênides teria inaugurado um discur-
so que dá relevância e superioridade à interpretação racional do mundo frente
à percepção sensível. Em outras palavras, o ser, como princípio originário, não
poderia ser alcançado pelos sentidos, mas apenas pela razão.

Parmênides afirma, em seu poema “Sobre a natureza” (que conta 154 versos),
que só o Ser é pensável e que o não-ser não pode jamais ser pensado e mesmo
ganhar existência: o ser é e o não-ser não pode ser. Se o movimento é a passagem
do ser ao não-ser, ou vice-versa, Parmênides tem uma posição radicalmente con-
trária à de Heráclito, que teria se deixado levar pelos sentidos ao afirmar o mo-
vimento e, por isso, teria incorrido em erros. Não haveria movimento1 porque,
justamente, o não-ser não existe e essa verdade só pode aparecer pela via da
reflexão verdadeira, chamada por Parmênides de alétheia, e que seria distinta da
doxa, mera opinião dos sentidos – e, por isso, enganadora. Vale como verdade,
portanto, aquilo que segue argumentações racionais, mesmo que muitas vezes
essas argumentações se oponham às evidências sensíveis. Sendo assim, o Ser
não pode ser conhecido pela via experimental e sensorial, mas apenas pela via
da coerência lógica. Essa teoria foi sistematizada, organizada e corrigida por Me-
lisso de Samos, entre o fim do século VI e os primeiros raios do século V a.C.

E ainda há outros pensadores, chamados pluralistas, a serem lembrados na


sua busca pela origem de todas as coisas, pois de alguma forma eles contribuí-
ram para o avanço do conhecimento filosófico, em seus primórdios.

Empédocles (c. 484-424 a.C.) afirmou que eram quatro as raízes originárias
– água, ar, terra e fogo –, as quais remeteriam às ideias de nascimento e morte,
cuja correta compreensão estaria ligada à mistura e dissolução das coisas a partir
1
Esse é um paradoxo explicitado também por outro eleata, chamado Zenão.

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desses elementos inalteráveis, organizados seja pelo ódio ou a amizade, a atra-


ção ou o afastamento.

Anaxágoras (c. 500-428 a.C.) falou das homeomerias para expressar a ideia das
inúmeras e infinitas sementes (spérmata), que dariam origem a tudo e estariam
misturadas na formação das coisas.

O problema quase paradoxal apresentado por Parmênides foi de extrema re-


levância, provocando reações e polêmicas de todos os lados.

Domínio público.

Demócrito.

Além dos pluralistas, outro pensador tematizou o problema da divisibilida-


de infinita do espaço, associada à noção de movimento: Demócrito (c. 460-360
a.C.) foi um pensador tão fértil e atento que formulou uma das hipóteses mais

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importantes para a ciência, até nossos dias – ele afirmou que o princípio origi-
nário de todas as coisas era o átomo (“sem partes”, um princípio indivisível de
todas as coisas). Essa partícula mínima da matéria (hoje já se sabe que ela não é
indivisível, mas é importante notar que não havia, à época, nenhum instrumento
tecnológico que fundasse a veracidade da tese, como temos hoje). É do movi-
mento dessas partículas que Demócrito faz derivar a existência de todos os seres
naturais: a morte dos seres seria explicada pela separação dos átomos; a solidez
ou flexibilidade, pela agregação; o devir, pela recombinação; e a quantidade e
diferença entre os fenômenos, pela visão e as leis da mecânica. Portanto, é no
espaço livre entre os átomos que as coisas se efetivam a partir do vazio. Tudo
é átomo preenchendo o vazio, e esse movimento de associação dos átomos é
de origem eminentemente mecânica, principalmente pela força centrípeta que
agrega a partir de um vórtice central. Assim, para que houvesse o nascimento da
vida, nenhum princípio divino seria necessário, apenas um movimento mecâni-
co que envolve a putrefação e a fermentação dos seres sobre a Terra. Trata-se de
uma visão materialista, que explica todos os fenômenos naturais, espirituais e
intelectuais.

Enfim, podemos afirmar que a pergunta fundadora da filosofia (“Qual é a origem


do mundo?”) se efetiva nas inúmeras tentativas dos pensadores originários, para
reduzir a multiplicidade percebida na natureza a algum tipo de unidade exigida
e sustentada pela razão humana. Essa é a aventura inaugural da filosofia e, mais
que o resultado alcançado, o que deve ser destacado é a metodologia e o procedi-
mento aplicado: o abandono das explicações mítico-religiosas e a formulação de
respostas embasadas na racionalidade, nas suas mais diversas expressões.

Aos poucos, a sabedoria desses pensadores arcaicos fez transbordar o cálice


do conhecimento e forjou as principais características da filosofia antiga: a ten-
tativa de explicar a totalidade das coisas, a consolidação de um método racio-
nal para essa explicação e o caráter teórico e contemplativo das respostas al-
cançadas. Na busca da verdade, a filosofia se faz como um amor que não tem
mera utilidade prática. Pela mão desses pensadores, a ave da filosofia alçou voos
inimagináveis, sempre mais altos e perigosos, e por isso mesmo mais belos e
divertidos.

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Texto complementar

A filosofia grega parece começar


com uma ideia absurda
(NIETZSCHE, 1987, p. 13-16)

A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposi-
ção: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário
deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar,
porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segun-
do lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar,
porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensa-
mento: “Tudo é um”. A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em
comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa so-
ciedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da
terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego. Se tivesse dito: “Da água
provém a terra”, teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, mas dificil-
mente refutável. Mas ele foi além do científico. Ao expor essa representação
de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio infe-
rior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele. As
parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia
feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do
úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstru-
osa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma
crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em
todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimi-la
melhor – a proposição: “Tudo é um”.

E notável a violência tirânica com que essa crença trata toda a empiria: exa-
tamente em Tales se pode aprender como procedeu a filosofia, em todos os

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tempos, quando queria elevar-se a seu alvo magicamente atraente, transpon-


do as cercas da experiência. Sobre leves esteios, ela salta para diante: a espe-
rança e o pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente, o entendi-
mento calculador arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para
também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual sua companheira mais divina já
chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que corre
rodopiando pedras; o primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele, usando as
pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás dele,
afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se
desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo
pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado e, então, não há deus que
possa auxiliá-lo a transpor o regato. O que, então, leva o pensamento filosófico
tão rapidamente a seu alvo? Acaso ele se distingue do pensamento calculador
e mediador por seu voo mais veloz através de grandes espaços? Não, pois seu
pé é alçado por uma potência alheia, lógica, a fantasia. Alçado por esta, ele
salta adiante, de possibilidade em possibilidade, que por um momento são
tomadas por certezas; aqui e ali, ele mesmo apanha certezas em voo. Um pres-
sentimento genial as mostra a ele e adivinha de longe que nesse ponto há
certezas demonstráveis. Mas, em particular, a fantasia tem o poder de captar e
iluminar como um relâmpago as semelhanças: mais tarde, a reflexão vem
trazer seus critérios e padrões e procura substituir as semelhanças por igualda-
des, as contiguidades por causalidades. Mas, mesmo que isso nunca seja pos-
sível, mesmo no caso de Tales, o filosofar indemonstrável tem ainda um valor;
mesmo que estejam rompidos todos os esteios quando a lógica e a rigidez da
empiria quiseram chegar até a proposição “Tudo é água”, fica ainda, sempre,
depois de destroçado o edifício científico, um resto; e precisamente nesse
resto há uma força propulsora e como que a esperança de uma futura fecundi-
dade. Naturalmente não quero dizer que o pensamento, em alguma limitação
ou enfraquecimento, ou como alegoria, conserva ainda, talvez, uma espécie
de “verdade”: assim como, por exemplo, quando se pensa em um artista plás-
tico diante de uma queda d’água, e ele vê, nas formas que saltam ao seu en-
contro, um jogo artístico e prefigurador da água, com corpos de homens e de
animais, máscaras, plantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral, com todos os pro-
tótipos possíveis: de tal modo que, para ele, a proposição “Tudo é água” estaria
confirmada. O pensamento de Tales, ao contrário, tem seu valor – mesmo
depois do conhecimento de que é indemonstrável – em pretender ser, em
todo caso; não místico e não alegórico. Os gregos, entre os quais Tales subita-
mente destacou tanto, eram o oposto de todos os realistas, pois propriamente

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só acreditavam na realidade dos homens e dos deuses e consideravam a natu-


reza inteira como que apenas um disfarce, mascaramento e metamorfose
desses homens-deuses. O homem era para eles a verdade e o núcleo das
coisas, todo o resto apenas aparência e jogo ilusório. Justamente por isso era
tão incrivelmente difícil para eles captar os conceitos como conceitos: e, ao
inverso dos modernos, entre os quais mesmo o mais pessoal se sublima em
abstrações, entre eles o mais abstrato sempre confluía de novo em uma pessoa.
Mas Tales dizia: “Não é o homem, mas a água, a realidade das coisas”; ele
começa a acreditar na natureza, na medida em que, pelo menos, acredita na
água. Como matemático e astrônomo, ele se havia tornado frio e insensível a
todo o místico e o alegórico e, se não logrou alcançar a sobriedade da pura
proposição “Tudo é um” e se deteve em uma expressão física, ele era, contudo,
entre os gregos de seu tempo, uma estranha raridade. Talvez os admiráveis
órficos possuíssem a capacidade de captar abstrações e de pensar sem ima-
gens, em um grau ainda superior a ele: mas estes só chegaram a exprimi-lo na
forma da alegoria. Também Ferécides de Siros, que está próximo de Tales no
tempo e em muitas das concepções físicas, oscila, ao exprimi-las, naquela
região intermediária em que o mito se casa com a alegoria: de tal modo que,
por exemplo, se aventura a comparar a Terra com um carvalho alado, suspenso
no ar com as asas abertas, e que Zeus, depois de sobrepujar Kronos, reveste de
um faustoso manto de honra, onde bordou, com sua própria mão, as terras,
águas e rios. Contraposto a esse filosofar obscuramente alegórico, que mal se
deixa traduzir em imagens visuais, Tales é um mestre criador, que, sem fabula-
ção fantástica, começou a ver a natureza em suas profundezas. Se para isso se
serviu, sem dúvida, da ciência e do demonstrável, mas logo saltou por sobre
eles, isso é igualmente um caráter típico da cabeça filosófica. A palavra grega
que designa o sábio se prende, etimologicamente, a sapio, “eu saboreio”, sa-
piens, “o degustador”, sisyphos, o homem do gosto mais apurado; um apurado
degustar e distinguir, um significativo discernimento, constitui, pois, segundo
a consciência do povo, a arte peculiar do filósofo. Este não é prudente, se cha-
mamos de prudente àquele que, em seus assuntos próprios, sabe descobrir o
bem. Aristóteles diz com razão: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será
chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles não se
importavam com os bens humanos”. Ao escolher e discriminar assim o insólito,
assombroso, difícil, divino, a filosofia marca o limite que a separa da ciência, do
mesmo modo que, ao preferir o inútil, marca o limite que a separa da prudên-
cia. A ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se
sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qual-

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Qual a origem do mundo? (Período naturalista)

quer preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas
dignas de serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes. Mas o
conceito de grandeza é mutável, tanto no domínio moral quanto no estético:
assim a filosofia começa por legislar sobre a grandeza, a ela se prende uma
doação de nomes. “Isto é grande”, diz ela, e com isso eleva o homem acima da
avidez cega, desenfreada, de seu impulso ao conhecimento. Pelo conceito de
grandeza, ela refreia esse impulso: ainda mais por considerar o conhecimento
máximo, da essência e do núcleo das coisas, como alcançável e alcançado.
Quando Tales diz: “Tudo é água”, o homem estremece e se ergue do tatear e
rastejar vermiformes das ciências isoladas, pressente a solução última das
coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores
do conhecimento. O filósofo busca ressoar em si mesmo o clangor total do
mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo
como o artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita de fins e cau-
salidades como o homem de ciência, enquanto se sente dilatar-se até a dimen-
são do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente como o
reflexo do mundo, essa lucidez que tem o artista dramático quando se trans-
forma em outros corpos, fala a partir destes e, contudo, sabe projetar essa
transformação para o exterior, em versos escritos. O que é o verso para o poeta,
aqui, é para o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão para fixar-
-se em seu enfeitiçamento, para petrificá-la. E assim como, para o dramaturgo,
palavra e verso são apenas o balbucio em uma língua estrangeira, para dizer
nela o que viveu e contemplou e que, diretamente, só poderia anunciar pelos
gestos e pela música, assim a expressão daquela intuição filosófica profunda
pela dialética e pela reflexão científica é, decerto, por um lado, o único meio de
comunicar o contemplado, mas um meio raquítico, no fundo uma transposi-
ção metafórica, totalmente infiel, em uma esfera e língua diferentes. Assim
contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis comunicar-se,
falou da água!

Dicas de estudo
NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Lisboa: Edições
70, 1987.

OS PRÉ-SOCRÁTICOS. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).

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Qual a origem do mundo? (Período naturalista)

Atividades
1. Caracterize o período pré-socrático da filosofia.

2. Explique, de modo geral, como Parmênides concebe a possibilidade do mo-


vimento.

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Qual a origem do mundo? (Período naturalista)

3. Explique a teoria de Demócrito sobre o átomo.

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Qual a origem do mundo? (Período naturalista)

Gabarito
1. Representa o primeiro período da filosofia grega e é também denomi-
nado cosmológico. Apesar das diferenças entre as diversas teorias dos
pensadores desse período, podemos destacar algumas características
comuns da filosofia pré-socrática, como a ideia de que o mundo não foi
criado por nenhuma divindade; a tentativa comum de responder racio-
nalmente aos problemas sobre a natureza e as causas de transformação
de todos os seres naturais; a concepção de que a natureza é regida por
leis naturais e necessárias que o pensamento pode conhecer. Nesse últi-
mo caso, os pré-socráticos dão início à separação entre a verdade, que é
alcançada somente pelo pensamento, e a opinião, que resulta do teste-
munho dos sentidos, pois enquanto por meio do pensamento atingimos
a essência das coisas, por meio dos sentidos só temos acesso ao parecer,
que é ilusão.

2. Parmênides afirma, em seu poema “Sobre a natureza”, que só o Ser é


pensável e que o não-ser não pode jamais ser pensado e mesmo ganhar
existência: o ser é e o não-ser não pode ser. Se o movimento é a passa-
gem do ser ao não-ser, ou vice-versa, Parmênides, nesse caso, tem uma
posição radicalmente contrária à de Heráclito, que teria se deixado levar
pelos sentidos ao afirmar a verdade do movimento e, por isso, teria in-
corrido em erros. Não haveria movimento porque, justamente, o não-ser

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Qual a origem do mundo? (Período naturalista)

não existe e essa verdade só pode aparecer pela via da reflexão, chamada
por Parmênides de alétheia, e que seria distinta da doxa, mera opinião
dos sentidos e, por isso, enganadora. A percepção do movimento, nesse
caso, é uma ilusão dos sentidos, e a verdade é o que sempre permanece
idêntico, o que nunca se transforma, é o que nós podemos conhecer so-
mente pelo pensamento.

3. Demócrito afirmou que o princípio originário de todas as coisas era o


átomo, concebido como uma partícula mínima da matéria, indivisível e
sem partes. É do movimento dessas partículas que Demócrito faz derivar
e procura explicar a existência de todos os seres naturais: a morte dos se-
res seria explicada pela separação dos átomos; a solidez ou flexibilidade,
pela agregação; o devir, pela recombinação; e a quantidade e diferença
entre os fenômenos, pela visão e as leis da mecânica. É no espaço livre
entre os átomos, portanto, que as coisas se efetivam a partir do vazio.
Tudo é átomo preenchendo o vazio. Esse movimento de associação dos
átomos é de origem eminentemente mecânica, principalmente por cau-
da da força centrípeta que agrega a partir de um vórtice central. Assim,
para que houvesse o nascimento da vida, nenhum princípio divino seria
necessário, apenas um movimento mecânico que envolve a putrefação e
a fermentação dos seres sobre a Terra. Trata-se de uma visão materialista,
que explica todos os fenômenos naturais, espirituais e intelectuais.

Referências
BORNHEIM, Gerd A. Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix, 1967.

BURNET, John. O Despertar da Filosofia Grega. São Paulo: Siciliano, 1994.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1995. p. 194.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
(Coleção Os Pensadores).

_____. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Lisboa: Edições 70, 1987.

OS PRÉ-SOCRÁTICOS. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).

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Qual a origem do mundo? (Período naturalista)

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Quem somos? (Platão)

Ao vires um homem revoltar-se no instante de morrer, não será isso prova suficiente
de que não se trata de um amante da sabedoria, porém amante do corpo?

Sócrates (no diálogo Fédon, de Platão)

O nascimento da Filosofia
Platão inventou a Filosofia e o texto filosófico. É verdade que os manu-
ais nos ensinam, muito corretamente, que existiram vários filósofos antes
de Platão, mas, semelhantemente ao deus Demiurgo1, que deu forma à
matéria mergulhada no caos e organizou o mundo sensível, como vere-
mos mais adiante, Platão reuniu em um único pensamento a totalidade
dos problemas e estilos de filosofar. Nas obras de Platão, toda a realida-
de é pensada: o ser, o conhecer e o agir. Além do mais, foi Platão quem
empregou e fixou os diferentes modos literários de expressão filosófica
que conhecemos até hoje: nele encontramos o texto discursivo de rigor
teórico e científico, o diálogo que mostra o limite da opinião e permite ao
pensamento superar as contradições e ascender às essências, a poesia e
a narrativa mítica que didaticamente dão contornos compreensíveis aos
pensamentos mais complexos, ensinando a razão a se conduzir em meio
à imaginação. Nesse caso, podemos concluir que Platão, seguindo as des-
crições do filósofo francês e historiador das ideias Châtelet, é o mais bri-
lhante mestre das letras:
Da comédia satírica – como esse Menexeno, onde Platão põe em cena dois disputadores
ridículos que se afrontam em torno de sutilezas vãs – ao discurso inspirado e tenso do
Ateniense das Leis, da lição de lógica que “O Estrangeiro” dá no Sofista às grandiosas
construções históricas e cosmológicas que o Timeu desenvolve, das fingidas
ingenuidades dos primeiros diálogos à argumentação didática e cercada d’ A República
e à descrição dramática do Fédon, todos os gêneros que o pensamento mais tarde
utilizará para convencer, persuadir ou, simplesmente, se manifestar estão aqui como
germe. (CHÂTELET, s/d, p. 29)

Portanto, Platão, como nenhum outro filósofo, reuniu na mesma obra


beleza e verdade, pois o texto que descobre e apresenta a verdade é,
também, o texto que ensina e provoca o prazer de ler, orienta e encanta o
pensamento.
1
Demiurgo é um deus-artífice por meio do qual o mundo sensível nasceu e foi ordenado conforme as ideias. Na teoria das ideias, de
Platão, conforme encontramos no Timeu, Demiurgo imprimiu intelegibilidade na matéria inerte, conferiu forma e virtude ao sensível.
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Quem somos? (Platão)

Domínio público.
A Criação de Adão, c. 1511. Michelangelo.

Mas, ao atribuir a Platão a invenção da própria filosofia, não estamos negan-


do a importância e a originalidade dos filósofos da natureza? Os filósofos da na-
tureza permanecem os verdadeiros iniciadores da filosofia, mas foi Platão quem
fundou um saber que o Ocidente aprendeu a cultivar como filosofia. A distinção,
em primeiro lugar, está no fato de que os filósofos pré-socráticos apresentavam
as suas ideias dogmática ou liricamente, quase sempre na forma de poemas. A
metáfora e o mito – como encontramos em Heráclito e Pitágoras, por exemplo –
não tinham apenas uma função didática ou ainda literária: os pré-socráticos não
só falavam por meio como filosofavam mitologicamente. Desse modo, estavam
na ordem de um discurso que se bastava a si mesmo e, por isso, encontravam-
-se ainda próximos de um pensamento religioso. Platão inventou a Filosofia na
medida em que, com a dialética, conferiu objetividade, publicidade e logicidade
ao pensamento filosófico. Com a dialética, a verdade não pode ser afirmada como
poesia ou pensamento secreto, pois dizer apenas não basta: é preciso legitimar
o discurso, confrontá-lo, colocá-lo à prova. Portanto, no momento em que o dis-
curso saiu do domínio da revelação para o debate, no lugar da poesia inseriu-se
a lógica e a verdade deixou de aparecer como resultado de exortações, passando
para o campo do confronto verbal; Platão refundou a filosofia como o conheci-
mento da totalidade. Uma Filosofia que Platão, de certo modo, aprendeu com
Sócrates e legou ao Ocidente, como discurso de verdade racional e universal.

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Quem somos? (Platão)

Domínio público.
A Morte de Sócrates, 1787. Jacques-Louis David.

Se podemos dizer que conhecemos o pensamento de Sócrates, isso se dá


sobretudo em função dos textos de Platão. Por outro lado, é impossível pensar a
Filosofia de Platão dissociada de Sócrates. A vida, os ensinamentos, o julgamen-
to e a condenação de Sócrates2 constituem os acontecimentos a partir dos quais
foi necessário filosofar. Sócrates foi uma vítima da injustiça praticada também
contra a própria Filosofia e a razão. Se ele foi o mestre que compreendeu a com-
plexidade dos obstáculos à verdade, e nos ensinou a superar as contradições
da opinião (doxa), a cidade de Atenas representa a força cega da opinião que
autorizou e promoveu a injustiça, quando condenou o filósofo por meio do seu
tribunal público:
Por conseguinte, dos que contemplam a multiplicidade das coisas belas, sem verem a beleza
em si, nem serem capazes de seguir outra pessoa que os conduza junto dela, e sem verem a
justiça, e tudo da mesma maneira – desses, diremos que têm opinião sobre tudo, mas não
conhecem nada daquilo sobre que as emitem. (PLATÃO, 1987, p. 264)

Cega pela opinião, incapaz de ver a verdade e se deixar conduzir por aquele
que vê, a cidade condenou Sócrates e produziu a injustiça. Para Platão, a Filoso-
fia é a resposta ao problema da injustiça – uma injustiça que é uma doença da
alma e, ao mesmo tempo, da sociedade inteira. A injustiça resulta do erro e é,
sobretudo, um problema de conhecimento, estando assentada na desordem, no
espetáculo das ilusões dos sentidos e no julgamento torpe das paixões. Como

2
Em 399 a.C., Sócrates foi acusado de não acreditar nos deuses da cidade e corromper a juventude. Julgado pela assembleia ateniense, foi conde-
nado à morte por envenenamento.

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Quem somos? (Platão)

o texto d’ A República nos revelou anteriormente, a injustiça brota do apego às


aparências, pois a opinião é o conhecimento fundado nas ilusões da diversidade
dos sentidos. Mas como a Filosofia pode superar a injustiça? Como a Filosofia
pode encontrar a ordem e a justiça?

Platão não separa a virtude da política, da natureza e, fundamentalmente,


do conhecimento. Para Platão, o sujeito não é uma consciência fechada em si
mesma, e sim um ser que, ainda que se conserve e seja reconhecido em sua sub-
jetividade, não pode ser dissociado da sua condição de cidadão e de elemento
do mundo. Platão liga de maneira essencial a estrutura da alma e da cidade à
estrutura do cosmo. A ordem do mundo é o modelo que deve espelhar a ordem
da cidade e do indivíduo, a realização do bem individual e político são indissoci-
áveis. Portanto, é preciso conhecer o cosmo – o ser em sua totalidade – se quere-
mos conhecer e realizar a justiça. A filosofia, nesse caso, é a saída e o remédio, o
fármaco para o homem e o Estado doentes de aparência, desordem e injustiça.

O inteligível e o sensível
Um dos aspectos mais esclarecedores do pensamen-
to de Platão é a sua teoria das ideias, a partir da qual ele
Domínio público.

expõe e reúne as partes mais fundamentais da sua filoso-


fia: a sua ontologia e a sua gnosiologia. De modo geral,
podemos dizer que a teoria das ideias de Platão repre-
senta a tentativa de conciliar duas correntes filosóficas
do período cosmológico: a concepção do ser eterno e
imutável de Parmênides e a teoria heraclitiana do ser
plural, sempre em transformação. Assim, o cosmo platô-
nico resulta da síntese de dois princípios opostos: a ideia
e a matéria. Para Platão, o ser eterno e universal habita o
mundo da luz racional, da essência e da realidade pura,
enquanto os seres individuais e mutáveis moram no
mundo das sombras e sensações, das aparências e ilu-
sões. No seu texto Timeu, Platão relata como Demiurgo
Platão. deu forma ao caos da matéria conforme o modelo das
ideias eternas: no caos, ele introduziu a alma, que é prin-
cípio de movimento e de ordem. Assim, Demiurgo não é um criador, não é um deus
que fez o mundo do nada, mas a força ordenadora da matéria disforme. A sua obra
consiste apenas em organizar o mundo material, que era desmedido e caótico.

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Quem somos? (Platão)

Portanto, o mundo está dividido entre a ideia e a matéria, o sensível e o inte-


ligível. Para Platão, o mundo sensível (material) não deixa de ser real, mas tem a
realidade de uma aparência, é o mundo dos prisioneiros da caverna, uma cópia
ou sombra do mundo das essências, conforme nos relata n’ A República: “Imagina
então – comecei eu – que, conforme dissemos, eles são dois e que reinam, um
na espécie do inteligível, o outro no visível” (PLATÃO, 1987, p. 313). O mundo das
ideias imutáveis (o mundo inteligível) não comporta erro ou contradição, porque
é o mundo da perfeição, da eternidade, do Ser. No mundo das ideias, estão a
ordem e a verdade, fundamentos da justiça da vida individual e coletiva.

Para entendermos melhor a teoria platônica do Ser, reproduzimos aqui a aná-


lise de Châtelet (s/d, p. 110) acerca da metafísica platônica, a partir de um esque-
ma geométrico:

A ________ C _______ D ______ E _______ B

Consideremos que o segmento de reta AB representa a totalidade dos seres,


toda a existência, o mundo dos reflexos, das coisas materiais e das ideias. Nesse
caso, temos diferentes graus de realidade que compõem essa totalidade. No
segmento AC, estão representadas as cópias, as sombras e todas as imagens re-
fletidas dos corpos. Em CD, encontramos a realidade natural, o mundo físico em
geral, inclusive os animais e as plantas. Já AD, nesse caso, representa o mundo
sensível, constitui o visível, o mundo dos fenômenos, enquanto o segmento DB
constitui o mundo inteligível, das ideias universais e absolutas, aquilo que so-
mente é visível pelo olho da alma, do espírito. Mas, nessa esfera do inteligível,
(DB) também encontramos uma divisão: DE se refere às ideias que são imitadas,
ao inteligível que serve de modelo ao sensível, as ideias que lembramos quando
recorremos às coisas; já EB representa a natureza essencial, as ideias exclusiva-
mente concebidas por si mesmas, que não têm qualquer ligação com o sensível,
aquelas que são intuídas unicamente por um exercício contemplativo, as ideias
que encontram em si mesmas a sua validação. Sobre esse esquema geométrico,
acompanhemos a explicação de Sócrates, n’A República:
– Supõe então uma linha cortada em duas partes desiguais; corta novamente cada um dos
segmentos segundo a mesma proporção, o da espécie visível e o da inteligível; e obterás, no
mundo visível, segundo a sua claridade ou obscuridade relativa, uma seção, a das imagens.
Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras; seguidamente, aos reflexos nas águas, e
àqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais que
for do mesmo gênero, se estás a entender-me.

– Entendo, sim.

– Supõe, agora a outra seção, da qual esta imagem, a que nos abrange a nós, seres vivos, e a
todas as plantas e toda espécie de artefatos.

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Quem somos? (Platão)

– Suponho.

– Acaso consistirias em aceitar que o visível se divide no que é verdadeiro e no que não o é, e
que, tal como a opinião está para o saber, assim está a imagem para o modelo?

– Aceito perfeitamente.

– Examina agora de que maneira se deve cortar a seção do inteligível?

– Como?

– Na parte anterior, a alma, servindo-se, como se fossem imagens, dos objetos que então eram
imitados, e forçado a investigar a partir de hipóteses, sem poder caminhar para o princípio,
mas para a conclusão; ao passo que, na outra parte, ao que conduz ao princípio absoluto, parte
da hipótese, e, dispensando as imagens que havia no outro, faz caminho só com o auxílio das
ideias. (PLATÃO, 1987, p. 313-314)

A dialética e o conhecimento
Conforme Platão, o saber humano pode ser pensado a partir de duas esferas
de conhecimento.

Primeiro, temos o conhecimento derivado das nossas experiências sensíveis,


do contato direto com as coisas. Trata-se de um conhecimento de aparências,
particular, relativo e, por isso mesmo, instável. Esse saber fundado no sensível
constitui a opinião (doxa).

Depois, temos o conhecimento genuíno. De natureza intelectual, ele é uni-


versal, imutável e absoluto.

É o conhecimento das essências que confere sentido ao conhecimento


sensível.

Para Platão, o processo de conhecimento humano se desenvolve por meio da


passagem progressiva do mundo das sombras e aparências para o mundo das
ideias e essências.

Se quiséssemos resumir a filosofia de Platão em poucos termos, poderíamos


dizer que ela é fundamentalmente um idealismo ou, ainda, um realismo de es-
sências. O conhecimento mais verdadeiro, no qual se realiza a epistemé (ciência),
não é encontrado no exame direto das coisas. A matéria, do ponto de vista do
conhecimento, apenas espelha parcialmente a verdade das essências que habi-
tam o mundo das ideias.

Mas isso não significa que Platão desconsidere o mundo físico, que esse idea-
lismo suponha a matéria como algo completamente destituído de Ser e de sen-
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Quem somos? (Platão)

tido. Ao admitir o papel fundamental e essencial das ideias imutáveis e eternas,


Platão também concede ao mundo sensível uma certa realidade, ainda que ele
seja considerado somente na medida em que participa do mundo das ideias, do
qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma sombra. Porém, o mundo físico não
deixa de ser e de existir. As coisas sensíveis participam da ideia, da essência, que é
única e universal. Uma cadeira, por exemplo, é reconhecida como tal, ainda que de
um modo particular e restrito, porque carrega a ideia inteligível de cadeira. Justa-
mente por isso a verdade, ainda que transpareça por meio das coisas, é uma ideia,
uma forma universal inteligível. A ideia, portanto, não é dada pelas sensações, pelo
contato do nosso corpo com o mundo: é resultado do pensamento. Os sentidos
formam a opinião (doxa) e por meio do pensamento conhecemos as ideias.

Mas como conhecer as essências e abandonar as aparências? Na filosofia pla-


tônica, o conhecimento é obra da linguagem – mais precisamente, ele é operado
por meio de um método chamado dialética.

Dialética
Em grego, a palavra dia quer dizer “dois, duplo”; o sufixo lética, derivado
de logos e do verbo legein, pode significar “reunir, juntar”.

A dialética é um método de conhecimento fundado no diálogo, uma discus-


são que confronta pensamentos e opiniões contraditórias sobre alguma coisa. Na
perspectiva platônica, a dialética é um método linguístico que parte de alguma
coisa que deve ser separada ou dividida em duas partes contrárias ou opostas,
de modo que se conheça sua contradição e se possa determinar qual dos con-
trários é verdadeiro e qual é falso. A cada divisão surge um par de contrários,
que novamente devem ser separados, até que se chegue a um termo indivisível,
que não é formado por nenhuma oposição ou contradição: esse termo é a ideia
verdadeira ou a essência da coisa investigada.

Sobre o modo como o método dialético opera, vejamos a explicação de Só-


crates a Fedro, no diálogo homônimo de Platão:
Sócrates: – [...] há duas maneiras de proceder...

Fedro: – E quais são esses processos?

Sócrates: – O primeiro é este: abarcar num só golpe de vista todas as ideias esparsas de um
lado e de outro reuni-las em uma só ideia geral a fim de poder compreender, graças a uma
definição exata, o assunto que se deseja tratar...

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Quem somos? (Platão)

Fedro: – Mas qual é o outro processo?

Sócrates: – É saber dividir a ideia geral nos seus elementos, nas suas articulações naturais,
evitando, porém, mutilar qualquer dos elementos primitivos como faz um mau trinchador...
(PLATÃO, s/d, p. 169)

Assim, aplicada como um processo de conhecimento, a dialética vai sepa-


rando os opostos em pares. Partindo das sensações, das imagens e das opi-
niões contraditórias, a dialética é um método de pensamento estruturado na
linguagem, que possibilita a superação da contradição entre as aparências, em
direção à identidade de uma essência. Desse modo, muito semelhante ao sen-
tido etimológico da palavra, a dialética é o método que permitiu a Platão reunir
as teses de Heráclito e de Parmênides. Superar os contraditórios e chegar ao
que é sempre idêntico a si mesmo é a tarefa da discussão dialética, que revela o
mundo sensível como heraclitiano (a luta dos contrários, a mudança incessante)
e o mundo inteligível como parmenidiano (a identidade perene de cada ideia
consigo mesma). No próprio exercício da dialética, encontramos uma saída para
o problema da injustiça e da violência, já que ela está fundada na consideração
da diferença. É um método que abre espaço para o diverso, pois a unidade, que é
o fim do processo dialético, não pode simplesmente ser afirmada, pois ela é um
processo, resulta de uma luta, de uma conquista.

A lógica dialética é relativamente simples: os debatedores devem expor as


suas opiniões e confrontá-las, já que a discussão é um processo elementar que
permite superar as opiniões contrárias acerca do mesmo tema, até se atingir o
ponto de consenso, que é a ideia verdadeira. O diálogo é a relação ética porque
suplanta a violência na disputa, ultrapassa a diversidade sem ameaçar a integri-
dade. Aquele que dialoga se abre à objeção, livra-se da opinião e dos preconcei-
tos, das ilusões dos sentidos. Abre-se para uma outra perspectiva de realidade.

Com a dialética, Platão apontou para o caminho de uma universalidade paci-


ficadora e, desse modo, buscou superar a particularidade das opiniões, fonte de
violência e de injustiça.

A dialética não seduz, não impõe – ela apela à razão e submete o sentimento
e a crença ao entendimento. Além do mais, com a dialética o campo da verdade
é a universalidade do discurso. Enquanto um método do pensamento opera-
do na linguagem, e assim prescindindo do exame direto das coisas, a dialética
permite que o espírito se livre da sujeição do sensível e se conduza em direção
ao Ser. E o conhecimento metafísico nasce no momento em que a prática do
discurso desemboca no exame do Ser, que é fundamento, como já adiantamos,
da ética e da política.

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Quem somos? (Platão)

A alma e o conhecimento como reminiscência


Para Platão, o homem é constituído de corpo e alma, duas dimensões que
quase sempre aparecem em oposição nos diálogos. A alma é imortal; o corpo,
não. A alma é razão, e o corpo, paixão. A alma é divina, e o corpo, humano. A alma
olha a verdade, e o corpo, a ilusão. A alma contempla o bem, e o corpo está na
origem da violência. No texto Fédon, por exemplo, o corpo é descrito como uma
prisão da alma, um obstáculo ao conhecimento, pois, quando julgamos assenta-
dos nas funções do corpo, nos desviamos da verdade. A injustiça está enraizada
nas paixões e desejos que nascem por meio do corpo, pois as vivências do corpo
estão na origem da violência e dos incômodos do espírito:
[...] a razão deve seguir apenas um caminho em suas investigações, enquanto tivermos corpo e
nossa alma estiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos,
isto é, a verdade. Porque o corpo nos oferece mil obstáculos pela necessidade que temos de
sustentá-lo, e as enfermidades perturbam nossas investigações. Em primeiro lugar nos enche
de amores, de desejos, de receios, de mil ilusões e toda classe de tolices, de modo que nada
é mais certo do que aquilo que se diz corretamente: que o corpo nunca nos conduz a algum
pensamento sensato. Não, nunca! Quem faz nascer as guerras, as revoltas e os combates? Nada
mais que o corpo, com todas as suas paixões e desejos. (PLATÃO, 1999, p. 127)

Porém, esse julgamento negativo sobre o corpo não domina toda a análise
de Platão. Ao comentar o corpo humano na perspectiva platônica, Reale mostra
que, embora seja a consideração recorrente nos diálogos platônicos, a relação de
antítese com a alma não é a única. De certa forma, Platão não deixou de pensar o
corpo, não subestimou a importância dos cuidados do corpo, da medicina e da
ginástica: “De fato, não só deu grande importância à ginástica e à medicina, mas
no Timeu entendeu o homem como um conjunto estrutural (synamphoteron)”
(REALE, 2002, p. 175). Além do mais, é correto afirmar que a alma também vê –
contempla – as essências por interferência das coisas, pois o mundo do corpo
provoca a alma, a vivência e o contato com a diversidade nos fazem recordar a
unidade. Mas Reale chama atenção para o fato de que o cuidado de Platão com
o corpo tem como objetivo a saúde e a tranquilidade da alma: é preciso evitar
as enfermidades e as paixões para salvaguardar a alma. A medicina e a ginásti-
ca educam e cuidam do corpo, purificam o conjunto estrutural para o bem da
alma.

À alma cabe encontrar a verdade e enquanto ela procura com o corpo é in-
duzida ao erro, é enganada por ele. A alma é um princípio de conhecimento, é
o que permite ver além da percepção, ver além daquilo que o objeto sensível
nos oferece e o que nos faz transcender os dados do parecer e, paradoxalmen-
te, reconhecer a validade da experiência sensível. O conhecimento solicita o

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sensível, mas para ultrapassá-lo é preciso ser tocado por ele. Na perspectiva de
Platão, a ideia que se manifesta na experiência já está em nós. Assim, as questões
são complexas. Como essas ideias podem anteceder a experiência? Além disso,
como podemos acessar essas ideias? Em que sentido as verdades do pensamen-
to podem reunir os dados confusos dos sentidos?

As ideias não vêm da experiência. Muito pelo contrário, elas permitem ex-
plicar a experiência. A alma aproveita o contato com o sensível para trazer à luz
– recordar – aquilo que já viu. Antes de existir com o corpo, antes de estar en-
carcerada ao físico, a alma habitou um mundo distinto deste – na terminologia
platônica, como já adiantamos anteriormente, o mundo inteligível –, e
Por conseguinte, é necessário ter como certo [...] que se todas essas coisas que sempre citamos,
como o belo, o justo, e todas essências deste tipo, que encontramos em nós mesmos, é preciso,
já que todas essas coisas existem, que a nossa alma também tenha existido antes de havermos
nascido, e se todas essas coisas não existem, todos os nossos discursos são inúteis. (PLATÃO,
1999, p. 133)

Portanto, o conhecimento é inato, conhecer é lembrar aquilo que a alma já


viu, já contemplou. Nesse aspecto, o trabalho da dialética encontra o seu sentido
mais radical. A dialética é uma operação que se completa a partir de duas tarefas:
crítica das aparências e lembrança das essências. O diálogo procura, antes de
tudo, a superação da opinião, o desprendimento das ilusões fundadas no corpo.
Depois do processo de expurgo, a dialética está inteiramente voltada para o in-
terior, pois a verdade habita a alma, é preciso perscrutá-la,
E o conseguirá mais claramente quem examinar as coisas apenas com o pensamento, sem
pretender aumentar sua meditação com a vista, nem sustentar o seu raciocínio por nenhum
outro sentido corporal; aquele que se servir do pensamento sem nenhuma mistura procurará
encontrar a essência pura e verdadeira sem o auxílio dos olhos ou dos ouvidos e, por assim dizê-
-lo, completamente isolado do corpo, que apenas transtorna a alma e impede que encontre a
verdade. (PLATÃO, 1999, p. 127)

Enquanto o corpo é da ordem do que se destrói, pois é coisa e está entre as


coisas, a alma tem uma relação direta com tudo o que subsiste eternamente. A
alma – para quem sabe pensar ao mesmo tempo a linguagem e a experiência
– só pode ser concebida como não mortal. O homem conhece, na medida em
que transcende as ilusões da aparência, supera a doxa por meio da essência.
O corpo e o mundo físico, submetidos ao devir, podem ser compreendidos na
medida em que participam da razão, da inteligibilidade das ideias, do mundo
das essências.

A ordem do cosmo, a organização da pólis e a alma devem naturalmente


possuir uma analogia ou uma homologia de estruturas. Na verdade, o cosmo é
o modelo pelo qual a cidade e a alma individual devem ser ordenadas. Se nos
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Quem somos? (Platão)

diálogos Fedro e Fédon Platão apresenta a alma como imortal – o que é condição
para a noção de que todo o conhecimento é recordação, e de que na experiência
apenas descobrimos o que a alma já viu –, ela não deixa de ser o que nos anima,
o que confere vida quando está encerrada no corpo. Na verdade, a nossa alma é
solicitada pelo sensível e, nesse caso, a conduta reta sempre se apresenta como
um problema.

Domínio público.

Edição de A República, de Platão, traduzida para


o latim, publicada em Cambridge (Cantabrígia),
Inglaterra, em 1713.

Para Platão, o conhecimento da estrutura da alma antecede e fundamenta o


conhecimento do Estado. Da divisão social e política no Estado, passando pelas
formas de governo e chegando até o problema da justiça, tudo é articulado
como expressão das formas de alma. Assim, a teoria política de Platão está, sem
dúvida nenhuma, fundada na estrutura da alma do homem. No livro A República,
Platão apresenta a alma a partir da consideração de três formas: concupiscível,
irascível e racional. Essa teoria da tripartição da alma (pysique) constitui o cerne
da psicologia platônica e o comportamento do homem é determinado pela pre-
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sença dessas diferentes funções (partes) da alma. A psique do homem comporta


as paixões e os desejos, assim como sentimentos nobres aliados aos instintos de
agressão e de ira e, também, à razão.

Primeiro, temos a alma desejante, que habita o ventre e sente fome e sede,
busca a luxúria e o gozo de todos os sentidos. Depois, a alma do coração, sempre
movida por virtudes como a honra e a coragem. Mediadora entre a pulsão e a
razão, entre a alma subjugada pelo corpo e a alma que busca contemplar as es-
sências, ela deseja e pressente confusamente a ordem do Bem. Mas é irascível e
deve obedecer à “voz da razão”, a parte da alma que se situa na cabeça e se orien-
ta unicamente em direção ao Bem. A sua função é raciocinar, pensar, calcular e
contemplar as essências.

Na alma tripartida, a saúde está no fato de cada parte realizar a função que
lhe é própria, sempre do melhor modo possível, isto é, virtuosamente. A tem-
perança deve se impor às paixões do corpo, a fortaleza deve reinar no coração
e a sabedoria deve guiar a cabeça. Depois, conforme se descreve n’ A República,
a saúde da alma se realiza quando, fundamentalmente, a cabeça comanda as
outras partes do corpo:
– Por conseguinte, devemos recordar-nos que cada um de nós, no qual cada uma de suas
partes desempenha a sua tarefa, será justo e executará o que lhe cumpre.

– Devemos recordar-nos, sim.

– Portanto, não compete à razão governar, uma vez que é sábia e tem encargo de velar pela
alma toda, e não compete à cólera ser sua súdita e aliada?

– Absolutamente.

[...]

– E estas duas partes [...] dominarão o elemento concupiscível (que, cada pessoa, constitui a
maior parte da alma e é, por natureza, a mais insaciável de riquezas) e hão de vigiá-lo, com
receio que ele, enchendo-se dos chamados prazeres físicos, se torne grande e forte, e não
execute a sua tarefa, mas tente escravizar e dominar uma parte que não compete à sua classe
e subverta toda a vida em conjunto. (PLATÃO, 1987, p. 201)

Para Platão, o Estado ideal é composto por três classes de cidadãos: os gover-
nantes, os guardiões e os industriais. O equilíbrio do Estado e a própria justiça
dependem de que cada membro desses três estamentos realize as tarefas que
lhe compete, sempre conforme as suas virtudes. Aqueles cidadãos que têm a
virtude da sabedoria devem governar. Aos corajosos, cabe a defesa da cidade,
a dedicação à vida militar e à segurança. Já a maior parte dos cidadãos, sempre
obedecendo às indicações da virtude dominante da alma, deve se dedicar à pro-
dução, ao comércio, à agricultura e à indústria.
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Como já dissemos anteriormente, se o cosmo é o modelo da alma, ela, por


sua vez, está na base da concepção política de Platão. A saúde da alma é o pa-
radigma da justiça. Temperança, fortaleza e sabedoria são as virtudes da alma,
e a coexistência e a harmonia hierárquica entre elas é reveladora da justiça na
cidade.

Texto complementar
No diálogo Fédon, Platão retrata os momentos finais de Sócrates. Na prisão,
aguardando a morte, Sócrates nos mostra, dialeticamente, que é um erro de opi-
nião temer a morte. Além disso, apresenta a crítica platônica ao corpo. Nesse
diálogo, conforme o trecho a seguir, o corpo é um obstáculo ao conhecimento
das essências, pois nas paixões do corpo encontramos a origem das guerras, dos
males e da opinião. Nesse sentido, a verdade supõe que a alma se liberte do seu
obstáculo – o corpo. Por isso mesmo, o verdadeiro sábio não teme a morte.

Fédon (fragmento)
(PLATÃO, 2010)

IX – Embora os homens não o percebam, é possível que todos os que se


dedicam verdadeiramente à Filosofia, a nada mais aspirem do que a morrer
e estarem mortos. Sendo isso um fato, seria absurdo, não fazendo outra coisa
o filósofo toda a vida, ao chegar esse momento, insurgir-se contra o que ele
mesmo pedira com tal empenho e em pós do que sempre se afanara.

Símias, então, rindo, por Zeus, Sócrates, interrompeu-o; fizeste-me rir, em


que pese à minha falta de disposição para isso. O que penso é que, se os
homens te ouvissem discorrer dessa maneira, achariam certo o que se diz
dos filósofos – e nesse ponto contariam com a aprovação de nossa gente –
que em verdade eles vivem a morrer, sabendo perfeitamente que outra coisa
não merecem.

E só diriam a verdade, Símias, como exceção do que se refere a estarem


cientes desse ponto, pois, de fato, não sabem de que modo o verdadeiro filó-
sofo deseja a morte, nem como pode vir a alcançá-la. Porém deixemos essa
gente de lado e perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte
seja alguma coisa?

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Sem dúvida, respondeu Símias.

Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então,
consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo
e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou
será a morte outra coisa?

Não; é isso, precisamente, respondeu.

Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse
modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de
opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos preten-
sos prazeres, tal como comer e beber?

De forma alguma, Sócrates, replicou Símias.

E como relação aos prazeres do amor?

A mesma coisa.

E os demais prazeres, que entendem com os cuidados do corpo? És de


parecer que lhes atribua algum valor? A posse de roupas vistosas, ou de cal-
çados e toda a sorte de ornamentos do corpo, que tal achas? Eles os aprecia
ou os despreza no que não for de estrita necessidade?

Eu, pelo menos, respondeu, sou de parecer que o verdadeiro filósofo os


despreza. Sendo assim, continuou, não achas que, de modo geral, as preo-
cupações dessa pessoa, não visam ao corpo, porém tendem, na medida do
possível, a afastar-se dele para aproximar-se da alma?

É também o que eu penso.

Nisto, por conseguinte, antes de mais nada, é que o filósofo se diferencia


dos demais homens: no empenho de retirar quanto possível a alma na com-
panhia do corpo.

Evidentemente.

Essa é a razão, Símias, de, na opinião da maioria dos homens, não merecer
viver o indivíduo a quem nada disso é agradável e que não se importa com
tais práticas, por achar-se muito mais perto da condição de morto e por não
dar a menor importância aos prazeres alcançados por intermédio do corpo.

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Tens razão.

X – E como referência à aquisição do conhecimento? O corpo constitui


ou não constitui obstáculo, quando chamado para participar da pesquisa?
O que digo é o seguinte: a vista e o ouvido asseguram aos homens alguma
verdade? Ou será certo o que os poetas não se cansam de afirmar, que nada
vemos nem ouvimos com exatidão? Ora, se esses dois sentidos corpóreos
não são nem exatos nem de confiança, que diremos dos demais, em tudo
inferiores aos primeiros? Não pensas desse modo?

Perfeitamente, respondeu.

Então, perguntou, quando é que a alma atinge a verdade? É fora de


dúvida que, desde o momento em que tenta investigar algo na companhia
do corpo, vê-se logrado por ele.

Tens razão.

E não é no pensamento – se tiver de ser de algum modo – que algo da


realidade se lhe patenteia?

Perfeitamente.

Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem
a vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada
ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto
quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a
verdade.

Certo.

E não é nesse estado que a alma do filósofo despreza o corpo e dele foge,
trabalhando por concentrar-se em si própria?

Evidentemente.

E com relação ao seguinte, Símias: afirmaremos ou não que o justo em si


mesmo seja alguma coisa?

Afirmaremos, sem dúvida, por Zeus.

E também o belo em si e o bem?

Também.

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E algum dia já percebeste com os olhos qualquer deles?

Nunca, respondeu.

Ou por intermédio de outro sentido corpóreo? Refiro-me a tudo: gran-


deza, saúde, força e o mais que for, numa palavra: à essência de tudo o que
existe, conforme a natureza de cada coisa. É por intermédio do corpo que
percebemos o que neles há de verdadeiro, ou tudo se passará da seguinte
maneira: quem de nós ficar em melhores condições de pensar em si mesmo
o mais exatamente possível o que se propõe examinar, não é esse que estará
mais perto do conhecimento de cada coisa? Ou não?

Perfeitamente.

E não alcançará semelhante objetivo da maneira mais pura quem se


aproximar de cada coisa só com o pensamento, sem arrastar para a reflexão
a vista ou qualquer outro sentido, nem associá-los a seu raciocínio, porém
valendo-se do pensamento puro, esforçar-se por apreender a realidade de
cada coisa em sua maior pureza, apartado, quanto possível, da vista e do
ouvido, e, por assim dizer, de todo o corpo, por ser o corpo fator de perturba-
ção para a alma e impedi-la de alcançar a verdade e o pensamento, sempre
que a ele se associa? Não será, Símias, esse indivíduo, se houver alguém em
tais condições, que alcançará o conhecimento do Ser?

Tens toda a razão, Sócrates, respondeu Símias.

XI – Por tudo isso, continuou, é natural nascer no espírito dos filósofos au-
tênticos certa convicção que os leva a discorrer entre eles mais ou menos nos
seguintes termos: Há de haver para nós outros algum atalho direto, quando
o raciocínio nos acompanha na pesquisa; porque enquanto tivermos corpo
e nossa alma se encontrar atolada em sua corrupção, jamais poderemos al-
cançar o que almejamos. E o que queremos, declaremo-lo de uma vez por
todas, é a verdade. Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta,
pela necessidade de alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes,
que são outros empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupi-
dez, imaginações de toda a espécie e um sem-número de banalidades, a tal
ponto ele nos satura, que, de fato, como se diz, por sua causa jamais conse-
guiremos alcançar o conhecimento do quer que seja. Mais, ainda: guerras,
batalhas, dissensões, suscita-as exclusivamente o corpo com seus apetites.

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Outra causa não têm as guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que
nos vemos forçados a adquirir por causa do corpo, visto sermos obrigados
a servi-lo. Se carecermos de vagar para nos dedicarmos à Filosofia, a causa é
tudo isso que enumeramos. O pior é que, mal conseguimos alguma trégua
e nos dispomos a refletir sobre determinado ponto, na mesma hora o corpo
intervém para perturbar-nos de mil modos, causando tumulto e inquietude
em nossa investigação, até deixar-nos inteiramente incapazes de perceber a
verdade. Por outro lado, ensina-nos a experiência que, se quisermos alcançar
o conhecimento puro de alguma coisa, teremos de separar-nos do corpo e
considerar apenas com a alma como as coisas são em si mesmas. Só nessas
condições, ao que parece, é que alcançaremos o que desejamos e do que
nos declaramos amorosos, a sabedoria, isto é, depois de mortos, conforme
nosso argumento o indica, nunca enquanto vivermos. Ora, se realmente, na
companhia do corpo não é possível obter o conhecimento puro do que quer
que seja, de duas uma terá de ser: ou jamais conseguiremos adquirir esse
conhecimento, ou só o faremos depois de mortos, pois só então a alma se re-
colherá em si mesma, separada do corpo, nunca antes disso. Ao que parece,
enquanto vivermos, a única maneira de ficarmos mais perto do pensamen-
to, é abstermo-nos o mais possível da companhia do corpo e de qualquer
comunicação com ele, salvo e estritamente necessário, sem nos deixarmos
saturar de sua natureza sem permitir que nos macule, até que a divindade
nos venha libertar. Puros, assim, e livres da insanidade do corpo, com toda a
probabilidade nos uniremos a seres iguais a nós e reconheceremos por nós
mesmos o que for estreme de impurezas. É nisso, provavelmente, que con-
siste a verdade. Não é permitido ao impuro entrar em contato com o puro.
– Eis aí, meu caro Símias, quero crer, o que necessariamente pensam entre si
e conversam uns com os outros os verdadeiros amantes da sabedoria. Não é
esse, também, o teu modo de pensar?

Perfeitamente, Sócrates.

Dicas de estudo
PLATÃO. A República. 5. ed. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

SÓCRATES. Direção de Roberto Rossellini. Itália, 1971. Dist.: Versátil Home Video.

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Atividades
1. Explique a diferença entre doxa e epistemé, para Platão. Em que sentido essa
diferença está relacionada à teoria das ideias, de Platão?

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2. Em que sentido podemos afirmar que a filosofia, sobretudo na perspectiva


platônica, é uma resposta ao problema da injustiça?

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3. Comente, de modo geral, como Platão concebe o corpo e a alma no proces-


so do conhecimento.

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Gabarito
1. Segundo Platão, o saber humano pode ser pensado a partir de duas es-
feras de conhecimento. Primeiro, temos o conhecimento derivado das
nossas experiências sensíveis, do contato direto com as coisas. Trata-se
de um conhecimento de aparências, particular, relativo e, por isso mes-
mo, instável. Esse saber fundado no sensível constitui a opinião (doxa).
Depois, temos o conhecimento genuíno. De natureza intelectual, ele é
universal, imutável e absoluto. O conhecimento mais verdadeiro, no qual
se realiza a epistemé (ciência), não está no exame direto das coisas. A ma-
téria, do ponto de vista do conhecimento, apenas espelha parcialmente

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a verdade das essências que habitam o mundo das ideias. Mas isso não
significa que Platão desconsidere o mundo físico, que esse idealismo
suponha a matéria como algo completamente destituído de Ser e de
sentido. Ao admitir o papel fundamental e essencial das ideias imutáveis
e eternas, Platão também concede ao mundo sensível certa realidade,
ainda que ele seja considerado somente na medida em que participa do
mundo das ideias, do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma som-
bra. Mas o mundo físico não deixa de ser e de existir. As coisas sensíveis
participam da ideia, da essência, que é única e universal. Uma cadeira,
por exemplo, é reconhecida como tal ainda que de um modo particular
e restrito, porque carrega a ideia inteligível de cadeira. Justamente por
isso, mesmo que transpareça por meio das coisas, a verdade é uma ideia,
uma forma universal inteligível. Portanto, a ideia não é dada pelas sen-
sações, pelo contato do nosso corpo com o mundo: ela é resultado do
pensamento. Os sentidos formam a opinião (doxa) e por meio do pensa-
mento conhecemos as ideias.

2. Para Platão, a Filosofia é a resposta ao problema da injustiça. Sendo do-


ença da alma e, ao mesmo tempo, da sociedade inteira, a injustiça resulta
do erro e é, sobretudo, um problema de conhecimento, está assentada na
desordem, no espetáculo das ilusões dos sentidos e no julgamento torpe
das paixões. A injustiça brota do apego às aparências, pois a opinião é o
conhecimento fundado nas ilusões da diversidade dos sentidos.

3. Para Platão, o homem é constituído de corpo e alma, duas dimensões


que quase sempre aparecem em oposição nos seus diálogos. Em Fédon,
por exemplo, o corpo é descrito como uma prisão da alma, um obstácu-
lo ao conhecimento, pois, quando julgamos assentados nas funções do
corpo, nos desviamos da verdade. Cabe à alma encontrar a verdade e,
enquanto ela procura com o corpo, é induzida ao erro, é enganada por
ele. A alma é um princípio de conhecimento, é o que permite ver além
da percepção, além daquilo que o objeto sensível nos oferece, e o que
nos faz transcender os dados do parecer e, paradoxalmente, reconhecer
a validade da experiência sensível. O conhecimento solicita o sensível e
para ultrapassar o sensível é preciso ser tocado por ele. Na perspectiva
de Platão, a ideia que se manifesta na experiência já estava em nós, pois
não tem origem na experiência: muito pelo contrário, as ideias permitem
explicar a experiência. A alma aproveita o contato com o sensível para
trazer à luz (recordar) aquilo que já viu. Antes de existir com o corpo e se
encarcerar no físico, a alma habitou um mundo distinto desse – na termi-
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nologia platônica, o mundo inteligível. Portanto, o conhecimento é inato:


conhecer é lembrar aquilo que a alma já viu, já contemplou. O corpo é da
ordem do que se destrói, é coisa e está entre as coisas, enquanto a alma
tem uma relação direta com tudo o que subsiste eternamente. A alma –
para quem sabe pensar ao mesmo tempo a linguagem e a experiência
– só pode ser concebida como não mortal. O homem conhece na medida
em que transcende as ilusões da aparência, superando a doxa por meio
da essência. O corpo e o mundo físico, submetidos ao devir, podem ser
compreendidos na medida em que participam da razão, da inteligibilida-
de das ideias, do mundo das essências.

Referências
CHÂTELET, François. Platão. Porto: Rés Editora, s/d.

GOLDSCHMIDT, Victor. A Religião de Platão. São Paulo: Difusão Europeia, 1963.

