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2 K Jornal de Crítica

O LIVRO POR VIR


Maurice Blanchot (esq.) e Emanuel Lévinas se conheceram em 1925 na Universidade de Estrasburgo
CARLOS FELIPE MOISÉS

O nome do crítico literário e também é uma forma de conhecimento. O críti- indagação de base, sobre as formas, a na- Blanchot retoma, neste passo, uma idéia
romancista francês Maurice Blanchot co francês é um legítimo “arquileitor”, tureza íntima e o destino da literatura. de Jean Starobinski, para quem (o resu-
(1907-2003) evoca um tempo, umas déca- como o chamaria este outro crítico, seu A quarta e última seção (“O livro por vir”) mo é do próprio Blanchot) “Rousseau
das atrás, em que “literatura” era uma conterrâneo (um pouco mais jovem) enfeixa, numa reflexão-síntese, o pensa- inaugura o tipo de escritor em que quase
espécie de território privilegiado onde se Michel Riffaterre. mento de Blanchot sobre a essência do todos nos tornamos, de uma forma ou
cruzavam, não necessariamente em harmo- Este O livro por vir dá bem mostra da fenômeno literário. de outra: obstinado em escrever contra
nia, mas sempre com proveito de todas as exigente concepção de crítica literária pra- O autor concebe a literatura como uma a escrita, ´homem de letras se queixando
partes, a Arte ou as Artes, a Filosofia, a ticada pelo escritor francês. A primeira arte ameaçada, e a ameaça não vem pro- das letras´, em seguida mergulhando na
Psicologia, a Política, a História... Tudo seção do volume (“O canto das sereias”), priamente de fora (“Aquilo que um regi- literatura por esperança de sair dela, e
dependia da qualidade e da envergadura dedicada a Marcel Proust, contém uma me tem de duro com relação à arte pode depois não parando mais de escrever
da obra literária em causa (quem precisa- intensa reflexão sobre as relações entre fazer-nos temer por esse regime, mas não porque perdeu toda possibilidade de co-
ria, hoje, recorrer a tão amplo repertório tempo narrativo, tempo histórico e tem- pela arte”, p. 39), mas de dentro, isto é, municar alguma coisa” (p. 59). No final
para “criticar” este ou aquele best-seller, po biográfico, de tal modo que a obra dos impulsos profundos que levam o escri- do precioso ensaio, Blanchot conclui:
este ou aquele improviso?). E dependia proustiana é e não é o objeto da análise tor a escrever. Um dos temas mais caros “Rousseau vê perfeitamente que a litera-
também, evidentemente, da competência levada a termo, dividindo terreno com ao crítico-teórico francês (sucessivamente tura é a maneira de dizer que diz pela
do crítico. Blanchot é talvez um dos mais uma série de agudas considerações sobre retomado neste e em outros livros seus) diz maneira, assim como vê que existe um
notórios exemplos de crítico literário de a arte narrativa, em geral. A segunda e a respeito à luta constante que o escritor sentido, uma verdade e algo como um
sólida formação humanística, para quem terceira seções (“A questão literária” e “De trava com as palavras, ao seu esforço con- conteúdo da forma, no qual se comuni-
um bom romance, digamos, é um espaço uma arte sem futuro”) ampliam o leque, tínuo em busca da expressão justa de um ca, apesar das palavras, tudo aquilo que
de reflexão em cujo âmbito deve ser posta pensamento que corre sempre o risco de dissimula sua enganosa significação”
e reposta, incessantemente, a mesma ra- O livro por vir (Le livre à venir), Maurice Blanchot, deixar de existir, podendo até nunca ter (p. 65). Tal é o impasse que leva o crítico
dical indagação em torno da essência da existido. É o caso de Artaud, em cuja obra, a falar da literatura como“uma arte sem
trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins
literatura e do papel que esta desempe- no ver de Blanchot, o pensamento coincide futuro” – um impasse que se irradia e se
Fontes, 2005, 386 p.
nha, ou pode desempenhar, no esforço com a impossibilidade de pensar. multiplica, na medida da variedade dos
comum em busca da determinação do sen- No ensaio sobre Rousseau, essa mes- autores analisados na coletânea.
tido e dos horizontes da condição huma- reunindo uma série de ensaios sobre au- ma idéia se expande: “Por um lado, es- E não é preciso cogitar de certa van-
na em geral. Para Blanchot, a literatura tores como Artaud, Rousseau, Claudel, crever é o mal, pois é entrar na mentira guarda, com seu vezo potencialmente
pode até ser, também, entretenimento – Broch, Henry James, Musil, Hermann da literatura e na vaidade dos costumes autodestruidor, para localizar o extremo
desde que não seja rebaixada a reduto de Hesse e outros, sempre sob o mesmo duplo literários; por outro lado, é tornar-se capaz a que esse impasse pode levar. Blanchot
especialistas, com suas tecnicalidades, ou olhar, empenhado em flagrar as peculia- de uma mudança encantadora e entrar o detecta, não sem alguma ironia, num
a sub-ramo da disciplina alcunhada “comu- ridades de um autor ou de uma obra, e numa nova relação de entusiasmo com a contemporâneo de Rousseau, esse obs-
nicação e expressão”; mas acima de tudo também em estender a densa e apaixonada vontade, a liberdade e a virtude” (p. 59). curo Joubert... escritor que nunca escreveu

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JORNALISTA RESPONSÁVEL: Franklin Valverde • MTB 14.342 Edição de junho de 2006
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um livro. “Ele foi, assim, um dos primei-


ros escritores completamente modernos
[...] sacrificando os resultados à desco-

O PARCEIRO INVISÍVEL da escrita


berta de suas condições, e não escreven-
do para acrescentar um livro a outro, mas
para se tornar mestre do ponto de que
lhe pareciam sair todos os livros e que,
uma vez encontrado, o dispensaria de
escrever” (p. 70).
