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Filosofia:
O Livro das Perguntas
F177f Falabretti, Ericson. Oliveira, Jelson. / Filosofia: O Livro das Perguntas. / Ericson
Falabretti; Jelson Oliveira. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2011.
320 p.
ISBN: 978-85-387-1714-0
CDD 109
Jelson Oliveira
Quis o mito que Athena – aquela deusa parida da cabeça de Zeus a golpes de
machado, já senhora das reflexões, deusa do raio, da guerra e da inteligência –
adotasse uma ave como sua. Desde então, a coruja de olhar vigilante aninhou-se
nas colônias gregas até as periferias da Hélade e as colunas monumentais do areó-
pago central do mundo helênico, seus jardins e perípatos, sobrevoando homens
e mares como poucas vezes se viu. Faz tempo que é assim. Desde que o entusias-
mo do voo dessa ave sagrada entusiasmou um velho obscuro como Heráclito e/
ou um desastrado como Tales. E fez profundas as marcas de suas garras na alma
grega de um Sócrates ou de um Platão, ainda atônitos com a grande descoberta
da razão e seus encantos, até os píncaros de um sistema tão intangível quanto o
de Aristóteles e tão encantador quanto o de Epicuro e seus colegas helenistas. Tal
como a fênix renascida para novo zênite depois da autocombustão, também a
coruja de Athena arremeteu com força divinal ainda sob a pena de um Agostinho
e um Tomás de Aquino, retraçando a metáfora do voo com um tão grande esforço
de interrogação e mil olhos de lince em direção ao infinito, batizado agora com o
maiúsculo codinome de Deus. Ave metafórica, com que olhos se olhou no espe-
lho engendrado por um Descartes ou por um Bacon, e se debateu nas redes de
um Kant ou de um Hegel, e com que espírito enfrentou o perigo de uma obra tão
corrosiva como a de um Nietzsche, aquele que escreveu com sangue não para ser
lido, mas para ser cantado.
Ah... Quantas viagens e quantas ressurreições foram necessárias para que essa
ave rupestre, em seu hierogâmico exercício de rotas em torno do absoluto, fizes-
se seu ninho ainda no coração de nossa cultura, arrebatando novos adeptos, re-
presentantes de uma humanidade reflorescida em sempre outros rostos e outras
interrogações. Jovens no tempo, nas alianças e nas indagações.
Pois! Que força tem o poder encantador universal dessa ave: a sombra de suas
asas e o encanto de seus rodopios continuam arrebatando gente como nós. Faz
muito tempo que é assim. Energia fundamental e suprema, força cega e incon-
trolada? Talvez. Não existimos sem ela. Com ela, dançamos um balé de opostos
complementares – alguma coisa que, parafraseando José Saramago, por mais
voltas que pudéssemos dar às palavras, não conseguiríamos achar um nome
para isso. Com ela, a vida ganha uma conotação ritual obediente a um princípio
maior, chamado pela pomposa palavra Verdade – assunto de tantas aulas, tema
de tantos discursos, mote de tantas leituras. No eclipse de uma sala de aula ou
sobre o mofo de um velho livro, o filósofo coteja a verdade como quem reencena
a invenção do universo. Ou como quem decifra o pensamento de um deus. A ver-
dade é sua frequentação mais assídua. A coreografia de uma vida. Às vezes, sua
fuga. Sua caça. Sua tontura! Seu enigmático ritual de silêncios e arrebatamentos.
Dessa matéria, há tempos se diz, faz-se a vida enlevada pela filosofia. O tal filóso-
fo, amante da sabedoria, enfim, como pretendemos mostrar neste livro, encarna-
Neste Livro das Perguntas, toda a humanidade está. E sua forma de estar pode
ser a da indiferença ou do compromisso. Mas de sua leitura deve partir a tarefa viva
da Filosofia. É preciso usar essa poderosa ferramenta para a educação. E educar é
recorrer à memória e engendrá-la com o presente, em forma de projeto. Sonhar
é o nome poético dessa atividade. Filosofia não é excentricidade, não é adorno,
não é luxo, não é privilégio. Filosofia é a arte de refundar mundos. Faz tempo que
é assim. Do jeito como sonhamos. Não somos sábios. Somos amantes. Não somos
juízes, somos intérpretes. Não somos viajantes, mas andarilhos. Sentido último,
se há? Verdade decisiva, quem poderá afirmar? A beleza está na busca. Disposto
para a vertigem, como a coruja, noturno é nosso voo e estendido sobre abismos.
Vale a beleza da vista. Em um tempo de misósofos (os que odeiam a sabedoria),
pela força das perguntas convidamos a todos para que sejam filósofos (os que a
amam). Mas essa não é uma atividade puramente intelectual, exige envolvimento
absoluto e capacidade de se deixar contaminar e emocionar por ideias e ideais.
Na filosofia, assim como na vida, é preciso perder o prumo. Porque todo amor é
carência e falta, e todo objeto amado é completude e descontrole. Velho, doente,
frágil, louco o filósofo? O homem sem ação, calado, triste, misógino, misantropo?
Nada disso! Desde Nietzsche, a filosofia aprendeu a dançar e exige força aeróbica.
Tarefa inútil e alienada? Não: coragem de enfrentar a suspeita, de questionar o
E, nesse caminho, o presente livro pode servir de mapa. Na sua grafia, muitos
nomes, muitos lugares, muitas experiências. O livro é uma carta-convite para
uma grande aventura. Tentamos marcar no mapa, perseguindo as pistas dos que
nos precederam, as principais perguntas que envolvem a condição humana. Dos
poetas e filósofos originários gregos aos pensadores cristãos, dos modernos até
os contemporâneos. Passamos por várias áreas: política, estética, ética, epistemo-
logia, linguagem etc. Encontramos fundamentos, desvelamentos, encobrimentos,
construções e desconstruções. No caminho, haverá atalhos, picadas, passagens
estreitas, mares abertos, momentos sem rumo, encruzilhadas. De todos esses mo-
mentos comoventes se faz a arte de caminhar – e de filosofar!
Boa aventura!
Os Autores
A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano.
Albert Camus
Domínio público.
Hesíodo.
O mito é uma forma de conhecer o mundo e, nas suas lacunas, muitos autores
têm tentado encontrar a veracidade de seus conteúdos, já que ele se apresenta
com uma riqueza imensa que não cabe na lógica linguística e, por isso mesmo,
só pode ser dito em forma de narrativa mítica. O mito é algo vivo e nele a imagi-
nação se apresenta de forma exuberante, possibilitando que de seu tecido cheio
de cores possamos extrair o sentido da vida. Assim, em seu conteúdo, lingua-
gem, função e estrutura, todo mito se apresenta como antecipação da própria
filosofia.
Como uma história sagrada, todo mito fala da criação do mundo, do apareci-
mento dos homens e dos deuses, das façanhas de criaturas extraordinárias, ten-
tando explicar atitudes e sentimentos que expressam uma relação entre todos
os seres naturais. Cada cultura tem seus próprios modos de explicar esses “acon-
tecimentos” e, muitas vezes, essas narrativas são transmitidas oralmente de ge-
ração para geração. Assim, o mito tem uma base oral extremamente relevante:
quanto menos letrada é uma sociedade, mais afeita às explicações míticas ela é.
Em torno do mito, criam-se cerimônias, rituais, gestos, ornamentos, vestuários
etc., que dão concretude à expressão mítica.
Domínio público.
Não por outro motivo, o mito também
está marcado pelo mistério, que é cons-
tituinte da essência humana. O verbo
miéin, donde ele deriva etimologica-
mente, remete à ideia de que é preciso
“manter a boca e os olhos fechados” para
se deixar iniciar nos mistérios. De miéin
também derivam mystérion e mýstes,
que estão ligados àqueles que se deixam
iniciar nos rituais com quais o homem
tenta explicar (por essa língua enigmáti-
ca) os grandes segredos interiores e ex-
teriores. Por isso, Carl Gustav Jung – que
usou os mitos de forma decisiva em sua
psicologia – escreveu que “Para a razão,
o fato de ‘mitologizar’ (mythologein) é
uma especulação estéril, enquanto que
para o coração e a sensibilidade é vital
e salutar: confere à existência um brilho
Carl Gustav Jung (aqui em uma fotografia de 1909)
ao qual não se queria renunciar” (JUNG, demonstrou o vínculo dos mitos com a estrutura psí-
1978, p. 261). quica do indivíduo.
O mito devolve brilho à vida, e isso o torna tão encantador. Entre os pensado-
res contemporâneos, talvez Joseph Campbell deva ser citado como um dos que
mais se interessaram pela vitalidade dos mitos, tentando classificar essa impor-
tância em quatro questões:
cosmológica;
metafísica;
sociológica;
psicológica.
Domínio público.
Como história sagrada, todo mito revisita as origens primordiais para perscru-
tar como as coisas vieram a ser o que são. Mas não só isso: ele oferece a chance
de que os homens de todas as épocas possam se deixar orientar por ele, por sua
fecundidade e sua vivacidade:
O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade
científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeira, que satisfaz a profundas
necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e
mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função
indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; [...] garante a eficácia do ritual e
oferece as regras práticas para a orientação do homem. O mito, portanto, é um ingrediente
vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário uma realidade
viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma
fantasia artística [...]. (MALINOWSKI apud ELIADE, 2000, p. 23)
É essa riqueza simbólica que continua fazendo com que pensadores de dis-
tintas épocas continuem recorrendo ao mito, como maneira de explicar a reali-
dade e forma de compreensão dos mistérios que envolvem o espírito humano,
em todos os tempos.
Domínio público.
Sísifo, 1920. Franz von Stuck. O mito de Sísifo representa a condi-
ção humana, a condenação a existir.
Desse modo, a diferença entre o mito e a religião cristã, por exemplo, deve
ser procurada na análise da estrutura complexa que separa as duas crenças. Não
há entre as duas formas de religião uma relação de linearidade ou evolução. O
cristianismo não suplantou o mito porque não evolui em relação a ele. Mas é
preciso dizer que a estrutura complexa do mito – que, entre coisas, explica a
existência humana e a existência natural, além de organizar a vida em torno de
códigos sagrados – mantém, com a filosofia, um pensamento posterior, uma re-
lação paradoxal. Se a filosofia superou o mito na medida em que apresentou
novos problemas, constitui um novo pensamento sobre o mundo e forjou uma
nova estrutura de saber, ela conserva no horizonte do seu discurso todas as in-
quietações que fizeram os homens falarem por mitos. Sobre isso, vejamos o que
nos diz Aristóteles: “Ora, quem duvida e se admira julga ignorar: por isso quem
ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito resulta do maravilhoso”
(ARISTÓTELES, 1978, p. 214).
Domínio público.
Homero, o poeta cego a quem são atribuídas as
epopeias Ilíada e Odisseia.
Mas se o primeiro contato dos gregos com os mitos era doméstico, pois era
função das mulheres habituar as crianças à autoridade do sagrado, os poetas
davam às narrativas o seu gosto público. Escolhidos pelos deuses (segundo a
crença), eles eram pessoas especiais, a quem os deuses deram a conhecer os
eventos passados que explicam a existência, a origem e o significado de todas
as coisas. O discurso do poeta rapsodo (o mito) torna-se, assim, algo sagrado e,
por isso mesmo, incontestável, pois é um discurso de origem divina, portador de
uma verdade inalienável.
sagrada já não satisfazia o ser humano, assolado por novas perguntas, dúvidas e in-
terrogações. Ao novo tecido, logo se deu o nome de Filosofia, um discurso que, por
ser costurado em retalhos míticos, encontra-se alinhavado em fios lógicos, cuja na-
tureza é uma séria e provocadora especulação a respeito das coisas existentes.
Domínio público.
Mas o que é filosofia? Qual o sentido desse saber que, ao mesmo tempo, ama
mitos e procura superá-los?
A filosofia que estamos estudando nasceu na Grécia, por volta do século VII
a.C. No entanto, a palavra filosofia, inventada pelo filósofo Pitágoras de Samos,
apareceu apenas no século V a.C., para designar um saber que havia se estrutu-
rado em função de princípios racionais. A palavra Philosophia é composta por
duas palavras: Phília (“amor, amizade”) + Sophia (“sabedoria”). Portanto, etimo-
logicamente, filosofia significa “amor, amizade pela sabedoria”. O filósofo, nesse
caso, seria aquele que vive pelo saber e busca o saber como um fim.
A palavra razão se origina da palavra grega logos que, por sua vez, vem do
verbo grego legein, que pode ser traduzido como “contar, reunir, juntar, calcu-
lar”. Desse modo, é fácil compreender que a razão designa o nosso poder de
pensar ordenadamente (contar), de entender as diferenças (reunir) e de desco-
brir, a partir de operações mentais, como calcular o segredo da ordem racional
que está no mundo. Pois a filosofia nasceu quando os gregos entenderam que
o logos que organiza as nossas ideias, e permite a expressão do pensamento,
também está presente como força ordenadora do próprio cosmo. Podemos
fazer uma filosofia sobre o mundo somente na medida em que consideramos
que os eventos do mundo seguem regras e leis necessárias e universais. Com
o nascimento da filosofia, os poderes divinos, na explicação do real, cederam o
lugar para a força necessária das leis.
presente e no futuro, as coisas são como são. Em seu início, a razão tentou expli-
car o surgimento da natureza por forças e relações entre os elementos naturais
– água, terra, fogo e ar.
Texto complementar
O texto a seguir foi escrito pelo filósofo e literato franco-argelino Albert
Camus, e nele podemos encontrar um exemplo da riqueza interpretativa da lin-
guagem mítica. Ao se apropriar da narrativa mítica, o autor evidencia a condi-
ção humana na perspectiva da filosofia existencialista: o homem, como Sísifo,
está condenado a existir. Nessa bela passagem, o mito e a filosofia se encontram
como discurso que dá sentido ao existir – na verdade, uma afirmação da vida
que não oculta a sua “absurdidade.”
O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e
esse destino não é menos absurdo. Mas ele só é trágico nos raros momen-
tos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e
revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que
ele pensa enquanto desce. A lucidez que devia produzir o seu tormento con-
some, com a mesma força, sua vitória. Não existe destino que não se supere
pelo desprezo.
Se a descida, assim, em certos dias se faz para a dor, ela também pode se
fazer para a alegria. Esta palavra não está demais. Imagino ainda Sísifo indo
outra vez para seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens
da terra se mantêm muito intensas na lembrança, quando o apelo da felici-
dade se faz demasiadamente pesado, acontece que a tristeza se impõe ao
coração humano: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O enorme des-
gosto é pesado demais para carregar. São nossas noites de Getsêmani. Mas
as verdades esmagadoras perecem ao serem reconhecidas. Assim, Édipo de
início obedece ao destino sem o saber. A partir do momento em que ele
sabe, sua tragédia principia. Mas no mesmo instante, cego e desesperado,
reconhece que o único laço que o prende ao mundo é o frescor da mão de
uma garota. Uma fala descomedida ressoa então: “Apesar de tantas experiên-
cias, minha idade avançada e a grandeza da minha alma me fazem achar que
tudo está bem.” O Édipo de Sófocles, como o Kirílov de Dostoiévski, dá assim
a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga torna a se encontrar com o
heroísmo moderno. Não se descobre o absurdo sem ser tentado a escrever
algum manual de felicidade. “Mas como, com umas trilhas tão estreitas?” No
entanto, só existe um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da
mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce for-
çosamente da descoberta absurda. Ocorre do mesmo modo o sentimento
do absurdo nascer da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo, e essa
fala é sagrada. Ela ressoa no universo feroz e limitado do homem. Ensina que
tudo não é e não foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele havia
entrado com a insatisfação e o gosto pelas dores inúteis. Faz do destino um
assunto do homem e que deve ser acertado entre os homens.
Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Seu
rochedo é sua questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando con-
templa o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente
restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas vozes maravilhadas da
Dicas de estudo
HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2006.
Atividades
1. Considerando o mito grego como expressão de uma religião, explique, de
modo geral, a distinção entre o mito e o cristianismo, a partir da perspectiva
da revelação.
Gabarito
1. A distinção mais evidente entre a religião mítica grega e o cristianismo é
que a primeira é politeísta, e a segunda, monoteísta. Mas a diferença fun-
damental do mito em relação à religião cristã, e quase todas as crenças
monoteístas, é que o mito grego não está assentado em uma revelação
que deve ser aceita como um dogma. Ao contrário, o mito estava integra-
do à vida como a fala ao cotidiano, como os hábitos de comer à mesa e a
moral às regras de sociabilidade. Praticar o culto e honrar os deuses eram
tradições que não demandavam qualquer justificação ou persuasão. As-
sim, no mito, não encontramos casta sacerdotal, igreja, livro sagrado e,
tampouco, dogmas. Para cumprir suas obrigações religiosas, bastava ao
grego dar crédito, ter fé perante o conjunto de narrativas que eram, ape-
sar das inúmeras variações, sempre repetidas e afirmadas de geração em
geração. Portanto, é preciso dizer que o mito grego, diferentemente do
cristianismo, não é uma religião de revelação: ao contrário, é uma religião
sempre aberta à interpretação dos fatos narrados. Mesmo considerando
que os poetas recebiam os mitos das musas por meio de revelações, es-
ses mitos não permaneciam como dogmas porque, diferentemente do
cristianismo, no mito a história revelada ganha o seu sentido na inter-
pretação e na leitura sempre aberta das experiências contingentes da
vida privada, e no exercício da imaginação. Enquanto no cristianismo a
revelação é sobre uma verdade que deve ser obedecida, no mito, sobre
toda e qualquer revelação, temos que construir a verdade: enquanto o
cristianismo aceita a palavra, o mito constrói.
Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2003.
E é próprio do filósofo admirar-se, e o filosofar não tem outra origem senão o estar
pleno de admiração.
Platão
O momento pré-socrático
Iniciada com os poetas, a aventura do pensamento grego adquiriu, por
volta do século VI a.C., um renovado impulso com os chamados filósofos
pré-socráticos. É óbvio que essa designação, já tradicional na historiografia
da filosofia, é permeada de bastantes equívocos e negligências, pois situa
esses pensadores originários dentro de um paradigma interpretativo que
se limita com alguma supervalorização da importância de Sócrates, não
poucas vezes anunciado como o verdadeiro “pai da filosofia”. Há muito
que se dizer sobre isso, a começar pelos limites das leituras a respeito dos
primeiros filósofos: quem de fato foram e o que de fato escreveram, já que
da maioria deles o que nos resta foi filtrado na doxografia (opiniões de ter-
ceiros) ou na interpretação de poucos fragmentos. Não é de se estranhar,
entretanto, que isso aconteça, já que estamos separados desses homens
e de seus feitos por mais de 25 séculos de história, nos quais muita poeira
se assentou e muitas arestas foram salientadas, quando se trata de acessar
o seu pensamento.
Domínio público.
5
7 8
1 2
9
4 6 11
10
3
1 - Zeno 7 - Platão
2 - Epicuro 8 - Aristóteles
3 - Anaximandro 9 - Diógenes
4 - Pitágoras 10 - Euclides
5 - Sócrates 11 - Ptolomeu
6 - Heráclito
Essa advertência inicial nos parece importante para que entendamos o mo-
mento pré-socrático, com toda a grandiosidade e importância aí contidas, para
além das interpretações e depreciações a que muitas vezes os historiados da
filosofia o relegaram. Estamos lidando com personalidades e pensamentos ori-
ginários, a quem devemos as bases de nossa cultura e, principalmente, do nosso
jeito de compreender o mundo que nos cerca, e de fazer ciência. Aqui, a habili-
dade da interpretação dos fragmentos e testemunhos de terceiros é tão impor-
tante quanto a pergunta sobre a veracidade histórica desses dados.
O que é o mundo?
Deixando as imagens divinas antes usadas para explicar toda a realidade, pas-
sou-se a usar a racionalidade como critério de explicação do mundo, o que condu-
ziu ao uso de novas técnicas de compreensão e domínio da natureza, e deu início
à aventura da racionalidade filosófica. Como escreveu Werner Jaeger, na clássi-
ca obra Paideia: a formação do homem grego, “o que logo se evidencia na figura
humana [dos] primeiros filósofos – que, naturalmente, não deram a si próprios
este nome platônico – é a sua típica atitude espiritual: devotamento incondicional
ao conhecimento, estado profundo do ser, em si mesmo” (JAEGER, 1995, p. 194).
Os filósofos originários
É nesse cenário que a filosofia ganha impulso. Não à toa, em uma dessas cida-
des nascidas como centro comercial podemos situar o primeiro filósofo: Tales de
Mileto, que teria vivido nas últimas décadas do século VII a.C., aproximadamente
entre os anos de 624-545. Nessa época, Mileto (hoje uma cidade da Turquia) era
uma colônia grega, na Ásia Menor, mais especificamente na Jônia. Ali, foi procla-
mada aquela que a maior parte dos historiadores considera a primeira frase da
filosofia ocidental – “Tudo é água” –, inaugurando o período conhecido como
cosmológico ou naturalista da filosofia, o qual durou até o século V a.C.
Domínio público.
Tales de Mileto.
Domínio público.
A resposta de Tales foi apenas o início
de um grande movimento, que fez surgir
várias e diferentes respostas para a pergun-
ta sobre a origem de todas as coisas. Por-
tanto, essas divergências promoveram um
rápido e notável avanço intelectual.
Mas como pensar que todas as coisas advenham de algo que não pode ser
determinado?
Mas esse naturalismo monista logo será substituído por outros pensadores,
cujo pensamento vai, aos poucos, trazendo novidades no que tange ao conheci-
mento da origem das coisas.