HADOT, Pierre. O que É a Filosofia Antiga? São Paulo: Loyola, 1999.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins


Fontes, 2010.

PLATÃO. Górgias ou A Oratória. São Paulo: Difel, 1970.

_____. A República. 5. ed. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

_____. Eutífron ou Da Religiosidade/Apologia de Sócrates/Críton ou


Do Dever/Fédon ou Da Alma. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os
Pensadores).

_____. Diálogos V (O Banquete, Mênon, Timeu, Crítias). São Paulo: Ediouro,


2010.

_____. Fedão. Disponível em: <www.dominiopublico.gov.br/download/texto/


cv000031.pdf>. Acesso em: 14 set. 2010.

_____. Mênon/O Banquete/Fédro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

REALE, Giovanni. Corpo, Alma e Saúde: O conceito de homem de Homero a


Platão. São Paulo: Paulus, 2002.

XENOFONTES. Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates. In: SÓCRATES. São


Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).
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O que são o ser, o mundo e o homem?
(Aristóteles)

Os atos corajosos e justos, bem como outros atos virtuosos, nós os praticamos em
relação uns aos outros, observando nossos respectivos deveres no tocante a contratos,
serviços e toda sorte de ações, bem assim como às paixões; e todas essas coisas parecem
ser tipicamente humanas.

Aristóteles

A sistematização do conhecimento
Aristóteles não deve ser considerado simplesmente um discípulo con-
tinuador da filosofia de Platão1. Tão grande quanto o seu mestre, que foi
o fundador da Academia, Aristóteles deu um novo impulso à Filosofia:
fundou a sua própria escola, fixou os princípios da lógica silogística, siste-
matizou o conhecimento em áreas metodologicamente independentes,
agregou ao raciocínio dialético procedimentos empíricos e legou para a
posteridade um conjunto de tratados, que compõe o primeiro modelo de
saber científico da história. Não há Filosofia posterior a Aristóteles, mesmo
na contemporaneidade, completamente isenta de influências aristotéli-
cas. Dificilmente encontramos algum tema ou objeto do conhecimento
a que sua obra não tenha se dedicado, pois ele foi o pensador de todos
os problemas, de todos os campos do conhecimento e ciências: Biologia,
Física, Astronomia, Psicologia, Retórica, Ética, Política, Lógica, Letras, Ma-
temática e Metafísica.

1
Aristóteles nasceu da cidade grega de Estagira, em 384 a.C. Filho de um médico, desde cedo foi habituado às pesquisas e práticas
científicas da época. Aos 18 anos de idade, começou a frequentar a Academia de Platão (428-347 a.C.) e lá permaneceu por quase duas
décadas. Cerca de três anos após a morte do mestre, foi convidado por Filipe da Macedônia (382-336 a.C.) para dirigir a educação de
seu filho Alexandre (356-323 a.C.), então com 13 anos. Após a morte de Filipe, regressou a Atenas e fundou a sua própria escola, o Liceu.
Após a morte de Alexandre, sendo acusado de conspirar a favor dos macedônios, Aristóteles abandonou Atenas, morrendo um ano
depois, na cidade de Cálcis.

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

Domínio público.
Aristóteles.

Essa grandiosidade epistêmica, isto é, essa grandiosidade do conhecimento


constitui um desafio. Quando pensamos em estudar a obra de Aristóteles, o pri-
meiro obstáculo que enfrentamos é por onde iniciar. Nesse caso, é importante
considerar indicações do próprio autor, seguindo seu espírito lógico, começan-
do, propedeuticamente, por analisar a ordenação dos saberes que encontramos
no seu livro Metafísica. Devemos, antes de tudo, compreender a organização do
conhecimento e, somente então, decidir a ordem das investigações.

Sendo um tratado sem comparação na história da Filosofia, Metafísica divide


os saberes em três grandes grupos de ciências, em uma separação que obede-
ce, sobretudo, a dois critérios centrais na composição do modelo de ciência da
antiga Grécia: o objeto e a finalidade do conhecimento.

Antes de tudo, é preciso considerar a condição de origem e permanência de


um objeto diante do devir. Estabelecer se o objeto existe por si mesmo ou, ao
contrário, se ele foi inventado ou fabricado pelo homem.

Em segundo lugar, para compreender o lugar de uma ciência no conjunto dos


saberes, é preciso avaliar qual a finalidade do conhecimento dessa ciência: temos
que definir se o conhecimento visa à contemplação (conhecer pelo conhecer), à
ação (conhecer para agir) ou, ainda, à produção (conhecer para produzir).

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

Toda investigação científica visa à aquisição de um conhecimento, mas aferi-


mos o lugar de uma ciência – como bem indica David Ross, que é especialista na
obra de Aristóteles – pelo tipo de fim, pela orientação que atribuímos ao conhe-
cimento dessa ciência: “Segundo Aristóteles, as ciências dividem-se em teoréti-
cas, práticas e produtivas. O propósito imediato de cada uma delas é o conhecer,
mas os seus propósitos últimos são, respectivamente, o conhecimento, a condu-
ta e a produção de objectos úteis ou belos” (ROSS, 1987, p. 31).

Portanto, conforme o objeto e a finalidade do conhecimento, Aristóteles se-


parou o saber em três campos distintos.

 Pertencem ao campo das ciências produtivas os saberes estruturados em


técnicas que têm em vista a produção de bens e objetos. Ciências como
a Economia, a Arquitetura e a Medicina, por exemplo, estão fundadas na
aquisição e no uso de determinadas técnicas, de um corpo de doutrinas e
ensinamentos, sempre em função de objetivos práticos. Estuda-se Arqui-
tetura com o intuito de melhor praticar a arte da construção, para edificar,
por exemplo, casas, prédios e pontes; estuda-se Medicina para promover
a saúde; e aprende-se a ciência econômica para melhor fomentar a produ-
ção da riqueza. Esses são saberes orientados para a produção ou geração
de bens ou produtos que atendem às necessidades da vida cotidiana: mo-
radia, alimentação, administração da riqueza, a promoção da saúde etc.

 Pertencem ao segundo grupo – das ciências práticas – a Ética e a Política.


Diferentemente das ciências produtivas, os saberes ético e político visam a
estabelecer as condições do agir que estão orientadas para a conquista do
bem individual (a felicidade) e do bem coletivo (a justiça). Outro ponto im-
portante é que o objeto (a virtude) e o fim desse saber (a realização da vir-
tude) existem somente como resultado das escolhas e ações do homem.
A felicidade e a justiça precisam ser construídas e, nesse caso, somente a
ação orientada pela prudência (sabedoria prática) é passível de fazer exis-
tir (realizar) as virtudes éticas e políticas. Todavia, nesses dois casos, esta-
mos falando de saberes em que não podemos separar o agente, a ação e
a finalidade do agir. A ética, de maneira mais clara, é uma ciência prática
na medida em que se constitui em um aprendizado que instrui um sujeito
para que, por meio das suas ações, realize o bem. Portanto, diferentemente
do saber produtivo (enquanto técnica), o saber moral (como práxis) supõe
a inseparabilidade entre o sujeito, o agir e o objetivo da ação. Só podemos
supor um sujeito corajoso quando ele escolhe, compreende essa virtude
e age corajosamente com o objetivo de promover o bem. Desse modo,

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

ser corajoso é uma virtude do sujeito, inerente ao seu ato de coragem e à


finalidade da sua ação, que é realizar uma virtude. No saber técnico, con-
forme Aristóteles, o sujeito, o ato e o objetivo do ato não estão ligados, são
independentes. Um artesão, por exemplo, ao fazer uma escultura, executa
uma ação técnica, mas ele próprio não é essa ação e nem a escultura se
confunde com a ação ou com o sujeito. Nas ciências produtivas, a técnica
tem como objetivo a produção de um bem distinto do sujeito e da ação
produtora. Nas ciências práticas, o sujeito ético é aquele que age etica-
mente para promover a virtude. Nesse sentido, é impossível uma ação vir-
tuosa realizada por um sujeito sem virtude. Portanto, a virtude é insepará-
vel do conhecimento. Somos virtuosos somente quando controlamos as
nossas paixões e nos guiamos pelos princípios da razão. Por isso mesmo,
podemos afirmar que o campo das ciências práticas é do conhecimento
(o saber) orientado para o agir. Outro ponto importante é que para Aristó-
teles a ética e a política são inseparáveis, pois somente na pólis podemos
realizar integralmente a virtude: segundo o filósofo, o homem é um ani-
mal político (zoon politikon), isto é, está na sua natureza viver e procurar
viver em sociedade. Nesse sentido, a pólis, a cidade-Estado, é necessária
para a realização desse fim, na medida em que garante as condições – leis,
governo, economia etc. – para organização de uma vida coletiva. A finali-
dade de todas as nossas ações éticas é a felicidade, o maior bem que um
homem pode desejar. No entanto, sem a liberdade proporcionada pela
pólis, é impossível a conquista do bem e da virtude individual.

 Por fim, para Aristóteles, as ciências mais elevadas são aquelas classifica-
das como ciências teoréticas, que compõem o terceiro grupo na sua classi-
ficação do conhecimento. Pertencem a esse grupo todos os saberes dedi-
cados a estudar objetos que existem sem qualquer relação com a vontade
e a ação do homem, isto é, objetos que existem e agem por si mesmos.
Nesse caso, o fim último do conhecimento é o próprio conhecimento, a
contemplação da realidade, já que não podemos transformá-la, dada a
sua independência da ação do homem. Entre as ciências teoréticas que
vamos considerar, estão a metafísica, a física e a psicologia, ciências que
procuram responder, respectivamente, às perguntas:

 O que é o ser?

 O que é o mundo?

 O que é o homem?

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

A metafísica
Para Aristóteles, a metafísica é, entre todas essas ciências teoréticas, a supe-
rior, sobretudo porque estuda a realidade suprassensível. Mas, além disso, ela é
o mais puro e elevado conhecimento que a inteligência pode almejar, porque
é o único saber completamente livre. A própria origem da metafísica tem essa
marca, pois, diferentemente de qualquer outra ciência ou arte, ela não visa a
nenhum fim prático, é a ciência do conhecimento pelo conhecimento. O seu
valor maior está na contemplação das verdades eternas e necessárias.

Aristóteles estabeleceu que a metafísica, conforme a sua obra de título ho-


mônimo, pode ser definida levando-se em conta quatro problemas fundamen-
tais, a que ela busca responder:

 investigação das causas e dos princípios primeiros;

 exame do ser enquanto ser;

 pesquisa da substância;

 investigação de Deus e das substâncias suprassensíveis.

Essas quatro investigações estão estruturalmente implicadas e, de certo


modo, cobrem a totalidade da realidade. O estudo dos princípios primeiros está
ligado ao exame de Deus, já que Deus é a causa e o princípio primeiro. Assim
como, ao perguntar sobre a noção de substância, Aristóteles também está in-
vestigando se existem seres suprassensíveis e sensíveis. A metafísica pergunta
o que é o ser, o que é o princípio, o que é a realidade. Nesse sentido, trata-se de
um saber que, por definição, é a ciência dos conceitos universais e necessários,
porque é o conhecimento das causas e dos princípios primeiros, que explicam
toda a realidade que existe por si mesma e, ainda, permanece em si mesma
imutável.

Sobre essa interpretação da metafísica enquanto ciência primeira e mais


elevada, acompanhemos as palavras de Aristóteles no capítulo II, do livro I, da
Metafísica:
[...] o conhecimento de todas as coisas encontra-se necessariamente naquele que, em maior
grau, possui a ciência universal, porque ele conhece, de certa maneira, todos os individuais
sujeitos. No entanto, é sobremaneira difícil ao homem chegar a estes conhecimentos universais,
porque estão para muito além das sensações. [...] A mais elevada das ciências, e superior a
qualquer subordinada, é, portanto, aquela que conhece aquilo em vista do qual cada coisa se
deve fazer. [...] Ela deve ser, com efeito, a ciência teorética dos primeiros princípios e das causas,
porque o bem e o porquê são uma das causas. (ARISTÓTELES, 1973, p. 214)

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

Mas de que causas e princípios a metafísica é ciência?

Como, de modo geral, podemos definir essas causas e princípios primeiros?

De acordo com Aristóteles, as causas primeiras explicam conceitos essenciais


e fornecem as razões e motivos da origem de todos os seres. Assim, para Aristó-
teles, a noção de causa vai muito além dos conceitos de ação e força. Causa, na
perspectiva aristotélica, pode ser dita de quatro maneiras:

 como é uma coisa;

 o que é essa coisa;

 por que essa coisa é assim;

 para que é essa coisa.

Esses quatro questionamentos traduzem, de modo geral, as quatro causas


que encontramos na física e na metafísica aristotélica: material, formal, eficiente
ou motriz e final.

 A causa material responde pela matéria de uma determinada essência,


como, por exemplo, se a matéria da essência é feita de água, fogo ou qual-
quer outro elemento natural.

 A causa formal explica a forma que uma essência apresenta. O lápis, por
exemplo, é a forma que as matérias madeira e grafite assumiram a partir
da ação de um industrial ou de um artesão.

 Nesse caso, o industrial é a causa eficiente ou motriz – e esta terceira causa


explica como uma matéria recebeu uma forma para constituir uma essên-
cia.

 Já a causa final elucida o motivo, a finalidade para alguma coisa existir e


ser do modo como é. Escrever e fixar o conhecimento, para não fugir do
mesmo exemplo, podem ser compreendidos como a causa final do lápis.

As duas primeiras causas, material e formal, são, nesse sentido, a essência e


a matéria que constituem todas as coisas, enquanto a terceira causa explica o
movimento, a ação de uma forma sobre uma matéria. Já a causa final, completa-
mente fora das considerações científicas na contemporaneidade, responde pelo
sentido da existência dos seres.

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Sobre a aplicação da teoria das quatro causas, vejamos o exemplo do filósofo


italiano Giovanni Reale:
[...] se considerarmos o ser das coisas de uma perspectiva estática, a matéria e a forma bastam
para explicá-lo; porém, se as contemplamos de um ponto de vista dinâmico, pode-se dizer, em
sua passagem, no seu devir, em sua geração e em sua corrupção que tais causas não bastam.
É evidente que se consideramos, por exemplo, desde uma perspectiva estática um homem
concreto, este se reduz simplesmente a sua matéria (carne e osso) e a sua forma (alma); porém,
se o consideramos desta outra forma – dinâmica – e perguntamos: “Como se originou? Quem
ou o que o criou? Por que se desenvolve e cresce?”, então aparecem as razões da causas
ulteriores: a causa eficiente ou motriz, responde, foi o pai quem o produziu, e a causa final, o
seu telos ou o fim para o qual tende o devir do homem (a realização da sua essência). (REALE,
1985, p. 45-46, tradução nossa)

No livro IV, da Metafísica, Aristóteles define essa ciência dos princípios e causas
primeiras– a metafísica – como uma disciplina “que estuda o Ser enquanto Ser
e seus atributos essenciais” (ARISTÓTELES, 1984, p. 71, tradução nossa). Diferen-
temente das outras ciências entendidas como particulares, já que a metafísica
investiga o Ser universalmente e não apenas parcialmente, Aristóteles comple-
menta a definição escrevendo, acerca da metafísica, que ela “[...] é a ciência da
substância, da unidade e da pluralidade e dos contrários que se derivam” (ARIS-
TÓTELES, 1984, p. 71, tradução nossa).

Nesse caso, o que é o Ser?

O que é a substância?

Como entender uma ciência da substância e do Ser?

Inicialmente, em Aristóteles, a noção de Ser expressa uma grande quantidade


de significados, porém, ela sempre é empregada referindo-se a uma unidade e a
uma realidade determinada.

Outro ponto importante é que a noção de Ser não pode ser reduzida a um
gênero ou, mesmo, a uma espécie, pois, como estabelece Ross, o Ser não é um atri-
buto pertencente a tudo o que existe: “Existe uma espécie de Ser que é no sentido
mais estrito e pleno: a saber, a substância” (ROSS, 1987, p. 163).

Mas, nesse caso, o que é uma substância?

Aristóteles responde a essa questão buscando superar as definições antagôni-


cas anteriores à sua filosofia – a noção material de substância dos filósofos natu-
ralistas (o atomismo de Demócrito, por exemplo) e a doutrina suprassensível das
teorias das ideais de Platão. Aristóteles ultrapassa a aporia metafísica dos seus pre-

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decessores concedendo a cada tese uma parte de razão. A substância (ousia) pode
ser compreendida, de acordo com a metafísica aristotélica, em três sentidos:

 como forma, na perspectiva platônica;

 como matéria, de acordo com a filosofia da natureza; e, finalmente,

 como composto de matéria e forma.

Assim, enquanto forma, a substância é a natureza essencial das coisas. No


homem, por exemplo, é a sua alma racional, aquilo que lhe confere um traço
distintivo em relação a todas as outras classes de seres, como os animais e as
plantas. Mas podemos pensar um homem sem um corpo (matéria)? Na metafí-
sica aristotélica, é fundamental que a forma se realize na matéria, pois se a alma
racional não estivesse ligada a um corpo, não teríamos um homem. Podemos
dizer que só temos a substância homem na medida em que a matéria (o corpo)
e a forma (o espírito) se juntam. Nesse sentido, a matéria também é uma subs-
tância essencial para a constituição das coisas. Como, por outro lado, a matéria
sem forma é completamente indeterminada, dessa junção de matéria e forma
surgem todas as coisas sensíveis. Portanto, quando se trata das coisas sensíveis,
a substância pode ser considerada do ponto de vista formal, do ponto de vista
material e da união entre ambos, como, de modo muito claro, Aristóteles indica
na sua obra De Anima:
Dizemos que um dos gêneros dos seres é a substância. E substância, primeiro, no sentido de matéria
– que por si mesmo não é algo determinado – e ainda no sentido de figura e forma – em virtude do
que já se diz que é algo determinado – e, por sua vez, é potência, ao passo que a forma é atualidade,
e isto de dois modos: seja como ciência, seja como inquirir. (ARISTÓTELES, 2006, p. 71)

As substâncias são coisas como homens, gatos e rosas, que podem ter uma
existência independente e ser identificados como indivíduos de uma espécie
particular. Porém, na perspectiva aristotélica, a substância representa aquilo que
há de constante e permanente nas coisas que mudam, sobretudo enquanto esse
permanente é o sujeito. Podemos pensar em Sócrates jovem, corajoso e forte,
lutando na guerra. Também podemos pensar em Sócrates velho, sábio e frágil,
defendendo-se das acusações diante do tribunal de Atenas. A despeito de todas
as características e qualidades que atribuímos a Sócrates, sempre reconhecemos
um indivíduo (uma substância) que permanece. Na verdade, Sócrates é um su-
jeito (uma substância) de que se afirmam ou se negam diferentes predicados.

Aristóteles estabelece que existem três tipos de substância:

 os corpos sujeitos ao devir, portanto, perecíveis;

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 os corpos materiais não perecíveis, desse modo, eternos;

 os seres imutáveis suprassensíveis.

O estudo das duas primeiras substâncias pertence às ciências da natureza, e


a investigação da terceira pertence à Metafísica.

Na perspectiva aristotélica, sendo tarefa da metafísica, a explicação da subs-


tância primordial é a chave de compreensão de todas as coisas, de todos os pro-
blemas que causaram admiração no homem e, a partir disso, fizeram-no filoso-
far. Na arquitetura da metafísica aristotélica, dos princípios primeiros dependem
os céus, a natureza, tanto os corpos eternos como os corpos perecíveis. E esses
princípios são o divino, que é objeto da teologia.

A física
A física constitui o segundo grupo de ciências teoréticas no sistema aristotéli-
co. É uma ciência que investiga a natureza (physis), a realidade sensível. O mundo
da física é o mundo do movimento, em um devir lógico e ordenado. Assim, difere
da realidade metafísica, na medida em que essa realidade suprassensível se ca-
racteriza pela absoluta ausência de movimento. Conforme os termos de Aristó-
teles, o entendimento do movimento, é central para compreender a natureza:
Estabelecido que a natureza é um princípio de movimento e de mudança, e nosso estudo
versa sobre a natureza, não podemos deixar de investigar o que é o movimento; porque
se ignorássemos o que é o movimento, necessariamente ignoraríamos o que é a natureza.
(ARISTÓTELES, 1995, p. 79, tradução nossa)

Mas na ciência de Aristóteles, a noção de movimento não se assemelha aos


princípios quantitativos da Física moderna, inaugurada por Galileu Galilei (1564-
-1642) e Isaac Newton (1643-1727): a consideração de Aristóteles é filosófica, e
não matemática. Se na ciência moderna, de modo geral, o movimento é des-
locamento no espaço, em Aristóteles ele se caracteriza por considerações de
outra ordem, obedece a uma lógica teleológica e sua definição geral pode ser
expressa não por uma fórmula algébrica, mas por uma concepção metafísica: “o
movimento é a passagem do ato à potência”. Com essa definição de movimento,
Aristóteles ultrapassa as concepções antitéticas de Parmênides (530-460 a.C.) e
Heráclito (540-470 a.C.), como brevemente apresentamos a seguir.

De modo geral, Parmênides negou a possibilidade do movimento, pois, na


sua concepção, movimento é contradição e admiti-lo seria aceitar o contrassen-
so de que o não-ser (aquilo que não existe, aquilo que não é) pode Ser, pode exis-
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tir. O Ser não comporta nem geração e nem corrupção, pois, na perspectiva do
eleata Parmênides, o Ser é perfeito e, por isso mesmo, é uno, eterno e imutável.

Na direção contrária de Parmênides, o filósofo Heráclito estabeleceu uma das


máximas mais consagradas da filosofia: “tudo flui”. Para Heráclito, tudo se move
constantemente, pois o devir (movimento) está presente em todas as coisas, en-
quanto movimento de geração e corrupção que se orienta sempre em direção
ao seu estado contrário: “As (coisas) frias esquentam, quente esfria, úmido seca,
seco umedece” (OS PRÉ-SOCRÁTICOS, p. 101). Assim, a Natureza (o mundo, a rea-
lidade) está ordenada segundo um fluxo contínuo e harmônico, a partir do qual
todos os seres não cessam de se transformar uns nos outros. Portanto, para He-
ráclito, o movimento é o logos (a razão) que estrutura toda a realidade.

Mas quem está certo? Parmênides, ao sustentar que só podemos pensar


sobre aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, ou, ao contrário, Herá-
clito, que encontrou no movimento a lei de todos os seres?

Para Aristóteles, Heráclito e Parmênides estão, em medidas distintas, certos


e errados. Mas isso é algo que compreendemos somente a partir da doutrina
aristotélica do movimento enquanto passagem do ato à potência. Mas qual o
significado desses conceitos?

Ato é a atualidade de uma matéria, a sua forma em um dado instante do tempo.

Já a potência é aquilo que está contido na matéria, mas ainda não é.

Por exemplo, a árvore é o ato da semente, o adulto é o ato da criança, a mesa


é o ato da madeira etc. A semente tem a potência da árvore, como a criança é
um adulto em potencial. Potência e matéria são idênticas, assim como a forma e
o ato também o são. A matéria e a potência formam uma realidade passiva que
precisa do ato e da forma, isto é, da atividade que cria os seres determinados.

No que se refere ao ser em ato, o ser em potência é o não-ser.

Porém, se considerarmos que a potência é a capacidade e a possibilidade in-


trínseca de uma matéria chegar a um ato, podemos dizer que potência também
existe e é real. Nesse sentido, o movimento existe como passagem e Heráclito
estava, nesse aspecto, em parte, certo.

Mas, do mesmo modo, o movimento é a realização em ato de uma potência


(de um ser que já é) que está contida na matéria, isto é, que é e existe potencial-
mente. Portanto, Parmênides também estava certo.

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Outro ponto importante é que a Física aristotélica é parte essencial da sua


Cosmologia. Na elaboração geral da sua Filosofia da Natureza, Aristóteles conser-
vou os quatro elementos de Empédocles (495-435 a.C.): terra, água, ar e fogo.

Esses elementos estão na base da ordenação do cosmo e na explicação do mo-


vimento quando pensamos não mais em passagem do ato à potência, mas como
deslocamento. Entretanto, essa noção não está isenta de aspectos qualitativos, pois
cada elemento ocupa o seu lugar no cosmo e realiza um movimento característico,
sempre em função da sua natureza substancial. Os elementos sólidos compostos
de terra, por exemplo, caem porque é próprio da sua natureza; já o fogo obedece a
um movimento contrário, porque é da sua natureza subir cada vez mais alto.

Porém, Aristóteles integrou à sua cosmologia um quinto elemento: o éter.


Trata-se de uma espécie de quinta essência (a quinta-essência ou quintessência),
presente em todo o espaço acima da Lua, do qual as estrelas seriam constituí-
das. No sistema aristotélico, esse elemento divino explica a impossibilidade do
vácuo. Aristóteles recusava essa ideia, pois o vácuo representa o nada, e o nada
é o não-ser absoluto, o que é impossível.

Na cosmologia aristotélica, o mundo está dividido em lunar e sublunar.

O primeiro é formado por sete céus, sendo um lugar de movimentos perfeitos,


sem transformações qualitativas, habitado por corpos eternos, como as estrelas.

Já no mundo sublunar, lugar dos corpos perecíveis, a Terra ocupava o centro


do universo; em torno dela, uma sequência de esferas cristalinas e concêntricas
sustentava a Lua, o Sol e os planetas. Mais distante, outra esfera sustentava as
estrelas fixas, eternas e perfeitas.

O universo aristotélico

Esfera do motor primeiro


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Estrelas
Saturno fixas
Júpiter
Marte
Sol
Vênus
Mercúrio
Lua

Terra

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Se no mundo sublunar contamos com o ar material que respiramos, no


mundo das esferas perfeitas e eternas o espaço também deve ser completamen-
te preenchido. Para Aristóteles, esse espaço celeste é permeado pelo éter.

Desde Nicolau Copérnico (1473-1543), Johannes Kepler (1571-1630), Gali-


leu, Newton e outros, a cosmologia aristotélica deixou de ser significativa como
teoria explicativa do movimento e da arquitetura da realidade. Sabemos que
o universo é infinito, que os movimentos não são perfeitos e não obedecem a
determinações substanciais e metafísicas. Muito se avançou depois de Aristóte-
les, mas a cosmologia antiga ainda permanece significativa em função da sua
concepção teleológica do cosmo, sobretudo ao nos lembrar que entender como
as forças físicas operam é tão importante como pensar no próprio sentido, nas
razões pelas quais o cosmo é e existe.

A psicologia
Conceitos metafísicos como substância, bem como as relações entre matéria e
forma, ato e potência, estão na base da doutrina psicológica de Aristóteles, como en-
contramos no seu tratado De Anima (“Da Alma”) – de tal modo que, para Aristóteles, a
Psicologia não é uma ciência do comportamento humano: é um saber teorético sobre
a alma (psique), sobre aquilo que confere vida, é uma ciência sobre a vida. Assim,
todos os seres vivos – animais e vegetais – possuem alma, que é o princípio da vida.
Em De Anima, Aristóteles investiga a alma considerando três problemas básicos.

 Primeiro, examina a natureza substancial da alma. Nesse caso, encontra-


mos em Aristóteles uma discussão que não deixou de ocupar toda a filo-
sofia até os nossos dias: será a alma extensa ou não?

 Depois, acerca da unidade da alma, ele se pergunta se a alma é única e,


ainda, se ela pode ser dividida.

 Finalmente, a questão mais importante se refere à própria definição da


alma: afinal, o que é a alma?

De antemão, podemos dizer que a alma não é, em absoluto, um espírito, não


é matéria e nem sequer uma criação da imaginação ou da inteligência humana.
Muito pelo contrário, a Psicologia, enquanto ciência da alma, está entre os sabe-
res teoréticos justamente porque investiga um objeto (a alma), que existe inde-
pendentemente da ação ou da vontade humanas.

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Domínio público.

Primeira página da obra De Anima, de Aristóteles, no


original grego, e comentários em latim, edição de 1837,
pelo filologista alemão Immanuel Bekker (1785-1871).

A alma é o que confere vida aos seres, é o que permite separá-los nas cate-
gorias de inanimados (sem vida e sem alma) e animados (com alma e com vida).
Para Aristóteles, de modo geral, todas as coisas, inclusive os seres vivos, são um
composto de matéria e forma, sendo a primeira correspondente à potência, e a
última, ao ato. Nessa perspectiva, a alma nada mais seria do que a forma e o ato
da matéria – do corpo. Acompanhemos como essas definições foram indicadas
por Aristóteles, no livro II de De Anima:
Assim, todo corpo natural que participa da vida é substância, no sentido de substância
composta. E uma vez que essa substância também é um corpo de tal tipo – que tem vida,
a alma não é um corpo, pois o corpo não é um dos predicados do substrato, antes, ele é o
substrato e a matéria. É necessário, então, que a alma seja substância como forma do corpo
natural que em potência tem vida. E substância é atualidade. Portanto, é de um corpo de tal
tipo que a alma é atualidade. (ARISTÓTELES, 2006, p. 71-72)

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Porém, entre todos os seres vivos existe uma diferença de alma. Assim, temos,
a partir da teoria da alma da filosofia aristotélica, a classificação dos seres vivos,
de modo que a teoria da alma de Aristóteles tem implicações não apenas na
sua metafísica, mas também na sua biologia. Os vegetais nascem, alimentam-
-se, crescem e se reproduzem, mas não têm sensações e não podem se deslocar
no espaço. Já os animais têm sensações, sentem dor e prazer, podem se mover.
Se a nutrição é a função elementar dos vegetais, o movimento e a sensação são
aspectos da alma singulares aos animais. Contudo, entre os animais, o homem
é o único capaz de pensar e compreender, isto é, o único capaz de agregar, às
funções da nutrição, da sensação e do movimento, o pensamento.

Essa tripla divisão da alma é explicada a partir da consideração aristotélica de


três fenômenos ou funções biológicas da vida. Portanto, é uma divisão sem qual-
quer fundamento moral ou religioso, está assentada na filosofia da natureza.

 Primeiro, a função vegetativa é responsável pelo nascimento, a alimenta-


ção e o crescimento. Estão relacionadas à alma vegetativa todas as funções
vitais mais elementares, porém necessárias. A designação vegetativa tem
sentido, sobretudo, quando entendemos que essas funções são dadas ori-
ginalmente como medidas significativas do mundo das plantas.

 Em segundo lugar, temos alma sensitiva, que, além de englobar as facul-


dades da alma vegetativa, também exprime funções ligadas à sensibilida-
de e ao movimento.

 Por último, a função intelectiva da alma é determinante para os atos de


conhecimento e deliberação. As plantas possuem apenas a alma de cará-
ter vegetativo; os animais, a alma vegetativa e sensitiva; e somente os ho-
mens são contemplados com as duas anteriores, mais essa alma racional.

Conforme Aristóteles, no homem, as percepções sensíveis (ocasionadas por


nossas potências animais – os cinco sentidos: visão, audição, olfato, paladar e
tato) são reunidas por um sentido comum, cuja sede é o coração. Todas as nossas
percepções sensíveis, como Aristóteles já havia estabelecido na Metafísica, não
desaparecem com o fim das atividades dos sentidos, mas se conservam como
memória, em uma espécie de resíduo da percepção: “Por natureza, seguramen-
te, os animais são dotados de sensação, mas, nuns, da sensação não se gera a
memória, e noutros gera-se” (ARISTÓTELES, 1973, p. 211).

Portanto, esse tipo de conhecimento, fundado na nossa alma sensitiva, não é


exclusivo dos homens, pertence também aos animais.

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Mas, nesse caso, o que é sentir?

Novamente, Aristóteles recorre à doutrina metafísica da potência e do ato.


Todos os animais possuem faculdades sensitivas que estão em potência, na
medida em que podem receber ou ser afetadas por sensações, desde que entrem
em contato com os objetos sensíveis. Quando isso acontece, podemos dizer que
a potência de sentir se transformou em ato. Aristóteles examinou todos os sen-
tidos e os relacionou com os objetos do mundo que correspondem a eles. No
entanto, temos dados sensíveis que não pertencem exclusivamente a nenhum
sentido – por exemplo, as noções de movimento e figura. Segundo Aristóteles,
essas noções sensíveis (sensíveis comuns) são, na verdade, resultado de uma as-
sociação de todos os sentidos.

Para o filósofo, no homem, as faculdades da alma (sentir, perceber, memori-


zar) representam um grau inferior de conhecimento. O grau superior, o mais ele-
vado, o conhecimento caracteristicamente humano, está fundado unicamente
no conhecimento do espírito (logos), na nossa alma intelectiva. Nesse momen-
to, Aristóteles reúne a sua Metafísica à Psicologia, pois os princípios primeiros
podem ser alcançados somente a partir de operações do espírito.

A alma humana pode ser descrita como racional e intelectiva, pois comporta,
de modo geral, duas operações: primeiro, como pensamento discursivo e juízo,
é razão (διάνοια); depois, como intuição e fundamento dos conceitos, é intelecto
(υονς). Assim, o espírito não depende da experiência para chegar aos princípios
primeiros: está na alma, nas suas funções – intuitiva e discursiva –, o poder de
conhecer.

Semelhantemente a Platão, Aristóteles define a alma como um ser que se


move por si mesmo e, nesse sentido, viver é ter a capacidade de mover-se.
A alma, na sua essência, é automovimento, é aquilo que confere vida porque
permite o movimento próprio. Viver é poder se automovimentar, é gerar, sentir e
pensar. Entretanto, em Aristóteles, o movimento nunca é aleatório, e a alma, en-
quanto a primeira forma do corpo físico orgânico, supõe uma teleologia, supõe
o movimento sempre em direção a um fim determinado. É a alma que confere
virtude ao corpo e determina a finalidade do corpo vivo. Nos termos de Aristóte-
les, o corpo existe para a alma.

Apesar da distinção entre os três tipos de alma, a psicologia aristotélica supõe


uma unidade da alma, pois podemos falar em funções distintas – nutrir, sentir e
pensar –, mas no homem todas essas funções explicam a sua própria condição. A
alma humana produz, sente e raciocina – e, nesse sentido, é dotada de unidade.

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

Em De Anima, Aristóteles rejeita o dualismo platônico, a noção de alma e corpo


como duas substâncias que se opõem, ligadas exteriormente e à força. A alma
está totalmente unida em todas as partes ao corpo, e o homem é uma substân-
cia una, composta de corpo e alma.

Texto complementar

Ética a Nicômaco (fragmento)


(ARISTÓTELES, 1973)

Mas, em grau secundário, a vida de acordo com a outra espécie de virtu-


de é feliz, porque as atividades que concordam com esta condizem com a
nossa condição humana. Os atos corajosos e justos, bem como outros atos
virtuosos, nós os praticamos em relação uns aos outros, observando nossos
respectivos deveres no tocante a contratos, serviços e toda sorte de ações,
bem assim como às paixões; e todas essas coisas parecem ser tipicamente
humanas. Dir-se-ia até que algumas delas provêm do próprio corpo e que o
caráter virtuoso se prende por muitos laços às paixões. A sabedoria prática
também está ligada ao caráter virtuoso e este à sabedoria prática, já que os
princípios de tal sabedoria concordam com as virtudes morais e a retidão
moral concorda com ela. Ligadas que são também às paixões, as virtudes
morais devem pertencer à nossa natureza composta. Ora, tais virtudes são
humanas; por conseguinte, humanas são também a vida e a felicidade que
lhes correspondem. A excelência da razão é uma coisa à parte. Dela devemos
contentar-nos em dizer isto, porquanto descrevê-la com precisão é tarefa
maior do que exige o nosso propósito. Sem embargo, ela também parece
necessitar de bens exteriores, porém pouco, ou, em todo caso, menos do
que necessitam as virtudes morais. Admitamos que ambas necessitem de
tais coisas em grau igual, embora o trabalho do estadista se ocupe mais com
o corpo e coisas que tais, porque a diferença quanto a isso será pequena; mas
naquilo de que precisam para o exercício de suas atividades haverá grande
diferença. O homem liberal necessita de dinheiro para a prática de seus atos
de liberalidade e o homem justo para a retribuição de serviços (pois é difí-
cil enxergar claro nos desejos, e mesmo os que não são justos aparentam

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

o desejo de agir com justiça); e o homem corajoso necessita de poder para


realizar qualquer dos atos que correspondem à sua virtude, e o temperante
necessita de oportunidade: pois de que outro modo poderíamos reconhe-
cer tanto a ele como a qualquer dos outros? Também se discute sobre se é
a vontade ou o ato que é mais essencial à virtude, pois supõe-se que esta
envolve tanto uma como outro. E é evidente que sua perfeição envolve a
ambos, mas os atos exigem muitas coisas, e tanto mais quanto maiores e
mais nobres forem. O homem que contempla a verdade, porém, não necessi-
ta de tais coisas, ao menos para o exercício de sua atividade; e pode-se dizer
até que elas lhe servem de obstáculo, quando mais não seja para a própria
contemplação. Mas, enquanto homem que vive no meio de outros homens,
ele escolhe a prática de atos virtuosos: por conseguinte, necessita também
das coisas que facilitam a vida humana. Mas que a felicidade perfeita é uma
atividade contemplativa, confirma-o também a seguinte consideração. Ad-
mitimos que os deuses sejam, acima de todos os outros seres, bem-aventu-
rados e felizes: mas que espécie de ações lhes atribuiremos? Atos de justiça?
Não pareceria absurdo que os deuses firmassem contratos, restituíssem de-
pósitos e outras coisas do mesmo jaez? Atos de coragem, então, arrostando
perigos e expondo-se a riscos, porque é nobre proceder assim? Ou atos de
liberalidade? A quem fariam eles dádivas? Muito estranho seria se os deuses
realmente tivessem dinheiro ou algo dessa espécie. E em que consistiriam os
seus atos de temperança? Não será ridículo louvá-los por isso, uma vez que
não têm maus apetites? Se as analisássemos uma por uma, as circunstân-
cias da ação se nos mostrariam triviais e indignas dos deuses. Não obstante,
todos supõem que eles vivem e, portanto, são ativos; não podemos conce-
bê-los a dormir como Endimião. Ora, se a um ser vivente retirarmos a ação, e
ainda mais a ação produtiva, que lhe restará a não ser a contemplação? Por
conseguinte, a atividade de Deus, que ultrapassa todas as outras pela bem-
-aventurança, deve ser contemplativa; e das atividades humanas, a que mais
afinidade tem com esta é a que mais deve participar da felicidade. Mostra-o
também o fato de não participarem os animais da felicidade, completamente
privados que são de uma atividade dessa sorte. Com efeito, enquanto a vida
inteira dos deuses é bem-aventurada e a dos homens o é na medida em que
possui algo dessa atividade, nenhum dos outros animais é feliz, uma vez que
de nenhum modo participam eles da contemplação. A felicidade tem, por
conseguinte, as mesmas fronteiras que a contemplação, e os que estão na

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

mais plena posse desta última são os mais genuinamente felizes, não como
simples concomitante mas em virtude da própria contemplação, pois que
esta é preciosa em si mesma. E assim, a felicidade deve ser alguma forma de
contemplação. Mas o homem feliz, como homem que é, também necessita
de prosperidade exterior, porquanto a nossa natureza não basta a si mesma
para os fins da contemplação: nosso corpo também precisa de gozar saúde,
de ser alimentado e cuidado. Não se pense, todavia, que o homem para ser
feliz necessite de muitas ou de grandes coisas, só porque não pode ser supre-
mamente feliz sem bens exteriores. A autossuficiência e a ação não implicam
excesso, e podemos praticar atos nobres sem sermos donos da terra e do
mar. Mesmo desfrutando vantagens bastante moderadas pode-se proceder
virtuosamente (isso, aliás, é manifesto, porquanto se pensa que um particu-
lar pode praticar atos dignos não menos do que um déspota – mais, até). E é
suficiente que tenhamos o necessário para isso, pois a vida do homem que
age de acordo com a virtude será feliz. Sólon nos deu, talvez, um esboço fiel
do homem feliz quando o descreveu como moderadamente provido de bens
exteriores, mas como tendo praticado (na opinião de Sólon) as mais nobres
ações, e vivido conforme os ditames da temperança. Anaxágoras também
parece supor que o homem feliz não seja rico nem um déspota quando diz
que não se admiraria se ele parecesse à maioria uma pessoa estranha; pois
a maioria julga pelas exterioridades, uma vez que não percebe outra coisa.
E assim, as opiniões dos sábios parecem harmonizar-se com os nossos argu-
mentos. Mas, embora essas coisas também tenham um certo poder de con-
vencer, a verdade em assuntos práticos percebe-se melhor pela observação
dos fatos da vida, pois estes são o fator decisivo. Devemos, portanto, exami-
nar o que já dissemos à luz desses fatos, e se estiver em harmonia com eles
aceitá-lo-emos, mas se entrarem em conflito admitiremos que não passa de
simples teoria. Ora, quem exerce e cultiva a sua razão parece desfrutar ao
mesmo tempo a melhor disposição de espírito e ser extremamente caro aos
deuses. Porque, se os deuses se interessam pelos assuntos humanos como
nós pensamos, tanto seria natural que se deleitassem naquilo que é melhor
e mais afinidade tem com eles (isto é, a razão), como que recompensassem
os que a amam e honram acima de todas as coisas, zelando por aquilo que
lhes é caro e conduzindo-se com justiça e nobreza. Ora, é evidente que todos
esses atributos pertencem mais que a ninguém ao filósofo. É ele, por conse-
guinte, de todos os homens o mais caro aos deuses. E será, presumivelmen-
te, também o mais feliz. De sorte que também neste sentido o filósofo será o
mais feliz dos homens.

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

Dicas de estudo
ARISTÓTELES. Metafísica/Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Co-
leção Os Pensadores).

ROSS, David. Aristóteles. Lisboa: Dom Quixote, 1987.

Atividades
1. Explique os critérios da divisão dos saberes, estabelecida por Aristóteles.

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

2. Explique a relação de inseparabilidade estabelecida por Aristóteles entre éti-


ca e política.

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3. Explique, de modo geral, a teoria da tripartição da alma, segundo Aristóteles.

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

Gabarito
1. Na obra Metafísica, os saberes estão divididos em três grandes grupos de
ciências, conforme, sobretudo, dois critérios centrais no modelo de ciência
da antiga Grécia: o objeto e a finalidade do conhecimento. Antes de tudo, é
preciso considerar a origem e a permanência de um objeto diante do devir,
estabelecer se ele existe por si mesmo, se foi inventado ou fabricado pelo
homem. Em segundo lugar, é preciso avaliar a finalidade do conhecimento
dessa ciência. Temos que definir se o conhecimento visa à contemplação (co-
nhecer pelo conhecer), à ação (conhecer para agir) ou à produção (conhecer
para produzir). Toda investigação científica visa à aquisição de um conheci-
mento, mas aferimos o lugar de uma ciência pelo tipo de fim, de orientação
que atribuímos ao conhecimento dessa ciência. Fundados nesses critérios,
Aristóteles dividiu as ciências em teoréticas, práticas e produtivas.

Pertencem ao campo das ciências produtivas os saberes estruturados em téc-


nicas para a produção de bens e objetos.

Pertencem ao grupo das ciências práticas a Ética e a Política: são saberes em


que não podemos separar o agente, ação e a finalidade do agir. A ética, de
maneira mais clara, é uma ciência prática na medida em que se constitui
em um aprendizado que instrui um sujeito, para que ele, por meio das suas
ações, realize o bem.

As ciências mais elevadas para Aristóteles são aquelas classificadas como


teoréticas, que compõem o terceiro grupo, ao qual pertencem todos os sa-
beres dedicados a estudar objetos que existem sem qualquer relação com a
vontade e a ação do homem, isto é, objetos que existem e agem por si mes-
mos. Nesse caso, o fim último do conhecimento é o próprio conhecimento,
a contemplação da realidade, já que não podemos transformá-la, dada a sua
independência frente à ação do homem.

2. Para Aristóteles, os saberes ético e político visam a estabelecer as condições


do agir orientado para a conquista do bem individual (a felicidade) e do bem
coletivo (a justiça). Outro ponto importante é que o objeto (a virtude) e o
fim do saber (a realização da virtude) existem somente como resultado das
escolhas e ações do homem. A felicidade e a justiça precisam ser construídas
e somente a ação orientada pela prudência (sabedoria prática) é passível de
fazer existir (realizar) as virtudes éticas e políticas. Todavia, nesses dois casos,
estamos falando de saberes em que não podemos separar o agente, ação e

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a finalidade do agir. Para Aristóteles, a ética e a política são inseparáveis, pois


somente na pólis podemos realizar integralmente a virtude. A finalidade de
todas as nossas ações éticas é a felicidade, o maior bem que um homem
pode desejar. No entanto, sem a liberdade proporcionada pela pólis, é im-
possível a conquista do bem e da virtude individual.

3. A alma confere vida aos seres, permite separá-los nas categorias de seres
inanimados (sem vida e sem alma) e animados (com alma e com vida). Para
Aristóteles, de modo geral, todas as coisas, inclusive os seres vivos, são um
composto de matéria e forma, sendo a primeira correspondente à potência,
e a última, ao ato. Nessa perspectiva, a alma nada mais seria do que a forma
e o ato da matéria (do corpo), mas entre todos os seres vivos existe uma
diferença de alma. A partir da teoria da alma da filosofia aristotélica, temos
a classificação dos seres vivos. E essa teoria da alma tem implicações não
apenas na metafísica aristotélica, mas também na sua biologia. Os vegetais
nascem, alimentam-se, crescem e se reproduzem, mas não têm sensações e
não podem se deslocar no espaço. Já os animais têm sensações, sentem dor
e prazer, podem se mover. Se a nutrição é a função elementar dos vegetais, o
movimento e a sensação são aspectos da alma singulares aos animais. Con-
tudo, entre os animais, o homem é o único capaz de pensar e compreender,
agregando, às funções da nutrição, da sensação e do movimento, o pensa-
mento. Essa tripla partição da alma é explicada a partir da consideração aris-
totélica de três fenômenos ou funções biológicas da vida – portanto, é uma
divisão sem qualquer fundamento moral ou religioso, e está assentada na
filosofia da natureza.

Primeiro, a função vegetativa é responsável pelo nascimento, a alimentação


e o crescimento. Estão relacionadas à alma vegetativa todas as funções vitais
mais elementares, porém necessárias. A designação vegetativa tem sentido,
sobretudo, quando entendemos que essas funções são dadas originalmente
como medidas significativas do mundo das plantas.

Em segundo lugar, temos a função sensitiva, ligada às percepções e ao movi-


mento. Além de englobar as faculdades da alma vegetativa, a alma sensitiva
também exprime funções ligadas à sensibilidade e à percepção.

Por último, a função intelectiva da alma é determinante para os atos de co-


nhecimento e deliberação. As plantas possuem apenas a alma de caráter ve-
getativo; os animais, a alma vegetativa e sensitiva; e somente os homens são
contemplados com as duas anteriores, mais essa alma racional.

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

Referências
ARISTÓTELES. Tópicos/Dos Argumentos Sofísticos/Metafísica/Ética a Nicô-
maco/Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).

_____. Física. Madri: Gredos, 1995.

_____. Metafísica. Barcelona: Obras Maestras, 1984.

_____. De Anima. São Paulo: Editora 34, 2006.

HADOT, Pierre. O que É a Filosofia Antiga? São Paulo: Loyola, 1999.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins


Fontes, 2010.

OS PRÉ-SOCRÁTICOS: Fragmentos, Doxografia e Comentários. São Paulo: Abril


Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).

REALE, Giovanni. Introducción a Aristóteles. Barcelona: Editorial Herder, 1985.

ROSS, David. Aristóteles. Lisboa: Dom Quixote, 1987.

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O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles)

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Como devemos viver? (Helenistas)

Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos prazeres dos
intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como creem certos ignorantes, [...]
mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma.

Epicuro

Depois de ter enfrentado o problema cosmológico com os filósofos


originários e o problema antropológico com Sócrates, Platão e Aristóte-
les, a Filosofia se encontrou, no período pós-aristotélico, com problemas
de ordem muito prática, ligados à pergunta sobre como devemos viver.
Marcada por problemas de ordem física, lógica e moral, e apoiada em ele-
mentos místico-religiosos, nesse período, a filosofia se tornou uma refle-
xão sobre a arte de viver.

Domínio público.

Estátua de Sêneca, em Córdoba, Espanha, sua


cidade natal.

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Como devemos viver? (Helenistas)

Domínio público.
Estátua de Marco Aurélio, em um dos Museus
Capitolinos, em Roma.

Em termos históricos, esse é o período helenístico, que se estende desde o


século III até o século I a.C., servindo de elo entre as reflexões da filosofia platôni-
ca e aristotélica, e a nascente filosofia cristã. Assim, sua influência se estende até
os primeiros séculos da era cristã, seja pelo movimento conhecido como neopla-
tonismo, seja pelos pensadores romanos que nela se inspiraram, entre os quais
se destacam Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) e Marco Aurélio (121-180 d.C.). Esse momen-
to histórico foi marcado pela Batalha de Queroneia (338 a.C.), quando Filipe II
(382-336 a.C.), rei da Macedônia, enfrentou a coalizão formada pelas cidades de
Atenas e Tebas. Nessa batalha, as cidades gregas perderam não só muitos solda-
dos (fala-se em pelo menos dois mil atenienses mortos e centenas escravizados),
como também a grande experiência que vinham fazendo até então: a invasão de
Filipe II pôs fim à experiência democrática e ao florescimento cultural conquista-
do pela Grécia até então. Com a posterior morte de Filipe II, seu filho, Alexandre
Magno (356-323 a.C.), assumiu o trono e deu prosseguimento à expansão militar
dos macedônios. Conquistou o Egito, a Ásia Menor, a Mesopotâmia e a região
das Índias, até o vale do Rio Indo.

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Como devemos viver? (Helenistas)

Domínio público.
Alexandre Magno, na Batalha de Isso, montando seu cavalo, Bucéfalo, conforme mosaico en-
contrado em Pompeia hoje exposto no Museu Arqueológico Nacional, em Nápoles, Itália.

A ideia de Alexandre, também conhecido como Alexandre, o Grande, era di-


fundir a civilização grega nos novos territórios conquistados. Isso explica o nome
helenismo: do grego hellenizein, que significa “viver como os gregos”. Essa fora
a proposta que marcou a vida grega até a anexação completa da Grécia ao Im-
pério Romano, ocorrida por volta do ano 147 a.C., já que depois da morte de
Alexandre, na Babilônia, o seu império se esfacelou, dividido entre seus generais.
Tornando-se reis, esses generais passaram a disputar novas áreas do antigo im-
pério, e aos poucos foram integrados ao Império Romano, que também estava
em expansão.

A perda da liberdade política (da qual os gregos pareciam amplamente cons-


cientes) trouxe inúmeras consequências também para a filosofia, alterando
muitas das suas concepções e mesmo provocando uma considerável mudança
nos seus problemas centrais.

Talvez a perda de autonomia das cidades-Estado gregas, bem como a sua


inserção no grande organismo político então representado pelo Império Mace-
dônio, tenha representado uma vantagem para a cultura grega, que se difundiu
e alargou de tal forma que se tornou um patrimônio comum aos países do me-
diterrâneo, do Egito à Síria e de Roma à Espanha.

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Como devemos viver? (Helenistas)

Ao contrário do que pode parecer, esse período foi de intensa produção in-
telectual, tanto na filosofia quanto nas ciências e nas artes em geral. Só para
lembrar alguns exemplos: Herófilo, considerado o pai da anatomia, viveu em
Alexandria, na primeira metade do século III a.C., ao lado de Erasístrato, o pai
da fisiologia, e na mesma cidade viveu Euclides, pai da geometria; em Siracusa,
viveu Arquimedes, outro grande matemático, além de inventor do cálculo inte-
gral; em Samos, Aristarco se destacou na astronomia, tendo afirmado a teoria
heliocêntrica e sendo contestado por Hiparco de Niceia, a quem é atribuída a
organização do ano solar quase da forma como é aceito até nossos dias; em
Cirene, Eratóstenes organizou a geografia como ciência. Nas artes, foi um perío-
do de grande produção arquitetônica e escultural, destacando-se nesse período
a obra Laocoonte e Seus Filhos e a Vênus de Milo; na literatura, destacam-se Calí-
maco e Teócrito, criador do gênero idílico; no teatro, apareceu a comédia nova,
um gênero que, tendo em Menandro seu principal nome, fazia uma crítica aos
costumes de então.

Domínio público.
Domínio público.

Laocoonte e seus Filhos, atualmente no Museu do Vênus de Milo, atualmente no


Vaticano. Museu do Louvre, em Paris.

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Foi nesse período, portanto, que a filosofia também obteve resultados inte-
ressantes face à crise social e moral, a qual demandava uma reflexão ética pela
qual se tornasse possível enfrentar os novos tempos, pois os anteriores ideais da
racionalidade e da vida política já não satisfaziam. Surgiram então várias escolas
de pensamento: estoicismo, epicurismo, ceticismo, cinismo e neoplatonismo.
Nas duas primeiras, nota-se um retorno à metafísica naturalista dos pré-socráti-
cos e à moral das escolas socráticas menores; nas últimas, uma anulação de toda
metafísica e moral, e certa volta para a sofística, negando a filosofia platônico-
-aristotélica. A novidade era o fato de, nesse novo cenário, a filosofia deixar de
ser uma preparação para o exercício político, passando a ser uma reflexão sobre
o aprimoramento interior do homem. Com isso, ela se tornava um cuidado de si
em busca da virtude e do bem individual, no que se destaca o esforço ético de
procura da serenidade no meio do turbilhão de mudanças e da situação adversa
que marcava o cenário social.

Outro detalhe interessante desse momento da filosofia diz respeito ao tom


“místico-religioso” que ela assumiu. Certamente, essa marca remetia às relações
que ela estabelecia – perante o processo de difusão – com o mundo oriental,
principalmente a cidade de Alexandria, sede do Império Macedônio.

O estoicismo
Geralmente, o estoicismo é dividido em três períodos:

 antigo, marcado pela reflexão ética;

 médio, no qual aparecem temas bastante ecléticos;

 recente, quando surgem muitos temas considerados religiosos.

O fundador da antiga escola estoica fora Zenão de Cítio (334-262 a.C.), que
muito cedo teve contato com as ideias de Sócrates e, por volta do ano 300,
fundou a escola estoica, que ganhou esse nome por “funcionar” próxima a um
pórtico (que em grego se diz stoá). Esse movimento filosófico teve em Crisipo de
Solis (280-208 a.C.) o seu sistematizador, e chegou a Roma em 155 a.C., por meio
de Diógenes da Babilônia (230-150 a.C). Ali, seus continuadores foram Marco
Aurélio, Sêneca, Epíteto (55-135 d.C.) e Lucano (39-65 d.C.).

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Zenão de Cítio. Crisipo de Solis.

No geral, com esse movimento, a filosofia se viu frente a frente com o pro-
blema da vida cotidiana, em busca da afirmação da virtude e a melhor forma de
alcançar a felicidade. Por isso, além das reflexões sobre a física e a lógica, o fim
mesmo da filosofia, da religião e da política deveria ser a ética, como reflexão
que ajudasse a viver da melhor forma, a fim de alcançar a felicidade.

Podemos identificar alguns elementos comuns aos pensadores dessa escola,


entre os quais se destaca a valorização dos sentidos na obtenção do conheci-
mento. Isso dá a essa filosofia uma marca bastante materialista, ao se compre-
ender a matéria como estando em constante movimento (em um vir a ser) e o
universo como governado pelo logos divino (associado à imagem do fogo), do
qual todas as coisas surgem de maneira ordenada. Para os estoicos, a alma faz
parte do mundo, já que Deus e mundo formariam uma mesma realidade.

É essa concepção física que dá as bases para a ética estoica: segundo esses
pensadores, o melhor para o homem é viver conforme a natureza. Como a natu-
reza é logos (princípio ordenado e ordenador), deve-se viver conforme a razão, o
que significa que o homem deve se submeter à força divino-natural.

Guiado por esse princípio racional, o sábio deveria sempre recusar as paixões
e buscar a paz da alma. Essa paz da alma está associada ao princípio da ataraxia
(palavra grega usada para afirmar a necessidade de ausência de perturbações).
Essa seria a grande virtude do sábio e é nisso mesmo que residiria a felicidade, ou
seja, na capacidade de cultivar as virtudes como libertação de toda perturbação,

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como conquista da tranquilidade da alma e independência interior, como exer-


cício de certa apatia – a (“não”) + pathos (“emoção, sentimento”) – e indiferença
frente a todas as coisas do mundo que podem trazer inquietação. Em termos
éticos, o vício seria associado às inquietações e paixões, tidas como movimen-
tos irracionais da alma. Por exemplo, tanto o ódio quanto a piedade exagerados
seriam vícios e deveriam ser afastados e anulados. Tanto quanto a dor, deve ser
evitado o prazer, que é julgado uma loucura da alma, um distanciamento em
relação à racionalidade.

Para os estoicos, o homem deveria renunciar a tudo para ficar apenas com
três coisas: o pensamento, a sabedoria e a virtude. Esses seriam os únicos bens
verdadeiros e só eles deveriam ser cultivados. O sábio estoico é aquele que con-
segue fechar-se em si mesmo, permanecendo sereno e apático frente a todas
as coisas do mundo que desviam a atenção e conduzem à infelicidade. Quanto
mais o homem se render a esses desvios, mais infeliz ele se torna.

Não é difícil imaginar por que muitas dessas ideias estoicas foram rapida-
mente assumidas pela ética cristã. Mas essa não é a única influência do estoicis-
mo sobre a filosofia: além dos cristãos, pensadores como Michel de Montaigne
(1533-1592), Pierre Corneille (1606-1684), René Descartes (1596-1650) e Imma-
nuel Kant (1724-1804) fizeram dos estoicos uma boa fonte de reflexão ética.

Epicurismo

Domínio público.
Fundada por Epicuro (341-270 a.C.), depois
de seu contato com as teorias de Platão e Demó-
crito, certamente essa foi, ao lado do estoicismo,
uma das escolas filosóficas helenistas mais mar-
cantes da cultura ocidental.