Com base nos exemplos acima, imagi-
ne o leitor a riqueza que o aguarda a
cada página da valiosa coletânea, que
tanto tempo levou para ser traduzida (a
edição original de Le livre à venir é de MANUEL DA COSTA PINTO
1959). A tradução, de primeira qualidade,
permite que Blanchot “fale”, em portu- “Estranha, misteriosa consolação dada nasça finalmente uma palavra, a primeira que colocam a direita “conservadora” nos
guês, com propriedade, elegância e poder pela literatura, talvez perigosa, talvez palavra de um verso. Aqui, experiência antípodas de uma esquerda “transfor-
de persuasão equivalentes aos do origi- libertadora: salto para fora do mundo dos significa: contato com o ser, renovação de madora”, existia de fato um furor revolu-
nal. E, ao contrário do que a abertura assassinos.” A frase está numa página de si mesmo nesse contato.” cionário nas tendências fascistas – e a Revue
desta resenha possa ter suscitado, não há 1922 do Diário de Kafka. Poderia ter sido Entretanto, é esse o desafio enfrenta- du Siècle (da qual Blanchot era colabora-
nada de nostalgia no fato de O livro por escrita por Blanchot, para quem o autor do por Christophe Bident em Maurice dor) chegou a anunciar com destaque a
vir evocar um tempo pretérito. Munido de Na colônia penal era o maior escritor Blanchot – Partenaire Invisible. Publi- publicação de textos de Mussolini.
da informação (trata-se de um livro “ve- do século XX. cado em 1998 (cinco anos da morte do Ilusões à parte, Blanchot buscava na
lho” de quase meio século), o leitor se Literatura como morte e superação da escritor francês, em 2003), o livro é uma direita um radicalismo para ele ausente
surpreenderá ao verificar que, em nenhu- vivência comum, sacrifício das coisas em biografia intelectual na qual os aconteci- entre os comunistas. “O marxismo será
ma de suas páginas, há seja o que for de proveito de uma escrita absoluta, que de- mentos da vida desse autor nascido em sempre aos olhos de Blanchot uma emprei-
“desatualizado”. Nada aí envelheceu. signa um “ser da linguagem” que ultrapas- 1907, na cidade de Quain (região de Saône- tada de desespiritualização, de desu-
O tempo de uma literatura “ameaçada”, sa a experiência cotidiana e as palavras et-Loire), servem como deflagradores manização e, portanto, uma traição da
como diz Blanchot, continua a ser per- ordinárias. Em suma, literatura como as- de metamorfoses intelectuais. Bident idéia de revolução”, escreve Bident. Qual
feitamente este nosso tempo, hoje. E nada sassinato ritual dos verdadeiros assassi- seria a idéia de revolução sustentada por
indica que não haja mais, no século XXI, nos, que são aqueles que fazem com que o Maurice Blanchot – Partenaire invisible , Christophe Blanchot, que também assinou virulentos
literatura à altura desse entendimento, ou mundo continue a se repetir. artigos antinazistas? “Era-lhe preciso mos-
Bident. Seyssel: Éditions Champ Vallon, 640 p.
que não haja mais críticos da mesma ou Para Blanchot, “a essência da literatu- trar – continua o biógrafo – que a verda-
Pode ser encomendado à Livraria Francesa, r. Prof.
similar estirpe humanista. É só prestar ra é fugir a qualquer determinação es- deira revolução não se contenta em acres-
atenção. E não perder a esperança – que, sencial”. Toda a sua obra – ficcional ou Atílio Innocenti, 920, São Paulo, tel. 11/3849-7956, centar desordem à desordem, não se limi-
como dizia Vinícius, “é sempre melhor ensaística – pode ser entendida como in- franliv@livrariafrancesa.com.br ta a uma ‘profecia sem poder’. Recusar o
ter que não ter”. vestigação obsessiva de uma linguagem que mundo tal como é não implica objeção ou
não esteja alienada no mundo, e que por não escreveu uma obra nos moldes dos renúncia, mas uma condenação à ausên-
Carlos Felipe Moisés é poeta, tradutor e ensaísta, isso denuncia a maldição de existir num biógrafos norte-americanos, com um cia total de repouso. A revolução deve se
autor de Alta traição (Marco) e Fernando Pessoa: lugar determinismos empíricos e cadeias acúmulo de episódios pitorescos, mas o impor como ‘passagem brusca do impos-
almoxarifado de mitos (Escrituras). simbólicas (no duplo sentido da expressão). inventário dos biografemas de uma vida sível ao necessário’.”
Vem daí o oxímoro que atravessa “inteiramente votada à literatura e ao Não se sabe ao certo como essa utopia
seus livros: o preço da liberdade do su- silêncio lhe é próprio”. voluntarista, formulada em termos abs-
jeito é sua desaparição – um ocultamento Em suas 640 páginas, entretanto, não tratos e no jargão da dialética hegeliana,
voluntário de si que lança luz sobre aque- estão ausentes aqueles pontos cegos que poderia se transformar em realidade obje-
le espaço literário que dá nome a um de podem colocar em xeque o significado tiva. Ou melhor, talvez sua objetividade
seus livros. Nesse sentido, Blanchot fez de uma obra – e o mais eloqüente, sem fosse essa recusa do mundo transformada
de sua invisibilidade pública um modo dúvida, é o fantasma de suas colabora- em literatura – uma recusa que incluía as
de existência – um modo de existir na e ções com periódicos de extrema direita. vicissitudes da política e o apagamento de
pela literatura. O retrato que daí emerge é o de um in- si mesmo.
Diante disso, a tarefa de escrever a telectual elitista e com pendores monar- Curiosamente, e na contramão das
biografia dessa personagem parece fada- quistas, defensor de uma austera aristo- acusações de anti-semitismo, Bident des-
da ao fracasso. Ou, pior, estaria condena- cracia do espírito que, no contexto beli- taca na trajetória de Blanchot os traços
da a violar um interdito formulado pelo coso e efervescente do Front Populaire deixados pelas presenças de Emanuel
próprio biografado. Afinal, foi Blanchot (coligação de esquerda que governou a Lévinas (ao lado de quem ele aparece
que – comentando uma passagem dos França no entre-guerras), chegou a assi- numa de suas raras fotografias) e Edmond
Cadernos de Malte Laurids Brigge, de nar textos anti-semitas contra o líder Jabès – o poeta egípcio em quem Blanchot
Rilke – escreveu palavras irônicas sobre o socialista Léon Blum. identificou uma “homologia entre condi-
lugar-comum segundo o qual a literatura O alinhamento de Blanchot aos conser- ção, palavra e escrita” que encontramos
é expressão da experiência: “As lembran- vadores da Action Française de Charles em sua própria obra.
ças são necessárias, mas para serem esque- Maurras, contudo, traz um ethos que, em-
cidas, para que nesse esquecimento, no bora indigesto, deve ser devidamente de- Manuel da Costa Pinto é jornalista, autor de Albert
Última foto de Franz Kafka (1883-1924) silêncio de uma profunda metamorfose, glutido. Ao contrário das atuais distinções Camus – Um elogio do ensaio (Ateliê).
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O ANJO e o analgésico
FABIO WEINTRAUB

A morte recente da poeta (e tradutora, ensaísta, bailarina, bruxa e Meses depois ela voltaria a brigar comigo por causa de uma resenha
tantas outras coisas que não cabem em um parêntesis) Dora Ferreira da que eu fiz para uma revista de psicologia (“Jung: O profeta helvético”.