“tudo se move” ou “tudo flui” (pánta rheî), fazendo com que nada permaneça
como fixo, imóvel ou eterno. Autor de muitas máximas célebres da filosofia, ele
tinha fama de obscuro e solitário por se recusar à vida pública, e preferir se ex-
pressar para poucos, em frases curtas e oraculares.
Parmênides afirma, em seu poema “Sobre a natureza” (que conta 154 versos),
que só o Ser é pensável e que o não-ser não pode jamais ser pensado e mesmo
ganhar existência: o ser é e o não-ser não pode ser. Se o movimento é a passagem
do ser ao não-ser, ou vice-versa, Parmênides tem uma posição radicalmente con-
trária à de Heráclito, que teria se deixado levar pelos sentidos ao afirmar o mo-
vimento e, por isso, teria incorrido em erros. Não haveria movimento1 porque,
justamente, o não-ser não existe e essa verdade só pode aparecer pela via da
reflexão verdadeira, chamada por Parmênides de alétheia, e que seria distinta da
doxa, mera opinião dos sentidos – e, por isso, enganadora. Vale como verdade,
portanto, aquilo que segue argumentações racionais, mesmo que muitas vezes
essas argumentações se oponham às evidências sensíveis. Sendo assim, o Ser
não pode ser conhecido pela via experimental e sensorial, mas apenas pela via
da coerência lógica. Essa teoria foi sistematizada, organizada e corrigida por Me-
lisso de Samos, entre o fim do século VI e os primeiros raios do século V a.C.
Empédocles (c. 484-424 a.C.) afirmou que eram quatro as raízes originárias
– água, ar, terra e fogo –, as quais remeteriam às ideias de nascimento e morte,
cuja correta compreensão estaria ligada à mistura e dissolução das coisas a partir
1
Esse é um paradoxo explicitado também por outro eleata, chamado Zenão.
Anaxágoras (c. 500-428 a.C.) falou das homeomerias para expressar a ideia das
inúmeras e infinitas sementes (spérmata), que dariam origem a tudo e estariam
misturadas na formação das coisas.
Domínio público.
Demócrito.
importantes para a ciência, até nossos dias – ele afirmou que o princípio origi-
nário de todas as coisas era o átomo (“sem partes”, um princípio indivisível de
todas as coisas). Essa partícula mínima da matéria (hoje já se sabe que ela não é
indivisível, mas é importante notar que não havia, à época, nenhum instrumento
tecnológico que fundasse a veracidade da tese, como temos hoje). É do movi-
mento dessas partículas que Demócrito faz derivar a existência de todos os seres
naturais: a morte dos seres seria explicada pela separação dos átomos; a solidez
ou flexibilidade, pela agregação; o devir, pela recombinação; e a quantidade e
diferença entre os fenômenos, pela visão e as leis da mecânica. Portanto, é no
espaço livre entre os átomos que as coisas se efetivam a partir do vazio. Tudo
é átomo preenchendo o vazio, e esse movimento de associação dos átomos é
de origem eminentemente mecânica, principalmente pela força centrípeta que
agrega a partir de um vórtice central. Assim, para que houvesse o nascimento da
vida, nenhum princípio divino seria necessário, apenas um movimento mecâni-
co que envolve a putrefação e a fermentação dos seres sobre a Terra. Trata-se de
uma visão materialista, que explica todos os fenômenos naturais, espirituais e
intelectuais.
Texto complementar
A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposi-
ção: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário
deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar,
porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segun-
do lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar,
porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensa-
mento: “Tudo é um”. A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em
comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa so-
ciedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da
terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego. Se tivesse dito: “Da água
provém a terra”, teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, mas dificil-
mente refutável. Mas ele foi além do científico. Ao expor essa representação
de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio infe-
rior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele. As
parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia
feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do
úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstru-
osa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma
crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em
todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimi-la
melhor – a proposição: “Tudo é um”.
E notável a violência tirânica com que essa crença trata toda a empiria: exa-
tamente em Tales se pode aprender como procedeu a filosofia, em todos os
quer preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas
dignas de serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes. Mas o
conceito de grandeza é mutável, tanto no domínio moral quanto no estético:
assim a filosofia começa por legislar sobre a grandeza, a ela se prende uma
doação de nomes. “Isto é grande”, diz ela, e com isso eleva o homem acima da
avidez cega, desenfreada, de seu impulso ao conhecimento. Pelo conceito de
grandeza, ela refreia esse impulso: ainda mais por considerar o conhecimento
máximo, da essência e do núcleo das coisas, como alcançável e alcançado.
Quando Tales diz: “Tudo é água”, o homem estremece e se ergue do tatear e
rastejar vermiformes das ciências isoladas, pressente a solução última das
coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores
do conhecimento. O filósofo busca ressoar em si mesmo o clangor total do
mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo
como o artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita de fins e cau-
salidades como o homem de ciência, enquanto se sente dilatar-se até a dimen-
são do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente como o
reflexo do mundo, essa lucidez que tem o artista dramático quando se trans-
forma em outros corpos, fala a partir destes e, contudo, sabe projetar essa
transformação para o exterior, em versos escritos. O que é o verso para o poeta,
aqui, é para o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão para fixar-
-se em seu enfeitiçamento, para petrificá-la. E assim como, para o dramaturgo,
palavra e verso são apenas o balbucio em uma língua estrangeira, para dizer
nela o que viveu e contemplou e que, diretamente, só poderia anunciar pelos
gestos e pela música, assim a expressão daquela intuição filosófica profunda
pela dialética e pela reflexão científica é, decerto, por um lado, o único meio de
comunicar o contemplado, mas um meio raquítico, no fundo uma transposi-
ção metafórica, totalmente infiel, em uma esfera e língua diferentes. Assim
contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis comunicar-se,
falou da água!
Dicas de estudo
NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Lisboa: Edições
70, 1987.
Atividades
1. Caracterize o período pré-socrático da filosofia.
Gabarito
1. Representa o primeiro período da filosofia grega e é também denomi-
nado cosmológico. Apesar das diferenças entre as diversas teorias dos
pensadores desse período, podemos destacar algumas características
comuns da filosofia pré-socrática, como a ideia de que o mundo não foi
criado por nenhuma divindade; a tentativa comum de responder racio-
nalmente aos problemas sobre a natureza e as causas de transformação
de todos os seres naturais; a concepção de que a natureza é regida por
leis naturais e necessárias que o pensamento pode conhecer. Nesse últi-
mo caso, os pré-socráticos dão início à separação entre a verdade, que é
alcançada somente pelo pensamento, e a opinião, que resulta do teste-
munho dos sentidos, pois enquanto por meio do pensamento atingimos
a essência das coisas, por meio dos sentidos só temos acesso ao parecer,
que é ilusão.
não existe e essa verdade só pode aparecer pela via da reflexão, chamada
por Parmênides de alétheia, e que seria distinta da doxa, mera opinião
dos sentidos e, por isso, enganadora. A percepção do movimento, nesse
caso, é uma ilusão dos sentidos, e a verdade é o que sempre permanece
idêntico, o que nunca se transforma, é o que nós podemos conhecer so-
mente pelo pensamento.
Referências
BORNHEIM, Gerd A. Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix, 1967.
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1995. p. 194.
NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
(Coleção Os Pensadores).
_____. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Lisboa: Edições 70, 1987.
Ao vires um homem revoltar-se no instante de morrer, não será isso prova suficiente
de que não se trata de um amante da sabedoria, porém amante do corpo?
O nascimento da Filosofia
Platão inventou a Filosofia e o texto filosófico. É verdade que os manu-
ais nos ensinam, muito corretamente, que existiram vários filósofos antes
de Platão, mas, semelhantemente ao deus Demiurgo1, que deu forma à
matéria mergulhada no caos e organizou o mundo sensível, como vere-
mos mais adiante, Platão reuniu em um único pensamento a totalidade
dos problemas e estilos de filosofar. Nas obras de Platão, toda a realida-
de é pensada: o ser, o conhecer e o agir. Além do mais, foi Platão quem
empregou e fixou os diferentes modos literários de expressão filosófica
que conhecemos até hoje: nele encontramos o texto discursivo de rigor
teórico e científico, o diálogo que mostra o limite da opinião e permite ao
pensamento superar as contradições e ascender às essências, a poesia e
a narrativa mítica que didaticamente dão contornos compreensíveis aos
pensamentos mais complexos, ensinando a razão a se conduzir em meio
à imaginação. Nesse caso, podemos concluir que Platão, seguindo as des-
crições do filósofo francês e historiador das ideias Châtelet, é o mais bri-
lhante mestre das letras:
Da comédia satírica – como esse Menexeno, onde Platão põe em cena dois disputadores
ridículos que se afrontam em torno de sutilezas vãs – ao discurso inspirado e tenso do
Ateniense das Leis, da lição de lógica que “O Estrangeiro” dá no Sofista às grandiosas
construções históricas e cosmológicas que o Timeu desenvolve, das fingidas
ingenuidades dos primeiros diálogos à argumentação didática e cercada d’ A República
e à descrição dramática do Fédon, todos os gêneros que o pensamento mais tarde
utilizará para convencer, persuadir ou, simplesmente, se manifestar estão aqui como
germe. (CHÂTELET, s/d, p. 29)
Domínio público.
A Criação de Adão, c. 1511. Michelangelo.
Domínio público.
A Morte de Sócrates, 1787. Jacques-Louis David.
Cega pela opinião, incapaz de ver a verdade e se deixar conduzir por aquele
que vê, a cidade condenou Sócrates e produziu a injustiça. Para Platão, a Filoso-
fia é a resposta ao problema da injustiça – uma injustiça que é uma doença da
alma e, ao mesmo tempo, da sociedade inteira. A injustiça resulta do erro e é,
sobretudo, um problema de conhecimento, estando assentada na desordem, no
espetáculo das ilusões dos sentidos e no julgamento torpe das paixões. Como
2
Em 399 a.C., Sócrates foi acusado de não acreditar nos deuses da cidade e corromper a juventude. Julgado pela assembleia ateniense, foi conde-
nado à morte por envenenamento.
O inteligível e o sensível
Um dos aspectos mais esclarecedores do pensamen-
to de Platão é a sua teoria das ideias, a partir da qual ele
Domínio público.
– Entendo, sim.
– Supõe, agora a outra seção, da qual esta imagem, a que nos abrange a nós, seres vivos, e a
todas as plantas e toda espécie de artefatos.
– Suponho.
– Acaso consistirias em aceitar que o visível se divide no que é verdadeiro e no que não o é, e
que, tal como a opinião está para o saber, assim está a imagem para o modelo?
– Aceito perfeitamente.
– Como?
– Na parte anterior, a alma, servindo-se, como se fossem imagens, dos objetos que então eram
imitados, e forçado a investigar a partir de hipóteses, sem poder caminhar para o princípio,
mas para a conclusão; ao passo que, na outra parte, ao que conduz ao princípio absoluto, parte
da hipótese, e, dispensando as imagens que havia no outro, faz caminho só com o auxílio das
ideias. (PLATÃO, 1987, p. 313-314)
A dialética e o conhecimento
Conforme Platão, o saber humano pode ser pensado a partir de duas esferas
de conhecimento.
Mas isso não significa que Platão desconsidere o mundo físico, que esse idea-
lismo suponha a matéria como algo completamente destituído de Ser e de sen-
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Quem somos? (Platão)
Dialética
Em grego, a palavra dia quer dizer “dois, duplo”; o sufixo lética, derivado
de logos e do verbo legein, pode significar “reunir, juntar”.
Sócrates: – O primeiro é este: abarcar num só golpe de vista todas as ideias esparsas de um
lado e de outro reuni-las em uma só ideia geral a fim de poder compreender, graças a uma
definição exata, o assunto que se deseja tratar...
Sócrates: – É saber dividir a ideia geral nos seus elementos, nas suas articulações naturais,
evitando, porém, mutilar qualquer dos elementos primitivos como faz um mau trinchador...
(PLATÃO, s/d, p. 169)
A dialética não seduz, não impõe – ela apela à razão e submete o sentimento
e a crença ao entendimento. Além do mais, com a dialética o campo da verdade
é a universalidade do discurso. Enquanto um método do pensamento opera-
do na linguagem, e assim prescindindo do exame direto das coisas, a dialética
permite que o espírito se livre da sujeição do sensível e se conduza em direção
ao Ser. E o conhecimento metafísico nasce no momento em que a prática do
discurso desemboca no exame do Ser, que é fundamento, como já adiantamos,
da ética e da política.
Porém, esse julgamento negativo sobre o corpo não domina toda a análise
de Platão. Ao comentar o corpo humano na perspectiva platônica, Reale mostra
que, embora seja a consideração recorrente nos diálogos platônicos, a relação de
antítese com a alma não é a única. De certa forma, Platão não deixou de pensar o
corpo, não subestimou a importância dos cuidados do corpo, da medicina e da
ginástica: “De fato, não só deu grande importância à ginástica e à medicina, mas
no Timeu entendeu o homem como um conjunto estrutural (synamphoteron)”
(REALE, 2002, p. 175). Além do mais, é correto afirmar que a alma também vê –
contempla – as essências por interferência das coisas, pois o mundo do corpo
provoca a alma, a vivência e o contato com a diversidade nos fazem recordar a
unidade. Mas Reale chama atenção para o fato de que o cuidado de Platão com
o corpo tem como objetivo a saúde e a tranquilidade da alma: é preciso evitar
as enfermidades e as paixões para salvaguardar a alma. A medicina e a ginásti-
ca educam e cuidam do corpo, purificam o conjunto estrutural para o bem da
alma.
À alma cabe encontrar a verdade e enquanto ela procura com o corpo é in-
duzida ao erro, é enganada por ele. A alma é um princípio de conhecimento, é
o que permite ver além da percepção, ver além daquilo que o objeto sensível
nos oferece e o que nos faz transcender os dados do parecer e, paradoxalmen-
te, reconhecer a validade da experiência sensível. O conhecimento solicita o
sensível, mas para ultrapassá-lo é preciso ser tocado por ele. Na perspectiva de
Platão, a ideia que se manifesta na experiência já está em nós. Assim, as questões
são complexas. Como essas ideias podem anteceder a experiência? Além disso,
como podemos acessar essas ideias? Em que sentido as verdades do pensamen-
to podem reunir os dados confusos dos sentidos?
As ideias não vêm da experiência. Muito pelo contrário, elas permitem ex-
plicar a experiência. A alma aproveita o contato com o sensível para trazer à luz
– recordar – aquilo que já viu. Antes de existir com o corpo, antes de estar en-
carcerada ao físico, a alma habitou um mundo distinto deste – na terminologia
platônica, como já adiantamos anteriormente, o mundo inteligível –, e
Por conseguinte, é necessário ter como certo [...] que se todas essas coisas que sempre citamos,
como o belo, o justo, e todas essências deste tipo, que encontramos em nós mesmos, é preciso,
já que todas essas coisas existem, que a nossa alma também tenha existido antes de havermos
nascido, e se todas essas coisas não existem, todos os nossos discursos são inúteis. (PLATÃO,
1999, p. 133)
diálogos Fedro e Fédon Platão apresenta a alma como imortal – o que é condição
para a noção de que todo o conhecimento é recordação, e de que na experiência
apenas descobrimos o que a alma já viu –, ela não deixa de ser o que nos anima,
o que confere vida quando está encerrada no corpo. Na verdade, a nossa alma é
solicitada pelo sensível e, nesse caso, a conduta reta sempre se apresenta como
um problema.
Domínio público.
Primeiro, temos a alma desejante, que habita o ventre e sente fome e sede,
busca a luxúria e o gozo de todos os sentidos. Depois, a alma do coração, sempre
movida por virtudes como a honra e a coragem. Mediadora entre a pulsão e a
razão, entre a alma subjugada pelo corpo e a alma que busca contemplar as es-
sências, ela deseja e pressente confusamente a ordem do Bem. Mas é irascível e
deve obedecer à “voz da razão”, a parte da alma que se situa na cabeça e se orien-
ta unicamente em direção ao Bem. A sua função é raciocinar, pensar, calcular e
contemplar as essências.
Na alma tripartida, a saúde está no fato de cada parte realizar a função que
lhe é própria, sempre do melhor modo possível, isto é, virtuosamente. A tem-
perança deve se impor às paixões do corpo, a fortaleza deve reinar no coração
e a sabedoria deve guiar a cabeça. Depois, conforme se descreve n’ A República,
a saúde da alma se realiza quando, fundamentalmente, a cabeça comanda as
outras partes do corpo:
– Por conseguinte, devemos recordar-nos que cada um de nós, no qual cada uma de suas
partes desempenha a sua tarefa, será justo e executará o que lhe cumpre.
– Portanto, não compete à razão governar, uma vez que é sábia e tem encargo de velar pela
alma toda, e não compete à cólera ser sua súdita e aliada?
– Absolutamente.
[...]
– E estas duas partes [...] dominarão o elemento concupiscível (que, cada pessoa, constitui a
maior parte da alma e é, por natureza, a mais insaciável de riquezas) e hão de vigiá-lo, com
receio que ele, enchendo-se dos chamados prazeres físicos, se torne grande e forte, e não
execute a sua tarefa, mas tente escravizar e dominar uma parte que não compete à sua classe
e subverta toda a vida em conjunto. (PLATÃO, 1987, p. 201)
Para Platão, o Estado ideal é composto por três classes de cidadãos: os gover-
nantes, os guardiões e os industriais. O equilíbrio do Estado e a própria justiça
dependem de que cada membro desses três estamentos realize as tarefas que
lhe compete, sempre conforme as suas virtudes. Aqueles cidadãos que têm a
virtude da sabedoria devem governar. Aos corajosos, cabe a defesa da cidade,
a dedicação à vida militar e à segurança. Já a maior parte dos cidadãos, sempre
obedecendo às indicações da virtude dominante da alma, deve se dedicar à pro-
dução, ao comércio, à agricultura e à indústria.
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Quem somos? (Platão)
Texto complementar
No diálogo Fédon, Platão retrata os momentos finais de Sócrates. Na prisão,
aguardando a morte, Sócrates nos mostra, dialeticamente, que é um erro de opi-
nião temer a morte. Além disso, apresenta a crítica platônica ao corpo. Nesse
diálogo, conforme o trecho a seguir, o corpo é um obstáculo ao conhecimento
das essências, pois nas paixões do corpo encontramos a origem das guerras, dos
males e da opinião. Nesse sentido, a verdade supõe que a alma se liberte do seu
obstáculo – o corpo. Por isso mesmo, o verdadeiro sábio não teme a morte.
Fédon (fragmento)
(PLATÃO, 2010)
Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então,
consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo
e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou
será a morte outra coisa?
Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse
modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de
opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos preten-
sos prazeres, tal como comer e beber?
A mesma coisa.
Evidentemente.
Essa é a razão, Símias, de, na opinião da maioria dos homens, não merecer
viver o indivíduo a quem nada disso é agradável e que não se importa com
tais práticas, por achar-se muito mais perto da condição de morto e por não
dar a menor importância aos prazeres alcançados por intermédio do corpo.
Tens razão.
Perfeitamente, respondeu.
Tens razão.
Perfeitamente.
Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem
a vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada
ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto
quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a
verdade.
Certo.
E não é nesse estado que a alma do filósofo despreza o corpo e dele foge,
trabalhando por concentrar-se em si própria?
Evidentemente.
Também.
Nunca, respondeu.
Perfeitamente.
XI – Por tudo isso, continuou, é natural nascer no espírito dos filósofos au-
tênticos certa convicção que os leva a discorrer entre eles mais ou menos nos
seguintes termos: Há de haver para nós outros algum atalho direto, quando
o raciocínio nos acompanha na pesquisa; porque enquanto tivermos corpo
e nossa alma se encontrar atolada em sua corrupção, jamais poderemos al-
cançar o que almejamos. E o que queremos, declaremo-lo de uma vez por
todas, é a verdade. Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta,
pela necessidade de alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes,
que são outros empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupi-
dez, imaginações de toda a espécie e um sem-número de banalidades, a tal
ponto ele nos satura, que, de fato, como se diz, por sua causa jamais conse-
guiremos alcançar o conhecimento do quer que seja. Mais, ainda: guerras,
batalhas, dissensões, suscita-as exclusivamente o corpo com seus apetites.
Outra causa não têm as guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que
nos vemos forçados a adquirir por causa do corpo, visto sermos obrigados
a servi-lo. Se carecermos de vagar para nos dedicarmos à Filosofia, a causa é
tudo isso que enumeramos. O pior é que, mal conseguimos alguma trégua
e nos dispomos a refletir sobre determinado ponto, na mesma hora o corpo
intervém para perturbar-nos de mil modos, causando tumulto e inquietude
em nossa investigação, até deixar-nos inteiramente incapazes de perceber a
verdade. Por outro lado, ensina-nos a experiência que, se quisermos alcançar
o conhecimento puro de alguma coisa, teremos de separar-nos do corpo e
considerar apenas com a alma como as coisas são em si mesmas. Só nessas
condições, ao que parece, é que alcançaremos o que desejamos e do que
nos declaramos amorosos, a sabedoria, isto é, depois de mortos, conforme
nosso argumento o indica, nunca enquanto vivermos. Ora, se realmente, na
companhia do corpo não é possível obter o conhecimento puro do que quer
que seja, de duas uma terá de ser: ou jamais conseguiremos adquirir esse
conhecimento, ou só o faremos depois de mortos, pois só então a alma se re-
colherá em si mesma, separada do corpo, nunca antes disso. Ao que parece,
enquanto vivermos, a única maneira de ficarmos mais perto do pensamen-
to, é abstermo-nos o mais possível da companhia do corpo e de qualquer
comunicação com ele, salvo e estritamente necessário, sem nos deixarmos
saturar de sua natureza sem permitir que nos macule, até que a divindade
nos venha libertar. Puros, assim, e livres da insanidade do corpo, com toda a
probabilidade nos uniremos a seres iguais a nós e reconheceremos por nós
mesmos o que for estreme de impurezas. É nisso, provavelmente, que con-
siste a verdade. Não é permitido ao impuro entrar em contato com o puro.