Em 306 a.C., Epicuro tomou uma decisão bas-


tante curiosa e reveladora: comprou uma pro-
priedade na periferia de Atenas, um jardim onde
criou uma comunidade de amigos (que incluía
mulheres e escravos) e não apenas formulou a
sua filosofia do prazer, como realmente a viveu
com intensidade. Natural da ilha de Samos, ele
chegou a Atenas como estrangeiro e também
como exilado, já que os colonos da ilha foram Epicuro.

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expulsos de suas terras para que cumprissem serviço militar. E tinha verdadeiro
horror a vários dos valores alimentados pelos filósofos anteriores: certo aristo-
cratismo, o elitismo e o conservadorismo em termos de política, mas sobretudo
o espiritualismo dualista à maneira Platão. Seu tempo foi de crise: falta trabalho
para o povo, miséria e pobreza grassando por toda a sociedade, falta de líderes
capazes de administrar essa situação, colônias gregas cheias de gente depor-
tada de Atenas, tropas mercenárias se exaurindo em delitos. Nesse mundo em
ruínas, Epicuro fundou seu Jardim quase como uma colônia de resistência. Sua
única preocupação era a “construção de si”, ou seja, se o mundo ao redor se de-
sintegrava, caberia ao indivíduo buscar uma saída em práticas de fortalecimento
e de cuidado consigo mesmo, pela prática das virtudes.

Mas essa proposta não era vista sem desconfiança. Muitos pensadores o con-
sideraram, na história da filosofia, um filósofo perigoso e subversivo. Talvez por
isso o tenham associado à imagem do porco: por não conseguir olhar para o
céu, esse animal abjeto e gordo é a metáfora mais perfeita do antiplatonismo –
incapazes de contemplar as ideias, Epicuro e seus discípulos teriam se rendido
às imundícies da terra, ao real e ao imediato. Obviamente, trata-se de uma inter-
pretação que, além de explicitar muitos erros interpretativos, está carregada de
preconceitos.

Consta que Epicuro escreveu muito, mas sobraram apenas duas cartas e
alguns fragmentos. Muito do seu pensamento foi sistematizado por seu discípu-
lo Lucrécio, que escreveu a respeito de seu mestre: “Foi um deus, sim, um deus,
aquele que primeiro descobriu essa maneira de viver que agora se chama sa-
bedoria, aquele que por sua arte nos fez escapar de tais tempestades e de tais
noites, para colocar nossa vida numa morada tão calma e tão luminosa” (apud
PESSANHA, 1985, p. 11). Pela força desse testemunho, supõe-se o quanto Epicu-
ro era admirado por seus seguidores.

Para Epicuro, a evidência da verdade ocorre de três formas:

 a sensação, pela qual nossos sentidos recolhem as partículas agarradas à


imagem emitida pelos corpos materiais;

 a antecipação (em grego, prolepsis), com a repetição da sensação se impri-


mindo na memória e permitindo que reconheçamos os objetos, por meio
da formulação de conceitos;

 a afeição, pois o prazer e a dor informam o que deve ser procurado e o que
deve ser evitado.

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Essas seriam as três fontes da certeza.

A física epicurista é muito devedora das ideias do filósofo originário Demócrito


(460-370 a.C.). Toda a matéria seria formada por átomos que, em sua trajetória de
leve inclinação (motivada por vontade, desejo ou mesmo afinidade), chocar-se-
-iam com outros átomos, dando origem à matéria. Para Epicuro, os átomos seriam
infinitos em número, indivisíveis fisicamente, imensamente pequenos e móveis
por si mesmos. Seu movimento seria facilitado pelo vazio, que não causaria qual-
quer tipo de impedimento. Os átomos seriam diferentes quanto ao seu peso abso-
luto (e não apenas relativo, como afirmaram Demócrito e mesmo Leucipo), e por
isso eram imaginados sempre “caindo” paralelamente. Ora, caso permanecessem
assim, os átomos nunca se encontrariam e não dariam origem a todas as coisas.
Por isso, para Epicuro, os átomos sofrem um desvio (em grego, clinamen), que não
é outra coisa senão a possibilidade de arbítrio, o exercício de uma liberdade ori-
ginária que, no caso do homem, manifesta-se na capacidade de decisão sobre os
rumos de sua existência. Trata-se de uma reflexão sobre a autonomia da vontade
que rompe com certo determinismo, que poderia decorrer da teoria atomista.

Ainda que permaneça bastante obscura, essa teoria explicita a importância


da liberdade para o filósofo e, ao mesmo tempo, traduz a sua ideia de simplicida-
de associada à tranquilidade do espírito – que, por compreender racionalmente
o mundo, perderia o medo e se desvencilharia das explicações supersticiosas
que causam tanto dano e perturbação. Ou seja, esta não é uma teoria apenas
física, mas também ética.

A teoria atomista teria um resultado duplo: libertaria o homem do medo dos


deuses e do medo da morte – os dois maiores empecilhos para a felicidade.

Vivendo em serenidade em um além-mundo, os deuses serviriam apenas


de ideal para os sábios, que não deveriam temê-los de maneira medrosa ou
interesseira.

A morte, por sua vez, seria apenas a desintegração dos átomos e, nesse sen-
tido, não existiria enquanto o homem estivesse vivo. Na 31.ª Sentença Vaticana,
pode-se ler que: “Contra tudo o que vem de fora, é possível obter segurança. Mas
por causa da morte nós homens habitamos todos uma cidade sem muralhas”
(EPICURO, 2002, p. 13). Nesse assunto, Epicuro também é autor de uma das frases
mais famosas da história da filosofia: “A morte não é nada em relação a nós, já
que, quando somos, a morte não está presente, e, quando a morte está presen-
te, não somos mais” (EPICURO, 2002, p. 29). Essa “descoberta” é um resultado da
reflexão filosófica, e é ela que traz serenidade no enfrentamento da morte.

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Nas suas Doutrinas e máximas, encontramos as regras para alcançar a felicida-


de, as quais poderiam ser anunciadas em três pensamentos principais:

 confiança na natureza;

 indiferença diante da morte;

 ausência de dor como limite do prazer.

Essa última ideia se articula em torno do termo ataraxia, que traduz o ideal
de serenidade da alma como resultado do domínio sobre as paixões, ou mesmo
sua anulação. Isso poderia ser conquistado, segundo os epicuristas, pela fuga
aos prazeres supérfluos e pela experiência de uma vida simples, já que, quanto
mais o ser humano depende dos agentes exteriores para ser feliz, mais ele corre
o risco de encontrar a dor e a infelicidade. Portanto, a vida simples está associa-
da à ideia de prazer. E aqui, muitas vezes, se resvala um equívoco: a filosofia do
prazer de Epicuro não pode ser associada à realização desmedida de todos os
desejos. Ao contrário, o filósofo do prazer é também o filósofo da simplicidade:
“A quem não basta pouco, nada basta” (EPICURO, 1985, p. 59), afirma ele, que faz
uma distinção entre os prazeres necessários (os quais têm em vista o bem moral)
e os não necessários (que devem ser reprimidos sem dor). Para Epicuro, existem

 prazeres naturais e necessários, que garantem o bem do corpo, como a


nutrição e o sono, que conduzem à felicidade e a tranquilidade do corpo;

 prazeres naturais, mas não necessários (comer muito, por exemplo);

 prazeres que não são nem naturais e nem necessários (a riqueza e a glória,
por exemplo).

Escreveu o filósofo do jardim: “Encontro-me cheio de prazer corpóreo quando


vivo a pão e água e cuspo sobre os prazeres da luxúria, não por si próprios, mas
pelos inconvenientes que os acompanham” (EPICURO, 1985, p. 59), pois, para ele, a
sabedoria consiste em contentar-se com os primeiros e rejeitar os últimos. Assim,
se o prazer é o começo e o fim da vida feliz e o bem supremo, cujo exemplo é a
vida de delícias dos deuses, isso não significa de modo algum que Epicuro pregue
a busca do prazer devasso e desmedido, mas sim daquele que nasce do discerni-
mento refletido. Desse modo, só com a busca controlada do prazer o homem pode
encontrar a ataraxia – que, no limite, não é outra coisa senão o prazer em repouso e
a recusa da perturbação, não poucas vezes associada ao mundo urbano e político.

Isso talvez explique por que ele valoriza tanto a Filosofia: para Epicuro, ela
conduz o ser humano a uma vida refletida e autoanalisada, cujo resultado seria
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a capacidade de retirar do espírito todas as superstições e medos ilegítimos. A


esse respeito, escreveu o filósofo:
Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois
que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da
alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que
diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz. (EPICURO, 1985, p. 49)

É assim, como ferramenta para a “saúde da alma”, que a filosofia se parece com
aquilo que a medicina é no âmbito do corpo: ela deve curar o espírito dos seus
males e garantir o acesso à verdadeira liberdade, porque “todo desejo incômodo
e inquieto se dissolve no amor da verdadeira filosofia” (EPICURO, 1985, p. 49).

Em outro fragmento coletado por Porfírio, encontramos: “Assim como real-


mente a medicina em nada beneficia, se não liberta dos males do corpo, assim
também sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma” (EPICURO,
1985, p. 13). Portanto, o ato médico é visto por Epicuro como uma restauração
de determinado ideal de saúde, frente ao qual a própria medicina se tornaria
dispensável, já que a saúde dá significado à medicina e não a enfermidade, a
cura é a meta da ciência médica. Ou seja, o que dá sentido à medicina não é a
doença, como estado patológico, mas a saúde, como estado ideal e desejável.
A medicina seria útil apenas na medida em que possibilitaria uma intervenção
nos desequilíbrios de “humores” (disposições de ânimo) provocados por agentes
externos. Paradoxalmente, a maior utilidade da medicina é se tornar “inútil”, na
medida em que seja dispensada ou requisitada o mínimo possível.

Assim, é pela higiene que se efetiva a possibilidade de pensar um estado de


saúde que não é afetado pelos agentes externos: a medicina é dispensável na
medida em que existe a higiene, associada a uma felicidade, ao equilíbrio e à tran-
quilidade do corpo. Esse mesmo ideal deveria ser procurado pela filosofia: ela
deveria ser a higiene do espírito em busca de se desvencilhar dos temores que
atrapalham a conquista da serenidade e da felicidade. Em outras palavras: a filo-
sofia aparece como um processo pelo qual se expulsa da alma as perturbações e
as afetações que causam sofrimento e dor. A filosofia de Epicuro é, pois, mais uma
phronesis (sabedoria prática) do que uma philosophia (sabedoria teórica) propria-
mente dita. Trata-se de valorizar a prudência como forma de vida, e não o mero
acúmulo de saberes como expressão de erudição (cf. OLIVEIRA, 2010, p. 65).

Para Epicuro, esse tipo de sabedoria filosófica (a phronesis) seria um caminho


para a superação da decadência da cultura, na qual proliferam almas cultas e,
por isso mesmo, doentias. A organização da sociedade estaria impregnada de
infelicidade, medo e doenças que tornam o próprio epicurismo uma forma de

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profilaxia ou de prevenção, já que essa infelicidade se espalha como uma epide-


mia que atinge toda a população, e o epicurismo da tradição se apresenta como
remédio que busca salvar dessa patologia, por meio da expulsão dos temores
e das aflições. Pelo mecanismo da crise cultural, a peste atinge a todos e faz os
homens morrerem por contágio. Atingida pela peste, resta à cultura o remédio
da filosofia, ou seja, a reflexão e o controle das necessidades e prazeres, a dimi-
nuição das futilidades, a negação dos fatores externos que impedem o cultivo
da higiene interior.

Um rico e intenso fragmento epicurista parece resumir toda a proposta desse


movimento filosófico tão apaixonante – sobre o qual não seria demais afirmar
que parece extremamente adequado aos principais desafios de nosso tempo,
mostrando a magia da filosofia na sua imensa atualidade:
Não são os convites e as festas contínuas, nem a posse de meninos ou de mulheres, nem de
peixes, nem de todas as outras coisas que pode oferecer uma suntuosa mesa, que tornam
agradável a vida, mas sim o sóbrio raciocínio que procura as causas de toda a escolha e de toda
a repulsa e põe de lado as opiniões que motivam que a maior perturbação se apodere dos
espíritos. De todas estas coisas, o princípio e o maior bem é a prudência, da qual nascem todas
as outras virtudes; ela nos ensina que não é possível viver agradavelmente sem sabedoria,
beleza e justiça, nem possuir sabedoria, beleza e justiça sem doçura. As virtudes encontram-se
por sua natureza ligadas à vida feliz, e a vida feliz é inseparável delas. (EPICURO, 1985, p. 60)

Ceticismo e cinismo
Ceticismo é a doutrina segundo a qual o espírito não pode alcançar a verdade,
porque não é possível conhecer nada com certeza. Frente a essa aporia, cabe ao
homem suspender o julgamento e adotar a dúvida como princípio do conheci-
mento. Esse movimento começou com Pirro de Élis (360-270 a.C.), que fora am-
plamente influenciado pelas lutas entre platônicos e aristotélicos, no que tange
à melhor forma de acesso à verdade. Para ele, a abstenção do juízo (epoché) seria
a única conduta possível, e essa atitude levaria a uma indiferença total frente a
todas as opiniões.

Outra escola desse momento é o cinismo, formado por um grupo de filósofos


liderados por Antístenes (437-370 a.C.), um discípulo de Sócrates, certamente
inspirado por uma frase que teria sido dita por Sócrates ao passar pelo mercado
de Atenas: “Vejam de quantas coisas precisa o ateniense para viver.”

O nome desse movimento foi explicado de várias maneiras:

 derivado de kuon, “cão”, em referência ao fato de que seus adeptos viviam


como os cães;
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 derivado do lugar onde se reuniam, o ginásio de Cinosargo;

 em memória de um dos seus adeptos, Diógenes, o Cão (413-323 a.C.).

Diógenes de Sínope ou Diógenes, o Cínico, com também é chamado, talvez tenha


sido o personagem mais ilustre da escola. O historiador da filosofia, Diógenes Laêrtios
(200-250 d.C.), no seu livro Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, afirma que Diógenes
encontrou-se com Antístenes, em Atenas, mas logo foi repelido: Antístenes costumava
tratar mal os seus discípulos. O historiador ainda conta que, certo dia,
[...] quando Antístenes ergueu o bastão contra Diógenes, este ofereceu a cabeça acrescentando:
“golpeia, pois não acharás madeira tão dura que possa fazer-me desistir de conseguir que me
digas alguma coisa, como me parece que é teu dever”. Desde essa ocasião passou a ser seu
ouvinte, e na qualidade de exilado adotou um modo de vida modesto. (LAÊRTIOS, 2008, p. 158)

Além desse episódio, Diógenes Laêrtios relata vários outros nos quais, por
exemplo, Diógenes aparece retrucando Platão. Veja-se, por exemplo, a seguin-
te passagem: “Durante uma recepção oferecida por Platão a amigos vindos da
parte de Dionísios, Diógenes pisou em seus tapetes e disse: ‘Estou pisando na
vanglória de Platão’” (LAÊRTIOS, 2008, p. 159). Outra história relatada por Laêr-
tios dá conta de que Platão teria definido o homem como um animal bípede,
sem asas, e recebera por isso muitos aplausos. Então, “Diógenes depenou um
galo e o levou ao local das aulas, exclamando: ‘Eis o homem de Platão’” (2008, p.
162). Laêrtios ainda relata outra cena curiosa: teriam perguntado a Platão: “Que
espécie de homem pensas que Diógenes é?” e ele teria respondido: “Um Sócra-
tes demente” (LAÊRTIOS, 2008, p. 163).
Domínio público.

Diogenes, 1860. Jean-Léon Gérôme. Diógenes, o Cínico, e sua lanterna, na


barrica em que morava, cercado pelos cães da rua.
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Sobre Diógenes, Platão nos dá algumas pistas ao contar que ele vivia em um
tonel, em mendicância agressiva. Segundo Laêrtios, um dia teria quebrado sua
tigela depois de ver uma criança bebendo com a mão, dizendo: “um menino me
deu uma lição de simplicidade” (LAÊRTIOS, 2008, p. 161).

Outro fato de sua vida, sempre lembrada na história da filosofia, é o fato de


que Diógenes acendeu uma lanterna em plena manhã e dirigiu-se à praça do
mercado, gritando: “procuro o homem”. A cena foi a inspiração para Nietzsche no
famoso fragmento 125, do livro A Gaia Ciência, na qual um louco vai à praça do
mercado, à procura de Deus, e acaba por anunciar o seu assassinato.

Ainda outra passagem da vida de Diógenes é bastante reveladora: conta-se


que, certo dia, Alexandre Magno se apresentou a ele e lhe concedeu a realização
de qualquer pedido. Diógenes teria se limitado a responder: “quero que você
saia do meu Sol”, em referência ao fato de que Alexandre lhe fazia sombra.

Essas passagens são extremamente simbólicas por evocarem tanto uma crí-
tica aos costumes e ao modo de vida dos aristocratas gregos, quanto pelo teste-
munho em torno da simplicidade de vida como meta dos sábios. Para Diógenes,
“aspirar à filosofia também é filosofar” (LAÊRTIOS, 2008, p. 168).

O cinismo prega a autarquia1, já que o homem tem em si tudo de que precisa


para viver, e o sábio deve se bastar a si mesmo. Sua moral rejeita as convenções
sociais e quer voltar à natureza. No geral, seus pensadores alimentam desprezo
pela ciência e afirmam que o único bem do homem é a virtude. Desdenham
das aparências e das reputações, exaltando a vida solitária, pois o sábio deve se
bastar a si mesmo. Como é fácil concluir, essas ideias exerceram grande influên-
cia sobre o estoicismo.

Até onde as histórias sobre a vida de Diógenes são verdadeiras? Isso importa
pouco, se formos capazes de interpretá-las como parte do movimento da filo-
sofia helenista em busca da filosofia como forma de vida. E é isso, justamente, o
que torna essa imagem de um homem vivendo em um tonel, cercado por cães,
algo tão impressionante e enigmático.

Neoplatonismo
Essa escola surgiu a partir da fusão do pensamento de Platão com o misticis-
mo judeu e oriental (movimento que se iniciou no século II e chegou até o século
1
De autárkeia, “autossuficiência”.

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V d.C). Seu representante principal foi Plotino (204-270 d.C.), mas também houve
Porfírio (232-304 d.C.), Jâmblico (245-325 d.C.) e Proclus (412-485 d.C.), cuja influ-
ência foi considerável sobre Santo Agostinho (354-430 d.C.) e alguns dos primei-
ros padres (pais) da Igreja, que são os primeiros filósofos cristãos. Nesse sentido,
essa escola serve de ponte direta entre a filosofia grega e a cristã.

Domínio público.
Plotino.

Plotino teve muita influência oriental – acompanhou as lições de Amônio


Saccas (175-242 d.C.), fundador do neoplatonismo em Alexandria – e em 244 co-
meçou a dar aulas em Roma, com grande sucesso. Escreveu Enéadas, organizada
por seu aluno Porfírio (a partir de 54 tratados). Na sua obra, aparecem as famosas
hipóstases (substâncias) fundamentais, que seriam três:

 acima de tudo o Um, que faz emanar as demais hipóstases de sua abun-
dância – é o Proto-Pai (primeiro);

 depois vem o logos, o intelecto que se conhece a si mesmo e no qual as


ideias formam uma entidade única, que se autodescobre percorrendo-as,
é “um-múltiplo”;

 finalmente, vem a Alma, que, preocupada com a ação, nunca fica em re-
pouso, lembra-se das coisas do alto para não se extraviar (por conversão,
ela pode vencer as paixões e o corpo e fazer com que a vertente racional
suplante a irracional), é imortal e pode se purificar por meio das vidas su-
cessivas.

Segundo Porfírio, Plotino sentia vergonha de estar em um corpo que seria a


forma como a alma se perde, já que sua busca não deveria ser dirigida ao mundo
terreno-corporal, mas à região inteligível na qual habita a Alma universal.
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Essas ideias são suficientes para que adivinhemos a grande influência que
essa escola vai ter sobre a filosofia cristã, na forma como ela dá uma vestimenta
místico-religiosa às ideias platônicas – algo que será retomado mais tarde por
Santo Agostinho.

Textos complementares
Sobre a Dor e o Prazer (fragmento)
(EPICURO, 1985, p. 57)

Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos


aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como
creem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não
nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do
corpo e de perturbações da alma.

[...]

A imediata desaparição de uma grande dor é o que produz insuperável


alegria: esta é a essência do bem, se o entendemos direito, e depois nos
mantemos firmes e não giramos em vão falando do bem. E como o prazer
é o primeiro e inato bem, é igualmente por esse motivo que não escolhe-
mos qualquer prazer; antes, pomos de lado muitos prazeres quando, como
resultado deles, sofremos maiores pesares; e igualmente preferimos muitas
dores aos prazeres quando, depois de longamente havermos suportado as
dores, gozamos de prazeres maiores. Por conseguinte, cada um dos prazeres
possui por natureza um bem próprio, mas não deve escolher-se cada um
deles; do mesmo modo, cada dor é um mal, mas nem sempre se deve evitá-
-las. Convém, então, valorizar todas as coisas de acordo com a medida e o
critério dos benefícios e dos prejuízos, pois que, segundo as ocasiões, o bem
nos produz o mal e, em troca, o mal, o bem.

Consolação a minha Mãe Hélvia (fragmento)


(SÊNECA, 1985, p. 371)

Acanhada é a alma, que as coisas terrenas deleitam; e é preciso arrancá-la


dessas e levá-la para as que em toda parte aparecem igualmente e igual-

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mente resplandecem. Devemos refletir que esses bens terrenos são obstácu-
los aos verdadeiros bens por causa das opiniões falsas e mentirosas: quanto
mais compridos pórticos se constroem, quanto mais altas torres se levantam,
quanto mais amplos caminhos se abrem, quanto mais profundas se esca-
vam as grutas estivas, quanto mais monumentais se erguem os tetos das
salas de jantar, tanto mais todas essas coisas nos esconderão o céu. Embora
o acaso te tenha atirado em tal lugar, em que a mais luxuosa habitação seja
uma choupana, terias na verdade uma alma vil e serias um mesquinho con-
fortador de ti mesmo, se te resignasses a isso só, lembrando a choupana
de Rômulo. Deves antes dizer: “Esta humilde choupana hospeda virtudes?
E então é mais linda que todos os templos, pois que nela estão a justiça, a
moderação, a sabedoria, a piedade, a regra para justamente cumprir todos
os deveres, a ciência das coisas divinas e humanas. Lugar nenhum é angusto,
se pode conter tantas e tão grandes virtudes, nenhum exílio é tão grave, se
nele podemos ir com aquelas virtudes”.

Da Tranquilidade da Alma (fragmento)


(SÊNECA, 1985, p. 414)

Em seguida, a primeira coisa a evitar é desperdiçar nosso esforço ou em


objetos inúteis ou de maneira inútil: quero dizer, imaginar ambições irreali-
záveis ou reparar um pouco tarde, uma vez satisfeitos nossos desejos, que
nos esforçamos sem proveito. Em outras palavras, evitemos de um lado os
esforços estéreis e sem resultado, e de outro lado os resultados despropor-
cionados ao esforço. Pois é quase certo que nosso humor se entristeça, seja
depois de um insucesso, seja depois de um sucesso do qual nos temos de
envergonhar. É preciso privar-se da agitação desregrada, à qual se entrega a
maioria dos homens, que vemos precipitarem-se alternativamente nas casas
particulares, nos teatros e nos lugares públicos: sua mania de se introme-
ter nos negócios dos outros lhes dá um ar de grande atividade. Pergunta a
algum deles, quando sai de casa: “Aonde vais? Qual é teu destino?” Ele res-
ponderá: “Por Hércules! Não sei nada, mas eu verei gente e encontrarei qual-
quer coisa para fazer.” Eles vagam assim ao acaso, mendigando ocupações;
e que fazem? Não o que resolveram fazer, mas o que a sorte dos encontros
lhes oferecer. Suas saídas absurdas e inúteis lembram as idas e vindas das
formigas ao longo das árvores, quando elas sobem até o alto do tronco e
tornam a descer até embaixo, para nada. Quantas pessoas levam uma exis-

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tência semelhante, que se chamaria muito justamente preguiça agitada. Eis


que correm como a um incêndio: ter-se-ia pena deles, ao vê-los atropelarem
os transeuntes, precipitarem-se e precipitarem os outros; entretanto, para
onde correm eles? Vão saudar qualquer personagem, que não lhes respon-
derá ao cumprimento, acompanhar o séquito fúnebre de alguém que nem
conheciam, assistir ao processo de qualquer profissional das núpcias, ou es-
coltar uma liteira, que por vezes eles mesmos carregam. Quando em segui-
da voltam para casa moídos por uma fadiga inútil, protestam que nem eles
mesmos sabiam por que tinham saído, nem para onde tinham ido; e no dia
seguinte recomeçarão a mesma série de marchas desordenadas.

Meditações (fragmento)
(MARCO AURÉLIO, 1985, p. 478)

1. De Vero, meu avô, a honradez e serenidade. 2. Da reputação e memória


de meu genitor, a discrição e varonilidade. 3. De minha mãe, a religiosidade,
a generosidade e a abstenção não só de praticar o mal mas até de se demorar
em semelhante pensamento; ainda, a singeleza do passadio e a distância do
teor de vida dos ricos. 4. De meu bisavô, o ter em casa mestres excelentes, em
vez de frequentar escolas públicas, e compreender que a instrução requer
se despenda largamente. 5. De meu aio, o não me haver tornado partidário
dos Verdes ou dos Azuis, nem dos Palmulários ou dos Escutários; o aturar
fadigas e precisar de pouco; o executar eu próprio minhas tarefas, o não ser
intrometido e a repulsa a intrigas. 6. De Diogneto, o descaso das futilidades;
o não crer no que dizem os milagreiros e charlatães sobre encantamentos,
expulsão de demônios e quejandas imposturas; o não criar codornizes nem
me entregar a paixões dessa espécie; o suportar franquezas; o familiarizar-
-me com a Filosofia e ouvir as lições, primeiramente, de Báquio, depois, de
Tândasis e Marciano; o ter escrito diálogos na infância; o ter desejado o catre,
o pelego e todas as outras simplicidades da educação helênica.

Dica de estudo
LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2. ed. Brasília:
UnB, 2008.

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Atividades
1. Elenque as principais características da filosofia helenista, articulando-as
com o cenário histórico-político-social de então.

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2. Elenque as principais características do estoicismo.

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3. Quais as principais características do movimento filosófico inaugurado por


Epicuro de Samos?

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Gabarito
1. A filosofia helenística compreende o período que vai desde o século III até
o século I a.C., mas sua influência se estende até os primeiros séculos da Era
Cristã, seja pelo movimento conhecido como neoplatonismo, seja pelos pen-
sadores romanos que nela se inspiraram – dentre os quais se destacam Sêne-
ca e Marco Aurélio. Sua característica principal é o abandono da tematização
da pólis grega, e a alimentação de certa descrença diante dos ideais expli-
citados pela filosofia platônica e aristotélica. Consequentemente, a filosofia
helenística volta-se para uma reflexão em torno da melhor forma de vida,
que deveria ser buscada pelo indivíduo, pelo cultivo de si e a prática das vir-
tudes. Em termos históricos, políticos e sociais, essa descrença se explica pela
tomada da Grécia por parte de Filipe II, na Batalha de Queroneia (338 a.C.),
quando as cidades gregas perderam não só muitos soldados, como também
a grande experiência que vinham realizando até então: a invasão de Filipe II
pôs fim à experiência democrática e ao florescimento cultural conquistado
pela Grécia. Com a morte de Filipe II, seu filho, Alexandre, assumiu o trono
e deu prosseguimento à expansão militar dos macedônios, conquistando o
Egito, a Ásia Menor, a Mesopotâmia e a região das Índias, até o vale do Rio
Indo.

2. Essa escola filosófica é marcada por um retorno à natureza como fonte do


bem, já que para os seus integrantes o universo é entendido como governa-
do pelo logos divino (associado à imagem do fogo), donde todas as coisas
surgem de maneira ordenada. Para os estoicos, a alma faz parte do mundo,
já que Deus e Mundo formariam uma mesma realidade. Isso fez com que tais
pensadores estivessem empenhados na busca da afirmação da virtude e na
procura da melhor forma para alcançar a felicidade: como a natureza é logos
(princípio ordenado e ordenador), então se deve viver conforme a razão, e
isso significa que o homem deve se submeter à força divino-natural. Guiado
por esse princípio racional, o sábio deve sempre recusar as paixões e buscar a
paz da alma, que está associada ao princípio da ataraxia (palavra grega usada
para afirmar a necessidade de ausência de perturbações). Essa seria a grande
virtude do sábio e nela residiria a felicidade, nessa capacidade de cultivar vir-
tudes como a libertação de toda perturbação, a conquista da tranquilidade
da alma e independência interior, o exercício de certa apatia – a (“não”) + pa-
thos “emoção, sentimento” – e indiferença frente a todas as coisas do mundo
que podem trazer inquietação. Em termos éticos, o vício será associado às
inquietações e paixões, tidas como movimentos irracionais da alma.
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Como devemos viver? (Helenistas)

3. A marca da filosofia epicurista é a busca pelo prazer e a recusa da dor, es-


tando esta associada à dependência humana frente a agentes externos, que
causam medo e perturbação. A filosofia seria o caminho pelo qual cada indi-
víduo faria a higiene de si mesmo, retirando aquilo que atrapalha. Sua ética
está baseada em uma física atomista, herdada de Demócrito, e a evidência
da verdade se daria pela sensação, a antecipação e a afeição. O desvio dos
átomos seria um princípio que remeteria à ideia de uma liberdade originária,
que ajuda o homem a escolher o seu próprio destino. Caberia à filosofia li-
bertar o homem do medo dos deuses e do medo da morte – os dois maiores
empecilhos para a felicidade. Vivendo em serenidade em um além-mundo,
os deuses serviriam apenas de ideal para os sábios, que não deveriam temê-
-los de forma medrosa ou interesseira. A morte, por sua vez, seria apenas a
desintegração dos átomos e, nesse sentido, não existiria enquanto o homem
estivesse vivo.

Referências
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Jorge Zahar Editor, 1993.

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Como devemos viver? (Helenistas)

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filosofia como metáfora médica. Disponível em: <www.filosofiacapital.org/ojs-2
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29 ago. 2010.

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PESSANHA, José Américo Motta. Introdução geral. In: EPICURO et al. Antologia
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SÊNECA. Consolação a minha mãe Hélvia. In: EPICURO et al. Antologia de Textos/
Da Natureza/Da República/Consolação a minha Mãe Hélvia/Da Tranquilida-
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São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção Os Pensadores).

_____. Da tranquilidade da alma. In: EPICURO et al. Antologia de Textos/Da Na-


tureza/Da República/Consolação a minha Mãe Hélvia/Da Tranquilidade da
Alma/Medeia/Apocoloquintose do Divino Cláudio/Meditações. 3. ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção Os Pensadores).

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É possível conciliar fé e razão?
(Patrística e escolástica)

E finalmente sobre a justiça, o que diremos ser ela,


senão a virtude pela qual damos a cada um o que é seu?

Santo Agostinho

A partir do século I de nossa era, uma grande novidade mudou os


rumos da cultura ocidental: o nascimento de Jesus Cristo e a consequente
instauração do cristianismo como religião. Esse evento trouxe vários desa-
fios para a filosofia, tal como ela vinha sendo praticada no mundo grego.
Com os novos problemas doutrinários e filosóficos, passou-se a exigir que
a Filosofia auxiliasse para consolidar a nova religião, contribuindo seja para
a afirmação de suas doutrinas, seja para a sua tarefa de evangelização.

Já nos primeiros anos, o grande desafio do cristianismo foi a organiza-


ção dos escritos e dos textos que formariam o chamado Novo Testamento
(parte da Bíblia que conta a história de Cristo e do cristianismo nascen-
te). Tratava-se de selecionar os textos, organizar as cartas enviadas pelos
apóstolos às recém-criadas comunidades cristãs (com destaque para as
cartas escritas por São Paulo). Esse trabalho de organização, seleção e aná-
lise crítica de textos durou pelo menos três séculos, e o cânon1 do Novo
Testamento, assim como o conhecemos em nossos dias, só foi fixado no
ano 367. É bom lembrar que, mesmo depois dessa fixação, vários textos
considerados apócrifos2 continuaram despertando interesse e desafiando
os especialistas.

1
Lista de textos ou livros da Bíblia que se consideram escritos por inspiração de Deus. Etimologicamente, a palavra cânon remete à
“régua de medir”, algo que ajuda a catalogar.
2
Etimologicamente, apócrifo significa “oculto”. O termo é usado desde o século V para designar os antigos documentos judaicos
que não eram considerados inspirados por Deus, e por isso não entraram no cânon dos livros sagrados que compõem a Bíblia, ainda que
contenham relatos sobre a vida de Jesus e das primeiras comunidades cristãs.

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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

Divulgação.
Cartaz de O Nome da Rosa, dirigido por Jean-Jacques
Annaud e estrelado por Sean Connery. Baseado em
romance de Umberto Eco, esse filme recria o clima das
disputas entre os escolásticos.

Outros dois desafios passaram a exigir a contribuição da Filosofia nesse mo-


mento: a conciliação das verdades expressas no Antigo Testamento com as no-
vidades trazidas pelo cristianismo, e a defesa da nova fé diante das acusações
feitas pelos adversários – fossem os hereges e os pagãos, fossem os próprios
judeus. Assim, pode-se afirmar que a reflexão filosófica teve um papel relevante
para a formulação das verdades da fé, nesse momento histórico.

Frente a esses desafios, a Filosofia grega deu lugar à Filosofia cristã, mas isso
não ocorreu meramente na forma de uma ruptura, pois, ao contrário, os pensa-
dores gregos serviram de fonte primeira para essa tarefa. Basta que lembremos
alguns indícios dessa relação: em suas numerosas viagens pela Grécia, São Paulo
se encontrou com pensadores e filósofos helênicos; a filosofia helenista (com es-
pecial destaque para o estoicismo e para o neoplatonismo) teve uma influência
significativa sobre pensadores cristãos; os dois maiores nomes da Filosofia cristã
(Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) se deixaram influenciar pelos maiores
nomes da Filosofia grega (Platão e Aristóteles).
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Assim, o filosofar nos limites impostos pela fé cristã pode ser dividido em três
momentos:

 período dos chamados padres apostólicos do século I, marcado por uma


intensa reflexão moral e ascética, ainda muito influenciados pela mensa-
gem dos apóstolos de Cristo;

 período dos chamados padres apologistas do século II, que tinham como de-
safio a defesa do cristianismo – nesse momento, muitas vezes, os filósofos
eram os adversários e, nesse sentido, os debates foram ganhando um tom
mais filosófico, ou seja, recorria-se à filosofia como arma para a defesa da fé;

 período dos padres da Igreja, ou melhor, da Patrística, que se inicia no sé-


culo III e vai até o século VIII, quando, segundo os historiadores, começaria
a Idade Média.

Esse terceiro momento foi o mais frutífero em termos de reflexão filosófica,


pelo fato de o elemento filosófico (com especial destaque para a filosofia platô-
nica) nele ter um papel preponderante na argumentação doutrinária da nova
religião, remetendo a temas espinhosos como o da Trindade de Deus, a Encar-
nação, a relação entre liberdade e graça, e entre fé e razão. Esses grandes temas
do cristianismo nascente exigiram, por certo, grande argumentação filosófica e
deram origem àquilo que se pode chamar de Filosofia Cristã. Certamente, um
dos textos mais importantes para isso foi o prólogo do Evangelho de São João,
cuja afirmação de que “no princípio era o Verbo” (1:1) e “o Verbo se fez carne”
(1:14) dava ensejo para uma ampla reflexão a respeito do logos (“verbo, palavra,
discurso racional”) e sua relação com Deus e, consequentemente, com a fé.

Quando, no ano 313, o imperador Constantino promulgou o chamado Edito


de Milão – no qual garantia a liberdade de culto, dando fim às sangrentas per-
seguições contra os cristãos –, o cristianismo ganhou um grande impulso e du-
rante os dois séculos seguintes se manteve um longo e frutuoso debate teórico,
sempre concluído nos concílios da Igreja, nos quais o dogma cristão foi sendo
constituído: Niceia (325), Éfeso (431) e Calcedônia (451) são os principais.

Santo Agostinho:
fé e razão como garantias da felicidade
No chamado Ocidente Latino, pouco se falou de Filosofia até que apareceu
Santo Agostinho. Nascido em Tagasta, na África, no ano de 354, Agostinho era
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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

filho de Patrício, um pequeno proprietário de terra que se mantinha ligado ao


paganismo, e de Mônica, uma fervorosa adepta do cristianismo, que viria a se
tornar santa católica. Desde jovem, Agostinho teve muita influência dos auto-
res latinos (em especial Cícero, cuja obra Hortênsio o teria convertido à filosofia,
e na qual se manifesta a concepção típica do helenismo: a filosofia como arte
de viver, que traz a felicidade3) e pouca coisa conhecia dos autores gregos. Pro-
fessor, ele havia trabalhado em Tagasta, Cartago, Roma e posteriormente Milão,
onde se converteu ao cristianismo, depois de ter se deixado seduzir pela vida “da
carne” e do pecado, pelas comodidades mundanas e pelas teorias maniqueístas4.
Em Milão, Agostinho conheceu discípulos de Plotino, o principal autor do neo-
platonismo, teoria que lhe permitiria realizar uma conexão marcante entre a filo-
sofia grega e a religião cristã. Sobre esse encontro com a filosofia neoplatônica,
escreve o filósofo na sua obra autobiográfica Confissões, em que escreve como
se estivesse conversando com Deus:
Querendo Vós mostrar-me como “resistis aos soberbos e dais graças aos humildes” e quão
grande seja a misericórdia com que ensinastes aos homens o caminho da humildade, por “se
ter feito carne o vosso Verbo e ter habitado entre os homens”; deparaste-me por intermédio de
um certo homem, intumescido por monstruoso orgulho, alguns livros platônicos, traduzidos
do grego ao latim. (AGOSTINHO, 1999, p. 183)

Foi o neoplatonismo de Plotino e de Porfírio que ajudaram Agostinho a en-


contrar o mundo da transcendência, uma realidade suprassensível e metafísica
que ecoa em toda a sua obra:
Instigado por esses escritos [neoplatônicos] a retornar a mim mesmo, entrei no íntimo do meu
coração sob tua guia, e o consegui, porque tu te fizeste meu auxílio. Entrei e, com os olhos da
alma, acima destes meus olhos e acima de minha própria inteligência, vi uma luz imutável. Não
era essa luz vulgar e evidente a todos com os olhos da carne, ou uma luz mais forte do mesmo
gênero. Era como se brilhasse muito mais clara e tudo abrangesse com sua grandeza. Não era
uma luz como esta, mas totalmente diferente das luzes desta terra. Também não estava acima
de minha mente como o óleo sobre a água nem como o céu sobre a terra, mas acima de mim
porque ela me fez, e eu abaixo porque fui feito por ela. Quem conhece a verdade conhece esta
luz, e quem a conhece conhece a eternidade. O amor a conhece. Ó eterna verdade, verdadeira
caridade e querida eternidade! És o meu Deus, por ti suspiro dia e noite. (AGOSTINHO, 1986, p.
175, grifo do autor)

Foi também em Milão que Agostinho se encontrou com Santo Ambrósio


(340-397), que era o bispo local, e teve papel decisivo sobre a sua conversão, em
agosto de 386. Para além de um primeiro interesse pela via da retórica e da elo-
quência, Ambrósio logo despertou o interesse da leitura da Bíblia em Agostinho,
3
Sobre isso, escreve Agostinho: “Seguindo o programa normal do curso, chegou-me às mãos o livro de um tal Cícero, cuja linguagem – mas não o
coração – é quase unanimemente admirada. O livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer que ele mudou os meus sentimen-
tos e o modo de me dirigir a ti; ele transformou as minhas aspirações e desejos” (AGOSTINHO, 1986, p. 63).
4
O maniqueísmo foi uma filosofia, seita ou movimento, que pregava uma visão radicalmente dualista da realidade, acreditando que existe o Bem
(associado ao que é espiritual) e o Mal (aquilo que é material). Seu nome provém do profeta persa Mani (ou Manés), que viveu no século III. Os
maniqueístas não professavam a fé cristã porque não acreditavam que Deus, sendo espírito, pudesse se encarnar em um corpo humano, que seria
mau por si mesmo.

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que até então a considerava como ininteligível e imensamente pobre em termos


estilísticos e retóricos, se comparado a Cícero, por exemplo:
O que senti nessa época, diante das Escrituras, foi bem diferente do que agora afirmo. Tive a
impressão de uma obra indigna de ser comparada à majestade de Cícero. Meu orgulho não
podia suportar aquela simplicidade de estilo. Por outro lado, a agudeza de minha inteligência
não conseguia penetrar-lhe o íntimo. Tal obra foi feita para acompanhar o crescimento dos
pequenos, mas eu desdenhava fazer-me pequeno, e, no meu orgulho, sentia-me grande.
(AGOSTINHO, 1986, p. 65)

Depois da morte de sua mãe, Mônica, em 387, em Óstia, Agostinho ficou de-
solado e organizou uma espécie de comunidade monástica, em que pretendia
viver o resto de seus dias. Mas nem tudo saiu como previsto: em 391, ele foi
escolhido pela comunidade de Hipona como presbítero, logo depois bispo co-
adjutor, e então bispo, permanecendo por mais de 40 anos em intensas ativida-
des administrativas e pastorais. Morreu em 430, logo depois de Hipona ter sido
invadida e saqueada pelos chamados bárbaros.

Domínio público.

Santo Agostinho. Sandro Botticelli. Afresco.

Certamente, não é exagero afirmar que Agostinho foi o maior filósofo do


mundo patrístico, tendo deixado para a cultura ocidental uma obra de relevân-
cia única, na qual se destacam numerosos escritos, como A Vida Feliz, Os Soliló-
quios, A Cidade de Deus, Confissões, O Livre-Arbítrio, entre tantas outras.

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Agostinho foi um exemplo do modo de fazer filosofia desse tempo: filosofar


na fé significava usar os esquemas, a argumentação e o rigor filosóficos para ana-
lisar e fortalecer os desafios da fé. Para ele, a fé não deveria simplesmente subs-
tituir ou anular a razão ou a inteligência humana, mas, ao contrário, estimular a
inteligência e promover ainda mais a razão. Pode-se afirmar que, para o filósofo,
sem razão e pensamento simplesmente não haveria fé. A inteligência humana,
dada por Deus e bem usada pelo ser humano, poderia contribuir em muito para
clarificar a fé. Para esse autor, fé e razão não são contrárias, mas complementares.
Ao que parece, essa posição está amparada na tradição bíblica, por remeter ao
livro do profeta Isaías, em que se lê que “se não tiverdes a fé, não podereis en-
tender” (Is 7:9). Agostinho assume esse lema como seu, acreditando que a inteli-
gência é um resultado da crença, uma recompensa da fé. Essa posição é bastante
contundente e sua raiz mais primordial remete à influência do pensamento de
Platão e dos neoplatonistas: a busca pela verdade é a principal tarefa da filosofia
e é obra da inteligência, mas fora da autoridade de Cristo não haveria nenhuma
verdade, já que ele é o caminho para Deus, que é a Verdade plena. Pela fé, o
homem teria acesso à revelação dessa verdade, que é Deus.

Domínio público.

Folha de rosto de uma edição espanhola das Confis-


sões, de Santo Agostinho, publicada em 1654, com
tradução do padre jesuíta Pedro de Ribadeneira (1526-
-1611),
Este material importante
é parte escritor
integrante e historiador
do acervo do IESDEda Igreja.
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Agostinho também recolocou o problema antropológico nos trilhos cris-


tãos. Para ele, não basta conhecer o cosmo: é preciso que o homem conheça a
si mesmo como o grande mistério, cuja ascensão filosófica não se dá pela via da
pergunta abstrata sobre a essência humana, mas sobre o eu interior, a pessoa ou
o indivíduo. Agostinho expressou de maneira contundente a pergunta sobre si
mesmo.

Segundo o filósofo, o homem, como ser cognoscente, é possuidor de uma


alma que habita e usa o corpo pela via da sensação, que deve ser guiada pela
razão para que a verdade possa ser alcançada. Como a sensação pertence total-
mente à alma, sendo que os objetos apenas atingem o corpo, o conhecimento
sensível está na alma, sendo já algo espiritual; e o corpo é o objeto da sensação.
Quando um corpo é atingido por um objeto, a alma percebe essa sensação de
maneira ativa e como que causa a sensação, usando-se do corpo e dos sentidos.
Em O Livre-Arbítrio, podemos ler a esse respeito:
Ag. Pois bem! E a respeito das formas corporais, enquanto grandes ou pequenas, quadradas
ou redondas, e de outras propriedades semelhantes, não temos também a sensação delas
pelo tato, como pela vista, de modo a não podermos atribuir como próprio a um único desses
sentidos, mas a ambos? Ev. Entendo que seja assim. (AGOSTINHO, 1995, p. 82)

Desse modo, para o filósofo de Hipona, o “homem é uma unidade substancial


de corpo e alma. Não é infrequente afirmar-se que, para Agostinho, a essência
do homem é uma alma que se utiliza de um corpo” (BOEHNER; GILSON, 1985, p.
180). Além dos sentidos exteriores (que captam o mundo), haveria também um
sentido interior, no qual a razão trabalha de maneira ativa. O sentido interior não
percebe apenas os objetos, como fazem os sentidos exteriores, mas também
percebe a própria sensação que os objetos causam. E cabe à razão julgar, hie-
rarquizar e organizar essas sensações. Por isso, o pensar passa a ter um papel
preponderante na antropologia agostiniana.

Nesses termos, a razão é tida como a capacidade superior do homem, aquilo


que o distingue dos demais animais:
[...] existe alguma coisa que, não existindo na alma deles, existe na nossa, e por isso acham-se
submetidos a nós. Ora, é claro para todos que essa faculdade não é um puro nada, nem pouca
coisa. E que outro nome lhe daríamos mais correto do que o de razão? (AGOSTINHO, 1995, p. 44)

A razão é a capacidade da alma humana para dominar a si mesma, impor


limites aos sentidos, atuar sobre a animalidade e a corporalidade. E também é
um meio para provar a existência de Deus, já que abre no homem o caminho
para a revelação, por meio da fé. A razão dá os argumentos que fortalecem a fé,
portanto. E, assim sendo, é dessa atividade da razão que Agostinho faz derivar a

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sua moral: “quando a razão, a mente ou o espírito governa os movimentos irra-


cionais da alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que preci-
samente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo
a lei eterna” (AGOSTINHO, 1995, p. 47). Ou seja, é pela razão que o homem se
abre para a “lei eterna”, aquela que vem de Deus, que é a verdade e conduz para
o bem.

A verdade, dessa maneira, está no próprio homem, em seu interior, onde ele
mesmo poderá encontrar-se com Deus. É isso o que faz Agostinho concluir: “Tu
estavas mais dentro de mim do que a minha parte mais íntima” (AGOSTINHO,
1986, p. 68). A verdade é Deus, mas a sua procura passa, necessariamente, pelo
próprio homem, já que Ele habita o íntimo humano. Esse é um ponto central da
tese agostiniana:
Para Agostinho a Verdade suprema coincide com Deus: para alcançar Deus e encontrar,
portanto, a Verdade, não devemos nos dirigir para o exterior, mas devemos entrar de novo em
nós mesmos, e procurar em nossa interioridade: aí habita a Verdade, em nossa alma, que é um
reflexo e uma imagem de Deus, a própria luz da razão. (REALE; ANTISERI, 2005, p. 106)

É a essência do homem, então, que o conduz à verdade. E viver conforme a


verdade passa a ser o caminho para a vida moral, que não é outra coisa senão a
contemplação de Deus. A vida segundo a virtude e guiada pela prática de boas
obras está amparada. Mas isso não é tudo: para Agostinho, o amor é o centro
que conduz a vontade humana para o caminho do bem. O filósofo de Hipona
não se satisfaz com o lema socrático-platônico pelo qual bastaria conhecer o
bem para agir em conformidade com ele – seria necessário, afirma Agostinho,
além disso, deixar-se levar pelo amor, já que as vontades estão constantemente
em atrito:
Desse modo, tinha duas vontades, uma antiga, outra nova, uma carnal, outra espiritual, que se
combatiam mutuamente; e essa rivalidade me dilacerava o espírito. Portanto, eu compreendia
por experiência própria o que havia lido: que a carne tem desejos contrários ao espírito, e o
espírito tem desejos contrários à carne. Sentia claramente os dois desejos, reconhecendo-me
mais naquele que interiormente aprovava do que naquele que desaprovava. Com efeito, neste
último caso, já não era eu que vivia, pois, em grande parte, o sofria mais contra a vontade, do
que o praticava deliberadamente. Contudo, por minha culpa, o hábito tornou-se mais forte
contra mim, pois eu voluntariamente chegara aonde não queria. (AGOSTINHO, 1973, p. 157)

Ou seja, não basta conhecer (vontade espiritual) para praticar. As vontades


em atrito impedem essa ligação direta entre conhecimento e ação. Por isso, só
seguindo a Deus, que é senhor das vontades, o homem chega ao bem. Seguir a
Deus significa amá-lo: o amor a Deus e aos irmãos é o caminho, portanto, para o
bem. Amar é amar a si mesmo e também aos demais seres humanos, segundo o
juízo de Deus. Esse tipo de amor é chamado de charitas. É ele que inspira a boa

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vontade humana. Ao propor-se a viver conforme a vontade de Deus, o homem


alcança a boa vontade, que depende da prática de quatro virtudes:
Ag. Considera, agora, se a prudência não te parece o conhecimento daquelas coisas que
precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas. Ev. Parece-me que assim é. Ag. Pois bem!
E a força, não é ela aquela disposição da alma pela qual nós desprezamos todos os dissabores
e a perda das coisas que não estão sob nosso poder? Ev. Assim o penso. Ag. E quanto à
temperança, é ela a disposição que reprime e retém o nosso apetite longe daquelas coisas que
constituem uma vergonha o ser desejadas? Ou acaso és de outra opinião? Ev. Pelo contrário,
penso como dizes. Ag. E finalmente sobre a justiça, o que diremos ser ela, senão a virtude pela
qual damos a cada um o que é seu? Ev. Conforme minha opinião é essa a definição da justiça e
nenhuma outra. (AGOSTINHO, 1995, p. 57-58)

Assim, a síntese da vida moral está na prática dessas quatro virtudes (prudên-
cia, força, temperança e justiça) e no abandono dos prazeres, honras e riquezas
terrenas. Esse é o caminho pelo qual a razão, aliada à fé, passa a representar a
possibilidade de alcance da verdadeira felicidade, que não chega a não ser pela
prática dessas virtudes e a recusa da vontade pervertida:
O inimigo dominava-me o querer, e forjava uma cadeia que me mantinha preso. Da vontade
pervertida nasce a paixão; servindo à paixão, adquirisse o hábito, e, não resistindo ao hábito,
cria-se a necessidade. Com essa espécie de anéis entrelaçados (por isso falei de cadeia),
mantinha-me ligado à dura escravidão. A nova vontade apenas despontada, a vontade de
servir-te e de gozar-te, ó meu Deus, única felicidade segura, ainda não era capaz de vencer a
vontade anterior, fortalecida pelo tempo. (AGOSTINHO, 1986, p. 199-200)

E esse é o fim último da Filosofia, o seu porto de chegada, representado pela


certeza dada ao homem pela fé em Deus. É na vida conforme a Verdade (que é
Deus) que o homem pode alcançar a verdadeira Sabedoria:
Se fosse possível atingir o porto da Filosofia – único ponto de acesso à região e à terra firme
da vida feliz –, numa caminhada exclusivamente dirigida pela razão e conduzida pela vontade,
talvez não fosse temerário afirmar, ó magnânimo e ilustre Teodoro, que o número dos homens
a lá chegar seria ainda mais diminuto do que aqueles que atualmente aportam a esse porto, já
tão raros e escassos se apresentam eles. Com efeito, estamos lançados neste mundo, como em
mar tempestuoso, e por assim dizer, ao acaso e à aventura – seja por Deus, seja pela natureza,
seja pelo destino (necessitas), seja ainda por nossa própria vontade. Sucessivamente, por
algumas dessas conjunturas, ou talvez, por todas elas reunidas. A questão é muito obscura,
mas tu já resolveste desvendá-la. Poucos saberiam qual o caminho do retorno ou que esforços
empenhar, caso não se levantasse alguma tempestade – considerada pelos insensatos como
calamitosa –, para dirigi-lo à terra de suas ardentes aspirações. Pois são navegantes ignorantes
e erradios. (AGOSTINHO, 1998, p. 117)

Fé e razão na escolástica
A partir do século VIII e até o século XIII, as escolas medievais centralizaram a
reflexão teológica e filosófica. Mas foi já no século VI que o imperador Justiniano
decretou o fechamento de todas as escolas pagãs, que foram logo substituídas

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pelas escolas monacais, episcopais e palatinas: as primeiras eram anexas às aba-


dias; as segundas, às catedrais; e as terceiras, à corte (palatium).

As duas primeiras logo se transformaram no lugar de refúgio da cultura, prin-


cipalmente nos momentos de invasões bárbaras, lugar onde os monges trans-
creviam e traduziam os clássicos, davam a instrução elementar para os futuros
sacerdotes ou para aqueles que assumiriam algum cargo público.

Entretanto, foi a escola palatina que, segundo Reale e Antiseri (2007, p. 478),
mais contribuiu para o “redespertar da cultura”. Fundada por Carlos Magno, ela
foi “confiada em 781 a Alcuíno de York”, que a organizou em três graus:

 estudo básico do latim vulgar para compreensão da Bíblia e demais textos


litúrgicos;

 estudo das sete artes liberais (trívio: gramática, retórica e dialética; quatrí-
vio: aritmética, geometria, astronomia e música);

 estudo aprofundado da Bíblia.

Para implementar seu projeto, Alcuíno escreveu vários manuais para o ensino
das artes liberais.

No século XIII, a tarefa da reflexão passou a ser canalizada pela universida-


de, que já não era apenas um lugar de estudos, mas sobretudo uma associação
corporativa, quase como um sindicato, que surgiu primeiro em Bolonha (como
uma corporação estudantil) e Paris (corporação de mestres e estudantes). Criada
a partir da força de uma escola episcopal que, desde o século anterior, existia à
sombra da Catedral de Notre-Dame, a universidade de Paris logo ganhou muitos
apoios e se estabeleceu como um centro de cultura. Ali também se desenvolve-
ram algumas ideias de liberdade e resistência aos poderes locais, despertando
interesse das autoridades eclesiais.

Nota-se, com esse breve relato, como o saber, durante todo esse período, foi
concentrado nas mãos das autoridades eclesiais, que não apenas controlavam,
mas também incentivavam, limitavam, redigiam estatutos, proibiam a leitura de
alguns textos etc. Nas universidades, surgiram sacerdotes e leigos aos quais a Igreja
confiou a tarefa de ensinar a doutrina, muitos deles advindos de camadas sociais
inferiores, fazendo com que a universidade, no seu início, fosse mais “popular”. É por
essa importância das escolas na manutenção da cultura medieval que esse período
é chamado de escolástica, em referência ao período, mas também ao congregado
de ideias e à organização sistemática do saber que vigoraram nesse tempo.

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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

A relação entre razão e fé pode ser considerada o problema central da esco-


lástica, remetendo a dois movimentos:

 a aceitação da autoridade eclesial sem nenhum questionamento, dando à


razão um uso acrítico;

 o uso da razão para argumentar os problemas ligados à revelação da fé.

Nesse período, de um modo geral, a razão se rendeu à fé e a filosofia foi se-


questrada pela teologia, sendo usada como mero instrumento de amadureci-
mento da fé. Em alguns momentos, a filosofia simplesmente forneceu os instru-
mentos lógico-gramaticais para uma melhor compreensão dos textos sagrados.
Além disso, ela ajudou na conversão dos infiéis, pois garantia a afirmação lógica
dos argumentos religiosos. Tanto o uso de Platão e dos neoplatônicos, feitos por
Agostinho, quanto as referências a Aristóteles, pela via de Averróis e Avicena, por
parte de São Tomás de Aquino, podem ser creditados a esse movimento.

Esse debate sobre a relação entre fé e razão continuou até o século XIII, tempo
áureo da teologia e da filosofia cristã medieval, auge do primado do cristianismo,
cuja influência era marcante em toda a tradição cultural, social e política, dando
à Igreja e ao papado um preponderante papel de mediação entre o mundo e
Deus. Foi nesse tempo que o pensamento de Aristóteles ganhou importância,
sendo amplamente difundido. Sua novidade estava no fato de explicar racional-
mente o homem e o mundo, independentemente das verdades cristãs. Se até
então a filosofia estava reduzida à análise lógica das questões teológicas, e as
intuições platônicas e neoplatônicas eram “facilmente utilizáveis e harmonizá-
veis com o dado revelado” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 532), as ideias da física e da
metafísica aristotélica traziam novos desafios por serem de difícil conexão com
as verdades cristãs. A autonomia, o conteúdo próprio e as novas perspectivas
desses escritos acabaram por mostrar que a razão teria um âmbito independen-
te, com conteúdos próprios. Certamente, nesse cenário, o nome de Tomás de
Aquino merece destaque.

A sistematização de São Tomás de Aquino


Se em Santo Agostinho a filosofia cristã se encontrou com o platonismo, em
São Tomás de Aquino ela se encontrou com o aristotelismo, o que deu ao pensa-
mento desse frade dominicano, declarado doutor da Igreja, uma grandiosidade
impressionante – seja pela transparência lógica da argumentação, seja pela for-
taleza de seus argumentos.
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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

Domínio público.
São Tomás de Aquino.