Silva deflagrou o convite para a republicação de trechos da entrevista que Insight – Psicoterapia e Psicanálise, número 99 / setembro de 1999),
vocês lerão a seguir, feita por mim, em abril de 1999, para a revista Azougue a propósito da biografia de Frank McLinn publicada pela Editora Record
(Poesia & Artes) – Ano IV, vol. I. Voltar a esse depoimento permite não (Carl Gustav Jung: uma biografia).
apenas reavaliar a importância da obra poética de Dora, como também A biografia, apesar de respaldada por uma extensa pesquisa, era
perceber a amplitude de seus interesses e ações. Seja como tradutora – de tendenciosa e muito pouco lisonjeira em relação a Jung, chegando a
autores tão diversos como Angelus Silesius e San Juan de la Cruz, Rilke e relatar alguns de seus envolvimentos amorosos com pacientes e outros
Hölderlin, Valéry e Saint-John Perse, Jung e Tauler –, seja na qualidade de deslizes dessa natureza.
animadora cultural, dirigindo revistas literárias importantes (Díalogo, Dora ficou furiosa comigo, não apenas por eu ter me dignado a
Cavalo Azul) e recebendo, desde os anos 50, poetas, intelectuais e artistas resenhar um livro que conspurcava a memória de um pensador seminal,
plásticos na famosa casa da Rua José Clemente – o fato é que o legado da traduzido por ela para o português. Por sugestão minha, a editora da
poeta não está apenas nos seus livros, mas também em um tipo muito revista, decidira também publicar um poema da própria Dora sobre o
especial de hospitalidade, que estava no centro do seu modo de ser. Jung, encimado por duas fotos: uma do Jung, outra da própria Dora,
Dora era uma mulher encantadora e difícil, capaz de gestos os mais lado a lado, em diálogo.
contraditórios. Lembro-me do entusiasmo com que ela recitava os poemas Ela achou um despropósito colocarem a foto dela ao lado da do
dela e nos pedia para recitarmos os nossos, muitas vezes em posições estra- mestre, vendo aí também um sinal de desrespeito: “Uma foto enor-
nhas, fazendo-nos subir na mesa ou nas cadeiras, chamando-nos corporal- me minha ao lado de Jung! Por quê? Não sou ninguém diante dele,
mente para uma espécie de ritual. é um despautério”.
Quantas vezes ela não interrompeu a conversa para nos trazer, do fundo De nada valeu eu explicar que eu nada tinha a ver com a diagramação
do jardim, uma romã recém-colhida por ela, dizendo: “Quando duas pessoas da revista, que a resenha me havia sido encomendada, que eu estava
comem juntas uma romã, ficam amigas para sempre”. precisando de trabalho, que a intenção da editora foi homenageá-la etc.
Lembro-me também de uma outra vez em que fui visitá-la na compa- Depois nos reconciliamos, mas ela ficou uns bons anos criticando
nhia de dois grandes amigos poetas, Donizete Galvão e Ruy Proença. Ela meu suposto desapreço pelo Jung. Ela inclusive brincava, aludindo a
havia saído do hospital há pouco tempo, após um atropelamento grave, um poema meu, no qual eu dizia guardar “uma faca sob a língua / para
com fraturas. Pois não é que, no meio da conversa, de modo totalmente o beijo / em mamãe”. Sempre que podia, ela me perguntava, em tom
inesperado, ela, já octagenária, se levantava e zupt!, erguia a perna estendida, brincalhão, se a faca continuava em minha boca.
em pose de bailarina, para nos mostrar como havia se recuperado? Talvez Dora visse neste meu relato uma comprovação daquela suspeita,
Por seu temperamento, Dora estava sempre pronta para a celebração, mas a verdade é que conto esses “causos” tentando alcançar a complexi-
investindo as tarefas mais cotidianas, os gestos mais comezinhos com uma dade do caráter Dora, sem escamotear as tensões que marcaram nosso
energia que os descolava do chão, retirando-os de sua imediatez opaca. relacionamento, entre desastres e analgésicos, lâminas e romãs.
Mas é justamente esse impulso ascensional e soteriológico, evidente em sua
poesia, que, em determinadas ocasiões, a colocava na defensiva em relação Reproduzimos abaixo trechos da entrevista publicada originalmente
a projetos estéticos e existenciais não orientados pela bússola do Sublime. na revista Azougue, na qual ela fala de seus mitologemas poéticos e
Praticante de uma poesia hierofânica, como bem a descreveu José Paulo comenta os riscos inerentes a toda experiência criadora. Riscos diante
Paes, e em total consonância com o seu modo de ser, Dora me parecia enca- dos quais revela, ao final, com meditada alegria, ser realmente uma
rar com desconfiança projetos marcados pela negatividade dessacralizadora andarilha do limiar, a mais grata hóspede dos labirintos.
– vistos por ela, na melhor das hipóteses, como sintomas de desequilíbrio
anímico (e cósmico), que cumpria corrigir. K: A editora Topbooks, do Rio, publicou sua obra poética reunida. Em
Penso, por exemplo na primeira reação de Dora – desfavorável, irada – à face dessa retrospectiva, como você avalia seu percurso lírico desde
leitura da entrevista aqui republicada. Chateou-a sobretudo o trecho em que Andanças (1970) até agora? Você percebe mudanças de dicção? Obses-
ela se refere à morte do marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva. Trata-se de sões que ficaram mais nítidas?
um trecho da entrevista em que Vicente, diante de uma dor de cabeça de Dora Dora Ferreira da Silva: Acho que houve um amadurecimento do ponto de
– alegada como motivo para cancelar a viagem no curso da qual ele morreria vista literário; embora não considere poesia literatura. É uma outra coisa.
– mandava a esposa “tomar um Melhoral”, surdo ao pressentimento da morte. A literatura é algo que a pessoa pode fazer “com um pé atrás”. Já o poema
Dora repreendeu-me duramente por não ter cortado essa frase que, acontece com você dentro dele. É um strip-tease muito maior que um
segundo ela, tornava ridícula a descrição da cena. Tentei defender-me romance, por exemplo, em que há personagens entre os quais o autor pode
dizendo que era isso justamente que tornava a cena mais tocante, introdu- ou não estar. Podem estar ele e seus heterônimos, com vários outros per-
zindo nela uma nota de profunda humanidade, mostrando quão falha é a sonagens. Mas a poesia tem qualquer coisa... Não que ela tenha que ser
interpretação dos sinais que nos rodeiam nos momentos decisivos: ao aviso (e ela não é) autobiográfica, mas há flashes de problemas, buscas... O pro-
de um anjo responde-se com a fé nos analgésicos. Falei, falei, mas não houve blema religioso está aí, o do amor..., mas sem o pé atrás da reflexão estrita.
remédio: o que me parecia belo, soava como desrespeito para Dora. Há um elemento arracional – não digo irracional – intuitivo, sentimento
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e pensamento, tudo. E percepção. De vez distanciada. Quando há distanciamento, Dora: É difícil responder genericamente.
em quando, você sente o tato das coisas.
Todas as funções trabalham na poesia.
certas coisas, que até eram um pouco her-
méticas, vêm à tona com significado.
