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1.

Delerm: o Flash literário


O presente trabalho de iniciação científica é uma continuação do trabalho “A tradução
comentada de La première gorgée de bière et autres plaisirs minuscules (1997), de Philippe
Delerm: o desafio cultural da tradução”, no qual traduzimos alguns textos e fizemos um trabalho
de tradução comentada em quatro deles. Como o nome sugere, trata-se da tradução comentada
ou anotada da obra acima mencionada que alcançou mais de um milhão de vendas e que tornou
famoso o seu autor. O título já denuncia uma influência de Marcel Proust: trata-se de uma
referência ao primeiro gole da xícara de chá retirado do episódio da Madeleine no primeiro
volume de La recherche. Ao tratar dos pequenos prazeres do dia-a-dia, Delerm se vale das
descrições psicológicas do consagrado romancista. Mas cremos que talvez Delerm o tenha
levado além em certo sentido. Proust se demorava nas descrições das memórias e das
lembranças. Delerm, ao contrário, em textos minúsculos o faz de maneira muito breve, o que
faz com que imite melhor a fugacidade de nossos pensamentos.
Nascido em 27 de novembro de 1950, aos 68 anos, Delerm goza de uma reputação
louvável no cenário francês atual. Amante do atletismo — tendo inclusive comentado os jogos
olímpicos de Pequim na televisão francesa —, não teve início de carreira fácil. Filho de
professores, seguiu a profissão dos pais no ensino de letras. Começou a tentar publicar obras
em 1975, mas foi só em 1983 que conseguiu a publicação de La Cinquième Saison. Ainda
instável, só foi obter sucesso em 1997 com La première gorgée de bière. Em 2007, 10 anos
depois do seu sucesso, abandona a carreira de professor para se dedicar à escrita em tempo
integral. São mais de 50 títulos lançados, reunindo os mais diversos gêneros literários como
romances, poesias, ensaios etc.

2.1-Antoine Berman: o nosso fundamento teórico


Concluída a nossa IC1, percebemos que o trabalho poderia ganhar uma lapidada em sua
parte teórica. Escolhemos Antoine Berman para ser o fio condutor de nossa pesquisa. Num
primeiro momento, nos dedicamos à leitura de sua obra "A tradução e a letra ou o albergue do
longínquo" em tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan e Andreia Guerini de
2007. O autor elabora um projeto de tradução que visa uma reviravolta em relação à abordagem
clássica. Em vez de focar na tradução do sentido, visa antes de tudo a tradução da “literalidade
carnal” do texto. Essa literalidade não se confunde com a “tradução letra-por-letra”, mas visa
tentar reproduzir a estranheza do original, manifestando as suas experiências em vez de
simplesmente comunicar o seu sentido. Isso implica, para dar um exemplo, tentar reproduzir a
sonoridade do original escolhendo palavras com sons semelhantes. Conceito difícil de precisar,
Berman vai além da simples questão fonética. Sua noção de literalidade implica tentar
reproduzir todas as estruturas do original, todo o seu esqueleto.
Em “O albergue do longínquo”, Berman estuda alguns casos de traduções que considera
exemplares e cita algumas noções dos quais nos valeremos em nosso trabalho. Uma delas é a
de língua mediadora na tradução. Segundo o autor:
Mas a tradução de Chateaubriand sugere algo de talvez mais importante para
nossa consciência ainda lacunar e trivial das dimensões do ato de traduzir:
que este não opera somente entre duas línguas, que sempre existem nele
(conforme modos diversos) uma terceira língua, sem a qual não poderia
existir. (p. 105, 2007)
Na passagem, o teórico se refere à tradução que Chateaubriand faz de The Lost Paradise
de John Milton, épico religioso. Tal língua mediadora seria o latim, pois em muitos momentos
o literato romântico teve que traduzir passagens bíblicas e usou a Vulgata como referência para
transpor do inglês ao francês.
Em outro momento, Berman ainda cita o caso da tradução da Eneida por Pierre
Klossowski. A língua mediadora seria o alemão, devido à própria especialidade de Klossowski,
mas também pela nação alemã ter trabalhado muito com traduções latinas e gregas no século
XIX.
Neste trabalho de IC, também nós refaremos a tradução tendo em vista uma terceira
língua, no caso, o italiano. Para tanto, usaremos como referência a tradução La prima sorsata
di birra e altri piccoli piaceri dela vita efetuada por Leonella Prato Caruso e lançada em 1998
pela editora Mondadori. Isso nos leva a outra noção tomada de Berman:

A retradução serve como original e contra as traduções existentes. E pode-se


observar que é neste espaço que geralmente a tradução produz suas obras-
primas. As primeiras traduções não são (e não podem ser) as maiores. Tudo
acontece como se a secundaridade do traduzir se desdobrasse com a
retradução, a "segunda tradução" (de certa forma, nunca há uma terceira,
mas outras "segundas"). Quero dizer com isto que a grande tradução é
duplamente segunda: em relação ao original, em relação à primeira tradução.
(p. 97, 2007)