– Eis aí, meu caro Símias, quero crer, o que necessariamente pensam entre si
e conversam uns com os outros os verdadeiros amantes da sabedoria. Não é
esse, também, o teu modo de pensar?
Perfeitamente, Sócrates.
Dicas de estudo
PLATÃO. A República. 5. ed. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.
SÓCRATES. Direção de Roberto Rossellini. Itália, 1971. Dist.: Versátil Home Video.
Atividades
1. Explique a diferença entre doxa e epistemé, para Platão. Em que sentido essa
diferença está relacionada à teoria das ideias, de Platão?
Gabarito
1. Segundo Platão, o saber humano pode ser pensado a partir de duas es-
feras de conhecimento. Primeiro, temos o conhecimento derivado das
nossas experiências sensíveis, do contato direto com as coisas. Trata-se
de um conhecimento de aparências, particular, relativo e, por isso mes-
mo, instável. Esse saber fundado no sensível constitui a opinião (doxa).
Depois, temos o conhecimento genuíno. De natureza intelectual, ele é
universal, imutável e absoluto. O conhecimento mais verdadeiro, no qual
se realiza a epistemé (ciência), não está no exame direto das coisas. A ma-
téria, do ponto de vista do conhecimento, apenas espelha parcialmente
a verdade das essências que habitam o mundo das ideias. Mas isso não
significa que Platão desconsidere o mundo físico, que esse idealismo
suponha a matéria como algo completamente destituído de Ser e de
sentido. Ao admitir o papel fundamental e essencial das ideias imutáveis
e eternas, Platão também concede ao mundo sensível certa realidade,
ainda que ele seja considerado somente na medida em que participa do
mundo das ideias, do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma som-
bra. Mas o mundo físico não deixa de ser e de existir. As coisas sensíveis
participam da ideia, da essência, que é única e universal. Uma cadeira,
por exemplo, é reconhecida como tal ainda que de um modo particular
e restrito, porque carrega a ideia inteligível de cadeira. Justamente por
isso, mesmo que transpareça por meio das coisas, a verdade é uma ideia,
uma forma universal inteligível. Portanto, a ideia não é dada pelas sen-
sações, pelo contato do nosso corpo com o mundo: ela é resultado do
pensamento. Os sentidos formam a opinião (doxa) e por meio do pensa-
mento conhecemos as ideias.
Referências
CHÂTELET, François. Platão. Porto: Rés Editora, s/d.
Os atos corajosos e justos, bem como outros atos virtuosos, nós os praticamos em
relação uns aos outros, observando nossos respectivos deveres no tocante a contratos,
serviços e toda sorte de ações, bem assim como às paixões; e todas essas coisas parecem
ser tipicamente humanas.
Aristóteles
A sistematização do conhecimento
Aristóteles não deve ser considerado simplesmente um discípulo con-
tinuador da filosofia de Platão1. Tão grande quanto o seu mestre, que foi
o fundador da Academia, Aristóteles deu um novo impulso à Filosofia:
fundou a sua própria escola, fixou os princípios da lógica silogística, siste-
matizou o conhecimento em áreas metodologicamente independentes,
agregou ao raciocínio dialético procedimentos empíricos e legou para a
posteridade um conjunto de tratados, que compõe o primeiro modelo de
saber científico da história. Não há Filosofia posterior a Aristóteles, mesmo
na contemporaneidade, completamente isenta de influências aristotéli-
cas. Dificilmente encontramos algum tema ou objeto do conhecimento
a que sua obra não tenha se dedicado, pois ele foi o pensador de todos
os problemas, de todos os campos do conhecimento e ciências: Biologia,
Física, Astronomia, Psicologia, Retórica, Ética, Política, Lógica, Letras, Ma-
temática e Metafísica.
1
Aristóteles nasceu da cidade grega de Estagira, em 384 a.C. Filho de um médico, desde cedo foi habituado às pesquisas e práticas
científicas da época. Aos 18 anos de idade, começou a frequentar a Academia de Platão (428-347 a.C.) e lá permaneceu por quase duas
décadas. Cerca de três anos após a morte do mestre, foi convidado por Filipe da Macedônia (382-336 a.C.) para dirigir a educação de
seu filho Alexandre (356-323 a.C.), então com 13 anos. Após a morte de Filipe, regressou a Atenas e fundou a sua própria escola, o Liceu.
Após a morte de Alexandre, sendo acusado de conspirar a favor dos macedônios, Aristóteles abandonou Atenas, morrendo um ano
depois, na cidade de Cálcis.
Domínio público.
Aristóteles.
Por fim, para Aristóteles, as ciências mais elevadas são aquelas classifica-
das como ciências teoréticas, que compõem o terceiro grupo na sua classi-
ficação do conhecimento. Pertencem a esse grupo todos os saberes dedi-
cados a estudar objetos que existem sem qualquer relação com a vontade
e a ação do homem, isto é, objetos que existem e agem por si mesmos.
Nesse caso, o fim último do conhecimento é o próprio conhecimento, a
contemplação da realidade, já que não podemos transformá-la, dada a
sua independência da ação do homem. Entre as ciências teoréticas que
vamos considerar, estão a metafísica, a física e a psicologia, ciências que
procuram responder, respectivamente, às perguntas:
O que é o ser?
O que é o mundo?
O que é o homem?
A metafísica
Para Aristóteles, a metafísica é, entre todas essas ciências teoréticas, a supe-
rior, sobretudo porque estuda a realidade suprassensível. Mas, além disso, ela é
o mais puro e elevado conhecimento que a inteligência pode almejar, porque
é o único saber completamente livre. A própria origem da metafísica tem essa
marca, pois, diferentemente de qualquer outra ciência ou arte, ela não visa a
nenhum fim prático, é a ciência do conhecimento pelo conhecimento. O seu
valor maior está na contemplação das verdades eternas e necessárias.
pesquisa da substância;
A causa formal explica a forma que uma essência apresenta. O lápis, por
exemplo, é a forma que as matérias madeira e grafite assumiram a partir
da ação de um industrial ou de um artesão.
No livro IV, da Metafísica, Aristóteles define essa ciência dos princípios e causas
primeiras– a metafísica – como uma disciplina “que estuda o Ser enquanto Ser
e seus atributos essenciais” (ARISTÓTELES, 1984, p. 71, tradução nossa). Diferen-
temente das outras ciências entendidas como particulares, já que a metafísica
investiga o Ser universalmente e não apenas parcialmente, Aristóteles comple-
menta a definição escrevendo, acerca da metafísica, que ela “[...] é a ciência da
substância, da unidade e da pluralidade e dos contrários que se derivam” (ARIS-
TÓTELES, 1984, p. 71, tradução nossa).
O que é a substância?
Outro ponto importante é que a noção de Ser não pode ser reduzida a um
gênero ou, mesmo, a uma espécie, pois, como estabelece Ross, o Ser não é um atri-
buto pertencente a tudo o que existe: “Existe uma espécie de Ser que é no sentido
mais estrito e pleno: a saber, a substância” (ROSS, 1987, p. 163).
decessores concedendo a cada tese uma parte de razão. A substância (ousia) pode
ser compreendida, de acordo com a metafísica aristotélica, em três sentidos:
As substâncias são coisas como homens, gatos e rosas, que podem ter uma
existência independente e ser identificados como indivíduos de uma espécie
particular. Porém, na perspectiva aristotélica, a substância representa aquilo que
há de constante e permanente nas coisas que mudam, sobretudo enquanto esse
permanente é o sujeito. Podemos pensar em Sócrates jovem, corajoso e forte,
lutando na guerra. Também podemos pensar em Sócrates velho, sábio e frágil,
defendendo-se das acusações diante do tribunal de Atenas. A despeito de todas
as características e qualidades que atribuímos a Sócrates, sempre reconhecemos
um indivíduo (uma substância) que permanece. Na verdade, Sócrates é um su-
jeito (uma substância) de que se afirmam ou se negam diferentes predicados.
A física
A física constitui o segundo grupo de ciências teoréticas no sistema aristotéli-
co. É uma ciência que investiga a natureza (physis), a realidade sensível. O mundo
da física é o mundo do movimento, em um devir lógico e ordenado. Assim, difere
da realidade metafísica, na medida em que essa realidade suprassensível se ca-
racteriza pela absoluta ausência de movimento. Conforme os termos de Aristó-
teles, o entendimento do movimento, é central para compreender a natureza:
Estabelecido que a natureza é um princípio de movimento e de mudança, e nosso estudo
versa sobre a natureza, não podemos deixar de investigar o que é o movimento; porque
se ignorássemos o que é o movimento, necessariamente ignoraríamos o que é a natureza.
(ARISTÓTELES, 1995, p. 79, tradução nossa)
tir. O Ser não comporta nem geração e nem corrupção, pois, na perspectiva do
eleata Parmênides, o Ser é perfeito e, por isso mesmo, é uno, eterno e imutável.
O universo aristotélico
Estrelas
Saturno fixas
Júpiter
Marte
Sol
Vênus
Mercúrio
Lua
Terra
A psicologia
Conceitos metafísicos como substância, bem como as relações entre matéria e
forma, ato e potência, estão na base da doutrina psicológica de Aristóteles, como en-
contramos no seu tratado De Anima (“Da Alma”) – de tal modo que, para Aristóteles, a
Psicologia não é uma ciência do comportamento humano: é um saber teorético sobre
a alma (psique), sobre aquilo que confere vida, é uma ciência sobre a vida. Assim,
todos os seres vivos – animais e vegetais – possuem alma, que é o princípio da vida.
Em De Anima, Aristóteles investiga a alma considerando três problemas básicos.
Domínio público.
A alma é o que confere vida aos seres, é o que permite separá-los nas cate-
gorias de inanimados (sem vida e sem alma) e animados (com alma e com vida).
Para Aristóteles, de modo geral, todas as coisas, inclusive os seres vivos, são um
composto de matéria e forma, sendo a primeira correspondente à potência, e a
última, ao ato. Nessa perspectiva, a alma nada mais seria do que a forma e o ato
da matéria – do corpo. Acompanhemos como essas definições foram indicadas
por Aristóteles, no livro II de De Anima:
Assim, todo corpo natural que participa da vida é substância, no sentido de substância
composta. E uma vez que essa substância também é um corpo de tal tipo – que tem vida,
a alma não é um corpo, pois o corpo não é um dos predicados do substrato, antes, ele é o
substrato e a matéria. É necessário, então, que a alma seja substância como forma do corpo
natural que em potência tem vida. E substância é atualidade. Portanto, é de um corpo de tal
tipo que a alma é atualidade. (ARISTÓTELES, 2006, p. 71-72)
Porém, entre todos os seres vivos existe uma diferença de alma. Assim, temos,
a partir da teoria da alma da filosofia aristotélica, a classificação dos seres vivos,
de modo que a teoria da alma de Aristóteles tem implicações não apenas na
sua metafísica, mas também na sua biologia. Os vegetais nascem, alimentam-
-se, crescem e se reproduzem, mas não têm sensações e não podem se deslocar
no espaço. Já os animais têm sensações, sentem dor e prazer, podem se mover.
Se a nutrição é a função elementar dos vegetais, o movimento e a sensação são
aspectos da alma singulares aos animais. Contudo, entre os animais, o homem
é o único capaz de pensar e compreender, isto é, o único capaz de agregar, às
funções da nutrição, da sensação e do movimento, o pensamento.
A alma humana pode ser descrita como racional e intelectiva, pois comporta,
de modo geral, duas operações: primeiro, como pensamento discursivo e juízo,
é razão (διάνοια); depois, como intuição e fundamento dos conceitos, é intelecto
(υονς). Assim, o espírito não depende da experiência para chegar aos princípios
primeiros: está na alma, nas suas funções – intuitiva e discursiva –, o poder de
conhecer.
Texto complementar
mais plena posse desta última são os mais genuinamente felizes, não como
simples concomitante mas em virtude da própria contemplação, pois que
esta é preciosa em si mesma. E assim, a felicidade deve ser alguma forma de
contemplação. Mas o homem feliz, como homem que é, também necessita
de prosperidade exterior, porquanto a nossa natureza não basta a si mesma
para os fins da contemplação: nosso corpo também precisa de gozar saúde,
de ser alimentado e cuidado. Não se pense, todavia, que o homem para ser
feliz necessite de muitas ou de grandes coisas, só porque não pode ser supre-
mamente feliz sem bens exteriores. A autossuficiência e a ação não implicam
excesso, e podemos praticar atos nobres sem sermos donos da terra e do
mar. Mesmo desfrutando vantagens bastante moderadas pode-se proceder
virtuosamente (isso, aliás, é manifesto, porquanto se pensa que um particu-
lar pode praticar atos dignos não menos do que um déspota – mais, até). E é
suficiente que tenhamos o necessário para isso, pois a vida do homem que
age de acordo com a virtude será feliz. Sólon nos deu, talvez, um esboço fiel
do homem feliz quando o descreveu como moderadamente provido de bens
exteriores, mas como tendo praticado (na opinião de Sólon) as mais nobres
ações, e vivido conforme os ditames da temperança. Anaxágoras também
parece supor que o homem feliz não seja rico nem um déspota quando diz
que não se admiraria se ele parecesse à maioria uma pessoa estranha; pois
a maioria julga pelas exterioridades, uma vez que não percebe outra coisa.
E assim, as opiniões dos sábios parecem harmonizar-se com os nossos argu-
mentos. Mas, embora essas coisas também tenham um certo poder de con-
vencer, a verdade em assuntos práticos percebe-se melhor pela observação
dos fatos da vida, pois estes são o fator decisivo. Devemos, portanto, exami-
nar o que já dissemos à luz desses fatos, e se estiver em harmonia com eles
aceitá-lo-emos, mas se entrarem em conflito admitiremos que não passa de
simples teoria. Ora, quem exerce e cultiva a sua razão parece desfrutar ao
mesmo tempo a melhor disposição de espírito e ser extremamente caro aos
deuses. Porque, se os deuses se interessam pelos assuntos humanos como
nós pensamos, tanto seria natural que se deleitassem naquilo que é melhor
e mais afinidade tem com eles (isto é, a razão), como que recompensassem
os que a amam e honram acima de todas as coisas, zelando por aquilo que
lhes é caro e conduzindo-se com justiça e nobreza. Ora, é evidente que todos
esses atributos pertencem mais que a ninguém ao filósofo. É ele, por conse-
guinte, de todos os homens o mais caro aos deuses. E será, presumivelmen-
te, também o mais feliz. De sorte que também neste sentido o filósofo será o
mais feliz dos homens.
Dicas de estudo
ARISTÓTELES. Metafísica/Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Co-
leção Os Pensadores).
Atividades
1. Explique os critérios da divisão dos saberes, estabelecida por Aristóteles.
Gabarito
1. Na obra Metafísica, os saberes estão divididos em três grandes grupos de
ciências, conforme, sobretudo, dois critérios centrais no modelo de ciência
da antiga Grécia: o objeto e a finalidade do conhecimento. Antes de tudo, é
preciso considerar a origem e a permanência de um objeto diante do devir,
estabelecer se ele existe por si mesmo, se foi inventado ou fabricado pelo
homem. Em segundo lugar, é preciso avaliar a finalidade do conhecimento
dessa ciência. Temos que definir se o conhecimento visa à contemplação (co-
nhecer pelo conhecer), à ação (conhecer para agir) ou à produção (conhecer
para produzir). Toda investigação científica visa à aquisição de um conheci-
mento, mas aferimos o lugar de uma ciência pelo tipo de fim, de orientação
que atribuímos ao conhecimento dessa ciência. Fundados nesses critérios,
Aristóteles dividiu as ciências em teoréticas, práticas e produtivas.
3. A alma confere vida aos seres, permite separá-los nas categorias de seres
inanimados (sem vida e sem alma) e animados (com alma e com vida). Para
Aristóteles, de modo geral, todas as coisas, inclusive os seres vivos, são um
composto de matéria e forma, sendo a primeira correspondente à potência,
e a última, ao ato. Nessa perspectiva, a alma nada mais seria do que a forma
e o ato da matéria (do corpo), mas entre todos os seres vivos existe uma
diferença de alma. A partir da teoria da alma da filosofia aristotélica, temos
a classificação dos seres vivos. E essa teoria da alma tem implicações não
apenas na metafísica aristotélica, mas também na sua biologia. Os vegetais
nascem, alimentam-se, crescem e se reproduzem, mas não têm sensações e
não podem se deslocar no espaço. Já os animais têm sensações, sentem dor
e prazer, podem se mover. Se a nutrição é a função elementar dos vegetais, o
movimento e a sensação são aspectos da alma singulares aos animais. Con-
tudo, entre os animais, o homem é o único capaz de pensar e compreender,
agregando, às funções da nutrição, da sensação e do movimento, o pensa-
mento. Essa tripla partição da alma é explicada a partir da consideração aris-
totélica de três fenômenos ou funções biológicas da vida – portanto, é uma
divisão sem qualquer fundamento moral ou religioso, e está assentada na
filosofia da natureza.
Referências
ARISTÓTELES. Tópicos/Dos Argumentos Sofísticos/Metafísica/Ética a Nicô-
maco/Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).
Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos prazeres dos
intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como creem certos ignorantes, [...]
mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma.
Epicuro
Domínio público.
Domínio público.
Estátua de Marco Aurélio, em um dos Museus
Capitolinos, em Roma.
Domínio público.
Alexandre Magno, na Batalha de Isso, montando seu cavalo, Bucéfalo, conforme mosaico en-
contrado em Pompeia hoje exposto no Museu Arqueológico Nacional, em Nápoles, Itália.
Ao contrário do que pode parecer, esse período foi de intensa produção in-
telectual, tanto na filosofia quanto nas ciências e nas artes em geral. Só para
lembrar alguns exemplos: Herófilo, considerado o pai da anatomia, viveu em
Alexandria, na primeira metade do século III a.C., ao lado de Erasístrato, o pai
da fisiologia, e na mesma cidade viveu Euclides, pai da geometria; em Siracusa,
viveu Arquimedes, outro grande matemático, além de inventor do cálculo inte-
gral; em Samos, Aristarco se destacou na astronomia, tendo afirmado a teoria
heliocêntrica e sendo contestado por Hiparco de Niceia, a quem é atribuída a
organização do ano solar quase da forma como é aceito até nossos dias; em
Cirene, Eratóstenes organizou a geografia como ciência. Nas artes, foi um perío-
do de grande produção arquitetônica e escultural, destacando-se nesse período
a obra Laocoonte e Seus Filhos e a Vênus de Milo; na literatura, destacam-se Calí-
maco e Teócrito, criador do gênero idílico; no teatro, apareceu a comédia nova,
um gênero que, tendo em Menandro seu principal nome, fazia uma crítica aos
costumes de então.
Domínio público.
Domínio público.
Foi nesse período, portanto, que a filosofia também obteve resultados inte-
ressantes face à crise social e moral, a qual demandava uma reflexão ética pela
qual se tornasse possível enfrentar os novos tempos, pois os anteriores ideais da
racionalidade e da vida política já não satisfaziam. Surgiram então várias escolas
de pensamento: estoicismo, epicurismo, ceticismo, cinismo e neoplatonismo.
Nas duas primeiras, nota-se um retorno à metafísica naturalista dos pré-socráti-
cos e à moral das escolas socráticas menores; nas últimas, uma anulação de toda
metafísica e moral, e certa volta para a sofística, negando a filosofia platônico-
-aristotélica. A novidade era o fato de, nesse novo cenário, a filosofia deixar de
ser uma preparação para o exercício político, passando a ser uma reflexão sobre
o aprimoramento interior do homem. Com isso, ela se tornava um cuidado de si
em busca da virtude e do bem individual, no que se destaca o esforço ético de
procura da serenidade no meio do turbilhão de mudanças e da situação adversa
que marcava o cenário social.
O estoicismo
Geralmente, o estoicismo é dividido em três períodos:
O fundador da antiga escola estoica fora Zenão de Cítio (334-262 a.C.), que
muito cedo teve contato com as ideias de Sócrates e, por volta do ano 300,
fundou a escola estoica, que ganhou esse nome por “funcionar” próxima a um
pórtico (que em grego se diz stoá). Esse movimento filosófico teve em Crisipo de
Solis (280-208 a.C.) o seu sistematizador, e chegou a Roma em 155 a.C., por meio
de Diógenes da Babilônia (230-150 a.C). Ali, seus continuadores foram Marco
Aurélio, Sêneca, Epíteto (55-135 d.C.) e Lucano (39-65 d.C.).
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Zenão de Cítio. Crisipo de Solis.
No geral, com esse movimento, a filosofia se viu frente a frente com o pro-
blema da vida cotidiana, em busca da afirmação da virtude e a melhor forma de
alcançar a felicidade. Por isso, além das reflexões sobre a física e a lógica, o fim
mesmo da filosofia, da religião e da política deveria ser a ética, como reflexão
que ajudasse a viver da melhor forma, a fim de alcançar a felicidade.
É essa concepção física que dá as bases para a ética estoica: segundo esses
pensadores, o melhor para o homem é viver conforme a natureza. Como a natu-
reza é logos (princípio ordenado e ordenador), deve-se viver conforme a razão, o
que significa que o homem deve se submeter à força divino-natural.