Tomás nasceu em 1221, na cidade de Roccasecca, na Itália, e estudou na re-


cém-criada universidade de Nápoles, onde se encontrou com os frades da Ordem
dos Pregadores, conhecidos como dominicanos, por serem seguidores de São
Domingos. A vida desses homens, que se dedicavam ao estudo e à pregação,
logo cativou o jovem Tomás, que se tornou discípulo de Alberto Magno na cidade
alemã de Colônia, onde viveu entre 1248 e 1252, tendo sido indicado pelo mestre
para professor assistente na Universidade de Paris, onde ensinou de 1252 a 1256.
Desde então, ensinou em várias universidades, até morrer, prematuramente, em
março de 1274, enquanto viajava para participar do Concílio de Lion. Deixou uma
produção extremamente rica, na qual se destaca a Suma Teológica.

Pode-se afirmar que o objeto principal da filosofia de São Tomás é Deus, e


somente a partir dele se pode pensar no homem e no mundo. Mas essa não é
uma afirmação fácil quando se trata de um pensador tão complexo, autor de
uma obra tão vasta. Para Tomás, a razão e a própria Filosofia seriam distintas da
fé e da Teologia, mas as primeiras não contêm todas as verdades e todo o conhe-
cimento, sendo necessário integrá-las às doutrinas cristãs. Ou seja, a Filosofia e a
razão humana fornecem um conhecimento limitado e imperfeito a respeito de
Deus, do homem e do mundo, temas sobre os quais a Teologia versaria com mais
eficácia e verdade: “A fé melhora a razão assim como a teologia melhora a filo-
sofia. A graça não suplanta, mas aperfeiçoa a natureza” (REALE; ANTISERI, 2007, p.
554). Para Tomás, caberia à Teologia ratificar a Filosofia, sendo necessário que a
Teologia também se deixe encaminhar por uma correta Filosofia.
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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

Mesmo assim, segundo o filósofo, a Filosofia permanece como um campo


autônomo, com procedimentos e instrumentos próprios. A Filosofia seria pres-
suposta pela Teologia: “A fé pressupõe o conhecimento natural, assim como a
graça pressupõe a natureza” (S. th. I, 2 ad 1)5, porque “a graça não destrói a natu-
reza, mas a torna perfeita” (S. th. I, 8 as 2). A fé não suspende a razão, portanto,
mas a consuma.

O que há por detrás dessa noção é a dinâmica própria do pensamento toma-


siano: a ideia de que no ser humano existe uma ânsia própria por saber, como
propõe Aertsen (2003, p. 250). Essa tendência se manifesta em vários momen-
tos da obra de Aquino, remontando à reiterada referência à primeira frase da
Metafísica de Aristóteles: “Por natureza, todas as pessoas anseiam pelo saber”
(ARISTÓTELES, 2001, p. 12). A frase remete à tese segundo a qual o saber é parte
da essência humana, algo que se deseja e que, portanto, ainda não se tem. Por
buscar o saber, o homem quer naturalmente realizar a sua essência, ou seja, a
sua perfeição. Por meio da razão, o homem se apropria do mundo e assim se
realiza plenamente enquanto ser. Desse modo, “todo saber é bom” (In I De Anima,
lect. 1,3) para Tomás de Aquino, já que possibilita a realização plena da natureza
humana. Essa afirmação se contrapõe a determinada tradição (que remonta a
Santo Agostinho, no livro X, das Confissões) que considerava a curiosidade (en-
tendida como busca pelo saber) como um vício.

É essa legitimidade da busca pelo saber que dá legitimidade própria à Filo-


sofia no pensamento de Tomás de Aquino, sendo “em si mesmo legítimo e lou-
vável” (S. th. II-II, 167, 1 ad 3). A ânsia pelo saber é um sinal da imperfeição do
homem – que, normalmente, precisa realizar-se a si mesmo. A Filosofia se revela,
assim, como uma busca pelo saber e é nela que o homem pode alcançar a sua
perfeição. Para tanto, Tomás parte da pergunta sobre a coisa primeira que foi
pensada pelo ser humano, a fim de entender como ocorre o percurso intelectual.
Ora, para se conhecer a coisa primeira do saber é preciso começar com aquilo
que já se sabe. Essa coisa primeira é assumida por Tomás de Aquino, na esteira
de Aristóteles, como o ente (Ens), que é o conhecimento primeiro, algo que é
conhecível porque possui ser. Então, afirma que “Por isso todos os demais con-
ceitos do entendimento têm que ser apreensíveis a partir de um acréscimo que
se faz ao conceito de ente” (De veritate, 1, 1). Esse acréscimo ocorreria de duas
maneiras: pelo modo peculiar de cada ser e pelo modo universal que liga os
seres entre si.

5
Usaremos aqui a forma tradicional de citação da obra de Tomás de Aquino, que, no caso da Suma Teológica, tem esta organização: abreviatura do
título, número da parte em algarismos romanos, número da seção, número da questão, número do artigo, ou resposta (quando esses elementos
forem requisitados).

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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

Folha de rosto da Suma Teológica, de Tomás de Aquino, Domínio público.


edição publicada em Veneza, Itália, em 1778.

Esses conceitos primeiros seriam as “sementes da ciência” (De verit. 11, 1) e


todo o saber a eles deveriam ser agregados pelo ser humano por meio da pes-
quisa, da investigação, da curiosidade. O ser humano conhece a partir de um
modo próprio que Tomás chama de ratio – e que difere do intellectus, próprio
dos seres espirituais. Entre o espírito e o corpo, o conhecimento humano tem
duas características: a dependência da experiência dos sentidos e, ao mesmo
tempo, a formulação do discurso sobre a coisa, e é isso que faz o saber avançar,
passando daquilo que se sabe para aquilo que ainda se ignora.

A história da Filosofia seria, assim, para Tomás de Aquino, a história de uma


discursividade. Em um trecho da Suma Teológica (I, q. 44, a. 2), o autor divide a
história da filosofia em três momentos:

 os pré-socráticos realizaram a primeira tentativa de esclarecimento do ser,


mas eles ainda estavam muito vinculados à sensorialidade do saber, ao mun-
do material, e viram o devir apenas como alteração acidental da matéria;
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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

 Aristóteles teria inaugurado o segundo momento com sua distinção entre


matéria e essência, pela qual se reconhece não apenas o devir material,
mas também o devir das substâncias;

 seria necessária ainda uma contemplação verdadeira do ser enquanto ser


(e não apenas como matéria ou como substância), momento no qual o
próprio Tomás de Aquino se encontra, fazendo da criação um ponto cen-
tral de sua argumentação.

Como cabe a cada coisa a busca por sua origem, a busca pelo saber essen-
cial, então caberia ao homem buscar o saber em uma união com seu princípio
originário, que é Deus. Assim, origem e término, início e fim aparecem como
idênticos, já que Deus é criador-origem e, ao mesmo tempo, meta-fim da vida
humana. Se todas as coisas voltam a Deus, só o homem, por ser dotado de
razão, pode realizar esse retorno de forma explícita, e consumar aí a sua ânsia
pelo saber. Trata-se da imagem do círculo, como símbolo dessa perfeição: “o fim
último do ser humano consiste em conhecer a Deus” (Summa contra gentiles,
III, c. 25). Ora, é o conhecimento de Deus que dá condições para o alcance da
bem-aventurança, da felicidade. Assim, falar de busca pelo saber é falar de uma
busca pela felicidade, que é Deus. Aí coincidem a Filosofia e a mensagem dos
Evangelhos. Mas a felicidade plena não pode ser alcançada simplesmente pela
razão filosófica, de modo que Tomás de Aquino recorre à ideia de graça: só pela
fé o homem poderia contemplar a Deus e alcançar sua filosofia.

Textos complementares

Invocação ou louvor?
(AGOSTINHO, 1999, p. 37)

“Sois grande Senhor, e infinitamente digno de ser louvado.” “É grande o


vosso poder e incomensurável a vossa sabedoria.” O homem, fragmentozi-
nho da criação, quer louvar-Vos; – o homem que publica a sua mortalidade,
arrastando o testemunho do seu pecado e a prova de que Vós resistis aos so-
berbos. Todavia, esse homem, particulazinha da criação, deseja louvar-Vos.
Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criastes para
Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós.

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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

Nossa boa vontade implica o exercício


das quatro virtudes cardeais
(AGOSTINHO, 1995, p. 43)

AGOSTINHO. Considera, agora, se a prudência não te parece o conhecimen-


to daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas.

EVÓDIO. Parece-me que assim é.

AGOSTINHO. Pois bem! E a força, não é ela aquela disposição da alma pela
qual nós desprezamos todos os dissabores e a perda das coisas que estão
sob nosso poder?

EVÓDIO. Assim o penso.

AGOSTINHO. E quanto à temperança, é ela a disposição que reprime e


retém o nosso apetite longe daquelas coisas que constituem uma vergonha
o ser desejadas? Ou acaso és de outra opinião?

EVÓDIO. Pelo contrário, penso como dizes.

AGOSTINHO. E finalmente sobre a justiça, o que diremos ser ela, senão a


virtude pela qual damos a cada um o que é seu?

EVÓDIO. Conforme minha opinião é essa a definição da justiça e nenhu-


ma outra.

AGOSTINHO. Consideremos, pois, uma pessoa que possua essa boa von-
tade de que nossas palavras vêm proclamando a excelência, já há algum
tempo. Ela abraça-a a ela somente, com verdadeiro amor, nada possuindo
de melhor. Goza de seus encantos. Põe, enfim, seu prazer e sua alegria em
meditar sobre ela, considerando-a quanto é excelente e o quanto é impos-
sível ela lhe ser arrebatada. Isto é, ser-lhe subtraída, sem seu consentimento.
Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporá a todas as coisas que sejam
contrárias a esse único bem?

EVÓDIO. É absolutamente necessário que assim seja.

AGOSTINHO. Podemos deixar de crer que essa pessoa não esteja também
dotada de prudência, ela que vê a obrigação de desejar esse bem acima de
tudo e de evitar o que lhe é oposto?

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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

EVÓDIO. De modo algum, parece-me alguém ser capaz disso, sem a


prudência.

Se temos o dom do intelecto


simultaneamente com o da fé
(AQUINO, 1980, p. 2087)

A questão vertente exige dupla distinção: uma relativa à fé e outra ao


intelecto. – Quanto à fé devemos distinguir o que lhe pertence essencial e
diretamente e excede a razão natural – como a Trindade e a unidade divinas
e a encarnação do Filho de Deus – do que lhe pertence por lhe estar orde-
nado, de certo modo, como tudo o que contém a divina Escritura. – No con-
cernente ao intelecto, devemos distinguir a dupla acepção em que podemos
tomar a palavra inteligir. De um modo, em sentido perfeito, isto é, quando
chegamos a conhecer a essência da coisa inteligida e a verdade da propo-
sição inteligida, como em si mesma é. E deste modo não podemos inteligir,
por força da fé, o que diretamente a ela pertence. Mas o podemos quanto a
certas coisas à fé ordenadas. De outro modo, podemos inteligir uma coisa
imperfeitamente, isto é, quando não conhecemos o que é ou de que modo é
a essência mesma dela, ou a verdade da proposição; contudo, conhecemos
que as aparências externas não contrariam a verdade. Isto é, quando inteligi-
mos que, por causa das aparências externas não precisamos nos afastar das
verdades da fé. E deste modo nada impede que intelijamos, enquanto temos
fé, também o que essencialmente lhe pertence.

Dicas de estudo
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: 1973. (Coleção Os Pensadores).

ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Record, 2009.

O NOME da Rosa. Direção de Jean-Jacques Annaud. Alemanha, França, Itália,


1986. Dist.: Warner Home Video.

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Atividades
1. Qual é o contexto no qual se insere a filosofia patrística, e qual o principal
desafio por ela enfrentado?

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2. Explique como o filósofo Santo Agostinho entende o papel da razão humana,


e como ela pode contribuir para o fortalecimento da fé.

3. Como São Tomás de Aquino entende a relação entre fé e razão?

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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

Gabarito
1. O momento histórico da patrística (assim chamada porque se trata de uma
filosofia desenvolvida pelos padres ou pais da Igreja – em latim, pater) coin-
cide com a expansão do cristianismo, a organização dos textos que forma-
riam a parte da Bíblia que se chama Novo Testamento e a organização das
verdades que guiariam a ação dos novos cristãos. Essa organização foi muito
importante porque o nascente cristianismo vinha sendo atacado por seus
adversários (entre os quais estão os pagãos e os judeus) e precisava se con-
solidar para o seu enfrentamento. Para tanto, foi realizado um trabalho de
organização, seleção e análise crítica de textos, que durou pelo menos três
séculos e garantiu a organização do cânon do Novo Testamento, assim como
o conhecemos em nossos dias, fixado no ano 367. Além disso, é preciso lem-
brar que no ano 313 o imperador Constantino promulgou o Edito de Milão,
no qual garantia a liberdade de culto, dando fim às sangrentas perseguições
promovidas contra os cristãos. Essa decisão fez com que o cristianismo ga-
nhasse um grande impulso e durante os dois séculos seguintes se manteve
um longo e frutuoso debate teórico, sempre concluído nos concílios da Igre-
ja. Assim, o principal desafio enfrentado pela Patrística foi garantir a organi-
zação teórica da nova fé e contribuir para o processo de expansão da religião
cristã.

2. A razão é tida por Agostinho como a capacidade superior do homem, dis-


tinguindo-o dos outros animais. É pela razão que o homem pode dominar
a si mesmo, impor limites aos sentidos e se impedir de se entregar à anima-
lidade e à corporalidade, e ela também é um meio para provar a existência
de Deus, já que abre, no homem, o caminho para a revelação por meio da fé.
Para Agostinho, a razão dá os argumentos que fortalecem a fé e é, por isso, o
caminho para a moral, já que consegue governar os movimentos irracionais
da alma e conduzir o homem para a virtude. Além disso, ela abre o homem
para as verdades que vêm da fé, ou seja, é pela razão que o homem se abre
para a “lei eterna”, que vem de Deus, que é a verdade, e conduz para o bem.
Admitindo que a verdade é Deus, Agostinho mostra que ela habita o íntimo
humano e que, desenvolvendo-a, o homem pode alcançar o Bem.

3. Para Tomás de Aquino, a razão e a própria Filosofia são distintas da fé e da


Teologia, sendo que as primeiras não contêm todas as verdades e todo o co-
nhecimento, sendo necessário integrá-las às doutrinas cristãs. Para o autor, a
Filosofia e a razão humana fornecem um conhecimento limitado e imperfei-

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to a respeito de Deus, do homem e do mundo, temas sobre os quais a Teolo-


gia versaria com mais eficácia e verdade. Nesse sentido, a fé deveria melhorar
a razão e alcançar as verdades que ela não consegue atingir. Por isso, caberia
à Teologia ratificar a Filosofia, mas, ao mesmo tempo, seria necessário que a
Teologia também se deixasse encaminhar por uma correta Filosofia. Entre-
tanto, Aquino garante certa independência para a Filosofia, que teria pro-
cedimentos e instrumentos próprios, sendo que a fé não suspende a razão,
mas a consuma. Para ele, conhecer é algo bom, buscar o saber é algo neces-
sário para a consumação da fé e da virtude humana. É essa legitimidade da
busca pelo saber que dá legitimidade própria à Filosofia, no pensamento de
Tomás de Aquino. A Filosofia se revela, então, como uma busca pelo saber, e
é nela que o homem pode alcançar a sua perfeição.

Referências
AERTSEN, Jan A. Tomás de Aquino: por natureza, todas as pessoas anseiam pelo
saber. In: KOBUSCH, Theo (Org.). Filósofos da Idade Média: uma introdução. São
Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 249-268.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os


Pensadores).

_____. Confissões. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1986.

_____. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.

_____. Solilóquios/A Vida Feliz. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1998.

_____. A Graça II. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1999.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Segunda parte da Segunda parte – Ques-
tões 1-79. 2. ed. Porto Alegre/Caxias do Sul: Escola Superior de Teologia São Lou-
renço de Brindes/Sulina/Grafosul/Universidade de Caxias do Sul, 1980.

_____. Suma contra os Gentios. Porto Alegre: EST/Sulina/UCS, 1990.

_____. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2003.

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2001.

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: desde as


origens até Nicolau de Cusa. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: patrística e escolástica.


2. ed. São Paulo: Paulus, 2005.

_____. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 7. ed. São Paulo: Paulus,
2007.

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Como podemos conhecer?
(Empirismo e racionalismo)

Verberando com indignadas queixas as dificuldades da investigação e a obscuridade


das coisas, como corcéis generosos que mordem o freio, perseveraram em seus propósitos
e não se afastaram da procura dos segredos da natureza.

Francis Bacon

Velhos e novos problemas


A História da Filosofia é um contínuo processo de redescobertas, re-
leituras e abertura de novos problemas e métodos. Se determinados pro-
blemas e temas – por exemplo, a condição finita do homem (um ser-pa-
ra-a-morte), na filosofia existencialista – inauguraram uma nova filosofia
abrindo originais perspectivas de análise, em muitos momentos da his-
tória da disciplina, a maneira de filosofar não deixou de reproduzir pro-
cedimentos e métodos do passado. Mas a situação contrária também é
comum, pois, do mesmo modo, encontramos filósofos verdadeiramente
revolucionários, que inovaram na maneira de pensar, descobriram novos
métodos (o indutivismo de Francis Bacon, por exemplo) para discutir ques-
tões antigas, como o problema da verdade, que é a mais clássica questão
da filosofia. Essa dinâmica que, de maneira variada, une o passado e o pre-
sente – seja pela invenção ou pela retomada de métodos e problemas –
está na origem do Renascimento filosófico.

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Como podemos conhecer? (Empirismo e racionalismo)

Domínio público.
O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci: o homem como medida de
todas as coisas, ocupando o centro de seu destino.

Nos séculos XIV e XVI, a Filosofia da Renascença foi profundamente marcada


pela redescoberta de obras de Platão (428-347 a.C.) e de Aristóteles (384-322
a.C.) desconhecidas durante a Idade Média, bem como pela recuperação das
obras dos grandes literatos, poetas e artistas gregos e romanos. O humanismo
renascentista e o novo ideal de homem como artífice de seu próprio destino po-
lítico ou centro da sua própria filosofia – como encontramos nas obras de Nico-
lau Maquiavel (1469-1527) e Michel de Montaigne (1533-1592) –, têm suas raízes
na recuperação da antropologia e no ideal republicano dos filósofos gregos e
latinos. Portanto, as formas do novo homem do Renascimento foram esculpidas
com o bronze da filosofia antiga.

Talvez com um pouco menos de ênfase, essa mesma dinâmica que liga os
problemas e os métodos do passado e do presente também aparece na Filoso-

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Como podemos conhecer? (Empirismo e racionalismo)

fia Moderna. Filha primeira do Renascimento, a Filosofia Moderna rompeu com


a tradição Medieval, inaugurou um novo estilo de filosofar e descobriu novas
questões ao buscar a superação de uma série de problemas legados pelas teo-
rias clássicas – antiga e medieval. As grandes filosofias da modernidade, nasci-
das no século XVII, fundamentalmente o empirismo e o racionalismo, inaugura-
ram uma nova forma de fazer filosofia quando descobriram problemas inéditos
enraizados (nascidos) na base das filosofias antigas. A partir de um exame crítico
das relações entre consciência e natureza, alma e corpo, sujeito e objeto, estabe-
lecidas pelas filosofias medievais, os filósofos modernos – como Francis Bacon
(1561-1626) e René Descartes (1596-1650) – encontraram novos problemas,
novos métodos e estabeleceram a Filosofia Moderna.

Os problemas antigos que estão na origem da Filosofia Moderna remontam,


em grande parte, aos fundamentos da metafísica teológica cristã. Resumida-
mente, a metafísica cristã, assim como todas as teorias metafísicas, está assenta-
da em diversas dicotomias.

A primeira dessas separações é ontológica e consiste em reconhecer uma


distinção substancial entre Deus e o mundo natural: Deus, ser eterno, imutável,
infinito e incompreensível, é transcendente em relação ao mundo natural, que
é finito e corruptível. Nesse caso, por uma questão de lógica, a compreensão
de Deus escaparia ao alcance do conhecimento natural da inteligência humana,
pois, enquanto Deus é ilimitado, a inteligência do homem (a razão) é limitada ao
mundo natural.

Além do mais, a própria antropologia teológica cristã aprofunda essa dico-


tomia entre o divino e o natural, em função do argumento moral da queda, a
expulsão do homem do paraíso: o homem é um ser decaído, expulso do paraíso
porque a sua vontade é naturalmente propensa ao erro (pecado), sendo mais
forte e mais ativa que a sua inteligência. O homem deseja mais, deseja além do
que consegue compreender.

Essas duas dicotomias (ontológica e antropológica) explicam parcialmente


outra separação promovida pelo pensamento filosófico cristão – a distinção
entre verdades de fé e verdades de razão.

As primeiras são as verdades sagradas, reveladas por Deus aos homens por
meio dos profetas. São verdades inquestionáveis, que estão acima da capaci-
dade de compreensão do homem, são os dogmas que não se enquadram nos
princípios da lógica racional: Santíssima Trindade, Ressurreição etc.

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Como podemos conhecer? (Empirismo e racionalismo)

Já as verdades da razão nascem do engenho e da capacidade do homem. São


verdades falíveis e de alcance limitado.

Domínio público.
Guilherme de Ockham.
Essa estrutura dicotômica que opõe o divino ao natural, a razão à fé e a inte-
ligência à vontade, fornece a chave para o aparecimento, na modernidade, da
Teoria do Conhecimento, uma disciplina filosófica nascida para discutir a origem,
o alcance e os critérios de verdade na produção do conhecimento fundado nas
relações dicotômicas entre sujeito (consciência) e objeto (natureza). Assim, se a
razão é distinta da fé e é o verdadeiro fundamento do conhecimento filosófico,
a primeira tarefa dos pensadores modernos foi reconhecer e reafirmar a inde-
pendência e a autonomia da razão. Isso já havia sido originalmente proposto
por Guilherme de Ockham (1285-1347), o frade franciscano e filósofo escolástico
inglês, que foi um dos grandes anunciadores da filosofia moderna ao acentuar
a separação entre a filosofia e a teologia, a razão e a fé, atribuindo a cada uma
delas métodos e problemas específicos.

A segunda grande tarefa que ocupou os modernos diz respeito ao alcance


e a possibilidade do conhecimento, em função da natureza substancial e das
relações de causalidade entre sujeito e objeto. Considerando o sujeito do co-
nhecimento como consciência (alma), e sendo a consciência substancialmente

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diferente do corpo, uma questão que ocupou os modernos foi a possibilidade


de a consciência (substância pensante, sem extensão e responsável pelo conhe-
cimento) conhecer o corpo e o mundo material. Isto é, como é possível ao pen-
samento ter acesso ao mundo natural?

Outra questão relacionada ao sujeito do conhecimento nasceu da própria


condição limitada da razão. Sendo finita, até onde a razão pode conhecer? Pode,
por exemplo, conhecer Deus e as essências? Pode conhecer o infinito?

Além disso, se o sujeito do conhecimento é, sobretudo, vontade, impulso,


desejo e não apenas razão, como é possível chegar à verdade?

Finalmente, se a existência está dividida em sujeito e objeto, qual é a verda-


deira fonte do conhecimento? O sujeito ou o objeto?

Portanto, com a Teoria do Conhecimento, a Filosofia se voltou para a relação


entre o pensamento e as coisas, a consciência (interior) e a realidade (exterior), o
sujeito e o objeto, o exame da capacidade humana para o erro e a verdade.

Podemos resumir todos esses problemas às seguintes questões:

 Qual é a origem do conhecimento?

 Como podemos conhecer a verdade?

 Qual é o alcance do conhecimento?

Agora, vamos considerar os argumentos sobre essas questões, a partir de um


exame das obras dos dois filósofos que iniciaram essas discussões acerca do co-
nhecimento: o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes.

Bacon e o empirismo
Na sua obra mais famosa, Novum Organum, Francis Bacon forneceu lições
(procedimentos verdadeiros) para interpretar e dominar a natureza: “O homem,
ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela ob-
servação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não
sabe e nem pode mais” (BACON, 1999, p. 33).

Esse aforismo que abre o Novum Organum anuncia os caracteres mais signifi-
cativos da nova filosofia da modernidade, o empirismo.

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 Primeiro, estabelece a condição quase suprema do homem (o sujeito) para


conhecer. São funções cognitivas do sujeito do conhecimento observar a
natureza, recolher informações, interpretar os dados, entender, constatar
e, então, dominar a natureza. Para Bacon, o sujeito do conhecimento é um
sujeito de poder, na medida em que o poder se define pelo saber: “Ciência
e poder do homem coincidem... Pois a natureza não se vence, senão quan-
do se lhe obedece” (BACON, 1999, p. 33).

 Depois, se prestarmos suficiente atenção ao aforismo, ele ainda indica a


fonte de origem do conhecimento: a observação da natureza. É preciso
que a mente seja alimentada com os dados da natureza, pois qualquer
apreensão por parte da mente é possível somente por meio da natureza.

 Finalmente, o aforismo mostra que na própria experiência da observação


o conhecimento encontra os seus limites, isto é, somente a realidade dos
fatos pode ser plenamente conhecida.

Assim, Bacon abre a sua principal obra apresentando os três temas mais fun-
damentais da modernidade: o sujeito do conhecimento, o método e o alcance
da verdade.

Como está dado no Novum Organum,


Domínio público.

o projeto baconiano estabeleceu uma


visão muito pragmática da filosofia: o
saber deve ser ativo e rico em resultados
práticos. Mas a primeira função da Filoso-
fia deve ser propedêutica (introdutória)
– convertida em um saber técnico, ela
deveria oferecer à ciência natural novos
fundamentos, ou as verdadeiras indica-
ções para a interpretação da natureza.
Para Bacon, o filósofo deveria, na verda-
de, transformar-se em um cientista da
natureza, rompendo com a metafísica, a
lógica silogística e a física teleológica de
Aristóteles, efetuando uma acumulação
Retrato de Francis Bacon, feito por John Vanderbank sistemática de conhecimentos: “[...] os re-
(1731), a partir do trabalho de um artista desconhe- sultados até agora alcançados devem-se
cido (c. 1618).

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mais ao acaso e às tentativas que à ciência [...] Tal como as ciências, de que ora
dispomos, são inúteis para a invenção de novas obras, do mesmo modo, a nossa
lógica é inútil para o incremento das ciências” (BACON, 1999, p. 34).

Para escapar desse ciclo de conhecimentos realizados sem ordem, o filósofo


natural necessita, antes de tudo, descobrir um método que permita o seguro e
contínuo progresso do conhecimento. Para Bacon, o verdadeiro método é o in-
dutivo, que consiste, resumidamente, em partir sempre da observação dos fatos
particulares e progredir ordenadamente até chegar às conclusões mais gerais.
Aparentemente muito simples, essa perspectiva metodológica traduz princí-
pios que caracterizam toda a ciência moderna, fundamentalmente as noções
de que as teorias científicas são, primeiro, construções fundadas na ordenada
observação dos fatos, depois submetidas a procedimentos de experimentação
e, sobretudo, destinadas a fornecer explicações na forma de leis gerais sobre a
natureza.

Indução Leis e teorias Dedução

Fatos Previsões e explicações

adquiridos

por meio da

experimentação

Segundo Bacon, o verdadeiro método indutivo consiste em uma experiência


estruturada. Diferentemente da experiência vaga, da observação feita ao acaso,
a experiência estruturada corresponde à observação orientada por um método,
por um conjunto de técnicas, pois a experiência vaga é “a forma ordinária da
razão humana voltar-se para a natureza”, enquanto à experiência estruturada,
“que procede de forma devida, a partir dos fatos, designamos por interpretação
da natureza” (BACON, 1999, p. 37).

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Domínio público.

Frontispício da edição original do Novum Organum (1650).

Mas antes de interpretar a natureza, de aplicar diretamente o método aos


fatos, é importante entender as fontes e as causas dos erros que nos afastam da
verdadeira via do conhecimento. Assim, no livro I do Novum Organum, Bacon
apresenta a sua teoria dos ídolos, as causas mais gerais e comuns que induzem
os homens a aceitarem a aparência como verdade, racionando falaciosamente e
continuando no caminho do erro e do engano. Para Bacon, os ídolos são falsas
noções, engodos que se formam em nós em função da nossa condição indivi-
dual, da nossa natureza, do nosso comércio com os outros homens e, ainda, em
função das relações de autoridade e poder que regem a vida dos homens.

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 Ídolos da tribo.

São todos os vícios típicos da natureza do homem, tal como o hábito de


acreditar cegamente nos sentidos. Para Bacon, ao acreditar nas percep-
ções obtidas por meio dos sentidos, a maioria dos homens constrói no-
ções limitadas e simplistas acerca do universo. Vejamos o exemplo do mo-
vimento da Terra: os sentidos e a nossa percepção cotidiana nos indicam
que o Sol gira em torno da Terra. Assim, fundados na crença do poder da
nossa percepção direta, colaboramos (pelo menos até o surgimento da
astronomia copernicana) para sustentar um dos maiores erros da huma-
nidade: o geocentrismo. Assim: “O intelecto humano é semelhante a um
espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as
distorce e corrompe” (BACON, 1999, p. 40).

 Ídolos da caverna.

São todos os erros e falsas noções que se originam em função do indivíduo,


das condições singulares de cada pessoa. Nesse caso, Bacon está chamando
atenção para o fato de que erramos também em função de características,
habilidades e capacidades individuais, “pois cada um [...] tem uma caverna
ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza” (BACON, 1999,
p. 40). Por exemplo, em decorrência da educação e dos costumes, certas
pessoas são mais detalhistas e outras, ao contrário, dão mais importância
ao conjunto que às partes. Nos dois casos, trata-se de um vício, um engodo
que conduz ao erro, porque o intelecto se habitua a sempre seguir o mesmo
caminho, encerrando o pensamento em uma “cova”.

 Ídolos do foro (ou do mercado).

As palavras são ambíguas, não significam e denotam objetivamente o


mundo: muitas vezes, determinadas palavras oferecem significações dis-
tintas para dois ouvintes que participam do mesmo contexto. Além disso,
as palavras midiatizam as relações humanas, pois os homens são seres fa-
lantes, que estabelecem praticamente todas as suas relações por meio de
palavras, realizando e apresentando o conhecimento por meio da lingua-
gem. Assim, Bacon está chamando atenção para o fato de construirmos
falsas ideias, adotarmos opiniões relativas como absolutas porque ainda
não temos uma linguagem segura e universal, ou ainda porque não en-
tendemos o uso da nossa própria linguagem: “[...] os homens se associam
graças ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras,

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impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o


intelecto” (BACON, 1999, p. 41).

 Ídolos do teatro.

Finalmente, a última grande causa dos nossos erros é a autoridade dos sis-
temas de saber. Muito frequentemente, o homem aceita opiniões e ideias
como verdadeiras não em função da sua estrutura lógica ou dos seus predi-
cados metodológicos de verdade, mas sobretudo em função do autor des-
sas ideias. Assim, os ídolos do teatro têm suas causas na nossa disposição
ingênua de acreditar nos sistemas filosóficos, nas escolas de pensamento,
nos grandes pensadores: “São ídolos do teatro: por parecer que as filosofias
adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representa-
das que figuram mundos fictícios e teatrais” (BACON, 1999, p. 41).

Portanto, para Bacon, primeiramente o erro tem sua origem na condição


humana (ídolos da tribo); mas também há motivos no próprio indivíduo, como
se todos os homens tivessem, cada um a seu modo, uma caverna particular que
os impedisse de ver as coisas como elas são; depois, os homens erram porque
se comunicam; e ainda porque não conseguiram construir uma ciência da lin-
guagem; finalmente, muitos dos erros se devem à postura cômoda e passiva dos
homens, ao medo de reagir contra as verdades estabelecidas. Domínio público.

Folha de rosto de uma já centenária edi-


ção do Novum Organum, de Bacon, publi-
cada em Nova York, em 1902.

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Assim como a sua prodigiosa carreira política (ocupou diversos cargos na


alta administração da Coroa inglesa, chegando a exercer a função de grande
chanceler no reinado de Jaime I), a filosofia de Bacon foi marcada pela ambição
de ocupar um lugar único na história do saber: reorganizar todo o campo do
conhecimento e, a partir daí, progredir rumo à construção de um conhecimento
transformador, útil e, principalmente, cientificamente verdadeiro. Se esse grande
projeto não atingiu o seu objetivo em toda plenitude, Bacon não realizou pouco
para a história do conhecimento, se considerarmos que fixou os princípios do
conhecimento científico:

 a ciência exige método;

 é preciso combater os vícios do intelecto, que impendem ao nosso deslo-


camento pelos verdadeiros caminhos da ciência;

 o método científico é o indutivo, sendo fundamental observar e experi-


mentar, de modo a progredir ordenadamente até as leis e axiomas;

 o sentido último do conhecimento está na promoção e na garantia da vida.

Descartes e o racionalismo moderno


René Descartes foi soldado, matemático, médico e físico. Mas, acima de tudo,
foi um filósofo descontente e inquieto com o problema da verdade. Nesse senti-
do, experimentou o sentimento mais profundo que um filósofo pode desejar: a
paixão pela verdade. Toda a filosofia de Descartes está marcada pelo impulso em
direção ao novo e à verdade, já que para ele a verdade não pertence à tradição:
ela é uma conquista do pensamento. Assim, logo na abertura de suas Meditações
Metafísicas (1641), junto a uma perturbação genuinamente filosófica, Descartes
manifesta o seu ambicioso projeto de fazer, ao mesmo tempo, desmoronar a
tradição filosófica e estabelecer um solo seguro para as verdades da ciência:
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas
falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal
assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário
tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões que até então
dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo
de firme e constante nas ciências. (DESCARTES, 1991, p. 167)

Nessa obra, Descartes realiza, portanto, o projeto da sua vida filosófica: exa-
minar (passar em revista) todos os conhecimentos e, então, estabelecer as condi-
ções verdadeiras para o conhecimento científico. O racionalismo cartesiano, que
é o mais genuíno racionalismo moderno, está todo aí, nessa caminhada filosófi-
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ca que coloca tudo em dúvida e, ao mesmo tempo, procura a verdade absoluta


acerca de tudo.

A primeira edição do Discurso do Método, de Descartes, Domínio público.


em 1637.

A primeira questão fundamental é que essa tarefa monumental não pode ser
realizada sem um método. E Descartes é o filósofo que elegeu a dúvida como
método, como processo desconstrutivo das crenças e opiniões, como defesa
contra a autoridade do senso comum e da tradição, e como método crítico
contra a ambiguidade dos sentidos e da percepção. Na perspectiva cartesiana
das Meditações, a filosofia deve começar pela dúvida. Porém, antes de publicar
as Meditações, seu autor já havia fixado as quatro regras do seu método para
bem orientar o processo de julgamento, conforme o Discurso do Método (1637):

 primeira regra (clareza e distinção) – jamais aceitar alguma coisa como


verdadeira se isso não for evidente, pois o consentimento só deve ser dado
ao que se apresenta ao intelecto como evidente, isto é, indubitável;

 segunda regra (análise) – frente a dificuldades, deve-se dividi-las até se


chegar às ideias claras e distintas;

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 terceira regra (ordem) – deve-se iniciar o julgamento pelos elementos


mais simples e, a partir daí, ir até os mais complexos;

 quarta regra (enumeração) – é necessário revisar, revistar e enumerar


todas as etapas, todos os procedimentos.

Domínio público.

Primeira edição das Meditações sobre a Filosofia Primeira (1641), tam-


bém conhecidas como Meditações Metafísicas.

Nas Meditações Metafísicas, observando-se as regras já estabelecidas, o


método é a própria dúvida e a sua aplicação é o próprio ato de duvidar. Assim,

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Descartes procura, antes de tudo, estruturar uma forma segura de pensar, isto é,
ele está, primeiramente, preocupado com o sujeito do conhecimento.

Como método, a dúvida tem algumas características muito específicas.

 Primeiro, duvidar é uma decisão do sujeito e é uma operação do pensa-


mento. É uma escolha filosófica, na medida em que se busca colocar em
questão a obviedade das teses filosóficas do senso comum sobre a reali-
dade e as próprias certezas privadas.

 Em segundo lugar, a dúvida deve ser aplicada sistematicamente, seguin-


do uma ordem e se dirigindo, antes de tudo, para os conhecimentos con-
siderados mais frágeis, até atingir os conhecimentos mais seguros.

 Depois, a dúvida deve ser generalizada, isto é, todos os tipos de conheci-


mento (sensível, intelectual, teológico, científico e filosófico) devem pas-
sar pelo crivo da dúvida, sendo importante entender que a dúvida é o juiz
da verdade e da falsidade: somente será verdadeiro o conhecimento que
resistir à dúvida.

 Finalmente, duvidar é uma experiência que tem sentido somente quando


é radicalizada ao extremo, com o sujeito conferindo todo valor ao senti-
mento de dúvida. As ideias e os conceitos são absolutamente claros e ver-
dadeiros ou são falsos. Não há, a partir do exercício da dúvida metódica,
espaço para conceitos possíveis, prováveis ou ainda quase certos. Isso sig-
nifica, na perspectiva de Descartes, que o sujeito do conhecimento deve
aceitar como verdadeiro apenas o que é indubitável. Qualquer motivo de
dúvida, em qualquer assunto, já é suficiente para que o sujeito considere
falsas as opiniões:
Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que
talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos
cuidadosamente impedir-me de dar créditos às coisas que não são inteiramente certas e
indubitáveis, do que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que
eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas. (DESCARTES, 1991, p.167)

Na primeira das Meditações Metafísicas, a dúvida é estendida para todos os


graus de conhecimento e todos os tipos de sabedoria. Descartes mostra que a
realidade sensível é duvidosa, que o conhecimento matemático não se apresenta
como indubitável. Até mesmo a existência de Deus, assevera Descartes, pode ser
colocada em dúvida, bastando que o sujeito considere possível ele mesmo estar
se iludindo sobre a existência de um deus. A questão é esta: se é possível, se po-
demos imaginar ou supor e nos iludir sobre Deus, quem garante que realmente

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não estejamos nos iludindo? Nesse sentido, tudo é julgado falso simplesmente
porque é duvidoso. E assim termina a primeira das Meditações Metafísicas:
Suporei, pois, que não há um verdadeiro Deus, que é soberana fonte da verdade, mas um
certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda
a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e
todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para
surpreender a minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido
de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da
falsa crença de ter todas essas coisas. (DESCARTES, 1991, p. 170)

Todas as conquistas cartesianas surgem como que legitimadas pelo processo


da dúvida, pois após a dúvida metódica ser posta em ação só há lugar para o
totalmente indubitável, as verdades sendo aceitas como tal somente na medida
em que superam todas as dúvidas possíveis.

Domínio público.

Estátua de René Descartes, em sua cidade natal, que se


chamava La Haye en Touraine nos tempos do filósofo, de-
pois recebeu o nome de La Haye-Descartes (1802) e, final-
mente, Descartes (1967).

A existência da alma, de Deus e dos corpos, bem como a distinção, a união e a


interação entre a alma e o corpo, representam sucessivas conquistas cartesianas
ao longo das seis Meditações Metafísicas, e somente na sexta Descartes prova a

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existência das coisas corpóreas e estabelece a diferença substancial entre a alma e


o corpo, e ainda nos mostra de que maneira se dá a união e a interação entre eles.

Porém, antes disso, ainda na segunda das Meditações Metafísicas, aprendemos


com Descartes que o que se passa no cogito e no mundo é, antes de tudo, uma
ação do pensamento. O cogito é o fundamento da sua própria existência e da exis-
tência do mundo. A conquista da primeira certeza (“Eu sou e existo”) foi apenas
o passo inicial para, ordenadamente, conquistar a verdade sobre a alma, Deus, as
matemáticas, a natureza material e a união substancial entre o corpo e a alma.

Por exemplo, o cogito (a primeira verdade conquistada da segunda medita-


ção cartesiana) significa que podemos conhecer com plena certeza a existên-
cia da alma (pensamento destituído de elemento corporal), enquanto a dúvida
ainda continua a pairar sobre a existência das coisas corpóreas em geral:
Eu não sou essa reunião de membros que se chama corpo humano, não sou um ar tênue e
penetrante, disseminado por todos esses membros; não sou um vento, um sopro, um vapor,
nem algo que posso fingir e imaginar, posto que supus que tudo isso não era nada e que,
sem mudar essa suposição, verifico que não deixo de estar seguro de que sou alguma coisa.
(DESCARTES, 1991, p. 176)

Como nos revelam as confissões autobiográficas de Descartes no Discurso


do Método e os primeiros parágrafos das Meditações Metafísicas, a verdadeira fi-
losofia se faz no recolhimento. O autor alerta que é preciso isolar-se, distanciar-
-se, colocar-se longe das perturbações do mundo cotidiano se quisermos refletir
com clareza: “Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que
consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão [...]” (DESCARTES, 1991,
p. 167). O isolamento significa, nesse caso, esquecer os prejuízos e influências do
mundo natural, pois a verdade deve nascer apenas da reflexão.

E o inventário crítico da dúvida metódica não determinou apenas um novo


modo de diferenciar o falso do verdadeiro: com o advento da dúvida metódica,
o mundo corpóreo e a experiência direta (especialmente ela) foram abalados
de uma vez por todas. No itinerário cartesiano, o retorno do sujeito ao mundo
da experiência não supõe mais as mesmas cores, as mesmas formas, a mesma
paisagem. A espontaneidade da percepção perdeu lugar para uma razão me-
todicamente estruturada, para as exigências do conhecimento verdadeiro (in-
dubitável) e, sobretudo, para o sujeito pensante, pois ele se apresenta sempre
como um guardião, disposto a corrigir a nossa relação com o mundo. Nesse caso,
nunca é demais retomar as consequências do clássico episódio de análise do
pedaço de cera na segunda das Meditações Metafísicas, opondo o julgamento
dos sentidos ao do entendimento:
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O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode
ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se
apresentam ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição, encontram-se mudadas e,
no entanto, a mesma cera permanece. Talvez fosse como penso atualmente, a saber, que a cera
não era nem essa doçura do mel, nem esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem
essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me aparecia sob certas
formas e que agora me faz notar sob outras. (DESCARTES, 1991, p. 178)

O corte epistemológico cartesiano, como sugere o texto anterior, é claro:


sujeito de um lado e mundo de outro. Enquanto a experiência direta se faz, o
pensamento a julga e a supera. Tudo deve passar pelo crivo do entendimento.
Fundado no nosso contato sensível com as coisas, o mundo da experiência é
confuso e cambiante, na medida em que retém somente propriedades efêmeras
e obscuras. A cera continua a mesma, independentemente das qualidades que
se apresentam ou não à percepção, pois, segundo a lição cartesiana, a certeza
encontra o seu lugar não nas ideias provenientes dos sentidos, mas em uma
subjetividade transcendente que comporta somente ideias claras e distintas. A
despeito das cores que vemos, do som que ouvimos, do cheiro que sentimos, da
textura que experimentamos e do gosto que provamos na cera, o julgamento a
ser considerado, o verdadeiro juízo sobre a essência da cera, é feito por intermé-
dio do pensamento e não dos sentidos. Para Descartes, o conhecimento sensível
(sensação, percepção, imaginação, memória e linguagem) é a causa do erro e
deve ser afastado. O conhecimento verdadeiro é puramente intelectual, parte
das ideias inatas e controla (por meio de regras) as investigações filosóficas, cien-
tíficas e técnicas.

Portanto, o Eu possui em si o poder de desvelar todos os mistérios do mundo,


pois as coisas são interrogadas por um sujeito que é, também, quem responde
por elas e as interpreta. O conhecimento do mundo pressupõe uma volta do
pensamento ao próprio sujeito reflexionante, pois é por meio dele que o “en-
trelaçamento de causas gerais”, o segredo do mundo, torna-se significativo para
o mundo. Ao passar pela experiência da dúvida, o sujeito do conhecimento é a
fonte do conhecimento. Mais importante que ver os homens é julgar, pensar.
Acompanhemos o texto da segunda meditação:
[...] se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não
deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto,
que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens
fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros e assim
compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava
ver com meus olhos. (DESCARTES, 1991, p. 179)

No racionalismo cartesiano, o julgamento corrige e vai além das imperfeições


dos sentidos, ao mesmo tempo em que estabelece o seu primado na constitui-
ção da verdade sobre o mundo e sobre o outro. São homens, como o texto acima
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indica, não porque se mostram como tal, mas fundamentalmente em função do


“poder de julgar que reside em meu espírito”. O sujeito é a fonte da verdade e
não mais o mundo da experiência.

A dúvida metódica e a experiência estruturada


René Descartes e Francis Bacon propõem dois métodos distintos para a busca
do conhecimento: o método dedutivo e o indutivo.

A partir da dúvida metódica, Descartes procurou estabelecer um método


fundado no poder de pensar e de julgar do sujeito do conhecimento. Nesse sen-
tido, a verdade não nasce do mundo, das nossas percepções ou dos sentidos,
mas encontra o seu registro mais fecundo nas ideias inatas. Conforme o filósofo
francês, quanto à sua origem, as ideias podem ser classificadas em três tipos.

 O primeiro grupo se refere às ideias adventícias, isto é, todas as ideias que


o sujeito forma a partir do contato com o mundo material, as ideias ori-
ginadas das nossas sensações, percepções e lembranças. Para Descartes,
essas ideias comportam o menor grau de certeza. A ideia do Sol como
um corpo celeste menor que a Terra, por exemplo, está fundada na nossa
experiência perceptiva no mundo.

 O segundo grupo é o das ideias fictícias, aquelas que criamos, conjugamos,


fantasiamos a partir das ideias adventícias que estão em nossa memória.
As ideias fictícias são falsas na medida em que não correspondem a nada
que exista realmente, como as que representam os deuses e monstros na
mitologia grega.

 Já as ideias inatas correspondem ao conjunto de pensamentos e represen-


tações que não se originaram da nossa experiência sensorial, e nem nas-
ceram da nossa imaginação, pois não tivemos experiência sensorial para
compô-las a partir de nossa memória. Para Descartes, as ideias inatas são
racionais e universalmente verdadeiras. Todas essas ideias são conhecidas
pelo sujeito na medida em que ele nasceu com elas, que são, na perspec-
tiva cartesiana, a marca de Deus no espírito das criaturas racionais. A razão
é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade. Como exemplos
do que é ideia inata para Descartes temos as ideias de Deus e do infinito,
sobre as quais não temos qualquer experiência ou percepção sensorial,
mas, segundo Descartes, são indubitáveis.

Diferentemente do que fez René Descartes, a filosofia de Francis Bacon encon-


trou na experiência estruturada a fonte de todo conhecimento e toda verdade.
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Depois de Bacon, surgiram novos pensadores empiristas, como John Locke


(1632-1704) e David Hume (1711-1776), que construíram sólidos argumentos
contra a teoria das ideias inatas.

Para Locke, no seu estágio inicial, a mente humana é como uma folha de
papel em branco. Seguindo as orientações gerais de Bacon, Locke entende que
a origem das ideias pode ocorrer de dois modos.

 Primeiro, por nosso contato com os objetos exteriores. As ideias mais ele-
mentares, como as de sensação (amargo, preto, por exemplo), só podem
ter origem a partir da nossa experiência no mundo. Dificilmente podemos
formar a ideia do gosto amargo sem ter experimentado esse gosto em
algum momento determinado.

 O segundo tipo de ideias se refere àquelas que nasceram a partir das ope-
rações da mente, como as ideias de reflexão.

Para Locke, o alcance do nosso conhecimento é limitado pelos objetos e pela


potência reflexiva do nosso pensamento. Portanto, os empiristas consideram
que o conhecimento, diferentemente de Descartes, nasce do mundo, das nossas
sensações e experiências perceptivas. Mas, agora próximo de Descartes, ele é
aprofundado e realizado verdadeiramente a partir do sujeito do conhecimento,
isto é, de um trabalho do pensamento.

Texto complementar

Novum Organum (prefácio)


(BACON, 1999, 27-30)

Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido


para o conhecimento, por convicção, por vezo professoral ou por ostenta-
ção, infligiram grande dano tanto à filosofia quanto às ciências. Pois, fazendo
valer a sua opinião, concorreram para interromper e extinguir as investiga-
ções. Tudo mais que hajam feito não compensa o que nos outros corrompe-
ram e fizeram malograr. Mas os que se voltaram para caminhos opostos e
asseveraram que nenhum saber é absolutamente seguro, venham suas opi-
niões dos antigos sofistas, da indecisão dos seus espíritos ou, ainda, de mente
saturada de doutrinas, alegaram para isso razões dignas de respeito. Contu-

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do, não deduziram suas afirmações de princípios verdadeiros e, levados pelo


partido e pela afetação, foram longe demais. De outra parte, os antigos filó-
sofos gregos, aqueles cujos escritos se perderam, colocaram-se, muito pru-
dentemente, entre a arrogância de sobre tudo se poder pronunciar e o de-
sespero da acatalepsia1. Verberando com indignadas queixas as dificuldades
da investigação e a obscuridade das coisas, como corcéis generosos que
mordem o freio, perseveraram em seus propósitos e não se afastaram da
procura dos segredos da natureza. Decidiram, assim parece, não debater a
questão de se algo pode ser conhecido, mas experimentá-lo. Não obstante,
mesmo aqueles, estribados apenas no fluxo natural do intelecto, não empre-
garam qualquer espécie de regra, tudo abandonando à aspereza da medita-
ção e ao errático e perpétuo revolver da mente. Nosso método, contudo, é
tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se aplicar. Consiste no estabele-
cer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e rejeitar, na
maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de perto sobre aque-
les, abrindo e promovendo, assim, a nova e certa via da mente, que, de resto,
provém das próprias percepções sensíveis. Foi, sem dúvida, o que também
divisaram os que tanto concederam à dialética. Tornaram também manifesta
a necessidade de escoras para o intelecto, pois colocaram sob suspeita o seu
processo natural e o seu movimento espontâneo. Mas tal remédio vinha
tarde demais, estando já as coisas perdidas e a mente ocupada pelos usos do
convívio cotidiano pelas doutrinas viciosas e pela mais vã idolatria. Pois a
dialética, com precauções tardias, como assinalamos, e em nada modifican-
do o andamento das coisas, mais serviu para firmar os erros que descerrar a
verdade. Resta, como única salvação, reempreender-se inteiramente a cura
da mente. E, nessa via, não seja ela, desde o início, entregue a si mesma, mas
permanentemente regulada, como que por mecanismos. Se os homens ti-
vessem empreendido os trabalhos mecânicos unicamente com as mãos,
sem o arrimo e a força dos instrumentos, do mesmo modo que sem vacila-
ção atacaram as empresas do intelecto, com quase apenas as forças nativas
da mente, por certo muito pouco se teria alcançado, ainda que dispusessem
para o seu labor de seus extremos recursos. Considere-se, por um momento,
este exemplo que é como um espelho. Imagine-se um obelisco de respeitá-
vel tamanho a ser conduzido para a magnificência de um triunfo, ou algo
análogo, e que devesse ser removido tão somente pelas mãos dos homens.
Não reconheceria nisso o espectador prudente um ato de grande insensa-
tez? E esta não pareceria ainda maior se pelo aumento dos operários se con-
1
No pensamento de Bacon, dúvida permanente e incontornável na busca do conhecimento. (N. da E.)

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fiasse alcançar o que se pretendia? E, resolvendo fazer uso de algum critério,


se se decidisse pôr de lado os fracos e colocar em ação unicamente os robus-
tos e vigorosos, esperando com tal medida lograr o propósito colimado, não
proclamaria o espectador estarem eles cada vez mais caminhando para o de-
lírio? E, se, ainda não satisfeitos, decidissem, por fim, os dirigentes recorrer à
arte atlética e ordenassem a todos se apresentarem logo, com as mãos, os
braços e os músculos untados e aprestados, conforme os ditames de tal arte:
não exclamaria o espectador estarem eles a enlouquecer, já agora com certo
cálculo e prudência? E se, por outro lado, os homens se aplicassem aos domí-
nios intelectuais, com o mesmo pendor malsão e com aliança tão vã, por mais
que esperassem, seja do grande número e da conjunção de forças, seja da
excelência e da acuidade de seus engenhos; e, ainda mais, se recorressem,
para o revigoramento da mente, à dialética (que pode ser tida como uma
espécie de adestramento atlético), pareceriam, aos que procurassem formar
um juízo correto, não terem desistido ainda de usar, sem mais, o mero intelec-
to, apesar de tanto esforço e zelo. E manifestamente impraticável, sem o con-
curso de instrumentos ou máquinas, conseguir-se em qualquer grande obra
a ser empreendida pela mão do homem o aumento do seu poder, simples-
mente, pelo fortalecimento de cada um dos indivíduos ou pela reunião de
muitos deles. Depois de estabelecermos essas premissas, destacamos dois
pontos de que queremos os homens claramente avisados. O primeiro consis-
te em que sejam conservados intactos e sem restrições o respeito e a glória
que se votam aos antigos, isso para o bom transcurso de nossos fados e para
afastar de nosso espírito contratempos e perturbações. Desse modo, pode-
mos cumprir os nossos propósitos e, ao mesmo tempo, recolher os frutos de
nossa discrição. Com efeito, se pretendemos oferecer algo melhor que os an-
tigos e, ainda, seguir alguns caminhos por eles abertos, não podemos nunca
pretender escapar à imputação de nos termos envolvido em comparação ou
em contenda a respeito da capacidade de nossos engenhos. Na verdade,
nada há aí de novo ou ilícito. Por que, com efeito, não podemos, no uso de
nosso direito – que, de resto, é o mesmo que o de todos — reprovar e apontar
tudo o que, da parte daqueles, tenha sido estabelecido de modo incorreto?
Mas, mesmo sendo justo e legítimo, o cotejo não pareceria entre iguais, em
razão da disparidade de nossas forças. Todavia, visto intentarmos a descober-
ta de vias completamente novas e desconhecidas para o intelecto, a proposi-
ção fica alterada. Cessam o cuidado e os partidos, ficando a nós reservado o
papel de guia apenas, mister de pouca autoridade, cujo sucesso depende
muito mais da boa fortuna que da superioridade de talento. Esta primeira

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advertência só diz respeito às pessoas. A segunda, à matéria de que nos


vamos ocupar. É preciso que se saiba não ser nosso propósito colocar por
terra as filosofias ora florescentes ou qualquer outra que se apresente, com
mais favor, por ser mais rica e correta que aquelas. Nem, tampouco, recusa-
mos às filosofias hoje aceitas, ou a outras do mesmo gênero, que nutram as
disputas, ornem os discursos, sirvam o mister dos professores e que prove-
jam as demandas da vida civil. De nossa parte, declaramos e proclamamos
abertamente que a filosofia que oferecemos não atenderá, do mesmo modo,
a essas coisas úteis. Ela não é de pronto acessível, não busca através de pre-
noções a anuência do intelecto, nem pretende, pela utilidade ou por seus
efeitos, pôr-se ao alcance do comum dos homens. Que haja, pois talvez seja
propício para ambas as partes, duas fontes de geração e de propagação de
doutrinas. Que haja igualmente duas famílias de cultores da reflexão e da fi-
losofia, com laços de parentesco entre si, mas de modo algum inimigas ou
alheia uma da outra, antes pelo contrário coligadas. Que haja, finalmente,
dois métodos, um destinado ao cultivo das ciências e outro destinado à des-
coberta científica. Aos que preferem o primeiro caminho, seja por impaciên-
cia, por injunções da vida civil, seja pela insegurança de suas mentes em
compreender e abarcar a outra via (este será, de longe, o caso da maior parte
dos homens), a eles auguramos sejam bem-sucedidos no que escolheram e
consigam alcançar aquilo que buscam. Mas aqueles entre os mortais, mais
animados e interessados, não no uso presente das descobertas já feitas, mas
em ir mais além; que estejam preocupados, não com a vitória sobre os adver-
sários por meio de argumentos, mas na vitória sobre a natureza, pela ação;
não em emitir opiniões elegantes e prováveis, mas em conhecer a verdade
de forma clara e manifesta; esses, como verdadeiros filhos da ciência, que se
juntem a nós, para, deixando para trás os vestíbulos das ciências, por tantos
palmilhados sem resultado, penetrarmos em seus recônditos domínios. E,
para sermos [mais bem] atendidos e para maior familiaridade, queremos
adiantar o sentido dos termos empregados. Chamaremos ao primeiro
método ou caminho de Antecipação da Mente e ao segundo de Interpreta-
ção da Natureza. Para algo mais chamamos a vossa atenção. Procuramos
cercar nossas reflexões dos maiores cuidados, não apenas para que fossem
verdadeiras, mas também para que não se apresentassem de forma incômo-
da e árida ao espírito dos homens, usualmente tão atulhado de múltiplas
formas de fantasia. Em contrapartida, solicitamos dos homens, sobretudo

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em se tratando de uma tão grandiosa restauração do saber e da ciência, que


todo aquele que se dispuser a formar ou emitir opiniões a respeito do nosso
trabalho, quer partindo de seus próprios recursos, da turba de autoridades,
quer por meio de demonstrações (que adquiriram agora a força das leis civis),
não se disponha a fazê-lo de passagem e de maneira leviana. Mas que, antes,
se inteire bem do nosso tema; a seguir, procure acompanhar tudo o que des-
crevemos e tudo a que recorremos; procure habituar-se à complexidade das
coisas, tal como é revelada pela experiência; procure, enfim, eliminar, com
serenidade e paciência, os hábitos pervertidos, já profundamente arraigados
na mente. Aí então, tendo começado o pleno domínio de si mesmo, queren-
do, procure fazer uso de seu próprio juízo.

Dicas de estudo
BACON. Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da
Interpretação da Natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os
Pensadores).