Ainda acrescenta o filósofo francês “Para nós; isto significa: a tradução literal é
obrigatoriamente uma retradução, e vice-versa. “.
Fica claro, então, que as primeiras traduções não podem ser as melhores, por isso
refaremos as traduções já realizadas no nosso mencionado trabalho de IC1.
Outro empréstimo tomado do tradutólogo é a sua valorização da neologia, pois, segundo
o filósofo francês, toda grande tradução se distingue pela sua riqueza neológica. Em nossa nova
tradução não hesitaremos em ousar criar neologismos em alguns casos.
Ainda afirma Berman: “A literalidade não consiste somente em violentar a sintaxe
francesa [no nosso caso, a portuguesa] ou em neologizá-la: ela também mantém, no texto da
tradução, a obscuridade inerente ao original” (p. 101, 2007) destacando assim que a
literalidade não consiste apenas em romper com a sintaxe do idioma de chegada, mas também
em manter o claro-escuro do texto de partida; assim o afirma no capítulo sobre neologismos.
O neologismo tem esse poder de trazer a estranheza própria do original, ou seja, tem o poder
de trazer o outro até nós. É importante enfatizar que os neologismos possuem o potencial de
enriquecer o idioma e trazer novas possibilidades antes inexploradas da língua. O tradutor
aqui pode desempenhar o papel de renovação da língua.
2.2-O método de Berman
Em “Albergue do longínquo”, o tradutólogo apresenta uma proposta de ética da tradução
que consiste na acolhida do estrangeiro em sua estranheza. Contudo, não prescreve um método
de análise de traduções.
Em sua obra póstuma lançada em 1995 Pour une critique de traductions: John Donne,
Berman esboça um método para se analisar traduções. O especialista em tradução descreve seis
etapas: 1ª) Leitura da tradução, 2ª) Leitura do original, 3ª) Estudo da visão de mundo do tradutor
e de suas traduções anteriores, 4ª) Confronto da tradução com o original, 5ª) Estudo da recepção
da tradução, 6ª) Identificação de princípios de tradução.
Se inspiramos nesse método sugerido, contudo, são necessárias alterações, pois nosso
propósito é diferente. Berman em seu livro se propõe a analisar poemas de John Donne e de
fazer uma crítica no intento de estimular futuras traduções do poeta inglês. Quanto ao nosso
trabalho, o crítico e o tradutor são os mesmos, ou seja, nós temos um projeto de tradução e não
de mera análise. Além do mais, ainda temos um projeto de tradução comparada de línguas
diferentes.
Fizemos, então, algumas alterações nos procedimentos que listamos a seguir: 1 ª)
Leitura do original encontrando marcas estilísticas de Delerm, 2ª) Primeira tradução do texto,
3ª) Comparação com a tradução italiana do mesmo livro, 4ª) Confronto das traduções com o
original, 5ª) Identificação de princípios de tradução, 6ª) Estabelecer princípios da nova tradução
e retraduzir o original.
É de se notar que Berman valoriza o estudo da recepção. No nosso trabalho não faremos
isso e daremos prioridade a outros pontos. Isso se deve também ao fato de Delerm ser um autor
contemporâneo, pouco estudado ainda. Ademais, estamos comparando nossa tradução, que é
recente e de recepção restrita ao círculo acadêmico, e com a tradução italiana, de difícil acesso
ao estudo de sua recepção.
Cabe destacar ainda o modo de confrontação proposta por Berman na quarta etapa do
comentário. Segundo o filósofo da tradução se dá de quatro maneiras: 1ª) Confrontação de
zonas significativas entre o original e a tradução, 2ª) Confrontação das zonas problemáticas da
tradução com seus respectivos trechos no original, 3ª) A tradução com outras traduções do
mesmo texto. 4ª) A tradução com seus projetos.
Cremos ser possível aplicar perfeitamente as maneiras de confrontação de Berman em
nosso trabalho. Contudo, é de se destacar que não aplicaremos numa ordem bem definida. Ao
longo de nossos comentários destacaremos algumas vezes o modo de confrontação.

Alguns comentários gerais


Faço esta seção para comentar alguns aspectos gerais de nossa tradução, para evitar
repetir essas observações em cada texto e para que foquemos apenas no que é próprio de cada
um em seu devido comentário. Geralmente, Delerm descreve a partir da partícula impessoal
On, como em On entre dans la cave em L’odeur de pommes. Na nossa primeira não
traduzimos como “Entramos na cave” ou “Entra-se na cave”, mas sim “Entro no porão”.A
justificativa citada foi: “Achei melhor tomar essa decisão para tornar as experiências relatadas
mais íntimas e mais próximas do leitor”. Há uma tentativa de melhorar o original tornando as
lembranças mais íntimas.
Na versão italiano se usa Entriamo in cantina ou seja, usa a primeira pessoa do plural
como marca de impessoalidade (uso que também se faz no português). Porém, também havia
a possibilidade de se dizer “Si entra in cantina”, ou seja, no italiano também há o recurso da
partícula impessoal. Por um lado, parecem sinônimos, mas se pensarmos bem, devido certa
ambiguidade do primeiro uso, temos uma sensação de maior proximidade, enquanto com a
partícula impessoal temos a sensação de maior afastamento, assim como no português.
Decidimos para esta nova tradução usar sempre a partícula impessoal, o que representa
uma grande mudança em relação à primeira tradução. Essa mudança não é irrefletida, muito
pelo contrário, significa uma nova leitura da obra de Delerm. A primeira leitura foi menos
refletida, uma tradução palavra-por-palavra. Nesta segunda tradução tentamos absorver
melhor a forma geral da obra do autor best-seller. Como mencionamos no início, Delerm se
inspira no lendário Marcel Proust, autor marcado por suas descrições psicológicas. Cremos
que com essa nova opção tradutória representemos melhor o psicologismo em Delerm.
Ademais, as impressões e memórias relatadas são por demais fugazes, esvoaçam-se num
instante. A perspectiva da intimidade parece ser impossível, pois os pequenos prazeres de
Delerm passam tão rapidamente pela mente que mal se fazem notar. É preciso enquadrá-las
desde fora para que possamos pensar nela. Por isso a impessoalidade. É como o detetive que
para ver a cena capturada de um fugitivo desse pausas no vídeo para o ver melhor. Assim
cremos sermos mais fiel ao literato. Vale destacar que de certa fomos mais ousados que a
edição italiana, pois a outra opção impessoal deixa certo vestígio de pessoalidade.