Guiado por esse princípio racional, o sábio deveria sempre recusar as paixões
e buscar a paz da alma. Essa paz da alma está associada ao princípio da ataraxia
(palavra grega usada para afirmar a necessidade de ausência de perturbações).
Essa seria a grande virtude do sábio e é nisso mesmo que residiria a felicidade, ou
seja, na capacidade de cultivar as virtudes como libertação de toda perturbação,
Para os estoicos, o homem deveria renunciar a tudo para ficar apenas com
três coisas: o pensamento, a sabedoria e a virtude. Esses seriam os únicos bens
verdadeiros e só eles deveriam ser cultivados. O sábio estoico é aquele que con-
segue fechar-se em si mesmo, permanecendo sereno e apático frente a todas
as coisas do mundo que desviam a atenção e conduzem à infelicidade. Quanto
mais o homem se render a esses desvios, mais infeliz ele se torna.
Não é difícil imaginar por que muitas dessas ideias estoicas foram rapida-
mente assumidas pela ética cristã. Mas essa não é a única influência do estoicis-
mo sobre a filosofia: além dos cristãos, pensadores como Michel de Montaigne
(1533-1592), Pierre Corneille (1606-1684), René Descartes (1596-1650) e Imma-
nuel Kant (1724-1804) fizeram dos estoicos uma boa fonte de reflexão ética.
Epicurismo
Domínio público.
Fundada por Epicuro (341-270 a.C.), depois
de seu contato com as teorias de Platão e Demó-
crito, certamente essa foi, ao lado do estoicismo,
uma das escolas filosóficas helenistas mais mar-
cantes da cultura ocidental.
expulsos de suas terras para que cumprissem serviço militar. E tinha verdadeiro
horror a vários dos valores alimentados pelos filósofos anteriores: certo aristo-
cratismo, o elitismo e o conservadorismo em termos de política, mas sobretudo
o espiritualismo dualista à maneira Platão. Seu tempo foi de crise: falta trabalho
para o povo, miséria e pobreza grassando por toda a sociedade, falta de líderes
capazes de administrar essa situação, colônias gregas cheias de gente depor-
tada de Atenas, tropas mercenárias se exaurindo em delitos. Nesse mundo em
ruínas, Epicuro fundou seu Jardim quase como uma colônia de resistência. Sua
única preocupação era a “construção de si”, ou seja, se o mundo ao redor se de-
sintegrava, caberia ao indivíduo buscar uma saída em práticas de fortalecimento
e de cuidado consigo mesmo, pela prática das virtudes.
Mas essa proposta não era vista sem desconfiança. Muitos pensadores o con-
sideraram, na história da filosofia, um filósofo perigoso e subversivo. Talvez por
isso o tenham associado à imagem do porco: por não conseguir olhar para o
céu, esse animal abjeto e gordo é a metáfora mais perfeita do antiplatonismo –
incapazes de contemplar as ideias, Epicuro e seus discípulos teriam se rendido
às imundícies da terra, ao real e ao imediato. Obviamente, trata-se de uma inter-
pretação que, além de explicitar muitos erros interpretativos, está carregada de
preconceitos.
Consta que Epicuro escreveu muito, mas sobraram apenas duas cartas e
alguns fragmentos. Muito do seu pensamento foi sistematizado por seu discípu-
lo Lucrécio, que escreveu a respeito de seu mestre: “Foi um deus, sim, um deus,
aquele que primeiro descobriu essa maneira de viver que agora se chama sa-
bedoria, aquele que por sua arte nos fez escapar de tais tempestades e de tais
noites, para colocar nossa vida numa morada tão calma e tão luminosa” (apud
PESSANHA, 1985, p. 11). Pela força desse testemunho, supõe-se o quanto Epicu-
ro era admirado por seus seguidores.
a afeição, pois o prazer e a dor informam o que deve ser procurado e o que
deve ser evitado.
A morte, por sua vez, seria apenas a desintegração dos átomos e, nesse sen-
tido, não existiria enquanto o homem estivesse vivo. Na 31.ª Sentença Vaticana,
pode-se ler que: “Contra tudo o que vem de fora, é possível obter segurança. Mas
por causa da morte nós homens habitamos todos uma cidade sem muralhas”
(EPICURO, 2002, p. 13). Nesse assunto, Epicuro também é autor de uma das frases
mais famosas da história da filosofia: “A morte não é nada em relação a nós, já
que, quando somos, a morte não está presente, e, quando a morte está presen-
te, não somos mais” (EPICURO, 2002, p. 29). Essa “descoberta” é um resultado da
reflexão filosófica, e é ela que traz serenidade no enfrentamento da morte.
confiança na natureza;
Essa última ideia se articula em torno do termo ataraxia, que traduz o ideal
de serenidade da alma como resultado do domínio sobre as paixões, ou mesmo
sua anulação. Isso poderia ser conquistado, segundo os epicuristas, pela fuga
aos prazeres supérfluos e pela experiência de uma vida simples, já que, quanto
mais o ser humano depende dos agentes exteriores para ser feliz, mais ele corre
o risco de encontrar a dor e a infelicidade. Portanto, a vida simples está associa-
da à ideia de prazer. E aqui, muitas vezes, se resvala um equívoco: a filosofia do
prazer de Epicuro não pode ser associada à realização desmedida de todos os
desejos. Ao contrário, o filósofo do prazer é também o filósofo da simplicidade:
“A quem não basta pouco, nada basta” (EPICURO, 1985, p. 59), afirma ele, que faz
uma distinção entre os prazeres necessários (os quais têm em vista o bem moral)
e os não necessários (que devem ser reprimidos sem dor). Para Epicuro, existem
prazeres que não são nem naturais e nem necessários (a riqueza e a glória,
por exemplo).
Isso talvez explique por que ele valoriza tanto a Filosofia: para Epicuro, ela
conduz o ser humano a uma vida refletida e autoanalisada, cujo resultado seria
118 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
Como devemos viver? (Helenistas)
É assim, como ferramenta para a “saúde da alma”, que a filosofia se parece com
aquilo que a medicina é no âmbito do corpo: ela deve curar o espírito dos seus
males e garantir o acesso à verdadeira liberdade, porque “todo desejo incômodo
e inquieto se dissolve no amor da verdadeira filosofia” (EPICURO, 1985, p. 49).
Ceticismo e cinismo
Ceticismo é a doutrina segundo a qual o espírito não pode alcançar a verdade,
porque não é possível conhecer nada com certeza. Frente a essa aporia, cabe ao
homem suspender o julgamento e adotar a dúvida como princípio do conheci-
mento. Esse movimento começou com Pirro de Élis (360-270 a.C.), que fora am-
plamente influenciado pelas lutas entre platônicos e aristotélicos, no que tange
à melhor forma de acesso à verdade. Para ele, a abstenção do juízo (epoché) seria
a única conduta possível, e essa atitude levaria a uma indiferença total frente a
todas as opiniões.
Além desse episódio, Diógenes Laêrtios relata vários outros nos quais, por
exemplo, Diógenes aparece retrucando Platão. Veja-se, por exemplo, a seguin-
te passagem: “Durante uma recepção oferecida por Platão a amigos vindos da
parte de Dionísios, Diógenes pisou em seus tapetes e disse: ‘Estou pisando na
vanglória de Platão’” (LAÊRTIOS, 2008, p. 159). Outra história relatada por Laêr-
tios dá conta de que Platão teria definido o homem como um animal bípede,
sem asas, e recebera por isso muitos aplausos. Então, “Diógenes depenou um
galo e o levou ao local das aulas, exclamando: ‘Eis o homem de Platão’” (2008, p.
162). Laêrtios ainda relata outra cena curiosa: teriam perguntado a Platão: “Que
espécie de homem pensas que Diógenes é?” e ele teria respondido: “Um Sócra-
tes demente” (LAÊRTIOS, 2008, p. 163).
Domínio público.
Sobre Diógenes, Platão nos dá algumas pistas ao contar que ele vivia em um
tonel, em mendicância agressiva. Segundo Laêrtios, um dia teria quebrado sua
tigela depois de ver uma criança bebendo com a mão, dizendo: “um menino me
deu uma lição de simplicidade” (LAÊRTIOS, 2008, p. 161).
Essas passagens são extremamente simbólicas por evocarem tanto uma crí-
tica aos costumes e ao modo de vida dos aristocratas gregos, quanto pelo teste-
munho em torno da simplicidade de vida como meta dos sábios. Para Diógenes,
“aspirar à filosofia também é filosofar” (LAÊRTIOS, 2008, p. 168).
Até onde as histórias sobre a vida de Diógenes são verdadeiras? Isso importa
pouco, se formos capazes de interpretá-las como parte do movimento da filo-
sofia helenista em busca da filosofia como forma de vida. E é isso, justamente, o
que torna essa imagem de um homem vivendo em um tonel, cercado por cães,
algo tão impressionante e enigmático.
Neoplatonismo
Essa escola surgiu a partir da fusão do pensamento de Platão com o misticis-
mo judeu e oriental (movimento que se iniciou no século II e chegou até o século
1
De autárkeia, “autossuficiência”.
V d.C). Seu representante principal foi Plotino (204-270 d.C.), mas também houve
Porfírio (232-304 d.C.), Jâmblico (245-325 d.C.) e Proclus (412-485 d.C.), cuja influ-
ência foi considerável sobre Santo Agostinho (354-430 d.C.) e alguns dos primei-
ros padres (pais) da Igreja, que são os primeiros filósofos cristãos. Nesse sentido,
essa escola serve de ponte direta entre a filosofia grega e a cristã.
Domínio público.
Plotino.
acima de tudo o Um, que faz emanar as demais hipóstases de sua abun-
dância – é o Proto-Pai (primeiro);
finalmente, vem a Alma, que, preocupada com a ação, nunca fica em re-
pouso, lembra-se das coisas do alto para não se extraviar (por conversão,
ela pode vencer as paixões e o corpo e fazer com que a vertente racional
suplante a irracional), é imortal e pode se purificar por meio das vidas su-
cessivas.
Essas ideias são suficientes para que adivinhemos a grande influência que
essa escola vai ter sobre a filosofia cristã, na forma como ela dá uma vestimenta
místico-religiosa às ideias platônicas – algo que será retomado mais tarde por
Santo Agostinho.
Textos complementares
Sobre a Dor e o Prazer (fragmento)
(EPICURO, 1985, p. 57)
[...]
mente resplandecem. Devemos refletir que esses bens terrenos são obstácu-
los aos verdadeiros bens por causa das opiniões falsas e mentirosas: quanto
mais compridos pórticos se constroem, quanto mais altas torres se levantam,
quanto mais amplos caminhos se abrem, quanto mais profundas se esca-
vam as grutas estivas, quanto mais monumentais se erguem os tetos das
salas de jantar, tanto mais todas essas coisas nos esconderão o céu. Embora
o acaso te tenha atirado em tal lugar, em que a mais luxuosa habitação seja
uma choupana, terias na verdade uma alma vil e serias um mesquinho con-
fortador de ti mesmo, se te resignasses a isso só, lembrando a choupana
de Rômulo. Deves antes dizer: “Esta humilde choupana hospeda virtudes?
E então é mais linda que todos os templos, pois que nela estão a justiça, a
moderação, a sabedoria, a piedade, a regra para justamente cumprir todos
os deveres, a ciência das coisas divinas e humanas. Lugar nenhum é angusto,
se pode conter tantas e tão grandes virtudes, nenhum exílio é tão grave, se
nele podemos ir com aquelas virtudes”.
Meditações (fragmento)
(MARCO AURÉLIO, 1985, p. 478)
Dica de estudo
LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2. ed. Brasília:
UnB, 2008.
Atividades
1. Elenque as principais características da filosofia helenista, articulando-as
com o cenário histórico-político-social de então.
Gabarito
1. A filosofia helenística compreende o período que vai desde o século III até
o século I a.C., mas sua influência se estende até os primeiros séculos da Era
Cristã, seja pelo movimento conhecido como neoplatonismo, seja pelos pen-
sadores romanos que nela se inspiraram – dentre os quais se destacam Sêne-
ca e Marco Aurélio. Sua característica principal é o abandono da tematização
da pólis grega, e a alimentação de certa descrença diante dos ideais expli-
citados pela filosofia platônica e aristotélica. Consequentemente, a filosofia
helenística volta-se para uma reflexão em torno da melhor forma de vida,
que deveria ser buscada pelo indivíduo, pelo cultivo de si e a prática das vir-
tudes. Em termos históricos, políticos e sociais, essa descrença se explica pela
tomada da Grécia por parte de Filipe II, na Batalha de Queroneia (338 a.C.),
quando as cidades gregas perderam não só muitos soldados, como também
a grande experiência que vinham realizando até então: a invasão de Filipe II
pôs fim à experiência democrática e ao florescimento cultural conquistado
pela Grécia. Com a morte de Filipe II, seu filho, Alexandre, assumiu o trono
e deu prosseguimento à expansão militar dos macedônios, conquistando o
Egito, a Ásia Menor, a Mesopotâmia e a região das Índias, até o vale do Rio
Indo.
Referências
DUVERNOY, Jean-François. O Epicurismo e sua Tradição Antiga. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1993.
PESSANHA, José Américo Motta. Introdução geral. In: EPICURO et al. Antologia
de Textos/Da Natureza/Da República/Consolação a minha Mãe Hélvia/Da
Tranquilidade da Alma/Medeia/Apocoloquintose do Divino Cláudio/Medi-
tações. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção Os Pensadores).
SÊNECA. Consolação a minha mãe Hélvia. In: EPICURO et al. Antologia de Textos/
Da Natureza/Da República/Consolação a minha Mãe Hélvia/Da Tranquilida-
de da Alma/Medeia/Apocoloquintose do Divino Cláudio/Meditações. 3. ed.
São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção Os Pensadores).
Santo Agostinho
1
Lista de textos ou livros da Bíblia que se consideram escritos por inspiração de Deus. Etimologicamente, a palavra cânon remete à
“régua de medir”, algo que ajuda a catalogar.
2
Etimologicamente, apócrifo significa “oculto”. O termo é usado desde o século V para designar os antigos documentos judaicos
que não eram considerados inspirados por Deus, e por isso não entraram no cânon dos livros sagrados que compõem a Bíblia, ainda que
contenham relatos sobre a vida de Jesus e das primeiras comunidades cristãs.
Divulgação.
Cartaz de O Nome da Rosa, dirigido por Jean-Jacques
Annaud e estrelado por Sean Connery. Baseado em
romance de Umberto Eco, esse filme recria o clima das
disputas entre os escolásticos.
Frente a esses desafios, a Filosofia grega deu lugar à Filosofia cristã, mas isso
não ocorreu meramente na forma de uma ruptura, pois, ao contrário, os pensa-
dores gregos serviram de fonte primeira para essa tarefa. Basta que lembremos
alguns indícios dessa relação: em suas numerosas viagens pela Grécia, São Paulo
se encontrou com pensadores e filósofos helênicos; a filosofia helenista (com es-
pecial destaque para o estoicismo e para o neoplatonismo) teve uma influência
significativa sobre pensadores cristãos; os dois maiores nomes da Filosofia cristã
(Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) se deixaram influenciar pelos maiores
nomes da Filosofia grega (Platão e Aristóteles).
136 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
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É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)
Assim, o filosofar nos limites impostos pela fé cristã pode ser dividido em três
momentos:
período dos chamados padres apologistas do século II, que tinham como de-
safio a defesa do cristianismo – nesse momento, muitas vezes, os filósofos
eram os adversários e, nesse sentido, os debates foram ganhando um tom
mais filosófico, ou seja, recorria-se à filosofia como arma para a defesa da fé;
Santo Agostinho:
fé e razão como garantias da felicidade
No chamado Ocidente Latino, pouco se falou de Filosofia até que apareceu
Santo Agostinho. Nascido em Tagasta, na África, no ano de 354, Agostinho era
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., 137
mais informações www.iesde.com.br
É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica)
Depois da morte de sua mãe, Mônica, em 387, em Óstia, Agostinho ficou de-
solado e organizou uma espécie de comunidade monástica, em que pretendia
viver o resto de seus dias. Mas nem tudo saiu como previsto: em 391, ele foi
escolhido pela comunidade de Hipona como presbítero, logo depois bispo co-
adjutor, e então bispo, permanecendo por mais de 40 anos em intensas ativida-
des administrativas e pastorais. Morreu em 430, logo depois de Hipona ter sido
invadida e saqueada pelos chamados bárbaros.
Domínio público.
Domínio público.
A verdade, dessa maneira, está no próprio homem, em seu interior, onde ele
mesmo poderá encontrar-se com Deus. É isso o que faz Agostinho concluir: “Tu
estavas mais dentro de mim do que a minha parte mais íntima” (AGOSTINHO,
1986, p. 68). A verdade é Deus, mas a sua procura passa, necessariamente, pelo
próprio homem, já que Ele habita o íntimo humano. Esse é um ponto central da
tese agostiniana:
Para Agostinho a Verdade suprema coincide com Deus: para alcançar Deus e encontrar,
portanto, a Verdade, não devemos nos dirigir para o exterior, mas devemos entrar de novo em
nós mesmos, e procurar em nossa interioridade: aí habita a Verdade, em nossa alma, que é um
reflexo e uma imagem de Deus, a própria luz da razão. (REALE; ANTISERI, 2005, p. 106)
Assim, a síntese da vida moral está na prática dessas quatro virtudes (prudên-
cia, força, temperança e justiça) e no abandono dos prazeres, honras e riquezas
terrenas. Esse é o caminho pelo qual a razão, aliada à fé, passa a representar a
possibilidade de alcance da verdadeira felicidade, que não chega a não ser pela
prática dessas virtudes e a recusa da vontade pervertida:
O inimigo dominava-me o querer, e forjava uma cadeia que me mantinha preso. Da vontade
pervertida nasce a paixão; servindo à paixão, adquirisse o hábito, e, não resistindo ao hábito,
cria-se a necessidade. Com essa espécie de anéis entrelaçados (por isso falei de cadeia),
mantinha-me ligado à dura escravidão. A nova vontade apenas despontada, a vontade de
servir-te e de gozar-te, ó meu Deus, única felicidade segura, ainda não era capaz de vencer a
vontade anterior, fortalecida pelo tempo. (AGOSTINHO, 1986, p. 199-200)
Fé e razão na escolástica
A partir do século VIII e até o século XIII, as escolas medievais centralizaram a
reflexão teológica e filosófica. Mas foi já no século VI que o imperador Justiniano
decretou o fechamento de todas as escolas pagãs, que foram logo substituídas
Entretanto, foi a escola palatina que, segundo Reale e Antiseri (2007, p. 478),
mais contribuiu para o “redespertar da cultura”. Fundada por Carlos Magno, ela
foi “confiada em 781 a Alcuíno de York”, que a organizou em três graus:
estudo das sete artes liberais (trívio: gramática, retórica e dialética; quatrí-
vio: aritmética, geometria, astronomia e música);
Para implementar seu projeto, Alcuíno escreveu vários manuais para o ensino
das artes liberais.
Nota-se, com esse breve relato, como o saber, durante todo esse período, foi
concentrado nas mãos das autoridades eclesiais, que não apenas controlavam,
mas também incentivavam, limitavam, redigiam estatutos, proibiam a leitura de
alguns textos etc. Nas universidades, surgiram sacerdotes e leigos aos quais a Igreja
confiou a tarefa de ensinar a doutrina, muitos deles advindos de camadas sociais
inferiores, fazendo com que a universidade, no seu início, fosse mais “popular”. É por
essa importância das escolas na manutenção da cultura medieval que esse período
é chamado de escolástica, em referência ao período, mas também ao congregado
de ideias e à organização sistemática do saber que vigoraram nesse tempo.
Esse debate sobre a relação entre fé e razão continuou até o século XIII, tempo
áureo da teologia e da filosofia cristã medieval, auge do primado do cristianismo,
cuja influência era marcante em toda a tradição cultural, social e política, dando
à Igreja e ao papado um preponderante papel de mediação entre o mundo e
Deus. Foi nesse tempo que o pensamento de Aristóteles ganhou importância,
sendo amplamente difundido. Sua novidade estava no fato de explicar racional-
mente o homem e o mundo, independentemente das verdades cristãs. Se até
então a filosofia estava reduzida à análise lógica das questões teológicas, e as
intuições platônicas e neoplatônicas eram “facilmente utilizáveis e harmonizá-
veis com o dado revelado” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 532), as ideias da física e da
metafísica aristotélica traziam novos desafios por serem de difícil conexão com
as verdades cristãs. A autonomia, o conteúdo próprio e as novas perspectivas
desses escritos acabaram por mostrar que a razão teria um âmbito independen-
te, com conteúdos próprios. Certamente, nesse cenário, o nome de Tomás de
Aquino merece destaque.
Domínio público.
São Tomás de Aquino.
5
Usaremos aqui a forma tradicional de citação da obra de Tomás de Aquino, que, no caso da Suma Teológica, tem esta organização: abreviatura do
título, número da parte em algarismos romanos, número da seção, número da questão, número do artigo, ou resposta (quando esses elementos
forem requisitados).