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. In: _____. Discurso do Método/As


Paixões da Alma/Meditações Metafísicas/Objeções e Respostas. 5 ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores).

Atividades
1. Explique a noção de ídolos, para o filósofo Francis Bacon.

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2. Explique as características da dúvida metódica, estabelecida por René Des-


cartes nas suas Meditações Metafísicas.

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3. Explique as diferenças gerais entre as filosofias empirista e racionalista, na


Idade Moderna.

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Gabarito
1. No livro I do Novum Organum, Bacon apresenta a sua teoria dos ídolos, as
causas mais gerais e comuns que induzem os homens a aceitarem a aparên-
cia como verdade, racionando falaciosamente e continuando no caminho
do erro e do engano. Para Bacon, os ídolos são falsas noções, engodos que se
formam em nós em função da nossa condição individual, da nossa natureza,
do nosso comércio com os outros homens e, ainda, em função das relações
de autoridade e poder que regem a vida dos homens. Ele relaciona quatro
tipos de ídolos: da tribo, que têm sua origem na condição humana; da ca-
verna, cujos motivos estão no próprio indivíduo, como se todos os homens
tivessem, cada um a seu modo, uma caverna particular que os impedisse de
ver as coisas como são; do foro (ou do mercado), pois os homens erram por-
que se comunicam e ainda porque não conseguiram construir uma ciência
da linguagem; do teatro, pois muitos dos erros se devem à postura cômoda
e passiva dos homens, ao medo de reagir contra as verdades estabelecidas.

2. Nas Meditações Metafísicas, o método é a própria dúvida e a sua aplicação


é o próprio ato de duvidar. Como método, a dúvida tem algumas caracte-
rísticas muito específicas. Primeiro, duvidar é uma decisão do sujeito e uma
operação do pensamento, é uma escolha filosófica na medida em que se
busca colocar em questão a obviedade das teses filosóficas do senso comum
sobre a realidade e as próprias certezas privadas. Em segundo lugar, a dúvi-
da deve ser aplicada sistematicamente, seguindo uma ordem e se dirigindo,
antes de tudo, para os conhecimentos considerados mais frágeis e, a partir
daí, atingindo os conhecimentos mais seguros. Depois, a dúvida deve ser
generalizada, isto é, todos os tipos de conhecimento (sensível, intelectual,
teológico, científico e filosófico) devem passar pelo crivo da dúvida, sendo
importante entender que a dúvida é o juiz da verdade e da falsidade, pois
será verdadeiro somente o conhecimento que resistir à dúvida. Finalmente,
duvidar é uma experiência que tem sentido somente quando é radicalizada

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ao extremo, com o sujeito conferindo todo valor ao sentimento de dúvida,


pois as ideias e os conceitos são absolutamente claros e verdadeiros ou são
falsos. Não há, a partir do exercício da dúvida metódica, espaço para concei-
tos possíveis, prováveis ou, ainda, quase certos. Isso significa, na perspectiva
de Descartes, que o sujeito do conhecimento deve aceitar como verdadeiro
apenas o indubitável. Qualquer motivo de dúvida, em qualquer assunto, já é
suficiente para que o sujeito considere falsas as opiniões.

3. Descartes e Bacon propõem dois métodos distintos para a busca do conhe-


cimento: o método dedutivo e o indutivo.

A partir da dúvida metódica, Descartes procurou estabelecer um método


fundado no poder de pensar e de julgar do sujeito do conhecimento. A ver-
dade, nesse sentido, não nasce do mundo, das nossas percepções ou dos
sentidos, mas encontra o seu registro mais fecundo nas ideias inatas.

A filosofia de Bacon, por sua vez, encontrou na experiência estruturada a


fonte de todo conhecimento e toda a verdade, pois o conhecimento tem
origem na experiência, a observação é o primeiro passo para a ciência.

Além disso, para Bacon, o único conhecimento científico está estruturado


na natureza, enquanto para Descartes o fundamento de todo conhecimento
verdadeiro são as ideias inatas.

Referências
BACON. Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Inter-
pretação da Natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).

DESCARTES, René. Discurso do Método/As Paixões da Alma/Meditações Me-


tafísicas/Objeções e Respostas. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção
Os Pensadores).

LOCKE. John. An Essay Concerning Human Understanding. London: Everyman’s


Library, 1976.

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Como podemos conhecer? (Empirismo e racionalismo)

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Somos livres? (Maquiavel e Rousseau)
A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem.

Montesquieu

A força
O pensamento de Nicolau Maquiavel (1469-1527) marca, na história da
Filosofia, o nascimento da ciência política moderna. Esse pensador floren-
tino introduziu no debate filosófico renascentista a análise da práxis políti-
ca. Seu novo modo de encarar a política está dado em uma das obras mais
controvertidas da Filosofia política: O Príncipe. Escrita em 1513, dedicada a
Lourenço II, soberano da dinastia dos Médici em Florença, à primeira vista
essa obra parece um manual de conduta política, destinado a orientar os
governantes sobre como conquistar e manter o poder.

Domínio público.

Estátua de Nicolau Maquiavel, na Galeria dos


Ofícios, em Florença, Itália.
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Somos livres? (Maquiavel e Rousseau)

Mas podemos ler esse texto muito além dessa filiação manualesca, pois, além
de debater as formas do poder, rompendo com as perspectivas metafísicas e te-
ológicas sobre o tema, Maquiavel naturalizou, humanizou o poder e, por conse-
quência, abriu um novo campo de análise das ações políticas: o campo de forças
imanente às relações humanas. Porém, isso não quer dizer que Maquiavel tenha
uma visão romântica ou ingênua do poder: muito pelo contrário, naturalizar e
humanizar significam apenas tecer uma visão crua e objetiva dos elementos e
forças naturais que estruturam as relações de poder entre os homens. Tais ele-
mentos são significados pelas lutas e conflitos de interesses, pela oposição entre
os grandes, que desejam dominar, e os pequenos, uma grande maioria que
querem escapar à submissão pura e irrestrita. Assim, a violência está na origem
da política para Maquiavel e remonta ao domínio dos desejos, ambições e forças
humanas. Sobre isso, acompanhemos as suas palavras em O Príncipe:
Em todas as cidades acham-se essas duas tendências diferentes e isso vem do fato de que
o povo não quer ser governado nem oprimido pelos poderosos, e estes desejam governar
e oprimir o povo. Desses dois apetites distintos origina-se, nas cidades, um dos seguintes
resultados: principado, liberdade e desordem. (MAQUIAVEL, 1999, p. 73)

Portanto, a reflexão política de Maquiavel não coloca a questão do direito de


ter ou de exercer o poder, não discute as condições legítimas de soberania. Para
Maquiavel, a soberania resulta do próprio poder, está estruturada nos elementos
naturais e históricos que separam os homens em dominantes e dominados. Um
soberano é soberano porque tem ou dispõe do poder em função de uma corres-
pondência de fatos:

 detém os meios materiais suficientes para fazer valer os seus interesses


privados e impor a sua força, possuindo – por exemplo, um grande e bem
armado exército;

 possui e pratica as virtudes mais adequadas para o exercício da soberania


– a astúcia, por exemplo;

 vive em um tempo favorável aos seus interesses, as situações de fato que


se apresentam são percebidas como ocasiões e oportunidades de poder
– as guerras, por exemplo, funcionam como momento a ser aproveitado
para conquistar e expandir domínios.

Maquiavel discute, tão somente, a origem de fato da política, expõe as ne-


cessidades de conduta que decorrem e estão naturalmente implicadas no jogo
de forças e interesses e, então, apresenta os diversos meios que parecem mais
adequados à conquista e à manutenção do poder. Portanto, desde Maquiavel,
ninguém tem poder porque foi escolhido por Deus, como sustentavam os teó-
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ricos do direito divino. Em O Príncipe, Maquiavel separa as virtudes políticas das


virtudes éticas e cristãs, estabelecendo os fundamentos do poder político sem re-
correr às convenções arbitrárias e a elementos transcendentes. Conforme as suas
palavras, as relações políticas do Estado nascem do conflito: “Conclui-se então,
que um príncipe prudente deve pensar nos modos de ser necessário aos súditos,
sempre, e de estes necessitarem do Estado; depois, ser-lhe-ão sempre leais” (MA-
QUIAVEL, 1999, p. 74). Portanto, para determinar o lugar do homem na cidade, os
seus direitos como súdito ou soberano, o lugar daquele que se curva e daquele
que se impõe, é preciso compreender os homens, saber ler a história e entender
os jogos de forças. O fundamento da política é a arena de disputa perpétua entre
homens: o próprio espaço da vida.

O direito político
Principal teórico contratualista, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) estabele-
ceu dois princípios que devem determinar as relações políticas de poder, o par de
oposições soberano e súdito.

Domínio público.

Jean-Jacques Rousseau. Maurice Quentin de La Tour.

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Primeiro, a única forma legítima de fundar uma obra civil e política é por meio
de um contrato, somente com um pacto social podemos considerar a origem de
um poder normatizador da vida social.

Mas, em um segundo plano, é preciso aceitar que todo poder político fun-
dado no pacto social deve preservar os direitos capitais dos homens: liberdade
e igualdade. Portanto, os pactos sociais não apenas estabelecem regras, mas
devem ser estruturados de acordo com fundamentos (direitos naturais) anterio-
res à vida civil.

Esses dois princípios, presentes logo na abertura de Do Contrato Social, in-


dicam uma diferença substancial de métodos e intenções em relação à análise
empreendida por Maquiavel sobre o assunto:
Quero indagar se pode existir na ordem civil alguma regra de administração legítima e segura,
tomando os homens como são e as leis como devem ser. Esforçar-me-ei sempre, nessa procura,
para unir o que o direito permite ao que o interesse prescreve a fim de que não fiquem
separadas a justiça e utilidade. (ROUSSEAU, 1978, p. 21)

Esse trecho acima, de Rousseau, é claro: somente por meio do estudo do


homem – isto é, com um fundamento antropológico – podemos encontrar as
verdadeiras referências para balizar a obra política, pois essa obra se destina ao
próprio homem. Se a ordem social estabelece direitos por meio de convenções,
o homem, por sua vez, aparece como a medida de todas essas convenções, con-
fere sentido, é a fonte das regras da obra política. Assim, antes de analisar como
se processará a constituição da ordem civil, ou ainda antes de examinar como se
regulamentarão as diversas relações entre os cidadãos, convém estudar e com-
preender o próprio homem.

Mas essa ideia de Rousseau, de que para entender “o que direito permite” é
preciso tomar os homens como são, não o aproxima de Maquiavel? Não foi o te-
órico florentino que “humanizou o poder” quando estabeleceu as condições ex-
plicativas do poder a partir das relações de conflito e dos jogos de interesses dos
homens? Para entender essa relação ambígua do pensamento rousseauniano
com o pensamento de Maquiavel, é preciso refazer o itinerário da obra política
de Rousseau.

Sucintamente, podemos dizer que esse itinerário abrange três fases, que se
complementam:

 crítica ao homem social e diagnóstico das instituições civis e políticas es-


tabelecidas historicamente;

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 descrição dos fundamentos do direito político e explicitação das razões e


causas da corrupção do gênero humano;

 formação do pacto social legítimo como resposta ao problema da corrup-


ção e das instituições políticas.

Crítica à sociabilidade
A primeira etapa do pensamento político rousseauniano remonta à obra Dis-
curso Sobre as Ciências e as Artes, escrita em 17491, estreia de Rousseau no mundo
das letras, marcando o seu diagnóstico negativo acerca da vida, da cultura e da
política construídos historicamente. Com poucas exceções, de tempos e lugares,
esse primeiro Discurso de Rousseau traça um retrato crítico do homem sociabi-
lizado, das instituições políticas, do sistema de educação e do nefasto papel das
artes e das ciências na vida moral dos homens. Esse diagnóstico negativo está
assentado na ligação essencial entre a corrupção moral, a vida social e a política.
Por meio do simulacro e da aparência, os homens mascaram as suas verdadei-
ras intenções, não porque sejam propositadamente falsos, mas precisamente
porque já não se encontram em condições de ser sinceros, isto é, a sociabilidade
não lhes confere liberdade para tanto, como bem estabelece o texto do Discurso
Sobre as Ciências e as Artes:
Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a princípios a arte de
agradar, reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa, e parece
que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez impõe, o
decoro ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o próprio gênio. Não se ousa mais
parecer tal como se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado
sociedade, nas mesmas circunstâncias, farão todas as mesmas coisas desde que motivos mais
poderosos não os desviem. (ROUSSEAU, 1978, p. 336)

Para criticar o comportamento dos homens em sociedade e evidenciar a de-


generação das instituições políticas, Rousseau lança mão de um grande número
de fatos e acontecimentos históricos. Cita, ao longo do texto, as civilizações clás-
sicas da Antiguidade, comparando-as com a sociedade da sua época. Todos os
acontecimentos e fatos – do comportamento social nos salões de festa e nas
praças públicas à experiência política –, traduzidos na forma de exemplos neces-
sários da ordem histórica, condenam uma sociabilidade, uma constituição civil
e um ideal de vida presente em épocas muito anteriores ao século XVIII. As artes
e as ciências, muito antes do Renascimento, já haviam exercido uma perniciosa
influência sobre os homens. A sociabilidade já há muito tempo se fazia presente
de modo negativo, incitando os homens à dissimulação. Os Estados, as repú-
1
Discurso Sobre as Ciências e as Artes conquistou o prêmio da Academia de Dijon, em 1750, respondendo a uma questão apresentada por essa
instituição: “O restabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?”

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blicas engendradas no decorrer da história da humanidade, já demonstravam


desde a Antiguidade clássica a ilegitimidade do poder civil e como esse poder,
abandonado ao curso da história, colaborou para a instauração de uma morali-
dade e de uma sociedade pouco concordante com princípios como a igualdade,
a liberdade e a transparência das relações humanas, como bem indica a letra do
Discurso Sobre as Ciências e as Artes:
Dir-se-á ser uma infelicidade própria de nossa época? Não, senhores, os males causados por
nossa vã curiosidade são tão velhos quanto o mundo. A elevação e o abaixamento cotidianos das
águas do oceano não foram mais regularmente submetidos ao curso do astro que nos ilumina
durante a noite quanto a sorte dos costumes e da probidade aos progressos das ciências e das
artes. Viu-se a virtude fugir à medida que a luz se elevava no nosso horizonte e observou-se o
mesmo fenômeno em todos os tempos e em todos os lugares. (ROUSSEAU, 1978, p. 337)

Há, portanto, nesse primeiro Discurso, a constatação de que a história do pro-


gresso técnico e científico é uma história de degeneração. Do tempo de Sócrates
(469-399 a.C.) aos dias de Voltaire (1694-1778), o lugar dos grandes atos heroi-
cos, no Discurso Sobre as Ciências e as Artes, é também o palco da corrupção, da
desigualdade e da servidão civil. Mas se o processo de corrupção é a própria lei
do movimento de transformação da história, a inspeção da realidade atual repre-
senta, nesse caso, o mais avançado estágio desse movimento. Uma inspeção que
mostra o impedimento da transparência, da confiabilidade nas relações sociais.
Domínio público.

Folha de rosto da primeira edição do Dis-


curso Sobre as Ciências e as Artes (1750),
assinada por “Um cidadão de Genebra”.
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Já nesse primeiro Discurso, a desigualdade aparece como um elemento cen-


tral do diagnóstico da corrupção moral e política. A sociabilidade é o lugar a
partir do qual o reconhecimento dos homens advém muito mais dos talentos
que das virtudes, muito mais em função do parecer que da essência. Na conside-
ração pública, não é mais a natureza humana que importa: na visão de Rousseau,
a qualidade de ser homem está para sempre relegada a um segundo plano,
frente àquelas qualidades e talentos que garantem as comodidades da vida
urbana e a aparente amabilidade social que reina entre os homens civilizados. A
desigualdade que afeta os homens não é, no primeiro Discurso, avaliada apenas
a partir da divisão dos bens: a sua existência, que determina a consideração e os
privilégios dos homens no meio público, também está associada a critérios que
vão muito além das condições materiais e políticas:
De onde nascem todos esses abusos se não da funesta desigualdade introduzida entre os
homens pelo privilégio dos talentos e pelo aviltamento das virtudes? Aí está o efeito mais
evidente de todos os nossos estudos, a mais perigosa de suas consequências. Não se pergunta
mais a um homem se ele tem probidade, mas se ele tem talento; nem de um livro se é útil, mas
se é bem escrito. As recompensas são prodigalizadas ao engenho e fica sem glória a virtude. Há
mil prêmios para os belos discursos, nem um para as belas ações. Que me digam, no entanto,
se é comparável a glória, conferida ao melhor dos discursos premiados nesta academia, ao
mérito de ter instituído o prêmio. (ROUSSEAU, 1978, p. 348)

Ao tratar do tema da desigualdade, o primeiro Discurso nos revela que há


uma corrupção do gosto, do gênio, que se encontra presente na própria razão
do sujeito sociável e insiste em separar os homens não apenas em ricos e pobres,
senhores e escravos, a partir de condições materiais e políticas que aparecem
como causas concretas dessas diferenças. Por exemplo, na procura de justificar
a desigualdade, o sujeito sociável atribui a um determinado homem a condição
de viver como um escravo não em função das relações de dependência e força
que são dadas de maneira objetiva e concreta, mas, o que é terrível, a partir de
uma pretensa natureza de escravo inerente à sua própria condição humana.

Ao juízo que ajuda a fomentar a desigualdade está ligado aquele que leva os
homens a se persuadirem a viver pacificamente, sem a condição de serem livres.
Na sua época, Rousseau se deparava com uma sociedade, uma ordem civil que
exercia um verdadeiro poder regulador, normatizador das preferências e das
ações dos homens. Ali, ousar parecer realmente o que se é significava se excluir
de toda e qualquer sociabilidade, daí a impossibilidade de agir com liberdade:
os homens já estão como que moldados internamente, o gosto reflete a polidez
dos costumes e os julgamentos encontram-se submetidos a uma moralidade
abjeta na qual os homens não distinguem o falso do verdadeiro: “Se a cultura
das ciências é prejudicial às qualidades guerreiras, ainda o é mais as qualidades
morais. Já desde os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso espírito
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e corrompe nosso julgamento.” (ROUSSEAU, 1978, p. 347). O domínio da aparên-


cia é total, a corrupção do gênio parece ter atingido o seu limite mais extremo,
pois a liberdade, se não existe de fato, também deixou de ser reconhecida como
um direito inalienável e universal. Por exemplo, a produção artística e a produção
científica são instrumentos de dominação que caminham associados ao poder
despótico, estabelecem o conformismo estético e moral e fazem “com que os
homens amem a sua escravidão e formem assim o que se chama de povos poli-
ciados” (ROUSSEAU, 1978, p. 334).

Rousseau não condena apenas os costumes, as ações visíveis. O maior pro-


blema apontado no primeiro Discurso não se refere ao fato de os homens vive-
rem sem liberdade, mas de eles amarem essa condição. O que é colocado em
questão, o que é tristemente constatado é o comprometimento interior com a
aparência, o amor sincero dos homens à condição de escravos:
Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança e ao bem-estar dos homens reunidos, as
ciências, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais poderosas, estendem guirlandas de
flores sobre as cadeias de ferro de que eles estão carregados, afogam-lhes o sentimento dessa
liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem com que amem sua escravidão e
formam assim o que se chama de povos policiados. (ROUSSEAU, 1978, p. 335)

Os homens são criticados tanto pelo que pensam e sentem quanto pela forma
como se comunicam e agem. Há uma cumplicidade entre o discurso do homem
sociabilizado e uma intenção que, apesar de não ser a mesma do homem natu-
ral do segundo Discurso, faz o homem social, separado da sua essência, parecer
único. A transparência perdida não se refere fundamentalmente à impossibili-
dade de reconhecer os sentimentos e as intenções do semelhante na sua fala,
no seu comportamento em geral, mas à impossibilidade de o próprio sujeito
reconhecer os seus mais naturais e verdadeiros sentimentos. Tais sentimentos
estão sufocados pela dissolução dos costumes, pela corrupção do gosto, pela
ditadura da opinião pública.

O elogio da natureza (fundamentos do direito político)


Mas o homem nem sempre pareceu estranho, significou uma ameaça a um
outro homem ou, ainda, amou a servidão. A história hipotética do homem natu-
ral, retratada no Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre
os Homens, realiza a apologia da natureza humana, faz a descrição da ação do
homem com todos os seus méritos, antes da passagem para a vida social. Nesse
segundo Discurso2, o homem selvagem e o estado de natureza representam a
2
Publicado em 1755, Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens também foi escrito para um concurso, responden-
do a outra questão proposta pela Academia de Dijon: “Qual é a origem da desigualdade entre os homens, é ela autorizada pela lei natural?”

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absolvição da essência humana, a certeza de que não pertence a ela a autoria


dos vícios que se manifestam na nossa sociedade.

Domínio público.
Edição holandesa do Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Ho-
mens, assinada por Jean-Jacques Rousseau, cidadão de Genebra.

Para Rousseau, no homem do estado de natureza as paixões são apenas


três: desejo de nutrição, desejo de reprodução e desejo de repouso, visto que,
dotado de poucas necessidades, o selvagem experimentava paixões elementa-
res. Desejava comer e saciava-se. O sexo e a reprodução consistiam apenas no
contato físico, sem qualquer ligação sentimental. E o repouso era provido pela
natureza de acordo com seus inúmeros abrigos. O homem do estado de nature-
za também não conhecia a morte, que tanto atormenta o homem sociabilizado,
sendo a dor seu único receio. Com sua força incomparável e seus sentidos muito
mais aguçados que nos homens sociáveis, as enfermidades não tinham lugar na
vida do homem natural, já que por sua própria ordem a natureza determinava
nos homens uma constituição robusta, saudável, perfeitamente adequada às di-
ficuldades com as quais eles se deparavam cotidianamente.

Além disso, no estado de natureza, o homem rousseauniano não pode ser


considerado um ser dotado de moral, já que não agia de acordo com qualquer
espécie de norma ética. Estava longe da sua consciência, por exemplo, distinguir

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o justo do injusto. Ele ignorava vícios porque não tinha virtudes. Não era mau
porque, precisamente, não era bom. Isso pelo menos quando pensamos nesses
termos enquanto categorias de uma ordem ética que, segundo interpretação
que remonta a Aristóteles, pressupõe a ação boa, justa ou injusta sendo eviden-
ciada apenas quando é escolhida por um sujeito livre, responsável, motivado
por uma boa vontade guiada por sua razão, a qual se sobrepõe à consciência
diante das inclinações naturais do sujeito. Somente quando o sujeito consegue
dominar seus desejos e apetites naturais, e desse modo evitar a concupiscência
e a irascibilidade, torna-se possível estabelecer o que Aristóteles entende por
meio-termo e, finalmente, conquistar a excelência moral, algo que não está natu-
ralmente presente nos homens:
A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações
e emoções, disposição esta consistente num meio-termo (o meio-termo relativo a nós)
determinado pela razão (razão graças a qual um homem dotado de discernimento o
determinaria). (ARISTÓTELES, 1992, p. 42)

Para Rousseau, o homem natural encontrava-se apenas pronto para agir de


acordo com suas inclinações naturais, isto é, suas ações não eram pensadas, cal-
culadas ou mediadas por qualquer propósito moral, e nem eram dirigidas por
qualquer norma alheia aos seus impulsos naturais. No caso do homem natural
rousseauniano, ao contrário da ética aristotélica, se existe bondade ela é ine-
rente à sua própria natureza primeira, e se é possível definir uma ação justa, é
porque ela é íntegra, isto é, a sua existência não se desviou do caminho traçado
pela natureza:
Parece, a princípio, que os homens nesse estado de natureza, não havendo entre si qualquer
espécie de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem maus
ou possuir vícios ou virtudes, a menos que, tomando estas palavras num sentido físico, se
considerem como vícios do indivíduo as qualidades capazes de prejudicar sua própria
conservação, e virtudes aquelas capazes de em seu favor contribuir, caso em que se poderia
chamar de mais virtuosos àqueles que menos resistissem aos impulsos simples da natureza.
(ROUSSEAU, 1978, p. 251)

Rousseau concebe, no homem primitivo, dois preceitos que governam o seu


comportamento e que são anteriores à razão:

 um é referente à autodefesa (que interessa somente à preservação do in-


divíduo);

 o outro é definido como piedade.

Com isso, tematiza como o comportamento do homem selvagem era ime-


diato e, ao mesmo tempo, com a definição de piedade (atributo que confere ao
homem selvagem a disponibilidade de agir com violência somente quando está

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em jogo a sua sobrevivência), procura refutar todos aqueles filósofos – como


Aristóteles – que, na interpretação de Rousseau, confundiram o homem selva-
gem e o homem social. Para Rousseau, a sociabilidade não está de modo algum
inscrita na natureza humana, como pensava Aristóteles, pois se, por um lado, a
piedade conduz o homem em direção ao semelhante, o sentimento de autode-
fesa, para equilibrar, insiste em afastá-lo. Contudo, Rousseau se refere priorita-
riamente a Thomas Hobbes (1588-1679), mais precisamente à atribuição que o
filósofo inglês fez ao homem do estado de natureza. A piedade funciona como
uma espécie de instrumento regulador, normatizador do sentimento de auto-
defesa, impedindo que o homem selvagem seja tomado por uma individuali-
dade sem limites, guiada unicamente por um sentimento egoísta, suscetível de
cometer atos de violência gratuitos, como no estado de natureza que Rousseau
entendeu ser aquele que Hobbes defendia em suas obras: “Hobbes pretende
que o homem é naturalmente intrépido e não procura senão atacar e combater”
(ROUSSEAU, 1978, p. 239).

O homem primitivo concebido por Rousseau era desprovido de imaginação,


seu olhar via sempre as mesmas coisas apresentadas pela natureza. Com isso,
sua curiosidade também não se manifestava, ele não tinha e não fazia planos
para o futuro, já que ignorava o amanhã. Vivia somente o presente, de acordo
com suas inclinações, despertadas por sua animalidade e determinadas por suas
necessidades. Vivendo encerrado na floresta, suportando as intempéries climá-
ticas praticamente nu, contando apenas com a força do seu corpo para zelar por
sua vida, o homem selvagem desenvolveu uma relação imediata com a natureza
e com tudo o que se apresentava aos seus olhos; encontrando-se pronto para o
agir sem qualquer mediação, sem reflexão, sem julgamentos. O comportamento
do homem selvagem é descrito por Rousseau como não reflexivo, apenas ins-
tintivo. A sua ação era quase instantânea frente às sensações recebidas – sensa-
ções que, diga-se de passagem, basicamente eram sempre as mesmas. A ordem
da natureza com a qual o homem vivia em perfeita harmonia era constante, e
raramente o selvagem se deparava com uma situação desconhecida. Em um
primeiro momento, as suas faculdades intelectuais ainda não se encontravam
plenamente desenvolvidas. Dadas as condições primeiras que o estado de na-
tureza lhe impunha, ações de natureza intelectual (como raciocinar, julgar e se-
lecionar, por exemplo) ainda não ocupavam a sua consciência, já que de modo
algum eram instrumentos necessários ao seu bem-estar. Ainda mais que suas
necessidades eram muito elementares diante de uma natureza abundante para
satisfazê-las, ele não precisava usar qualquer subterfúgio para mediar seu com-
portamento diante de alguma situação.

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Esse comportamento imediato contrasta com o comportamento do homem


sociabilizado descrito em várias passagens, tanto do primeiro quanto do segun-
do Discurso. Em oposição à natureza, a sociedade criticada por Rousseau oferece
aos homens situações inusitadas que não lhes permitem atitudes impulsivas.
Rousseau entende que, no convívio social, a mediação é imprescindível, já que
o homem social não pode escapar do sentimento de desconfiança. No estado
de natureza, a relação do homem (seja com seu semelhante, seja com a ordem
das coisas) era recíproca, transparente, sobretudo graças a um estado tranquilo
e constante que não conhecia mudanças e agitações bruscas.

O homem poderia ter permanecido no estado de natureza ou, na juventude


do mundo, vivido em pequenas comunidades de forma simples e feliz: suas ati-
tudes ainda não eram monitoradas exclusivamente pela opinião alheia e pela
honra, os ditames de uma vida privada ainda não corrompida por uma vida pú-
blica em vias de se formar lhe propiciavam relações transparentes e recíprocas.
Ele poderia ter permanecido nesse estado, sem passar a um estado posterior,
se não fosse por um conjunto de causas fortuitas que colaboraram na destrui-
ção da ordem do estado inicial. Os homens chegaram a um determinado ponto
de desenvolvimento material, intelectual e psicológico independentemente de
suas vontades. Desse modo, na teoria rousseauniana da história, contingência
e necessidade estão articuladas como categorias explicativas da mudança e do
progresso. No segundo Discurso, Rousseau descreve o processo causal que deu
origem à propriedade: para chegar a conceber a noção de propriedade, o homem
passou por um lento processo de mudanças – invenção de armas e vestes, des-
coberta da linguagem, transformações morais e cognitivas etc. Mas as causas
mais imediatas que culminaram com a propriedade foram as descobertas da
agricultura e da metalurgia. Todos esses progressos nasceram, fundamental-
mente, como resposta aos obstáculos que se apresentaram à preservação da
vida. Obstáculos (como o clima, por exemplo) que na perspectiva rousseauniana
poderiam não ter acontecido e, ainda, poderiam não ter levado os homens a
mudar, e por isso são concebidos como causas fortuitas. Apesar de muito lenta,
a passagem do estado de natureza para uma vida comunitária, para a sociabili-
dade, aparece na obra de Rousseau como uma necessidade histórica da qual os
homens não podiam escapar, mas uma necessidade (essa de mudar) desencade-
ada por um conjunto de causas contingentes.

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A obra política (formação do pacto social)


As conclusões do Discurso Sobre as Ciências e as Artes revelam homens cor-
rompidos em seus julgamentos, em suas atitudes e em sua essência, enquanto
as conclusões do Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre
os Homens revelam instituições que de maneira alguma garantem aos homens
a liberdade e a igualdade presentes no estado de natureza. Das conclusões de
ambos os Discursos, decorre um diagnóstico negativo acerca da instauração ou
surgimento de uma esfera pública ou da ordem social, quando tal instauração
ou surgimento estão abandonados aos imperativos da história, seja ela hipoté-
tica ou factual.

Uma obra política de peso se impõe quase naturalmente e, com Do Contrato


Social, confere ao conjunto da obra de Rousseau um aspecto positivo que, até
então, não havia aparecido nos seus trabalhos. Nesse sentido Do Contrato Social
se encontra, mesmo antes do seu nascimento, comprometido com um princípio
do qual ele não poderia fugir: a mudança.

Os homens nascem e são naturalmente livres e independentes, e não há au-


toridade de homem algum sobre seus semelhantes. Rousseau já havia deixado
isso claro desde o segundo Discurso, mas Do Contrato Social (livro 1, capítulos
II, III e IV) retoma esse ponto ao rejeitar qualquer convenção que queira fundar
uma ordem civil, baseada

 na mais antiga das sociedades, a família, na qual os homens se ligam ape-


nas por uma necessidade de sobrevivência, que logo passa, e quando isso
acontece eles tornam-se senhores de si, livres e independentes;

 em um raciocínio segundo o qual os homens não são naturalmente iguais,


uns nascendo destinados a dominar, e outros, a serem dominados;

 no pretenso direito do mais forte – da força não resulta direito algum e a


ela só se obedece por prudência e nunca por dever, pois cessando a obri-
gação (a força) não há mais dever, não há mais direito, que não se constitui
em coisa assim volúvel, que se dissipa com tanta facilidade;

 na alienação voluntária da liberdade, em favor de um déspota;

 no direito de escravizar, decorrente da guerra.

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Dada essa condição autônoma do homem, o problema a ser resolvido por


Rousseau é como engendrar, por meio de convenções, um estado social, um
espaço de reunião de homens que, ao mesmo tempo em que busca seus fun-
damentos no estado de natureza, também desqualifica qualquer concepção de
união natural entre os homens nesse mesmo estado. Enfim, como fomentar um
processo artificial, a construção de um estado social que reúna os homens e, ao
mesmo tempo, conserve-os livres e iguais? Nas palavras do filósofo,
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado
com toda força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si
mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse, o problema fundamental cuja
solução o contrato social oferece. (ROUSSEAU, 1978, p. 32)

Domínio público.
A solução desse problema está na
realização de um contrato social entre
todos os particulares. À primeira vista,
uma solução contraditória, pois consis-
te em evocar como ato fundamental a
necessidade da alienação total de cada
contratante, a renúncia da liberdade e
das vontades particulares de cada indiví-
duo em favor de uma nova soberania. A
associação que procura conciliar o que o
direito natural prescreve junto à ordem
civil traz no movimento que leva à ins-
tauração do pacto social essa exigência
de caráter primordial, desse modo tor-
nando possível que uma autoridade es-
tabelecida por convenções seja legítima.
Rousseau conclama a alienação sem re-
servas de cada contratante como sendo
o único modo de garantir uma condição
Folha de rosto de Do Contrato Social, ou Princí-
igual para todos, não restando quais- pios de Direito Político, publicado na Holanda,
quer direito ou vontade particular – que em 1762.
seriam a causa da ruína do pacto –, mas somente um corpo moral comum a
todos, constituído a partir do interesse particular de cada associado, visando, no
entanto, somente ao bem público.

Com Do Contrato Social tudo será diferente. O que Rousseau manifesta na sua
obra política é uma revolução sem precedentes históricos, os homens não serão
mais os mesmos depois de aderirem ao pacto social e as novas instituições pú-

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blicas não encontram exemplo similar em nenhum momento da história da hu-


manidade. Assim, é essencial pressupor que Rousseau pretende instaurar uma
autoridade civil que engendre as mesmas relações que a natureza determinava
aos homens, quando estes se encontravam no estado primitivo. Uma relação que
procura estabelecer no plano público uma autoridade sem distinções particula-
res e que, dirigindo-se a todos os contratantes, aplique-se a todos igualmente.
Nesse ato de associação a partir da alienação total de cada indivíduo, Rousseau
almeja estabelecer, em uma ordem civil, no plano público, um poder comum
(vontade geral) que não opera com distinções individuais, assim evitando um
dos grandes males das sociedades historicamente estabelecidas: a desigualda-
de. Tal como o homem selvagem não era tomado pela natureza de forma indi-
vidual, também os indivíduos do pacto social rousseauniano comprometem-se
mutuamente a cumprir os mesmos deveres e a ter os mesmos direitos, não en-
quanto homens particulares, mas apenas como cidadãos.

Desse modo, o poder soberano instaurado por meio da renúncia voluntária


de direitos individuais (vontades particulares) estabelece, na ordem civil – e, por-
tanto, em uma esfera pública – uma condição igual para todos, além de garantir
a liberdade dos contratantes. Essas são condições necessárias tanto para a legiti-
midade do pacto quanto para a coerência lógica da obra de Rousseau.

No primeiro caso (a garantia da igualdade), isso acontece à medida que os ci-


dadãos, sem qualquer distinção particular, estão submetidos igualmente a uma
única vontade, a vontade geral. Mas a garantia da igualdade não está limitada
à submissão universal de cada contratante à vontade geral: questões de ordem
material (como o direito à propriedade, por exemplo), que simplesmente não
existiam para o homem no estado de natureza, se colocam como fundamentais
e é preciso que também elas sejam regulamentadas pelo poder soberano, caso
se deseje realmente o que Rousseau chama de igualdade moral. Nesse sentido, a
igualdade estabelecida pelo pacto social é muito mais ampla que aquela experi-
mentada pelo homem selvagem no estado de natureza, pois com o pacto social
a igualdade passa a ser reconhecida e garantida pelas forças da vontade geral,
muito maiores e mais eficientes que a força do indivíduo, e a igualdade civil é a
única forma capaz de superar toda e qualquer diferença de ordem natural entre
os homens:
Terminarei este capítulo e este livro por uma observação que deverá servir de base a todo
sistema social: o pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo contrário
substitui por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de
desigualdade física entre os homens, que, podendo ser desiguais na força ou no gênio, todos
se tornam iguais por convenção e direito. (ROUSSEAU, 1978, p. 39)

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No que concerne ao claro entendimento da condição livre que o pacto social


deve ofertar para os contratantes, caso se pretenda legítimo, é fundamental,
frente à afirmação de que essa condição não será violada pelo ato de alienação
(o que parece impossível), tanto compreender a noção de liberdade rousseau-
niana nos seus dois sentidos (natural e moral) quanto examinar a relação que no
pacto social se estabelece entre liberdade e vontade geral, bem como a própria
constituição da vontade geral. Isto é, até que ponto a liberdade do cidadão não é
comprometida quando ele se sujeita às normas postuladas pela vontade geral.

A completa submissão das vontades particulares à vontade geral é uma con-


dição essencial para o bom sucesso do pacto. Em várias passagens de Do Con-
trato Social é mostrado o quanto a manifestação de vontades particulares pode
ser prejudicial ao pacto:
Se não é, com efeito, impossível que uma vontade particular concorde com a vontade geral
em certo ponto, é pelo menos impossível que tal acordo se estabeleça duradouro e constante,
pois a vontade particular tende pela natureza às predileções e a vontade geral, à igualdade.
(ROUSSEAU, 1978, p. 44)

A tese fundamental da vontade geral é que ela não se forma pela simples
soma (agregação) de vontades particulares, mas, muito pelo contrário, surge em
virtude da união dessas vontades particulares, que, dirigidas para um único ob-
jetivo (assegurar a liberdade e a igualdade) conseguem, em um espaço público,
estabelecer um bem que é comum a todos. Não é mais um contrato nos moldes
daquele estabelecido entre o rico e o pobre, como o que foi narrado no Discur-
so Sobre a Desigualdade, com a associação visava apenas garantir as posses do
primeiro. No ato de alienação, proposto por Do Contrato Social, não se trata de
sobrepujar a liberdade, pois os cidadãos não a perdem, mas a deixam segura sob
a direção de um corpo soberano que não é estranho a eles.

Se levarmos em consideração que o objetivo do contrato não é criar e nem


garantir benefícios, que ele não visa somente estabelecer um estado de paz e se-
gurança, mas, muito mais que isso, proporcionar que os direitos naturais sejam
conservados em um espaço cuja constituição é artificial, e que apenas à vontade
geral cabe, enquanto expressão máxima desse corpo soberano, normatizar as
diversas relações às quais os homens devem se sujeitar, compreenderemos não
haver contradição alguma no que se refere ao tema da liberdade dos homens.
Quando obedecem a normas impostas pela vontade geral, os cidadãos estão
obedecendo somente, e nada mais, às suas próprias vontades particulares. A
partir daí, podemos entender que submissão à vontade geral é condição fun-
damental para que, enquanto estiverem reunidos, os homens conservem a sua
condição natural de serem livres.
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Ainda nos termos de Rousseau, a vontade geral não encarna apenas prin-
cípios racionais e objetivos que procuram, por exemplo, conservar a vida e a
paz: muito mais que isso, ela manifesta os estreitos laços entre direito natural e
máximas universais. Na medida em que não distingue indivíduos (desse modo
garantindo a igualdade), a vontade geral se constitui por meio de vontades par-
ticulares e expressa, por suas normas, somente o desejo universal de homens
que se reuniram em torno dela. Percebe-se, assim, que se deixar guiar por suas
leis significa agir moralmente e com liberdade.

Creative Commons/John Eckman.

Estátua de Rousseau, em Genebra, Suíça, sua cidade natal.

Ao se submeterem à vontade geral, os homens perdem, sem dúvida alguma,


a sua liberdade natural, mas, por outro lado, ganham uma liberdade moral, como
no caso da igualdade, que em princípio garante a todos aqueles que aderiram ao
pacto uma autonomia muito mais ampla que aquela desfrutada pelo homem no
estado de natureza. Esse primeiro homem podia fazer tudo aquilo que seu ins-
tinto indicava, desde que reunisse forças compatíveis com os seus apetites e de-
sejos. Já o cidadão do contrato social, sendo livre dos ditames dos seus impulsos
naturais, ao obedecer à vontade geral age conforme a sua própria razão, e suas
ações são, nesse momento, determinadas por sua consciência, estando sujeitas
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somente a princípios que ele próprio escolheu viver. Nascidas da consciência e


apoiadas na força da vontade geral, todas as suas escolhas e ações ganham, no
espaço público, uma possibilidade de realização indiscutivelmente maior que
aquela dada pela natureza aos homens selvagens. Desse modo, a liberdade de
um direito natural, limitada a forças individuais, torna-se, com o contrato social,
o exercício de fato de um direito inalienável:
Poder-se-ia, a propósito do que ficou acima, acrescentar à aquisição do estado civil a liberdade
moral, única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do
puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatui a si mesma é liberdade. (ROUSSEAU,
1978, p. 37)

Por meio da vontade geral, a teoria da soberania rousseauniana instaura uma


autoridade civil em pleno acordo com tudo aquilo que foi exposto pelos dois
primeiros Discursos. Não obstante procure engendrar em uma esfera pública re-
lações semelhantes àquelas que a natureza determinava aos homens no estado
primitivo, Do Contrato Social não se constituiu somente em função de direitos
fundamentados no hipotético estado de natureza. Sobretudo, o que essa obra
procura é fomentar uma ordem civil que, além de garantir direitos naturais ina-
lienáveis, também seja capaz de responder à unidade subtraída do sujeito pelo
movimento da história factual.

Texto complementar

Do Contrato Social (fragmentos)


(ROUSSEAU, 2010)

Eu quero investigar se pode haver, na ordem civil, alguma regra de admi-


nistração, legítima e segura, que tome os homens tais como são e as leis tais
como podem ser. Cuidarei de ligar sempre, nesta pesquisa, o que o direito
permite com o que o direito prescreve, a fim de que a justiça e a utilidade de
modo algum se encontrem divididas.

[...]

O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros. De tal


modo acredita-se o senhor dos outros, que não deixa de ser mais escravo
que eles. Como é feita essa mudança? Ignoro-o. Que é que a torna legítima?
Creio poder resolver esta questão.

206 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


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Se eu considerasse tão somente a força e o efeito que dela deriva, diria:


enquanto um povo é constrangido a obedecer e obedece, faz bem; tão logo
ele possa sacudir o jugo e o sacode, faz ainda melhor; porque, recobrando a
liberdade graças ao mesmo direito com o qual lha arrebataram, ou este lhe
serve de base para retomá-la ou não se prestava em absoluto para subtraí-
-la. Mas a ordem social é um direito sagrado que serve de alicerce a todos os
outros. Esse direito, todavia, não vem da natureza; está, pois, fundamentado
sobre convenções. Mas antes de chegar aí, devo estabelecer o que venho de
avançar.

[...]
A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família. As
crianças apenas permanecem ligadas ao pai o tempo necessário que dele
necessitam para a sua conservação. Assim que cesse tal necessidade, dissol-
ve-se o laço natural. As crianças, eximidas da obediência devida ao pai, o pai
isento dos cuidados devidos aos filhos, reentram todos igualmente na inde-
pendência. Se continuam a permanecer unidos, já não é naturalmente, mas
voluntariamente, e a própria família apenas se mantém por convenção.
Esta liberdade comum é uma consequência da natureza do homem. Sua
primeira lei consiste em proteger a própria conservação, seus primeiros cui-
dados os devidos a si mesmo, e tão logo se encontre o homem na idade da
razão, sendo o único juiz dos meios apropriados à sua conservação, torna-se
por si seu próprio senhor. É a família, portanto, o primeiro modelo das socie-
dades políticas; o chefe é a imagem do pai, o povo a imagem dos filhos, e
havendo nascido todos livres e iguais, não alienam a liberdade a não ser em
troca da sua utilidade. Toda a diferença consiste em que, na família, o amor
do pai pelos filhos o compensa dos cuidados que estes lhe dão, ao passo
que, no Estado, o prazer de comandar substitui o amor que o chefe não sente
por seus povos.
Grotius nega que todo poder humano seja estabelecido em favor dos
governados. Sua mais frequente maneira de raciocinar consiste sempre em
estabelecer o direito pelo fato. Poder-se-ia empregar um método mais con-
sequente, não porém mais favorável aos tiranos. É, pois, duvidoso, segun-
do Grotius, saber se o gênero humano pertence a uma centena de homens,
ou se esta centena de homens é que pertence ao gênero humano, mas ele
parece pender, em todo o seu livro, para a primeira opinião. É este também o
sentimento de Hobbes. Eis assim a espécie humana dividida em rebanhos de

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gado, cada qual com seu chefe a guardá-la, a fim de a devorar. Assim como
um pastor é de natureza superior à de seu rebanho, os pastores de homens,
que são seus chefes, são igualmente de natureza superior à de seus povos.
Desta maneira raciocinava, no relato de Fílon, o imperador Calígula, con-
cluindo muito acertadamente dessa analogia que os reis eram deuses, ou
que os povos eram animais. O raciocínio de Calígula retorna ao de Hobbes
e ao de Grotius. Aristóteles, antes deles todos, tinha dito que os homens
não são naturalmente iguais, e que uns nascem para escravos e outros para
dominar. Aristóteles tinha razão, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo
homem nascido escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escra-
vos tudo perdem em seus grilhões, inclusive o desejo de se livrarem deles;
apreciam a servidão, como os companheiros de Ulisses estimavam o próprio
embrutecimento. Portanto, se há escravos por natureza, é porque houve es-
cravos contra a natureza. A força constituiu os primeiros escravos, a covardia
os perpetuou. Eu nada disse do rei Adão, nem do imperador Noé, pai de três
grandes monarcas que partilharam entre si o Universo, como o fizeram os
filhos de Saturno, nos quais se acreditou reconhecer aqueles. Espero que me
agradeçam por esta moderação, porque, descendente que sou de um desses
príncipes, quiçá do ramo mais velho, quem sabe se, pela verificação dos tí-
tulos, eu não me sentiria de algum modo como o legítimo rei do gênero
humano? Seja como for, não se pode deixar de convir em que Adão não foi
soberano do mundo como Robinson o foi em sua ilha, enquanto permane-
ceu o único habitante; e o que havia de cômodo nesse império era o fato de
que o monarca, seguro em seu trono, não tinha a recear nem rebeliões, nem
guerras, nem conspirações.

[...]
O mais forte não é nunca assaz forte para ser sempre o senhor, se não
transforma essa força em direito e a obediência em dever. Daí o direito do
mais forte, direito tomado ironicamente na aparência e realmente estabe-
lecido em princípio. Mas explicar-nos-ão um dia esta palavra? A força é uma
potência física; não vejo em absoluto que moralidade pode resultar de seus
efeitos. Ceder à força constitui um ato de necessidade, não de vontade; é no
máximo um ato de prudência. Em que sentido poderá ser um dever? Imagi-
nemos um instante esse suposto direito. Eu disse que disso não resulta senão
um galimatias inexplicável; porque tão logo seja a força a que faz o direito, o
efeito muda com a causa; toda força que sobrepuja a primeira sucede a seu
direito. Assim que se possa desobedecer impunemente, pode-se fazê-lo legi-

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timamente, e, uma vez que o mais forte sempre tem razão, trata-se de cuidar
de ser o mais forte. Ora, que é isso senão um direito que perece quando cessa
a força? Se é preciso obedecer pela força, não é necessário obedecer por
dever, e se não mais se é forçado a obedecer, não se é a isso mais obrigado.
Vê-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta à força; não significa aqui
coisa nenhuma. Obedecei aos poderosos. Se isto quer dizer: cedei à força, o
preceito é bom, mas supérfluo; eu respondo que ele jamais será violado. Toda
potência vem de Deus, confesso-o; mas toda doença igualmente vem dele:
quer isto dizer que se não deva chamar o médico? Quando um assaltante me
surpreende no canto de um bosque, sou forçado a dar-lhe a bolsa; mas no
caso de eu poder subtraí-la, sou em sã consciência obrigado a entregar-lha?
Afinal a pistola que ele empunha é também um poder. Convenhamos, pois,
que força não faz direito, e que não se é obrigado a obedecer senão às auto-
ridades legítimas. Assim, minha primitiva pergunta sempre retorna.

[...]

Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, preju-


diciais à sua conservação no estado natural, os arrastam, por sua resistência,
sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se
manter em tal estado. Então esse estado primitivo não mais tem condições
de subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de
ser. Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas
unir e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem,
senão formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los
sobre a resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-los agir
de comum acordo.

Essa soma de forças só pode nascer do concurso de diversos; contudo,


sendo a força e a liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de
sua conservação, como as empregará ele, sem se prejudicar, sem negligen-
ciar os cuidados que se deve? Esta dificuldade, reconduzida ao meu assunto,
pode ser enunciada nos seguintes termos.

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a


força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um,
unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça
tão livre como anteriormente.” Tal é o problema fundamental cuja solução
é dada pelo Do Contrato Social. As cláusulas deste contrato são de tal modo

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determinadas pela natureza do ato, que a menor modificação as tornaria vãs


e de nenhum efeito; de sorte que, conquanto jamais tenham sido formal-
mente enunciadas, são as mesmas em todas as partes, em todas as partes ta-
citamente admitidas e reconhecidas, até que, violado o pacto social, reentra
cada qual em seus primeiros direitos e retoma a liberdade natural, perdendo
a liberdade convencional pela qual ele aqui renunciou. Todas essas cláusulas,
bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação total de cada as-
sociado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade; porque,
primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição
igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros. Além
disso, feita a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto o pode ser,
e nenhum associado tem mais nada a reclamar; porque, se aos particulares
restassem alguns direitos, como não haveria nenhum superior comum que
pudesse decidir entre eles e o público, cada qual, tornado nalgum ponto o
seu próprio juiz, pretenderia em breve sê-lo em tudo; o estado natural sub-
sistiria, e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou inútil. Enfim,
cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um
associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido,
ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar
o que se tem. Portanto, se afastarmos do pacto social o que não constitui a
sua essência, acharemos que ele se reduz aos seguintes termos:

“Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade,


sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada
membro como parte indivisível do todo.”

Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de as-


sociação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros
quanto a assembleia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade,
seu eu comum, sua vida e sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela
união de todas as outras, tomava outrora o nome de cidade, e toma hoje o
de república ou corpo político, o qual é chamado por seus membros: Estado,
quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade, quando comparado
a seus semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem coletivamen-
te o nome de povo, e se chamam particularmente cidadãos, na qualidade de
participantes na autoridade soberana, e vassalos, quando sujeitos às leis do
Estado. Todavia, esses termos frequentemente se confundem e são tomados
um pelo outro. É suficiente saber distingui-los, quando empregados em toda
a sua precisão.

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Dicas de estudo
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. In: ____. O Príncipe/Escritos Políticos. São
Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. In: ____. Do Contrato Social/


Ensaio sobre a Origem das Línguas/Discurso sobre a Origem e os Funda-
mentos da Desigualdade entre os Homens/Discurso sobre as Ciências e as
Artes. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores)

Atividades
1. Explique, de modo geral, como Nicolau Maquiavel concebe a origem do po-
der político.

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2. Explique, de modo geral, como Jean-Jacques Rousseau concebe a origem do


poder.

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3. Como estabelecer, conforme a perspectiva rousseauniana, um pacto social


garantindo a condição de liberdade para todos os cidadãos?

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Gabarito
1. Maquiavel construiu uma visão crua e objetiva dos elementos e forças natu-
rais, que estruturam as relações de poder entre os homens. Esses elementos
são significados pelas lutas e conflitos de interesses, pela oposição de forças
entre os grandes que desejam dominar e os pequenos, uma grande maioria
que querem escapar à submissão pura e irrestrita. Assim, a violência está na
origem da política, para Maquiavel, e remonta ao domínio dos desejos, am-
bições e forças humanas. A reflexão política de Maquiavel não coloca a ques-
tão do direito de ter ou de exercer o poder, não discute as condições legíti-
mas de soberania. Para Maquiavel, a soberania resulta do próprio poder, está
estruturada nos elementos naturais e históricos que separam os homens em
dominantes e dominados. Um soberano é soberano porque tem ou dispõe
do poder em função de uma correspondência de fatos:

 detém os meios materiais suficientes para fazer valer os seus interesses


privados e para impor a sua força, possuindo, por exemplo, um grande e
bem armado exército;

 possui e pratica as virtudes mais adequadas para o exercício da soberania


– a astúcia, por exemplo;

 vive em um tempo favorável aos seus interesses, as situações de fato que


se apresentam são percebidas como ocasiões e oportunidades de poder
– as guerras, por exemplo, funcionam como ocasião para conquistar e ex-
pandir domínios.

2. Para Rousseau, diferentemente das colocações de Maquiavel em O Príncipe,


o poder político legítimo não está assentado na força ou mesmo na disputa
entre os homens, pois deve nascer de um pacto social, de um acordo entre os
homens livres e iguais. Assim, para Rousseau também é preciso aceitar que

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todo poder político fundado no pacto social deve preservar os direitos capi-
tais dos homens: liberdade e igualdade. Assim, os pactos sociais não apenas
estabelecem regras, mas também devem ser estruturados de acordo com
fundamentos (direitos naturais) anteriores à vida civil. Somente por meio do
estudo do homem, do estudo de um fundamento antropológico, podemos
encontrar as verdadeiras referências que devem balizar a obra política, pois
essa obra se destina ao próprio homem. Se a ordem social estabelece direi-
tos por meio de convenções, o homem, por sua vez, aparece como a medida
de todas essas convenções, conferindo sentido, sendo a fonte das regras da
obra política. Assim, antes de analisar como se processará a constituição da
ordem civil, ou ainda antes de examinar como se regulamentarão as diversas
relações entre os cidadãos, convém estudar e compreender o próprio ho-
mem.

3. Para Jean-Jacques Rousseau, a liberdade é indissociável da igualdade. Todos


os cidadãos são livres somente na medida em que todos são iguais, ninguém
se submete à vontade de ninguém. A condição livre que o pacto social deve
ofertar para os contratantes está relacionada à submissão completa das von-
tades particulares à vontade geral, condição essencial para o bom sucesso do
pacto. A tese fundamental da vontade geral é que ela não se forma pela sim-
ples soma (agregação) de vontades particulares, mas, muito pelo contrário,
surge em virtude da união dessas vontades particulares, que dirigidas para
um único objetivo – assegurar a liberdade e a igualdade – conseguem, em
um espaço público, estabelecer um bem que é comum a todos. Não é mais
um contrato nos moldes daquele estabelecido entre o rico e o pobre, como o
que foi narrado no Discurso Sobre a Desigualdade, em que a associação visa-
va apenas garantir as posses do primeiro. No ato de alienação proposto por
Do Contrato Social, não se trata de sobrepujar a liberdade, pois os cidadãos
não a perdem, mas a deixam segura sob a direção de um corpo soberano
que não é estranho a eles. À vontade geral cabe, enquanto expressão má-
xima desse corpo soberano, normatizar as diversas relações às quais os ho-
mens devem se sujeitar. Assim, não há contradição alguma no que se refere
ao tema da liberdade dos homens: quando os cidadãos obedecem a normas
impostas pela vontade geral, estão obedecendo tão somente às suas pró-
prias vontades particulares. A partir daí, podemos entender que submissão à
vontade geral é condição fundamental para que os homens, enquanto esti-
verem reunidos, conservem a sua condição natural de serem livres.

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Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Universidade de Brasília, 1992.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiás-


tico e Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores).

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. In: _____. O Príncipe/Escritos Políticos. São


Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social/Ensaio Sobre a Origem das Lín-


guas/Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens/Discurso Sobre as Ciências e as Artes. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
(Coleção Os Pensadores).

_____. Do Contrato Social. Disponível em: <www.cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.


pdf>. Acesso em: 28 out. 2010.

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Até onde podemos conhecer? (Kant)1

Na medida em que virtude e felicidade constituem em conjunto a posse do sumo


bem em uma pessoa, mas que com isso também a felicidade, distribuída bem exata-
mente em proporção à moralidade (enquanto valor da pessoa e do seu merecimento de
ser feliz), constitui o sumo bem de um mundo possível, assim este sumo bem significa o
todo, o bem consumado, no qual, contudo, a virtude é sempre, como condição, o bem
supremo

Immanuel Kant

Immanuel Kant (1724-1804) era um pacato professor de filosofia na


cidade de Königsberg, Alemanha, onde ensinava sobre Deus, alma e
mundo do ponto de vista metafísico e protestante-pietista, até que se
encontrou com o ceticismo de David Hume (1711-1776), que teria lhe
acordado daquilo que ele mesmo chamou de sono dogmático. Hume teria
feito Kant perguntar-se sobre a validade de seus juízos, a verdade de suas
afirmações. Como dar crédito às proposições metafísicas? O que nelas há
de verdades realmente necessárias e absolutamente irrevogáveis? É pos-
sível, pelo simples raciocínio e antes de qualquer experiência, conhecer a
verdade sobre o mundo no que tange, por exemplo, às relações de cau-
salidade? Essas afirmações não seriam guiadas pelo mero costume e pela
experiência passada, fato que revela apenas um cansaço e uma preguiça
de pensar novamente? E mais: será que os conceitos acima são simples-
mente desprovidos de sentido?

1
Enquanto escrevemos este texto, folheando obras de Kant traduzidas por Valério Rohden, celebramos o sétimo dia de seu falecimento,
em Curitiba, depois de ter atuado durante dois anos como professor colaborador do programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR), onde trabalhava na tradução dos escritos antropológicos do filósofo alemão. Ao professor Valério,
dedicamos este capítulo, como homenagem por sua jovialidade, amizade e testemunho de compromisso com a filosofia em nosso país.

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Até onde podemos conhecer? (Kant)

Domínio público.
Retrato de Kant. Gravura de J. L. Raab, a partir de
trabalho de Döbler.

Instigado por essas questões, Kant levou a cabo uma das obras mais funda-
mentais da filosofia, uma contribuição decisiva para se pensar os problemas
modernos, no que concerne não só ao conhecimento mas também à moral e
à estética. Suas perguntas revelam a densidade da problemática e a coragem
filosófica de seu empreendimento:

 O que posso saber?