La première gorgée de bière/La prima sorsata di birra/O primeiro gole de cerveja

Seguindo nossa proposta, comecemos por encontrar algumas marcas do estilo de


Delerm. O autor tem o hábito de fazer introduções repentinas. Começamos a ler o texto e de
repente já estamos na cena. C’est la seule qui compte. Sem mencionar explicitamente a bebida
(a não ser pelo título) o literato já nos intima a retomá-la como se estivéssemos presentes no
cenário. Não é por acaso esse recurso. É ordenado ao seu estilo “instantâneo literário” que cria
rapidamente as imagens. Como já mencionamos, Delerm se inspira em Proust e nesse texto a
influência é clara. A começar, por esse recurso de imersão na cena. Apesar de Proust descrever
longamente o episódio da Madeleine, o autor oitocentista nos enquadra na cena através de uma
simples frase Mort à jamais ? C’était possible.
Em seguida, podemos identificar outra marca do literato contemporâneo. São comuns
as frases em que não se utiliza verbo, deixando que a sequência de substantivos crie a cena. « .
Sur les lèvres déjà cet or mousseux, fraîcheur amplifiée par l'écume, puis lentement sur le palais
bonheur tamisé d'amertume. » O literato escreveu três linhas sem um único verbo.
Um recurso sempre presente no texto de Delerm é algum período em que se enumera
várias substantivos e adjetivos sem conjunção coordenativa como em “On savoure la couleur,
faux miel, soleil froid”.
Depois dessa análise do estilo do texto original, partamos para as etapas seguintes
segundo o método de Berman:

Original francês Tradução italiana Primeira tradução pt Segunda tradução pt


La première gorgée La prima sorsata di O primeiro gole de
de bière birra cerveja.

C'est la seule qui È l’unica che conta. É o único que conta.


compte. Les autres, Le altre, sempre più Os outros, cada vez
de plus en plus lunghe, sempre più mais longos, cada
longues, de plus en insignificanti, danno vez mais
plus anodines, ne solo un insignificantes, não
donnent qu'un appesantimento dão mais do que um
empâtement tiepido, empastamento
tiédasse, une un’abbondanza morno, uma
abondance sprecata. L’ultima, torrente estraga-
gâcheuse. La forse, riacquista, con prazeres. O último,
dernière, peut-être, la delusione di finire, talvez, desvenda a
retrouve avec la una parvenza di ilusão que acaba com
désillusion de finir potere… nosso vislumbre de
un semblant de poder...
pouvoir...

Quanto ao título, não há nenhuma dificuldade. Em ambas as línguas se traduziu


completamente o francês. Quanto à palavra anodines, curiosamente tanto no italiano quanto na
primeira tradução do português se traduziu da mesma forma, mas em ambos os idiomas há um
correspondente de anodine que é anodino em italiano e em português respectivamente.
Em seguida, empâtement tiédasse se tornou appesantimento tiepido em italiano que não
recupera a ideia de algo pastoso. Appesantimento possui um significado mais abstrato de algo
pesado (como indica sua raiz). Não conseguimos encontrar no italiano um equivalente de
empâtement, a tradutora italiana teve que apelar a uma palavra que não retoma completamente
esse significado. No português há empastamento, contudo, na primeira tradução facilitamos
para o leitor usando uma palavra mais corrente: morno em vez de tépido.
Adiante, outro segmento selecionado é abondance gâcheuse. O italiano traduziu por um
equivalente perfeito abbondanza. Na primeira tradução do português ousamos nos afastar do
francês usando uma palavra mais concreta: torrente. Gâcheuse é um adjetivo que denota
desperdício. Sprecata traduz bem esse significado. Na nossa primeira tradução, tendemos a
pensar em algo mais concreto e corrente como estraga-prazeres, tentando tornar Delerm mais
palpável.