Como cabe a cada coisa a busca por sua origem, a busca pelo saber essen-
cial, então caberia ao homem buscar o saber em uma união com seu princípio
originário, que é Deus. Assim, origem e término, início e fim aparecem como
idênticos, já que Deus é criador-origem e, ao mesmo tempo, meta-fim da vida
humana. Se todas as coisas voltam a Deus, só o homem, por ser dotado de
razão, pode realizar esse retorno de forma explícita, e consumar aí a sua ânsia
pelo saber. Trata-se da imagem do círculo, como símbolo dessa perfeição: “o fim
último do ser humano consiste em conhecer a Deus” (Summa contra gentiles,
III, c. 25). Ora, é o conhecimento de Deus que dá condições para o alcance da
bem-aventurança, da felicidade. Assim, falar de busca pelo saber é falar de uma
busca pela felicidade, que é Deus. Aí coincidem a Filosofia e a mensagem dos
Evangelhos. Mas a felicidade plena não pode ser alcançada simplesmente pela
razão filosófica, de modo que Tomás de Aquino recorre à ideia de graça: só pela
fé o homem poderia contemplar a Deus e alcançar sua filosofia.
Textos complementares
Invocação ou louvor?
(AGOSTINHO, 1999, p. 37)
AGOSTINHO. Pois bem! E a força, não é ela aquela disposição da alma pela
qual nós desprezamos todos os dissabores e a perda das coisas que estão
sob nosso poder?
AGOSTINHO. Consideremos, pois, uma pessoa que possua essa boa von-
tade de que nossas palavras vêm proclamando a excelência, já há algum
tempo. Ela abraça-a a ela somente, com verdadeiro amor, nada possuindo
de melhor. Goza de seus encantos. Põe, enfim, seu prazer e sua alegria em
meditar sobre ela, considerando-a quanto é excelente e o quanto é impos-
sível ela lhe ser arrebatada. Isto é, ser-lhe subtraída, sem seu consentimento.
Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporá a todas as coisas que sejam
contrárias a esse único bem?
AGOSTINHO. Podemos deixar de crer que essa pessoa não esteja também
dotada de prudência, ela que vê a obrigação de desejar esse bem acima de
tudo e de evitar o que lhe é oposto?
Dicas de estudo
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: 1973. (Coleção Os Pensadores).
Atividades
1. Qual é o contexto no qual se insere a filosofia patrística, e qual o principal
desafio por ela enfrentado?
Gabarito
1. O momento histórico da patrística (assim chamada porque se trata de uma
filosofia desenvolvida pelos padres ou pais da Igreja – em latim, pater) coin-
cide com a expansão do cristianismo, a organização dos textos que forma-
riam a parte da Bíblia que se chama Novo Testamento e a organização das
verdades que guiariam a ação dos novos cristãos. Essa organização foi muito
importante porque o nascente cristianismo vinha sendo atacado por seus
adversários (entre os quais estão os pagãos e os judeus) e precisava se con-
solidar para o seu enfrentamento. Para tanto, foi realizado um trabalho de
organização, seleção e análise crítica de textos, que durou pelo menos três
séculos e garantiu a organização do cânon do Novo Testamento, assim como
o conhecemos em nossos dias, fixado no ano 367. Além disso, é preciso lem-
brar que no ano 313 o imperador Constantino promulgou o Edito de Milão,
no qual garantia a liberdade de culto, dando fim às sangrentas perseguições
promovidas contra os cristãos. Essa decisão fez com que o cristianismo ga-
nhasse um grande impulso e durante os dois séculos seguintes se manteve
um longo e frutuoso debate teórico, sempre concluído nos concílios da Igre-
ja. Assim, o principal desafio enfrentado pela Patrística foi garantir a organi-
zação teórica da nova fé e contribuir para o processo de expansão da religião
cristã.
Referências
AERTSEN, Jan A. Tomás de Aquino: por natureza, todas as pessoas anseiam pelo
saber. In: KOBUSCH, Theo (Org.). Filósofos da Idade Média: uma introdução. São
Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 249-268.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Segunda parte da Segunda parte – Ques-
tões 1-79. 2. ed. Porto Alegre/Caxias do Sul: Escola Superior de Teologia São Lou-
renço de Brindes/Sulina/Grafosul/Universidade de Caxias do Sul, 1980.
_____. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 7. ed. São Paulo: Paulus,
2007.
Francis Bacon
Domínio público.
O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci: o homem como medida de
todas as coisas, ocupando o centro de seu destino.
Talvez com um pouco menos de ênfase, essa mesma dinâmica que liga os
problemas e os métodos do passado e do presente também aparece na Filoso-
As primeiras são as verdades sagradas, reveladas por Deus aos homens por
meio dos profetas. São verdades inquestionáveis, que estão acima da capaci-
dade de compreensão do homem, são os dogmas que não se enquadram nos
princípios da lógica racional: Santíssima Trindade, Ressurreição etc.
Domínio público.
Guilherme de Ockham.
Essa estrutura dicotômica que opõe o divino ao natural, a razão à fé e a inte-
ligência à vontade, fornece a chave para o aparecimento, na modernidade, da
Teoria do Conhecimento, uma disciplina filosófica nascida para discutir a origem,
o alcance e os critérios de verdade na produção do conhecimento fundado nas
relações dicotômicas entre sujeito (consciência) e objeto (natureza). Assim, se a
razão é distinta da fé e é o verdadeiro fundamento do conhecimento filosófico,
a primeira tarefa dos pensadores modernos foi reconhecer e reafirmar a inde-
pendência e a autonomia da razão. Isso já havia sido originalmente proposto
por Guilherme de Ockham (1285-1347), o frade franciscano e filósofo escolástico
inglês, que foi um dos grandes anunciadores da filosofia moderna ao acentuar
a separação entre a filosofia e a teologia, a razão e a fé, atribuindo a cada uma
delas métodos e problemas específicos.
Bacon e o empirismo
Na sua obra mais famosa, Novum Organum, Francis Bacon forneceu lições
(procedimentos verdadeiros) para interpretar e dominar a natureza: “O homem,
ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela ob-
servação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não
sabe e nem pode mais” (BACON, 1999, p. 33).
Esse aforismo que abre o Novum Organum anuncia os caracteres mais signifi-
cativos da nova filosofia da modernidade, o empirismo.
Assim, Bacon abre a sua principal obra apresentando os três temas mais fun-
damentais da modernidade: o sujeito do conhecimento, o método e o alcance
da verdade.
mais ao acaso e às tentativas que à ciência [...] Tal como as ciências, de que ora
dispomos, são inúteis para a invenção de novas obras, do mesmo modo, a nossa
lógica é inútil para o incremento das ciências” (BACON, 1999, p. 34).
adquiridos
por meio da
experimentação
Domínio público.
Ídolos da tribo.
Ídolos da caverna.
Ídolos do teatro.
Finalmente, a última grande causa dos nossos erros é a autoridade dos sis-
temas de saber. Muito frequentemente, o homem aceita opiniões e ideias
como verdadeiras não em função da sua estrutura lógica ou dos seus predi-
cados metodológicos de verdade, mas sobretudo em função do autor des-
sas ideias. Assim, os ídolos do teatro têm suas causas na nossa disposição
ingênua de acreditar nos sistemas filosóficos, nas escolas de pensamento,
nos grandes pensadores: “São ídolos do teatro: por parecer que as filosofias
adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representa-
das que figuram mundos fictícios e teatrais” (BACON, 1999, p. 41).
Nessa obra, Descartes realiza, portanto, o projeto da sua vida filosófica: exa-
minar (passar em revista) todos os conhecimentos e, então, estabelecer as condi-
ções verdadeiras para o conhecimento científico. O racionalismo cartesiano, que
é o mais genuíno racionalismo moderno, está todo aí, nessa caminhada filosófi-
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., 169
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Como podemos conhecer? (Empirismo e racionalismo)
A primeira questão fundamental é que essa tarefa monumental não pode ser
realizada sem um método. E Descartes é o filósofo que elegeu a dúvida como
método, como processo desconstrutivo das crenças e opiniões, como defesa
contra a autoridade do senso comum e da tradição, e como método crítico
contra a ambiguidade dos sentidos e da percepção. Na perspectiva cartesiana
das Meditações, a filosofia deve começar pela dúvida. Porém, antes de publicar
as Meditações, seu autor já havia fixado as quatro regras do seu método para
bem orientar o processo de julgamento, conforme o Discurso do Método (1637):
Domínio público.
Descartes procura, antes de tudo, estruturar uma forma segura de pensar, isto é,
ele está, primeiramente, preocupado com o sujeito do conhecimento.
não estejamos nos iludindo? Nesse sentido, tudo é julgado falso simplesmente
porque é duvidoso. E assim termina a primeira das Meditações Metafísicas:
Suporei, pois, que não há um verdadeiro Deus, que é soberana fonte da verdade, mas um
certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda
a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e
todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para
surpreender a minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido
de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da
falsa crença de ter todas essas coisas. (DESCARTES, 1991, p. 170)
Domínio público.
O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode
ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se
apresentam ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição, encontram-se mudadas e,
no entanto, a mesma cera permanece. Talvez fosse como penso atualmente, a saber, que a cera
não era nem essa doçura do mel, nem esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem
essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me aparecia sob certas
formas e que agora me faz notar sob outras. (DESCARTES, 1991, p. 178)
Para Locke, no seu estágio inicial, a mente humana é como uma folha de
papel em branco. Seguindo as orientações gerais de Bacon, Locke entende que
a origem das ideias pode ocorrer de dois modos.
Primeiro, por nosso contato com os objetos exteriores. As ideias mais ele-
mentares, como as de sensação (amargo, preto, por exemplo), só podem
ter origem a partir da nossa experiência no mundo. Dificilmente podemos
formar a ideia do gosto amargo sem ter experimentado esse gosto em
algum momento determinado.
O segundo tipo de ideias se refere àquelas que nasceram a partir das ope-
rações da mente, como as ideias de reflexão.
Texto complementar
Dicas de estudo
BACON. Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da
Interpretação da Natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os
Pensadores).
Atividades
1. Explique a noção de ídolos, para o filósofo Francis Bacon.
Gabarito
1. No livro I do Novum Organum, Bacon apresenta a sua teoria dos ídolos, as
causas mais gerais e comuns que induzem os homens a aceitarem a aparên-
cia como verdade, racionando falaciosamente e continuando no caminho
do erro e do engano. Para Bacon, os ídolos são falsas noções, engodos que se
formam em nós em função da nossa condição individual, da nossa natureza,
do nosso comércio com os outros homens e, ainda, em função das relações
de autoridade e poder que regem a vida dos homens. Ele relaciona quatro
tipos de ídolos: da tribo, que têm sua origem na condição humana; da ca-
verna, cujos motivos estão no próprio indivíduo, como se todos os homens
tivessem, cada um a seu modo, uma caverna particular que os impedisse de
ver as coisas como são; do foro (ou do mercado), pois os homens erram por-
que se comunicam e ainda porque não conseguiram construir uma ciência
da linguagem; do teatro, pois muitos dos erros se devem à postura cômoda
e passiva dos homens, ao medo de reagir contra as verdades estabelecidas.
Referências
BACON. Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Inter-
pretação da Natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).
Montesquieu
A força
O pensamento de Nicolau Maquiavel (1469-1527) marca, na história da
Filosofia, o nascimento da ciência política moderna. Esse pensador floren-
tino introduziu no debate filosófico renascentista a análise da práxis políti-
ca. Seu novo modo de encarar a política está dado em uma das obras mais
controvertidas da Filosofia política: O Príncipe. Escrita em 1513, dedicada a
Lourenço II, soberano da dinastia dos Médici em Florença, à primeira vista
essa obra parece um manual de conduta política, destinado a orientar os
governantes sobre como conquistar e manter o poder.
Domínio público.
Mas podemos ler esse texto muito além dessa filiação manualesca, pois, além
de debater as formas do poder, rompendo com as perspectivas metafísicas e te-
ológicas sobre o tema, Maquiavel naturalizou, humanizou o poder e, por conse-
quência, abriu um novo campo de análise das ações políticas: o campo de forças
imanente às relações humanas. Porém, isso não quer dizer que Maquiavel tenha
uma visão romântica ou ingênua do poder: muito pelo contrário, naturalizar e
humanizar significam apenas tecer uma visão crua e objetiva dos elementos e
forças naturais que estruturam as relações de poder entre os homens. Tais ele-
mentos são significados pelas lutas e conflitos de interesses, pela oposição entre
os grandes, que desejam dominar, e os pequenos, uma grande maioria que
querem escapar à submissão pura e irrestrita. Assim, a violência está na origem
da política para Maquiavel e remonta ao domínio dos desejos, ambições e forças
humanas. Sobre isso, acompanhemos as suas palavras em O Príncipe:
Em todas as cidades acham-se essas duas tendências diferentes e isso vem do fato de que
o povo não quer ser governado nem oprimido pelos poderosos, e estes desejam governar
e oprimir o povo. Desses dois apetites distintos origina-se, nas cidades, um dos seguintes
resultados: principado, liberdade e desordem. (MAQUIAVEL, 1999, p. 73)
O direito político
Principal teórico contratualista, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) estabele-
ceu dois princípios que devem determinar as relações políticas de poder, o par de
oposições soberano e súdito.
Domínio público.
Primeiro, a única forma legítima de fundar uma obra civil e política é por meio
de um contrato, somente com um pacto social podemos considerar a origem de
um poder normatizador da vida social.
Mas, em um segundo plano, é preciso aceitar que todo poder político fun-
dado no pacto social deve preservar os direitos capitais dos homens: liberdade
e igualdade. Portanto, os pactos sociais não apenas estabelecem regras, mas
devem ser estruturados de acordo com fundamentos (direitos naturais) anterio-
res à vida civil.
Mas essa ideia de Rousseau, de que para entender “o que direito permite” é
preciso tomar os homens como são, não o aproxima de Maquiavel? Não foi o te-
órico florentino que “humanizou o poder” quando estabeleceu as condições ex-
plicativas do poder a partir das relações de conflito e dos jogos de interesses dos
homens? Para entender essa relação ambígua do pensamento rousseauniano
com o pensamento de Maquiavel, é preciso refazer o itinerário da obra política
de Rousseau.
Sucintamente, podemos dizer que esse itinerário abrange três fases, que se
complementam:
Crítica à sociabilidade
A primeira etapa do pensamento político rousseauniano remonta à obra Dis-
curso Sobre as Ciências e as Artes, escrita em 17491, estreia de Rousseau no mundo
das letras, marcando o seu diagnóstico negativo acerca da vida, da cultura e da
política construídos historicamente. Com poucas exceções, de tempos e lugares,
esse primeiro Discurso de Rousseau traça um retrato crítico do homem sociabi-
lizado, das instituições políticas, do sistema de educação e do nefasto papel das
artes e das ciências na vida moral dos homens. Esse diagnóstico negativo está
assentado na ligação essencial entre a corrupção moral, a vida social e a política.
Por meio do simulacro e da aparência, os homens mascaram as suas verdadei-
ras intenções, não porque sejam propositadamente falsos, mas precisamente
porque já não se encontram em condições de ser sinceros, isto é, a sociabilidade
não lhes confere liberdade para tanto, como bem estabelece o texto do Discurso
Sobre as Ciências e as Artes:
Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a princípios a arte de
agradar, reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa, e parece
que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez impõe, o
decoro ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o próprio gênio. Não se ousa mais
parecer tal como se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado
sociedade, nas mesmas circunstâncias, farão todas as mesmas coisas desde que motivos mais
poderosos não os desviem. (ROUSSEAU, 1978, p. 336)
Ao juízo que ajuda a fomentar a desigualdade está ligado aquele que leva os
homens a se persuadirem a viver pacificamente, sem a condição de serem livres.
Na sua época, Rousseau se deparava com uma sociedade, uma ordem civil que
exercia um verdadeiro poder regulador, normatizador das preferências e das
ações dos homens. Ali, ousar parecer realmente o que se é significava se excluir
de toda e qualquer sociabilidade, daí a impossibilidade de agir com liberdade:
os homens já estão como que moldados internamente, o gosto reflete a polidez
dos costumes e os julgamentos encontram-se submetidos a uma moralidade
abjeta na qual os homens não distinguem o falso do verdadeiro: “Se a cultura
das ciências é prejudicial às qualidades guerreiras, ainda o é mais as qualidades
morais. Já desde os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso espírito
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Somos livres? (Maquiavel e Rousseau)
Os homens são criticados tanto pelo que pensam e sentem quanto pela forma
como se comunicam e agem. Há uma cumplicidade entre o discurso do homem
sociabilizado e uma intenção que, apesar de não ser a mesma do homem natu-
ral do segundo Discurso, faz o homem social, separado da sua essência, parecer
único. A transparência perdida não se refere fundamentalmente à impossibili-
dade de reconhecer os sentimentos e as intenções do semelhante na sua fala,
no seu comportamento em geral, mas à impossibilidade de o próprio sujeito
reconhecer os seus mais naturais e verdadeiros sentimentos. Tais sentimentos
estão sufocados pela dissolução dos costumes, pela corrupção do gosto, pela
ditadura da opinião pública.
Domínio público.
Edição holandesa do Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Ho-
mens, assinada por Jean-Jacques Rousseau, cidadão de Genebra.
o justo do injusto. Ele ignorava vícios porque não tinha virtudes. Não era mau
porque, precisamente, não era bom. Isso pelo menos quando pensamos nesses
termos enquanto categorias de uma ordem ética que, segundo interpretação
que remonta a Aristóteles, pressupõe a ação boa, justa ou injusta sendo eviden-
ciada apenas quando é escolhida por um sujeito livre, responsável, motivado
por uma boa vontade guiada por sua razão, a qual se sobrepõe à consciência
diante das inclinações naturais do sujeito. Somente quando o sujeito consegue
dominar seus desejos e apetites naturais, e desse modo evitar a concupiscência
e a irascibilidade, torna-se possível estabelecer o que Aristóteles entende por
meio-termo e, finalmente, conquistar a excelência moral, algo que não está natu-
ralmente presente nos homens:
A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações
e emoções, disposição esta consistente num meio-termo (o meio-termo relativo a nós)
determinado pela razão (razão graças a qual um homem dotado de discernimento o
determinaria). (ARISTÓTELES, 1992, p. 42)
Domínio público.
A solução desse problema está na
realização de um contrato social entre
todos os particulares. À primeira vista,
uma solução contraditória, pois consis-
te em evocar como ato fundamental a
necessidade da alienação total de cada
contratante, a renúncia da liberdade e
das vontades particulares de cada indiví-
duo em favor de uma nova soberania. A
associação que procura conciliar o que o
direito natural prescreve junto à ordem
civil traz no movimento que leva à ins-
tauração do pacto social essa exigência
de caráter primordial, desse modo tor-
nando possível que uma autoridade es-
tabelecida por convenções seja legítima.
Rousseau conclama a alienação sem re-
servas de cada contratante como sendo
o único modo de garantir uma condição
Folha de rosto de Do Contrato Social, ou Princí-
igual para todos, não restando quais- pios de Direito Político, publicado na Holanda,
quer direito ou vontade particular – que em 1762.
seriam a causa da ruína do pacto –, mas somente um corpo moral comum a
todos, constituído a partir do interesse particular de cada associado, visando, no
entanto, somente ao bem público.
Com Do Contrato Social tudo será diferente. O que Rousseau manifesta na sua
obra política é uma revolução sem precedentes históricos, os homens não serão
mais os mesmos depois de aderirem ao pacto social e as novas instituições pú-
A tese fundamental da vontade geral é que ela não se forma pela simples
soma (agregação) de vontades particulares, mas, muito pelo contrário, surge em
virtude da união dessas vontades particulares, que, dirigidas para um único ob-
jetivo (assegurar a liberdade e a igualdade) conseguem, em um espaço público,
estabelecer um bem que é comum a todos. Não é mais um contrato nos moldes
daquele estabelecido entre o rico e o pobre, como o que foi narrado no Discur-
so Sobre a Desigualdade, com a associação visava apenas garantir as posses do
primeiro. No ato de alienação, proposto por Do Contrato Social, não se trata de
sobrepujar a liberdade, pois os cidadãos não a perdem, mas a deixam segura sob
a direção de um corpo soberano que não é estranho a eles.
Ainda nos termos de Rousseau, a vontade geral não encarna apenas prin-
cípios racionais e objetivos que procuram, por exemplo, conservar a vida e a
paz: muito mais que isso, ela manifesta os estreitos laços entre direito natural e
máximas universais. Na medida em que não distingue indivíduos (desse modo
garantindo a igualdade), a vontade geral se constitui por meio de vontades par-
ticulares e expressa, por suas normas, somente o desejo universal de homens
que se reuniram em torno dela. Percebe-se, assim, que se deixar guiar por suas
leis significa agir moralmente e com liberdade.
Texto complementar
[...]
[...]
A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família. As
crianças apenas permanecem ligadas ao pai o tempo necessário que dele
necessitam para a sua conservação. Assim que cesse tal necessidade, dissol-
ve-se o laço natural. As crianças, eximidas da obediência devida ao pai, o pai
isento dos cuidados devidos aos filhos, reentram todos igualmente na inde-
pendência. Se continuam a permanecer unidos, já não é naturalmente, mas
voluntariamente, e a própria família apenas se mantém por convenção.
Esta liberdade comum é uma consequência da natureza do homem. Sua
primeira lei consiste em proteger a própria conservação, seus primeiros cui-
dados os devidos a si mesmo, e tão logo se encontre o homem na idade da
razão, sendo o único juiz dos meios apropriados à sua conservação, torna-se
por si seu próprio senhor. É a família, portanto, o primeiro modelo das socie-
dades políticas; o chefe é a imagem do pai, o povo a imagem dos filhos, e
havendo nascido todos livres e iguais, não alienam a liberdade a não ser em
troca da sua utilidade. Toda a diferença consiste em que, na família, o amor
do pai pelos filhos o compensa dos cuidados que estes lhe dão, ao passo
que, no Estado, o prazer de comandar substitui o amor que o chefe não sente
por seus povos.