 O que devo fazer?

 O que me é permitido esperar?

 O que é o homem?

Trataremos, aqui, das duas primeiras questões, que guiam o filósofo por um
projeto de crítica aos limites da razão, para que ela não seja mais uma razão “in-
gênua”, mas que defina os seus próprios limites. Trata-se do projeto iluminista,
de uma razão esclarecida sobre si mesma e sobre o seu alcance. Nesse sentido,
Kant implementa um projeto para que a razão saia fortalecida.

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Até onde podemos conhecer? (Kant)

A era moderna e uma nova visão de mundo


O século XVIII viu a matemática e a física se consolidarem enquanto ciências
cuja verdade seria indiscutível. A geometria analítica de René Descartes (1596-
-1650) e o cálculo infinitesimal de Isaac Newton (1642-1727) e Gottfried Wilhelm
von Leibniz (1646-1716) seriam as bases dessa pretensão – e, enquanto tal, re-
presentavam o correto modelo para se fazer ciência. Newton havia alcançado
marcantes resultados no âmbito da física matemática (que é um ramo da física
teórica), mostrando que o universo segue uma lei universal que deveria ser des-
crita pela razão humana. Ao contrário do que ocorrera nas cosmologias anti-
gas (dos gregos, por exemplo), ao homem já não bastava apenas contemplar
a ordem. As novidades sobre mecânica celeste, que marcam o nascimento da
astronomia moderna (telescópio, teoria das cores, lei da gravitação e da atração
universal, medições da Terra e dos astros em suas infinitas distâncias etc.), eram
elementos dependentes do trabalho da razão, de uma atividade intelectual de
síntese, de um método de aplicação e experimentação que resulta da força do
espírito humano. Em vez da contemplação da ordem geral, na era moderna essa
ordem depende do ser humano e da sua atividade racional.

Ora, o tema da natureza aparece como um dos mais centrais de toda a mo-
dernidade, no que diz respeito não só à filosofia, mas também à física e à cosmo-
logia, dada essa ruptura com o pensamento antigo e medieval implementada
por Newton (em relação a quem Kant não estava, de maneira alguma, alheio),
mas antes dele por Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642). A
natureza que se ergue dessas “revoluções” não é mais aquela ordenada e harmô-
nica das cosmogonias ou cosmologias antigas, mas uma nova visão baseada em
colisões de forças. Antes fechado e pacífico, o mundo se revelava então aberto e
infinito, muito mais complexo e diverso do que se imaginava, além de dependen-
te de uma atividade humana de síntese que lhe desse algum ordenamento. Um
todo finito dava lugar a um cosmo indefinido e infinito que, nessa medida, não
servia mais como princípio ético, tal como havia sido proposto, por exemplo, pelo
estoicismo2: inanimada e arreligiosa, a natureza já não servia como guia, mas es-
perava, passivamente, por alguma significação externa. Sem a referência da natu-
reza, era na razão que o homem encontraria o ordenamento antes localizado no
mundo natural. O bem não estava mais no mundo, mas a ele precisaria ser levado
pela razão humana. A natureza mesma parecia eticamente neutra e amoral.
2
Uma das correntes filosóficas chamadas helenistas. Fundado por Zenão de Cítio, o estoicismo teve grandes seguidores em Roma, Entre os quais
Marco Aurélio, Sêneca, Epíteto e Lucano. Sua tese principal afirmava que o universo é formado por um logos divino que ordena todas as coisas
segundo uma harmonia (kosmos) que deveria ser seguida pelo homem em termos morais. Por isso, o homem deveria viver segundo a lei natural
do mundo, buscando uma indiferença (apathia) em relação a todos os agentes externos, mantendo a serenidade frente a todos os acontecimentos
vitais.

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Se a centralidade da reflexão antiga e medieval fora o cosmo (reconhecido


como algo harmônico que levaria à aceitação de uma ordem natural estática
e perfeita, imanente ao real e na qual o homem aparece como apenas um dos
componentes), a modernidade pode ser caracterizada pela radical mudan-
ça nessa forma de compreensão do homem no mundo, pois está centrada no
homem. Vejamos: o racionalismo separou o homem da natureza, o humanismo
estabeleceu o poder do primeiro sobre a segunda, e o empirismo de tipo ba-
coniano possibilitou o exercício desse poder como um poder interventor. Não
à toa, o problema da relação entre natureza e espírito (ou, em outras palavras,
entre natureza e civilização, natureza e razão, em um debate entre opostos que
remete a autores tão diversos como Descartes, Spinoza, Rousseau, Schelling e
Fichte, entre outros) se apresenta como o tema central da era moderna, sua re-
percussão sendo capital no pensamento de Kant.

Diferentemente do que fazia nos tempos antigos e medievais, quando sim-


plesmente contemplava o mundo, na era moderna o homem passou a intervir
sobre ele de maneira decisiva. Teocêntrica no Medievo ou cosmocêntrica na An-
tiguidade, a visão do homem pré-moderno se ergueu como contemplação da
ordem natural, na busca de uma ampliação do elemento religioso, que marcou
aqueles dois momentos de nossa civilização. Como exaltação da realidade ima-
nente, a modernidade se efetivou, desde os primeiros sopros, como um perío-
do antropocêntrico, que se revelava pela exaltação da capacidade racional do
homem frente ao mundo natural. A ordem não estava simplesmente na natu-
reza, mas dependia da própria razão, que deveria impor à natureza um orde-
namento teórico. Não se tratava mais de apenas seguir as normas da natureza,
mas de impor-lhe sentidos, pela razão, e pô-la a serviço do homem. Em outras
palavras, a natureza não era mais moral, pois essa era uma característica presen-
te tão somente no próprio homem e em sua racionalidade. A razão era a fonte da
moral. O homem que conhece e transforma praticava essas ações porque nele
habitava a moral, a capacidade de avaliação, a disposição para o bem, a enverga-
dura que fazia de suas ações algo benéfico, abnegativo, puro. Isso tudo porque
ele, o homem, dominava, pelo conhecimento, as regras da finalidade natural,
decifrava e dirigia seus objetivos, guiava suas forças – pela via da razão – em prol
do bem humano. O homem passou a ser considerado não um meio, mas um fim.
O que era lógico se tornou bom porque a razão era superior e só ela conduzia ao
bem, já que o conhecimento era considerado um atributo de ascendência do
humano sobre os demais seres orgânicos e inorgânicos. E isso porque a razão
era reconhecida como estável no mundo instável da natureza, fixa no meio do

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mutável, ordenada no meio do aparentemente caótico, teleológica3 no meio da-


quilo que parecia sem finalidade, livre enquanto tudo era necessário. Nesse ce-
nário, o homem aparecia, nas palavras de Kant, como um juiz da natureza (KANT,
1996, p. 38).

O que posso saber?


Kant está inserido no grande debate de seu tempo. Frente ao novo cenário
científico e moral, ele se deu conta de que já não era possível seguir apenas con-
templando o mundo, era preciso se empenhar em impor ao mundo uma orde-
nação, algo que seria realizado por meio do trabalho de construção de leis que
tornassem possível compreender o universo e, nele, o lugar do homem.

Bastava, para tanto, a lógica dedutiva da matemática?

Bastava o experimentalismo e o empiris-

Domínio público.
mo anunciados como novos métodos
científicos?

O objeto, portanto, da primeira pergunta


sobre o conhecimento (O que posso saber?)
é a metafísica. Para solucionar a questão, Kant
precisou remontar o conhecimento às suas
condições iniciais para, a partir daí, pelo uso
do método crítico, verificar a sua validade:
Está aí, no fundo, a razão pela qual a Crítica da Razão
Pura se questiona sobre nossa capacidade de fabricar
“sínteses”, “julgamentos sintéticos”, ou seja, leis que
estabeleçam ligações (etimologicamente, sintetizar
significa “depositar junto, colocar junto”) coerentes e
esclarecedoras entre fenômenos cuja ordenação não
é dada, mas construída. (FERRY, 2009, p. 12, grifos do
autor)

Esse é o tema da Crítica da Razão Pura, de


Kant, que teve sua primeira edição em 1781,
e uma segunda, revista e ampliada pelo autor,
em 1787.
Folha de rosto da primeira edição da Crítica
Centrado no problema da causalidade, da Razão Pura.
apresentado por Hume, Kant quis mostrar
3
Teleológico é aquilo que tem um telos, ou seja, um fim, uma meta, uma finalidade.

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que, na análise do conhecimento sensível, a razão tem um papel importante,


já que, sem ela, qualquer afirmação do nível causal a respeito do mundo seria
impossível. É a razão que impõe um sentido ao mundo, no qual não está inscrita
a causalidade. Sobre isso, afirma Lebrun que
Toda a Crítica da Razão Pura é escrita para convencer-nos de que, quando conhecemos ou
formulamos um conhecimento, nada desvendamos de “Ser em si”, não deciframos um texto
que teria sido gravado “nas coisas”, como pretendiam os metafísicos desde Platão. Penetrar
por nossa razão nas coisas... Pretensão fanfarra, que Hume teve o imenso mérito de refutar.
(LEBRUN, 2001, p. 10)

O reducionismo de Hume, entretanto, não tarda a aparecer para Kant: nem


todo conhecimento racional dos objetos é mera ilusão. Esse é o poder do projeto
crítico que pretende fazer uma análise da razão, para saber até onde ela pode ir.
Por esse exame minucioso da faculdade do conhecimento, Kant impetra a justi-
ficação das verdades científicas.

Kant está ciente da existência de dois tipos de conhecimento:

 o empírico, que se dá sempre a posteriori (depois da verificação), já que


depende de uma experiência com o objeto;

 o puro4, que é a priori (antes da verificação) e, posto que não depende de


nenhuma experiência, pode ser considerado universal e necessário.

Com isso, já se pode inferir o limite do primeiro tipo de conhecimento: não se


pode afirmar, amparado na experiência sensível, nada de universal e necessário:
“a experiência jamais dá aos seus juízos universalidade verdadeira ou rigorosa,
mas somente suposta e comparativa (por indução)” (KANT, 1996, p. 54). Isso faz
afirmar que qualquer pretensão de universalidade no âmbito dos juízos empíri-
cos “é somente uma elevação arbitrária da validade” (KANT, 1996, p. 54).

Além dessa primeira distinção a respeito dos juízos de conhecimento, Kant


identifica uma segunda: existem os juízos analíticos e os juízos sintéticos.

Nos primeiros, o predicado está contido no sujeito: o processo se dá apenas


por análise, pela qual se retira do sujeito o que já está nele contido. Um exemplo:
a afirmação “os corpos são extensos” revela que o predicado extenso já está con-
tido no sujeito corpo, já que não existe nenhum corpo que não seja extenso.

Do segundo tipo são os juízos que derivam de uma síntese, e nos quais há
uma união do conceito colocado no predicado com aquele que está no sujeito.
4
“Denomino puras (em sentido transcendental) todas as representações em que não for encontrado nada pertencente à sensação. Consequente-
mente, a forma pura de intuições sensíveis em geral, na qual todo o múltiplo dos fenômenos é intuído em certas relações, será encontrada a priori
na mente. Essa forma pura da sensibilidade também se denomina ela mesma intuição pura” (KANT, 1996, p. 72).

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Exemplo: quando afirmo que “os corpos são musculosos”, coloco sobre o sujeito
(corpo) um predicado novo (musculosos).

Como logo se pode notar, Kant não tarda a concluir que o primeiro tipo de
juízo não acrescenta nada, e apenas o segundo faz o conhecimento progredir.

Além dos juízos chamados analíticos (realizados por análise, necessários e a


priori) e dos juízos chamados sintéticos a posteriori (realizados por síntese e não
necessários), existem também os juízos sintéticos a priori, nos quais se encaixam
as noções de espaço e de tempo, que são as duas formas a priori da sensibilidade.
Em outras palavras, todas as experiências sensíveis feitas no mundo se efetuam
sempre no espaço e no tempo, estruturas que, previamente colocadas para o
espírito humano, são necessárias e universais – todo o ser humano, posto no
mundo, é detentor dessa possibilidade. É por essa via que Kant afirma a idealida-
de transcendental de toda a experiência.

Os juízos analíticos não têm nenhum interesse no âmbito científico, porque


são apenas redundantes ou, em linguagem filosófica, tautológicos5. São típicos
do pensamento metafísico do qual Kant pretende se desvencilhar.

Já os juízos sintéticos a posteriori são característicos do pensamento empírico


contingente e particular, cuja expressão se esgota em si mesma.

Portanto, como resultado de seu trabalho, Kant promove uma conciliação dos
dois polos, aparentemente opostos, ao afirmar o terceiro tipo de juízo, o juízo
sintético a priori – e é essa a principal questão de sua teoria do conhecimento,
tese pela qual ele junta a universalidade dos juízos com a sua necessidade, via
pela qual é possível falar em progresso e avanço do conhecimento. Dando uma
resposta aos problemas de seu tempo, as três questões enfrentadas pelo filósofo
alemão podem ser assim reformuladas:

 Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na matemática?

 Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na física?

 São possíveis os juízos sintéticos a priori na metafísica? (KANT, 1996, p. 63-64).

A primeira questão é colocada na primeira parte da Crítica da Razão Pura, in-


titulada “Estética transcendental”, na qual a estética é entendida como teoria da
sensibilidade e o transcendental, como reflexão sobre o modo de conhecer os

5
Tautológica é uma proposição em que o predicado apenas repete o que já está no sujeito, tendo uma perspectiva pejorativa, já que parece expli-
car, quando na verdade, nada diz – ou diz o mesmo duas vezes.

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objetos: “Denomino estética transcendental uma ciência de todos os princípios


da sensibilidade a priori” (cf. KANT, 1996, p. 72).

A segunda pergunta é tema da segunda parte da Crítica da Razão Pura, inti-


tulada “Analítica transcendental”, na qual a analítica é apresentada como análise
dos elementos apriorísticos do entendimento:
Esta analítica é a decomposição do nosso inteiro conhecimento a priori nos elementos
do conhecimento puro do entendimento. Os pontos importantes a este respeito são os
seguintes: 1) que os conceitos sejam puros e não empíricos; 2) que pertençam não à intuição e
à sensibilidade, mas ao pensamento e ao entendimento; 3) que sejam conceitos elementares e
bem distinguidos dos conceitos derivados ou compostos de conceitos; 4) que a sua tábua seja
completa e que preencham inteiramente o campo do entendimento puro. (KANT, 1996, p. 99)

Finalmente, a terceira parte tem como tema a “Dialética transcendental”, em


cujo bojo se encontra a reflexão sobre o uso, por parte da razão, das categorias
do entendimento, com vistas à metafísica.

A partir das duas “condições” do conhecimento, o espaço e o tempo, anali-


sadas por Kant na “Estética transcendental”, todos os fenômenos do mundo são
percebidos pelo espírito humano a partir das chamadas categorias do entendi-
mento (analisadas na “Analítica transcendental”), que têm a função de organizar
o material recolhido do mundo. A partir daí, chega-se à análise das antinomias
da razão, ou seja, a pretensão de conhecimento no âmbito da metafísica não tem
nenhuma validade. Essa é a verdadeira revolução copernicana implementada por
Kant no âmbito filosófico. Sem essas categorias, as intuições sensíveis do mundo
seriam cegas, e sem as intuições sensíveis as tais categorias seriam vazias. É por
isso que a razão, em Kant, não pode apreender nada a não ser aquilo que se
efetiva no âmbito da experiência, daquilo que ele chama de fenômeno. Só aí é
possível o conhecimento.

Quanto às categorias do entendimento, Kant as organizou em 12 tipos de


juízos possíveis, divididos em quatro grupos de três, afirmando que,
[...] se abstrairmos de todo o conteúdo de um juízo em geral e se nele prestarmos atenção à
simples forma do entendimento, veremos que a função do pensamento nesse juízo pode ser
reduzida a quatro títulos, cada um deles contendo três momentos. (KANT, 1996, p. 103)

Essa tábua é assim organizada:

 juízos de quantidade – universais, particulares e singulares;

 juízos de qualidade – afirmativos, negativos e indefinidos;

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 juízos de relação – categóricos, hipotéticos e disjuntivos;

 juízos de modalidade – problemáticos, assertórios e apodíticos.

As categorias resultantes dessa organização seriam unidade, pluralidade,


totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causa, comunidade, pos-
sibilidade, existência e necessidade. Esse é o tema da “Analítica transcenden-
tal”, cuja tarefa de mostrar a legitimidade é chamada de dedução (prova legal)
transcendental:
Desse modo, surgem precisamente tantos conceitos puros do entendimento, que se referem
a priori a objetos da intuição em geral, quantas eram na tábua anterior as funções lógicas em
todos os juízos possíveis. Com efeito, através de tais funções o entendimento é completamente
exaurido e sua faculdade inteiramente medida. Seguindo Aristóteles, denominaremos tais
conceitos categorias na medida em que nossa intenção, em princípio, identifica-se com
Aristóteles, se bem que se afaste bastante dele na execução. (KANT, 1996, p. 108)

Mais do que uma classificação técnica de termos de difícil compreensão, o


que vemos aqui é a forma kantiana de organização do pensamento em busca
da sua legitimidade, fazendo com que a síntese por ele estudada e tida como
necessária para o “bom” e “correto” funcionamento da razão seja analisada do
ponto de vista do sujeito. Mas o problema que persiste é o seguinte: como “co-
nectar” essas categorias (que são subjetivas, ou seja, estão no sujeito) com os
fenômenos: “qual é o elemento intermediário existente entre os conceitos e a
realidade?” (KANT, 1996, p. 11). Deveria haver algo que fosse sensível e inteligível
ao mesmo tempo, de modo a possibilitar essa conexão. Para esse papel, Kant
evoca a noção de tempo, que é igual ao sensível porque é a sua condição e, ao
mesmo tempo, é universal e necessário, posto que é um conceito. A isso, Kant
denomina esquema transcendental.

Estariam, assim, respondidas as duas primeiras questões e, consequentemen-


te, a matemática e a física teriam validade científica. A análise das antinomias da
razão, por sua vez, faria ver que nos domínios da metafísica essa validade não
seria possível: aí é possível pensar, mas não conhecer, já que a metafísica ultra-
passa o âmbito do fenômeno e se coloca no âmbito do noumenon. O noume-
non seria, para Kant, “uma coisa enquanto não é objeto de nossa intuição sensível”
(KANT, 1996, p. 208). Suas afirmações seriam ilegítimas, portanto, do ponto de
vista do conhecimento. No prefácio à segunda edição da primeira Crítica, escrito
em 1787, Kant expressa esse problema:
A Metafísica, um conhecimento da razão inteiramente isolado e especulativo que através
de simples conceitos (não como a matemática, aplicando os mesmos à intuição), se eleva
completamente acima do ensinamento da experiência, na qual portanto a razão deve ser
aluna de si mesma, não teve até agora um destino tão favorável que lhe permitisse encetar
o caminho seguro de uma ciência, não obstante ser mais antiga do que todas as demais e de

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que sobreviveria mesmo que as demais fossem tragadas pelo abismo de uma barbárie que a
tudo exterminasse. Pois a razão emperra continuamente na metafísica mesmo quando quer
discernir a priori (como se arroga) aquelas leis que a experiência mais comum confirma. (KANT,
1996, p. 38)

O que Kant enfrenta como desafio é analisar esses limites da metafísica, desco-
brindo que muitas das suas afirmações são vazias de sentido e não levam a nada,
vindo a ser constituída como um “campo de batalha”, no qual ninguém alcançou
vitória até então, já que nenhum jogador foi capaz de manipular as peças de
forma satisfatória. Por isso, o objetivo apresentado por Kant é o de “transformar
o procedimento tradicional da metafísica e promover através disso uma com-
pleta revolução da mesma, segundo o exemplo dos geômetras e investigações
da natureza” (KANT, 1996, p. 41). Em outras palavras, fazer na metafísica o que foi
realizado na matemática e na física. Autointitulada “tratado do método”, a Crítica
da Razão Pura não é um “sistema de ciência”, mas um estudo metodológico que
traça o contorno da ciência a partir da uma análise da sua “viabilidade interna”.
Sua crítica é dirigida, portanto, ao dogmatismo, isto é, “à pretensão de progredir
apenas com um conhecimento puro a partir de conceitos (o filosófico) segundo
princípios há tempos usados pela razão, sem se indagar contudo de que modo e
com que direito chegou a eles” (KANT, 1996, p. 47).

O que devo fazer?


Mas Kant não nega simplesmente a existência de uma realidade apenas inteli-
gível (e não sensível). Para ele, a coisa em si do mundo (a essência mais íntima da
realidade) não é alcançada pela percepção sensível (que está limitada ao âmbito
dos fenômenos), a única que poderia ser conhecida (para conhecer é preciso
haver experiência com a coisa). Lebrun esclarece que “por coisa em si não se deve
entender nada além da coisa considerada independentemente de nossos senti-
dos e de um conhecimento empírico possível” (LEBRUN, 2001, p. 52). Essa noção
aparece, por exemplo, quando Kant afirma que “o uso transcendental de um con-
ceito, em qualquer princípio, consiste no fato de ser referido a coisas em geral
e em si mesmas; o uso empírico, porém, consiste em ser referido meramente a
fenômenos, isto é, a objetos de uma experiência possível” (KANT, 1996, p. 203), ou
mesmo quando o filósofo afirma sobre o conceito de noumenon que ele é
[...] uma coisa que não deve absolutamente ser pensada como objeto dos sentidos, mas
como coisa em si mesma (unicamente por um entendimento puro), não é de modo algum
contraditório, pois não se pode afirmar que a sensibilidade seja o único modo possível de
intuição. (KANT, 1996, p. 209)

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O reino do noumenon escapa ao conhecimento, mas isso não significa que


ele não tenha validade: sua validade está amparada no aspecto prático da razão,
já que os conceitos de Deus, liberdade e alma poderiam ser pensados coerente-
mente, ainda que não possam ser conhecidos. Passa-se, assim, da primeira crítica
à segunda, a Crítica da Razão Prática, publicada em 1788. Essa obra está dividida
em duas partes: uma “Analítica da razão prática pura” e uma “Dialética da razão
prática pura”, faltando-lhe, propositadamente, uma estética, já que a faculda-
de prática da razão não depende de nenhuma sensibilidade espaçotemporal,
opondo-se, pela via da liberdade e da autonomia, à ideia de uma determinação
sensível. Esse elemento sensível só pode ser deduzido racionalmente a partir da
racionalidade pura.

Domínio público.

Folha de rosto das edições de 1781 e 1787 da Crítica da Razão Prática.

Para Kant, é só no âmbito da moral que a razão pode mostrar o seu valor prin-
cipal. É ela que ajuda a responder à questão sobre O que devo fazer? E afirma que
“as leis morais têm que ter um fundamento. O único fundamento que sobra para
elas é a razão. Esta não mora nem no céu nem na terra” (BITTNER apud ROHDEN,
2008, p. 14). A razão prática organiza a ação segundo um dever, que passa a ser

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determinado por máximas que podem ser transformadas em leis válidas para
qualquer sujeito racional. Assim, toda ação, desde que cumprida por dever, al-
cança o caminho do bem e pode ser considerada moral. E isso ocorre justamen-
te porque ela não está amparada em nenhum elemento sensível ou empírico,
mas naquilo que Kant chama de imperativo categórico, cuja expressão mostra a
vitória da razão sobre os dados sensíveis coletados, por exemplo, pelas inclina-
ções, paixões e instintos. O imperativo categórico distingue-se de um imperativo
hipotético porque está desvinculado de qualquer condição. Por isso, ele é for-
mulado da seguinte maneira: “Age de tal maneira que o motivo que te levou a
agir possa ser convertido em lei universal” (KANT, 2002, p. 51). Esse imperativo
contém apenas uma forma geral da razão, não está condicionado por qualquer
experiência sensível e, portanto, nele a razão pura se revela por si mesma, práti-
ca, dando ao homem a lei moral:
Em suma, o imperativo categórico afirma a autonomia da vontade como único princípio de
todas as leis morais e essa autonomia consiste na independência em relação a toda a matéria
da lei e na determinação do livre-arbítrio mediante a simples forma legislativa universal de que
uma máxima deve ser capaz. (KANT, 1996, p. 15)

No âmbito da moral, a razão domina, já que o sujeito não deve agir simples-
mente porque sente ou porque gosta, mas por respeito à lei moral, derivada racio-
nalmente e portadora de um absoluto poder legislativo.

Para Kant, o fundamento da moralidade está na autonomia da vontade (pois


não pode haver fundamentação no mundo dos fenômenos) que faz de cada in-
divíduo um legislador, não aquele que se deixa guiar por seu impulso ou instinto
(posto que a moral é desprovida de qualquer elemento afetivo ou patológico),
mas simplesmente pela razão (o fundamento da moral é, pois, um factum racio-
nal), que lhe possibilita legislar criando regras de ação e escolha e, consequen-
temente, regras de responsabilidade. É a autonomia do sujeito que funda a lei
moral, tarefa para a qual nem mesmo Deus ou a natureza são suficientes. Como
ente racional finito, o homem deve usar a razão para controlar os seus apetites,
em busca da virtude, fazendo com que a ética kantiana seja uma ética do dever
baseada na autocoerção da razão. Assim, compatibiliza o dever e a liberdade de
uma forma surpreendente, já que é a razão que cria a lei e, quando se lhe exige
obediência, é à razão mesma, enquanto gesto de liberdade, que se deve obede-
cer. Como o homem não apenas tem a razão mas também é razão, obedecer à
lei criada racionalmente é obedecer a si mesmo.

Kant, portanto, não é ingênuo: ele sabe que o homem pertence a dois domí-
nios – o reino da razão e o reino da natureza. No primeiro, quem governa é a li-
berdade; no segundo, a necessidade. No primeiro, há possibilidade de escolhas;
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no segundo, não. Como pertencente ao segundo reino, o homem pode perma-


necer escravo de sua natureza sensível e volitiva, mas como pertence também
ao primeiro, como ser inteligível e racional, pode agir livremente – o que, no
fundo, significa agir segundo as leis que ele mesmo prescreveu para si mesmo
no âmbito inteligível: “O essencial de todo o valor moral das ações depende de
que a lei moral determine imediatamente a vontade” (KANT, 2008, p. 126).

Como a moral pertence ao primeiro reino, o da razão, Kant conclui que a li-
berdade só pode ser exercida no campo da moral, que não é um resultado da
coerção, mas da postulação da liberdade. Assim, a liberdade é um postulado da
razão prática, posicionada ao lado de outros dois: a imortalidade da alma e a
existência de Deus (que garante a harmonia entre virtude e felicidade no além).
Por isso, afirma Kant, a respeito de sua própria tarefa:
É justamente nestes últimos conhecimentos, que se elevam acima do mundo sensível, onde a
experiência não pode dar nem guia nem correção, residem as investigações de nossa razão que
pela sua importância consideramos muito mais eminentes e pelo seu propósito último muito
mais sublimes do que tudo o que o entendimento pode apreender no campo dos fenômenos;
mesmo sob o perigo de errar, nisto arriscamos antes tudo a dever desistir de tão importantes
investigações por uma razão qualquer de escrúpulo, de menosprezo ou de indiferença. Esses
problemas inevitáveis da própria razão pura são Deus, liberdade e imortalidade. A ciência,
porém, cujo propósito último está propriamente dirigido com todo o seu aparato só à solução
desses problemas denomina-se metafísica; o procedimento desta é de início dogmático, ou seja,
assume confiantemente a sua execução sem um exame prévio da capacidade ou incapacidade
da razão para um tão grande empreendimento. (KANT, 1996, p. 56, grifos do autor)

Note-se bem: esses três postulados não podem ser alcançados de forma sen-
sível (por isso mesmo são postulados). Chega-se, assim, a três afirmações que
nenhuma metafísica anterior alcançou, porque não foi capaz de analisar criti-
camente os limites da razão. Para Kant, é o conceito de liberdade que deve ser
entendido como o
[...] fecho de abóbada de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão
especulativa e todos os demais conceitos (os de Deus e de imortalidade), que permanecem
sem sustentação nesta última como simples ideias, seguem-se agora a ele e obtêm com ele
e através dele consistência e realidade objetiva, isto é, a possibilidade dos mesmos é provada
pelo fato de que a liberdade efetivamente existe; pois esta ideia manifesta-se pela lei moral.
(KANT, 2008, p. 4, grifos do autor)

Por isso, para Kant, é no reino moral que devem ser encontrados os funda-
mentos dos conceitos de Deus, liberdade e imortalidade.

Sobre a liberdade, tema central dessa análise, Kant distingue uma concepção
psicológica e outra transcendental, mostrando que o segundo uso mostra a sua
“total incompreensibilidade, como conceito problemático no uso completo da
razão especulativa” (KANT, 2008, p. 12, grifo do autor).

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Domínio público.
Kant, na sua caminhada diária por Köni-
gsberg, sua cidade natal, e onde sempre
viveu, segundo desenho de Puttrich.

Se no âmbito da razão teórica Kant se ocupara da faculdade de conhecer,


no da razão prática ele versa sobre a faculdade de “produzir objetos correspon-
dentes às representações, ou de então determinar a si própria para a efetuação
dos mesmos” (KANT, 2008, p. 25), ou seja, trata-se de analisar os fundamentos
determinantes da vontade.

Ao analisar o conceito de liberdade, o autor pretende apresentar um conceito


provando que a razão pura pode ser prática e que “unicamente ela e não a razão
limitada empiricamente é incondicionalmente prática” (KANT, 2008, p. 26). A li-
berdade conduz à noção de autonomia e é nela, segundo a demonstração kan-
tiana, que se encontra o fundamento de leis práticas. Para isso, é preciso analisar
os princípios das filosofias morais precedentes, que pretendiam, em especial,
transformar o amor de si em um princípio moral. Ao contrário, como fundamen-
to da moral, a liberdade está ligada à capacidade de se subtrair dos interesses

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pessoais e é por essa capacidade desinteressada que é possível transformar o


homem em um animal moral, portador de direitos e dignidade (como um fim
em si mesmo). É a liberdade que torna o homem capaz de agir de maneira desin-
teressada, o único ser capaz, portanto, de criar cultura, política e, principalmen-
te, moral6. Assim como a ação desinteressada, a liberdade também está ligada
ao interesse geral, formando a tríade do modelo da ética do dever, vigente na
era moderna. É deles – ação desinteressada, liberdade e interesse geral – que
fazemos derivar os elementos primordiais da cultura, em contraposição àquilo
que fora reconhecido como a parte natural ou animalesca do humano.

Para isso, Kant recorre à noção de boa vontade presente no homem. A liber-
dade mostra que o homem não está aprisionado a algum código natural deter-
minista, mas é um ser moral com capacidade de furtar-se ao emaranhado de
inclinações que formam o seu estado fisiobiopsicológico. A liberdade, “se ela nos
é atribuída, transporta-nos a uma ordem inteligível das coisas” (KANT, 2008, p.
68). Como parte da natureza suprassensível, a liberdade segue “leis que são in-
dependentes de toda a condição empírica, que, por conseguinte, pertencem à
autonomia da razão pura” (KANT, 2008, p. 69, grifo do autor).

A lei que rege essa realidade inteligível é a lei moral: “Mas a lei dessa auto-
nomia é a lei moral, que é, portanto, a lei fundamental de uma natureza supras-
sensível e de um mundo inteligível puro” (KANT, 2008, p. 70). A ideia de uma
natureza não dada empiricamente é, “contudo, possível pela liberdade, por con-
seguinte de uma natureza suprassensível à qual conferimos realidade objetiva
pelo menos numa perspectiva prática, porque enquanto entes racionais puros a
consideramos objeto de nossa vontade” (KANT, 2008, p. 71).

A virtude é entendida, então, como a capacidade de impor a liberdade contra


a naturalidade. É preciso criar, de certo modo, uma “segunda natureza” não mais
fundada na redução da natureza, mas no homem enquanto “reino dos fins”.
É assim que o homem aparece como um fim em si mesmo, como um ser que
possui dignidade por si mesmo. O espaço de partilha pública desse ideal, inclu-
sive, passa a ser a política e, mais especificamente, a república, o lugar onde se
partilha o cuidado com a coisa pública (em latim, res publica).

6
Aqui é necessário notar a grande influência das ideias do filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) sobre Kant, seja no que tange à concepção
geral de uma antropologia, seja no tocante à noção de perfectibilidade (capacidade humana de se aperfeiçoar durante a vida, guiado pela natureza),
muito semelhante à ideia de liberdade tal como tematizada no texto kantiano.

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Textos complementares

Sobre a Ciência da Natureza (Física)


(KANT, 1996, p. 38)

Quando Galileu deixou as suas esferas rolarem sobre o plano inclinado


com um peso por ele mesmo escolhido, ou quando Torricelli deixou o ar car-
regar um peso de antemão pensado como igual ao de uma coluna de água
conhecida por ele, ou quando ainda mais tarde Stahl transformou metais em
cal e esta de novo em metal retirando-lhes ou restituindo-lhes algo: assim
acendeu-se uma luz para todos os pesquisadores da natureza. Compreen-
deram que a razão só discerne o que ela mesmo produz segundo seu pro-
jeto, que ela tem de ir à frente com princípios dos seus juízos segundo leis
constantes e obrigar a natureza a responder às suas perguntas, mas sem ter
de deixar-se conduzir somente por ela como se estivesse presa a um laço;
pois do contrário observações casuais, feitas sem um plano previamente
projetado, não se interconectariam numa lei necessária, coisa que a razão
todavia procura e necessita. A razão tem que ir à natureza tendo numa das
mãos os princípios unicamente segundo os quais fenômenos concordantes
entre si podem valer como leis, e na outra o experimento que ela imaginou
segundo aqueles princípios, na verdade para ser instruída pela natureza, não
porém na qualidade de um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor
quer, mas na de um juiz nomeado que obriga as testemunhas a responder às
perguntas que lhes propõe [...]. Através disso, a Ciência da Natureza foi pela
primeira vez levada ao caminho seguro de uma ciência, já que por muitos
séculos nada mais havia sido que um simples tatear.

Sobre a determinação do sumo bem


(KANT, 2008, p. 179-180)

O conceito de sumo contém já uma ambiguidade, que, se não se presta


atenção a ela, pode ensejar contendas desnecessárias. Sumo pode significar
o supremo (supremum) ou também o consumado (consummatum). O pri-
meiro é aquela condição que é ela mesma incondicionada, quer dizer, não
está subordinada a nenhuma outra (originarium); o segundo é aquele todo

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que não é nenhuma parte de um todo ainda maior da mesma espécie (per-
fectissimum). Que a virtude (como merecimento a ser feliz) seja a condição
suprema de tudo o que possa parecer-nos sequer desejável, por conseguinte
também de todo o nosso concurso à felicidade, portanto seja o bem supre-
mo, foi provado na analítica. Mas nem por isso ela é ainda o bem completo
e consumado, enquanto objeto da faculdade de apetição de entes finitos
racionais; pois para sê-lo requer-se também a felicidade e, em verdade, não
apenas aos olhos facciosos da pessoa que se faz a si mesma fim, mas até
no juízo de uma razão imparcial que considera aquela felicidade em geral
no mundo como fim em si mesma. Pois ser carente de felicidade e também
digno dela, não pode coexistir com o querer perfeito de um ente racional
que ao mesmo tempo tivesse todo o poder, ainda que pensemos um tal ente
apenas a título de ensaio. Ora, na medida em que virtude e felicidade consti-
tuem em conjunto a posse do sumo bem em uma pessoa, mas que com isso
também a felicidade, distribuída bem exatamente em proporção à moralida-
de (enquanto valor da pessoa e do seu merecimento de ser feliz), constitui
o sumo bem de um mundo possível, assim este sumo bem significa o todo,
o bem consumado, no qual, contudo, a virtude é sempre, como condição, o
bem supremo, porque ele não tem ulteriormente nenhuma condição acima
de si, enquanto a felicidade, sem dúvida, é sempre algo agradável ao que a
possui, mas não algo que é por si só, absolutamente e sob todos os aspectos,
bom, porém pressupõe sempre como condição a conduta legal moral.

Dica de estudo
FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três Críticas. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

Atividades
1. Explique o contexto histórico em que Kant está inserido e mostre como ele
contribuiu para o levantamento da sua problemática filosófica.

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2. Explique as principais características do projeto de análise crítica do conhe-


cimento, conforme a Crítica da Razão Pura, de Kant.

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3. Aponte as principais características da teoria moral kantiana, assim como


apresentada na sua Crítica da Razão Prática.

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Gabarito
1. Kant viveu no século XVIII e foi um dos pensadores mais importantes do movi-
mento chamado Iluminismo, momento no qual a filosofia pretendeu fazer uma
análise da razão para descobrir até onde as suas afirmações eram válidas. Nesse
sentido, as novas “verdades” da ciência a respeito da natureza evocavam uma
nova postura da razão frente ao mundo, já que elas reivindicavam a legitimida-
de de ciência. De um lado, havia as novidades da geometria analítica de René
Descartes e, de outro, o cálculo infinitesimal de Newton (1642-1727) e Leibniz
(1646-1716). Newton havia alcançado resultados marcantes no âmbito da físi-
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ca matemática, mostrando que o universo não segue o ordenamento no qual


acreditava a cosmologia antiga, cuja visão contemplativa do mundo partia da
ideia de harmonia cósmica. Essa relação entre razão e natureza, pela via da ciên-
cia, inaugurava um novo jeito de ver o cosmo: o universo não era mais um todo
harmônico como na cosmologia antiga, mas algo caótico, formado por colisões
de forças instáveis que exigiam da razão uma nova posição. Portanto, nesse mo-
mento, o homem perde a referência da natureza, e é preciso que ele encontre
na própria razão o ordenamento antes localizado no mundo natural. O bem não
estava no mundo, mas a ele precisaria ser levado pela razão humana.

2. O projeto crítico pretende analisar os limites da razão, a fim de verificar a vali-


dade das afirmações da metafísica, o que seria possível se Kant remontasse o
conhecimento às suas condições iniciais. A partir do problema da causalidade,
apresentado por Hume, Kant quer mostrar que, na análise do conhecimento
sensível, a razão tem um papel preponderante, pois sem ela as relações causais
do mundo não poderiam ser explicadas. Kant divide o conhecimento em dois
tipos: o empírico (que se dá sempre a posteriori, já que depende de uma experi-
ência com o objeto); e o puro (que é a priori, o qual, posto que não depende de
nenhuma experiência, pode ser considerado universal e necessário).

Depois disso, ele identifica uma segunda distinção: existem os juízos que são
analíticos e aqueles que são sintéticos. Além dos juízos chamados de analíticos
(que são a priori) e dos juízos sintéticos a posteriori, Kant inova ao afirmar que
existem também os juízos sintéticos a priori, no qual se encaixam as noções
de espaço e de tempo, que são as duas formas a priori da sensibilidade. Só
pela via desse terceiro tipo de juízo é possível falar em progresso e avanço do
conhecimento. A partir das ideias do espaço e do tempo, todos os fenômenos
do mundo passam a ser percebidos pelo espírito humano a partir das chama-
das categorias do entendimento, organizadas em 12 tipos de juízos possíveis,
divididos em quatro grupos de três: juízos de quantidade (universais, particu-
lares e singulares); de qualidade (afirmativos, negativos e indefinidos); de rela-
ção (categóricos, hipotéticos e disjuntivos); e de modalidade (problemáticos,
assertórios e apodíticos). As categorias resultantes dessa organização seriam
unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância,
causa, comunidade, possibilidade, existência e necessidade.

3. Para Kant, a moral está amparada no conceito primordial da liberdade, que


não pode, segundo o autor, ser empírico (parte do mundo do fenômeno),
mas apenas inteligível (parte do mundo do númeno). Mesmo que esse co-
nhecimento não seja empírico, isso não significa que ele não tenha validade:

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Até onde podemos conhecer? (Kant)

sua validade está amparada no aspecto prático da razão. É da liberdade que


Kant faz derivar os conceitos de Deus e de imortalidade da alma, tidos como
pressupostos da moralidade. Para Kant, é só no âmbito da moral que a razão
pode mostrar o seu valor principal. É ela que ajuda a responder à questão: O
que devo fazer? A razão prática organiza a ação segundo um dever, que passa
a ser determinado por máximas que podem ser transformadas em leis váli-
das para qualquer sujeito racional, e cuja formulação principal é o imperativo
categórico, formulado da seguinte maneira: “Age de tal maneira que o moti-
vo que te levou a agir possa ser convertido em lei universal” (KANT, 2002, p.
51). Sendo assim, para Kant, o fundamento da moralidade está na autonomia
da vontade (pois não pode haver fundamentação no mundo dos fenôme-
nos), que faz de cada indivíduo um legislador, não aquele que se deixa guiar
pelo seu impulso ou instinto (posto que a moral é desprovida de qualquer
elemento afetivo ou patológico), mas simplesmente pela razão, a qual lhe
possibilita legislar criando regras de ação e escolha e, consequentemente,
regras de responsabilidade. É a autonomia do sujeito que funda a lei moral.

Referências
FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três Críticas. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

GAZOLLA, Rachel. Cosmologia do Estoicismo Antigo: existência, “subexistência”


e destino. In: _____ et al. Cosmologias: cinco ensaios de filosofia da natureza.
São Paulo: Paulus, 2008. p. 83-131.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Cole-
ção Os Pensadores).

_____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martin Claret,


2002.

_____. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

LEBRUN, Gérard. Sobre Kant. São Paulo: Iluminuras, 2001.

ROHDEN, Valério. Introdução à edição brasileira. In: KANT, Immanuel. Crítica da


Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 14.

_____. Viver segundo a ideia de natureza. In: BORGES, Maria de Lourdes Alves;
HECK, José (Orgs.). Kant: liberdade e natureza. Florianópolis: UFSC, p. 233-248.

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

Deus continua morto! E nós o matamos! [...] A grandeza desse ato não é demasiado
grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer
dignos dele?

Friedrich Nietzsche

O século da suspeita
O século XIX foi, sem dúvida, um período muito tenso da história
humana. Basta lembrar os nomes dos principais autores e os títulos das
principais obras desse período, e já temos uma ideia do quão doloroso
fora esse tempo, não à toa batizado de A Hora dos Assassinos1 pelo escri-
tor Henry Miller (1891-1980). Esse título remete não apenas ao seu estudo
sobre o poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), mas também serve
de baliza para a compreensão desse que foi um período marcado por
uma grande crise de sentido, pela morte da crença na verdade absoluta,
pelo desânimo em relação à razão iluminista do século anterior. Portan-
to, um tempo de falência dos empreendimentos teóricos que até então
deram sustentação à cultura ocidental, como o racionalismo, o iluminis-
mo e mesmo as promessas do cristianismo. Crise dos fundamentos, frag-
mentação da razão, pessimismo e descrença são as marcas desse tempo
que, consequentemente, também experimentou uma crise ética que, em
última instância, é uma crise sobre o sentido da própria vida: se os funda-
mentos que davam sentido à existência foram aos poucos esboroando sob
os olhos da civilização ocidental, o que fazer? Ainda resta alguma meta na
vida? Para onde seguir? Como suportar essa falta de sentido e essa crise
sem tamanho quando compreendemos que o ser humano é caracteriza-
do, justamente, pela capacidade de dar um sentido à sua vida? E se os
sentidos extramundo, metafísicos e suprassensíveis perderam valor, o que
ainda resta ao ser humano fazer, trancafiado que está no âmbito da mera
imanência, do físico, do concreto, do mundano? É possível viver assim?
1
Título da obra de Miller sobre o poeta simbolista francês Arthur Rimbaud (um dos ícones da poesia moderna), que viveu no final do
século XIX e cuja principal obra se chama Uma Temporada no Inferno – mais uma referência à “crise de sentido” vivida pelos autores
desse século.

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

Domínio público.
O jovem Friedrich Nietzsche, em 1861.

Essas perguntas fundam uma nova perspectiva cultural, que passa a exigir da
filosofia uma reflexão profunda. Na página final de seu livro, Henry Miller lista
alguns dos títulos desse século, entre os quais estão vários livros do pensador
alemão Friedrich Nietzsche, sem dúvida o principal filósofo desse tempo con-
turbado. Nietzsche escreveu, por exemplo, O Nascimento da Tragédia, Crepús-
culo dos Ídolos e O Anticristo, para citar apenas três livros representativos. Sem
dúvida, ele foi o filósofo que enfrentou de maneira mais corajosa esse problema
e tentou traduzir, em sua filosofia, o diagnóstico dessa crise, fazendo-se, como
ele mesmo promulga, um “médico da cultura”2. Friedrich Nietzsche esteve atento
às mudanças culturais e às transformações morais, religiosas e políticas de seu
tempo. Ele se anunciava como um “extemporâneo” justamente por ter consegui-
do olhar para seu tempo sem sair dele, impregnado de sua própria crise. Para o
filósofo, estar doente é o primeiro passo para alcançar a cura. Como médico, o
2
Nietzsche usa essa expressão (der Philosoph als Arzt der Kultur) desde os escritos de juventude, como atesta um fragmento póstumo de 1872-1873
(NIETZSCHE, 1994, KSA VII, 23 [15], p. 545, tradução nossa). A expressão seria contraposta ao filósofo como “envenenador da cultura” (der Philosoph
der Giftmischer der Kultur), identificado em Platão, aquele que teria envenenado a cultura com a moral da condenação dos instintos. (Estamos
usando, além da indicação do autor e do ano, a sigla KSA – abreviatura de Kritische Studienausgabe Herausgegeben, “Edição crítica” – com os dados
do fragmento citado e o número da página do volume indicado, bem como a data do fragmento, segundo a prática comum entre os intérpretes
de Nietzsche.)

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

diagnóstico parecia claro: é preciso reconhecer a doença para ser possível emitir
algum tipo de receita – ou, melhor ainda, conviver com a doença sem precisar
de nenhum remédio.

A crise niilista
Assim, na língua dramática e labiríntica da filosofia nietzschiana, encontra-se
um dos conceitos que mais resumem a crise desse século: o conceito de niilismo3,
que foi tematizado pelo autor ao longo de sua obra e se refere a uma “atitude”
filosófica que diagnostica a negação como princípio, autoridade ou fundamento
da moral. Friedrich Nietzsche nunca chegou a escrever um livro especificamente
sobre esse assunto, mas, em 1880, ele começou a ocupar a sua reflexão filosófica,
vindo a se constituir em um tema central dos escritos finais de sua vida, entre
os anos de 1888 e 1889, imediatamente antes de seu colapso mental4. Nietzs-
che usou esse conceito como forma de explicar o processo pelo qual o sentido,
então dado à vida, entrou em falência completa, levando à radical perda dos
valores que guiaram a existência humana até aquele momento. Trata-se de uma
forma de desânimo frente à descoberta de que a busca fora vã, de que a energia
gasta fora desperdiçada – porque nenhum outro mundo existe de fato:
O niilismo como estado psicológico terá de ocorrer, primeiramente, quando tivermos procurado
em todo acontecer por um “sentido” que não está nele: de modo que afinal aquele que procura
perde o ânimo. Niilismo é então, o tomar consciência do longo desperdício de força, o tormento
do “em vão”, a insegurança, a falta de ocasião para se recrear de algum modo, de ainda repousar
sobre algo – a vergonha de si mesmo, como quem se tivesse enganado por demasiado tempo
[...] (NIETZSCHE, 1978, p. 380, grifos do autor)

O niilismo não é outra coisa senão essa desilusão com a ideia de uma finalidade
no vir a ser. Todos os conceitos que ajudavam o homem a guiar-se na existência,
a explicar o mundo e a sua própria condição, bem como os valores religiosos que
davam uma meta à sua vida, perderam o sentido: “Meu argumento é que a todos
os supremos valores da humanidade falta essa vontade [de poder] – que valores de
declínio, valores niilistas preponderam sob os nomes mais sagrados” (NIETZSCHE,
2007, p. 13). Trata-se de um sentimento de falta de finalidade, de anulação de sig-
nificados, de ausência de respostas. O homem olha para si mesmo como desprovi-
do de sentido e meta; olha para trás e vê que nada do que foi feito, em termos de
construção cultural, valeu a pena, que tudo foi em vão; olha para o futuro e não vê
nenhuma esperança de redenção, de salvação, de alguma validade universal. No
geral, o niilismo traduz um processo de desvalorização dos valores:
3
Niilismo, do latim nihil (“nada”) + ismus (“doutrina, movimento ou prática de”).
4
Nietzsche nasceu em 1844, na pequena cidade de Röcken, e faleceu em Weimar, em agosto de 1900, tendo passado seus últimos 11 anos em
completa demência, depois de um colapso vivenciado na cidade de Turim, em 3 de janeiro de 1889.

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

Que esse “em vão!” é o caráter de nosso niilismo do presente é algo que resta a demonstrar. A
desconfiança contra nossas anteriores estimativas de valor se intensifica até a pergunta: “Não
são todos os ‘valores’ engodos com os quais a comédia se prolonga, mas nunca se aproxima
de um desenlace?” A duração, com um “em vão”, sem alvo e sem fim, é o mais paralisante dos
pensamentos, especialmente ainda quando se compreende que se é burlado e, no entanto, se
é impotente para não se deixar burlar. (NIETZSCHE, 1978, p. 383, grifos do autor)

Como processo, o niilismo não é um evento definitivo: ao contrário, ele progri-


de de maneira intensa e lenta, desenvolvendo-se de modo a contaminar todas
as instâncias da cultura humana e, sendo assim, tendo como momento decisivo
e crucial a própria modernidade – é nela que Nietzsche vislumbra um ponto-
-chave desse processo e uma radicalização de suas consequências, por meio da
vivência profunda dessa crise. Como um processo caracterizado pela negação,
o niilismo é caracterizado pelo filósofo alemão como a “lógica da décadence”
(NIETZSCHE, 1994, KSA XIII, 14 [86], p. 264, tradução nossa), um processo de ne-
gação e de adoecimento em que a vida sofre de uma desorganização generali-
zada, tal como se apresenta em termos artísticos no drama wagneriano:
[...] a vida, a vivacidade mesma, a vibração e exuberância da vida comprimida nas menores
formações, o resto pobre de vida. Em toda parte paralisia, cansaço, entorpecimento ou
inimizade e caos: uns e outros saltando aos olhos, tanto mais ascendemos nas formas de
organização. O todo já não vive absolutamente: é justaposto, calculado, postiço, um artefato.
(NIETZSCHE, 1999, p. 24, grifos do autor)
Domínio público.

Essa negação das forças interiores logo se re-


produz na esfera dos valores como negação do
devir, e imposição de uma interpretação preten-
samente hegemônica, que carrega em seu bojo a
“negação da vida” (NIETZSCHE, 2007, p. 14) como
a manifestação mais infausta.

Por isso, o século XIX é diagnosticado como o


século do niilismo, por suas dúvidas, incertezas
e hesitações, que, no limite, levaram o homem
a se opor ao mundo, como se a vida fosse em
alguma medida inimiga, algo a ser combatido, a
ser negado por sua completa falta de sentido. Em
outras palavras, o primeiro movimento do niilis-
mo diagnosticado por Nietzsche foi a vingança
do homem contra a vida – e nisso ele identifica,
como sintomas de uma vingança e ressentimen-
to frente à vida, vários movimentos e teorias da
Nietzsche fardado, em 1868. Em 1870, ele cultura moderna, entre os quais estão o racio-
foi enfermeiro voluntário na Guerra Fran-
co-Prussiana.
nalismo socrático-platônico e o próprio cristia-

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

nismo, acompanhados da moralidade que eles despertaram justamente como


tentativa de remediar essa situação. No parágrafo 346 de A Gaia Ciência, escrito
em 18865, Nietzsche deixa claro esse diagnóstico:
Não caímos [...] na suspeita de uma oposição, uma oposição entre o mundo no qual até hoje nos
sentíamos em casa com nossas venerações – em virtude das quais, talvez, suportávamos viver –
e um outro mundo que somos nós mesmos: numa inexorável, radical, profunda suspeita acerca
de nós mesmos, que cada vez mais e de forma cada vez pior toma conta de nós, europeus, e
facilmente poderia colocar as gerações vindouras ante essa terrível alternativa: “Ou suprimir as
venerações ou – a si mesmos!” Esta seria o niilismo; mas aquela não seria também – niilismo? –
Eis a nossa interrogação. (NIETZSCHE, 2002a, p. 240, grifos do autor)

Nesse trecho, o autor explicita que, frente ao niilismo, aparece uma crise do
próprio homem, já que ele é o criador dos sentidos até então doados à vida,
como forma de suportar o peso da existência. Com a suspeita radical que se
abateu sobre esses valores e sobre esse pretenso sentido, o homem tem duas al-
ternativas, ambas sinais de niilismo: ou suprime as crenças e venerações válidas
até então, ou suprime a si mesmo, desistindo da vida. Não há caminho, portanto,
para quem permanece na vida: é preciso suportar essa crise como quem enfren-
ta, por si mesmo, a falta de sentido que abate os ânimos.

A morte de Deus
Se o niilismo é o processo pelo qual a cultura ocidental se deixou morali-
zar pela via de uma supervalorização da razão, e das realidades metafísicas
como sintoma de uma doença e de uma fraqueza do homem, então não há nada
que revele de maneira mais cabal essa situação do que a metáfora da morte de
Deus. Como metáfora, essa notícia não diz respeito à morte do ser superior da
religião, mas à crise do fundamento representado pelo afastamento do homem
em relação aos valores e virtudes que eram regidos a partir de um centro moral,
que fornecia todos os fundamentos e toda a finalidade da vida. Ao se dar conta
da crise desses fundamentos e do abalo do sentido representado pela imagem
de Deus, Nietzsche, pela boca de um louco, no fragmento 125 da obra A Gaia
Ciência, expressa o sentimento mais radical da completa falta de referência ex-
terior e suprassensível, a partir do que se doava algum valor para a realidade
imanente. Ou seja: ao se perder o fundamento superior e supremo que dava o
sentido para a vida concreta, perde-se também o valor dessa vida, anula-se o sen-
tido. Além disso, o anúncio da morte de Deus é também o anúncio do equívoco
dessa divisão dualista estabelecida, a partir de Platão, entre o mundo sensível
e o mundo suprassensível. A morte de Deus representa a total falta de sentido,
5
A Gaia Ciência foi publicado em 1882, mas em 1886 foi incluído um prefácio e uma quinta parte, da qual retiramos essa citação.

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

o absurdo e a incoerência desse dualismo. Por isso, a modernidade é apontada


como o auge desse processo, já que nela se constituiu a total substituição dos
valores divinos (os quais vigoraram durante toda a era medieval, marcada pelo
teocentrismo) por novos “deuses”, como a história, a razão, a ideia de progresso
ou mesmo a ciência. Essa divisão representa uma condenação da existência e o
estabelecimento de uma doença que envenena a existência e o mundo como
algo i-mundo (o reino da imundície). Por isso, para o filósofo alemão, “o niilis-
mo radical é o convencimento da absoluta insustentabilidade da existência [...]”
(NIETZSCHE, 1994, KSA XII, 10 [192], p. 571, tradução nossa). Ora, a sujeira e a sor-
didez do mundo são reveladas após a constatação da morte de Deus, e é nesse
processo que se desvela a entrada desse “mais estranho dos hóspedes”: “de onde
provém o mais estranho de todos os hóspedes?” (NIETZSCHE, 1994, KSA XII, 2
[127], p. 125, tradução nossa). A morte de Deus não é mais do que o símbolo
da perda da superação de uma determinada forma de (des)valorização da vida.
Como o cristianismo é, por excelência, o movimento moral que vingou no Oci-
dente e por ele se pautam os grandes valores da humanidade6, nada mais óbvio
que Nietzsche usar justamente uma imagem de seu repertório para expressar
metaforicamente a crise de valores que toma conta da cultura moderna. É essa
a perspectiva principal desde a qual o niilismo se instala na cultura, conforme se
lê no fragmento do inverno de 1885 (KSA XII, 2 [127]), no qual Nietzsche fala do
niilismo como um hóspede estranho que invade a cultura:
O niilismo está à porta: de onde nos vem esse mais sinistro de todos os hóspedes? – Ponto de
partida: é um erro remeter a “estados de indigência social” ou “degeneração fisiológica” ou até
mesmo à corrupção, como causa do niilismo. Estamos no mais decente, no mais compassivo
dos tempos. Indigência, indigência psíquica, física, intelectual, não é em si capaz, de modo
nenhum, de produzir niilismo (isto é, a radical recusa de valor, sentido, desejabilidade). Essas
indigências permitem ainda interpretações bem diferentes. Mas: em uma interpretação bem
determinada, na interpretação moral-cristã, reside o niilismo. (NIETZSCHE, 1978, p. 379, grifos
do autor)

Portanto, ao falar em morte de Deus, Nietzsche evoca a crise de uma determi-


nada forma de valoração, cujo processo se deu a partir de uma exigência e uma
necessidade de verdade absoluta. O que se entende, por trás dessa afirmação,
é que Nietzsche está mostrando que toda a história da metafísica é a história
de um erro de interpretação a respeito da própria vida, praticado por aqueles
que, querendo melhorar o homem e o mundo, acabaram por enfraquecê-los
ainda mais, tornando-os doentios e desprezíveis. Nesse sentido, a metafísica já
se apresenta como uma forma de moral, porque a sua invenção esconde uma
avaliação (negativa) da existência em favorecimento de um outro, inventado
6
Para Nietzsche, o conteúdo, a matéria-prima da moral dos escravos é fornecida pelo platonismo e pelo cristianismo, com suas ideias metafísicas
fundadoras da ficção e da falsidade. Isso porque “as referências axiológicas fundamentais da moral cristã constituem também o substrato ético-
-religioso das mais importantes estimativas de valor do homem moderno” (GIACÓIA JÚNIOR, 1997, p. 52), desde a invenção da supremacia da razão,
dos conceitos de eu, sujeito e coisa em si até a criação de Deus, sua morte (assassinato) e sua sombra, principalmente na ciência moderna.