Original francês Tradução italiana Primeira tradução pt Segunda tradução pt


Mais la première Ma la prima sorsata ! Mas o primeiro gole!
gorgée ! Gorgée ? Ça Comincia ben prima Gole? Na verdade,
commence bien di averla inghiottita. começa bem antes da
avant la gorge. Sur Già sulle labbra un garganta. Já nos
les lèvres déjà cet or oro spumeggiante, lábios esse ouro
mousseux, fraîcheur frescura amplificata espumante, esse
amplifiée par dalla schiuma, poi frescor amplificado
l'écume, puis lentamente sul palato pela espuma, depois
lentement sur le beatitudine velata di lentamente no
palais bonheur amarezza. Come paladar alegre
tamisé d'amertume. sembra lunga, la filtrado pelo
Comme elle semble prima sorsata. La amargor. Como
longue, la première beviamo subito, con parece longo o
gorgée ! On la boit un’avidità primeiro gole! Nós o
tout de suite, avec falsamente istintiva. bebemos
une avidité imediatamente, com
faussement uma avidez
instinctive. falsamente instintiva.
Aqui já começa a ficar claro uma abordagem explicativa da nossa primeira tradução.
Delerm tem um estilo minimalista que não foi bem compreendido na nossa primeira tradução.
“Na verdade” não está no original.
Depois temos o termo mousseux, traduzido por spumeggiante e espumante
respectivamente. Com o italiano percebemos uma sutileza da língua que também existe no
português. Qual a diferença de spumeggiante e spumante? Ou, em português, espumejante e
espumante? O segundo de cada língua pode se referir a uma espécie de bebida. Lembremo-nos
que o champagne também é chamado de espumante. Espumejante não tem esse sentido e
expressa a propriedade de espumar.
Original francês Tradução italiana Primeira tradução pt Segunda tradução pt
. En fait, tout est écrit
Di fatto, tutto sta De fato, tudo está no
: la quantité, ce ni scritto: la quantità, né roteiro: a quantidade,
trop ni trop peu qui troppa né troppo aquele nem muito
fait l'amorce idéale ; poca che è l’avvio nem pouco que dá ao
le bien-être immédiat ideale; il benessere início a medida
ponctué par unimmediato certa; o bem-estar
soupir, unsottolineato da un imediato pontuado
claquement desospiro, uno por um suspiro, um
langue, ou un silence schioccar della estalo na língua, em
qui les vaut ; la lingua, o un silenzio que um silêncio os
sensation trompeuse altrettanto eloquente; valoriza; a sensação
d'un plaisir quila sensazione enganadora de um
s'ouvre à l'infini... Eningannevole di un prazer que se abre ao
même temps, on sait piacere che sboccia infinito... Ao mesmo
déjà. Tout le meilleur all’infinito… tempo, já sabemos. O
est pris. On repose Intanto, già lo melhor já passou.
son verre, et on sappiamo. Abbiamo Repousamos nosso
l'éloigne même un preso il meglio. copo e o afastamos
peu sur le petit carré Riappoggiamo il um pouco no
buvardeux. bicchiere, lo descanso para copos.
allontaniamo un po’
sul sottobicchiere di
materiale assorbente.
Na descrição da quantidade temos duas coisas a destacar. No italiano o pronome
demonstrativo foi suprimido. Não chegamos bem a entender a razão. Uma hipótese é a da
ambiguidade desse pronome no francês. Por exemplo, em português, seria aquele ou esse?
Talvez tenha sido uma estratégia usada pela tradutora para não confrontar o problema.
Na nossa primeira tradução do português, mais uma intervenção. Resolvemos traduzir
idéale por medida certa. A intenção era tornar o texto mais fluente, pois nesse contexto parece
haver uma expressão mais corrente para designar a quantidade exata. Em italiano há a expressão
giusta dose, não sabemos exatamente o quão fluente é. De qualquer forma, a tradutora italiana
se aproximou mais do original.

Original francês Tradução italiana Primeira tradução pt Segunda tradução pt


On savoure la Assaporiamo il Saboreamos a cor,
couleur, faux miel, colore, finto miele, falso mel, sol frio.
soleil froid. Par tout sole freddo. Con Todo um ritual de
un rituel de sagesse tutto un rituale di sabedoria e de
et d'attente, on circospezione e di atenção, gostaríamos
voudrait maîtriser le attesa, vorremmo de controlar o
miracle qui vient à la dominare il milagre que ao
fois de se produire miracolo appena mesmo tempo, em
et de s'échapper. On avvenuto e già que acontece, se
lit avec satisfaction svanito. Leggiamo deixa escapar.
sur la paroi du soddisfatti sulla Sobre o copo lemos
verre le nom précis parete di vetro il com satisfação o
de la bière que l'on nome esatto della nome preciso da
avait commandée. birra che avevamo cerveja que pedimos.
Mais contenant et chiesto. Ma Mas continente e
contenu peuvent contenente e conteúdo podem se
s'interroger, se contenuto posso interrogar, se
répondre en abîme, interrogarsi, responder em
rien ne se multipliera rispondersi tra loro, abismo, sem se
plus. niente si riprodurrà multiplicar mais.
più.
Aqui temos uma dificuldade de interpretar par tout. A tradução por tudo aparentemente
não cai bem. A palavra par em francês parece ter um uso mais flexível do que em português. A
tradutora italiana interpretou o par no sentido de ser uma maneira. Na nossa primeira opção a
preposição sumiu deixando o texto com maior indeterminação.
Em seguida, a tradução italiana traduziu sagesse por circospezione que é uma palavra
que recolhe apenas um sentido de sabedoria. É difícil de entender a escolha, já que no italiano
há a palavra sagezza que significa bem o termo usado em francês.
Adiante, um problema estilístico difícil de resolver. vient à la fois de é uma forma rápida
de dizer que algo acabou de acontecer e que foi ação simultânea. A versão italiana reescreveu
de forma diferente sem, contudo, recuperar o sentido de simultaneidade. Na primeira tradução
portuguesa suprimimos a ideia de algo que aconteceu imediatamente e mantivemos somente a
noção de sincronia.
Prosseguindo, no nosso primeiro trabalho invertemos a ordem do período em que fala
do vidro e cometemos um equívoco de interpretação. Verre em francês pode ser o copo, mas
nesse contexto era um vidro mesmo. Ele está lendo a vitrine da loja. É de se notar que é uma
opção estilística de Delerm, pois há a palavra vitrine em francês (que aliás, o português decalcou
para si).
Por último no trecho, gostaríamos de destacar repondre em abîme. Em italiano não há
uma expressão que traduz essa técnica narrativa. No português, possivelmente por influência
do francês, temos o termo narrativa em abismo que foi a opção usada. Talvez fosse possível
outra opção mais exata em italiano. Talvez fosse possível até mesmo não traduzir a expressão
e deixar en abyme, dado que em outro momento do livro, em l’odeur de pommes, a tradutora
não hesitou em traduzir vague de l’âme por spleen, ou seja, de usar termos técnicos de narrativa
estrangeiros nas opções tradutórias.