Não é propriamente o arquétipo que está
no poema. Cada poeta tem os seus mito-
Quando
Certos poetas são mais perceptivos; outros
são mais intuitivos; outros, mais reflexivos;
ou, mais sentimento. Não conhecia a tipo-
K: Por falar nisso, o Vilém Flusser diz que
existem duas compreensões que a gente
logemas. Esses mitologemas dependem dos
ancestrais, das primeiras vivências..., de-
pendem às vezes de uma fotografia que
descobri
logia junguiana quando fiz meus poemas,
mas agora eu conheço. Lendo, comecei um
pode ter do símbolo na poesia. A primei-
ra, do símbolo como convenção humana
pode provocar falsas lembranças. (Levan-
ta-se e vai pegar uma fotografia do pai com
o Jung, fiquei
trabalho crítico, de reflexão sobre o feito. que atribui sentido ao mundo. E outra do ela, bebê, nos braços.) Essa foi a minha
Todo poeta tem um crítico lateral. Ele não
pode ser muito forte, pois é como a luz que
símbolo como obra transumana, que per-
mite o acesso a um sentido original, divino.
primeira viagem. Pouco depois meu pai
morreu, assim jovem, tinha trinta e dois
completamente
entra na câmara fotográfica: vela a imagem.
Um poeta que seja muito crítico fará a poe-
sia sofrer. Mas também não pode ser total-
Não é o homem quem cria o sentido; ele
se vincula a um sentido prévio. Na sua
poesia, Flusser diz que o símbolo existe
anos. E eu tinha oito meses, eu, a futura
tradutora de São João da Cruz. Todas as
fotografias dessa época ficaram escuras.
siderada
mente acrítico, não pode acolher tudo o que nessa segunda acepção... Não parece a noche oscura? Era um quin-
vem. Poesia não é tudo o que vem, não é Dora: Exato. Porque para ele, como para tal de tarde. Tenho a impressão que ele “do piloto, que levava uma flor para a
escrita automática. Se bem que, para alguns, Kafka, a decodificação do símbolo revelava fazia isso (faz o gesto de erguer os braços noiva, abraçado com a hélice”, do paralí-
pode ser..., há pessoas que fazem escrita au- o absurdo do mundo. Para mim é o contrá- oferecendo o bebê aos céus.) O Donizete tico, que vêm com extrema rapidez”, “com
tomática. Eu trabalho com Dioniso e Apolo: rio. Os símbolos são sinais, cuja origem não (Galvão) me mostrou um texto da Maria as pernas do vento”...; e vai descrevendo a
o primeiro momento é o que vem; depois eu sei determinar, que têm um sentido trans- Zambrano em que ela fala isso: “Minha queda de um jeito meio feérico. É um poe-
edito. Quando escrevo à mão, ainda não con- cendente, não imanente. Pode ser também primeira viagem foi nos braços do meu ma estupendo que termina assim: “Chove
sigo editar. Tenho que bater à máquina para imanente, mas não um imanente pessoal. pai.” Fiquei tão tocada! Donizete vê seme- sangue sobre as nuvens de Deus. E há poe-
tomar distância, objetivar. Há uma objetivi- Nunca chegaria, pela reflexão, àquele pás- lhanças entre nós: ela gosta de São João da tas míopes que pensam que é o arrebol”.
dade do poema. Quando o poema se desta- saro que me assustou. Nunca inventaria isso. Cruz, eu também... Mas isso não quer dizer Dora: Veja só! Mas quero voltar à pergun-
ca, se você começar a mexer demais, estraga Foi uma percepção captada pelo incons- nada; muita gente gosta. Não tenho uma ta sobre os arquétipos na poesia de hoje.
tudo. Há um momento em que ele diz: nas- ciente. Eles chamam de apercepção. É uma afinidade muito grande com Maria Zambra- Na verdade, tenho trabalhado tanto que
ci, não mexa mais. Ele não fala, mas você percepção tão rápida que o seu inconsciente no pelo que conheço dela; se bem que co- quase não sobra tempo pra ler os poetas de
escuta. Gostei disso que a Inezita me deu se assusta e pode não saber se é um pássaro nheço pouco. Mas dessa viagem ela fala, agora. Acho isso péssimo, porque eu tenho
(mostra um pêndulo com um poliedro de ou um deus. Acho que, para o autor, o bene- um movimento que se alterna: para o alto, interesse. Toda a leitura da poesia brasilei-
cristal na ponta), porque me transmite mui- fício da crítica é o esclarecimento sobre coi- e de volta ao peito; para o alto, para o ra ocorreu mais na primeira metade da
to a sensação de um trabalho invisível. A luz sas que o confundem no tocante à própria peito. Estranho, não? Isso é um mitolo- minha vida. Depois eu fui lendo filosofia,
passa... a melhor definição de poesia, para expressão poética. Não é para promovê-lo gema? Um homem com os pés na terra e teologia, leituras mais direcionadas para a
mim, é isso aqui. É um trabalho que a luz, o ou abatê-lo que a crítica serve. Há um ele- que me levanta na direção do céu. É um minha busca interior. Quando descobri
lógos, atravessa... O mythos foi antes, de- mento de revelação na crítica. Às vezes eu mitologema, pegando não o conceito, mas o Jung, fiquei completamente siderada.
pois tem que vir o lógos. Em certos poetas concordo, às vezes não. Mas o que sinto o conteúdo. Já vi pais, mães, fazerem isso. O curioso é que fui convidada, pelo Dr.
prepondera o mythos, noutros, o lógos. mesmo, diante do poema escrito, é aquilo A criança até perde um pouco do fôlego... Léon Bonaventure, que foi meu analista,
que o Eliot falava: “Não, não era nada disso Então, para falar do mitologema, tem que para integrar a comissão responsável pela
K: Pensando ainda na tipologia poética, o que eu queria dizer.” Ele tem razão. Há se apoiar em fatos, aparentes fatos da edição brasileira das obras completas do
muitos se referem ao caráter hierofânico uma distância entre o poema e aquele mo- vida da pessoa. Outro exemplo: o crepús- Jung. Estou acabando de traduzir com uma
da sua poesia... mento nascente que o deslancha. Concordo culo. Quando eu era criança, não sabia que amiga de família suíça, a Maria Luíza Appy,
Dora: A descoberta foi do José Paulo também com Fernando Pessoa: “Escrever o crepúsculo era o crepúsculo. Eu mora- Os arquétipos do inconsciente coletivo.
