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Ainda acrescenta o filósofo francês “Para nós; isto significa: a tradução literal é
obrigatoriamente uma retradução, e vice-versa. “.
Fica claro, então, que as primeiras traduções não podem ser as melhores, por isso
refaremos as traduções já realizadas no nosso mencionado trabalho de IC1.
Outro empréstimo tomado do tradutólogo é a sua valorização da neologia, pois, segundo
o filósofo francês, toda grande tradução se distingue pela sua riqueza neológica. Em nossa nova
tradução não hesitaremos em ousar criar neologismos em alguns casos.
Ainda afirma Berman: “A literalidade não consiste somente em violentar a sintaxe
francesa [no nosso caso, a portuguesa] ou em neologizá-la: ela também mantém, no texto da
tradução, a obscuridade inerente ao original” (p. 101, 2007) destacando assim que a
literalidade não consiste apenas em romper com a sintaxe do idioma de chegada, mas também
em manter o claro-escuro do texto de partida; assim o afirma no capítulo sobre neologismos.
O neologismo tem esse poder de trazer a estranheza própria do original, ou seja, tem o poder
de trazer o outro até nós. É importante enfatizar que os neologismos possuem o potencial de
enriquecer o idioma e trazer novas possibilidades antes inexploradas da língua. O tradutor
aqui pode desempenhar o papel de renovação da língua.
2.2-O método de Berman
Em “Albergue do longínquo”, o tradutólogo apresenta uma proposta de ética da tradução
que consiste na acolhida do estrangeiro em sua estranheza. Contudo, não prescreve um método
de análise de traduções.
Em sua obra póstuma lançada em 1995 Pour une critique de traductions: John Donne,
Berman esboça um método para se analisar traduções. O especialista em tradução descreve seis
etapas: 1ª) Leitura da tradução, 2ª) Leitura do original, 3ª) Estudo da visão de mundo do tradutor
e de suas traduções anteriores, 4ª) Confronto da tradução com o original, 5ª) Estudo da recepção
da tradução, 6ª) Identificação de princípios de tradução.
Se inspiramos nesse método sugerido, contudo, são necessárias alterações, pois nosso
propósito é diferente. Berman em seu livro se propõe a analisar poemas de John Donne e de
fazer uma crítica no intento de estimular futuras traduções do poeta inglês. Quanto ao nosso
trabalho, o crítico e o tradutor são os mesmos, ou seja, nós temos um projeto de tradução e não
de mera análise. Além do mais, ainda temos um projeto de tradução comparada de línguas
diferentes.
Fizemos, então, algumas alterações nos procedimentos que listamos a seguir: 1 ª)
Leitura do original encontrando marcas estilísticas de Delerm, 2ª) Primeira tradução do texto,
3ª) Comparação com a tradução italiana do mesmo livro, 4ª) Confronto das traduções com o
original, 5ª) Identificação de princípios de tradução, 6ª) Estabelecer princípios da nova tradução
e retraduzir o original.
É de se notar que Berman valoriza o estudo da recepção. No nosso trabalho não faremos
isso e daremos prioridade a outros pontos. Isso se deve também ao fato de Delerm ser um autor
contemporâneo, pouco estudado ainda. Ademais, estamos comparando nossa tradução, que é
recente e de recepção restrita ao círculo acadêmico, e com a tradução italiana, de difícil acesso
ao estudo de sua recepção.
Cabe destacar ainda o modo de confrontação proposta por Berman na quarta etapa do
comentário. Segundo o filósofo da tradução se dá de quatro maneiras: 1ª) Confrontação de
zonas significativas entre o original e a tradução, 2ª) Confrontação das zonas problemáticas da
tradução com seus respectivos trechos no original, 3ª) A tradução com outras traduções do
mesmo texto. 4ª) A tradução com seus projetos.
Cremos ser possível aplicar perfeitamente as maneiras de confrontação de Berman em
nosso trabalho. Contudo, é de se destacar que não aplicaremos numa ordem bem definida. Ao
longo de nossos comentários destacaremos algumas vezes o modo de confrontação.
Comentário
A primeira tradução foi feita sem um projeto pré-definido, simplesmente se procurava
traduzir literalmente o texto segundo as idiossincrasias do tradutor.
Em um primeiro olhar, a tradução consegue imitar bem o estilo proposto por Delerm. A
introdução abrupta, a frase longa construída sem verbos e a enumeração sem conjunção.
Como propõe nosso método, convém comparar com outras traduções, como a italiana.