Original francês Tradução italiana Primeira tradução pt Segunda tradução pt


On aimerait garder le Ci piacerebbe Gostaríamos de
secret de l'or pur, et conservare il segreto guardar o segredo do
l'enfermer dans des dell’oro puro e ouro puro, e
formules. Mais racchiuderlo in transcrevê-lo em
devant sa petite table formule. Invece, fórmulas. Mas diante
blanche éclaboussée davanti al tavolino da mesinha branca
de soleil, l'alchimiste bianco chiazzato di aspergida pelo sol, o
déçu ne sauve que les sole, l’alchimista alquimista
apparences, et boit de geloso salva solo le desiludido salva
plus en plus de bière apparenze e beve apenas as aparências,
avec de moins en sempre più birra con e bebe cada vez mais
moins de joie. C'est sempre meno gioia. È cerveja com cada vez
un bonheur amer : on un piacere amaro: si menos alegria. É uma
boit pour oublier la beve per dimenticare felicidade amarga:
première gorgée. la prima sorsata. bebemos para
esquecer o primeiro
gole.

Quanto ao último trecho do texto, gostaríamos de destacar enfermer. O texto italiano


traduziu a palavra por racchiudere, que significar fechado em si. Poderíamos refletir se há
outras opções, como chiudere. Na primeira versão português determinamos o sentido de
enfermer como se fosse o registro do segredo. Pensando bem, talvez não seja esse o sentido
pretendido por Delerm. Cavallero cita um certo epicurismo na obra do literato, ou seja, há um
certo hedonismo. A opção transcrever parece contrária a esse egoísmo.
Em seguida, traduzimos déçu por desiludido, que é uma opção literal. Não chegamos a
compreender a preferência italiana por geloso. O primeiro significado é de invejoso, mas
também tem o significado de cioso. Seja qual for o sentido—e o segundo parece mais próximo
do original—nenhum parece traduzir bem o francês.
Por fim, a edição italiana parece ter fugido de sua proposta. Traduziu o on pela terceira
pessoa singular e não pela primeira pessoa no plural, que foi a regra até agora. Na nossa primeira
escolha, mantivemos a coerência.

Comentário
A primeira tradução foi feita sem um projeto pré-definido, simplesmente se procurava
traduzir literalmente o texto segundo as idiossincrasias do tradutor.
Em um primeiro olhar, a tradução consegue imitar bem o estilo proposto por Delerm. A
introdução abrupta, a frase longa construída sem verbos e a enumeração sem conjunção.
Como propõe nosso método, convém comparar com outras traduções, como a italiana.
Esta segue bem de perto a versão francesa e é muito semelhante à nossa opção. Também contém
os elementos marcantes de Delerm. Uma ou outra diferença foi apresentada, como o
apagamento de “se répondre em abîme” que ficou “rispondersi tra loro”. Nós traduzimos “se
responder em abismo”, imitando o francês. O italiano também fez uma alteração em
“l’alchimiste déçu” que traduziu como “l’alchimista geloso”. Não conseguimos entender bem
a motivação. Traduzimos por “alquimista desiludido” que traduz bem o francês.
L’odeur des pommes
On entre dans la cave. Tout de suite, c’est ça qui vous prend. Les pommes sont là,
disposées sur des claies – des cageots renversés. On n’y pensait pas. On n’avait aucune envie
de se laisser submerger par un tel vague à l’âme. Mais rien à faire. L’odeur des pommes est une
déferlante. Comment avait-on pu se passer si longtemps de cette enfance âcre et sucrée ?
Les fruits ratatinés doivent être délicieux, de cette fausse sécheresse où la saveur confite
semble s’être insinuée dans chaque ride. Mais on n’a pas envie de les manger. Surtout ne pas
transformer en goût indentifiable ce pouvoir flottant de l’odeur. Dire que ça sent bon, que ça
sent fort ? Mais non. C’est au-delà… Une odeur intérieure, l’odeur d’un meilleur soi. Il y a
l’automne de l’école enfermé là. À l’encre violette on griffe le papier de pleins, de déliés. La
pluie bat les carreaux, la soirée sera longue…
Mais le parfum des pommes est plus que du passé. On pense à autrefois à cause de
l’ampleur et de l’intensité, d’un souvenir de cave salpêtrée, de grenier sombre. Mais c’est à
vivre là, à tenir là, debout. On a derrière soi les herbes hautes et la mouillure du verger. Devant,
c’est comme un souffle chaud qui se donne dans l’ombre. L’odeur a pris tous les bruns, tous les
rouges, avec un peu d’acide vert. L’odeur a distillé la douceur de la peau, son infime rugosité.
Les lèvres sèches, on sait déjà que cette soif n’est pas à étancher. Rien ne se passerait à mordre
une chair blanche. Il faudrait devenir octobre, terre battue, voussure de la cave, pluie, attente.
L’odeur des pommes est douloureuse. C’est celle d’une vie plus fort, d’une lenteur qu’on ne
mérite plus.