Paes. A hierofania vem da minha origem poesia é meu modo de estar só.” Fui uma va em Pinheiros, onde ainda tinha muito É um livro de quinhentas páginas, estamos
grega, origem mediterrânea, que vai dar criança muito sozinha, não fisicamente sozi- mato, muito carrapicho... Minha babá me acabando, agora falta só um pouquinho,
na Grécia, na Albânia. É deles a visão nha, mas o fato de eu não ter conhecido meu punha no colo para eu não pegar carrapi- umas sessenta páginas. Então você pode
hierofânica. Está em mim como um lega- pai... Depois a perda do Vicente, eu tinha cho nas perninhas. Um dia, eu me lembro, imaginar qual é o tempo que me sobra.
do. Desde criança tenho esses insights. quarenta e poucos anos, foi uma repetição eu estava no colo dela e vi uma cena terrí- Tenho tempo, assim, para dar uma volta
Quando eu estou andando no caminho de da orfandade para mim. Viuvez e orfandade vel: meu pai gritando, sangue, estava mor- no quarteirão... Isso tudo com o desastre
Itatiaia e, de repente, vem um pássaro, é estão muito ligadas... (Silêncio). to. Tinha sido atropelado pela carroça. Não de automóvel, sei lá, eu não tenho uma vida
um susto. E eu não sei mais se era um eram pensamentos, eram percepções, fulgu- rítmica. Minha vida é desrítmica. Não por-
pássaro ou um deus. Não é um exagero. K: O Jung, num texto que você traduziu, rações tenebrosas. As primeiras imagens que eu queira, acontece. Agora eu estou com
Não é literatura. Deu-me o temor sagra- “Psicologia e Poesia”, diz que as obras de são muito duras. Então o crepúsculo era..., problemas econômicos, como todo mundo,
do. Agradeci muito a José Paulo Paes por arte têm um papel compensador que restaura eu entrava chorando em casa, “mamãe, ma- e tenho muitas dificuldades.(...) Essa coisa
ter descoberto essa linha. A Constança o equilíbrio anímico do mundo. Os arquéti- mãe, o sol caiu do barranco e o céu está cheio romântica de o poeta morrer tísico é de um
(Marcondes Cesar) fala muito no Kerenyi, pos que se podem encontrar nas obras de de sangue!” E ia chorar no quarto. Vivia mau gosto incrível. Mas sou otimista. Acho
no Otto, no Mircea Eliade. Eu os conhe- uma determinada época dialogam com as o drama do céu, o drama cósmico, como que a situação está tão ruim, porque tem
ço, mas a minha poesia é anterior, não vem carências anímicas daquela época. Você a perda do pai. Mais tarde eu soube que que ser ruim. Está tudo desequilibrado,
deles. Só bebemos nas mesmas fontes. também vive insistindo que os problemas que o pôr-do-sol está ligado à morte de Cristo. muita desigualdade, rapinagem, muita coi-
Minha poesia não é hierofânica porque li estamos atravessando nesse final de século, sa esquisita. Então, as coisas ficam bem
Eliade. Senão seria uma poesia intelectual. como a violência, o desemprego, pobreza, K: Você conhece um poema do Jorge de ruins para depois melhorar. A tal história
É como o Jung. Quando o li, fiquei muito epidemias..., devem ser entendidos como Lima chamado “O grande desastre aéreo da enantiodromia, do Heráclito. Na verda-
comovida. Depois percebi que ele me pu- disfunções da anima mundi. Que arquéti- de ontem”, dedicado ao Portinari, em que de, não fiz nada para sair esse livro. Nunca
nha animicamente nua. Quando escrevi, pos você encontra na poesia contemporânea ele começa dizendo “Vejo sangue no ar”? me senti infeliz porque a crítica não me elo-
não sabia. Não estava suficientemente respondendo a esse estado de coisas? Ele vai falando dos passageiros caindo, giava. Pelo contrário, quando o elogio é
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exagerado eu me sinto humilhada, porque


não acredito naquilo. Eu me acho bastante
inteligente para criticar a crítica. De qual-
quer maneira, vou te dizer onde eu vejo o
toda pessoa que lê um texto não introduz
nele um coeficiente pessoal? O que nós
lemos de Platão? Você acha que todos lêem
o mesmo Platão? Talvez Heidegger inter-
NO TEMPO
DOS PUNKS
que está acontecendo arquetipicamente no fira um pouco mais no poeta do que um
mundo. Vendo filmes para descansar. Não leitor mais inocente. (...)
descansam nada. Digo: “Agora vou descan-
sar.” Daí eu tomo um refresco, deito, ouço K: Ainda pensando nos seus poemas, você
música, relaxo – eu sei aquela técnica de diz que não contratou os serviços de
relaxamento, de deixar o corpo pesado, Dédalo; o labirinto veio de graça. Como
respirar lentamente... –, depois ligo a tele- gerir essa dádiva?
visão. E vejo a enantiodromia. Há uma Dora: (Silêncio) A vida não é um labirinto?
guerra espreitando... É só fogo. Fogo, inun- E não é de graça? Eu não sei se alguém ima- RICARDO LÍSIAS
dações, crimes hediondos... Rarissima- gina que a vida não seja um labirinto, mas,
mente há uma história razoável, humana. por mais simples que a pessoa seja, a vida é Quando pensei no meu texto para o
Mas ontem eu vi uma história humana. um labirinto. Nada está predeterminado. primeiro número do K – Jornal de Crí-
De pessoas de meia-idade, solitárias, que Quando o Vicente morreu, fiquei à beira tica, achei boa idéia resenhar Los
de repente sentem que não podem ser da- da loucura com a idéia da Moira. Tudo pichiciegos, o clássico romance de
quele jeito... Acho que eu era a única pessoa parecia predeterminado. Eu não queria fa- Rodolfo Fogwill. Logo vi, porém, que a
que estava naquele canal, porque não é algo zer a viagem, estava morrendo de dor de dificuldade da tarefa ia muito além do
que esteja no ar. cabeça. Disse: “Vicente, vamos adiar, eu não fato de Fogwill ser inteiramente desco-
quero ir, estou morrendo de dor de cabe- nhecido entre nós: seu ambiente, a his-
K: Voltando à questão da hierofania, quero ça!”. “Tome um Melhoral”, ele me respon- tória recente da Argentina, é completa-
que você fale um pouco do Hölderlin, cujo deu. Há experiências em que tudo parece mente distinto do brasileiro. Apesar de
poema “O Arquipélago” você traduziu. predeterminado. Na estrada, quase dois ambos os países viverem traumas seme-
Trata-se de um poeta também muito sinto- caminhões vieram por cima da gente... lhantes (ditaduras militares sanguiná- Luis Gusmán, Martin Kohan e, entre
nizado com o divino. Era pessimista, enten- A única coisa que me fez superar isso, de- rias, um certo populismo que sempre muitos outros, Rodrigo Fresán.