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

em contraposição à realidade imanente, como sintoma de uma revolta contra


a vida. Uma revolta, aliás, que não é outra coisa senão também ela mesma um
sintoma de fraqueza daqueles que não foram capazes de aceitar a vida em toda
a sua plenitude de forças, preferindo buscar uma “saída” no artefato ambiental
de um “mundo das ideias” ou de um “reino de Deus”. Ali, escondidos e assusta-
dos, os homens acabaram se atrofiando ainda mais. Respirando o ar poluído e
fraco dessas oficinas, alimentaram o ressentimento e a vingança contra a vida e
não encontraram, como remédio para a sua doença, outra coisa senão a oferta
dos ascetas: os jejuns, a continência sexual, a fuga para o deserto, a metafísica
antissensualista, a auto-hipnose e, por fim, o nada – essa “cura radical” associada
por Nietzsche à imagem de Deus: “ou Deus – o anseio de unio mystica com Deus
é o anseio budista pelo Nada, pelo Nirvana” (NIETZSCHE, 2002b, p. 24), afirma o
autor em A Genealogia da Moral.

Domínio público.

A imagem mais clássica de Friedrich Nietzsche.

É a busca pela verdade, de forma radical, que fez o cristianismo (como her-
deiro da filosofia socrático-platônica) se dar conta das “mentiras” sobre as quais
ele mesmo estava erguido. Em outras palavras: por desejar radicalmente a ver-
dade, a moral ocidental foi obrigada a revelar o embuste sobre o qual ela sempre

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esteve embasada. E esse é o processo pelo qual o niilismo se revela. Por isso,
afirma Nietzsche, “o niilismo [deve ser entendido como] a consequência da am-
bição metafísica de certeza” (NIETZSCHE, 1994, KSA XII, 5 [70], p. 210, tradução
nossa) e, ao mesmo tempo, uma consequência dos valores cultivados como os
únicos preciosos (porque pretensamente estabelecidos a partir de uma verdade
única): o niilismo nada mais é do que uma consequência da prática estabelecida
como a mais correta, de acordo com os ideais da moral vigente.

A ambiguidade do niilismo
Frente ao niilismo, portanto, como evento ligado à moralidade e à própria
história ocidental (que é entendida por Nietzsche como a história da moraliza-
ção do Ocidente, pela via do racionalismo socrático-platônico e do cristianismo,
com as suas repercussões em todos os ambientes da cultura), haveria uma am-
biguidade que remete a duas atitudes. Assim, frente à completa perda dos fun-
damentos, o ser humano poderia

 recusar a vida, pela via do nojo e do cansaço; ou

 afirmar a vida, em sua radical falta de sentido.

O ressentimento é a primeira forma de niilismo apontado por Nietzsche, já


que pelo ressentimento os fracos (os que temem a vida) programam uma vin-
gança imaginária contra os fortes, aqueles que enfrentam a vida e estabelecem,
a partir de si mesmos, os valores. O ressentimento é o sintoma da fraqueza, da
cobiça frustrada, da vontade negada, da inversão dos valores como forma de
fazer sobreviver desesperadamente um tipo de vida em estado de apodreci-
mento e degeneração. É parte do projeto de amansamento do homem, de do-
minação do rebanho em torno de um “pastor moral”, representado pelo sacer-
dote judaico-cristão e, mais tardiamente, pela própria ciência moderna, em sua
ameaçadora aliança com os ideais ascetas, que fazem descer sobre a civilização
a sua sombra aterradora.

Para o filósofo alemão, foi o movimento de condenação dos ideais nobres que
favoreceu a prevalência e o triunfo do modo de avaliação da fraqueza e do res-
sentimento no mundo ocidental. Os fracos assumem uma atitude de negação, é
esse o seu gesto criador. Os fortes, ao contrário, são aqueles que afirmam a partir
da sua força. Isso faz com que os valores vigentes na cultura ocidental sejam
todos valores de negação, já que nasceram em contraposição aos valores nobres

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

que não conseguiram se impor na cultura porque os fracos, sendo em maior


número, implementam melhores estratégias de sobrevivência, principalmente
por possuírem o instinto gregário, que os faz viverem sempre unidos, fugindo
dos obstáculos da existência. Os fortes, por sua vez, arriscam-se mais e, por isso
mesmo, perdem-se mais facilmente, além de não buscarem abrigo em nenhum
tipo de vida gregária, preferindo a solidão e o isolamento, convivendo com sua
própria força e a partir dela criando os valores. O triunfo dos fracos representa,
para Nietzsche, o triunfo das forças negadoras, daquelas que, frente ao niilismo,
preferem fugir, proibir a exteriorização, impedir o crescimento.

Para Nietzsche,
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera
valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que
apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nasce de um
triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro, um
“não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este
necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento:
a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em
absoluto – sua ação é no fundo uma reação. (NIETZSCHE, 2002b, p. 28, grifos do autor)

Ora, o que está na base da escalada do ressentimento é a incapacidade de es-


quecer: o esquecimento é tido por Nietzsche como “uma força inibidora ativa, po-
sitiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vi-
venciado, em nós é acolhido, não penetra mais em nossa consciência”(NIETZSCHE,
2002b, p. 47), como a capacidade de
[...] fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado
pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco
de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o
novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeter-
minar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento.
(NIETZSCHE, 2002b, p. 47)

O esquecimento funciona como uma forma de autolimpeza da consciência,


impedindo que ela absorva todas as vivências cotidianas e possibilitando que
sejam desenvolvidas as funções mais nobres, como resultado de atos criado-
res gerados pelo esquecimento. Escravo é aquele que não esquece e, por isso,
não abre caminho para o ato criador, para o novo, já que sua consciência está
impregnada pelas vivências – especialmente as negativas. Não esquecer é um
sintoma de má digestão, uma predição do achaque moral que impede o homem
de seguir rumo a novas experiências. Não esquecer é guardar rancor, é se ressen-
tir, é abrir-se a uma patologia, é adoecer. Doente, o escravo não reage, passando
a desenvolver o ódio e o ressentimento: “a lembrança é uma chaga supurante”
(NIETZSCHE, 1995, p. 12).

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

Enfermo, o homem do ressentimento cria um mundo para além e acima deste


mundo, uma ilusão com a qual passa a conviver e da qual passa a depender
completamente. É exatamente neste além-do-mundo que o ressentido busca
uma resposta para o seu sofrimento – e, mais que uma resposta, um término:
ele põe fim à sua dor ao colocar a sua existência terrena em função desse senti-
do ultramundano, como um fim último e definitivo, redentor último das maze-
las humanas. É aí, precisamente, que o ressentido passa a ser guiado pelo ideal
asceta: o homem que “sofria do problema do seu sentido” (NIETZSCHE, 2002b,
p. 149) encontra no ascetismo uma resposta que põe um limite ao niilismo. Se
o homem é um animal doente por causa do vazio que se instalou à sua volta, e
do profundo abismo que o cerca na busca de resposta para a sua dor7, então a
vontade asceta preenche o vazio e oferece uma resposta. O ascetismo passa a re-
presentar, assim, “uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais
pressupostos da vida” (NIETZSCHE, 2002b, p. 149).

Com o advento do niilismo, Nietzsche explicita a necessidade de que o


homem seja saudável para enfrentar as suas consequências. Só aquele que se
manteve “asseado” em si mesmo, em longos processos de solidão e experimen-
tação consigo mesmo, é capaz de vivenciar a necessária radicalização do niilis-
mo: após a morte de Deus, é preciso preencher esse vazio, dar novos valores à
vida, reimprimir valor à existência sem recorrer novamente aos ideais ascéticos,
que prometem dar um sentido à vida, que asseguram uma cura para as vidas
doentes e fracas e cujo resultado não é outro senão a manutenção da vida em
um mero estado vegetativo: “o ideal ascético nasce do instinto de cura e prote-
ção de uma vida que degenera” (NIETZSCHE, 2002b, p. 109). Desanimados frente
ao sofrimento, os fracos preferem o fim, preferem a inibição das forças, buscam
o refúgio para a conservação da vida, e esse é um dos resultados do nojo que
o homem passa a sentir de si mesmo e da vida em geral. Vítima de si mesmo, o
homem exige pena e desprezo, ao mesmo tempo:
O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor,
mas o grande nojo ao homem; e também a grande compaixão pelo homem. Supondo que
esses dois um dia se casassem, inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a “última
vontade” do homem, sua vontade do nada, o niilismo. E de fato: muita coisa aponta para isso.
Quem para farejar possui não apenas nariz, mas também os olhos e ouvidos, sente, em quase
toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a um ar de hospital.
(NIETZSCHE, 2002b, p. 111)

Portanto, Nietzsche chama atenção para o fato de que o evento principal


do niilismo já se manifesta enquanto processo: o homem se enoja de si mesmo
e exige, por pena de si, a compaixão como sentimento máximo, como valor
7
Segundo Nietzsche, o homem não foge da sua dor: muito pelo contrário, ele a procura. O problema reside em descobrir o motivo dessa dor. Con-
sequentemente, o sofrimento do homem não é a dor mesma, mas a sua falta de sentido, o fato de não se saber por que sofre.

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

supremo da moralidade. Ora, compaixão, para o filósofo alemão, não é outra


coisa senão partilha do sofrimento (em alemão, Mitleid, “sofrer com”) a partir de
uma negação de si mesmo, de uma anulação da própria dor na dor do outro.
Esse é o grande argumento com que Nietzsche pretende mostrar que a moral
da compaixão (no seu viés cristão, mas também schopenhauriano) não é outra
coisa senão um sinal de niilismo, porque na verdade esconde o nojo do homem
por si mesmo, representando a exigência de dó, pena, comiseração e clemência
para esse animal doente no qual o homem foi transformado. Para se preserva-
rem a todo custo, os fracos acabam por criar uma moralidade que inibe a vida,
permeada que está de uma avaliação negativa e de um profundo desgosto do
homem consigo mesmo. É por esse desgosto consigo mesmo que ele exige a
compaixão como valor absoluto, como se dissesse todo o tempo: “Vejam como
estou doente”, “Tenham pena de mim”, “Não façam nada contra mim” etc. Des-
prezo de si mesmo e necessidade de compaixão são as consequências do niilis-
mo, portanto.

Marcado pelo desprezo e a compaixão em relação a si mesmo, o homem


passa a ter uma visão negativa em relação à vida como um todo, enxergando-a
de maneira pessimista: “As várias formas de pessimismo são prelúdio ao niilismo”
(NIETZSCHE, 1994, KSA XII, 2 [131], p. 129, tradução nossa) – essa afirmação de
Nietzsche revela que, desde o mundo antigo, o niilismo vem crescendo a partir
de uma visão pessimista em relação à vida. E também é possível identificar duas
formas de pessimismo:

 um pessimismo da fraqueza, que, frente à falta de sentido, recua e recusa


a existência;

 um pessimismo da força, que, frente à falta de sentido, tende a afirmar a


existência.

Ao lado dessa distinção, encontramos outra que remete ao próprio niilis-


mo. Assim, haveria, segundo Nietzsche,

 um niilismo incompleto (unvollständig Nihilismus), que prescreve sempre o


preenchimento do vazio deixado pela morte de Deus;

 um niilismo completo (vollkommener Nihilismus), pelo qual se chega a uma


constatação de que, sozinho, o homem precisa enfrentar esse vazio de for-
ma altiva (cf. NIETZSCHE, 1994, KSA XII, 10 [42], p. 476).

Mas esse olhar ainda não é um olhar criador: o olhar do niilista completo
ainda não se desvencilhou da fraqueza. Ele ainda não se tornou ativo. Por isso, a
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Qual o valor da vida? (Niilismo)

distinção entre completo e incompleto precisa de um complemento: Nietzsche


distingue, então,

 um niilismo passivo, que se instala em uma resignação conformada, cuja


representação máxima está na figura do animal de rebanho;

 um niilismo ativo, que manifesta uma inquietação, uma revolta constante,


que busca sempre destruir os valores vigentes.

Com a crise do niilismo e o aniquilamento das bases extrassensíveis, revela-se


a falsidade dos valores morais vigentes e, então, os enjeitados também sucum-
bem: “suposto que a crença nesta moral sucumba, os enjeitados não teriam mais
o seu consolo – e sucumbiriam” (NIETZSCHE, 1978, p. 384). Como sintoma dessa
autodestruição dos fracos, Nietzsche prossegue, enunciando
[...] a autovivissecção, envenenamento, embriaguez, romantismo, antes de tudo a instintiva
urgência para ações com as quais se fazem, dos poderosos, inimigos mortais (como que
aprimorando seus verdugos), a vontade de destruição como vontade de um instinto mais
profundo, o instinto de autodestruição, a vontade de criar o nada. (NIETZSCHE, 1978, p. 382)

Isso significa dizer que a crise niilista solapa as bases da própria sobrevivência
e leva à letargia eterna. Sucumbir não é, portanto, extinguir-se, senão lançar-se
no estado vegetativo, entregar-se à madorra e ao torpor frente à existência. E
assim está posta a fórmula do niilismo passivo: por medo da existência e por
sentir a perda dos seus valores mais sublimes, reconhecendo-se como impoten-
te no jogo de forças que a existência requer, o fraco escolhe o caminho do nada,
do autoaniquilamento.

Ambos os tipos de niilismo ainda são sinais de doença e revelam o progresso


da enfermidade moral que acomete o Ocidente. Desse modo, todas as fórmulas
do cristianismo, em sua moral ascética, não passam de tentativas de impedir que
o niilismo ativo chegue às suas consequências, o que seria o completo aniqui-
lamento. Em vez disso, a religião cristã propõe o enfraquecimento das forças e
o embotamento da vontade, de maneira a garantir a continuidade de uma vida
fraca e pobre. Nesse sentido, o budismo, por buscar o nada, seria mais radical
que o cristianismo.

O que Nietzsche pretende é desvelar a história desse niilismo e sua ascensão,


na modernidade, a todos os âmbitos da cultura. Mas ele quer “passar do niilismo
incompleto, que é ainda a condição da modernidade, para o niilismo completo
e, posteriormente, para o momento derradeiro: o niilismo do êxtase (ekstatischer
Nihilismus)” (ARALDI, 1998, p. 88). Nietzsche não quer se deter na negação, quer
passar para a afirmação, mas sabe que necessita primeiro destruir e, melhor

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

ainda, sabe que a destruição é o requisito para a construção de novos valores.


Esse niilismo do êxtase (ou niilismo radical) seria justamente a capacidade criati-
va do homem, que se vê enredado em uma afirmação radical da existência em
todas as suas perspectivas, mesmo as mais sombrias e aterrorizantes. Não há
sentido único e é preciso conviver com essa falta, fazendo com que ela conduza
a uma afirmação ainda mais radical da existência:
Uma filosofia experimental, assim como eu a vivo, de alguma forma antecipa experimentalmente
as possibilidades do niilismo radical; mas isso não quer dizer que ela permaneça em uma
negação, em um não, em uma vontade de não. Ela quer, ao contrário, ir até o inverso – até um
dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, no limite, exceção e seleção. (NIETZSCHE, 1994, KSA
XIII, 16 [32], p. 492, tradução nossa)

Ora, o forte é aquele que aceita esse “dionisíaco dizer-sim”, que aceita par-
ticipar do jogo vital e, assim, aprimora-se na capacidade de enfrentamento da
falta de sentido, reconhecendo a vida em sua insensatez, desatino e acaso, sem
necessitar de “artigos de fé”. Esses seriam os mais ricos de saúde e seguros de seu
próprio poder. São eles, assim, os criadores de valores, já que são movidos pelo
orgulho e pela mais poderosa dinâmica de forças. Por dispensarem os alicerces
suprassensíveis, eles passam a exercer uma moral autônoma e livre, que se cria a
si mesma e obedece somente às suas próprias torrentes de forças.

Para Nietzsche, é da radicalização do niilismo que nasce essa nova perspec-


tiva de avaliação, que ele chama de transvaloração dos valores, nascida de uma
averiguação da medida que os valores tinham até então.

Textos complementares

O anúncio da morte de Deus


(NIETZSCHE, 2002a, p. 147)

O HOMEM LOUCO. Não ouviram falar daquele homem louco que em


plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar
incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encon-
trassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso
uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele
se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os
outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu
olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês
e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como consegui-
mos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o ho-
rizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu Sol? Para onde se move
ela agora? Para onde nos movemos nós? Não caímos continuamente? Para
trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Não existem ainda ‘em
cima’ e ‘embaixo’? não vagamos como que através de um nada infinito? Não
sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoi-
tece eternamente? Não temos que acender lanternas em plena manhã? Não
ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da
putrefação divina? Também os deuses apodrecem. Deus está morto! Deus
continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre
os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuí-
ra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue?
Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sa-
grados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande
para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos
parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de
nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda
história até então!”

A compreensão do niilismo
(NIETZSCHE, 1978, p. 386)

VISÃO DE CONJUNTO. – De fato todo grande crescimento traz consigo


também um descomunal esboroamento e perecimento: o sofrer, os sintomas
do declínio fazem parte dos tempos de descomunal avanço; cada fecundo e
potente movimento da humanidade criou ao mesmo tempo um movimento
niilista. Seria, em certas circunstâncias, o sinal de um incisivo e essencialís-
simo crescimento, para a passagem a novas condições de existência, que a
mais extremada forma do pessimismo, o niilismo propriamente dito, viesse
ao mundo. Isso eu compreendi.

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Dicas de estudo
DIAS de Nietzsche em Turim. Direção de Júlio Bressane. Brasil, 2001. Dist. Europa
Filmes.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos: ou como se filosofa com o marte-


lo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Atividades
1. Explique o que Friedrich Nietzsche entende por niilismo e como ele identifica
os seus sintomas na cultura ocidental.

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2. Quais são, segundo Nietzsche, as duas atitudes gerais possíveis frente ao


avanço do niilismo? Qual é o papel do ressentimento nesse processo?

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3. Explique qual o significado da morte de Deus em Nietzsche.

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

Gabarito
1. Para Nietzsche, o niilismo é um processo pelo qual o sentido dado à vida até
então entrou em falência completa, levando à radical depreciação dos valores
que guiaram a vida humana na terra. Trata-se de uma forma de desânimo fren-
te à descoberta de que a busca foi em vão, a energia foi desperdiçada. Como
sintoma desse desânimo, vemos que a antiga divisão entre mundo sensível e
mundo suprassensível, com a valorização do segundo em detrimento do pri-
meiro, perde o sentido. Aliás, essa divisão foi inventada por Nietzsche, já como
um sintoma niilista, porque ela seria resultado da fraqueza daqueles que, em
vez de criarem as condições de afirmação da vida, preferiram, por medo, fugir

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

da existência, construindo um mundo fora da realidade imanente, chamado


mundo das ideias (no caso, socrático-platônico) ou reino de Deus (no caso, cris-
tão). Ao descobrir que esse “outro mundo” não existe, o niilismo se radicaliza
– por isso a modernidade é apontada como o auge desse movimento. Para o
autor, o niilismo é uma tomada de consciência sobre esse processo, esse longo
desperdício de forças que gera insegurança, desânimo e tristeza – uma doença
que será aproveitada pelos sacerdotes ascetas, que impedem a sua radicaliza-
ção, oferecendo remédios que não curam, apenas prolongam a vida em esta-
do vegetativo, alimentando o ressentimento e a necessidade de vingança por
parte dos fracos. Por isso, o niilismo passa a ser um sintoma da doença e um
processo pelo qual a vida é embotada e enfraquecida ainda mais.

2. Frente à completa perda dos fundamentos, o ser humano poderia, segundo


Nietzsche, optar entre dois caminhos: ou recusa a vida, pela via do nojo e do
cansaço, ou afirma a vida em sua radical falta de sentido. O autor identifica
a primeira atitude como a reação da fraqueza, daqueles que temem a vida e
implementam uma vingança imaginária contra os fortes, os que enfrentam
a vida e estabelecem os valores a partir de si mesmos. O ressentimento é o
sintoma da fraqueza, da cobiça frustrada, da vontade negada, da inversão
dos valores como forma de fazer sobreviver desesperadamente um tipo de
vida em estado de apodrecimento e degeneração. Ele é parte do projeto de
amansamento do homem, de dominação do rebanho por um “pastor mo-
ral”, representado pelo sacerdote judaico-cristão e, mais tardiamente, pela
própria ciência moderna, em sua ameaçadora aliança com os ideais ascetas,
que fazem descer sobre a civilização a sua sombra aterradora. Portanto, se
há duas atitudes, uma afirmativa e outra negativa, há também dois modos
de vida que se estabelecem frente a elas: o modo dos fracos e o modo dos
fortes. Os fracos agem sempre pelo ressentimento e, por isso, sua vida está
marcada pela negação, que é seu gesto criador. Ao contrário, os fortes afir-
mam a partir da sua força. Como os fracos venceram na cultura ocidental, os
valores vigentes na nossa sociedade são todos valores de negação, segundo
Nietzsche, já que nasceram em contraposição aos valores nobres que não
conseguiram se impor na cultura porque os fracos, sendo em maior número,
implementam melhores estratégias de sobrevivência, principalmente por
possuírem o instinto gregário, que os faz viverem sempre unidos, fugindo
dos obstáculos da existência. Os fortes, por sua vez, arriscam-se mais e, por
isso mesmo, perdem-se mais facilmente, além de não buscarem abrigo em
nenhum tipo de vida gregária, preferindo a solidão e o isolamento em que
convivem com sua própria força, a partir dela criando os valores.

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3. Trata-se de uma metáfora que expressa o fim dos fundamentos. A notícia


(anunciada pela boca de um louco em A Gaia Ciência, fragmento 125, escrito
em 1882) não diz respeito à morte do ser superior da religião, e sim à crise
do fundamento, representado pelo afastamento do homem em relação aos
valores e virtudes que eram regidos a partir de um centro moral, que fornecia
todos os fundamentos e a finalidade da vida. Ao se dar conta da crise desses
fundamentos e do abalo da falta de uma base segura, a partir da qual a vida
fazia sentido, o ser humano experimenta a mais radical falta de referência ex-
terior. Ou seja: ao se perder o fundamento superior e supremo que dava o
sentido para a vida concreta, perde-se também o valor dessa vida, anula-se o
seu sentido. Além disso, o anúncio da morte de Deus é também o anúncio do
equívoco da divisão dualista estabelecida a partir de Platão, entre o mundo
sensível e o mundo suprassensível. A morte de Deus representa a total falta
de sentido, o absurdo e a incoerência desse dualismo. Por isso, a modernidade
é apontada como o auge desse processo, já que nela se constitui a total subs-
tituição dos valores divinos (que vigoraram durante toda a era medieval, mar-
cada pelo teocentrismo) por novos “deuses”, como a história, a razão, a ideia de
progresso ou mesmo a ciência.

Referências
ARALDI, Clademir. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche.
Cadernos Nietzsche, n. 5, 1998. p. 75-94.

GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Labirintos da Alma: Nietzsche e a autossupressão da


moral. Campinas: Unicamp, 1997.

MILLER, Henry. A Hora dos Assassinos. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Cole-
ção Os Pensadores).

_____. Sämtliche Werke: kritische studienausgabe herausgegeben (KSA) Muni-


que/Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1994. 15 v.

_____. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. 2. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.

_____. O Caso Wagner: um problema para músicos/Nietzsche contra Wagner:


dossiê de um psicólogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

_____. A Gaia Ciência. 1. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2002a.

_____. A Genealogia da Moral: uma polêmica. 4. reimp. São Paulo: Companhia


das Letras, 2002b.

_____. O Anticristo e Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras,


2007.

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Qual o valor da vida? (Niilismo)

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O que é estar no mundo?
(Husserl e Merleau-Ponty)

Os outros homens nunca são puro espírito para mim: só os conheço através de seus
olhares, de seus gestos, de suas palavras, em suma, através de seus corpos.

Maurice Merleau-Ponty

O esquecimento da experiência primeira


A questão que abre a primeira obra de Maurice Merleau-Ponty (1908-
-1961), A Estrutura do Comportamento, escrita em 1939, está ligada a um
dos maiores problemas que a filosofia forjou e não respondeu de maneira
definitiva: “Nosso objetivo é compreender as relações entre a consciência
e natureza – orgânica, psicológica ou mesmo social” (MERLEAU-PONTY,
2006a, p. 1).

O sentido e a origem desse problema estão na determinação, funda-


mentalmente dos pensadores modernos, de que o mundo verdadeiro não
é o mesmo mundo que se apresenta à nossa percepção. Se o real é o ex-
terior (como supõem os pensadores empiristas) ou o mental interior, ele
não é, nomeadamente, observável na mesma medida em que são, como
se poderia supor, os fenômenos dados no nosso contato primeiro e direto
com o mundo. Para Merleau-Ponty, a separação absoluta entre consciên-
cia e natureza – sustentada por todas as grandes filosofias, pelo raciona-
lismo, pelo empirismo e, ainda, pelo objetivismo científico – levou ao es-
quecimento do nosso contato direto com o mundo, à ignorância acerca
da potência original da própria percepção e, sobretudo, à supressão da
função expressiva do nosso corpo em alcançar significações.

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

Creative Commons.
A Rua da República, em Rochefort-sur-Mer, cidade natal de Maurice Merleau-Ponty.

Mas como se deu essa separação entre consciência e natureza? Qual é o seu
significado? Trata-se de um esvaziamento de sentido e de referência das nossas
experiências originais, sustentado sobretudo por pensamentos antitéticos que
privilegiaram a função constitutiva do sujeito ou, ao contrário, o sentido imanen-
te do mundo físico?

No primeiro caso, estamos nos referindo à atitude filosófica que concebeu as


experiências da razão e do pensamento como polos significativos da verdade,
enquanto aos sentidos sobrou engano, aparência e ilusão. Assim, Platão (428-
-347 a.C.) separou o mundo em inteligível e sensível, concebeu o corpo e todos
os seus modos de conhecimento como obstáculos à verdade. A própria dialética
não deixou de ser um método ao qual o pensamento recorre para ultrapassar
a experiência, os erros e as ilusões dos sentidos, pois o conhecimento das es-
sências está no mundo inteligível. Mas é em René Descartes (1596-1650) que
encontramos a perspectiva mais radical desse esvaziamento. Sobre isso, acom-
panhemos a letra das Meditações Metafísicas:
[...] encontro em meu espírito duas ideias do sol inteiramente diversas: uma toma a sua origem
nos sentidos [...] e pela qual o sol me parece extremamente pequeno; a outra é tomada nas
razões da astronomia [...] e pela qual o sol me parece muitas vezes maior do que a terra inteira.
Por certo, essas duas ideias que concebo do sol não podem ser ambas semelhantes ao mesmo
sol: e a razão me faz crer que aquela que vem imediatamente de sua aparência é a que lhe é
mais dessemelhante. (DESCARTES, 1991, p. 180)

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

Existe o Sol dado aos sentidos e o outro Sol, esse verdadeiro, na medida em que
é alcançado pelo juízo. Com a tradição moderna, o conhecimento genuíno, em
oposição ao vulgar, passou a ser encarado como aquele que não é feito de coisas,
de propriedades, de qualidades e de transformações que existem e operam de
modo independente da subjetividade. Aprendemos, sobretudo com os primeiros
filósofos modernos, que as qualidades (cor, ruído, cheiros etc.) não são significati-
vas em si mesmas: são apenas produtos da influência do ambiente sobre o homem
e, por isso mesmo, não devem fazer parte do mundo objetivo da verdade e da ci-
ência. Seguindo a mesma lógica, destituímos ainda mais a nossa vivência direta de
sentido de realidade quando levamos a abstração ao seu limite extremo. Passa-
mos a desconsiderar também os aspectos aparentes das qualidades primárias
(peso, figura e movimento), julgando-as tanto sem significado de realidade quanto
as secundárias. Como resultado, todas as propriedades dependem do organismo
que as experimenta e o mundo objetivo, de modo geral, passou a ser considerado
como desprovido de sabor, de textura e de cores. Desse modo, mostrou-se funda-
mental abstrair das sensações, limpar a percepção das influências do meio obscu-
ro e desconstruir a visão subjetiva fundada na experiência direta, na vivência ime-
diata. Assim, somos constantemente alertados pela filosofia da modernidade a
buscar a verdade do mundo fora da própria

Domínio público.
experiência do mundo.

O que nos legaram os modernos como


Francis Bacon (1561-1626), René Descartes
e Galileu Galilei (1564-1642), por exemplo,
é a ideia geral de que o verdadeiro conhe-
cimento não se estrutura a partir do modo
como o mundo se apresenta aos nossos sen-
tidos. A experiência direta e o nosso conta-
to mais imediato com o mundo devem ser
descartados como obscuros e confusos. Na
clássica passagem da crítica dos ídolos, na
obra Novum Organum, Bacon já proclama-
va a necessidade de uma grande reforma
capaz de corrigir os sentidos e guiar melhor
o intelecto, purificar a linguagem e trans-
formar a sociedade. Essa grande reforma
baconiana começou por separar o cientista
do homem comum, distinguindo o mundo
objetivo da ciência do mundo fenomênico Folha de rosto do Sidereus Nuncius (O Mensageiro das
Estrelas), de Galileu Galilei, publicado em 1610.

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

da experiência. Bacon estabeleceu, de modo evidente, que o mundo da experi-


ência científica não é o mesmo que se apresenta como vivência. O caminho da
ciência e o caminho da experiência direta não estão na mesma direção, não têm
a mesma lógica, não veem o mesmo mundo. Nessa concepção clássica da mo-
dernidade, a realização do primeiro caminho (a via científica) é possível somente
com a superação da experiência direta. Por isso mesmo, é central na teoria da
indução baconiana a distinção entre a experiência vulgar e a experiência es-
truturada. Enquanto a primeira via (típica dos empíricos e dos metafísicos, na
opinião do filósofo inglês) é mediada por um observador que opera ao acaso,
deixando-se guiar pela paisagem ou pelas abstrações a priori da razão, a segun-
da (a experiência estruturada) supõe um observador metódico, preparado in-
telectualmente, livre de preconceitos e suficientemente instrumentalizado para
lidar sistematicamente com os dados da natureza. E isso porque os caracteres
da experiência direta (ou vulgar) não nos fornecem a imagem exata das coisas,
daquilo que realmente ocorre na natureza. Segundo o que nos indica Bacon,
as qualidades dadas como certas na experiência direta não passam de ilusões
(ídolos) que precisam ser afastadas da via do conhecimento genuíno, uma vez
que a verdade sobre o mundo natural está mascarada pelas propriedades a que
a experiência vulgar se atém:
Não há nenhuma solidez nas noções lógicas ou físicas. Substância, qualidade, ação, paixão,
nem mesmo ser. São noções seguras. Muito menos, ainda as de pesado, leve, denso, raro,
úmido, seco, geração, corrupção, atração, repulsão, elemento, matéria, forma e outras do
gênero. Todas são fantásticas e mal definidas. (BACON, 1999, p. 35)

A mesma lógica preconizada por Bacon e Descartes está presente nas pesqui-
sas e nas descobertas de Galileu. A observação da superfície irregular da Lua e a
constatação das manchas solares exigem um olhar sofisticado e suficientemente
capaz de purificar e ultrapassar os limites da experiência direta, porque não é
sob o olhar nu do homem comum que os astros mostram as suas verdadeiras
faces. Só há uma verdade sobre os astros: aquela visada pelo olhar investido do
poder do telescópio e, ainda, metodicamente estruturada pelo entendimento.
No fim, a experiência que interessa é somente aquela estruturada pelo cientista,
já que esta é a única que se mostra adequada para revelar o que está além da
percepção ambígua das propriedades sensíveis e, ainda, de converter as coisas,
as cores, os sons, as figuras em caracteres universais:
Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja
necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou
rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os
números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que
fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega,
tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. (GALILEI, 1999, p. 223)

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

Aprendemos com Galileu que o conhecimento científico é o conhecimen-


to racional que recusa, na mesma medida, tanto a verdade que resulta de uma
profissão de fé, como também aquelas fundadas em um empirismo natural. A
geometrização do cosmo, a matematização do saber e a depuração instrumen-
talizada da experiência impuseram-se absolutas na relação do cientista com o
mundo, a partir de Galileu. O espaço deixou de ser concreto e qualitativo para
ser homogêneo e abstrato. Definitivamente, a paisagem não pertence mais aos
sentidos e à percepção, pois a explicação de Galileu para o universo nasceu de
uma observação que diz não ao substancialismo e à vivência – e, por conse-
quência, estrutura-se em uma linguagem constituída de signos que não são os
mesmos que conferem sentido à nossa experiência cotidiana.

Essas perspectivas abstracionistas de Bacon, Descartes e Galileu ignoram a


natureza e a nossa experiência na natureza. O objeto Sol e todos os seus carac-
teres são significativos na medida em que estão sob o cuidado do pensamen-
to. Na esteira dessa filosofia abstracionista, a ciência moderna, completamen-
te diferente da ciência teorética clássica, é ativa e engenhosa. A sua leitura do
mundo é também abstracionista, trata todo ser como objeto em geral, como se
ele nada fosse para nós e estivesse predestinado aos nossos artifícios: pensar é
ensaiar, operar, transformar. O pensamento foi reduzido ao conjunto das técni-
cas empregadas pela ciência. A ciência apenas aparentemente rejeita as cisões
da filosofia, mas, na prática, diz Merleau-Ponty, realiza mais radicalmente todas
as abstrações.

Em 1948, Merleau-Ponty fez sete palestras para a Rádio Nacional Francesa


discutindo as relações entre ciência, filosofia e percepção. Essas palestras foram
publicadas no Brasil com o título de Conversas. Em “A exploração do mundo per-
cebido: as coisas sensíveis”, terceiro capítulo desse pequeno livro, Merleau-Ponty
retoma a crítica ao pensamento de inspiração cartesiana, um pensamento que
apenas reconhece a unidade e o sentido das coisas como resultado das sínte-
ses intelectuais que realiza. Nesse sentido, uma coisa não passa de um sistema
de qualidades oferecidas aos diferentes sentidos, sempre reunidas por um ato
de síntese intelectual. O limão nada mais seria, exemplifica o filósofo, que “essa
forma oval inflada circular, mais a cor amarela, mais o contato refrescante, mais
o sabor ácido [...]” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 19). Por outro lado, o pensamen-
to científico levou esse processo intelectual abstracionista ao seu termo mais
radical. Com a ciência, a destituição do sensível é completa. A verdade cientí-
fica sobre a água, a única forma possível de verdade, é que ela é composta por
várias moléculas, sendo que cada molécula contém dois átomos de hidrogênio
e um de oxigênio. Para a ciência, sempre indiferente aos dados do nosso contato
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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

direto, a verdade sobre a água se resume à sua associação molecular, ao fato de


que ela é completamente destituída de cor, de cheiro e de sabor. Essa perspec-
tiva abstracionista supõe que entre nós e as coisas há uma relação, ao mesmo
tempo, de dominação e distância. O homem é uma inteligência pura que tem o
poder de definir e alcançar as coisas como objetos puros.

Mas na própria ciência encontramos a ideia de que as coisas e as qualidades


têm acepções afetivas e morais e significam muito mais que aquele sentido al-
cançado por uma síntese intelectual ou, ainda, que aquele conceito resumido
aos contornos rígidos e insípidos da ciência. Não são poucas as qualidades que
têm sentido somente quando pensadas em função das reações que provocam
no nosso corpo. Na consideração da nossa experiência direta (pré-reflexiva), os
objetos são significativos por sua própria presença, falam ao nosso corpo e estão
revestidos de características humanas: são dóceis, hostis, repugnantes, atraen-
tes, calmos e nervosos. Somente assim, conforme o poema de Francis Ponge
(1899-1988), citado por Merleau-Ponty, podemos compreender a água muito
além dos caracteres purificados de mundo que a ciência constrói:
Ela é branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu único vício: o peso;
dispõe de meios excepcionais para satisfazer esse vício: contornando, penetrando, erodindo,
filtrando.

Dentro dela mesma esse vício também age: ela desmorona incessantemente, renuncia a cada
instante a qualquer forma, só tende a humilhar-se, esparrama-se de bruços no chão, quase
cadáver como monges de algumas ordens [...]

Poderíamos dizer que a água é louca devido a essa necessidade histérica de só obedecer ao
seu peso, que a possui como uma ideia fixa [...]

LÍQUIDO é por definição o que prefere obedecer ao peso a manter sua forma, o que recusa
toda forma para obedecer a seu peso. E que perde toda a compostura por causa dessa ideia
fixa, desse escrúpulo doentio [...]

Inquietude da água: sensível à menor mudança de inclinação. Saltando as escadas com os dois
pés ao mesmo tempo. Brincalhona, de uma obediência pueril, voltando logo que a chamamos
mudando a inclinação para este lado. (PONGE apud MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 26)

Para Merleau-Ponty, desde as suas primeiras obras, temos que encontrar esse
mundo esquecido pela razão e pela ciência, o solo sensível da vida para que a
filosofia deixe de ser um pensamento de sobrevoo, volte a ser a filosofia da nossa
experiência do mundo.

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

Intencionalidade e redução:
a redescoberta da experiência subjetiva
Logo no prefácio da Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty expõe todas
as dificuldades e possibilidades que podemos encontrar, quando buscamos des-
crever um movimento que parece destinado a nunca se esgotar. Na análise mer-
leau-pontyana, a fenomenologia está diante de uma vocação (inclina-se perpe-
tuamente para o mundo) que incessantemente precisa ser percorrida. Sempre
inacabada e, por isso mesmo, impossível de ser cumprida integralmente, essa
vocação é, ao mesmo tempo, o obstáculo e o combustível dessa filosofia: “Talvez
compreendamos então por que a fenomenologia permaneceu por tanto tempo
em estado de começo, de problema e de promessa” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 3).
Mas se a fenomenologia está inacabada, como descrevê-la? Merleau-Ponty nos
lembra de que os fenomenólogos não são poucos. Se Edmund Husserl (1859-
-1938), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Martin Heidegger (1889-1976) e o próprio
Merleau-Ponty são os mais eminentes representantes do pensamento feno-
menológico, entre os seus precursores estão Georg Hegel (1770-1831), Søren
Kierkegaard (1813-1855), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-
-1900), e a lista não para por aí. Mas as dificuldades vão além de uma reflexão
crítica e histórica sobre a fenomenologia. Para Merleau-Ponty, a fenomenologia
é uma atitude filosófica que se defronta com uma experiência que não é a do
senso comum, da ciência ou, mesmo, aquela das escolas clássicas da filosofia.
Assim como um movimento destinado a nunca terminar, tal parece o campo
da experiência fenomenológica. Assim como a vida, a filosofia também é uma
experiência inacabada. Não temos o absoluto na filosofia e na vida, não temos
nada que possa ser integral. A experiência se apresenta e foge na perspectiva e
em um agora que não é passado e nem futuro, mas também não é um presen-
te estático. Então, que experiência será válida? O que descrever, o que reter, o
que guardar? Se a fenomenologia pode ser acusada de parcialidade, a ciência
também o é duplamente, na medida em que se disfarça como totalidade. Mas
qual é o tipo de descrição que a fenomenologia, sobretudo a merleau-pontyana
realiza? O que, em última análise, significa recuperar o mundo da experiência
direta, como Merleau-Ponty propõe?

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

Contra a ciência, contra o idealismo, contra o realismo, a fenomenologia se dirige


ao mundo antes que qualquer exame possa desviar a nossa atenção da experiência
primordial. Pois é a partir dela, nela sobretudo, que a fenomenologia busca descre-
ver o que é o mundo físico, o que é a vida, o que é a subjetividade. Mas, antes de
tudo, essa experiência deve ser buscada pelo método fenomenológico: “Trata-se
de descrever, não de explicar nem de analisar” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 3).

Desde Husserl, a fenomenologia parte da nossa experiência subjetiva, da


ideia de que estamos sempre nos orientando, projetando-nos no mundo, isto
é, dirigindo-nos aos fenômenos. Desse modo, devemos realizar a descrição da
nossa própria experiência, das nossas vivências subjetivas.

Domínio público.

Edmund Husserl.

Para Husserl, o subjetivo não é mundo interior, mas o mundo de que temos
consciência. Na distinção entre os eventos físicos e psíquicos, realizada por meio
do conceito de intencionalidade, ele encontrou a fórmula das nossas experiências
subjetivas. Essa fórmula foi estabelecida por Franz Brentano (1838-1917), filósofo
que havia sido professor de Husserl, e é frequentemente expressa nesta sentença:
“toda consciência é sempre consciência de algo.” Mas o que significa isso?

O conceito de intencionalidade nos diz que estamos sempre orientados, di-


rigidos para o mundo, independentemente do tipo de estado de consciência
(função subjetiva) que eu possa considerar, sendo preciso admitir que a consci-
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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

ência sempre se dirige para algo distinto dela. Se eu amo, trata-se obviamente
de uma vivência da consciência: eu amo alguém ou alguma coisa. Da mesma
forma, se desejo, imagino ou temo, essas vivências acontecem sempre em rela-
ção a alguma coisa ou alguém. Portanto, é nesse sentido de dirigir-se ao mundo
e às coisas que as nossas vivências subjetivas são intencionais.

Desse modo, podemos dizer que a fenomenologia proposta por Husserl não
estuda a coisa em si (noumenon) no sentido kantiano1, como também não estuda
os fenômenos empíricos e os fenômenos físicos das ciências.

Para Husserl, não há separação entre ser e fenômeno: o fenômeno é tudo


aquilo de que podemos ter consciência, tudo que é objeto intencional dado nas
experiências subjetivas. Mas, nesse caso, como podemos distinguir esses ob-
jetos intencionais? Como podemos descrever essas vivências da consciência?
De acordo com Husserl, o caminho para isso é a redução fenomenológica, um
método que procura separar a nossa experiência dos objetos de toda e qualquer
análise sobre eles.

A redução é (fundamentalmente na primeira fase do seu pensamento) o que


permite a Husserl constituir uma filosofia transcendental a partir de um exame
das vivências da nossa consciência. Essa atitude transcendental é distinta da
atitude natural, na qual espontaneamente aceitamos a existência do mundo
exterior. Na atitude transcendental, o mundo evidente é apenas aquele que é
consciente, devendo ser considerado apenas aquilo que é dado na consciência.
Segundo Husserl, devemos nos orientar para o mundo interior, para o mundo
transcendental, enquanto o mundo exterior permanece transcendente. Nesse
sentido, transcendente é o ser real e empírico, e transcendental é o ideal, mas
não o fictício. O filósofo deve procurar explorar a subjetividade transcendental
por meio dos fenômenos que aparecem à consciência.

A atitude natural e realista do homem comum e do cientista consiste em


pensar que o sujeito está no mundo como uma coisa entre coisas, entre obje-
tos e ideias que já estão aí, independentemente dele. Já as filosofias idealistas,
como o idealismo transcendental kantiano, por exemplo, reduzem o mundo ao
pensamento e o tornam certo em função de um exame das condições a priori
e subjetivas da razão. A redução fenomenológica proposta por Husserl, confor-
me encontramos na sua obra Ideias I, não se propõe a estudar puramente o ser,
nem puramente a representação do ser, mas o ser tal como se apresenta à cons-
ciência enquanto fenômeno. Mas para atingir o fenômeno é preciso realizar a
1
Para Immanuel Kant (1724-1804), a coisa em si está além dos limites da razão, é transcendente, e o objeto da experiência não é a coisa em si, mas
o fenômeno.

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

redução, isto é, suspender os nossos juízos de verdade. A redução é a suspensão


das nossas crenças naturais na realidade, e por meio dela saímos do envolvi-
mento diário da nossa vida prática. Mas também colocamos entre parênteses a
realidade tal como a concebem a filosofia e a ciência – realizamos a epoché (em
grego, “refrear, segurar, conter”). Com a redução, o mundo fenomenológico é
um simples fenômeno que tem sentido na vivência da consciência, deixa de ser
uma coisa ou, ainda, uma existência empírica para se reduzir àquilo que aparece
à consciência.

Conforme a indicação de Merleau-Ponty, enquanto um esforço de pensa-


mento, a redução é ao mesmo tempo transcendental e eidética2: “não podemos
submeter nossa percepção do mundo ao olhar filosófico sem deixarmos de nos
unir à tese do mundo, a esse interesse pelo mundo que nos define” (MERLEAU-
-PONTY, (1999, p. 11). Eidética na medida em que a redução visa à descrição das
essências. Nesse sentido, a função da fenomenologia husserliana seria descrever
a essência dos conceitos dados nas diferentes formas de consciência que temos
no mundo. Mas a fenomenologia, sobretudo o pensamento merleau-pontyano,
não é uma filosofia dogmática. Compreender as essências não é o objetivo final,
pois a fenomenologia é um meio para entender o nosso engajamento: “As es-
sências em Husserl devem trazer consigo todas as relações vivas da experiên-
cia, assim como a rede traz do fundo do mar os peixes e as algas palpitantes”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12)3.

Diferentemente da proposta inicial de Husserl, a redução fenomenológica,


conforme Merleau-Ponty procurou realizar na Fenomenologia da Percepção, não
rompe com o mundo ou nos afasta dele: ao contrário, faz brotar os fios e todas
as ligações intencionais que nos prendem ao mundo. Para Merleau-Ponty, a des-
crição da nossa vida intencional supera qualquer espécie de idealismo, revelan-
do-nos como ser no mundo, como cogito situado. Portanto, a fenomenologia é
uma filosofia que busca compreender e conquistar a nossa facticidade, revelar o
nosso engajamento estrutural no mundo, descrever os movimentos e vivências
(Erlebnis) com todos os caracteres da nossa experiência mais direta no mundo.
Para entender melhor essa volta ao mundo vivido (Lebenswelt), na Fenomenolo-
gia da percepção, Merleau-Ponty retoma uma distinção tardia, estabelecida por
Husserl, entre duas formas de intencionalidade.

2
Eidético: aquilo que se refere às essências.
3
Sobre a ideia de que toda vivência é vivência de essências, acompanhemos o famoso exemplo de Husserl sobre a Nona Sinfonia, de Beethoven,
reproduzido por Dartigues: “Esta pode se traduzir pelas impressões que experimento ao escutar este ou aquele concerto, pela escritura desta ou
daquela partitura, pela atividade do regente de orquestra ou dos músicos etc. Em cada caso, poderei dizer que se trata da Nona Sinfonia e, contudo,
esta não se reduz a nenhum, se bem que ela possa a cada vez se dar neles inteiramente. A essência da Nona Sinfonia persistiria mesmo se as parti-
turas, orquestras e ouvintes viessem a desaparecer para sempre” (DARTIGUES, 1973, p. 22).

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

 A primeira delas, a intencionalidade de ato, é aquela de nossos juízos e


tomadas de posição voluntárias. É a consciência tética (constituinte) de um
objeto que tem o poder de converter as coisas e as experiências em ideias
e conceitos.

 Já a intencionalidade operante é a expressão radical do nosso engajamen-


to, da nossa condição de ser no mundo. A intencionalidade operante “forma
a unidade natural e antipredicativa do mundo e de nossa vida. Aparece
em nossos desejos, nossas avaliações, na nossa paisagem, mais claramen-
te do que no conhecimento objetivo.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 16). Por
meio da intencionalidade operante, podemos falar em vida pré-reflexiva,
experiência direta, percepção estrutural, significação expressiva do corpo
e sentido da nossa existência como ser encarnado.

A redução fenomenológica, proposta por Merleau-Ponty, não se realiza apenas


na consciência, não se limita a descrever as nossas vivências intelectuais (pensar,
imaginar e julgar), pois se dirige ao corpo, aos movimentos, à sexualidade, e des-
creve o sentido do horizonte vivido anteriormente a toda e qualquer reflexão.

O ser no mundo: corpo e existência


Desde A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty já havia delineado o
campo fenomenológico. No segundo capítulo desse livro, um breve esboço da
teoria da percepção remete a três tópicos muito elucidativos para a compreen-
são tanto da noção de forma, como um elemento de totalidade, quanto do signi-
ficado merleau-pontyano de experiência direta.

 Primeiro, indica Merleau-Ponty, não percebo somente coisas, mas objetos


de uso. Estou inserido em um mundo cultural em que é impossível se refe-
rir a qualquer coisa sem que ela me revele um sentido próprio.

 Segundo, é preciso ter em conta o alcance do funcionamento do sistema


nervoso como algo que também distribui valores simbólicos. Se as coisas
se oferecem para mim de maneira significativa, eu (sujeito corporal e cons-
ciência ativa) também me debruço sobre elas, investindo-as de valores. O
meu corpo, o meu sistema físico não consiste apenas em um receptáculo
de sensações ou, ainda, uma fonte da qual emanam mecanicamente estí-
mulos e reflexos. O meu corpo e as minhas funções fisiológicas se comu-
nicam espontaneamente com o mundo e, mesmo nessa comunicação não
linguística convencional, dão um sentido simbólico às coisas, uma signifi-
cação à experiência que envolve a mim e ao mundo.
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 Esses dois primeiros princípios, juntamente com o terceiro, não excluem


o subjetivismo e o objetivismo do nosso contato direto com as coisas.
As coisas estão lá, sempre exteriores, estranhas a nós, apresentando-se
objetivamente e oferecendo a nós o que possuem de imanente em seu
ser, como sempre supôs o realismo. No entanto, elas não se apresentam
indiferentes ao modo como são subjetivamente percebidas. Conforme o
terceiro princípio, uma situação percebida depende de um conjunto de
estímulos, tanto proprioceptivos como exteroceptivos, isto é, de fatores
internos e externos, do corpo (reflexos) e do ambiente. Nada é, por si só,
inteiramente determinante, sem, contudo, deixar de ser relevante assim
como, por seu turno, o todo (o eu e o mundo), considerado na sua unida-
de essencial, é sempre mais significativo do que quando visto sob a forma
associada de coisas e eventos isolados.

No entanto, se quisermos compreender o ponto de vista de Merleau-Ponty,


é muito importante considerar o que há de obscuro, de não mensurável, de não
dizível na nossa experiência perceptiva. Temos ainda que assumir, conforme os
termos de Merleau-Ponty, como “é mágico” o modo como se produz a relação
entre a coisa percebida e a percepção, entre a intenção e o gesto. Na minha rela-
ção com o mundo, “seres perspectivos” são percebidos. Eles são sobretudo ambí-
guos, pois se mostram pouco a pouco e nunca completamente. Uma percepção
do perspectivo é somente um aspecto do possível, do que pode ser percebido.
A experiência perceptível é um fluir inesgotável da própria coisa que a transcen-
de. Então, não é, de maneira definitiva, a consciência que dá sentido às coisas,
nem mesmo o contrário, como consideram as doutrinas positivas, isto é, não é a
consciência que apreende as coisas em si mesmas. O sentido é sempre ambíguo
e inacabado. O perspectivismo merleau-pontyano quer significar isso mesmo: a
ambiguidade permanece, antes de tudo, porque o projeto de uma redução ao
mundo das essências, de uma apreensão, pela consciência, das coisas acabadas
jamais se realizará integralmente. O mundo e a consciência não estão em lados
opostos. Nesse sentido, o que não há, na perspectiva de Merleau-Ponty, é espaço
para a inclusão e para a exclusão do corpo, da consciência e das coisas. Os pos-
tulados associacionistas ainda continuam vigentes, mas somente na medida em
que reconhecem o valor simbólico do mundo, como também continuam vigen-
tes as afirmações do kantismo apenas enquanto estabelecem que à consciência
perceptiva cabe um papel na significação das coisas. Mas, note-se, não um papel
isento da ligação intrínseca (carnal) da consciência perceptiva com o mundo.
Portanto, se quisermos compreender o verdadeiro significado da percepção,
temos que retornar à experiência que a designa e, ainda, evitar o esquematismo

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psicologista, quase que totalmente reflexionante, que se estabeleceu de Descar-


tes a Kant. Temos, fundamentalmente, que parar de concebê-la a partir de uma
instância superior e de instituí-la artificialmente como uma operação posterior
que deve ser ultrapassada. O seu significado supõe que, ao sentir, abriremos um
espaço no domínio pré-objetivo, anterior a qualquer exame abstracionista. Só
assim poderemos, de algum modo, querer defini-la – porém, sabendo que nunca
o conseguiremos de maneira integral. Essa foi a mais ingênua pretensão do as-
sociacionismo e do intelectualismo: a ideia de um ser capaz de fazer coincidir a
experiência do sentir com a representação intelectual da experiência. Essa volta,
essa abertura ao pré-objetivo nos diz que o sentir é ambíguo justamente porque
nunca é vazio, porque nunca é definitivo e porque é, em si mesmo, completo e
indeterminado, definível e, ao mesmo tempo, indefinível.

O primeiro ato filosófico seria o retorno ao mundo vivido aquém do mundo


objetivo, já que nele poderemos compreender tanto os direitos como o limite
do mundo objetivo, restituindo à coisa sua fisionomia concreta; aos organismos,
sua maneira própria de tratar o mundo; à subjetividade, a sua inerência histórica,
reencontrando os fenômenos, a camada da experiência viva por meio da qual
primeiramente o outro e as coisas nos são dados, o sistema “Eu-Outro-as coisas”
no estado nascente, despertando a percepção e desfazendo a astúcia pela qual
ela se deixa esquecer enquanto fato e enquanto percepção, em benefício do
objeto que nos entrega e da tradição racional que funda. O campo fenomenal
não é um mundo interior, não se reduz a uma tomada de consciência do exterior,
pois o sistema “Eu-Outro-as coisas” é mais do que uma associação, é uma junção
essencial dada de imediato como sentido, como estrutura, como arranjo espon-
tâneo das partes.

Não surpreende que, na completa negação do campo perceptivo (o raciocí-


nio de Merleau-Ponty nos convence disso), o corpo tenha sido relegado à condi-
ção menor de um objeto mudo entre outros objetos. Admitir a força perceptiva
e expressiva do corpo seria fugir à lógica abstracionista, que deve permanecer
ligada somente aos eventos que se apresentam à consciência. Seria, ainda, fazer
a verdadeira genealogia do ser. Também não é difícil perceber por que, tradição
filosófica ocidental, frequentemente o corpo foi pensado como um exterior sem
interior, uma máquina incapaz de perceber verdadeiramente o outro e, mais que
isso, incapaz de expressar uma significação de si mesmo. O naturalismo da ci-
ência e o espiritualismo do sujeito constituinte universal, aos quais se chegava
pela reflexão sobre a ciência, tinham em comum o fato de nivelarem todas as
experiências pelo poder constituinte do cogito: diante do eu constituinte, os eus
empíricos são objetos.
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Portanto, no pensamento clássico, o corpo está dado nas funções do cogito:


não percebe e não se comunica, não ouve e não fala, não sente e não se expressa,
o corpo vivo é quase um corpo morto. Se quisermos compreender todo o alcan-
ce do sistema “eu-outro-mundo”, é fundamental, antes de tudo, admitir a nossa
anterioridade corporal. É preciso reconhecer, nos termos de Merleau-Ponty, “a
nossa existência encarnada”, que primeiro supõe, em vez de uma associação
neurofísica de processos lineares ou de uma consciência constituinte, um corpo
que se comunica e se expressa estruturalmente. Somente assim poderemos in-
tegrar o físico e o mental e, ainda, compreender a primeira questão posta em
A Estrutura do Comportamento: a relação entre a consciência e a natureza. Para
tanto, precisamos, fundamentalmente, estabelecer como essa relação se mostra
presente a partir das nossas experiências perceptivas. Somente então compre-
enderemos como uma relação engendrada no domínio pré-objetivo (originário)
é capaz de expressar um ser, uma significação existencial.

Esse é o caso, por exemplo, das nossas vivências afetivas. Merleau-Ponty não
deixa de descrever a vida erótica como intencional, pois os nossos gestos eró-
ticos, como bem estabelece a Fenomenologia da Percepção, são, fundamental-
mente, dialógicos, projetivos e carregados de significação. Do modo como foi
descrita no capítulo V, ainda na primeira parte da Fenomenologia da Percepção, a
afetividade (as nossas experiências sexuais, por exemplo) permanece, enquanto
um momento do nosso comportamento, reveladora de uma existência percepto-
-estrutural: a visão sobre mim, sobre as coisas e sobre o outro. Merleau-Ponty fala
em uma percepção erótica que atua, que nos liga e nos projeta no mundo. Nesse
sentido, é fácil ver que a sexualidade não se reduz a um sentimento interior (uma
vivência da alma) ou a um gozo físico desencadeado por um estímulo. O nosso
comportamento afetivo se abre ao mundo por meio dos nossos gestos corpóre-
os-motores, e evidencia a presença do outro em nosso campo perceptivo:
No próprio Freud, o sexual não é o genital, a vida sexual não é um simples efeito de processos
nos quais os órgãos genitais são o lugar, a libido não é um instinto, quer dizer, uma atividade
naturalmente orientada a fins determinados, ela é o poder geral que o sujeito psicofísico tem
de aderir a diferentes ambientes, de fixar-se por diferentes experiências, de adquirir estruturas
de conduta. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 219)

Essas “estruturas de conduta” (comportamento) e o seu poder no “fixar” no


mundo estão, de certo modo, presentes em todas as nossas vivências afetivas.