O odor das maçãs. (tradução atual)


Entra-se na cave. De repente, é isso que lhe prende. As maçãs estão lá, dispostas sobre
as divisórias – caixas reviradas. Não se pensava nisso. Não se tinha nenhuma vontade de se
deixar submergir por tal vazio na alma. Mas nada a fazer. O odor das maçãs é um deferlante.
Como se tinha podido passar tão longo tempo dessa infância agridoce?
Os frutos enrugados devem estar deliciosos, desta falsa secura onde o sabor confit parece
estar insinuado em cada ruga. Mas não se tem vontade de comê-las. Sobretudo de não
transformar em gosto identificável este poder flutuante do cheiro. Dizer que isso cheira bem,
que isso cheira forte? Mas não. Está além. Um cheiro interior, o cheiro de um eu melhor. Há
um outono da escola preso lá. Em tinta violeta se arranha o papel inteiro. A chuva bate nas
janelas, a noite será longa...
Mas o perfume das maçãs é mais que passado. Pensa-se em outrora por causa da
amplitude e da intensidade, de uma recordação da cave salpicada, de sótão sombrio. Mas é para
viver lá, segurar lá, de pé. Tem-se atrás de si o mato alto e o molhado do pomar. Diante, é como
um sopro quente que se dá na sombra. O odor pegou todos os castanhos, todos os vermelhos,
com um pouco de verde ácido. O odor destilou a doçura da pele, sua ínfima rugosidade. Os
lábios secos, sabe-se já que esta sede não é para ser estancada. Nada se passaria ao morder uma
carne branca. É preciso se tornar outubro, terra batida, a porta da cave, chuva, espera. O odor
das maçãs é doloroso. É aquele de uma vida mais forte, de uma lentidão que não se merece
mais.
O odor das maçãs (Primeira tradução)
Entro no porão. Imediatamente, é isso que me prende. As maçãs estão lá, dispostas sobre as
claies - caixotes virados de cabeça para baixo. Tento não pensar nisso. Não tinha nenhuma
vontade de me deixar levar por um tal vazio na alma. Mas não deu certo. O odor das maçãs é
hipnotizante. Como pude viver todos esses anos longe desta infância agridoce?
Com certeza os frutos murchos estão deliciosos, de uma falsa secura em que o sabor
cristalizado parece estar insinuado em cada ruga. Mas não tenho vontade de comê-los.
Sobretudo tenho vontade de dar a conhecer ao paladar esse impacto dado ao olfato. Para dizer
que cheira bem, que cheira forte? Mas não. Vai além... Um cheiro interior, o odor de um eu
melhor. Há ali o outono da escola fechada. Rabisco o papel inteiro com tinta violeta, letras sutis.
A chuva bate na janela, a noite será longa...
Mas o perfume das maçãs é mais do que passado. Penso nos velhos tempos por causa
da magnitude e intensidade, da lembrança de um porão de invadir os sentidos, um celeiro
escuro. Bem gostaria eu de viver nessa lembrança, de estar em carne e osso ali. Atrás de mim,
a grama alta e o orvalho do pomar. À frente, é como um fôlego quente na sombra. O odor tomou
conta de todos os marrons, todos os vermelhos, com um pouco de verde ácido. O odor destilou
a doçura da pele, sua ínfima rugosidade. Os lábios secos, e – como já disse- esta sede não deve
ser saciada, é um contentamento descontente. Nada aconteceria ao morder a carne branca. Devo
esperar o momento de ser absorvido pelo outono, pela chuva e pela terra molhada. O odor das
maçãs é doloroso. É o de uma vida mais forte, de uma lentidão que já não mereço mais