dia a modernidade como um período de pois que eu entrei em análise, foi uma ex- toma conta da vida política e sobretudo Por trás de uma expressão rigorosa-
afastamento do divino, de fragmentação do plosão, de dentro, religiosa. É o Cristo. E um cotidiano econômico absolutamente mente estruturada, evidentemente está
homem, alienação em face da natureza, da olha que eu saí da Igreja, porque não tenho desorganizado), tanto a maneira com uma dupla intenção: em primeiro lugar,
sociedade e de si mesmo. Foi um dos pri- uma tendência para me conformar a algo que a sociedade os encara quanto, con- a ficção argentina contemporânea se de-
meiros a propor essa compreensão da externo, institucional. Mas sei que o meu seqüência ou não, a maneira com que as bate em meio à própria tradição: ninguém
modernidade que se tornaria um clichê poé- Deus é o Cristo. Não nego tudo o que ficou respectivas literaturas os formaliza são pretende esquecer Borges, passar por
tico, filosófico, sociológico e político no séc. para trás. Cada cultura, cada povo tem uma completamente diferentes. cima de Júlio Cortázar ou varrer para
XX. Pensando nas apropriações que foram Imago Dei. Quando os estudiosos falam em Não deve ser por outra razão que Los debaixo do tapete Juan José Saer; do
feitas do Hölderlin nesse século, a leitura de “contexto cultural” parece uma coisa fria; pichiciegos, apesar de festejado por crí- mesmo jeito, os autores que procuram
Heidegger, do Rilke, do pessoal ligado ao não é. A religião grega está ligada aos atos ticos de peso, caso de Beatriz Sarlo, e de uma forma adequadamente nova tam-
Stefan George, a gente encontra interpreta- de cada dia. Para recolher a água, existia a já ter sido traduzido em diversos idio- bém sabem que não podem deixar para
ções muito contrastantes. O Heidegger não Casa da Fonte, onde as mulheres levavam mas – sem falar no sucesso de público trás, sob o risco de se tornarem irre-
seria um leitor suficientemente atento às as bilhas..., tudo é ritual. (...) que o livro atingiu na Argentina – ainda levantes, o trauma recente que constitui
complexidades, aos aspectos formais, con- não saiu no Brasil. Sendo o romance uma a tradição a que todos querem pertencer.
cretos da poesia de Hölderlin... Dora Ferreira da Silva (01/07/1918 – † 06/ notável radiografia ficcional dos últimos
Dora: Olha, do Heidegger eu conheço 04/2006) tempos de ditadura no país de Jorge Luís
Muchacha punk, Rodolfo Fogwill. Buenos Aires:
“Hölderlin, a essência da poesia”, do qual Borges (que, atenção, o país de Guima-
Editorial Sudamericana, 1992.
eu cheguei a traduzir uma boa parte; tradu- Fabio Weintraub é poeta e editor, autor de Novo rães Rosa ainda não realizou!), que já
zi do francês. Eu acho muito bom. Agora, endereço (Nankin/Funalfa). suspendeu a vergonhosa lei de anistia, Los pichiciegos. Buenos Aires: Editorial Sudame-
prendeu um punhado de torturadores e
ricana, 1994.
não teme levar adiante julgamentos pú-
Obra de Dora Ferreira da Silva blicos contra as atrocidades realizadas
Poesia fuga – São Paulo: Massao Ohno, 1997; pelos militares, de fato pouco na prosa Apesar de difícil para quem vê de fora,
Andanças – São Paulo: edição da autora, Obra poética reunida – Rio de Janeiro: contemporânea pode estar tão distante a operação pode ser descrita em poucas
1970 (Prêmio Jabuti / Câmara Brasileira do Topbooks, 1998 (prêmio Machado de
da realidade brasileira. linhas: não se trata de reproduzir na ficção
Livro); Uma via de ver as coisas – São Pau- Assis, Academia Brasileira de Letras);
É visível na ficção argentina o emba- um que outro fato que os jornais (e os tri-
lo: Duas Cidades, 1973; Meninaseumundo Cartografias do imaginário. São Paulo: T.
te entre a forma literária e a história do bunais) já cuidaram. Ao contrário, o caso
– São Paulo: Massao Ohno, 1976; Jardins A. Queiroz, 2003; Hídrias – São Paulo,
país, inclusive a empreendida no calor é reler a história, desdobrando a tradição
(esconderijos) – Saõ Paulo: Cupolo, 1979; Odysseus, 2005 (prêmio Jabuti / Câmara
da hora, como é o caso de Fogwill. De literária, para, encontrando uma forma
Talhamar – São Paulo: Massao Ohno / Brasileira do Livro).
fato, salta aos olhos a preocupação for- narrativa nova, reverter o próprio destino
Roswitha Kempf, 1982 (Menção Honro-
mal, normalmente girando em torno da histórico. Trocando em miúdos, só mes-
sa no Prêmio PEN Clube de São Paulo); Ensaio especificidade do narrador que centrali- mo uma nação com um embate formal,
Retratos da Origem – São Paulo: Roswitha Angelus Silesius (em colaboração com
Kempf, 1988; Poemas da Estrangeira – São Hubert Lepagneur) – SP: T. A. Queiroz, za a narrativa, recente ou não, dos nos- no que toca à sua arte, tão aguerrido
Paulo: T. A. Queiroz, 1995 (Prêmio Jabuti 1986; Tauler e Jung (em colaboração com sos vizinhos. Para ficar nos últimos anos, como a Argentina para, em movimento
/ Câmara Brasileira do Livro); Poemas em Hubert Lepagneur) – SP: Paulus, 1998. é fácil ver a luta por uma nova arquite- análogo, ter a coragem de mudar a lei, ou
tura empreendida por, além de Fogwill, seja a forma que estrutura as instituições,
K Jornal de Crítica 7

DUAS MARINAS
para julgar crimes de tortura ou desapa- Olhando para o mesmo original ao
recimento, por exemplo. lado das traduções, identificando ao me-
De fato, não é preciso ir mais longe nos a figura das letras russas, o leitor se
para observar a distância que o Brasil está pergunta: como é que um tradutor saiu de
dessa realidade. Por aqui, a lei da anistia заботу AB5@5BL”
“701>BC стереть para “apagar o cui-
está mais forte do que nunca, de vez em dado” e o outro para “deleta aflição / im-
quando um torturador é levado ao con- prime afeição”? E, curioso, vai aos dicio-
gresso para contar que deu uns tapas em nários e descobre que, de fato, a Marina
um político que agora apronta as suas e de Bernardini está colada no sentido lite-
não temos processo nenhum contra vio- TARSO DE MELO ral daqueles caracteres. Nova pergunta:
lações gravíssimas à lei. A propósito, sequer se “deleta aflição” reflete, com apelo
abrimos os arquivos militares. De fato, Pertenço ao número pouco restrito dos tenha uma impressão diferente da mi- informático (tanto quanto “imprime”), o
eu precisaria de um espaço enorme para que se encantaram – e ainda se encantam nha), a primeira coisa que percebo é que que é dito no original, de onde saiu o “im-
analisar, em um contexto tão diferente, – com a antologia Poesia russa moderna, saem dali Marinas bastante diferentes: prime afeição”, entre outros, que a Marina
o belo romance de Fogwill. Como não realizada pelos irmãos Augusto e Haroldo tanto diferentes entre si, quanto dife- de Pignatari diz?