Grotius nega que todo poder humano seja estabelecido em favor dos
governados. Sua mais frequente maneira de raciocinar consiste sempre em
estabelecer o direito pelo fato. Poder-se-ia empregar um método mais con-
sequente, não porém mais favorável aos tiranos. É, pois, duvidoso, segun-
do Grotius, saber se o gênero humano pertence a uma centena de homens,
ou se esta centena de homens é que pertence ao gênero humano, mas ele
parece pender, em todo o seu livro, para a primeira opinião. É este também o
sentimento de Hobbes. Eis assim a espécie humana dividida em rebanhos de
gado, cada qual com seu chefe a guardá-la, a fim de a devorar. Assim como
um pastor é de natureza superior à de seu rebanho, os pastores de homens,
que são seus chefes, são igualmente de natureza superior à de seus povos.
Desta maneira raciocinava, no relato de Fílon, o imperador Calígula, con-
cluindo muito acertadamente dessa analogia que os reis eram deuses, ou
que os povos eram animais. O raciocínio de Calígula retorna ao de Hobbes
e ao de Grotius. Aristóteles, antes deles todos, tinha dito que os homens
não são naturalmente iguais, e que uns nascem para escravos e outros para
dominar. Aristóteles tinha razão, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo
homem nascido escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escra-
vos tudo perdem em seus grilhões, inclusive o desejo de se livrarem deles;
apreciam a servidão, como os companheiros de Ulisses estimavam o próprio
embrutecimento. Portanto, se há escravos por natureza, é porque houve es-
cravos contra a natureza. A força constituiu os primeiros escravos, a covardia
os perpetuou. Eu nada disse do rei Adão, nem do imperador Noé, pai de três
grandes monarcas que partilharam entre si o Universo, como o fizeram os
filhos de Saturno, nos quais se acreditou reconhecer aqueles. Espero que me
agradeçam por esta moderação, porque, descendente que sou de um desses
príncipes, quiçá do ramo mais velho, quem sabe se, pela verificação dos tí-
tulos, eu não me sentiria de algum modo como o legítimo rei do gênero
humano? Seja como for, não se pode deixar de convir em que Adão não foi
soberano do mundo como Robinson o foi em sua ilha, enquanto permane-
ceu o único habitante; e o que havia de cômodo nesse império era o fato de
que o monarca, seguro em seu trono, não tinha a recear nem rebeliões, nem
guerras, nem conspirações.
[...]
O mais forte não é nunca assaz forte para ser sempre o senhor, se não
transforma essa força em direito e a obediência em dever. Daí o direito do
mais forte, direito tomado ironicamente na aparência e realmente estabe-
lecido em princípio. Mas explicar-nos-ão um dia esta palavra? A força é uma
potência física; não vejo em absoluto que moralidade pode resultar de seus
efeitos. Ceder à força constitui um ato de necessidade, não de vontade; é no
máximo um ato de prudência. Em que sentido poderá ser um dever? Imagi-
nemos um instante esse suposto direito. Eu disse que disso não resulta senão
um galimatias inexplicável; porque tão logo seja a força a que faz o direito, o
efeito muda com a causa; toda força que sobrepuja a primeira sucede a seu
direito. Assim que se possa desobedecer impunemente, pode-se fazê-lo legi-
timamente, e, uma vez que o mais forte sempre tem razão, trata-se de cuidar
de ser o mais forte. Ora, que é isso senão um direito que perece quando cessa
a força? Se é preciso obedecer pela força, não é necessário obedecer por
dever, e se não mais se é forçado a obedecer, não se é a isso mais obrigado.
Vê-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta à força; não significa aqui
coisa nenhuma. Obedecei aos poderosos. Se isto quer dizer: cedei à força, o
preceito é bom, mas supérfluo; eu respondo que ele jamais será violado. Toda
potência vem de Deus, confesso-o; mas toda doença igualmente vem dele:
quer isto dizer que se não deva chamar o médico? Quando um assaltante me
surpreende no canto de um bosque, sou forçado a dar-lhe a bolsa; mas no
caso de eu poder subtraí-la, sou em sã consciência obrigado a entregar-lha?
Afinal a pistola que ele empunha é também um poder. Convenhamos, pois,
que força não faz direito, e que não se é obrigado a obedecer senão às auto-
ridades legítimas. Assim, minha primitiva pergunta sempre retorna.
[...]
Dicas de estudo
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. In: ____. O Príncipe/Escritos Políticos. São
Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).
Atividades
1. Explique, de modo geral, como Nicolau Maquiavel concebe a origem do po-
der político.
Gabarito
1. Maquiavel construiu uma visão crua e objetiva dos elementos e forças natu-
rais, que estruturam as relações de poder entre os homens. Esses elementos
são significados pelas lutas e conflitos de interesses, pela oposição de forças
entre os grandes que desejam dominar e os pequenos, uma grande maioria
que querem escapar à submissão pura e irrestrita. Assim, a violência está na
origem da política, para Maquiavel, e remonta ao domínio dos desejos, am-
bições e forças humanas. A reflexão política de Maquiavel não coloca a ques-
tão do direito de ter ou de exercer o poder, não discute as condições legíti-
mas de soberania. Para Maquiavel, a soberania resulta do próprio poder, está
estruturada nos elementos naturais e históricos que separam os homens em
dominantes e dominados. Um soberano é soberano porque tem ou dispõe
do poder em função de uma correspondência de fatos:
todo poder político fundado no pacto social deve preservar os direitos capi-
tais dos homens: liberdade e igualdade. Assim, os pactos sociais não apenas
estabelecem regras, mas também devem ser estruturados de acordo com
fundamentos (direitos naturais) anteriores à vida civil. Somente por meio do
estudo do homem, do estudo de um fundamento antropológico, podemos
encontrar as verdadeiras referências que devem balizar a obra política, pois
essa obra se destina ao próprio homem. Se a ordem social estabelece direi-
tos por meio de convenções, o homem, por sua vez, aparece como a medida
de todas essas convenções, conferindo sentido, sendo a fonte das regras da
obra política. Assim, antes de analisar como se processará a constituição da
ordem civil, ou ainda antes de examinar como se regulamentarão as diversas
relações entre os cidadãos, convém estudar e compreender o próprio ho-
mem.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Universidade de Brasília, 1992.
Immanuel Kant
1
Enquanto escrevemos este texto, folheando obras de Kant traduzidas por Valério Rohden, celebramos o sétimo dia de seu falecimento,
em Curitiba, depois de ter atuado durante dois anos como professor colaborador do programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR), onde trabalhava na tradução dos escritos antropológicos do filósofo alemão. Ao professor Valério,
dedicamos este capítulo, como homenagem por sua jovialidade, amizade e testemunho de compromisso com a filosofia em nosso país.
Domínio público.
Retrato de Kant. Gravura de J. L. Raab, a partir de
trabalho de Döbler.
Instigado por essas questões, Kant levou a cabo uma das obras mais funda-
mentais da filosofia, uma contribuição decisiva para se pensar os problemas
modernos, no que concerne não só ao conhecimento mas também à moral e
à estética. Suas perguntas revelam a densidade da problemática e a coragem
filosófica de seu empreendimento:
O que é o homem?
Trataremos, aqui, das duas primeiras questões, que guiam o filósofo por um
projeto de crítica aos limites da razão, para que ela não seja mais uma razão “in-
gênua”, mas que defina os seus próprios limites. Trata-se do projeto iluminista,
de uma razão esclarecida sobre si mesma e sobre o seu alcance. Nesse sentido,
Kant implementa um projeto para que a razão saia fortalecida.
Ora, o tema da natureza aparece como um dos mais centrais de toda a mo-
dernidade, no que diz respeito não só à filosofia, mas também à física e à cosmo-
logia, dada essa ruptura com o pensamento antigo e medieval implementada
por Newton (em relação a quem Kant não estava, de maneira alguma, alheio),
mas antes dele por Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642). A
natureza que se ergue dessas “revoluções” não é mais aquela ordenada e harmô-
nica das cosmogonias ou cosmologias antigas, mas uma nova visão baseada em
colisões de forças. Antes fechado e pacífico, o mundo se revelava então aberto e
infinito, muito mais complexo e diverso do que se imaginava, além de dependen-
te de uma atividade humana de síntese que lhe desse algum ordenamento. Um
todo finito dava lugar a um cosmo indefinido e infinito que, nessa medida, não
servia mais como princípio ético, tal como havia sido proposto, por exemplo, pelo
estoicismo2: inanimada e arreligiosa, a natureza já não servia como guia, mas es-
perava, passivamente, por alguma significação externa. Sem a referência da natu-
reza, era na razão que o homem encontraria o ordenamento antes localizado no
mundo natural. O bem não estava mais no mundo, mas a ele precisaria ser levado
pela razão humana. A natureza mesma parecia eticamente neutra e amoral.
2
Uma das correntes filosóficas chamadas helenistas. Fundado por Zenão de Cítio, o estoicismo teve grandes seguidores em Roma, Entre os quais
Marco Aurélio, Sêneca, Epíteto e Lucano. Sua tese principal afirmava que o universo é formado por um logos divino que ordena todas as coisas
segundo uma harmonia (kosmos) que deveria ser seguida pelo homem em termos morais. Por isso, o homem deveria viver segundo a lei natural
do mundo, buscando uma indiferença (apathia) em relação a todos os agentes externos, mantendo a serenidade frente a todos os acontecimentos
vitais.
Domínio público.
mo anunciados como novos métodos
científicos?
Do segundo tipo são os juízos que derivam de uma síntese, e nos quais há
uma união do conceito colocado no predicado com aquele que está no sujeito.
4
“Denomino puras (em sentido transcendental) todas as representações em que não for encontrado nada pertencente à sensação. Consequente-
mente, a forma pura de intuições sensíveis em geral, na qual todo o múltiplo dos fenômenos é intuído em certas relações, será encontrada a priori
na mente. Essa forma pura da sensibilidade também se denomina ela mesma intuição pura” (KANT, 1996, p. 72).
Exemplo: quando afirmo que “os corpos são musculosos”, coloco sobre o sujeito
(corpo) um predicado novo (musculosos).
Como logo se pode notar, Kant não tarda a concluir que o primeiro tipo de
juízo não acrescenta nada, e apenas o segundo faz o conhecimento progredir.
Portanto, como resultado de seu trabalho, Kant promove uma conciliação dos
dois polos, aparentemente opostos, ao afirmar o terceiro tipo de juízo, o juízo
sintético a priori – e é essa a principal questão de sua teoria do conhecimento,
tese pela qual ele junta a universalidade dos juízos com a sua necessidade, via
pela qual é possível falar em progresso e avanço do conhecimento. Dando uma
resposta aos problemas de seu tempo, as três questões enfrentadas pelo filósofo
alemão podem ser assim reformuladas:
5
Tautológica é uma proposição em que o predicado apenas repete o que já está no sujeito, tendo uma perspectiva pejorativa, já que parece expli-
car, quando na verdade, nada diz – ou diz o mesmo duas vezes.
que sobreviveria mesmo que as demais fossem tragadas pelo abismo de uma barbárie que a
tudo exterminasse. Pois a razão emperra continuamente na metafísica mesmo quando quer
discernir a priori (como se arroga) aquelas leis que a experiência mais comum confirma. (KANT,
1996, p. 38)
O que Kant enfrenta como desafio é analisar esses limites da metafísica, desco-
brindo que muitas das suas afirmações são vazias de sentido e não levam a nada,
vindo a ser constituída como um “campo de batalha”, no qual ninguém alcançou
vitória até então, já que nenhum jogador foi capaz de manipular as peças de
forma satisfatória. Por isso, o objetivo apresentado por Kant é o de “transformar
o procedimento tradicional da metafísica e promover através disso uma com-
pleta revolução da mesma, segundo o exemplo dos geômetras e investigações
da natureza” (KANT, 1996, p. 41). Em outras palavras, fazer na metafísica o que foi
realizado na matemática e na física. Autointitulada “tratado do método”, a Crítica
da Razão Pura não é um “sistema de ciência”, mas um estudo metodológico que
traça o contorno da ciência a partir da uma análise da sua “viabilidade interna”.
Sua crítica é dirigida, portanto, ao dogmatismo, isto é, “à pretensão de progredir
apenas com um conhecimento puro a partir de conceitos (o filosófico) segundo
princípios há tempos usados pela razão, sem se indagar contudo de que modo e
com que direito chegou a eles” (KANT, 1996, p. 47).
Domínio público.
Para Kant, é só no âmbito da moral que a razão pode mostrar o seu valor prin-
cipal. É ela que ajuda a responder à questão sobre O que devo fazer? E afirma que
“as leis morais têm que ter um fundamento. O único fundamento que sobra para
elas é a razão. Esta não mora nem no céu nem na terra” (BITTNER apud ROHDEN,
2008, p. 14). A razão prática organiza a ação segundo um dever, que passa a ser
determinado por máximas que podem ser transformadas em leis válidas para
qualquer sujeito racional. Assim, toda ação, desde que cumprida por dever, al-
cança o caminho do bem e pode ser considerada moral. E isso ocorre justamen-
te porque ela não está amparada em nenhum elemento sensível ou empírico,
mas naquilo que Kant chama de imperativo categórico, cuja expressão mostra a
vitória da razão sobre os dados sensíveis coletados, por exemplo, pelas inclina-
ções, paixões e instintos. O imperativo categórico distingue-se de um imperativo
hipotético porque está desvinculado de qualquer condição. Por isso, ele é for-
mulado da seguinte maneira: “Age de tal maneira que o motivo que te levou a
agir possa ser convertido em lei universal” (KANT, 2002, p. 51). Esse imperativo
contém apenas uma forma geral da razão, não está condicionado por qualquer
experiência sensível e, portanto, nele a razão pura se revela por si mesma, práti-
ca, dando ao homem a lei moral:
Em suma, o imperativo categórico afirma a autonomia da vontade como único princípio de
todas as leis morais e essa autonomia consiste na independência em relação a toda a matéria
da lei e na determinação do livre-arbítrio mediante a simples forma legislativa universal de que
uma máxima deve ser capaz. (KANT, 1996, p. 15)
No âmbito da moral, a razão domina, já que o sujeito não deve agir simples-
mente porque sente ou porque gosta, mas por respeito à lei moral, derivada racio-
nalmente e portadora de um absoluto poder legislativo.
Kant, portanto, não é ingênuo: ele sabe que o homem pertence a dois domí-
nios – o reino da razão e o reino da natureza. No primeiro, quem governa é a li-
berdade; no segundo, a necessidade. No primeiro, há possibilidade de escolhas;
230 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
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Até onde podemos conhecer? (Kant)
Como a moral pertence ao primeiro reino, o da razão, Kant conclui que a li-
berdade só pode ser exercida no campo da moral, que não é um resultado da
coerção, mas da postulação da liberdade. Assim, a liberdade é um postulado da
razão prática, posicionada ao lado de outros dois: a imortalidade da alma e a
existência de Deus (que garante a harmonia entre virtude e felicidade no além).
Por isso, afirma Kant, a respeito de sua própria tarefa:
É justamente nestes últimos conhecimentos, que se elevam acima do mundo sensível, onde a
experiência não pode dar nem guia nem correção, residem as investigações de nossa razão que
pela sua importância consideramos muito mais eminentes e pelo seu propósito último muito
mais sublimes do que tudo o que o entendimento pode apreender no campo dos fenômenos;
mesmo sob o perigo de errar, nisto arriscamos antes tudo a dever desistir de tão importantes
investigações por uma razão qualquer de escrúpulo, de menosprezo ou de indiferença. Esses
problemas inevitáveis da própria razão pura são Deus, liberdade e imortalidade. A ciência,
porém, cujo propósito último está propriamente dirigido com todo o seu aparato só à solução
desses problemas denomina-se metafísica; o procedimento desta é de início dogmático, ou seja,
assume confiantemente a sua execução sem um exame prévio da capacidade ou incapacidade
da razão para um tão grande empreendimento. (KANT, 1996, p. 56, grifos do autor)
Note-se bem: esses três postulados não podem ser alcançados de forma sen-
sível (por isso mesmo são postulados). Chega-se, assim, a três afirmações que
nenhuma metafísica anterior alcançou, porque não foi capaz de analisar criti-
camente os limites da razão. Para Kant, é o conceito de liberdade que deve ser
entendido como o
[...] fecho de abóbada de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão
especulativa e todos os demais conceitos (os de Deus e de imortalidade), que permanecem
sem sustentação nesta última como simples ideias, seguem-se agora a ele e obtêm com ele
e através dele consistência e realidade objetiva, isto é, a possibilidade dos mesmos é provada
pelo fato de que a liberdade efetivamente existe; pois esta ideia manifesta-se pela lei moral.
(KANT, 2008, p. 4, grifos do autor)
Por isso, para Kant, é no reino moral que devem ser encontrados os funda-
mentos dos conceitos de Deus, liberdade e imortalidade.
Sobre a liberdade, tema central dessa análise, Kant distingue uma concepção
psicológica e outra transcendental, mostrando que o segundo uso mostra a sua
“total incompreensibilidade, como conceito problemático no uso completo da
razão especulativa” (KANT, 2008, p. 12, grifo do autor).
Domínio público.
Kant, na sua caminhada diária por Köni-
gsberg, sua cidade natal, e onde sempre
viveu, segundo desenho de Puttrich.
Para isso, Kant recorre à noção de boa vontade presente no homem. A liber-
dade mostra que o homem não está aprisionado a algum código natural deter-
minista, mas é um ser moral com capacidade de furtar-se ao emaranhado de
inclinações que formam o seu estado fisiobiopsicológico. A liberdade, “se ela nos
é atribuída, transporta-nos a uma ordem inteligível das coisas” (KANT, 2008, p.
68). Como parte da natureza suprassensível, a liberdade segue “leis que são in-
dependentes de toda a condição empírica, que, por conseguinte, pertencem à
autonomia da razão pura” (KANT, 2008, p. 69, grifo do autor).
A lei que rege essa realidade inteligível é a lei moral: “Mas a lei dessa auto-
nomia é a lei moral, que é, portanto, a lei fundamental de uma natureza supras-
sensível e de um mundo inteligível puro” (KANT, 2008, p. 70). A ideia de uma
natureza não dada empiricamente é, “contudo, possível pela liberdade, por con-
seguinte de uma natureza suprassensível à qual conferimos realidade objetiva
pelo menos numa perspectiva prática, porque enquanto entes racionais puros a
consideramos objeto de nossa vontade” (KANT, 2008, p. 71).
6
Aqui é necessário notar a grande influência das ideias do filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) sobre Kant, seja no que tange à concepção
geral de uma antropologia, seja no tocante à noção de perfectibilidade (capacidade humana de se aperfeiçoar durante a vida, guiado pela natureza),
muito semelhante à ideia de liberdade tal como tematizada no texto kantiano.
Textos complementares
que não é nenhuma parte de um todo ainda maior da mesma espécie (per-
fectissimum). Que a virtude (como merecimento a ser feliz) seja a condição
suprema de tudo o que possa parecer-nos sequer desejável, por conseguinte
também de todo o nosso concurso à felicidade, portanto seja o bem supre-
mo, foi provado na analítica. Mas nem por isso ela é ainda o bem completo
e consumado, enquanto objeto da faculdade de apetição de entes finitos
racionais; pois para sê-lo requer-se também a felicidade e, em verdade, não
apenas aos olhos facciosos da pessoa que se faz a si mesma fim, mas até
no juízo de uma razão imparcial que considera aquela felicidade em geral
no mundo como fim em si mesma. Pois ser carente de felicidade e também
digno dela, não pode coexistir com o querer perfeito de um ente racional
que ao mesmo tempo tivesse todo o poder, ainda que pensemos um tal ente
apenas a título de ensaio. Ora, na medida em que virtude e felicidade consti-
tuem em conjunto a posse do sumo bem em uma pessoa, mas que com isso
também a felicidade, distribuída bem exatamente em proporção à moralida-
de (enquanto valor da pessoa e do seu merecimento de ser feliz), constitui
o sumo bem de um mundo possível, assim este sumo bem significa o todo,
o bem consumado, no qual, contudo, a virtude é sempre, como condição, o
bem supremo, porque ele não tem ulteriormente nenhuma condição acima
de si, enquanto a felicidade, sem dúvida, é sempre algo agradável ao que a
possui, mas não algo que é por si só, absolutamente e sob todos os aspectos,
bom, porém pressupõe sempre como condição a conduta legal moral.
Dica de estudo
FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três Críticas. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
Atividades
1. Explique o contexto histórico em que Kant está inserido e mostre como ele
contribuiu para o levantamento da sua problemática filosófica.
Gabarito
1. Kant viveu no século XVIII e foi um dos pensadores mais importantes do movi-
mento chamado Iluminismo, momento no qual a filosofia pretendeu fazer uma
análise da razão para descobrir até onde as suas afirmações eram válidas. Nesse
sentido, as novas “verdades” da ciência a respeito da natureza evocavam uma
nova postura da razão frente ao mundo, já que elas reivindicavam a legitimida-
de de ciência. De um lado, havia as novidades da geometria analítica de René
Descartes e, de outro, o cálculo infinitesimal de Newton (1642-1727) e Leibniz
(1646-1716). Newton havia alcançado resultados marcantes no âmbito da físi-
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Até onde podemos conhecer? (Kant)
Depois disso, ele identifica uma segunda distinção: existem os juízos que são
analíticos e aqueles que são sintéticos. Além dos juízos chamados de analíticos
(que são a priori) e dos juízos sintéticos a posteriori, Kant inova ao afirmar que
existem também os juízos sintéticos a priori, no qual se encaixam as noções
de espaço e de tempo, que são as duas formas a priori da sensibilidade. Só
pela via desse terceiro tipo de juízo é possível falar em progresso e avanço do
conhecimento. A partir das ideias do espaço e do tempo, todos os fenômenos
do mundo passam a ser percebidos pelo espírito humano a partir das chama-
das categorias do entendimento, organizadas em 12 tipos de juízos possíveis,
divididos em quatro grupos de três: juízos de quantidade (universais, particu-
lares e singulares); de qualidade (afirmativos, negativos e indefinidos); de rela-
ção (categóricos, hipotéticos e disjuntivos); e de modalidade (problemáticos,
assertórios e apodíticos). As categorias resultantes dessa organização seriam
unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância,
causa, comunidade, possibilidade, existência e necessidade.