Esta segue bem de perto a versão francesa e é muito semelhante à nossa opção. Também contém
os elementos marcantes de Delerm. Uma ou outra diferença foi apresentada, como o
apagamento de “se répondre em abîme” que ficou “rispondersi tra loro”. Nós traduzimos “se
responder em abismo”, imitando o francês. O italiano também fez uma alteração em
“l’alchimiste déçu” que traduziu como “l’alchimista geloso”. Não conseguimos entender bem
a motivação. Traduzimos por “alquimista desiludido” que traduz bem o francês.
L’odeur des pommes
On entre dans la cave. Tout de suite, c’est ça qui vous prend. Les pommes sont là,
disposées sur des claies – des cageots renversés. On n’y pensait pas. On n’avait aucune envie
de se laisser submerger par un tel vague à l’âme. Mais rien à faire. L’odeur des pommes est une
déferlante. Comment avait-on pu se passer si longtemps de cette enfance âcre et sucrée ?
Les fruits ratatinés doivent être délicieux, de cette fausse sécheresse où la saveur confite
semble s’être insinuée dans chaque ride. Mais on n’a pas envie de les manger. Surtout ne pas
transformer en goût indentifiable ce pouvoir flottant de l’odeur. Dire que ça sent bon, que ça
sent fort ? Mais non. C’est au-delà… Une odeur intérieure, l’odeur d’un meilleur soi. Il y a
l’automne de l’école enfermé là. À l’encre violette on griffe le papier de pleins, de déliés. La
pluie bat les carreaux, la soirée sera longue…
Mais le parfum des pommes est plus que du passé. On pense à autrefois à cause de
l’ampleur et de l’intensité, d’un souvenir de cave salpêtrée, de grenier sombre. Mais c’est à
vivre là, à tenir là, debout. On a derrière soi les herbes hautes et la mouillure du verger. Devant,
c’est comme un souffle chaud qui se donne dans l’ombre. L’odeur a pris tous les bruns, tous les
rouges, avec un peu d’acide vert. L’odeur a distillé la douceur de la peau, son infime rugosité.
Les lèvres sèches, on sait déjà que cette soif n’est pas à étancher. Rien ne se passerait à mordre
une chair blanche. Il faudrait devenir octobre, terre battue, voussure de la cave, pluie, attente.
L’odeur des pommes est douloureuse. C’est celle d’une vie plus fort, d’une lenteur qu’on ne
mérite plus.
Comentários
No primeiro parágrafo, mudei “imediatamente” para “de repente”. A evolução é sútil,
mas representa o esforço de melhor imitar a carnalidade do texto. O termo usado no original é
“tout de suite” e queria uma locução em vez de uma única palavra para traduzi-lo. Em segundo
lugar, temos a substituição de claies por divisórias, o que talvez apareça uma regressão à
primeira vista, pois torna o texto mais familiar. Mas creio que isso quebraria o equilíbrio interno
do texto, chamando atenção desnecessária a um elemento superficial da cena. Em seguida, na
primeira tradução há o que Berman chamaria de alongamento e clarificação, duas tendências
deformantes que são correlatas. A opção “caixas reviradas” recupera melhor a literalidade do
original. Também é interessante notar que na primeira tradução “os caixotes virados de cabeça
para baixo” exercem a função de aposto de claies, o que parece equivocado. O travessão talvez
seja um recurso literário para melhorar imitar o fluxo mental -ou seja, uma quebra repentina- o
que significa um uso diverso do comum. Adiante, colocou-se a questão, em reuniões, se
deveríamos traduzir vague à l’âme como vazio na alma ou como melancolia, pois há a
expressão cristalizada em francês. Por adotarmos as ideias do projeto tradutório de Berman,
optamos pela tradução literal. Mas é de se notar o baixo grau de estranheza da tradução literal,
a imagem do vazio representa bem a melancolia, na verdade o falante de francês talvez nem se
dê conta que seja uma expressão cristalizada, pois é uma metáfora bem próxima da realidade e,
de certa maneira, nem é abstrata. Em seguida, a tradução de Mais rien à faire por “Mas não deu
certo”, parece se encaixar na tendência deformante da clarificação. Acabamos por traduzir mais
literalmente. Em seguida, uma das opções mais chamativas do texto é a de decalcar o déferlante
por deferlante. É difícil precisar o significado da palavra, então resolvemos se valer da neologia.