posso, ao menos por enquanto, tentarei de Campos e por Boris Schnairderman. rentes daquela imagem que eu fazia da É lugar-comum que, na tradução de
no meu espaço apresentar sua obra de Um número que cresce sem parar desde a poeta Marina a partir da antologia dos poesia, muitas vezes é impossível recupe-
maneira mais geral. edição original pela Civilização Brasileira, concretos e de alguns outros poemas li- rar aspectos essenciais do original. Do
Para logo adiantar a característica mais em 1968, até a mais recente pela Perspec- dos esparsamente. A voz da Marina de mesmo modo, é sabido que as soluções
notável de seus livros, sejam os contos ou tiva, ainda mais ampliada que as quatro Pignatari guarda poucos traços de seme- literais às vezes são mais traiçoeiras do que
os romances, vale ressaltar que Fogwill edições lançadas pela Brasiliense. lhança com a de Bernardini. E talvez isso eventuais criatividades cometidas pelo tra-
sempre, realmente com insistência, lembra Folheando o exemplar comprado há se deva ao fato de que Marina chegou ao dutor. A idéia do leitor é mais clara quanto
o leitor de que tudo que o narrador pode cerca de 15 anos, lembro bem o quanto português para, digamos, defender tese. a isso, obviamente, quando ele conhece a
oferecer é ficção. O conto “Muchacha me deixaram instigados aqueles poemas e língua original. Quando não a conhece,
punk”, publicado na coleção de relatos também as breves biografias dos poetas. Marina Tsvetáieva, trad. Décio Pignatari. Curitiba: quase refém do tradutor, tem poucas
curtos com o mesmo nome, é um exce- Prisões, suicídios, exílios, fuzilamentos, chances de saber o quanto, de fato, aquela
Travessa dos Editores, 2005, 151 p.
lente exemplo disso: já na metade final, o tudo isso dava ainda mais força ao senti- versão contém do original.
narrador imagina-se mudando o destino do e ao mistério dos poemas da antolo- Indícios flutuantes, trad. Aurora Fornoni Bernardini. Como saíram quase ao mesmo tempo
das personagens, inclusive e principalmente gia. Poesia, ali, não era brincadeira. as duas Marinas que o leitor tem em
São Paulo: Martins, 2006, 208 p.
o seu, fazendo um terrorista do IRA (ele Foram poucos, infelizmente, os poetas mãos agora, em português, é inevitável
está em Londres no final da década de se- daquele time que, depois da antologia, reparar que, do livro de Pignatari, sai
tenta) explodir o bar onde ele e a garota ganharam traduções mais amplas por No caso de Pignatari, a escolha dos uma poeta mais solta, humorada, mais
punk flertam. No entanto, como no co- aqui. Contudo, nos últimos anos há ace- poemas e as opções da tradução parecem leve (como a que chama Vladímir
meço do texto o leitor é logo avisado que nos de que essa lacuna vai ser preenchida, ser determinadas pela tese exposta no pre- Maiakóvski de “Mirinho” e Sierguéi
narrador e a personagem punk vão passar lenta e competentemente, por estudiosos fácio como “ideologia da composição” (e Iessiênin de “Serginho”...) do que aquela
a noite juntos, evidentemente uma bomba da língua russa, um grupo que há pouco também “outradução”). No de Bernardini, artista ao mesmo tempo grave e terna
do IRA não pode explodi-los. era possível contar nos dedos da mão. igualmente, a razão da antologia está na que aparece nas traduções de Bernardini,
A sutileza é notável e comprova o que Assim, ao mesmo tempo em que o Bra- tese (neste caso, propriamente acadêmica) uma artista que se mostra também na
eu dizia antes sobre a literatura argenti- sil ganha as mais esmeradas traduções da dos “indícios flutuantes” na poesia de Poesia russa moderna e que sua biogra-
na: rearranjando a forma, o que no caso prosa russa (das principais obras de Marina, “indícios secundários de signifi- fia nos faz supor.
prevê inicialmente a denúncia de seu Dostoiévski e Tolstói, por exemplo), a tra- cado”. Tais teses, a meu ver, explicam as Com qual Marina ficar? Marina e sua
artificialismo, é a própria história que dução de poesia russa também colhe seus diferentes Marinas que saem de cada li- poesia “irreprimível” se saem bem em
se recria, conduzindo-nos a novos senti- frutos. Entre eles, destaco as belíssimas tra- vro e para quem, como eu, não sabe cote- ambos os casos. Num ou noutro, ela se
dos – em “Muchacha punk”, a bomba duções que o poeta André Vallias publicou jar as traduções com o original, implicam mantém a poeta que, para Pasternak, “pas-
do IRA não explode, muito embora o recentemente de poemas de Mandelstam uma perplexidade: o que é mesmo que a sava facilmente sobre as dificuldades da
narrador anuncie orgulhoso seu poder (nas revistas Et cetera e Errática). Mas, Marina escreveu? verdadeira criação, resolvia os seus pro-
de fazer isso, para denunciar outro tipo aqui, quero falar um pouco de dois livros Um poema traduzido em ambos os blemas brincando, com um brilho técnico
de terrorismo, o mesmo, inclusive, que dedicados à obra de Marina Tsvetáieva livros, por exemplo, leva essa perplexi- incomparável”. Ao mesmo tempo em que
sustenta Los pichiciegos. O reforço à (1892-1941) que saíram nos últimos meses. dade ao extremo. Enquanto a Marina de a tradução de Bernardini inspira confiança
condição de artificialidade da literatura Marina era destaque em Poesia russa Bernardini diz “Beijar na testa – apagar quanto à proximidade com o original, a
é justamente o que a torna relevante moderna. Sua biografia (diversas fugas, o o cuidado. / Beijo na testa. // Beijar nos de Pignatari, com seus achados, flagra uma
como manifestação engenhosa capaz de fuzilamento do marido, a filha no campo olhos – tirar a insônia. / Beijo nos olhos. Marina igualmente forte.
intervir em organizações que de longe ul- de concentração, o suicídio) espantava; // Beijar nos lábios – matar a sede. / Beijo Assim, é importante poder contar com
trapassam seus limites. Desde já é fácil sua poesia (de versos “concisos, ásperos, nos lábios. // Beijar na testa – apagar a traduções mais amplas da poeta, ainda que
notar que Fogwill percebeu a lição e, por severos”), ainda mais. Mas faltava algo. lembrança. / Beijo na testa.”, a de suspeitemos que o original tenha sido afe-
isso, é tão relevante. O chato de tudo é Agora, com os volumes traduzidos por Pignatari diz “Beijo na testa – deleta afli- tado (positiva e negativamente) pelas teses
fazer o raciocínio em negativo para ten- Décio Pignatari (Marina Tsvetáieva – ção / imprime afeição / Beijo na testa // que o colocaram para defender. A propó-
tar descobrir porque ele não interessa à Travessa dos Editores, 2005) e Aurora Beijo nos olhos – deleta pesadelo / im- sito, é Pignatari quem anota: “Para
cultura brasileira. Fornoni Bernardini (Indícios flutuantes – prime desvelo / Beijo nos olhos // Beijo Marina, a qualidade de um poema de valor
Martins, 2006), dá para ter mais algumas na boca – deleta sede e fome / imprime transparece até numa tradução literal”.