Referências
FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três Críticas. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Cole-
ção Os Pensadores).
_____. Viver segundo a ideia de natureza. In: BORGES, Maria de Lourdes Alves;
HECK, José (Orgs.). Kant: liberdade e natureza. Florianópolis: UFSC, p. 233-248.
Deus continua morto! E nós o matamos! [...] A grandeza desse ato não é demasiado
grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer
dignos dele?
Friedrich Nietzsche
O século da suspeita
O século XIX foi, sem dúvida, um período muito tenso da história
humana. Basta lembrar os nomes dos principais autores e os títulos das
principais obras desse período, e já temos uma ideia do quão doloroso
fora esse tempo, não à toa batizado de A Hora dos Assassinos1 pelo escri-
tor Henry Miller (1891-1980). Esse título remete não apenas ao seu estudo
sobre o poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), mas também serve
de baliza para a compreensão desse que foi um período marcado por
uma grande crise de sentido, pela morte da crença na verdade absoluta,
pelo desânimo em relação à razão iluminista do século anterior. Portan-
to, um tempo de falência dos empreendimentos teóricos que até então
deram sustentação à cultura ocidental, como o racionalismo, o iluminis-
mo e mesmo as promessas do cristianismo. Crise dos fundamentos, frag-
mentação da razão, pessimismo e descrença são as marcas desse tempo
que, consequentemente, também experimentou uma crise ética que, em
última instância, é uma crise sobre o sentido da própria vida: se os funda-
mentos que davam sentido à existência foram aos poucos esboroando sob
os olhos da civilização ocidental, o que fazer? Ainda resta alguma meta na
vida? Para onde seguir? Como suportar essa falta de sentido e essa crise
sem tamanho quando compreendemos que o ser humano é caracteriza-
do, justamente, pela capacidade de dar um sentido à sua vida? E se os
sentidos extramundo, metafísicos e suprassensíveis perderam valor, o que
ainda resta ao ser humano fazer, trancafiado que está no âmbito da mera
imanência, do físico, do concreto, do mundano? É possível viver assim?
1
Título da obra de Miller sobre o poeta simbolista francês Arthur Rimbaud (um dos ícones da poesia moderna), que viveu no final do
século XIX e cuja principal obra se chama Uma Temporada no Inferno – mais uma referência à “crise de sentido” vivida pelos autores
desse século.
Domínio público.
O jovem Friedrich Nietzsche, em 1861.
Essas perguntas fundam uma nova perspectiva cultural, que passa a exigir da
filosofia uma reflexão profunda. Na página final de seu livro, Henry Miller lista
alguns dos títulos desse século, entre os quais estão vários livros do pensador
alemão Friedrich Nietzsche, sem dúvida o principal filósofo desse tempo con-
turbado. Nietzsche escreveu, por exemplo, O Nascimento da Tragédia, Crepús-
culo dos Ídolos e O Anticristo, para citar apenas três livros representativos. Sem
dúvida, ele foi o filósofo que enfrentou de maneira mais corajosa esse problema
e tentou traduzir, em sua filosofia, o diagnóstico dessa crise, fazendo-se, como
ele mesmo promulga, um “médico da cultura”2. Friedrich Nietzsche esteve atento
às mudanças culturais e às transformações morais, religiosas e políticas de seu
tempo. Ele se anunciava como um “extemporâneo” justamente por ter consegui-
do olhar para seu tempo sem sair dele, impregnado de sua própria crise. Para o
filósofo, estar doente é o primeiro passo para alcançar a cura. Como médico, o
2
Nietzsche usa essa expressão (der Philosoph als Arzt der Kultur) desde os escritos de juventude, como atesta um fragmento póstumo de 1872-1873
(NIETZSCHE, 1994, KSA VII, 23 [15], p. 545, tradução nossa). A expressão seria contraposta ao filósofo como “envenenador da cultura” (der Philosoph
der Giftmischer der Kultur), identificado em Platão, aquele que teria envenenado a cultura com a moral da condenação dos instintos. (Estamos
usando, além da indicação do autor e do ano, a sigla KSA – abreviatura de Kritische Studienausgabe Herausgegeben, “Edição crítica” – com os dados
do fragmento citado e o número da página do volume indicado, bem como a data do fragmento, segundo a prática comum entre os intérpretes
de Nietzsche.)
diagnóstico parecia claro: é preciso reconhecer a doença para ser possível emitir
algum tipo de receita – ou, melhor ainda, conviver com a doença sem precisar
de nenhum remédio.
A crise niilista
Assim, na língua dramática e labiríntica da filosofia nietzschiana, encontra-se
um dos conceitos que mais resumem a crise desse século: o conceito de niilismo3,
que foi tematizado pelo autor ao longo de sua obra e se refere a uma “atitude”
filosófica que diagnostica a negação como princípio, autoridade ou fundamento
da moral. Friedrich Nietzsche nunca chegou a escrever um livro especificamente
sobre esse assunto, mas, em 1880, ele começou a ocupar a sua reflexão filosófica,
vindo a se constituir em um tema central dos escritos finais de sua vida, entre
os anos de 1888 e 1889, imediatamente antes de seu colapso mental4. Nietzs-
che usou esse conceito como forma de explicar o processo pelo qual o sentido,
então dado à vida, entrou em falência completa, levando à radical perda dos
valores que guiaram a existência humana até aquele momento. Trata-se de uma
forma de desânimo frente à descoberta de que a busca fora vã, de que a energia
gasta fora desperdiçada – porque nenhum outro mundo existe de fato:
O niilismo como estado psicológico terá de ocorrer, primeiramente, quando tivermos procurado
em todo acontecer por um “sentido” que não está nele: de modo que afinal aquele que procura
perde o ânimo. Niilismo é então, o tomar consciência do longo desperdício de força, o tormento
do “em vão”, a insegurança, a falta de ocasião para se recrear de algum modo, de ainda repousar
sobre algo – a vergonha de si mesmo, como quem se tivesse enganado por demasiado tempo
[...] (NIETZSCHE, 1978, p. 380, grifos do autor)
O niilismo não é outra coisa senão essa desilusão com a ideia de uma finalidade
no vir a ser. Todos os conceitos que ajudavam o homem a guiar-se na existência,
a explicar o mundo e a sua própria condição, bem como os valores religiosos que
davam uma meta à sua vida, perderam o sentido: “Meu argumento é que a todos
os supremos valores da humanidade falta essa vontade [de poder] – que valores de
declínio, valores niilistas preponderam sob os nomes mais sagrados” (NIETZSCHE,
2007, p. 13). Trata-se de um sentimento de falta de finalidade, de anulação de sig-
nificados, de ausência de respostas. O homem olha para si mesmo como desprovi-
do de sentido e meta; olha para trás e vê que nada do que foi feito, em termos de
construção cultural, valeu a pena, que tudo foi em vão; olha para o futuro e não vê
nenhuma esperança de redenção, de salvação, de alguma validade universal. No
geral, o niilismo traduz um processo de desvalorização dos valores:
3
Niilismo, do latim nihil (“nada”) + ismus (“doutrina, movimento ou prática de”).
4
Nietzsche nasceu em 1844, na pequena cidade de Röcken, e faleceu em Weimar, em agosto de 1900, tendo passado seus últimos 11 anos em
completa demência, depois de um colapso vivenciado na cidade de Turim, em 3 de janeiro de 1889.
Que esse “em vão!” é o caráter de nosso niilismo do presente é algo que resta a demonstrar. A
desconfiança contra nossas anteriores estimativas de valor se intensifica até a pergunta: “Não
são todos os ‘valores’ engodos com os quais a comédia se prolonga, mas nunca se aproxima
de um desenlace?” A duração, com um “em vão”, sem alvo e sem fim, é o mais paralisante dos
pensamentos, especialmente ainda quando se compreende que se é burlado e, no entanto, se
é impotente para não se deixar burlar. (NIETZSCHE, 1978, p. 383, grifos do autor)
Nesse trecho, o autor explicita que, frente ao niilismo, aparece uma crise do
próprio homem, já que ele é o criador dos sentidos até então doados à vida,
como forma de suportar o peso da existência. Com a suspeita radical que se
abateu sobre esses valores e sobre esse pretenso sentido, o homem tem duas al-
ternativas, ambas sinais de niilismo: ou suprime as crenças e venerações válidas
até então, ou suprime a si mesmo, desistindo da vida. Não há caminho, portanto,
para quem permanece na vida: é preciso suportar essa crise como quem enfren-
ta, por si mesmo, a falta de sentido que abate os ânimos.
A morte de Deus
Se o niilismo é o processo pelo qual a cultura ocidental se deixou morali-
zar pela via de uma supervalorização da razão, e das realidades metafísicas
como sintoma de uma doença e de uma fraqueza do homem, então não há nada
que revele de maneira mais cabal essa situação do que a metáfora da morte de
Deus. Como metáfora, essa notícia não diz respeito à morte do ser superior da
religião, mas à crise do fundamento representado pelo afastamento do homem
em relação aos valores e virtudes que eram regidos a partir de um centro moral,
que fornecia todos os fundamentos e toda a finalidade da vida. Ao se dar conta
da crise desses fundamentos e do abalo do sentido representado pela imagem
de Deus, Nietzsche, pela boca de um louco, no fragmento 125 da obra A Gaia
Ciência, expressa o sentimento mais radical da completa falta de referência ex-
terior e suprassensível, a partir do que se doava algum valor para a realidade
imanente. Ou seja: ao se perder o fundamento superior e supremo que dava o
sentido para a vida concreta, perde-se também o valor dessa vida, anula-se o sen-
tido. Além disso, o anúncio da morte de Deus é também o anúncio do equívoco
dessa divisão dualista estabelecida, a partir de Platão, entre o mundo sensível
e o mundo suprassensível. A morte de Deus representa a total falta de sentido,
5
A Gaia Ciência foi publicado em 1882, mas em 1886 foi incluído um prefácio e uma quinta parte, da qual retiramos essa citação.
Domínio público.
É a busca pela verdade, de forma radical, que fez o cristianismo (como her-
deiro da filosofia socrático-platônica) se dar conta das “mentiras” sobre as quais
ele mesmo estava erguido. Em outras palavras: por desejar radicalmente a ver-
dade, a moral ocidental foi obrigada a revelar o embuste sobre o qual ela sempre
esteve embasada. E esse é o processo pelo qual o niilismo se revela. Por isso,
afirma Nietzsche, “o niilismo [deve ser entendido como] a consequência da am-
bição metafísica de certeza” (NIETZSCHE, 1994, KSA XII, 5 [70], p. 210, tradução
nossa) e, ao mesmo tempo, uma consequência dos valores cultivados como os
únicos preciosos (porque pretensamente estabelecidos a partir de uma verdade
única): o niilismo nada mais é do que uma consequência da prática estabelecida
como a mais correta, de acordo com os ideais da moral vigente.
A ambiguidade do niilismo
Frente ao niilismo, portanto, como evento ligado à moralidade e à própria
história ocidental (que é entendida por Nietzsche como a história da moraliza-
ção do Ocidente, pela via do racionalismo socrático-platônico e do cristianismo,
com as suas repercussões em todos os ambientes da cultura), haveria uma am-
biguidade que remete a duas atitudes. Assim, frente à completa perda dos fun-
damentos, o ser humano poderia
Para o filósofo alemão, foi o movimento de condenação dos ideais nobres que
favoreceu a prevalência e o triunfo do modo de avaliação da fraqueza e do res-
sentimento no mundo ocidental. Os fracos assumem uma atitude de negação, é
esse o seu gesto criador. Os fortes, ao contrário, são aqueles que afirmam a partir
da sua força. Isso faz com que os valores vigentes na cultura ocidental sejam
todos valores de negação, já que nasceram em contraposição aos valores nobres
Para Nietzsche,
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera
valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que
apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nasce de um
triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro, um
“não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este
necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento:
a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em
absoluto – sua ação é no fundo uma reação. (NIETZSCHE, 2002b, p. 28, grifos do autor)
Mas esse olhar ainda não é um olhar criador: o olhar do niilista completo
ainda não se desvencilhou da fraqueza. Ele ainda não se tornou ativo. Por isso, a
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Qual o valor da vida? (Niilismo)
Isso significa dizer que a crise niilista solapa as bases da própria sobrevivência
e leva à letargia eterna. Sucumbir não é, portanto, extinguir-se, senão lançar-se
no estado vegetativo, entregar-se à madorra e ao torpor frente à existência. E
assim está posta a fórmula do niilismo passivo: por medo da existência e por
sentir a perda dos seus valores mais sublimes, reconhecendo-se como impoten-
te no jogo de forças que a existência requer, o fraco escolhe o caminho do nada,
do autoaniquilamento.
Ora, o forte é aquele que aceita esse “dionisíaco dizer-sim”, que aceita par-
ticipar do jogo vital e, assim, aprimora-se na capacidade de enfrentamento da
falta de sentido, reconhecendo a vida em sua insensatez, desatino e acaso, sem
necessitar de “artigos de fé”. Esses seriam os mais ricos de saúde e seguros de seu
próprio poder. São eles, assim, os criadores de valores, já que são movidos pelo
orgulho e pela mais poderosa dinâmica de forças. Por dispensarem os alicerces
suprassensíveis, eles passam a exercer uma moral autônoma e livre, que se cria a
si mesma e obedece somente às suas próprias torrentes de forças.
Textos complementares
medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os
outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu
olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês
e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como consegui-
mos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o ho-
rizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu Sol? Para onde se move
ela agora? Para onde nos movemos nós? Não caímos continuamente? Para
trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Não existem ainda ‘em
cima’ e ‘embaixo’? não vagamos como que através de um nada infinito? Não
sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoi-
tece eternamente? Não temos que acender lanternas em plena manhã? Não
ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da
putrefação divina? Também os deuses apodrecem. Deus está morto! Deus
continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre
os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuí-
ra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue?
Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sa-
grados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande
para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos
parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de
nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda
história até então!”
A compreensão do niilismo
(NIETZSCHE, 1978, p. 386)
Dicas de estudo
DIAS de Nietzsche em Turim. Direção de Júlio Bressane. Brasil, 2001. Dist. Europa
Filmes.
Atividades
1. Explique o que Friedrich Nietzsche entende por niilismo e como ele identifica
os seus sintomas na cultura ocidental.
Gabarito
1. Para Nietzsche, o niilismo é um processo pelo qual o sentido dado à vida até
então entrou em falência completa, levando à radical depreciação dos valores
que guiaram a vida humana na terra. Trata-se de uma forma de desânimo fren-
te à descoberta de que a busca foi em vão, a energia foi desperdiçada. Como
sintoma desse desânimo, vemos que a antiga divisão entre mundo sensível e
mundo suprassensível, com a valorização do segundo em detrimento do pri-
meiro, perde o sentido. Aliás, essa divisão foi inventada por Nietzsche, já como
um sintoma niilista, porque ela seria resultado da fraqueza daqueles que, em
vez de criarem as condições de afirmação da vida, preferiram, por medo, fugir
Referências
ARALDI, Clademir. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche.
Cadernos Nietzsche, n. 5, 1998. p. 75-94.
MILLER, Henry. A Hora dos Assassinos. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Cole-
ção Os Pensadores).
_____. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. 2. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
_____. A Gaia Ciência. 1. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2002a.
Os outros homens nunca são puro espírito para mim: só os conheço através de seus
olhares, de seus gestos, de suas palavras, em suma, através de seus corpos.
Maurice Merleau-Ponty
Creative Commons.
A Rua da República, em Rochefort-sur-Mer, cidade natal de Maurice Merleau-Ponty.
Mas como se deu essa separação entre consciência e natureza? Qual é o seu
significado? Trata-se de um esvaziamento de sentido e de referência das nossas
experiências originais, sustentado sobretudo por pensamentos antitéticos que
privilegiaram a função constitutiva do sujeito ou, ao contrário, o sentido imanen-
te do mundo físico?
Existe o Sol dado aos sentidos e o outro Sol, esse verdadeiro, na medida em que
é alcançado pelo juízo. Com a tradição moderna, o conhecimento genuíno, em
oposição ao vulgar, passou a ser encarado como aquele que não é feito de coisas,
de propriedades, de qualidades e de transformações que existem e operam de
modo independente da subjetividade. Aprendemos, sobretudo com os primeiros
filósofos modernos, que as qualidades (cor, ruído, cheiros etc.) não são significati-
vas em si mesmas: são apenas produtos da influência do ambiente sobre o homem
e, por isso mesmo, não devem fazer parte do mundo objetivo da verdade e da ci-
ência. Seguindo a mesma lógica, destituímos ainda mais a nossa vivência direta de
sentido de realidade quando levamos a abstração ao seu limite extremo. Passa-
mos a desconsiderar também os aspectos aparentes das qualidades primárias
(peso, figura e movimento), julgando-as tanto sem significado de realidade quanto
as secundárias. Como resultado, todas as propriedades dependem do organismo
que as experimenta e o mundo objetivo, de modo geral, passou a ser considerado
como desprovido de sabor, de textura e de cores. Desse modo, mostrou-se funda-
mental abstrair das sensações, limpar a percepção das influências do meio obscu-
ro e desconstruir a visão subjetiva fundada na experiência direta, na vivência ime-
diata. Assim, somos constantemente alertados pela filosofia da modernidade a
buscar a verdade do mundo fora da própria
Domínio público.
experiência do mundo.
A mesma lógica preconizada por Bacon e Descartes está presente nas pesqui-
sas e nas descobertas de Galileu. A observação da superfície irregular da Lua e a
constatação das manchas solares exigem um olhar sofisticado e suficientemente
capaz de purificar e ultrapassar os limites da experiência direta, porque não é
sob o olhar nu do homem comum que os astros mostram as suas verdadeiras
faces. Só há uma verdade sobre os astros: aquela visada pelo olhar investido do
poder do telescópio e, ainda, metodicamente estruturada pelo entendimento.
No fim, a experiência que interessa é somente aquela estruturada pelo cientista,
já que esta é a única que se mostra adequada para revelar o que está além da
percepção ambígua das propriedades sensíveis e, ainda, de converter as coisas,
as cores, os sons, as figuras em caracteres universais:
Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja
necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou
rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os
números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que
fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega,
tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. (GALILEI, 1999, p. 223)
Dentro dela mesma esse vício também age: ela desmorona incessantemente, renuncia a cada
instante a qualquer forma, só tende a humilhar-se, esparrama-se de bruços no chão, quase
cadáver como monges de algumas ordens [...]
Poderíamos dizer que a água é louca devido a essa necessidade histérica de só obedecer ao
seu peso, que a possui como uma ideia fixa [...]
LÍQUIDO é por definição o que prefere obedecer ao peso a manter sua forma, o que recusa
toda forma para obedecer a seu peso. E que perde toda a compostura por causa dessa ideia
fixa, desse escrúpulo doentio [...]
Inquietude da água: sensível à menor mudança de inclinação. Saltando as escadas com os dois
pés ao mesmo tempo. Brincalhona, de uma obediência pueril, voltando logo que a chamamos
mudando a inclinação para este lado. (PONGE apud MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 26)
Para Merleau-Ponty, desde as suas primeiras obras, temos que encontrar esse
mundo esquecido pela razão e pela ciência, o solo sensível da vida para que a
filosofia deixe de ser um pensamento de sobrevoo, volte a ser a filosofia da nossa
experiência do mundo.
Intencionalidade e redução:
a redescoberta da experiência subjetiva
Logo no prefácio da Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty expõe todas
as dificuldades e possibilidades que podemos encontrar, quando buscamos des-
crever um movimento que parece destinado a nunca se esgotar. Na análise mer-
leau-pontyana, a fenomenologia está diante de uma vocação (inclina-se perpe-
tuamente para o mundo) que incessantemente precisa ser percorrida. Sempre
inacabada e, por isso mesmo, impossível de ser cumprida integralmente, essa
vocação é, ao mesmo tempo, o obstáculo e o combustível dessa filosofia: “Talvez
compreendamos então por que a fenomenologia permaneceu por tanto tempo
em estado de começo, de problema e de promessa” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 3).
Mas se a fenomenologia está inacabada, como descrevê-la? Merleau-Ponty nos
lembra de que os fenomenólogos não são poucos. Se Edmund Husserl (1859-
-1938), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Martin Heidegger (1889-1976) e o próprio
Merleau-Ponty são os mais eminentes representantes do pensamento feno-
menológico, entre os seus precursores estão Georg Hegel (1770-1831), Søren
Kierkegaard (1813-1855), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-
-1900), e a lista não para por aí. Mas as dificuldades vão além de uma reflexão
crítica e histórica sobre a fenomenologia. Para Merleau-Ponty, a fenomenologia
é uma atitude filosófica que se defronta com uma experiência que não é a do
senso comum, da ciência ou, mesmo, aquela das escolas clássicas da filosofia.