Comentários
No primeiro parágrafo, mudei “imediatamente” para “de repente”. A evolução é sútil,
mas representa o esforço de melhor imitar a carnalidade do texto. O termo usado no original é
“tout de suite” e queria uma locução em vez de uma única palavra para traduzi-lo. Em segundo
lugar, temos a substituição de claies por divisórias, o que talvez apareça uma regressão à
primeira vista, pois torna o texto mais familiar. Mas creio que isso quebraria o equilíbrio interno
do texto, chamando atenção desnecessária a um elemento superficial da cena. Em seguida, na
primeira tradução há o que Berman chamaria de alongamento e clarificação, duas tendências
deformantes que são correlatas. A opção “caixas reviradas” recupera melhor a literalidade do
original. Também é interessante notar que na primeira tradução “os caixotes virados de cabeça
para baixo” exercem a função de aposto de claies, o que parece equivocado. O travessão talvez
seja um recurso literário para melhorar imitar o fluxo mental -ou seja, uma quebra repentina- o
que significa um uso diverso do comum. Adiante, colocou-se a questão, em reuniões, se
deveríamos traduzir vague à l’âme como vazio na alma ou como melancolia, pois há a
expressão cristalizada em francês. Por adotarmos as ideias do projeto tradutório de Berman,
optamos pela tradução literal. Mas é de se notar o baixo grau de estranheza da tradução literal,
a imagem do vazio representa bem a melancolia, na verdade o falante de francês talvez nem se
dê conta que seja uma expressão cristalizada, pois é uma metáfora bem próxima da realidade e,
de certa maneira, nem é abstrata. Em seguida, a tradução de Mais rien à faire por “Mas não deu
certo”, parece se encaixar na tendência deformante da clarificação. Acabamos por traduzir mais
literalmente. Em seguida, uma das opções mais chamativas do texto é a de decalcar o déferlante
por deferlante. É difícil precisar o significado da palavra, então resolvemos se valer da neologia.
Tal procedimento, segundo Berman, enriquece, em nosso caso, a língua portuguesa, não é algo
a se desprezar. É interessante notar que na versão italiana se usou a palavra travolgente para
traduzir a expressão. Nesse caso cremos haver certa literalidade carnal na tradução italiana, pois
uma análise fonética revela a proximidade de ritmo entre as duas palavras: déferlante e
travolgente. Ao repararmos nas vogais, parece que há um padrão que vai do mais fechado ao
mais aberto e volta ao mais fechado depois. Quanto às consoantes, d é próxima de t, mudando
apenas que esta não é sonora. Depois, outro par correlacionado, f e v. Este é sonoro e o primeiro
não. Por fim, ambos terminam com a consoante t. Parece razoável a semelhança sonora. Em
português não conseguimos pensar em nenhuma palavra já existente com uma sonoridade e
significado semelhante à déferlante.
No segundo parágrafo, invertemos toda a ordem do primeiro período na primeira
tradução, mas na segunda decidimos por voltar à ordem do original. Em seguida, outro detalhe
ousado do texto é a opção por traduz
ir confite por confit. Na culinária existe a expressão de pratos confits. Vale lembrar que a
palavra também parece ser obscura no francês, não sendo de fácil tradução. O fator de
estranheza parece justificado aqui. Até o fim do parágrafo, restituímos a ordem original e
tentamos traduzir de maneira mais literal. Uma coisa a se notar, é que a primeira tradução parece
não ter um bom ritmo. Na tentativa de enobrecer ou de usar uma ordem mais racional ao
português, a estrutura geral do texto parece se perder. Berman já havia dado nome a essas duas
tendências deformantes: enobrecimento e racionalização. O ritmo da tradução atual parece mais
harmonioso.
No terceiro e último parágrafo, usei e abusei de enobrecimentos, de modo que o texto
original está quase totalmente adulterado. Lembro-me que parti do pressuposto de que a
tradução melhorava o original, ou seja, parti do princípio da famigerada bela infiel. Na primeira
tradução de l’odeur de pommes fica claro a minha sanha intervencionista. Até mesmo cheguei
a acrescentar ao texto a célebre expressão de Camões “é um contentamento descontente”.

Le cinéma
Ce n’est pas vraiment une sortie, le cinéma. On est à peine avec les autres. Ce qui compte,
c’est cette espèce de flottement ouaté que l’on éprouve en entrant dans la salle. Le film n’est pas
commencé ; une lumière d’aquarium tamise les conversations feutrées. Tout est bombé, velouté,
assourdi. La moquette sous les pieds, on dévale avec une fausse aisance vers un rang de fauteuils
vide. On ne peut pas dire qu’on s’assoie, ni même qu’on se carre dans son siège. Il faut apprivoiser ce
volume rebondi, mi-compact, mi-moelleux. On se love à petits coups voluptueux. EN même temps, le
parallélisme, l’orientation vers l’écran mêlent l’adhésion collective au plaisir égoïste.
Le partage s’arrête là, ou presque. Que saura-t-on de ce géant désinvolte qui lit encore son
journal, trois rangs devant ? Quelques rires peut-être, aux moments où l’on n’aura pas ri – ou pire
encore : quelques silences aux moments où l’on aura ri soi-même. Au cinéma, on ne se découvre pas.
On s’enfoncer. On est au fond de la piscine, et dans le bleu tout peut venir de cette fausse scène sans
profondeur, abolie par l’écran. Aucune odeur, aucun coulis de vent dans cette salle penchée vers une
attente plate, abstraite, dans ce volume conçu pour déifier une surface.
L’obscurité se fait, l’autel s’allume. On va flotter, poisson de l’air, oiseau de l’eau Le corps va
s’engourdir, et l’on devient campagne anglaise, avenue de New York ou pluie de Brest. On est la vie,
la mort, l’amour, la guerre, noyé dans l’entonnoir d’un pinceau de lumière où la poussière danse.
Quand le mot fin s’inscrit, on reste prostré, en apnée. Puis la lumière insupportable se rallume. Il fau
se déplier alors dans le coton, et s’ébrouer vers la sortie en somnambule. Surtout ne pas laisser
tomber tout de suite les mots qui vont casser, juger, noter. Sur la moquette vertigineuse, attendre
patiemment que le géant au journal soit passé devant. Cosmonaute pataud, garder quelques
secondes cette étrange apesanteur.