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

Na leitura de Merleau-Ponty, a sexualidade supõe um diálogo carregado de


gestos intencionais, é reveladora na nossa existência encarnada, das ligações
de transcendência e imanência que se operam entre o eu e o outro. Por meio
da afetividade corporal, apreendemos o outro e nos expressamos no mundo,
e então nos abrimos para uma leitura do outro sobre o eu. Na nossa existên-
cia original, o nosso comportamento afetivo, todos os nossos sentimentos, as
nossas paixões, os nossos desejos, a nossa vivência sexual são intencionais e,
portanto, encontram na expressividade do corpo a possibilidade de se projeta-
rem no mundo, assim permitindo o diálogo que possibilita a experiência de um
encontro carregado de sentimentos, paixões e valores entre o eu, as coisas e o
outro. Desse modo, a afetividade expressada pelo nosso corpo confere significa-
do para as coisas e, como não poderia deixar de ser, para o outro. Por meio da
sexualidade, compreendemos de um modo original, na vivência pré-reflexiva, as
coisas mundanas e o outro, pois, mesmo desprovida de todas as propriedades e
funções da consciência reflexiva, a sexualidade é, conforme Merleau-Ponty, um
comportamento, uma experiência que nos faz escorregar para o mundo e, ao
mesmo tempo, permite que tomemos posse do meio e do outro. A sexualidade
é uma expressão afetiva da relação entre o corpo próprio e o mundo, da visão
sobre mim sobre e o outro. Ela é “percepção erótica”, “compreensão” erótica:
Há uma “compreensão” erótica que não é da ordem do entendimento, já que o entendimento
compreende percebendo uma experiência sob uma ideia, enquanto o desejo compreende
cegamente, ligando um corpo a um corpo. Mesmo que a sexualidade, que todavia durante
muito tempo passou pelo tipo de função corporal, nós lidamos não com um automatismo
periférico, mas com uma intencionalidade que segue o movimento geral da existência e que
inflete com ela. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 217)

Em Merleau-Ponty, a doutrina da existência, do mundo vivido e do mundo


percebido são inseparáveis. O existente é sempre encarnado. Assim, o corpo é o
ponto de vista sobre o mundo – o que lhe confere finitude e perspectiva, inicia-o
à verdade do mundo. É o ser no mundo. O corpo próprio é o cogito tácito e pré-
-reflexivo, é uma presença de si a si, a própria existência anterior a toda filosofia.
Desse modo, na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty radicaliza a análise
sobre a percepção, estabelece que o sujeito perceptivo é uma existência carnal.
O projeto, agora, é pensar a percepção como luz natural, como pensamento in-
superavelmente encarnado e livre, como ser no mundo, como em si e para si.

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Creative Commons.
A tumba de Merleau-Ponty, no cemitério de Père-Lachaise,
em Paris.

Na Fenomenologia da Percepção, o centro de significatividade primordial é


o corpo, que está na origem de todos os outros movimentos de expressão. Do
mesmo modo, o corpo e os seus dispositivos anatômicos (considerados “pontos
de apoio ou veículos de minhas intenções”) estão na origem não apenas da nossa
unidade espaçotemporal e da nossa própria extensão, mas também do mundo,
das coisas e do outro que se apresenta à nossa experiência. Podemos, nesse
caso, falar em um corpo cognoscente. Diferentemente do corpo real das ciên-
cias da anatomia (esquema rígido de músculos, líquidos e ossos), é somente na
consideração da experiência direta do corpo fenomenal que a consciência não
se distingue dele. É por meio do corpo fenomenal que a experiência imediata se
dá e, também, faz integrar em um só campo o interior e o exterior, o espírito e a
matéria, o eu, o outro e as coisas. A partir da experiência do meu próprio corpo,
sei que não há causalidades objetivantes e dicotômicas que operam a relação
entre a consciência e o corpo, ou entre o meu mundo e o mundo de outrem.
Quando me dirijo a mim, o que encontro não é apenas “um fluxo anônimo”, mas
uma estrutura na qual inexistem estados de consciência definitivos. Portanto,
as diferentes experiências do corpo próprio convergem para a certeza de uma
existência profusa em que não é possível distinguir ou localizar definitivamente
o exterior e o interior, o corpo e a consciência, o eu das coisas e o outro.

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Texto complementar

Conversas (fragmentos)
(MERLEAU-PONTY, 2006)

Porque, certamente, há trinta séculos ou mais, muitas coisas já foram


ditas sobre o homem, mas frequentemente foram descobertas pela refle-
xão. Quero dizer que, ao tentar saber o que é o homem, um filósofo como
Descartes submetia a um exame crítico as ideias que se apresentavam a ele
– por exemplo, as de espírito e de corpo. Ele as purificava, expurgava-as de
qualquer espécie de obscuridade ou de confusão. Enquanto a maioria dos
homens entende por espírito algo como uma matéria muito sutil, ou uma
fumaça, ou um sopro – seguindo nisso exemplo dos primitivos –, Descartes
mostrava limpidamente que o espírito não corresponde a nada de parecido,
ele é de uma natureza completamente distinta, já que a fumaça e o sopro
são, a seu modo, coisas, ainda que bem sutis, ao passo que o espírito não é
absolutamente uma coisa, não habitando o espaço, disperso como todas as
coisas por uma certa extensão, mas sendo, pelo contrário, completamente
concentrado, indiviso, não sendo nada mais, finalmente, do que se recolhe e
se reúne infalivelmente, que conhece a si mesmo.

Chegava-se assim a uma noção pura do espírito e a uma noção pura da


matéria ou das coisas. Porém, é claro que só encontro esse espírito completa-
mente puro e, por assim dizer, só o toco em mim mesmo. Os outros homens
nunca são puro espírito para mim: só os conheço através de seus olhares, de
seus gestos, de suas palavras, em suma, através de seus corpos. Certamente,
para mim, um outro está bem longe de reduzir-se a seu corpo.

Um outro é esse corpo animado de todos os tipos de intenções, sujeito de


ações ou afirmações das quais me lembro e que contribuem para o esboço
de sua figura moral para mim. Por fim, eu não conseguiria dissociar alguém
de sua silhueta, de seu estilo, de seu jeito de falar. Observando-o por um
minuto, apreendo-o de imediato, bem melhor do que enumerando tudo o
que sei sobre ele por experiência e por ouvir dizer. Os outros são para nós
espíritos que habitam um corpo, e a aparência total desse corpo parece-nos
conter todo um conjunto de possibilidades das quais o corpo é a presença
propriamente dita. Assim, ao considerar o homem de fora, isto é, no outro, é

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

provável que eu seja levado a reexaminar certas distinções que, no entanto,


parecem impor-se, como a distinção entre o espírito e o corpo. Observemos,
então, do que se trata essa distinção e vamos raciocinar a partir de um exem-
plo. Suponhamos que eu me encontre diante de alguém que, por qualquer
motivo, esteja violentamente irritado comigo. Meu interlocutor fica com
raiva, e eu digo que ele exprime sua raiva por meio de palavras violentas,
de gestos, de gritos... Porém, onde se encontra essa raiva? Alguém poderá
responder: está no espírito do meu interlocutor. Isso só não é muito claro.
Porque, afinal, essa maldade, essa crueldade que leio nos olhares de meu ad-
versário, não consigo imaginá-las separadas de seus gestos, de suas palavras,
de seu corpo. Tudo isso não acontece fora do mundo e como que num san-
tuário distante do corpo do homem com raiva. Está bem claramente aqui, a
raiva explode nesta sala e neste lugar da sala, e neste espaço entre mim e ele
que ela ocorre. Concordo que a raiva de meu adversário não acontece em
seu rosto; no mesmo sentido em que talvez, daqui a pouco, as lágrimas vão
escorrer de seus olhos, uma contração vai marcar sua boca. Porém, enfim, a
raiva que habita nele aflora à superfície de suas bochechas pálidas ou violá-
ceas, de seus olhos injetados de sangue, dessa voz esganiçada... E se, por um
instante, deixo meu ponto de vista de observador exterior da raiva, se tento
lembrar-me de como ela aparece a mim quando estou com raiva, sou obri-
gado a confessar que as coisas não ocorrem de forma diferente: a reflexão
sobre minha própria raiva nada me mostra que seja separável ou que possa,
por assim dizer, ser descolado de meu corpo. Quando me lembro de minha
raiva de Paulo, encontro-a não em meu espírito ou em meu pensamento,
mas inteiramente entre mim que vociferava e esse detestável Paulo, tranqui-
lamente sentado ali me escutando com ironia. Minha raiva era somente uma
tentativa de destruição de Paulo, que permanece verbal, se sou pacífico, até
cortês, se sou educado, mas afinal ela acontecia no espaço comum em que
trocávamos argumentos em vez de golpes, e não em mim. Se posteriormen-
te, refletindo sobre o que é a raiva e observando que ela encerra uma certa
avaliação (negativa), do outro, que concluo: afinal, a raiva é um pensamento,
estar com raiva é pensar que o outro é detestável e, como mostrou Descar-
tes, esse pensamento, como todos os outros, não pode residir em nenhum
fragmento de matéria. Ela é, portanto, espírito. Posso perfeitamente refletir
assim, mas a partir do momento em que me volto para a experiência propria-
mente dita da raiva que motiva minha reflexão devo confessar que ela não
estava fora de meu corpo, não era animada de fora, mas estava inexplicavel-
mente nele.

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[...]

Disso resulta uma imagem do homem e da humanidade que é bem di-


ferente daquela da qual partimos. A humanidade não é uma soma de indi-
víduos, uma comunidade de pensadores em que cada um, em sua solidão,
obtém antecipadamente a certeza de se entender com os outros, porque
eles participariam todos da mesma essência pensante. Tampouco é, eviden-
temente, um único ser ao qual a pluralidade dos indivíduos estaria fundida e
estaria destinada a se incorporar. Ela está, por princípio, em situação instável:
cada um só pode acreditar no que reconhece interiormente como verdade
– e, ao mesmo tempo, cada um só pensa e decide depois de já estar preso
em certas relações com o outro, que orientam preferencialmente para deter-
minado tipo de opiniões. Cada ser é só, e ninguém pode dispensar os outros,
não apenas por sua utilidade – que não está em questão aqui –, mas para
sua felicidade. Não há vida em grupo que nos livre do peso de nós mesmos,
que nos dispense de ter uma opinião; e não existe vida “interior” que não seja
como uma primeira experiência de nossas relações com o outro. Nesta situ-
ação ambígua na qual somos lançados porque temos um corpo e uma his-
tória pessoal e coletiva, não conseguimos encontrar repouso absoluto, pre-
cisamos lutar o tempo todo para reduzir nossas divergências, para explicar
nossas palavras mal compreendidas, para manifestar nossos aspectos ocul-
tos, para perceber o outro. A razão e o acordo dos espíritos não pertencem ao
passado, estão, presumivelmente, diante de nós, e somos tão incapazes de
atingi-los definitivamente quanto de renunciar a eles. Compreende-se que
nossa espécie, engajada assim numa tarefa que jamais está concluída nem
poderia estar, e que não se destina necessariamente a conseguir terminá-la,
mesmo que relativamente, encontra nessa situação ao mesmo tempo um
motivo de inquietude e um motivo de coragem. Na verdade, os dois motivos
são apenas um. Porque a inquietude é vigilância, e a vontade de julgar, de
saber o que se faz e o que se propõe. Se não existe fatalidade boa, tampouco
existe fatalidade ruim, e a coragem consiste em referir-se a si e aos outros
de modo que, através de todas as diferenças das situações físicas e sociais,
todos deixem transparecer em sua própria conduta e em suas próprias re-
lações a mesma chama, que faz com que os reconheçamos, que tenhamos
necessidade de seu assentimento ou de sua crítica, que tenhamos um des-
tino comum. Simplesmente, esse humanismo dos modernos não tem mais
o tom peremptório dos séculos precedentes. Não nos vangloriemos mais de
ser uma comunidade de espíritos puros, vejamos o que são realmente as re-

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

lações de uns com os outros nas nossas sociedades: a maior parte do tempo,
relações de senhor e escravo. Não nos desculpemos por nossas boas inten-
ções, vejamos o que elas se tornam assim que saem de nós. Existe algo sau-
dável nesse olhar exterior com que nos propomos a considerar nossa espé-
cie. Em outros tempos, em Micrômegas, Voltaire imaginou um gigante de um
outro planeta diante de nossos costumes, que só podiam parecer irrisórios
para uma inteligência maior do que a nossa. Ao nosso tempo foi reservado
julgar-se não de cima, o que é amargo e maldoso, mas de alguma maneira
de baixo. Kafka imagina um homem metamorfoseado em ortóptero. Kafka
imagina as pesquisas de um cachorro que se depara com o mundo humano.
Descreve sociedades encerradas na concha dos costumes que adotaram, e
hoje Maurice Blanchot descreve uma cidade fixada na evidência de sua lei,
da qual todos participam tão intimamente que não experimentam mais nem
sua própria diferença, nem a dos outros. Observar o homem de fora é a crí-
tica e a saúde do espírito. Porém não para sugerir, como Voltaire, que tudo
é absurdo. Mais para sugerir, como Kafka, que a vida humana está sempre
ameaçada e para preparar, pelo humor, os momentos raros e preciosos em
que acontece aos homens se reconhecerem e se encontrarem.

Dicas de estudo
DARTIGUES, André. O que É a Fenomenologia? Rio de Janeiro: Eldorado, 1973.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Atividades
1. Explique como Maurice Merleau-Ponty descreve a separação entre consciên-
cia e natureza, operada pelo pensamento clássico.

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2. Explique, de modo geral, a noção de intencionalidade, proposta por Edmund


Husserl.

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3. Em que sentido a diferença entre intencionalidade de ato e intencionalidade


operante permitiu a Maurice Merleau-Ponty uma abertura mais radical para
o campo fenomenal?

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Gabarito
1. Trata-se, primeiro, de um esvaziamento de sentido e de referência nas nossas
experiências originais, o que é sustentado, sobretudo, por pensamentos an-
titéticos que privilegiaram a função constitutiva do sujeito ou, ao contrário, o
sentido imanente do mundo físico. No primeiro caso, estamos nos referindo
à atitude filosófica que concebeu as experiências da razão e do pensamento
como polos significativos da verdade, enquanto aos sentidos sobrou enga-
no, aparência e ilusão. Assim, Platão separou o mundo em inteligível e sen-
sível, concebeu o corpo e todos os seus modos de conhecimento como obs-
táculo à verdade. A própria dialética não deixou de ser um método ao qual o
pensamento recorre para ultrapassar à experiência, os erros e as ilusões dos
sentidos, pois o conhecimento das essências está no mundo inteligível. No
caso de filósofos modernos como Bacon, Descartes e Galileu, por exemplo,
essa separação está assentada na ideia geral de que o verdadeiro conheci-
mento não se estrutura a partir do modo como o mundo se apresenta aos
nossos sentidos. A experiência direta e o nosso contato mais imediato com o
mundo devem ser descartados como obscuros e confusos.

2. Desde Husserl, a fenomenologia parte da nossa experiência subjetiva, da


ideia de que estamos sempre nos orientando, projetando-nos no mundo,
isto é, dirigindo-nos aos fenômenos. Desse modo, é a descrição da nossa
própria experiência, das nossas vivências subjetivas que devemos realizar.

Para Husserl, o subjetivo não é mundo interior, mas o mundo de que temos
consciência. Na distinção entre os eventos físicos e psíquicos, realizada por
meio do conceito de intencionalidade, ele encontrou a fórmula das nossas
experiências subjetivas. Estabelecida por Franz Brentano, essa fórmula é fre-
quentemente expressa pela sentença “Toda consciência é sempre consciên-
cia de algo”, significando que estamos sempre orientados, dirigidos para o
mundo. Independentemente do tipo de estado de consciência (função sub-
jetiva) que se possa considerar, é preciso admitir que a consciência sempre
se dirige para algo distinto dela. Se eu amo, trata-se obviamente de uma
vivência da consciência: amo alguém ou alguma coisa. Se desejo, imagino
ou temo, essas vivências acontecem sempre em relação a alguma coisa ou
alguém. Portanto, é nesse sentido de dirigir-se ao mundo e às coisas que as
nossas vivências subjetivas são intencionais.

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

3. Para Merleau-Ponty, a redução fenomenológica não rompe com o mundo ou


nos afasta dele, mas, ao contrário, faz brotar os fios e todas as ligações inten-
cionais que nos prendem ao mundo. A descrição da nossa vida intencional
supera qualquer espécie de idealismo, revelando-nos como ser no mundo,
cogito situado. Portanto, a fenomenologia é uma filosofia que busca com-
preender e conquistar a nossa facticidade, desvendar o nosso engajamento
estrutural no mundo, descrever os movimentos e vivências (Erlebnis) com to-
dos os caracteres da nossa experiência mais direta no mundo. Para entender
melhor essa volta ao mundo vivido (Lebenswelt), Merleau-Ponty retoma uma
distinção tardia de Husserl:

 intencionalidade
de ato – aquela de nossos juízos e tomadas de posição
voluntárias, sendo a consciência tética (constituinte) de um objeto que tem
o poder de converter as coisas e as experiências em ideias e conceitos;

 intencionalidade
operante – expressão radical do nosso engajamento,
da nossa condição de ser no mundo, e por meio dela podemos falar em
vida pré-reflexiva, experiência direta, percepção estrutural, significação
expressiva do corpo e sentido da nossa existência como ser encarnado.

Referências
BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Inter-
pretação da Natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).

DARTIGUES, André. O que É a Fenomenologia? Rio de Janeiro: Eldorado, 1973.

DESCARTES, René. Discurso do Método/As Paixões da Alma/Meditações Me-


tafísicas/Objeções e Respostas. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção
Os Pensadores).

_____. As Paixões da Alma. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

GALILEI, G. O Ensaiador. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).

HUSSERL, Edmund. A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia. Porto


Alegre: Edipucrs, 1996.

_____. A Ideia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2000.

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

_____. Investigaciones Lógicas. Madri: Revista de Occidente, s.d.

_____. Meditações Cartesianas: introdução à fenomenologia. São Paulo: Madras,


s.d.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,


1985.

_____. Crítica da Faculdade do Juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2005.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Merleau-Ponty: textos escolhidos. São Paulo: Abril


Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).

_____. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

_____. A Estrutura do Comportamento. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.

_____. Conversas. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.

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O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)

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Para onde vamos? (Natureza e técnica)

A técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com
tais novos objetos e consequências que a moldura da ética antiga não consegue mais
enquadrá-las.

Hans Jonas

A pergunta sobre o poder do homem é a pergunta sobre a sua capa-


cidade de domínio, conhecimento e intervenção nas leis que regem a na-
tureza – e também o próprio humano como parte dela. Conhecer e mo-
dificar a natureza é um dos mais antigos impulsos da humanidade. Ora,
o poder do homem cresce na medida em que seu saber também progri-
de. O problema é que o uso desse poder não deve vir de forma ingênua,
porque pode representar um perigo, já que se corre o risco de escapar dos
interesses vitais da humanidade como um todo ou de grupos humanos
específicos. A longo prazo, o poder pode conduzir a mudanças significa-
tivas nos processos complexos e polissêmicos que formam os fenôme-
nos vitais, colocando em xeque não só a integridade do ser humano, mas
também o próprio futuro da natureza e da humanidade.

A técnica como aumento do poder


É inegável que o poder do homem tem crescido consideravelmente
nos últimos séculos, amparado por muitas descobertas e invenções no
âmbito das ciências em geral, e nas ciências naturais e médicas em parti-
cular. Desde o século XVII, a corrida pelo domínio da natureza passou a ser
realizada a partir de um método que tentava dar ao ser humano o alcance
de uma verdade, em um mundo que já não dispunha das referências te-
ocêntricas da era medieval. Amparado no poder da razão, o ser humano
moderno vivenciou algo inimaginável, em termos de força e poder. Em
uma palavra: o que foi ampliado foi o poder da técnica.

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Para onde vamos? (Natureza e técnica)

Essa palavra, que está amplamente absorvida no nosso cotidiano, tem uma
longa tradição na Filosofia.

Em termos etimológicos, sua origem remonta à cultura grega, que chamava


de techné ao que era relativo a uma arte1, ou seja, o procedimento ou conjunto
de procedimentos, regras ou práticas utilizadas para alcançar determinado fim.
Por isso, ela tem a ver com um “saber fazer”, em termos artísticos e científicos,
envolvendo as atividades humanas em geral.

Em um sentido específico, a técnica está ligada ao comportamento do homem


frente à natureza, na medida em que ela o capacita a produzir bens de que ele
se beneficia. Por isso, a técnica é geralmente apontada como a força do homem
para buscar seu próprio desenvolvimento. Ainda que não seja uma prerrogativa
humana (já que muitos animais também a utilizam), para o homem a técnica
representa uma possibilidade de enfrentamento dos obstáculos em vista da sua
sobrevivência e bem-estar individual e coletivo. Como um animal frágil e pe-
recível, o ser humano faz uso de técnicas as mais diversas para se consolidar
na existência, dela retirando as condições para seu desenvolvimento. O filósofo
inglês Francis Bacon (1561-1626) foi quem primeiro vislumbrou, na era moder-
na, essa capacidade da técnica para garantir o desenvolvimento do ser humano:
aliada à ciência, ela deveria ajudar o ser humano a conquistar seu bem-estar na
Terra. Esse é o tom da sua obra Nova Atlântida, na qual o filósofo descreveu uma
cidade “ideal” baseada no domínio da técnica e no progresso absoluto, advindo
das invenções e descobertas humanas.

Essa crença na força da técnica estava amparada em muitas novidades ad-


vindas do campo das ciências. E certamente os nomes mais relevantes desse
processo foram os dos astrônomos e matemáticos: o polonês Nicolau Copérnico
(1473-1543) e o italiano Galileu Galilei (1564-1642), com suas teorias a respeito
do heliocentrismo do sistema solar e a explicação das leis que o governam. Seus
nomes estão ligados a uma verdadeira revolução científica. Em um trecho de Ga-
lileu, em sua obra O Ensaiador, podemos entender facilmente o tom geral dessa
revolução e a importância do método matemático para o seu desenvolvimento:

1
No sentido geral, a palavra arte não se refere apenas às “belas artes”, mas ao conjunto de regras que dirigem alguma atividade humana, e é nesse
sentido mais amplo que ela pode ser associada à técnica e não apenas à estética.

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Para onde vamos? (Natureza e técnica)

A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos
olhos (isto é, o Universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer
os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres
são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível
entender humanamente as palavras: sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro
labirinto. (GALILEI, 2000, p. 46)

Se antes valia como critério da verdade a autoridade dos filósofos (em es-
pecial Aristóteles) e a própria Bíblia, agora a Filosofia se volta para o “livro do
universo”, escrito em língua matemática. É importante lembrar, também, que
esse método foi tematizado de forma central na obra do filósofo francês René
Descartes (1596-1660), Discurso do Método.

O poder de Prometeu
Na linguagem originária do povo grego, havia uma palavra muito curiosa:
hybris, cujo sentido era o excesso ou mesmo a insolência, sendo muitas vezes
descrita nas tragédias como revelação de uma insegurança, gerada pela invasão
do mundo dos deuses por parte dos homens. Mas o seu sentido vai mais além:
trata-se de uma invasão da norma, da medida, ou seja, dos limites dos homens
na sua relação com o ordenamento natural, humano ou mesmo divino. A pró-
pria ideia de injustiça está ligada à transgressão dessas regras. O resultado dessa
transgressão dos limites do que é humano geralmente é descrito, no mito grego,
como um castigo dos deuses.

Um bom exemplo é o mito de Prometeu. Depois de ter criado os seres huma-


nos a partir da argila do solo, esse titã ensinou-os todos os assuntos relativos à
Terra e ao céu, as técnicas da construção, da agricultura, da caça, da pesca, da ex-
tração dos minérios, da cunhagem das moedas, da escrita e mesmo da Filosofia.
Mas o maior dom ainda faltava ao homem: ele ainda não poderia se desenvolver
plenamente sem o domínio do fogo, que fora roubado dos deuses e dado de
presente aos homens, diferenciando-os dos demais animais. Com o fogo doado
por Prometeu, a humanidade se tornou capaz de dominar todo o mundo e os
seus habitantes. Mas esse era um poder apenas dos deuses – que, obviamente,
sentiram-se traídos e impetraram uma vingança contra Prometeu e contra a hu-
manidade. Aos homens foi enviada uma donzela de beleza inigualável chamada
Pandora (no que significa “cheia de dons”), trazendo nas mãos uma caixa que
jamais poderia ser aberta. Além de linda, Pandora também era curiosa, e tendo
aberto a caixa deixou escapar enormes malefícios contra a humanidade.

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Para onde vamos? (Natureza e técnica)

Domínio público.
A curiosidade de Pandora, segundo tela
de John William Waterhouse (1896).

Prometeu, por sua vez, foi dependurado na beira de um abismo e uma águia
foi enviada para devorar o seu fígado, eternidade afora. Libertado por Hércules,
que flechou a águia, Prometeu passou a usar um anel feito com uma rocha re-
tirada do abismo – ele continuaria, assim, preso à pedra, segundo a ordem de
Zeus.

Muitas são as interpretações possíveis para essa narrativa. Mas talvez nenhu-
ma delas seja mais explícita que aquela que remete ao poder da técnica, advinda
aos homens pelo crime de Prometeu. O fogo é o símbolo do conhecimento e
do domínio tecnocientífico da natureza. Tendo invadido o âmbito dos deuses,
os homens foram castigados: trata-se de uma mensagem que evoca o perigo
do uso do conhecimento por parte dos homens, sem contar com os limites im-
postos pelos deuses. Assim, Prometeu é o símbolo do domínio técnico sobre a
natureza e também do risco que esse poder emite, bem como da necessidade
de que ele seja usado de maneira responsável.

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Para onde vamos? (Natureza e técnica)

Domínio público.
Prometeu em seu tormento, conforme pintura de
Jacob Jordaens (c. 1640).

Com a ajuda de Hércules, entretanto, o Prometeu desacorrentado não só se


livra da prisão, mas também se liberta para a sua tarefa técnica. Em uma passa-
gem de sua obra O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civiliza-
ção tecnológica, o filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993) assim se refere a essa
temática:
O Prometeu definitivamente desacorrentado, ao qual a ciência confere forças antes
inimagináveis e a economia o impulso infatigável, clama por uma ética que, por meio de
freios voluntários, impeça o poder dos homens de se transformar em uma desgraça para eles
mesmos. (JONAS, 2006, p. 21)

Como metáfora da ciência moderna, a libertação de Prometeu passou a exigir


uma nova responsabilidade, porque com o avanço da técnica no mundo con-
temporâneo, o homem alimentou um afã infinito em direção ao progresso, sem
levar em conta as consequências desse exercício. Para Jonas, “a promessa da tec-
nologia moderna se converteu em ameaça, ou esta se associou àquela de forma
indissolúvel” (JONAS, 2006, p. 21), pois a humanidade, pelo impulso prometeico,
transformou a busca pelo bem-estar em um grande perigo ao não aceitar as
medidas, ao transgredir os limites. Se isso representa a possibilidade de avanço
e de desenvolvimento do homem, também trouxe inúmeros malefícios, os quais
facilmente se sobrepõem aos inegáveis benefícios conquistados nos mais diver-
sos âmbitos do conhecimento.

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Para onde vamos? (Natureza e técnica)

De como a técnica pode se


converter em uma ameaça
Como destaca Jonas, a razão técnica se aliou à economia e passou a domi-
nar todos os âmbitos da vida humana, muitas vezes sob promessas de prazeres
fáceis e consolos imediatos. Antes de Hans Jonas, esse problema foi tematizado
pelo seu mestre, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), para quem a
razão técnica pretende abordar a natureza, provocá-la e torturá-la, fazê-la anun-
ciar-se, torná-la disponível. Atento aos desastres que, como a bomba atômica
sobre o Japão, marcaram o século XX com suas duas guerras mundiais (1914-
-1918 e 1939-1945), Heidegger considera que esse poder se alastrou sobre todos
os âmbitos humanos, de tal forma que a técnica se tornou um universo pró-
prio, um modo de desvendamento que escapa do poder do homem, sendo um
perigo cuja solução passa pela pergunta sobre a sua essência. Por isso, é preciso
que o homem pense sobre a técnica não como um poder em seu domínio, mas
como um âmbito que ameaça o próprio Ser. Por isso, “este querer dominar tor-
na-se tanto mais urgente quanto mais a técnica ameaça escapar ao controle do
homem” (HEIDEGGER, 2008, p. 12). Mas isso só é possível enquanto a técnica for
um meio e não um fim em si mesma. No segundo caso, seria ela que dominaria o
homem. O problema é que a técnica, afirma Heidegger, não é um simples meio,
ela é “uma forma de desencobrimento” (HEIDEGGER, 2008, p. 17) e como tal está
envolvida com a questão central da verdade. Para o filósofo alemão, a partir da
era moderna a técnica passou a ser interpretada como processo científico de
domínio sobre a natureza, por meio das armas das ciências exatas: “a técnica
moderna somente entrou em curso quando ela pôde apoiar-se sobre a ciência
exata da natureza” (HEIDEGGER, 2008).

Ora, o modo de representar da técnica


[...] põe a natureza como um complexo de forças passíveis de cálculo. E é experimental não
porque utiliza aparelhos para questionar a natureza, pelo contrário, porque a física põe a
natureza como pura teoria, para que ela se exponha como um contexto de forças previamente
passível de ser calculado, por isso o experimento é requerido, a saber, para questionar se a
natureza assim posta se anuncia e como ela se anuncia. (HEIDEGGER, 2008)

Então, a técnica torna o mundo sempre disponível para o homem. Mas ocorre
que o homem também está disposto como uma fonte. O lenhador que corta
uma árvore no fundo de uma floresta, sem saber está servindo de fonte para a
indústria madeireira, afirma o autor (HEIDEGGER, 2008), porque ele também está
disposto para o fornecimento da celulose. Também faz parte do que é disponí-
vel, do que é tornado disponível. Ele se disponibiliza. E esse é o grande perigo:
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é “esse homem assim ameaçado que se alardeia na figura de senhor da terra”


(HEIDEGGER, 2008, p. 29). Tão ocupado com seu domínio, com a exploração que
efetiva sobre a natureza, esse homem esquece de si, já não está disposto a ava-
liar a sua própria posição. O homem está surdo para si mesmo. Ou seja, para
Heidegger, o fato de o homem não mais questionar a essência da técnica, não
mais perguntar sobre seu poder, é o maior perigo de seu domínio, porque ele
representa um esquecimento do homem em relação a si mesmo. Portanto, para
o autor, a técnica não é demoníaca, mas sim o esquecimento de sua essência.
O mal não é a técnica, mas que o homem tenha se esquecido do poder que
a ela concedeu e que agora se tornou um poder dominador, no qual a techné
não é mais uma poiesis (ou seja, uma produção), mas uma exploração que tenta
impor à natureza a necessidade de formar provisão. A técnica está ligada, então,
à pretensão de transformá-la em energia a ser armazenada. Trata--se de uma
disposição da natureza ao benefício humano, uma exploração que trata a natu-
reza como algo inerte a ser aberto e exposto, seguindo a ordem de exploração,
armazenamento e processamento. A técnica está a serviço da extração, da trans-
formação, do armazenamento, da destruição e do reprocessamento da natureza.
Algo que demanda um controle e uma busca por segurança e que incorre em
um círculo vicioso.

Domínio público.

Martin Heidegger, segundo o artista


Herbert Wetterrauer.

É essa, justamente, a diferença da técnica moderna em relação àquela do pas-


sado: agora ela é uma “exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer
energia, capaz de, como tal, ser beneficiada e armazenada” (HEIDEGGER, 2008, p.
19). O filósofo exemplifica:

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[...] uma região se desenvolve na exploração de fornecer carvão e minérios. O subsolo passa
a se desencobrir, como reservatório de carvão, o chão, como jazidas de minério. Era diferente
o campo que o camponês outrora lavrava, quando lavrar ainda significava cuidar e tratar. O
trabalho camponês não provoca e desafia o solo agrícola. (HEIDEGGER, 2008, p. 19)

Hoje, outra posição absorveu a “lavra do lavrador”, porque ela dispõe da natu-
reza no sentido de uma exploração. Afirma Heidegger que a “agricultura tornou-
-se indústria motorizada de alimentação” (HEIDEGGER, 2008, p. 19): “dispõe-se
o ar a produzir azoto, o solo a produzir minério, como, por exemplo, urânio, o
urânio a fornecer energia atômica; esta pode, então, ser desintegrada para a des-
truição da guerra ou para fins pacíficos” (HEIDEGGER, 2008, p. 19).

Ou seja, a moderna técnica transforma a natureza em fonte, tentando esgotar


a energia por ela armazenada ao longo dos tempos, tentando beneficiar-se dela.
Trata-se de uma exploração não da natureza, no seu sentido exato, mas das re-
servas de energia que ela guarda. Então, a exploração se torna um processamen-
to, em vista de um máximo de rendimento com o mínimo de investimento. Todo
carvão, enquanto energia solar acumulada, fica guardado, disponível, à dispo-
sição da exploração do calor, depois da temperatura, do vapor que movimenta
os organismos e mecanismos fabris. Consequentemente, a natureza como um
todo não passa de um dispositivo de fornecimento, de uma fonte. Aí, um rio não
é mais um ingênuo rio da paisagem na pena de um poeta. Dominado por uma
hidroelétrica, o rio é fonte de pressão hidráulica: “a usina hidroelétrica não está
instalada no rio [...], mas agora é o rio que está instalado na usina” (HEIDEGGER,
2008, p. 20).

O princípio responsabilidade
É desse ponto que Hans Jonas dá seguimento à problematização da técnica:
ela exige um ethos2, como um limite, a implantação de normas ou medidas que
impeçam o uso desmedido desse poder. Não se trata de uma limitação no sen-
tido de um impedimento, mas de uma pergunta sobre “freios voluntários” que
impeçam o homem de construir a sua própria desgraça.

Ora, ninguém de nós está alheio à gravidade da crise que afeta a nossa civili-
zação e coloca em xeque a própria existência da humanidade no futuro, de forma
íntegra. Essa afirmação, ainda que soe exagerada, revela-se nas crescentes notí-
cias de catástrofes naturais descritas como verdadeiras hecatombes, cuja força
aflige indivíduos e comunidades ao redor do mundo. Vulcões entram em erupção
2
Palavra grega que remete à ideia de valores, hábitos ou costumes que dão identidade a um povo ou grupo social. Aqui, ela representa o conjunto
de normas que pode colaborar tanto para uma reflexão do agir quanto para a implantação de regras desse agir, visando ao bem comum.

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e impedem o transporte aéreo de milhares de passageiros, furacões destroem ci-


dades inteiras, terremotos, tsunamis, secas e enchentes: todos esses eventos são,
segundo os cientistas – entre os quais estão, por exemplo, os pesquisadores do
IPCC3 – ,consequências da ação humana. Para os pesquisadores do IPCC,
A concentração de dióxido de carbono, de gás metano e de óxido nitroso na atmosfera global
tem aumentado marcadamente como resultado de atividades humanas desde 1750, e agora já
ultrapassou em muito os valores da pré-industrialização determinados através de núcleos de
gelo que estendem por centenas de anos [...]. O aumento global da concentração de dióxido
de carbono ocorre principalmente devido ao uso de combustível fóssil e à mudança no uso
do solo, enquanto o aumento da concentração de gás metano e de óxido nitroso ocorre
principalmente devido à agricultura. (PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇA
CLIMÁTICA, 2010)

Em outras palavras: a ação humana, desde o século XVII e XVIII, quando o


poder da técnica obteve avanços inigualáveis. A ação da técnica que, nas pa-
lavras de Heidegger, tornou a natureza algo disponível para o homem, acabou
provocando inúmeras alterações que agora ameaçam a vida no planeta. A técni-
ca, de benefício, tornou-se ameaça.

Dando-se conta desse problema já nos anos 1970, Hans Jonas escreve um dos
mais importantes tratados de ética contemporânea, partindo de uma crítica aos
modelos éticos anteriores, principalmente o de tipo kantiano, agora tornado in-
suficiente para enfrentar os avanços da técnica. Para Jonas, as éticas tradicionais
(como reflexão sobre o agir humano e sobre o “tamanho” das consequências da
ação), limitavam-se ao âmbito espacial das relações intra-humanas e ao âmbito
temporal do presente. Além disso, essas éticas, afirma Jonas, estavam pautadas
na crença de que a natureza seria um campo eticamente neutro, porque, de tão
grande, jamais seria atingida pela ação humana – dispensando, portanto, qual-
quer ideia de cuidado ou de responsabilidade por parte do ser humano: “Todo o
trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o domínio da techné (habilidade)
era – à exceção da medicina – eticamente neutro” (JONAS, 2006, p. 35). A nature-
za, como algo supostamente inerte, seria também incólume e nunca subjugada
pela força humana: acreditava-se que “a arte só afetava superficialmente a natu-
reza das coisas” (JONAS, 2006, p. 35) e também que
[...] a techné, como atividade, compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela
necessidade e não como um progresso que se autojustifica como fim precípuo da humanidade, em
cuja perseguição engajam-se o máximo esforço e a participação humanos. (JONAS, 2006, p. 35)

Seja do ponto de vista do objeto (a natureza), seja do ponto de vista do su-


jeito (o homem), esse problema não seria considerado significativo nas éticas
tradicionais.
3
O Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), ou Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, é um órgão filiado à ONU, cujo
trabalho vem ganhando considerável destaque, desde 2007.

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Essa é a mudança básica desencadeada pela civilização tecnológica4: ela deu


ao ser humano um poder nunca antes imaginado, uma imensa força que se iguala,
muitas vezes, à força da natureza. Com o poder da tecnologia, todas as ações hu-
manas passaram a influenciar a natureza de uma forma nunca antes vista. Basta
medirmos os efeitos dos meios de transporte, das usinas de geração de energia,
da eletricidade, dos computadores, das viagens espaciais, das instalações que per-
furam terras e mares, dos maquinários pesados indo e vindo sobre a superfície da
terra, dos transgênicos e das ciências da vida que fazem do ser humano um objeto
da tecnologia que ele mesmo criou. Essa força imensa deixou rastros de destruição
que a natureza não foi capaz de digerir, ao contrário do que se supunha. O mais
grave é que, quando a humanidade se deu conta disso, os efeitos já se tornaram
catástrofes irreparáveis, que ameaçam a integridade da vida sobre o planeta.

Ora, não há futuro da humanidade sem se pensar no futuro da natureza. Essa


é a tese central da ética da responsabilidade de Hans Jonas. Ela volta-se contra
certo antropocentrismo reducionista, que colocou as necessidades humanas
acima de tudo e que considerou todos os outros seres vivos e os recursos na-
turais como instrumentos a serviço dos prazeres egoístas da espécie humana.
A tecnologia, representante da racionalidade que transforma o homem em um
“ser que faz”, ou seja, em um homo faber, trouxe inúmeros prejuízos para o pró-
prio homem e passou a representar o risco de seu próprio desaparecimento. A
ênfase racionalista, que se considerou absoluta e provocou um entusiasmo in-
gênuo entre os cientistas, estava, na verdade, desatenta às consequências éticas
de sua ascensão no cenário humano. Erguida sobre essa ingenuidade que acre-
ditava na invulnerabilidade da natureza, a cidade humana ergueu-se alheia e
contrária às leis da natureza, fazendo o homem acreditar que seu futuro estava
assegurado pela própria posse dessa racionalidade.

Por isso, todas as éticas se limitaram ao âmbito da cidade, ou seja, ao âmbito


das relações intra-humanas, de forma individualista. Na esfera da cidade, a ética
limitou-se a advertir os indivíduos a respeito dos comportamentos em relação
ao “próximo”, prescrevendo justiça, amizade, fidelidade, amor, misericórdia, com-
paixão, honradez etc. Tudo isso, afirma Jonas, continua válido, mas se tornou in-
suficiente com o aumento do poder do homem: suas ações hoje estão além do
âmbito da cidade, e é preciso ampliar também o alcance da ética.
4
Hans Jonas utiliza o termo tecnologia com mais frequência do que técnica – inclusive no subtítulo de sua obra. A tecnologia poderia ser definida
como um estudo (logos) da técnica, ou seja, como um conhecimento técnico e científico, as ferramentas, processos e materiais usados para alcançar
esse conhecimento que o transforma em um poder. Está ligada à busca por um resultado prático. No geral, a tecnologia está ligada ao estudo dos
processos técnicos de um dado ramo do “saber fazer”. Mas o uso do conceito é polissêmico: tecnologia pode ser
 o mesmo que técnica;
 o conhecimento usado em produção, educação, transporte, comunicação etc.;
 a totalidade das técnicas;
 os objetos da própria técnica.

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A ética da responsabilidade é um convite ao exercício do poder como res-


ponsabilidade. É preciso, diz Hans Jonas, que o ser humano exerça esse poder
de maneira responsável. Por isso, ele formula um novo imperativo ético que
dê conta da nova conjuntura de poder, um imperativo adequado ao novo agir
humano e à sua dimensão de força: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não
sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”, ou “Não ponha em
perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade
sobre a Terra”, ou ainda “Inclua na tua escolha presente a futura integridade do
homem como um dos objetos do teu querer” (JONAS, 2006, p. 47). Portanto, um
dever para o futuro e para além do âmbito humano. Essas são as duas bases pri-
mordiais da nova ética da responsabilidade, proposta por esse autor.

Essa ética surge justamente porque o exercício do poder técnico pelo homem
tem perturbado o equilíbrio simbiótico, e criado formas de vida artificiais, meros
artefatos que induzem ao perigo da crença na independência do ser humano
em relação à natureza. Aristóteles jamais poderia supor, segundo Hans Jonas,
que a sua ética teleológica de totalidade da natureza, alcançada pelo uso da
razão como meio para alcançar a felicidade, teria consequências tão catastró-
ficas. O intelecto emancipado se confronta com a ação humana desmedida e
com a soberba frente à natureza. O excessivo êxito da civilização tecnoindustrial,
baseada no avanço das ciências naturais e exatas, naquilo que Jonas chama de
programa baconiano (JONAS, 2006, p. 22), levou à possibilidade de desapareci-
mento do homem junto com todas as espécies por ele ameaçadas de extinção.

A compulsão ao poder exercido de forma contrária à natureza deveria, assim,


ser repensada e questionada, para que o homem se responsabilizasse pelos
efeitos desse exercício. O que ocorre, entretanto, é que todos querem colher os
benefícios da sociedade tecnológica, mas não querem partilhar os prejuízos e
as consequências maléficas que afetam e trazem prejuízos, principalmente, às
populações mais pobres do planeta.

Nesse contexto, Hans Jonas volta a pensar sobre a ética em sua estreita re-
lação com a política, pois, para o autor, essa não é uma questão apenas indi-
vidual, precisa ser projetada como problema político. Isso porque as soluções
dependem da possibilidade política de um “progresso ético” que abranja ações
de governo e os deveres de toda a sociedade. Por isso, essa ética também passa,
segundo o autor, por uma superação dos efeitos desmoralizantes do Estado mo-
derno, corrompido pela descrença dos cidadãos, bem como pelo processo de
empoderamento dos líderes empresariais da sociedade de mercado.

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O poder do homem sobre si mesmo


Hans Jonas ainda tematiza, em sua obra, outro ponto importante: o exercício
da técnica na alteração do próprio homem, que, de sujeito, passa a ser o objeto
da própria técnica. Ao apresentar a sua proposta, o autor afirma o limite das
éticas tradicionais, porque elas não tiveram contato com a possibilidade de alte-
ração da essência do próprio ser humano, enquanto sujeito da ação: “para efeito
da ação nessa esfera, a entidade ‘homem’ e sua condição fundamental era consi-
derada como constante quanto à sua essência, não sendo ela própria objeto da
techné (arte) reconfiguradora” (JONAS, 2006, p. 35). Ora, a tecnologia moderna
criou as condições para que o próprio ser humano pudesse ser alterado em sua
essência. Mas de que forma isso ocorreria? Hans Jonas apresenta três hipóte-
ses para responder a essa questão: a técnica moderna alteraria a essência do
homem por meio

 do prolongamento da vida;

 do controle do comportamento;

 da manipulação genética.

Ou seja, no âmbito das pesquisas sobre a vida, corpo e espírito humanos são
controlados e alterados (a palavra de Jonas é reconfigurados). A questão é que,
nesse processo, o homem não é mais algo dado definitivamente, de uma vez
por todas. Como reflexão sobre a ação do homem, agora a ética deve tematizar
os novos tipos de homem, já que agora “o homo faber aplica sua arte sobre si
mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador
de todo o resto” (JONAS, 2006, p. 57). Trata-se do cúmulo do poder humano: ele
pode agora alterar a si mesmo e esse poder “desafia o último esforço do pensa-
mento ético” (JONAS, 2006, p. 57).

Se a finitude do homem pode ser considerada parte fundamental de sua es-


sência e sua irreversibilidade, algo dado pela própria natureza e condição, então
é fácil entender o que Jonas quer dizer quando afirma que a técnica moderna,
por pretender prolongar a vida humana cada vez mais, altera uma parte essen-
cial do ser humano. Escreve o autor que, hoje, “certos progressos na biologia ce-
lular nos acenam com a perspectiva de atuar sobre os processos bioquímicos de
envelhecimento, ampliando a duração da vida humana, talvez indefinidamente”
(JONAS, 2006, p. 58). Assim, os avanços técnicos da medicina passam a enten-
der a morte como um acontecimento evitável, uma “falha orgânica” tratável e
adiável o máximo possível. Do ponto de vista da técnica e do indivíduo por ela

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beneficiado, não há dúvida do quão positivo é esse processo. Mas a pergun-


ta da ética da responsabilidade é formulada por Jonas nos seguintes termos:
“Quão desejável é isso?” (JONAS, 2006, p. 57). A questão não tem nada de ingê-
nua. Quanto vale não morrer? Para o indivíduo e os seus, certamente vale muito.
Mas para a espécie talvez esse benefício aparente acabe provocando inúmeros
prejuízos, entre os quais a decisão sobre quem deve ser beneficiado com essa
pretensa bênção, a proporção decrescente de juventude no mundo, a abolição
da procriação frente ao aumento demográfico e muitas outras questões práticas,
que remetem a questões técnicas.

No que tange ao controle do comportamento, Hans Jonas aponta o uso indis-


criminado de procedimentos e medicamentos que visam ao controle psíquico dos
indivíduos, principalmente com o uso de agentes psicoquímicos ou mesmo de in-
tervenções diretas no cérebro humano. Nesse caso, as ciências biomédicas têm co-
laborado imensamente para “libertar doentes mentais de seus sintomas dolorosos e
perturbadores” (JONAS, 2006, p. 60), mas a mesma pergunta ecoa aqui: “Quão dese-
jável é isso?”. Jonas aponta o risco de que, por detrás dessas técnicas de controle do
comportamento, escondam-se processos que visam, por exemplo, “aliviar a socieda-
de da inconveniência de comportamentos individuais difíceis entre seus membros”
(JONAS, 2006, p. 60). Ocorre que, muitas vezes, do ponto de vista social, os chama-
dos distúrbios de comportamento podem contribuir para que a própria sociedade
reveja suas posições e revigore seus valores. Para Jonas, essas técnicas exigem que
a sociedade como um todo avalie os fins dessa empreitada muito sedutora, e muito
útil para os interesses das sociedades de massas, que preferem indivíduos com com-
portamentos previsíveis e padronizados a sujeitos responsáveis. Essas técnicas, por-
tanto, evocam questões ligadas aos direitos humanos e à motivação autônoma do
homem – outra característica necessária para se pensar em sua essência.
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Hans Jonas.
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A manipulação genética é outra questão levantada como desafio ético, por


Hans Jonas. O “controle genético dos homens futuros” (JONAS, 2006, p. 61) está
ligado à capacidade do homem para tomar em suas mãos o seu próprio destino,
o processo de sua própria evolução como espécie. Em um mundo que considera
a natureza lenta demais e geradora de “produtos” defeituosos (pois envelhecem
e morrem), os laboratórios da técnica passam a representar o poder de melho-
ramento e modificação do homem. O problema ético se apresenta quando pen-
samos a respeito das escolhas que são feitas para o futuro: quando um pai, por
exemplo, escolhe “consertar” ou “melhorar” um filho ainda antes de ele nascer,
faz isso a partir de uma posição perspectiva, que é a sua, a de seu tempo, de seu
grupo social etc. A pergunta do filósofo a esse respeito é: “Quem serão os cria-
dores de ‘imagens’, conforme quais modelos, com base em qual saber?” (JONAS,
2006, p. 61). Em outras palavras, sob qual modelo de homem vamos desenhar o
modelo do futuro?

Antes de simplesmente condenar ou diabolizar o poder da tecnologia, é pre-


ciso, portanto, dar-lhe um ethos, ou seja, impor-lhe questões que possibilitem
um olhar mais amplo para os interesses não apenas de indivíduos ou de povos
de um determinado tempo, mas da humanidade enquanto espécie e, ainda, de
todas as outras formas de vida. A pergunta da ética, assim, é aquela que pretende
resgatar os verdadeiros benefícios da técnica, dando-lhe o amparo da responsa-
bilidade – único caminho para que saber e poder se vinculem de forma ética.

Textos complementares

A insuficiência das éticas tradicionais


(JONAS, 2006, p. 35-37)

O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar, evidenciavam-se


na ação, seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam
um planejamento de longo prazo. Essa proximidade de objetivos era válida
tanto para o tempo quanto para o espaço. O alcance efetivo da ação era pe-
queno, o intervalo de tempo para previsão, definição de objetivo e imputa-
bilidade era curto, e limitado o controle sobre as circunstâncias. O compor-

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tamento correto possuía seus critérios imediatos e sua consecução quase


imediata. O longo trajeto das consequências ficava ao critério do acaso, do
destino ou da providência. Por conseguinte, a ética tinha a ver com o aqui e
o agora [...]. Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional, fossem
quais fossem suas diferenças de conteúdo, demonstravam esse confinamen-
to ao círculo imediato da ação. “Ama o teu próximo como a ti mesmo”; “Faze
aos outros o que gostarias que eles fizessem a ti” [...] Em todas essas máximas,
aquele que age e o “outro” de seu agir são partícipes de um presente comum.
[Isso porque] o braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço
comprido do saber, passível de predição; a pequenez de um foi tão pouco
culpada quanto a do outro. Precisamente porque o bem humano, concebido
em sua generalidade, é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou vio-
lação ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é o presente.

A cidade como artefato humano


(JONAS, 2006, p. 34)

A vida humana se desenvolveu entre o que permanecia e o que mudava:


o que permanecia era a natureza, o que mudava eram suas próprias obras. A
maior dessas obras é a cidade, à qual ele podia emprestar um certo grau de
permanência por meios que inventava e aos quais se dispunha a obedecer.
Mas essa permanência, artificialmente produzida, não oferecia nenhuma ga-
rantia de longo prazo. Na condição de um artefato vulnerável, a construção
cultural pode esgotar-se ou desencaminhar-se. A despeito de toda liberdade
concebida à autodeterminação, nem mesmo no interior do ambiente artifi-
cial o seu arbítrio poderá revogar algum dia as condições básicas da existên-
cia humana. Sim, a inconstância do fado humano assegura a constância da
condição humana. [...] Mesmo assim, essa cidadela de sua própria criação,
claramente distinta do resto das coisas e confiada aos seus cuidados, forma
o domínio completo e único da responsabilidade humana. A natureza não
era objeto da responsabilidade humana – ela cuidava de si mesma e, com
a persuasão e a insistência necessárias, também tomava conta do homem:
diante dela eram úteis a inteligência e a inventividade, não a ética. [...] É nesse
quadro intra-humano que habita toda a ética tradicional.

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A ética da responsabilidade
(JONAS, 2006, p. 39)

Tudo isso se modificou decisivamente. A técnica moderna introduziu


ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com tais novos objetos e con-
sequências que a moldura da ética antiga não consegue mais enquadrá-las.
[...] Decerto que as antigas prescrições da ética “do próximo” – as prescri-
ções da justiça, da misericórdia, da honradez etc. – ainda são válidas, em sua
imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, quotidiana, da interação
humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do
fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos da esfera
próxima. Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, uma nova di-
mensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade.

Dicas de estudo
HISTÓRIA das coisas. Direção de Annie Leonard. Estados Unidos, 2007. Disponí-
vel em: <www.youtube.com/watch?v=3c88_Z0FF4k>. Acesso em: 25 out. 2010.

OLIVEIRA, Jelson; BORGES, Wilton. Ética de Gaia: ensaios de ética socioambien-


tal. São Paulo: Paulus, 2008.

UMA VERDADE inconveniente. Direção de Davis Guggenheim. Estados Unidos,


2006. Dist. Paramount.

Atividades
1. Explique como a técnica tem se consolidado, no mundo moderno, como
uma forma de poder sobre a natureza e sobre o próprio homem.

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2. Explique como o mito de Prometeu serve de metáfora para a questão do


poder técnico do homem moderno.

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3. Aponte as principais características da ética da responsabilidade.

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Gabarito
1. A partir do século XVII, houve uma grande corrida pelo domínio tecnocientí-
fico do mundo. Perante a crise dos fundamentos que forneciam as verdades,
no período medieval, a modernidade reviu os mecanismos pelos quais teria
acesso a uma verdade clara e distinta. Por isso, uma questão importante é o
método que tentava garantir o alcance a ela. Amparado no poder da razão, o
ser humano moderno vivenciou algo inimaginável, em termos de força e po-
der. Em uma palavra: o que foi ampliado foi o poder da técnica, termo que, na
sua origem, na língua grega (techné), está ligado à noção de arte e diz respei-
to ao procedimento ou conjunto de procedimentos, regras ou práticas utili-
zadas para alcançar determinado fim. Por isso, ela tem a ver com um “saber
fazer”, em termos artísticos e científicos, envolvendo as atividades humanas
em geral. Em um sentido específico, a técnica está ligada ao comportamento
do homem em relação à natureza, na medida em que ela o capacita para
produzir bens em seu benefício. Isso faz com que ela esteja ligada à força do
homem para buscar seu próprio desenvolvimento. O filósofo Francis Bacon
foi quem primeiro vislumbrou, na era moderna, essa capacidade da técnica
em garantir o desenvolvimento do ser humano. Aliada à ciência, ela deveria
ajudar o ser humano a conquistar seu bem-estar na Terra.

2. Prometeu é uma metáfora do conhecimento e da sua relação com o poder da


técnica. Sendo Prometeu aquele que ensinou os homens a viverem no mun-
do, e depois roubou o fogo e o deu de presente aos homens, a mensagem do
seu mito evoca o perigo do uso do conhecimento por parte dos homens, sem
respeitar os limites impostos pelos deuses. Esse mito é o símbolo do domínio
técnico sobre a natureza e também do risco que esse poder emite, bem como
da necessidade de ele ser usado de maneira responsável. Com a ajuda de Hér-
cules, entretanto, o Prometeu desacorrentado não só se livra da prisão, mas
se liberta para a sua tarefa técnica. Por isso, Hans Jonas fala do poder do “Pro-
meteu definitivamente desacorrentado”, o qual agora conta com forças ain-
da maiores dadas pelo impulso tecnocientífico aliado ao econômico. Assim,
como metáfora da ciência moderna, a libertação de Prometeu passou a exigir
uma nova responsabilidade, porque com o avanço da técnica no mundo con-
temporâneo, o homem alimentou um afã infinito em direção ao progresso,
sem levar em conta as consequências desse exercício.

3. Com o advento da civilização tecnológica, o ser humano obteve um poder


nunca antes imaginado, igualável ao poder da natureza. Entretanto, essa for-

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ça imensa deixou rastros de destruição que a natureza não foi capaz de dige-
rir. O mais grave é que, quando a humanidade se deu conta disso, os efeitos
já se tornaram catástrofes irreparáveis que ameaçam a integridade da vida
sobre o planeta. Ora, não há futuro da humanidade sem se pensar no futuro
da natureza. Essa é a tese central da ética da responsabilidade, de Hans Jo-
nas, que se volta contra certo antropocentrismo reducionista, que colocou
as necessidades humanas acima de tudo e considerou todos os outros seres
vivos e os recursos naturais como instrumentos a serviço dos prazeres ego-
ístas da espécie humana. A tecnologia, representante da racionalidade que
transforma o homem em um “ser que faz” (um homo faber), trouxe inúmeros
prejuízos para o próprio homem e passou a representar o risco de seu pró-
prio desaparecimento. Erguida sobre essa ingenuidade que acreditava na in-
vulnerabilidade da natureza, a cidade humana ergueu-se alheia e contrária
às leis da natureza, fazendo o homem acreditar que seu futuro estava asse-
gurado pela própria posse dessa racionalidade. Por isso, todas as éticas se
limitaram ao âmbito da cidade, ou seja, ao âmbito das relações intra-huma-
nas, de forma individualista. Na esfera da cidade, a ética limitou-se a advertir
os indivíduos a respeito dos comportamentos em relação ao “próximo”. Tudo
isso, afirma Jonas, continua válido, mas se tornou insuficiente com o aumen-
to do poder do homem: suas ações, hoje, estão além do âmbito da cidade e
é preciso ampliar também o alcance da ética. A ética da responsabilidade é
um convite ao exercício do poder como responsabilidade. É preciso, diz Hans
Jonas, que o ser humano exerça esse poder de maneira responsável. Por isso,
ele formula um novo imperativo ético que dê conta da nova conjuntura de
poder, um imperativo adequado ao novo agir humano e à sua dimensão de
força. Além disso, a ética propõe uma avaliação do poder do homem sobre
si mesmo, refletindo sobre a transformação do homem em objeto da técni-
ca por meio das técnicas de prolongamento da vida, controle de comporta-
mento e manipulação genética.

Referências
GALILEI, Galileu. O Ensaiador. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Coleção Os
Pensadores).

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: _____. Ensaios e Conferências.


5. ed. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Editora Universitária São Francisco,
2008. p. 11-38.

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_____. O que quer dizer pensar. In: _____. Ensaios e Conferências. 5. ed. Petró-
polis/Bragança Paulista: Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2008. p. 111-
124.

JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civili-


zação tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006.

PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇA CLIMÁTICA. Novos Cenários


Climáticos. Disponível em: <www.ecolatina.com.br/pdf/IPCC-COMPLETO.pdf>.
Acesso em: 9 out. 2010.

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Filosofia:
O Livro das Perguntas

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O Livro das Perguntas
Ericson Falabretti
Jelson Oliveira
Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-1714-0

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