Tal procedimento, segundo Berman, enriquece, em nosso caso, a língua portuguesa, não é algo
a se desprezar. É interessante notar que na versão italiana se usou a palavra travolgente para
traduzir a expressão. Nesse caso cremos haver certa literalidade carnal na tradução italiana, pois
uma análise fonética revela a proximidade de ritmo entre as duas palavras: déferlante e
travolgente. Ao repararmos nas vogais, parece que há um padrão que vai do mais fechado ao
mais aberto e volta ao mais fechado depois. Quanto às consoantes, d é próxima de t, mudando
apenas que esta não é sonora. Depois, outro par correlacionado, f e v. Este é sonoro e o primeiro
não. Por fim, ambos terminam com a consoante t. Parece razoável a semelhança sonora. Em
português não conseguimos pensar em nenhuma palavra já existente com uma sonoridade e
significado semelhante à déferlante.
No segundo parágrafo, invertemos toda a ordem do primeiro período na primeira
tradução, mas na segunda decidimos por voltar à ordem do original. Em seguida, outro detalhe
ousado do texto é a opção por traduz
ir confite por confit. Na culinária existe a expressão de pratos confits. Vale lembrar que a
palavra também parece ser obscura no francês, não sendo de fácil tradução. O fator de
estranheza parece justificado aqui. Até o fim do parágrafo, restituímos a ordem original e
tentamos traduzir de maneira mais literal. Uma coisa a se notar, é que a primeira tradução parece
não ter um bom ritmo. Na tentativa de enobrecer ou de usar uma ordem mais racional ao
português, a estrutura geral do texto parece se perder. Berman já havia dado nome a essas duas
tendências deformantes: enobrecimento e racionalização. O ritmo da tradução atual parece mais
harmonioso.
No terceiro e último parágrafo, usei e abusei de enobrecimentos, de modo que o texto
original está quase totalmente adulterado. Lembro-me que parti do pressuposto de que a
tradução melhorava o original, ou seja, parti do princípio da famigerada bela infiel. Na primeira
tradução de l’odeur de pommes fica claro a minha sanha intervencionista. Até mesmo cheguei
a acrescentar ao texto a célebre expressão de Camões “é um contentamento descontente”.
Le cinéma
Ce n’est pas vraiment une sortie, le cinéma. On est à peine avec les autres. Ce qui compte,
c’est cette espèce de flottement ouaté que l’on éprouve en entrant dans la salle. Le film n’est pas
commencé ; une lumière d’aquarium tamise les conversations feutrées. Tout est bombé, velouté,
assourdi. La moquette sous les pieds, on dévale avec une fausse aisance vers un rang de fauteuils
vide. On ne peut pas dire qu’on s’assoie, ni même qu’on se carre dans son siège. Il faut apprivoiser ce
volume rebondi, mi-compact, mi-moelleux. On se love à petits coups voluptueux. EN même temps, le
parallélisme, l’orientation vers l’écran mêlent l’adhésion collective au plaisir égoïste.
Le partage s’arrête là, ou presque. Que saura-t-on de ce géant désinvolte qui lit encore son
journal, trois rangs devant ? Quelques rires peut-être, aux moments où l’on n’aura pas ri – ou pire
encore : quelques silences aux moments où l’on aura ri soi-même. Au cinéma, on ne se découvre pas.
On s’enfoncer. On est au fond de la piscine, et dans le bleu tout peut venir de cette fausse scène sans
profondeur, abolie par l’écran. Aucune odeur, aucun coulis de vent dans cette salle penchée vers une
attente plate, abstraite, dans ce volume conçu pour déifier une surface.
L’obscurité se fait, l’autel s’allume. On va flotter, poisson de l’air, oiseau de l’eau Le corps va
s’engourdir, et l’on devient campagne anglaise, avenue de New York ou pluie de Brest. On est la vie,
la mort, l’amour, la guerre, noyé dans l’entonnoir d’un pinceau de lumière où la poussière danse.
Quand le mot fin s’inscrit, on reste prostré, en apnée. Puis la lumière insupportable se rallume. Il fau
se déplier alors dans le coton, et s’ébrouer vers la sortie en somnambule. Surtout ne pas laisser
tomber tout de suite les mots qui vont casser, juger, noter. Sur la moquette vertigineuse, attendre
patiemment que le géant au journal soit passé devant. Cosmonaute pataud, garder quelques
secondes cette étrange apesanteur.