Ricardo Lísias é escritor, autor de, entre outros Duas idéias sobre a força de Marina. seu nome / Beijo na boca // Beijo na testa
praças (Globo) e doutor em Literatura Brasileira pela Lendo os dois lançamentos (que estão – deleta memória / e fim da história / Tarso de Melo é poeta, autor de Planos de fuga e
Universidade de São Paulo. em edição bilíngüe – e quem lê russo talvez Beijo na testa”. outros poemas (Cosac Naify).
8 K Jornal de Crítica

Os álbuns do português José Carlos americanas Marvel e DC, ou dos mangás do pequeno Nemo pelo universo parale-
Fernandes demonstram que as histórias em japoneses, que infestam as bancas e o lo dos sonhos talvez ofereçam o subs-

UM CATÁLOGO de sonhos REYNALDO DAMAZIO


quadrinhos podem ser algo mais que pro-
duto descartável da cultura de massas.
Ou seja, um híbrido de literatura e arte,
onde texto e imagens convivam de modo
inteligente e provocador e que haja um ver-
dadeiro diálogo criativo entre linguagens,
imaginário da garotada. Não há super-
poderes nas páginas de Fernandes, mas
situações absurdas, poéticas, lírico-trá-
gicas, que fazem de nosso cotidiano pós-
moderno o palco de operetas minimalistas
que jamais se juntam num conjunto dota-
trato remoto para os delírios psicodéli-
cos do francês (Jean Giraud) Moebius em
sua fascinante Garagem hermética, dos
anos 1970.
Além do jogo fonético entre Remo e
Nemo, outro personagem da narrativa de
não uma mera relação de subserviência. do de sentido, ou numa harmonia supe- Fernandes cita explicitamente o dese-
As referências literárias são evidentes rior qualquer. Em suma, Fernandes colhe nhista McKay: trata-se de Winsor MK
nos roteiros e nos personagens de Fernan- retratos de uma realidade cujo todo não Slumber, responsável pelo roubo do ca-
des, que declarou em entrevista a Roberto resulta da somatória das partes. Vide a tálogo e foragido do sistema totalitário
Elísio dos Santos, veiculada no site Ome- série “A pior banda do mundo”, já no de inspiração tecnocrática imposto pelo
lete (www.omelete.com.br), ser leitor de quinto volume. ditador Zar (seria o regime zarista eco
Borges, Calvino, Kafka, Perec, Cervantes, de salazarista?). Esse Slumber tem os tra-
Rilke, Pessoa, Whitman, Eco, Juarroz e ços fisionômicos do escritor Samuel
Um catálogo de sonhos, José Carlos Fernandes.
Quevedo, entre tantos outros. Beckett, que curiosamente não aparece
São Paulo: Devir, 2004, 32 p.
Tão importantes quanto os es- nas leituras apontadas por Fernandes e
critores, são os cineastas eleitos tampouco nos comentários sobre Um
por Fernandes em seu panteão, No livro Um catálogo de sonhos, catálogo de sonhos espalhados pela
indo de Welles, Lang, Capra, relançado em 2004 – a primeira edição Internet. É óbvio o parentesco de certos
Hitchcock e Hawks a Fellini, Bergman saiu em 1996 pelo obscuro selo editorial personagens de Fernandes, especialmen-
e Tarkovski. Não se pode negar que Pedranocharco – Fernandes arma um con- te nos minicontos de “A pior banda do
estamos diante de uma seleção ao mes- texto de angustiante opressão política, mundo”, com os da galeria de párias e
mo tempo eclética e respeitabilíssima. como em O processo, de Kafka, e 1984, marginais que povoam o teatro e a fic-
A mistura de tão diversas e refinadas de George Orwell. Mas há também a ção do escritor irlandês. A diferença de
leituras aparece transfigurada em ro- sombra obsessiva de Borges, pois o obje- tom entre ambos reside no fato de que a
teiros e ilustrações sofisticados, muito to central do conto, o tal catálogo cobi- maioria dos protagonistas de Fernandes
distantes da produção industrial e çado por poderosos e por anarquistas, tem é de burocratas ou gente comum, sem
padronizada das gigantes norte- as páginas em branco. O texto só aparece qualquer perspectiva de vida minimamente
sob a luz do luar e seus tex- edificante. Os dois autores, porém, lidam
tos nunca são os mesmos. com a tragédia humana em sua dimen-
Qualquer semelhança com o são mais mundana, trivial, antiépica, como
fabuloso e assustador “O li- se houvesse uma certa normalidade na es-
vro de areia” borgeano não tupidez. Donde se conclui que todos esta-
terá sido mera coincidência. mos atolados, irremediavelmente, na gigan-
O traçado da narrativa é tesca mesquinharia histórica parida pela
enxuto, em preto e branco, cultura ocidental.
explorando os contrastes de A latente desesperança no livro de
claro-escuro do romance noir, Fernandes deixa escapar, aqui e ali, um
outra referência significativa lampejo poético, seja nos diálogos morda-
nos quadrinhos (ou banda de- zes, na fuga desesperada de Remo – de
senhada, como se diz em Por- pijamas – pelos telhados da cidade, ou
tugal) de José Carlos Fernandes. mesmo na mensagem final de que o sonho
O que reforça o ambiente ideo- pode ser libertário. Cabe saber que grau
lógico soturno e a dimensão oní- de liberdade ainda resta a um inconsciente
rica do personagem Remo, que estruturado como linguagem e refém dos
“nasceu” literalmente do catálo- arquétipos coletivos.
go. Nesse trabalho, Fernandes José Carlos Fernandes nasceu em
presta homenagem ao norte-ame- 1964, em Loulé, situada no centro do
ricano Winsor Algarve. Formou-se em engenharia am-
McKay (1869- biental, função que exerceu até 1999.
1934), um dos Desde 1989 dedica-se aos quadrinhos,
pioneiros dos como autodidata. Durante muito tempo
comics em jornal publicou em fanzines, chegando a pro-
e criador da sé- duzir mais de mil páginas em veículos
rie “Little Nemo alternativos. Em 2000 ganhou uma bolsa
in Slumberland”, de criação do Ministério da Cultura de
publicada entre Portugal e decidiu arriscar-se na profissão.
1905 e 1911 no Escolha acertada, diga-se.
New York He-
rald. As “via- Reynaldo Damazio é editor e poeta, autor de Nu entre
gens” noturnas nuvens (Ciência do Acidente).

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