O cinema
Não é exatamente um passeio, o cinema. Fica-se com dificuldade entre os outros. O que
conta, é esta espécie de flutuação algodoada que se experimenta ao entrar na sala. O filme não
começou ; uma luz de aquário ofusca as conversações feltradas. Tudo é abaulado, aveludado,
abafado. O carpete sob os pés, desliza-se com uma falsa com uma falsa fluidez em direção à uma fila
de poltronas vazia. Não se pode dizer que se senta, nem mesmo que se espalha em seu assento. É
preciso domar esse volume arredondado, meio-compacto, meio-macio. Ama-se a pequenos golpes
voluptuosos. Ao mesmo tempo, o paralelismo, a orientação em direção à tela misturam a adesão
coletiva ao prazer egoísta.
A partilha para lá, ou quase. Que será deste gigante desenvolto que ainda lê seu jornal, três
fileiras à frente ? Alguns risos talvez, nos momentos que não se ri - ou pior ainda : o silêncio nos
momentos em que se ri sozinho. No cinema, não se fica exposto. Afunda-se. Está-se ao fundo de uma
piscina, e no azul tudo poder vir desta falsa cena sem profundidade, abolida pela tela. Nenhum
cheiro, nenhum vento corre nesta sala inclinada em direção a uma expectativa sem animação,
abstrata, neste volume concebido para deificar uma superfície.
A obscuridade se faz, o altar se acende. Vamos flutuar, peixe do ar, pássaro de água. O corpo
vai se entorpecer, e nos tornamos campo inglês, avenida de Nova Iorque ou chuva de Brest. É-se a
vida, a morte, o amor, a guerra, afogado no funil de um pincel de luz em que a poeira dança. Quando
a palavra fim aparece, fica-se prostrado, em apneia. Em seguida a luz insuportável se acende. É
preciso então se desprender do tecido, e se agitar em direção à saída como um sonâmbulo.
Sobretudo não se deixar cair imediatamente as palavras que vão quebrar, julgar e classificar. Sobre o
carpete vertiginoso, esperar pacientemente que o gigante do jornal tenha passado adiante.
Cosmonauta patudo, manter por alguns segundos esta estranha agravidade.

Globo de vidro

É inverno para sempre, na água dos globos de vidro. Pega-se um nas mãos. A neve flutua em
câmera lenta, num turbilhão nascido do chão, primeiro opaco, evanescente ; depois os flocos se
espaçam, e o céu azul turquesa retoma sua fixidez melancólica. Os últimos pássaros de papel
permanecem suspensos alguns segundos antes de caírem. Uma preguiça penugenta os convida a
reencontrar o solo. Repousa-se o globo. Alguma coisa mudou. Na aparente imobilidade do
ornamento, escuta-se doravante como um apelo. Todos os globos são iguais. Que seja fundo de mar
atravessado de algas e de peixes, torre Eifel, Manhattan, papagaio, paisagem de montanha ou
lembrança de Saint-Michel, a neve dança e depois muito lentamente para de dançar, dispersa-se e se
apaga. Antes do baile de inverno não havia nada. Depois... Sobre o Empire State Building restou um
floco, lembrança impalpável que a água dos dias não elimina. Aqui o chão permanece repleto de
pétales ligeiras da memória.
Os globos de vidro se lembram. Sonham silenciosamente a tormenta, a nevasca que
retornará talvez, ou não retornará. Quase sempre sobre a prateleira ficam ; esquecer-se-á toda a
felicidade que se podia fazer nevar no cercado de suas mãos, este esse estranho poder de despertar
o longo sono do globo.
Dentro, o ar é de água. Não se importamos de início. Mas olhando bem, uma bolhinha está
presa lá em cima. O olhar muda. Não se vê mais a Torre Eiffel no céu azul de abril, a fragata cortante
num mar espalha. Tudo se torna uma claridade pesada ; atrás da parede, correntes flutuam acima
das torres. Reinos de altas solidões, meandros graves, imperceptíveis movimentos no silêncio fluído.
O fundo é pintado em azul leite até o teto, ao céu, à superfície. Azul de doçura falsa que não existe e
cuja beatitude acaba por inquietar, como se pressente nas armadilhas do destino num início de tarde
pisada de sesta e de ausência. Pega-se o mundo nas mãos, o globo é rápido quase quente Uma
avalanche de flocos elimina de um só golpe esta angústia latente das correntes. Neva no fundo de si,
num inverno inacessível onde o leve vence sobre o pesado. A neve é leve no fundo da água.

O doce de padaria no domingo de manhã


Pegamos vários doces, é claro. Uma religieuse no café, um paris-brest, duas tortas de
morango, um mil-folhas. Com exceção de um ou dois, sabemos a quem cada um é destinado – mas o
que irá sobrar para os gulosos? Debulhamos os nomes sem pressa. Do outro lado do balcão, a
vendedora, com a pinça de bolo na mão, mergulha com submissão em direção aos nossos desejos;
nem sequer mostra impaciência quando tem de mudar a embalagem – o mil-folhas não aguenta. É
fundamental essa embalagem plana, de bordas arredondadas. Ela vai constituir a base sólida de um
edifício frágil, rumo ao destino ameaçado. - Mais alguma coisa? Então a vendedora envolve a
embalagem numa pirâmide de papel rosa, já atada com uma fita castanha. Durante o pagamento,
seguramos o pacote na palma da mão, mas uma vez que ganhamos a rua, o seguramos pela fita,
afastando-o um pouco do corpo. É assim. As guloseimas do domingo devem ser carregadas como se
carrega um bebê. Como um homem de pequenos ritos, avançamos sem arrogância e nem falsa
modéstia. Essa espécie de escrúpulo, de seriedade de rei mago, não é ridícula? Mas não é. Se as
calçadas de domingo têm um ar de flâneur, a pirâmide suspensa está ali por alguma razão – aqui e ali
alguns alhos-poró se sobressaem no saco de compras. Com o pacote de doces à mão, ganhamos a
silhueta do professor Girassol – o que é imprescindível para cumprimentar a multidão depois da
missa e de dar uns chutes a gol, do café e do cigarro. Singelos domingos em família, domingos de
outrora, domingos de hoje, o tempo balança como um incensário na extremidade de uma fita
castanha. Um pouco de creme faz uma mancha na religieuse de café.

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