O cinema
Não é exatamente um passeio, o cinema. Fica-se com dificuldade entre os outros. O que
conta, é esta espécie de flutuação algodoada que se experimenta ao entrar na sala. O filme não
começou ; uma luz de aquário ofusca as conversações feltradas. Tudo é abaulado, aveludado,
abafado. O carpete sob os pés, desliza-se com uma falsa com uma falsa fluidez em direção à uma fila
de poltronas vazia. Não se pode dizer que se senta, nem mesmo que se espalha em seu assento. É
preciso domar esse volume arredondado, meio-compacto, meio-macio. Ama-se a pequenos golpes
voluptuosos. Ao mesmo tempo, o paralelismo, a orientação em direção à tela misturam a adesão
coletiva ao prazer egoísta.
A partilha para lá, ou quase. Que será deste gigante desenvolto que ainda lê seu jornal, três
fileiras à frente ? Alguns risos talvez, nos momentos que não se ri - ou pior ainda : o silêncio nos
momentos em que se ri sozinho. No cinema, não se fica exposto. Afunda-se. Está-se ao fundo de uma
piscina, e no azul tudo poder vir desta falsa cena sem profundidade, abolida pela tela. Nenhum
cheiro, nenhum vento corre nesta sala inclinada em direção a uma expectativa sem animação,
abstrata, neste volume concebido para deificar uma superfície.
A obscuridade se faz, o altar se acende. Vamos flutuar, peixe do ar, pássaro de água. O corpo
vai se entorpecer, e nos tornamos campo inglês, avenida de Nova Iorque ou chuva de Brest. É-se a
vida, a morte, o amor, a guerra, afogado no funil de um pincel de luz em que a poeira dança. Quando
a palavra fim aparece, fica-se prostrado, em apneia. Em seguida a luz insuportável se acende. É
preciso então se desprender do tecido, e se agitar em direção à saída como um sonâmbulo.
Sobretudo não se deixar cair imediatamente as palavras que vão quebrar, julgar e classificar. Sobre o
carpete vertiginoso, esperar pacientemente que o gigante do jornal tenha passado adiante.
Cosmonauta patudo, manter por alguns segundos esta estranha agravidade.
Globo de vidro
É inverno para sempre, na água dos globos de vidro. Pega-se um nas mãos. A neve flutua em
câmera lenta, num turbilhão nascido do chão, primeiro opaco, evanescente ; depois os flocos se
espaçam, e o céu azul turquesa retoma sua fixidez melancólica. Os últimos pássaros de papel
permanecem suspensos alguns segundos antes de caírem. Uma preguiça penugenta os convida a
reencontrar o solo. Repousa-se o globo. Alguma coisa mudou. Na aparente imobilidade do
ornamento, escuta-se doravante como um apelo. Todos os globos são iguais. Que seja fundo de mar
atravessado de algas e de peixes, torre Eifel, Manhattan, papagaio, paisagem de montanha ou
lembrança de Saint-Michel, a neve dança e depois muito lentamente para de dançar, dispersa-se e se
apaga. Antes do baile de inverno não havia nada. Depois... Sobre o Empire State Building restou um
floco, lembrança impalpável que a água dos dias não elimina. Aqui o chão permanece repleto de
pétales ligeiras da memória.
Os globos de vidro se lembram. Sonham silenciosamente a tormenta, a nevasca que
retornará talvez, ou não retornará. Quase sempre sobre a prateleira ficam ; esquecer-se-á toda a
felicidade que se podia fazer nevar no cercado de suas mãos, este esse estranho poder de despertar
o longo sono do globo.
Dentro, o ar é de água. Não se importamos de início. Mas olhando bem, uma bolhinha está
presa lá em cima. O olhar muda. Não se vê mais a Torre Eiffel no céu azul de abril, a fragata cortante
num mar espalha. Tudo se torna uma claridade pesada ; atrás da parede, correntes flutuam acima
das torres. Reinos de altas solidões, meandros graves, imperceptíveis movimentos no silêncio fluído.
O fundo é pintado em azul leite até o teto, ao céu, à superfície. Azul de doçura falsa que não existe e
cuja beatitude acaba por inquietar, como se pressente nas armadilhas do destino num início de tarde
pisada de sesta e de ausência. Pega-se o mundo nas mãos, o globo é rápido quase quente Uma
avalanche de flocos elimina de um só golpe esta angústia latente das correntes. Neva no fundo de si,
num inverno inacessível onde o leve vence sobre o pesado. A neve é leve no fundo da água.