Assim como um movimento destinado a nunca terminar, tal parece o campo
da experiência fenomenológica. Assim como a vida, a filosofia também é uma
experiência inacabada. Não temos o absoluto na filosofia e na vida, não temos
nada que possa ser integral. A experiência se apresenta e foge na perspectiva e
em um agora que não é passado e nem futuro, mas também não é um presen-
te estático. Então, que experiência será válida? O que descrever, o que reter, o
que guardar? Se a fenomenologia pode ser acusada de parcialidade, a ciência
também o é duplamente, na medida em que se disfarça como totalidade. Mas
qual é o tipo de descrição que a fenomenologia, sobretudo a merleau-pontyana
realiza? O que, em última análise, significa recuperar o mundo da experiência
direta, como Merleau-Ponty propõe?
Domínio público.
Edmund Husserl.
Para Husserl, o subjetivo não é mundo interior, mas o mundo de que temos
consciência. Na distinção entre os eventos físicos e psíquicos, realizada por meio
do conceito de intencionalidade, ele encontrou a fórmula das nossas experiências
subjetivas. Essa fórmula foi estabelecida por Franz Brentano (1838-1917), filósofo
que havia sido professor de Husserl, e é frequentemente expressa nesta sentença:
“toda consciência é sempre consciência de algo.” Mas o que significa isso?
ência sempre se dirige para algo distinto dela. Se eu amo, trata-se obviamente
de uma vivência da consciência: eu amo alguém ou alguma coisa. Da mesma
forma, se desejo, imagino ou temo, essas vivências acontecem sempre em rela-
ção a alguma coisa ou alguém. Portanto, é nesse sentido de dirigir-se ao mundo
e às coisas que as nossas vivências subjetivas são intencionais.
Desse modo, podemos dizer que a fenomenologia proposta por Husserl não
estuda a coisa em si (noumenon) no sentido kantiano1, como também não estuda
os fenômenos empíricos e os fenômenos físicos das ciências.
2
Eidético: aquilo que se refere às essências.
3
Sobre a ideia de que toda vivência é vivência de essências, acompanhemos o famoso exemplo de Husserl sobre a Nona Sinfonia, de Beethoven,
reproduzido por Dartigues: “Esta pode se traduzir pelas impressões que experimento ao escutar este ou aquele concerto, pela escritura desta ou
daquela partitura, pela atividade do regente de orquestra ou dos músicos etc. Em cada caso, poderei dizer que se trata da Nona Sinfonia e, contudo,
esta não se reduz a nenhum, se bem que ela possa a cada vez se dar neles inteiramente. A essência da Nona Sinfonia persistiria mesmo se as parti-
turas, orquestras e ouvintes viessem a desaparecer para sempre” (DARTIGUES, 1973, p. 22).
Esse é o caso, por exemplo, das nossas vivências afetivas. Merleau-Ponty não
deixa de descrever a vida erótica como intencional, pois os nossos gestos eró-
ticos, como bem estabelece a Fenomenologia da Percepção, são, fundamental-
mente, dialógicos, projetivos e carregados de significação. Do modo como foi
descrita no capítulo V, ainda na primeira parte da Fenomenologia da Percepção, a
afetividade (as nossas experiências sexuais, por exemplo) permanece, enquanto
um momento do nosso comportamento, reveladora de uma existência percepto-
-estrutural: a visão sobre mim, sobre as coisas e sobre o outro. Merleau-Ponty fala
em uma percepção erótica que atua, que nos liga e nos projeta no mundo. Nesse
sentido, é fácil ver que a sexualidade não se reduz a um sentimento interior (uma
vivência da alma) ou a um gozo físico desencadeado por um estímulo. O nosso
comportamento afetivo se abre ao mundo por meio dos nossos gestos corpóre-
os-motores, e evidencia a presença do outro em nosso campo perceptivo:
No próprio Freud, o sexual não é o genital, a vida sexual não é um simples efeito de processos
nos quais os órgãos genitais são o lugar, a libido não é um instinto, quer dizer, uma atividade
naturalmente orientada a fins determinados, ela é o poder geral que o sujeito psicofísico tem
de aderir a diferentes ambientes, de fixar-se por diferentes experiências, de adquirir estruturas
de conduta. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 219)
Creative Commons.
A tumba de Merleau-Ponty, no cemitério de Père-Lachaise,
em Paris.
Texto complementar
Conversas (fragmentos)
(MERLEAU-PONTY, 2006)
[...]
lações de uns com os outros nas nossas sociedades: a maior parte do tempo,
relações de senhor e escravo. Não nos desculpemos por nossas boas inten-
ções, vejamos o que elas se tornam assim que saem de nós. Existe algo sau-
dável nesse olhar exterior com que nos propomos a considerar nossa espé-
cie. Em outros tempos, em Micrômegas, Voltaire imaginou um gigante de um
outro planeta diante de nossos costumes, que só podiam parecer irrisórios
para uma inteligência maior do que a nossa. Ao nosso tempo foi reservado
julgar-se não de cima, o que é amargo e maldoso, mas de alguma maneira
de baixo. Kafka imagina um homem metamorfoseado em ortóptero. Kafka
imagina as pesquisas de um cachorro que se depara com o mundo humano.
Descreve sociedades encerradas na concha dos costumes que adotaram, e
hoje Maurice Blanchot descreve uma cidade fixada na evidência de sua lei,
da qual todos participam tão intimamente que não experimentam mais nem
sua própria diferença, nem a dos outros. Observar o homem de fora é a crí-
tica e a saúde do espírito. Porém não para sugerir, como Voltaire, que tudo
é absurdo. Mais para sugerir, como Kafka, que a vida humana está sempre
ameaçada e para preparar, pelo humor, os momentos raros e preciosos em
que acontece aos homens se reconhecerem e se encontrarem.
Dicas de estudo
DARTIGUES, André. O que É a Fenomenologia? Rio de Janeiro: Eldorado, 1973.
Atividades
1. Explique como Maurice Merleau-Ponty descreve a separação entre consciên-
cia e natureza, operada pelo pensamento clássico.
Gabarito
1. Trata-se, primeiro, de um esvaziamento de sentido e de referência nas nossas
experiências originais, o que é sustentado, sobretudo, por pensamentos an-
titéticos que privilegiaram a função constitutiva do sujeito ou, ao contrário, o
sentido imanente do mundo físico. No primeiro caso, estamos nos referindo
à atitude filosófica que concebeu as experiências da razão e do pensamento
como polos significativos da verdade, enquanto aos sentidos sobrou enga-
no, aparência e ilusão. Assim, Platão separou o mundo em inteligível e sen-
sível, concebeu o corpo e todos os seus modos de conhecimento como obs-
táculo à verdade. A própria dialética não deixou de ser um método ao qual o
pensamento recorre para ultrapassar à experiência, os erros e as ilusões dos
sentidos, pois o conhecimento das essências está no mundo inteligível. No
caso de filósofos modernos como Bacon, Descartes e Galileu, por exemplo,
essa separação está assentada na ideia geral de que o verdadeiro conheci-
mento não se estrutura a partir do modo como o mundo se apresenta aos
nossos sentidos. A experiência direta e o nosso contato mais imediato com o
mundo devem ser descartados como obscuros e confusos.
Para Husserl, o subjetivo não é mundo interior, mas o mundo de que temos
consciência. Na distinção entre os eventos físicos e psíquicos, realizada por
meio do conceito de intencionalidade, ele encontrou a fórmula das nossas
experiências subjetivas. Estabelecida por Franz Brentano, essa fórmula é fre-
quentemente expressa pela sentença “Toda consciência é sempre consciên-
cia de algo”, significando que estamos sempre orientados, dirigidos para o
mundo. Independentemente do tipo de estado de consciência (função sub-
jetiva) que se possa considerar, é preciso admitir que a consciência sempre
se dirige para algo distinto dela. Se eu amo, trata-se obviamente de uma
vivência da consciência: amo alguém ou alguma coisa. Se desejo, imagino
ou temo, essas vivências acontecem sempre em relação a alguma coisa ou
alguém. Portanto, é nesse sentido de dirigir-se ao mundo e às coisas que as
nossas vivências subjetivas são intencionais.
intencionalidade
de ato – aquela de nossos juízos e tomadas de posição
voluntárias, sendo a consciência tética (constituinte) de um objeto que tem
o poder de converter as coisas e as experiências em ideias e conceitos;
intencionalidade
operante – expressão radical do nosso engajamento,
da nossa condição de ser no mundo, e por meio dela podemos falar em
vida pré-reflexiva, experiência direta, percepção estrutural, significação
expressiva do corpo e sentido da nossa existência como ser encarnado.
Referências
BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Inter-
pretação da Natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).
A técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com
tais novos objetos e consequências que a moldura da ética antiga não consegue mais
enquadrá-las.
Hans Jonas
Essa palavra, que está amplamente absorvida no nosso cotidiano, tem uma
longa tradição na Filosofia.
1
No sentido geral, a palavra arte não se refere apenas às “belas artes”, mas ao conjunto de regras que dirigem alguma atividade humana, e é nesse
sentido mais amplo que ela pode ser associada à técnica e não apenas à estética.
A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos
olhos (isto é, o Universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer
os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres
são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível
entender humanamente as palavras: sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro
labirinto. (GALILEI, 2000, p. 46)
Se antes valia como critério da verdade a autoridade dos filósofos (em es-
pecial Aristóteles) e a própria Bíblia, agora a Filosofia se volta para o “livro do
universo”, escrito em língua matemática. É importante lembrar, também, que
esse método foi tematizado de forma central na obra do filósofo francês René
Descartes (1596-1660), Discurso do Método.
O poder de Prometeu
Na linguagem originária do povo grego, havia uma palavra muito curiosa:
hybris, cujo sentido era o excesso ou mesmo a insolência, sendo muitas vezes
descrita nas tragédias como revelação de uma insegurança, gerada pela invasão
do mundo dos deuses por parte dos homens. Mas o seu sentido vai mais além:
trata-se de uma invasão da norma, da medida, ou seja, dos limites dos homens
na sua relação com o ordenamento natural, humano ou mesmo divino. A pró-
pria ideia de injustiça está ligada à transgressão dessas regras. O resultado dessa
transgressão dos limites do que é humano geralmente é descrito, no mito grego,
como um castigo dos deuses.
Domínio público.
A curiosidade de Pandora, segundo tela
de John William Waterhouse (1896).
Prometeu, por sua vez, foi dependurado na beira de um abismo e uma águia
foi enviada para devorar o seu fígado, eternidade afora. Libertado por Hércules,
que flechou a águia, Prometeu passou a usar um anel feito com uma rocha re-
tirada do abismo – ele continuaria, assim, preso à pedra, segundo a ordem de
Zeus.
Muitas são as interpretações possíveis para essa narrativa. Mas talvez nenhu-
ma delas seja mais explícita que aquela que remete ao poder da técnica, advinda
aos homens pelo crime de Prometeu. O fogo é o símbolo do conhecimento e
do domínio tecnocientífico da natureza. Tendo invadido o âmbito dos deuses,
os homens foram castigados: trata-se de uma mensagem que evoca o perigo
do uso do conhecimento por parte dos homens, sem contar com os limites im-
postos pelos deuses. Assim, Prometeu é o símbolo do domínio técnico sobre a
natureza e também do risco que esse poder emite, bem como da necessidade
de que ele seja usado de maneira responsável.
Domínio público.
Prometeu em seu tormento, conforme pintura de
Jacob Jordaens (c. 1640).
Então, a técnica torna o mundo sempre disponível para o homem. Mas ocorre
que o homem também está disposto como uma fonte. O lenhador que corta
uma árvore no fundo de uma floresta, sem saber está servindo de fonte para a
indústria madeireira, afirma o autor (HEIDEGGER, 2008), porque ele também está
disposto para o fornecimento da celulose. Também faz parte do que é disponí-
vel, do que é tornado disponível. Ele se disponibiliza. E esse é o grande perigo:
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Para onde vamos? (Natureza e técnica)
Domínio público.
[...] uma região se desenvolve na exploração de fornecer carvão e minérios. O subsolo passa
a se desencobrir, como reservatório de carvão, o chão, como jazidas de minério. Era diferente
o campo que o camponês outrora lavrava, quando lavrar ainda significava cuidar e tratar. O
trabalho camponês não provoca e desafia o solo agrícola. (HEIDEGGER, 2008, p. 19)
Hoje, outra posição absorveu a “lavra do lavrador”, porque ela dispõe da natu-
reza no sentido de uma exploração. Afirma Heidegger que a “agricultura tornou-
-se indústria motorizada de alimentação” (HEIDEGGER, 2008, p. 19): “dispõe-se
o ar a produzir azoto, o solo a produzir minério, como, por exemplo, urânio, o
urânio a fornecer energia atômica; esta pode, então, ser desintegrada para a des-
truição da guerra ou para fins pacíficos” (HEIDEGGER, 2008, p. 19).
O princípio responsabilidade
É desse ponto que Hans Jonas dá seguimento à problematização da técnica:
ela exige um ethos2, como um limite, a implantação de normas ou medidas que
impeçam o uso desmedido desse poder. Não se trata de uma limitação no sen-
tido de um impedimento, mas de uma pergunta sobre “freios voluntários” que
impeçam o homem de construir a sua própria desgraça.
Ora, ninguém de nós está alheio à gravidade da crise que afeta a nossa civili-
zação e coloca em xeque a própria existência da humanidade no futuro, de forma
íntegra. Essa afirmação, ainda que soe exagerada, revela-se nas crescentes notí-
cias de catástrofes naturais descritas como verdadeiras hecatombes, cuja força
aflige indivíduos e comunidades ao redor do mundo. Vulcões entram em erupção
2
Palavra grega que remete à ideia de valores, hábitos ou costumes que dão identidade a um povo ou grupo social. Aqui, ela representa o conjunto
de normas que pode colaborar tanto para uma reflexão do agir quanto para a implantação de regras desse agir, visando ao bem comum.
Dando-se conta desse problema já nos anos 1970, Hans Jonas escreve um dos
mais importantes tratados de ética contemporânea, partindo de uma crítica aos
modelos éticos anteriores, principalmente o de tipo kantiano, agora tornado in-
suficiente para enfrentar os avanços da técnica. Para Jonas, as éticas tradicionais
(como reflexão sobre o agir humano e sobre o “tamanho” das consequências da
ação), limitavam-se ao âmbito espacial das relações intra-humanas e ao âmbito
temporal do presente. Além disso, essas éticas, afirma Jonas, estavam pautadas
na crença de que a natureza seria um campo eticamente neutro, porque, de tão
grande, jamais seria atingida pela ação humana – dispensando, portanto, qual-
quer ideia de cuidado ou de responsabilidade por parte do ser humano: “Todo o
trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o domínio da techné (habilidade)
era – à exceção da medicina – eticamente neutro” (JONAS, 2006, p. 35). A nature-
za, como algo supostamente inerte, seria também incólume e nunca subjugada
pela força humana: acreditava-se que “a arte só afetava superficialmente a natu-
reza das coisas” (JONAS, 2006, p. 35) e também que
[...] a techné, como atividade, compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela
necessidade e não como um progresso que se autojustifica como fim precípuo da humanidade, em
cuja perseguição engajam-se o máximo esforço e a participação humanos. (JONAS, 2006, p. 35)
Essa ética surge justamente porque o exercício do poder técnico pelo homem
tem perturbado o equilíbrio simbiótico, e criado formas de vida artificiais, meros
artefatos que induzem ao perigo da crença na independência do ser humano
em relação à natureza. Aristóteles jamais poderia supor, segundo Hans Jonas,
que a sua ética teleológica de totalidade da natureza, alcançada pelo uso da
razão como meio para alcançar a felicidade, teria consequências tão catastró-
ficas. O intelecto emancipado se confronta com a ação humana desmedida e
com a soberba frente à natureza. O excessivo êxito da civilização tecnoindustrial,
baseada no avanço das ciências naturais e exatas, naquilo que Jonas chama de
programa baconiano (JONAS, 2006, p. 22), levou à possibilidade de desapareci-
mento do homem junto com todas as espécies por ele ameaçadas de extinção.
Nesse contexto, Hans Jonas volta a pensar sobre a ética em sua estreita re-
lação com a política, pois, para o autor, essa não é uma questão apenas indi-
vidual, precisa ser projetada como problema político. Isso porque as soluções
dependem da possibilidade política de um “progresso ético” que abranja ações
de governo e os deveres de toda a sociedade. Por isso, essa ética também passa,
segundo o autor, por uma superação dos efeitos desmoralizantes do Estado mo-
derno, corrompido pela descrença dos cidadãos, bem como pelo processo de
empoderamento dos líderes empresariais da sociedade de mercado.
do prolongamento da vida;
do controle do comportamento;
da manipulação genética.
Ou seja, no âmbito das pesquisas sobre a vida, corpo e espírito humanos são
controlados e alterados (a palavra de Jonas é reconfigurados). A questão é que,
nesse processo, o homem não é mais algo dado definitivamente, de uma vez
por todas. Como reflexão sobre a ação do homem, agora a ética deve tematizar
os novos tipos de homem, já que agora “o homo faber aplica sua arte sobre si
mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador
de todo o resto” (JONAS, 2006, p. 57). Trata-se do cúmulo do poder humano: ele
pode agora alterar a si mesmo e esse poder “desafia o último esforço do pensa-
mento ético” (JONAS, 2006, p. 57).
Hans Jonas.
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Para onde vamos? (Natureza e técnica)
Textos complementares
A ética da responsabilidade
(JONAS, 2006, p. 39)
Dicas de estudo
HISTÓRIA das coisas. Direção de Annie Leonard. Estados Unidos, 2007. Disponí-
vel em: <www.youtube.com/watch?v=3c88_Z0FF4k>. Acesso em: 25 out. 2010.
Atividades
1. Explique como a técnica tem se consolidado, no mundo moderno, como
uma forma de poder sobre a natureza e sobre o próprio homem.
Gabarito
1. A partir do século XVII, houve uma grande corrida pelo domínio tecnocientí-
fico do mundo. Perante a crise dos fundamentos que forneciam as verdades,
no período medieval, a modernidade reviu os mecanismos pelos quais teria
acesso a uma verdade clara e distinta. Por isso, uma questão importante é o
método que tentava garantir o alcance a ela. Amparado no poder da razão, o
ser humano moderno vivenciou algo inimaginável, em termos de força e po-
der. Em uma palavra: o que foi ampliado foi o poder da técnica, termo que, na
sua origem, na língua grega (techné), está ligado à noção de arte e diz respei-
to ao procedimento ou conjunto de procedimentos, regras ou práticas utili-
zadas para alcançar determinado fim. Por isso, ela tem a ver com um “saber
fazer”, em termos artísticos e científicos, envolvendo as atividades humanas
em geral. Em um sentido específico, a técnica está ligada ao comportamento
do homem em relação à natureza, na medida em que ela o capacita para
produzir bens em seu benefício. Isso faz com que ela esteja ligada à força do
homem para buscar seu próprio desenvolvimento. O filósofo Francis Bacon
foi quem primeiro vislumbrou, na era moderna, essa capacidade da técnica
em garantir o desenvolvimento do ser humano. Aliada à ciência, ela deveria
ajudar o ser humano a conquistar seu bem-estar na Terra.
ça imensa deixou rastros de destruição que a natureza não foi capaz de dige-
rir. O mais grave é que, quando a humanidade se deu conta disso, os efeitos
já se tornaram catástrofes irreparáveis que ameaçam a integridade da vida
sobre o planeta. Ora, não há futuro da humanidade sem se pensar no futuro
da natureza. Essa é a tese central da ética da responsabilidade, de Hans Jo-
nas, que se volta contra certo antropocentrismo reducionista, que colocou
as necessidades humanas acima de tudo e considerou todos os outros seres
vivos e os recursos naturais como instrumentos a serviço dos prazeres ego-
ístas da espécie humana. A tecnologia, representante da racionalidade que
transforma o homem em um “ser que faz” (um homo faber), trouxe inúmeros
prejuízos para o próprio homem e passou a representar o risco de seu pró-
prio desaparecimento. Erguida sobre essa ingenuidade que acreditava na in-
vulnerabilidade da natureza, a cidade humana ergueu-se alheia e contrária
às leis da natureza, fazendo o homem acreditar que seu futuro estava asse-
gurado pela própria posse dessa racionalidade. Por isso, todas as éticas se
limitaram ao âmbito da cidade, ou seja, ao âmbito das relações intra-huma-
nas, de forma individualista. Na esfera da cidade, a ética limitou-se a advertir
os indivíduos a respeito dos comportamentos em relação ao “próximo”. Tudo
isso, afirma Jonas, continua válido, mas se tornou insuficiente com o aumen-
to do poder do homem: suas ações, hoje, estão além do âmbito da cidade e
é preciso ampliar também o alcance da ética. A ética da responsabilidade é
um convite ao exercício do poder como responsabilidade. É preciso, diz Hans
Jonas, que o ser humano exerça esse poder de maneira responsável. Por isso,
ele formula um novo imperativo ético que dê conta da nova conjuntura de
poder, um imperativo adequado ao novo agir humano e à sua dimensão de
força. Além disso, a ética propõe uma avaliação do poder do homem sobre
si mesmo, refletindo sobre a transformação do homem em objeto da técni-
ca por meio das técnicas de prolongamento da vida, controle de comporta-
mento e manipulação genética.
Referências
GALILEI, Galileu. O Ensaiador. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Coleção Os
Pensadores).
_____. O que quer dizer pensar. In: _____. Ensaios e Conferências. 5. ed. Petró-
polis/Bragança Paulista: Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2008. p. 111-
124.